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25 Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas MÓIN-MÓIN A máscara e a formação do ator Felisberto Sabino da Costa Universidade de São Paulo

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ARTIGO Mascara Felisberto

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    Revista de Estudos sobre Teatro de Formas AnimadasMIN-MIN

    A mscara e a formao do atorFelisberto Sabino da Costa

    Universidade de So Paulo

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    Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas

    MIN-MIN

    Pgina 26: Miroku Denshu espetculo da Cia. Dondoro Theater ( Japo)

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    Revista de Estudos sobre Teatro de Formas AnimadasMIN-MIN

    No transcurso da nossa civilizao, a mscara utilizada

    sob mltiplos aspectos, possibilitando o contato com o lado

    primitivo do homem, a sua poro lmbica e animal,

    encampando conceitos, idias ou arqutipos. Enquanto objeto,

    ela redimensiona os sentidos alterando a percepo espao-

    temporal. Cabe ao ator promover a ao que anima esse objeto

    por intermdio de procedimentos especficos, constituindo-

    se numa via dupla. O ator relaciona-se com o mundo sob a

    perspectiva de um outro ser, e opera na fronteira entre o perigo

    e o aconchego. Recorrendo a uma imagem, dir-se-ia que a

    experincia da travessia numa corda esticada, em que o

    indivduo organiza o seu corpo-outro para interagir nesse

    entremeio. Assim, a mscara instaura um corpo no cotidiano

    que dialoga com o objeto e este,

    Quando sabiamente animado com o uso de uma tenso

    apropriada da coluna vertebral e com tremores delicados e

    com inclinaes que exploram o jogo de luz e sombra, esse

    objeto, que parece morto, adquire uma vida miraculosa.

    (BARBA, 1995:118).

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    Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas

    MIN-MIN

    Descortina-se, desse modo, um vasto campo de

    experimentao para o ator. Alm da relevncia no mbito da

    formao teatral, a mscara insere-se numa gama ampla de

    expresses artstico-culturais. Desde h muito est presente

    nos ritos e celebraes do homem, quer como elemento

    mgico-religioso quer como artefato cnico.

    A mscara cnica um elemento de comunicao e

    constitui-se territrio da alteridade. Ela (trans)forma e pe

    em relevo o sujeito que deve ceder lugar a um outro.

    Diferentemente de outras manifestaes mascaradas em que

    se tem o ocultamento daquele que a veste, (in)vestir-se de

    uma mscara em cena ocultar-se e, simultaneamente, dar-se

    a conhecer. Para alguns, como, por exemplo, Dario Fo, o

    rosto do ator por trs do objeto permanece impassvel e

    inexpressivo (2004:48), para outros se verifica o processo

    contrrio:

    Seria um erro, pensar que, se um ator usa uma mscara,

    seu rosto esquecido. De acordo com o hbito balins, o

    rosto embaixo da mscara deve representar. Mais ainda, se se

    deseja que a mscara viva, o rosto deve assumir a mesma

    expresso que a mscara: o rosto deve rir ou chorar como a

    mscara. (BARBA, 1995:118)

    As formas teatrais contemporneas tendem a diluir a

    distino entre os gneros e a mscara no mais cola ao rosto

    do ator, mas pode se tornar a embalagem ou o invlucro que

    cobre todo o seu corpo e, at mesmo, ampliar para o espao

    citadino como as mscaras urbanas de Donato Sartori.

    Denominadas pelo seu autor como performances de

    encantamento, Sartori busca a participao do pblico

    mediante a utilizao de uma fibra acrlica especial, cuja

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    Revista de Estudos sobre Teatro de Formas AnimadasMIN-MIN

    extensibilidade permite pessoa envolver-se a si e ao ambiente

    pelo entretecer da fibra, resultando na interao espao urbano,

    pblico e artistas.

    O jogo com a mscara requer, antes de tudo, a investigao

    corporal. Ao subtrair o sistema de expresso do rosto desvela-

    se o corpo, que se torna a ferramenta da tessitura gestual no

    espao. O homem danava para os deuses, e essa dana

    configurava um entretecido por intermdio de aes, gestos,

    movimentos, ritmos e silncios. Esse danarino (ou ator-

    mascarado) o pai do dramaturgo, como j observara Gordon

    CRAIG (1963). Ele ainda acrescenta que o novo dramaturgo

    criar com novos materiais e o ator torna-se esse novo

    dramaturgo. Assim, esse artigo contempla a mscara naperspectiva da formao do ator e da elaborao da sua

    dramaturgia.

    A mscara como instrumento deaprendizagem

    Enquanto experincia pedaggica, a mscara tem sido

    utilizada h bastante tempo, porm, nas primeiras dcadas

    do sculo XX que se desenvolve como suporte didtico para

    a formao do ator. Jacques Lecoq observa que no fim do

    sculo XIX e no inicio do sculo seguinte, d-se o fenmeno

    da redescoberta do corpo, marco de um novo olhar sobre a

    corporeidade no renascimento dos exerccios fsicos, na

    ascenso do esporte, no advento da cronofotografia

    (precursora do cinema), na dana, entre outros. Nesse perodo,

    inclusive, as mscaras africanas so trazidas para a Europa

    por intermdio de artistas, soldados, missionrios, e

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    7 Nos EUA, training utilizado sem distino abarcando trs finalidades diferentesdo treinamento: a formao, a produo e o desenvolvimento da arte do ator.Segundo Feral, na Europa, a partir dos anos 80, tem-se preferido a utilizao dotermo training a treinamento.8 Por exemplo, a atriz, butosta e ex-professora da EAD/USP, Dorothy Leiner, emmeados da dcada de 60, faz um curso de mask work, em Londres, e passa trabalharcom esse procedimento quando de seu retorno ao Brasil.9 Os cursos so promovidos por instituies, associaes, ou por intermdio doprprio profissional. A ttulo de ilustrao, podemos citar os promovidos peloSesc-Pompia ou a Atravez (Associao Artstico Cultural de So Paulo), que,em 1987, realiza o curso Mscaras em Cena, ministrado por Aude Kater (criaoe confeco de mscaras) e Maria Helena Lopes (utilizao das mscaras nainterpretao teatral), em So Paulo.

    mercadores, integrando-se a uma ambincia receptiva ao

    trabalho com elas.

    No apenas o treinamento com a mscara, mas o

    treinamento (ou training 7) em si, algo recente. Conformeatesta FERAL, a noo de treinamento do ator e, mais ainda,

    as prticas que essa noo encerra, na Europa e na Amrica

    do Norte, recuam, no mximo, ao incio do sculo XX.

    (2003:50)

    Antes dos anos 808, j existiam experincias com a mscara

    no Brasil, porm, a partir dessa dcada que ela ganha impulso

    no pas, perodo em que h o retorno de diversos pesquisadores

    e artistas que foram estudar na Europa e nos Estados Unidos

    e, ao regressarem, contriburam para disseminao de um

    trabalho mais sistemtico, estendendo-se a espetculos,

    oficinas9, palestras, disciplinas em escolas tcnicas e

    universitrias.

    A tradio europia, principalmente a francesa e a italiana,

    a principal referncia e, mesmo por intermdio da vertente

    americana, a que aqui chegou a tributria das escolas

    europias. Soma-se a esse fato a visita de diversos

    pesquisadores e artistas cuja presena contribuiu para a

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    Revista de Estudos sobre Teatro de Formas AnimadasMIN-MIN

    discusso, a divulgao e a multiplicao desse trabalho10. Almdas escolas, ou de equipes vinculadas a Instituies, surge no

    seio dos grupos de teatro autnomos um espao de criao,

    de investigao e de formulao de uma pedagogia.

    Embora haja uma diversidade de caminhos quando se

    aborda a pedagogia da mscara, eles se interseccionam em

    pontos comuns, ou seja, nos princpios fundamentais que

    configuram esse saber. A ampla possibilidade de sua utilizao

    reflete-se na prtica dos professores, quando percebemos que

    eles no se fecham em apenas uma escolha. H aquele que a

    utiliza enquanto procedimento pedaggico destinado ao jogo

    do ator, cujo aporte centra-se somente na mscara neutra.

    Outra possibilidade a de encaminhar ao jogo da mscara

    expressiva e, neste sentido, a neutra funciona como passagem

    para aquela.

    Por outro lado, a mscara expressiva pode servir como

    metodologia visando o teatro no mascarado, sem estar

    atrelada utilizao da mscara neutra, embora possa ater-se

    aos seus princpios.

    Se esta ltima prope uma amplitude, no necessariamente

    vinculada ao personagem, no trabalho com a mscara

    expressiva isso parece se fazer necessrio.

    No territrio da animao, a mscara colabora

    duplamente: possibilita o exerccio, visando um corpo cnico,

    e potencializa o ator quanto aos princpios para a atuao

    com um objeto.

    10 Entre as muitas personalidades, pode-se destacar: Ariane Mnouchkine, RobertoTessari, (Universidade de Pisa) Philipe Gaulier, Donato Sartori, EnricoBuenaventura (Piccolo Teatro) etc. Mais recentemente, Nani Colombaioni, ErarhdStiefel, Franois Lecoq, Sue Morrison. H que ressaltar ainda os mestres do teatroNo, do Topeng, do Kathakali.

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    Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas

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    A mscara neutra: um mergulho em simesmo

    A mscara neutra propicia a conscincia corporal de

    forma plena, pois desperta no aluno a necessidade de ele

    aprofundar determinados aspectos do seu ser, e coloca-o ante

    os limites e como trabalh-los, visando uma possvel superao.

    Apreender o estado neutro significa explor-lo em seu prprio

    corpo.

    Caso queira que um ator conscientize de seu corpo, ao

    invs de explicar isso para ele e dizer; voc tem um corpo e

    deve ter conscincia dele, basta colocar em seu rosto um

    pedao de papel em branco e ordenar: agora olhe sua volta.

    (BROOK, 1985:299)

    Colocar o corpo-mente em ao e fazer com que o ator

    experimente uma liberdade, mesmo que temporria, como

    diz Brook, altera a percepo cotidiana, geralmente

    centralizada na face, e o faz conscientizar-se, instantaneamente,

    do corpo esquecido.

    Num primeiro momento, a mscara neutra possibilita ao

    ator (des)vestir a sua identidade pessoal. Na medida em que

    ele ape sobre o seu rosto um outro, imediatamente, deixa de

    ser ele, enquanto uma identidade fisicamente falando: ao se

    olhar no espelho, ele no v o prprio rosto. Eis o paradoxo:

    o ator esconde-se para se mostrar. Ao trabalhar a mscara

    neutra, Lecoq nos diz que nela se entra da mesma forma que

    acontece a um personagem, porm, naquela no h

    personagem, mas um ser genrico e neutro. Acrescenta ainda

    que, quando se joga bem com ela, o rosto do ator estar

    relaxado. (1997:49)

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    Revista de Estudos sobre Teatro de Formas AnimadasMIN-MIN

    A mscara neutra serve como apoio para as demais. Assim,

    a justeza do movimento, a pausa e a relao frontal (na mscara

    neutra ela pode ser relativizada) so alguns dos princpios

    comuns, que so utilizados em procedimentos diversos. A

    pausa pode se dar com a lei dos trs segundos, a suspenso da

    respirao, a pontuao de um movimento, a mudana de uma

    ao, a triangulao e a decupagem, entre outros.

    Fundamentalmente, a mscara neutra o lugar do silncio, da

    escuta e da relao espontnea com o mundo. Assim, quando

    um ator explora um objeto - uma mesa, por exemplo - no

    esto em jogo as reminiscncias de uma determinada mesa

    que ele conhea, mas, sim, a relao com aquele objeto naquele

    instante especfico.

    Trabalhar a neutralidade no requer, necessariamente, uma

    mscara, mas ela se torna um suporte valioso para a apreenso

    de determinados princpios.

    O objeto torna-se til ao ator que centrado em demasia

    no prprio rosto. Tornar o invisvel visvel com o auxlio da

    mscara faz com que o aluno tenha que concretizar,

    efetivamente, a ao. Porm, dar forma da mscara neutra

    uma importncia ou uma geometria excessiva, pode incorrer

    em artificialismos. Contanto que no informe demais e no

    se converta numa mscara expressiva, ela pode ser uma folha

    de papel no rosto do ator, uma meia de nylon, mscarasinspiradas no modelo Sartori/Lecoq ou outra qualquer11.

    Quanto forma do objeto, Lecoq nos fala de um modelo

    masculino e outro feminino, que so distinguidos por suas

    dimenses. Todavia, h aqueles que acham desnecessria essa

    11 No trabalho com a mscara neutra, o professor Armindo Bio utiliza umamscara denominada pelos seus alunos de mscara do zorro. Trata-se de umamscara de lona negra, bastante popular nos carnavais das dcadas de 40/60, noBrasil.

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    Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas

    MIN-MIN

    distino, e a mscara caracteriza-se por um padro neutro

    geral. A neutralidade apresenta variados estados de

    compreenso, fundamentada em princpios comuns, e o que

    neutro para um pode no s-lo para outro. Neste sentido, a

    neutralidade se torna pessoal (quanto utilizao dos

    princpios), dado que no h um padro nico

    (ELDREDGE e HUSTON, 1978:22) Para Lecoq, o graubsico de enunciao do jogo do ator na mscara neutra situa-

    se na suspenso, um estado basilar que perpassa todo o

    processo, no qual o corpo possui um nvel de energia que o

    diferencia do habitual12.

    A neutralidade refere-se tambm a uma atitude interna e

    no a um individuo, e relaciona-se s aes ou atitudes que

    Bari Rolfe denomina universais.

    Dessa forma, distancia-se da psicologia de um indivduo

    e busca um substrato comum a todos e no o particular. H

    um desafio em relao s identidades, no sentido de desvesti-

    las de suas peculiaridades, as quais envolvem caractersticas

    tnicas, culturais, sociais, emocionais e psicolgicas.

    12 Na concepo de Lecoq, o teatro requer do corpo um nvel de tenso maiselevado do que o experimentado habitualmente. Assim, ele estabelece uma escalade sete nveis que tem a suspenso como o nvel bsico. Num sentido ascendente,teramos a subdescontrao; expresso de sobrevida, como antes da morte, efala-se com dificuldade; a descontrao so as frias do corpo, e este saltasobre si mesmo como um pndulo; o corpo econmico caracteriza-se pelo mnimode esforo e mximo de rendimento, tudo dito quase com polidez, sem paixo;o corpo sustentado caracteriza-se pelo estado de alerta, suspenso, chamamento,de descoberta e no h descontrao. A primeira tenso muscular situa o teatrono nvel do jogo realista; com a segunda tenso muscular, o teatro est prximoda mscara e no pode ser jogado como na vida, pois estamos no universo daestilizao. Finalmente, a terceira tenso muscular um estado de contenoabsoluta, como o teatro N. Esses nveis no so eqidistantes e se relacionamnuma relao rtmica viva. (LECOQ, 1987) O ator pode percorrer essa gamaascendente e descendente, porm, o estado bsico de suspenso est semprepresente, seja um jogo que tende ao teatro mais realista ou o de conteno absoluta,como no teatro N.

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    Revista de Estudos sobre Teatro de Formas AnimadasMIN-MIN

    O exerccio da mscara neutra requer a apreenso da

    humildade, porm, no se trata de subservincia ou da

    anulao, mas de exercitar a escuta para exercer o ser. O estado

    neutro, mais do que um estado interessante para a cena,

    principalmente um estado para o ator.

    A mscara neutra no se restringe apenas a ser passagem

    para a utilizao da mscara expressiva, e vincul-la somente

    a essa possibilidade torn-la um caminho unvoco. Ela no

    constitui um receiturio, pois uma metodologia no se explica

    apenas pelos seus procedimentos, mas tambm pelos conceitos

    (ou princpios): a mscara neutra uma pedagogia para a (trans)

    formao do ator, revelando-lhe os meandros do seu corpo-

    mente.

    Na orientao, a prtica dominante a via negativa, dado

    que essa mscara o territrio de todas as possibilidades. O

    professor no diz ao aluno o que ele deve fazer, mas a partir

    daquilo que ele no coaduna com os princpios estabelecidos

    pela mscara.

    A mscara neutra no uma cincia exata em todos os

    sentidos e pode ser pensada como um estgio pr-expressivo:os princpios que tornam vivo o corpo do ator em cena

    (SAVARESE, 1995:230) Embora em Lecoq haja a distino

    entre o masculino e o feminino, h a possibilidade de trabalh-

    la segundo a polaridade animus-anima. Enquanto o primeirotermo refere-se ao vigor e fora, o segundo expressa o suave.

    No se trata de distino sexual, mas de formas

    complementares de energia e, neste sentido, nada tem a ver

    com distino entre masculino e feminino e nem com

    arqutipos e projees junguianos. (BARBA, 1995:79). Assim,

    a mscara o ideal para apreender o denominador comum

    dos seres, das coisas, daquilo que pertence a todos, uma

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    Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas

    MIN-MIN

    mscara coletiva que, dramaticamente, pede o coro.

    (FELICIO, 1989:359). Neste sentido, experincia do

    individual dialetizado no coletivo.

    A mscara neutra retira o ator da interiorizao absoluta

    e coloca-o no universo da sensao, revelando-o em suapretenso mais primria, e o que ele faz (ou no faz)

    imediatamente percebido por todos. Enquanto lugar da

    metamorfose, a mscara constitui um instrumento que gera

    reflexes sobre o trabalho do ator, principalmente, se se parte

    de principio de que o seu corpo o suporte para a enunciao

    de um personagem. Este no uma entidade pr-existente

    tessitura dramatrgica que o ator veste, mas uma encruzilhada

    de signos que so gerados no seu corpo. Assim, a mscara

    (neutra) se revela como um instrumento eficaz para esta

    (trans)formao.Ao discorrer sobre as principais caractersticas que

    distinguem um exerccio atoral, e a explicitao desse fazer

    enquanto dramaturgia, BARBA nos diz que nos exerccios o

    ator aprende a no aprender a ser ator, isto , a no aprender

    a atuar. O exerccio ensina a pensar [e agir] com o corpo-

    mente. (1995) Essa tambm uma questo fundamental na

    formulao de um trabalho com a mscara neutra.

    Jogar.com

    Jogar com a mscara (com)partillhar a ao presente

    em mltiplas camadas, estabelecendo inter-relaes com o

    prprio corpo e deste com o objeto aposto em sua face.

    colocar-se em situao de risco e buscar um dilogo ldico

    consigo mesmo, com o outro e com o espectador num espao-

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    Revista de Estudos sobre Teatro de Formas AnimadasMIN-MIN

    tempo mutante. Tanto em Copeau quanto Lecoq, o jogo

    principia com o silncio que antecede ao uso palavra. Na sua

    pedagogia, antes da utilizao da mscara neutra, Lecoq prope

    que se trabalhe a psicologia da vida silenciosa, para que os

    alunos (re)vivam situaes ldicas sem se preocuparem com

    o pblico, em que todos os participantes se envolvem e

    (re)criam uma sala de aula, um mercado, um hospital ou um

    metr. Nesse faz-de-conta, busca-se presentificar

    corporalmente a liberdade experimentada na infncia, processo

    que Lecoq define como rejeu, para distingui-lo de jeu13 queaparece mais tarde, quando consciente da dimenso teatral, o

    ator d, para o pblico, um ritmo, uma medida, uma durao,

    um espao, uma forma sua improvisao. (LECOQ,

    1997:41) Ao associar o jogo da mscara ao universo da

    brincadeira infantil, Copeau e Lecoq elaboram prticas que

    procuram resgatar o estado ldico, parte fundamental no

    trabalho do ator. Porm, h a necessidade de conhecer os

    condicionantes que se originam dos diversos aspectos que o

    envolvem nas mltiplas relaes. Selecionemos, inicialmente,

    um referente ao objeto: Amleto Sartori, ao optar por

    confeccionar a mscara neutra em couro, a fez com um material

    malevel demais, e quando colocada no rosto de Lecoq, aquela

    grudava demasiadamente na pele, impedindo-o de jogar.

    Assim, ele percebeu que era necessrio haver uma distncia

    entre rosto do ator e a mscara. Esta no atua em oposio

    ao rosto, mas sim com ele, no se trata de um e de outro,

    porm de ambos que se somam e interagem simultaneamente,

    mas no se fundem. Numa outra perspectiva, a existncia de

    um vazio, embora no destitudo de energia, configura um

    13 Entre os diversos sentidos que a palavra jeu suscita, neste contexto, poderamosreferir atuao, ou seja, o jogo que o ator estabelece durante a atuao.

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    Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas

    MIN-MIN

    espao-tempo no visvel, porm sensvel, e pode ser

    observado na regra dos trs segundos, no jogo do andar/

    falar14 empregado pelo Thtre du Soleil, ou na dialticaestabelecida entre ao e reao, na qual se observa que,

    quanto maior seja o espao de tempo entre a ao e a reao

    mais forte ser a intensidade dramtica, maior ser o jogo

    teatral se o ator sustentar esse nvel. (LOPES, 1990:59) Na

    triangulao, que contribui para a quebra da continuidade lgica

    sugerida pelo realismo e a incluso da platia no jogo teatral,

    h micro-momentos de vazios, nos quais o espectador

    preenche com a imaginao. Neste sentido, a professora Isa

    TRIGO nos diz que o jogo cnico composto pelo tecido

    vivo que se compe dos olhares, movimentos e pausas dentro

    de um estado especfico (1999:111) Assim, a pausa dentro

    de um estado especfico vincula-se tambm ao vazio que no

    ocasiona a interrupo. Deve-se ressaltar que no se tratamde tcnicas somente, antes constituem princpios que

    determinam o jogo. Assim, o jogo do ator [com a mscara]

    , para falar de maneira figurada, seu duelo com o tempo, em

    que as relaes so (re)descobertas em presena. (ApudPICON-VALLIN, 1989:35)..

    14 O exerccio coloca como restrio a no simultaneidade das duas aes.

    Improvisao

    A atividade improvisacional encerra, segundo Sandra

    CHACRA, diferentes implicaes e significados, de

    conformidade com os diversos contextos e prticas com os

    quais se encontra ligada e caracteriza-se pelo momento e

    pela espontaneidade (1983:111) Valendo-nos de Grotowski,

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    Revista de Estudos sobre Teatro de Formas AnimadasMIN-MIN

    observamos que a espontaneidade impossvel sem a estrutura

    e que necessrio rigor para alcan-la. Quanto mscara,

    Sears ELDREDGE, nos diz que a improvisao requer quevejamos com nossa imaginao transformativa (1996:60).Vista por este ngulo, a mscara requer o improviso como

    algo intrnseco, pois uma vez instaurada no tempo, e posta

    em movimento, sempre devir.

    Assim como o jogo, a improvisao ancora-se em

    princpios que atuam como propulsores para o impondervel,

    o fenmeno imprevisto (que pode ser pr-visto) e, no calor

    do evento, assume uma natureza inaugural. Improvisar da

    natureza da mscara, dado que o objeto deve, a cada dia, ser

    animado, receber o sopro divino respirao pelo ator para

    coloc-la e se colocar em movimento. Embora v construindo

    um repertrio, o ator no lhe tem apego e, a cada vez que h

    o encontro entre ator e mscara, a (re)conhece, a (re)v, a

    (re)cria. A mscara o objeto que (re)vive a cada experincia,

    remontando ao pressuposto heraclitiano do devir, no qual

    sensvel e inteligvel no se separam. Nesse sentido, ao se

    propor ser, cada ato sempre o primeiro das muitas vezes

    possveis, abrindo-se tambm para a manifestao do acaso.

    A improvisao um constante fluir do corpo-mente sempre

    renovando o contexto de nossa experincia. Considerando-

    se estes postulados, a mesma pode se dar de uma forma livre,

    com uma estrutura mnima, com a qual a espontaneidade do

    ator possa agir ou advir de um universo mais codificado, como,

    por exemplo, o da commedia dellarte.A improvisao estabelece um jogo no qual professor e

    aluno renunciam o apreendido e se pem disponveis para o

    inesperado. Dessa forma, o professor tambm improvisa, dado

    que no tem uma resposta preconcebida ao que aluno faa.

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    Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas

    MIN-MIN

    Improvisar no se vincula, necessariamente, a um resultado

    esttico e um instrumento poderoso em que se conjugam

    diversos princpios da arte de atuar, em que cada qual deve

    descobrir sua maneira de aprender. Assim como a mscara, a

    improvisao no se constitui num conjunto de tcnicas, mas

    configura-se em princpios dos quais se valem os professores

    para comporem suas metodologias. Improvisar um processode afinao do corpo-mente do ator, e deve ser prtica

    contnua, tornando-se elemento constante do seu treinamento

    (ou training). Se a improvisao, sob o ngulo do pblico, s pode

    ser entendida atravs de uma reao imediata da platia

    (CHACRA, 1983:111), cuja vibrao contamina o artista em

    cena, quando esta se d num ambiente de formao do ator,

    a platia composta em classe reveste-se de uma qualidade

    especfica para alm daquela experimentada pelo espectador

    alheio situao explicita de aprendizado. Material criado

    em situao de ignorncia que pode se constituir um repertrio

    sempre restaurado, a improvisao serve tanto formao

    do ator quanto formulao de linguagens estticas. A

    improvisao, por mais codificada, traz em si a surpresa, o

    inesperado, o admirvel espanto que nos faz pensar pela sua

    originalidade.

    O observador

    No trabalho com a mscara, o espectador um elemento

    fundamental, tanto no processo de aprendizagem quanto no

    espetculo, em que a platia um dos suportes do jogo cnico.

    O observador o espelho pelo qual o ator se v. Para Lecoq,

    o observador no deve emitir opinio, porm, constatar.

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    Revista de Estudos sobre Teatro de Formas AnimadasMIN-MIN

    A constatao o olhar que se dirige sobre a coisa viva,

    intentando ser o mais objetivo possvel. (1997:31)

    Referenciando Arheim, TRIGO nos diz que ver compre-

    ender, a percepo no nvel sensrio semelhante ao

    raciocnio no domnio do entendimento. (1999:33) O olhar

    do aluno deve ser como o olhar da mscara, em que todo o

    seu corpo participa, ativando as inteligncias de todos os

    sentidos.

    Durante um processo educativo, aprende-se tambm por

    observao, tanto o aluno que se v fazendo algo quanto aquele

    que observa algo sendo feito. Como j referido, a mscara

    um instrumento de duas vias e, neste sentido, fundamental a

    presena de um observador. O ir-e-vir, que caracteriza as vias

    interna e externa para o ator, se efetiva pelo jogo cnico,

    mediante ator e espectador. Numa outra instncia, o professor

    de igual modo um observante, pois, nessa fase, o trabalho

    de orientao do ator fundamental para o seu desempenho

    com a mscara.

    As mltiplas energias

    A mscara exige uma presena cnica correspondente

    energia elaborada pelo ator para sustent-la. Quando se fala

    em energia h, pelo menos, duas possibilidades: a que se refere

    ao trabalho do ator e a concentrada no objeto, configurada

    pela forma, pelas linhas e pelo material do qual ele feito.

    Neste ltimo aspecto, forma e linhas so expresses da energia

    organizada pelo mascareiro, tal como Rodin observa, ao falar

    da arte da escultura:

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    Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas

    MIN-MIN

    Na realidade, no h um s msculo do corpo que no

    expresse variaes interiores (...) acentuo as linhas que melhor

    expressem o estado de esprito que interpreto. (RODIN,

    1990:20/22).

    H, ainda, a energia como manifestao de uma fora

    supra-humana. Para um mascareiro balins, a energia (ou a

    alma) concentra-se na mscara e, para entalh-la, encontra a

    madeira por intermdio de um ritual extremamente requintado,

    como inclusive acontece com um integrante da etnia Dogon:

    a madeira eleita ao mesmo tempo em que se oferece para a

    escolha.

    Em nosso contexto, estabelecemos outras formas de

    relaes com o material, criamos pequenos rituais e crenas

    no exerccio do fazer, mesmo que momentneos. A energia

    da mscara, no necessariamente, tem um carter mstico,

    porm, no processo de confeco, aquele que a constri,

    imprime um pouco de si na geografia do objeto. Em sua

    pesquisa, BARBA nos lembra que energia, etimologicamente,

    significa estar em ao ou em trabalho.

    Na prtica com a mscara, o estar em ao, em parte,

    d-se pela relao dialtica do movimento, a partir da

    conjuno objeto e corpo. Ainda segundo o autor, a oposio

    a essncia da energia e a dana das oposies danada no

    corpo, antes de ser danada com o corpo. (1995:13) Nesse

    sentido, entre este e o objeto h um encontro, dado que o

    ator, pela sua organizao psicofsica, faz nascer o fluxo

    energtico.

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    Estados da mscara e do ator

    A mscara traz em si a possibilidade ou a capacidade de

    afetar quele a quem ela (in)forma e, no processo de utilizao,

    o ator se abre para receber as informaes que ela lhe sugere

    e vice-versa. Porm, no se trata de uma generosidade passiva,

    mas (re)ativa, pois a mscara no faz pelo ator aquilo que lhe

    devido. Nesse sentido, ela determinante: o ator (des)cobre-

    se com a mscara e esta vai encontrar nele elementos que

    dialogam com o estado que ela prope. Em outras palavras,

    aquilo que o motiva (assumindo o estado proposto) e, por

    outro lado, como que o ator motiva (pe em movimento)

    aquela energia. Manter um estado requer o exerccio do corpo-

    mente, promovendo um domnio tcnico que se converta

    numa segunda natureza para o ator. 15 Fundamentalmente, a

    mscara suscita um estado que se assenta sob uma determinada

    energia, aquele pode ser alcanado tambm sem a mscara,

    porm, no primeiro caso, implica numa confluncia psicofsica

    mediada pelo objeto.

    O estado um constante fluir que envolve sentimento,

    emoo, pensamento e articula-se com a ao. Em

    determinados momentos, faz-se necessrio a pausa, a qual

    no nega o movimento, antes o reafirma. A pausa um vo

    que se abre nas linhas de ao e se converte na ponte que leva

    ator e pblico a compartilharem o caos, e do qual emergem

    revigorados.

    15 Grotowski nos diz que dominar a tcnica um estgio necessrio para depoisesquec-la. O que nos remete no-conscincia, como observa TRIGO,preconizada por Mnouchkine como uma condio de fluidez para o trabalho.

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    MIN-MIN

    Numa abordagem mais ampla, o termo estado adquire

    outras acepes e pode referir-se s diversas experincias

    vivenciadas pelo aluno numa situao de ensino-aprendizagem.

    Energia e estado na mscara podem ser compreendidos sob

    mltiplos aspectos, e estes se manifestam mediante o ator e o

    objeto postos em relao. No h um receiturio que permita

    alcanar e manter determinado estado; tampouco h uma

    medida temporal para que isso acontea, cada ator elabora o

    seu prprio percurso, partindo de princpios que so comuns

    a todos.

    O outro corpo: a dramaturgia do ator

    Seja no campo da pr-expressividade, seja no da

    expressividade, a mscara determinante no que se refere ao

    corpo do ator. Dessa forma, temos o trabalho (ou

    treinamento) do ator sobre si mesmo, para alm do seu corpo

    social e o espao de criao artstica propriamente. Em ambos,

    a mscara prope, necessariamente, um nvel de energia

    distinto daquele requerido pelo corpo habitual. no instante

    de suspenso16 que esse teatro aparece, (LECOQ, 1987:104)

    e manter-se em estado de suspenso requer um corpo dilatado.

    A preparao do ator, principiando por uma base fsica ou

    no, perfaz um caminho at atingir o estado de jogo, ou seja,

    a passagem de um corpo cotidiano para um corpo cnico.

    Este corpo, no qual o ator tece signos cuja confluncia gera o

    personagem, busca um equilbrio precrio caracterizado por

    16 Lecoq estabelece sete nveis de energia para o trabalho de enunciao do ator:o nvel mximo de tenso, a exacerbao de energia, a hipertenso, e o nvelmnimo a exausto. Tal como uma escala musical, ele parte da exausto, seguidodepois pela economia, suspenso, deciso, atitude e hipertenso. Em cada nvel,enuncia-se o jogo do ator de uma determinada maneira.

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    qualidade distinta daquela com a qual se relaciona na vida

    habitual. Dario FO argumenta que o elemento de base da

    commedia dellarte, e de determinados estilos do teatro oriental, a bacia (Koshi), ou seja, o jogo est centrado na bacia, mola

    propulsora de todos os movimentos. Assim, enquanto o Vecchiocoloca para frente o molejo da bacia, o zanni Arlechino, clssicodo sculo XVIII, projeta o ventre para frente e os glteos

    para fora, estabelecendo um jogo de oposies em que realiza

    uma dana continua com salto e trote. J o do sculo XVII

    mais centrado no tronco, deslocando-se em um fora de

    equilbrio, com o jogo de ancas no danado, mas andado

    (FO, 2004:65) Enfim, com o outro-corpo busca-se um

    equilbrio de luxo que instaura o universo cnico e, no decorrer

    desse processo, cada ator constri o seu modo prprio para

    instalar em seu corpo cotidiano essa organizao de energia,

    passagem que engloba a parte fsica (motor-muscular) e a

    mente.

    Estar em estado relaciona-se alterao da conscincia

    psicofsica do ator, e traz no seu bojo a energia necessria

    para a constituio de um corpo cnico. Para alguns

    professores, o percurso estabelecido da mscara neutra

    expressiva tem como intuito trabalhar esse estado diferenciado,

    pois, ao velar o rosto, em geral, o objeto primeiro da

    comunicao o corpo que prov fluidez ao objeto. Se a

    mscara que gera a organizao corporal, ou se a partir desta

    resulta a mscara, uma questo de escolha, pois ambos os

    caminhos so igualmente vlidos.

    O conceito de dramaturgia aplicado ao trabalho do ator

    tem nas aes fsicas, elaboradas num espao-tempo

    determinado o seu esteio, aes de carter psicofsico que

    sofrem mudanas de qualidade ao longo da sua trajetria. Essa

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    MIN-MIN

    busca realizada com uma mscara suscita elementos com os

    quais o ator possa trabalhar tanto o elemento visvel (a

    partitura) quanto o invisvel (a sub-partitura). Esse ltimo,

    como observa Barba, que d vida quilo que o espectador

    v. o corpo-outro o suporte para a dramaturgia do ator,

    seja no processo pessoal seja na tessitura da cena, cuja suave

    brisa provoca alteraes na perpendicularidade do espectador.

    Trabalho vocal e tipologias de mscarasfalantes

    Ao colocar a mscara sobre o rosto, o ator ter os seus

    sentidos alterados, e ter que adequar a respirao a essa nova

    realidade. Alm das suas linhas, que podem influir na pesquisa

    da voz para o personagem, a anatomia da mscara conduz a

    um estado vocal diferenciado. Assim, meia-mscara, mscara

    inteira sem articulao da mandbula e mscara inteira com

    articulao proporcionam qualidades vocais distintas. Mesmo

    dentro de um determinado estilo de mscara h variaes. A

    meia-mscara pode apresentar caracterstica diversa de acordo

    com o personagem e com a sua conformao. Ao discorrer

    sobre a anatomia de determinadas mscaras do Magnfico,

    Dario FO diz que muitas comprimem o meu rosto,

    impedindo-me de respirar e, principalmente, dando um tom

    errado minha voz. (FO, 2004: 111). H que se considerarainda o material com o qual ela feita, uma mscara de papel

    mach tem uma ressonncia distinta de uma realizada em

    couro17. Valendo-nos ainda das apreciaes de Dario Fo, pode-

    17 Para o mascareiro Werner Strub, a matria com que fabrica a mscara, segundoseja mais bruta ou mais refinada, criar diferenas de estatuto e de classes sociais.

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    se dizer que cada mscara um instrumento musical que

    possui sua particular caixa de ressonncia (...) e adaptar-se

    mscara resultado de exerccio e ateno, uma questo

    tcnica, mas tambm de instinto.(FO, 2004:45/115).

    Para Lecoq, a emisso de uma voz no espao da

    mesma natureza que a realizao de um gesto, da mesma forma

    que lano um disco no espao, lano minha voz no espao,

    intento alcanar um objetivo, falo a algum de certa distancia.

    (1997:150) Nesse sentido, a voz toca, acaricia, envolve ou

    esmurra o interlocutor. Na sua escola, a experincia com a

    voz est ligada ao fsica e tambm ao corpo da palavra,

    que deve ter a qualidade da aderncia. Nos exerccios com o

    coro o trabalho vocal busca a voz comum do conjunto.

    Enquanto a mscara neutra, que cobre todo o rosto,

    caracterizada pelo silncio, na meia-mscara neutra

    experimenta-se a sonoridade, e esta aflora no movimento. As

    mscaras expressivas podem ser silenciosas, como no trabalho

    de Ana Maria Amaral, ou articuladas, para permitirem a

    emisso vocal. Existem ainda os acentos, como doutor da

    commedia dellarte ou mscaras que cobrem pequenas poresdo rosto, denominadas mscara de zigoma por Jair Correia,

    do grupo Fora do Srio (SP). Nestas, experimenta-se maior

    liberdade facial e vocal. H, porm, mscaras expressivas em

    que no se tem articulao, na qual o ator fala por intermdio

    de um orifcio na boca, como a utilizada por Libby Appel, ou

    as que no apresentam orifcio pronunciado, mas a distncia

    entre o rosto do ator e o objeto possibilita que isso acontea,

    como as do teatro N. Porm, so as meias-mscaras, aquelas

    em que a voz largamente empregada.

    No prprio processo de trabalho com a mscara existe a

    possibilidade de se aprimorar o trabalho vocal.

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    MIN-MIN

    Utilizado com a meia-mscara, o grammelot possibilita nosomente a quebra da lgica da palavra e de determinados

    automatismos, mas tambm o trabalho com a embocadura e

    a colocao da voz.

    Trata-se, portanto, de um jogo onomatopaico, articulado

    com arbitrariedade, mas capaz de transmitir, com o acrscimo

    de gestos, ritmos e sonoridades particulares, um discurso

    completo. (FO, 2004:97)

    Nesse processo, encontra-se implicado a criao de

    sonoridades (sons onomatopaicos), bem como, gestualidade

    limpa, e evidente, timbres, ritmos, coordenao e,

    principalmente, uma grande sntese. (FO, 2004:100), ou seja,

    o grammelot torna-se uma voz-mscara por excelncia.Improvisar, utilizando o grammelot, constitui um exerccio

    dramtico acompanhado de dimenso vocal, em que a mistura

    de sons sugere um sentido para o discurso. Porm, podemos

    pensar que, antes do sentido, o que nossa memria retm ,

    muitas vezes, como as coisas so ditas. (RYNGAERT,

    1995:46)

    Por fim, deve-se observar que a voz no somente o

    som, mas a vibrao externa e interna do corpo18.

    Dessa maneira, ao se emitir a sonoridade de um a, por

    exemplo, todo o corpo se organiza num espao de tempo

    imediatamente antecedente, configurando-se nas vibraes

    desse a, mesmo que esse ato no seja visvel. Neste sentido,

    o ator busca no seu corpo a sonoridade que tambm mscara.

    18 Anotao realizada pelo autor da pesquisa durante o curso de Do Ho, ministradopor Toshi Tanaka.

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    Os caminhos da ao para o trabalho com a mscara so

    diversos, mas se apiam sobre princpios comuns. As escolhas

    se do em conformidade com cada percurso, em que as

    referncias so (re)trabalhadas em cada contexto. A mscara

    no se presta somente construo do personagem, mas

    apresenta-se como instrumento para a compreenso do

    fenmeno teatral, distanciando-se uma perspectiva

    exclusivamente tcnica.

    O trabalho com a mscara em escolas de teatro se insere

    numa perspectiva esttica e pedaggica do sculo XX, que a

    resgatou. A partir da dcada 80, o Brasil experimenta um

    crescimento considervel no trabalho pedaggico vinculado

    a esse pensamento, no somente em escolas de teatro, mas

    tambm em grupos teatrais.

    O projeto pedaggico com a mscara colabora

    fundamentalmente na formao dos atores e permite aguar

    a percepo e a anlise desse fazer, pois ainda que eles no a

    utilizem como escolha artstica percebem claramente princpios

    que so essenciais para a compreenso do seu ofcio. Com a

    mscara, evidenciam-se questes que so muito objetivas,

    como, por exemplo, a qualidade e a preciso do gesto, a forma

    como ele utiliza o corpo ou se relaciona com objetos. Tudo

    isso se evidencia e salta aos olhos do receptor.

    Simultaneamente, artifcio e humanidade, rigor e

    espontaneidade, a mscara traz em si algo rigorosamente

    construdo, ao mesmo tempo em que revela algo demasiado

    humano.

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    Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas

    MIN-MIN

    Referncias

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    Pgina 52: Bulha dos Assombros espetculo do Grupo Menestrel Fazed de Lages (SC)Pgina 53: (Superior) Stop espetculo da Cia. Mikropodium de Budapeste (Hungria)Pgina 53: (Inferior) Antologia espetculo da Cia. Jordi Bertran (Espanha)