santa teresa d'Ávila - o livro da vida

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  • 7/31/2019 Santa Teresa D'vila - O Livro da Vida

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    Santa Teresa de Jesus

    LIVRO DA VIDA

    Autobiografia

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    ndice Geral

    JHS

    CAPTULO 1. Trata como o Senhor lhe comeou a despertar a alma para a virtude na sua infncia,e quanto a isto ajuda os pais serem virtuosos.

    CAPTULO 2. Diz como foi perdendo estas virtudes e quanto importa, na meninice, tratar compessoas virtuosas.

    CAPTULO 3. Trata como uma boa companhia lhe serviu para despertar seus desejos e por quemodo o Senhor lhe comeou a dar alguma luz sobre o engano que tinha trazido.

    CAPTULO 4. Diz como o Senhor a ajudou a convencer-se a si mesma para tomar Hbito e asmuitas enfermidades que Sua Majestade lhe comeou a dar.

    CAPTULO 5. Narra as grandes enfermidades que teve e a pacincia que o Senhor lhe deu e comodos males tirou bens, conforme se ver por uma coisa que lhe aconteceu neste lugar aonde se foicurar.

    CAPTULO 6. Trata do muito que ficou a dever ao Senhor por lhe ter dado conformidade em to

    grandes trabalhos e como tomou por medianeiro e advogado ao glorioso So Jos e o muito que lheaproveitou.

    CAPTULO 7. Trata como foi perdendo as mercs que o Senhor lhe tinha feito e quo perdida vidacomeou a ter. Diz os danos que h em no serem muito enclausurados os mosteiros de monjas.

    CAPTULO 8. Trata do grande bem que lhe fez no ter deixado de todo a orao para no perder aalma, e quo excelente remdio para ganhar o perdido. Persuade a que todos a tenham. Diz como grande ganho, embora a tornem a deixar por algum tempo.

    CAPTULO 9. Trata por que meios comeou o Senhor a despertar a sua alma e a ilumin-la em to

    grandes trevas e a fortalecer a sua virtude para no O ofender.

    CAPTULO 10. Comea a declarar as mercs que o Senhor lhe fazia na orao. Como nos podemosajudar e o muito que importa que entendamos as mercs que o Senhor nos faz. Pede a quem enviaesta relao da sua vida que fique no segredo o que escrever daqui em diante, j que lhe mandamdeclarar em pormenor as mercs que lhe faz o Senhor.

    CAPTULO 11. Diz a razo por que no se ama a Deus com perfeio em breve tempo. Comea adeclarar, por uma comparao, quatro graus de orao. Vai tratando aqui do primeiro. muitoproveitoso para os que comeam e para os que no tm gostos na orao.

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    CAPTULO 12. Prossegue no assunto deste primeiro grau de orao. Diz at onde podemos chegar,com o favor de Deus, e o dano que h em querer elevar o esprito a coisas sobrenaturais, at que oSenhor o faa.

    CAPTULO 13. Continua a tratar do primeiro grau de orao e d uns conselhos para algumastentaes que o demnio apresenta algumas vezes. muito proveitoso.

    CAPTULO 14. Comea a declarar o segundo grau de orao que o Senhor j fazer sentir almagostos mais particulares. Declara-o para fazer ver como j so sobrenaturais. muito para se ter emconta.

    CAPTULO 15. Prossegue na mesma matria e d alguns avisos sobre o modo de proceder naorao de quietude. Diz como h muitas almas que chegam a ter esta orao e poucas as que passamadiante. So muito necessrias e proveitosas as coisas que aqui se dizem.

    CAPTULO 16. Trata do terceiro grau de orao e vai declarando coisas muito elevadas, e o quepode a alma que aqui chega, e os efeitos que fazem estas mercs to grandes do Senhor. muito

    para elevar o esprito em louvores a Deus e para grande consolao de quem aqui chegar.CAPTULO 17. Prossegue na mesma matria deste terceiro grau de orao. Acaba de expor osefeitos que produz. Diz o dano aqui causado pela imaginao e a memria.

    CAPTULO 18. Trata do quarto grau de orao. Comea a declarar, de modo excelente, a grandedignidade a que o senhor eleva a alma que est neste estado. Serve de estmulo aos que tratam deorao para se esforarem a chegar a to alto estado, pois se pode alcanar na terra, no pelosprprios merecimentos mas por bondade do Senhor. Leia-se com ateno, pois descrito muitodelicadamente e apresenta coisas muito importantes.

    CAPTULO 19. Prossegue na mesma matria. Comea a declarar os efeitos produzidos na alma,neste grau de orao. Aconselha a que no tornem atrs nem deixem a orao, ainda que, depoisdesta merc, tornem a cair. Diz os danos que h em no se fazer isto. E de grande consolo para osfracos e pecadores.

    CAPTULO 20. Trata da diferena que h entre a unio e arroubamento. Declara o que arroubamento e diz alguma coisa sobre o bem que existe na alma que o Senhor, pela Sua bondade,faz chegar a Ele. Enumera os efeitos que produz. muito para admirar.

    CAPTULO 21. Prossegue e acaba este ltimo grau de orao. Diz o que a alma sente por continuara viver no mundo; e como o Senhor a esclarece dos enganos deste mesmo mundo. Tem boa

    doutrina.

    CAPTULO 22. Trata de quo seguro caminho para os contemplativos no levantarem o esprito acoisas altas se o Senhor o no levanta, e como a Humanidade de Cristo deve ser caminho parachegar mais alta contemplao. Fala dum engano em que andou algum tempo. muito proveitosoeste captulo.

    CAPTULO 23. Volta a tratar do discurso da sua vida e diz como comeou a tratar de maiorperfeio e por que meios. proveitoso para as pessoas que dirigem almas de orao, para quesaibam como se ho de haver nos princpios e o proveito que lhes faz saberem-nas levar.

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    CAPTULO 24. Prossegue o mesmo assunto e diz como foi progredindo a sua alma, depois quecomeou a obedecer e o pouco que lhe aproveitava resistir s mercs de Deus e como SuaMajestade lhas ia fazendo maiores.

    CAPTULO 25. Trata da maneira como se entendem estas falas que Deus faz alma, sem seouvirem, e de alguns enganos que pode haver nisso e em que se conhecer quando engano. muito proveitoso para quem se encontrar neste grau de orao, porque muito bem explicado e degrande doutrina.

    CAPTULO 26. Prossegue na mesma matria. Vai declarando e dizendo coisas que lhe aconteciame que lhe faziam perder o temor e afirmar que era bom esprito o que lhe falava.

    CAPTULO 27. Trata de outro modo com que o Senhor ensina a alma e, sem lhe falar, lhe d aentender a Sua vontade de uma maneira admirvel. Declara tambm uma viso no imaginria egrande merc que lhe fez o Senhor. muito digno de ateno este Captulo.

    CAPTULO 28. Trata das grandes mercs que lhe fez o Senhor e como Ele lhe apareceu a primeira

    vez. Declara o que viso imaginria. Diz os grandes efeitos e sinais que deixa quando de Deus. muito proveitoso este capitulo e digno de se ter em conta.

    CAPTULO 29. Prossegue o assunto comeado e diz algumas grandes mercs que lhe fez o Senhore as coisas que Sua Majestade lhe dizia para a assegurar e para que respondesse aos que acontradiziam.

    CAPTULO 30. Retoma a narrao da sua vida e diz como o Senhor remediou muito os seustrabalhos trazendo ao lugar onde ela estava o santo varo Frei Pedro de Alcntara, da ordem doglorioso S. Francisco. Trata tambm de grandes tentaes e trabalhos interiores que tinha algumasvezes.

    CAPTULO 31. Trata de algumas tentaes exteriores e representaes que lhe fazia o demnio etormentos que lhe dava. Diz tambm algumas coisas muito boas para aviso de pessoas que vo acaminho da perfeio.

    CAPTULO 32. Trata como aprouve ao Senhor p-la em esprito no lugar do inferno que por seuspecados tinha merecido. Conta um pouco do que ali se lhe representou. Comea a tratar da maneirae modo como, se fundou o mosteiro de S. Jos onde agora est.

    CAPTULO 33. Prossegue na mesma matria da fundao do mosteiro de S. Jos. Diz como lhemandaram que no se metesse nela e o tempo que a deixou e alguns trabalhos que teve e como neles

    a consolava o Senhor.

    CAPTULO 34. Trata como neste tempo foi conveniente que se ausentasse deste lugar. Diz a causapor que o seu prelado a mandou ir consolar uma senhora, muito principal, que estava muito aflita.Trata do que ali lhe sucedeu e diz a grande merc que o Senhor lhe fez de, por seu intermdio,mover a uma pessoa para O servir muito, deveras, em quem ela encontrou depois favor e amparo. muito para notar.

    CAPTULO 35. Prossegue na mesma matria da fundao deste mosteiro do glorioso S. Jos ecomo ordenou o Senhor que se viesse a guardar nele a santa pobreza. Diz por que voltou de casadaquela senhora em que estava e algumas outras coisas que lhe sucederam.

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    1. Quisera eu que, tal como me mandaram e deram ampla licena para escrever o modo de orao eas mercs que o Senhor me tem feito, ma dessem para, mui por mido e com clareza, dizer meusgrandes pecados e ruim vida. Dar-me-ia isso grande consolao. Mas no quiseram, antes meataram muito neste caso. E por isso peo, por amor de Deus, a quem ler este discurso da minhavida, que tenha diante dos olhos que fui to ruim, que no tenho encontrado santo - dos que sevoltaram para Deus com quem me consolar. Porque considero que, depois do Senhor os terchamado, no O tornavam a ofender. Eu no s tornava a ser pior, mas parecia estudar o modo de

    resistir s mercs que Sua Majestade me fazia, como quem se visse obrigado a servir mais eentendesse que no podia pagar o mnimo que devia.

    2. Seja bendito para sempre, que tanto me esperou! E, com todo o meu corao, suplico me d graapara, com toda a clareza e verdade, fazer esta relao que meus confessores me mandam. Que oSenhor a quer, sei-o eu h muitos dias, mas no me tenho atrevido; e que seja para glria e louvorSeu e para que, de aqui em diante, conhecendo-me eles melhor, ajudem a minha fraqueza, parapoder servir algo do que devo ao Senhor, a Quem sempre louvem todas as coisas, amm.

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    CAPTULO 1. Trata como o Senhor lhe comeou a despertar a alma para a virtude na suainfncia, e quanto a isto ajuda os pais serem virtuosos.

    1. Ter pais virtuosos e tementes a Deus - se eu no fosse to ruim - me bastaria, com o que o Senhorme favorecia, para ser boa. Era meu pai afeioado a ler bons livros e assim os tinha em vernculopara que ,seus filhos os lessem. Isto, com o cuidado que minha me tinha em fazer-nos rezar esermos devotos de Nossa Senhora e de alguns Santos, fez-me despertar - segundo me parece - naidade de seis ou sete anos. Ajudava-me o no ver em meus pais favor seno para a virtude. Tinhammuitas.

    Era meu pai homem de muita caridade para com os pobres e de compaixo para com os enfermos.Com os criados tinha tanta, que jamais se pde conseguir que tivesse escravos, porque deles tinhagrande d. Estando uma vez em sua casa uma de um seu irmo, a tratava como a seus filhos. Diziaque, o no ser ela livre, no o sofria a sua compaixo. Era de grande verdade. Ningum jamais o viu

    jurar ou murmurar; era extraordinariamente honesto.

    2. Minha me tambm tinha grandes virtudes passou a vida com grandes enfermidades.

    Grandssima honestidade. Com ser de muita formosura, jamais deu ocasio a que se entendesse quedela fazia caso porque, apesar de morrer aos trinta e trs anos, j seu traje era como o de pessoa demuita idade. Muito pacfica e de grande entendimento. Foram grandes os trabalhos por que passouenquanto viveu. Morreu muito cristmente.

    3. ramos trs irms e nove irmos. Por bondade de Deus, todos se pareceram com os pais, em servirtuosos, menos eu, embora fosse a mais querida de meu pai. E, antes que eu comeasse a ofendera Deus, parece que tinha alguma razo para isso; mas, quando me recordo das boas inclinaes queo Senhor me tinha dado, lastimo o mal que eu delas me soube aproveitar.

    4. Meus irmos em coisa alguma me desajudavam a servir a Deus. Tinha um, quase da minha idade,

    que era aquele a quem eu mais queria, embora a todos tivesse grande amor e eles a mim.Juntvamo-nos ambos a ler a vida dos santos. Como via os martrios que, por Deus, as santaspassavam, parecia-me comprarem muito barato o ir gozar de Deus e desejava muito morrer assim.No pelo amor, que eu entendesse ter-Lhe, seno para gozar, to em breve, dos grandes bens que liahaver no Cu. E tratava com este meu irmo do meio que haveria para isso. Combinamos ir a terrade mouros, esmolando por amor de Deus, para que l nos decapitassem; e parece-me que nos dava oSenhor nimo em to tenra idade, se vssemos algum meio; mas o termos pais parecia-nos o maiorembarao.

    Espantava-nos muito, o dizer-se no que lamos, que a pena e a glria eram para sempre. Acontecia-nos estar muito tempo tratando disto e gostvamos de dizer muitas vezes: para sempre, sempre,

    sempre. Com o pronunciar isto muito devagar era o Senhor servido que nesta meninice me ficasseimpresso o caminho da verdade..

    5. Quando vi ser impossvel ir aonde me matassem por Deus, resolvemos fazer-nos eremitas; e,numa horta que havia em casa, tentvamos, conforme podamos, fazer ermidas, pondo umaspedrazitas que logo nos caam. E assim no achvamos remdio em nada para os nossos desejos;faz-me agora devoo ver como Deus to cedo me dava aquilo que eu depois perdi por minha culpa.

    6. Dava esmola conforme podia; e podia pouco. Procurava solido para rezar as minhas devoesque eram muitas, em especial o Rosrio, do qual a minha me era muito devota e assim nos fazias-lo. Gostava muito, quando jogava com outras pequenas, de fazer mosteiros como se fssemos

    freiras; e parece-me que desejava s-lo; embora no tanto como as outras coisas que j disse.

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    7. Recordo-me que, quando morreu minha me, fiquei da idade de doze anos, pouco menos.Quando comecei a perceber o que tinha perdido, fui-me, aflita, a uma imagem de Nossa Senhora esupliquei-Lhe, com muitas lgrimas, que fosse minha Me. Embora o fizesse com simplicidade,parece-me que me tem valido; porque conhecidamente tenho encontrado esta Virgem soberana,sempre que, me tenho encomendado a, Ela, e, enfim, tornou-me a Si.

    Aflige-me agora ver e pensar o motivo de eu no ter ficado empenhada nos bons desejos com quecomecei.

    8. Oh, Senhor meu! Pois parece determinastes que me salve, praza a Vossa Majestade que assimseja. E, fazendo-me tantas mercs como me tendes feito, no tereis tido por bem - no para meuproveito mas por respeito Vosso - que se no sujasse tanto a pousada onde to de contnuo haveisde morar?! Aflige-me, Senhor, at o dizer isto, pois sei que foi minha toda a culpa; porque no meparece Vos tivesse ficado nada por fazer para que, desde esta idade, no fosse toda Vossa. Quandovou queixar-me de meus pais, tambm no posso, porque em tudo no vi neles seno bem e cuidadodo meu bem.Pois, passando desta idade em que comecei a entender as graas de natureza que o Senhor me dera -

    que, segundo diziam, eram muitas - quando por elas Lhe havia de dar graas, de todas me comecei aservir para O ofender, como agora direi.

    CAPTULO 2. Diz como foi perdendo estas virtudes e quanto importa, na meninice, tratar compessoas virtuosas

    1. Parece-me que comeou a fazer-me muito dano o que agora direi. Considero algumas vezes omal que fazem os pais em no procurar que seus filhos vejam sempre - e de todas as maneiras -coisas de virtude. Porque, com ter tanta a minha me, como disse, de bom no tomei muito, nemquase nada - chegando ao uso da razo - e o mal causou-me muito dano. Era ela afeioada a livrosde cavalaria. No tomou, no entanto, esse passatempo to mal com eu, pois com isso no deixava otrabalho; somente nos facilitava a sua leitura. E talvez o fizesse para no pensar nos grandestrabalhos que tinha e ocupar seus filhos para que no andassem perdidos em outras coisas. Istopesava tanto a meu pai, que era preciso andar com cuidado para que no o visse. Comecei a ficarcom o costume de os ler; e aquela pequena falta que nela via fez resfriar os desejos em mim e faltarno demais. No me parecia mal o gastar muitas horas do dia e da noite em to vo exerccio,embora s escondidas de meu pai. Era to em excesso o que nisto me embebia que, se no tivesse

    livro novo, no tinha - a meu parecer - contentamento.

    2. Comecei a trazer galas e a desejar agradar, parecendo bem, a ter muito cuidado com as mos ecabelo, perfumes e todas as vaidades que nisto podia ter. E eram muitas, por ser muito requintada?No tinha m inteno, pois no quisera eu que algum ofendesse a Deus por minha causa. Durou-me muitos anos este muito requinte no demasiado apuro e em coisas que me pareciam no sernenhum pecado. Agora vejo o mal que devia ser.

    Tinha eu uns primos irmos que tinham entrada em casa de meu pai, que outros no tinham essasorte, pois era muito recatado e prouvera a Deus que destes o fora tambm! Agora vejo o perigo queh - na idade em que se ho de comear a criar virtudes - em tratar com pessoas que no conhecem

    a vaidade do mundo, mas antes despertam para ele. Eram quase da minha idade, um pouco maisvelhos do que eu. Andvamos sempre juntos. Tinham-me grande amor e, em todas as coisas que

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    lhes dava gosto, eu entretinha conversa com eles. Ouvia os sucessos de suas aspiraes e ninhariasnadinha boas; e o pior foi a alma abrir-se ao que foi causa de todo o seu mal.

    3. Se eu houvesse de aconselhar, diria aos pais que, nesta idade, tivessem grande cuidado compessoas com quem seus filhos tratam. Daqui vem muito mal, porque o nosso natural mais tende parao pior de que para o melhor.

    Assim me aconteceu a mim; tinha uma irm de muita mais idade do que eu, de cuja honestidade ebondade - que tinha muita - eu nada apanhei, e tomei todo o mal de uma parente que freqentavamuito a nossa casa. Era de modos to levianos que minha me procurou muito evitar que tratassecom os de casa. Parece que adivinhava o mal que por ela me havia de vir. Mas era tanta a ocasioque havia para ter entrada que nada pde. Ao trato desta, que digo, me afeioei. Com ela era aminha conversao e prticas, porque me ajudava em todas as coisas de passatempo que eu queria eat me metia nelas e dava parte das suas conversas e vaidades.

    At que tratei com ela (para ter amizade comigo e dar-me parte das suas coisas), que foi na idade decatorze anos - creio, mesmo mais - no me parece ter deixado a Deus por culpa grave, nem terperdido o temor de Deus, embora o tivesse maior da honra. Este temor teve fora para eu no a

    perder de todo. Nem me parece que por coisa alguma do mundo eu nisto pudesse mudar... nem quehouvesse amor de pessoa que a isto me fizesse render. Assim tivesse eu tido fortaleza para no ircontra a honra de Deus, tal como ma dava o meu natural, para no perder no que a mim me pareciaestar a honra do mundo! E no olhava a que a perdia por outras muitas vias. 4. Em querer estavmente, tinha extremos. Dos meios que era mister para a guardar, no usava de nenhum; somentetinha grande cuidado em no me perder de todo.

    Meu pai e minha irm sentiam muito esta amizade e dela me repreendiam muitas vezes. Como nopodiam tirar as razes que havia de ela entrar em casa, no lhes aproveitavam suas diligncias. Emuita era a minha sagacidade para qualquer coisa m. Espanta-me, algumas vezes, o dano que fazuma m companhia e, se eu no tivesse passado por isto, no o poderia crer; no tempo da mocidade,em especial, deve ser maior o mal que causa. Quisera eu que os pais escarmentassem em mim, a fimde olharem muito a isto. De tal maneira me mudou esta convivncia que, do meu natural virtuoso,no me ficou na alma quase nenhuma virtude. E parece-me que ela e outra que tinha os mesmospassatempos, imprimiam em mim suas maneiras de ser.

    5. Por aqui compreendo o grande proveito que causa a boa companhia e tenho por certo que, senaquela idade tratasse com pessoas virtuosas, estaria inteira na virtude. Se ento tivera tido quemme ensinasse a temer a Deus, a alma iria tomando foras para no cair. Perdido este temor, ficou-medepois s o da perda da honra. Este, em tudo quanto eu fazia; me trazia atormentada. Com opensamento que no se havia de saber, atrevia-me a muitas coisas bem contra ela e contra Deus.

    6. A princpio causaram-me dano as ditas coisas segundo me parece. Mas a culpa no devia ser suaseno minha. Porque depois bastou a minha malcia para o mal juntamente com o ter criadas, pois,para todo o mal, encontrava nelas boa ajuda. Se alguma tivesse sido de bom conselho, porventurame tivesse aproveitado; mas cegava-as o interesse e a mim a afeio. No entanto, nunca fuiinclinada a muito mal, porque coisas desonestas naturalmente as aborrecia, seno a passatempos deboa conversao. Mas, posta na ocasio, estava mo o perigo e punha nele o meu pai e irmos. Doqual me livrou Deus de modo que bem se v que procurava - contra minha vontade - que eu no meperdesse de todo, no foi isto, no entanto, to em segredo que no tivesse havido de algum modoquebra da minha honra e suspeitas de meu pai. Porque no andava, segundo me parece, h trsmeses nessas vaidades, quando me levaram a um convento que havia naquele lugar onde seeducavam pessoas da minha condio, embora no to ruins em costumes como eu. E isto foi feitocom to grande dissimulao, que s eu e um parente o soubemos. Aguardaram para isso uma

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    ocasio a no parecer estranho: foi o ter-se casado minha irm e ficar eu s, sem me, no pareciabem.

    7. Era to demasiado o amor que meu pai me tinha e a minha muita dissimulao, que no acreditoutanto mal de mim e assim no ficou desagradado comigo. Mas, como esse tempo foi de curtadurao, embora algo se tivesse percebido, com certeza, nada se devia ter dito. que eu, comotemia tanto a perda da honra, punha todas as minhas diligncias em que fosse secreto e no olhava a

    que no o podia ser para Quem tudo v.

    Deus meu, que dano causa ao mundo ter isto em pouca conta e pensar que pode haver coisasecreta feita contra Vs! Tenho por certo que se evitariam grandes males se se pensasse no estar onegcio em nos guardarmos dos homens, mas sim em no nos guardarmos de Vos descontentar.

    8. Os primeiros oito dias senti-os muito, e mais pela suspeita de que se tivesse percebido a minhavaidade do que por estar ali. J andava cansada e no deixava de ter grande temor de Deus quandoO ofendia, e procurava logo confessar-me. Trazia-me isto tal desassossego que, ao fim de oito diase creio at menos, estava muito mais contente de que em casa de meu pai. Todas o estavam tambmcomigo, porque, nisto de dar gosto onde quer que estivesse, me dava o Senhor graa e assim era

    muito querida. E ainda que eu me sentisse ento inimissssima de ser freira, folgava de as ver toboas, que o eram muito as, de aquela casa e de grande honestidade, religio e recato.

    Mesmo com tudo isto, no deixava o demnio de me tentar, e procuravam os de fora desassossegar-me com recados. Mas, como a isso se no dava lugar, depressa acabou. Minha alma comeou aacostumar-se de novo ao bem da minha primeira infncia, e vi a grande merc que Deus faz quelesa quem pe em companhia dos bons. Parece-me que Sua Majestade andava a mirar e a remirar poronde e como me podia fazer voltar a Si. Bendito sejais, Vs, Senhor, que tanto me haveis sofrido!Amm.

    9. Uma coisa havia que parece me podia ser de alguma desculpa - se eu no tivesse tantas culpas -;

    que tratava com quem me parecia que, por via de casamento, tudo podia acabarem bem. E,informada por quem me confessava e outras pessoas, em muitas coisas me diziam no ir contraDeus.

    10. Dormia uma freira com as que estavam de seculares; por meio dela parece que o Senhor quiscomear a dar-me luz, como agora direi.

    CAPTULO 3. Trata como uma boa companhia lhe serviu para despertar seus desejos e por quemodo o Senhor lhe comeou a dar alguma luz sobre o engano que tinha trazido

    1. Comeando pois a gostar da boa e santa conversao desta freira, folgava de ouvir quo bem elafalava de Deus, porque era muito discreta e santa. Isto, a meu parecer, em nenhum tempo deixei degostar. Comeou-me a contar como veio a ser freira s por ter lido o que diz o Evangelho: muitosso os chamados e poucos os escolhidos. Dizia-me o prmio que o Senhor dava aos que tudodeixam por Ele.Comeou esta boa companhia a desterrar os costumes que a m tinha feito, a tornar a pr no meupensamento desejos das coisas eternas e a tirar algo da grande repugnncia que eu tinha em ser

    freira, que se me tinha tornado grandssima. E, se via alguma ter lgrimas quando rezava, ou outrasvirtudes, tinha-lhe muita inveja. Era to duro meu corao que, se lesse toda a Paixo, no choravauma lgrima; isto causava-me pena.

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    2. Estive neste Mosteiro ano e meio muito melhorada. Comecei a rezar muitas oraes vocais e aprocurar que todas me encomendassem a Deus, para que me desse o estado em que O havia deservir. Mas, no entanto, desejava no fosse o de freira. Este, no fosse Deus servido de mo dar,embora tambm temesse o casar-me.Ao cabo deste tempo - que estive aqui - j tinha mais afeio a ser freira, embora no naquela casa,porque as coisas mais virtuosas, que depois entendi que tinham, me pareciam excessos demasiados.E havia algumas, das mais moas, que a isto me ajudavam. Se todas fossem de um parecer, muitometeria aproveitado. Tinha eu tambm uma grande amiga em um outro mosteiro. Isto era motivopara eu no ser freira - caso o houvesse de ser - seno onde ela estava. Olhava mais ao gosto daminha sensualidade e vaidade de que ao bem que me ia alma. Estes bons pensamentos, de serfreira, vinham-me algumas vezes e logo se afastavam e no podia persuadir-me a s-lo.

    3. A este tempo - embora eu no andasse descuidada de meu remdio andava o Senhor maisempenhado em me dispor para o estado que melhor me ia. Deu-me uma grande enfermidade e tivede voltar para casa de meu pai. Estando boa, levaram-me a casa de minha irm - que residia numaaldeia para a ver, pois era extremo o amor que me tinha e, por sua vontade, no sairia eu de ao p

    dela. Seu marido tambm gostava muito de mim; pelo menos, mostrava-me todo o seu agrado. Atmais isto devo ao Senhor porque em toda a parte sempre o tenho sentido. E em tudo eu O serviacomo quem sou.

    4. Estava em caminho a casa dum irmo de meu pai, homem muito avisado e de grandes virtudes,vivo, a quem o Senhor tambm andava dispondo para Si. Na sua velhice deixou tudo o que tinha efez-se frade, e acabou de sorte que creio goza de Deus. Quis que eu estivesse com ele uns dias. Seuexerccio era ler bons livros em vernculo e, habitualmente, o seu falar era de Deus e das vaidadesdo mundo. Fazia-me ler-lhe esses livros e, embora no amiga deles, mostrava que sim; porque nistode dar contentamento a outros tenho tido cuidado, mesmo que me causasse pesar. E assim, o quenoutros fora virtude, em mim foi grande falta, porque era muitas vezes mui sem discrio.

    Oh! valha-me Deus, por que meios me andava Sua Majestade dispondo para o estado em que Sequis servir de mim! Sem o querer, forou-me a eu me fazer fora! Bendito seja para sempre. Amm.

    5. Embora os dias que l estive fossem poucos, com a fora que faziam no meu corao as palavrasde Deus, tanto lidas como ouvidas, e a boa companhia, fui entendendo a verdade tal como empequena: que tudo era nada, a vaidade do mundo, como acaba em breve, e a temer, se tivessemorrido, de ter ido para o inferno. E, embora a minha vontade no acabava de se inclinar a serfreira, vi, no entanto, que era o melhor e mais seguro estado e assim, pouco a pouco, determinei-mea forar-me para o tomar.

    6. Nesta batalha estive trs meses, forando-me a mim mesma com esta razo: os trabalhos e penade ser freira no podiam ser maiores que os do purgatrio e eu bem havia merecido o inferno. Noera, pois, muito passar o que ainda vivesse como num purgatrio: depois iria direita ao Cu, que eraeste o meu desejo.

    Neste movimento de tomar estado, mais me movia - me parece - um temor servil que o amor.Punha-me o demnio que no poderia sofrer os trabalhos da Religio por ser to amimada. Distome defendia eu com os trabalhos que passou Cristo: no era muito que eu passasse alguns por Ele.Ele me ajudaria a lev-los, devia eu pensar, pois, deste ltimo ponto no me recordo. Passei grandestentaes nestes dias.

    7. Tinham-me dado - com calenturas - uns grandes desmaios. Sempre tive bem pouca sade. Deu-me vida o j ser amiga de bons livros. Lia as cartas de So Jernimo, e estas animavam-me tantoque determinei diz-lo a meu pai. O que para mim era quase como vestir o hbito. Era to

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    pundonorosa que no voltaria atrs, me parece, por coisa nenhuma tendo-o dito uma vez. Era tantoo que ele me queria, que de nenhuma maneira o pude convencer, nem bastaram rogos de pessoasque procurei lhe falassem. O mais que se pde conseguir foi que, depois de acabados os seus dias,fizesse o que quisesse. Eu j me temia a mim mesma e minha fraqueza no voltar atrs, e assim nome pareceu que isto me convinha e procurei por outra via, como agora direi.

    CAPTULO 4. Diz como o Senhor a ajudou a convencer-se a si mesma para tomar Hbito e asmuitas enfermidades que Sua Majestade lhe comeou a dar

    1. Nestes dias em que andava com estas determinaes havia persuadido a um irmo meu a que sefizesse frade, falando-lhe da vaidade do mundo. E combinamos entre ns ir um dia, muito demanh, ao mosteiro onde estava aquela minha amiga a quem eu tinha muita afeio. Nesta minhaltima determinao j eu estava decidida de modo que iria para qualquer convento onde pensasse

    servir mais a Deus ou que meu pai quisesse. Mais olhava eu j ao remdio da minha alma, porquedo descanso nenhum caso fazia.

    Recordo-me, e a meu parecer com toda a verdade, que quando sa de casa de meu pai foi tal aaflio, que no creio ser maior quando eu morrer. Parece que cada osso se me apartava de per si,pois, como no tinha amor de Deus a contrabalanar o amor de pai e parentes, fazia-me tudo umafora to grande que, se o Senhor no me ajudasse, no teriam bastado as minhas consideraespara ir por diante. Aqui deu-me o Senhor nimo contra mim, de maneira que o pus por obra.

    2. Ao vestir o Hbito, logo o Senhor me deu a entender como favorece aos que se esforam para Oservir. Isto ningum apercebeu em mim, mas sim uma grandssima vontade. Na altura deu-me um

    to grande contentamento de ter aquele estado, que nunca jamais me faltou at hoje. Deus mudou aaridez da minha alma numa grandssima ternura. Davam-me deleite todas as coisas da Religio. Everdade andar algumas vezes varrendo nas horas que costumava ocupar em meus regalos eenfeites, e, lembrando-me que estava livre daquilo, me dava um novo gozo que me espantava e nopodia entender por onde me vinha.

    Quando disto me lembro, no h coisa que se ponha diante de mim, por difcil que seja, que duvidede a acometer. J tenho experincia em muitas que, se de princpio me esforo a me determinar afaz-lo (sendo s por Deus), Ele quer -para mais merecermos - que a alma sinta aquele pavor at ocomear e quanto maior este, for, se se vai por diante, maior e mais saboroso o prmio se tornadepois. At mesmo nesta vida d a paga Sua Majestade por vias que s.quem goza disso o entende.

    Isto sei-o por experincia, como tenho dito, em muitas coisas difceis; e assim, jamais aconselharia,se fosse pessoa que tivesse de dar parecer que, quando uma boa inspirao nos bate porta muitasvezes, se deixe com medo de a pr por obra. Se desnudamente s por Deus, no h que temersuceda mal, que poderoso Ele para tudo. Seja bendito para sempre. Amm.

    3. Bastavam, sumo Bem e descanso meu!, as mercs que me tendes feito at aqui, trazendo-me -por tantos rodeios da Vossa piedade e grandeza - a estado to seguro e casa onde havia muitasservas de Deus, das quais eu pudera tomar exemplo para ir crescendo em Vosso servio. No seicomo hei-de passar daqui, quando me recordo o modo da minha profisso e a grande determinaoe contento com que a fiz e do desposrio que fiz conVosco. Isto no o posso dizer sem lgrimas, ehaviam de ser de sangue e quebrar-se-me o corao, e no seria muito pesar para o que depois Vosofendi.

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    pouco esta unio que no sei se seria uma Ave-Maria; mas ficava com uns efeitos to grandes que,com no ter a este tempo vinte anos, me parecia trazer o mundo debaixo dos ps, e assim recordo-me que me faziam pena os que o seguiam, embora fosse em coisas lcitas.

    Procurava o mais que podia trazer a Jesus Cristo, nosso Bem e Senhor, presente dentro de mim eeste era o meu modo de orao: se pensava em algum passo, representava-O no interior, emboragastasse mais tempo em ler bons livros, que era toda a minha recreao. que Deus no me deutalento para discorrer com o entendimento nem de me aproveitar da imaginao. Tenho-a toentorpecida que, at para pensar e representar trazer em mim - como procurava fazer - aHumanidade do Senhor, no conseguia. E ainda que por esta via - de no poderem ajudar-se doentendimento - as almas chegam mais depressa contemplao se perseveram, muito trabalhoso epenoso. Se falta a ocupao da vontade e o amor ter coisa presente em que se ocupe, fica a almacomo sem arrimo nem exerccio; causa grande pena a soledade e a aridez e do grandssimocombate os pensamentos.

    8. A pessoas que tenham esta disposio convm-lhes ter mais pureza de conscincia que as quepodem obrar com o entendimento. Porque, quem discorre no que o mundo , e no que deve a Deus,

    e no muito que Ele sofreu e no pouco que O serve, e o que o Senhor d a quem O ama, tira doutrinapara se defender dos pensamentos e das ocasies e perigos. Mas, quem no se pode aproveitar disto,tem maior perigo ou dificuldade e convm-lhe ocupar-se muito na leitura, pois que de sua parte nopode tirar nenhuma idia ou considerao.

    queles que procedem desta maneira, em lugar de orao mental que no podem ter, -lhesnecessrio ler, embora seja pouco o que lem. E to penosssima esta maneira de proceder que, seo mestre que ensina insiste em que a orao seja sem leitura - o que ajuda muito a recolher a almaem orao - e, sem esta ajuda, os fazem estar muito tempo na orao, digo que ser impossvelpermanecerem muito nela, e far dano sade se se porfia, porque coisa muito penosa.

    9. Agora parece-me que o Senhor proveu a que no encontrasse quem me ensinasse, porque foraimpossvel - segundo julgo - perseverar os dezoito anos que passei este trabalho e em todos elesgrandes aridezes, por no poder, como digo, discorrer. Em todos eles, a no ser acabando decomungar, jamais ousei comear a ter orao sem um livro. Temia tanto minha alma estar sem elena orao, como se contra muita gente sasse a pelejar. Com esta ajuda - que era como que umacompanhia ou escudo em que aparava os golpes dos muitos pensamentos - andava consolada porquea aridez no era o normal, mas, sempre que me faltava livro, logo se desbaratava a alma. E ospensamentos, que andavam perdidos, com isto os comeava eu a recolher e a levar a alma como deum flego. Muitas vezes, em abrindo o livro, nada mais era preciso. Outras lia pouco, outras muito,conforme a merc que o Senhor me fazia.

    Parecia-me a mim, nestes princpios que digo, que, tendo eu livros e com ter solido, no haviaperigo que me arrancasse de tanto bem; e creio que - com a ajuda de Deus - fora assim, se tivessetido mestre ou pessoa que me avisasse de fugir das ocasies nos princpios e me fizesse sair, combrevidade, se nelas entrasse. E, se ento o demnio me tivesse acometido a descoberto, julgo que,de modo algum, eu voltaria a pecar gravemente. Mas foi to subtil e eu to ruim, que todas asminhas determinaes de pouco me aproveitaram, ainda que de muitssima ajuda os dias que servi aDeus, para poder sofrer as terrveis enfermidades que tive, com to grande pacincia como a queSua Majestade me deu.

    10. Muitas vezes tenho pensado, espantada, na grande bondade de Deus e a minha alma tem-seregalado de ver a Sua grande magnificncia e misericrdia. Seja bendito por tudo! Tenho visto

    claramente Ele no deixar sem paga, at mesmo nesta vida, nenhum desejo bom. Por ruins eimperfeitas que fossem minhas obras, este Senhor meu as ia melhorando e aperfeioando e dando

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    valor. Os males e pecados logo os escondia. At os olhos de quem as viu permite Sua Majestadefiquem como que cegos e lhos tira da memria; doura as culpas; faz resplandecer uma virtude que omesmo Senhor pe em mim, fazendo-me quase fora para que a tenha.

    11. Quero voltar ao que me mandaram. Digo que, se houvesse de dizer por mido o modo como oSenhor se havia comigo nestes princpios, fora mister outro entendimento - e no o meu - para saberencarecer o que neste caso Lhe devo e a minha grande ingratido e maldade, pois tudo isto olvidei.Seja para sempre bendito, que tanto me tem suportado. Amm.

    CAPTULO 5. Narra as grandes enfermidades que teve e a pacincia que o Senhor lhe deu e comodos males tirou bens, conforme se ver por uma coisa que lhe aconteceu neste lugar aonde se foicurar

    1. Esqueci-me de dizer como, no ano do noviciado, passei grandes desassossegos em coisas que em

    si tinham pouco tomo. Culpavam-me sem ter culpa muitas vezes. Eu levava isto com muita pena eimperfeio, embora com o grande contentamento que tinha de ser freira, por tudo passava. Comome viam procurar solido e chorar algumas vezes meus pecados, pensavam que eradescontentamento e assim o diziam.

    Era afeioada a todas s coisas de religio, mas no a sofrer nenhuma que parecesse menosprezo.Gostava de ser estimada. Era primorosa em tudo quanto fazia. Tudo me parecia virtude, embora istono me seja desculpa, porque em tudo sabia procurar o que me contentasse e assim a ignorncia notira a culpa. Alguma desculpa tinha, no entanto, em o mosteiro no estar fundado em muitaperfeio; eu, como ruim que era, ia quilo em que via falta e deixava o bom.

    2. Estava uma freira ento enferma, com uma grandssima e mui penosa enfermidade. Tinha umasbocas no ventre - que se lhe tinham feito de opilaes - por onde deitava o que comia. Morreu distoem breve. Eu via todas temerem aquele mal; a mim, fazia-me grande inveja a sua pacincia. Pedia aDeus que, dando-ma assim a mim, me desse as enfermidades que fosse servido. Ao que me parece,a nenhuma temia. Estava to disposta a ganhar bens eternos, que por qualquer meio me determinavaa ganh-los. E espanto-me porque - segundo julgo - ainda no tinha amor de Deus, como depois quecomecei a ter orao me parece que tenho tido. Era somente uma luz de me parecer de pouca estimatudo o que se acaba, e de muito preo os bens que se podem ganhar com ele, pois so eternos.

    To bem me ouviu nisto Sua Majestade que, antes de dois anos, estava de tal modo que, embora omal no fosse daquele gnero, creio no ter sido menos penoso e trabalhoso o que tive durante trs

    anos, como agora direi.

    3. Chegado o tempo de me ir tratar - que estava aguardando naquele lugar onde disse estar comminha irm - levaram-me, com muito cuidado de meu descanso meu pai, minha irm e aquela freiraminha amiga.

    Aqui comeou o demnio a desencaminhar a minha alma, embora Deus tirasse disso grande bem.Havia uma pessoa da Igreja, que residia naquele lugar onde me fui curar, de muito boa qualidade eentendimento; tinha letras, no muitas, no entanto. Comecei-me a confessar com ele, que sempre fuiamiga de letras, embora grande dano me fizeram alma confessores meio letrados, porque no ostinha de to boas letras como quisera.

    Tenho visto por experincia que melhor - sendo virtuosos e de santos costumes - no ternenhumas; porque nem eles se fiam de si sem perguntar a quem as tenha boas, nem eu me fiara; e

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    bom letrado nunca me enganou. Estes outros to pouco me deviam querer enganar, mas no sabiammais. Eu pensava que sim e que no era obrigada a mais, seno a acredita-los. E era coisa mais fcilo que me diziam e de mais liberdade.

    Se fora de mais rigor, eu sou to ruim, que buscaria outros. O que era pecado venial, diziam no sernenhum; o que era gravssimo mortal, que era venial. Isto me fez tanto dano que no muito o digaaqui para avisar outras de to grande mal. Perante Deus bem vejo no me desculpa, pois bastava

    no serem as coisas boas de seu natural para que delas me guardasse. Creio permitiu Deus, pormeus pecados, que eles se enganassem e me enganassem a mim. Eu enganei a outras muitas sdizendo-lhes o mesmo que a mim me tinham dito.

    Permaneci nesta cegueira creio que mais de dezessete anos, at que um Padre dominicano, grandeletrado, e os da Companhia de Jesus me desenganaram em parte - agravando-me to mausprincpios - de tudo me fizeram temer, como depois direi.

    4. Comeando pois a confessar-me com este que digo, ele se afeioou a mim em extremo. Entotinha pouco que confessar para o que depois tive, nem tinha tido depois de freira. No foi m aafeio deste, mas, por ser imoderada, veio a no ser boa. Tinha compreendido de mim que, por

    coisa alguma, eu me determinaria a fazer coisa contra Deus que fosse grave e ele tambm meassegurava o mesmo, e assim era muita a conversao. Mas nos meus tratos - com oembevecimento de Deus que eu trazia - o que ento mais gosto me dava era tratar coisas d'Ele.Como era to criana, fazia-lhe confuso ver isto; e com a grande amizade que me tinha, comeou adeclarar-me a sua perdio. E no era pouca, porque havia quase sete anos que estava em muitoperigoso estado com a afeio e trato com uma mulher daquele mesmo lugar. Com isto dizia Missa.Era coisa to pblica, que trazia perdida a honra e a fama e ningum ousava falar-lhe contra isto.

    A mim fez-me muito d porque lhe queria muito. Isto tinha eu de grande leviandade e cegueira;parecia-me virtude o ser agradecida e ter amizade a quem me queria. Maldita seja tal amizade quese estende at ir contra a de Deus! um desatino que se usa no mundo, que me desatina. Todo obem que nos fazem devemo-lo a Deus e temos por virtude embora seja ir contra Ele - noquebrantar uma tal amizade. Oh! cegueira do mundo! Tivsseis Vs sido servido, Senhor, que eufosse ingratssima para com todo o mundo e para conVosco no o fosse num s ponto! Mas temsido tudo ao revs, por meus pecados.

    5. Procurei saber mais e informar-me com pessoas de sua casa. E soube ser maior a perdio e vique o pobre no tinha tanta culpa. A desventurada da mulher tinha-lhe posto feitios num idolozitode cobre que lhe rogara trouxesse ao pescoo por amor dela e ningum tinha sido poderoso para lhotirar.

    Eu no creio verdadeiramente que isto de feitios seja realidade; mas direi isto que vi para aviso dos

    homens, a fim de que se guardem de mulheres que querem ter este trato. E creiam, pois que a Deusperdem a vergonha (elas mais que os homens so obrigadas a ter honestidade), que em nenhumacoisa podem nelas ter confiana. A troco de levarem por diante a sua vontade e aquela afeio que odemnio lhes pe, no olham a nada. Embora eu tenha sido to ruim, em nenhuma coisa destegnero ca, nem jamais pretendi fazer mal nem quisera - ainda que pudesse - forar vontades paraque me tivessem afeio, porque disto me guardou o Senhor. Se Ele me tivesse deixado, teria feito omal que fazia no demais, pois de mim nenhuma coisa h que fiar.

    6. Pois, logo que soube isto, comecei a mostrar-lhe mais afeio. Minha inteno era boa, a obram; pois para fazer bem, por grande que fosse, no havia de fazer um pequeno mal. Tratava com elemui de ordinrio de Deus. Isto devia-lhe ter aproveitado, embora mais creio fez ao caso o querer-memuito. Para me dar prazer veio-me trazer aquele idolozito, que logo fiz deitar a um rio. Tirado este,comeou - como quem desperta de um grande sono - a ir-se lembrando de tudo o que havia feito

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    naqueles anos. Espantando-se de si, doendo-se da sua perdio, comeou a aborrec-la. NossaSenhora deve-o ter ajudado muito, pois era muito devoto da Sua Conceio e nesse dia fazia umagrande festa. Enfim, deixou de todo de a ver e no se fartava de dar graas a Deus por ter-lhe dadoluz.

    Ao cabo de um ano - desde o primeiro dia em que o vi - morreu. E tinha estado muito ao servio deDeus, porque aquela afeio grande que me tinha nunca entendi ser m, embora pudesse ter sido

    com mais pureza. Mas tambm houve ocasies em que, se no se tivesse tido a Deus muitopresente, teria havido ofensas contra Ele muito graves. Como j disse, coisa que eu entendesse serpecado mortal, no a fizera ento. Parece que, ver isto em mim, o ajudava a ter-me amizade, poiscreio que todos os homens devem ser mais amigos de mulheres que vem inclinadas virtude; emesmo elas para o que aqui pretendem, devem ganhar mais com eles por este meio, segundo depoisdirei.

    Tenho por certo est em caminho de salvao. Morreu muito bem e muito livre daquela ocasio.Parece que o Senhor quis que, por estes meios, se salvasse.

    7. Estive naquele lugar trs meses com grandssimos trabalhos, porque a cura foi mais forte do que

    o pedia a minha compleio. Aos dois meses, a poder de medicinas, tinha quase acabada a vida. Origor do mal de corao de que me fui a curar era muito mais forte. Parecia-me algumas vezes quemo arrancavam com dentes agudos, tanto que se temeu fosse raiva. Com grande falta de foras -porque nenhuma coisa podia tomar seno fosse bebida, pelo grande fastio - febre mui contnua,muito gasta, porque quase um ms me deram uma purga todos os dias. Estava to abrasada que seme comearam a encolher os nervos com dores to incomportveis que nem de dia nem de noitepodia ter sossego algum. Uma tristeza muito profunda.

    8. Com este ganho me voltou a trazer o meu pai aonde os mdicos me voltaram a ver. Todos medesenganaram, pois, sobre todo este mal, diziam que estava tsica. Disto pouco se me dava; as dores que me afligiam, porque eram em um ser desde os ps cabea; e as de nervos so intolerveis,segundo dizem os mdicos. Como todos se me encolhiam, era de verdade forte tormento; notivesse eu, por minha culpa, perdido o mrito.

    Nesta violncia de dores no estaria mais de trs meses; parecia impossvel poder-se padecer tantosmales juntos. Agora me espanto e tenho por grande merc do Senhor a pacincia que Sua Majestademe deu, que se via claramente vir d'Ele. Muito me aproveitou para isso o ter lido a histria de Jobnos Morales de S. Gregrio - parece que preveniu o Senhor com isto, e com o ter comeado afazer orao - para o poder levar com tanta conformidade. Todas as minhas prticas eram com Ele;trazia habitualmente estas palavras de Job no pensamento e as dizia: Pois recebemos os bens damo do Senhor, porque no sofreremos os males? Isto parece que me dava foras.

    9. Chegou a festa de Nossa Senhora de Agosto. Desde Abril at ento tinha sido o tormento, emboramais nos trs ltimos meses. Dei pressa em confessar-me, que sempre fui muito amiga de meconfessar amide. Pensaram que era por medo de morrer e, para no me dar pena, meu pai no medeixou. Oh! amor da carne demasiado, que, embora de pai to catlico e avisado - que o era muito eno foi ignorncia - me pudera fazer grande dano! Deu-me, naquela noite, um paroxismo que durouquatro dias, pouco menos, ficando eu sem nenhum dos sentidos. Nele me deram o Sacramento daUno; a cada hora ou momento pensavam ver-me expirar e no faziam seno dizer-me o Credo,como se alguma coisa entendesse. Por vezes tinham-me por to morta que at cera encontrei depoisnos olhos.

    10. A dor de meu pai era grande por no me ter deixado confessar: clamores e muitas oraes aDeus. Bendito seja Ele que as quis ouvir, pois, tendo dia e meio aberta a sepultura no meu mosteiro,

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    esperando ali o meu corpo, e feitas as exquias em um convento dos nossos frades fora daqui, quis oSenhor que eu voltasse a mim.

    Logo quis confessar-me. Comunguei com muitas lgrimas. A meu parecer, no eram s desentimento e pena de ter ofendido a Deus. Isto bastaria para me salvar, mesmo se o engano, que euem mim trazia, dos que me tinham dito no serem algumas coisas pecado mortal - depois tenhovisto de certeza que o eram - no me aproveitasse. As dores com que fiquei eram incomportveis; o

    sentido pouco; no entanto - a meu parecer - a confisso foi inteira de tudo quanto compreendi terofendido a Deus. Esta merc metem feito Sua Majestade entre outras; nunca - depois que comecei acomungar - deixei coisa por confessar que eu pensasse ser pecado, embora fosse venial. Contudo,parece-me que assaz duvidosa ia a minha salvao, se eu ento tivesse morrido... Isto, em parte, porserem os confessores to pouco letrados e, por outro lado, por eu ser to ruim e por outras muitascoisas.

    11. Certo o estar eu agora com to grande espanto ao chegar aqui e vendo como parece meressuscitou o Senhor, que estou quase a tremer dentro de mim. Parece-me que fora bem, almaminha, visses o perigo de que o Senhor te livrara e, j que por amor no deixavas de O ofender,deixasses de o fazer por temor. Poderia matar-te em estado outras mil vezes mais perigoso. Julgono acrescento muitas no dizer: outras mil, embora me ralhe quem me mandou moderar no contarmeus pecados. E bem aformoseados vo.

    Por amor de Deus lhe peo que, de minhas culpas no tire nada, pois se v mais aqui amagnificncia de Deus e o que sofre a uma alma. Seja bendito para sempre. Praza a Sua Majestadeque me consuma antes que deixar jamais de O amar.

    CAPTULO 6. Trata do muito que ficou a dever ao Senhor por lhe ter dado conformidade em tograndes trabalhos e como tomou por medianeiro e advogado ao glorioso So Jos e o muito quelhe aproveitou

    1. Fiquei, destes quatro dias de paroxismo, num estado que s o Senhor pode saber osincomportveis tormentos que sentia em mim: a lngua feita em pedaos de mordida; a garganta, deno ter passado nada e da grande fraqueza, sufocava-me, pois nem a gua podia engolir; toda euparecia estar desconjuntada; com grandssimo desatino na cabea. Toda encolhida, feita um novelo

    - que nisto parou o tormento daqueles dias sem me poder mexer, nem brao, nem p, nem mo, nemcabea, mais do que se estivesse morta, se no me maneassem. S um dedo me parece podia mexerda mo direita. Chegarem-se a mim no havia como, porque tudo estava em tal lstima, que no opodia suportar; num lenol, uma a uma ponta, e outra a outra, me meneavam.

    Isto foi at Pscoa florida. S tinha que, se no se chegassem a mim, as dores cessavam muitasvezes e, a troco de descansar um pouco, j me tinha por boa, pois temia de me vir a faltar apacincia. Assim fiquei muito contente de me ver sem to agudas e contnuas dores, embora, nosgrandes frios de quarts dobradas - fortssimas - com que fiquei, as tivesse incomportveis. O fastioera muito grande.

    2. Dei-me logo tanta pressa em ir para o convento, que mesmo assim me fiz levar. A que esperavammorta, receberam com alma, mas o corpo pior que morto, a causar pena v-lo. O extremo defraqueza nem se pode dizer, que j s tinha ossos. Digo que o ficar assim durou-me mais de oito

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    meses; o estar tolhida, ainda que fosse melhorando, quase trs anos. Quando comecei a andar degatas, louvava a Deus. Tudo sofri com grande conformidade e - a no ser nestes tempos - comgrande alegria; porque tudo se me fazia nada, comparado com as dores e os tormentos do princpio.Estava muito conforme com a vontade de Deus, ainda mesmo que me deixasse sempre assim.

    Parece-me que toda a minha nsia de sarar era para estar a ss em orao - como me tinhamensinado - porque na enfermaria no havia disposio para isso. Confessava-me muito amide;

    tratava muito de Deus, de maneira que edificava a todas. Espantavam-se da pacincia que o Senhorme dava; porque, a no vir da mo de Sua Majestade, parecia impossvel poder-se sofrer tantosmales com tanto contentamento.

    3. Grande coisa foi Ele haver-me feito a merc que me fizera na orao. Esta fazia-me entender quecoisa era am-Lo. S desse pouco tempo vi em mim novas virtudes, embora no fortes, pois nobastaram para me sustentar no caminho da justia. No dizer mal de ningum, por pouco que fosse,antes o ordinrio era em mim o desculpar toda a murmurao, porque trazia muito diante dos olhoscomo no havia de dizer nem querer que dissessem de outra pessoa o que eu no quereria dissessemde mim. Praticava isto com grande extremo nas ocasies que para isso havia, embora no toperfeitamente que algumas vezes, quando mas davam grandes, no quebrantasse um pouco; mas deordinrio era isto. Assim - s que estavam comigo e me tratavam - persuadi tanto disto que lhesficou de costume. E todas vieram a entender, que onde eu estivesse, seguras tinham as costas. E omesmo pensavam daquelas com quem eu tinha amizade e parentesco e que ensinava, ainda quenoutras coisas bem tenha que dar contas a Deus do mau exemplo que lhes dava.

    Praza a Sua Majestade perdoar-me, que de muitos males fui causa, embora no com to danosainteno como depois saa a obra.

    4. Ficou-me o desejo da solido; amiga de tratar e falar de Deus que, se eu encontrava com quem,mais contento e recreao me dava que toda a delicadeza -ou grosseria, para melhor dizer - daconversao do mundo. Comungar e confessar-me muito mais amide e desej-lo; amicssima deler bons livros; um grandssimo arrependimento em ter ofendido a Deus que, muitas vezes merecordo no ousava ter orao porque temia - como a um grande castigo - a grandssima pena quehavia de sentir de O ter ofendido. Isto foi-me depois crescendo em tal extremo, que no sei a quecompare este tormento. E jamais foi -nem pouco nem muito - por temor; mas, como me lembravados regalos que o Senhor me fazia na orao e o muito que Lhe devia e via quo mal Lho pagava,no o podia sofrer. Enojava-me em extremo das muitas lgrimas que pela culpa chorava, quando viaa minha pouca emenda, pois nem bastavam determinaes nem a mgoa em que me via, para novoltar a cair quando me punha na ocasio. Pareciam-me ser lgrimas enganosas e parecia-me serdepois maior a culpa, porque via a grande merc que me fazia o Senhor em mas dar com to grandearrependimento. Procurava confessar-me dentre em breve e, a meu parecer, fazia da minha parte oque podia para voltar a estar em graa.

    Todo o mal vinha de eu no cortar pela raiz as ocasies e nos confessores que pouco me ajudavam;dizendo-me o perigo em que andava e a obrigao que tinha em no ter aqueles tratos, creio, semdvida, que tudo se remediaria; porque de nenhum modo sofreria andar em pecado mortal um sdia, se eu o entendesse.

    Todos estes sinais de temor de Deus me vieram com a orao e o maior era o ir envolvido em amor,porque no se me punha diante o castigo. Todo o tempo que estive to mal me durou a muita guardade conscincia quanto a pecados mortais. Oh! valha-me Deus; desejava sade para mais O servir efoi causa de todo o meu mal!

    5. Pois, como me vi to tolhida em to pouca idade e no que haviam dado comigo os mdicos daterra, determinei-me a recorrer aos do Cu para que me sarassem, pois desejava a sade, embora

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    sofresse com muita alegria a sua falta. Pensava algumas vezes que, se estando boa me havia decondenar, melhor seria estar assim. Pensava, no entanto, que serviria muito mais a Deus com sade.Este o nosso engano: no nos entregamos de todo ao que faz o Senhor, que melhor sabe o que nosconvm.

    6. Comecei a fazer devoes de Missas e coisas muito aprovadas de oraes, pois nunca fui amigadoutras devoes que fazem algumas pessoas - em especial mulheres - com cerimnias que eu no

    podia suportar e a elas lhes fazia devoo. Depois tem-se dado a entender no convirem; eramsupersties. Tomei por advogado e senhor ao glorioso So Jos e encomendei-me muito a ele. Viclaramente que, tanto desta necessidade como de outras maiores de honra e perda de alma, este Paie Senhor meu me tirou com maior bem do que eu lhe sabia pedir. No me recordo at agora de lheter suplicado coisa que tenha deixado de fazer. coisa de espantar as grandes mercs que Deus metem feito por meio deste bem-aventurado Santo e dos perigos de que me tem livrado, tanto no corpocomo na alma. A outros santos parece ter dado o Senhor graa para socorrerem numa necessidade;deste glorioso Santo tenho experincia que socorre em todas. O Senhor nos quer dar a entender que,assim como lhe foi sujeito na terra - pois como tinha nome de pai, embora sendo aio, O podiamandar -, assim no Cu faz quanto Lhe pede.

    Isto tm visto, por experincia, algumas outras pessoas, a quem eu dizia para se encomendarem aele. E assim h muitas que lhe so devotas, experimentando de novo esta verdade.

    7. Procurava eu fazer a sua festa com toda a solenidade que podia, mais cheia de vaidade que deesprito, querendo que se fizesse mui curiosamente e bem, embora com boa inteno. Mas isto tinhade mal - se algum bem o Senhor me dava a graa de fazer-: era cheio de imperfeies e com muitasfaltas. Para o mal e curiosidade e vaidade tinha eu grande manha e diligncia. Que o Senhor meperdoe.

    Quisera eu persuadir a todos a serem devotos deste glorioso Santo, pela grande experincia quetenho dos bens que alcana de Deus. No tenho conhecido pessoa que deveras lhe seja devota e lhepresta particulares obsquios, que a no veja mais aproveitada na virtude; porque aproveita degrande modo s almas que a ele se encomendam. Parece-me que h alguns anos que, cada ano noseu dia, lhe peo uma coisa e sempre a vejo realizada; se a petio vai algo torcida ele a endireitapara maior bem meu.

    8. Se eu fora pessoa que tivesse autoridade para escrever, de boa vontade me alongaria a dizermuito por mido as mercs que este glorioso Santo metem feito a mim e a outras pessoas. Mas, parano fazer mais do que me mandaram, em muitas coisas serei mais breve do que quisera. Em outras,mais extensa do que era mister; enfim, como quem em todo o bem tem pouca discrio. S peo,por amor de Deus, que faa a prova quem no me acreditar e ver, por experincia, o grande bemque o encomendar-se a este glorioso Patriarca e ter-lhe devoo. Em especial, as pessoas deorao sempre lhe haviam de ser afeioadas. que no sei como se pode pensar na Rainha dosAnjos - no tempo em que tanto passou com o Menino Jesus - sem que se d graas a So Jos pelomuito que ento Os ajudou. Quem no encontrar mestre que lhe ensine orao, tome a este gloriosoSanto por mestre e no errar no caminho. Praza ao Senhor no haja eu errado em atrever-me a falardele; porque embora publique ser-lhe devota, no seu servio e imitao sempre tenho falhado. Eleprocedeu como quem , fazendo com que eu me pudesse levantar e andar e no ficasse tolhida, e eu,como quem sou, usando mal desta merc.

    9. Quem diria que eu havia de cair to depressa, depois de tantas mercs de Deus, depois de ter SuaDivina Majestade comeado a dar-me virtudes - que as mesmas me despertavam a servi-Lo - depoisde eu meter visto quase morta e em to grande perigo de ser condenada, depois de me terressuscitado alma e corpo, que todos os que me viam se espantavam de me ver viva! Que isto,Senhor meu? Em to perigosa vida havemos de viver? Ao escrever isto parece-me que, com o

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    Vosso favor e por misericrdia Vossa, poderia dizer como So Paulo - embora no com essaperfeio - j no vivo eu, seno que Vs, Criador meu, viveis em mim. H alguns anos que,segundo posso entender, me tendes da Vossa mo e me vejo com desejos e determinaes, e dealgum modo tinha provado por experincia em muitas coisas de no fazer coisa contra a Vossavontade, por pequena que seja, ainda que deva fazer bastas ofensas a Vossa Divina Majestade, semo entender. Tambm me parece que no se me oferecer coisa por Vosso amor que, com grandedeterminao eu deixe de acometer; em algumas me tendes ajudado para as levar a cabo. No queromundo nem coisa dele, nem me parece algo me contente afora de Vs; tudo o mais para mimpesada cruz. Bem me posso enganar e nada ter disto que digo, mas bem vedes, meu Senhor, que,segundo posso entender, no minto. E estou tremendo - e com muita razo -que me torneis a deixar.J sei at que ponto chega a minha fortaleza e pouca virtude quando no ma estais sempre a dar e aajudar para que Vos no deixe. Praza Vossa Divina Majestade que mesmo agora no estejaapartada de Vs, parecendo-me, no entanto, tudo isto de mim. No sei como queremos viver, pois tudo to incerto! Parecia-me, Senhor meu, j impossvel deixar-Vos to de todo; mas, como tantasvezes Vos deixei, no posso deixar de temer, porque, em apartando-Vos um pouco de mim, davacom tudo em terra.

    Bendito sejais para sempre, pois, embora eu Vos deixasse, Vs no me deixastes a mim to de todoque no me tornasse a levantar com o dares-me sempre a mo. E muitas vezes, Senhor, eu no aqueria, nem queria entender como tantas vezes me chamveis de novo, como agora direi.

    CAPTULO 7. Trata como foi perdendo as mercs que o Senhor lhe tinha feito e quo perdida vidacomeou a ter. Diz os danos que h em no serem muito enclausurados os mosteiros de monjas

    1. Comecei pois assim, de passatempo em passatempo, de vaidade em vaidade, de ocasio emocasio, a meter-me tanto em mui grandes ocasies e a andar a minha alma to estragada emvaidades, que j tinha vergonha, em to particular amizade como tratar de orao, de me tornar achegar a Deus. Ajudou a isto que, ao crescerem os pecados, me comeou a faltar o gosto e regalonas coisas de virtude. Via eu muito claramente, Senhor meu, que isto me faltava a mim por eu Vosfaltar a Vs.

    Este foi o maior engano que o demnio me podia fazer sob aparncia de humildade: comecei atemer fazer orao por me ver to perdida; parecia-me melhor andar como os demais - pois no serruim era dos piores e rezar o que estava obrigada e vocalmente e no ter orao mental e tanto trato

    com Deus a que merecia estar com os demnios e enganava as gentes, porque, no exterior, tinhaboas aparncias.

    Assim, no de culpar a casa onde estava, porque eu, com a minha manha, procurava que metivessem em boa opinio. Embora no com advertncia, fingindo cristandade; porque nisto dehipocrisia e vanglria, glria seja dada a Deus, jamais me recordo de O ter ofendido, ao que possaentender. Em me vindo um primeiro movimento dava-me tanta pena, que o demnio se ia comperda e eu ficava com lucro; e assim, nisto muito pouco metem tentado. Porventura se Deuspermitira que nisto me tentasse to fortemente como em outras coisas, tambm cairia; mas SuaMajestade at agora tem-me guardado, seja para sempre bendito, pois at me pesava muito o terem-me em boa opinio: bem sabia eu o que havia em mim.

    2. Isto de no me terem por to ruim, vinha de me verem to moa e metida em tantas ocasies eapartar-me muitas vezes solido e rezar e ler, falar muito de Deus, ser amiga de fazer pintar Sua

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    imagem em muitas partes e de ter oratrio e fazer com que nele houvesse coisas que fizessemdevoo; no dizer mal; e outras coisas deste teor que tinham aparncia de virtude. E eu, de v,sabia-me estimar nas coisas a que no mundo se costuma ter estima. Com isto, davam-me tanta e atmais liberdade que s muito antigas e tinham em mim grande segurana. Porque, tomar eu liberdadee fazer coisa sem licena - digo falar por buracos ou muros, ou de noite -, julgo que nunca eu mepoderia resolver a faz-lo num mosteiro, nem jamais o fiz, porque o Senhor me teve de Sua mo.Parecia-me a mim que, com advertncia e propsito, olhava a muitas coisas que, pr a honra detantas em aventura por ser eu ruim, sendo elas boas, era muito mal feito, como se fosse bem outrascoisas que fazia. Em verdade, o mal no era to consciente, como isto seria, ainda que fosse muito.

    3. Por isto me parece que me fez grande dano o no estar em mosteiro enclausurado; porque aliberdade que as boas podiam ter sem culpa (que a mais no eram obrigadas, pois no se prometiaclausura), a mim, que sou ruim, ter-me-ia decerto levado ao inferno, se com tantos remdios emeios o Senhor, com muito particulares mercs, me no tivesse tirado deste perigo. E, assim, julgoser grandssimo perigo mosteiro de mulheres com liberdade, e mais me parece passo para caminharao inferno as que quiserem ser ruins, que remdio para suas fraquezas. Isto no se entenderespeitante ao meu, porque h nele tantas que servem muito deveras e com muita perfeio aoSenhor, que Sua Majestade no pode deixar, por Sua bondade, de as favorecer e no dos muitoabertos e nele se guarda toda a religio, seno de outros que sei e tenho visto.

    4. Digo que me causa grande lstima o Senhor ter necessidade de fazer particulares chamamentos -e no uma vez, seno muitas - para que se salvem, segundo a esto autorizadas as honras erecreaes do mundo e to mal entendido aquilo a que esto obrigadas. Praza a Deus no tenhampor virtude o que pecado, como muitas vezes eu o fazia; e h to grande dificuldade em faz-loentender que preciso que o Senhor ponha nisto muito deveras a Sua mo.

    Se os pais tomassem meu conselho, dir-lhes-ia: j que no olham a pr as suas filhas onde levamcaminho de salvao, mas em mais perigo que no mundo, olhem ao menos ao que toca sua honra.Antes as queiram casar mui baixamente, que met-las em mosteiros semelhantes, se no so muitobem inclinadas - e praza a Deus isto lhes aproveite -, ou as tenham em sua casa. A, se uma quer serruim, no o poder encobrir seno pouco tempo; aqui muito, muito, ainda que por fim o descubra oSenhor, e no s dana a ela, seno a todas; e s vezes as pobrezitas no tm culpa, porque se vopelo que encontram. E lstima que haja muitas que se querem apartar do mundo e, pensando quevo servir ao Senhor e afastar dos perigos do mundo, se encontram em dez mundos juntos, que nemsabem como se valer, nem remediar. A mocidade e sensualidade e demnio as convida e inclina aseguir algumas coisas que so mesmo do mundo; vem ali que o tm por bom, a modo de dizer.

    Parece-me que, em parte, so como os desventurados hereges, que se querem cegar e dar a entenderque bom aquilo que seguem e assim crem sem o crer... que dentro de si tm quem lhes digaque mal.

    5. Oh! grandssimo mal, grandssimo mal o dos religiosos - falo agora tanto de mulheres como dehomens - que vivem onde se no guarda religio, onde, num mosteiro, h dois caminhos: de virtudee religio e de falta de esprito de religio (e ambos quase se andam por igual...) Mas digo mal: nopor igual, pois por nossos pecados caminha-se mais no imperfeito e, como dele h mais seguidores, mais favorecido. Usa-se to pouco o da verdadeira religio, que mais h de temer o frade e afreira, que deveras querem comear a seguir totalmente a sua vocao, aos de sua mesma casa, doque a todos os demnios; e mais cautela e dissimulao h de ter para falar da amizade que desejater com Deus, que de outras amizades e afeies que o demnio ordena nesses mosteiros. No seiporque nos espantamos de que haja tantos males na Igreja; pois os que deviam ser exemplos de

    virtude aonde todos as fossem haurir, tm to apagado o labor que, com o seu esprito, os Santosdeixaram nas religies.

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    Praza Divina Majestade pr remdio a isto como v que mister. Amm.

    6. Comecei eu, pois, a ter estas conversaes, no me parecendo - como via que se usavam - quedelas havia de vir minha alma o dano e distrao que depois entendi haver em semelhantes tratos.Parecia-me que, coisa to geral como esta convivncia em muitos mosteiros, no me faria a mimmais mal de que a outras que eu via serem boas. No olhava a que eram muito melhores e, o quepara mim era perigo, para outras no o seria tanto. Algum, duvido que deixe de o haver, embora no

    seja mais que o do tempo mal gasto. Estando eu, pois, com uma pessoa - bem nos princpios de aconhecer - o Senhor quis dar-me a entender que no me convinham aquelas amizades, e avisar-me eiluminar-me em to grande cegueira. Representou-se-me Cristo diante de mim com muito rigordando-me a entender o que aquilo Lhe pesava. Vi-O com os olhos da alma mais claramente de queO poderia ver com os olhos do corpo e quedou-me to impresso que isto foi h mais de vinte e seisanos e me parece que o tenho presente. Fiquei muito espantada e perturbada e no queria voltar aver mais a pessoa com quem estava.

    7. Fez-me muito dano no saber que era possvel ver sem ser com os olhos do corpo. E o demnioajudou a que eu assim julgasse, dando-me a entender ser isso impossvel; o que se me tinhaafigurado que podia ser o demnio, e outras coisas deste gnero, embora sempre me ficava umparecer-me que era Deus e no imaginao. Mas, como no era a meu gosto, eu me fazia a mimmesma desmentir. E, como no ousei tratar disto com ningum e como depois voltaram a fazer-megrande impertinncia, assegurando-me no haver mal em ver semelhante pessoa, que nem perdiahonra, mas antes a ganhava, voltei mesma conversao e at, em outras pocas, a outras, porqueforam muitos os anos em que tomei esta recreao pestilencial. A mim, no entanto, no me parecia -como estava nela - to m como isso, ainda que, s vezes, visse claramente no ser boa. Masnenhuma me causou distrao como esta que digo, porque lhe tive muita afeio.

    8. Estando eu outra vez com a mesma pessoa, vimos vir at ns - e outras pessoas que ali estavamtambm o viram - uma coisa maneira dum sapo grande, com muita mais ligeireza do que estescostumam andar. Do lugar donde ele veio, no posso eu entender como pudesse haver semelhantesevandija a meio do dia, nem nunca l a tem havido. A impresso que em mim causou no meparece sem mistrio; e isto to pouco se me olvidou! Oh! grandeza de Deus, e com quanto cuidadoe piedade me estveis avisando, por todos os modos, e que pouco me aproveitou a mim!

    9. Havia ali uma freira, minha parente, antiga e grande serva de Deus e de muita religio. Estatambm me avisava algumas vezes; e no s eu no a acreditava, mas desgostava-me com ela eparecia-me que se escandalizava sem ter de qu.

    Disse isto para que se entenda a minha maldade e a grande bondade de Deus e quo merecido tinhaeu o inferno com to grande ingratido; e tambm para que, se o Senhor ordenar e for servido que aqualquer tempo leia isto alguma freira, se escarmente em mim. E a todas eu lhes peo, por amor deNosso Senhor, que fujam de semelhantes recreaes. Praza a Sua Majestade se desengane por mimalguma de quantas enganei, dizendo-lhes que no era mal e assegurando to grande perigo com acegueira que trazia, que de propsito no as queria eu enganar. Pelo mau exemplo que lhes dei -como disse - fui causa de grandes males, no pensando que fazia tanto mal.

    10. Estando eu mal, nesses primeiros dias, antes que eu me soubesse valer por mim mesma, davam-me grandssimos desejos de fazer bem a outros; tentao esta muito ordinria dos que comeam,embora a mim me sucedesse bem.

    Como queria tanto a meu pai, desejava-lhe o bem que me parecia que teria com ter orao - pois ameu ver nesta vida no o podia haver maior de que ter orao - e assim, por rodeios, conformepude, comecei a fazer com que a tivesse. Dei-lhe livros a propsito. Como era to virtuoso, como jficou dito, assentou to bem nele este exerccio que, em cinco ou seis anos - julgo que seria - estava

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    to adiantado que eu louvava muito ao Senhor e dava-me grandssimo consolo. Foram muitograndes os trabalhos que teve de muitas maneiras; e todos passou com muitssima conformidade. Ia-me ver muitas vezes, pois se consolava tratando coisas de Deus.

    11. J depois de eu andar to distrada e sem ter orao, como via que ele pensava eu ser tal comocostumava, no o pude sofrer sem o desenganar.

    que estive mais de um ano sem ter orao, parecendo-me mais humildade. Esta foi, como depoisdirei, a maior tentao que tive porque, por meio dela, eu acabar-me-ia de perder. Com a orao, seum dia ofendia a Deus, outros voltava a recolher-me e a apartar-me mais da ocasio. Como obendito homem me vinha com isto, tornou-se-me duro v-lo to enganado, pensando que eu tratavacom Deus como costumava e disse-lhe que j no tinha orao, embora no dissesse a causa. Dei-lhe as minhas enfermidades por desculpa, porque embora sarasse daquela to grave, sempre atagora as tenho tido e bem grandes e de muitas maneiras. De h tempos para c, no com tanta fora,mas no me deixam. Em especial tive durante vinte anos vmitos pela manh: at depois do meio-dia acontecia-me no poder desjejuar e algumas vezes at mais tarde. Depois que freqento maisamide a comunho, noite, antes de me deitar que, com muito mais custo, o tenho de provocarcom uma pena ou outra coisa; porque se o no fao, muito o mal que eu sinto. Quase nunca estou- a meu parecer - sem muitas dores e algumas vezes bem fortes, em especial no corao; embora omal que me tomava muito de contnuo seja agora muito de longe a longe. Da forte paralisia e dasoutras enfermidades de febres que costumava ter muitas vezes, encontro-me boa h oito anos.Destes males d-se-me j to pouco que muitas vezes folgo, parecendo-me que em algo se serve oSenhor.

    12. E meu pai acreditou ser esta a causa, porque como ele no dizia mentira, julgou, conforme aoque eu tratava com ele, que tambm eu no a havia de dizer. Disse-lhe, para que melhor oacreditasse - pois bem via eu que para isto no havia desculpa -, que muito fazia j em poder rezar oOfcio no coro. Embora to pouco isto fosse causa bastante para deixar uma coisa para a qual noso precisas foras corporais, mas s amar e o costume. E o Senhor d sempre oportunidade quandoqueremos.

    Digo "sempre" porque, embora com as circunstncias e at enfermidades, impea algumas vezesmuitos momentos de solido, no deixa de haver outros em que h sade para isto. E na prpriaenfermidade e ocasies est a verdadeira orao -quando alma que ama - no oferecer aquilo elembrar-se por Quem o sofre e conformar-se com isso e com mil coisas que se oferecem. Aquiexercita o amor; pois no foroso que misericrdia para ele e que sempre O servssemos, queconsiderssemos que tudo acaba. Dizia-nos, com lgrimas, a pena grande que tinha de no O ter eleservido, que quisera ser frade - digo, ter sido- e dos mais rigorosos que houvesse.

    Tenho por certo que, quinze dias antes de morrer, lhe deu o Senhor a entender que no havia deviver. Porque at a, embora estivesse mal, no o pensava; depois, apesar de ter muitas melhoras ede lho dizerem os mdicos, nenhum caso fez disso. S atendia em ordenar a sua alma.

    16. Foi seu principal mal uma dor muito grande de costas, que jamais o deixava; algumas vezes erato intensa, que o afligia muito. Disse-lhe que, visto ser to devoto de quando o Senhor levava acruz s costas, pensasse que Sua Majestade lhe queria dar a sentir alguma coisas do que Ele tinhapassado com aquela dor. Consolou-se tanto que, me parece, nunca mais o ouvi queixar-se.

    Esteve trs dias muito falho de tino; o dia que morreu lho tornou a dar o Senhor to inteiro que nosespantvamos, e teve-o at que, a meio Credo, dizendo-o ele mesmo, expirou. Ficou como um anjo;que assim me parecia a mim que ele era - a modo de dizer - na alma e disposio, pois a tinha muitoboa.

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    No sei para que disse isto seno para culpar mais minha ruim vida, depois de ter visto tal morte eentender tal vida; para me parecer de algum modo com tal pai, a havia eu de melhorar. Dizia seuconfessor - que era dominicano, muito grande letrado - que no duvidava de que tivesse ido direitoao Cu, porque havia alguns anos que o confessava e louvava sua pureza de conscincia.

    17. Este Padre dominicano que era muito bom e temeroso de Deus, foi-me de grande proveito.Confessei-me com ele e tomou a peito o fazer bem minha alma e dar-me a compreender a

    perdio que trazia. Fazia-me comungar de quinze em quinze dias e, pouco a pouco, comeando atratar com ele, falei da minha orao. Disse-me que no a deixasse; de qualquer modo, no mepodia causar seno proveito. Comecei a voltar a ela - embora no a afastar-me das ocasies - enunca mais a deixei.

    Passava uma vida trabalhosssima, porque na orao entendia melhor minhas faltas. Por uma parte,me chamava Deus; por outra, eu seguia o mundo. Davam-me grande contento todas as coisas deDeus; traziam-me atada as do mundo. Parece que queria juntar estes dois contrrios, to inimigosum do outro, como so vida espiritual e contentos e gostos e passatempos sensveis: Na oraopassava grande trabalho, porque o esprito no era senhor, mas escravo; e assim no me podiaencerrar dentro de mim (que era todo o modo de proceder que eu levava na orao) sem encerrarcomigo mil vaidades.

    Passei assim muitos anos, que agora me espanto como tive fora bastante para o sofrer sem quedeixasse uma ou outra coisa. Bem sei que deixar a orao j no estava em minha mo, porque mesegurava nas Suas Aquele que me queria para me fazer maiores mercs.

    18. Oh! Valha-me Deus, se eu houvesse de dizer as ocasies das quais - nestes anos - Deus metirava, e como eu me tornava a meter nelas, e dos perigos de perder totalmente o crdito de que melivrou! Eu, a fazer obras para descobrir o que era, e o Senhor a encobrir os males e a descobriralguma pequena virtude, se a tinha, e a faz-la grande aos olhos de todos, de maneira que sempreme tinham em muito. Porque, embora algumas vezes transluzissem as minhas vaidades, como viamoutras coisas que lhes pareciam boas, no o acreditavam.

    J tinha visto o Sabedor de todas as coisas ser assim mister, para que, depois, nas que tenho tratadode Seu servio, me dessem algum crdito; Sua soberana largueza, no atendia aos meus grandespecados, seno os desejos que muitas vezes tinha de O servir e a pena de no ter fortaleza em mimpara o pr por obra.

    19. Oh! Senhor da minha alma! Como poderei encarecer as mercs que nestes anos me fizestes? Ecomo, no tempo em que eu mais Vos ofendia, em breve me dispnheis com grandssimoarrependimento para que gostasse Vossos regalos e mercs! Na verdade, escolheis, Rei meu, omais delicado e penoso castigo que para mim podia haver, como quem bem sabia o que me havia de

    ser mais penoso; com grandes regalos castigveis meus delitos.

    E no creio dizer desatinos - embora seria bem que estivesse desatinada -voltando de novo agora memria a minha ingratido e maldade.

    Era to mais penoso para meu modo de ser receber mercs quando tinha cado em graves culpas,que receber castigos; uma s dessas mercs - parece-me pod-lo dizer com certeza - me desfazia econfundia mais e fatigava de que muitas enfermidades com outros grandes trabalhos juntos. Porqueisto via eu que o merecia e parecia-me que pagava algo dos meus pecados (embora tudo era pouco,porquanto eles eram muitos), mas ver-me a receber de novo mercs pagando to mal as recebidas, um gnero de tormento para mim terrvel, e creio que para todos os que tiverem algum

    conhecimento ou amor de Deus, e isto at por um natural virtuoso o podemos inferir. Estas eram

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    minhas lgrimas e tristeza ao ver o que sentia, vendo que estava em vsperas de tornar a cair,embora minhas determinaes e desejos ento - por aquele momento, digo - estivessem firmes.

    20. Grande mal uma alma achar-se sozinha entre tantos perigos. Parece-me a mim que, se eutivera tido com quem tratar tudo isto, ajudar-me-ia a no tornar a cair, sequer por vergonha, j queno a tinha de Deus. Por isso aconselharia eu aos que tm orao - em especial ao princpio - queprocurem amizade e trato com outras pessoas que tratem do mesmo. coisa importantssima, ainda

    que no seja seno ajudarem-se uns aos outros com suas oraes, quanto mais que h muitos maislucros. E pois que nas conversaes e amizades humanas, mesmo no sendo muito boas, seprocuram amigos com quem descansar e para mais gozar ao contar aqueles prazeres vos, no seipor que no se h de permitir a quem comear deveras a amar a Deus e a servi-Lo, o tratar comalgumas pessoas seus prazeres e trabalhos: que de tudo tm os que tm orao. Porque, se verdadeira a amizade que quer ter com Sua Majestade, no haja medo de vangloria; e quando oprimeiro movimento acometa, sai dele com mrito. Creio que, andando com esta inteno quemtratar isto aproveitar a si e aos que o ouvirem; sair mais ensinado; at sem saber como, ensinar aseus amigos.

    21. Quem tiver medo ter vanglria ao falar disto, tambm a ter de ouvir missa com devoo, se ovirem, e em fazer outras coisas que, sob pena de no ser cristo, no pode deixar de fazer por medode vanglria. Isto to importante para almas que no esto fortalecidas na virtude - por teremtantos contrrios e at amigos para os incitar ao mal -, que nem sei como o encarecer. Parece-meque o demnio tem usado deste ardil como de coisa que mui lhe importa: que os bons se escondamtanto para no dar a perceber que deveras querem e procuram amar e contentar a Deus; e temincitado a que se descubram outras amizades pouco honestas, to em uso, que j parece que se tomapor gala e se publicam as ofensas que nestes casos se fazem a Deus.

    22. No sei se digo desatinos. Se o so, V. Merc os rasgue, e se no o so, suplico-lhe que ajude aminha ignorncia, acrescentando aqui o muito que me falta. Andam as coisas do servio de Deus jto fracas, que mister guardarem-se as costas uns aos outros, os que O servem, para irem adiante,segundo se tem por bom o andarem vaidades e contentos do mundo. Para estes, h poucos olhos.Mas se um se comea a dar a Deus, h tantos que murmuram, que lhe necessrio buscarcompanhia para se defender, at que j esteja forte e no lhe pese de padecer. E, se no, ver-se- emgrandes apertos.

    Penso que seria por isto que usavam alguns santos ir para os desertos. um gnero de humildade ono se fiar de si, mas crer que, em ateno queles com quem conversa, o ajudar Deus. Cresce acaridade ao ser comunicado, e h mil bens que eu no ousaria dizer se no tivesse grandeexperincia do muito que isto importa.

    Verdade que eu sou mais fraca e ruim que todos os nascidos; mas creio no perder quem,humilhando-se, embora seja forte, no se tenha a si mesmo por tal e creia nisto a quem tenhaexperincia. De mim sei dizer que, se o Senhor no me descobrisse esta verdade e dado meios paraque eu muito de ordinrio tratasse com pessoas que tm orao, caindo e levantando-me, eu iria adar direita ao inferno. Para cair havia muitos amigos que me ajudassem; para levantar-me achava-me to s que agora me espanto como no estava sempre cada, e louvo a misericrdia de Deus. Eras Ele que me dava a mo.

    Seja bendito para sempre. Amm.

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    CAPTULO 8. Trata do grande bem que lhe fez no ter deixado de todo a orao para no perdera alma, e quo excelente remdio para ganhar o perdido. Persuade a que todos a tenham. Dizcomo grande ganho, embora a tornem a deixar por algum tempo.

    1. No sem motivo ponderei tanto este tempo da minha vida, pois bem vejo que no dar gosto aningum ver coisa to ruim. certo que quisera eu se aborrecessem os que isto lessem, ao ver uma

    alma to pertinaz e ingrata para com Aquele que tantas mercs lhe tem feito; e quisera ter licenapara dizer as muitas vezes que neste tempo faltei a Deus.

    2. Por no estar apoiada nesta forte coluna da orao, passei neste mar tempestuoso quase vinteanos. Ora com estas quedas, ora com levantar-me e mal - pois tornava a cair - e em vida deperfeio baixa, que nenhum caso fazia de pecados veniais; e dos mortais, embora os temesse, noera como devia ser, pois no me apartava dos perigos. Sei dizer que uma das vidas mais penosasque me parece se pode imaginar; nem gozava de Deus, nem achava contentamento no mundo.Quando estava nos contentamentos do mundo, lembrando-me do que devia a Deus, era com pesar;quando estava com Deus, as afeies do mundo me desassossegavam. Isto guerra to penosa queno sei como a pude sofrer um ms, quanto mais tantos anos.

    No entanto, vejo claramente, a grande misericrdia que o Senhor me fez: j que havia de tratar como mundo, que tivesse nimo para ter orao. Digo nimo, porque no sei para que coisa, de quantash na terra, preciso maior que para atraioar o rei, e saber que ele o sabe, e no se lhe tirar dafrente. Porque, embora sempre estejamos diante de Deus, parece-me a mim levar a porto desalvao como, ao que agora parece, me levou a mim. Praza Sua Majestade que eu no me volte aperder.

    5. O bem que possui quem se exercita na orao, h muitos santos e almas boas que o tm escrito -digo - da orao mental. Glria seja dada a Deus por isso! E quando assim no fosse, embora euseja pouco humilde, no sou to soberba que disto ousasse falar.

    Daquilo que tenho experincia, posso dizer que, por males que faa quem comeou a ter orao,no a deixe, pois o meio por onde pode tornar a emendar-se e, sem ela, ser muito maisdificultoso. E no o tente o demnio, do mesmo modo que a mim, de a deixar por humildade. Creiaque no podem faltar as palavras do Senhor, arrependendo-nos deveras e determinando-nos a no Oofender, Ele volta amizade que tinha e a fazer as mercs que antes fazia, e, s vezes, muito mais seo arrependimento o merecer.

    A quem ainda no a comeou, por amor do Senhor lhe rogo, no carea de tanto bem. No h aquique temer seno que desejar. Mesmo quando no for avante mas se esforar a ser perfeito quemerea os gostos e regalos que Deus d a estes, pouco a pouco ir entendendo o caminho para o

    Cu; e se persevera, espero eu na misericrdia de Deus, pois ningum O tomou por amigo que nolho pagasse. E outra coisa no , a meu parecer, orao mental, seno tratar de amizade - estandomuitas vezes tratando a ss - com quem sabemos que nos ama. E se ainda O no amais (porque paraque seja verdadeiro o amor e para que dure a amizade ho de encontrar-se as condies: a doSenhor j se sabe, no pode ter falta; a nossa ser viciosa, sensual, ingrata), no podeis por vsmesmas chegar a am-Lo, porque no da vossa condio; mas, vendo o muito que vos vai em ter aSua amizade e o muito que vos ama, passais por esta pena de estar muito com Quem to diferentede vs.

    6. Oh! bondade infinita do meu Deus, que me parece que Vos vejo e me vejo desta sorte! Oh!regalo dos anjos, que toda eu, quando Vos vejo, me quereria desfazer em amar-Vos! Quo certo sofrerdes Vs a quem no sofre que Vs estejais com ele! Oh! que bom amigo sois, Senhor meu,como o ides regalando e sofrendo e esperais que se afaa Vossa condio e, entretanto, lhe sofreis

  • 7/31/2019 Santa Teresa D'vila - O Livro da Vida

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    Vs a sua! Tomais em conta, meu Senhor, os momentos em que Vos quer, e com um ponto dearrependimento olvidais o que Vos tem ofendido.

    Tenho visto isto claramente por mim, e no vejo, Criador meu, por que todo o mundo no procuraachegar-se a Vs por meio desta particular amizade; os maus - que no so da Vossa condio -para que os faais bons com o suportarem que Vs estejais com eles, sequer ao menos duas horascada dia, embora eles no estejam convosco seno com mil revoltas de cuidados e pensamentos do

    mundo, como eu fazia. Por este esforo que fazem em querer estar em to boa companhia, poisvedes que de princpio no podem mais, nem depois algumas vezes, forais Vs, Senhor, osdemnios para que no os acometam e cada dia tenham menos fora para os tentar, e dais-lha a elespara vencer. Sim, Vida de todas as vidas, que no matais a nenhum dos que se fiam de Vs e Vosquerem por amigo, mas lhes sustentais a vida do corpo com mais sade e a dais alma.

    7. No entendo isto de medo nos que temem comear a ter orao mental, nem sei porque o ho deter. Bem no-lo sabe meter o demnio para nos fazer mal de verdade, se com medos me faz nopensar em que ofendi a Deus, no muito que Lhe devo, em que h inferno e h glria, e nos grandestrabalhos e dores que passou por mim.

    Esta foi toda a minha orao, quando andava nestes perigos. Nisto pensava quando podia; e muitas,muitas vezes, durante alguns anos, tinha mais conta em desejar que se acabasse a hora que eu tinhapara mim determinado de ali estar e em escutar quando batia o relgio, do que em outras coisasboas. Bastas vezes no sei que penitncia grave se me poderia oferecer que eu no a fizesse demelhor vontade que recolher-me a ter orao.

    E certo que era to incomportvel a fora que o demnio me fazia ou o meu mau costume paraque no fosse orao, e a tristeza que me dava em entrando no oratrio que, para me forar, erapreciso valer-me de todo o meu nimo que dizem no pequeno. E tem-se visto mo ter dado Deusmuito mais que de mulher (seno que o tenho empregado mal) e por fim, ajudava-me o Senhor.

    Depois de eu me ter assim forado, achava-me com mais quietude e regalo do que algumas vezesque tinha desejo de rezar.

    8. Pois se, a coisa to ruim como eu, tanto tempo sofreu o Senhor-e vse claramente que por aqui seremediaram todos os meus males - que pessoa, por m que seja, poder temer? Porque por muitoque o seja, no o ser tantos anos depois de ter recebido tantas mercs do Senhor. E, quem poderdesconfiar, se a mim tanto me suportou, s porque desejava e procurava algum lugar e tempo paraque estivesse comigo, e isto algumas vezes sem vontade, e s pela grande fora que eu me fazia, oume fazia o mesmo Senhor? Pois, se aos que no O servem, mas O ofendem, lhes vai to bem aorao e lhes to necessria, e se ningum pode com verdade encontrar dano que ela lhe possacausar, que seja maior que o de no a ter, os que servem a Deus e O querem servir, porque a ho de

    deixar? Por certo que, se no para passar com mais trabalho os trabalhos da vida, eu no o possoentender; ou ento para cerrar a Deus a porta, a fim de que por ela no lh