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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação Sangue na Tela: a representação da violência nos noticiários de televisão no Brasil. Tânia Montoro Posicionando a questão O tema da relação entre violência e televisão não é novo. Ambos estão estreitamente vinculados e constituem temática da ordem do dia em várias sociedades, possuindo, por tanto , um significado cultural. Na atualidade, esta relação - que cada vez se torna mais sólida e freqüente - tem despertado a atenção de diferentes setores da sociedade e de pesquisadores das Ciências Sociais e da Comunicação (Potter:1999; Lira:1999; Barbero:1998; Rondelli:1998), que buscam, com diferentes aportações, explicitar a intrigante e polemica relação : violência e televisão. Estas pesquisas, fundamentadas em diferentes perspectivas teóricas e estratégicas metodológicas, têm produzido resultados contraditórios. Os pesquisadores coincidem em afirmar que é difícil determinar a forma e a magnitude com que os conteúdos violentos, que habitam o cotidiano da televisão, afetam as pessoas, uma vez que a sociedade está composta por grupos, segmentos sociais e indivíduos que vivem em contextos pessoais, sócio culturais e religiosos diferentes, dificultando, por tanto, a generalização dos dados e a interpretação conclusiva dos resultados. A preocupação que nos move nesta reflexão não recai sobre o estudo da violência em si, e tampouco sobre os efeitos que causam os meios de comunicação no comportamento das pessoas ou grupos. O intento é mais simples: move-se no sentido de 947 analisar como a violência é representada nas noticias dos informativos de televisão. Em

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  • Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

    Sangue na Tela: a representação da violência nos noticiários de televisão no Brasil.

    Tânia Montoro

    Posicionando a questão

    O tema da relação entre violência e televisão não é novo. Ambos estão estreitamente

    vinculados e constituem temática da ordem do dia em várias sociedades, possuindo, por tanto

    , um significado cultural. Na atualidade, esta relação - que cada vez se torna mais sólida e

    freqüente - tem despertado a atenção de diferentes setores da sociedade e de pesquisadores

    das Ciências Sociais e da Comunicação (Potter:1999; Lira:1999; Barbero:1998;

    Rondelli:1998), que buscam, com diferentes aportações, explicitar a intrigante e polemica

    relação : violência e televisão.

    Estas pesquisas, fundamentadas em diferentes perspectivas teóricas e estratégicas

    metodológicas, têm produzido resultados contraditórios. Os pesquisadores coincidem em

    afirmar que é difícil determinar a forma e a magnitude com que os conteúdos violentos, que

    habitam o cotidiano da televisão, afetam as pessoas, uma vez que a sociedade está composta

    por grupos, segmentos sociais e indivíduos que vivem em contextos pessoais, sócio culturais e

    religiosos diferentes, dificultando, por tanto, a generalização dos dados e a interpretação

    conclusiva dos resultados.

    A preocupação que nos move nesta reflexão não recai sobre o estudo da violência em si,

    e tampouco sobre os efeitos que causam os meios de comunicação no comportamento das

    pessoas ou grupos. O intento é mais simples: move-se no sentido de 947

    analisar como a violência é representada nas noticias dos informativos de televisão. Em

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    outras palavras, buscamos recortar o espaço imaginário da televisão, investigando como se

    constrói a representação da violência através das noticias transmitidas nos telejornais de maior

    audiência no Brasil, respectivamente, Jornal Nacional (Rede Globo de Televisão) e Jornal da

    Record, (Rede Record de Televisão),no ano de 1999.

    Nos interessa, sobretudo, identificar como os noticiários de televisão constroem e

    trabalham com um conjunto de representações inseridas no dia a dia do telespectador

    brasileiro, mas também averiguar os processos de mediação e interação estabelecidos entre os

    discursos veiculados e a construção da realidade oferecida ao público.

    Nas ciências sociais as representações são definidas como categorias de pensamento que

    expressam e explicam a realidade justificando-a ou questionando-a. Van Dijk (1999:10)1063

    associa o conceito de representação ao conceito de ideologia. Para o autor, ideologia é uma

    forma de conhecimento social, que tem por base as representações sociais que constituem o

    tecido que promove a coesão dos grupos sociais. Dentro desta perspectiva, as representações

    sociais constituem-se como um conjunto de valores que organiza a visão de mundo das

    pessoas. Através deste conjunto de representações, as pessoas e indivíduos têm acesso aos

    modos de formação do conhecimento, uma vez que, estas representações determinam os

    campos das comunicações possíveis, dos valores e idéias presentes nas visões de mundo

    compartidas por grupos, em um determinado contexto histórico e social.

    O autor1064

    comenta :

    “La mayor parte de nuestro conocimiento social y político , así como nuestras

    opiniones sobre el mundo , proceden de las docenas de reportajes y informaciones que vemos

    o leemos cada día. Es probable que no haya otra práctica discursiva, además de la

    conversación cotidiana, en la que se tome parte con tanta frecuencia y por otra parte, tanta

    gente como las noticias que aparecen en la prensa o televisión”.

    Integrando o universo cognitivo e cultural do cotidiano das sociedades contemporâneas,

    a televisão introduziu-se na vida diária, adquirindo um papel fundamental no modo como se

    representa a realidade, transformando-se em uma espécie de código permanente para a leitura

    do mundo. É a partir da relação entre televisão, cultura e cotidiano, que nos aproximamos da

    questão, identificando a capacidade que detêm os meios de comunicação, particularmente a

    televisão, para construir agendas, marcos e estruturas - convenções com as quais trabalhamos

    nossa interpretação e atuação na realidade.

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    Notícias de violência na televisão: a imposição do real e a construção da realidade.

    Para o estudo da representação nos telejornais, as noticias de violência apresentam-se

    como um material singular, tanto por sua freqüência nas emissões diárias, quanto por sua

    expansão por diversos conteúdos da cena mediática, e, ainda, pelo papel que desempenham na

    construção da realidade.

    Na televisão, as noticias adquirem características específicas, em função da

    singularidade do meio, que alia som e imagem. Os processos de construção das noticias nos

    telejornais podem ser analisados observando as operações de mediação que se estabelecem

    entre um acontecimento (fato de referencia) e sua representação (a forma elegida para narrar e

    relatar o fato e os acontecimentos que dele derivam), que constituem discursos informativos

    de televisão.

    Assim, as características dos discursos informativos sobre determinados fatos,

    fenômenos ou acontecimentos dependem essencialmente da conceitualização previa dada à

    questão, pelo próprio enquadre noticioso, ou seja, pela forma de ordenar, selecionar e editar

    os acontecimentos representados e ligar-los uns aos outros, tornando o processo

    comunicativo inteligível e acessível ao público.

    Nas últimas décadas, a explosão crescente de episódios de violência no país

    -aqui entendida como uso da força com a intencionalidade de causar dano físico ou

    moral a outra pessoa – possui um paralelo no incremento de programas dedicados a noticias

    de violência, e no subseqüente aumento de consumo destes produtos culturais (programas de

    televisão dedicados à temática da violência) por diversos setores sociais.

    As noticias de crimes e assaltos ocupam espaços mediáticos nobres, em um contexto

    onde o consumo de imagens de cenas de violência na televisão fomenta audiências de

    programas de formatos popularescos, como Cidade Alerta (Record) , Na Rota do Crime

    (Manchete), 190 Urgente (CNT), oferecendo uma determinada visão da organização da

    vida social e, ao mesmo tempo, do fenômeno da violência no seio da sociedade brasileira.

    Ao lado disso, a emergência de novos atores sociais trouxe para tela, também no

    horário nobre, a visibilidade de tipos de violência, até então encerrados nos espaços mais

    privados da vida social, como a violência doméstica ou a violação sexual.

    Noticias de violência envolvendo assassinatos de crianças e adolescentes, estupros e

    assassinatos de mulheres, seqüestro de empresários, conflitos dos sem terra ou extorsões

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    policiais tornaram-se corriqueiras e freqüentes nos telejornais, instalando-se, assim, um

    processo acelerado e permanente, produzido por uma constante (re) discursivização e

    (re) presentação da realidade.

    Hall e outros (1993),1065

    em um estudo sobre noticias de violência nos meios de

    comunicação, afirmam que “o crime é noticia porque seu tratamento evoca ameaças e,

    ademais, reafirma a moralidade da sociedade, desenvolvendo diante de nós mesmo uma

    peça de moralidade moderna, na qual o demônio é expulso tanto simbólico como

    fisicamente da sociedade por seus guardiões : a policia e a magistratura.”

    Violência Real e Violência Representada: A cena mediática.

    As noticias de violência que ocupam esta reflexão se encontram no centro do debate

    nacional sobre a violência real e a violência cotidiana representada nos telejornais. Somente

    nos dois últimos anos, a sociedade brasileira vivenciou cenas impactantes, repetidas

    exaustivamente na telinha da televisão, em todos canais de televisão aberta:

    Nov /1999 - Um estudante de medicina de 24 anos, dispara uma metralhadora num

    cinema de São Paulo, matando três pessoas e ferindo outras cinco, dentro do Morumbi

    Shopping de São Paulo, após assistir à última apresentação do filme “ O Clube da Luta ,“ do

    diretor americano, David Fincher e estrelado pelo ator Brad Pitt. A película retrata a vida de

    alguns homens desajustados, que montam uma organização clandestina na qual parecem

    reencontrar a própria virilidade trocando socos e pontapés.

    Um novo tipo de crime, comum nos Estados Unidos, se inaugura no Brasil: o assassinato

    em massa. Diferentemente do que ocorre nos assassinatos em série, ”o homicida por atacado”

    , como é conhecido o protagonismo deste tipo de violência, tenta fazer o maior número de

    vitimas possível.

    A reconstituição do crime, conduzida por imagens de simulações com uso de atores,

    cenários reais ou infografias animadas, invade as telas da televisão. Mais uma vez a tênue

    linha que separa a violência real da violência representada tornou-se mais invisível. (Vale

    lembrar aqui o caso do assassinato da atriz da Rede Globo, Daniela Peres, filha da novelista

    Glória Perez, em 1992, outro crime que já povoou nosso universo de limites difusos entre

    realidade e ficção).

    No Jornal da Record do dia 09/11/99, o estudante de direito Miguel Beltran Neto de 20

    anos, que se encontrava na platéia do cinema e se salvou por ter agachado entre duas

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    poltronas, pondera: “Na hora que vi os tiros para cima, nessa hora acreditei que fosse uma

    pegadinha, como as do Silvio Santos (SBT) e do Faustão (Globo), depois quando ele atirou

    em direção a platéia é que vi que a violência era para valer mesmo, não era coisa do filme e

    menos de pegadinhas da televisão”

    Dezembro/99 – É seqüestrado o irmão de uma dupla de cantores populares, goianos,

    Zezé Di Camargo e Luciano, Wellington. Ante a negativa da família de pagar o resgate, sem

    uma prova concreta de que a vitima estava com vida, os seqüestradores resolvem cortar a

    orelha direita da vitima e enviá-la à emissora de televisão Serra Dourada, de Goiás,

    retransmissora do SBT, acompanhada de uma mensagem, endereçada ao apresentador de

    televisão Carlos Massa (o conhecido Ratinho), exigindo que ele fizesse uma campanha de

    arrecadação de fundos para pagar o resgate, e aumentando o valor do mesmo, de 300 mil

    dólares, para 3 milhões de dólares.

    O apresentador começa então a promover uma campanha destinada ao pagamento do

    resgate. Para arrecadar o valor exigido, propõe utilizar o serviço telefônico 0-900.

    Este “seqüestro mediatizado” suscita uma polêmica sobre ética, violência e televisão.

    Na esfera judicial, juristas questionam a interferência da televisão no trabalho de investigação

    da policia. Alguns magistrados, inclusive, consideram a atitude do apresentador como uma

    apologia do crime e uma invasão da vida privada da família e da vitima.

    Imagens da orelha da vitima (que remetem aos modos de execução dos mafiosos

    sicilianos) são fartamente transmitidas nos informativos, assim como o bilhete escrito pela

    vitima para o apresentador, pedindo ajuda para não morrer nas mãos dos seqüestradores.

    O seqüestro ocupa os noticiários dos meses de dez/99 a março/2000, e as imagens da

    orelha cortada da vitima, irmãos de famosos, impulsionam a audiência dos programas de

    televisão.

    A revista Contigo da Editora Abril, de 23/3/99, afirma: “O recado nefasto dos

    seqüestradores acabou se tornando um trunfo na briga por audiência. No domingo, Gugu

    Liberato (SBT) apresentou closes do pedaço da orelha. Resultado: vitória de 27 pontos de

    ibope contra 21 do Domingão do Faustão(Globo), que adotou um tom mais cauteloso...

    Ratinho também se beneficiou das mesmas imagens para engrossar a audiência. O programa ,

    que mantinha a média de 18 pontos até semana retrasada, pulou para 22 na segunda-feira 15, e

    chegou a 29 pontos no final da semana”.

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    Junho-2000: O dia 12 de junho entra para história da televisão brasileira como o dia

    em que os telespectadores assistem pela primeira vez a uma execução ao vivo. O País se

    surpreende com imagens de violência transmitidas diretamente do cenário do crime, no Rio

    de Janeiro. A mediatização do acontecimento parece desmontar quase todos os limites que

    separam realidade e ficção.

    As cenas, enredadas pôr imagens de extrema crueldade, foram captadas por uma câmara

    da Companhia de Engenharia de Tráfego da prefeitura do Rio (os diálogos mantidos pelos

    personagens do drama não eram audíveis) y transmitidas pela TV a cabo Globo News e pela

    Rede Record de Televisão. Dois estudantes de jornalismo da PUC- Rio registraram também a

    tragédia imagética, quando gravavam um programa para a TV Universitária.

    Na transmissão ao vivo (mais de quatro horas, com direito a intervalos publicitários) e,

    mais tarde, nos telejornais, proliferam as cenas de crueldade na construção discursiva do

    acontecimento, fortemente ancorado nas imagens captado pelas câmeras do controle de

    tráfego. A partir delas, milhões de brasileiros acompanham o assalto, que monopoliza a

    cobertura das TVs e emissoras de rádio. Também, através dos sites, alguns gerenciados pelas

    próprias emissoras de televisão, as mesmas imagens do assalto podem ser acessadas, on line,

    via internet, a partir de qualquer lugar do mundo.

    Sandro, 20 anos, ex-menino de rua e sobrevivente da chacina da Candelária, assalta, no

    dia dos namorados, um ônibus urbano na zona sul carioca, tomando a uma professora como

    refém. Depois de longas horas, ele desce do ônibus utilizando a professora, como escudo

    humano. Quando o seqüestro parece encaminhar-se para uma solução negociada, um

    soldado da policia militar do Rio, aparentemente descontrolado e sem preparo, protagoniza o

    final infeliz. Com uma metralhadora potente e moderna, o policial avança contra o

    seqüestrador e desfere três tiros, que atingem diretamente a mulher, professora, refém e

    vitima, que morre na hora. Sandro, o seqüestrador, segundo a versão oferecida pela revista

    Veja 20/08 /2000, foi imobilizado pelo policial e levado, ileso , para um camburão

    acompanhado por outros cinco policiais. Dez minutos depois estaria morto, asfixiado por um

    capitão da policia militar do Rio de Janeiro.

    Passageiros, familiares, seqüestradores e policiais e espectadores parecem ser

    protagonistas de um filme de longa-metragem, com mais de quatro horas de duração.

    Entretanto, diferenças substantivas distinguem as cenas de violência urbana transmitidas ao

    vivo e as cenas de violência das películas do cinema: a ausência de um roteiro previamente

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    definido e as poucas ou nenhuma possibilidade de um final feliz.

    No trágico assalto, os roteiros são indefinidos. Não se sabe nunca ao certo qual será o

    final dos personagens envolvidos na trama. Nem mesmo os atores principais parecem

    conhecer seu protagonismo. Atores sem estrelatos protagonizam as tramas violentas que o

    cotidiano real e o cotidiano mediático estabelecem.

    Uma das reféns do seqüestro do ônibus , uma estudante de 20 anos, declara que procurou

    manter a calma durante o acontecimento. “Vi que o bandido era passível de diálogo. Perguntei

    se ele sabia quem era a maior vítima da situação. Ele disse que não. Eu respondi : você.”1066

    O diretor de jornalismo da Rede Globo, Evandro Carlos de Andrade, elogiou a cobertura

    da emissora e afirmou na Revista Época do dia 19/06/2000, pertencente à editora Globo: “ Se

    o público não tivesse testemunhado, engoliria versões oficiais”.

    O diretor da TV Record, Luiz Gonzaga Mineiro , na reportagem da revista Isto É, de

    22/06/2000, admitiu pequenos excessos na cobertura da Rede de Televisão “ como a música

    de suspense que acompanhava a transmissão”.

    Ex - menino de rua, o seqüestrador é agora mais uma das vitimas da violência policial,

    depois da execução de seus pares da Candelária. Em uma redação, Sandro, com ainda 13

    anos, revela os desencontros de um país marcado por desigualdades econômicas e sociais

    estruturais. “ Eles não são animais não. São crianças indefesas sem nenhuma riqueza.” 1067

    A

    identidade dos meninos de rua é assim construída pela negação e por uma atitude de defesa .

    É neste contexto sócio mediático onde a violência da tela goteja no imaginário dos

    telespectadores, que nos aproximamos do estudo das noticias de violência nos telejornais de

    cobertura nacional, analisando comparativamente os conteúdos informativos sobre violência

    veiculados, identificando os discursos em circulação que conduzem ao enquadre da

    problemática, indicando o tratamento jornalístico oferecido e extraindo daí as formas de

    representação social da realidade da violência nos noticiários de televisão.

    Por se tratar de um amplo e polêmico fenômeno, tanto do ponto de vista moral como

    ético, nos aproximamos da problemática relação entre violência, televisão e cotidiano através

    da materialidade da noticia audiovisual, ou seja, investigando aquilo que é comum, enquanto

    material informativo produzido, veiculado e consumido pelos diferentes públicos, que

    assistem e se informam nos noticiários de televisão.

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    A violência na estrutura narrativa dos telejornais analisados

    Links ao vivo, uma montagem dinâmica e o uso crescente de recursos de computação

    gráfica, dotam o Jornal Nacional de uma estrutura narrativa cuidadosa e flexível. Moldura

    geral das distintas matérias, o cenário espetacular, os movimentos de câmera e efeitos de

    computação gráfica possuem grande importância na apresentação do jornal como um todo, e

    na construção narrativa das noticias de violência em particular. Neste ambiente de

    modernidade, os apresentadores (Willian Bonner e Fátima Bernades, jornalistas, e editores

    do informativo) imprimem um estilo formal/tradicional, recorrendo à figura do

    locutor/transmissor da informação, aparentemente imparcial, distante e objetivo, para

    interpelar a empatia do telespectador.

    Com um estilo distinto, o Jornal da Record apresenta uma estrutura narrativa bem mais

    rígida e formalmente menos cuidadosa, emoldurada pelo comentário y pela opinião do

    âncora apresentador – um estilo freqüente e dominante no jornalismo eletrônico americano,

    regido pela personificação do ato informativo, onde o locutor é substituído pelo jornalista,

    que se atribui explicitamente poderes de interpretação, indagação e dramatização das

    notícias.

    O próprio Boris Casoy (1993:17)1068

    , confessa que o estilo de anchorman inaugurado

    por ele é basicamente copiado do jornalismo americano de televisão, com adaptações para o

    público brasileiro, que segundo o apresentador, é ávido por comentários e opiniões. O

    apresentador, ao longo do telejornal, promove a interpretação pessoal dos fatos noticiados,

    com persuasão, repetindo enfaticamente todas as noites o slogan, que marca a credibilidade

    pessoal do apresentador : “Isto é uma vergonha”.

    Com certa freqüência, os comentários do apresentador sugerem a idéia de que os

    acontecimentos violentos noticiados sejam em grande parte fruto da inércia dos governantes

    e da ineficiência do aparato policial:

    “A sociedade espera que seus governantes compreendam que lugar de bandido é na

    cadeia e de policia nas ruas” (JR, 02/03/99).

    “O que se espera é punição dura e exemplar para este mal feitor”. (JR, 03/03/99).

    “Aqueles que defendem direitos humanos para bandidos e assassinos deveriam defender

    era o direito a vida para todo cidadão.”(JR, 03/03/99)

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    Já no Jornal Nacional, as opiniões e comentários dos apresentadores encontram pouco

    ou nenhum espaço para expressar-se. Enlaçados pelo relato oral de repórteres, as noticias

    articulam uma narrativa que, através de sons e imagens expõe exemplos concretos da

    realidade, captados e, com freqüência, transmitidos diretamente desde o cenário dos

    acontecimentos.

    Cabe citar por último, aspectos do contexto mediático mais amplo, pertinentes cada

    emissora, que nos auxiliam a situar a inserção das noticias de violência em cada um dos

    telejornais analisados.

    Constantes no manual da emissora (1985:18)1069

    , as recomendações para o registro e pós

    produção de matérias envolvendo situações de violência , por exemplo, parecem seguir

    orientando os profissionais da casa:

    “Nas situações de violência e pânico, o câmera deve registrar a cena com imagens e

    som ambiente avaliando a intensidade do risco . O som ambiente é fundamental para

    caracterizar a situação”.

    De modo geral, o cinegrafista é orientado a registrar, com detalhes, toda a cena

    (defuntos, corpos mutilados, etc.) mesmo sabendo que, posteriormente, de acordo com uma

    avaliação posterior, por parte do editor, muitas delas jamais serão utilizadas.

    De acordo com manual da Rede Globo, por motivos éticos, a emissora não deveria

    transmitir informações que possam prejudicar a vitima ou as investigações, bem como deveria

    excluir do noticiário suicídios, fatos que possam servir para enaltecer o crime e cenas de

    extrema violência, fuzilamentos, enforcamentos, etc. Mas, é necessário sublinhar que nem

    sempre a emissora seguirá suas próprias recomendações, sendo razoável supor que, empurrada

    pela acirrada disputa pela audiência, a emissora possa vir a adotar como estratégia o

    incremento na participação das noticias de violência no telejornal.

    Dado importante para entender o contexto mediático, o principal concorrente do Jornal

    Nacional, o Jornal da Record, apresentava, neste período, um entorno discursivo demarcado

    por dois programas conhecidos do público pela polêmica forma de abordar os conteúdos de

    violência veiculados: Cidade Alerta e Programa do Ratinho Livre.

    Antecedendo o Jornal da Record, o programa Cidade Alerta é dedicado exclusivamente

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    a narrar o submundo do crime, apresentando crônicas de assassinatos, seqüestros,

    homicídios, agressões sexuais, etc.. O gênero encontra similar na Televisão Azteca do

    México, com o nome de Ciudad Desnuda, retirado do ar, em 1997, por pressões do governo e

    da sociedade civil, mesmo com o alto índice de 30% da audiência mexicana.

    O segundo, o Programa do Ratinho Livre, conduzido pelo apresentador conhecido como

    Ratinho (hoje no SBT), expõe casos de violência e crimes, através de um discurso justiceiro,

    que defende amplamente a implantação da pena de morte na legislação brasileira.

    Decisões metodológicas da análise quantitativa e qualitativa da comunicação

    audiovisual .

    Para melhor pontuar nosso objeto de estudo, coletamos os dados (programas

    informativos) durante os dez primeiros dias de março nos dois telejornais de maior audiência

    no País. Durante os dez primeiros dias do mês de março, gravamos integralmente os

    telejornais noturnos da Rede Globo de Televisão (Jornal Nacional) e da Rede Record de

    Televisão (Jornal da Record), consolidando uma mostra de 18 telejornais, veiculados durante

    o período de 01 a 10 de março do ano de 1999.

    A determinação do período considerou o calendário mediático das emissoras de

    televisão, descrito por Moraes (1997:30)1070

    , as principais redes de televisão no Brasil

    procuram se adequar à formula da rede Globo de Televisão, que reduz o ano civil a nove

    meses. “Janeiro e fevereiro exprimido entre as temporadas de férias e a ansiedade dos

    preparativos do carnaval - não contam. O ano mediático brasileiro começa em março.”

    Segundo o autor, nos dois primeiros meses do ano, as inversões publicitárias caem

    depois dos gastos de natal , e este intervalo prolongado serve também para que as emissoras

    reordenem as relações com o mercado e apresentem as novas planilhas de programação, os

    novos custos e as inversões setoriais.

    Em nosso estudo, para uma primeira organização dos dados, dividimos os conteúdos

    informativos em blocos temáticos e com isto pudemos mapear os espaços representativos de

    cada núcleo informativo do noticiário.

    Compuseram as principais categorias da grade analítica geral as noticias de: Economia,

    Política, Corrupção(classificado separadamente em função da freqüência nos noticiários),

    Cotidiano, Trânsito, Esportes, Ecologia, Saúde, Educação, Ciência e Tecnologia, Política

    Internacional, Violência Internacional, Cultura, Violência, Meteorologia e Institucional

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    (noticias da própria programação das emissoras presentes nos telejornais).

    As noticias de violência foram agrupadas de acordo com a classificação oferecida

    pelo(s) discurso(s) jornalístico(s), através da narrativa direta ou indireta de repórter ou

    apresentadores, dos comentários e opiniões presentes, das vinhetas de passagem e do próprio

    conteúdo informativo.

    Classificamos as noticias dentro das seguintes tipologias considerando a natureza

    relacional da própria violência.

    Noticias relacionadas à violência no cotidiano das cidades, como assaltos,

    homicídios , seqüestros (Violência e Cotidiano);

    Noticias de crianças e adolescentes que envolvem violência (Violência e

    Crianças e Adolescentes);

    Noticias que relacionam questões de gênero e violência, especialmente violência

    sexual (Violência e Mulher).

    Noticias que relacionam violência e meio rural, incluindo noticias relativas aos

    indígenas (Violência Rural);

    Noticias relacionadas com acidentes e vitimas de trânsito, especialmente,

    motoristas imprudentes e pedestres (Violência e Transito) ;

    Noticias de eventos esportivos relacionadas com violência, lutas de torcidas,

    quebra - quebra em estádios de futebol, (Violência e Esporte);

    Noticias de corrupção, envolvendo violência (Violência e Corrupção);

    Noticias de ações de cidadania em favor da paz e mobilizações contra a violência

    e a impunidade (Violência e Cidadania);

    Noticias sobre eventos violentos, ocorridos fora do território nacional, guerras,

    terrorismo, conflitos armados, etc. (Violência Internacional)

    Associando metodologias de análise quantitativa e qualitativa, análise de

    conteúdo e análise critica do discurso, pudemos obter e proporcionar uma visão mais

    profunda do conjunto das noticias de violência, identificando semelhanças nas

    estratégias de formulação dos argumentos que sustentam a lógica dos discursos

    presentes na narrativa, e revelando um vocabulário audiovisual comum aos telejornais

    analisados.

    Através de tópicos, apresentaremos a seguir, de modo sucinto, os resultados

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    preliminares da pesquisa, que longe de serem conclusivos, apontam para um

    mapeamento sistemático, capaz de indicar questões substantivas para pensarmos o

    estudo da representação da violência nas noticias dos telejornais.

    6) Os conteúdos de violência nas noticias de televisão: Uma análise comparativa.

    Durante o período analisado registramos 72 noticias com reportagens sobre

    acontecimentos violentos. O Jornal Nacional transmitiu 36 e o Jornal da Record

    apresentou

    46. No Jornal Nacional as noticias de violência ocuparam 18% do tempo total das

    noticias do informativo e no Jornal da Record as noticias de violência representaram

    24,4% deste total geral, conforme o gráfico abaixo.

    CATEGORIAS GERAIS - JORNAL

    DA RECORD

    CATEGORIAS GERAIS - JORNAL NACIONAL

    Cotidiano 0:59:56 1:25:32

    0:44:39 Economia

    1:00:15 Economia

    0:36:02 Política

    0:45:49 Saúde

    0:23:35 Corrupção

    0:40:49 Deporte

    0:22:56 Cotidiano

    0:42:22 Corrupção

    0:14:42 Deporte

    0:17:38 Política

    0:14:

  • Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

    0:11:49 Saúde

    12

    0:07:10 Política Internacional

    0:13:46 Ecologia

    7Educação 0:12:2 0:06:41

    0:06:24 Meteorologia 0:11:11

    0:04:48 Educaete

    a al

    a Internacional 0:02:20 5:50:07Institucional

    0:02:09 Total

    Cultura

    CATEGORIAS GERAIS - JORNAL DA RECORDCATEGORIAS GERAIS - JORNAL NACIONAL

    Total 3:08:05

    Institucional Cultura

    ção 0:03:26Morologi

    0:04:16 Institucion0:02:40Cidadania

    Polític

    0:00:34

    0,9% 0,2%

    Cotidiano Violência

    Economia

    Política 24,2% Violência Institucional 24,4%

    17,2% Internacional

    18,0% 0,8%

    Cidadania

    Educação 1,7%

    1,0% Meteorol

    Meteorologia1,9% Política3,2%

    0,9%

    ogia

  • Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

    a-se assim uma tendência de incremento do tempo de duração das noticias,

    diretam

    isado a crise econômica brasileira de 98 atingia

    seu ápi

    das noticias de violência no intervalo da semana,

    observ

    Notícias de Violencia -Jornal Nacional

    0:28:48

    0:23:02

    0:17:17

    0:11:31

    0:05:46

    0:00:00

    Evidenci

    ente relacionado ao valor de “noticiabilidade” da violência, apontando para

    existência uma correlação clara entre as variáveis de tempo e freqüência noticiosa, ou seja,

    quanto maior o período de emissão do telejornal maior a freqüência e a duração das noticias

    de violência nos informativos analisados.

    Considerando que no período anal

    ce, com a desvalorização do real em 100% frente ao dólar, pudemos verificar que as

    noticias de violência mantêm um importante peso sobre o total de noticias, nos dois

    telejornais analisados, constituindo-se num discurso com alta freqüência de noticiabilidade e,

    por tanto, de alto valor jornalístico.

    Com relação à distribuição

    amos que, no Jornal Nacional, se perfila uma curva ascendente, que corresponde ao

    incremento do tempo ocupado por estas notícias nas edições levadas ao ar no meio da

    semana, no caso, nos dias 3,4 e 10 de março, respectivamente, quarta feira, quinta feira e

    outra quarta feira da semana seguinte, de acordo com o gráfico a seguir.

  • Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

    Tendência semelhante, ao largo da semana, pôde ser observada também a no Jornal

    da Record,. Através do gráfico, podemos apreciar a curva que assinala o incremento de

    freqüência e duração das noticias de violência durante o meio da semana no telejornal.

    Notícias de Violencia - Jornal da Record

    0:36:00

    0:28:48

    0:21:36

    0:14:24

    0:07:12

  • Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

    0:00:00

    Violencia

    Relacionadas

    Record, a maior freqüência de noticias de violência corresponde também aos dias 3,4,5 e 10

    de março. De

    Otras

    modo similar, há igualmente um ligeiro descenso nos espaços dedicados às noticias de

    violência, em direção

    ao final de semana (sexta e sábado),.

    As noticias relativas a acontecimentos que associam violência e

    criminalidade - crimes com sanções previstas no Código Penal - ocupam a maior parte dos

    conteúdos informativos das reportagens de violência: Homicídios, assassinatos, lesão

    corporal, assaltos, representam a maior fatia do volume de conteúdo noticioso conforme

    podemos visualizar nos gráficos que se seguem.

    SUBTIPOLOGIA - VIOLÊNCIA - JORNAL NACIONAL

  • Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

    SAQUE SUBTIPOLOGIA -VIOLÊNCIA -

    JORNAL DA RECORD

    CONFLI TO ARMADO 0,9%

    LESÃO CORPORAL

    38,7%

    1,6%

    SAQUE 0,4%

    HOMICÍDIOAGRESSÃO

    38,2%1,3%

    SEQÜESTRO 1,6%MOBILIZAÇÃO

    AMEAÇA10,2%

    3,1% CRIMINALIDADE

    INVASÃO

    3,3% 13,4%

    Verificamos que no Jornal Nacional da rede Globo de Televisão, as noticias e reportagens

    sobre homicídios, lesão corporal e assaltos contemplam 57% do total de noticias de violência

    classificadas no período da mostra. No Jornal da Record as noticias e reportagens sobre

    homicídios (38,2%), lesão corporal (38,7%) contemplam 76% do total de noticias de violência

  • Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

    classificadas durante o período.

    Com relação a segmentos sociais específicos observamos que as noticias de violência

    envolvendo crianças e adolescentes representaram os conteúdos noticiosos mais freqüentes e

    com maior espaço informativo. Noticias de violência onde crianças e adolescentes são

    agressores ou vitimas constituíram 26,7% das noticias de violência transmitidas pelo Jornal

    Nacional e 40,1% das noticias de violência transmitidas pelo Jornal da Record. As noticias

    envolvendo homicídios e lesões corporais alimentaram os conteúdos noticiosos de violência

    envolvendo crianças e adolescentes nos dois telejornais.

    É importante ressaltar a maior freqüência de noticias de violência envolvendo crianças

    e adolescentes no Jornal da Record , mesmo no dia 08 de março, quando se comemora o Dia

    Internacional da Mulher. Tradicionalmente, esta é uma data em que os informativos, de

    alguma maneira, dedicam espaço às questões e violências especificas circunscritas

    culturalmente ao universo feminino. Não obstante, nos dois telejornais analisados, as noticias

    de violência contra a mulher (8,2%, no Jornal Nacional, e nenhuma noticia, no Jornal da

    Record) ocupam um espaço reduzido nos noticiários, se comparado com os números da

    realidade.

    Outro dado quantitativo interessante, observado nos dois telejornais analisados, que

    apesar de as emissoras possuírem uma cobertura quase nacional, em termos de oferta

    noticiosa, os estados de São Paulo e Rio de Janeiro revelam-se como os principais cenários

    das notícias de violência, seguidos por Minas Gerais, no Jornal Nacional, e Bahia, no Jornal

    da Record. A periferia das grandes cidades compõe o cenário mais representativo das noticias

    e reportagens de violência no período analisado.

    TIPOLOGIAS DE VIOLÊNCIA - JORNAL NACIONAL TIPOLOGIAS DE

    VIOLÊNCIA - JORNAL DA RECORD

    CRIANÇAS E ADOLESCENTES

    COTIDIANO 40,1% 33,4%

    INSTITUCIONAL

  • Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

    1,6%

    CRIANÇAS E ESPORTE

    ESPORTE

    ADOLESCENTES 1,3%

    1,8%

    COTIDIANO 2,0%

    26,7% TRÁFEGO

    26

    % RURAL

    2,3%

    CORRUPÇÃO

    4,7%

    8,2%

    TRÁFEGO

    CIDADANIA

    11,1%10,2%

  • Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

    A violência nas manchetes dos telejornais.

    Na abertura das noticias, as manchetes nos telejornais possuem uma função estrutural e

    clara: destacar de modo sucinto e sintético os principais acontecimentos do dia, funcionando

    como uma espécie de resumo, direcionando um primeiro enquadre da matéria. Esta estratégia

    particular, expressa também um juízo de valor, de ordem editorial, indicador da importância

    atribuída a uma notícia em detrimento de outras, no contexto de uma edição do telejornal .

    Comparando as manchetes dos telejornais analisados, em termos desta

    hierarquia noticiosa, observamos que os temas relacionados à violência ocupam o segundo

    posto em termos de presença nas manchetes dos informativos analisados, sendo ultrapassada

    somente pelas manchetes de Economia comparecem com maior freqüência, o que poderia ser

    explicado pela coincidência com o ápice da crise econômica de 1998/99.

    No Jornal Nacional, por exemplo, de 11 manchetes com conteúdos de violência 8

    apresentam imagens. Enquanto expressão do valor da noticia de violência na hierarquia

    noticiosa do telejornal, vale citar o caso do dia 03/03/99: Apesar de, esta edição apresentar

    o menor tempo de noticias de violência, no conjunto da mostra deste telejornal, curiosamente,

    neste dia, elas ocupam o maior número de manchetes: Violência contra crianças e

    adolescentes, Violência e corrupção , e Violência e cotidiano (homicídios e assaltos), no Rio e

    São Paulo. Comparando com outras manchetes do mesmo informativo, verificamos também

    que no Jornal Nacional há uma maior freqüência de manchetes acompanhadas de imagens

    quando se trata de noticias de violência, do que quando se referem noticias sobre outros temas

    como Economia, Esportes ou Política.

    Durante período analisado, as noticias de violência contra crianças e adolescentes

    ocupam o maior número das manchetes nas edições diárias do Jornal da Record. Neste

    telejornal, as manchetes são lidas pelo locutor, sem serem acompanhadas por imagens em

    movimento. Do conjunto de manchetes que compõe a mostra do Jornal da Record, as noticias

    de violência surgem como segunda maior freqüência, frente às demais temáticas do telejornal.

    Cabe assinalar, por último, a presença, na abertura das matérias de violência dos

    telejornais, de uma identificação visual para as noticias de violência - uma espécie de retranca

    gráfica criada especialmente para uma temática recorrente e comum nas sucessivas edições

    diárias.

    Análise do tratamento informativo das noticias de violência nos telejornais.

  • Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

    Os discursos jornalísticos sobre violência nos telejornais analisados se constroem por

    meio de diferentes estratégias narrativas dos sujeitos enunciadores envolvidos na trama. São

    diferentes vozes y textos que se manifestam através do discurso direto ou indireto. Além do

    repórter ou apresentador - sujeitos de fala visível - apresentam-se outros discursos como das

    testemunhas, dos familiares da vitima ou agressor, da policia, da magistratura e, raramente,

    dos agressores.

    O conjunto destes discursos alicerça a unidade noticia como um relato informativo

    constituído por vozes coletivas e não por relatos de indivíduos isolados, projetando uma

    determinada representação social da realidade. O ordenamento e a disposição destes discursos

    imprimem, por sua vez, um “enquadre”, uma seleção determinada de pontos da realidade

    sobre a questão da violência.(Morley, 1976:246) 1071

    Integrando direta o indiretamente o relato audiovisual, estes “personagens

    sociais” contribuem para tornar mais ou menos verossímil a informação, proporcionando

    determinados efeitos de sentido ao acontecimento, uma espécie de orientação normativa útil

    ao mesmo tempo para a compreensão do telespectador, para o comportamento dos atores

    sociais envolvidos e para representação social dos acontecimentos .

    Nos telejornais analisados, através de uma ficha de controle de ocorrência, pudemos

    identificar dois tipos de fontes principais que alimentam as noticias de violência. Através da

    proposição de instrumentos adequados, a análise qualitativa de noticias especificas nos

    permitiu verificar, em termos de freqüência, as principais fontes e cenários recorrentes nas

    noticias de violência.

    Os agentes policiais são constantemente chamados para declarar sobre o

    acontecimento violento ocorrido, o que potencializa um enquadre policial para questão dos

    acontecimentos violentos. Dentro destes discursos a violência é concebida como” ruptura da

    ordem estabelecida.”Nesta orientação discursiva , a violência é enquadrada como um

    enfrentamento da ordem social. Em outras palavras, a violência é representada como uma

    anomalia que causa distúrbios à ordem social, e que é algo externo a sociedade por tanto

    praticada por indivíduos marginais.

    Outro contra ponto discursivo é construído pela recorrência de citações e dados do

    governo, ministros de estado e do judiciário, juizes, advogados , procuradores que conferem as

    noticias outras representações do acontecimento enquadrando os fatos violentos como” atos

    ilegais” e “objeto de tratamento jurídico dentro da lei.”

  • Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

    Estes dois eixos discursivos baseados na “ordem”(policial) e na “lei”(jurídico) não são

    excludentes na medida em que podem estar presentes no mesmo texto e surgir a partir do ato

    realizado em um momento especifico e por indivíduos concretos. Nesta perspectiva discursiva

    a violência não é um fenômeno relacional pelo contrário ela se explica, a si mesma, como ato

    criminal.

    “Não sabemos se há armas de fogo no interior da seita , mas a ordem é investigar se o

    líder religioso está envolvido com outros crimes.”(JR,03/3). Fonte : delegada de Policia.

    “Os últimos dados da Secretaria de Segurança demonstram que São Paulo terminou o

    ano com mais assaltos violentos e furtos seguidos de lesão corporal.”(JN 03/3) Fonte:

    Secretaria de Segurança Pública de São Paulo.

    “Os ferimentos foram produzidos de modo que nos leva a entender que era somente

    para intimidar, nas pernas e debaixo do estômago. Segundo a policia o motivo de tanta

    violência foi a disputa pelo casarão abandonado no centro do Rio” (JN,04/3). Fonte: delegacia

    de policia.

    “Este crime está previsto na legislação brasileira e a penalidade está prevista no código

    penal”.(JR05/3). Fonte: promotor de justiça.

    “Este crime é de homicídio qualificado com ocultação de cadáver . Neste caso a pena

    é de no mínimo 30 anos de prisão em regime fechado”(JN, 06/03) Fonte: advogado de

    vitimas de violência.

    Os discursos dos familiares e testemunhas das vitimas orientam-se também dentro do

    enquadre primário dado à questão, na medida em que o tom do relato informativo se

    estabelece tanto pelo conteúdo do acontecimento, como pela hierarquia discursiva aportada

    na edição da reportagem. Verificamos que estes discursos geralmente se orientam por

    freqüentes reivindicações de mais policiamento e maior segurança, mais ordem , mais justiça,

    mais leis.

    “O que necessitamos é de mais policiamento armado em toda esta região” (JR-10/3) ,

    Fonte: testemunha da vitima.

  • Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

    “Confio na justiça tenho que confiar. Quero que se cumpra exemplarmente a lei” (JN -

    06/3), Fonte: mãe de vitima.

    “Esperamos uma ação rápida da policia” (JN-03/3), Fonte: filho da vitima.

    A análise das noticias de violência protagonizadas pela policia (como o caso do

    assassinato de 3 adolescentes, depois de um baile de carnaval na baixada santista) permitiu

    observar também que é a própria instituição policial que procura manter a ordem da narrativa,

    mesmo quando os policiais são os autores dos atos violentos.

    .

    “As versões sobre o assassinato dos três adolescentes por policiais são

    contraditórias” (JN

    05/3). Fonte: Corregedoria da policia de São Paulo.

    “O individuo tinha mesmo a intenção de puxar uma arma. Ao fazer este

    movimento ele foi

    atingido por uma bala disparada por um policial da PM- (JR-08/3). Fonte: Comandante da

    Policia

    Militar”.

    A representação da violência nos noticiários de televisão.

    Em síntese, podemos concluir que a policia, os membros do sistema judiciário e os

    próprios meios de comunicação conformam a trama discursiva que mais se apresentam nas

    noticias de violência dos informativos analisados.

    Estes discursos produzem um enquadre noticioso para a temática baseada em dois

    eixos: a ruptura da ordem – discurso policial e ilegalidade do ato cometido- não cumprimento

    da lei (discurso jurídico).

    Estes discursos vetorializam sentidos para narrativa informativa sobre violência, ao

    transmitir uma visão parcial, normativa e fechada para o fenômeno da violência,

    especialmente nas sociedades latino americanas, imersas em processos de conformação de

    identidades sociais, gerando com isso um alarme social frente às demandas de segurança dos

    cidadãos. É o discurso da força, do controle de um estado desordem, o que está em questão .A

    violência passa então a ser representada como uma substancia e a ação violenta como valor

    ocultando o seu caráter relacional.

  • Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

    Estes vetores discursivos orientam a interpretação dos fatos noticiados a partir de um

    postulado de controle mais profundo da vida social (aplicação de pena de morte, cadeiras

    elétricas , cadeia perpetua, mais armamentos, mais policiais). Esta vetorialização dos discursos

    ocultam também as causas econômicas sociais e conjunturais que produz a violência social na

    sociedade brasileira: escravidão e trabalho infantil, extorsão policial, prostituição de crianças

    adolescentes, baixa escolaridade das populações rurais, desemprego juvenil, exclusão e

    marginalização social, alta taxa de desqualificação profissional e baixa oferta cultural, etc.

    A representação social da violência nos informativos de televisão analisados revela

    deste modo uma arquitetura descontextualizada, fragmentada e contraditória. A violência é

    representada socialmente como um problema de ordem pública, cuja solução depende de

    medidas e ações policiais e do poder judiciário através dos tribunais de justiça.

    No plano do discurso visual, percebemos que o tratamento informativo oferecido nas

    reportagens é mediado por angulações originais, câmaras subjetivas, e o constante uso do som

    ambiente, forte fator de verossimilhança e elemento básico da tessitura dramática do

    espetáculo de imagens e metáforas de violência nos telejornais.

    De outra parte, torna-se evidente a utilização de estratégias narrativas comuns para

    representar (“reconstituir”) audiovisualmente os acontecimentos relatados textualmente pela

    noticia (um seqüestro, um roubo ou um crime). Tomando de empréstimo formas

    características da ficção, os telejornais recorrem à simulação com atores, ou a meios

    modernos, como a infografia fixa e animada, empregando e desenvolvendo

    o recurso da serialidade discursiva.

    Esta serialidade é a capacidade que tem um discurso noticioso de promover a repetição

    de um tema explorado de forma recorrente com novas variantes. A repetição possibilita novas

    relações associativas e novas formas de interpelar o público. O caráter rotineiro da produção

    de noticias para um telejornal diário, que adota os princípios da cadeia de montagem

    coincidem com a baixa definição icônica da imagem eletrônica de televisão e são fatores

    fundamentais que sustentam as narrativas seriadas.

    As reportagens de violência são assim uma mistura de narração e

    representação.Narração realizada pela voz em off , a presença da câmera do jornalista ,o uso

    de rótulos ou a intervenção de narradores delegados. Representação como em uma obra

    teatral, uma posta em cena que recorre a ações dos personagens e a intensidade de imagens

    que marcam o discurso jornalístico da televisão, especialmente nos telejornais, servindo-se

  • Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

    constantemente do fetichismo das manchetes.

    Observamos que é através do extraordinário da situação que se estabelece à

    comunicação com o público. As imagens de violência participam do processo de comunicação

    nos informativos através de uma câmara instável, nas mãos, angulações marcadas e outros

    recursos estilísticos de imagem e som (barulho acentuado, sirene de policia ou ambulância,

    tonalidade de vozes, dialogo com o telespectador). O temor, o choque e o extraordinário

    aliados ao espetáculo dramático, marcado pelos estados extremos do ser, das ambições

    primárias e primitivas que habitam os imaginários levados ao plano do comportamento,

    representam a antiga simbologia do bem e do mal.

    As noticias de violência criam um espetáculo ao dramatizar ou exagerar um

    acontecimento e prolonga-lo por imagens na cena mediática diluindo as fronteiras entre

    realidade e representação . Tudo são cenários em que dominam a dimensão hiper,

    representações repetitivas e familiares em que se banaliza e estetiza a violência dentro de uma

    virtualidade em que tudo que é noticia tem que ter imagem: os detalhes pessoais das vitimas,

    os objetos que usava, os instrumentos utilizados pelos agressores, o rosto embebido em sangue

    . A representação se impõe como referencia imediata e se atualiza nas ofertas de realidade que

    o discurso icônico da violência produz e reproduz a cada noite nos noticiários de televisão.

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    Posicionando a questão