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SAIU PARA COMPRAR CIGARROS COLETÂNEA DE CONTOS DO BLOG SEM VERGONHA DE CONTAR VÁRIOS AUTORES - HELENA FRENZEL ED.

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SAIU PARA COMPRAR CIGARROS

COLETÂNEA DE CONTOS DO BLOG SEM VERGONHA DE CONTARVÁRIOS AUTORES - HELENA FRENZEL ED.

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© Helena Frenzel et al., 2014.

Saiu para comprar cigarros, Coletânea de contos do blog Sem Vergonha de Contar, Edi-ção Especial: Helena Frenzel et al., 1a. Edição, Helena Frenzel Ed., Janeiro 2014.

Textos de: Michele Calliari Marchese, Helena Frenzel, Vany Grizante, Rodrigo Arcadia, Ce-lêdian Assis de Sousa e Ailton Augusto.

Este volume é parte integrante do projeto Quintextos e não pode ser comercializado.

Copyright © 2014. Cada autor(a) participante declara-se autor(a) original de seu(s) tex-to(s) e, assim sendo, detém sobre o(s) mesmo(s) todos os direitos autorais e assume as res-ponsabilidades por tal declaração. Todos os textos aqui usados foram reproduzidos com gen-til permissão de seus autores.

Assumimos que os textos aqui reproduzidos tratam-se de ficção, ou seja: não se referem a pessoas e fatos do mundo real, não emitem sobre eles juízo ou opinião nem representam, necessariamente, a opinião da editora e dos autores participantes. A editora, consciente-mente, optou por não seguir as novas regras do Acordo Ortográfico da Língua Portugue-sa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009. Por este motivo, respeitou as escolhas ortográ-ficas individuais de cada autor(a) participante e manteve os textos de acordo com os res-pectivos originais.Edição e imagem: Helena Frenzel.Copyright © 2014 Todos os direitos sobre esta edição eletrônica estão reservados à editora: Helena Frenzel, St. Ingbert, Alemanha([email protected])Esta edição pode ser livremente distribuída sob uma Licença Creative Commons - Atribui-ção - Sem Derivações - Sem Derivados 2.5 Brasil (CC BY-NC-ND 2.5 BR), desde que na ín-tegra e com o devido crédito de autoria. Não é permitido de modo algum comercializá-la, al-terá-la e/ou usá-la no todo ou em parte para gerar obras derivadas.

Obra disponível para baixar em: quintextos.blogspot.com

CRÉDITOS

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Saiu para comprar cigarrosColetânea de contos do blog Sem Vergonha de Contar

semvergonhadecontar.blogspot.comEdição Especial, 1a Edição

Contos deMichele Calliari Marchese

Helena FrenzelVany Grizante

Rodrigo ArcadiaCelêdian Assis de Sousa

Ailton Augusto

Edição: Helena FrenzelJaneiro de 2014

Esta publicação é parte do site Quintextos (quintextos.blogspot.com)

Venda proibida

SOBRE O VOLUME

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A FUMANTES E NÃO-FUMANTES (4)Helena Frenzel

SAIU PARA COMPRAR CIGARROS... (5)Michele Calliari Marchese

OS CIGARROS OUTRA VEZ (8)Helena Frenzel

ACABOU (12)Vany Grizante

DISTRAÇÃO (14)Rodrigo Arcadia

REAÇÕES INEXPLICÁVEIS (17)Celêdian Assis de Sousa

NEM UM NEM OUTRO (20)Ailton Augusto

ÍNDICE

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Por Helena Frenzel

Antes que você decida sair para comprar cigarros levando esta coletânea consigo ou por ela sendo levado, bom seria que soubesse como ela nasceu.

Não, aqui não houve planos, como não houve plano para a criação do blog que a gerou: o Sem Vergonha de Contar.

Acontece que duas amigas, eu e Michele, gostamos muito de narrativas e resolvemos juntar rascunhos e criar um espaço voltado para publicações e a arte de contar, um espaço onde o prazer de escrever e contar histórias fosse o mais importante e, de quebra, pudesse levar pessoas a vencer um certo receio ou vergonha de aventurar-se em ficção. Daí nasceu o Sem Vergonha, todo prosa, bem como o conto que abre esta coletânea.

Michele propôs seu conto e lembrei de um meu antigo sobre o mesmo tema, que dormia numa gaveta e quem sabe até sonhasse em algum dia ver o Sol. E este dia chegou, tranqüilo, junto a uma chamada a quem mais desejasse participar. Foi aí que Vany, Rodrigo, Celêdian e Ailton levantaram a mão dizendo: eu quero, mas rapaz! E o resultado você tem no blog e agora também aqui, em forma de ebook.

Agora que você sabe da meta-história, saia para comprar cigarros sem medo de se perder (ou de se achar), que o cigarro literário até vicia, mas não tem cheiro, não queima seu dinheiro e faz bem ao coração.

Boa tragada então!

A FUMANTES E NÃO-FUMANTES

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Por Michele Calliari Marchese

Benvindo foi visto pela última vez comendo um sanduíche no balcão da rodoviária de Pato Branco. Tinha o filho ao lado, comendo também. Estavam rindo e demonstravam uma felicidade incomum.

Uma vida inteira depois do sumiço do Benvindo, a pessoa que o viu na rodoviária naquele dia, lembrou exatamente de suas últimas palavras: “Começaremos vida nova”. E essa pessoa, que era o imediato do delegado da Campina da Cascavel estranhou não ter visto a esposa do homem, mas pouco lhe interessava, e com um aceno de adeus entrou no ônibus que o traria de volta para casa.

No dia que o Benvindo foi embora, disse a todos que iria comprar cigarros e levaria o filho junto. Hoje, a mãe de Benvindo, com um retrato gasto em suas mãos trêmulas, olha para aquela criança da foto que segurava uma vela durante a primeira comunhão. Todas as crianças fizeram pose para o fotógrafo que registrou aquele momento único e era essa a principal lembrança que tinha do filho. Os cabelos molhados de brilhantina, virados para o lado esquerdo, uma camisa branca e um calçãozinho preto, meias brancas a lhe cobrirem as pernas até os joelhos e os sapatos pretos comprados especialmente para a ocasião. Um olhar de perdido surgia sempre que a mãe perguntava para o filho da foto: “Por quê?” Nunca teve respostas.

No dia que o Benvindo saiu para comprar cigarros, Mary Anne, a esposa do Benvindo, lhe fez um bico com os lábios em sinal do beijo.

SAIU PARA COMPRAR CIGARROS...

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Agora, era uma inconformada. Fora abandonada. O sogro a trouxe da capital para casar com seu filho, e conheceram-se somente no dia do casamento. Filha de uma professora tinha esse nome porque a mãe era dada aos romances americanos que lia com avidez. Ela por sua vez, tinha os mesmos gostos, tanto que o filho deveria chamar Michael, pronunciando “Maicon”, mas o marido quando foi registrar o filho o chamou de Benvindo Júnior. Ficou de mal com ele por três meses. Nem um dia a mais, nem a menos. No fim das contas depois de tanto tempo, pensou que nunca sentiu a falta do marido, mas sim do filho. Resolveu morar com os sogros e viver às expensas deles. Agarrava-se à ideia de que uma hora ou outra o marido apareceria e esperaria o tempo que fosse preciso — ou para sempre — se assim a vida quisesse, e como faz uma boa esposa.

Quando Benvindo saíra naquele dia para comprar cigarros, o filho, Benvindo Júnior lhe agarrara as mãos como a prever o triste desfecho que teria se acaso ficasse. Vendo aquele amor infantil e dependente, levou-o junto até a vendinha da esquina. Não tinha intenção — naquele dia — de abandonar tudo e ir-se embora para sempre. Aguentaria mais um pouco os inconformismos da mãe, o jugo exagerado do pai e o pedantismo insuportável da esposa. Era grato ao Benvindo Júnior que lhe dava os raros momentos de felicidade e por ele aguentava a prisão em que vivia sempre calado, a obedecer ordens neuróticas e nervosas. Tinha que aceitar tudo o que o pai lhe exigia.

Pediu o cigarro no balcão e o dono lhe apresentou uma conta de duas folhas que a esposa tinha feito fiado. Era-lhe quase impossível pagar todas aquelas coisas fúteis e sem serventia. De comida não tinha nada marcado, eram coisas de mulher, coisas que ela nunca usaria, como aquele vestido de lantejoulas azuis, que sozinho custava um mês de trabalho do Benvindo. Se chegasse a casa pedindo satisfações, o pai lhe

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mandaria que calasse e que fizesse as vontades da esposa, e que trabalhasse mais se necessário. Não, ele não queria ouvir mais nada.

Pegou o cigarro, guardou no bolso e mandou que cobrassem a conta de seu velho pai. Apertou a mão do filho. Trouxe-o para si e beijou-o repetidamente nas faces enquanto chorava amargurado pelas tantas vezes que em silêncio, baixara a cabeça.

Naquele dia que o Benvindo saiu para comprar cigarros, foi o filho que lhe disse: “Vamos embora daqui pai.” E o Benvindo sabia que se ficasse, Benvindo Júnior teria o mesmo destino amargurado que o seu.

Foi o dono da vendinha da esquina que contou à família e ao delegado que viu num relance pai e filho entrando na carona de um caminhão carregado de coisas que ele não sabia o que era. Tampouco deu atenção ao fato, pois poderia ser que estavam dando uma volta para satisfazer algum pedido do pequeno. Anos se passaram e ele foi capaz de lembrar que Benvindo chorava quando entrou no veículo e que não olhou para lado algum, como se fosse uma despedida.

E quem o viu pela última vez, o viu diferente. O imediato do delegado sequer reconheceu Benvindo na sua aura de felicidade naquele balcão da rodoviária de Pato Branco. Enquanto o ônibus dava marcha ré, pôde ver através da janelinha embaçada, pai e filho abraçarem-se sem medo do futuro, apenas confiando no amor e foi por isso que não pediu nada, nem para onde iam e tampouco se levavam malas.

Naquele dia que Benvindo e o filho saíram para comprar cigarros, eles sabiam no fundo de suas almas que ninguém jamais entenderia por que partiram e tampouco por que nunca mais voltaram.

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Por Helena Frenzel

Ele saiu para comprar cigarros e nunca mais voltou. Pensando nisto entrei meio cabisbaixo no bar do Aluísio, um velho galego. Sentei-me num banco alto junto ao gasto balcão de madeira e já ia fazer um pedido quando me interrompeu: “Estás meio triste, Abelardo? Brigaste com a namorada, eu sei.” “E como é que você sabe?”, me vi espantado. “Tu blogas e eu tenho facebook, aliás estou na tua lista de amigos, esqueceste?” “Ah, é tanta gente,” retruquei, “não me lembrava de você ali, desculpe.” “Pois é, hoje em dia a net virou confessionário, igual mesa de bar mas com muito mais garçons e clientes para dar pitaco, não é mesmo?”, riu com gosto. “Verdade, dá uma vodka.” “Vodka, logo de manhã?” “Isso, para aquecer o dia! E esse Sol, que não sai?” O chuvisco lá fora não havia parado e era pouco o movimento às onze da manhã. “Teu dia começa tarde”, disse secamente e depositou um copo a poucos dedos da minha mão. “Esperto foi meu pai, Seu Aluísio, que saiu um dia para comprar cigarros e não voltou mais, nem sombra nem pó, só Deus sabe o que aconteceu.” “Olha, rapaz”, Aluísio apertou um olho e a outra sobrancelha se ergueu: “teu pai foi meu amigo, tu sabes. Não me meto na vida dos outros, mas esse segredo eu não carrego mais. Vi que tu sempre escreves no teu blog falando dele, e muito mal aliás, mas tu não sabes o que aconteceu de fato.” Nem tive tempo de ficar zangado, fui terminando de dizer que só eu e mamãe sabíamos o que tínhamos passado e o velho veio com aquela de que toda história tem sempre mais de uma versão.

OS CIGARROS OUTRA VEZ

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“Pois é”, eu disse, “só sei que ele nunca me procurou. Mulher a gente até abandona, mas filho... ” “Escuta, conheci teu pai quando ele ainda estava casado com a filha de Tonha, vivendo na casa da sogra e construindo uma casinha para poder sair de lá. Lembro ele contando que as poucas economias que fazia, volta e meia sumiam dos guardados. Os cunhados metiam a mão na carteira dele na maior cara-de-pau, sem falar no material de construção que os vizinhos roubavam. Só sei que com muito sacrifício e trabalho nas horas vagas ele e a mulher construíram a casinha e logo depois de pronta, ela apareceu grávida e pouco depois nasceu tua irmã. Quase ninguém sabe do inferno que ele vivia em casa, nem uma camisa ela se dignava a passar; se quisesse cueca limpa, que fosse lavar ele mesmo. É justo, todo mundo sabe, mas casamento é partilha, meu filho: um dá o trigo, o outro faz o pão e os dois comem juntos, e ela nem a comida fazia para o teu pai. Um belo dia começaram a levantar suspeitas da paternidade da menina, ainda mais que não sei quem, no passado, havia profetizado que filhos o teu pai não ia ter. Tem gente que crê nisso, ele não cria, mas quando menos esperava, veio a separação. ‘Se eu registrei a menina, ela é minha filha’, ele me disse, e com isso a paternidade ficou fora de questão, pelo menos enquanto ele pagou a pensão direitinho. Saiu de casa com a roupa do corpo e o uniforme da firma ainda por lavar, sob ameaça de ter o pescoço cortado se voltasse a dormir em casa. Não voltou, por amor à tua irmã, que a mulher não deixou que ele visitasse nunca mais. Alugou um quarto num cortiço. Não demorou muito, veio a crise e ele perdeu o emprego, e a louca da filha de Tonha jogando processo nele por causa da pensão. Teve sorte de arrumar logo outro emprego e aí conheceu tua mãe. Com pouco tempo ela engravidou, e teu pai se desdobrando para sustentar as duas famílias e a situação, lá se amigaram. Com muito sacrifício eles construíram outra casinha e quando já estava tudo nos eixos e tu, crescidinho, começaram os problemas com a tua mãe. Um homem que passa a própria roupa não

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se deve jogar fora, meu filho, mas se nem Deus sabe o que querem certas mulheres, dirá um homem só! Ele saía cedo e voltava muito tarde e nunca encontrava nada para requentar e comer, dinheiro para as despesas ele sempre dava, como a pensão da menina que ele nunca deixou faltar. Um belo sábado ele chegou em casa, de tarde, e nem boa tarde recebeu, perguntou por ti e tua mãe disse que dormirias com teus avós. Ela estava terminando a maquiagem, vermelho caprichado carmim e sem tirar os olhos do espelho disse que os cigarros estavam quase no fim. Ele disse que iria comprá-los e ela, sarcástica, falou (Aluísio com as mãos nas ancas imitando voz de mulher): ‘Mas como você é manso…Pois vá mesmo e escolha um boteco bem longe, e de preferência lá na Freguesia do Ó, que é para voltar bem tarde, mas se tiver o azar de se aviar mais cedo não volte antes das oito, será melhor pra todos nós’. Ele me disse que saiu andando sem rumo e que voltou para casa umas vinte para as seis, um par de sapatos na porta e uns gemidos no quarto fizeram-no dar meia-volta, tomar sentido e jamás volver. Foi quando ele chegou aqui, cabisbaixo como tu, e me pediu um maço de cigarros. ‘Para você?’, perguntei estranhando, pois sabia que ele não costumava fumar. ‘Não sei ainda, preciso pensar muito’, ele respondeu. Sentou neste mesmo banco que tu estás sentado e contou-me essa história que acabei de te contar, num fluxo.”

Minha boca estava seca porque meus lábios não queriam se fechar. Que eu não fosse filho do meu pai, nisso nunca havia pensado, muito menos numa possibilidade de pulada de cerca de minha mãe que, pensando bem, ainda dava um bom caldo e nossa fonte de renda depois do sumiço de papai virou tabu. Quedei estupefato e Aluísio me pediu que não postasse isso no meu blog. “Certas coisas, ninguém precisa ficar sabendo, não é rapaz?”, ele me aconselhou. Antes de pensar nos motivos alheios, pensei no meu próprio relacionamento e nos filhos que não

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chegamos a ter. Não sou fumante, nem filho de dois, se bem que agora... vá saber! Ainda meio zonzo, agradeci pela vodka, bebi de um trago, paguei e saí. Sempre me calo antes de digerir uma história. E aquela história merecia muita reflexão. Saí dali evitando qualquer julgamento, mas ao pensar em Marcela e em seu jeito peculiar de me amar, não pude resistir à idéia de aderir ao fumo. Talvez os cigarros, para o meu problema, fossem a melhor solução.

"(…) amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos"

Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis (Capítulo XVII, Do trapézio e outras coisas).

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Por Vany Grizante

O maço acabou. O dedo (e todo o resto do corpo) tremia, vontade voraz, secura na garganta. Se não achasse a chave da porta, sairia pela janela, não estivesse no décimo andar. Ou, pensando melhor, se caísse poderia ser salvo pela marquise; talvez valesse a pena arriscar.

Mas achou a chave. Deu duas voltas trêmulas e chamou o elevador, que estava particularmente lento naquele dia. Era um elevador antigo, desses burros, que ia para onde o chamavam, independente da ordem de andares. O menino do décimo oitavo fez de novo a brincadeira, adorava apertar todos os botões, os pais achavam uma gracinha. No décimo quinto, uma demora abusiva; ia reclamar ao síndico. Aquela família de cinco filhos, um cachorro e um gato sempre descia com uma enormidade de tralhas e o elevador ficava parado horas no andar. Assim não podia ser.

Finalmente no térreo, o porteiro puxa conversa.— E aí seu Toledo, melhorou do dedo?

E ria, balançando a gorda pança. Era sempre a mesma brincadeira. Fazia meses que ele havia parado de sorrir quando o porteiro vinha com graça, mas não adiantava. Era um tolo bonachão que não entendia a linguagem de sinais. Mesmo quando, um dia, mais enraivecido que o normal, fez ao espirituoso homem um sinal com os dedos muito claro e

ACABOU

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universalmente conhecido, ele riu ainda mais, a pança tremendo como gelatina em mesa de pés bambos.

Finalmente na rua, relaxou um pouco. Pôs a mão no bolso para pegar um cigarro mas lembrou-se de que estava saindo exatamente para comprá-los. O relaxamento virou tensão, tossiu freneticamente por conta de uma fumaça invisível e atravessou a avenida fora da faixa de pedestres, que estava muito longe.

O bar do português estava lotado. Bando de vagabundos, meio da semana, cadê o trabalho? A fila no caixa o exasperava. Ao pagar, percebeu que havia esquecido a carteira. O português o olhou desconfiado: sem fiado. Quase saiu correndo com o maço que chegou a resvalar em sua mão ávida. Respirou fundo, tossiu de novo e saiu caminhando muito ligeiro sobre a calçada áspera, parando na beira da faixa de pedestres para esperar o semáforo — e respirar, que o fôlego andava curto.

Nova excursão lenta e angustiante ao apartamento. Abriu a porta, agarrou a carteira e saiu. A descida de elevador foi menos penosa, mas a demora para atravessar a avenida, hora do rush, comeu-lhe parte do fígado. Ao menos desta vez o porteiro nada havia dito.

Quase arrancou da mão do português o maço de cigarros. Ah, a sensação boa de segurar o pacote, abrir o fitilho, puxar o cilindro abençoado... Na porta do bar, acendeu-o. Fechou os olhos, tragando e caminhando lentamente, flutuando pela calçada cheia de pedestres, flanando pela avenida cheia de carros. Hora do rush.

O moço acabou. Causa mortis: politraumatismo com lesão cerebral. Tão jovem! O enfisema estava apenas sendo gestado e o AVC ainda ia levar uns anos...

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Por Rodrigo Arcadia

Saiu para comprar cigarros e…

Entrou nesses botecos com porta igual aos filmes de faroeste. Lembrança velha, no comercial, a propaganda de cigarros, olhos admirados e bobos. O pai, doido de fumar, um atrás do outro, o cheiro, a voz, cigarro humano, tomou apreço, um lado libertário, fumar era ato de macho, melhor que enfrentar valentões, a mulherada extasiada pra beijar os carinhas que fumavam, só charme, pra mostrar de bonito.

Saiu pra comprar cigarros e…

Calor, boteco abafado, música, música calma, de término de expediente. Pouca gente, animação zero. No balcão, prateleira de bebidas, outra prateleira, encontrou o que queria. A cara do velho que atendia era letargia pura. Que vai querer? Sem jeito falou da cachaça do alambique. É muito boa. O velho com ar malicioso.

Trouxe a garrafa e o copo, dobrou a dose. Conta da casa, a metade você paga. Beberia de uma vez. Uma loira, despercebida, o encarou, lábios destacados, batom vermelho, mulher clichê, saia curta, pernas brancas em meia calça preta de renda, bebia cerveja, garrafa cheia e gelada.

DISTRAÇÃO

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Bebeu a cachaça. Se arrependeu. A cerveja era mais tranquila. Só levaria tempo pra beber. É policial? A moça arriscou perguntar. Embriagada não estava. Olhos sóbrios, gestos sóbrios. Enxergou beleza, decote bonito, seios médios na blusinha. Não. Não sou policial. Tenho cara? Tem jeitão de tira. Que bom que errei. Oras, cometeu algum crime? Tenho medo de polícia, cometi porcaria nenhuma. Libertou um sorriso pra ele. Voltou a beber a bendita bebida, bebeu metade. Disfarçou, calor estranho agitou o corpo, quase perdeu o fôlego.

Nunca te vi, falou a loira, a cerveja tinha ido embora. Encheu, deu um belo gole. Saí pra… Interrompeu. Ela nem deveria saber. Curiosidade mata. Entrei hoje. Bom lugar. Desculpa qualquer. Arranjou coragem pra terminar a dose, que sensação terrível, que sofrimento! O velho saiu, foi ver o que o cidadão queria, estava bêbado, na mesa: vodca e porção de calabresa. É um bom lugar, de gente feia. A moça sorriu. As mesmas pessoas, os mesmos pedidos. Cair na rotineira é chato pra caramba. Que pena, né? Pena? Querendo soar engraçado? Ficou sem graça. Pediria o maço de cigarros e cairia fora. Infelizmente o velho se escafedeu no fundo do boteco. Ela bebeu outro copo da cerveja, levantou do banquinho. Disse no ouvido dele. Estarei no banheiro. Deu leve mordida na orelha, andou. O velho retornou, nem perguntou da mulher. Engoliu o restante da cachaça. Desta vez não teve nenhum mal-estar. Limpou a boca com o papel. Olhou na direção do banheiro, a loira esperando, a prateleira, o maço ainda lá. Vou ao banheiro. O velho balançou a cabeça positivamente. Abriu a porta. Pensei que havia desistido, ou fugido. Puxou-o para si, enlaçou-o. Era delicioso escutar a respiração dela, envolvente, sedutora. A voz excitante, provocativa. Faz programa? A moça riu. É engraçado, moço. Sem perguntas. Saiba que sou casado. Quieto! Começaram o beijo e os movimentos aos poucos aumentando no calor abafado.

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Ela saiu primeiro. Pagou, deu um até amanhã e foi embora. Ele veio em seguida, o velho encarou, temeu que perguntasse. Pagou, disse até mais. O boteco vazio, sem graça, monotonia pintada. Deu calafrio, andou mais rápido pra sair. De fora, ar agradável. Saiu pra comprar cigarros e… distraiu. Perdeu-se na multidão sem fim.

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Por Celêdian Assis de Sousa

Estava concluindo um relatório que eu iniciara outro dia e que havia deixado inacabado, quando percebi que não tinha mais cigarros. Fico agoniado quando não os tenho por perto, mesmo que seja um cigarro queimando no cinzeiro, esquecido entre um trago e outro. Isso me acontece frequentemente, quando estou trabalhando e fico completamente absorto. Meu escritório funciona na minha própria casa, pois detesto muita gente por perto.

— Liaaaaaaaaaaaaaaa... Berrei a plenos pulmões. Lia não demorou a aparecer e com um ar de menina assustada, como sempre se mostrava quando eu a chamava.

— O que foi desta vez, meu marido?— Vá lá na padaria comprar meus cigarros!Minha esposa já estava acostumada com meu jeito, sabia que em

momentos que estou ocupado, me transformo e pareço nervoso, mas acho que ela nem se incomodava mais, afinal estávamos casados por doze anos ou mais, não me lembro bem. Assim, mais uma vez obedeceu sem questionar, apanhou o dinheiro na minha carteira e saiu, voltando em seguida com a encomenda. Estranhei a atitude dela, pela primeira vez teve um gesto brusco, como se tivesse ganhado coragem para mostrar alguma indignação — sabe-se lá por que. Jogou a carteira de cigarros

REAÇÕES INEXPLICÁVEIS

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sobre a minha mesa e saiu dali batendo a porta atrás de si, fortemente. Não entendi bem aquela reação e a chamei novamente.

— Liaaaaaaaaaaaaaaaaa... Dessa vez ela não veio e apenas gritou que eu a deixasse em paz. Fiquei irritadíssimo! Levantei-me de súbito e fui ao seu encontro.

— Quem te deu o direito de gritar assim comigo, mulher? Quem você pensa que é? Está nervosinha, por quê?

Fiquei ainda mais irritado com o silêncio de Lia. Ela simplesmente me ignorou. Não me contive, a segurei pelos braços, a sacudi e exigi uma explicação. Nada — nem uma palavra. Furioso, saí de perto dela e mandei que me trouxesse um café. Passamos alguns dias sem nos falarmos, exceto quando eu precisava de alguma coisa. Lia não passava mais as tardes em casa — cismou de fazer um curso de corte e costura, o que eu achava uma besteira, mas acabei concordando. Felizmente, ela resolveu voltar a tratar-me bem como antes, parecia mais alegre. Eu nem precisava mais mandar ou pedir para fazer alguma coisa.

— Querido, você tem cigarros suficientes para hoje? Posso comprá-los se você quiser.

Respondi que sim, deveria comprar os cigarros e que não demorasse. Lia retirou o dinheiro da minha carteira e saiu. Eu estava tão envolvido com o que estava escrevendo, que nem percebi que estava com fome e nem tampouco que já era noite.

— Liaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa... Onde você está? Por que não me chamou ainda para o jantar?

Silêncio absoluto. Vasculhei toda a casa e Lia não estava. Fui até o portão de entrada, esperei por alguns minutos e ela não apareceu. Passei a noite em claro e não sabia o que fazer. Amanheceu, resolvi ir à padaria, onde ela costumava comprar os meus cigarros e ainda meio sem jeito,

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perguntei para a moça do caixa, nossa velha conhecida, se havia visto Lia na tarde anterior.

— Sim senhor, eu a vi. Ela até pediu-me para entregar-lhe este bilhete aqui.

Recebi o bilhete e já muito aflito, corri para minha casa e o li:

“Querido” marido!Sempre ouvi histórias de homens que saíram de casa para comprar

cigarros e jamais voltaram. Não entendia bem o porquê de sempre usarem essa mesma desculpa. Achava pouco criativo. Entretanto, só agora entendi que as pessoas não precisam de uma boa desculpa para tomar uma decisão. O que elas precisam mesmo é de coragem para sair em busca de um belo motivo para ser feliz. Foi o que fiz! Não adianta gritar, berrar pelo meu nome (mudei de nome), pois fui buscar seus cigarros nas estrelas e elas estão distantes a anos luz, de você. Não escolhi as estrelas por acaso, mas é que alguém me ensinou a percebê-las, enquanto você não percebia que apenas “é preciso amar para entendê-las*”. Ah! Um conselho: pare de fumar. Adeus!

Acho que desmaiei, não sei por quanto tempo. Quando recobrei os sentidos, só uma coisa me vinha à mente: nunca vou entender por que a minha Lia me deixou, mas de uma coisa agora tenho certeza — fumar faz mesmo muito mal.

* Verso do poema Via Láctea – Olavo Bilac

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(Ou das relações entre inspiração e cigarros)Por Ailton Augusto

O hábito de fumar era, nele, antes pose que vício. O de beber, também. Tanto assim que ele não comprometia o orçamento para comprar destilados ou cigarros. Aliás, cada cigarro e cada drinque era consumido com parcimônia e cálculo excessivos: quase sempre o ato de fumar se restringia às reuniões sociais a que era convidado como promessa da nova geração de escritores.

Apesar de enquadrado como escritor de uma possível nova geração havia aí dois erros de avaliação dos "amigos" — na verdade, pessoas que, como ele, buscavam apenas um pequeno reconhecimento que ajudasse a despistar as agruras do viver. O primeiro erro dizia respeito ao caráter de sua produção: antes de ser nova, ela guardava, isso sim, profunda relação com coisas já ditas e se o nome dele não sugerisse nada ao leitor menos atento à "nova cena literária", suas frases poderiam quase ser acusadas de plágio por conta da emulação que fazia do estilo de outros autores mais famosos. Além disso, já havia tempo que ele se dedicava à escrita.

O segundo erro, diga-se de passagem, também se relacionava com o tempo. Não o tempo que se presume no estilo de um autor (que pode, como era o caso, remontar ao final do século XIX ou à primeira metade do século XX), mas sim ao tempo mesmo, esse que malvadamente tinge de branco os cabelos e faz soar engraçada a inclusão de um jovem senhor entre os valores da nova geração.

NEM UM, NEM OUTRO

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No momento em que este conto começa, encontra-se esse escritor às voltas com um poema de encomenda que precisava terminar para um recital organizado para recepção aos calouros do curso de Letras da universidade local. Ele precisava caprichar porque o evento seria realizado no auditório da faculdade com toda a pompa necessária. Necessária, note-se, não às boas-vindas, mas aos que dela tomariam parte, tirariam fotos, encheriam as redes sociais com demonstrações de pertencimento à "haute culture" e de possuir boas amizades.

O problema, porém, passava longe desse jogo de aparências. Era um problema de jogo sim, mas de palavras. Ele não conseguia acertar uma rima rica e se doía todo. Riscava e rabiscava seu rascunho, abria e fechava seus muitos dicionários. Sem sucesso.

Nesse momento, produziu-se uma ruptura em sua vida tão calculada: pela primeira vez ele fumava fora das situações previstas, sem piteira, sem pose, sem testemunhas deste ato tantas vezes destituído de sentido. Agora não: ele fumava sofregamente, à espera de que suas dificuldades de escrita se desvanecessem na fumaça.

Ele, agora convertido na lagarta de Alice, tragou um, dois, três e muitos outros cigarros até que acabaram todos. Não tinha outro maço de cigarros em casa e não tinha encontrado ainda a palavra salvadora, aquela que seria a chave de ouro de um soneto perfeito, cujo rascunho dava prova de quantas vezes fora buscado.

Decidiu, então, sair para comprar cigarros e arejar a cabeça. Por azar era dia de feriado e teve de andar mais de dez quarteirões até encontrar uma padaria aberta onde enfim pudesse comprá-los. Enfiou o maço no bolso, junto de uma caneta e longe de um isqueiro, tão comum no bolso dos fumantes verdadeiramente inveterados. Em seguida, tomou o caminho de volta para casa. Ia pelo terceiro quarteirão quando veio, nítida, a palavra que faltava ao seu poema. Desesperou-se: estava longe de casa, sem papel, sem salvação para seu poema. Tinha medo de ser

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traído pela memória e mais medo sentiu quando os primeiros pingos grossos de uma chuva inesperada chocaram-se contra o chão.

Foi o tempo de esconder-se sob uma marquise e a um temporal desfeito arriar. Teve, aí, uma atitude digna de seu desespero e condizente com a relação frouxa que mantinha com o cigarro: abriu o maço e jogou todo seu conteúdo fora. Vinte pequenos cilindros brancos se sujaram ao tocar o asfalto. Vinte pequenos cilindros brancos desceram indefesos junto à enxurrada até encontrar a boca de lobo mais próxima, cilindros brancos como pedaços de um navio naufragado. No papel do maço vazio ele escreveu com letra trôpega, emocionada e convulsa a palavra tão ansiada. E esquecendo-se de tudo o mais, enfiou-se embaixo da chuva para voltar rápido para casa.

Chegando, pôde enfim terminar seu poema. Contudo, o corpo ressentiu-se de tão intensos acontecimentos e também da chuva, entregando-se a uma gripe monumental que o impediu de participar do sarau. Aborrecido, teve de contentar-se com ouvir os comentários dos amigos, dos quais muito poucos lamentaram sua ausência. O mais triste porém foi uma crítica que lhe fizeram, aliás injusta. Consta que um dos presentes ao evento, ao saber do motivo de sua falta de comparência, comentou: "Saiu para comprar cigarros debaixo de uma chuva daquelas? Veja você a que ponto o vício leva o ser humano!"

Poucos sabem, mas foi esse comentário quem sepultou uma carreira literária que, dizem, prometia muito. Aquele autor da "nova geração" sentiu-se desgostoso ao ser tachado de viciado e não quis, por excessivo cálculo e pudor, desfazer o mal-entendido. Ele terminou seus dias sem cigarros, pois fumar já não tinha razão de ser (a menos, claro, que ele quisesse confirmar um vício inexistente) e sem o reconhecimento literário que tanto buscara.

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