saeculum21

236
N° 21 - Jul./ Dez. 2009 ISSN 0104-8929 sÆculum REVISTA DE HISTÓRIA

Upload: raquel-fernandes

Post on 06-Aug-2015

103 views

Category:

Documents


5 download

TRANSCRIPT

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 1

N° 21 - Jul./ Dez. 2009

ISSN 0104-8929

sÆculumREVISTA DE HISTÓRIA

2 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBAReitor: Rômulo Soares Polari

Vice-Reitora: Maria Yara Campos Matos

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISAPró-Reitor: Isac Almeida de Medeiros

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTESDiretora: Maria Aparecida Ramos de Meneses

Vice-Diretor: Ariosvaldo da Silva Diniz

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIAChefe: Damião de Lima

Sub-Chefe: Regina Maria Rodrigues Behar

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

Coordenador: Raimundo Barroso Cordeiro JuniorVice-Coordenador: Elio Chaves Flores

COMISSÃO DE EDITORAÇÃO - SÆCULUMCarla Mary S. OliveiraCláudia Engler Cury

Elio Chaves Flores (presidente)Monique Cittadino

Mozart Vergetti de MenezesRegina Célia Gonçalves

Regina Maria Rodrigues BeharSerioja Rodrigues Cordeiro Mariano

Jucieldo Ferreira Alexandre(Colaborador Mestrando PPGH-UFPB/ bolsista CAPES)

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 3

Departamento de HistóriaPrograma de Pós-Graduação em História

Universidade Federal da ParaíbaCENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

Campus Universitário - Conjunto Humanístico - Bloco VCastelo Branco - João Pessoa - Paraíba - CEP 58.051-970 - Brasil

Fone/ Fax: +55 (83) 3216-7915 - E-Mail: <[email protected]>Sítio Eletrônico: <http://www.cchla.ufpb.br/saeculum/>

sÆculumREVISTA DE HISTÓRIA

4 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

Copyright © 2009 - DH/ PPGH/ UFPB

ISSN 0104-8929

Capa, Projeto Gráfico: Carla Mary S. Oliveira

Ilustração das Vinhetas: Albretch Dürer, “Moça Lendo” (detalhe), 1501;desenho a grafite e nanquim castanho sobre papel; 16,1 x 18,2 cm;

Boymans-van Beuningen Museum, Rotterdam, Holanda.

Impresso no Brasil - Printed in Brazil

Efetuado o Depósito Legal na Biblioteca Nacional,conforme a Lei nº 10.994, de 14 de dezembro de 2004.

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

É proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio.A violação dos direitos autorais (Lei nº 9.610/1998) é crime estabelecido no artigo 184 do Código Penal.

Indexada no Latindex (UNAM - México)

e no DOAJ - Directory of Open Acess Journals (Lund University - Suécia)

Periódico avaliado como QUALIS B2 na área de História pela Capes

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)Biblioteca Central - Universidade Federal da Paraíba

S127 Sæculum - Revista de História, ano 15, n. 21 (2009). - João Pessoa: Departamento de História/ Programa de Pós-Graduação em História/ UFPB, jul/dez. 2009.

ISSN 0104-8929

Semestral

236 p. BC/UFPB CDU 93 (05)

MISSÃO DA REVISTA

Sæculum - Revista de História é publicada pelo Departamento de História da UFPB desde 1995 e, a partir de 2004, passou a ser também o periódico do Programa de Pós-Graduação em História da mesma universidade. Sua freqüência é semestral, e se trata de uma revista voltada à divulgação e

debate de pesquisas no campo da História e da Cultura Histórica e suas diversas interfaces, abrindo

espaço para pesquisadores do Brasil e do exterior.

CONSELHO EDITORIAL

Antônio Paulo Resende (UFPE)Antonio Clarindo Barbosa de Souza (UFCG)

Carlos Fico (UFRJ)Durval Muniz de Albuquerque Jr. (UFRN)

Ernesta Zamboni (UNICAMP)Gisafran Mota Jucá (UECE)

João José Reis (UFBA)João Paulo Avelãs Nunes (Univ. de Coimbra)

Jorge Ferreira (UFF)

Leonardo Guimarães Neto (CEPLAN)Luiz Geraldo Silva (UFPR)

Maria de Lourdes Janotti (USP)Pedro Paulo Funari (UNICAMP)

Peter Mainka (Univ. de Wüzburg)Ricardo Pinto de Medeiros (UFPE)

Sílvia Regina Ferraz Petersen (UFRGS)Tereza Baumann (MN-UFRJ)Valdemir Zamparoni (UFBA)

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 5

Sumário

ISSN 0104-8929João Pessoa - PB, n. 21, jul/ dez. 2009

DOSSIÊ: HISTÓRIA E TEORIA DA HISTÓRIA

A História do mundo como tribunal do mundo ............................................... 11Fernando Catroga

A Filosofia da História Pósmoderna: Elias, Foucault, Bourdieu eThompson ............................................................................................................ 33José Carlos Reis

O Caçador de Bruxas: Carlo Ginzburg e a análise historiográficacomo inquisição e suspeição do outro............................................................. 45 Durval Muniz de Albuquerque Júnior

Indivíduo e Sociedade na escrita da História:o primado do social na Historiografia dos Annales .................................. 65Raimundo Barroso Cordeiro Jr.

Sobre o Olhar, a Arte e a História: questões para o historiador da arte ....77Carla Mary S. Oliveira

A História das Ideias e os lugares da fala: uma perspectiva críticadas ideias de representação, ideologia e região ............................................ 87Carlos Henrique Armani

História do poder político e Teoria Social: apontamentos para um estudosobre as relações entre o poder político e o crime naAmérica portuguesa ................................................................................ 97Paulo Henrique Marques de Queiroz Guedes

A Cidade como objeto da Historiografia ...................................................... 111Carlos Roberto da Rosa Rangel

ARTIGOS

Barack Obama e os filhos da Globalização .................................................. 125Robert Allen

Editorial ................................................................................................................ 7

6 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

Terrorismo e violência política ....................................................................... 135Giuseppe Tosi

O Império da Voz: apontamentos sobre o exercício do poder pontifíciodurante a “era gregoriana” .............................................................................. 149Leandro Duarte Rust

À margem do Império: autoridades, negociações e conflitos.Modos de governar na América espanhola (séculos XVI e XVII) .............. 161Rodrigo Ceballos

Protestantismo e Inquisição no Brasil colonial: o “luteranismo” nasconfissões da primeira visitação do Santo Ofício ao Brasil(1591-1595) ......................................................................................... 173Daniel Soares Simões

A construção da identidade afrobrasileira em histórias de vida,lutas e resistências ........................................................................................... 181Alba Cleide Calado WanderleyMirian de Albuquerque Aquino

A arte de conceber/ artes de conceição: escrituras do materno emimagens de infanticídio (Paraíba, 1960-1970) ............................................. 195Gilmária Salviano Ramos

RESENHA

A Conquista da Paraíba sob foice, espada e cruz ........................................ 211Josemir Camilo de Melo

ENTREVISTA

História, Teoria da História e Culturas Historiográficas:entrevista com Astor Antônio Diehl ...................................................... 219

***

Normas para publicação .................................................................................. 233

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 7

EDITORIAL

Prezada Leitora, Prezado Leitor:

No ensaio sobre o “conceito de história universal”, de 1831, Leopold von Ranke sustenta que a história se diferencia das demais ciências porque também é arte. Entretanto, o historiador alemão que forjou a história científica não chegou entre nós, historiadores do século XXI, como um sujeito envolvido e simpático às “artes historiográficas”. Pelo contrário, sua principal “representação” é a de historiador, metódico, oitocentista, positivista, historicizante. Os dois primeiros adjetivos são agradáveis; os dois últimos são xingamentos nos ofícios de Clio.

Sæculum 21, com o dossiê História e Teoria da História, apresenta oito ensaios que discutem desde a “história como tribunal do mundo”, a filosofia da história pós-moderna (uma provocação?), a historiografia como “suspeição do outro”, o diálogo dos Annalistes, questões para o historiador da arte, teorias da representação e ideologia, poder político e teoria social e a “cidade como objeto da historiografia”. Temos certeza de que o “velho” Ranke se agradaria de dar uma espiadela nos historiadores do século XXI, nessa Sæculum 21, lá dos seus recantos da Turíngia.

Mais sete artigos compõem a sessão seguinte, de fluxo contínuo, com discussões sobre o marco simbólico do tempo presente com a eleição de Barack Obama como o primeiro presidente negro dos Estados Unidos da América, os “impérios”, o terrorismo e a violência política que também afeta o tempo presente, luteranismo no Brasil colonial, construção da identidade afro-brasileira e outras temáticas significativas de nossa historiografia. Uma resenha discute livro recente e importante em que se entrecruzam narrativas e leituras de guerras, açúcares, conquistas e população ameríndia. Se a resenha empolgar os interessados para a obra atestada, haverá uma hipótese de leitura: nem tanto as mestiçagens.

Por último, para consubstanciar o dossiê, História e Teoria da História, os editores de Sæculum publicam a entrevista inédita, “História, Teoria da História e Culturas Historiográficas”, com o historiador Astor Antônio Diehl que, nos últimos vinte anos, se tornou referência historiográfica para uma geração de alunos e pesquisadores em

termos de debates epistemológicos e metodológicos da nossa “ciência e arte”.

Os Editores

8 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 9

dossiÊHistória

eTeoria da História

10 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 11

A HISTÓRIA DO MUNDO COMO TRIBUNAL DO MUNDO1

Fernando Catroga2

A obsessão ocidental pela história e pela memória tem como principal fonte a influência, mesmo que indirecta, da visão judaico-cristã do tempo. Na verdade, temos por profícuas as leituras que ligam o forte investimento memorial, monumental e historicista – feito pela cultura ocidental após o impacto do cristianismo – aos efeitos mundividenciais provocados por uma religião anamnética e semeadora de expectativas messiânicas e escatológicas. E aqui se inclui o da secularização, tendência que, “fundindo integralmente o supra- ou o extra-histórico no século e no tempo”, irá impedir, “doravante, que se possa antever, na história, algo mais que uma expectativa e uma realização internas”3.

Essa inversão foi realizada pelas filosofias da história. E, por mais paradoxal que possa parecer, a religião, incluindo a sua racionalização teológica, não foi estranha a estes desenvolvimentos. A criação ex-nihilo, por um Deus transcendente, do espaço e do tempo, a Sua aliança com um povo histórico e a espera messiânica se, por um lado, ditaram a separação do sagrado e do profano, por outro lado, puseram na história sinais da Divindade que, porém, não se confundia com ela. Por sua vez, o cristianismo, consubstanciado no acontecimento simultaneamente sacral e histórico anunciador da boa nova, potenciou ainda mais a localização terrena de ideias e valores que nele só tinham valor transcendente. Poder-se-á mesmo dizer que a integração cristã do messianismo judaico pôs em acção um movimento de auto-superação, mediante a incessante conversão do antigo em novo, isto é, a “ Tora em Evangelho, o Logos em Carne, a Polis na cidade de Deus”4, processo dialéctico de conservação/ superação de oposições tanto internas como externas5.

Reafirma-se, assim, que a temporalização e a secularização do mundo no Ocidente não serão mais do que pontos de chegada de um caminho em que o homem se foi apropriando do Logos que o criou e que o conduziu ao optimismo da ciência moderna, à separação do poder temporal face ao poder espiritual, e à projecção da apocalíptica religiosa num tempo horizontal. Com este último processo, as filosofias da história anteviram a Jerusalém celeste descendo dos céus para ser a casa terrena dos filhos de Caim, ao mesmo tempo que secularizavam a cenose, incarnação de Deus simbolizada, não numa pessoa (Jesus), mas na humanidade, deste modo eleita novo Messias colectivo. Nesta promessa, dir-se-ia que a parúsia de Deus se fundia com a própria presença do homem no tempo6.

1 Este artigo reproduz o que escrevemos em Os passos do homem como restolho do tempo: memória e fim do fim da história. Coimbra: Almedina, 2009, p. 239-264.

2 Professor catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e especialista em História das Ideias e em Teoria da História. Dos inúmeros escritos de que é autor, destacam-se os livros O céu da memória: cemitério romântico e culto cívico dos mortos. Coimbra: Minerva, 1999; e Entre deuses e césares: secularização, laicidade e religião civil. Coimbra: Almedina, 2006.

3 BENSUSSAN, Gérard. Le temps messianique, temps historique et temps vécu. Paris: J. Vrin, 2001.4 BENSUSSAN,Le Temps...5 ROSENZWEIG, Franz. L’ Étoile de la rédemption. Paris: Esprit, 1982.6 BRUN, Jean. Philosophie de l’histoire: les promesses du temps. Paris: Stock, 1990.

12 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

A ANTROPODICEIA NO TEMPO

Os liames existentes entre a religião cristã e a possibilidade de a razão se constituir como saber absoluto – e, consequentemente, concretizar o que, com a revelação, foi somente dito de uma maneira profética e meta-histórica – eram claros em Hegel, para quem a essência do cristianismo seria dialéctica, como cristã era a essência da dialéctica histórica, junção sem a qual o significado da secularização não poderá ser entendido. Como, logo em 1838, bem explicitou o hegeliano Cieszkowski, a humanidade estaria finalmente a chegar a um estádio de auto-consciência, em que as leis do seu normal desenvolvimento e progresso teriam deixado de ser encaradas como produtos fantasmáticos de mentes entusiastas, para serem apresentadas como autênticas determinações do pensamento absoluto de Deus, ou melhor, como manifestação da sua razão objectivada na história7. Numa espécie de recepção mitigada do Evangelho Eterno e de Joaquim de Fiori, boa parte das filosofias da história, incluindo as que Comte e Marx sistematizaram em nome da ciência, estruturaram-se sob o modelo da Santíssima Trindade, reproduzido no cariz triádico da contradição, como se pode comprovar em Schelling e em Hegel. Com isto, a unidade Pai, Filho e Espírito Santo transmutou-se, mormente quando a lição de Herder foi misturada com a de Hegel, em Weltgeist (espírito do mundo), Volksgeist (espírito do povo), Zeitgeist (espírito do tempo); ou, então, revelou-se nesta outra sucessão necessária: tese, antítese e síntese.

Poder-se-á perguntar: Kant não terá colocado uma ideia teleológica de natureza humana no lugar de Deus, e o seu ideal regulador não seria uma espécie de milenarismo racionalizado, ou melhor, um “quiliasmo filosófico”, que actuaria como incentivo à criação da “paz perpétua” e de um imanente “reino de Deus”? 8 No último Herder, não teria a humanidade a tarefa de edificar a amizade e a solidariedade através da razão, significando isso a confirmação da finalidade última do cristianismo – fundar o reino do céu na terra? Em Hegel, a providência não terá sido substituída pelo finalismo absoluto da razão? Em Comte, pelo determinismo que comandava a evolução do espírito da humanidade para o “fixo e definitivo” estado positivo? Em Proudhon, pela iminente chegada do conciliado reino da Justiça? Em August von Cieszkowski, por uma expectativa messiânica de futuro, sendo este identificado como o culminante reino do Espírito? E, em Marx, a superação das contradições não traria a passagem do “reino da necessidade” para o “reino da liberdade”, estádio pletórico que realizaria o “homem total”?

Por outro lado, parece claro que estas concepções não rompiam, por inteiro, com a ideia de queda (por geração ou processão), ou, no mundo judaico-cristão, de culpa (devido ao pecado), nas suas explicações sobre a origem da finitude humana e da índole corruptível e degradante do tempo profano. Nietzsche não tinha dúvidas: a consciência histórica ocidental dimanava do sentimento de culpabilidade (doença incurável, que impediria a acção verdadeiramente criadora do homem) e as teorias que a expressavam não passariam de visões teológicas camufladas. No seu anátema,

7 CIESZKOWSKI, August von. Prolegómenos a la historiosofia. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 2002.

8 SANTOS, Leonel Ribeiro dos. O eurocentrismo crítico de Kant. In: COSTA, Fernando Gil & SILVA, Helena Gonçalves da (orgs.). A ideia romântica de Europa: novos rumos, antigos caminhos. Lisboa: Colibri, 2002.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 13

ele tenha visto em Hegel, não um verdadeiro deicida, mas o grande retardador da “morte de Deus”9.

A génese da história era narrada a partir de uma necessidade interna de divisão (e de contradição) que funcionava para justificar o itinerário que a humanidade teria de percorrer para superar a sua cesura primordial. E a teoria do pecado culpabilizou o homem pela situação de penúria, diminuição que só a fé poderia redimir. Dilacerado pela contradição, o parto da história tinha de ser doloroso, embora também pudesse ser sofrimento que conduziria à salvação. Uma vez secularizada, essa expectativa seria estímulo de luta pelo aperfeiçoamento e, por isso, contra a degradação e a senescência provocadas pelo ritmo natural do tempo. De sorte que será lícito afirmar que as filosofias da história (e as teorias sociais de inspiração cientista) deslocaram a esperança e a escatologia cristãs para o plano terrantês da imanência, retirando-lhes o seu cariz extra-histórico e projectando, no devir progressivo – definido em termos acumulativos e horizontais –, as esperanças redentoras que a sua prognose prometia. Maneira invertida de confessar que, até lá, a humanidade continuaria a ser homo dolens.

A DIALÉCTICA DA REDENÇÃO

Com a modernidade – e, em particular, com o Iluminismo –, a história passou a ser vivida e pensada como um trajecto dentro do qual a conquista da felicidade humana (isto é, a libertação das contradições e da infelicidade) não devia ser assumida como uma quimera, nem poderia ser adiada para outro mundo. Mas, dada a aceitação da infinitude do tempo, dois desfechos, só aparentemente contraditórios entre si, seriam possíveis: o presente já estaria a realizar a finalidade objectiva do devir; ou, então, continuava a ser uma fase de transição, comummente qualificada como período de crise e de decadência, porque dilacerado por contradições e, portanto, ainda longe da chegada da hora plena.

Em tal horizonte, verifica-se a existência de uma continuidade (embora de sinal contrário) em relação ao modo antigo de apreciar o hic et nunc. Fosse nas concepções cíclicas, fosse na sobredeterminação religiosa judaico-cristã, o presente foi sempre experienciado como um momento ontologicamente diminuído, em confronto com a plenitude da origem (Idade de Ouro), ou devido ao envelhecimento do mundo. Só que a nova mediação do optimismo histórico, se lhe conferia análogo estatuto (ele manter-se-á como momento de crise e de decadência), posicionava-o, porém, como superior ao passado, embora mais pobre quando comparado com as infinitas possibilidades de aperfeiçoamento. E este juízo de valor estava tão arreigado que o encontramos mesmo num dos mais fortes críticos dos exageros do Iluminismo dominante. Referimo-nos a Herder (1995), para quem a sua época (o século XVIII) era “um século de decadência”.

A consciência do desfasamento existente entre o presente e o futuro-futuro (imaginado) reforçou a vertigem do homem moderno perante a história. E este desassossego fez da previsão um novo tipo de profetismo, ou melhor, uma espécie de “judaísmo” secularizado. Sem a humanização do significado da Encarnação, sem a horizontalidade imanente do Logos (que a razão autónoma do homem podia

9 NIETZSCHE, Friedrich. Obras escolhidas. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996 [A Gaia Ciência, § 357].

14 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

consciencializar), e sem a consequente espera de um destino terreno e optimista para o “terror da história” (Mircea Eliade), a cultura ocidental não se teria comprometido tão intensamente na aspiração à perfectibilidade e ao progresso. Descontando os que defendiam o presente como um presente eterno, esse frenesi sempre fez pensá-lo como um patamar, pois o homem continuará à espera da vinda do reino de Deus (na terra), como se, na sua condição de homo viator, encontrasse na silhueta da miragem o alento necessário para partir em busca de outra, mesmo depois de esfumada a que tornou sôfrega a sua busca.

No judaísmo, a esperança messiânica não está tanto contaminada de historicidade (ela apela para o futuro enquanto instante do tempo vertical). Mas o cristianismo, ou melhor, a sua componente milenarista, empolgou a vontade de acelerar o próprio tempo histórico, em ordem a dar-se início à consumação terrena do reino do Espírito. Entusiasmo que, subjacente ao joaquimismo, atravessa as revoltas populares de cunho messiânico, ou Lutero, com o seu desejo de uma rápida precipitação da sucessão do tempo cronológico, e que supõe o desejo de conversão dos séculos em anos, dos anos em dias, dos dias em minutos, experiência do tempo que, no registo dos negócios do mundo, encontraremos a animar a atitude dos revolucionários modernos.

Não por acaso, a versão secularizada deste tipo de espera ganhou corpo na apropriação do divino feita pelo homem e no seu investimento prático na história, embora para resolver as suas contradições. E, como se viu, ao fenómeno que melhor objectivou esta ansiedade perante o tempo novo chamou-se “revolução”, momento denso de revelação do Logos encarnado. Como escreveu Schlegel – pensador que oscilou entre um Deus feito homem e um homem feito Deus –: “o desejo revolucionário de realizar o reino de Deus é o ponto flexível da cultura progressiva e o começo da história moderna”10.

Este esforço para se encurtar a distância entre o presente-futuro e o futuro-futuro, visava superar o negativo, isto é, “matar” a dor e a morte, limitações provocadas pela desapiedada passagem do tempo. E as filosofias da história (bem como as teorias diacrónicas sobre a sociedade) comutaram esta atávica recusa em objecto de conhecimento, com o fito de, daí, fazerem promessas que, mesmo quando apresentadas como “esperanças matemáticas” (certas ou prováveis), agissem como sucedâneas das “esperanças consoladoras” semeadas pela religião. Mas, para que esse propósito fosse convincente, os acontecimentos da história concreta e empírica teriam de ser compreendidos, não em si mesmos, mas como símbolos ou como meios, a fim de se tornar legível e dúctil o devir universal. Como as excepções foram raras, Pomian tem razão quanto sublinha que toda esta sobrevalorização do futuro – horizonte aberto pela escatologia judaico-cristã – está na raiz das preocupações do homem ocidental moderno com a história.

Em termos de estrutura narrativa, a aventura humana foi contada, sobretudo, em termos dramatúrgicos, palco – metáfora comum à linguagem de vários pensadores (Herder, Hegel, por exemplo) – onde a história se objectiva como verdade que, se salva, também julga. Como afirmou Hegel, e os românticos (Schiller) gostavam de repetir – secularizando uma visão profética do Antigo Testamento –, Die

10 BRUN, Philosophie ....

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 15

Weltgeschichte ist das Weltgerich (“A história do mundo é o tribunal do mundo”). Dir-se-ia que, em correlação com uma espécie de novo “medo” escatológico, se foi instalando uma ideia justiceira de futuro (“a história nos julgará”). Afirmou-se, assim, uma crença substitutiva dos temores e esperanças apocalípticas, realidade exemplarmente formulada por Jules Michelet, quando, num dos seus cursos do Collège de France, proclamava que a história (e a historiografia) passou a ser “a justiça”, “a ressurreição na justiça”, isto é, o “Juízo final”, onde “cada um comparece com os seus actos, as suas obras”11 para ser julgado.

Porém, nesta escatologia, o céu só poderá estar cheio e o inferno vazio no final da história, não obstante se acenar com promessas de recompensa que, para chegarem mais cedo, funcionavam como encorajamento para se “fazer” a história. Sem problematizar a contradição que existe no facto de o juiz e o réu serem a mesma entidade, essa escatologia cingir-se-ia à fama e à memória, fosse a da condenação feita pelos vindouros, ou fosse a que, positivamente, provinha da perpetuação dos que, por pensamento e acção, conseguiram conquistar o direito à rememoração e à imortalidade. Contudo, esta vitória será sempre virtual, pois a anamnesis somente confirma a vida dos vivos. Percebe-se. Ao contrário do prometido pela transcendência religiosa – sua matriz –, ela só poderá construir a ressurreição do passado como re-presentação, logo, como uma re-presentificação12.

Esta promessa adequou-se bem – em particular, a sua teorização do ideal de “grande homem” – à fundamentação dos novos cultos cívicos legitimadores de uma nova ordem política e social. O argumento histórico garantia a localização de cada indivíduo, de cada povo, de cada nação, no caminhar da humanidade, situando o passado, ou melhor, alguns dos seus aspectos, como o antecedente do futuro. É certo que, sobretudo após Schopenhauer e Nietzsche, foram lançadas críticas contra o optimismo que, dominantemente, iluminava estas interpretações. Todavia, parece incontroverso que, através das práticas educativas e das justificações político-ideológicas que se foram hegemonizando, a mundividência transversal à grande maioria dos imaginários sociais, que enformaram a mentalidade ocidental durante o século XIX e boa parte do século XX, continuou a ser de orientação prospectiva, ideal que teve a caricatura dos seus excessos na figura de Pangloss.

Esta confiança nesta lógica da ironia: o final épico seria um amanhã a despontar depois de séculos de tragédia. De facto, a decifração do sentido da história, feita em nome da verdade (revelada pela filosofia, ou demonstrada pelas novas ciências sociais), propunha-se vencer a condição diminuída do homem, causada, em última análise, pela fugacidade do tempo (e das contradições sociais). Porém, desde os primórdios da cultura ocidental, a história dos homens aparecia como uma degradação ôntica, ou como o fruto do pecado e da revolta dos anjos (como em Santo Agostinho), ou como o resultado de contradições (metafísica ou socialmente fundamentadas) só solucionáveis no futuro (por harmonização, extinção ou superação das antíteses). E foi ainda contra esta última promessa que nasceram as alternativas conservadoras, defendendo a eternização do presente, e as contra-revolucionárias (De Bonald, Joseph de Maîstre), com a sua apologia do “regresso” a uma fase ideal

11 MICHELET, Jules. Cours au Collège de France - Tomo II. Paris: Gallimard, 1995.12 CATROGA, Fernando. O céu da memória: cemitério romântico e culto cívico dos mortos. Coimbra: Minerva, 1999; CATROGA, Fernando. Caminhos do fim da história. Coimbra: Quarteto, 2003.

16 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

do passado que a aceleração artificial do tempo teria destruído.

Como ficou escrito, já antes de Fichte, de Schelling, de Hegel, de Marx e de Proudhon, pensadores como Turgot, Herder e Kant haviam realçado a dimensão contraditória da história. O primeiro, no ensaio Sobre os sucessivos avanços da mente humana (1750), problematizou as relações que existiriam entre o progresso (esboçou a lei dos três estados) e a violência; e Kant sustentou que a história, desde que lida do ponto de vista cosmopolita, mostrava que “o meio de que a natureza se serve para levar a cabo o desenvolvimento de todas as suas disposições naturais é o seu antagonismo da sociedade na medida em que este antagonismo acaba por se tornar a causa de uma ordenação regular da mesma sociedade”. Para Herder, o Volksgeist teria o seu apogeu numa agónica e sempre provisória situação de equilíbrio, enquanto Fichte, mormente no livro As Características da idade presente, considerou a guerra entre os Estados como o mecanismo que introduzia um princípio de vida e de progresso na história. Também para o Schelling da segunda versão (1813) da obra Die Weltalter, conquanto os homens desejassem evitar, tanto na vida como no saber, a contradição, eles tinham que a defrontar, porque, sem ela, não existiria “vida, movimento, progresso, mas um letargo de todas as forças”; em Hegel, o espírito necessitava da sua objectivação espaço-temporal, isto é, do seu contrário, e foi definido como “uma capacidade ou potencialidade de luta para se realizar”; em Comte, a evolução espontânea do espírito da humanidade determinava um percurso igualmente periodizável pela contradição: a fase metafísica (estado crítico) teria sido a antítese da fase inicial (estado teológico), e do combate entre ambas estaria a nascer o período definitivo – o estado positivo; em Proudhon, as antíteses não se destruiriam, mas tenderiam para a sua conciliação; mas, em Marx, dariam origem a realidades qualitativamente superiores, até à extinção das contradições sociais que as determinavam. Por conseguinte, fosse através do equilíbrio, da conciliação, da superação, da síntese, ou mesmo da subordinação de um contrário a outro (como a insociabilidade face à sociabilidade, em Kant), a mola propulsora da história era de índole antitética. E a desenvolução do seu dinamismo só deixaria de ser cega quando fosse apreendida racionalmente, e a teoria, que lhe dá luz, fosse eleita como a norma que planificava o futuro.

O pensamento moderno introduziu, porém, uma novidade: se, nas concepções míticas e greco-romanas, a consummatio era regressiva (o tempo arrastava consigo um empobrecimento ontológico, cuja purificação exigia um cíclico e ritualizado “regresso” à Idade do Ouro), e se, na visão judaico-cristã, a salvação do homo dolens estava para além da história, agora, o tempo foi entendido (e vivido) como um percurso qualitativamente ascensional que albergava, no seu seio, a potencialidade de libertar a humanidade da infelicidade trazida pela história. Consequentemente, a narração desta aventura colectiva foi ganhando uma unidade épica na qual o princípio e o fim se exigiam reciprocamente.13

Por outras palavras: a história foi encenada de acordo com uma dramaturgia em que a tragédia era posta ao serviço de um final feliz. Pode mesmo sustentar-se que o seu enredo simbolizava a paixão de Cristo, incessantemente recomeçada, até à redenção final. Daí a sua dimensão irónica, pois ela seria dramática quanto aos meios

13 KOSELLECK, Reinhart. Futuro pasado: para una semántica de los tempos históricos. Barcelona; Buenos Aires; México: Paidós, 1993.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 17

e épica em relação ao fins. Tem assim razão Cournot (1934) quando, ao referir-se ao modelo hegeliano – onde estas características ressaltam de um modo exemplar –, o considerou “um género épico”, no qual as “nações de elite desempenham cada uma o seu papel como representantes de uma ideia”. E, como se assinalou, algo de semelhante se pode afirmar no que toca à acção de outros “motores” do tempo (indivíduos, civilizações, nações, classes, raças). Seja como for, apesar de se presumir saber como terminará o futuro, a tragicidade do particular seria sempre inevitável, na medida em que os efeitos do agir ultrapassam a intenção de quem os comanda, e os protagonistas nunca poderiam vir a ser contemporâneos da plena efectuação do que consciente ou inconscientemente ajudaram a antecipar.

Para que o optimismo fosse convincente, havia que inverter, deslocar e corrigir as narrações de tipo teológico. Abolido o papel interventivo de Deus, o que, no plano empírico, parecia ilógico à luz da finalidade perseguida, era integrado como antítese ou negatividade necessárias à sua prossecução. Assim, explica-se que Kant qualificasse a insociabilidade como “louvada”, pois, sem ela, não existiria o esforço espiritual do homem para a vencer, fazendo da história um campo aberto de possibilidades de progresso.

Tem sido assinalado que esta tese, que implica o reconhecimento do papel do mal na realização do bem, pôs em funcionamento uma lógica da contradição, na qual o pólo negativo actua como um “ardil da razão”, numa espécie de secularização da velha providência. E a sua função pode ser assim sintetizada: por um lado, não seria possível pressupor a existência de um mínimo desígnio racional nos seres humanos individuais; mas, por outro lado, a razão poderia descobrir, no aparentemente obscuro curso dos acontecimentos, uma tendência de espiritualização ético-racional paulatinamente vencedora14. E é em Hegel que esta faceta contraditória aparece de um modo mais explícito e sistematizado. Por palavras suas: “Não é a ideia geral que está envolvida em oposição e luta, e exposta ao perigo. Ela permanece no background, inatingida e ilesa. Pode-se chamar a isto o ardil da razão – dispõe as paixões em seu benefício, enquanto aquilo que lhe desenvolve a existência por meio de tal impulso paga a pena e sofre o prejuízo […] O particular é na sua maior parte de valor demasiado mesquinho, comparado com o geral: os indivíduos são sacrificados e abandonados. A Ideia paga a pena da existência limitada e da corruptibilidade, não de si mesma, mas das paixões dos indivíduos”15. Como se vê, o “ardil da razão” (List der Vernunft) incluía, no processo lógico e totalizador da história, tudo o que parecia contraditar a racionalidade da efectuação do ser na incessante procura da consciência e realização de si.

Em síntese: nestas concepções (que posteriormente receberam vários desenvolvimentos), o tempo desenrolava-se como um iter que, para ser redentor, tinha de condenar a experiência histórica concreta (a res gestae) a um modo carente e lapso de estar no mundo, pois a sua infinitude gerava uma fome insaciável cuja voragem tragava os indivíduos, povos e nações que a actualizavam. Todavia, enquanto horizonte de expectativas, ela também actuava como apelo ao sacrifício, tendo em vista ultrapassar a condição dolorosa da existência. E a consciência acerca

14 BENSUSSAN, Le Temps messianique...15 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. La Raison dans l’histoire. Paris: UGE, 1965; GARDINER, Patrick. Teorias de história. 3. ed. Lisboa: F.C.G., 1984.

18 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

da distância que separava o que é e o que poderá vir a ser (o ainda não ser, de Ernst Bloch) alimentava o desejo de se preencher a falta. Mais especificamente, a infinitude do substrato da história, coincidente com a vocação perfectível do homem, requeria um tempo infinito para se ir objectivando, em ordem a que a sua existência desenrolasse a potência essencial que a fazia mover. Pelo que o presente, ao trazer o passado às suas costas, também estaria sempre prenhe de futuro (Leibniz).

O DESFECHO IRÓNICO DA HISTÓRIA

No entanto, se este dinamismo decorria de um princípio que, de um modo espontâneo, se desvelava como tempo à procura da sua realização, a sua trama não teria necessariamente de caminhar para um fim? Há alguns anos, Henri Lefebvre sublinhou – na linha de Kojève e de outros intérpretes do pensamento de Hegel – que a modelação da historicidade, que o hegelianismo bem representa, é inseparável dessa ideia. Mas chamou igualmente a atenção para se ser cauteloso com aquela expressão, pois ela tanto pode ser entendida como finitude (ou seja, como determinação e limitação do processo histórico, faceta que implica mediação e ultrapassagem), como finalidade – isto é, como orientação e sentido – e como finição (terminus pensado segundo o modelo da arte e no qual o acabamento e a perfeição estariam conformes à “natureza” ou à “essência”, ou melhor, seriam adequados ao conteúdo da definitiva concretização do “sujeito motor” da história). Estas acepções não seriam contraditórias, mas implicar-se-iam reciprocamente, porque a finitude constituiria a condição fenomenológica necessária para o gradual patentear da finalidade imanente, bem como para a sua finição (no presente, mas, sobretudo, no futuro). E só neste contexto se poderá afirmar que as filosofias da história são, explícita ou implicitamente, filosofias do fim da história.

Também para Perry Anderson16, Hegel pouco escreveu sobre a ideia de fim enquanto Ende (final) ou Schluß (conclusão). Referiu-se, principalmente, a Ziel (meta), Zweck (finalidade) e Resultat (resultado). E a razão desta preferência terá sido o facto de, em alemão – diferentemente do que acontece em português, em espanhol e em francês –, não existir um vocábulo que englobe toda a semântica indicada, mormente a de final (finição) e de propósito. Ora, a Hegel interessou, sobretudo, este último significado, porque era o que melhor traduzia o pendor teleológico que a sua dialéctica conferia à historicidade.

Nesta matéria, o impacto do seu pensamento deu origem a três interpretações essenciais: a que definiu o fim da história como uma paragem, para além da qual se tinha iniciado um período ahistórico, uma espécie de pós-história indefinida, sem negatividade nem progresso; a que viu o fim da história como o termo do itinerário que, liderado pelo mundo germânico-cristão, levou à realização da liberdade, embora reconhecesse que a história universal podia retomar o seu curso em outros países e em outros continentes; e aquela outra, segundo a qual, a partir da Revolução Francesa, o espírito, “motor” do devir, teria completado a sua manifestação temporal, com as suas formas políticas e culturais definitivas, e que, após ela, apesar dos eventos particulares que continuariam a sobrevir em número ilimitado, nada de fundamentalmente novo seria pensado, dito ou vivido.

16 ANDERSON, Perry. The ends of history. In: __________. A Zone of engagement. Londres: Verso/NLB, 1992.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 19

Estas demarcações aconselham a que não se confunda o acabamento da história universal com o cariz não esgotável da história empírica17. E, ao invés do que comummente se crê, a questão do fim da história não derivou tanto de Hegel, mas de leituras feitas por certos seguidores e críticos (Rudolf Haym, Anton H. Springer, August von Cieszkowski, Nietzsche). Depois, ela voltou a ganhar alguma relevância em 1906, com o livro de Moses Rubinstein, Die logischen Grundlagen des Hegelschen Systems und das Ende der Geschichte, onde se concluía que a ideia de fim da história, tão só sugerida em vários passos da obra do filósofo, contradizia, directamente, o seu princípio lógico fundamental, a saber: o desenvolvimento infinito da liberdade. E, com as teses de Karl Löwith avançadas na década de 1940, o problema voltou à ribalta: Hegel terá concebido o seu presente como o da clausura do tempo histórico, porque procurou, não só fundamentar o fim da história política, da arte, da religião e da própria filosofia, mas também unificar, num grau conceptual nunca antes alcançado, tudo o que adveio e se tinha passado antes dele, tendo em vista apreender, retrospectivamente, o significado universal da história e o seu fim. E tudo isto para provar que este já estaria a efectuar-se sob a hegemonia da cultura germânica e cristã, e para, consequentemente, defender que o futuro se iria limitar a ser a manifestação empírica de acontecimentos incapazes de ultrapassar a consumação a que se tinha chegado18. Nada ficaria fora do sistema.

No pensamento francês, o tema encontrou acolhimento, em 1932, no filósofo Louis Lavelle (1967), mas foi sobretudo o exilado russo Alexandre Kojève, formado na cultura alemã mas residente em Paris, quem, entre 1933 e 1939, melhor o teorizou à luz da influência do existencialismo de Heidegger, do ideário de Marx e, principalmente, da Filosofia do Espírito (não da Filosofia da Natureza) de Hegel. Em sua opinião, o conceito hegeliano de saber absoluto implicava o de fim da história, embora o seu autor o tivesse mais pressentido do que sistematizado. E ilustrava esta conclusão através do significado que o filósofo de Iena atribuiu à Revolução Francesa (Robespierre, Napoleão), interpretando-a como o símbolo maior da iminente objectivação do Espírito como Estado universal e homogéneo.

Com esta proposta, Kojève pretendia corrigir o mestre. Para este, o Estado moderno garantiria, não a liberdade de um (como no despotismo oriental), ou somente de alguns (como na Grécia antiga), mas a liberdade de todos. Porém, isso ainda acontecia no quadro de relações ético-jurídicas racionais, situadas nos limites do Estado-Nação e dentro de uma estrutura de cariz orgânico-corporativo, típica do pensamento alemão. Ora, segundo o intelectual franco-russo, o enaltecimento da figura de Napoleão – como encarnação do soldado-cidadão e da própria razão da história – permitiria ir mais longe: a sua política já prefiguraria o emergir do Estado homogéneo e universal do futuro; universal, porque não teria mais necessidade de se expandir, e homogéneo, dado que traria a superação de todas as antíteses que haviam determinado a historicidade do homem19.

Relendo Hegel, ele procurou demonstrar que a natureza humana só se constituiu como mundo histórico (Welt) com a luta e o risco consciente da morte (influência de Heidegger), agonismo que se exprimia como trabalho. Consequentemente, o 17 BOUTON, Christophe. Hegel, penseur de la ‘fin de l’histoire’?. In: BENOIST, Jocelyn & MERLINI, Fabio (orgs.). Après la fin de l’histoire. Paris: J. Vrin, 1998.

18 LÖWITH, Karl. De Hegel a Nietzsche. Paris: Gallimard, 1941.19 ANDERSON, The ends of history...

20 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

devir nascia da objectivação da liberdade, entendida como negatividade, isto é, como poder de os indivíduos negarem a natureza, transformando-a, e de arriscarem a vida, a fim de alcançarem o reconhecimento intersubjectivo. Desejo que os punham perante dois caminhos possíveis: ou a submissão passiva ao trabalho do negativo – o que conduziria a uma espécie de escravidão perpétua; ou a recusa do aniquilamento, mediante o esforço para vencer a natureza e conquistar a liberdade que só o reconhecimento da individualidade própria, pelo outro, poderia garantir.

Neste quadro, o dinamismo histórico aparecia como uma “antropogénese” sintetizável nesta equação: “Necessidade da Luta pela vida e pela morte. Negatividade = Morte = Individualidade = Liberdade = História; o homem é: mortal, finito, livre, indivíduo histórico”20. E a história da humanidade mais não seria “que o desenvolvimento desta Luta, cujos dados se alteram sob a acção do Trabalho dos escravos e das revoluções, preparando a submissão por si adquirida sobre a Natureza e sobre eles próprios (Bildung)”21. Por conseguinte, o omega deste percurso dialéctico – desenvolvimento da origem – só podia ser este: “concretizando plenamente a Individualidade, o Estado Universal e homogéneo acaba com a História, já que o Homem, satisfeito nesse e por esse Estado, não tenta negá-lo, nem criar algo de novo em seu lugar”22. Daí para a frente, o início do fim da história seria aquela gare onde o passageiro aguarda a chegada do comboio que jamais mudará de rota e de horário.

Com os conceitos de desejo, satisfação (Brefriedigung), reconciliação – que se encontram em Hegel, mas aos quais Kojève deu um relevo e um lugar próprios –, o ímpeto para a autoconsciência, isto é, para a liberdade, foi-se concretizando como negação da realidade existente e como procura da satisfação de um desejo só alcançável através do reconhecimento, mormente em termos simbólicos. E o evoluir da história confirmaria a gradual universalização desta tendência, iniciada, no plano social, pelas relações conflituosas entre o senhor e o escravo, e, na contemporaneidade, materializada nas aspirações igualitárias enunciadas pela Revolução Francesa e pelas que se lhe seguiram. Deste modo, se a procura do reconhecimento tinha obrigado os indivíduos a lutarem entre si para evitarem a morte – colocando o alfa do devir sob o signo da não identidade –, na história dos séculos XIX e XX já se estaria a iniciar a construção do reino do universal e do homogéneo, concretizado no Estado perfeito. E o objectivo deste não seria, como no Iluminismo, a procura da felicidade, ou a da emancipação, mas do reconhecimento23, fase final em que se extinguia, numa paz perfeita, o calvário sangrento da humanidade na busca de si.

Embora aceitasse o papel das lutas sociais, Kojève afastou-se do autor de O Capital no atinente à superação da antítese como passagem do “reino da necessidade” para o da “liberdade”, fim da história que, em Marx, era simultaneamente o começo do fim do Estado. Ao contrário, para o pensador russo-francês, a persistência desta instância política, ainda que com características de universalidade e de

20 KOJÈVE, Alexandre. Introduction à la lecture de Hegel: leçons sur la phéno-ménologie de l’esprit professées de 1933 à 1939 à l’École des Hautes Études, réunies et publiées par Raymond Queneau. Paris: Gallimard, 1947.

21 MONOD, Jean-Claude. Kojève, Strauss et le jugement de l’histoire. In: BENOIST & MERLINI, Après la fin de l’histoire...

22 KOJÈVE, Introduction à la lecture de Hegel...; MONOD, Kojève...23 KOJÈVE, Alexandre. Esquisse d’une phénoménologie du droit. Paris: Gallimard, 1981.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 21

homogeneidade, aparecia como o resultado do inevitável exercício de um mínimo de acção e de coacção. Em tal requisito, Leo Strauss24 viu uma porta aberta para a transformação deste tipo de Estado em tirania universal como meio para se adiantar a realização do reconhecimento. Para alcançar tal desiderato, Kojève, reactualizando a lição de Platão, não só atribuiu um papel iluminador e prognóstico ao filósofo (conselheiro, por excelência, do homem político), como, em nome do futuro, aceitava o poder do tirano (o que se ajustava bem ao estalinismo de um dado período da sua vida), desde que ele fosse exercido de um modo transitório.

Foi ambíguo, contudo, quanto à geografia política do início do fim da história. Se, em alguns casos, o localizava na experiência soviética, em outros, tal encarnação foi alargada aos Estados Unidos (pátria do “fordismo”), ao apresentar as duas potências como exemplos maiores do processo de democratização e de universalização do reconhecimento em curso. Contudo, depois da Segunda Guerra, distanciou-se dessa projecção25, e viveu, com entusiasmo, quer a possibilidade de se criar uma aliança latina (para contrabalançar a influência anglo-saxónica), quer o lançamento do Mercado Comum europeu. Posteriormente, ainda, transferiu para o Japão o início da concretização do ideal de “último homem”, através do snobismo de massas, argumentando que se teria chegado a um momento histórico em que, afinal, já não importava conquistar a natureza, nem pugnar pelo reconhecimento: “o snobismo é a transformação inútil da Natureza, o gosto pelo artifício puro e o luxo do sacrifício da vida pessoal a troco ‘do nada’. Doravante, o fim da história é “o sepuku, a cerimónia do chá e o concurso para o ramo mais belo. O futuro já não é mais a europeização universal, mas a japonização universal”26.

Por mais contraditórias (e irónicas) que possam parecer estas conclusões, elas tinham uma base que se manteve inalterável, em particular a ideia de que a ordem política perfeita teria de ultrapassar os limites do Estado-Nação. Dir-se-ia que, com isso, Kojève prolongou o cosmopolitismo iluminista, retirando-lhe, porém, as mediações estatais e o cariz aberto e assimptótico do futuro de tipo kantiano. Compreende-se. Para ele, todo o pensamento sobre o destino da humanidade, desde as primeiras décadas de Oitocentos, continuou a ser balizado pela querela entre a “direita” e a “esquerda” hegelianas. E este modo esquemático de pensar teve pelo menos o mérito de não esconder as intenções de boa parte das filosofias da história (e das suas versões cientistas), principalmente das previsões daquelas que indicavam como iminente o fim da história, reino da universalidade, da homogeneidade e da in-diferença. E a materialização da verdade também aqui, como em Hegel, significaria o fim da própria filosofia27.

Perante algumas objecções, Kojève teve de concordar que muito poucos, ou melhor, só o chefe do futuro Estado universal e homogéneo – como, em certa medida, já havia acontecido com Napoleão –, alcançariam o máximo reconhecimento. Nos demais, essa possibilidade, embora alargada pela democratização das sociedades

24 STRAUSS, Leo. De la Tyrannie, suivi de correspondance avec Alexandre Kojève (1932-1965). Paris: Gallimard, 1997.

25 AUFFRET, Dominique. Alexandre Kojève: la philosophie, l’état et la fin de l’histoire. Paris: Grasset, 1990.

26 MONOD, Kojève...27 JARCZYK, Gwendoline & LABARRIÈRE, Pierre-Jean. De Kojève à Hegel. Paris: Albin Michel, 1996.

22 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

contemporâneas, era uma mera potencialidade. Daí, a pergunta: tal desigualdade não continuaria a alimentar a insatisfação e, por conseguinte, a luta, negando o anunciado fim da história?

Qualquer que seja a resposta, parece indiscutível que a sua proposta, ao dar maior visibilidade a Hegel, exemplifica bem o optimismo prognóstico que norteava o tom dominante das filosofias da história, pelo que não espanta que tais expectativas acabassem, em últimas instâncias, por enfileirar na velha tradição apocalíptica. Bem vistas as coisas, a plena assunção da historicidade do homem também continuava a fugir ao tempo, agora através da secularização do futuro escatológico, pois, como ele mesmo frisava, é “neste mundo que se realiza o além (cristão)”28.

Merleau-Ponty acusou a tese de Kojève de fazer uma purificação absoluta da história; o que equivalia a negá-la, porque se esquecia de que ela é uma consequência da prática de homens concretos29. Mas François Châtelet (1968) corroborou a interpretação dos que defendiam a existência, em Hegel, de uma explícita ideia de sentido e de fim do devir humano, sem deixar de sublinhar que esta posição não atribuía à Alemanha qualquer prioridade na configuração última do espírito; este continuaria a actualizar-se através de outras nações, não obstante estar terminada a possibilidade de serem criadas novas formas políticas30. Depois, o tema foi retomado por Henri Lefevre, em O Fim da história (1970), obra de orientação marxista que não teve grande repercussão.

Entretanto, um conjunto de pensadores e publicistas europeus – antes entusiasmados com a possibilidade (revolucionária ou contra-revolucionária) de se criar um “homem novo” – questionou, após o forte impacto das guerras mundiais, as suas próprias opções, caindo em atitudes cépticas e, em alguns casos, niilistas em relação à vida e à capacidade de se mudar a história. Como exemplos maiores (mas ressalvando as suas diferenças), o estudioso deste fenómeno – o historiador alemão Lutz Niethammer – analisou as ideias de Ernst Jünger, Arnold Gehlen, Bertrand de Jouvenal, Carl Smith, Henri de Man e mesmo Kojève, Lefebvre, Walter Benjamin e Theodor Adorno. Chamou ao denominador comum de tal posição Posthistoire (edição alemã de 1992), termo de origem francesa, mas que, na década de 1950, Gehlen introduziu na Alemanha a partir de uma leitura de Henri de Man e cuja análise mais pormenorizada não pode ser aqui feita31. E tudo isto mostra – como, nos inícios dos anos de 1990, em Spectres de Marx, lembrava Derrida aos jovens “leitores-consumidores de Fukuyama” e ao próprio Fukuyama – que “os temas escatológicos de ‘fim da história’, de ‘fim do marxismo’, do ‘fim da filosofia’, dos ‘fins do homem’, do ‘último homem’, etc., eram, nos anos cinquenta, há 40 anos, o pão nosso de cada dia”32.

De facto, o primeiro grande sucesso editorial no tratamento da questão coube a Francis Fukuyama, a partir de “The end of history?”, artigo saído em 1989 (antes da queda do muro de Berlim) e que serviu de ponto de partida para o livro The

28 MONOD, Kojève...29 MERLEAU-PONTY, Maurice. Les Aventures de la dialectique. Paris: Gallimard, 1955.30 BOUTON, Hegel...31 ANDERSON, The ends of history...; NIETHAMMER, Lutz. Posthistoire. Has history come to an end? Londres; Nova Iorque: Verso, 1992.

32 DERRIDA, Jacques. Spectres de Marx: l’état de la dette, le travail du deuil et la nouvelle Internationale. Paris: Éditions Galilée, 1993.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 23

End of history and the last man (publicado em 1992). Em termos correctos, tem sido destacado que o pensador americano é mais um discípulo de Kojève do que de Hegel, limitando-se a fazer esta modificação: a fase terminal passou do Estado de direito ético-racional (Hegel), ou do reino comunista do “homem total”, para a universalização da democracia liberal e da economia de mercado, sistema sem exterior e sem alternativa, mas que continuará a mover-se devido ao progresso acumulativo das ciências naturais e da tecnologia (que possibilitarão um crescente aumento de bem-estar), bem como à luta pelo reconhecimento (o thymos de cada indivíduo) e pela liberdade. E estas aspirações só serão realizáveis num Estado democrático, pois requerem a garantia da reciprocidade e, portanto, a derrogação de relacionamentos de tipo senhor/escravo. E, apesar do modo quase mecânico como o “motor” da história é definido, é sinal dos tempos que o desenvolvimento científico-técnico apareça determinado, como nas filosofias da história, por um finalismo de índole antropológica.

Não se tratava de negar a renovação da história enquanto sucessão de acontecimentos, isto é, a história empírica, mas de, na linha dos modelos (Kant, Hegel, Kojève), supor uma construção ideal do devir, inspirada no universalismo e na crença no progresso, e tendo em vista convencer que só existe, como direcção única, a expansão da sociedade demo-liberal. Neste vaticínio, tem sido detectada a existência de uma não ingénua escolha de acontecimentos contemporâneos, para se ilustrar o que se pretende provar, e surpreendido uma variante do messianismo secularizado (Fukuyama reconheceu a dívida destas expectativas em relação ao cristianismo). Mas também tem sido notado que tal concepção de fim acaba por tocar o pensamento niilista, na medida em que, afirmar que já não há nada a compreender da história, ou que dela nada mais se pode esperar, o resultado é idêntico: a irrupção dos acontecimentos perde significado, ou, pelo menos, não tem qualquer sentido histórico33.

É indiscutível que o sucesso das propostas de Fukuyama não resultou tanto da sua novidade, mas da conjuntura em que elas foram formuladas: a crise do modelo comunista, logo confirmada pela queda do muro de Berlim e pela implosão da experiência socialista no Leste europeu, assim como o derrube de muitas ditaduras, um pouco por todo o lado. Como os seus pré-conceitos filosóficos aparecem secundarizados dentro de uma análise de política internacional, a recepção do texto tornou-se mais fácil (e ideológica), ao mesmo tempo que o velho ocidentalismo e o seu auto-proclamado universalismo apareciam mais directamente articulados com o processo de globalização económica de inspiração neo-liberal. E tudo isto foi mobilizado para se chegar a resultados idênticos aos de todas as concepções teleológicas, mesmo quando as suas concretizações tinham conteúdos sociais bem diferentes, a saber: a promessa do fim das contradições com força de ruptura. Por conseguinte, a obra retoma a presunção futurante que se detecta nas demais filosofias da história, ao formular, de uma maneira explícita, a certeza de que a diacronia das sociedades, por menos “contemporâneas” que sejam umas em relação às outras, desaguará numa única convergência: a democracia liberal34. E, com alguma pertinência, tem-se visto na anunciação desta “boa nova” uma adaptação do velho

33 BENOIST & MERLINI, Après la fin de l’histoire...34 FUKUYAMA, Francis. O fim da História e o último homem. Lisboa: Gradiva, 1992.

24 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

milenarismo americano aos valores das sociedades de consumo.

Entretanto, o impacto destas ideias sofreu uma rápida erosão (o seu próprio autor irá rever algumas). O surgimento de novos conflitos – que conduziram, por exemplo, à Guerra do Golfo –, ligado ao alastramento dos fundamentalismos religiosos e ao aumento do fosso entre países ricos e países pobres, deu actualidade à ressurreição da importância da conflitualidade como força motriz da história. A releitura que alcançou maior repercussão foi a de Samuel Huntington, com o artigo “The clash of civilizations?” (1996) e, depois, com o livro The Clash of civilizations and the remaking of the world order35.

Visando directamente Fukuyama, aí se defende que a história nem tinha acabado, nem o mundo se havia unificado. Só que as antíteses terão deixado de ser de índole político-ideológica, ou mesmo económica, e os negócios mundiais só aparentemente continuariam a ser protagonizados pelos Estados-Nação. Em última análise, a sua fonte residia no choque de civilizações, um conceito criado, como se viu, no século XVIII, mas agora definido, principalmente, pela sua sobredeterminação cultural, ou melhor, religiosa. Sopesar essa nova realidade “darwinista”, significava defender a civilização “atlântica”, isto é, ocidental, e apelar para a sua união perante o inimigo comum – as forças do “mal” encarnadas pela “aliança islâmico-confuciana”36.

Retomava-se a valorização dos factores culturais na história. Porém, isso não foi feito na perspectiva pessimista e, de certo modo, organicista, que foi timbre de pensadores como Spengler ou Toynbee, mas dentro da lógica das filosofias da história que não iludiam a contradição. Mas com uma diferença. Se, aqui, se postulava a universalidade da história, agora, a fragmentação e os conflitos entre as diferentes civilizações eram apresentados como as principais causas do devir. Seja como for, mais do que a teoria, foi o mundo da res gestae a demonstrar, com o 11 de Setembro de 2001 e com o modo como ele foi interpretado, que, afinal, a história ainda não tinha acabado.

O FIM DO FIM DA HISTÓRIA

Todavia, por díspares que possam parecer aquelas duas teses, elas não só se estribam nos mesmos valores, como recorrem a um conjunto de argumentos justificativos que, por mais simples e reducionistas que sejam, dão uma vida serôdia à tradição das filosofias da história, ou, pelo menos, à sua vertente conservadora, como o caso de Fukuyama bem ilustra. Com efeito, a lógica da proposta deste último baseia-se na universalização e homogeneização da tendência acumulativa da história, vista como um processo cujo “motor” é o desenvolvimento da ciência e, sobretudo, da técnica.

O papel desempenhado pelo factor científico-técnico soa, ironicamente, a uma espécie de apropriação demo-liberal de algumas leituras do marxismo – que situavam o “motor” da história, não na luta de classes (como defende o Manifesto comunista), mas no crescimento das forças produtivas (a ciência e a tecnologia). Consente, ainda, uma aproximação com Comte, devidamente democratizado, porque o pensador francês punha a sociedade científica e industrial como termo da evolução histórica

35 HUNTINGTON, Samuel P. Choque de civilizações e as mudanças na ordem mundial. Lisboa: Gradiva, 1999.

36 FONTANA, Josep. La Historia de los hombres. Barcelona: Crítica, 2001.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 25

(o estado positivo), onde a ciência permitiria, finalmente, controlar as surpresas do futuro, integrando as contradições sociais e construindo a paz perpétua entre as classes e os Estados. Passada a “idade” da crítica e do subjectivismo revolucionário, a planificação científica do porvir faria do progresso a mera desenvolução da ordem. Só que, na actual conjuntura, já não seria a França – como pretendeu o autor do Cours de philosophie positive – a liderar a ocidentalização do mundo; essa missão, devidamente liberalizada (Comte não prognosticou o termo da história como sendo a vitória da democracia liberal), pertenceria aos Estados Unidos da América.

Por outro lado, o fim da história não implicava, como no pensador francês, o fim da história das ciências. Ao invés, só estas acelerarão o devir e terão um verdadeiro futuro. Numa época em que alguns se apressavam a decretar a “morte” das ideologias e do sonho utópico, o progresso estaria garantido pelo desenvolvimento científico-técnico. Mas, ao contrário do que Fukuyama parece sugerir, a mera evolução acumulativa dos conhecimentos não chega para explicar os saltos da sua progressão, como bem demonstraram Gaston Bachelard e Georges Canguilhem. E, como ensina a longa Querelle des anciens et des modernes, poder-se-á aceitar a eclosão do novo num dos campos da actividade humana, sem se pensar, em simultâneo, nos inevitáveis elos que ela mantém com os demais?

Além disso, perante o avanço do poder manipulador da ciência contemporânea – particularmente da biotecnologia –, ele mesmo acabou por reconhecer que esta tanto pode fazer aumentar o bem do homem, como transformar-se em instrumento para o oprimir, controlar e planificar, em nome da edificação de um huxeliano “admirável mundo novo”. Daí que, na sua obra mais recente, tenha defendido a necessidade de se criarem mecanismos reguladores, em ordem a bloquear-se tudo o que possa atentar contra a dignidade humana37. Caso contrário, depois de o homem ter “morto” Deus, ao descobrir que Ele, afinal, é sua criação, a máquina, criatura do homem, também poderá “matar” o seu próprio criador.

A SEMPRE IMINENTE IRRUPÇÃO DO NOVO

Verifica-se que a matriz iluminista dos vários projectos filosóficos que indicavam o fim da história, ou se saldou numa previsão em que este foi representado como uma espécie de paragem, para além da qual se entraria na pós-história, período indefinido, sem negatividade e sem progresso (na acepção substantiva como o século XVIII o definiu); ou foi antevista como um acabamento que consumaria a história como “reino da liberdade”; ou, ainda, como um ideal regulador e assimptótico, nunca plenamente realizável, mas que propulsava a humanidade para o futuro, ao mesmo tempo que criticava as injustiças do presente.

De qualquer maneira, a existência de uma finalidade e, portanto, de um fim, requeria – ainda que falasse em nome da ciência (como em Marx e em Comte) – um fundamento metafísico que nunca se confundiria com a fenomenologia do devir. E se as filosofias da história, depois de Spengler e Toynbee, entraram em perda de prestígio, essa desvalia foi consequência das alterações ocorridas no pensamento contemporâneo, sejam elas de cunho epistemológico (o neokantismo), de cariz existencial (Heidegger e seus seguidores), ou vindas da filosofia analítica anglo-saxónica, ou, ainda, das recentes críticas lançadas pelo camartelo pós-modernista,

37 FUKUYAMA, O fim da História...

26 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

que as acusa de serem metanarrativas totalizadoras e finalísticas e de inspirarem práticas que desmentem as promessas que foram feitas em nome da verdade e do universal.

No essencial a desconstrução pós-moderna rejeita-as (correctamente, na nossa maneira de ver) pelas seguintes razões fundamentais: por se imporem como normas externas organizadoras dos acontecimentos e das acções humanas; por se estruturarem como narrativas organizadas a partir da ideia de fim, ao porem em acção uma meta, postulada aprioristicamente e, por conseguinte, situada à margem do próprio devir. Por isso, elas seriam, em última análise, representações metafísicas, dado que condenavam a res gestae a ser a mera explicitação temporal de uma essência simultaneamente intra- e supra-histórica, pois só se realizará no fim da história38.

Entende-se que, contra elas, os críticos tenham destacado a auto-suficiência das acções humanas e dos acontecimentos, com a consequente valorização do papel dos indivíduos e do acaso, e com a inevitável depreciação de conceitos como totalidade, transição, determinação, finalidade, estrutura, etc. A história deixa de ser concebida como um processo ontologicamente dotado de sentido, ilação que arrasta consigo as visões evolutivas, continuístas e progressivas, denunciadas por serem sucedâneas das religiões.

Como alternativa, destaca-se a fragmentação, a vida quotidiana, a dimensão pequena dos acontecimentos39 e são igualmente rejeitadas as explicações por causalidade eficiente (ou final). Ao invés, valoriza-se a apreensão dos comportamentos subjectivos, logo, da compreensão, o que, não sendo novo, tem a sua outra face na recusa do estatuto de verdade de inspiração cientista e racionalista. Isto é, e como afirma G. Vattimo, se a epistemologia moderna fez radicar a convicção de que os discursos são mensuráveis e traduzíveis entre si, e defendeu que o fundamento da sua verdade consistia em traduzi-los numa linguagem básica que se acreditava reflectir os factos, a nova hermenêutica não aceita a existência de tal linguagem artificial e, como alternativa fundante, fomenta a abertura à compreensão da linguagem viva do outro40.

Rejeita-se, ainda, o facto de a coerência interna das metanarrativas ser construída a partir da ideia apriorística de finalidade (e de fim), bem como do lugar que aquelas elegeram para palco da consubstanciação da história em história universal: a Europa (ou melhor, o Ocidente). E, contra este eurocentrismo – que terá sido legitimador das práticas de dominação colonial, imperialista e racista –, advoga-se o cariz não hierarquizável do devir e procura-se demonstrar a pluralidade das suas manifestações. Em síntese: o pós-modernismo propõe-se liquidar os “quatro pecados capitais” da modernidade, a saber: o reducionismo, o funcionalismo, o essencialismo e o universalismo41. Atitude crítica que pôs a descoberto convencimentos e optimismos

38 ACOSTA, Miguel Ángel Cabrera. La historia y las teorías del fin de la historia. In: BARROS, Carlos (org.). História a debate. t. I. Santiago de Compostela: História a Debate, 1995.

39 LYOTARD, Jean-François. La condición postmoderna: informe sobre el saber. Madrid: Cátedra, 1989.

40 VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. Lisboa: Presença, 1987; ACOSTA, La historia y las teorías...

41 PORTER, Mark. Cultural history and postmodernity. Nova Iorque: Colombia University Press, 1997.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 27

que não são consentidos por uma leitura que esteja mais atenta à riqueza multímoda dos acontecimentos, do que à coerência interna das totalidades explicativas. No entanto, considerar-se – em termos emblemáticos, é certo – que o crédito dos princípios que sustentaram a modernidade se extinguiu em Auschwitz será não relevar duas coisas.

Em primeiro lugar, aquela, mesmo na sua expressão como filosofia da história, não foi uniforme, nem redutível à sua componente iluminista, nem a leituras dualistas (por exemplo, as que separam, dicotomicamente, o Iluminismo de movimentos como o Sturm und Drang). Com ele, a par dele e contra ele, brotaram ideias, sentimentos e valores igualmente modernos e comummente designados por românticos. Em certo sentido, ao dar voz à subjectividade, à insolubilidade das antíteses, à dimensão contraditória do eu, ao particular e à diferença, ao pôr limites ao progresso indefinido, ao defender o sentimento, a interacção e a experiência, ao recusar a cesura entre o homem e a natureza, ao assinalar (contra os exageros do cosmopolitismo) a índole histórica dos povos e das nações – tradução particular da tensão moderna entre memória e expectativas e que só nas suas interpretações regressivas é passadista42 –, o Romantismo foi, de facto, outra das suas faces.

Em segundo lugar, ter consciência ético-crítica em relação a acontecimentos como Auschwitz ou o Goulag (e a todos os fundamentalismos) não será pôr em prática uma das atitudes matriciais da modernidade?

Poder-se-á perguntar, por outro lado, se conceitos como descontinuidade, fragmentação, policentrismo, acaso, subjectividade, compreensão, poderão, só por si, ser pensados e aplicados a um mundo crescentemente relacional e comunicacional (Habermas), sem a sua geminação com os de universalidade, continuidade, totalidade, centralidade, necessidade, objectividade. E não basta dizer – numa espécie de interiorização da culpa histórica – que o universalismo subjacente às filosofias da história só serviu de capa à visão eurocêntrica e aos seus projectos de dominação de outros povos.

Se é certo que esta ligação tem toda a pertinência, outros dos seus efeitos desses valores não podem ser esquecidos, nomeadamente que foi a partir da sua raiz crítica e das promessas de universalismo não cumpridas (exemplo: os direitos humanos) lançadas pela modernidade que os dominados (na Europa e fora dela) encontraram armas quer para contestarem os dominadores, quer para fundamentarem a sua própria identidade, quer para gizarem os seus sonhos de autonomia e emancipação, valores nucleares da “gramática” da modernidade. Cair-se em posições dualistas será correr o risco de somente se ver um dos ângulos da questão, ficando por analisar influências, reciprocidades, relações de dominação externa (colonialismo, exploração social, imperialismo político, violência, etc.), bem como as contradições internas existentes no interior de cada um dos pólos.

É que, se a história concreta mostra que todas as épocas e situações são iguais perante Deus (Herder, Ranke), em termos de poder, umas estarão mais próximas Dele do que outras. E se a tradução ontológica e totalizadora da ideia de sentido histórico é insustentável, em termos hermenêuticos, a compreensão introdu-la, pelo menos na sua dimensão dialógica e inter-subjectiva. Mas importa ter presente

42 LÖWY, M. & SAYRE, R. Révolte et mélancolie: le romantisme à contre-courant de la modernité. Paris: Payot, 1992.

28 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

que reduzir as acções humanas à intencionalidade subjectiva será olvidar os efeitos involuntários das acções e a condicionalidade objectiva que resulta da integração dos indivíduos em situações espaço-temporais concretas. Significa isto que, em termos epistemológicos, a hermenêutica não pode prescindir da explicação, combinatória que, como se assinalou no lugar próprio, só pode ser ditado pela problemática que interroga o sulco dos passos deixados pelo caminhante.

A invalidação das ideias construídas durante a modernidade e dos seus prognósticos não pode negar esta evidência: mesmo que não se aceite a existência de uma direcção única para a história, esta é toda feita de mudança, característica que as sociedades contemporâneas têm acelerado mais do que quaisquer outras43. E a tentativa de convencer que já se vive uma época que fica depois da história acaba por pressupor uma crença análoga à que ela pretende extinguir: a aceitação de uma sucessão qualitativa na ordem do tempo. Pode mesmo defender-se que a sua crítica recorre a duas posições típicas das filosofias da história: um juízo negativo perante o presente – como nas visões cíclicas e judaico-cristãs, este continua a ser visto como um período de transição ou de decadência; e a invocação de um saber que também almeja decretar – ainda que por via negativa – o (não) sentido do devir, escudando-se, porém, na crítica às filosofias do fim da história44. Modo de pensar que, à sua maneira, constitui uma nova versão da ideia de culminação, pois o tempo, destituído de suportes potenciais que explicitariam a sua finalidade, mais não será que a permanente reactualização de um eterno presente45.

A óptica das filosofias do fim da história e a das críticas que a pós-modernidade lhes lançou acabam, assim, por se tocar, embora por caminhos diferentes. Como defendeu Jérôme Baschet, “o presente perpétuo é, talvez, precisamente, o pólo de atracção comum que influencia um e outro, conduzindo ao desaparecimento do horizonte das expectativas e a uma imobilização no presente, idealizado num caso, e desenganado no outro”46. E a apologética destes “legionários do instante presente” (Nietzsche) só pode suscitar uma espécie de idolatria do real, tal qual se julga que ele é47, esquecendo-se que se está a assistir, não ao fim da história, mas, tão-só, ao fim das filosofias do fim da história.

De facto, se o investimento historicista (em qualquer das suas modalidades) constituía prática adequada a uma concepção acumulativa e evolutiva do tempo, hoje, a situação parece ser diferente. As mudanças sociais que ocorreram no mundo e a contestação feita tanto às filosofias da história (no último século, praticamente reduzidas às suas imediatas traduções ideológicas, uma das chaves do êxito de Fukuyama), como às suas ideias norteadoras (perfectibilidade, evolução, continuísmo, progresso, previsibilidade), instalaram um sentimento de descontinuidade, pluralidade, variação e não sentido em relação ao tempo (psicológico e histórico). E, como atrás se assinalou, a diminuição da sua vivência como presente real (complexo e tensional) tem provocado, em simultâneo, a “morte” da pretensão de se domesticar e programar

43 BAIER, Lothar. Pas le temps! Traité sur l’accélération. Arles: Actes du Sud, 2002.44 RAULET, G. (prés.). Aufklärung: les Lumières allemandes. Paris: Flammarion, 1995.45 ACOSTA, La historia y las teorías...46 BASCHET, Jérôme. L’histoire face au présent perpetuel: quelques remarques sur la relation passé / futur. In: HARTOG, François & REVEL, Jacques (orgs.). Les usages politiques du passé. Paris: Éditions de l’École des Hautes Études en Sciences Sociales, 2001.

47 ANDERSON, The ends of history...; BASCHET, L’histoire face...

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 29

o futuro, diluída na euforia do viver em tempo real48.

Tem sido assinalado, e bem, que, com esta experiência, se idolatra o presente49, como se este fosse uma incessante eternidade, sem abertura para o passado e para o porvir, ou melhor, como se fosse um mnemotropismo feito de perdas de referências e do decréscimo da adesão dos indivíduos a identidades holísticas externas. Daí que a ideia de futuro (como a de futuro do passado) tenha enfraquecido50, porque deixou de existir distância entre o passado e o presente, ou, por outras palavras, entre o campo de experiência e o horizonte de expectativas51. O que se pergunta, porém, é se uma dada situação histórica, que tende a banalizar a ideia de novo, confundindo-a com o efémero e o vazio, pode estancar, de vez, a índole desejante do modo de ser do homem, insatisfação que o incita à criação do que ainda não é. Como salientou Santo Agostinho, o homem é “bestia cupidissima rerum novarum”, ‘animal avidíssimo de coisas novas’, tanto no sentido do ‘mais’, como no sentido do ‘de outro modo’”52.

O surgimento do novo é fulguração que brota da tensão entre herança e expectativa, impulso individual (e portanto colectivo) que destabiliza presentes eternos, desmente profecias, prognoses, mesmo quando parcialmente as confirma. E é essa (e nessa) balança que, convocando a memória e a prática da história do mundo como tribunal do mundo, julga a sua pertinência, não só à luz dos vencedores, mas do futuro que foi dado ao passado para que os vencidos também possam ser ouvidos. Portanto, história não morre, como não se extingue a necessidade de a interrogar. O que vai definhando são as suas representações concretas, socialmente condicionadas, incluindo a omnisciência das previsões sobre o seu ponto omega. E o grande pecado das filosofias da história, bem como dos seus epifenómenos contemporâneos, residiu na dificuldade de se abrirem ao futuro-futuro, diferentemente do que fizeram quando se declararam novas em face do seu próprio passado.

Com efeito, é indiscutível que a modernidade (e, com ela, a consciência histórica que a justificava) se consolidou à volta de uma ideia nuclear: a representação do tempo histórico como um itinerário, no qual o presente foi valorado como sendo qualitativamente superior ao passado, hierarquia que colocava, explicitamente ou não, o novo no cerne da sua legitimação. Todavia, à luz da sua ideia evolutiva, acumulativa e teleológica, elas também procuraram convencer que, após o anúncio da verdade, o futuro seria o cumprimento de um plano ou de um programa que antecipa o esperado. De onde a pergunta: poder-se-á estar disponível para se acolher a experiência do novo quando a história é apresentada como um encadeamento necessário, no qual, em última análise, a ideia apriorística de fim se encontra insinuada desde a origem?

Logo em 1818, Wilhelm Humboldt respondeu que não. No seu ensaio Betrachtungen über die bewegenden Ursachen in der Weltgeschichte (Reflexões

48 RICOEUR, Paul. La lectura del tiempo pasado: memoria y olvido. Madrid: Ediciones de la Universidad Autonoma de Madrid, 1998.

49 HARTOG, François. Temps et histoire: comment écrire l’histoire de France. Annales, n. 5, 1995. 50 BASCHET, L’histoire face...51 KOSELLECK, Reinhart. Futuro pasado: para una semántica de los tempos históricos. Barcelona; Buenos Aires; México: Ediciones Paidós, 1993; CATROGA, Caminhos do fim da história...

52 ENTRALGO, Pedro Laín. La espera y la esperanza: Historia y teoría del esperar humano. Madrid: Revista de Ocidente, 1958.

30 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

sobre as causas motoras na história universal), critica, na linha de Herder, os excessos do optimismo iluminista, aconselhando a que se distinga o curso mecânico da história, da irrupção repentina do novo, entendido como surgimento de gerações e revoluções e como a característica constituinte da própria historicidade53. Por sua vez, a contestação do historicismo feita por Nietzsche em nome da vida, assim como a de Walter Benjamin, suplicando para que, em cada momento que tece o presente, se esteja atento e receptivo, quer às vozes do passado, quer à visita do anjo do futuro, lançaram questões que inquietam e que, por isso, contribuem para se evitar o dogmatismo que os saberes prognósticos tendem a provocar.

Separar o futuro das suas configurações finalísticas será aceitar a “messianidade”, sem que, com isso, se tenha de cair no messianismo (Derrida). Como imagem, poder-se-á mesmo afirmar que a experiência do novo não pode ser confundida, sequer, com a surpresa que se sente quando a pessoa (ou o acontecimento) que se espera chega mais cedo: ela deve ser abertura da porta a quem bate, mesmo que inesperado e desconhecido. E a previsão, se impele à praxis para que se cumpra o que se vaticina (ficando por saber, quando se acerta, se isso derivou da justeza do prognóstico, ou do voluntarismo que ele desperta para o tornar verdadeiro), também provoca surdez e cegueira em relação a tudo o que a não comprova. Daí, a dimensão fechada e vocacionalmente totalitária das várias “engenharias sociais” que têm sido experimentadas e o esquecimento de que o futuro está sempre a realizar-se numa tensão decorrente do incessante renovamento do tempo (individual e colectivo).

Porém, a recepção do novo não pode ser feita através de uma hospitalidade acrítica, pois ele vem morar numa terra já habitada por homens com racionalidade ética e com memória; e é pela comparação, logo suscitada pela pré-compreensão, que a qualidade de “aumento de ser” (Antero de Quental) que ele oferece deve começar a ser avaliada. Caso contrário, cair-se-á na sua reificação como novidade, como se o tempo fosse, tão-só, um infinito somatório de momentos sem passado e sem futuro entre si. Contra isso, deve-se agir para criar, mesmo sabendo-se, de lição colhida nos desmentidos da própria história, que a confirmação da expectativa é, tão-só, o selo da carta que, dentro, também traz, não raramente, a notícia do fracasso. Se não for assim, continuar-se-á a pensar à luz da causalidade mecânica e teleológica. Ora, como algures escreveu Paul Valéry, “prevejo, logo, engano-me”, e encontrar o previsto não é achar o novo: este pode andar por aí sem ter batido à porta para entrar. Pelo que soa a conselho sensato seguir, como o fez Ernst Bloch54 na sua filosofia da esperança, esta máxima de Heraclito (frag. 18): se não esperares o que não se espera, não encontrarás o inesperado.

***

53 HUMBOLDT, Wilhelm von. Escritos de filosofía de la historia. Madrid: Editorial Tecnos, 1997.54 BLOCH, Ernst. L’esprit de l’utopie. Paris: Gallimard, 1977.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 31

RESUMO

Com a modernidade – e, em particular, com o Iluminismo –, a história passou a ser vivida e pensada como um trajeto dentro do qual a conquista da felicidade humana não devia ser assumida como uma quimera, nem poderia ser adiada para outro mundo. Mas, dada a aceitação da infinitude do tempo, dois desfechos, só aparentemente contraditórios entre si, seriam possíveis: o presente já estaria a realizar a finalidade objetiva do devir; ou, então, continuava a ser uma fase de transição, comumente qualificada como período de crise e de decadência, porque dilacerado por contradições e, portanto, ainda longe da chegada da hora plena. Trata-se de ver, neste ensaio, a história como tribunal do mundo.

Palavras Chave: Teoria; Filosofia; Fim da História.

ABSTRACT

With modernity - and, in particular, with the Illuminism -, history turns to be lived and thought as a passage where the human happiness conquest either wouldn’t have to be taken as a chimera, neither could be postponed for another world. Although the acceptance of time’s infinitude, there’s two possible outcomes, only apparently contradictory between themselves: the present times already achieves the objective purpose of become; or, then, it continued to be a phase of transition, usually qualified as a crisis and decay period, because its afflictive contradictions and, therefore, still so far from the full hour arrival. It means to see, in this paper, History as the world’s court.

Keywords: Theory; Philosophy; History’s End.

32 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 33

A FILOSOFIA DA HISTÓRIA PÓS-MODERNA:

ELIAS, FOUCAULT, BOURDIEU E THOMPSON

José Carlos Reis1

Para Hayden White, o método histórico tradicional proíbe a imaginação, a criação poética, quer conhecer o passado diretamente, estabelecendo uma distinção rígida entre história e filosofia da história. Os historiadores empiristas não admitem que o discurso histórico possa conter uma filosofia da história subentendida. A principal diferença entre a história e a filosofia da história é que esta traz para a superfície do texto o aparato conceitual com que os fatos são ordenados no discurso, ao passo que a história o oculta, deixando-o implícito. O historiador-filósofo não é um ingênuo empirista. Não aceitamos a tese de que o historiador não deve dialogar com a filosofia, primeiro, porque a recusa de dialogar com quem não é seu inimigo é uma atitude antipática, autoritária, e, segundo, uma atitude injusta, porque já dialoga intensamente: o que os historiadores mais fizeram até hoje foi se apropriarem da filosofia, mesmo recusando-a. A história é impensável sem as contribuições de Santo Agostinho, Descartes, Hegel, Kant, Nietzsche, Marx, Benjamin, Foucault, Derrida, Ricoeur e muitos outros filósofos. Os historiadores sempre tiveram necessidade da filosofia porque é ela que formula esta questão ao mesmo tempo singela e capital: “o que é a história?”. O historiador que nunca formulou esta questão antes, durante e depois da sua pesquisa nunca refletiu sobre a sua atividade e não a compreendeu. Como todo historiador competente fez, faz e fará permanentemente esta questão, estará sempre dialogando com a filosofia. Contudo, para Jenkins, “a história tem evitado a elaboração das suas questões teóricas e está atrasada em relação à literatura e às ciências humanas”. O nosso esforço neste capítulo é, desde o início, próximo do que seria uma “filosofia da história”: queremos desocultar, “fazer aparecer”, as estruturas do pensamento histórico contemporâneo2.

Se formulamos esta questão singela e crucial, “o que é a história?,” ao mundo pós-moderno, que tipo de respostas teríamos? Para Jenkins, o mundo pós-moderno é difícil, nada é fixo e sólido, o que dificulta a própria definição de pós-modernidade. Jenkins aceita, como primeira definição, a de Lyotard, que lhe parece ao mesmo tempo sustentável e criticável. É uma definição minimalista, que pode ser a primeira resposta àquela questão acima: morte dos centros, incredulidade em relação às metanarrativas, solapamento da Razão e da ciência, descrença em relação ao projeto Iluminista de verdade, progresso, revolução, emancipação do homem. O Sorex destruiu a mais otimista crença na racionalidade e no progresso, permitindo ao capitalismo impor a celebração do mercado e do crescimento econômico. Jenkins propõe uma segunda definição da pós-modernidade, marxista, inspirando-se em Frederic Jameson: foi a prioridade dada ao consumo que trouxe para o primeiro

1 Doutor em Filosofia pela Université Catholique de Louvain. Professor Associado do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade federal de Minas Gerais. Autor de História & Teoria. Historicismo, Modernidade, Temporalidade, Verdade. Rio de Janeiro: FGV, 2008.

2 WHITE, Hayden. Meta-História. São Paulo: Edusp, 1994; JENKINS, Keith. A História repensada. São Paulo: Contexto, 2005.

34 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

plano os valores do relativismo e do pragmatismo. As mercadorias não têm um valor intrínseco no mercado, o seu valor reside no valor de troca, que é especulativo, fictício. Neste ambiente dominado pela circulação das mercadorias e pelo capital financeiro especulativo, as pessoas assumem o aspecto de objetos e encontram o seu valor em relações externas a si mesmas. A moralidade privada e pública são afetadas, a ética é personalizada e narcisista, uma questão de gosto e estilo. O indivíduo pode escolher ser o que quiser ser, se puder pagar. Para Jenkins, isto é positivo, não deixa de ser uma realização da utopia liberal da liberdade, porque não há nenhum valor absoluto dirigindo o cotidiano3.

Esse relativismo e ceticismo afetam também as práticas metodológicas e epistemológicas, restando apenas posições, perspectivas, modelos, ângulos, à venda. Impera um pragmantismo flexível: a boa interpretação é aquela que rende dividendos. Os objetos de conhecimento se elaboram arbitrariamente, colagens, trucagens, pastiches, visando o lucro no mercado. Não há mais indústria pesada, não há mais proletariado, mas apenas núcleos de operários como sócios menores das empresas. As visões de esquerda pré-89 parecem confusas e ridículas e quando se ouve os ecos das metanarrativas modernas, os jovens se escandalizam: “era possível acreditar nisso?!”. Não há mais valor intrínseco, eis o que significa a vitória da sociedade-mercado livre. A pós-modernidade é a expressão geral dessa situação de predomínio da esfera da circulação das mercadorias, foi a vitória do “fetichismo da mercadoria”. O que move o mercado é a ficção: embalagens, cores, imagens eróticas ou de poder associadas ao produto, a publicidade hipnótica. O que move o mundo do trabalho é a ficção: os indivíduos precisam ter uma aparência ocidental, branca, bem vestida, feliz. O que move o mundo político é a ficção: imagens, marketing, teatralização, parecer e fazer crer. O que move a sociabilidade é a ficção: encenação, maquiagem, consumo compartilhado, erotismo, imitação de imagens da mídia. O mundo pós-89 é cético, niilista, ficcional, mas não lamenta, não tem nostalgia de metanarrativas, centros e verdades, ao contrário, festeja esta inadequação entre a realidade e os conceitos, prefere evadir-se para “o que eu gostaria de ser”.

Se assim é a pós-modernidade, como fica a historiografia nesta sociedade-mercado livre? Se a historiografia é relativa, cética, ficcional, por que estudá-la? Qual seria a utilidade da história para esta vida? O que pode ensinar um professor de história, hoje? E em qual perspectiva? Para Linda Hutcheon, por um lado, de fato, a história tornou-se uma questão problemática na pós-modernidade. Há hostilidade à historiografia, porque ela é vinculada aos pressupostos culturais e sociais modernos contestados: crença nas origens e fins, unidade e totalização, lógica e Razão, consciência, progresso, teleologia, linearidade e continuidade do tempo. Para muitos, a realidade do tempo passado não interessa e a história é um saber inútil porque não dá lucro. Por que alguém investiria ou compraria um produto produzido por historiadores? Contudo, para Hutcheon, por outro lado, a pós-modernidade não recusa a história, mas produz uma redefinição da sua representação para a sociedade e do sentido do trabalho do historiador. Enfim, a historiografia tornou-se tudo o que desenvolvemos até aqui: enfatiza a natureza provisória e indeterminada do

3 JENKINS, A História Repensada...; LYOTARD, J-F. La condition post-moderne. Paris: Minuit, 1979; JAMESON, F. A virada cultural: reflexões sobre o pós-modernismo. Rio de Janeiro: Record, 2006; EAGLETON, T. As ilusões do pós-moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 35

conhecimento histórico, suspeita da neutralidade e objetividade do relato, questiona o estatuto ontológico e epistemológico do fato histórico. A pós-modernidade dá à história a mesma função que dá à literatura: atribuir sentido ao passado. O sentido não está nos acontecimentos, mas nos discursos construídos sobre eles. Os valores não são vistos como atemporais e universais, mas contextuais. Contra a síntese, defende-se a multiplicidade e a pluralidade das histórias. A narrativa pós-moderna fragmenta, desestabiliza a tradicional identidade unificada. Não há mais historicidade autêntica, porque as identidades são atravessadas pela ficção. É este o produto que o historiador oferece no mercado: sentidos atribuídos ao passado, interpretações, uma pluralidade de histórias, que permitem aos seus consumidores construírem as suas identidades/representações de si4.

Para Hutcheon, a história pós-moderna ensina a reavaliação do passado, não a sua destruição. É uma atualização do saber histórico, a sua adequação ao mundo pós-89. Todos os sentidos mudam no tempo e o nosso tempo não quer ser nostálgico do passado. Não se deve lamentar, mas exultar: perdemos a ingenuidade em relação à historiografia. Sabemos que nossas opiniões sobre a história não são isentas de valor e deixamos de supor que a linguagem coincide com o real. Os historiadores, hoje, narram os eventos em uma perspectiva parcial e explícita, expondo seus valores, para que os leitores julguem por si mesmos. Não há diferença entre fato e ficcção, porque os próprios documentos já são textos. Há desconfiança em relação à teoria da história que exige rigor e objetividade. O objetivo da pesquisa é menos demonstrar que o fato ocorreu e saber o que significou para um determinado grupo ou cultura. A historiografia pós-moderna é formada por leituras múltiplas, por uma visão pluralista do passado. O evento retorna à história, o passado é abordado como já semiotizado, textualizado e autointerpretativo. Para White e Jenkins, o relativismo é positivo, uma libertação, porque joga certezas no lixo, desmascara privilégios. Desconstruímos a história processo-verdade universal para construirmos a nossa história pessoal e as dos nossos grupos. O relativismo não é desesperança, mas emancipação5.

Hutcheon considera a obra histórico-filosófica de Michel Foucault a referência maior da teoria da história contemporânea. A grande resposta àquela questão inicial foi dada por Foucault. Na pós-modernidade, as descontinuidades, as lacunas, as rupturas, são privilegiadas em oposição à continuidade, ao desenvolvimento, à evolução. O particular e o local substituem o valor universal e transcendental. A cultura é feita em redes de discurso, o sentido é dominado por poderes institucionais. O social é um campo de forças, de práticas, discursos e instituições, em que temos diversos focos de poder e resistência. Foucault não chega a reduzir o real histórico ao textual, porque o discurso é apoiado e provado em práticas específicas e plurais, fraturadas e dispersas. Foucault ataca todas as forças centralizadas, desafia todo pensamento totalizante, que reduz o heterogêneo e problemático ao homogêneo e transcendental. Toda continuidade é fragmento. Assim como Nietzsche, para Foucault, só se pode explicar o passado pelo que é poderoso no presente. Não

4 HUTCHEON, L. Historicizando o Pós-Moderno: a Problematização da História. In: __________. A poética do pós-moderno. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

5 HUTCHEON, Historicizando...; WHITE, Hayden. O texto histórico como artefato literário. In: __________. Trópicos do discurso. São Paulo: Edusp, s/d; JENKINS, A História Repensada...

36 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

há dialética, as tensões não são resolvidas, mas abordadas como paradoxos ou contradições. Aliás, o melhor é não resolver as contradições, mas torná-las produtivas, fazê-las trabalhar6.

Para Le Goff, Foucault propôs uma filosofia original da história ao dar ênfase à descontinuidade, ao recusar o racionalismo, o evolucionismo. A história genealógica não estrutura a matéria por séculos, povos, civilizações, mas por “práticas”. As intrigas que os historiadores narram é das práticas onde os homens criam verdades e de suas lutas em torno dessas verdades. A Arqueologia do Saber mostra que as ciências sofrem mutações nos discursos e nas práticas, distinguindo-se de uma história epistemológica. Na abordagem arqueológica do saber não há progresso, um saber posterior não é superior ao anterior, desaparecendo da análise o aspecto teleológico do conhecimento científico. A arqueologia não analisa a ciência, mas os saberes. A questão da verdade fica neutralizada: a verdade é uma configuração discursiva histórica e a arqueologia examina o seu modo de produção, estabelecendo as condições de existência dos saberes e não as condições de verdade. O saber não é só científico, é também ficção, reflexão, narração, regulamentos institucionais, decisões políticas. A questão interna da cientificidade, não interessa. O saber só existe no interior de redes de poder e não há saber neutro. Todo saber é político, não porque dominado pelo Estado, mas porque tem sua gênese em relações de poder7.

A Genealogia do Poder analisa as condições histórico-políticas de possibilidades discursivas singulares. Como começou um determinado discurso? Ela estuda os acidentes que acompanham todos os começos, que envolvem estratégias e tecnologias de poder. A genealogia é uma história da constituição de saberes e discursos que não se referem a um sujeito. Ela privilegia a descontinuidade do sentido das palavras, das “configurações discursivas”. O problema do poder é resolvido no interior de uma trama histórica e não em um sujeito constituinte. A abordagem genealógica do poder não o vê como algo sempre negativo, repressivo. O poder é também produtivo, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Ele é uma rede produtiva que atravessa toda a sociedade. O poder não é unitário e global, mas formas díspares, heterogêneas, em constante transformação. O poder é uma relação social, uma prática historicamente constituída, processos que penetram a vida cotidiana, atingindo concretamente, corporalmente, os indivíduos. Os poderes se exercem em níveis variados e em pontos diferentes da rede social. Embora possam se articular ao poder do Estado, não estão subordinados ao centro. Foucault analisa relações concretas de poder, locais, institucionais, micro, moleculares. Os poderes não estão localizados em nenhum ponto específico da estrutura social. Não há os que têm poder e os que não têm. O poder não existe em si, é exercido, Há práticas, relações de poder: lutas, enfrentamentos, relações de força, estratégias. Seu modelo é a guerra. Mas, o poder não é só negativo: produz o real, domínios de objetos e rituais de verdade. Seu alvo é o corpo humano, para adestrá-lo. O poder gera a vida em comum, explora o potencial dos indivíduos, tornando-os produtivos. O poder disciplina, organiza os espaços, delimita-os, hierarquiza-os, controla o tempo

6 HUTCHEON, Historicizando...; FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1984; MACHADO, Roberto. Introdução: por uma genealogia do poder. In: FOUCAULT, Microfísica do Poder...

7 LE GOFF, Jacques. História. In: __________. Memória-História. Porto: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984 (Enciclopédia Einaudi, vol. 1); MACHADO, Introdução...; FOUCAULT, Microfísica...

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 37

das operações, vigia os indivíduos. É um olhar invisível, que impregna o vigiado. A disciplina visa tornar o corpo útil e dócil. O individuo é produzido pelo poder e o saber. O poder fabrica o indivíduo. A ação sobre o corpo, o adestramento do gesto, a regulação do comportamento, a normalização do prazer, singulariza, individualiza8.

A genealogia histórica distingue os acontecimentos, diferencia as redes e os níveis a que pertencem, reconstitui os fios que os ligam e fazem com que se engendrem uns aos outros. A historiografia analisa relações de força, o desenvolvimento de estratégias e táticas. Para Foucault, o modelo que nos domina é o da guerra, a historicidade que nos domina é belicosa e não lingüística: relações de força e não de sentido. A história não tem sentido, o que não quer dizer que seja absurda ou incoerente. Ela é inteligível e analisável segundo a inteligibilidade das lutas, estratégias e táticas. O problema do poder se coloca no interior de uma trama histórica e não em um sujeito constituinte. Não há essência original, primeira identidade, anterior à história. Não há verdade essencial, primeira, a ser recuperada. As coisas acontecem ao acaso, disparatadas, sem solenidades. A história é devir, desejo sem direção, dispersão. A genealogia não quer estabelecer uma continuidade que ligue o presente à origem. Ela demarca acidentes, desvios, erros, falhas. Não há acúmulo e solidificação de verdade, mas camadas heterogêneas de discurso. A história não leva ao reencontro, ao reconhecimento, à consciência absoluta em si e para si. O olhar genealógico não é absoluto: distingue, dispersa, dissocia, encarna, torna mortal a alma. Nada é fixo no homem, não há continuidade, progresso, mas acaso, lutas. É-se movido pela vontade de potência9.

Para Paul Veyne, Foucault revolucionou a história, fez a revolução que os historiadores esperavam. Ele é o historiador acabado, o primeiro historiador completamente “positivista”. A sua filosofia da história é um “positivismo histórico”, pós-metafísico: não busca o real em si, absoluto, objetos naturais. Não fala de uma loucura em si, de um gênero em si, mas descreve positivamente práticas históricas e não pressupõe nada. Ele quer descrever a prática histórica tal como foi, mas não como um objeto em si, natural. Ele historiciza tudo. Não há uma coisa chamada governo, mas práticas de governo diferentes. Foucault descreve o que as pessoas fazem. A prática não é uma instância misteriosa, um subsolo da história, um motor oculto. As práticas vêm das mudanças históricas nas relações de poder. Não é a Razão que edifica a coerência histórica, os fatos não desenvolvem um princípio metafísico, são criações da história. O objeto do historiador são práticas determinadas, que produzem discursos e representações determinadas. A história é inventiva: as práticas são cercadas de vazios, que permitem a mudança e não a continuidade. Este vazio é o desejo: o homem tem vontade de poder, de atualização, que é indeterminada. A consciência não explica a prática. Cada prática tem uma história particular. Não há século ideal ou fim utópico, a história é uma luta entre verdades/forças práticas. Tudo é histórico e a história é o conhecimento do singular, das transformações das práticas e discursos particulares. A cada momento o mundo é o que é e não há

8 MACHADO, Roberto. Ciência e saber: a arqueologia de Michel Foucault. Rio de Janeiro: Graal, 1984. FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense, 1986.

9 FOUCAULT, Microfísica...; FOUCAULT, Arqueologia ...

38 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

momento melhor e ideal. Portanto, exultemos!10

Contudo, se para Huctheon, Jenkins e Veyne a historiografia pós-moderna possui a sua maior expressão na obra histórico-filosófica de Foucault, gostaria de apresentar uma hipótese complementar, que, se for correta, não mais exultaremos tanto com a historiografia pós-moderna. A minha hipótese: a obra histórico-filosófica de Foucault pode ser considerada realmente a expressão maior da pós-modernidade se se levar em conta que mantém implícita outra filosofia da história, ainda maior do que ela, que lhe dá sustentação e sentido: a teoria do processo civilizador de Norbert Elias. O ponto de vista de Foucault sobre a história torna-se, então, a dimensão micro de um processo macro, o processo civilizador Ocidental. As rupturas e descontinuidades da teoria foucaultiana são locais, pontuais, e não comprometem, mas servem e realizam o avanço de um processo maior que envolve todos os povos, liderados pelo Ocidente, onde não há rupturas e descontinuidades. As práticas e os discursos, os enfrentamentos entre as forças, as lutas entre os regimes de verdade, a história dos saberes, os poderes disciplinares, em Foucault, portanto, se minha hipótese é aceitável, se inscrevem, preservando a sua descontinuidade, em uma “evolução sem sujeito”, o processo civilizador Ocidental. Não é preciso alterar em nada a filosofia da história original de Foucault para fazê-la entrar em um quadro mais amplo, que lhe dá legitimidade e sentido. Pode-se entrar na civilização Ocidental por dois caminhos: o micro (Foucault) e o macro (Elias). Os micro-poderes realizam um projeto maior sem que saibam disso, eles não percebem o sistema que os envolve. Mas, as suas paixões e vontades de potência são o combustível, as energias, que movimentam um processo mais amplo, que domina todo o planeta.

Antes de Foucault, nos anos 1930, Norbert Elias expôs a teoria do processo civilizador em sua obra “O Processo Civilizador”. Ele oferece uma teoria original e coerente da dinâmica do Ocidente, um sistema, sintetizando Hegel, Freud, Weber e Nietzsche. A sua obra ficou desconhecida até os anos 70, quando a historiografia passou a se interessar pelos modos de vestir, amar, comer, apresentar-se, pelos gestos, rituais e cerimônias. Para Elias, o comportamento da sociedade Ocidental não pode ser mais explicado por finalidades humanas gerais, a-históricas, mas como uma evolução que não se explica pela consciência, pela reflexão, mas por um processo de “modelação social”. Tornamo-nos racionais por “modelação social”. Nenhuma sociedade pode sobreviver sem canalizar as pulsões e emoções dos indivíduos, sem controlar o seu comportamento. O processo civilizador não é produto da Razão, não é intencional e nem é irracional, mas social. Elias propôs uma “sociologia figuracional”, que examina o surgimento das configurações sociais como conseqüência inesperada da interação social. Planos e ações, impulsos emocionais e racionais de pessoas isoladas se entrelaçam, criando um tecido básico resultante, com uma ordem que ninguém planejou. Surge uma ordem acima da vontade de pessoas isoladas. Esta regularidade social é diferente da mente individual e da natureza, embora interligadas11.

Ele formula o seu problema assim: “como os homens se tornaram educados e começaram a se tratar com boas maneiras? O que a organização da sociedade 10 VEYNE, Paul. Foucault revoluciona a História. In: __________. Como se escreve a História. Brasília: UNB, 1998.

11 ELIAS, Norbert. Sugestões para uma Teoria dos Processos Civilizadores. In: __________. O Processo Civilizador - Vol. 2. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 39

em Estado, o que a monopolização e centralização da força física e da cobrança de impostos tem a ver com a civilização?”. Para ele, o monopólio da força física, a centralização dos impostos, a diferenciação das funções sociais, as cadeias de interdependência, fizeram com que o controle que era efetuado por terceiras pessoas se tornasse autocontrole. As atividades mais animalescas foram progressivamente excluídas da vida em comum e investidas de sentimentos de vergonha. A vida instintiva e afetiva regulada por um firme autocontrole tornou-se cada vez mais estável, uniforme e generalizada. Modelados, os adultos modelam as crianças. Os indivíduos passaram a sincronizar as suas ações com as dos outros, o que exige do indivíduo uma conduta regular, uniforme. O autocontrole reduz o medo do outro, o que pacifica o espaço social. As pessoas ficaram previsíveis e menos ameaçadoras, com a moderação das emoções espontâneas, com o controle dos sentimentos, com a ampliação do espaço mental além do presente, com o hábito de ligar causas e efeitos, com o cálculo de custos e benefícios de uma ação, com a previsão a longo termo. Na vida civilizada, o medo não é mais externo, é interno. O processo civilizador Ocidental exige dos indivíduos um esforço enorme de estabilização. É um processo de disciplinarização. A sociedade civilizada possui longas cadeias de interdependência, um maior nível de divisão das funções, um maior nível de tensões internas, ao mesmo tempo mais competitiva e mais pacificada12.

Para Elias, este processo civilizador se iniciou no Ocidente, nas elites do Antigo Regime, na corte francesa, e alastrou-se para os níveis mais baixos das sociedades européias e estendeu-se aos países colonizados. O modelo sofre adaptações nacionais na própria Europa e no resto do mundo colonizado. Na corte francesa, a cerimônia, a etiqueta, controlava gestos, passos, distâncias com o poder. O gesto era sincronizado e supervisionado. Na boa sociedade, os guerreiros tornaram-se cortesãos. Os duelos foram abolidos, a palavra substituiu o combate físico. A intriga substituiu a espada. A luta é surda: previsão, cálculo, autocontrole, alianças. Cada cumprimento, cada conversa participava de um combate. O valor dos indivíduos era estimado: caía, descia, dependendo da proximidade dele com o rei. O comportamento torna-se regular, estratégico, reprime-se o mau humor, cumprimenta-se os inimigos. A luta passou para dentro dos indivíduos, que se tornam mais complexos: estudam o outro e a si mesmos, agem contra os seus próprios sentimentos, analisam o outro não isoladamente, mas como elo do entrelaçamento social. Elias mostra o processo civilizador com a metáfora do rio: é um processo contínuo, gradual ou mais acelerado, um movimento perpétuo, que não permite que nenhum indivíduo/evento se isole. A Ocidentalização do mundo não pode ser interrompida: é um processo que ocorre agora, um gerúndio: sendo, desenvolvendo, desdobrando. O sentido dessa mudança é a integração de todos os indivíduos sob o domínio de grandes Estados. Os indivíduos são obrigados a reestruturar a sua personalidade, ocorre uma interpenetração dos valores de classes e nações diferentes13.

Este movimento de Ocidentalização é o processo civilizador do planeta. É como se os europeus fossem a classe alta da Terra. Foi o autocontrole e previsão que levaram as elites ocidentais ao poder mundial. Todo afrouxamento do modelo é desaprovado. Os membros das elites se supervisionam e o menor deslize leva à

12 ELIAS, Sugestões para... 13 ELIAS, Sugestões para...

40 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

degradação e à vergonha. Este processo tem consequências favoráveis: a vida é menos perigosa, a presença do outro é menos temível, a violência física contra a vida foi controlada, os choques físicos diminuíram. E tem consequências desfavoráveis: a vida tornou-se mais penosa, menos prazerosa, as satisfações reais dos desejos foram substituídas por livros, poemas, artes, ciência, sonhos. O campo de batalha foi transferido para dentro do individuo: id e superego se enfrentam internamente. A vida social torna-se penosa. As pessoas se frustram porque não podem realizar seus desejos sem modificá-los. O indivíduo tem suas pulsões quase anestesiadas e torna-se incapaz de se expressar. Ele se tornou surdo e insensível aos seus impulsos, sua energia emocional foi represada. A estruturação da personalidade é permanente, a modelação social é dolorosa e há indivíduos que adoecem para sempre. Mas, raramente o processo civilizador é favorável ou desfavorável. Os civilizados vivem entre estes dois extremos. Hoje, a competitividade estressa muito e se valoriza a sinceridade, a franqueza, até as explosões. O autocontrole está sob suspeita, considerado muito repressivo, o que não significa a suspensão, mas o refinamento do processo civilizador, que exige muito dos indivíduos e continua cada vez mais planetário e opressor. Qual será o seu fim?14

Pode haver “resistência” a este processo avassalador que chega até os pontos mais recônditos da Ásia, África e América Latina? A historiografia pode se tornar instrumento desta ordem violenta? A filosofia da história pós-moderna redefiniu o conceito moderno de “resistência”. Não significa mais combater o Estado em guerras civis, pegar em armas, assaltar bancos, fazer mobilizações sindicais, greves, organizar partidos de oposição, fazer comícios contra a ordem, organizar congressos e publicar textos revolucionários. A “resistência”, hoje, significa criar estratégias e táticas de integração à ordem. O objetivo das ações é integrar-se às redes de poder em posições vantajosas. Os indivíduos foram modelados e disciplinados, aprendem a se autocontrolar, para lutar dentro das regras, modificando-as. Se a modificação da regra for eficiente, torna-se a nova regra. Por exemplo: pode-se casar e divorciar, comprar e vender, obter empregos e favores, ter privilégios e vantagens político-administrativas, criando modificações, exceções, fazendo negociações que não comprometam a ordem, mas a façam funcionar melhor. O indivíduo, para obter sucesso, precisa estar bem posicionado em redes de poder ou estar bem conectado a pólos poderosos e ser capaz de criar discursos capazes de convencer e se impor. Outro exemplo: a identidade feminina, no passado, interiorizou as normas masculinas, as mulheres consentiram na representação dominante da diferença dos sexos: inferioridade jurídica, papéis sexuais, divisão de tarefas e espaços, exclusão da esfera pública. Hoje, as mulheres têm resistido como vítimas e rebeldes. Não é preciso uma recusa explícita, a rebeldia visível, para haver resistência. Dentro do próprio consentimento há resistência. A diferença de gênero não é natural, mas cultural e as mulheres estão reconstruindo a sua identidade. A luta não é mais física, militar, mas linguística e cultural. O que as cortes francesas do Antigo Regime criaram é o que Foucault descreve na micro-física do poder: combates locais, institucionais, feitos com intrigas e rumores, com regras e estatutos, reinterpretações, discursos enviesados e codificados, que levam os indivíduos a conquistar ou fortalecer as suas posições de poder15.14 ELIAS, Sugestões para... 15 CHARTIER, Roger. A história entre narrativa e conhecimento. In: __________. À beira da falésia: a História entre certezas e inquietude. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 41

O processo civilizador não se impõe mais também pela força militar, pela invasão e conquista dos territórios daqueles povos que estão ainda à sua margem. O combate, agora, é feito na esfera cultural. Os Ocidentais procuram convencê-los, dissuadi-los, persuadi-los, torná-los dóceis, disciplinados, produtivos, aculturando-os, inculcando-lhes os valores, os comportamentos, o “habitus” Ocidental. A dominação se exerce, agora, através do “poder simbólico”, que Bourdieu, reinterpretando o marxismo, procura ensinar àqueles que o sofrem a reconhecer e a resisitir. O grande tema da filosofia da história pós-moderna é o “poder”: em Foucault os micro-poderes, em Elias, o macro-poder civilizador e, em Bourdieu, o “poder simbólico”, o poder que se deixa ver menos, ignorado e reconhecido. Para Bourdieu, o “poder simbólico” é invisível e só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que o sofrem. Os sistemas simbólicos (arte, religião, língua) são instrumentos de conhecimento e de comunicação que exercem o poder simbólico. Eles constroem a realidade estabelecendo uma ordem lógica, estabelecem uma compreensão homogênea do espaço, do tempo, do nº, que torna possível o consenso. A solidariedade social se assenta num sistema simbólico. Estes instrumentos de conhecimento e comunicação tornam possível o consenso que mantém a ordem social. O poder simbólico eufemiza as lutas econômicas e políticas entre as classes através de discursos informativos e comunicativos, e consegue impor a ordem dominante como uma invisível “ordem natural”16.

Para Bourdieu, os sistemas simbólicos se impõem porque as relações de força que neles se exprimem só se manifestam neles na forma irreconhecível de relações de sentido. O poder simbólico faz ver e crer, constrói o real no discurso. É um poder quase mágico que permite obter o equivalente do que é obtido pela força. Ele só se exerce se for reconhecido, i.e., ignorado como arbitrário. Os símbolos do poder (palácios, monumentos, cetro, roupa) são apenas capital simbólico objetivado. O que faz o poder das palavras é a crença na sua legitimidade e daqueles que as pronunciam. O poder simbólico é um poder subordinado, uma forma transformada, irreconhecível, transfigurada e legimitada, de outras formas de poder. As relações de comunicação tornam-se relações de força. O poder simbólico dissimula e transfigura, eufemiza, garantindo a transubstanciação das relações de força, fazendo ignorar-reconhecer a violência que eles encerram objetivamente, transformando-as em poder simbólico, capaz de produzir efeitos sem dispêndio de energia. A destruição desse poder de imposição simbólica radicada no desconhecimento supõe o fim da crença, a “tomada de consciência crítica”. A heterodoxia destrói as evidências da ortodoxia, neutralizando o seu poder de desmobilização17.

Bourdieu produziu esta reinterpretação do marxismo para oferecer a possibilidade de “resistência” a este processo civilizador Ocidental. Contudo, que tipo de resistência uma “consciência crítica” poderia oferecer? O que seria esta “tomada de consciência crítica”, depois de 1989, o auge da evolução deste processo civilizador? Quais valores poderiam sustentar a “consciência crítica”? Os supra-valores teológicos e modernos não têm mais a eficácia de um “poder simbólico”, não organizam e não mobilizam mais. A dimensão da vitória capitalista de 1989 lembra a vitória avassaladora da contra-revolução inglesa, no final do século XVIII, descrita por Thompson, em sua

16 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. São Paulo: Bertrand, 1999.17 BOURDIEU, O poder...

42 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

obra A Formação da Classe Operária Inglesa. Para Thompson, no final do século XVIII, não houve uma revolução inglesa, como na França, mas houve uma agitação social de enormes dimensões por uma democracia inglesa. Houve jacobinos ingleses, que arriscavam as suas vidas, como Tom Paine, que escreveu “Os Direitos do Homem” e “A Idade da Razão”, que venderam milhões, que esteve na Independência dos EUA, contra a monarquia inglesa, que esteve na França revolucionária, defendendo a República e os direitos sociais da maioria: direito de voto, aposentadoria, licença maternidade, aumento de salário. Paine era acusado de excitar o povo a atos de violência e pilhagem contra os ricos. Os seus seguidores eram republicanos radicais, que gritavam “Não ao Rei, Liberdade e Igualdade”. Houve greve, distúrbios populares em busca da liberdade. O sonho era a igualdade social. As dificuldades econômico-sociais, o aumento do custo de vida, endurecia-os no combate. A questão social, a república, a liberdade, exigiam o derramamento de sangue. A questão era: devemos escolher a liberdade ou a escravidão para os nossos descendentes?18

A contra-revolução inglesa foi brutal. O Rei e a classe proprietária burguesa tinham medo da revolução interna e da invasão francesa e se defenderam radicalmente. A repressão foi arrasadora: demissões de professores, dissolução de grupos de discussão, perseguição a liberais, infiltração nos sindicatos, desfiles e agitações pagas por Igreja e Rei. A imagem de Paine foi destroçada a marretadas. Todos tinham de denunciar suspeitos, para não serem suspeitos. Os reformadores eram espancados, presos e exilados. Os trabalhadores ficaram sem lideres, desorganizados. A classe proprietária estava no auge do seu poder, em plena revolução industrial, e a força da contra-revolução foi absoluta. A vitória de 1989 não precisou ser tão fisicamente violenta. Ela foi ao mesmo tempo uma mudança radical, acelerada, uma ruptura estrutural, como uma revolução, e pacífica, sem guerras, sem enforcamentos e genocídios. Os derrotados se renderam e entregaram o poder sem necessidade de ataques, assaltos, tiros e bombardeios. O “fato histórico” é que, a partir da década de 1990, quase imperceptivelmente, o mundo já era outro. Mas, a dimensão da vitória é semelhante à da monarquia/burguesia inglesas no final do século XVIII: uma vitória absoluta, incontestável, acachapante, definitiva19.

Contudo, para Thompson, otimista, não foi um fracasso tão absoluto. A revolução sonhada não se realizou, mas houve uma espécie de revolução na cultura. Nestes anos de repressão amadureceu uma consciência operária diferenciada, o impulso democrático se fortaleceu. As correntes sindicalista e jacobina se uniram e surgiram novas idéias e novas formas de organização dos movimentos sociais. O sindicalismo tornou-se radical. Todos estavam ainda mais convencidos de que o sonho de liberdade levaria à ruína o monopólio e a odiosa acumulação de capital em poucas mãos. Thompson redefine o conceito marxista de “classe social” e de “luta de classes”, para pensar a resistência diante de uma força contra-revolucionária tão desproporcional. Ele deixa de ver a classe como uma estrutura, um conceito, uma coisa, para considerá-la como um fenômeno histórico, local, algo que ocorre efetivamente nas relações humanas. A consciência de classe não pode ser antecipada e definida pela teoria, porque a classe é uma relação histórica e não pode ser definida

18 THOMPSON, E.P. Plantando a árvore da liberdade. In: __________. A formação da classe operária inglesa. São Paulo: Paz e Terra, 1987.

19 THOMPSON, Plantando...

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 43

a priori por intelectuais. É uma relação encarnada em pessoas e contextos reais. São interesses comuns de um grupo de homens em confronto com interesses comuns de outros homens. A “consciência de classe” é a cultura desses grupos, que inclui tradições, valores, idéias e formas institucionais. A consciência de classe surge em tempos e lugares diferentes e nunca da mesma forma. A cultura de classe representa interesses e posições locais, a luta de classes não deve ser tratada como deveria ser, mas tal como se articula historicamente. A classe é definida pelos homens enquanto vivem a sua própria história: é uma experiência, um “fazer-se”. Ao historiador cabe acompanhar as relações historicamente vividas por estes homens, em seu cotidiano, e procurar reconhecer as “resistências” mesmo onde elas aparentemente não existem, na obediência, na fidelidade, no consentimento20.

Eis o que um marxista inglês pode ensinar ao mundo anglo-saxonizado pós-89! Agora, a “resistência” concebível é a de homens derrotados que procuram salvar as suas vidas ostentando o seu consentimento: assiduidade no trabalho, generosidade com os patrões e os seus prepostos, fidelidade, aprendizagem e assimilação dos valores, dos costumes, do vestuário, da dieta, dos vencedores. A aculturação aos modos de vida e às linguagens Ocidentais é uma exigência, para aquele que quiser ser reconhecido e acolhido, para aquele que quiser ter uma vida sossegada, com boa alimentação, boa moradia, boa assistência-saúde, boa aposentadoria. Os sinais de origem, físicos (cor da pele, tipo de cabelo, de nariz e lábios, forma do crânio) e culturais (línguas/dialetos, crenças, memória histórica local), devem ser maquiados, escondidos, negados, e sobre eles deve ser superposta uma colagem da imagem Ocidental. O vencido deve procurar construir uma segunda natureza, outra identidade, manter uma relação ficcional consigo mesmo, com o seu passado, para se integrar à sociedade-mercado livre. Ele somente obterá sucesso se conseguir “representar-se, i.é., “parecer e fazer crer” que é um neoocidental. Para isso, deverá ostentar os sinais e símbolos de poder que funcionam, que abrem as portas, que o integram à nova ordem, afinal, “vence na vida quem diz “sim””. Portanto, deverá dizer, feliz, sempre que sentir que está sendo ouvido, que “sim, este é o melhor mundo possível, que ele sempre desejou, com o qual sempre sonhou!”.

***

20 THOMPSON, E. P. A miséria da teoria. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

44 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

RESUMO

A história é impensável sem as contribuições de Santo Agostinho, Descartes, Hegel, Kant, Nietzsche, Marx, Benjamin, Foucault, Derrida, Ricoeur e muitos outros filósofos. Os historiadores sempre tiveram necessidade da filosofia porque é ela que formula esta questão ao mesmo tempo singela e capital: “o que é a história?”. O nosso esforço neste artigo é próximo do que seria uma “filosofia da história”: queremos desocultar, “fazer aparecer”, as estruturas do pensamento histórico contemporâneo.

Palavras Chave: Filosofia da História; Teoria; Pós-Modernidade.

ABSTRACT

It’s impossible to think History without the contributions of Saint Augustin, Descartes, Hegel, Kant, Nietzsche, Marx, Benjamin, Foucault, Derrida, Ricoeur and many other philosophers. The historians always needed Philosophy, because is it who formulates a fulcra and so simple question: “what it’s History?”. The effort in this paper it’s next to what could be a “philosophy of history”: the intent is to reveal – “to make appear” – the contemporary historical thought structures.

Keywords: History’s Philosophy; Theory; Post-Modernity.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 45

O CAÇADOR DE BRUXAS:

CARLO GINZBURG E A ANÁLISE HISTORIOGRÁFICA

COMO INQUISIÇÃO E SUSPEIÇÃO DO OUTRO

Durval Muniz de Albuquerque Júnior1

Carlo Ginzburg, já em seu livro de estreia, publicado em 1966, analisa o processo através do qual um culto que teria características nitidamente populares foi pouco a pouco se modificando sob a pressão dos inquisidores, para finalmente assumir os lineamentos da feitiçaria tradicional.2 Em Os Andarilhos do Bem, portanto, Ginzburg, utilizando-se da documentação do Santo Ofício, defende a tese de que o processo de caça às bruxas, empreendido pela Inquisição, termina por fabricar a própria bruxaria. Teólogos e inquisidores através da difusão de esquemas de interpretação acerca das superstições e crenças populares, veiculados em sermões, tratados e imagens, teriam elaborado a imagem da feitiçaria diabólica. Ginzburg trata, enfim, de como estes textos diabolizaram aquilo que não entendiam, que não conheciam: as formas de pensar, de conceber e explicar o mundo das camadas populares, seus cultos e rituais, que eram interpretados como demonstração de barbárie e de irracionalismo. As confissões das bruxas eram consideradas fantasias absurdas e eram arrancadas com ferocidade e superstição pelos juízes, que no curso dos processos, através da tortura e de “interrogatório sugestivos” modelavam através de seus esquemas de interpretação a fala dos inquiridos, para ver reafirmada, ao final da investigação, a tese, a ideia que já tinham desde o início do procedimento investigatório3. O conceito prévio de bruxaria ou de feitiçaria diabólica terminava por dar sentido a toda fala e a toda prática religiosa popular que escapava da obediência aos códigos da cultura letrada e da Igreja Católica.

Dez anos depois, em 1976, Carlo Ginzburg publica o livro que o consagraria como historiador em todo o mundo e que passaria a ser uma espécie de obra paradigmática do que se chamaria de micro-história italiana ou da utilização daquilo que o próprio Ginzburg, em outro texto famoso4, chamará de paradigma indiciário: O Queijo e os Vermes5. Neste l ivro vemos, mais uma vez, Ginzburg envolvido com a documentação inquisitorial, analisando um volumoso processo aberto contra o moleiro Domenico Scandella, dito Menocchio, acusado de sustentar que o mundo tinha sua origem na putrefação. No Arquivo da Cúria Episcopal de Udine, caçando bruxas, curandeiros e benandanti, o historiador italiano acaba por se deparar com a longa sentença emitida a partir de uma vasta documentação manuscrita, graças à qual teria podido saber quais eram as leituras do moleiro, quais as discussões 1 Doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas. Professor Titular do Departamento de História e do programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Presidente da Associação Nacional de História - ANPUH na Gestão 2009/2011.

2 GINZBURG, Carlo. Os andarilhos do bem: feitiçarias e cultos agrários nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 8.

3 GINZBURG, Os andarilhos..., p. 9.4 GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: __________. Mitos, emblemas, Sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 143-179.

5 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

46 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

de que participara, seus pensamentos e sentimentos: temores, esperanças, ironias, raivas, desesperos. Através das fontes inquisitoriais e judiciárias, Ginzburg diz ter sentido, muitas vezes, Menocchio bem perto de nós, como se fora um de nós, sem deixar de perceber que era também um homem muito diferente de nós. Passa então a tentar entender esta diferença, reconstruir a fisionomia da cultura que permitiu a existência das ideias daquele camponês, analisar os filtros culturais através do qual lia os textos que lia, terminando por, a partir da análise do cotidiano e das ideias de um moleiro, desembocar numa hipótese geral sobre a cultura popular da Europa pré-industrial, que seria a de que existiria, neste momento, um relacionamento circular, feito de influências recíprocas entre a cultura das classes dominantes e a cultura das classes subalternas6.

No final da década seguinte, no ano de 1989, em livro oferecido à memória de seu pai, Leone Ginzburg, que morreu numa prisão durante o fascismo, e à sua mãe, a famosa escritora Natália Ginzburg, encontramos o grande nome da micro-história novamente às voltas com bruxas e feiticeiros, que se reuniam à noite, no campo ou na montanha, que às vezes chegavam voando, depois de terem untado o corpo com unguentos, montando bastões ou cabo de vassouras; em outras ocasiões, apareciam em garupas de animais ou então transformados eles próprios em bichos. Os que vinham pela primeira vez deviam renunciar à fé cristã, profanar os sacramentos e render homenagem ao diabo, presente sob a forma humana ou (mais frequentemente) como animal ou semi-animal. Antes de voltarem para casa estas bruxas e feiticeiros recebiam unguentos maléficos, produzidos com gorduras de criança e outros ingredientes. Em História Noturna, mais uma vez Ginzburg vai abordar como um dado conceito, o de sabá, como o conjunto de narrativas que se apoiavam neste conceito e que davam a ele um dado feixe de significados terminam por enquadrar e dar sentido, terminam por modelar práticas, crenças e discursos vindos das camadas populares. Ele se pergunta como e por que se cristalizou a imagem do sabá e que mecanismos ideológicos sustentaram a perseguição à feitiçaria na Europa, procurando reconstruir, também, as crenças das mulheres e dos homens acusados de bruxaria. As imagens do sabá tendiam a se repetir com extraordinária uniformidade tanto nas confissões dos participantes das reuniões noturnas, quanto nos tratados de demonologia, de um extremo ao outro da Europa, entre os princípios do século XV e o final do século XVII. O conceito de sabá servia para dar materialidade ao que seriam verdadeiras seitas de bruxas e feiticeiras, bem mais perigosas do que as figuras isoladas, conhecidas havia séculos, portadoras de malefícios ou do que a figura dos encantadores. Quem perseguia as bruxas, quem usava do conceito de sabá para nomear o que seria a reunião de muitas delas, utiliza de um conceito genérico, que homogeneíza o inimigo, o estigmatiza, em nome da prevenção do perigo ou dos malefícios que trariam, como também de evitar o encantamento que estes poderiam causar. A uniformidade das confissões, de suas práticas e discursos, seria uma prova da uniformidade e da onipresença dos sequazes destas seitas e de seus ritos horrendos que deveriam ser combatidos para que não se espalhassem perigosamente entre a população. “Portanto, seria o estereótipo do sabá o que sugeria aos juízes a possibilidade de arrancar dos imputados, por meio de pressões físicas e psicológicas, denúncias em série, as quais, por sua vez,

6 GINZBURG, O queijo..., p. 11-13.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 47

desencadeavam verdadeiras ondas de caça às bruxas”7.

Podemos dizer, portanto, que a formação de Carlo Ginzburg como historiador esteve intimamente ligada à temática da bruxaria, da feitiçaria, da caça às bruxas. Talvez não seja muito difícil entender o interesse do historiador italiano por esta temática, além de representar a abordagem de elementos da cultura popular, além de ser um esforço para trazer para o interior da história a presença das classes subalternas, o seu cotidiano e modos de viver e pensar, premissas políticas e acadêmicas condizentes com o marxismo, postura política e teórica que herda de seus pais, esta temática também se relaciona com a vida de um historiador de descendência judia, que teve sua vida marcada pela morte do pai, graças à intolerância do fascismo. Em História Noturna, Ginzburg, citando H. R. Trevor-Hope, vai se referir à analogia existente entre a situação das bruxas e dos judeus na cultura europeia; tanto umas quanto outros serviriam, em dados momentos de recrudescimento das tensões sociais, nos momentos de crise, como bodes expiatórios sobre os quais se abatiam a raiva, o ódio e o desprezo daqueles vitimados pelo processo em curso. A hostilidade camponesa em relação à feitiçaria era semelhante ao anti-semitismo popular. A situação dos indivíduos acusados de bruxaria podia ser comparada à dos judeus perseguidos. A Inquisição se ocupava tanto do combate à bruxaria, como de todos aqueles indivíduos acusados de praticar ritos e professar crenças judaizantes. Não é difícil supor, portanto, que a inegável solidariedade de Ginzburg, o seu olhar generoso em relação àqueles homens e mulheres que na Europa pré-industrial foram acusados de bruxaria e feitiçaria, nasce de seu pertencimento a um grupo étnico que foi vítima ao longo da história de perseguições, genocídios, acusações e suspeitas de toda ordem. Em suas discussões no campo historiográfico, o Holocausto, a matança indiscriminada de judeus pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, guerra que ceifou a vida de seu pai, por ser judeu e comunista, aparece insistentemente como argumento para que se faça o combate ao que ele considera ser posturas relativistas, pós-modernas, irracionalistas, narrativistas que, ao porem em dúvida o que chama de princípio da realidade na história, abririam a possibilidade para a aceitação das teses negacionistas, das versões reviosinistas em relação a este evento monstruoso e incontornável para qualquer judeu.

No entanto, me parece, e esta será a tese que tentarei demonstrar ao longo deste texto, que Carlo Ginzburg não aprendeu com os processos inquisitoriais e judiciários que compulsou, com as pesquisas que realizou em torno da bruxaria e sua perseguição, apenas uma dada forma de pensar e escrever a história, não desenvolveu apenas uma dada metodologia, dadas convicções políticas e teóricas, mas ele aprendeu lendo, relendo, fichando, reproduzindo estes discursos, dados procedimentos retóricos, dadas estratégias narrativas, dados modos de argumentação: aprendeu a manejar dados tropos discursivos, fundamentais na urdidura de seus textos de crítica historiográfica. Tentarei argumentar no sentido de que a forma como Ginzburg enfrenta o debate no interior da disciplina histórica, a maneira como ele trava os debates com os congêneres com os quais não concorda, a forma como ele constrói seus argumentos contrários a seus colegas, as estratégias que escolhe para fazer o enfrentamento às ideias, às obras e aos autores dos quais diverge foi, em grande medida, aprendida, não apenas no interior da tradição

7 GINZBURG, Carlo. História noturna. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 10.

48 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

marxista, tradição política e acadêmica na qual se formou, da tradição acadêmica da disciplina histórica, na qual fez sua formação, notadamente naquela advinda da Escola dos Annales, mas principalmente da tradição retórica conformadora dos discursos judiciários, eclesiásticos, inquisitoriais, com a qual esteve em permanente contato em suas atividades de pesquisa. Carlo Ginzburg, ao assumir o lugar de sujeito de crítico historiográfico, me parece bem mais próximo do lugar de juiz e de inquisidor do que talvez ele tenha consciência ou suspeite. Contraditoriamente, o historiador judeu parece, em muitos momentos em que se coloca na condição de crítico de dadas visões da história e de dadas práticas historiográficas, muito próximo do carrasco, do caçador de bruxas, que encontra como personagens e possibilidades dos documentos e dos discursos que inventaria e lê. Suspeito que as estratégias que presidem o discurso inquisitorial, o discurso judiciário, terminam por ser assimiladas por Ginzburg, que as manipula, no momento em que, ele também, tem que abater e remeter para a margem uma dada compreensão da história, um dado autor e uma dada obra, que são por ele considerados perigosos e ameaçadores para a historiografia e para os fins políticos e sociais que o discurso historiográfico deve atender. Tentarei descrever certos procedimentos retóricos e analíticos adotados por Ginzburg em seus textos de crítica historiográfica e mostrar a proximidade com procedimentos da mesma natureza presentes nos discursos jurídico e inquisitorial.

Tanto em Os Andarilhos do Bem como em História Noturna, Ginzburg vai tratar de um procedimento retórico estratégico do discurso inquisitorial e judiciário: a submissão da variedade das manifestações das crenças populares, da diversidade dos rituais, das distintas formas de pensar e de praticar o culto a um só conceito, a um só esquema explicativo, a uma noção que congrega um conjunto de significados, que simplifica, caricaturiza e estereotipa aquelas pessoas, crenças e práticas que são consideradas heréticas, fora da ordem, estranhas, indefiníveis, incompreensíveis, pertencentes a tradições culturais exóticas, bizarras e atrasadas. Simplificar e homogeneizar o inimigo a combater, encontrar por toda a parte o mesmo rosto quando se trata de detectar o agente ameaçador, unificar uma dispersão, ordenar e hierarquizar o que parece caótico, reduzir o oponente a meia dúzia de traços, a uma definição sumária, criando uma situação de antagonismo maniqueísta, uma situação de conflito onde só podem existir duas posições possíveis: ou se está dentro ou se está fora, ou se está a favor ou se está contra aquela posição definida como sendo a ortodoxia, a norma, a verdade, a realidade. A estratégia da estereotipia, da criação de um sujeito inimigo homogêneo e unitário, funciona quando se trata de simplificar a complexidade da realidade, dos debates, quando se trata de ter como meta a desqualificação do oponente, a descaracterização do outro, sua completa anulação ou derrota. Quando o outro é visto como ameaça, quando a diferença é vista como desvio, quando a diversidade de pontos de vista é pensada como intolerável e inadmissível, se está no caminho de um julgamento do outro que caminha na direção de sua punição, de seu castigo ou de seu extermínio.

Considero que no momento em que Carlo Ginzburg se coloca no papel de crítico da historiografia, ele adota, de saída, esta estratégia de redução da diversidade e singularidade daqueles que pensam diferente dele. Através da adoção de epítetos como pós-modernos, narrativistas ou céticos, Ginzburg reduz a diversidade de posições destes autores, desconhece a singularidade de suas contribuições para

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 49

o campo da prática e do pensamento sobre a história, construindo uma situação artificial de polarização entre suas posições e as posições dos autores contra os quais fala, aos quais, muitas vezes, sequer nomeia e a cujas obras pouco se dá o trabalho de citar e comentar. Ele adota a estratégia muito presente no discurso jurídico e inquisitorial de homogeneizar seu alvo de ataque, de construir através de um conjunto sumário de traços e posições um sujeito oponente, ao qual se deve vencer através da argumentação, do ataque às suas posições, normalmente bastante resumidas e caricaturadas. Em entrevista dada a Maria Lúcia Pallares-Burke, ele próprio admite tomar os seus críticos como inimigos – o que também costumavam fazer todos os inquisidores - e diz ser seduzido pela estratégia do advogado do diabo – admite, pois, se aproximar do lugar de fala do advogado, mesmo que seja do diabo, que é o discurso judiciário -, embora me pareça que ele acredita estar sempre do lado do bem - o que pensam todos os sacerdotes -, que suas posições representam sempre a posição melhor e mais correta em relação à posição dos “inimigos” da qual quer se apossar para deslocá-la e desqualificá-la – discurso belicoso que se assentaria bem na boca de um militar8. Veja-se em que termos define o que seria o programa de pesquisa e o objetivo polêmico do seu conjunto de ensaios reunidos no livro O Fio e os Rastros:

Contra a tendência do ceticismo pós-moderno de eliminar os limites entre narrações ficcionais e narrações históricas, em nome do elemento construtivo que é comum a ambas, eu propunha considerar a relação entre umas e outras como uma contenda pela representação da realidade. Mas, em vez de uma guerra de trincheira, eu levantava a hipótese de um conflito feito de desafios, empréstimos recíprocos, hibridismos. Com as coisas nestes termos, não era possível combater o neoceticismo repetindo velhas certezas. Era preciso aprender com o inimigo para combatê-lo de modo eficaz.9

Tal como as bruxas ou os judeus, o historiador que advoga posições distintas das suas é um sujeito sem rosto e sem nome, um perigo, uma ameaça a que se deve combater como a um inimigo que ameaça tomar de assalto a cidadela inexpugnável da história científica ou como um pestilento que ameaça infectar de ceticismo o sacrossanto ambiente da história realista. Sua retórica é claramente beligerante, lançando mão de figuras de linguagem que remetem os embates no campo historiográfico para a lógica da guerra. Como um benandanti, Ginzburg, o andarilho ou talvez o profeta e missionário do bem, ataca inimigos imaginários agrupados em categorias genéricas e arbitrárias como os céticos, os neocéticos, os pós-modernos, os narrativistas, os positivistas, que ameaçam tornar estéreis os campos da história, que ameaçam que a historiografia não colha bons frutos. Assim como faziam inquisidores e juízes, quando algum nome, quando algum corpo ou algum rosto vem ocupar o lugar de uma destas categorias, este nome, este corpo, este rosto deve ser lançado para o terreno do opróbrio. Como, parece que, para Ginzburg, no debate historiográfico, não se trata de discutir ideias, de debater

8 PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. As muitas faces da História. São Paulo: UNESP, 2000, p. 287.

9 GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 9.

50 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

conceitos, de questionar abordagens, de pôr em questão as versões do passado, mas se trata de uma guerra, de um combate contra um inimigo, de derrotar o oponente, lança-se mão, para isso, de todas as armas disponíveis, a principal delas, tão afeita a inquisidores e advogados de acusação: a desqualificação pessoal.

O que para muitos leitores desavisados ou cúmplices nada inocentes passam por análises historiográficas, notadamente no Brasil, onde alguns de seus enunciados a respeito de dados autores são veiculados como avaliações pertinentes de suas obras e de seus pensamentos, nada mais são do que ataques pessoais, avaliações adjetivas do outro, que visam produzir a desqualificação daquele que considera seu oponente. Ginzburg adota uma estratégia retórica e discursiva, surpreendentemente muito usada pelas hostes nazi-fascistas e stalinistas, a de tentar minar a adesão ao pensamento, a de tentar impedir o acesso às teses daqueles considerados adversários, pela produção da abjeção do outro. Ao invés de se atacar e de se discutir os argumentos e teses daqueles dos quais diverge, Ginzburg adota a estratégia de gerar a suspeita sobre o caráter e sobre as posições políticas e morais dos adversários. Explorando a exaustão a lógica da suspeita, tão presente tanto no marxismo, como nas ideologias totalitárias, Ginzburg exercita um verdadeiro trabalho de patrulhamento ideológico, de caça às bruxas no campo historiográfico, tais como faziam os inquisidores e juízes em relação ao campo religioso. Existe para ele uma espécie de ortodoxia historiográfica a defender, existem dogmas a serem preservados, nem que para isso tenha que se assacar, sobre aqueles que representariam posições teóricas e políticas distintas, adjetivos comprometedores, disseminando a suspeita em relação à integridade moral e intelectual daquele com quem debate. Exemplar a este respeito são suas declarações e escritos a respeito de Michel Foucault, nos quais jamais enfrenta ou discute as posições teóricas ou as conclusões de seus trabalhos, limitando-se a emitir avaliações sobre a pessoa do filósofo ou genéricas valorações adjetivas de sua obra e pensamento. O tom destas declarações é sempre depreciativo, demonstrando hostilidade e ressentimento em relação ao filósofo que um dia ousou responder com ironia a uma colocação feita por ele quando do debate em torno do livro Vigiar e Punir para o qual foi convidado como debatedor10. Ao tratar de Foucault, o porco-espinho que admite ser11, não para de soltar farpas como estas:

... O que quero dizer é que havia vários Foucaults e um deles era muito, muito brilhante, mas, no meu entender, pouco original. Sob este ponto de vista, diria que Foucault é um autor extremamente superestimado, pois, em grande parte, nada mais é do que uma nota de rodapé a Nietzsche...

Pessoalmente, ele era extremamente agressivo – de fato, a pessoa mais agressiva que já encontrei –, e egocêntrico de um modo maníaco, o que lhe permitia vender a sua imagem com bastante eficiência. Lembro-me de estar uma vez num café de Paris conversando com E. P. Thompson e, por algum motivo, começamos a falar sobre Foucault. Foi quando Thompson disse algo que pensei ter ouvido errado: “Foucault

10 Ver: Mesa-Redonda em 20 de maio de 1978. In: PERROT, Michele (ed.). L’impossible prison: recherches sur les système pénitentiaire au XIXe siècle. Paris: Seuil, 1980, p. 40-56.

11 Ao ser colocado diante das duas categorias com as quais Isaiah Berlin distingue os intelectuais – raposas e porcos-espinhos – Ginzburg admite estar mais para porco-espinho do que para raposa. Ver: PALLARES-BURKE, As muitas faces..., p. 284.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 51

é um charlatão”. Pedi que repetisse, tal minha surpresa, e era isso mesmo. Concordo que havia muito de charlatão em Foucault, mas não só. Muito de sua obra – a parte da retórica vazia – vai realmente desaparecer, mas há também coisas que merecem ser preservadas...12 (grifos nossos). Ao terminarmos de ler este esclarecedor trecho sobre Michel Foucault, o que ficamos sabendo a respeito do que seria brilhante ou menos brilhante em sua obra? O que ficamos sabendo a respeito do que deveria ou não ser preservado em seu trabalho? O que ficamos sabendo sobre suas ideias a respeito da história, das discordâncias teóricas e metodológicas que o autor italiano teria em relação aos textos de Foucault? Em meio a uma saraivada de adjetivos, que fizemos questão de sublinhar, todos voltados para desqualificar a pessoa de Foucault, a pessoa privada, que não interessa imediatamente ao fazermos uma análise do que produziu e das contribuições que deu para a escrita da história e para a história de determinados temas, nenhuma análise crítica e rigorosa dos seus escritos nos é apresentada. Todas as pesquisas originais que realizou, toda a erudição de seus escritos, todos os conceitos e categorias que formulou, todas as intervenções intelectuais e políticas que fez ao longo de sua vida, com as quais se pode concordar ou não, são reduzidas a ser uma simples nota de rodapé à obra de Nietzsche. Se, como o próprio Ginzburg admite, faltam estudos sérios sobre a produção de Foucault, este devendo ser resgatado da idolatria de seus seguidores, por que ele não realiza este estudo sério, preferindo, ao contrário, substituir a idolatria pela difamação? O uso da adjetivação é uma estratégia retórica e argumentativa muito utilizada em qualquer discurso que busca a desconstrução da reputação e procura alcançar a desonra de alguém, busca tornar o outro um ser infame, abjeto, abrindo brechas para que possa vir a ser punido, linchado, destruído, assassinado legitimamente. A estratégia da infâmia perseguiu durante gerações a grupos humanos no Ocidente como os árabes e os judeus. A calúnia e o vitupério são uma das armas preferidas dos regimes de exceção, dos regimes totalitários quando querem eliminar alguém suspeito de ser um adversário e um dissidente. Ela é uma estratégia que busca desautorizar o pensamento, a obra, desqualificando a pessoa. Como um bom inquisidor ou um bom juiz, Ginzburg submete Foucault a um duro julgamento público, com o agravante de que ele não só não estava presente, como já estava morto, não podendo mais comparecer ao tribunal instaurado pelo microhistoriador para fazer a sua defesa, estando fadado, pois, a ser considerado culpado de ser ele mesmo e de ter escrito as coisas que escreveu. Como sua defesa pode ser ainda realizada por seus seguidores, o Torquemada13 da historiografia, logo trata de também desqualificá-los, considerando-os suspeitos do crime de idolatria, afirmando que escrevem ainda pior do que ele, produzem montanhas de lixo intelectual em torno de seu nome e a partir de suas ideias, deixando, claro, portanto, que no seu tribunal historiográfico seus testemunhos não serão levados em conta. A obra de Foucault deve ser realmente muito incômoda para alguém que exerce o poder que seu lugar de intelectual e de historiador ainda vivo lhe dá. Desta maneira Foucault e seus escritos devem se assemelhar ao executado, ao supliciado que retornaria sempre para obsediar o sono do carrasco.

12 PALLARES-BURKE, As muitas faces..., p. 303.13 Referência a Tomás de Torquemada, frade dominicano, inquisidor-geral dos reinos de Castela e Aragão no século XV, confessor da rainha Isabel, a Católica, considerado o Grande Inquisidor, pelo alto número de condenações e execuções que presidiu, na perseguição a muçulmanos e judeus.

52 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

Mais acintoso e explícito é o uso retórico que faz do nome de outro morto, que comparece em seu discurso como argumento de autoridade, assim como inquisidores e juízes costumavam convocar em suas sentenças a presença dos escritos e das falas de ausentes considerados autoridades consagradas, que serviam de modelo e de referência para a sustentação de uma dada tese, a favor ou contra o acusado. Assim como se convocava a autoridade da palavra do próprio Deus presente nas escrituras ou se convocava ou se convoca, ainda hoje, a autoridade de alguém cuja tese se firmou como jurisprudência para se legitimar uma dada argumentação a favor ou contra um réu, Ginzburg na sua diatribe contra Foucault, convoca uma autoridade no campo historiográfico contemporâneo, alguém que, já estando morto, não poderá vir a desmentir as palavras e julgamentos que lhe atribui: Edward Palmer Thompson. A retórica usada neste trecho de suas declarações é claramente teatral, quase operística, gênero bem ao gosto dos italianos: numa ocasião em que desfruta da intimidade de uma conversa num café parisiense com o consagrado historiador inglês - o que por extensão lhe confere prestígio -, ao falarem, sem que se saiba o porquê, sobre o filósofo francês - toda fala de delação costuma se dizer despretensiosa, toda informação que se apresenta para colocar em maus lençóis alguém é apresentada como conseguida por acaso, sem nenhuma intenção prévia -, ele escuta Thompson afirmar que Foucault seria um charlatão. Ele titubeia, chega a duvidar de seus próprios ouvidos, pede, por favor, para que o historiador do fazer-se da classe operária inglesa repita a sua afirmação, e este repete sua sentença, sem que nenhum argumento seja aduzido para que se chegue a tal veredicto. Foucault queda condenado por charlatanismo sem que saiba ou que saibamos o que teria feito para ser assim considerado. Numa versão kafkiana da justiça, ou semelhante a algumas condenações realizadas pelo Santo Ofício, o herege queda perplexo perante seu julgador, sem saber direito do que está sendo acusado, o que fez para merecer a tipificação penal de que lhe acusam, o que foi que teria escrito ou feito para receber a infame designação. A categoria charlatão é brandida como os inquisidores brandiam categorias como bruxaria, feitiçaria diabólica ou sabá, enquadrando o comportamento do outro, suas maneiras de ser e pensar, para desqualificá-las e permitir o esquecimento, o soterramento, a negação do ser e da verdade do outro, negar o direito a diferença, a alteridade, ao desacordo e a diversidade. Foucault, como as bruxas, deve portar, a partir daí, a marca infamante em suas vestes, a mácula em seu nome, o estigma desenhado a fogo em sua calva testa e ter seus escritos queimados, lançados no novo índex, para que novos charlatães não se venham a produzir na moralizada e moralizante cidade dos historiadores. Thompson torna-se, assim, cúmplice na difamação. Por já ter ido lutar ao lado das falanges celestes, fala agora pela boca do italiano que, não demora em admitir, em tomar para si a sentença exarada pelo outro: sim, Foucault foi um charlatão, um escritor de frases de efeito, um praticante da retórica vazia. E, nosso historiador italiano que, nesta peça e neste passo, nos acaba de dar um exemplo do que considera ser uma retórica cheia, plena, um discurso carregado de substância, um discurso consistente, bate o martelo e decreta que Foucault deve ser desmascarado, deve ser descascado como uma cebola, até que dos vários Foucaults existentes, restasse apenas o Foucault que merecia ser preservado, depois que cumprisse a pena e fosse submetido a um longo período de expiação de suas faltas. O Foucault agressivo, o Foucault egocêntrico,

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 53

o Foucault maníaco, o Foucault superestimado – talvez seja este seu crime, ser superestimado –, o Foucault nota de rodapé, devia, após confessar e purgar todos estes pecados, no Purgatório intelectual de Bolonha ou da Califórnia, ser novamente admitido na ordem dos historiadores, onde havia lugar apenas para o Foucault brilhante, quase translúcido como os anjos e como outros defensores e partidários das Luzes, como o já angélico historiador dos costumes em comum e o historiador das bruxas e feiticeiras do bem.

Este mesmo tipo de estratégica retórica, inquisitorial e judiciária, ele vai usar para se livrar, com facilidade, de dois outros autores que considera serem responsáveis pela emergência, no interior da historiografia contemporânea, do que chama de teses céticas, baseadas no que seria a redução da historiografia à sua dimensão narrativa ou retórica: Friedrich Nietzsche e Paul de Man. Na introdução ao livro Relações de Força14, ao buscar as raízes do que seria o relativismo cético presente nas formulações que chamariam a atenção para a dimensão retórica do ofício do historiador, contraditoriamente dá um soberbo exemplo do uso da retórica em nosso campo e, talvez ele não admita, de retórica sofística, aquela que tanto Sócrates como Platão vão criticar na antiguidade, e que terá em Nietzsche, justamente, um defensor. A complexa, sofisticada e criativa obra de Nietzsche, suas posições críticas quanto à noção de verdade prevalecente em sua época, seu questionamento da imagem da Razão reinante em seu tempo, a centralidade que concede à linguagem na construção do mundo são explicadas por Ginzburg a partir de dois argumentos: um que pretende ter um caráter político e ideológico e outro que pretende ter, digamos, um cunho psicológico ou psicanalítico. Numa primeira passagem em que vai sutilmente sugerindo a existência de uma relação entre as posições de Nietzsche e o nazifascismo – sendo, agora, o morto condenado moralmente pelos crimes que fizeram, posteriormente, em seu nome – o historiador italiano, num claro recurso retórico, diz imaginar a emoção que ele teria sentido ao ler o Górgias de Platão por este se referir ao domínio dos mais fortes sobre os mais fracos; domínio que seria determinado por uma lei da natureza; a moral e o direito como a projeção dos interesses de uma maioria de fracos; a submissão à injustiça definida como moral para escravos. Em outro grande lance retórico, diz, então, que o personagem do Górgias, Cálicles, revelou Nietzsche a ele mesmo – o que significa, evidentemente, que Nietzsche tinha uma verdade única, interior, essencial, capaz de ser revelada, embora todo seu pensamento negue esta possibilidade –, embora, como admite o próprio Ginzburg, Nietzsche jamais tenha citado este personagem em seus escritos, mas, segundo nosso perscrutador de mistérios e bruxarias, o filósofo alemão implicitamente – felizmente o Sherlock Holmes dos indícios sabe ler o implícito - teria prestado homenagem a Cálicles por que este havia falado dos pequenos leões que a sociedade não consegue domar, o que seria o mesmo que a frase de Nietzsche – como sempre arrancada de seu contexto –, “o magnífico animal louro em busca de presa e vitória”, da Genealogia da Moral – que são realmente de uma semelhança aterradora. Para culminar, então, esta análise reveladora, precisa e honesta, brande o primeiro argumento forte contra Nietzsche, que explica toda a sua obra e nos esclarece sobre os seus conceitos: a altivez de Cálicles o candidatava

14 GINZBURG, Carlo. Relações de força: História, retórica, prova. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

54 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

à veneração pequeno-burguesa de Nietzsche pela diferença. Ou seja, a filosofia da diferença é explicada por um argumento sofisticado e sutil de classe: Nietzsche é um pequeno burguês, o cúmulo dos pecados, e essa condição social é suficiente para explicar todo o seu pensamento. Mas fiquei a me interrogar: Carlo Ginzburg não é também um pequeno burguês? E por que esta condição social não o levou a ter as mesmas posições que teve Nietzsche? Bem, mas estas perguntas incômodas não se devem fazer ao historiador italiano15. Em seguida apresenta o seu segundo argumento, mais sofisticado ainda por ser psicanalítico, embora, como sempre, baseado em suposições, segundo ele mesmo afirma – embora se diga um verista e um defensor do princípio da realidade: a hostilidade de Nietzsche ao cristianismo poderia ser explicada pelo seu complexo de Édipo mal resolvido. Em páginas que Nietzsche teria mantido ciosamente ocultas ao público, só agora reveladas pelo pesquisador do ocultismo, que não gosta de nada oculto, nosso detetive ou inquisidor vai encontrar a sua verdade, a verdade de seu comportamento anticristão, o motivo por seu comportamento herético: afrontar a memória do pai, um pastor protestante; isso tudo a pretexto de explicar sua posição quanto à centralidade da linguagem na construção do que socialmente se define como verdade. Nunca aprendemos tanto sobre esta questão candente.

As páginas dedicadas a Paul de Man são ainda mais reveladoras da estratégia retórica utilizada constantemente por Carlo Ginzburg em suas diatribes historiográficas, estratégia que Aristóteles16, autor tomado por ele, neste livro, como formulador de uma ideia de prova coerente com um saber narrativo e retórico, vai chamar de ad hominem, ou seja, aquela estratégia retórica que consiste em, a pretexto de atacar o argumento apresentado, atacar a quem o apresentou. O trabalho realizado pelo importante crítico literário belga, durante quarenta anos, um dos responsáveis – imperdoável crime – pelo surgimento do desconstrucionismo - o inimigo da vez a abater -, teria uma relação íntima com o uso por ele, por todo este período, de uma máscara, de um simulacro de si mesmo, que encobria o seu verdadeiro rosto de antissemita e de simpatizante, em certo momento, do nazismo. Por isso ele detestaria a ideia de que existiriam realidades e verdades para além das máscaras, que existiria um mundo real e político, para além dos textos17. Mais uma vez, o inquisidor-mor, o caçador de bruxas, conseguiria desqualificar toda uma obra pondo em suspeição o homem, o caráter, a atitude moral do autor. O idealismo de Paul de Man, segundo a leitura de Ginzburg, sua recusa da realidade, sua recusa da história nasceria da má-consciência, da vergonha de ter publicado entre 1940 e 1942 uma série de artigos antissemitas no Le Soir, um diário colaboracionista belga. Nenhuma palavra se diz sobre o rompimento de Paul de Man com estas ideias, a perseguição política que passa a sofrer, levando-o, inclusive, ao exílio nos Estados Unidos. O mesmo autor que omite uma boa parte da biografia de Paul de Man, o chama literalmente de mentiroso, por este ter dito provir da esquerda e da Frente Popular, relacionando a isto o fato do crítico belga dizer que no ato da leitura verdade e mentira estão inextricavelmente entrelaçados18. Ginzburg tem predileção por este tipo de inferências, em que um certo detalhe da vida do autor é imediatamente

15 GINZBURG, Relações..., p. 22.16 Ver: ARISTÓTELES. A retórica. 7. ed. Madrid: Alianza, 2007.17 GINZBURG, Relações..., p. 33.18 GINZBURG, Relações..., p. 33.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 55

articulado a uma frase sua, solta e fora de contexto, sem nenhuma mediação, e que explicitaria a verdade de seu pensamento. É com um misto de prazer e certo ar de vingança que Ginzburg diz ter agora revelado o segredo de Paul de Man19. Faz da delação do que seria o traço biográfico escondido e vergonhoso, que resumiria e seria a verdade de toda a vida de um homem e de toda a sua obra, atitude digna de qualquer dedo-duro – como os extremos políticos tendem a se parecer em suas práticas -, o único argumento para acertar um golpe de morte no que seria a perigosa e suspeita posição antirreferencial da retórica, defendida pelo autor, e que estaria agora contaminando a historiografia. Portanto, podemos concluir daí que todo historiador que não partilhe das posições do historiador italiano, deve ser investigado, sua vida deve ser submetida a uma devassa, pois algo de muito sórdido deve esconder. De um lado teríamos os puros e os invictos, do outro os maculados e pecadores. Não há dúvida que o nosso historiador nasceu no país em que reside o Papa. O caso de Paul de Man – caso tanto lembra a medicina, quanto o direito ou a psiquiatria – como o de Sarah Kofman, uma autora judia que na infância fora perseguida e que havia publicado um livro sobre Nietzsche e a metáfora, no início dos anos 70, vindo depois a se suicidar, seriam reveladores dos motivos que chama de extracientíficos que levaram a uma nova leitura de Nietzsche em meados dos anos 60 – já que científicos não apresenta nenhum – e os apresenta, com visível deleite, como desforras da realidade contra aqueles que a reduziriam a mero efeito narrativo ou retórico, se a realidade assombrava a obra de Paul de Man metaforicamente, no caso de Sarah, a judia, a mártir - lugar clássico em que vão aparecer os judeus na obra do historiador italiano –, a presença da realidade foi literal e homicida20. O que chama de relativismo cognitivo, político e moral destes autores e, por extensão, de todos aqueles que neles se inspiraram, nasceria de “inconfessáveis ressonâncias autobiográficas”, que o historiador italiano faz questão de fazer serem confessadas21. Como um inquisidor, juiz ou delegado de polícia dedicado, Ginzburg obriga os seus inquiridos, aqueles suspeitos dos crimes de ceticismo, relativismo, narrativismo, irracionalismo, pós-modernismo, a confessarem os crimes ainda mais hediondos que estas posições acobertam. Horror! Horror! Afinal descobrimos a verdadeira face de todos: antissemitas, fascistas, nazistas, anticomunistas. Só faltou dizer ateus22.

Mas a estratégia judiciária, a estratégia inquisitorial, que preside as querelas historiográficas sustentadas por Carlo Ginzburg, nunca se explicitou de forma tão contundente como em seu enfrentamento ao espantalho mor do momento na historiografia: o espectro da literatura e da ficção. Nunca se excedeu tanto como na caçada à bruxa narrativista, encarnada pelo crítico literário norte-americano, Hayden White e, de vez em quando, por outro fantasma ausente, o semiólogo Roland Barthes. Para acompanharmos, passo a passo, o uso que Carlos Ginzburg faz do que chamarei de estratégias da delação e da suspeição na escrita de seus textos de crítica historiográfica, vamos tomar como objeto de análise um texto significativamente intitulado: O extermínio dos judeus e o princípio da realidade23. Inicia o texto, no 19 GINZBURG, Relações..., p. 34.20 GINZBURG, Relações..., p. 35.21 GINZBURG, Relações..., p. 36.22 A exclamação constitui-se nas últimas palavras de Kurz, o protagonista de O coração nas trevas de Joseph Conrad, citado por Ginzburg na p. 37 de Relações de Força.

23 GINZBURG, Carlo. O extermínio dos judeus e o princípio da realidade. In: MALERBA, Jurandir. A História escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006, p. 211-232.

56 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

qual vai enfrentar o autor que se apóia na teoria dos tropos lingüísticos para analisar as obras de historiadores e filósofos da história, lembrando um topos ou motivo comum na cultura europeia, desde a Idade Média, o topos do complô hebraico. Em 16 de maio de 1348, a comunidade hebraica de La Baume, uma cidadezinha provençal, foi exterminada, acusada de difundir a Peste Negra lançando veneno nos poços, nas fontes e nos rios. Houve apenas um sobrevivente do massacre, que tratou de registrá-lo em poucas linhas escritas em um exemplar da Torá. Segue então citando exemplos de massacres a judeus, em momentos anteriores ou posteriores a este acontecimento, onde o tema do complô aparece como motivação para o desencadear das hostilidades por parte da população cristã. Os judeus, em certas ocasiões, aparecem associados a outras categorias consideradas suspeitas ou perigosas, como leprosos e muçulmanos. Na crônica escrita, no século XIV, por um monge anônimo do convento de Saint-Denis, sobre o suicídio coletivo de quarenta judeus numa torre de uma localidade perto de Vitry-le-François, Ginzburg identifica o que seria um topos historiográfico, já que o episódio, que conta ainda com a figura de um jovem que ao ser o último que deveria realizar o gesto extremo, ao invés disso, se apodera do ouro de todos os mortos e ao tentar fugir é apanhado e morto, apresenta muitas afinidades com duas passagens das Guerras Judaicas, do historiador Flavius Josefus. A obra de Josefus, bastante conhecida na Idade Média, poderia ser a fonte do relato feito pelo monge de Saint-Denis, que teria apenas reproduzido um topos historiográfico, que também parecia ter se reproduzido no relato feito pelo próprio Josefus do célebre assédio de Masada, a desesperada resistência dos judeus reunidos dentro da fortaleza, seguida do suicídio coletivo, também aqui com duas exceções: duas mulheres. Mas o que quer demonstrar Ginzburg com a narrativa destes episódios? Sua primeira conclusão é a de que, embora o monge anônimo, em seu relato, pudesse estar reproduzindo o topos encontrado no livro de Flavius Josefus, este fato não nos autorizaria a dizer que o suicídio coletivo de judeus não ocorrera verdadeiramente. Ou seja, Ginzburg quer demonstrar que um relato, mesmo sendo tropológico – e me pergunto qual não seria -, mesmo partilhando deste aspecto com a literatura, com obras de ficção, pode se referir, pode narrar fatos que efetivamente ocorreram, conclusão com a qual, creio, todos concordam, mesmo aqueles que ele acusa de serem céticos. Estes apenas chamariam a atenção para o fato de que o topos ou os tropos dão forma ao que aconteceu, dando um sentido particular a eles, construindo-o de uma dada forma, impossibilitando que recuperemos o evento como efetivamente aconteceu, tarefa impossível até para quem fez parte dos eventos, que tende a ter uma visão parcial e limitada do que está ocorrendo e que, em casos como estes, talvez não tenha nem tido tempo de entender o que se passava, antes que fosse morto.

O texto segue então com um item em que convoca o que podemos dizer que seria o topos nuclear em toda sua obra, para acompanharmos o tema do texto, sua verdadeira obsessão: o extermínio de judeus pelo nazismo e a sua negação por parte da historiografia dita “revisionista”. É importante que retenhamos o nome deste primeiro inimigo a combater, pois disto se tirará consequências muitos interessantes ao longo do texto: “os revisionistas” - Ginzburg e suas categorias sempre precisas-. Ele lembra que outro historiador judeu, Pierre Vidal-Naquet, já havia estabelecido o mesmo liame que ele agora tentava fazer, entre os massacres de judeus ocorridos na

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 57

antiguidade e narrados por Flavius Josefus e o extermínio promovido pelos nazistas no século XX. Mas, para Ginzburg o que é importante não é apenas a analogia entre os eventos, mas uma questão de método que eles levantam para os historiadores: a questão do testemunho. Nos dois episódios narrados por Josefus e pelo monge anônimo de Saint-Denis, após o massacre, restam sempre duas testemunhas, o que estaria de acordo com a tradição jurídica tanto hebraica quanto romana, que exigiam o relato de duas testemunhas para que fosse reconhecida uma questão em juízo. Ginzburg lembra, no entanto, que o discurso historiográfico obedece a regras e fundamentos epistemológicos que nem sempre coincidem com aqueles que presidem o direito. Um historiador nunca recusaria um testemunho, mesmo sendo solitário. Procuraria, sim, estabelecer o valor do testemunho submetendo-o a uma série de confrontos, ou seja, procuraria construir uma série que incluísse ao menos dois documentos. Ou seja, em poucas linhas saímos do uno para a exigência do duplo que ainda há pouco havia sido negada e a diferença em relação ao direito se desvanece. Após afirmar que o direito e a história possuem regras e fundamentos epistemológicos distintos, chegando a dizer que estaria fora de moda a analogia entre o historiador e o juiz que define a validade dos testemunhos, recua de forma significativa para dizer que a conexão entre prova e verdade, preocupação nuclear dos juízes, dos tribunais, dos inquisidores, do direito, continua sendo uma questão que a história não pode facilmente colocar de lado. Significativamente Ginzburg associa juiz, tribunal, testemunho, prova, verdade e historiografia. Talvez venha daí o seu gosto pelos julgamentos e sentenças, como veremos a seguir.

A seguir num breve item que se inicia novamente com a convocação de Pierre Vidal-Naquet e seu combate aos “revisionistas”, que agora ganham um rosto e um nome, Robert Faurisson vai tratar do que seria a descoberta por parte dos historiadores de que eles escrevem, entre aspas. Naquet, que perdeu a mãe em Auschwitz em 1944, teria razões morais e políticas para se preocupar com o revisionismo acerca do Holocausto e, embora reconhecesse em carta escrita a Luce Giard, incluída num volume em memória de Michel de Certeau, a contribuição que este dera para arranhar a inocência orgulhosa dos historiadores quanto ao fato de que o historiador escreve, produz um texto, constrói uma narrativa num dado espaço e tempo, sendo ele próprio produto deste lugar espaço-temporal, alerta para a necessidade, justamente por causa da possibilidade de se vir a afirmar que o extermínio de judeus e as câmaras de gás não existiram, não foram fatos, de se preservar a velha noção de realidade, no sentido evocado por Ranke no século XIX, “aquilo que de fato aconteceu”. Cita então trecho da carta de Naquet em que este fala que De Certeau era o antípoda de Faurisson, o revisionista, mas a distinção entre os dois é feita em termos que parecem não ter chamado a atenção de Ginzburg, De Certeau seria o antípoda de Faurrison, porque este último seria um materialista que, em nome da realidade mais tangível, tiraria a realidade de tudo que toca. Ao contrário do que se poderia esperar, e do que vai argumentar o próprio Ginzburg ao longo do texto, Certeau, o narrativista, é contraposto a Faurrison, o materialista e, no entanto, é o materialista, o que fala em nome da realidade, não aquele que reconhece a presença da linguagem, o irrecorrível caráter discursivo do que nomeamos de real, que nega a realidade da existência do extermínio dos judeus. Naquet continua afirmando que Certeau ficara abalado com os delírios de

58 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

Faurisson e lhe escrevera uma carta onde afirmava estar convicto da existência de um discurso sobre as câmaras de gás, de que tudo passava pelas palavras, mas que isto não queria dizer que não existia algo para além ou para aquém das palavras, que se poderia chamar, se assim quisesse, de realidade. Naquet termina fazendo a pergunta: sem esta realidade como se faz para distinguir romance de história? Como se Certeau ou os chamados narrativistas tivessem alguma vez dito que a realidade, enquanto um conjunto de eventos empíricos, não tivesse existência. O equívoco é pensar que a realidade se esgota na dimensão empírica dos eventos; esta é caótica e só se torna evento, tal como nós humanos entendemos, quando é organizada, nomeada, significada pela linguagem. Não basta que o extermínio de judeus tenha existido na “realidade”, na empiria, isto não garante sua existência, haja vista que enquanto ocorria, durante a guerra, muita gente o ignorava e, portanto, para elas não existia. Se Ginzburg e Naquet travam uma batalha discursiva em torno da existência ou não dos fatos ocorridos com os judeus, é porque, justamente, é aí no plano da linguagem, na luta em torno da verdade, que a “realidade” de um fato se estabelece e se constrói. O Holocausto existe, como o próprio texto de Ginzburg nos permite concluir, porque houve testemunhos, eles foram registrados, falados, contados, narrados. Não é, portanto, a existência ou não dos fatos concretos que difere literatura e história. A literatura pode se fazer a partir da “realidade” ou tratar de “fatos reais”: o que diferencia estes dois discursos é que eles obedecem a regras diferentes de produção.

A pergunta de Vidal-Naquet serve para introduzir o personagem que será então objeto de análise: Hayden White, de cuja obra, nos Estados Unidos, brotaria inevitavelmente a pergunta pela diferença entre romance e história. Depois de nos informar que as diferenças entre as práticas historiográficas de White e Certeau eram óbvias e, talvez, por isso, sobre elas nada vai dizer, ficamos sabendo que há uma certa convergência entre as obras Metahistória e A Escrita da História, destes dois autores, convergências que também ficamos sem saber quais são, a não a ser, possivelmente, que ambas teriam contribuído para que o historiador descobrisse que escreve, o que, convenhamos, é bem pouco. Para compreendermos plenamente a contribuição de White para o debate historiográfico, que devemos saber qual é de antemão, pois não se dá o trabalho de informar, Carlo Ginzburg escolhe como estratégia de investigação tratar de sua biografia intelectual. Como de costume, o historiador italiano, ao invés de enfrentar os textos, os argumentos, discutir os conceitos, a abordagem, as ideias, a prática historiográfica do autor norte-americano, escolhe como caminho “metodológico”, para fazer a crítica historiográfica à contribuição de Hayden White, tratar de sua pessoa, de sua biografia intelectual que, como veremos, vai muito além disso. Como um juiz, um inquisidor ou um bom delegado de polícia de costumes, resolve investigar a vida pregressa, o passado de White. Passa então a investigar o acusado dos graves crimes de ter acabado com a diferença entre história e literatura e, pior ainda, de ter liquidado com a realidade.

Como se faz com todo aquele que está sendo acusado de alguma conduta criminosa, a investigação se inicia pela procura de seus parceiros, de seus sequazes. Iniciando o inquérito historiográfico vamos surpreender White, no ano de 1959, em péssimas companhias, dedicado a apresentar ao público norte-americano a tradução de um livro escrito por um dos mais estreitos sequazes de Croce – este

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 59

linguajar de delegacia de polícia é do próprio Ginzburg. Não é, como poderiam supor, caros leitores, uma metáfora deste autor “pós-moderno, que vos fala –, Carlo Antoni, onde White, pasmem, se refere ao ensaio de juventude de Croce, A história incluída sobre o conceito geral de arte, como uma contribuição revolucionária. Nesta apresentação, onde expressa um entusiasmo pelo texto de Croce que irá matizar mais tarde, ao tratar do autor no seu livro Metahistória, já apareceriam alguns elementos da obra sucessiva de White: o interesse pela construção de uma ciência geral da sociedade e o interesse pelo lado artístico da história. Embora tenha começado sua vida de descaminhos como um sequaz de Croce, White vai lentamente dele se afastando, mas o faz, por discordar do mestre, ao qual continua elogiando como o historiador mais dotado entre todos os filósofos da história do século passado e por sua atitude “irônica”, por não concordar, justamente, com o seu conceito de arte como uma representação literal da realidade, ou seja, por sua postura realista. Mas, se fôssemos investigar também o pensamento de Croce, descobriríamos que seu idealismo, crime dos crimes, se deve à influência sobre ele exercida, por uma convivência estreitíssima de vinte anos de vida intelectual com Giovanni Gentile. Espero que você leitor não perca nenhum lance desta trama que estamos começando a desvendar: os personagens são obscuros, mas a luz da razão começa a cair sobre eles. Continuemos. Croce ao traçar um quadro retrospectivo de sua vida intelectual chega a confessar que o reconhecimento da identidade entre história e filosofia se deu sob o impulso dos estudos de Gentile, a quem chama, isto é fundamental, de meu caríssimo amigo. No entanto, mais tarde as “intrínsecas ambigüidades de identidade”, a pretensa convergência entre as posturas de Croce e Gentile – os criminosos costumam ter dificuldade com a identidade, costumam comumente fraudá-la – “vêm a plena luz” – felizmente isto também costuma acontecer, a identidade falsa dos meliantes terminam vindo a luz, graças a habilidade de algum investigador brilhante. Enquanto Croce se move na direção de dissolver a história na filosofia, Gentile se move na direção oposta, recusando a identidade entre historiografia e história e identificando o historicismo como uma metafísica histórica. A separação entre os dois intelectuais italianos se aprofunda ainda mais quando Gentile reage a um ensaio escrito por Croce, intitulado Anti-historicismo, ensaio polemicamente antifascista. Esta digressão que sintomaticamente se inicia com White entre os sequazes de Croce para terminar com as relações entre Croce e Gentile azedadas pelo fascismo, serve para Ginzburg concluir a primeira parte do inquérito sobre os antecedentes de White, e apresentar suas primeiras conclusões, suas primeiras certezas: o desenvolvimento intelectual de White só pode ser entendido se levarmos em conta suas relações, mais do que suspeitas, com o neo-idealismo italiano – outra categoria de extrema clareza; na abordagem tropológica proposta por White em Trópicos do Discurso, ainda se podem encontrar traços do pensamento de Croce, como sua crítica ao realismo e a afirmação de que os discursos constituem o objeto que pretendem descrever e analisar objetivamente.

Ginzburg, indo então à obra de White, identifica outros parceiros do autor quando se trata de professar esta postura neo-idealista, esta “posição subjetivista”. O que seria uma posição subjetivista? Ainda não sabemos e nem ficaremos sabendo, neste autor que prima pela definição dos conceitos que utiliza - será que para os inquisidores as bruxas assumiam uma posição por demais subjetivista? - O ogro de sempre está

60 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

lá, Michel Focault, a quem White, significativamente teria decodificado por meio do pretenso pai fundador do neo-idealismo italiano: Giambattista Vico – manter a lógica da suspeita, de que tudo é possivelmente não verdade, embora o autor seja um defensor da verdade, da realidade, seja lá o que isso significa, é fundamental para o investigador - e não se questione que a precisa e preciosa categoria de subjetivista serve para nomear tanto autores do final do século XX quanto do inicio do XVIII, sem nenhum problema, embora o crítico seja historiador e se auto-nomeie um paladino em defesa da virgindade da donzela historiográfica ameaçada de ser violada pelos sequazes do subjetivismo. Ou seja, quedam identificados mais dois cúmplices de White na empresa de dissolução da diferença entre realidade e discurso, história e literatura: Foucault e Vico – que péssimas companhias. Mas não para por aí, porque este bando parece contar com muitos adeptos: a afirmação de White de que os discursos criam os seus próprios objetos – e como não fica claro para estes energúmenos, de uma vez por todas, que o objeto embora seja do discurso existe fora dele e antes dele, já pronto, só para que o discurso vá lá e se apodere dele – parece reverberar não só a insistência de Croce na existência de uma linguística geral combinada com o subjetivismo radical de Gentile, segundo quem a historiografia cria seu próprio objeto, a história, – agora sabemos que pode haver dois subjetivismos, um radical e outro não radical, a trama se torna cada vez mais complexa, novos personagens entram em cena, sempre muito bem descritos e definidos, não se percam leitores, este romance policial vai longe. Nossa eu disse romance, novela? O italiano vai me matar –. Esta afirmação também reverberaria as palavras de um outro personagem da mesma camarilha narrativista, o semiólogo francês Roland Barthes, palavras usadas, e isso é mais um indício, um sinal contra White, como epígrafe de um de seus escritos: o fato não tem mais do que uma existência linguística – meu Deus, como pode dizer isto? É claro que os historiadores podem pegar e apalpar todos os dias os corpos carnudos dos fatos – ou seja, nosso detetive - não terá sido mera coincidência a relação estabelecida entre o método indiciário do historiador e do detetive Sherlock Holmes em texto famoso do historiador italiano -, pode concluir exultante, as leituras feitas de Barthes, no inicio dos anos oitenta, reforçou um “esquema preexistente” – continuamos em meio ao uso de metáforas policiais, embora estejamos lendo um texto crítico em relação ao caráter tropológico da linguagem historiográfica.

Mas eis que chegamos ao momento crucial da investigação acerca de White, o momento mais difícil para nosso historiador-detetive: definir o papel que Gentile teve nesta trama diabólica, pois, pelo que ele sabe White nunca citou os escritos de Gentile, nem analisou seus escritos. Mas, é muito fácil pressupor, diz Ginzburg, – eu não sabia que historiador podia fazer isso, pressupor não está no campo da imaginação e, portanto, no campo da ficcio – que um estudioso do neo-idealismo italiano como White tenha familiaridade com a obra de Gentile. Preste atenção leitores a este passo da argumentação: não se pode dizer que White leu ou estudou Gentile, apenas se pode pressupor sua familiaridade com o que seria a sua tradição filosófica. Mas como veremos logo a seguir no texto a pressuposição, a suspeita vira verdade e White é acusado de ser um sequaz de Gentile em suas posições políticas. Este tipo de construção de tramas é muito comum quando se quer acusar alguém sem provas, as provas tão reivindicadas pelo autor italiano, ela é bastante comum em

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 61

regimes totalitários de todos os matizes ideológicos. Mas continuemos acompanhando a argumentação do texto, porque agora, Ginzburg chega onde queria chegar desde o princípio: nos informa da estreita relação de Gentile com o fascismo, até a sua trágica morte, de sua adesão ao idealismo de Hegel através de uma leitura original dos escritos filosóficos do jovem Marx. Teria interpretado erroneamente o conceito de práxis de Marx, considerando-o um conceito que implicava a identidade entre sujeito e objeto, enquanto o Espírito criaria a realidade. Esta apresentação de Marx travestido em um filósofo idealista - troca de vestes é um elemento essencial de qualquer trama policialesca – teria exercido um peso considerável na vida intelectual italiana. Até o insuspeito Gramsci ecoava, ao usar a expressão “filosofia da práxis” ao invés de materialismo histórico um ensaio de Gentile a respeito de Marx, onde este eliminava o materialismo do pensamento de Marx. À luz desta leitura de esquerda da obra de Gentile, da contiguidade de sua filosofia com o futurismo, poderíamos entender um manifesto pela nova historiografia em chave modernista escrito por White em 1966, que atacava o que seriam as ortodoxias historiográficas liberais ou marxistas, em que o subjetivismo extremo – surge agora mais um subjetivismo, o extremo. O que será que o caracteriza? Não perguntem estas coisas incômodas ao nosso crítico de historiografia. Ele não é filósofo, é historiador, pode investir assim como um miura furioso no campo filosófico como fez Foucault no campo historiográfico – tinha um sabor radical, numa situação em que desejo era uma palavra de esquerda – e as palavras se classificam assim, que interessante – e realidade era uma palavra de direita. Leitores, perdoem a sofisticação do argumento, pertence a Ginzburg, não ao narrativista que vos fala.

Continuando a investigação, indícios mais incriminadores são descobertos contra o subjetivista radical, extremo, o intelectual que se pensava de esquerda por usar a palavra desejo num texto historiográfico: ele costuma ter atitudes de fuga da realidade – o que evidentemente é monopólio dos subjetivistas -, atitudes avaliadas pelo nosso investigador, agora travestido, ele sim, de psicólogo forense, como sendo simplistas, quando não suicidas; teria fascínio pelas atitudes céticas e o pior dos crimes: se pronunciou contra as revoluções, sejam aquelas do alto, sejam aquelas de baixo – será que as revoluções de baixo têm alguma coisa a ver com a palavra desejo? White associaria, equivocadamente ceticismo, relativismo – o que será isso, vocês ainda insistem em perguntar - e tolerância política. Mas esta autodefinição de White passa então a ser comparada com as posturas de Gentile, e ficamos perplexos perguntando o porquê. Se ele não conhecera, lera ou estudara Gentile, por que suas posições políticas ou teóricas teriam que ser comparadas com as de Gentile? Logo ficaremos sabendo. Passa então a comparar White com Gentille: a polêmica de Gentille com o positivismo não levava a posições céticas, mas metafísicas, Gentile jamais foi um relativista, ao contrário, foi um homem que auspiciou um empenho religioso tanto no plano filosófico, como no plano político e naturalmente jamais teria teorizado sobre a tolerância política, como testemunharia a apologia feita por ele do fascismo, mesmo nos seus aspectos mais violentos como o squadrismo, demonstrado ainda por sua definição do porrete como força moral feita em um comício em 1924.

Agora, feita a minuciosa investigação, ouvidas ou lidas todas as testemunhas, mesmo aquelas que nunca estiveram na cena do crime, como Gentile, Ginzburg,

62 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

como qualquer acusador, como qualquer juiz ou inquisidor pode dar o veredicto acerca das motivações secretas, escabrosas, das posições céticas, pós-modernas, narrativistas, subjetivistas de White. Elas não estão na sua obra ou no seu pensamento, que nem merecem análise, mas na sua vida, nas suas posições políticas e morais. Como se retomasse o topos do complô, com que iniciou o texto, e que vitimou milhares de judeus, ao longo da história, o historiador judeu e de esquerda, descreve um verdadeiro complô armado por pensadores idealistas, neo-idealistas e fascistas para destruir a cientificidade da história, questionar o princípio da realidade, pois assim poderiam continuar perpetrando seus crimes, sem temerem o testemunho da história, sem temerem a verdade histórica, a realidade histórica que um dia viria à tona pelo trabalho paciente e diligente de um historiador materialista, realista, científico, objetivista, verista, factualista – desculpem a lista de conceitos sem definição, são apenas os possíveis antípodas dos lugares de sujeito imaginados por Ginzburg – tal como faziam agora os revisionistas, que ameaçavam apagar a memória do Holocausto.

Se vocês leitores acompanharam o argumento do texto, ele é de uma clareza, de uma limpidez, de uma precisão, surpreendentes: White leu Croce, Croce leu Gentile, Gentile foi fascista; embora não se saiba se White leu Gentile, como estava familiarizado com o neo-idealismo italiano através de Croce e seus sequazes e estes com certeza leram Gentile e este além de fascista foi simpático ao modernismo, logo como White também escreveu textos simpáticos ao modernismo e a Croce, ele é fascista. Isto equivaleria a dizer leitores que - duvidando um pouco da inteligência e argúcia de vocês, que não devem ser tão pronunciadas como as de Carlo Ginzburg -, partindo dos indícios que ele mesmo forneceu, poderíamos pressupor – se isto é permitido – ou concluir através de insinuações, como faz Ginzburg e como costumam fazer todos que querem caluniar alguém sem correr o risco de ter que, aí sim, comparecer aos tribunais para prestar contas do que disse: Gramsci leu Gentile, Gentile leu Marx, Ginzburg leu Gramsci e diz ter retornado a ler Marx, como Ginzburg leu Gramsci que leu Gentile, que foi adepto do fascismo, logo não só Gramsci mas o próprio Ginzburg são também suspeitos de fascismo até provem ao contrário. Ou melhor, ainda: Stalin leu Marx, Pol Pot leu Stalin que leu Marx, logo Marx é responsável pelo genocídio no Camboja cometido por Pol Pot e seus sequazes do Khmer Vermelho ou, no mínimo, pelos crimes de Stalin. Isto é o que se chama lógica dedutiva. Como vemos, ela resulta num primor de análise quando a aplicamos a história, quando a utilizamos para interpretar indícios e sinais deixados pelo passado.

Termina seu inquérito, o seu arrazoado, tentando corrigir White e dar a ele lições sobre a tolerância e a defesa do direito à discordância, tudo o que ele próprio não parece exercitar ao longo de seu artigo. E conclui, com palavras que considero reveladoras, elas dão a pensar mais sobre ele mesmo, do que estaria disposto a aceitar: “quando as divergências intelectuais e morais não são coligadas em última análise a verdade, – ou seja, só existe uma verdade e Ginzburg parece estar de posse dela- não há nada a tolerar”, - daí talvez advenha o tom de intolerância e de caça às bruxas que se espalham pelos seus artigos quando se trata de discordar de outros historiadores. Embora atribua a White, por inspiração de Gentile, uma concepção moral da verdade que, apoiando-se na ideia de eficácia, seria semelhante a do cacetete como força moral, é ele que não cansa de distribuir bordoadas em

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 63

todos aqueles que julga não estar de acordo com a verdade e com a moral, por não estarem de acordo com sua visão ou versão da verdade e sua concepção de moral. Se isso for ser tolerante, o que será a intolerância?24 Que eu saiba, a tolerância não era algo que costumava preocupar os inquisidores quando estes perseguiam bruxas e hereges: o fato de estarem do lado da verdade, da moral e do bem justificava e deixava a consciência tranquila em relação a tudo o que faziam. Quando a crítica historiográfica se apóia em tais pressupostos, quando se torna mera avaliação moral, em termos de bem e de mal, nós sabemos que a única coisa que dela não podemos esperar é o esclarecimento de ideias e conceitos, ela não passa de combustível para a fogueira das vaidades que ameaça queimar a todos os hereges que venham a discordar dos sacrossantos dogmas reinantes.

***

24 GINZBURG, O extermínio..., p. 224.

RESUMO

A formação de Carlo Ginzburg como historiador esteve intimamente ligada à temática da bruxaria, da feitiçaria, da caça às bruxas. O presente artigo desvenda o interesse do historiador italiano por esta temática, além de representar a abordagem de elementos da cultura popular e um esforço para trazer para o interior da história a presença das classes subalternas, o seu cotidiano e modos de viver e pensar, premissas políticas e acadêmicas condizentes com o marxismo, postura política e teórica que herda de seus pais. Essa temática também se relaciona com a vida de um historiador de descendência judia, que teve sua vida marcada pela morte do pai, graças à intolerância do fascismo.

Palavras Chave: Teoria; Historiografia; Inquisição.

ABSTRACT

The formation of Carlo Ginzburg as an historian was closely linked with witchcraft, sorcery and witches hunting thematics. This paper intends to reveal this Italian historian interest for these subjects, that also represents the research of popular culture elements and an effort to bring to History the low classes, its daily life and ways of thinking and living, politics and academics premises that agrees with Marxism, a political and theoretical position inherits of his parents. This thematic it’s also related with a Jewish descent historian life, signed for his father death, caused by Fascism intolerance.

Keywords: Theory; Historiography; Inquisition.

64 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 65

INDIVÍDUO E SOCIEDADE NA ESCRITA DA HISTÓRIA:

O PRIMADO DO SOCIAL NA HISTORIOGRAFIA DOS ANNALES

Raimundo Barroso Cordeiro Jr.1

A escrita da história enquanto relato das ações realizadas pelos sujeitos do poder político e das atividades desenvolvidas pelo Estado no cotidiano das sociedades foi, por quase todo o século XIX, tido como único modelo possível de preservação da memória de maneira científica daquilo que realmente importava aos homens do presente. Seguindo este raciocínio, acreditava-se que somente a história política permitia aos homens comuns, os cidadãos do Estado, apropriarem-se das descontinuidades no tempo, apreendendo os acontecimentos e seus encadeamentos em uma longa sucessão de efeitos de toda ordem.

A partir do século XIX na Europa, principalmente na Alemanha e na França, a história dos fatos políticos foi apresentada como a única possibilidade de realização científica da história, na medida em que os “fatos históricos” que se dão ao historiador como fonte confiável, são justamente aqueles que foram protagonizados pelo Estado, retratando com fidelidade a história daquilo que “realmente aconteceu”.

No início do século XX, entretanto, esse esforço para garantir objetividade ao conhecimento histórico, limitando-o à história política, não mais atendia aos interesses e às expectativas intelectuais das novas gerações de historiadores. Além disso, os novos historiadores percebiam com certa preocupação, sem deixar manifestar certo otimismo, o avanço das ciências sociais e ao mesmo tempo a defasagem temática e teórica da história. Este fato caracteriza um contexto de “crise do saber histórico”, posto que aos historiadores da idade da democracia e das massas, não mais satisfazia uma historiografia centrada na exaltação do Estado e nas suas formas de expressão.

Sendo assim, a discussão a propósito desse paradoxo se dá pelo anúncio da “pobreza” temática e teórica daquela modalidade de história, sugerindo-se uma renovação na prática dos historiadores a partir da qual se reabilitasse sua credibilidade epistemológica. O reconhecimento do estado de decadência teórica e metodológica do tipo de história que se pronunciava através do discurso narrativo, personalista, cronológico e descritivo, pode ser acompanhado pelos historiadores franceses a partir do debate promovido pela sociologia durkheimiana, apontando para os equívocos da história historizante através da síntese crítica elaborada por François Simiand. No artigo “Méthode Historique et Sciences Sociales” publicado na Revue de Synthèse Historique em 1903, Simiand alerta contra ídolos da tribo dos historiadores, quais sejam, o cronológico, o individual e o político. Segundo o autor, estes ídolos agiam como senhores da historiografia, escravizando os historiadores à história política. Dessa forma, a sociologia de E. Durkheim serviu de inspiração e base crítica a esses historiadores no confronto contra a respeitabilidade da história metódica2.

1 Doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas. Professor Associado do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba, onde leciona Teoria da História. Atualmente coordena o PPGH-UFPB.

2 Sobre os objetivos programáticos da história metódica ver: MONOD, Gabriel. Introduction: du progrès des Études historiques en France depuis le XVIe. siècle. Revue Historique, Paris, Librairie

66 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

Neste contexto de reflexão sobre as possibilidades e o conteúdo pretensamente científico da disciplina histórica, emerge um movimento que intensifica o debate a respeito das características e das virtualidades da história como conhecimento sistemático das experiências coletivas vividas no passado. O aprofundamento dessas ponderações se dá de maneira categórica entre esses historiadores que, embora herdeiros da fortuna erudita que se consolidou durante todo o século XIX, desconfiavam da consistência epistemológica da historiografia hegemônica. Por isso, levantaram questões sobre a sua validade e coerência a partir dos esforços metódicos de inclusão da história no rol das ciências.

Destaca-se, nesse cenário de polêmicas, um grupo de historiadores formados sob a influência das mais diversas experiências intelectuais, absorvendo as lições das ciências inovadas, tais como a sociologia, a psicologia e a geografia, e que se propuseram à ousadia de estabelecer um novo paradigma para o conhecimento histórico. Esses historiadores e demais cientistas sociais, demarcaram suas posições a partir das diversas publicações que foram surgindo desde o fim da segunda metade do século XIX e proliferaram durante todo o XX.

Como crítica e alternativa à história política dos grandes personagens, dos nomes próprios, das datas e dos feitos do Estado, a história social assume como premissa teórica e objeto de estudo o destino coletivo das massas, considerando-o mais relevante e significativo que a história centrada nos indivíduos, sejam eles reis, líderes políticos ou heróis de toda ordem. Os começos deste tipo de cultura historiográfica podem ser observados nas formulações de historiadores e juristas a partir do século XVI, como as primeiras manifestações em busca de uma histoire parfeite e de uma histoire accomplie3, quando as crônicas medievais e a história da vida dos reis foram questionadas e se pensou em substituí-las por uma história geral dos costumes, dos modos de ser e das tradições de uma civilização.

Não se poderia, é certo, silenciar no que diz respeito aos progressos da erudição e da crítica, não mais do que o apelo lançado por um certo número de juristas franceses (como Jean Bodin e Lancelot de La Popelinière) à busca de uma “história perfeita” que englobasse todos os aspectos da evolução humana. Mas há uma distância muito grande entre os projetos e a realização. Na França, como na Itália, a história humanista permaneceu, o mais das vezes, um relato linear de que os príncipes, os grandes e os guerreiros são os principais, senão os únicos atores.4

De certa maneira, essa orientação teórica e metodológica vai se prolongar até o século XVIII, com grande parte dos filósofos iluministas, tais como Montesquieu e Voltaire, esforçando-se para escrever um tipo de história que fosse muito mais além da história dos feitos pessoais de personalidades trans-históricas. A ênfase na análise das peculiaridades dos povos e o ceticismo quanto ao acúmulo de informações

Germer Baillière et Cie., t. 1, jan./jun. 1876, p. 5-38.3 Cf. HUPPERT, George. L’idée de l’histoire parfaite. Paris: Flammarion, 1973; CAIRE-JABINET,

Marie-Paule. Introduction à l’historiographie. Paris: Nathan Université. 1994; CARBONELL, Charles-Olivier. Historiografia. Tradução de Pedro Jordao. Lisboa: Teorema. 1992.

4 LÉVÊQUE, P. História Política. In: BURGUIÈRE, André (org.). Dicionário das Ciências Históricas. Tradução de Henrique de Araujo Mesquita. Rio de Janeiro: Imago, 1993, p. 381.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 67

factuais, caracterizou o pirronismo histórico dos pensadores do período5. Para isto, narravam subsidiariamente os fatos de maneira a enfatizar os costumes, as tradições, os comportamentos e as leis que constituíam as sociedades. Essa compreensão da história, embora muitas vezes confundida como um tipo de filosofia moral e com a filosofia da história, representou a tentativa de superação da história descritiva das excentricidades dos indivíduos, atribuindo-se a tarefa de compreender os fenômenos da vida social nas suas regularidades e recorrências.

Frente ao aprofundamento dos princípios da filosofia da ciência moderna e a cristalização do pensamento científico em ideologias cientificistas, a história teve de prestar contas de suas possibilidades explicativas no decorrer do século XIX, tendo em vista a sua posição absolutamente confortável diante das demais disciplinas da tradição humanística. Com sua representatividade social e prestígio institucional, tendo sido alçada à condição de moda intelectual e popular, fora-lhe cobrado um tanto de responsabilidade de ordem teórica e metodológica condizente com as exigências do contexto intelectual de valorização da positividade do conhecimento. Neste caso, vê-se a história se voltar para o modelo naturalista de ciência, buscando um tipo de objetividade que, supunham seus seguidores, apenas o relato orientado pela noção de fato histórico poderia lhe fornecer.

O século XIX, foi a belle époque da história: aquela da história considerada como ciência. E não uma ciência entre as outras, mas, ao lado da psicologia, como uma das ciências fundamentais do espírito. Pois todas essas tinham que se ocupar de suas produções: da linguagem, de literaturas, de religiões, da arte, tinham somente histórias particulares. A História, a História tout court e com maiúscula, devia lhe servir de guia e modelo. Esta foi uma bela época para os historiadores. Seu prestígio jamais foi tão alto, nem a opinião que eles tinham de si mesmo. Certamente se tomavam por espíritos puros, situados fora do tempo e do espaço. Praticando uma vorurteilsfreie Forschung6, e descrevendo, com toda objetividade, aquilo que realmente aconteceu. Quase todos acreditavam nos fatos históricos, duros como pedra, e que bastava extrair da carreira de arquivos para que, arrumados um a um e cimentados por leis bem estabelecidas do desenvolvimento, eles recompusessem a História, a verdadeira, e permitissem de compreendê-la em todos os seus detalhes.7

Apesar da suposta precocidade da história social, esta opção teórico-metodológica, após as tentativas de conquistar uma posição hegemônica, em grande parte do Século da ciência e da História, somente veio a ser retomada nos fins do século XIX, por ocasião do recrudescimento da questão social e dos avanços intelectuais do pensamento socialista. O longo período de inflexão da história idealizada e proposta pelos historiadores humanistas do século XVI, deveu-se, segundo Peter Burke, à

5 Cf. BAUMER, F. L. O pensamento europeu moderno - vol. I: séculos XVII e XIX. Tradução de Maria Manuela Alberty. Lisboa: Edições 70, 1990.

6 A tradução literal seria “pesquisa sem preconceitos”, o que deve se entendido por “conhecimento imparcial”.

7 POMIAN, Krzystof. L’histoire de la science et l’histoire de l’histoire. Annales ESC, Paris, 30e. année, n. 5, set./ out. 1975, p. 935-936.

68 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

iniciativa contrarrevolucionária levado a cabo pela historiografia de orientação rankeana8. Entretanto, para além dos efeitos reacionários da “história científica” de tradição alemã, pode-se dizer que o marxismo e sua preferência política pelas massas exploradas pelo capitalismo, acabou por influir consideravelmente nos destinos da história social que viria a se consolidar a partir da primeira metade do século XX. Dessa forma pode se verificar o abandono paulatino, embora contundente, da história enquanto relato personalista dos sujeitos privilegiados e excepcionais.

A história tradicional interessava-se quase exclusivamente por indivíduos, pelas camadas superiores da sociedade, por suas elites (os reis, os estadistas, os grandes revolucionários) e pelos acontecimentos (guerras, revoluções), ou pelas instituições (políticas, econômicas, religiosas...) dominados pelas elites. A história social, ao contrário, interessava-se pela massa da sociedade, que permanecia distante dos poderes, por aqueles que lhes eram submetidos. Essa orientação, aliás, não era reservada à pesquisa do passado. Ela também suscitava ciências novas do presente, nascidas de um mesmo interesse pelo que era dominado, desprezado pelas sucessivas elites, e também anônimo, coletivo, mas que tinha-se cada vez mais a tentação de reconhecer as forças reais.9

Nesse período de experiências modernizantes, tanto no que concerne às inovações científicas, filosóficas e estéticas, observa-se a existência de uma variedade de matrizes teóricas no universo intelectual francês, influenciando ou mesmo determinando os caminhos da discussão sobre as possibilidades de renovação da história. Neste caso específico, são representativas as contribuições de algumas linhas fortes do pensamento acadêmico, por exemplo, os avanços progressivos do materialismo histórico em direção à história social e os desdobramentos de uma história inicialmente econômica e posteriormente quantitativa e serial.

Essas alterações continham as ideias de projetos que visavam garantir à história uma legitimidade científica e consequentemente política, em um ambiente francamente desfavorável para as disciplinas ditas de tradição literária. Dentre estes, o movimento historiográfico dos Annales parece ter sido aquele que mais concorreu para a divulgação de novos valores a serem aplicados ao métier do historiador, considerando os desdobramentos de suas críticas à história política e às pretensões científicas da historiografia metódica.

Para combater a hegemonia da história política, os historiadores dos Annales começaram por criticar o modelo de escrita adotado pelos professores e intelectuais que deram conteúdo e notoriedade à Escola Metódica. Para substituir esse padrão historiográfico, os annalistes partiram em defesa de um tipo de história que fosse ao tempo aberta ao trabalho interdisciplinar e se orientasse por uma noção ampliada de documento histórico. Estes historiadores denominaram o seu projeto de história total, querendo com isso demarcar um território muito mais extenso para a pesquisa histórica, rompendo com os limites da histoire événementielle e de sua metodologia baseada na exclusividade dos documentos escritos oficiais. No lugar de uma história elitista dos 8 Cf. BURKE, Peter. A Escola dos Annales - 1929-1989: a revolução francesa da Historiografia.

Tradução de Nilo Odalia. São Paulo: Editora da Unesp, 1991.9 ARIÈS, Philippe. O Tempo da História. Tradução de Roberto Leal Ferreira. Rio de Janeiro: Francisco

Alves, 1989, p. 156.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 69

fatos políticos, os Annales propuseram uma história convertida em social, preocupada com todas as modalidades de experiência humana, visto que a história política:

[...] só tinha olhos para os acidentes e as circunstâncias mais superficiais: esgotando-se na análise das crises ministeriais e privilegiando as rupturas de continuidade, era a própria imagem e o exemplo perfeito da história dita factual, ou événementielle – sendo o termo aí evidentemente usado no mau sentido -, que fica na superfície das coisas e esquece de vincular os acontecimentos às suas causas profundas.10

O ideal de história total alimentado pelos fundadores dos Annales, parece dizer respeito à preocupação teórica de apreender em um processo de síntese a multiplicidade de experiências vividas no tempo histórico, considerado também múltiplo e variado. Isto significa dizer que ao abandonar as noções de progresso, linearidade, irreversibilidade, uniformidade, substituídas pelas ideias de pluridirecionalidade, multiplicidade, descontinuidade etc., a duração histórica somente pode ser assimilada se tomada na sua singularidade, o que permite formular uma compreensão total de seu sentido humano.

Em defesa desse projeto de história total, foi preciso investir contra a história historizante e a história acontecimental, criticando-as naquilo que consistia sua prática e sua ideia de conhecimento histórico. Denunciando, assim, a simples descrição dos acontecimentos, concordante com o estilo narrativo, o encadeamento dos fatos segundo a lógica do documento como história dada, como uma falsa postura científica motivada pelo ideal de neutralidade e objetividade. “As críticas contra a escola metódica se multiplicam, reprovando-lhe de ter fundado a história exclusivamente sobre textos e de privilegiar o método (fichas, notas de pé de página, etc.), o acontecimental, a história batalha”11.

Esse combate de ideias se realizou no interior mesmo de uma mudança no pensamento historiográfico, porque expressou a separação da história com a explicação filosófica da realidade e, em seguida, com a ilusão naturalista da história científica. Essa alteração de trajetória de fato redundou numa ‘redefinição epistemológica’, isto é, as antigas certezas sobre a natureza do conhecimento histórico foram substituídas por outras, cuja ênfase recaía sobre o aspecto relativo da verdade histórica. Esgotando-se as expectativas nas relações da história com a filosofia e com as ciências físicas, o novo pensamento histórico direcionava suas esperanças para uma nova parceria, em busca da inteligibilidade da experiência histórica.

É que pensavam, antes de tudo, em uma história de acontecimentos, até mesmo de episódios: quero dizer, aqueles que, certo ou errado - não é o momento de examinar - , dão extrema importância a retraçar exatamente os atos, palavras ou atitudes de alguns personagens, agrupados em uma cena de duração relativamente curta, em que concentram, como na tragédia clássica, todas as forças da crise do

10 RÉMOND, René (org.). Por uma História Política. Tradução de Dora Rocha. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Editora FGV, 1996, p. 16-17.

11 CAIRE-JABINET, Marie-Paule. Introduction à L’Historiographie. Paris: Nathan Université, 1994, p. 89.

70 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

momento: jornada revolucionária, combate, entrevista diplomática.12

Em função dessa estratégia de combate intelectual, a história política esteve por quase sessenta anos fora das temáticas desenvolvidas pelos historiadores ligados à tradição dos Annales. Sua proposta sugeria uma história que se instituísse na busca da compreensão das experiências humanas, por meio de um processo de interpretação dos acontecimentos de acordo com as regras do procedimento científico dado pelas ciências sociais, caracterizando sua perspectiva do que seria o trabalho interdisciplinar.

Para substituir os temas privilegiados e os personagens centrais da história política, quais sejam as batalhas, as guerras, os conflitos militares nacionais e internacionais, os generais, os diplomatas e os chefes de Estado, a história dos Annales apresenta alternativamente as temáticas relativas à cultura, a economia e as mentalidades, todas abordadas na longa duração através de sua regularidade. Como sujeito da história, esse projeto enfatiza o papel das massas formadas por pessoas comuns e suas experiências sociais no tempo. Neste sentido, na idade da democracia, a história deveria adotar uma perspectiva social, trazendo para a cena os personagens preteridos pelo elitismo das ciências do passado, atualizando suas demandas históricas e construindo o caminha para uma nova cultura historiográfica.

O movimento dos Annales foi certamente uma das mais bem sucedidas experiências contemporâneas de história social. Seus fundamentos teóricos têm origem na relação intelectual dos seus fundadores com o movimento sociológico liderado por Émile Durkheim. Esta proximidade com a sociologia durkheimiana não apenas permitiu reunir os elementos críticos de rompimento com a história historizante, como se constituiu no princípio justificador da proposta de interdisciplinaridade que marcará o Esprit d’Annales13. A contribuição crítica da escola sociológica, para a inovação historiográfica, será sintetizada pelas ideias reunidas por François Simiand14 sobre a prática metódica do fim do século XIX. Através da metáfora dos ídolos da tribo – o cronológico, o individual, o político – os novos historiadores aprenderam a identificar os epígonos da história pensada como científica e sustentada nas promessas do método filológico e da erudição.

No lugar da noção de fato histórico, – um acontecimento exemplar, acabado, singular e irrepetível, reconstituído pela pesquisa documental realizada nos arquivos, depósitos da história res gestae –, os Annales propõem que se trabalhe com a tese da história-problema15. A partir dela o historiador elabora criticamente o seu o 12 BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício do historiador. Tradução de André Telles. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 70-71.13 Sobre a importância da sociologia durkheimiana na renovação da historiografia francesa cf. BERR,

Henri. Sur notre programme. Revue de Synthèse Historique, Paris: Librairie Léopold Cerf, t. 1, n. 1, 1900, p. 1-8.

14 SIMIAND, François. Méthode Historique et sciences sociales. Revue de Synthèse Historique, Paris, Librairie Léopold Cerf, T. IV-1, n. 18, 1903, p. 1-22.

15 Segundo Croce a sistematização da ideia de história-problema tem sua origem no pensamento de Gustav Droysen. “Melhor que qualquer outro, Droysen percebeu com agudeza e afirmou resolutamente que a historiografia consiste na Frage, na formulação da pergunta historiográfica: conceito fecundo, por ele reforçado com a definição de que o fim da historiografia é ‘compreender indagando’ (forschend zu verstehen), mas ao qual faltaram o relevo, o aprofundamento e a utilização necessários”. CROCE, Benedetto. A História do Pensamento e Ação. Tradução de Darcey Damasceno. Rio de Janeiro: Zahar, 1962, p. 112-113.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 71

conhecimento, vislumbrando uma abordagem global das experiências humanas do passado. O encaminhamento dado pelo historiador deve principiar com a formulação de hipóteses, utilizando conceitos e aderindo a teorias explicativas, caracterizando a história como uma atividade tipicamente intelectual. Orientados pela busca de uma história total, os historiadores deveriam tratar de todas as experiências humanas na longa duração, enfatizando aquelas que refletissem a vida das pessoas como sujeitos que sintetizam em si as diversas forças do social.

A nova história social e econômica dos Annales, que pretendia ultrapassar, sem negar, mas ir além, a história dos nomes, datas e acontecimentos, oferecia um risco. O perigo estava, precisamente, em, ao afastar-se da vida dos homens, esquecer aquilo que cada indivíduo possuía de singular e de insubstituível. Esta história social e econômica, embora feita com o propósito de superar a história factual, não poderia ignorar a grandeza dos homens. O exemplo de Lucien Febvre é ressaltado por Braudel, já que o parceiro de Marc Bloch, mesmo empenhado no estudo dos destinos coletivos, não descuidara dos indivíduos. Um bom espelho para o comportamento analítico dos historiadores poderia ser encontrado nos estudos da história social a partir de Lutero ou da perspectiva de Rabelais, conforme atestava o rigor intelectual de Lucien Febvre. Ao inovar no alargamento do campo de prova dos estudos históricos, Febvre havia contemplado também os indivíduos.16

Apesar dos fundadores dos Annales terem se iniciado nas discussões sobre as possibilidades teóricas da sociologia nos bancos da Escola Normal Superior, esta convivência somente vai se transformar em prática efetiva e constante por intermédio de Henri Berr17, a partir do seu engajamento nas atividades realizadas pelo Centre International de Synthèse, pelas publicações da Revue de Synthèse Historique e nos debates promovidos pelas Semaines de Synthèse. Nesta instituição independente, historiadores desconhecidos, como Lucien Febvre e Marc Bloch, tiveram a oportunidade de entrar em contato com um conjunto significativo de intelectuais franceses e estrangeiros, cuja impressão positiva os habilitou a liderar um movimento de inovação historiográfica.

A Revue de Synthèse Historique propiciou a aproximação desse nascente movimento historiográfico com o pensamento das ciências sociais francesas e

europeias, oferecendo-lhe uma visão de conjunto desses saberes. O seu propósito era diminuir a distância entre essas áreas do conhecimento humano, permitindo assim, que a história viesse a se tornar também uma ciência social.

16 MARTINEZ, Paulo Henrique. Fernand Braudel ou o Sorriso da História. In: CATANI, Afrânio Mendes & MARTINEZ, Paulo Henrique (orgs.). Sete ensaios sobre o Collège de France. São Paulo: Cortez, 1999, p. 38-39.

17 Henri Berr (1863-1954), embora tenha participado ativamente das discussões sobre a história (La synthèse en histoire, essai critique et théorique – 1910), não era de fato historiador. Agrégé e doutor em letras, escreveu sua tese tratando de um tema filosófico (L’avenir de la philosophie: esquisse d’une synthèse des connaissances fondée sur l’histoire – 1898). Foi professor de letras e retórica no Liceu Henri IV em Paris. Planejou e organizou a coleção L’évolution de l’humanité e fundou, em 1925, o Centre International de Synthèse, no qual se realizava anualmente as Semaines Internationales de Synthèse. Lucien Febvre o conheceu em 1902 na Escola Normal Superior e começou a colabor na RSH em 1905.

72 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

[...] os fundadores dos ‘Annales’ encontravam não apenas o acento posto no econômico, como também no social, aquele social que os seduzira por seu caráter vago que permitia falar de tudo. Porque se tratava de saltar muros, derrubar as divisões que separavam a história das ciências vizinhas, especialmente as sociologia. Sob a etiqueta de social, Lucien Febvre e Marc Bloch encontravam a inspiração sem fronteiras da Revue de synthèse historique[...].18

Estas marcas intelectuais encontradas na formação acadêmica dos historiadores dos Annales esclarecem a maneira particular como se processou a assimilação de um modo específico de pensar a relação entre o indivíduo e a sociedade. O esquema de abordagem relacional que se encontra subjacente ao trabalho de interpretação histórica de Lucien Febvre e, principalmente de Marc Bloch, constitui-se na busca da compreensão das realidades que estabelecem o condicionamento social do indivíduo.

Assim, através da dinâmica sociedade-indivíduo-sociedade, os annalistes expressaram uma convicção intelectual construída simultaneamente à emergência das jovens ciências sociais, isto é, que o reconhecimento da determinação do social sobre o individual seria condição necessária para a produção de uma ciência histórica A matriz teórica do primado do social é constitutiva do arcabouço da história social, enquanto expressão intelectual da crítica da realidade concreta das sociedades democráticas, burguesas, urbanizadas e industriais, através de suas conquistas e de seus paradoxos. Manifestação, portanto, de uma maneira diferente de pensar o conhecimento histórico, seguindo os passos do processo de declínio das sociedades aristocráticas e absorvendo as novidades da modernidade emergente.

Nesse tipo de abordagem, cujo objetivo de base tem sua origem nos debates promovidos pelas ciências sociais na virada do século XIX, os Annales demonstram que sua principal motivação é “interpretar” como se relacionam a personalidade individual e as contingências da coletividade, como se efetivam as influências mutuamente determinantes dos comportamentos. Discussão herdeira da sociologia durkheimiana das representações coletivas, a história social dos Annales pretende compreender uma determinada época por meio, inclusive, dos atos individuais, mesmo que para isso tenha que utilizar-se do gênero biográfico, há algum tempo questionado e preterido por muitos historiadores não ligados diretamente à experiência do movimento annaliste19.

18 LE GOFF, Jacques. A História Nova. Tradução de Eduardo Brandão. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 30.

19 Em Collingwood, por exemplo: “Não pode existir história de nada que não seja pensamento. Assim, uma biografia, por exemplo, por mais história que contenha, é construída sobre princípios que não só não são históricos, mas também anti-históricos. Os seus limites são fatos biológicos: o nascimento e a morte de um organismo humano. A sua estrutura é, pois, não uma estrutura de pensamento mas de processo natural. Através dessa estrutura – a vida corpórea do homem, com a infância, a maturidade e a velhice, as doenças e todos os acidentes da existência animal – deslizam, cruzando-se, as marés do pensamento – do que lhe é próprio e do alheio – indiferentes à sua constituição, ondas deslizando por entre os destroços do barco naufragado que o mar lançara à praia. Ao espetáculo de uma vida assim corpórea com suas vicissitudes se associam muitas emoções humanas, e é a biografia, como forma literária, que sustenta estas emoções de um alimento que poderá ser saudável; isto, porém, não é história”. COLLINGWOOD, R. G. A Idéia de História. Lisboa: Presença; Livraria Martins Fontes, 1984, p. 314.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 73

Embora não se possa dizer que as “influências” durkheimianas tenham sido da mesma ordem nos fundadores dos Annales, pode-se observar o esforço de produzir uma síntese das expectativas teóricas apresentadas tanto pela sociologia como pela psicologia, ideais herdados da proximidade e parceria com Berr. Dessa forma, parece que as obras históricas de Febvre e Bloch desenvolveram com maior frequência e maior representatividade a reflexão do pressuposto social na explicação histórica, embora suas relações com a sociologia tenham sido marcadas pela prudência e desconfiança. Essa orientação teórica tem uma importância imprescindível, na medida em que joga com a própria ideia de inovação da história.

Não sou daqueles para quem a história «é apenas obra dos indivíduos». Ela é, a meu ver, obra dos indivíduos e dos grupos, para usar propositadamente, uma palavra muito geral. O indivíduo histórico - como já esclareci anteriormente - a personagem histórica, mais exatamente, desenvolve-se em e pelo grupo. Desprende-se dele temporariamente a apontar-lhe caminhos novos. Mas para realizar a sua tarefa - a de um fermento que faz levedar a massa humana -, é necessário que mergulhe nela, o mais cedo possível, que se reincorpore ao grupo; e assim, para usar uma linguagem corrente, dizemos recuo, e mesmo retrocesso.20

Encontra-se, portanto, no pensamento da primeira geração dos Annales um pressuposto sociológico que se fundamenta na existência de uma dialética entre indivíduo e sociedade, justificando a necessidade do historiador redefinir sinteticamente estas relações, cuja tendência aponta para uma espécie de determinismo do social sobre o individual. A abordagem social da história parte do mundo da cultura, entendido como a manifestação de tudo o que é comum a uma coletividade no que diz respeito a valores éticos, estéticos, religiosos, artísticos, filosóficos, científicos, para em seguida descobrir aquilo que diverge ou o que consente, nesse denso, variado e, aparentemente, uniforme universo de experiências de vida.

Na impossibilidade de apreender a totalidade da cultura nas suas diversas esferas, o historiador deve buscar um encontro com as expressões microscópicas desse todo abrangente: o sujeito de sociedade. Ao encontrá-lo no emaranhado das vivências coletivas, transforma-o em personagem da história, investigando sua trajetória individual com o objetivo de identificar sua capacidade de incorporar os elementos substantivos de sua cultura, bem como sua inserção crítica como agente relativizante dos valores e das tradições, assumindo, a partir de então, o papel de elemento possibilitador da compreensão histórica desse período.

A biografia intelectual à maneira de Febvre é, de facto, a história da sociedade, atendendo a que situa os seus heróis simultaneamente como testemunhas e produtos dos condicionamentos colectivos que limitam a livre invenção individual.21

O modelo construído por Febvre, por exemplo, para escrever biografias se constitui de alguns pressupostos explícitos: o biografado é, consideradas as qualidades de

20 FEBVRE, Lucien. Combates pela História. 2. ed. Tradução de Leonor Martinho Simões e Gisela Moniz. Lisboa: Presença, 1985, p. 87.

21 CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Tradução de Maria Manuela Galhardo. Lisboa: Difel; Bertrand Brasil, 1990, p. 40.

74 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

condensação de vetores culturais que sua experiência pessoal pode manifestar, uma ponte para o entendimento das especificidades de sua época em relação ao presente do historiador. O indivíduo incorpora e assume as questões de sua época, embora esteja condicionado a uma dialética que quase sempre lhe foge ao controle. Sendo assim, pode-se dizer que, em última instância, a coletividade é a verdadeira fonte dinâmica de produção das representações culturais, enquanto o indivíduo representa apenas a função de porta-voz de suas exigências históricas.

Os personagens biografados estão envoltos, pois, em um clima “espiritual” que lhes ultrapassa e lhes condiciona as maneiras de intervenção na realidade social. Somente com a colaboração interdisciplinar da sociologia e da psicologia coletiva, seria permitido ao historiador apreender essas determinações socioculturais através de novos instrumentos teóricos e metodológicos.

O meio social penetra a priori no autor da obra histórica, enquadra-o e, numa larga medida, determina-o na sua criação. E, quando esta está pronta, ou morre, ou então, para que ela viva, é preciso que sofra a colaboração ativa, a terrível colaboração das massas, a pressão do meio, irresistível e constrangedora.22

Os personagens históricos escolhidos por Febvre são produtores de obras que certamente se tornaram “fatos de civilização”, isto é, atitudes que marcam a vida das coletividades e se propagaram no tempo. Entretanto, contra toda e qualquer confusão de propósitos, não se deve deixar que essa evidência tome de assalto o observador desprevenido ou o prosélito devotado, e que ao repassá-la colabora com um tipo de história que não é a de Febvre: a história da ideias “desencarnadas”. Tomar esses indivíduos como autores conscientes e exclusivos das ações que se lhes atribuem, seria consubstanciar uma explicação histórica individualista e personalista. Ao contrário disso, rompendo com a lógica das formas individuais de pensamento, Febvre submete as suas obras a uma perspectiva interpretativa que privilegia os elementos sociais do seu conteúdo historicamente produzido. Em uma palavra, as ações humanas, embora representadas por seus agentes singulares, são constantemente apropriadas e redimensionadas pela ação corrosiva dos interesses da sociedade. A historiografia febvriana reflete profundamente essa ambiguidade “positiva” nas relações entre indivíduo e sociedade e determina as suas opções temáticas e metodológicas.

Na verdade, estas ideias têm sua origem no projeto pancientífico do durkheimiano Henri Berr, na medida em que sua concepção de história expressa a crença de que um fato social é também um fato psicológico. Ideia bastante divulgada e comum aos historiadores e filósofos que professaram o novo pensamento epistemológico a respeito da história e suas características científicas, especialmente aqueles que se alinharam ao historicismo de orientação diltheyniana23. Muito provavelmente, o 22 CHARTIER, A História Cultural, p. 209.23 O historicismo de Dilthey, ou neo-historicismo, constituiu-se em uma recusa ao romantismo e

ao positivismo da escola histórica rankeana. De orientação kantiana, baseava-se na noção de que natureza e cultura são diferentes e inconciliáveis, propondo a tipologia das ciências do espí-rito através das quais se toma o homem como sujeito e objeto do conhecimento objetivo. Acre-ditavam, pois, na possibilidade de realização científica para essas disciplinas, atribuindo-lhes a tarefa de compreender o sentido das manifestações culturais, que são, na verdade, expressões do pensamento. Assim, para os seguidores do historicismo todos os fatos históricos, são fatos

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 75

pioneirismo intelectual e mobilizador de Berr tenha possibilitado o compartilhamento dessas ideias pelos historiadores cuja formação se deu pós-1870.

Acreditamos que a sociedade existe somente para o indivíduo se constituir plenamente e se afirmar, ela oculta, em um dado momento, o indivíduo, até o dia quando este faz sobre ela a sua reaparição, de qualquer modo, e a aperfeiçoa conscientemente graças ao desenvolvimento psíquico que ela permitiu.24

Em síntese, a fundamentação teórica da história social elaborada pelos historiadores do movimento dos Annales, corresponde, simultaneamente, a um tipo de adesão à crença nas possibilidades da ciência moderna em refletir o real do social por meio das experiências dos indivíduos, bem como na história como uma prática intelectual de descrição e apresentação da extensão empírica das vivências particulares. O reconhecimento da dinâmica que se verifica entre sujeito e coletividade e a prevalência desta sobre aquele, o a priori do conhecimento proposto pela história social, abre caminhos para posturas teóricas distintas, permitindo que se pense no projeto dos Annales como moderno e não moderno, racional e não racional.

Ao definir o evento gerador como ponto de partida para o trabalho histórico e preservar o sujeito na sua individualidade, embora seja o abrigo do social, a historiográfica dos Annales corresponde, pois, tanto à confirmação do projeto epistemológico da modernidade, onde o conhecimento é a representação da realidade que existe independente do sujeito, como a uma abertura para se interpretar a individualidade enquanto criadora do real, a fragmentação do sentido da história e a dispersão dos sujeitos no vivido.

***

produzidos pela psicologia (vida mental) do indivíduo condicionado socialmente. Cf. FALCON, Francisco J. Calazans. ‘Historicismo’: a atualidade de uma questão aparentemente inatual. Tempo - Revista de História da Universidade Federal Fluminense, Niterói, v. 4, 1997, p. 5-26.

24 BEER, Henri. La Grèce: école politique de l’Humanité. In: GLOTZ, G. La cité grecque. Paris: Edi-tions Albin Michel, 1953, p. VI.

76 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

ABSTRACT

This paper intends to show the particular way as the French historiographic movement of Annales received the rising sociology proposals at the end of 19th century. Following this aim, it especially analyzes the academic formation and the intellectual experiences of historians who established that movement, from the notion of social primate prominence on individual developed by E. Durkheim. It is distinguished the strong presence of Henri Berr and its relations of intellectual friendship with the Annales first generation, attributing him a significant responsibility in the spreading, though the Revue de Synthèse Historique, of the ideas and programs of Durkheim’s sociology. At last, it’s observed the reticent attitude of the annalistes historians to assume with full compromise the theoretician paradigm of social sciences and how these ideas constitute a historiographic culture.

Keywords: Historiography’s History; History Theory; Historiographic Culture; Annales Movement; Durkheim’s Sociology; Social Primate; History Writing.

RESUMO

Este artigo tem o objetivo de apresentar a maneira particular como o movimento historiográfico francês dos Annales recepcionou as propostas da nascente sociologia do final do século XIX. Para isto, analisa a formação acadêmica e as experiências intelectuais dos historiadores que fundaram aquele movimento, especialmente a partir da noção do primado social sobre o individual desenvolvido por E. Durkheim. Destaca-se a presença marcante de Henri Berr e suas relações de amizade intelectual com a primeira geração dos Annales, atribuindo-lhe significativa responsabilidade na divulgação, por meio da Revue de Synthèse Historique, das ideias e programa da sociologia durkheimiana. Enfim, observa-se a atitude reticente dos historiadores annalistes em assumirem cabalmente o arcabouço teórico das ciências sociais e modo como essas ideias constituem uma cultura historiográfica.

Palavras Chave: História da Historiografia; Teoria da História; Cultura Historiográfica; Movimento dos Annales; Sociologia Durkheimiana; Primado Social; Escrita da História.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 77

SOBRE O OLHAR, A ARTE E A HISTÓRIA:

QUESTÕES PARA O HISTORIADOR DA ARTE1

Carla Mary S. Oliveira2

Para o francês Daniel Arasse, sempre que um historiador da Arte lança seu olhar sobre uma obra que não é sua contemporânea, mas sim vinda de outros tempos, corre o sério risco de cometer um anacronismo que pode, inadvertidamente, comprometer todo seu trabalho na seara de Clio3. Quanto a mim, penso mesmo que um expert que chegue a tal situação não estaria a exercer verdadeiramente o ofício do historiador, tal qual posto por Certeau em seu clássico texto sobre a operação historiográfica4.

Heinrich Wölfflin já assinalava o mesmo risco há quase um século5. Afinal, desde que instaurada a reprodutibilidade técnica das imagens – tema a que Walter Benjamin teve especial apreço – é franqueado a qualquer interessado o acesso a um universo infindável de obras de arte, e mesmo nos museus e espaços congêneres, tão visitados pela pós-moderna turba amorfa de turistas insaciáveis em nossos dias, tais obras encontram-se deslocadas de seus habitats originais, apartadas de seu contexto primeiro, órfãs de seus destinatários primevos.

Assim, talvez até mais do que em outras vertentes do conhecimento histórico, no campo da História da Arte o anacronismo se põe não apenas como um risco ao fazer historiográfico, mas sim como a besta que o espreita de uma recôndita penumbra, bem palpável e concreta. Isso por que falar de qualquer Arte de outro tempo que não o presente significa sempre vê-la sob um prisma que, facilmente, pode distorcer

1 Algumas leituras fundamentais para as ideias aqui esboçadas foram decorrência das aulas de Metodologia da História que, por dois semestres, em 2007 e 2008, ministrei em conjunto com a amiga Cláudia Engler Cury no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba, a quem agradeço pela generosidade da parceria e pela leitura atenta e criteriosa de uma primeira versão deste paper. Agradeço também a Thereza Baumann, que sabiamente vem me incutindo o interesse pelos conceitos de Panofsky em suas visitas à Paraíba.

2 Historiadora, Doutora em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba. Realizou, entre agosto e dezembro de 2009, Estágio Pós-Doutoral junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais, sob supervisão da Profª Dra. Adalgisa Arantes Campos, com a pesquisa “O Barroco no Brasil: (des)conexões entre Minas Gerais e o litoral do Nordeste”, que contou com o financiamento de uma bolsa Capes PROCAD-NF. Professora Adjunta do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba. Coordenadora do Projeto de Cooperação Acadêmica “Patrimônios – Conexões Históricas” (PROCAD-NF Capes n. 2338/2008 – PPGH-UFPB/ PPGH-UFMG). Líder do Grupo de Pesquisas Estado e Sociedade no Nordeste Colonial (NDIHR-UFPB/ Diretório CNPq) e pesquisadora dos Grupos de Pesquisas Saberes Históricos: Ensino de História, Historiografia e Patrimônios (PPGH-UFPB/ Diretório CNPq) e Perspectiva Pictorum (PPGHis-UFMG/ Diretório CNPq). E-Mail: <[email protected]>. Sítio eletrônico: <http://cms-oliveira.sites.uol.com.br/>.

3 ARASSE, Daniel. Histoires des peintures. Paris: Gallimard, 2007, p. 253-254.4 CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In: __________. A escrita da História. 2. ed. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007 [1975].

5 Wölfflin trata de tal premissa ao longo de toda sua obra, mas a formula de modo mais coeso em seu texto da maturidade, Kunstgeschichtliche grundbegriffe, de 1915. Ver a edição brasileira: WÖLFFLIN, Heinrich. Conceitos fundamentais da História da Arte: o problema da evolução dos estilos na arte mais recente. 4. ed. Tradução de João Azenha Jr. São Paulo: Martins Fontes, 2006 (especialmente a “Introdução” e a “Conclusão”).

78 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

sua historicidade e também seu sentido estético.

Tentarei explicar-me: se hoje qualquer indivíduo pode entrar num museu ou galeria de arte, em qualquer lugar, mesmo que no mundo virtual da web, e nele deparar-se com imagens – sejam elas pinturas, gravuras, afrescos, retábulos, relevos, entalhes ou esculturas – pensadas para outros locais e outros usos, para outros públicos, nas mais diversas épocas e com objetivos também os mais diversos, torna-se uma tentação fácil para tal observador estabelecer um juízo de valor comparativo entre as imagens que se mostram a seus olhos, organizando-as a partir de códigos, sistemas e normas que são totalmente alheios a elas, já que surgidos após sua produção. Aí, a meu ver, é que entra em cena o historiador: cabe a ele colocar as coisas em seus devidos lugares.

Não se trata aqui de pensar o fazer artístico como algo totalmente organizável, catalogável e classificável, de evolução linear e teleológica, au contraire: é preciso mesmo que o historiador da Arte proceda a avanços e recuos constantes no percurso de Cronos, na sucessão e/ ou superposição de tradições, escolas, gostos e estilos, com o intuito de tentar perceber a que veio aquela determinada obra que analisa através do seu olhar. E vê-la é não apenas dirigir a vista em sua direção, mas também tentar enxergar, perceber, compreender as diversas camadas e dobras de sentidos e significados que a compõem, que a permeiam e a fazem ser algo único – ou mesmo múltiplo – e vinculado a certo contexto que não pode e tampouco deve, em hipótese alguma, ser negado, pois assim se pulverizaria sua essência primeira, seu hic et nunc6.

Mas qual seria, então, o procedimento desejável para proceder à pesquisa neste campo tão melindroso da História da Arte? Entendo que um dos métodos mais frutíferos para tal empreitada é justamente aquele sistematizado a partir da década de 1930 por Erwin Panofsky, método esse baseado na análise iconográfica e iconológica das imagens. Nesse tipo de abordagem as sucessivas camadas de sentido da imagem vão sendo esquadrinhadas e situadas a partir do contexto de sua própria produção7. Qualquer imagem remete não apenas a seu entorno imediato, mas também a todo um conjunto de fatores que influenciaram seu produtor, seja por inspiração, reelaboração, reinterpretação, derivação, negação ou oposição. Obviamente, tal método tem também suas vulnerabilidades, podendo cair numa análise que privilegie apenas o Zeitgeist de uma determinada obra, tomando-a como um reflexo automático das condições sociais do meio em que foi produzida, abordagem que seria profundamente hegeliana e, em nossos dias, nesta primeira década do século XXI, completamente equivocada. Ainda na década de 1950,

6 Expressão latina que pode ser traduzida, literalmente, por “aqui e agora”. Conceito de amplo uso entre os existencialistas franceses nas décadas de 50 e 60 do século passado, antes deles também foi utilizada por Walter Benjamin, que relacionava este “aqui e agora” da obra de arte à sua garantia de autenticidade, à sua aura, àquilo que a torna algo que concentra uma certa sacralização, ao cristalizar-se como objeto de contemplação justamente por sua singularidade. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (primeira versão). In: _____. Magia e técnica, arte e política. 7. ed. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 167-168.

7 Para mais detalhes do método iconológico de Panofsky, ver: PANOFSKY, Erwin. Iconografia e Iconologia: uma introdução ao estudo da arte da Renascença. In: _____. Significado nas artes visuais. 3. ed.; 3. reimpr. Tradução de Maria Clara F. Kneese e J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2009 [1955], p. 47-87.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 79

Arnold Hauser8 reforçava este tipo de abordagem teleológica, ao defender justamente a determinação unívoca do meio social e econômico em que vivia o artista sobre os sentidos de sua produção, numa interpretação de clara inspiração marxista. Na verdade, uma camisa de força teórico-metodológica, a meu ver.

Usar o método iconológico de Panofsky, portanto, permitiria fugir desses aspectos reducionistas, abrindo um leque muito amplo de investigação que exige, como pressuposto, uma crescente erudição do historiador, a fim de que ele se qualifique à percepção dos detalhes simbólicos e/ ou alegóricos contidos na imagem que analisa. Um bom exemplo desse método utilizado na prática pelo scholar alemão – radicado nos EUA após fugir da Europa ameaçada pelo Nazismo – pode ser visto em duas de suas obras: o livro sobre Ticiano9, publicado postumamente, e aquele que fez em meados da década de 1950, em parceria com sua esposa, Dora, sobre o mito de Pandora10.

O método iconográfico/ iconológico proposto por Panofsky, como qualquer novo paradigma de investigação, também recebeu críticas, e talvez as mais contundentes tenham sido as do austríaco Ernst Hans Gombrich, todo poderoso diretor do Instituto Warburg, em Londres, que chegou mesmo a afirmar que a iconologia era simplesmente uma “tentativa de explicar representações no seu contexto histórico, em relação a outros fenômenos culturais”11. Gombrich reforçava sua crítica ao método numa resenha sobre A caixa de Pandora, dizendo que a iconografia “era, ou é, a criada da História da Arte”, enquanto que a iconologia “pode e usa obras de arte como evidências, nada mais do que obras literárias, de oratória ou propaganda”12. É claro que não se pode negar que uma obra de arte pode ser entendida como um produto cultural13 e, nessa perspectiva, traria em si elementos ligados à cultura vivenciada por seu autor e pelo público que a recebe, mas creio mesmo que esta não era a intenção de Panofsky ao estabelecer o seu método, até por que, para utilizá-lo, se faz necessário um profundo mergulho no universo que envolve não só o artista, mas também a própria obra analisada e o público a que ela se destinava. Produção e recepção da obra de arte se tornam, assim, os dois lados de uma mesma moeda.

Outra interessante abordagem possível para o campo da História da Arte é o paradigma indiciário de Carlo Ginzburg. Nela, imbuído de um espírito detetivesco,

8 HAUSER, Arnold. História social da Arte e da Literatura. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 2003 [1953].

9 PANOFSKY, Erwin. Tiziano: problemas de iconografía. Traducción de I. Morán García. Madrid: Ediciones Akal, 2003 [1968].

10 PANOFSKY, Dora & PANOFSKY, Erwin. A caixa de Pandora: as transformações de um símbolo mítico. Tradução de Vera Pereira. São Paulo: Companhia das Letras, 2009 [1956].

11 GOMBRICH, Ernst Hans. Aims and limits of Iconology. In: __________. Symbolic images. Londres: Paidon Press, 1972, p. 6.

12 GOMBRICH, Ernst Hans. The literature of Art. The Burlington Magazine, Londres, v. 99, 1957, p. 280. Disponível em: <http://www.gombrich.co.uk/>. Acesso em: 2 jul. 2009.

13 A discussão conceitual sobre a obra de arte como produto cultural é muito ampla. Aqui faço uma simplificação para não perder o raciocínio em construção. Para uma discussão mais aprofundada sobre esse tema, não se pode esquecer Walter Benjamin (especialmente sua elaboração sobre o conceito de “aura”) e outros autores fulcrais da Escola de Frankfurt, como Adorno e Hockheimer. Vale à pena também trafegar pela produção de Omar Calabrese acerca da interpretação da obra de arte, bem como pelas discussões de Peter Burke sobre as relações entre História e imagem. Ver: CALABRESE, Omar. A linguagem da arte. Lisboa: Presença, 1986 [1985]. __________. Como se lê uma obra de arte. Lisboa: Edições 70, 1997 [1993]. BURKE, Peter. Testemunha ocular: História e imagem. Tradução de Vera Maria Xavier dos Santos. Bauru: EDUSC, 2004 [2001].

80 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

quase que como um Sherlock Holmes pós-moderno, o historiador recolhe fragmentos, pistas, indícios os mais variados, provenientes das mais diversas fontes, conectando dados que, juntos, podem fornecer uma visão mais palpável da obra em análise e de seu autor. É essa a abordagem que o historiador italiano utiliza em seu livro sobre Piero della Francesca14 e no ensaio sobre a Arte renascentista das periferias italianas15.

Tal como compreendo a investigação sobre a Arte, os dois métodos – a análise iconográfica/ iconológica de Panofsky e o paradigma indiciário de Ginzburg – se complementam, abrindo ao historiador amplas possibilidades de análise não apenas das obras de arte, mas também de seus autores e do contexto em que tais obras foram gestadas, chegando até mesmo ao modo como se deu sua recepção. Se estabeleceria, assim, um tipo de círculo hermenêutico, um mergulho iniciado nas pré-condições de produção da obra de arte que somente se completaria com as sensações suscitadas naqueles que porventura a observem, tanto em seu próprio tempo como em épocas posteriores. E não é este o sentido primeiro da arte? Causar sensações em outrem, a partir dos elementos constituintes de uma determinada representação?

Obviamente, há aspectos que se relacionam à fruição da Arte que envolvem questões mais ligadas aos campos da antropologia, da sociologia ou mesmo da psicologia, apesar de poderem ser explicadas historicamente. Tais ciências também dão seus tropeções ao tomarem a Arte por objeto, do mesmo modo que a História, mas mesmo assim podem fornecer subsídios valiosos para o historiador. Desse modo, compreender por quais motivos um determinado tipo de representação, como Psique reanimada pelo beijo do Amor de Antonio Canova, por exemplo, pôde causar asco ao público e ficar escondida por um biombo quando exposta pela primeira vez no Japão16, passa pela explicação antropológica dessa situação, ou seja, tal fato ocorreu simplesmente por especificidades locais do uso do corpo e das regras de etiqueta e tabus daí decorrentes. Para um ocidental, tal reação podia não ter sentido algum, mas para os japoneses, tratava-se de um ato bárbaro representado pela escultura de branco mármore, dois corpos nus e perfeitos trocando um beijo, ato que chegava mesmo a ofender quem a observasse no entendimento local, mais até do que a própria nudez das personagens. Diferentes culturas, diferentes tempos, diferentes interpretações da obra de arte são possíveis, portanto. Desconsiderar a existência dessa diversidade é o segundo erro que o historiador não pode cometer.

14 GINZBURG, Carlo. Indagações sobre Piero: o Batismo, o Ciclo de Arezzo, a Flagelação. Tradução de Luiz Carlos Cappeliano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989 [1981].

15 GINZBURG, Carlo. A arte italiana. In: __________. A micro-história e outros ensaios. Tradução de António Narino. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991 [1989].

16 A informação se baseia em minhas anotações de aula, feitas na UnB, numa disciplina que cursei na graduação em História com o Prof. Mario Bonomo, em 1993. Confesso que li a mesma informação em algum manual de História da Arte, à época, mas não consegui ainda localizar a fonte novamente.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 81

Fig. 1 – Antonio Canova, Psique reanimada pelo beijo do Amor (detalhe), 1793; mármore, 155 X

168 X 101 cm; Musée du Louvre, Paris. Foto: Carla Mary S. Oliveira, jul. 2008.

A obra de arte também pode causar reações que seu autor, enquanto a produzia, em momento algum cogitou que viessem a ocorrer. Será possível que Brunelleschi ou Michelangelo desejassem provocar um colapso nervoso em quem observasse o Duomo ou o belo Davi em Florença? No entanto, há quem fique fora de si ao se encontrar frente a tais obras, acometido pela Síndrome de Stendhal17. A beleza e perfeição das obras desses mestres renascentistas podem, portanto, suscitar um estranhamento de tal magnitude que o enfrentamento com o belo coloca o observador num estado patológico já devidamente catalogado e descrito pela psicanálise e pela psiquiatria contemporâneas18. Duvido muito que tanto um quanto o outro imaginassem ser possível ocorrer tal situação, séculos depois de terem terminado suas obras. Mas ela acontece realmente, e de maneira até bem comum.

17 A Síndrome de Stendhal se constitui num conjunto de sensações descritas pelo escritor francês quando visitava a Toscana em 1817: vertigens, desorientação e perda de identidade, associadas a um profundo mal-estar físico, tudo motivado pela emoção de estar frente a obras de arte sublimes. Hoje se constitui em especialidade clínica da psiquiatria, que em Florença chega a atender uma média de 10 a 12 casos anuais no Hospital de Santa Maria Nuova. COLI, Jorge. Síndrome de Stendhal. Folha de S. Paulo, Caderno Mais!, São Paulo, 15 ago. 2004, p. 19.

18 MANGIERI, Ronco. Parálisis, trauma y crisis en la experiencia estética: el Síndrome de Stendhal. Tonos Digital – Revista Electrónica de Estudios Filológicos, Murcia, Facultad de Letras de la Universidad de Murcia, n. 15, jun. 2008. Publicação eletrônica. Disponível em: <http://www.tonosdigital.com/>. Acesso em: 10 jul. 2008.

82 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

Fig. 2 – Batistério e Igreja de Santa Maria del Fiore, Florença. Ao fundo se vê a cúpula sobre o altar – ou Duomo – projetada por Filippo Brunelleschi e finalizada sob sua supervisão em 1493.

Foto: Carla Mary S. Oliveira, jun. 2008.

Fig. 3 – Michelangelo Buonarotti, Davi, 1501-1504; mármore, 517 cm de altura; Galleria dell’Accademia, Florença. Foto: Carla Mary S. Oliveira, jun. 2008.

A própria ideia acerca do que é ou não belo pode, obviamente, mudar de um local a outro, de uma época a outra, de uma cultura a outra. Ninguém discute a maestria de Da Vinci e o dom que tinha para representar o belo em suas pinturas, mas é sabido também que tinha especial apreço pelo grotesco, tanto foi assim que registrou inúmeros rostos que nada tinham de belos em desenhos e esboços

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 83

preservados em seus códices. Há quem diga que são apenas caricaturas, há quem as considere rostos de pessoas reais, vistos pelo pintor nas ruas das cidades em que viveu. Não há como saber qual a versão correta sobre elas, mas elas existem, estão lá, e podem, como qualquer imagem, tornar-se um objeto para a pesquisa histórica, haja vista o livro organizado há poucos anos por Umberto Eco sobre a feiúra19.

Outro aspecto fulcral relacionado às obras de arte talvez se constitua na maior fonte de conjecturas por parte dos historiadores: a questão da encomenda. Como analisar uma obra feita a partir de um contrato, muitas vezes extremamente detalhado, que estabelecia o tema, as personagens e a abordagem a ser utilizada pelo artista, isso sem falar das dimensões da obra e material a ser utilizado? É bem conhecido o episódio das duas telas sobre S. Mateus escrevendo seu Evangelho, intituladas ambas São Mateus e o Anjo e pintadas por Caravaggio entre 1601 e 1602 para a Capela Contarelli, na Igreja de San Luigi dei Francesi, em Roma20. A primeira versão foi sumariamente recusada pelos padres franceses, por não atender às especificações do contrato e apresentar um santo de corpo, atitude e feições muito próximas às de um trabalhador braçal que podia ser encontrado a qualquer momento nas feiras, praças e ruas romanas de então. Caravaggio pintou outra, que hoje se encontra no altar principal da capela, e a primeira versão foi vendida a um de seus protetores21. A primeira versão seria mais autêntica do que a segunda, por trazer uma visão mais espontânea, que não combinava com a empreitada aceita pelo artista?

Fig. 4 – Michelangelo Merisi da Caravaggio, São Mateus e o Anjo (1ª versão), 1601-1602; óleo

sobre tela, 223 X 183 cm; destruído em 1945. Disponível em: <http://www.flickr.com/>.

19 ECO, Umberto (org.). História da feiúra. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2007.

20 ROBB, Peter. M: el enigma de Caravaggio. Traducción de Stella Mastrangelo. Barcelona: Alba, 2005, p. 189-212.

21 A tela recusada foi comprada de imediato pelo cardeal Vincenzo Giustiniani, que renegociou o contrato de Caravaggio com os curas da igreja e possibilitou a realização do segundo quadro de mesmo tema e abordagem mais conforme às exigências dos contratadores. Infelizmente, o bombardeio das forças aliadas sobre Berlim em 1945, ao final da Segunda Guerra Mundial, destruiu essa primeira versão no incêndio que arrasou a Gemäldegalerie do Kaiser Friedrich Museum. ROBB, M: el enigna...., p. 205-206.

84 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

Fig. 5 – Michelangelo Merisi da Caravaggio, São Mateus e o Anjo (2ª versão), 1602; óleo sobre tela, 295 X 185 cm; Capela Contarelli, Igreja de S. Luigi dei Francesi, Roma.

Foto: Carla Mary S. Oliveira, jun. 2008.

Nas situações em que é possível ter acesso a estas informações, a análise da obra de arte pelo historiador se torna mais fácil, é óbvio. Mas e quando essas informações não existem? Se pode apenas buscar os vestígios e fragmentos indiciários que apontem para uma resposta, tirando da penumbra a história específica daquela obra ou autor. Papéis dispersos, citações tangenciais, crônicas, relatos anônimos, inventários, processos criminais, demandas civis, registros notariais, atas de irmandades, práticas tradicionais, trovas, literatura popular, praticamente tudo que sirva de registro à cultura pode, em maior ou menor grau, contribuir para a construção de um corpus documental que auxilie o historiador em sua pesquisa. Um fator, no entanto, precede todo esse processo: a forma como o próprio historiador lança seu olhar sobre a obra de arte, tentando percebê-la de uma perspectiva mais próxima da que era partilhada por seus destinatários primeiros.

Para o historiador de arte, portanto, é imprescindível desvencilhar-se de sensações estéticas fundeadas em conceitos e concepções surgidos depois da obra que analisa. Para se fazer uma pesquisa decente sobre a medicina do século XIX, por exemplo, é preciso estar a par das técnicas e cânones médicos de então. Capacitar-se para falar daqueles saberes médicos, de tal modo que entenda tais práticas como se médico o fosse, essa é a base a partir da qual um historiador da medicina oitocentista deve construir seu objeto. Somente sob este prisma o pesquisador estará minimamente

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 85

capacitado a perceber detalhes e significados de seu objeto que poderiam lhe fugir, caso continuasse a olhar para os médicos e a medicina do século XIX com lentes e diafragmas do século XXI22. Penso que o mesmo se dá com a Arte e com qualquer outro campo da História. As práticas são outras, pretéritas ou contemporâneas, os tempos, distantes ou próximos, mas o método, a abordagem, estes devem ser os mesmos.

Assim, no caso da História da Arte, antes de lançar seu olhar sobre qualquer obra, creio que o historiador precisa, de início, situá-la cronologicamente em relação à produção de seu autor, ao mesmo tempo em que se familiariza com o universo cultural que a circundava, conhecendo já os tratados estéticos e tradições que poderiam ter influenciado tanto o artista como seu público, bem como os motivos e inspirações que concorreram para sua execução. Estes são aspectos imprescindíveis a uma análise sincera e historicamente plausível de qualquer obra de arte, aliás.

Daí surge outro problema a que o historiador deve estar atento: a tentação – ou facilidade – de se tomar uma obra de arte como representação “verdadeira” de um determinado cenário ou evento histórico. Tal prática é extremamente comum, especialmente em livros didáticos, e demonstra, hoje, a ainda grande inabilidade do historiador não especializado no trato com imagens em lidar com elas na construção do conhecimento histórico. Representações dos engenhos seiscentistas do Nordeste brasileiro, criadas por Frans Post, por exemplo, comumente são tomadas, de forma praticamente automática, como “fotografias” daquele universo adocicado dos trópicos coloniais. Quase ninguém percebe que nas inúmeras telas, esboços e gravuras que fez sobre o tema, o artista holandês NUNCA registrou um tronco, pelourinho ou muito menos algum escravo sendo castigado23. O trato daqueles viventes era diferenciado nos engenhos que funcionavam sob as ordens da West Indische Compagnie, portanto? Obviamente, não se trata disso. Os castigos aos escravos não aparecem no traço de Post simplesmente por se tratarem de cenas impróprias para os ambientes que tais imagens iriam adornar, fossem eles as páginas de uma crônica laudatória24, o salão de dança da nobreza ilustrada ou mesmo uma sala de jantar de um militar burguês aposentado, saudoso dos anos de trabalho para a WIC no Brasil.

22 A metáfora com o saber médico do século XIX não é minha. Tomo-a emprestada de Sidney Chalhoub, que a formulou na aula inaugural que proferiu para os discentes do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba, em abril de 2008.

23 Devo agradecer a possibilidade dessa afirmação ao trabalho de pesquisa criterioso desenvolvido por Anna Maria de Lira Pontes quando foi minha bolsista de Iniciação Científica (PIBIC/UFPB/CNPq) no projeto “O Brasil seiscentista nas pinturas de Eckhout e Post: documento ou invenção do Novo Mundo?”, entre agosto de 2007 e fevereiro de 2009, período em que esteve responsável pela execução do plano de trabalho “O olhar europeu sobre os trópicos na arte de Frans Post (1637-1680)”.

24 Refiro-me ao livro de Caspar Barlaeus, Rerum per Octennium in Brasilia Et alibi nuper gestarum Sub Praefectura Illustrissimi Comitis I Mauritii Nassoviae etc., publicado por Ioannis Blaeu em Amsterdã no ano de 1647, sob os auspícios do Conde Johan Maurits van Nassau-Siegen, e cujas gravuras que mostram as paisagens brasileiras reproduzem desenhos, esboços e telas de Frans Post, tendo sido gravadas pelo próprio artista. Para maiores detalhes sobre a obra de Frans Post, ver o catalogue raisonée publicado no Brasil há poucos anos: LAGO, Pedro Corrêa do & LAGO, Bia Corrêa do (orgs.). Frans Post: obra completa {1612-1680}. Rio de Janeiro: Capivara, 2006.

86 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

RESUMO

O artigo pretende discutir o modo como a obra de arte é vista pelo historiador especializado e como a crítica histórica sobre a produção artística pode contribuir, através da conciliação dos métodos propostos por Erwin Panofsky – a análise iconográfica/ iconológica – e Carlo Ginzburg – o paradigma indiciário –, para a construção de um conhecimento histórico que não tome tais obras apenas como fruto de um determinado Zeitgeist e, tampouco, como registros históricos inquestionáveis.

Palavras Chave: História da Ar te; Metodologia Histórica; Análise Iconológica; Paradigma Indiciário.

ABSTRACT

This paper intends to discuss how the specialized historian sees art and how the historical critics about artistic production can contribute, using the research methods proposed by Erwin Panofsky – the iconographic/ iconological analysis – and Carlo Ginzburg – the indicia paradigm –, for the arise of one historical knowledge that don’t take this art only as a single product of certain Zeitgeist or as an unquestionable historic register.

Keywords: Ar t His tory; His tor ica l Methodology; Iconological Analysis; Indicia Paradigm.

Fig. 6 – Frans Janzsoon Post, Vue d’une sucrerie au Brésil; s.d.; óleo sobre tela, 117 X 167 cm;

Musée du Louvre, Paris. Foto disponível em: <http://www.louvre.fr/>.

Do mesmo modo que uma fotografia hoje pode ser retocada facilmente com o mais tímido software de edição de imagens – coisa, aliás, que sempre foi possível, por outros meios, desde os primórdios dos registros fotográficos analógicos25– uma pintura, um desenho, um baixo relevo ou uma escultura também podem maquiar a paisagem, omitir personagens, inserir outros, ou seja: fazer uma “representação” em seu mais estrito sentido, que pode ser tomada equivocadamente como uma verdade histórica inquestionável. A crítica histórica à obra de arte, portanto, constitui-se numa ferramenta imprescindível ao historiador, e penso mesmo que ela só se dá por inteiro quando concilia, como já afirmei, os métodos de Panofsky e Ginzburg.

***

25 Vide as fotos oficiais do regime stanilista, em que desafetos da cúpula comunista degredados para a Sibéria ou eliminados “desapareciam” como que por encanto de novas versões de uma mesma imagem, por exemplo.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 87

A HISTÓRIA DAS IDEIAS E OS LUGARES DA FALA:

UMA PERSPECTIVA CRÍTICA DAS IDEIAS DE

REPRESENTAÇÃO, IDEOLOGIA E REGIÃO

Carlos Henrique Armani1

INTRODUÇÃO

Ao pensarmos a relação da história com os lugares e com as falas, imediatamente estabelecemos um elo entre tais expressões e demarcamos um mundo a se falar: o mundo cujos limites são os limites da linguagem. Não da linguagem lógica, como sugere Wittgenstein2, de quem tomo emprestada essa expressão, mas o mundo da linguagem enquanto historicidade radical do pensar, a qual remete para aquilo que convencionalmente denominamos, nas ciências humanas, de horizonte inesgotável de significação. Para além de uma exteriorização fônica, de estados de ânimo, a capacidade de falar constitui, como propõe Heidegger, uma marca essencial do homem enquanto ser vivente3. Significa dizer, portanto, que a fala é uma dimensão comunicativa e existencial do ser humano, irredutível às tentativas classificatórias operadas pela lógica disjuntiva e pela razão dialética, cuja marca está presente em parte da tradição moderna da história intelectual.

A partir dessa perspectiva teórica, pretendemos investigar, não de modo sequencial, mas articulado, três ideias comumente trabalhadas nos estudos de história intelectual, especialmente quando tratamos de histórias que remetam a conceitos de identidade. A primeira delas é a ideia de representação enquanto presença; a segunda, a ideia de ideologia, e a terceira, o conceito de região. Todas essas expressões convergem em um ponto: a primazia conferida à totalidade e à unidade. Subsidiariamente, tais expressões remetem a uma ontologia do social, na medida em que seu funcionamento opera, muitas vezes, como uma forma de descrição de determinados locais de produção da identidade, tais como nação, Estado, instituição, região, grupo social e classe social.

A argumentação que desenvolvemos nesse artigo pretende ser uma resposta crítica – no sentido de pôr em crise e de problematizar – a subordinação da história das idéias à sociologia do conhecimento nos estudos sobre identidade, a partir daquelas três categorias acima arroladas. Como hipótese básica, entendemos que, quando tratamos dos estudos sobre identidade, há muito mais do que qualquer ontologia do social nas idéias. Há também uma articulação dos lugares de onde se fala e uma historicidade radical do pensamento que não o fixa em lugares determinados, nem a ideologias, mas sim a uma historicidade cuja temporalidade é a temporalidade do “ser-aí”, do “eu e minhas circunstâncias”.

1 Doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, com estágio na Universidade de Coimbra. Pós-doutorando em Teoria e Filosofia da História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com financiamento do CNPq, modalidade PDJ. Professor Adjunto do Departamento de Educação e Informação em Saúde da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre. E-mail: <[email protected]>.

2 WITTGENSTEIN, Tractatus logico-philosophicus. Madrid: Alianza, 2000, proposição 5.6.3 HEIDEGGER, Martin. De camino al habla. Barcelona: Serbal, 1987, p. 11.

88 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

Para facilitar a exposição, o artigo foi dividido em dois momentos: no primeiro, apresentaremos o pensamento de alguns autores fundamentais na demarcação ontológica do social na história das ideias; no segundo momento, pretendemos apresentar alguns limites do pensamento desses autores para pensar a questão da identidade nacional, regional ou ainda qualquer outra forma de construção identitária que possa remeter a uma totalidade representacional.

A HISTÓRIA E O SER SOCIAL DAS IDEIAS

Não seria de todo arbitrário começar a tratar dessa questão pela categoria representação e com aquele que tem sido um dos seus principais teóricos no âmbito do conhecimento histórico: Roger Chartier. De acordo com Chartier, a categoria representação tem pertinência operatória para tratar dos estudos de história cultural. Ao relatar um pouco da história do conceito, o autor afirma que tal expressão não era estranha às sociedades do Antigo Regime, época em que a palavra representação tinha ao menos dois sentidos: a representação como dando a ver uma coisa ausente, “o que supõe uma distinção radical entre aquilo que representa e aquilo que é representado”, e a representação como exibição pública de algo ou alguém. No primeiro sentido, a representação é um instrumento de um “conhecimento mediato que faz ver um objeto ausente através de sua substituição por uma ‘imagem’ capaz de o reconstituir em memória e de o figurar tal como ele é” (grifos meus)4. Para o autor, a representação permite articular três modalidades da relação com o mundo social: o trabalho de classificação e de delimitação, “que produz as configurações intelectuais múltiplas, através das quais a realidade é contraditoriamente construída pelos diferentes grupos”; as práticas que visam fazer reconhecer uma identidade social, “exibir uma maneira própria de estar no mundo, significar simbolicamente um estatuto e uma posição5; por fim, as formas “institucionalizadas e objetivadas graças às quais uns ‘representantes’ (instâncias coletivas ou pessoas singulares) marcam de forma visível e perpetuada a existência do grupo, da classe ou da comunidade”6. Enfim, retomando, em parte, a proposta de Schopenhauer, a “história cultural” pretende compreender, nas palavras de Chartier, “as práticas, complexas, múltiplas, diferenciadas, que constroem o mundo como representação”7.

Há uma certa afinidade teórica entre a proposta de Roger Chartier e de Pierre Bourdieu. Parcela importante do poder simbólico postulado por este último passa pela noção de uma crítica epistemológica das ciências e do conhecimento através da “história social de sua gênese e da sua utilização”, a “história social das categorias de pensamento do mundo social”8. Bourdieu sugere uma história crítica das representações sociais, que passa pelo conhecimento dos instrumentos de conhecimento, na medida em que qualquer realidade passa pela representação e depende “tão profundamente do conhecimento e do reconhecimento”9. O autor

4 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand, 1990, p. 20.

5 CHARTIER, A história cultural..., p. 23.6 CHARTIER, A história cultural..., p. 21.7 CHARTIER, A história cultural..., p. 28.8 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: DIFEL; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989, p. 107.

9 BOURDIEU, O poder..., p. 107.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 89

tem uma preocupação central com as práticas sociais de representação, o que o leva a problematizar, sobretudo, certos grupos, classes, instituições – ou, para usar a sua terminologia, região – que mobilizam representações na condição de estratégias de manipulação simbólicas interessadas em monopolizar a interpretação do que seja o real. O autor reconhece que tal regionalismo é apenas um caso particular das lutas simbólicas “em que os agentes estão envolvidos quer individualmente e em estado de dispersão, quer coletivamente e em estado de organização”10.

Ainda na esteira do poder simbólico, John Thompson faz uma história do conceito de ideologia e propõe uma série de estratégias de manipulação simbólica, o que o aproxima de Bourdieu, ao relacionar as formas simbólicas e seu entrecruzamento com relações de poder11. Nessa direção, estudar a ideologia “é estudar as maneiras como o sentido serve para estabelecer e sustentar relações de dominação”12. As formas simbólicas nada mais são, nas palavras de Thompson, do que “um amplo espectro de ações e falas, imagens e textos, que são produzidos por sujeitos e reconhecidos por eles e outros como construtos significativos”13, quer dizer, identidades e representações. Haveria, nas condições teóricas apresentadas pelo autor, basicamente cinco modos de operação das ideologias: legitimação, dissimulação, unificação, fragmentação e reificação. Elas se desdobrariam, por sua vez, em várias estratégias típicas de construção simbólica. No caso da legitimação, a racionalização, a universalização e a narrativização; à dissimulação corresponderiam as estratégias de deslocamento, eufemização e tropos lingüísticos como metáforas, metonímias e sinédoques; à unificação a estandardização e a simbolização da unidade; à fragmentação se relacionariam a diferenciação e o expurgo do outro; por fim, à reificação, corresponderia a naturalização, a eternalização e a nominalização.

No mesmo campo de problematização da representatividade, Michael Löwy tenta atenuar o peso epistemológico conferido à expressão ideologia. Em um dos seus livros mais teóricos a respeito do tema visão social de mundo – a maneira como ele traduz Weltanschauung – Löwy tenta escapar de uma tradição que concebe o pensamento e as cosmovisões como epifenômenos de uma materialidade supostamente pré-representacional. A ideologia, nos termos de Löwy – que, nesse aspecto em particular, segue a sociologia de Karl Mannheim – é o conjunto de todas aquelas “concepções, representações, teorias, que se orientam para a estabilização, ou legitimação, ou reprodução, da ordem estabelecida”14, enquanto que as utopias são “representações, teorias e idéias que aspiram a uma outra realidade ainda inexistente”, o que faz da ideologia e da utopia formas de um mesmo fenômeno: a existência de um conjunto estrutural e orgânico de idéias, de representações, teorias e doutrinas, “que são expressões de interesses sociais vinculados às posições sociais de grupos ou classes, podendo ser, segundo o caso, ideológico ou utópico”15. O sociólogo sugere que, no lugar da idéia de ideologia total proposta por Mannheim para apreender conceitualmente ideologia e utopia, seja colocada a expressão visão social de mundo, que seria o conjunto estruturado de valores, representações e

10 BOURDIEU, O poder..., p. 124.11 THOMPSON, John. Ideologia e cultura moderna. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 75.12 THOMPSON, Ideologia e cultura..., p. 77.13 THOMPSON, Ideologia e cultura..., p. 81.14 LÖWY, Michael. Ideologias e ciência social. São Paulo: Cortez, 1999, p. 13.15 LÖWY, Ideologias..., p. 13.

90 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

orientações cognitivas “unificados por uma perspectiva determinada, por um ponto de vista social, de classes sociais determinadas”16.

Essa ontologização das ideias a partir do social tem uma história relativamente comum com o desenvolvimento da sociologia do conhecimento. Aqui, convém lembrar de Karl Mannheim e seu clássico Ideologia e utopia, uma das contribuições mais sistemáticas para uma teorização social das ideias. Ademais, sua obra está nas origens da sociologia do conhecimento enquanto campo autônomo do saber. A grande crítica de Mannheim se direciona para os estudos das ideias que dão primazia para a lógica e para as histórias da filosofia vinculadas à criação individual. Sem negar a importância dessas visões, mas sim as suas limitações, Mannheim apresenta sua tese: “existem modos de pensamento que não podem ser compreendidos adequadamente enquanto se mantiverem obscuras suas origens sociais”17.

O sociólogo entende que, por mais criativo que seja um indivíduo, ele fala sempre a linguagem de seu grupo, dos seus contemporâneos e dos seus predecessores, o que faz o sociólogo do conhecimento partir não do indivíduo isolado, mas do “pensamento no contexto concreto de uma situação histórico-social, de onde só muito gradativamente emerge o pensamento individualmente diferenciado”18. O segundo aspecto salientado pelo autor em seu método é “não separar os modos de pensamento concretamente existentes do contexto de ação coletiva por meio do qual, em um sentido intelectual, descobrimos inicialmente o mundo”19. De acordo com esse contexto particular da atividade coletiva de que participam, os homens tendem sempre a ver diferentemente o mundo que os circunda. Mannheim não deixa de ressaltar a importância das diferentes conformações sociais e históricas para a construção das idéias em nível de coletividade20. Na sua teoria, há uma série de variáveis que se contrapõem à determinação das classes sociais. Entre elas, o autor salienta a noção de perspectiva, como o “modo global de o sujeito conceber as coisas, tal como determinado pelo seu contexto histórico e social”21. No lugar de uma perspectiva classista, ele preconiza uma série de outros termos, que se consubstanciam na idéia de “grupo”, abrangendo as noções de classes, status, seitas, grupos ocupacionais, escolas e época22. A fim de combater qualquer forma de determinismo social do pensamento, Mannheim entende que há uma determinação existencial do conhecimento – Seinsverbundenheit des Wissens –, o que significa dizer que a emergência e a “cristalização do pensamento efetivo são influenciadas em muitos pontos decisivos por fatores extrateóricos dos mais diversos tipos”, “fatores existenciais”, em contraposição “aos fatores puramente teóricos”23.

Feita essa apresentação sumária, perguntamos: quais são os limites dessas categorias para trabalharmos a história intelectual, campo de conhecimento por excelência das práticas de representação? Cabe ressaltar, a priori, que não se trata de reivindicar uma autonomia das idéias no sentido de seu isolamento, como se os

16 LÖWY, Ideologias..., p. 14.17 MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. Rio de Janeiro: Zahar, 1972, p. 30.18 MANNHEIM, Ideologia..., p. 30.19 MANNHEIM, Ideologia..., p. 30-31.20 MANNHEIM, Ideologia..., p. 287.21 MANNHEIM, Ideologia..., p. 288.22 MANNHEIM, Ideologia..., p. 297.23 MANNHEIM, Ideologia..., p. 289.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 91

intelectuais fossem habitantes do Universo e da eternidade. Michel de Certeau chama a atenção para aquelas perspectivas, muitas vezes atreladas a uma certa história da filosofia e da ciência, que dicotomizam a sua análise social e a sua interpretação em termos de história das ideias24. Evidentemente, não pretendemos contribuir para essa dicotomização do saber.

ALGUNS LIMITES TEÓRICOS

Ao se pensar nas relações simbólicas que os homens estabelecem entre si, há indubitavelmente uma certa riqueza teórica dos diversos modus operandi da ideologia, o que contribui, inclusive, para retirar da ideologia sua dimensão demasiadamente sedimentada e substancializada. A primeira questão que fica, porém, é: por que há a necessidade de se pensar o conjunto dessas dimensões do pensamento em termos de dominação, totalidade e unidade? Por mais que os intelectuais intentem persuadir seus interlocutores, não haveria aí uma espécie de pharmakon, para falar com Derrida, a droga como remédio e veneno que se introduz “no corpo do discurso com toda a sua ambivalência”25 e contamina a sua intencionalidade e sua a uniformidade, sem que tal “estratégia” de fragmentação se reduza a uma construção ideológica? Muito mais do que estratégias de persuasão e dominação, as narrativas e as fragmentações aparecem como a impossibilidade de demarcar o significado homogêneo daquilo que supostamente se representa, sem que tal disjunção seja uma operação ideológica para fins de dominação. A narrativa, no sentido benjaminiano, ao apresentar a alteridade do citável, do cronista cuja narrativa leva em conta “a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser perdido para a história”26, parece problematizar bem esse sentido de homogeneização operado na história – o tempo homogêneo e vazio.

Nesse sentido, algumas críticas podem ser realizadas em relação àqueles trabalhos mencionados. A começar por Thompson, o autor peca por retornar ao ponto de partida que ele pretende questionar: o fardo epistemológico, que ao longo da história do conceito, se conferiu à ideologia. Evidentemente, podemos perceber que o autor não tem intenção de afirmar que todas as relações simbólicas sejam canalizadas para efeitos de dominação27, o que significa afirmar que nem todas as manifestações da atividade do pensamento sejam ideologia, mas somente aquelas que se colocam em termos de relação de poder. Mas como determinar, epistemologicamente, o que é e o que não é relação de dominação? O que poderia diferenciar uma ideologia (no sentido proposto pelo autor) de uma cosmovisão, se não o peso epistemológico que se confere àqueles diversos modos de operação do pensamento, para convertê-los em estratégias de dominação?

Löwy tem o mérito de fragilizar, do mesmo modo que Thompson, o peso epistemológico das representações sociais ao condicioná-las a duas esferas de configuração do pensamento, as ideologias e as utopias. O problema de seu estudo está relacionado à excessiva uniformização do pensamento, seja ele ideológico, seja ele utópico, e seu direcionamento a uma perspectiva de classe social determinada.

24 CERTEAU, Michel de. L’écriture de l’histoire. Paris: Gallimard, 1975, p. 89.25 DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras, 2006, p. 14.26 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: __________. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 223.

27 THOMPSON, Ideologia e cultura..., p. 90-91.

92 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

Em termos metodológicos, Löwy sugere que a dialética é suficientemente plausível para lidar com o problema das visões sociais de mundo, ao sugerir que nada pode ser concebido como eterno, fixo e absoluto28. Ademais, o pensamento dialético ainda seria o pensamento da totalidade e da contradição, no seio do qual se deveria perceber a relação de todas as coisas em seu conjunto social, a totalidade da vida social consubstanciada na classe social. A contradição, por sua vez, permite, ainda nos termos do autor, pensar as visões de mundo como “necessariamente contraditórias”, um “enfrentamento permanente entre ideologias e utopias na sociedade, correspondendo, em última análise, aos enfrentamentos das várias classes sociais ou grupos sociais que a compõem. O sociólogo postula a ideia de que não existe um consenso total, “não existe simplesmente uma ideologia dominante, existem enfrentamentos ideológicos, contradições entre ideologias, utopias ou visões sociais de mundo conflituais, contraditórias”29.

Chartier afirma que através da representação é possível ver um objeto ausente pela sua substituição por uma imagem que o “reconstitui em memória e o figura tal como ele é”. Sem querer insistir no “é” demasiadamente ontológico, torna-se possível perceber outras dificuldades para pensar a categoria representação como uma expressão única e suficientemente pertinente, posto que ela remete às “práticas que visam fazer reconhecer uma identidade social”, afinal, os “representantes” marcariam de forma visível e perpetuada a existência do “grupo, da classe ou da comunidade”. Notemos que, das três modalidades de relação da representação com o mundo social propostas por Chartier, duas delas têm uma profunda articulação com grupos e classes sociais.

Em Bourdieu, a situação não é diferente, ao ontologizar as representações e forças simbólicas através da idéia de região (regionalismo, nacionalismo etc.) que, por mais distante que esteja de um sujeito universal des-historicizado, não deixa de se manter leal a uma ontologia do social, mesmo no reconhecimento da diferença na igualdade e da igualdade no reconhecimento da diferença.

Curiosamente, talvez a exceção seja Mannheim, ao sutilmente sugerir instâncias metateóricas e existenciais na determinação do pensamento (Seinsverbundenheit des Wissens), o que permite pensar o pensamento em termos de inerência, mas também relação, conexão, conectividade e solidariedade, sem remeter o pensamento, as representações e as teorias a quaisquer instâncias de determinação social e total.

Entendo que, ao pensar a representação, as ideologias e as identidades como ser social das idéias, há insuficiência no fato de elas irem de encontro a uma razão radicalmente histórica. Conceber o mundo como representação ou pensar a representação totalizante apenas através dos agentes sociais, das classes e dos grupos é uma visão da cultura intelectual ainda presa a uma certa sociologia do conhecimento que substancializa o pensamento e historiciza os sujeitos dessas representações. Por mais que se queira distanciar-se do modo de produção classista do conhecimento, ele ainda se mantém como instância última desse simbólico, uma suposto lastro de materialidade que serviria de suporte para dar realidade às idéias.

Como sugere a filósofa Bernadette Abrão, o termo representação é uma operação da razão que indica o reapresentar, tornar de novo presente” um mundo

28 LÖWY, Ideologias..., p. 14.29 LÖWY, Ideologias..., p. 17.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 93

disperso, múltiplo e relativo30. Não obstante, esse “tornar de novo presente” a imagem unificada do mundo é também destruir o que se apresenta como disperso e desconexo. A representação nega e ultrapassa a realidade visível e sensível, e produz “um outro mundo, racionalmente compreensível porque reordenado pela própria razão”31. Não há dúvida de que grupos sociais, nacionais, época, representantes de regiões e instituições, de um modo geral, esforçam-se sobremaneira em criar imagens unívocas daquilo que é representado – a classe, o grupo, a nação, a região, a família, a instituição, a época. A representação é fundamental para qualquer exercício coletivo de identidade que se constitui em sociedade. Do contrário, sequer poderíamos tomar como campo de reflexão a construção das identidades em escalas nacionais, regionais e globais.

A questão é que, no seio dessas representações que implicam o movimento das ideias e também a sua imobilização, há uma densidade monadológica saturada de tensões 32– para voltarmos a Benjamin –, que se articula em identidade e diferença, permanência e mudança, unidade e pluralidade e evocam uma performatividade das ideias no seu interior que pode se expressar, seja através do pensamento de um sujeito individual, seja por meio de sujeitos coletivos que partilham ideias comuns a seus grupos, famílias, épocas e instituições, mas cujas ideias se configuram em rasuras da representação total, dos objetivos únicos, das grandes narrativas de emancipação do sujeito racional, nacional e social. Trata-se de uma crítica dos metadiscursos e da “instituição universitária” que dela depende33. Impõe-se a pensar que há certos jogos de linguagem cuja historicidade não fixa o pertencimento a um desses grupos em especial, nem faz do pensamento algo produzido por um sujeito centrado e consciente de si mesmo.

Ao efetivar uma história das ideias acerca da nação ou da região enquanto subsidiária da nação, a historicização do pensamento e o seu entendimento enquanto heteronímia posicional 34, como possibilidade sempre aberta de ser reinventado, é uma postura teórico-metodológica que deve ser levada seriamente em consideração. Trata-se da relação da presença em ausência no pensamento, o surpreender-se com a habilidade imoderada que o humano tem em produzir, com certa rapidez, surpresas em relação a si mesmo – o seu outro no mesmo, a sua alteridade na identidade35.

É evidente que os intelectuais estão vinculados a uma comumunidade imaginada (região que se torna nação, diria Bourdieu) e partilham com seus contemporâneos, com as suas instituições, com o seu status, com a sua classe, com os seus grupos diversas imagens e sistemas de valores, sem que tal pensamento, contudo, se fixe ontologicamente a um desses segmentos sociais. É essa não-fixação, o pharmakon do discurso, a différance e o deslizamento das ideias no âmago da sociedade que importa reter ao fazermos uma história das representações. A fixação de uma representação e de uma identidade em uma região tende a essencializar a comunidade, o que nada mais é, nas palavras de Stuart Hall, do que uma “fantasia de plenitude em

30 ABRÃO, Bernadette Siqueira. História da filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 186.31 ABRÃO, História..., p. 186.32 BENJAMIN, Sobre o conceito..., p. 231.33 LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Lisboa: Gradiva, 2003, p. 12.34 MARTINS, Rui Cunha. O paradoxo da demarcação emancipatória: a fronteira na era de sua reprodutibilidade icónica. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 59, fev. 2001, p. 58.

35 RUNIA, Eelco. Presence. History and Theory. Wesleyan University, n. 45, feb. 2006, p. 6.

94 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

circunstâncias de perda imaginada”36.

Na condição de alternativa, sugiro, como possibilidade de tratamento de conceitos fundamentais como região, ideologia e representação, uma hermenêutica heterotópica, que demarca sua posição na cadeia de significados sem se esgotar, em nenhum momento, em qualquer dialética que supostamente a leve a um estágio superior de definição do significado. Trata-se, tal como Santos sugere, de uma zona fronteiriça onde ocorrem constantemente “negociações de sentido” e “jogos de polissemia”37. Não obstante, tal zona não se exaure em uma contradição entre a diferenciação da cultura do território nacional e/ou regional face ao exterior e a promoção da homogeneidade cultural no seu interior na condição de ideologia, utopia e visão de mundo. Homogeneidade e diferenciação acontecem simultaneamente nas fronteiras externas e internas da nação e da região em suas polissêmicas e distintas, mas nem sempre claras identidades. A lógica da différance enquanto errância empírica sugere uma heterotopia, um deslocamento constante do significado, do conceito, da representação que rasura a própria plausibilidade de pensá-la como totalidade e essência daquilo que é ausente. A hermenêutica heterotópica tem a ver com aquela temporalidade da negociação/ tradução da qual fala Bhabha, em que cada posição é sempre um processo de tradução e de transferência de sentido, “o objetivo construído sobre o traço daquela perspectiva que ele rasura”38. O processo de significação “destrói o espelho da representação em que o conhecimento cultural é em geral revelado como código integrado” e assume uma temporalidade disruptiva que desafia “nossa noção de identidade histórica da cultura como força homogeneizante, unificadora, autenticada pelo passado originário mantido vivo na tradição nacional do povo”39.

Isso quer dizer, para retomar Hall, que nossas identidades culturais, em qualquer forma acabada, “estão à nossa frente” porque “estamos sempre em processo de formação cultural. A cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de tornar-se”40. São sempre processos de identificação cultural que estão em jogo, e nunca identidades cristalizadas. Hall propõe que, em vez de pensar as culturas nacionais, regionais e grupais como unificadas, deveríamos pensá-las como constituindo um dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade41, ou seja, não como algo permanente, idêntico-a-si-mesmo através do tempo, mas sim como um processo de identificação, articulação, suturação e sobredeterminação, e não uma subsunção.

Aqui tentamos lançar bases para um pensamento radicalmente histórico sobre as identidades e representações culturais, ao deslocar a “natureza” da identidade ao chamar a atenção para a diferença, para a alteridade e nesse sentido, para a própria dimensão de infinito de significação que as identidades potencialmente comportam. Ao afirmar a historicidade dessas identidades, afastamos aquilo que

36 HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora da UFMG; Brasília: UNESCO, 2003, p. 83.

37 SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1996, p. 135.38 BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998, p. 52-53.39 BHABHA, O local..., p. 53.40 HALL, Da diáspora..., p. 44.41 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002, p. 62.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 95

seria uma celebração das substancializações da memória e de sua legitimação via dispositivos discursivos que recorrentemente patrimonializam o passado através de uma excessiva memorialização e o jogam para fora da própria história. Portanto, a escrita da região (e, no seu interior, a etnia, a língua, o território, a cultura etc.), torna-se uma tarefa de rasura da própria tradição – o que Bhabha denominaria performatividade –, não no sentido de negá-la, mas de pensar e problematizar esse passado a partir do horizonte inesgotável da linguagem.

Por exemplo, pensar historicamente a identidade nacional e a demarcação de suas fronteiras nacionais e regionais seria apenas diagnosticar o seu surgimento e desenvolvimento através do tempo? Ou haveria algo mais, uma margem da história onde poderíamos escrever outras histórias sobre a nação e sobre a própria história? O mesmo vale para as histórias regionais e setoriais, para as identidades étnicas e para as identidades individuais. Tomemos outro exemplo: o caso de Stuart Hall que, em um pequeno relato de sua própria história de vida, problematiza a ideia de qualquer fixidez identitária, seja em relação ao ser nacional – a jamaicanidade – , seja por meio da identidade étnica, o ser negro 42. Hall afirma que ao longo de sua vida, os significantes negro, de cor e preto assumiram diversos significados diferentes em contextos os mais variados. Quando ainda residente na Jamaica, Hall era definido como “de cor”, o que demarcava um significado de raça e etnia que produzia o não-negro e o resto, ou seja, a gente comum, o povo. Quando Hall emigrou para a Inglaterra, lá ele se tornou uma série de abstrações como negro, preto e imigrante através de um sistema de representação dicotômico apropriado à ordem colonizadora branco/ não-branco. O não-branco fazia parte daquele não-ser que não pertencia ao ser nacional britânico. Estafado de tantos conceitos para representar a sua identidade, Stuart Hall pergunta:

“Enquanto indivíduo vivo e concreto, sou mesmo qualquer uma dessas interpelações? Alguma delas me esgota? Na verdade, eu não sou nem uma nem outra dessas formas de me representar, embora tenha sido todas elas em épocas diferentes e ainda seja algumas delas, até certo ponto. Porém, não existe um eu essencial, unitário –apenas o sujeito fragmentário e contrário que me torno”.43

A narrativa de Hall é ilustrativa do que tenho tentado demonstrar no texto. Como definir precisamente nossa representação da nação, da região, da ideologia e da identidade? Por que temos de fixar de modo peremptório o ser e demarcar substantivamente uma identidade, se vivemos constantemente nas fronteiras? Brasilidade, ser gaúcho, ser paulista, germanidade, branquitude, negritude, e outros conceitos nada mais são do que cristalizações da história que se servem constantemente de seu esvaziamento temporal, em nome de uma identidade maior que consubstancia pensamento e ser, tendo efeitos políticos, em situações diversas, bastante nefastos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De acordo com Ginzburg, nas ciências humanas fala-se muito e há muito

42 HALL, Da diáspora..., p. 188.43 HALL, Da diáspora..., p. 188.

96 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

tempo sobre representação. Ao problematizar tal termo, o historiador afirma que a articulação da presença e da ausência que o conceito sugere é um “aborrecido jogo de espelhos”, do qual ele não faz questão de participar. Ao que tudo indica, Ginzburg encaminha tal tarefa para o que ele denomina, não sem certo sarcasmo, como os “críticos do positivismo, os pós-modernistas céticos e os cultores da metafísica da ausência”44. Ginzburg tem a pretensão de ser um daqueles historiadores anti-metafísicos que desdenham qualquer reflexão sobre a ausência. Não obstante, seu trabalho, do ponto de vista teórico, se sustenta em uma epistemologia da visibilidade, ou metafísica da presença, que tenta, sob a proteção do arquivo, virar as costas para as questões filosóficas cruciais que pedem passagem na história, sob o álibi de que essas questões são metafísicas e não pertencem ao campo de reflexão do historiador e da epistemologia da história.

Ao longo do texto apresentado nessas linhas, tudo o que tentei fazer foi uma pequena contribuição para pensar essas questões “metafísicas” e “transcendentes” – se entendermos a transcendência e a metafísica como a capacidade que temos de ir além, de não encerrar tudo numa resposta, continuar com a pergunta, sustentar a finitude, um já-sempre-estar além de si mesmo – através dos conceitos de representação, de identidade, de ideologia e de região. O ruído provocado em tais expressões no decorrer de uma tradição recente das ciências humanas problematiza a situação de uma epistemologia segura de si mesma na história intelectual. Os lugares de onde se fala e os lugares da fala não são fixos como uma certa ontologia sugere. Os deslocamentos, as articulações, as miscibilidades são infinitas. Ao remetermo-nos para uma crítica não somente das ontologias da nação, mas também de qualquer forma onto-teológica da cultura, o pensamento e a sua história imergem em um mar de devir que se canaliza para as margens das metanarrativas e rasura a coerência e a auto-suficiência de um logos, pretensamente trans-histórico, que se pretendeu legitimar através dos séculos, o mesmo logos fundacional dessas metanarrativas de fixação da fala ao lugar e de glorificação do ser nacional, do ser social, do ser regional ou de qualquer outro ser nutrido às custas de uma sedimentação da própria história.

***

44 GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 85. Ver, em especial, o capítulo 3: Representação: a palavra, a idéia, a coisa.

RESUMO

O objetivo desse artigo é problematizar a história das ideias a partir de três conceitos articulados na produção do seu conhecimento: as idéias de representação, de ideologia e de região. Entendemos que tais conceitos têm contribuído mais para uma sedimentação da história do que propriamente para a sua historicidade. Nesse sentido, objetivamos pensar a história das idéias em uma esfera de historicidade cujo horizonte é a temporalidade.

Palavras Chave: História das Ideias; Representação; Ideologia; Região.

ABSTRACT

The aim of this article is to problematize history of ideas through three concepts articulated to the construction of its knowledge: the ideas of representation, ideology and region. We understand that those concepts have contributed more to a sedimentation of history than propely to its historicity. In this way, we propose to think history of ideas in a sphere of historicity whose horizon is temporality.

Keywords: History of Ideas; Representation; Ideology; Region.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 97

HISTÓRIA DO PODER POLÍTICO E TEORIA SOCIAL:

APONTAMENTOS PARA UM ESTUDO SOBRE AS RELAÇÕES

ENTRE O PODER POLÍTICO E O CRIME NA AMÉRICA

PORTUGUESA

Paulo Henrique Marques de Queiroz Guedes1

INTRODUÇÃO

Nosso estudo de doutorado, que tem como título “O sertão da Paraíba: poder político, cultura e criminalidade (1740-1799)”, centra-se na análise do universo político-cultural sertanejo consubstanciado pelas práticas do mando e dos atos ilícitos na Paraíba setecentista. Neste sentido, pretendemos entender as manifestações do poder político no sertão, contribuindo desta maneira com o debate acerca das relações sociais no hinterland do Brasil, bem como enfatizando a diversidade destas relações numa sociedade escravista. Destacaremos assim, como especificidades desse objetivo, o mandonismo local e suas reações e conexões com as estruturas de poder regionais ou centrais, as manifestações da criminalidade na sociedade em questão e a natureza dos constantes conflitos e complementaridades entre a justiça oficial e a justiça costumeira.

O artigo que ora apresentamos é resultado de reflexões acerca das possibilidades de norteamento teórico da pesquisa. Para tanto, lançamos mão de uma discussão que enfatiza o diálogo entre a história do poder político e a teoria social. Inicialmente traçamos um panorama da trajetória dos estudos no campo da antropologia da política com o objetivo de mostrarmos os pontos de aproximação, a partir da década de 1970, com a história do poder político. Esta aproximação, por sua vez, deu origem a uma renovação no campo dos estudos do poder político na história e que teve igualmente pontos de intersecção – tanto no plano conceitual quanto acerca das abordagens propostas – com a história social e cultural. Assim, para discutir a temática da pluralidade política e jurídica, característica marcante das sociedades do Antigo Regime, torna-se necessário igualmente refletir sobre as contribuições no campo da teoria social que dêem suporte teórico-conceitual para a análise das relações entre poder político (formal e informal) e a criminalidade ou desvios de conduta na América portuguesa, objeto central de nossa proposta de tese.

Tomando por base essa abordagem temática, faz-se necessária sólida base teórica que enfoque a pelo menos dois conjuntos de problemas centrais: a natureza do poder político, e; as relações entre a lei (direito) e a sociedade. Situando nossa pesquisa no campo amplo da história do poder político, torna-se importante proceder a uma discussão que destaque a importância da teoria social para este campo de estudos, que tem como um de seus objetivos privilegiados entender como os atores sociais compreendem e vivenciam o poder político num dado contexto. Em outras palavras, trata-se de perceber como eles interagem e se influenciam reciprocamente por meio

1 Doutorando em História pela Universidade Federal de Pernambuco. E-Mail: <[email protected]>.

98 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

de complexas e dinâmicas relações. Merece igual destaque, quanto à questão da criminalidade, as contribuições da história social que tornou este, um problema histórico de crescente visibilidade nas últimas décadas. Também devemos ressaltar a pertinência de alguns conceitos das ciências sociais que, desde as últimas décadas, são largamente utilizados, principalmente no campo da história cultural, os quais consideramos importantes enquanto elementos balizadores quanto as relações sociais de poder que enfocamos em nosso trabalho de tese.

A INTERFACE ENTRE HISTÓRIA E TEORIA SOCIAL:ABORDAGENS, PROBLEMAS E CONCEITOS PARA UM ESTUDO

DO PODER POLÍTICO NA AMÉRICA PORTUGUESA

Nosso objetivo inicial neste artigo será analisar o sistema de poder político como objeto recortado – mas de modo algum dissociado – de outros sistemas de poder (econômico, simbólico, dentre outros). Ressaltamos, contudo, a importância de levar em conta a heterogeneidade de uma sociedade, tal como a sertaneja no século XVIII, formada por redes com múltiplas percepções e aspirações. Desta forma, os fenômenos políticos não podem ser vistos como um dado à priori. Noutro sentido, o poder político deve ser investigado a partir dos comportamentos sociais, das práticas em contextos particulares que por sua vez são – pelo menos em algumas de suas características – passíveis de generalizações.

Assim, foi principalmente a antropologia da política que se configurou, nas últimas décadas, como uma interlocutora importante da historia, principalmente em abordagens que privilegiam as dimensões simbólicas do poder político2. Contudo, este encontro tardio não reflete de modo algum o antigo interesse pela política em ambas as áreas de conhecimento3. Ainda assim, é imprescindível para o historiador do poder político entender a trajetória recente que levou a esta aproximação em novos moldes.

Conforme explica Karina Kuschnir, o termo antropologia da política (ou antropologia política como é mais conhecido entre os historiadores) foi consagrado a partir de 1959 em razão de um trabalho produzido por David Easton, que elaborou uma síntese bibliográfica sobre o tema. A autora explica que Easton, nesta obra, cobrou de forma pioneira, uma autonomia temática no âmbito da antropologia em relação às práticas e instituições políticas.

Criticando Easton pela ausência de uma visão “relacional” em seus estudos, o antropólogo Raddiclff-Brown entendia os estudos dos sistemas políticos como um meio para entender as instituições sociais. Pouco depois, sob influência do estruturalismo e da pesquisa etnográfica, os estudos no campo da antropologia da política foram sendo dissociados dos modelos das sociedades ocidentais contemporâneas, o que ajudou sobremaneira a combater visões etnocêntricas que entendiam a política como instância necessariamente ligada ao Estado4. Sobre este aspecto, aliás, é importante lembrar as contribuições de E. E. Evans-Pritchard, que combateu as visões 2 KUSCHNIR, Karina. Antropologia da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p. 19.3 KUSCHNIR, Antropologia..., p. 11. É bem conhecido o interesse do evolucionismo do século XIX pela política no sentido de demonstrar as etapas que levavam da “horda primitiva” ao Estado moderno, embora não existisse neste contexto um campo específico para a política na antropologia. Foi somente no início do século XX, principalmente com o funcionalismo britânico, que este campo específico surgiu enfocando principalmente os temas da hierarquia, parentesco e coesão social.

4 KUSCHNIR, Antropologia..., p. 12-13.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 99

etnocêntricas dissociando a compreensão dos fenômenos políticos dos modelos das sociedades ocidentais. Estudando o sistema político entre os Nuer (povo que vive na África central), o autor demonstra como o problema do parentesco era a chave para o entendimento daquela forma de organização política.

Também na linha de frente do combate as visões etnocêntricas acerca da política, situava-se o antropólogo francês Pierre Clastres, que destacou em seus trabalhos a natureza do poder político nas sociedades indivisas, ao passo que rejeitava o evolucionismo político e a hierarquização de valores no campo político5. Para Clastres, em qualquer sociedade “o social é o político, o político é o exercício do poder”6. Talvez tenha sido este, o autor que elaborou, no campo antropológico, a relativização mais radical da noção de política demonstrando a universalização e autonomia do poder numa perspectiva claramente anti-economicista.

Outro antropólogo da política de bastante destaque neste debate foi Edmund Leach. O pensamento do autor foi especialmente importante para história, na medida em que criticou duramente a ideia de “sociedade em equilíbrio contínuo”, de Evans-Pritchard, apontando desta forma para as necessárias interações entre estrutura e evento. Neste sentido, Leach demonstra em seus trabalhos, a contrapelo do estruturalismo clássico então em evidência, que as sociedades, do ponto de vista do poder político, estão em permanente mudança e que o estudo dos processos históricos seria o melhor caminho para apreender uma realidade a partir da análise dos mecanismos de integração e conflito que, segundo o autor, caracterizam todas as sociedades do ponto de vista político7.

Feito este rápido percurso, poderíamos afirmar que a trajetória da antropologia da política pode ser genericamente dividida em dois grandes momentos. No primeiro deles, até as décadas de 1950-60, a ênfase dos estudos recaiu sobre os elementos de coesão e equilíbrio social no universo político (trata-se de uma herança claramente durkheiniana). A partir das décadas de 1970-1980, por outro lado, houve maior interesse sobre as diferentes formas de relações de poder, não só no espaço, como também no tempo. Assim, neste último caso, evidenciaram-se as transformações sociais, representações e práticas ampliando-se o conceito de política com o estudo do poder político nas sociedades indivisas, de baixa institucionalidade ou mesmo relacionando os fenômenos políticos aos valores morais. Um trabalho pioneiro e de referência nesta perspectiva, e de grande inspiração teórica para nosso estudo, é a obra “Sociedade de Esquina”, de Willian Foote Whyte (publicado em 1943), no qual se relacionou política e o mundo do crime, destacando as redes de obrigações mútuas (lealdades) e trocas de favores como base das relações8.

Segundo Karina Kuschnir, as décadas de 1960-70 representaram um contexto de grande efervescência da temática política na antropologia, a partir da cristalização da ideia de que as relações de poder são intrínsecas as relações sociais. Neste período, alguns nomes de destaque neste campo de estudos foram F. Mc Glynn, A. Tuden, Joan Vicent e Victor Turner. Este último, por exemplo, é tido como criador do método de

5 CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado. 5. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990. Ver também do mesmo autor: Arqueologia da violência: pesquisa de antropologia política. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.

6 CLASTRES, A sociedade..., p. 146.7 KUSCHNIR, Antropologia..., p. 13. 8 WHYTE, Willian Foote. Sociedade de esquina. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

100 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

análise conhecido como “dramas sociais”, no qual são analisados episódios em que irrompem tensões e conflitos inerentes a uma realidade social. Para nosso trabalho, é importante destacar a ênfase dos trabalhos do autor na permanente oscilação entre ordem e mudança, equilíbrio e desequilíbrio, estrutura e anti-estrutura.

Em se tratando de história, é importante destacar que as relações entre poder político e criminalidade no sertão da Paraíba setecentista ensejam problemas que, do ponto de vista teórico, tem sua origem na história do poder político, bem como na história social. Começando pelo primeiro campo, é importante lembrar este aspecto uma vez que, tradicionalmente, o conceito de poder tem sido usado na historiografia, incorretamente, como sinônimo de política. Noutro sentido, a historiografia do político nas últimas décadas tem redimensionando tal enfoque na medida em que o Estado e suas instâncias administrativas deixaram de ser o principal – e em alguns casos o único – foco de atenção das análises. Dito isso, ressaltamos os fortes vínculos de nossa pesquisa com este campo historiográfico, em razão de nossa preocupação em revelar a heterogeneidade das manifestações do poder no contexto em questão. Trata-se do poder político visto como objeto de investigação, enquanto estratégia social corporificada nas práticas, comportamentos e normas de conduta que variam em sua natureza, de acordo com diferentes espaços e temporalidades.

São por demais conhecidas, entre os historiadores, as críticas direcionadas a uma historiografia tradicional, que cristalizou a política como única forma de poder, elegendo-a ainda como objeto privilegiado. Presente desde a historiografia grega clássica, este tipo de história tornou-se majoritária até o início do século XX, momento em que começou a ser duramente criticada pela sua ênfase nos eventos protagonizados por “grandes homens”. Tratava-se de uma orientação política da história, enfocando assuntos dos interesses dos Estados ou dinastias de maneira excessivamente descritiva. A este respeito cabe lembrar que o advento da corrente historiográfica denominada de Romantismo, no século XIX, veio a reforçar os valores dessa história política, na medida em que erigiu o Estado-nação como temática principal e a narrativa (factual, cronológica, linear) como modelo. Sobre isso, trata Francisco Falcon, quando ressalta o fato de esta escola historiográfica ter ficado refém de uma visão institucionalizada do poder9. Segundo o autor, foi o historicismo no início do século XX, em vários países, que principiou alguma crítica a chamada “história tradicional” sem, contudo, conseguir romper com ela. O início da ruptura ocorreu, sobretudo, sob influência das intensas mudanças historiográficas promovidas pela Escola dos Annales, muito embora, os temas ligados a política, mesmo no modelo tradicional, não desapareceram completamente de cena10.

O autor identifica ainda, o período entre o final da segunda guerra mundial e o fim da década de 196011 como tendo sido marcado intensamente por uma crise mais aguda da história política tradicional, ao passo em que o período posterior

9 FALCON, Francisco. História e poder. In: CARDOSO, Ciro Flamarion S.; VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Elsevier, 1997, p. 61-89.

10 FALCON, História..., p. 65-66. Quanto a alguns representantes desta escola historiográfica F. Falcon menciona Meinecke e Troeltsch, na Alemanha; Benedito Croce, na Itália e Collingwood, na Inglaterra (p. 67).

11 FALCON, História..., p. 71-75. Neste período a “historiografia tradicional” recebeu críticas, dos representantes dos Annales e marxistas, por um lado, como também do estruturalismo então em pleno fôlego. Contudo, é importante destacar o desconhecimento por parte destes últimos que acreditavam que toda a história produzida tinha ainda as características do modelo “tradicional”.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 101

teria representado uma gradual e progressiva constituição de uma “nova história política”. É importante, contudo, relativizar neste momento o impacto, fora da França, desse desprestígio completo da “história tradicional”, conforme alerta Falcon. Pelo contrário, no mais das vezes, em muitos países, ela passou a conviver com modelos historiográficos renovados e em outros casos continuou sendo a forma de escrita de história hegemônica até bem pouco tempo12. Vale salientar que a chamada “nova história francesa”, acentuou ainda mais a distância em relação a “historiografia tradicional”, ao passo que ajudou a reabilitar, por outros caminhos, a história do poder e da política, principalmente através das alianças promovidas com a antropologia13. Assim, o retorno da política com outras abordagens (a partir da década de 1970) é resultado de certa reação a história estruturalista característica da segunda geração da Escola dos Annales (seja ela de cunho braudeliana ou marxista) estando associada “a redescoberta da importância do agir em oposição à estrutura”14.

Esta “nova história do poder” começou por redefinir o conceito de política e sua associação com o poder sob influência da antropologia. O resultado direto desta redefinição foi uma ampla inovação temática voltada para entendimento do poder fora das instituições propriamente políticas, num movimento que vinculou o poder político ao cotidiano na análise historiográfica. Assim, a aproximação com a antropologia também fez emergir essa temática ao nível das representações e práticas sociais, com destaque para o problema do simbólico inserido no campo de estudos denominado de cultura política15.

Sobre isso é bom lembrar que o uso do conceito de cultura política por parte dos historiadores esta intimamente relacionado à hegemonia do “paradigma culturalista”, com sua ênfase nos valores, crenças, normas e representações, conforme explica Rodrigo Patto Sá Motta16. Trata-se de uma ideia que se contrapõe ao paradigma iluminista no sentido do homem como ator social politicamente racional. Noutra direção, o conceito de cultura política aponta para a compreensão das ações políticas a partir do entendimento dos valores, sentimentos e tradições, ou seja, do político explicado pela cultura. Para nosso estudo, este conceito relaciona-se a necessidade de nossa parte de apreender o conjunto de valores e tradições do universo cultural sertanejo como base para o entendimento dos comportamentos relacionados à

12 FALCON, História..., p. p. 70. No Brasil, a historiografia tradicional foi o modelo hegemônico, com algumas exceções, até pelo menos a década de 1970, compartilhando as mesmas características gerais da escola metódica originária da Europa.

13 FALCON, História..., p. 75. Quanto a este aspecto é importante fazer menção a redescoberta, por parte dos historiadores desse período, de Max Weber, bem como, a descoberta, um tanto quanto tardia, de Nobert Elias e os impactos dos trabalhos de Michel Foucault sobre o micro-poder e de Pierre Bourdieu, acerca do poder simbólico (p. 71-75).

14 BURKE, Peter. A escola dos Annales: a revolução francesa da historiografia. São Paulo: Editora da UNESP, 1997, p. 103.

15 BURKE, A escola..., p. 76. Para os estudos neste campo têm especial importância o conceito de cultura política criado na década de 1960 pelos cientistas políticos G. Almond e Sidney Verba. A utilização deste conceito remete a combinação da antropologia e da psicologia no estudo do campo político com ênfase em aspectos culturais como as percepções, representações e sentimentos. Muito embora este conceito seja bastante utilizado pelos historiadores que tratam de sociedades de massa, democráticas, não se pode dizer o mesmo em relação a antropologia que faz relativamente pouco uso do conceito.

16 MOTTA, Rodrigo Patto Sá (org.). Culturas políticas na história: novos estudos. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2009, p. 13-15.

102 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

prática do mando e de suas relações com as condutas desviantes ou criminosas no sertão colonial.

Quanto à história social – o outro campo histórico de interesse para nosso estudo – destacamos de início a afinidade de nosso trabalho com a história social inglesa devido a seu interesse pelos comportamentos sociais, suas dinâmicas e relações entre grupos. De modo geral, essa escola historiográfica, que teve como um dos seus principais nomes Edward P. Thompson, centrou-se no papel da ação humana na história, bem como no problema da identidade cultural dos grupos sociais. Embora não estejamos exclusivamente preocupados com a identidade sociocultural dos grupos subalternos, tal como Thompson, em boa parte de sua produção, nele nos inspiramos na ênfase que este deu aos comportamentos e dinâmicas sociais, bem como no estudo das relações entre os grupos.

Também alguns aspectos da história cultural merecem ser mencionados, principalmente devido às importantes aproximações, já mencionadas, entre história e antropologia. Desta forma, segundo Peter Burke, houve a partir da década de 1970 uma “redescoberta” da história cultural, área que teve como terreno comum a tentativa de capturar a alteridade, ou seja, teve como objetivo geral o simbólico e suas interpretações17. Assim, sob a influência da antropologia cultural, houve nas últimas décadas um crescente interesse dos historiadores pelos aspectos simbólicos e culturais da sociedade. Essa história cultural ou história antropológica pode ser considerada, se comparada à história econômico-social, menos quantitativa – embora não tenha eliminado tal metodologia – e produz-se geralmente a partir de múltiplas abordagens na medida em que se recusa a elaborar sínteses ou visões globais da história.

Neste sentido, esta história cultural representou desta maneira, a reabertura do diálogo entre história e antropologia. Este diálogo sempre foi difícil de ser realizado em razão da oposição entre sincronia e diacronia, entre o estrutural e o evento. Contudo, no entendimento de Lilia Schwarz, apesar da aparente diferença de método entre estas duas áreas de conhecimento existem elementos que aproximam essas disciplinas pelo fato de ambas estudarem sociedades que não mais existem ou que pelo menos são outras18. Ainda desta forma, tanto a história quanto a antropologia têm como objeto privilegiado a alteridade e como objetivo o diverso. Um autor de referência obrigatória acerca das recentes e promissoras relações entre antropologia e história é Marshall Sahlins que em vários de seus trabalhos tem proposto um equacionamento dialético entre estrutura e evento (sistema de ação) a partir da noção de “estrutura da conjuntura”, ou seja, partindo do pressuposto de que a conjuntura possui uma estrutura o autor propõe a análise da dinâmica da prática em meio à cultura19.

Conforme adiantamos, nosso problema na proposta de tese se relaciona a análise do poder político no sertão colonial tomando por base as práticas da violência/criminalidade e da justiça privada. Nesse sentido, as análises antropológicas se 17 BURKE, A escola... 18 SCHWARCZ, Lilia K. Moritz (org.). Antropologia e história: debate em região de fronteira. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p. 18.

19 SAHLINS, Marshall D. Metáforas históricas e realidades míticas: estrutura nos primórdios da história do reino das Ilhas Sandwich. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 10. Do mesmo autor ver também: __________. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003; __________. Cultura e razão prática. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003; Cultura na prática. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2007.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 103

inserem dentro de todo um esforço de nossa parte para tentar abstrair o ponto de vista do outro, por meio de um exercício de alteridade. Trata-se assim, num certo sentido, de uma “etnografia retrospectiva” na medida em que propõe analisar uma cultura ou grupos sociais considerados em sua particularidade. Assim, de um lado o conceito antropológico de estrutura se abriu para o evento histórico acenando para a importância da mudança. Por outro lado, a história vem interessando-se crescentemente pelos níveis mais imóveis das sociedades abordadas numa perspectiva estrutural20.

Voltando ao campo da história cultural, vale lembrar que os historiadores culturais das novas gerações têm privilegiado as representações, o simbólico e as práticas. Especialmente no que diz respeito a este último conceito, cabem aqui algumas considerações devido a sua importância para nosso estudo, principalmente quando formos tratar das manifestações de criminalidade, formas de controle social e conflitos entre a justiça oficial e a justiça costumeira. Segundo Peter Burke, “‘Práticas’ é um dos paradigmas da NHC: a história das práticas religiosas e não da teologia, a história da fala e não da linguagem, a história do experimento e não da teoria cientifica”21. Ainda segundo o autor, essa nova noção de práticas foi inspirada nos trabalhos de pensadores de diferentes correntes, tais como: J. Derrida, Norbert Elias, Timothy Mitchell, Ruth Harris e E. P. Thompson dentre outros que trabalham no campo de estudos culturais. A aceitação desse conceito por parte dos historiadores, no entanto, simboliza na opinião do autor, uma viragem da história em direção à antropologia, substituindo a ideia de “regras sociais (consideradas por estes estudiosos como rígida e determinista) por conceitos mais flexíveis tais como “estratégia” e “habitus”, além do próprio conceito de práticas.

Um conceito que também merece ser problematizado para nosso estudo é o de papel social. Para apreendermos o perfil dos agentes políticos e/ou criminosos na capitania da Paraíba esse conceito permite-nos discutir o comportamento em termos sociais. Em outras palavras, o conceito em questão permite estabelecer padrões e normas comportamentais no interior de determinada estrutura social, além de possibilitar que percebamos como um grupo social pode ter perspectivas diferentes em relação a determinados papeis sociais, o que Burke denomina de conflito de papéis22.

Contemporaneamente, o conceito de cultura tem sido reelaborado por cientistas sociais e historiadores numa perspectiva mais aberta e dinâmica, e em contraposição às posições estruturalistas e marxistas convencionais sobre o conceito em questão. Dentre os principais críticos das posições citadas encontra-se Pierre Bourdieu, que propôs, em oposição ao rígido conceito de regras sociais, o conceito de “habitus” definido como “um conjunto de esquemas que permitem aos agentes gerar uma infinidade de práticas adaptadas a situações que se modificam de modo initerrupto”23.20 Outros antropólogos que dialogam com a história são: GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989; BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000.

21 BURKE, A escola..., p. 78. Os conceitos de “estratégia” e “habitus” têm relevante importância na produção de Pierre Bourdieu. Sobre eles ver: BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996.

22 BURKE, Peter. História e Teoria Social. São Paulo: Editora da UNESP, 2002. p. 112.23 BURKE, História..., p. 167.

104 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

O conceito de “habitus” pode ser inserido num verdadeiro paradigma criado pela nova história cultural nas últimas décadas, segundo Burke, que seria a ideia da “história das práticas”24. Ainda segundo ele, essa área historiográfica tem sofrido grande influência da Teoria Social com consequências tais como: a revalorização dos trabalhos de Norbert Elias sobre a história das práticas no processo civilizador, o destaque para os trabalhos de Bourdieu sobre as práticas de consumo e de Michel Foulcalt sobre as práticas de obediência e controle social. A questão central a qual o conceito de “habitus” sucinta para nós seria saber “o que” era ser um criminoso na Paraíba do século XIX, bem como saber “quais” relações estes estabeleciam com a sociedade. Assim, esse conceito permite-nos pensar, por exemplo, sobre a liberdade de atuação dos criminosos dentro dos limites da cultura na qual estavam inseridos.

REFLEXÕES TEÓRICAS PARA O ESTUDO DO CRIME NA AMÉRICA PORTUGUESA

Conforme adiantamos, um dos objetivos de nosso trabalho diz respeito às relações entre o universo jurídico e a sociedade. Para tanto, é preciso inicialmente revisitar a perspectiva teórica de autores de referência que trataram, no âmbito das ciências sociais, dos fenômenos do direito, justiça e lei para na seqüência discutirmos alguns conceitos e ideias importantes neste campo, para que em nosso estudo possamos compreender os efeitos sociais da aplicação da lei e as interpretações que a sociedade faz do ordenamento jurídico25.

Neste sentido, uma referência obrigatória é Émile Durkheim e sua preocupação sociológica com a integração social26. Em sua busca pela explicação para o condicionamento social do comportamento, o autor argumentou que as regras, os costumes e as leis são, em último grau, mecanismos que fazem com que a sociedade se imponha sobre o indivíduo. Para o autor, as regras jurídicas e morais são exemplos de fatos sociais, que são comuns e se impõem a todos, sendo ainda configurados e aceitos pela consciência coletiva de uma sociedade. Assim, o conceito de fato social, para Durkheim, se configura como qualquer manifestação de coerção sobre os indivíduos, sendo algo exterior a eles. O fato social, desta forma, tem existência própria e estabelecida em toda a sociedade, sendo esta, por sua vez, configurada pelo universo dos fatos sociais estabelecidos. Já o conceito de consciência coletiva, na concepção durkheiniana, pode ser entendido como um conjunto de ideias morais e normativas (formas padronizadas de conduta e pensamento), que fazem com que o corpo social legitime e aceite os fatos sociais.

Em sua obra clássica, As regras do método sociológico, Durkheim tratou das relações entre direito ou justiça e sociedade, afirmando que mesmo quando uma ação agride os preceitos morais, esta ainda assim pode ser considerada normal, desde que esteja difundida numa sociedade e na medida em que não ponha em risco de

24 BURKE, História..., p. 79.25 LEMOS FILHO, Arnaldo et al. Sociologia geral e do direito. Campinas: Alínea, 2004, p. 137-140. Segundo os autores, este campo de estudos envolve o que se convencionai chamar de Sociologia do Direito, contudo, o termo Sociologia da Justiça seria, no nosso entendimento, mais apropriado, uma vez que o primeiro restringe os objetos ao campo institucional enquanto o segundo abre espaço para inclusão de formas de direito e justiça não formais.

26 DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 105

colapso a integridade social27. Assim, considerando o crime como fenômeno normal e geral, o sociólogo argumenta que ele é, em essência, útil no sentido de fortalecer os valores que numa sociedade repudiam tal prática. Apenas em um nível muito elevado, o crime, na concepção durkheiniana, pode ser considerado algo patológico, passível de por em risco a integridade social. É desta forma que o conceito de anomia tem relevância, para expressar uma carência de regulamentação social, ou seja, é uma condição em que as normas reguladoras do comportamento social perdem a validade pela ausência ou ineficiência das sanções28.

Ainda acerca deste conceito, é importante destacar o sociólogo estadunidense Robert Merton que aplicou pioneiramente a teoria da anomia de maneira mais empírica para explicar o desvio e o crime numa sociedade industrial. Contudo, contrariamente a Durkheim, para quem a anomia é resultado do enfraquecimento do poder diretivo das normas sociais, Merton enxergou o surgimento deste fenômeno social com resultado “da reação ou adaptação dos indivíduos ao bloqueio dos canais legítimos de realização de seus objetivos e aspirações legítimas29.

Assim, a ênfase do autor recai sobre como o comportamento dos indivíduos é afetado pela estrutura cultural, pautando-se nos estudos dos criminologistas Ronald Akers e Christine Sellers. Trata-se de uma visão sobre o desvio e o crime que originou a chamada “economia do crime”, concepção segundo a qual:

Os indivíduos respondem a incentivos, sendo que a opção pela conduta desviante, na qual pode estar o crime, é explicada por uma escolha racional. Nessa escolha, são ponderados os benefícios líquidos esperados e os custos implícitos da ação, entre as quais a possibilidade de prisão e condenação, o custo decorrente da sanção moral e da perda potencial de renda no mercado legal. 30

Em se tratando de nosso estudo, cabe salientar a ideia durkheniana de que o direito ou justiça oficial se constituem sobre os usos e costumes (o que ele denominava de consciência coletiva) que lhe servem de esteio. De fato, percebemos à priori, que os conflitos entre a justiça oficial e a justiça costumeira no sertão tiveram dois sentidos: a hegemonia ou primazia do poder de fazer justiça; e as divergências entre o que era codificado como crime pelo Estado e o que era considerado como tal na cultura sertaneja.

Outra matriz teórica importante neste campo é a sociologia weberiana, cuja preocupação fundamental é apreender a natureza das condutas humanas, ou seja, o sentido da ação social, o significado da ação. Especificamente em relação à justiça,

27 LEMOS FILHO, Sociologia geral..., p. 67.28 LEMOS FILHO, Sociologia geral..., p. 68. O pensamento de E. Durkheim foi a matriz teórica da corrente denominada de funcionalismo. No campo específico da justiça, suas análises acerca da função do crime inauguraram longa tradição sociológica. Tomem-se a título de exemplo os estudos de Robert Merton sobre crime e seu conceito de “comportamento desviante”, largamente utilizado nos estudos sobre o tema. R. Merton que havia questionado acerca das causas da anomia, sugeriu que havia probabilidade de ocorrer este estado quando aos membros da sociedade eram negados os meios de alcançar os próprios objetivos culturais que sua sociedade projetara, tais como: riqueza, poder, fama ou esclarecimento. Entre as ramificações dessa perspectiva analítica, encontram-se os trabalhos sobre os limites dos desvios de comportamento e o crime (p. 67-69).

29 VAIPIANA, Luiz Tadeu. Economia do crime: uma explicação para a formação do criminoso. Porto Alegre: AGE, 2006, p. 85.

30 VAIPIANA, Economia..., p. 83.

106 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

o pensamento de Max Weber foi edificado sobre os processos de racionalização das sociedades ocidentais que, no campo específico em questão, levou às cisões entre direito e moralidade. Para nosso estudo, tem importância à tipologia weberiana acerca das sociedades do Antigo Regime, de maneira geral, e das características dos sistemas político-jurídicos naquele contexto.

Importante igualmente destacar o pensamento de Karl Marx por ser uma das mais destacadas matrizes da Teoria Social. Assim, de modo geral, não se encontra na sua obra uma teorização sistemática e formal do direito ou da justiça, embora ele tenha estudado Direito em Bonn e Berlim em sua juventude. Resumindo sua posição em relação ao tema, podemos afirmar que, para Marx, toda forma de direito se expressa como reflexo das posições e interesses das classes dominantes. Afora isso, o direito se configura para ele sempre de forma dialética “na medida em que contém, não apenas elementos tendentes à organização da sociedade de acordo com os interesses das classes dominantes, mas também elementos ocasionais discrepantes, porquanto representativos dos interesses de classes não dominantes”31. Em nosso caso, a dialética toma importância singular no entendimento das relações de conflito e complementaridade entre a justiça oficial e a justiça costumeira.

Quanto à atualidade deste tema, é importante mencionar ainda a posição de Georges Balandier em relação ao crescente interesse nas ciências sociais pelo tema da desordem ou mesmo de uma aparente desordem32. Quanto a isto, o autor explica que como resultado de certo descrédito das teorias gerais de explicação da realidade social em alguns ciclos acadêmicos, aumentou, paradoxalmente, o interesse pelo vulnerável, o marginal, o instável, a crise, o colapso. Neste sentido, para o autor, surgiu nas últimas décadas uma “caoslogia”, abordagem que se propõe a compreender o imprevisível a partir do pressuposto de que “a ordem se esconde na desordem”, ou melhor, no para alguns se apresenta como desordem33.

Algo central para a sociologia da justiça – e importantíssimo para nosso estudo – é o tema da eficácia da justiça, que envolve a relação entre lei (direito) e sociedade no sentido da aceitação ou não pelo corpo social ou por parte dele das leis que lhes são dirigidas:

Costuma-se dizer que as normas mais eficazes são aquelas cumpridas de forma espontânea, sinal de que guardam vinculo real com a sociedade que as instituiu, sendo fruto, portanto, da necessidade social. Outras normas têm sua eficácia condicionada ao exercício da coação estatal; outras nem assim são cumpridas pela sociedade, seja porque efetivamente não correspondem aos anseios populares em sua totalidade ou a parcela significativa da sociedade, seja porque constituem, de fato, simples instrumento simbólico ou programático do dever ser social34.

Este debate nos interessa enormemente, uma vez que se trata de pensar “se as normas jurídicas são ou não cumpridas pelas pessoas a quem se dirigem e, no caso de violação, se é possível que se façam valer com meios coercitivos de que dispõe a autoridade pública” 35. Além disso, esta discussão remete a uma história jurídica 31 VAIPIANA, Economia..., p. 126.32 BALANDIER, Georges. A desordem: elogio do movimento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.33 BALANDIER, A desordem..., p. 9.34 BALANDIER, A desordem..., p. 145.35 BALANDIER, A desordem..., p. 145.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 107

da criminalidade que, no sertão setecentista da Paraíba, teve íntima ligação com a revogação social das normas a partir, por exemplo, da aceitação moral de algumas condutas sociais tidas pelo Estado como ilegais.

Toda essa discussão, contudo, remete ao problema mais amplo do pluralismo jurídico, conceito que remete a existência de sistemas de justiça alternativos ao direito do Estado. Trata-se assim, de formas de direito informais e mais ou menos costumeiros conforme atesta Norberto Bobbio36. Esse pluralismo jurídico, por sua vez, encontra-se quase sempre associado a diversas formas de pluralismo político, ou seja, uma sociedade composta de vários grupos ou centros de poder exercendo entre si relações de conflito ou negociação e, em alguns casos, se contrapondo abertamente ou de modo velado ao centro do poder dominante, historicamente identificado como o Estado.

Dentre as várias formas de pluralismo jurídico elencadas pelos especialistas, chama-nos atenção – em virtude das relações com a justiça praticada no Antigo Regime – o multiculturalismo (fruto dos contatos com outras culturas) e o chamado “direito do povo” (abdicação do direito do Estado em prol do direito costumeiro ou local). É importante destacar que o pluralismo jurídico, comum até hoje em algumas áreas rurais e periferias de grandes centros, se configura sempre que existem várias normas que podem ser aplicadas a um mesmo caso. Para nosso estudo, este conceito remete a ideia de que a justiça pode comportar variadas maneiras de conceber a moralidade, as percepções sociais, o considerado errado ou a sanção. Desta forma, pretendemos entender as relações entre poder político e criminalidade não como mera desordem, mas como relações e práticas sociais com regras que se impões e cria novas formas de justiça, uma justiça informal.

Acerca dos problemas que envolvem a justiça informal, é importante destacar que trata-se de um interesse de longa data entre os antropólogos. Já Bronislaw Malinowiski37, em seu Crime e costume na sociedade selvagem (obra datada de 1926), chamou atenção para o fato de a ausência de autoridade formal, leis codificadas, tribunais e polícia não implicar, em absoluto, na ausência de lei. Pelo contrário, no seu entendimento, a vontade e a reciprocidade (o que ele denominava de princípio das concessões múltiplas) são elementos importantes nas relações entre justiça informal e sociedade.

Para o período que estudamos este problema foi bem apontado, considerando os trabalhos mais recentes, por António Manuel Hespanha, que destacou a autonomia relativa do poder local no Império Português (cujo foco, contudo, tem sido o espaço do reino e não das colônias), com ênfase nos mecanismos não coercitivos (não institucionais) de poder e na longa margem de autonomia das câmaras municipais no império português. Na prática político-judicial típica daquele contexto, o autor destaca o pluralismo jurídico levantando o problema da revogabilidade da lei do Estado pelo costume, prática comum no território luso, como uma correção a ideia de um direito uniformizado. Para o autor, este problema é relativamente recente na historiografia, devido a força do “paradigma estadualista”, que impediu a valorização do pluralismo dos sistemas jurídicos pré-iluministas38.36 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 9. ed. Brasília: Editora da UnB, 1997.37 MALINOWISK, Bronislaw. Crime e costume na sociedade selvagem. Brasília: Editora da UnB, 2008, p. 41.

38 HESPANHA, António Manuel. As vésperas do Leviatã: instituições e poder político. Portugal - século

108 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

Tomando por base uma tipologia weberiana e o uso de uma literatura não-jurídica, o autor elencou algumas das características principais do universo político-jurídico não-oficial típico do Antigo Regime português, que podem ser assim resumidas: reduzida capacidade de recurso à coação; estrutura jurídica pouco especializada e não burocrática; flexibilidade processual e grande possibilidade de acesso à justiça; oralidade e grande apoio sobre a mediação pautada no assentimento das partes39. Contudo, para que se possa dimensionar o sentido do pluralismo no mundo luso do Antigo Regime, torna-se necessário levar em consideração que entre a justiça oficial e a informal, existiam relações que não necessariamente eram de oposição e irredutibilidade, podendo ser, e geralmente eram, relações de complementaridade:

Mesmo nas zonas em que a administração jurídica formal estava já estabelecida e em que o direito escrito e erudito constituía o direito oficial, o mundo jurídico tradicional, com as suas ideias sobre o direito, com seu quadro de fontes, com as suas instituições, permanecia como um sistema jurídico latente. E, em contrapartida, mesmo onde a comunidade tradicional, com os seus valores e formas de organização jurídica continuava vivaz, o sistema jurídico oficial mantinha-se como uma instancia possível de recurso.40

Principalmente nas regiões marginais do Império, como era o caso do sertão norte oriental do Brasil, o uso da justiça informal oferecia pelo menos três conjuntos de vantagens às populações que nele viviam: legitimidade, pelo fato de estar amparada na cultura tradicional local; interesse dos potentados em promover um tipo de justiça que os fortalecia politicamente, e; menor custo social e financeiro. Por fim, é importante ressaltar que em nosso estudo é preciso considerar, ainda em relação a esta problemática, a instalação de estruturas oficiais de poder (vilas, órgãos e agentes) no sertão em contraposição a importância da cultura local na preservação da justiça costumeira, além dos conseqüentes conflitos ou mesmo relações de complementaridade entre o oficialato patrimonial e os régulos do sertão. Trata-se de pensar, neste sentido, nos arranjos entre as elites locais e os representantes da coroa, lembrando ainda que o problema torna-se mais complexo, considerando que estes não raro se confundiam tornando as relações entre poder e criminalidade ainda mais instigantes naquele contexto.

Ainda com relação aos estudos que envolvem a temática do crime, é bom frisar que estes foram objeto de destacado interesse por parte dos cientistas sociais, bem como dos estudos médicos. Por exemplo, de Cesare Lombroso, que procurou associar as características físicas dos bandidos a aspectos comportamentais de viés violento. Tais estudos, realizados no século XIX, ficaram conhecidos como a gênese de uma área de conhecimento denominada de Antropologia Criminal. Neles constam ideias acerca do que seria um criminoso nato, tomando-se por base a análise de determinadas características somáticas que determinariam quais indivíduos

XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994, p. 439. No entendimento do autor, este paradigma se constitui a partir do pressuposto de que a história do direito e da administração só podem ser entendidas e ter validade pelas suas vinculações com o Estado fazendo com que as relações de poder informais não tivessem relevância nos estudos históricos e sociais (p. 439-442).

39 HESPANHA, As vésperas..., p. 444.40 HESPANHA, As vésperas..., p. 445.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 109

estavam propensos ao crime. De especial destaque, foram seus estudos no campo da frenologia, teoria segundo a qual seria possível determinar características da personalidade e propensão à criminalidade pela forma da cabeça dos indivíduos. Assim, neste contexto, a criminalidade foi concebida, de maneira geral, como um sintoma de desordem social, desvio de comportamento ou anormalidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Consideramos importante frisar que apresentamos neste artigo uma forma de pensar teoricamente o poder político que consideramos mais apropriado ao nosso estudo de doutorado, o qual se direciona para uma história das relações sociais mediada pela prática do poder e de suas relações com os desvios ou atos ilícitos. Trata-se de pensar numa law in action em distinção de uma law in the books, de saber como as elites que detinham o poder formal e as elites que tinham outras formas de mando, se inter-relacionavam no arranjo social vigente. Assim, a escolha dos autores e abordagens relaciona-se, interdisciplinarmente, ao contexto e ao problema com o qual trabalhamos: trata-se assim, de pensar, do ponto de vista do poder político, sobre como a sociedade sertaneja se opôs ao Estado e ao formalismo jurídico, de pensar o sertão como espaço de baixa institucionalidade, de uma normatização alternativa a justiça oficial, enfim, de uma sociedade plural no campo político e jurídico. Contudo, fica manifesto ao longo do texto a aproximação, no campo da teoria, entre história e antropologia, fato que contribuiu decisivamente para a renovação histórica no campo da história do poder político ao qual nos referimos reiteradamente no texto.

***

110 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

RESUMO

O artigo discute o diálogo interdisciplinar entre a história do poder político e a teoria social. É traçado um panorama da trajetória dos estudos no campo da antropologia da política, a fim de demonstrar pontos de aproximação (principalmente a partir da década de 1970) com a história do poder político, contexto que originou uma ampla renovação desses estudos na História. Estes pontos de intersecção – tanto no plano conceitual, quanto acerca das abordagens propostas – também aproximaram a história política da história social e cultural. Pensando nas possibilidades de norteamento teórico-conceitual, percebemos que, para trabalhar com a temática da pluralidade política e jurídica – característica marcante das sociedades do Antigo Regime – torna-se necessário igualmente refletir sobre as contribuições no campo da teoria social que dão suporte para uma análise, no âmbito da história, das relações entre poder político (formal e informal) e a criminalidade ou desvios de conduta num determinado espaço da América portuguesa.

Palavras Chave: Poder Político; Teoria Social; História da América Portuguesa.

ABSTRACT

This paper discusses the dialog between political power history and social theory. It begins to sketch a panorama of studies trajectory in politics anthropology, intend to show the approach points, mostly from 1970’s, with the political power history, originating a wide renewal in the studies field of the political power in the history. These intersection points - so much in the conceptual plan as concerning the proposed approaches - it also approached the political history of the social and cultural history. This way, thinking of conduction theoretician-conceptual possibilities for our research, realize that, to work with the thematic of the political and juridical plurality - striking characteristic of the Old Regime societies - becomes necessary equally reflect about the contributions of social theory that give support for a relations analysis between Political Power (formal and informal) and the criminality or deviations behaviors in a determined Portuguese America space.

Keywords: Political Power; Social Theory; Portuguese America History.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 111

A CIDADE COMO OBJETO DA HISTORIOGRAFIA

Carlos Roberto da Rosa Rangel1

INTRODUÇÃO

Faz sentido falar de uma história urbana? Qual seria a sua característica ou metodologia específica? Esse artigo analisa essas questões buscando no urbanismo e na sociologia urbana elementos de identificação da cidade como espaço de sociabilidade com características particulares que possam ser utilizadas nas pesquisas de historiadores interessados em estudar o universo urbano como objeto central e não apenas como cenário ou contexto.

A cidade é parte indissociável no processo de conformação das civilizações e está presente nas duas grandes revoluções da humanidade: a agrícola que proporcionou os excedentes necessários às primeiras aglomerações urbanas e a industrial que dilatou as cidades e tornou-as centros de consumo e produção do capitalismo. Segundo Max Weber2, as cidades foram pré-condição do capitalismo e base do seu desenvolvimento, para depois serem incorporadas a unidades maiores – como os estados nacionais – e perderem a sua autonomia e relevância, de tal forma que, para esse autor, não faz sentido existir uma sociologia específica das comunidades urbanas, ainda que seja base fundamental do processo de acumulação capitalista.

Lefebvre3 foi mais longe ao formular uma teoria na qual as civilizações ocidentais – sobretudo no contexto europeu – teriam passado por etapas de mudança desde o modelo predominantemente agrícola, seguido pelo industrial e culminando com o desenvolvimento urbano. Esse processo de mudança representaria uma “revolução” em que o problema central deixaria de ser o crescimento econômico, ligado ao progresso tecnológico com base na indústria, e passaria a ser a cidade, seu estilo de vida e as questões suscitadas pelo urbano. Ainda que se possa questionar a validade do modelo de Lefebvre, sobretudo quanto às projeções de um futuro no qual a classe operária já não teria a predominância nos movimentos transformadores da sociedade ou quanto ao grau de descentramento que o setor secundário da economia teria até sua subordinação aos processos informacionais e comerciais desenvolvidos nas cidades, deve-se considerar a ênfase que o autor deu ao meio urbano como projeção espacial das relações sociais, responsável por uma revisão substancial do estilo de vida das pessoas.

Essa atenção com o urbano tem uma razão estatística. Em 1950, apenas Nova York e Londres tinham mais de oito milhões de habitantes. Em 1970, o número saltou para onze, sendo três na América Latina e duas na Ásia. Para o ano de 2015, as Nações Unidas projetam a existência de trinta e três megalópoles que impressionam não apenas por seu tamanho e densidade, mas sobretudo pela diversidade cultural que contestam as explicações históricas com que foram tradicionalmente representadas e as definições que precariamente tentam abarca-las.

1 Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor do Centro Universitário Franciscano – UNIFRA. E-mail: <[email protected]>.

2 WEBER, Max. Conceito e categorias de cidades. In: VELHO, Otávio (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.

3 LEFEBVRE, Henri. La révolution urbaine, Paris: Gallimard, 1970.

112 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

A atual geração de historiadores e com mais razão os que ainda estão por vir, têm o universo urbano como o espaço de sociabilidade predominante em praticamente todos os grandes processos de mudança social. Contudo, não seria correto afirmar que a cidade só recentemente se tornou objeto de estudo dos historiadores. Praticamente todos os estudos da Grécia clássica estiveram centrados nas cidades-estados e o mesmo se pode dizer sobre as cidades italianas do Renascimento, sem esquecer os controvertidos trabalhos analítico-comparativos, de inclinação evolucionista, de Spengler4 para quem a urbanização está associada à última fase dos ciclos das civilizações e de Toynbee5 que associa os processos de urbanização ao surgimento e desenvolvimento da civilização ocidental.

Seria um equívoco separar obras historiográficas que falam acerca do urbano daquelas que calam, pois não há movimento político, econômico, social ou cultural que não tenha transitado pelos caminhos das cidades... Portanto, a especificidade de uma História Urbana teria de encontrar alguns paradigmas que fossem capazes de singularizar o espaço urbano como uma dimensão de sociabilidade particular ou como uma referência simbólica suficientemente plena de significado para ser capaz de produzir uma “identidade” urbana.

Nesta perspectiva, nas páginas seguintes busca-se discutir dois paradigmas a partir da retrospectiva de algumas obras e pesquisadores que se tornaram referência frequente nos estudos sociológicos do espaço urbano e que podem servir como ponto de partida para a reflexão diacrônica das cidades como objetos de estudo dos historiadores. Como primeiro desses paradigmas, aponta-se o urbanismo pragmático que teria o propósito de investigar a cidade como forma de construir um aparato teórico e metodológico para intervenções – normalmente governamentais – visando adaptar e controlar a sua expansão. A segunda vertente foi denominada de culturalista, por ter sua preocupação centrada no imaginário criado sobre as cidades fortemente afetadas pelo processo de crescimento e modernização. Importante destacar que essa divisão tem o propósito didático de avaliação da plausibilidade de uma História Urbana, e não o de fragmentar o campo de estudo em duas vertentes classificatórias.

ABORDAGEM SOCIOLÓGICA E URBANÍSTICA: AS CIDADES PROJETADAS

Reconhece-se que os antropólogos e sociólogos estão algumas décadas na frente dos historiadores no que diz respeito às reflexões e pesquisas acumuladas acerca de um estilo de vida urbana, ou de uma natureza social própria das cidades. Esses analistas vêm desenvolvendo estudos especificamente acerca das relações sociais e da cultura nas cidades desde o início do século XX, de tal forma que hoje existe uma profusão de cursos de graduação e pós-graduação em países como Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha e França dedicados exclusivamente aos estudos do espaço urbano.

Os norte-americanos foram os pioneiros no uso de pesquisas empíricas sistemáticas, visando determinar um estilo de vida urbana ou uma cultura urbana particular que fosse capaz de explicar alterações comportamentais coletivas, sobretudo de imigrantes recém ingressos nas cidades industriais. Foi nesse país que

4 SPENGLER, Oswald. A decadência do ocidente: esboço de uma morfologia da história universal. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.

5 TOYNBEE, Arnold. A sociedade do futuro. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 113

antropólogos e sociólogos reuniram-se na Universidade de Chicago e, partindo dos estudos desenvolvidos por George Simmel6, sistematizaram o conceito de cultura urbana – fortemente perpassado pelo viés pragmático e interacionista que caracterizou os estudos desse grupo.

Partindo da ideia de que a cidade proporciona um excesso de estímulos psíquicos que desorganizam a personalidade, Simmel propôs um processo de fragmentação dos papéis sociais e o isolamento individual como estratégia de defesa psicológica que garantiria a sobrevivência das pessoas em grandes e complexos centros urbanos. Essa idéia central perpassaria praticamente todos os estudos sobre o urbano que seriam desenvolvidos posteriormente pela Local Community Research Center (LCRC), entidade que reunia interesses públicos e privados nas investigações sobre a cidade de Chicago.

É necessário dizer alguma coisa sobre esse grupo que deu origem a moderna sociologia do urbano. Eram cientistas sociais reunidos em um departamento de sociologia e antropologia fundado em 1892, onde se encontravam nomes de projeção como George H. Mead, psicólogo social e pensador e John Dewey atuando nos campos da educação e da filosofia, pesquisadores que associados a outros como Willian James, da Universidade de Harvard, criaram teorias com base no pragmatismo e no evolucionismo natural e social que influenciaram profundamente a sociologia norte-americana. A preocupação central era encontrar elementos teóricos e empíricos que tornassem possível entender a relação entre indivíduo e sociedade. Nesse grupo também se encontravam os tradutores e divulgadores da obra de Simmel, Robert E. Park e Willian I. Thomas, que se dedicaram a testar as teorias do pensador alemão na cidade de Chicago, tratando-a como um grande laboratório em que era possível avaliar os efeitos do urbano sobre populações relativamente homogêneas como imigrantes poloneses (Willian Thomas) ou afrodescendentes (Robert Park) que habitavam os guetos e que sentiam de forma direta e dramática o processo de intensa industrialização e urbanização7.

Dentre os membros da Escola de Chicago, Louis Wirth8 certamente foi aquele que mais contribuiu para a sistematização de uma cultura urbana como uma forma ecológica particular. Dedicado a estabelecer uma sociologia do urbano, Wirth procurou escapar do reducionismo geográfico (projeção da sociedade sobre o espaço) e econômico (cidade vinculada ao processo capitalista da industrialização) e assentou suas especulações e pesquisas sobre uma questão básica: como dimensão, densidade e heterogeneidade favorecem o surgimento de novas formas de vida social?

Segundo a sua teoria, os grandes centros urbanos favorecem o surgimento de um estilo de vida caracterizado pela grande diferenciação social, afrouxamento dos elos comunitários, controle formal das pessoas, competição social, grande especialização funcional nas atividades econômicas e maior divisão do trabalho, fluidez no sistema de classes, elevada taxa de mobilidade social, tendência ao relativismo e a secularização que levariam a um comportamento humano inclinado 6 SIMMEL, George. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio G. (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.

7 Sobre a Escola de Chicago, é possível encontrar uma discussão mais elaborada na introdução de: VILA NOVA, Sebastião. Donald Pierson e a Escola de Chicago na sociologia brasileira: entre humanistas e messiânicos, Lisboa: Vega, 1998.

8 WIRTH, Louis. O urbanismo como modo de vida. In: VELHO, Otávio G. (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.

114 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

ao anonimato, à superficialidade e à anomia.

Como extensão do trabalho de Louis Wirth, encontramos o estudo do antropólogo Robert Redfield9 que propôs um continuun na dicotomia entre o rural e o urbano, no qual uma cidade estaria tão mais próxima da tipologia urbana quanto maior fosse a desorganização da cultura comunitária, da secularização e da preponderância do individualismo. Neste sentido, a urbanização enfraqueceria os laços de lealdade recíproca existentes em sociedades rurais, dando lugar à fragmentação dos papéis sociais e ao comportamento secular e individualista.

Manuel Castells10 destaca as críticas que Oscar Lewis endereçou às teses de Riedfield, ao demonstrar que a comunidade folk que serviu de subsídio à pesquisa não tinha a estabilidade e a harmonia destacadas pelo antropólogo e, portanto, não poderia servir de parâmetro dialógico com um estilo de vida urbano, enquanto que John Dewey, igualmente citado por Castells, avançou na relativização do continuun entre o mundo rural e urbano, ao alertar que não existe razão para imaginar que esses dois espaços de sociabilidade estejam ligados pela presença ou ausência de princípios identificadores, mas que são resultados de processos históricos particulares que lhes conferem características mais próximas ou afastadas daquilo que se convencionou chamar de cultura urbana.

Castells é particularmente duro nas críticas que faz ao modelo da Escola de Chicago, quando contrapõe as generalizações acerca de uma cultura urbana com as experiências empíricas desenvolvidas em grandes cidades, mostrando que não há vínculo constante entre tamanho e densidade da população com o conteúdo e as características sociais de um estilo de vida urbano, assim como não há no processo histórico de urbanização de cidades pré-industriais uma constante que autorize a generalização da passagem do modelo folk até o modelo urbano11.

Como lastro dos modelos de Wirth e Redfield existe uma oposição romântica entre o tradicional e o moderno, fortemente vinculada ao processo de urbanização, confundindo-se a cidade com sistema produtivo. Além disso, a distinção entre grupos primários e secundários não é referência segura para opor os espaços urbano e rural, de tal forma que as pessoas ainda mantém laços de solidariedade e afetividade próprios das comunidades, mesmo vivendo em grandes centros, e um exemplo disso é a máfia norte-americana, na cidade de Chicago, nos anos 1930, que passou despercebida dos pesquisadores como contra-argumento consistente às suas teses.

Ainda que o modelo proposto pela Escola de Chicago não traga elementos teóricos e conceituais suficientemente seguros para balizar uma abordagem histórica dos processos sociais típicos do espaço urbano, é preciso reconhecer que seus elementos identificadores do urbano estão fortemente presentes na obra historiográfica pioneira sobre cidades de Lewis Munford. A evidência de que Munford seja norte-americano e que seu trabalho mais conhecido – A cultura da cidade – tenha sido editado em 1938, período coincidente com a intensa atividade dos pesquisadores da Universidade de Chicago, só reforça a possível transposição do modelo urbanístico-pragmático para o historiográfico, dando origem a uma obra que fez escola, quando

9 REDFIELD, Robert. The Folk culture of Yucatán. Chicago: University Chicago Press, 1941.10 CASTELLS, Manuel. A questão urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000, p. 131-134.11 CASTELLS, A questão..., p. 133.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 115

se trata de avaliar o processo histórico de formação do urbano e sua relação com o capitalismo industrial.

Lewis Munford nasceu em Flushining, Long Island, nos Estados Unidos, e cursou seus estudos superiores na City College de Nova York e na Universidade de Columbia, entre 1912 e 1918, passando a sofrer grande influência do biologista, educador e urbanista escocês Patrick Geddes, pioneiro no estudo do urbano e do regional. Em 1923, entrou para a Associação de Planejamento Regional da América, instituição cujas experiências e estudos desenvolveram concepções como Radburn – cidades de cinturões verdes12 - e a administração do vale do Tennessee. A publicação de A cultura da cidade o projetou internacionalmente, e graças às suas concepções humanistas contribuiu para reorientar o planejamento de cidades européias, tornando-se livro obrigatório na formação de jovens urbanistas da Polônia, Países Baixos e Grécia.

Embora não tenha sido urbanista ou arquiteto, Munford tornou-se membro honorário de alguns dos principais institutos de arquitetura e urbanismo europeus e foi agraciado com a Medalha de Ouro de Arquitetura pela Rainha Elizabeth II. Lecionou urbanismo na Universidade da Pensilvânia entre 1951 e 1956, permanecendo como professor visitante até 1960, nesta mesma universidade. Sua principal obra – entre as mais de vinte publicadas – foi posteriormente revista por A cidade na História, 13 onde o historiador dedica-se a narrar o processo de urbanização em diferentes épocas, tentando suprimir os óbices e lacunas deixadas na Cultura da cidade, assim como projetar tendências para um novo estilo de vida urbana no futuro. Pode-se dizer que esse esforço de encontrar uma origem ancestral do fenômeno da urbanização e a sua presença na configuração das modernas cidades é o maior desafio e o maior problema da obra de Munford.

Reconhece-se que as generalizações e as transposições de conceitos de um período histórico para outro fornecem os vínculos entre as questões presentes e os objetos de estudo dos historiadores. Contudo, quando Munford dedica-se a encontrar nos subúrbios os princípios de funcionalidade do quarteirão mesopotâmico ou realça o idealismo romântico na organização bucólica das áreas verdes encontradas em praças e jardins contemporâneos, ele quer encontrar princípios de racionalidade que amenizem o aspecto mecânico e capitalista das cidades e, para tal propósito, elege como plano urbanístico bem sucedido a estruturação de largas vias para pedestres e automotores, a articulação de vizinhança, a relativa autonomia comunal em relação às necessidades básicas de subsistência, educação e mesmo de participação política, encontrados na concepção geométrica de Le Corbusier... 14

É necessário lembrar quem foi Le Corbusier e qual a sua concepção de cidade. Esse homem, descendente de uma família suíça de relojoeiros (seu nome verdadeiro

12 Segundo essa concepção urbanística, as cidades seriam fragmentadas em bairros separados por

áreas de vegetação nativa, ecologicamente preservada e administrada para o trânsito controlado de visitantes. As auto-estradas não dariam origem às aglomerações urbanas (cidades a beira da estrada), mas estariam balizadas por áreas verdes e com postos de reabastecimento e apoio aos viajantes. Os prédios seriam concentrados estrategicamente em áreas residenciais e de negócios, sob severo planejamento e estariam cercados de áreas com densa cobertura vegetal. No centro dessa proposta está a idéia de Munfort de tornar as cidades menos mecânicas e mais orgânicas.

13 MUNFORD, Lewis. A cidade na História. Suas origens, suas transformações, suas perspectivas. 12 ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1965. (2 v.)

14 MUNFORD, A cidade..., p. 639.

116 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

era Charles-Édouard Jeanneret) concebia a cidade ideal como uma estrutura suficientemente disciplinada e disciplinadora ao ponto de amenizar – quando não eliminar – a vida cotidiana caótica e sórdida dos grandes centros. A receita era tão objetiva quanto aterradora: demolição total dos entraves às grandes obras, pois era necessário “construir sobre terreno limpo” e substituir o congestionamento humano e viário por amplas ruas e avenidas que desenhariam quarteirões de edifícios em blocos, ocupados com densidade e conforto conforme a classe social dos seus habitantes.

Assim, a moradia de uma pessoa dependia da atividade exercida por ela, de tal forma que no centro ficavam os arranha-céus destinados aos escritórios dos cadres de elite – industriais, cientistas e artistas, entre os quais certamente os arquitetos – com a concentração de 1.200 dos melhores salários da sociedade por acre, reservando-se 95% do terreno como área livre. Para além dessa área, as residências seriam de dois tipos: prédios de seis andares com apartamentos luxuosos para os trabalhadores do centro, recuados para o interior dos quarteirões e dispondo de 85% de área livre, vocacionado para o entretenimento, artes e lazer; os demais trabalhadores teriam acomodações mais modestas, ajustadas em torno de pátios, com 48% de área livre dedicadas aos jogos e lazer adequados às pessoas que trabalham arduamente por oito horas. Tais “células”, como Le Corbusier denominava suas unidades residenciais, seriam todas uniformes, com o mesmo tipo de mobília padronizada e consagrariam a segregação social por classes no interior do espaço urbano. 15

Ainda que as concepções de Le Corbusier tenham tido pouca expressão prática para além de uma grande obra contratada no distante Punjab, seu pensamento – certamente menos humanista que o de Munford – está filiado àquela concepção da cidade que necessita superar o caos, sua natureza desagregadora da personalidade e geradora de conflitos sociais. Pensadores da Escola de Chicago, Munford e Le Corbusier estariam, assim, alinhados em uma estranha convergência sobre a concepção do estilo de vida urbana, partindo de suas experiências pessoais nas cidades de Chicago, Nova Iorque e Paris, respectivamente, as quais passavam por um forte processo de industrialização e urbanização.

Mesmo em sentido diferente dessa perspectiva reducionista, os historiadores que se dedicam ao estudo dos modelos urbanísticos transformadores da cidade-caos em cidade-sistema podem encontrar um campo muito rico para suas análises nas experiências executadas em grandes cidades como Londres, Paris e Nova Iorque ou em centros urbanos brasileiros como São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Mais ainda, o período compreendido entre 1950 e 1980, é especialmente importante porque a explosão dos centros urbanos, a demanda crescente por moradia e a proliferação sem precedente de veículos, isso tudo envolvido pela articulação econômica, informacional e cultural em redes complexas, jogou por terra os mais consagrados paradigmas do urbanismo e trouxe para a observação dos sociólogos, arquitetos e historiadores as novas formas de sociabilidade urbana.

Essa superação dos primeiros projetos urbanísticos organizadores da cidade-caos, por outros que introduziram sofisticadas tecnologias e novos conceitos sobre a sociabilidade urbana, é apenas uma evidência de um processo maior que ainda

15 HALL, Peter. Cidades do amanhã: uma história intelectual do planejamento e do projeto urbanos do século XX. São Paulo: Perspectiva, 1995, p. 245-250.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 117

está por ser analisado pelos historiadores: o desaparecimento de qualquer ilusão sobre um estilo de vida urbano homogêneo, ou sobre uma cultura urbana passível de análise totalizante, conforme veremos no subtítulo seguinte.

ABORDAGEM CULTURALISTA: O QUE SE DISSE DAS CIDADES

Afastando-se das correntes mais associadas à antropologia, ao urbanismo e à sociologia – freqüentemente dedicados a encontrar soluções para os graves problemas das grandes cidades – os historiadores têm explorado outra maneira de tratar o mundo urbano: o imaginário construído sobre as cidades nas crônicas, obras literárias e artigos jornalísticos. O que mais impressiona, é que fontes tão díspares possam chegar a resultados tão próximos, quando se trata de explorar o processo de intensa urbanização impulsionado pela industrialização acelerada.

A título de exemplo, Jean-Michel Racault16, do Centro de Pesquisas Literárias e Históricas da Université de la Reúnion, quando explora o capítulo La Fille aux yeux d’or da Comédia Humana de Balzac, encontra uma descrição sociológica da sociedade parisiense da primeira metade do século XIX, baseada em modelos epistemológicos científicos disponíveis naquele período histórico. A Biologia, a Termodinâmica e noções de magnetismo, eletricidade e Física Dinâmica estariam balizando a organização de “modelos discursivos” no interior da obra, sobretudo na relação das diversas esferas sociais com que Balzac caracterizou a sociedade parisiense. Em síntese, proletariado, petit boutiquiers, grande burguesia e alta aristocracia estariam articuladas em esferas sociais interdependentes tanto por leis físicas e biológicas - que confeririam ao espaço urbano uma simetria com a máquina ou com o corpo orgânico - assim como por este fluído vital que impulsionaria toda a ação social: a busca da riqueza e do prazer...

Dentro de mesma perspectiva analítica História-Literatura, Christine Dupuit17, na coletânea mencionada anteriormente, destaca a obra The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson como uma expressão da dicotomia privado-público, organização-caos, ordem-crime, como uma divisão trágica e paradoxal que caracteriza o espaço urbano. Nesse sentido, o homem urbano estaria sempre dividido entre os paradigmas da família, virtude, patrimônio, casamento, reprodução legítima e as pulsões sexuais, a intimidade inconfessável e a exacerbação da violência encobertam pelo anonimato das grandes cidades.

Mais uma vez percebe-se a permanência do arquétipo urbano relacionado com a confusão advinda da divisão psicológica dos seus habitantes, bem como se observa o caos e a ordem sobrepostos em espaços de sociabilidade compartimentados. Não muito distante disso, Philippe Junod18 analisa as imagens produzidas pelo gravurista francês Gustave Doré, que as elaborou quando esteve visitando Londres em meados do século XIX. Nas imagens existe tanto a representação da imundície, da morbidez, do congestionamento asfixiante de pessoas amontoadas e da decadência social e moral do proletariado, quanto à inocência de crianças brincando indiferentes ao

16 RACAUILT, Jean-Michel. De la ville-organisme à la ville-machine: les modèles scientifiques de la dynamique urbaine dans le prologue de La Fille aus yeux d’or. In: VEYSSIÈRE, Gerard. Kaleidoscopolis ou miroirs fragmentés de la ville. Paris: Éditions L’Harmattan, 1996, p. 15-30.

17 DUPUIT, Christine. L’étrange cas du Dr. Jekyll et de Mr. Hyde: la ville comme métonymie du doble. In: VEYSSIÈRE, Kaleidoscopolis... p. 47-58.

18 JUNOD, Philippe. Babylone-sur-Tamise: Londres vue par Gustave Doré. In: __________. Le temps de la réflexion: la ville inquiète. Paris: Gallimard, 1987, p. 61-77.

118 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

caos que as cerca, bem como a vida mundana e prazerosa da elite nos passeios ao campo ou nos encontros nos salões. A idéia central é a decadência crescente e inevitável da grande babilônia moderna, sua derrocada até um futuro onde apenas as suas ruínas testemunhariam sua passada grandiosidade.

No Brasil, ainda dentro da perspectiva culturalista, Sandra J. Pesavento19 discute as visões literárias do urbano, no século XIX, nas cidades de Paris, Rio de Janeiro e Porto Alegre, destacando a construção de um imaginário sobre a modernidade. O caminho metodológico da autora tem seu eixo sobre o conceito de imaginário, tomando como ponto de partida as representações literárias como fonte histórica, o que nos remete ao campo de estudo que alguns autores identificam como uma nova história cultural20.

Não cabe nos limites desse artigo a discussão mais elaborada sobre a pertinência dessa denominação, mas gostaria de destacar alguns aspectos particularmente importantes, quando se trata de abordar o universo urbano. Os discursos literários ou jornalísticos sobre as formas de sociabilidade no contexto urbano apresentam dois desafios ao pesquisador: como abordar o texto? Qual a relação entre texto e práticas sociais? Essas questões remetem para a operacionalidade das pesquisas relacionadas às cidades como objeto de representação, que pode ser resumida em três perguntas: o que os textos dizem sobre as cidades? Como eles dizem? De que forma esse comentar a cidade altera ou interage com as práticas sociais urbanas?

Como possibilidades, existem abordagens que enfatizam a recepção dos textos, outras a produção/ escrita, assim como as estratégias de construção do significado e aquelas que destacam os discursos como esforço de significação voltado para alterar relações de poder estabelecidas. Quanto aos efeitos objetivos sobre a estrutura social, teria-se que trabalhar os textos como bens simbólicos produzidos, distribuídos e consumidos por setores sociais específicos, que manteriam entre si relações passíveis de serem analisadas pelo historiador – tarefa desde já descartada, em função distribuição difusa dos textos pela sociedade.

Restou trabalhar com os autores, buscando-se associar suas histórias de vida, seus discursos literários ou jornalísticos e as mudanças estruturais da conformação urbana. Percebe-se que o pressuposto básico dessa perspectiva é a idéia de uma cultura urbana relativamente estável e coerente, passível de ser representada e apreendida por atores sociais totalmente distintos (por meio do imaginário) de tal forma que os efeitos de sentido que a cidade provoca sobre o autor do texto literário ou jornalístico, sejam próximos daqueles provocados em seus leitores ou mesmo naqueles que não lendo os textos ainda assim compartilham de um estilo de vida urbana comum, por habitarem a mesma ecologia urbana integrada.

Contudo, são os próprios literatos que desfazem essa crença na homogeneidade da cultura urbana, ao enfatizarem a diversidade, a dinâmica, a complexidade das muitas cidades subjacentes àquela representada, tal como sugeriu Ítalo Calvino em sua obra Cidades Invisíveis21, ou como apresentou de maneira exemplar Edgar Alan

19 PESAVENTO, Sandra J. O imaginário da cidade: visões literárias do urbano – Paris, Rio de Janeiro, Porto Alegre. 2 ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002.

20 HUNT, Lynn (org.). A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992. Nas páginas de apresentação da obra destaca as diversas correntes que incorporaram à historiografia métodos e conceitos de outras áreas do conhecimento como a crítica literária.

21 CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 119

Poe no conto O homem da multidão, quando destaca que o verdadeiro sujeito urbano não tem uma feição, hábito, classe, origem ou domicílio, mas é uma expressão do anonimato, um ser a mais entre os transeuntes, um andarilho que pertence a todos os lugares da cidade e, ao mesmo tempo, lugar algum lhe cabe totalmente.

Do que foi exposto no parágrafo anterior, percebe-se que o homem urbano - enquanto objeto de análise histórica a partir da literatura – apresenta-se como membro abstraído na massa englobante que vive na cidade, mas sua subjetividade e ação interativa, enquanto ator social das diversas comunidades que interagem no espaço urbano, não está completamente disponível para o historiador ou o literato, a não ser como imagem construída a partir de uma forma predominante de compreender o estilo da vida urbana.

Talvez por essa razão, autores como Cornelius Castoriadis22 e Bronislaw Bazcko23 sejam frequentemente lembrados pelos historiadores culturalistas das cidades, pois não se ocupam da dimensão cotidiana e volátil da vida social, mas articulam as representações coletivas e as instituições, assim como buscam analisar a relação entre os poderes estabelecidos, estratégias de propaganda e práticas sociais concretas em conceitos como imaginário social e imaginação social. Dessa forma, apresentam-se como alternativa para aqueles historiadores atentos à existência, difusão e alterações de certos imaginários criados ou compartilhados por uma comunidade urbana historicamente situada. Da mesma maneira, a busca de um referencial que de conta do indivíduo e da cultura que o engloba, frequentemente conduz os historiadores ao campo da antropologia, onde existem reflexões acerca da associação de práticas e papéis sociais, instituições, rituais e formas padronizadas de agir, a exemplo do que escreve Clifford Geertz24 para quem o homem está amarrado por teias de significado que ele mesmo criou, sendo a cultura o contexto que fornece os símbolos e as referências para a inserção e trânsito do indivíduo na sua comunidade.

Essas perspectivas teóricas e metodológicas ganham especial eficácia quando a temática estudada está associada àqueles períodos de crise, ocasião em que ocorre a contestação dos valores e das formas tradicionais de vida com o conseqüente aprofundamento do conflito social, pois é justamente do choque entre o novo e o antigo que surgem sistemas de representações justificadoras ou contestadoras de certos processos de adaptação ou reestruturação das cidades. Isso explica porque os historiadores culturalistas do urbano estão atentos às conjunturas de modernização, racionalização e drástica alteração dos parâmetros de habitação das metrópoles durante o avanço da industrialização e do adensamento urbano.

Como consequência imediata, assiste-se ao retorno do arquétipo da cidade caos, perturbadora da personalidade, desagregadora, propícia ao anonimato e à anomia, que se choca com os esforços racionalistas e esteticistas de agentes públicos. No prolongamento desse arquétipo duas coisas escapam: nem todas as práticas sociais e formas de convívio urbano estão sujeitos às vicissitudes da modernização; as pequenas cidades parecem não encontrar um lugar entre as pesquisas dos historiadores da cultura urbana.

22 CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

23 BAZCKO, Bronislaw. A imaginação social. In: Enciclopédia Einaudi - Vol. 5. Porto: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985.

24 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989.

120 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

Joseli Maria Silva25 destaca que as pequenas cidades possuem regras de convivência e temporalidades cíclicas fortemente ditadas pelos ciclos naturais, o que - erroneamente - remete para a idéia de comunidade pouco afetada pelos de parâmetros de urbanidade, especialmente quando se apontam a suposta estagnação, atraso e lentidão em relação à efervescência dos grandes centros urbanos. Entretanto, deve-se lembrar que o maior controle social pelo fácil reconhecimento das pessoas, bem como pelo atento acompanhamento de suas atitudes públicas não impede a difusão de valores associados à urbanidade ou dos projetos que remetem para a idéia de “moderno” ou do “progresso”.

Quanto à desigualdade dos efeitos da modernização sobre diferentes setores sociais dos grandes centros urbanos, ou entre esses e as pequenas cidades, Manuel Castells26 lembra que “situar no contexto histórico o fenômeno urbano não é o mesmo que explicar o processo social que dá origem às cidades, às suas formas, estrutura e contradições.” O fenômeno da urbanização está intimamente associado à concentração espacial das pessoas, mas isso é mais efeito do que causa de processos maiores e mais envolventes que abarcam tanto grandes como pequenos núcleos urbanos, daí a precariedade da alienação das localidades pré-industriais (dedicadas essencialmente às atividades primárias da economia) do conceito de urbano.

Na mesma linha de argumentos, é necessário lembrar que a ligação estreita entre industrialização e urbanização pode ter efeitos diferentes como se observa em países europeus ocidentais e países latino-americanos: entre os primeiros a população rural estabilizou-se e a população urbana cresceu em ritmo menos acelerado diante do aprofundamento da industrialização, se comparados com os últimos que tiveram altas e crescentes densidades urbanas e taxas de êxodo rural, mesmo depois de estabilizado o processo de industrialização27.

Caminho diferente na compreensão do fenômeno urbano é adotado por Walter Benjamin, quando trata da Paris do segundo império28, a partir do cruzamento de obras de Baudelaire e outras de caráter sociológico e histórico. O autor está menos preocupado com o processo de industrialização e seus efeitos sobre uma cultura urbana, do que com as relações sociais e políticas estabelecidas na cidade das barricadas, dentro de um contexto de intensa mudança histórica. Ao mesmo tempo em que o autor menciona os efeitos do progresso tecnológico e industrial sobre o surgimento de tipos sociais como os “trapeiros”, ele analisa um literato (Baudelaire) articulando as tipologias de conspiradores com os “camaradas” e proletariado em geral, dentro de um movimento maior que engloba a cidade mais como contexto do que texto a ser decifrado.

Além disso, Benjamin inova ao dar aos poemas de Baudelaire ou às obras de Vitor Hugo um estatuto de verdade que os iguala a outras fontes documentais, tomando o cuidado de não ver neles o suficiente a ser dito sobre o tema escolhido, mas como um recurso possível na reconstrução de um ambiente histórico geograficamente localizado (a cidade de Paris, no segundo império).

25 SILVA, Joseli M. Cultura e territorialidades urbanas – uma abordagem da pequena cidade. Revista de História Regional, Ponta Grossa, UEPG, n. 5, v. 2.

26 CASTELLS, Manuel. Problemas de investigação em sociologia urbana. 3. ed. Lisboa: Presença, 1984, p. 86.

27 CASTELLS, Problemas..., p. 87-88.28 BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas - vol. 3. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 9-32.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 121

Não é possível situar Walter Benjamin na corrente dos historiadores culturalistas do urbano sem algumas ressalvas. Sandra Pesavento29 destaca que Benjamin realizou uma ampla análise do panorama cultural da sociedade capitalista procurando ver na ordem material estabelecida o triunfo da forma fetichizada do capitalismo. Contudo, não se trata do imaginário ambíguo e metafísico-institucional de um Castoriadis (de clara inclinação funcionalista) ou de um “imaginário-arquétipo” de um Lucian Boia30 (de viés estruturalista), mas da reconstrução do real a partir de uma visão crítica das formas simbólicas trabalhadas e reproduzidas pelo processo produtivo capitalista. Portanto, é essa atenção especial dedicada às relações sociais no interior do espaço urbano que torna Walter Benjamin mais próximo do paradigma anterior que chamamos sociológica-urbanística do que da culturalista.

Um ensaio que situa com bastante clareza o desafio dos historiadores da cultura urbana por meio de textos jornalísticos ou literários foi o produzido por Jean-Charles Depaule e Christian Topalov31, lingüista e sociólogo, respectivamente, que se dedicaram aos registros de denominação da cidade e de seus territórios em uso em diferentes áreas lingüísticas. Para esses autores, pesquisas referenciais como as desenvolvidas por Lucien Febvre e Marc Bloch convidam para uma “semântica histórica”, que permitiria a percepção das interações entre os registros, a determinação das datas e dos lugares das inovações, bem como a compreensão mais aprofundada dos contextos sociais nos quais as definições da cidade e de seus lugares se transformaram.

Contudo, trata-se, frequentemente, de uma jornada repleta de riscos como o de negligenciar o sistema semântico no qual o conceito só faz sentido se associado a outros conceitos, ou quando se minimiza os termos concorrentes e se ignora os usos que não deixaram registro escrito. Esses riscos remetem para o fato de que as transformações urbanas também acarretam transformações no léxico que as designam e é precisamente essa dinâmica que favorece os estudos diacrônicos da cidade e também proporcionam seus maiores desafios, pois o que foi dito “sobre as cidades” é sempre em relação polifônica que remete para o “outro”, cuja ausência torna parciais os sentidos possíveis32.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Iniciou-se o artigo com a pergunta se faz sentido uma História Urbana. Acreditamos que sim, que é possível escrever história tendo a cidade como objeto central de estudo e quando falamos cidade estamos nos referindo a uma ampla categoria que abarca os pequenos e grandes núcleos, os subúrbios e a metrópole como unidade geral, redes ur-banas e sistemas integrados de conurbações. A escolha do viés teórico e metodológico escolhido pelo historiador ou as ligações que ele realiza com outras áreas do conheci-mento como teoria literária, urbanismo, sociologia ou antropologia determinam se o 29 PESAVENTO, Sandra J. O desfazer da ordem fetichizada: Walter Benjamin e o imaginário social. Cultura Vozes, Rio de Janeiro, Editora Vozes, n. 5, set./out. 1995, p. 34-44.

30 BOIA, Lucian Pour une histoire de l’imaginaire. Paris: Belles Lettres, 1999.31 DEPAULE, Jean-Charles & TOPALOV, Christian. A cidade através de suas palavras. In: BRESCIANI, Maria S. Palavras da cidade. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2001, p. 17-38.

32 BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p 296-297. A oração como unidade de análise encontrada nos textos jornalísticos e literários tem natureza gramatical, representa um pensamento relativamente acabado, não está em contato imediato com a realidade e tampouco está em contato com os enunciados do outro. Portanto, não possui uma significação plena.

122 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

interesse está no que se disse das cidades, nas cidades projetadas ou nas cidades vividas.

Na História sempre houve o esforço de integrar espaço e tempo como suporte das experiências humanas e o estudo da sociabilidade no espaço urbano, dentro de um contexto amplo, não poderia ser terreno estranho aos historiadores. Além disso, a História está convidada a dar uma imprescindível contribuição à sociedade contemporânea, resgatando os processos recentes de mudança das relações sociais, acrescentando ao olhar etnográfico dos antropólogos – vocacionado às pequenas comunidades – os vínculos com redes transnacionais e com processos de alteração da estrutura social no tempo de longa duração. Conjuntamente com os sociólogos, os historiadores podem acrescentar a sua análise diacrônica às avaliações sociológicas – predominantemente empíricas e estatísticas – dos ambientes urbanos.

Já se disse da aceleração do tempo na modernidade... Quando o historiador ajusta seu olhar para o que acontece no interior das cidades tem uma visão privilegiada desse movimento acelerado, de como surgem e são desfeitas identidades, como se organizam e articulam-se novas comunidades massivas, como são criados novos modelos de consumo e troca de bens materiais e simbólicos, além de compreender como são vivenciadas novas formas de intimidade e interação com o espaço público.

Resta saber se os historiadores estão preparados para representar tal dinamismo, abrindo mão dos esquemas estruturantes e estruturados que por muito tempo sustentaram a historiografia. Essa tremenda dificuldade em representar para os outros a heterogeneidade e a dinamicidade da vida urbana foi traduzida por Ítalo Calvino33 quando criou a cidade fictícia Zora com uma peculiaridade muito interessante: quem a viu uma vez, jamais a esquecia. Não como uma imagem que se fixou na lembrança, mas na sua totalidade, ponto por ponto, cada gesto dos seus habitantes, cada ruído e cada silêncio, cada odor, cada casa ou rua, tudo ficava em movimento na memória. Contudo, toda a vez que alguém a tentava descrever ou retratá-la em seus pormenores, ela simplesmente desaparecia da lembrança, era como se jamais houvesse existido. Nisso reside o desafio dos historiadores das cidades: capturar Zora e brindá-la aos seus contemporâneos.

***

33 CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

RESUMO

O artigo discute as características de uma História Urbana por meio de dois paradigmas – o sociológico-urbanístico e o culturalista. Percorrendo-se algumas obras referenciais que destacam a cultura urbana e os espaços de sociabilidade urbanos, mostra-se que a cidade é um objeto suscetível de análise historiográfica, mas seu dinamismo e diversidade impõe severos limites à compreensão dos significados que a cidade recebeu em diferentes contextos históricos.

Palavras Chave: Historiografia, cidades, cultura urbana.

ABSTRACT

This article discusses the peculiarities of urban history by two paradigms: sociológico-urbanístico and culturalista. It covers some referential works that detach the urban culture and the sociability urban spaces, showing that the city is a susceptible object historiographic analysis, but its dynamism and diversity imposes severe limits to understanding of meanings that the city received in different historical contexts.

Keywords: historiography, cities, urban culture.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 123

artigos

124 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 125

BARACK OBAMA E OS FILHOS DA GLOBALIZAÇÃO1

Robert Allen2

A eleição de Barack Obama, como o 44o presidente dos Estados Unidos da América, foi um evento de profunda significação histórica. Como negro, Obama rompeu uma longa tradição de eleição de presidentes brancos, uma tradição legalmente reforçada pelas leis norte-americanas que negavam o direito de voto às pessoas negras e mulheres de todas as raças. As mulheres brancas ganharam o direito ao voto em 1920, mas, com uma pequena exceção de um pequeno período durante a Reconstrução. Entretanto, foi em 1965, que o direito ao voto foi extensivo a homens e mulheres negras em muitas partes dos Estados Unidos. Foram necessárias décadas de lutas, mortes e prisões para que esse direito civil fosse instituído. Barack Obama foi participante e também beneficiário dessa luta por justiça. Sua eleição foi uma grande vitória para a liberdade dos movimentos negros que incluíram figuras como Martin Luther King, Jr, Rosa Parks, Malcolm X, Angela Davis, e muitos outros. Alguns dizem que a eleição de Obama prova que a América transformou-se numa sociedade pós-racial através da qual a forma como se é tratado é determinada pelo caráter e não pela cor. Infelizmente isso não é verdade.

Os Estados Unidos continuam uma sociedade racializada, como demonstram uma série de incidentes que ocorreram desde a eleição, incluindo ataques à pessoa do Presidente. Por exemplo, a contínua acusação de que Obama não é um filho natural e cidadão nascido nos Estados Unidos e por isso não pode ser presidente. Eu duvido que essas acusações fossem feitas a Obama se ele fosse branco.

Ironicamente, para alguns afro-americanos, Obama não foi considerado suficientemente “negro” , ou seja, ele não foi considerado um autêntico afro-americano, uma vez que sua mãe era branca e seu pai, um estudante africano do Kenya, ao invés de um negro nascido nos Estados Unidos cujos ancestrais foram escravos na América. Nos Estados Unidos, para muitos, qualquer reconhecimento de um ancestral negro torna a pessoa legalmente negra. Essa era a lei. Mulatos não existiam. Você era negro ou branco, sem nenhum meio termo. Esse ato coercivo legal pode ser entendido através das diferentes tonalidades de afro-americanos. Eu, entretanto, enfatizaria que, sob a lei, “uma gota”, como uma regra conhecida por qualquer um afro-americano torna Obama racialmente negro, embora suas referências culturais sejam complexas e diferentes da maioria dos afro-americanos. Sob essa perspectiva, Obama não está sozinho. Há um crescente aumento de uma

1 Artigo traduzido por Zélia Monteiro Bora. Doutora em Estudos Portugueses e Brasileiros pela Brown University. Professora Associada do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas e do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba.

2 Doutor em Sociologia pela Universidade da Califórnia em São Francisco. Lecionou em várias Universidades nos Estados Unidos. Há quinze anos, tornou-se professor dos Departamentos de Estudos Afro-americanos e Estudos Éticos da Universidade da Califórnia, em Berkeley. É autor dos seguintes livros: Black Awakening in Capitalist America; Reluctant Reformers: The Impact of Racism on Social Movement in the U.S.; The Port Chicago Mutiny; e Brotherman: The Odyssey of Black Men in America. Seus livros mais recentes são: Strong in the Struggle (the life of labor leader Lee Brown); e Honoring Sergeant Carter: A Family’s Journey to Uncover the Truth About an American Hero. É editor do jornal The Black Scholar.

126 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

população de um milhão de jovens nos Estados Unidos que são filhos de recentes migrantes da África, Ásia, Latin American e Caribe. Esses filhos de imigrantes estão desempenhando um importante papel político nos Estados Unidos, e por toda a Europa também, se a população afro-americana original pode se considerar como filhos da globalização. Ambas as comunidades têm em comum a história do colonialismo e seus efeitos. Essa história também oferece um profundo entendimento sobre o fenômeno Obama que transcende a própria história do país.

NEOCOLONIZAÇÃO INTERNA

Como todos sabemos, o crescimento das populações africanas no novo mundo pode ser traçada através do colonialismo Europeu e a introdução da escravidão como a principal força de trabalho nos campos e minas das Américas. Os primeiros escravos na América Inglesa foram trazidos em 1619 pelo barco holandês para Jameestown, Virgínia, um ano antes da chegada dos primeiros colonos em Playmouth. Os ingleses logo descobriram os lucros que o comércio de escravos poderia lhes trazer, juntamente com as colheitas feitas por escravos. Durante a guerra Civil Americana havia quatro milhões de escravos no país.

A abolição da escravatura em 1865 não finalizou a exploração dos trabalhadores negros. As comunidades negras foram reduzidas pela servidão instituída pelo sistema agrário no sul e a discriminação racial no norte, enquanto as senzalas foram substituídas pelas comunidades afro-americanas. Escravizados, explorados e segregados, os afro-americanos transformaram-se em efeito “uma nação dentro da Nação”. Em 1945, o grande acadêmico negro, W.E.B Du Bois falou sobre o “status colonial” dos negros americanos, e, em 1962, com o movimento dos direitos civis, essa idéia foi ganhando força. Harold Cruse, outro importante intelectual negro, escreveu que a situação nos negros nos Estados Unidos, “não era mais do que a condição de um colonialismo doméstico”. Em 1965, o sociólogo Kenneth Clark escreveu que os “guetos negros eram políticos, sociais e educacionais”. Acima de tudo, eles eram colônias econômicas. Seus habitantes foram vítimas da ganância, crueldade e insensibilidade, culpa e medo dos seus senhores.

Com a emergência do Movimento Black Power em 1966, o conceito de comunidade negra como um tipo de colônia doméstica na América foi amplamente discutido. O argumento era de que a comunidade negra era política, econômica e militarmente subjugada a América branca, a exemplo das colônias na África e na Ásia, sob o controle direto dos poderes Europeus. As colônias não necessitam serem externas, elas podem ser também internas, como as reservas indígenas ou os guetos urbanos habitados por negros, latinos e norte-americanos de origem asiática. O mais crítico foi que a relação e suas estruturas foram delineadas, especialmente, através de uma relação de dominação e subordinação.

Essa relação colonial foi apenas aparentemente nas décadas antes dos chamados Movimentos pelos Direitos Civis, implementado pelo governo com o objetivo de acabar com a segregação nas comunidades que eram espacialmente separadas do mundo branco. No sul, as crianças negras frequentavam escolas segregadas e os adultos foram destituídos de seus direitos civis. O poder estava nas mãos dos brancos. Economicamente, as comunidades negras viviam da agricultura enquanto o trabalho não especializado era desempenhado pelos brancos em indústrias cujos

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 127

donos eram brancos e possuíam negócios. Os negros estavam sob o controle de um sistema penal ao qual eles tinham que negar.

Em 1969, meu primeiro livro, Black Awakening in Capitalist America, foi publicado. Ele propõe um exame do Movimento Black Power do ponto de vista da teoria do colonialismo interno. Diante de seus pressupostos, era evidente que as relações coloniais estavam mudando graças às pressões exercidas pela Guerra Fria e o Movimento pelos Direitos Civis. Entretanto os problemas não estavam se acabando. Ao invés disso, metamorfoseavam-se sob outras formas. Do ponto de vista conceitual, eu diria que, durante esse período, teve início a emergência de uma literatura sobre o neo-colonialismo, incluindo o livro de Kwame Nkrumah, Neo-colonialism: the Last Stage of Imperialism (Neo-colonialismo: o último estágio do Imperialismo). Eu mencionei que, nas últimas décadas dos anos sessenta, uma nova situação neo-colonial estava sendo motivada pela relação entre brancos e negros nos Estados Unidos. Essa mudança denominada neo-colonialismo foi motivada pela crescente intervenção da militância do Black Power e das rebeliões em dezenas de cidades norte-americanas de estrutura branca de poder, cuja liderança política estava em crise, tornando-se questionada pelas comunidades negras sob os níveis local e nacional. Como resultado, a estrutura branca de poder procurou manter sua hegemonia pela substituição direta do controle branco da comunidade interna por um controle neo-colonial através das mediações com grupos intermediários negros, em um período internacional de lutas quando o colonialismo Europeu cedeu lugar ao neo-colonialismo no Terceiro Mundo.

Por contato direto, o controle branco foi expresso através de uma política conservadora e segregacionista. As classes dominantes do sul dos Estados Unidos, indiretamente sob o controle do neo-colonialismo, eram também caracterizadas como o poder branco liberal do Norte.

Esse neo-colonialismo servia aos interesses da estrutura branca de poder. Pelo desenvolvimento de uma classe negra de profissionais liberais, políticos, burocratas e homens de negócios, desenvolveu-se uma classe intermediária que poderia ser usada como armotisadora e coptadora pela estrutura do poder branco para atuar no controle das comunidades. Assimilionistas discutiam que o conflito racial desapareceria à medida em que os negros fossem integrados nos principais estratos da comunidade política, econômica e cultural da América. O modelo neocolonial sugeria que apenas membros da classe média teriam a possibilidade (parcial) de serem assimilados, e que o conflito racial (e de classe) continuaria apesar dos ganhos de alguns setores da classe média.

Vivemos em um mundo através do qual o legado do colonialismo e escravidão ainda existem. Esse legado é chamado globalização. Ela é impulsionada por forças em tensão surgidas em consequência desse processo. O economista Andrew Barlow, em seu recente livro Between Fear and Hope: Globalization and Race in the United States, faz uma importante distinção entre Mercado de Globalização e Globalização Social. Mercado de Globalização refere-se à exportação de capital norte-americano e europeu e, muitas vezes, indústrias inteiras, em busca de salários mais baixos e mercados lucrativos que possam garantir o crescimento e domínio do capital de economias pertencentes à África, América Latina, Oriente Médio e

128 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

Ásia. A globalização social refere-se ao impacto que o mercado da globalização tem sobre as pessoas arrancadas das sociedades tradicionais para lançá-las no movimento global à procura de uma economia de sobrevivência. Por exemplo, o México, sozinho nesse despertar da NAFTA (Tratado Norte-Americano de Livre Comércio), teve quase dois milhões de desempregados, gerando uma crise social. Dez milhões de refugiados econômicos, abrangendo pessoas de cor, estão sendo criadas em dezenas de nações e forçadas a uma imigração interna, entre as nações e continentes. Como consequência, Barlow discute que o crescente número de pessoas marginalizadas estão desenvolvendo uma nova consciência que identifica a irregularidade do mercado globalizado e suas manifestações como racismo, inimigo de todos os seres humanos. De fato, esses milhões de marginalizados, são elementos constituintes para a mudança social.

Na realidade, um novo movimento global pela justiça, direitos humanos e sanitarização tem mobilizado dezenas de jovens ativistas nos Estados Unidos e ao redor do globo. A longa história do colonialismo e escravidão possui sua explicação para além da população não-indígena de cor no hemisfério norte, mas o neo-imperialismo do mercado global aumentou essas populações nos Estados Unidos através da imigração de milhões de trabalhadores desagregados. O confronto dessa população com o racismo norte-americano teve um efeito radicalizante sobre muitos desses novos imigrantes, especialmente jovens, que descobriram que as suas esperanças por uma vida melhor nos Estados Unidos está fundamentalmente comprimida pela realidade da discriminação racial. Os filhos desses novos imigrantes coloniais – as crianças transnacionais da globalização – muitos deles jovens adultos serão especialmente os agentes críticos na luta por uma justiça social e global. Esses milhões de novos sujeitos coloniais e raciais, para usarmos o termo de Ramon Grosfoguel, em seu livro Colonial subjects: Puerto Ricans in Global Perspective, com os seus milhões de descendentes das primeiras migrações causadas pela escravidão e colonialismo, constituem uma força progressiva em potencial para as mudanças democráticas.

OBAMA E OS FILHOS DA GLOBALIZAÇÃO

Dessa maneira perguntamos: como Obama se encaixa nesse contexto? Muito tem sido escrito sobre a problemática da identidade racial de Obama. O fato de sua ancestralidade mestiça levantou o debate sobre se ele é “negro o suficiente” ou “negro demais”. Obscurecido pelo debate sobre identidade racial é igualmente significante aspecto de sua identidade. Barack Obama é um exemplo do que eu chamo de “filhos transnacionais e racializados da globalização”.

No momento em que escrevi o artigo, Barack Obama estava emergindo como uma figura política, após um poderoso discurso na Convenção Nacional Deemocrática em 2004. Posteriormente li suas memórias, Dreams For my Father, e, como muitos leitores, eu fiquei intrigado pela história de Obama. Eu particularmente fiquei estarrecido por suas experiências de vida em mover-se entre diferentes culturas, raças e nacionalidades. Pareceu-me que ele era muito mais do que bi-racial, ele tornou-se a incorporação de uma nova sociedade global.

Barack Obama nasceu em 1961 em Havaí, filho de um pai africano e uma mãe norte-americana branca. Na época do casamento de seus pais, casamentos

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 129

interrraciais eram proibidos por lei em muitas partes dos Estados Unidos, mas não no Havaí, como parte dos Estados Unidos, mas como um lugar estrangeiro cuja população exótica de mulheres de pele escura usando saias de grama e de homens que desfrutavam uma boa vida sob o sol. A realidade era que o estado de Havaí era território norte-americano, uma espécie de colônia que tornou-se independente em 1956. Localizado no meio do Oceano Pacífico, ele foi de um grande valor militar, como base para a marinha norte-americana. A maioria da população havaiana era asiática que trabalhava como mão de obra barata agrícola nas grandes fazendas. Os pais de Obama eram ambos estudantes. Seu pai também chamado Barack era do Kenya, uma ex-colônia Britânica que ganhou a sua independência em 1963. Obama pai era um brilhante estudante e detentor de uma grande auto confiança e um homem que preferia ganhar suas lutas com a sua inteligência do que com os punhos. O pai de Obama, filho de um próspero fazendeiro, viveu no Havaí somente até 1963. Ele, eventualmente, retornou para a sua família no Kenya e, por um tempo, trabalhou no novo governo. Obama viu o seu pai somente brevemente anos depois. Depois da súbita morte de seu pai, Obama viajou para Nairobi à procura da numerosa família de seu pai e de sua própria herança. Esta foi para ele um despertar que deu a ele a experiência sobre a vida de sua família na ex-colônia que estava transformando-se sob controle do neo-colonialismo.

A mãe de Obama, Ann, era de Kansas, um Estado do meio-oeste americano, onde os abolicionistas enfrentaram-se com os donos de escravos centenas de anos antes. Em busca de uma nova vida, os pais de Obama viveram em muitos lugares antes de mudarem-se para o Havaí. Ana matriculou-se como uma estudante de antropologia na Universidade do Havaí onde conheceu seu futuro marido. Eles casaram-se em 1960. No Havaí, o seu casamento interracial era aceito, mas eles sabiam que, em muitos Estados importantes, o casamento deles era ilegal e considerado como uma ameaça à estabilidade social. Um das realizações do Movimento pelos Direitos Civis em 1967 foi envergonhar a corte suprema norte-americana declarando que casamentos interraciais não era crime. A corte apelou através de leis anti-miscigenação em muitos Estados. Quando o velho Barack deixou a sua família, foi Ann que se certificou que o seu filho tinha aprendido a história dos Afro-Americanos e a sua longa luta pelos direitos civis e humanos.

Barack Obama não é tecnicamente um filho de um imigrante, uma vez que seu pai não imigrou para os Estados Unidos. Entretanto, Obama teve uma experiência comum às crianças filhas de imigrantes, notadamente, vivendo em uma família onde pelo menos um dos pais era estrangeiro.

Após o divórcio de seus pais, sua mãe subsequentemente casou-se com outro estudante, um indonésio chamado Lolo e a família mudou-se para Jakarta, onde a sua irmã Maya, nasceu. A família mudou-se para Djakarta permanecendo mais de três anos. Obama frequentou uma escola indonésia, não norte-americana e aprendeu as línguas da Indonésia, assim como os hábitos sociais e religiosos de seu novo lar. Seu padrasto era mulçumano e Obama aprendeu também as práticas da religião Islâmica.

Ele fez muitos amigos entre as crianças que encontrou. Em sua autobiografia ele escreveu: “as crianças dos fazendeiros, empregados e burocráticos de baixo nível

130 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

tornaram-se meus melhores amigos, e juntos corríamos as ruas manhã e noite, fazendo biscaites, jogando crickets, empinado papagaios com as linhas cortantes - o perdedor veria sua pipa desaparecer com o vento, e eles sabiam que, em algum lugar, outras crianças faziam fila, olhado o céu, esperando o prêmio” (p.36-38) No começo do ano, quando o filme Slumdog Millionaire um repórter perguntou ao presidente se ele viu o filme, e ele respondeu que o filme lembrava a sua vida de criança correndo nas ruas de Djakarta. Essa simples imagem é bastante surpreendente vir da boca de um presidente norte-americano. Quantos presidentes podem afirmar pela sua própria experiência o que significa ser uma criança em uma antiga sociedade colonial na Ásia?

Há mais ainda do que ele aprendeu. A família de seu padrasto envolveu-se em uma luta contra os holandeses colonialistas. Lolo, seu padrasto, contou-lhe histórias sobre observar seu pai e irmão mais velho partirem para se juntar ao exército revolucionário, e ouvir a notícia de que ambos tinham sido mortos e tudo perdido, depois do exército holandês ter atirado fogo em suas casa, sua mãe vendendo as jóias para comprarem alimentos e fugirem para o campo. “As coisas estariam mudando agora que os holandeses foram expulsos”, Lolo disse. Esta foi a introdução de Obama para a realidade da luta contra o colonialismo holandês.

Tanto a consciência transnacional de Obama foi moldada por suas experiências, como também a sua consciência African American. É fascinante seguir a sua construção de si mesmo como um afro-americano. Como adolescente e jovem adulto, ele criou diferentes personas (e denominações). Como negro norte-americano, ele estabeleceu um sentido bastante coerente de si mesmo durante os anos em que viveu como um organizador da comunidade negra ao Sul de Chicago. Este foi o seu batismo de imersão na cultura e valores fundamentais da América Negra. Lá, ele conheceu trabalhadores negros e negros que lutavam para sobreviver, estabelecerem-se socialmente e educarem seus filhos. Mas, diante de uma cidade hostil e burocrata, eles precisavam de toda ajuda que poderiam receber. Em Chicago, Obama experimentou o que significava sobreviver em uma colônia interna racializada.

Foi também em Chicago que Barack conheceu Michelle Robinson, que se tornaria sua esposa. Como Barack, Michelle é um graduada na Faculdade de Direito de Harvard. Os ancestrais de Michele foram escravos no sul dos Estados Unidos. Como uma estudante brilhante, Michele ganhou bolsas de estudos para frequentar as escolas superiores, mas ela sempre se manteve solidamente enraizada na comunidade negra de Chicago. Ela retornou de Harvard para trabalhar em um escritório de advocacia em Chicago, onde ela e Barack conheceram-se. Há dúvidas se Michelle realmente foi uma grande influência política sobre Barack. O que se sabe é que durante a campanha presidencial, em 2008, ela disse: “Pela primeira vez na minha vida adulta estou orgulhosa do meu país, porque parece que a esperança está finalmente voltando.” Ela foi muito criticada pela mídia branca por essa afirmação, mas foi uma declaração honesta e forte que refletiu como muitos afro-americanos e outras pessoas de cor se sentiam. Eu acho que Michele, ao seu lado, pode ajudá-lo a manter essa coerência. Ele claramente respeita a sua inteligência, sua honestidade, e sua franqueza. Além disso, foi a partir de seu casamento com Michelle e do nascimento de suas duas filhas que Barack alcançou o autêntico sentido de identidade pessoal que procurou durante a sua juventude.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 131

As experiências transnacionais de Obama e as suas experiências como um afro-americano o ligaram aos imigrantes e aos filhos da globalização. Através das escolas públicas e da cultura popular, os filhos dos emigrantes de cor são totalmente socializados na cultura norte-americana (e muitas vezes afro-americana), inclusive enfrentando o racismo em suas vidas. Os seus pais imigrantes tinham uma certa dificuldade em assimilar o racismo norte-americano (que triunfa sobre a nacionalidade), enquantoos filhos passaram a entender isso muito bem. Se os pais evitavam falar sobre o racismo e não “forçar a barra”, os filhos nascidos nos Estados Unidos estão prontos a enfrentá-lo e unirem-se em lutas anti-racistas. Estes são os filhos da globalização, das quais Obama é parte.

Uma outra característica das crianças transnacionais é que elas podem ativamente construir sua própria relação direta e íntima com a terra natal de seus pais. As modernas tecnologias de comunicações via satélite, incluindo a Internet, sites de redes sociais como MySpace e Facebook, telefonemas internacionais a baixo custo, cartões telefônicos, celulares, fotos digitalizadas e vídeos, tudo isso torna possível, fácil e barato interagir com os seus primos, amigos, tias e tios e avós no país ancestral. Com o advento das viagens a jato, acessível desde a década de 1970, ficou mais fácil visitar familiares, desenvolver e manter um senso de conexão com a cultura dos pais e a sua língua. Ao contrário dos primeiros imigrantes, especialmente os imigrantes europeus, cujo desejo mais profundo era o de assimilar e tornarem-se como outros americanos (brancos), os filhos de globalização, muitas vezes, procuram manter (ou criarem) uma ligação viva com a cultura ancestral. Eles também sabem que a assimilação e aceitação na sociedade norte-americana podem muito bem serem bloqueadas por racismo. Ao contrário das gerações anteriores, em que a jornada para os Estados Unidos significou o fim do contato físico e cultural com o “velho mundo”, para muitos dos filhos de globalização, as conexões físicas e culturais com o mundo ancestral são ativamente realimentadas. Esses jovens são, muitas vezes, bastante conscientes sobre as condições econômicas das terras de seus pais, e estas têm sido moldadas pelas intervenções culturais e européias, neoimperialistas militares, econômicas e políticas. Crescendo nos Estados Unidos, frequentemente em contato com o neocolonialismo interno, eles adquirem a experiência do racismo norte-americano em termos pessoais. Os filhos da globalização incorporam uma ligação viva entre o mundo colonizado e o (neo) colonialismo interno do mundo ocidental. Eles residem em um cruzamento entre o colonialismo externo e interno. Podem, portanto, ter a experiência a qual Du Bois denominou: “dupla consciência” – que se caracteriza como o despertar de uma consciência sobre as contradições das identidades sociais e culturais que se manifestam dentro da psiquê. Outros escritores também postularam essas identidades interseccionais através de conceitos como: “consciência de fronteira”, “consciência mestiça”, “cidadania diaspórica”, “consciência feminina”, “identidades etno-nacionais” e “etnorraciais”. A tensão gerada pelas identidades intersetoriais e dupla consciência pode ser uma poderosa fonte de energia psíquica que pode conduzir a criatividade cultural e ao ativismo social.

É importante reconhecer que os filhos da globalização não são simplesmente um fenômeno norte-americano. Elas constituem populações significativas na Holanda, bem como em outros países Europeus e no Reino Unido. Elas fizeram a sua

132 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

presença conhecida nos últimos anos, como participantes de protestos generalizados contra a intolerância racial e religiosa em países europeus. Essa população não-emigrante, incluindo os jovens brancos, também é afetada pelas novas tecnologias de comunicação global que pode torná-los mais conscientes das interligações e da humanidade comum entre todos os povos do mundo.

Eu acredito que a eleição de Obama é indicativo da emergência política e progressiva de afro-americanos, latinos, asiáticos, brancos progressistas nos EUA, embora não haja nenhuma garantia automática de que a juventude transnacional se engajará em um ativismo social anti-racista. A candidatura de Obama mobilizou milhões de jovens, alguns dos quais são filhos de imigrantes. A mobilização dos jovens é um sinal de esperança, mas resta saber se esse ativismo pode ser reformulado em termos de um movimento progressivo que sobreviverá a campanha.

Há também questões de classe e de cor entre os jovens transnacionais. Alguns são filhos de pais imigrantes ricos, alguns são filhos de profissionais que podem (ou não) ser capazes de praticar suas profissões nos Estados Unidos, outros são filhos de refugiados (políticos e econômicos), ou filhos de trabalhadores deslocados. Alguns, como Obama, pode ser de raça mista, o que complica ainda mais a sua identidade. Para todas as crianças racializadas dos imigrantes, as suas experiências de socialização irão variar dependendo do fenótipo, classe e gênero. Aquelas com cor de pele mais escura são freqüentemente racializadas mais de perto com os afro-americanos.

Embora os filhos da globalização sejam geralmente racializados como pessoas de cor, há problemas de cor e atitudes anti-negras que são problemáticas. Em seu livro, The Karma of Brown Folk, o estudioso Vijay Prashad reconhece este problema e sugere a necessidade de construir solidariedades entre grupos de diferentes origens raciais e étnicas. Para ter certeza, a experiência dos imigrantes sempre foi uma experiência racializada. A Lei de naturalização de 1790, prescrevia que só as pessoas brancas eram elegíveis para se tornarem cidadãos naturalizados norte-americanos. Esta pôs em marcha uma série de petições legais para naturalização que continuou até meados do século vinte através dos quais vários grupos de imigrantes procuraram provar que eles eram brancos, a fim de se tornarem elegíveis para naturalização. A necessidade em provar a “brancura”, é também uma oportunidade de se distanciar da “negritude”. Nas últimas décadas, a dominação global de mídia e cultura popular dos Estados Unidos infundiu, em um número de imigrantes, sementes de racismo contra os negros muito antes deles deixarem seus países de origem. Na chegada aos E.U.A, isso muitas vezes se traduz em hostilidade contra os afro-americanos em geral e, em particular, o antagonismo dos pais para com a juventude negra e a cultura da juventude negra. Certamente, a questão da cor e atitudes anti-negras apresentam barreiras para o desenvolvimento da solidariedade sobre a diferença racial.

Outra questão problemática é que o império americano tem vagas imediatas nos negócios, no governo, nos bancos, nas ONGs, na mídia e organizações culturais para pessoas que possam servir aos seus interesses. Obama e os filhos de globalização estarão sob intensa pressão para desempenharem o papel de agentes neocoloniais a serviço do império americano. Mesmo sob as intenções mais progressistas, presidente Obama não poderá avançar com um programa de mudança para uma sociedade mais justa e equitativa, sem o apoio de um poderoso movimento crítico

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 133

independentemente progressiva. Se tal movimento surgirá como um agente de mudança é uma questão ainda em aberto.

Embora existam problemas e incertezas, há também novas oportunidades que surgem no curso da história e luta atuais. Na era da presidência de Barack Obama, teremos a oportunidade de construir uma política progressista e majoritária nos Estados Unidos que pode produzir mudanças substanciais a nível nacional e global. Eu defendo que a eleição de Obama é a prova do crescimento dessa maioria progressiva. Se vocês examinarem os números da eleição é evidente que Obama foi eleito pelos americanos afro-americanos (95%), latinos (67%) e asiáticos (62%). Ele ganhou apenas 43% dos votos em geral branco, mas ele ganhou 54% dos votos da juventude branca. Ele também ganhou 69% dos eleitores que votaram pela primeira vez, que incluem muitos imigrantes e jovens. Esta é a nova maioria progressista em formação. Defendo que, nos últimos dez anos, temos visto isso na formação da Califórnia, onde moro, agora estendendo-se a outras partes do país. A direita compreende este fenômeno muito bem e fará todo o possível para minar essas maiorias emergentes através das táticas: dividir e conquistar como a Califórnia Propositions 187, 209, e outras. Mas as novas forças sociais emergentes terão impacto neste processo, elas são a força dos filhos de imigrantes de cor que vieram para os EUA nas últimas duas décadas. Esta “segunda nova geração”, ou o que eu chamo de filhos de globalização, têm características que os ligam às colônias internas, bem como à colônias externas do terceiro mundo. Barack Obama é um exemplo deste novo tipo de pessoa transnacional, embora continue a ser visto através de como a história irá julgá-lo e todos nós tomaremos parte nesse processo. É a agência do povo e os seus advogados que podem, como fizeram no passado, impulsionar líderes nacionais (como: Lincoln, Roosevelt, Kennedy-Johnson) a tomarem medidas progressistas. Os muitos milhões de filhos de imigrantes nos os EUA e milhões na Europa e outras partes do mundo são uma nova formação social capaz dessa agência. Eles fizeram a sua presença conhecida através de protestos em massa contra a opressão colonial racista em cidades como Paris e Londres, entre outras. Muitos são os ativistas que lutam pela justiça social. Eu acredito que estes são os aliados que Malcolm X tinha em mente quando ele falou da construção de uma aliança global contra o colonialismo, capitalista e racista.

Para concluir, eu sugeri que uma visão mais profunda sobre Barack Obama pode ser obtida através do entendimento dele como sendo parte das crianças racializadas transnacionais da globalização. Alguns comentaristas notaram que ele tem mais um potencial global e menos paroquial do que a maioria dos políticos norte americanos. Em seu livro de memórias, pode-se ver como as suas experiências com o colonialismo interno em Chicago, e os laços familiares com experiências no exterior e ex-colônias (Indonésia e Quênia) moldou a sua visão de si mesmo e seu lugar no mundo. Eu acho que ele entende a si mesmo - e os Estados Unidos - como localizados em um mundo global que está cada vez mais estreitamente ligado e continuamente dividido e oprimido pelas forças do neocolonialismo. A esperança que ele representa para muitos é a possibilidade de uma transformação social e política que possa substituir a divisão e opressão, pela solidariedade e libertação. Essa esperança está além do poder de qualquer pessoa, até mesmo o presidente dos Estados Unidos. Essa esperança só pode ser alcançada através da organização de um movimento social de milhões

134 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

de pessoas, bem mais do que o movimento afro-americano pelos direitos civis que mobilizou massas de pessoas de todas as raças para lutar pela igualdade e liberdade. Eu acredito que devemos construir a justiça independente dos movimentos sociais e organizações que reúnem comunidades colonizadas/ racializadas, imigrantes e seus filhos, e os brancos progressistas em uma luta comum. Estas são as forças que podem transformar a história em uma nova direção. Em seu discurso de vitória, na noite das eleições, Barack Obama disse: “Esta vitória não é somente a mudança que buscamos - é a única chance para que façamos essa mudança”.

Em conclusão, acredito que os filhos da globalização podem ser importantes aliados na luta pela mudança, a luta por uma sociedade democrática e igualitária, nova e global. Esta é a luta dos nossos tempos.

***

RESUMO

O artigo sustenta que a eleição de Barack Obama, como o 44o presidente dos Estados Unidos da América, foi um evento de profunda significação histórica. Obama rompeu uma longa tradição de eleição de presidentes brancos, uma tradição legalmente reforçada pelas leis norte-americanas que negavam, durante muito tempo, o direito de voto às pessoas negras e mulheres de todas as raças. Essa história também oferece um profundo entendimento sobre o fenômeno Obama, cujo pai africano, transcende a própria história dos Estados Unidos.

Palavras Chave: História dos Estados Unidos; Racismo; Globalização.

ABSTRACT

The paper supports that Barack Obama’s election as United States of America’s 44th president was an event of deep historical significance. Obama broke a long tradition of white presidents’ election, a tradition legally strengthened by the North American laws that denied, in a long period, the right to vote to black people and women of all the races. This history also offers a deep understanding on the Obama phenomenon, whose African father exceeds the proper United States History.

Keywords: USA His tory; Rac ism; Globalization.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 135

TERRORISMO E VIOLÊNCIA POLÍTICA

Giuseppe Tosi1

É preciso que uma série tremenda de atentados assuste os poderosos e desperte o povo.

E. Zola, Germinal

Matais a todos, Deus reconhecerá os seus.

Palavras do representante do Papa aosexterminadores dos cátaros de Béziers

O terrorismo, num sentido amplo, é um fenômeno presente desde a Antiguidade, mas que assume um significado próprio e preciso somente em época moderna, sobretudo a partir da Revolução Francesa e das ações dos grupos revolucionários, especialmente anarquistas, do século XIX2. Ele adquiriu uma grande relevância na contemporaneidade, a partir da intensa propaganda que os países ocidentais, liderados pelos Estados Unidos, empreenderam para justificar suas pretensões hegemônicas, após a queda do comunismo. A direita conservadora estadunidense interpretou a derrubada do muro de Berlim não somente como a vitória do sistema econômico capitalista sobre o comunista e do sistema político liberal sobre o totalitarismo, mas como a vitória militar da terceira guerra mundial. Foi um desfecho imprevisto e imprevisível da guerra fria, onde um dos dois antagonistas simplesmente desmoronou, colapsou internamente, deixando um espaço político vazio que foi imediatamente ocupado pelas potências ocidentais, lideradas pelos Estados Unidos: uma confirmação da teoria do horror vacui que domina as relações de poder3.

Para justificar esta política, os Estados Unidos precisavam encontrar um novo inimigo, numa lógica realista de tipo schmittiano, e “terrorismo” servia muito bem para substituir “comunismo”. Tratava-se, porém, de um inimigo diferente: invisível, de-localizado, omnipresente, imprevisível. A guerra fria se travava entre dois Estados

1 Doutor em Filosofia pela Universitá degli Studi di Padova. Professor Associado do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia e Coordenador do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Universidade Federal da Paraíba. Email: <[email protected]>.

2 BONANATE, L. Terrorismo político, In: BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G. Il Dizionario di Politica, Torino: UTET, 2003. Mas o termo tem um uso mais antigo: por exemplo, Juan Ginés de Sepúlveda, para justificar a guerra justa contra os índios, afirmava que a política do “terror” era o único meio eficaz para a salvação (“cum igitur terrori utili doctrina salutaris adiungitur). Ver: TOSI, Giuseppe. Guerra e direito no debate sobre a conquista da América (Séc. XVI). Verba Juris, n. 5, 2006, p. 277-320.

3 O fim da Guerra Fria é um exemplo notável e raro do fim de um inteiro regime econômico, social e político de forma relativamente não violenta, apesar do enorme arsenal militar em jogo. Ver Bobbio: “Todavia, após quarenta anos [o ensaio foi escrito em 1997] desta situação das relações internacionais [guerra fria], a Terceira Guerra Mundial não explodiu. Era portanto possível aquilo que jamais ocorreu nos séculos passados, que um conflito entre grandes potências terminasse com a vitória de um dos adversários sem que fosse necessário o recurso às armas”. BOBBIO, N. O problema da guerra e as vias da paz. São Paulo: UNESP, 2003, p. 16.

136 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

soberanos com pretensões hegemônicas e os respectivos blocos de aliados. Neste caso, o inimigo era claramente definido e o jogo político determinado, através da doutrina dos campos de influência recíprocos e do “equilíbrio do terror”4. As duas potências seguiam certos parâmetros e códigos de conduta implícitos, que excluíam ações terroristas diretas entre os dois países. A criminalização do inimigo pertencia mais à retórica política do que à realidade: de fato, nenhum atentando terrorista foi realizado pela União Soviética no território dos Estados Unidos ou da Europa e vice-versa, apesar de ambos possuírem temíveis aparatos militares e de inteligência como a CIA e o KGB. Esses atentados, porém, eram permitidos e amplamente utilizados “indiretamente” nos casos em que alguns países ou grupos políticos tentassem sair das respectivas aéreas de influência, como em Cuba e em outros países da América Latina, ou em pontos de tensão entre os dois blocos, como no Vietnã.

Por outro lado, não podemos afirmar que o terrorismo é uma mera invenção da direita estadunidense alimentada pela mídia. O terrorismo é um fenômeno real e complexo, que apresenta diversas e contrastante características, é uma das formas de violência política que é difícil distinguir de outras formas de violência, como a guerra, a guerra civil, a guerrilha, e que está presente em todas elas, que deve ser abordado no contexto mais amplo do uso da violência na ação política.

Numa primeira tentativa de definição poderíamos afirmar que um ato è terrorista quando è caracterizado pelo uso indiscriminado da violência contra uma população civil, com intenção de difundir o medo e de coagir um governo ou uma autoridade política nacional ou internacional. Acrescenta-se que existem sempre motivações ideológicas e políticas na origem do terrorismo que o diferenciam dos comportamentos criminosos, que visam o ganho ou a vingança pessoal5. Como tal o terrorismo è tipificado como crime pelo direito penal internacional6; mas não há consenso quanto a atribuir aos aparelhos repressivos dos Estados a possibilidade de agir de forma terrorística.

Diante da violência política existem várias opções. Numa visão realista, a violência é parte constitutiva da política e da convivência humana, e seria utópico e até perigoso pensar na sua eliminação total da sociedade. A violência seria um mal necessário e uma característica intrínseca da própria política com a qual devemos conviver. Numa visão utópica, a violência pode e deve ser eliminada, mas para chegar a este objetivo precisamos dela. Ela adquire assim um papel positivo quando considerada como instrumento de transformação para alcançar uma sociedade onde ela poderá ser finalmente eliminada: é o caso da violência revolucionária, que se justificaria como meio para alcançar um fim positivo.

Ao contrário dessas doutrinas, o pacifismo considera a violência como um mal moral que deve ser eliminado (baste pensar à Querela Pacis e ao Dulcis bellum inexpertis de Erasmo de Roterdã)7; mas as doutrinas pacifistas não concordam sobre os meios para alcançar este objetivo. Segundo Norberto Bobbio, haveria duas formas

4 BOBBIO, O problema...5 ZOLO, D. As “boas razões” do terrorismo, In: ALENCAR, M. L. & TOSI, G. (orgs.). Rumo a um ocaso global? Os direitos humanos, o medo e a guerra. Florianópolis: Boiteaux, 2010.

6 CASSESE, A. Lineamenti di diritto internazionale penale. I. Diritto sostanziale. Bologna: Il Mulino:2005, p. 162-175.

7 ERASMO DA ROTTERDAM. Contro la guerra (Querela Pacis e Dulce bellum inexpertis). l’Aquila: Japadre, 1968.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 137

principais de pacifismo: o pacifismo ético-religioso, segundo o qual a causa da guerra deve ser procurada na natureza humana e a paz pode ser garantida somente através da conversão e transformação moral do homem. Nesta ótica, o pacifismo seria uma escolha ética, que considera a paz um fim último em si mesmo, antes que um meio para alcançar outros fins; mas esta teoria, apesar do seu grande valor moral, teria pouca ou nenhuma eficácia política, segundo Bobbio8.

Mas há também uma forma de pacifismo jurídico ou institucional, cujo lema é “a paz através do direito”, conforme o famoso título de um ensaio de Hans Kelsen9, segundo a qual a violência pode ser controlada, diminuída, ritualizada, formalizada, legalizada dentro de limites que possam ser toleráveis e compatíveis com os padrões éticos, políticos e jurídicos “civilizados”. A violência nunca poderá ser eliminada, mas pode ser institucionalizada10. Ao final, mesmo reconhecendo a violência como um fenômeno universal, existem sociedades mais violentas e outras, menos violentas.

Sem entrar nesta complexa discussão, o que interessa para nós, neste momento, é mostrar que, se excetuarmos as doutrinas pacifistas mais radicais, que consideram a violência com um mal absoluto a ser erradicado, a maioria das doutrinas reconhece que há uma margem de violência irredutível na política, que é, nos melhores dos casos, a violência institucional sem a qual a própria garantia dos direitos, e talvez a própria convivência humana, não seria possível (ao contrário do que pensam os anarquistas). A tese que vamos defender neste ensaio é que o terrorismo não se enquadra nesses limites, ou seja, que não existe “o bom terrorismo”11.

TERRORISMO COMO FORMA DE VIOLÊNCIA POLÍTICA

Uma primeira distinção a fazer é entre o terrorismo e os fenômenos criminosos. Aparentemente a distinção seria clara: o terrorismo se utiliza amplamente de ações criminosas para alcançar objetivos políticos e não vantagens econômicas pessoais ou de grupos12. Nem sempre porém é possível determinar claramente onde se situa o limite entre a criminalidade comum, sobretudo o crime organizado, e a criminalidade política: um caso típico são as FARC da Colômbia, cujo status político é objeto de uma acesa disputa.

No jogo da retórica política, “terrorista” é sempre o outro, o inimigo: os Estados Unidos chamam Osama bin Laden e os seus seguidores de terroristas, os quais, por

8 Segundo Giuliano Pontara, uma dos maiores teóricos da não violência de inspiração gandhiana, devemos distinguir entre o pacifismo, como escolha ética e/ ou religiosa que recusa a guerra e a violência, e a não-violência como doutrina e tática política que utiliza meios pacíficos para alcançar objetivos políticos. PONTARA, G. Pace e Nonviolenza. In: BOBBIO; MATTEUCCI & PASQUINO, Il Dizionario...; BOBBIO, O problema...

9 KELSEN, H. La pace attraverso il diritto. Torino: Giappichelli, 1990.10 BOBBIO, O problema...11 Sobre o “bom terrorismo” ver as reflexões de: MAGALHÃES, F.. Existe o bom terror? Reflexões sobre a resistência do nosso tempo. Saeculum - Revista de História, João Pessoa, DH/PPGH/UFPB, jul./ dez. 2008, n. 19, p. 195-21. O autor faz uma diferença entre o terrorismo, que condena, mas cujas razões procura entender enquanto reação ao imperialismo dos Estados Unidos, e o “bom terrorismo”, que seria a resistência a este imperialismo promovida pela “multidão”, nas palavras de Antonio Negri e Michael Hardt. Magalhães mantém o horizonte da perspectiva revolucionária, o que vai necessariamente justificar a violência revolucionária. Ver também: ZOLO, As “boas razões”...

12 O exemplo mais contundente neste sentido é o terrorista suicida, que obviamente não tem nenhuma vantagem pessoal nesse gesto extremo, embora a idéia de uma recompensa numa outra vida possa ser algo extremamente compensatório para quem nela acredita.

138 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

sua vez, acusam os Estados Unidos de praticar uma política de terrorismo de Estado. Isso nos diz logo algo mais sobre o termo: ninguém gosta de ser definido como tal, “terrorista” não é uma palavra que suscita imagens positivas, aliás todo o mundo procura afastar de si este termo que o estigmatiza.

A relação entre o Estado e as organizações “terroristas” é complexa: toda organização terrorista procura o reconhecimento político, todo Estado tende a negar esse reconhecimento e a considerar os “terroristas” como bandidos e criminosos comuns. Dois exemplos retirados da história italiana: os partigiani, que constituíam um verdadeiro movimento político de resistência aos nazistas alemães invasores e aos fascistas italianos seus aliados, eram fuzilados ou enforcados em praça pública com um letreiro que os definia como banditi. Trinta anos depois, as Brigadas Vermelhas lutaram para ter um reconhecimento político e o Estado italiano no seu conjunto (inclusive o Partido Comunista de então) se negou a negociar com elas, porque isto implicaria num reconhecimento de um status político a um movimento que o Estado não queria reconhecer como tal.

TERRORISMO E VIOLÊNCIA REVOLUCIONÁRIA

O terrorismo está associado historicamente, nos seus albores modernos, à violência revolucionária. A “era das revoluções” é longa: inicia com o ciclo das revoluções burguesas (a Revolução Gloriosa Inglesa, a guerra de independência das colônias da América do Norte, e a Revolução Francesa) nos séculos XVII e XVIII, e é retomada no século XX, com o ciclo das revoluções socialistas: desde a Revolução Soviética, passando pela Chinesa até a revolução cubana. Podemos afirmar que o ciclo se encerra historicamente com o queda dos regimes comunistas do bloco soviético no final dos anos 90 do século passado e que nada deixa prever uma sua retomada a curto prazo no mundo globalizado em que vivemos.

É da violência revolucionária que se ocupa Maurice Merleau-Ponty, em Humanismo e Terror13. O problema de Merleau-Ponty, que continuava a considerar-se um marxista (embora crítico), era o de explicar como foi possível que o marxismo, que para ele era uma forma de humanismo, tivesse se transformado no terror estalinista, denunciado pelas obras literárias de Artur Koestler, antigo militante comunista e crítico implacável do estalinismo soviético.

A questão colocada por Merleau-Ponty aborda um tema que está na raiz do terrorismo, ou seja, o conceito de terror, conceito que entrou na linguagem política com o período jacobino da revolução francesa e foi utilizado também para caracterizar o período mais terrível e trágico da ditadura estalinista na União Soviética. Em particular, Merleau-Ponty debruça-se nos chamados “processos de Moscou” nos anos trinta, quando o terror revolucionário não se dirigiu somente contra os inimigos internos e externos, mas contra os próprios “camaradas” revolucionários: como um novo Cronos, a revolução devora os seus próprios filhos.

Merleau-Ponty parte de um ponto de vista realista, ou seja, do reconhecimento da inevitabilidade da violência política, e se refere explicitamente a Max Weber: na sua sociologia a consciência do conflito entre moral da responsabilidade e moral da consciência “está no seu ponto mais alto”. Escreve Merleau-Ponty a respeito de 13 MERLEAU-PONTY, M. Humanismo e Terror: ensaio sobre o problema comunista. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1968.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 139

Weber, citando Raymond Aron:

A moral, aos olhos de Weber, é o imperativo categórico de Kant ou o sermão da montanha. Ora, tratar o seu semelhante como fim e não como meio é um mandamento rigorosamente inaplicável dentro de toda política concreta. [...] A política é, por essência, imoral. Ela comporta um pacto com as potências infernais, porque ela luta pelo poder e o poder leva à violência da qual o Estado detém o monopólio do uso legitimo. 14

Partindo desse pressuposto, Merleau-Ponty afirma que não somente os regimes comunistas são violentos, mas também os regimes liberais utilizaram a violência nas suas origens revolucionárias e continuam se utilizando de formas violentas, por exemplo, contra os povos coloniais que não aceitam a sua dominação. Ele põe a questão da seguinte maneira: “Toda discussão que se coloca dentro da perspectiva liberal escapa ao problema, visto que ela se coloca a propósito de um país que fez e pretende prosseguir uma revolução e que o liberalismo exclui a hipótese revolucionária”. Não podemos, portanto, julgar o marxismo à luz dos parâmetros liberais, mas à luz de parâmetros a ele internos: se a violência na política é inevitável, ela não pode ser uma “violência qualquer”. A violência no marxismo tem como objetivo a sua superação por uma sociedade futura: “A tarefa essencial do marxismo será procurar uma violência que se ultrapasse no sentido do futuro humano”15.

O marxismo, afirma Merleau-Ponty, não adere à doutrina da não violência, porque “ensinar a não violência, consolida a violência estabelecida, isto é, um sistema de produção que torna inevitável a miséria e a guerra”16. Não é possível portanto manter-se neutrais nesta situação, mas é preciso escolher aquelas formas de violências políticas que possam contribuir para diminuir no futuro a própria violência política. É sob esta ótica que o marxismo deve ser analisado e é sob esta ótica que os regimes que se inspiraram no marxismo devem ser julgados. E o julgamento de Merleau-Ponty do regime comunista soviético - apesar de todos os taticismos, apesar de ser evidente o propósito de “não dar o braço a torcer” aos adversários do marxismo - é negativo, à luz dos próprios pressupostos do pensamento de Marx. O livro inteiro (Humanismo e terror) procura entender por que o humanismo marxista se transformou no “terror”. Entre as análises de Merleau-Ponty, pinçaria uma frase: “Ao ensinar a não-violência, consolida-se uma violência estabelecida, isto é, um sistema de produção que torna inevitável a miséria e a guerra. Todavia, se se entra no jogo da violência, existe a possibilidade de aí permanecer para sempre”17.

Foi o que aconteceu com as revoluções comunistas que quiseram, a partir do modelo da revolução francesa, criar ex nihilo uma nova sociedade, um novo homem e uma nova história. Os regimes revolucionários que se inspiraram na revolução francesa tiveram que passar pelos mesmos excessos e erros, e pelo mesmo terror, aliás um terror ainda maior e mais duradouro, porque amplificado pelos meios de destruição e de controle de massa. A ditadura do proletariado, que deveria ser um

14 MERLEAU-PONTY, Humanismo..., p. 27. 15 MERLEAU-PONTY, Humanismo..., p. 13.16 MERLEAU-PONTY, Humanismo..., p. 12.17 MERLEAU-PONTY, Humanismo..., p. 10-13.

140 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

momento, necessário, mas transitório, da passagem do capitalismo ao comunismo – regime no qual Marx previu até a extinção do Estado, uma vez que haveria a “auto regulamentação dos produtores associados” –, se tornou uma ditadura do partido sobre o proletariado e sobre a sociedade inteira, através da prática indiscriminada do terror, desembocando no totalitarismo.18

TERRORISMO E GUERRILHA

Um dilema parecido com o de Merleau-Ponty reaparece na outra forma de violência política típica do século XX: a guerrilha. O termo, que nasceu nos movimentos de resistência espanhóis às tropas napoleônicas no começo do século XIX, foi retomado para identificar os movimentos revolucionários latino-americanos que lutaram, durante a guerra fria, contra as ditaduras militares apoiadas e impostas pelos Estados Unidos, que consideravam a América Latina como um território sob a sua influencia que não poderia ser deixado ao “inimigo” comunista.

Mas poderíamos chamar de guerrilhas também os movimentos de libertação nacional nos territórios das antigas colônias europeias na Ásia e na África. Nos dois casos os governos não eram democrático, mas ditaduras ou regimes coloniais impostos. Portanto, os movimentos de revolucionários e/ ou de libertação respondiam com a violência a uma situação de violência. O dilema era portanto o mesmo de Merleau-Ponty a respeito do marxismo: como entrar no jogo da violência sem permanecer nele para sempre.

Temos porém que fazer uma distinção fundamental entre movimentos guerrilheiros que enfrentam uma ditadura, e grupos terroristas que agem contra um regime democrático. Afirmar que a forma de governo não importa, que o Estado de Direito exercita uma forma de violência “disfarçada” do regime capitalista, “imposta” com a força e que portanto é legitimo responder a esta força com meios violentos, é algo muito perigoso, além de moralmente e politicamente inaceitável19.

No Brasil, enquanto o governo militar chamava Marighela e seus seguidores de “perigosos terroristas”, os opositores armados ao regime militar se definiam como “guerrilheiros”, ou seja, como um braço armado de um movimento político que respondia com a violência a um golpe militar que havia derrubado com a violência um regime democrático e instaurado uma ditadura20. Na Itália, o terrorismo, tanto de direita como de esquerda, foi uma “variável enlouquecida” no interior de um sistema de amplas garantias democráticas de um Estado de Direito, o que torna anda mais injustificável o recurso à violência terrorística. Nos dois casos, há uma diferença essencial, entre um Estado ditatorial e um Estado democrático, que deve ser ponderada para qualquer discussão sobre terrorismo.

É isso que faz a diferença entre as formas de guerrilha contra regimes ditatoriais que surgiram na América Latina e as formas de terrorismo como as Brigate Rosse na Itália, da Rote Armate Fraktion na Alemanha, o Irish Republican Army - IRA na Irlanda do Norte e o Euskadi ta Aiskatasuna - ETA na Espanha. O Estado de Direito

18 ARENDT, H. As origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.19 Neste sentido, a posição de Merleau-Ponty ressente ainda da perspectiva da violência revolucionária como meio inevitável e positivo, para alcançar o objetivo final do comunismo.

20 Porém, o governo militar brasileiro fez algo que o governo democrático italiano nunca fez: negociar com os guerrilheiros para libertar o embaixador americano em troca da liberação de “terroristas”.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 141

é justamente o sistema de governo que procura administrar e resolver os conflitos sociais de forma não violenta, ou recorrendo ao mínimo de violência necessário, ou seja, à violência exercida pelo Estado no uso do monopólio da força legítima. Quando se vive num Estado democrático, o recurso ao terrorismo como instrumento da violência revolucionária para “atemorizar os poderosos e despertar o povo” não tem justificação política nem moral.

Como afirma Bobbio:

A função de fato das chamadas regras do jogo democrático é justamente a de permitir às diversas políticas lutar pacificamente entre elas para a obtenção de metas que, fora daquela regras, não poderiam ser obtidas a não ser com meios violentos. O método democráticos é a mais ousada tentativa até agora realizada com o objetivo de substituir por meios não violentos os tradicionais meios violentos usados na disputa pelos diversos grupos para a posse do poder supremo.21

Este me parece um ponto “firme” que não pode ser colocado em discussão, e é a lição que podemos aprender a partir dos erros das revoluções passadas, inclusive porque o terrorismo acaba produzindo efeitos totalmente opostos aos almejados pelos seus defensores: tende a exasperar a tensão existente em toda sociedade democrática entre a garantia das liberdades individuais e a segurança coletiva, e as conseqüências políticas são geralmente o deslocamento à direita do eleitorado e a vitoria dos partidos que sabem utilizar a política do medo a seu favor.

TERRORISMO E GUERRA: O TERRORISMO DE ESTADO

O terrorismo é presente também na mais antiga e mais devastadora forma de violência política: a guerra, que é conatural à historia da humanidade, desde a comunidade primitiva até a sociedade contemporânea, desde o uso da clava até a bomba atômica22. Analisaremos aqui somente a guerra moderna assim como foi formalizada pelos Estados Modernos, a partir da paz de Wesftalia de 1648 que deu início ao que Carl Schmitt chamou com uma expressão um pouco retórica, mas que teve grande fortuna: jus publicum europaeum.

É a guerra entre os Estados soberanos, que supera a doutrina medieval da guerra justa (justum bellum), afirmando que toda guerra é justa por definição, uma vez que seja proclamada pela autoridade legítima, neste caso os representantes dos Estados Soberanos que não reconhecem mais nenhum autoridade superior (non expectata autoritate principis superioris)23.

Nesta concepção “realista” das relações internacionais (que vai desde Hobbes até Schmitt, passando por Hegel), os únicos titulares do direito à guerra (jus ad bellum) 21 BOBBIO, O problema..., p. 176-77.22 Ver o magnífico incipit do filme de Stanley Kubrick, 2001: uma odisséia no espaço, que resume em poucas imagens a relação entre a violência, o progresso técnico-científico da humanidade e o poder, através da imagem do osso do primata utilizado como clava que vai dançar no ar como o navio espacial milhões de anos depois.

23 Esta doutrina aceita somente uma dos quatros elementos para caracterizar a guerra justa, ou seja, a autoridade legitima, desconsiderando os outros três: a justa causa, a reta intenção e a reparação da ofensa sofrida. TOSI, G. “La dottrina della guerra giusta in Francisco de Vitoria”, In: SCATTOLA, Merio (org.). Figure della guerra: la riflessione su pace, conflitto e giustizia tra Medioevo e Prima Età Moderna. Milano: Franco Angeli, 2003, p. 63-88.

142 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

são os Estados soberanos que se comportam como os indivíduos livres e iguais no estado de natureza. Dado que, nas relações internacionais do mesmo modo que no Estado de natureza, não ha nenhuma autoridade superior, cada um se torna juiz em causa própria e as relações entre os Estados são reguladas por uma formalização sempre precária que depende dos equilíbrios de força, dos interesses e da política de potência dos Estados. Só pode haver tréguas, ou pausas entre uma guerra e outra, mas nunca uma “paz perpétua”, como imaginava Kant. Schmitt afirma de modo peremptório:

Que a justiça não entra no conceito de guerra, é reconhecido geralmente desde Grócio em diante. [...] Uma guerra tem o seu sentido em ser combatida não por ideais ou normas jurídicas, mas contra um inimigo real. Toda poluição desta categoria de amigo e inimigo se explica pela mistura com um qualquer tipo de abstração ou de norma.24

Não há mais uma justificação ética ou teológica, mas somente uma ritualização formal, jurídica tanto do direito à guerra (jus ad bellum) como da conduta durante a guerra (ius in bello). Este último aspeto assume cada vez mais importância devido ao crescimento espantoso dos meios de destruição de massa, que provocam, entre outros efeitos, o fim da distinção entre beligerantes e população civil (entre nocentes, literalmente os que podem ser nocivos - nocere, e que não podem provocar danos, os innocentes), numa tentativa de diminuir os danos “colaterais” e estabelecer regras de conduta durante o conflito25.

Que esta “ritualização” da guerra tenha produzido, como afirma Schmitt, “uma racionalização e humanização da guerra que durou dois séculos”, é algo extremamente duvidoso. As guerras modernas, que reconhecem por definição os inimigos como iusti hostes não foram menos numerosas e destruidoras que as guerras feitas em nome dos princípios do iustum bellum. Neste sentido, tem razão Norberto Bobbio quando afirma, inspirando-se em Hans Kelsen, que: “Contrariamente ao que parecem acreditar os meus críticos, o efeito do abandono da doutrina da guerra justa não foi o princípio de que ‘todas as guerras são injustas’, mas exatamente o princípio oposto: ‘todas as guerras são justas’. O ius ad bellum, isto é, o direito de fazer guerra, foi considerado uma prerrogativa do poder soberano”26.

Se se consideram as duas guerras mundiais ainda inseridas no âmbito histórico de longo período do jus publicum europaeum, aliás como a expressão mais radical dos pressupostos jurídicos do direito ilimitado à guerra das potências soberanas precariamente controlado pelo formalismo jurídico, Não há duvidas de que as consequências foram terríveis tanto no jus ad bellum quanto no jus in bello. Tais guerras utilizaram amplamente meios que poderíamos chamar de terroristas, ou seja, recorreram amplamente ao “terror”, em particular à matança indiscriminada de inocentes para conseguir objetivos políticos: o maior atentado terrorista da história recente não foi o atentando às Twin Towers e ao Pentágono de 11 de setembro de 2001, mas a bomba atômica sobre Hiroshima em 6 de agosto de 1945, seguida por 24 SCHMITT, C. O conceito do político. Petrópolis: Vozes, 1990, p. 134.25 Preceitos que estavam já presentes nas doutrinas medievais da guerra justa.26 BOBBIO, N. Una guerra giusta? Sul conflitto del Golfo. Venezia, 1991, p. 55-56, apud MAZZARESE, T. Kelsen teorico della guerra giusta?, Jura Gentium. Rubrica: Guerra, diritto e ordine globale. Disponível em: <http://www.juragentium.unifi.it>.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 143

outra bomba no dia 9 de agosto sobre Nagasaki 27.

Todas as guerras modernas utilizaram-se amplamente de meios terroristas para alcançar os seus objetivos, como, por exemplo, o bombardeamento da Inglaterra pelos aviões e mísseis nazistas como instrumento prévio para enfraquecer fisicamente e moralmente o adversário, criando um clima de terror entre a população, o que deveria abrir o caminho para a invasão da ilha; ou o bombardeio de Dresda e de outras cidades alemães por parte dos aliados, quando já a guerra estava vencida e não havia mais defesa possível por parte dos alemães: um mero ato terrorista sem justificativa militar.

Os atos “terroristas” praticados durante as ações bélicas não somente colocam em dúvida, a possibilidade de haver um jus in bello, mas mostram também uma outra face do conceito de “terrorismo”: um excesso injustificado de violência física contra o inimigo, sobretudo contra os que “tradicionalmente” eram definidos como innocentes, e preservados da violência das guerras, por parte do Estado.

TERRORISMO E GUERRA GLOBAL

Depois do fim da II guerra mundial, a chamada “guerra fria” e as armas atômicas congelaram a possibilidade de uma terceira guerra mundial, que pelo seu absoluto poder destrutivo teria colocado em perigo a própria sobrevivência da espécie humana, mas não eliminaram outros tipos de guerra que as duas potências travavam “indiretamente”.

Do ponto de vista normativo, o jus publicum europaeum foi substituído por uma nova doutrina: depois da doutrina da guerra justa e da ritualização da guerra (guerre en forme) se passou à concepção da guerra como um “ilícito internacional”. A expressão maior desta doutrina (que começa já com a Sociedade das Nações) é o capitulo VII da carta da ONU que atribui ao Conselho de Segurança o “monopólio do uso legítimo da Força” em nível internacional.

Isso, juntamente com outros fatores, talvez tenha impedido a deflagração de uma III guerra mundial, mas não impediu a proliferação de guerras durante o período do equilíbrio do terror, guerras “de menor intensidade” que utilizavam “armas convencionais”, mas nem por isso menos violentas e devastadores em varias partes “sensíveis” do mundo. No entanto, os países “centrais” ficaram preservados da guerra: os Estados Unidos, a Europa, a União Soviética e os países do bloco soviético viveram um período de relativa paz nas relações inter-estatais28.

27 No dia 6 de Agosto, às 08:15, o Enola Gay lançou a primeira bomba A, programada para detonar a 576 m acima da cidade japonesa onde viviam milhares de pessoas, e após um silencioso clarão, ergueu-se um cogumelo de devastação de 9.000 m de altura provocando ventos de 640 a 970 km/h e espalhando material radioativo numa espessa nuvem de poeira. A explosão provocou um calor de cerca de 5,5 milhões de graus centígrados, similar às temperaturas próximas ao limbo do Sol. Hiroshima tinha na época cerca de 330 mil habitantes, o bombardeio matou cerca de 130 mil pessoas e feriu outras 80 mil, a bomba lançada é até hoje a arma que mais mortes provocou em pouco tempo, 221.893 mortos é o total das vítimas da bomba reconhecidas oficialmente. A bomba também afetou seriamente a saúde de milhares de sobreviventes. A grande maioria das vítimas era formada pela população civil, que nada tinha a ver com a guerra ou que a simples curiosidade as levassem até o local. Prédios sumiram com a vegetação, transformando a cidade num deserto. Num raio de 2 km, a partir do centro da explosão, a destruição foi total. Milhares de pessoas foram desintegradas e, em função da falta de cadáveres, as mortes jamais foram confirmadas.

28 Mas não podemos esquecer a invasão da Hungria e da Checoslováquia por parte do Exército Vermelho.

144 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

Com o fim da guerra fria, inicia uma novo período na longa e ininterrupta história da guerra: é o que Danilo Zolo chama de passagem da guerra moderna para a “guerra global”, típica de uma época de aceleração da globalização. Na opinião de Zolo esta guerra global seria caracterizada pelo globalismo geopolitico, sistêmico, normativo e ideológico29. Todos esses aspetos fazem parte de uma estratégia da administração norte-americana, elaborada logo após a vitória sobre o comunismo, portanto antes dos atentados de 11 de setembro de 2001, os quais seriam uma resposta a esta política. A estratégia consistiria em impor unilateralmente ao mundo uma nova ordem mundial de tipo imperial, e uma nova idéia de pax americana, na qual a luta global contra o terrorismo desempenha um papel fundamental. Em nome do combate ao terrorismo e da expansão da democracia e dos direitos humanos são promovidas guerras como as do Afeganistão e do Iraque, que contrariam abertamente o direito internacional e utilizam amplamente métodos terrorista; a guerra ao terrorismo justifica a prisão de Guantánamo, as prisões ilegais praticadas pela CIA em todos os territórios das potências aliadas, inclusive na “democrática” Europa, e a presença capilar de bases militares norte-americanas nos lugares estratégicos do mundo.

Este projeto da administração norte-americana está encontrando resistências porque o mundo se apresenta sempre mais multipolar e os Estados Unidos não estão conseguindo impor esta visão das relações internacionais apesar de toda a sua força econômica e militar. Os fracassos no Iraque e no Afeganistão estão aí para demonstrar a fraqueza desta abordagem, que começa a ser questionada, inclusive pelo novo governo norte-americano, que declarou a sua adesão a uma visão multilateral das relações internacionais30.

Ao mesmo tempo, parece duvidoso afirmar que o terrorismo está se tornando uma resposta global a esta investida imperial norte-americana: acreditar nisso seria entrar no jogo retórico dos conservadores americanos que querem apresentar conflito como um clash of civilizations31. A ideia de uma central mundial do terrorismo é funcional à idéia norte-americana de uma guerra global ao terrorismo, fruto mais de uma obsessiva propaganda política que da realidade das coisas: o terrorismo não parece ser aquele fenômeno tão capilar e global que os analistas de direita e de esquerda querem nos apresentar. Alguns falam até de uma “guerra global”, uma guerra que encontraria o seu caldo de cultura na rebelião dos povos oprimidos pela globalização32. Com efeito, podemos afirmar que o fenômeno do terrorismo é algo bastante limitado no espaço geo-político atual a setores minoritários do mundo islâmico; mais ainda, que ele representa a resposta radical e niilista de uma franja extrema do mundo islâmico que se aproveita do sentimento popular anti-americano provocado pela política agressiva dos Estados Unidos. Como afirma Zolo:

O que no Ocidente é chamado de “terrorismo global” – global terrorism – não é, na realidade, um fenômeno homogêneo, expressão de uma conspiração planetária do mal contra o bem, como o maniqueismo

29 ZOLO, D. I signori della Pace: una critica del globalismo giuridico. Roma: Carocci, 1998.30 NYE, J. S. Jr. Il paradosso del potere americano: perché l’unica superpotenza del mondo non può agire da sola. Torino: Einaudi, 2002.

31 HUNTINGTON, S. P. O choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997.

32 GALLI, C. La guerra globale. Roma-Bari: Laterza, 2002; ZOLO, D. Dalla guerra moderna alla guerra globale. In: BIMBI, L. (org.). Not in My Name: guerra e diritto. Roma: Editori Riuniti, 2003.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 145

ocidental procura apresentá-lo, por exemplo em autores como Alan Dershowitz33 e Michael Walzer34. Se é verdade que o mundo árabe-islâmico é hoje a sede principal do terrorismo, é fácil provar, entretanto, que não existe uma única organização terrorística mundial – a onipresente Al Qaeda, dominada por Osama bin Laden – e que o terrorismo não é uma emanação exclusiva do chamado fundamentalismo islâmico. Na realidade, não existe somente um terrorismo, mas muitos, que se expressam de diversas formas dentro de contextos diferenciados.35

Associar “terrorismo” com “guerra global” ou com “guerra civil mundial” significa endossar as teorias dos neoconservadores norte-americanos, do “choque de civilizações”. Para combater um terrorismo que se pretende onipresente, invisível, poderoso, se justificam as guerras como as do Iraque e do Afeganistão que podem ser consideradas verdadeiros atos de terrorismo de Estado devido ao enorme número de vitimas civis inocentes que provocam para alcançar o objetivo de “exportar a democracia”.

Por outro lado, os movimentos anti-neoliberais e anti-imperialistas que defendem uma visão cosmopolita ou, quanto menos, multilateral das relações internacionais, não utilizam meios terroristas e não têm mais no seu horizonte a revolução como um objetivo a ser perseguido de modo violento. A era das revoluções e o paradigma revolucionário pertencem ao passado e as novas utopias dos movimentos “no global” tem outros horizontes e estratégias que excluem o recurso à violência política revolucionária, assim como foi teorizada e vivida por gerações de militantes comunistas. Somente alguns poucos movimentos fundamentalistas estão dispostos a renunciar aos pressupostos do Estado de Direito e dos sistemas democráticos, mesmo criticando-os. E a essência do sistema democrático é justamente a de tentar compor os conflitos sociais e de interesses sem recorrer à violência, ou recorrendo ao mínimo de violência consentida pela sociedade: a violência legitima.

Não podemos, porém, esquecer que regimes democráticos ou de Estado de Direito constituem excepções no mundo contemporâneo, e que uma grande parte da humanidade vive sobre regimes autoritários onde a violência não foi ritualizada e formalizada pelo direito dentro de padrões “civilizados”. Devemos também considerar que as democracia ocidentais sempre praticaram, e continuam praticando, duas políticas radicalmente diferentes, no que se refere à política interna e externa, tanto na época colonial, como no período pós-colonial ou neocolonial atual. Se internamente promovem a expansão dos direitos e das garantias individuais, externamente exportam suas contradições internas com todas as formas de violência possíveis. Existem portanto regiões no mundo onde prevalecem fortes conflitos e tensões e a violência exercita um papel preponderante: é nessas situações que o terrorismo prospera. Baste pensar ao Oriente Médio, dilacerado pelo conflito entre o Estado de Israel, os Palestinos, e os Estados vizinhos, e a invasão do Iraque e do Afeganistão por parte do Estados Unidos e seus aliados.

33 Ver: DERSHOWITZ, A. M. Why terrorism works. New Haven: Yale University Press, 2002. Benjamin Netanyahu elogiou publicamente este livro e o seu autor, exaltando seus dotes de uncommon intellectual brilliance and moral courage. Ver o site: <http://www.any-book.com/ why_it_works.htm>.

34 Ver: WALZER, M., Just and Unjust Wars. New York: Basic Books, 1992.35 ZOLO, As “boas razões”...

146 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

O “terrorismo” de grupos palestinos pode ser visto com a o último e extremo recurso dos mais pobres e fracos contra um poder extremamente superior econômica e militarmente, que reage exercitando um terrorismo de Estado para manter uma política de dominação neocolonial, que inviabiliza a criação de um Estado palestino soberano. Esta situação produz um círculo vicioso, uma espiral de violência que chama violência, que até o momento não encontrou uma solução.

Da mesma forma, é difícil distinguir, no Iraque e no Afeganistão, uma legitima resistência armada a uma invasão estrangeira, nos moldes dos partigiani europeus e dos guerrilheiros latino-americanos, de uma resposta niilista de grupos terroristas que querem simplesmente destruir o adversário e instaurar um regime totalitário e de terror.

CONCLUINDO

A primeira conclusão a ser apresentada é que é difícil, senão impossível, dar una definição unívoca de terrorismo, porque a palavra se aplica a fenômenos heterogêneos e até contraditórios. Porém, se há algo em comum entre todos esses fenômenos é que o termo é sempre utilizado de forma negativa, ou seja, ninguém se declara terrorista ou gosta de ser chamado de terrorista, mas considera terrorista o outro, o inimigo.

Este uso semântico alerta-nos para algo muito importante para definirmos o terrorismo: ele é algo a ser evitado, um termo que suscita reprovação. Mesmo as teorias realistas, que justificam a inevitabilidade de um certo uso da violência política, reconhecem no terrorismo um “excesso” de violência desnecessária e injustificável.

Este excesso situa-se na falta de respeito da distinção entre nocentes e innocentes: o extermínio de inocentes parece ser parte essencial da política terrorista, porque é parte do objetivo de espalhar o “terror”.36 Foi o que aconteceu com os atentados de 11 de setembro nos Estados Unidos, ou da estação de Atocha em Espanha, ou no metrô de Londres na Inglaterra, ou nas pirâmides do Egito. Trata-se de atentados contra populações inocentes e não contra objetivos militares. Disso deriva a espantosa eficácia, e ao mesmo tempo o caráter odioso do terrorismo, que não define um inimigo preciso, mas ameaça os membros de uma sociedade inteira: todos se sentem alvos potenciais do terrorismo.

Mas se esse for um traço característico do terrorismo, deveríamos afirmar que também existe um terrorismo de Estado: o que foi promovido pelos bombardeios da OTAN no território da Sérvia, o que Israel promoveu em 2007 contra o Líbano, e que continua promovendo na faixa de Gaza contra os palestinos, os bombardeios dos Estados Unidos contra a população civil na invasão do Iraque. Mas a existência de um terrorismo de Estado não è consensual, existe segundo Danilo Zolo, um vazio

36 Quando se fala de terrorismo na Itália se pensa geralmente às Brigadas Vermelhas, mas se esquece o terrorismo de direita, que fez muito mais vitimas inocentes. Enquanto as Brigadas Vermelhas, na sua lógica absurda, atacavam seletivamente os representantes do Estado e os seus colaboradores, o terrorismo de direita atacava diretamente a população com atentados nos trens, nos bancos, nas estações ferroviárias com o intuito de promover o pânico social e um clima político que propiciasse o clamor da opinião pública à ordem e ao golpe militar. Somente o atentado à estação de Bologna em 1981, cidade notoriamente de esquerda, custou a vida de mais de 80 pessoas, mais do que todas as vítimas das Brigadas Vermelhas.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 147

no ordenamento internacional, de tal forma que:

Nenhum comportamento que possua as prerrogativas da soberania estatal, é, de fato, considerado terrorístico. Terroristas são sempre e somente os membros de organizações que operam privadamente e clandestinamente, não os militares enquadrados nos exércitos nacionais e os seus superiores. Os Estados e os seus aparatos militares nunca são equiparados a organizações criminosas terrorísticas. Qualquer ação que eles empreenderem – até mesmo a mais violenta, destrutiva e lesiva das vidas e dos bens de civis inocentes – não é considerada terrorística.37

Alguém deveria dar o primeiro passo necessário para acabar com a espiral de violência. Não podemos pedir isto aos terroristas, que seguem a sua lógica destruidora e niilista, mas podemos exigir isto das potências democráticas que conseguiram, a custa de terríveis guerras civis, resolver internamente os conflitos sociais, recorrendo ao mínimo de violência legitima possível, para que promovam internacionalmente políticas mais voltadas para o desenvolvimento econômico e as reformas políticas, que de agressão militar, mais de soft power, que de hard power (NYE, 2002).38 Isto retiraria ao terrorismo o seu húmus e a sua razão de ser. Enquanto isto não acontecer, vamos conviver ainda por um bom tempo com o terrorismo nas suas várias manifestações.

Não queremos assim justificar o terrorismo, que continua sendo um fenômeno injustificável, moral e politicamente, mas explicar o porquê da sua persistência no mundo globalizado contemporâneo. Continuamos achando que o terrorismo, de qualquer ponto de vista venha a ser abordado, é algo negativo: na melhor das hipóteses uma resposta desesperada a uma violência desproporcional ou percebida como tal. Por isso, negamos a possibilidade de existir um “bom terrorismo”, tanto como instrumento (ex parte populi) de uma luta de resistência ao Império por parte da “multidão”39;quanto como instrumento (ex parte principi) dos Estados e das Organizações Internacionais para exportar a democracia e defender os direitos humanos. Se quisermos um realizar um salto de civilização, um verdadeiro progresso moral e jurídico da humanidade, como diria Kant, teremos de encontrar uma saída que supere essas duas alternativas.

Vivemos numa sociedade de risco e alimentar o círculo vicioso da “guerra total contra o terrorismo” significa, como advertia Merleau-Ponty, “entrar no jogo da violência, e aí permanecer para sempre”.

***

37 ZOLO, As “boas razões”...38 NYE, Il paradosso...39 NEGRI, T.; HARDT. M. Multidão: guerra e democracia na Era do Império. São Paulo: Record, 2005.

148 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

RESUMO

O terrorismo é uma das formas fundamentais de violência política dos tempos modernos, que é preciso diferenciar da violência criminal e de outras formas de violência política tais como a guerra, a guerra civil, a guerrilha contra um regime ditatorial ou poder colonial e o uso do terror num regime democrático. O presente ensaio propõe-se a refletir sobre esse fenômeno, tomando como ponto de partida as observações de Merleau-Ponty sobre o terror estalinista, contidas em Humanisme et Terreur, com o intuito de distinguir o terrorismo das outras formas de violência política, e de encontrar uma definição o/ a mais abrangente possível desse fenômeno. Uma atenção especial é dedicada ao terrorismo na época de/ da globalização confrontando-o com o conceito de guerra total. O autor defende duas teses fundamentais: que a caracterização do terrorismo como uma ameaça global à democracia e à civilização é fruto de uma campanha propagandística para justificar uma guerra global por parte dos Estados Unidos e das potências ocidentais; que no terrorismo, em qualquer das suas formas – inclusive na forma de terrorismo de Estado –, se manifesta um excesso de violência que atinge sobretudo os inocentes.

Palavras Chave: Terrorismo; Democracia; Guerra Total, Violência Política; Merleau-Ponty.

ABSTRACT

Terrorism is one of the fundamental forms of political violence in modern times. It must be distinguished from criminal violence and other forms of political violence such as war between States, civil war, guerilla against a dictatorial regime or against a colonial power, or still from the use of terror in a democratic regime. The present study proposes a reflection on this phenomenon, taking as a starting point Merleau-Ponty’s observations in Humanisme et Terreur on Stalinist terror, with the intention to distinguish terrorism from other forms of political violence, and to find out a wide-scope definition of the phenomenon. A special attention will be paid to terrorism in the era of globalization contrasting it with the concept of total war. We defend two fundamental theses: First, that the characterization of terrorism as a threat to democracy and civilization is a product of a propagandist campaign organized in order to justify a global war conducted by the United States and its western allies; and second, that terrorism, no matter what form it takes – including State terrorism – always manifests itself as an excessive form of violence that hurts, most of the time, innocents.

Keywords: Terrorism; Democracy; Total War, Political Violence; Merleau-Ponty.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 149

O IMPÉRIO DA VOZ: APONTAMENTOS SOBRE O EXERCÍCIO

DO PODER PONTIFÍCIO DURANTE A “ERA GREGORIANA”

Leandro Duarte Rust1

Em janeiro de 1076 estourou a crise entre a cúria romana e a corte imperial conhecida entre os historiadores como “Querela das Investiduras”, capítulo central da chamada “Reforma Gregoriana”.2 Sua deflagração, atestaria Norman Cantor em 1958, teria feito entrar em cena a “primeira das grandes revoluções mundiais da História ocidental, e seu curso segue o padrão conhecido das revoluções dos tempos modernos (...), como a Revolução Protestante do século dezesseis, a revolução liberal do século dezoito, a revolução Comunista, do vinte”3.

Após sucessivos desentendimentos a respeito dos limites da competência régia para intervir em questões eclesiásticas, a frágil cooperação existente entre a realeza germânica e o papado se desfez na decisão do rei, Henrique IV, de lançar contra Gregório VII uma sentença de deposição. Em fevereiro, durante a celebração da habitual reunião do episcopado romano em um sínodo quaresmal, o pontífice recebeu o anúncio da medida selada pelo monarca4. Imediatamente, contra-atacou esgrimindo o anátema da excomunhão cristã, cujo texto segue traduzido:

Bem-aventurado Pedro, príncipe dos apóstolos, inclina, nós te imploramos, teus misericordiosos ouvidos para nós e escuta-me, teu servo, quem tu alimentou desde a infância e, até este, dia livrou das mãos dos homens fracos [Est. 14:19] que me odiaram, e ainda odeiam, por minha fidelidade a ti. Tu és minha testemunha, e minha senhora a Mãe de Deus e o bem-aventurado Paulo teu irmão entre todos os santos, que tua santa igreja Romana me arrastou contra minha vontade para seu governo, que eu não o tomei por rapina para ascender à tua sé, que eu desejei antes terminar minha vida em exílio do que tomar teu lugar

1 Doutorando em História Medieval pela Universidade Federal Fluminense. Pesquisador Colaborador do Programa de Estudos Medievais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor Assistente do Departamento de História da Universidade Federal do Mato Grosso. Este artigo resulta de uma pesquisa que conta com o fomento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

2 FLICHE, Augustin. La Réforme Grégorienne. Louvain: Spicilegium Sacrum Lovaniense, 1924-1937, 3 vol; FLICHE, Augustin. La Querelle des Investitures. Paris: Bloud et Gay, 1946; BROOKE, Zachary N. Lay Investiture and its relation to the conflito of Empire and Papacy. Proceedings of the British Academy, v. 25, 1939, p. 217-247; PACAUT, Marcel. La Théocratie: l’Église et le Pouvoir au Moyen Age. Paris : Aubier, 1957; CHÉLINI, Jean. Histoire Religieuse de l’Occident Médiéval. Paris: Pluriel, 1991.

3 CANTOR, Norman. Church, Kingship, and Lay Investiture in England (1089-1135). New Jersey: Princeton University Press, 1958, p. 6-7.

4 Há um conjunto substancial de relatos de que o eclesiástico encarregado de anunciar a sentença régia de deposição, Rolando, bispo de Treviso, causou violenta reação da assembleia, que ameaçou atacá-lo de forma letal durante o sínodo. BERTHOLDO. Annales. MGH SS, tomo V, p. 282-283; BONIZO DE SUTRI. Liber Ad Amicum. MGH Ldl, tomo I, p. 606-607; BRUNO DE MERSEBURG. De Bello Saxonico. MGH SS, tomo V, cap. 68, p. 353; DONIZO. Vita Mathildis. MGH SS, tomo XII, p. 377; PAULO DE BERNRIED. Vita Gregorii VII papae. PL, v. 148, col. 70-71.

150 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

pelo artifício secular da glória deste mundo. E, portanto, eu acredito ser por tua graça e não por minhas palavras [Rom. 11:6] que te agradou, e ainda agrada, que o povo Cristão especialmente confiado a ti deverias ser especialmente obediente a mim através de teu vicariato entregue a mim. Por tua graça, o poder me foi dado por Deus de atar e desatar no céu e na terra [Mat. 16:19]. Então, fortalecido por esta confiança, para a honra e proteção de tua igreja, em nome do Deus onipotente, Pai, Filho e Espírito Santo, através de teu poder e autoridade, eu nego ao rei Henrique, filho do imperador Henrique, que se ergueu com inaudita soberba contra tua igreja, o governo de todo o reino dos Germanos e da Itália, e eu absolvo todos os cristãos do vínculo de qualquer juramento que eles tenham prestado, ou venham a prestar, a ele; eu proíbo a qualquer um de servi-lo como rei. Pois é adequado que ele, que busca diminuir a honra de tua igreja, deva perder a honra que aparenta possuir. E porque ele desprezou obedecer como um cristão, e não retornou ao Deus que abandonou por manter contato com excomungados e, tu és minha testemunha, por menosprezar minhas admoestações, que enviei para sua salvação, e desprezar a tua igreja por meio de uma tentativa para dividi-la, separando-a, em teu nome eu ato-o com o vínculo do anátema; e ainda ato-o com a confiança em ti de que os povos possam saber e aprovar que tu és Pedro, e sobre esta rocha o Filho do Deus vivo construiu sua igreja e os portões do inferno não prevalecerão contra ela [Mat. 16:18].5

Com estas palavras Gregório VII negou ao rei Henrique IV o exercício da realeza e o excomungou por desobediência. Porém, ele o fez na forma de um apelo pessoal dirigido a São Pedro. Dispondo da sentença como um exame confessional, o papa tornou-a alheia ao processo de sua própria elaboração: ela não apresenta vestígio algum das deliberações e das consultas à assembléia conciliar que respaldavam sua redação6. Se algumas semanas antes, Henrique havia justificado a decisão de 5 “Beate Petre apostolorum princeps, inclina, quesumus, pias aures tuas nobis et audi me servum tuum, quem ab infantia nutristi et usque ad hunc diem de manu iniquorum liberasti, qui me pro tua fidelitate oderunt et odiunt. Tu michi testis es et domina mea mater Dei et beatus Paulus frater tuus inter omnes sanctos, quod tua sancta Romana ecclesia me invitum ad sua gubernacula traxit et ego non rapina arbitratus sum ad sedem tuam ascendere potiusque volui vitam meam in peregrinatione finire quam locum tuum pro gloria mundi seculari ingenio arripere. Et ideo ex tua gratia, non ex meis operibus credo, quod tibi placuit et placet, ut populus christianus tibi specialiter commissus mihi oboediat specialiter pro vice tua michi commissa. Et michi tua gratia est potestas a Deo data ligandi atque solvendi in celo et in terra. Hac itaque fiducia fretus pro ecclesie tue honore et defensione ex parte omnipotentis Dei Patris et Filii et Spiritus sancti per tuam potestatem et auctoritatem Henirico regi, filio Heinrici imperatoris, qui contra tuam ecclesiam inaudita superbia insurrexit, totius regni Teutonicorum et Italie gubernacula contradico et omnes christianos a vinculo iuramenti, quod sibi fecerunt vel facient, absolvo et, ut nullus ei sicut regi serviat, interdico. Dignum est enim, ut, qui studet honorem ecclesie tue imminuere, ipse honorem amittat, quem videtur habere. Et quia sicut christianus contempsit oboedire nec ad Deum rediit, quem dimisit participando excommunicatis meaque monita, que pro sua salute misi, te teste, spernendo seque ab ecclesia tua temptans eam scindere separando, vinculo eum anathematis vice tua alligo et sic eum ex fiducia tua alligo, ut sciant gentes et comprobent, quia tu es Petrus et super tuam petram filius Dei vivi edificavit ecclesiam suam et porte inferi non prevalebunt adversus eam». GREGÓRIO VII. Decretos sinodais. MGH Epp. sel. liber III, p. 268-271; MANSI, tomo XX, col. 467-469.

6 BERNOLDO DE CONSTANCE. Chronicon. MGH SS, tomo V, p. 433-439; BERTHOLDO. Annales. MGH SS, tomo V, p. 278-283; BONIZO DE SUTRI. Liber ad Amicum. MGH Ldl, tomo I, p. 606-607;

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 151

depor o pontífice alegando que “reuni uma assembléia geral com todos os principais homens do reino, segundo sua súplica”7, e que nada mais fazia do que acatar a “justa opinião” destes, Gregório, por sua vez, nem mesmo evoca a aprovação da igreja romana ao puni-lo. A legitimidade do veredicto papal, tal como revela ainda outro documento – a bula redigida para anunciar a publicação desta sentença –, não foi amparada no respaldo e na aprovação dos padres reunidos em sínodo. Mas sim na palavra dirigida à “tristeza e lamentação por parte de todos fieis,” os quais, segundo o papa, deviam “estar aflitos pelas injúrias que têm sido infligidas sobre [Pedro]”, já que eram “feitos participantes dos sofrimentos”8. É como se a reparação das angústias para as quais foram arrastados os “verdadeiros cristãos”, graças às ações do rei, fosse razão suficiente para legitimar o ato de excomungar e remover do trono o sucessor imperial. Uma fórmula idêntica registraria a decisão papal, tomada no sínodo romano de março de 1080, de relançar a mesma sentença sobre Henrique:

Bem-aventurado Pedro, príncipe dos apóstolos, e tu, bem-aventurado Paulo, doutor dos povos, sejam condescendentes, eu peço, a inclinar vossos ouvidos para mim e com clemência compreender-me. Porque vós sois discípulos e amantes da verdade, ajudais que eu diga a vós a verdade isenta da toda falsidade, para que meus irmãos encontrem consolação no melhor em mim e saibam e compreendam que com confiança em vós, após Deus e sua mãe a sempre virgem Maria, eu resista ao fraco e injusto, e ainda que eu preste auxílio a vossos fiéis.9

Os historiadores não fizeram cerimônia para qualificar a conduta papal. Dos idos de 1850, a publicação da monumental Die Geschichte der Stadt Rom im Mittelalter (História de Roma na Idade Média), do erudito protestante alemão Ferdinand Gregorovius. viria emoldura uma imagem vívida na consciência histórica: realizações de “um espírito dotado de uma força fanática”, tais atos teriam revolvido séculos de Cristianismo, desnudando como “todas as demais excomunhões papais tinham sido fracas em comparação este sopro histórico-mundial que deixou o Ocidente inflamado”10. Em 1890, em páginas que o abade O. Delarc tornou notórias, as

BRUNO DE MERSEBURG. De Bello Saxonico. MGH SS, tomo V, p. 353; HUGO DE FLAVIGNY. Chronicon. MGH SS, tomo. VIII, p. 435; LAMBERTO DE HERSFELD. Annales. MGH SS, tomo V, p. 243.

7 “... generalem conventum omnium regni primatum ipsis supplicantibus habui”. HENRIQUE IV. Epístola a Hildebrando. MGH Const., tomoI, p. 109; BRUNO DE MERSEBURG. De Bello Saxonico. MGH SS, tomo V, cap. 65, p. 351-352; MANSI, tomo XX, col. 471-472.

8 “omnibus tamen fidelibus (...) dolendum foret et gemendum (...) cogitandum vobis est, quantum nunc de irrogata sibi iniuria dolere debeatis. (...) socii passionum efficiamini”. GREGÓRIO VII. Bula Audistis. MGH Epp. sel, liber III, p. 254-255; HUGO DE FLAVIGNY. Chronicon. MGH SS, tomo. VIII, p. 442.

9 “Beate Petre princeps apostolorum et tu beate Paule doctor gentium, dignamini, queso, aures vestras ad me inclinare neque clementer exaudire. Quia veritatis estis discipluli et amatores, adiuvaret, ut veritatem vobis dicam omni remota falsitate, quam omnino detestamini, ut fratres mei melius michi adquiescant et sciant et intellegant, quia ex vestra fiducia post Deum et matrem eius semper virginem Mariam pravis et iniquis resisto, vestris autem fidelibus auxilium presto”. GREGÓRIO VII. Registros sinodais. MGH Epp. Sel., liber VII, p. 483-487; HUGO DE FLAVIGNY. Chronico. MGH SS, tomo. VIII, p. 451-453; MANSI, tomo XX, col. 534-536.

10 GREGOROVIUS, Ferninand. History of the City of Rome in the Middle Ages. Londres: George Bell & Sons, 1905, v. 4, parte I, p. 168-199.

152 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

controversas ações gregorianas aparecem dotadas de magnitude histórica única, comparável apenas – segundo o autor – aos feitos napoleônicos11. Apreciação que muito agradou ao incontido catolicismo de Augustin Fliche, cuja obra, “La Réforme Grégorienne”, publica entre 1924 e 37, tornou-se a mais influente síntese produzida no século XX sobre a história do papado medieval12. Em meados do século XX, julgando aquela conduta obra de idealismo inconsequente, Geoffrey Barraclough timbrou-a como ações de um homem dominado por uma “ardente personalidade, convicções apaixonadas, falta de tato, linguagem dura”13. De forma semelhante, Jacques Paul encontrou em tais decisões motivo para reputar o pontífice como um místico heróico que “não levava em consideração nem o direito, nem a jurisprudência, nem o governo dos homens, nem as atividades humanas”14. O ideário político de Gregório VII - garantiu ainda Friedrich Kempf - era guiado por inteiro pela mística da autoridade apostólica e pela crença maior em um conflito lancinante entre o reino dos céus e o do mal15. Por fim, Marcel Pacaut, em trechos do Dictionnaire Historique de la Papauté, resumiu a opinião corrente: o papa foi “homem de uma alta cultura, homem de princípios a ponto de ser intransigente e talvez inábil, corajoso e convencido da justiça de sua causa, autoritário e brusco”16. Contudo, ao contrário do que por vezes se sugere, as formas de proceder adotadas por Gregório VII não eram exceções ou frutos de alguma espiritualidade excepcional da segunda metade do século XI. Eram, isto sim, partes em evidência de um universo jurídico singular. E isto pode ser demonstrado através de uma inverdade. Vejamos.

Em 1044, o papado foi atingido por grave crise. As ásperas rivalidades entre os Tusculani e os Crescenzii – famílias aristocráticas de imprecisas ramificações parentais que disputavam o controle de Roma17 –, acirraram, desandando em levantes populares que acarretaram a fuga do pontífice reinante (Bento IX), a consagração de um rival (Silvestre III) e a eleição de um terceiro sucessor (Gregório VI) para a mitra papal. No ano de 1046, a cátedra apostólica era reclamada por três papas. Um cisma que, diga-se então, não persistiu por muito tempo, pois os três litigantes foram removidos pelo rei Henrique III pouco antes do Natal. Contudo, precisamente neste ponto a documentação se bifurca. Parte das fontes atesta que os três eclesiásticos receberam o mesmo tratamento por parte do monarca: todos foram depostos como invasores da igreja romana, os dois últimos no sínodo presidido por Henrique em Sutri, e o primeiro em outra assembléia realizada em Roma18. Outro

11 DELARC, Odon. Saint Grégoire VII et la réforme de l’Eglise au XIè siècle. Paris: Retaux-Bray, 1890, v. 1, p. x-xxxvii.

12 FLICHE, La Réforme..., vol. 2, p. 71-109, 263-276. 13 BARRACLOUGH, Geoffrey. Os Papas na Idade Média. Lisboa: Verbo, 1972, p. 103.14 PAUL, Jacques. La Iglesia y la Cultura en Occidente (siglos IX-XII). Barcelona: Labor, 1988, v. 1, p. 247.

15 KEMPF, Friedrich. Pope Gregory VII. In: JEDIN, Hubert (ed.). The Church in the Age of Feudalism. Nova York: Seabury Press, 1980, p. 367-370.

16 PACAUT, Marcel. Gregoire VII. In: LEVILLAIN, Philippe (Dir.). Dictionnaire Historique de la Papauté. Paris: Fayard, 2003, p. 748.

17 VIOLANTE, Cinzio. Quelques characteristiques des structures familiales en Lombardie, Emilie, et Toscane aux XI et XII siècles. In: DUBY, Georges & LE GOFF, Jacques (ed.). Famille et Parenté dans l’Occident Médiévale. Roma: E.F.R.M., 1977, p. 87–147.

18 ADÃO DE BREMEN. Gesta Hamburgensis Ecclesiae Pontificum. MGH .SS rer. Germ., tomo II, p. 148; ANNALES AUGUSTANI. MGH SS, tomo III, p. 126; ANNALES CORBEIENSES. MGH SS, tomo III, p. 06; ANNALES ROMANI. MGH SS, tomo V, p. 468-469; ANNALISTA DE SAXO. MGH SS, tomo VI, p. 687; HERMANO DE REICHENAU. Chronicon. MGH SS, tomo V, p. 126; LAMBERTO

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 153

conjunto documental insiste que, diferentemente de seus adversários, Gregório VI não foi deposto, mas abdicou à sé apostólica. Segundo esta versão, após tomar conhecimento, diante dos “homens religiosos” reunidos pelo rei em Sutri, de todos os fatos envolvidos em sua eleição, o papa teria lançado sobre si mesmo a seguinte sentença:

‘Eu, Gregório, bispo, servo dos servos de Deus, julgo-me merecedor de ser removido do ofício de bispo de Roma, em razão da mais perversa venalidade da heresia simoníaca que, através dos ardis do antigo inimigo, rastejou para minha eleição’. E ele acrescentou: ‘Isto vos agrada?’ Eles replicaram: ‘O que agrada a ti, nós confirmamos’.19

Para a historiografia, Gregório VI foi deposto e os relatos documentais “que falam em abdicação devem ser dispensados como falsificações tendenciosas dos procedimentos de Sutri”20. Esta versão infundada não passaria, portanto, de uma manobra feita para resgatar da ilegalidade a memória daquele ao qual estiveram associados integrantes do papado como Pedro Damiano (elevado a cardeal bispo de Óstia em 1057) e Hildebrando (capelão de Gregório VI e futuro papa Gregório VII)21. Neste sentido, não é fortuito que seus propagadores – Bonizo, bispo de Sutri e aliado da “causa hildebrandina” contra Henrique IV; Desidério, abade de Monte Cassino eleito papa como Vítor III; Bernoldo de Constance, apologista de Gregório VII; e Leão de Marsia, monge de Monte Cassino – fossem todos “papalistas”, isto é, adictos do governo pontifical estabelecido após 1046. Nenhum destes escritores poderia ser visto como confiável no tocante a este evento, pois todos teriam igualmente fraudado a verdade em prol da reputação do establishment papal.

Porém, precisamente por isso tal versão é valiosa para o historiador: por oferecer a medida da legitimidade do poder para partidários do próprio papado. Quanto a isso, cabe não perder de vista o essencial desta versão: Gregório havia incorrido em simonia, mas ignorava que o tivesse feito. Seu envolvimento no acordo em dinheiro que o levou à sé apostólica é apontado como sendo direto, mas comandado pela inocência. Desconhecer-se faltoso o distinguia de seus concorrentes. Os três pontífices eram infratores. Os três haviam maculado a igreja de Roma barganhando suas eleições com dinheiro ou influência familiar. Contudo, um deles, inconsciente de suas ações, não havia deixado a legalidade, apesar de reconhecidamente simoníaco. Eis o fundamento lógico da versão da abdicação: por não estar na mesma ilicitude de seus rivais, Gregório VI não poderia ter sido deposto, tal como eles. A fronteira da

DE HERSFELD. Annales. MGH SS, tomo V, p. 154. Ver ainda: GREGOROVIUS, v. 04, p. 01, p. 47-57; MANN, v. 05, p. 238-269; POOLE, Reginald L. Benedict IX and Gregory VI. Proceedings of the British Acabemy, v. 08, 1917, p. 1-30.

19 “Ego Gregorius episcopus, servus servorum Dei, propter trupissimam venalitatem symoniace hereseos, que antiqui hostis versutia mee electioni irrepsit, a Romano episcopatu iudico me submovendum’. Et adiecit: ‘Placet vobis hoc?’ Et responderunt: ‘Quod tibi placet et nos firmamus’“. BONIZO DE SUTRI. Liber Ad Amicum. MGH Ldl., tomo I, Liber V, p. 586. Outras fontes da versão da abdicação são: BERNOLDO DE CONSTANCE. Chronicon. MGH SS, tomo V, p. 423; CHRONICA MONASTERII CASINENSIS. MGH SS, tomo VII, p. 682; VÍTOR III. Dialogi. PL, v. 149, col. 1005.

20 TELLENBACH, Gerd. op. cit., p. 177. A obra também apresenta ampla discussão historiográfica.21 Pedro Damiano havia, inicialmente, aprovado a eleição de João Graciano como Gregório VI. Hildebrando, por sua vez, havia sido seu capelão. JEDIN, Hubert (Ed.). The Church in the Age of Feudalism. Nova York: Seabury Press, 1980, p. 254-255. COWDREY, H. E. J. Pope Gregory VII (1073-1085). Oxford: Oxford University Press, 1998, p. 21-26.

154 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

legitimidade das ações pontifícias não era demarcada, para os autores “papalistas”, pelos atos cometidos, mas antes pelos estados de consciência que conduziam tais atos. Por isso seus relatos dispõem a figura de Gregório realizando não só um gesto de renúncia ao poder, mas um exame confessional com o qual teria acatado a solicitação da assembléia de “refletir sobre teu caso em teu próprio peito e julgar a ti mesmo por tua própria boca”22. Logo, a sentença de deposição/ excomunhão lançada contra Henrique IV em 1076 empregou a mesma medida de legalidade articulada por estes escritores para garantir a Gregório VI um bom lugar junto à memória eclesiástica. Gregório VII persistiu fiel ao princípio de que a linha divisória entre o lícito e o ilícito não era traçada apenas por regras de conduta factuais e fatos avalorativos, mas também pelos valores a que serviam as decisões de uma persona. Desta forma, no ordenamento jurídico sustentado pelo papado da segunda metade do século XI, os fatos e os atos eram pesados à luz dos propósitos e das intenções que orientavam o agente da autoridade apostólica.

Há outro aspecto desta versão da abdicação que precisa ser destacado. Para adequar o passado de forma que ele testemunhasse a favor do papado, esta “falsificação tendenciosa” pôs em evidência outro traço constitutivo da persona como viés privilegiado de sacralidade e valor de confiança: a vocalidade23. A conduta atribuída a Gregório VI e as ruidosas sentenças lavradas por Gregório VII demonstram que o emprego do poder decisório empunhado pelo papado passava, prioritariamente, pela voz. Um sintoma disso são as marcas de vocalidade deixadas nas decisões conciliares, muitas das quais registradas como atos de fala:

O Senhor papa Nicolau presidindo o sínodo na basílica constantinia disse: Decidimos que, quanto aos simoníacos, não se deve ter nenhuma misericórdia quanto à conservação da dignidade; mas, segundo as sanções dos cânones e decretos dos santos Padres, os condenamos todos e sejam depostos pela autoridade apostólica.24

Nós estabelecemos que ninguém seja ordenado subdiácono antes dos 15 ou 14 anos, que ninguém seja feito diácono antes dos 20 anos, que ninguém seja consagrado presbítero antes dos 30 anos. Responderam: ‘uma justa e canônica definição a ser observada por todos’.25

22 “Cui illi respondentes dixerunt: ‘Tu in sinu tuo collige causam tuam, tu proprio ore te iudica”. BONIZO DE SUTRI. Liber Ad Amicum. MGH Ldl., tomo I, Liber V, p. 585-586.

23 “Vocalidade é a historicidade de uma voz: seu uso”. ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz: a “literatura” medieval. São Paulo: Cia das Letras, 1993, p. 21.

24 “Dominus papa Nicolaus synodo in basilica Constantiniana praesidens dixit: (1) Erga simoniacos nullam misericordiam in dignitatem servanda habendam esse decernimus; sed iuxta canonum sanctiones et decreta sanctorum Patrum eos omnino damnamus, ac deponendos esse apostolica auctoritate sancimus”. DENZINGER, Heinrich. Enchiridion Symbolorum. Bologna: Edizioni Dehoniane Bologna, 1995, p. 392-394. Trecho do decreto contra a heresia simoníaca promulgado no sínodo presidido por Nicolau II em Roma, abril de 1059.

25 “... constituimus ut nemo ante annos xv aut xiiii subdiaconus ordinetur, nemo (ante) annos xx diaconus fiat, nemo ante annos xxx in presbiterum consecretur. Responderunt: iusta et canonica definitio ab omnibus observetur. Eodem die talia sunt decreta coram sinodo promulgata”. MANSI, tomo XX, col. 723. Cânone IV, concílio de Melfi, 1089, reunido por Urbano II. Ver ainda: SOMERVILLE, Robert & KUTTNER, Stephan. Pope Urban II: the collectio britannica and the council of Melfi (1089). Oxford: Clarendon Press, 1996, p. 253.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 155

Quanto aos capelães que, contra o número estabelecido, tenham prestado serviços em igrejas sem o consenso de seu bispo e que tenham obtido dízimos dos laicos sem a interrupção dos bispos, nós privamos do ofício e do benefício pelo juízo do Espírito Santo e pela autoridade dos santos apóstolos. Foi aclamado por todos: ‘faça-se, faça-se’.26

Em todos estes casos as decisões não emanam de uma palavra impessoal, distante e ordenadora, mas de uma palavra-força que, dotada de um rosto, ecoa a partir de um lugar-sujeito identificável, quer seja ditada por Deus, pela boca de um papa ou pela voz coletiva do concílio. Tratava-se de uma palavra que transforma a escrita em seu próprio fundo, que se valia dos princípios escritos para reforçar-se e que recorria à autoridade para enriquecer-se27. Fundadora, esta palavra-força condicionava a lei escrita, não o contrário.

O papado do século XI teve um forte senso de domínio da lei, mas este não era prontamente instaurado pelos limites do textual. Ilegal não era o que se encontrava fora apenas da prescrição escrita, mas, em diversas vezes, da palavra fundadora. Mesmo quando o que estava em jogo eram prescrições canônicas severas, como estas:

Que os dízimos, as primícias e as ofertas de pessoas vivas e mortas sejam restituídos fielmente pelos leigos à igreja e que estejam à disposição do bispo. Aqueles que os retiverem serão separados da santa igreja.28

Quanto aos dízimos, que a autoridade canônica demonstra terem sido concedidos para piedoso uso, nós proibimos pela autoridade apostólica que sejam possuídos por laicos. Mas se eles os receberam de bispos, de reis ou de quaisquer pessoas que sejam, a menos que os restaurem às igrejas, deixem-nos saber que cometem a ofensa do sacrilégio e incorrem no perigo da eterna danação.29

A última destas medidas foi aprovada, em assembléia conciliar, por Gregório VII. Contudo, em 1081, quando dois de seus legados cumpriram-na, ipsis literi, excomungando cavaleiros que haviam se apoderado de dízimos, a reação papal foi esta:

26 “Capellanos, qui contra statutum numerum in ecclesiis sine consensu sui episcopi militaverint, & a laicis decimas sine intermissione episcoporum obtinuerint, nos sancti Spiritus judicio sanctorumque apostolorum auctoritate ab officio & beneficio interdicimus. Acclamatum est ab universis: fiat, fiat”. MANSI, tomo XX, col. 739; URSINUS. Synodicon Beneventanensis Ecclesiae. Cambridge: Omnisys, 1990, p. 7-8. Medida atribuída à assembléia presidida por Urbano II em Benevento no ano de 1091.

27 ZUMTHOR, Paul. op. cit., p. 75-95.28 “Deinde, ut decimae & primitiae, seu oblationes vivorum & mortuorum, ecclesiis Dei fideliter reddantur a laicis: & ut in dispositione episcoporum sint. Quas qui retinuerint, a sanctae ecclesiae communione separentur”. CONCILIUM LATERANENSE. MGH Const., tomo I, p. 547; MANSI, tomo XIX, col. 898. Cânone V, do concílio romano de abril de 1059, presidido por Nicolau II.

29 “Decimas, quas in usum pietatis concessas esse canonica auctoritas demonstrat, a laicis possideri apostolica auctoritate prohibemus. Sive enim ab episcopis vel regibus vel quibuslibet personis eas acceperint, nisi ecclesie reddiderint, sciant se sacrilegii crimen committere et eterne dampnationis periculum incurrere”. GREGÓRIO VII. Decretos sinodais. MGH, Epp. sel., liber VI, p. 404-405; BERTHOLDO. Annales. MGH SS, tomo V, p. 314; HUGO DE FLAVIGNY. Chronico. MGH SS, tomo. VIII, p. 423-424. Cânone aprovado no sínodo presidido por Gregório VII em 1078.

156 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

Chegou ao nosso conhecimento que vós perturbastes muitos cavaleiros que anteriormente vos dedicaram ajuda e auxílio para corrigir presbíteros simoníacos e fornicadores, excomungando-os por terem se recusado a cumprir os dízimos, ao passo que, nós, por discrição, adiamos até agora atá-los com o vínculo do anátema por julgamento sinodal. Quanto a isto, portanto, nós aconselhamos e exortamos que de agora em diante sua sabedoria tempere o rigor canônico e que, nesta tempestade de atribulações, apliquem-se para a moderação poupando algumas coisas e ignorando algumas outras.30

O texto não fala de impunidade. Segundo o pontífice, os milites sofreriam os efeitos da infração canônica de reter dízimos. Mas a penalidade devia ser adiada e a regra escrita não podia ser cumprida de imediato: isto seria um excesso por tratar-se de ativos colaboradores na tarefa de corrigir os desvios da disciplina eclesiástica. O cumprimento estrito do cânone, como havia sido feito pelos legados, feria o reconhecimento da retidão com que a correção deveria ser aplicada. Com efeito, a utilitas e a equidade não estavam dadas na regra escrita, por isso o valor de justiça desta permanecia incompleto, inacabado, constantemente aberto à espera de ser preenchido com os dons da razão. Mas estes, o cânone não revelava, apenas a palavra vocalizada. Reger as condutas cristãs implicava em reconhecer que um infrator podia “muito melhor e mais prontamente ser conquistado para Deus e estimulado para o amor perpétuo do bem-aventurado Pedro pela doçura da brandura e pela exibição da razão do que pela austeridade ou pelo rigor da justiça”, segundo o próprio Gregório VII31. A regra escrita não se oferecia como algo a ser cumprido automaticamente, mas para ser colocado sob a custódia da razão e de seu principal meio de transmissão: a vocalidade da palavra eclesiástica.

Eis outro caso, especialmente digno de nota. Poucos meses antes da realização do sínodo de 1075, o papado acumulava denúncias contra o bispo de Poitiers, Isembert. Em abril do ano anterior, os canônicos de Saint-Hilaire delataram-no por usurpar direitos cabíveis à sua igreja, por impedir o acesso às relíquias de santos e por devastar propriedades através de ladrões a mando da sé episcopal. Gregório ordenou que a questão fosse levada a sínodo provincial32. Em setembro, o papa parece ter se inteirado de outra infração, cometida meses antes, em janeiro. Naquele mês, o arcebispo de Bourdeaux, Josselin, havia reunido, juntamente com o legado papal na região, Amato, bispo de Óloron, um sínodo em que seria desfeito o casamento do conde Guilherme VI de Poitou, em razão do grau de parentesco entre os cônjuges. Mas, segundo o próprio Gregório VII, Isembert enviou à assembléia cavaleiros 30 “Preterea innotuit nobis, quod multos milites, qui prius ad presbyteros fornicarios et symoniacos coercendos favorem et auxilium vobis impenderant, propterea quod decimas dimittere nolebant, excommunicando turbaveritis, quales nos adhuc anthematis vinculis alligare synodali judicio per discretionem distulimus. Super hic igitur consulimus atque hortamur, ut nunc pro tempore canonicum rigorem vestra sapientia temperet atque hac turbationis tempestate, quedam parcendo nonnulla dissimulando ita studeat moderari”. GREGÓRIO VII. Epístola a Hugo, bispo de Die, e Amato, bispo de Oloron. MGH. Epp, sel., liber IX, p. 580.

31 “Videtur enim nobis multo melius atque facilius lenitatis dulcedine ac rationis ostensione quam austeritate vel rigore iustitie illum Deo lucrari et ad perpetuum beati Petri amorem posse provocari”. GREGÓRIO VII. Epístola a Hugo, bispo de Die, e Amato, bispo de Oloron. MGH. Epp, sel., liber IX, p. 580.

32 GREGÓRIO VII. Epístola a Isembert, bispo de Poitiers. MGH, Epp. sel., liber I, p. 104-105.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 157

que “insultaram o arcebispo e nosso legado de forma torpe e também atacaram aos demais com ameaças, insultos, golpes, e com muitas afrontas”33. Algum tempo após o incidente, o legado interditou ao bispo o exercício das funções eclesiásticas: medida que foi confirmada por Gregório e à qual ele acrescentou a sentença de excomunhão. Porém, o papa havia igualmente decidido que todas as punições seriam revogadas se o bispo se dirigisse a Roma, pessoalmente, “até o próximo sínodo que (...) devemos celebrar na primeira semana da Quaresma, e se uma satisfação tiver sido realizada e comfirmada, exceto por contingência do perigo da morte iminente”34. E assim parece ter sido feito, já que Isembert reaparece no Registrum papal a serviço de Gregório, encarregado, em 1079, de intervir junto ao duque Guilherme VIII da Aquitânia no caso de uma disputa nobiliárquica por possessões fundiárias35. As agressões em série promovidas por meses a fio pelo bispo de Poitiers foram todas diluídas por uma justificação pessoal.

A imagem composta por Achille Luchaire nos idos dos anos 1880, onde figura um Gregório que “havia dado provas em muitos casos de uma moderação e de uma paciência que surpreendem”36, parece-nos mais apropriada ao estudo dos sínodos e concílios papais do que aquela em que Karl Leyser, há meio século, retratou um papa inflexível e obstinado em defender metas idealistas com “uma severidade assustadora e uma persistência heróica (...) [capazes de] ignorar as conseqüências para ele mesmo ou para os outros”37. Promovendo um universo jurídico em que a lei e a justiça partiam da escritura para culminar em obras de viva voz, o papado da “era gregoriana” sustentou um modo de tomar decisões que impedia o exercício do poder de fechar-se em texto e, assim sendo, de fixar-se e depositar-se fora das formas de pensar da persona. Precisamos, portanto, dedicar grande cautela à visão historiográfica corrente de que, na era pós-1046, o papado enveredou por um processo de racionalização e sistematização jurídica no qual a aplicação e a eficácia da lei teriam sido estabelecidas, cada vez mais, pelo próprio texto legal. Desenvolvida pela maestria de um Harold Berman, esta premissa sagital reiteradamente conduz à opinião de que “a igreja exerceu os poderes legislativos, administrativos e judiciais de um estado moderno, (...) dando forma aos modernos sistemas legais, dos quais

33 “... consessum irruentes archiepiscopum et legatum nostrum multa turpitudine dehonestaverunt, reliquos vero minis convitiis ac verberibus multisque contumeliis afflixerunt”. GREGÓRIO VII. Epístola a Isembert, bispo de Poitiers. MGH, Epp. sel., liber II, p. 125-126. A Chronico Sancti Maxentii refere-se à assembléia presidida por Gosselin naquele ano, mas não faz menção a incidentes de violência: CHRONICO S. MAXENTII. RHGF, tomo XII, p. 401.

34 “... usque ad futuram synodum, quam Deo annuente in prima ebdomada quadragesime celebraturi sumus, nisi forte periculo mortis imminente et hoc precedente satisfactione sacramento confirmata”. GREGÓRIO VII. Epístola a Isembert, bispo de Poitiers. MGH, Epp. sel., liber II p. 155. Uma competente exposição geral do desenrolar do conflito, ainda que sumariamente descritiva, encontra-se em: RICHARD, Alfred. Histoire des Comtes de Poitou, 778-1204. Paris: Alphonse Picard & Fils Editeurs, 1903, tomo I, p. 305-318.

35 GREGÓRIO VII. Epístola a Isembert, bispo de Poitiers. MGH, Epp. sel., liber VI, p. 445-446. Ver ainda: FP, tomo da arquidiocese de Bordeaux, p. 80-82.

36 LUCHAIRE, Achille. Les Premiers Capétiens (987-1137). Paris: Tallandiers, 1980, p. 80-81, p. 228.

37 LEYSER, Karl. The Polemics if the Papal Revolution. In: SMALLEY, Beryl (ed.). Trends in Medieval Political Thought. Oxford: Blackwell, 1965, p. 53.

158 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

o primeiro foi o sistema da lei canônica”38. Ao se deixar apanhar por esta avaliação, o historiador passa a solicitar a este passado evidências de um jogo espelhado entre a realidade das ações papais e o conteúdo dos textos canônicos utilizados na Cúria romana. Desta forma, perde-se de vista as distâncias que muitas vezes se colocavam entre a lei canônica e a efetiva ação legal dos homens que integravam o poder pontifício medieval.

É necessário repensar a visão corrente de que, na segunda metade do século XI, a Cúria romana emergiu como instância de poder apartada da sociedade medieval e disposta acima desta para regê-la como instância estatal. Não podemos engolfar o exercício do poder pontifício em teias conceituas que pressupõem centralização, racionalização e normatização sem passar a limpo os fundamentos oitocentistas que sustentam tal olhar39. Em outras palavras, tal perspectiva de estudos comporta ampla carga do olhar legalista, predominante durante o século XIX, segundo o qual toda organização institucional está assentada sobre a regulamentação jurídica: transformado em veículo da manutenção da ordem social, o exercício do poder por parte do papado teria, sob este prisma, como matéria-prima e razão fundadora a criação e promoção do direito canônico. Não podemos partilhar, sem tomar parte de sérias implicações analíticas, da opinião de que, para vasculhar os sentidos que orientavam o exercício do poder por parte da igreja romana, bastaria ao historiador voltar suas atenções para as coleções canônicas. O texto da lei não continha a medida do significado histórico das relações de força travadas pelo papado. O registro canônico era um comando negociável, não incondicional; as legislações conciliares eram matéria do livre-arbítrio, não diretrizes preeminentes de conduta; a aplicação da justiça era capaz de sobrepor o proveito moral ao constrangimento pela coerção; em suma, em que o direito era valor, e não fato. Eis o regime de poder amparado pelo império da voz.

***

38 BERMAN, Harold J. Law and Revolution: the formation of western legal tradition. Cambridge: Harvard University Press, 1984, p. 115-118. Ver ainda: BERMAN, Harold J. Faith and Order: the reconciliation of law and religion. Cambridge: Wm. B. Eerdmans Publishing, 1993.

39 Ver: FOURNIER, Paul. Les collections canoniques romaines à l’époque de Grégoire VII. Memoires de L´Académie des Inscriptions et Belles-Lettres, v. XLI, 1918, p. 1-130; LE BRAS, Gabriel. La Iglesia Medieval. Valência: Edicep, 1976; LE BRAS, Gabriel. Institutions Ecclesiastiques de la Chrétienté Médiévle. Paris: Bloud & Gay, 1959.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 159

RESUMO

Na segunda metade do século XI um áspero conflito entre a igreja romana e a corte germânica levou o papa Gregório VII a decretar a deposição e excomunhão do sucessor imperial. Tido pelos historiadores como o capítulo central da chamada “Reforma Gregoriana”, este evento é usualmente encarado como um importante marco de ascensão política do papado na História Ocidental e da instauração de um amplo processo de institucionalização da igreja romana. O maior emblema desta via de “estatização” pela qual teria enveredado o poder pontifício foi, afirmam os historiadores, a expansão do direito canônico, cujo avanço teria assentado as bases do trato legal que nos séculos seguinte se apoderaria do Ocidente. Portanto, um império da lei e das normas escritas teria sido ruidosamente anunciado através das ações gregorianas.

Palavras Chave: Papado Medieval; Direito Canônico; Instituições Pontifícias.

ABSTRACT

In the second half of 11th century a rough conflict between the church Roman and the German Court took Pope Gregory VII to decree the deposition and excomunhão of the imperial successor. Considered for the historians as the central chapter of the so-called “Gregorian Reform”, this event usually is faced as an important landmark of political ascension of the papacy in the Western History and of the instauration of an ample process of institutionalization of the Roman church. The biggest emblem of this way of “statization” for which the pontifical power would followed was, say the historians, the expansion of the canon law, whose advance would have seated the bases of the legal treatment that in the following centuries would be taken possetion of the Occident. Therefore, an empire of the law and the written norms would have been noisily announced through the gregorianas actions.

Keywords: Mediebal Papacy; Canon Law; Pontifical Institutions.

160 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 161

À MARGEM DO IMPÉRIO: AUTORIDADES, NEGOCIAÇÕES

E CONFLITOS - MODOS DE GOVERNAR NA AMÉRICA

ESPANHOLA (SÉCULOS XVI E XVII)1

Rodrigo Ceballos2

AS SOBREPOSIÇÕES E INTERPOSIÇÕES DE PODERES

NA AMÉRICA ESPANHOLA

Em 1503, para controlar o rápido crescimento do volume de negócios com a América espanhola foi criada a Casa de Contratação de Sevilha – responsável pela organização e controle do tráfego de homens, navios e mercadorias e centralização de todo o comércio americano nas mãos de Castela. Entretanto, em 1524 a especificidade da estrutura monárquica espanhola levou a uma divisão das funções sobre o monopólio nas Índias Ocidentais. O Conselho das Índias veio, então, a fornecer o mecanismo formal para que os negócios continuassem sob tutela do monarca e que sua vontade fosse transmitida à América através de leis, decretos e instituições. O Conselho das Índias era responsável pela produção de recomendações sobre as medidas a tomar nas possessões americanas, cabendo ao rei consultá-las.

Os vice-reis de Nova Espanha e Peru eram os representantes maiores do monarca em território americano. Escolhidos pelo rei entre os fidalgos de sangue nobre do reino levavam consigo os títulos de governador, capitão-geral e presidente da audiência. Entretanto, neste último caso, por não serem letrados não tinham direito ao voto na solução de sentenças judiciais.

Por sua vez, as audiências – vinculadas diretamente ao Conselho das Índias – eram responsáveis pela adequada observância das leis na América e serviam como tribunais de justiça e órgãos de governo. Também tiveram importante papel administrativo podendo substituir um vice-rei em períodos de ausência. Este último aspecto as diferenciava de suas matrizes ibéricas, dando-lhes poder suficiente para que através do Conselho das Índias suas queixas e denúncias chegassem ao monarca. Estes corpos de justiça estavam espalhados pelos dois vice-reinos, tendo também a responsabilidade de fiscalizar o tesouro real3.

As audiências eram formadas pelo presidente, oidores (juízes) e fiscais. Enquanto o período de permanência dos vice-reis em seu cargo era curto, os oidores, por exemplo, eram vitalícios em suas funções. Devido à sua importância, o governo

1 Este texto faz parte de minha tese de doutorado financiada pelo CNPq, intitulada Arribadas portuguesas: a participação luso-brasileira na constituição social de Buenos Aires (c.1580 – c.1650).

2 Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense. Professor Adjunto da Unidade Acadêmica de Ciências Sociais no Centro de Formação de Professores da Universidade Federal de Campina Grande, campus de Cajazeiras. E-Mail: <[email protected]>.

3 As audiências eram compostas por três categorias: do vice-reino, que eram presididas diretamente por um vice-rei; pretoriais, que tinham mando de governo e poder militar sobre sua própria jurisdição; e as subordinadas, sujeitas à autoridade política de um vice-rei.

162 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

central buscou ao longo dos séculos XVI e XVII controlar as atividades extra-judiciais de seus funcionários, proibindo-os de estabelecerem contatos demasiadamente próximos com os moradores da região.

Seguindo a escala hierárquica das funções administrativas, os governadores, corregidores e alcaldes mayores (este cargo existente apenas na Nova Espanha) estavam subordinados às audiências e ao vice-rei. Muitos eram moradores da própria região e deviam ser escolhidos pelo próprio monarca ou vice-rei. Sua função era administrar as províncias mais distantes das capitais dos vice-reinos habitadas por peninsulares (espanhóis radicados na América), criollos (descendentes de espanhóis nascidos na América) e índios tributários da Coroa.

Finalmente, os moradores das cidades tinham o direito a vecindad e de participação em seu conselho, o Cabildo (ayuntamiento). A responsabilidade deste órgão era fiscalizar a vida dos habitantes e as propriedades públicas, tendo como presidente o corregidor. Quando este não estava presente, um vecino com o título de alcalde poderia presidir as reuniões e ser o juiz das decisões. Os regidores eram os conselheiros e representantes da cidade nas funções cerimoniais, responsáveis pelo seu abastecimento e administração.

O Cabildo possuía uma autoridade institucional capaz de estender seus pedidos e reclamações aos governadores, audiências, vice-reis e ao Conselho das Índias. Os vecinos (moradores com participação no Cabildo) chegavam, inclusive, a nomear um procurador que em nome dos moradores dirigia-se à Madri para apresentar queixas, acompanhar e, indiretamente, influenciar e exercer pressões para as decisões finais do Conselho4.

Com tantas formas de exercício de poder permeando desde a mais alta esfera de funcionários reais até o morador da mais longínqua cidade das capitais do Império hispano-americano, são vários os exemplos na historiografia sobre a prática jurídica do “observar, mas não obedecer” as ordens régias.

Certamente a Coroa não conseguiu evitar que funcionários se relacionassem com criollos, criando interesses mútuos e relações parentais. Além disso, alguns conquistadores tinham parentes influentes na Corte, obtendo privilégios em suas conquistas através do apadrinhamento. Funcionários reais, inclusive juízes das audiências, aproveitaram suas influências propiciadas pelo cargo e casaram suas filhas com os principais conquistadores e povoadores da região. Em 1590, por exemplo, o vice-rei da Nova Espanha denunciou que um dos fiscais da audiência casara sua filha sem autorização real e que sua atitude fora defendida pela audiência quando se tentou destituí-lo do cargo.

Mas a disputa por espaços de poder tornou-se ainda mais complexa quando a partir de 1633 o rei Felipe III de Castela permitiu a venda de cargos no Império. Exemplo maior foi a disputa local que surgiu em Lima entre a família Rojas e de Villega pelo cargo de ensayador real. A função de checar, pesar, marcar e taxar todos os carregamentos de prata que iam para a capital do vice-reino certamente propiciava uma grande responsabilidade e prestígio ao seu funcionário, mas também abria inúmeras oportunidades de enriquecimento – nem tanto pelo salário, muitas

4 ANZOÁTEGUI, Victor Tau. La Monarquía: poder central y poderes locales. In: __________. Nueva Historia de la Nación Argentina. Volume 2. Buenos Aires: Planeta Argentina, 1999.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 163

vezes baixo, mas pelos subornos e interesses comuns estabelecidos com mineiros e comerciantes. Seu primeiro funcionário foi nomeado diretamente pelo rei: Miguel de Rojas, funcionário com mérito reconhecido que exercera esse cargo na Nova Espanha, chegando também a auxiliar a Coroa nas visitas aos funcionários reais. O filho de Rojas, de mesmo nome, viria a substituí-lo após a sua morte em 1654. A falta de prestígio do novo Rojas e a acusação da sua inabilidade em lidar com a função que fora do pai abriu brecha para que Francisco de Villegas, ensayador do tesouro real de Lima, protestasse o mérito da função, além de prometer o pagamento de 4.000 pesos pelo cargo. Em 1658 a Coroa tomou uma posição no mínimo curiosa: permitiu a venda do cargo para Villegas caso ele concordasse em dividir as responsabilidades e benefícios da função com Rojas. As disputas entre os dois funcionários e seus respectivos grupos de interesse, como o Consulado dos mercadores de um lado e o vice-rei Conde de Salvatierra por outro, só iriam terminar em 1670 com o falecimento de Villegas5.

Como entender, então, a manutenção de uma burocracia e a venda de cargos que, para muitos historiadores, levariam o caos à América espanhola? Como entender a ordem administrativa e as relações entre a metrópole espanhola e suas colônias? Analisar estas disputas e suas “práticas da ilegalidade” como um modo de governar é minha proposta para compreender como se constituíram as relações de poder e a manutenção de um Império para além da simples polaridade de um centro e suas periferias.

OS (DES)EQUILÍBRIOS DA BALANÇA DE PODER NO IMPÉRIO ESPANHOL

Dos 249 conselheiros das Índias apenas sete, ao longo de quase dois séculos, tiveram alguma experiência em instituições na América. A grande maioria eram homens letrados e tiveram passagem por universidades da Península Ibérica. Tenderam, portanto, a ver os problemas nas Índias através da própria experiência que adquiriram com seus cargos burocráticos nos reinos de Castela. Na prática, as propostas realmente construtivas para os problemas cotidianos na América espanhola partiam dos seus funcionários locais. As reclamações que chegavam ao rei eram feitas por oficias de ramos distintos da burocracia que, ao buscarem resolver problemas comuns à região terminavam invadindo outras competências.

Para John H. Elliott, esta excessiva rede burocrática não pode ser entendida como um ponto de fraqueza do governo central. Isto porque os laços de compromisso propiciavam a vigilância e controle de uns sobre os outros, ao mesmo instante que provocavam disputas locais pelo exercício do poder que abriam brechas para manobras políticas. Esta acumulação de funções teria gerado conflitos que permitiram a Coroa desenvolver uma mútua vigilância, gerando um “sistema de restrições e equilíbrio” dentro do corpo de funcionários reais na América6.

Toda esta complexa pirâmide burocrática imperial com suas hierarquias e sobreposições de poderes levariam os conquistadores e primeiros povoadores da América a não enfrentarem diretamente as decisões políticas metropolitanas. Não 5 ANDRIEN, Kenneth J. Corruption, inefficiency, and imperial decline in the Seventeenth-Century Viceroyalty of Peru. The Americas, Philadelphia, Drexel University, v. XLI, n. 1, 1984, p. 1-20.

6 ELLIOTT, J. H. A Espanha e a América nos Séculos XVI e XVII. In: BETHELL, Leslie (org.). História da América Latina: a América Latina Colonial 1. Vol. 1. São Paulo: Edusp; Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 1997.

164 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

havia nenhuma razão, nos diz Elliott, para se desafiar diretamente o poder real sendo preferível o aproveitamento das fraquezas de um sistema que foi cuidadosamente criado em sua própria dispersão. Para Elliott, o governo espanhol na América nos séculos XVI e XVII deve ser considerado vitorioso por conseguir manter uma razoável ordem pública e um respeito tolerável à autoridade da Coroa. Vitória obtida justamente por sua determinação em impedir uma excessiva concentração de poder num único ponto.

Apesar de concordar com Elliott, Teodoro H. Martínez questiona se a corrupção e a ineficiência dos funcionários reais foi um instrumento de equilíbrio entre a Coroa, a burocracia e as “oligarquias locais”7. Teria sido a corrupção um importante mecanismo de sobrevivência na América espanhola capaz de possibilitar a coexistência destas três forças? O século XVII foi um período em que interesses privados se sobrepuseram às diretrizes metropolitanas. Foi o século de ingresso de funcionários inexperientes. Homens que a princípio não sabiam lidar com contas e papéis burocráticos e que levaram as audiências à ineficiência. Foram responsáveis pelos impedimentos das tentativas do governo central em aumentar os impostos ou em outras reformas fiscais. Cada vez mais os membros das audiências estavam dispostos a ignorar as ordens régias, favorecendo antes de tudo uma ordem legal conforme as suas expectativas. Para Martínez, o Império de Habsburgos caracterizou-se pela “era da impotência”, em contraste à “era da autoridade” vinda com Fernando VI e as reformas administrativas de Bourbons no século XVIII8.

A “era da impotência de Habsburgos” foi cristalizada por Burkholder e Chandler para problematizar a prática da compra de cargos régios no Império espanhol. Para estes historiadores a venda de importantes cargos na colônia americana entre 1633 e 1740 corroeu a autoridade do monarca através de uma transferência demasiada de poder que originou o desencadeamento de uma valorização cada vez maior dos criollos e a conseqüente luta pela independência.

Burkholder e Chandler mostram que os funcionários que compraram seus cargos criaram raízes na sociedade local através de laços econômicos e sociais que se estenderam ao longo do século XVIII. Da mesma forma que a Casa de Habsburgo atuou, a dinastia Bourbon, entre os anos de 1701 e 1750, também vendeu cargos, nomeou criollos para preencher dois quintos dos postos nas audiências e pôs à venda um quarto dos cargos régios na América. Desta forma, estes historiadores levantam a hipótese de que a venda de cargos provocou um desequilíbrio na “balança de poder” no Império. Foi esta queda de braço a favor dos criollos que teria propiciado uma influência cada vez maior na política local e levado à independência das colônias quando, em 1776, a Coroa buscou obter um maior controle sobre as audiências9.

Por sua vez, John Lynch questionou as noções de corrupção e ineficiência como 7 MARTINEZ, Teodoro Hampe. Los funcionarios de la monarquía española en América: notas para una caracterización política, económica y social. Revista Interamericana de Bibliografía, Washington, v. 3, n. XLII, 1992, p. 431-451.

8 Carlos I, neto dos Reis Católicos, coroou-se monarca espanhol em 1516. Por pertencer à Casa de Habsburgo (ou de Áustria) tornou-se anos depois Carlos V, imperador do Sacro Império Romano. A partir do século XVIII, a Casa de Bourbon passou a representar a monarquia espanhola até o período das independências americanas.

9 BURKHOLDER, M. A.; CHANDLER, D. S. Creole appointments and the sale of audiencia positions in the Spanish Empire under the Early Bourbons, 1701-1750. Journal of Latin American Studies, Cambridge University, v. 4, n. 2, 1972, p. 187-206.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 165

manifestações do declínio político na América espanhola, defendendo que tais práticas tiveram, na verdade, papéis positivos na vida política colonial. Para Lynch, as colônias chegaram ao longo do século XVII a um estado de independência econômica capaz de reestruturar as diretrizes da Coroa de acordo com suas necessidades. Apesar dos encomenderos não conseguirem obter um poder político formal, sua força local não foi desprezada pela burocracia. O governo colonial terminou se convertendo em um corpo legal de compromissos entre a soberania imperial e os interesses locais10.

A conseqüência da diminuição das ganâncias da hacienda real não deve ser encontrada apenas na crise das minas no século XVII e na corrupção de seus funcionários, mas principalmente na redistribuição da riqueza dentro da colônia americana. Os colonos se apropriavam cada vez mais de sua produção local e empregavam seu próprio capital em outras fontes de riqueza. Uma delas foi a produção agrícola independente, fora do controle central. Para Lynch, as transformações na economia hispano-americana e sua crescente independência do centro, a diminuição das remessas da metrópole e o investimento cada vez maior feito nas próprias colônias propiciaram um florescente comércio entre as distintas partes da América e estimularam, com isso, negociações independentes.

A obediência às leis não foi uma ação automática, existindo constantes reações e formas de negociação formadoras do que John Lynch chama de “estado colonial”. Para ele, a negociação não estava alienada à burocracia. Ambas as práticas complementaram-se. As próprias relações que os oficiais reais estabeleceram nas colônias, ligando-se aos diversos setores da elite local, fizeram com que lentamente a burocracia se transformasse também em parte da rede de interesses locais ligando peninsulares e criollos. O “estado colonial”, portanto, se refletiu não apenas através da soberania da Coroa, mas do próprio poder obtido pelas elites locais. Não se pode, por outro lado, defender que a corrupção e a ineficiência da burocracia colonial tenha levado simplesmente a uma autonomia política das colônias. Por isso, nos diz Lynch, é necessário compreender melhor os conceitos de “pacto” e “descentralização” que vêm sendo usados frequentemente pelos historiadores11.

Para Lynch, o comprometimento do “estado colonial” não foi uma transferência de poder da metrópole para a colônia, do Conselho das Índias para uma burocracia no além-mar. O “estado colonial” consistiu na existência de um rei e conselhos em Castela e vice-reis, audiências e oficiais régios na América. Com isso, John Lynch quer deixar claro que se está discutindo sobre uma diluição, e não de uma entrega de “poder”. A hipótese deste historiador é interessante ao buscar romper com a dicotomia entre centralização e descentralização, fazendo-nos notar que a “corrupção” e a “ineficiência da burocracia” vinculam-se aos diferentes “graus de poder” que o “estado colonial” – constituído justamente destas relações entre centro e periferias – foi capaz de exercer ao longo dos anos. O “estado colonial” adotou tanto a política do governo central como a das administrações nas colônias. Para Lynch, até a existência das reformas bourbônicas em 1750 houve mais um “estado de consenso” do que realmente um “estado absolutista” no Império hispano-americano.10 LYNCH, John. España bajo los Austrias. España y América (1598-1700). Vol. 2. 4a ed. Barcelona: Península, 1984.

11 LYNCH, John. The institutional framework of Colonial Spanish America. Journal of Latin American Studies, Cambridge University, v.24, n. 1, p. 69-81, 1992.

166 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

Kenneth Andrien – simpatizante das teorias de Burkholder e Chandler – se contrapôs aos historiadores denominados de “revisionistas”. Para ele, estudiosos como o próprio John Lynch nos levam a acreditar que a corrupção e ineficiência exercidas pelos funcionários repousaram em níveis comuns e constantes, como se tais burocratas tivessem sempre o mesmo interesse em permanecer como membros intermediários de uma “política de equilíbrio”. Andrien nos adverte que isto é uma generalização, além de ser um ponto de vista limitado pela aparente ausência de um impacto político promovido pelas práticas de corrupção. As primeiras décadas do século XVII foram críticas para o Império de Habsburgo, o qual buscou reajustar sua política econômica nas colônias com mudanças que provocaram forte oposição das elites locais. Ter controle sobre a hacienda real do vice-reino tornou-se, portanto, ponto fundamental para a manutenção das redes de interesses. Conflito que a própria Coroa inflamou ainda mais com sua política de venda de altos cargos régios no Império. A venda de cargos de fiscais e oidores das audiências gerou, segundo Andrien, um impacto direto na política colonial. A Audiência de Lima, autoridade judicial mais alta do vice-reino do Peru, passou a ser composta por criollos e peninsulares transformando-se em uma guardiã do poder local12.

Desta forma, no caso do vice-reino peruano, a venda de cargos permitiu às elites locais obterem um controle ainda maior sobre o processo de formulação de decisões e ações na colônia. Para Andrien, criollos e peninsulares puderam, através da compra de cargos, usar seu poder político para obstruir, atrasar ou ignorar qualquer ordem régia que não lhes conviesse. A partir da segunda metade do século XVII, a corrupção e ineficiência dos funcionários resultaram em uma rede capaz de romper com os procedimentos administrativos do vice-reino. Apesar da Coroa lutar contra o declínio de sua autoridade através de uma série de visitas generales, as medidas falharam na luta contra a corrupção de seus funcionários.

Se os chamados “revisionistas” acreditam em um equilíbrio político que permitiu a manutenção do Império, Andrien defende a lenta descentralização da Coroa espanhola ao longo do século XVII, onde a corrupção e a disputa em torno das práticas centralizadoras do reino terminaram ajudando os oficiais reais criollos e virando a balança política a favor dos bandos locais.

Certamente as duas correntes históricas possuem concepções válidas de difícil contestação para o estudo da América espanhola. As periferias apresentaram possibilidades de luta dentro do Império, mostrando sua força política e econômica e a capacidade de manter interesses em contraposição às diretrizes da Coroa.

A questão, entretanto, não está se este fato determinou o equilíbrio ou o desequilíbrio de forças dicotômicas no Império espanhol, propiciando sua decadência ou continuidade. Estas forças centralizadoras ou descentralizadoras, que à princípio nos parecem antagônicas, não estavam soltas, isoladas no campo da negociação ou da simples violência. Elas tiveram uma função, sendo o próprio elemento constituinte deste espaço: o Império. Os Estados modernos caracterizaram-se pela criação de uma hierarquia de funções e deveres, de relações de compromisso e de troca que por mais hierárquica que nos possa parecer propiciou a constituição de redes de poder formadas por laços de interesses comuns. São estas redes que ora se rasgaram, 12 ANDRIEN. The sale of fiscal offices and the decline of royal authority in the viceroyalty of Peru, 1633-1700. Hispanic American Historical Review, Durham, Duke University, v. 62, n. 1, 1982, p. 49-71.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 167

ora se confundiram umas às outras que formaram o que entendemos por Império. Seus participantes agiam dentro de registros reconhecidos pela própria hierarquia funcional do Império, e era através dela que as relações eram possíveis. Por isso, por exemplo, um procurador do Cabildo podia apresentar formalmente queixas ao Conselho e, informalmente, pressionar e obter resultados em Madri.

As redes de interesses e compromissos permeavam toda a América, confluindo inclusive para a portuguesa, atravessando o Oceano Atlântico e atingindo até mesmo os membros da Coroa na península. Vista desta forma, a corrupção parece corromper qualquer tentativa de centralização do poder nas mãos do monarca, tornando difícil a manutenção de um Império fadado ao fracasso. Entretanto, como nos diz Lynch, o Império espanhol constituiu-se através de um rei e de seus Conselhos em Madri, e de toda uma burocracia na América. Se por um lado as ordens régias sofriam modificações, sendo readaptadas a uma realidade americana, a autoridade do rei não era questionada. Denúncias e pedidos eram feitos ao monarca, assim como as decisões de ocupação ou venda de cargos nas Américas cabia unicamente a ele e o seu Conselho. É nesta tênue linha entre o formal e o informal que o Império espanhol deve ser entendido. Ele construiu-se e manteve-se através de acordos, de negociações, de barganhas, tanto na política institucional como econômica. Por isso me parece importante a opinião de Elliott de que muitas vezes as disputas geradas no Império devido à interposição e sobreposição de poderes serviu para a Coroa, quando possível, tomar decisões e governar.

Assim, se o conceito de “consenso” nos persuade a não enxergar os conflitos nas formações das redes de poder, talvez o conceito de “negociação” possa ter um uso mais apropriado.

A NEGOCIAÇÃO COMO POSSIBILIDADE DE ESTUDO:AS RELAÇÕES CENTRO E PERIFERIAS

Se o consenso pode ser alcançado através da negociação, isto não significa necessariamente a ausência de disputas. O consenso não é absoluto, sendo constantemente renegociado e reelaborado ao longo dos interesses inerentes à sua existência.

John H. Elliott está de acordo que a maioria dos Estados do Antigo Regime foi constituída por monarquias compósitas. Isto é, grande parte da Europa era composta por monarquias formadas por uma miríade de territórios que coexistiam uns com os outros representados por um rei, mas sem deixarem de manter sua autonomia, costumes e direitos13.

Os contemporâneos afirmavam que a “contiguidade” e a “conformidade” eram os principais requisitos para a existência de um Estado forte e duradouro. Para eles, quando os territórios eram vizinhos e tinham semelhanças na língua, costumes e em suas instituições políticas, tornava-se mais fácil estabelecer a união.

Por sua vez, para o jurista espanhol do Conselho das Índias, Juan de Solórzano Pereira, existiam duas possibilidades para aquisição de novos territórios: através da acessory union ou pela aeque principaler. Aquela foi típica das colônias espanholas, em que os colonos estavam diretamente submetidos e incorporados judicialmente 13 ELLIOT. A Europe of Composite Monarchies. Past and Present, Oxford University, v. 1, n. 137, 1992, p. 48-71.

168 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

à Coroa de Castela. Entretanto, o exercício do aeque principaler compunha-se de forma mais delicada: após a união, cada reino deveria ser tratado como uma entidade distinta, devendo-se preservar seus privilégios locais.

Solórzano dizia que esses reinos deviam ser guiados e governados como se seu monarca, que os mantêm unidos, fosse o rei de cada um deles. No caso do Estado espanhol, a união aeque principaler se adequava para os casos de Portugal, Valência, Aragão, Catalunha, Sicília, Nápoles e aos Países Baixos. Estas províncias e reinos exigiam que o rei de Castela respeitasse as identidades locais e status.

Como afirma Xavier Gil Pujol,

(...) o que as monarquias do século XVII pretendiam não era tanto a centralização, mas o fortalecimento das suas dinastias, a imposição do princípio da autoridade sobre seus súditos considerados pouco obedientes e pouco cumpridores das suas obrigações, especialmente em matéria fiscal e na reputação na cena internacional, reputação essa considerada impossível sem um exército vitorioso e temível.14

O centro criou formas de intervenção na sociedade através de uma nova disciplina social, política e econômica. O curioso, entretanto, é que estas intervenções foram muitas vezes pedidas pelas próprias autoridades locais. A Coroa era legitimada como poder arbitral superior e responsável pela resolução dos conflitos locais. Inserido neste espaço de poder sustentado pela própria relação do centro e as periferias, o rei tomava proveito para o bem governar.

Não se pode concluir, com isso, que o monarca poderia manter a todo instante um controle absoluto de seus domínios. As relações entre centro e periferias eram delicadas e mutáveis, sendo o resultado da difícil combinação de interesses. Baseado em Elliott, Pujol afirma que o domínio espanhol deve ser compreendido como participativo ao invés de absolutista e, ainda menos, centralizador. Afirmação que também muito se aproxima ao conceito de “Estado de Consenso” elaborado por John Lynch.

Para o caso das colônias americanas, a união pelo aeque principaler certamente não pode ser utilizada para se explicar as relações políticas e sociais entre centro e periferias. Isto porque a América colonial não possuía privilégios, um status político e econômico ou mesmo um “grupo oligárquico” antecedente à conquista. Além disso, o poder do Estado foi muito maior nas Índias devido à concentração do poder eclesiástico nas mãos de Castela através do patronato real. Nas primeiras décadas da conquista as tentativas dos encomenderos em transformar suas terras em feudos, semelhantes ao Velho Mundo, foram podadas pela Coroa. Dificilmente se concedeu até início do século XVII títulos nobiliárquicos aos criollos, e em 1575 a Coroa chegou a retirar dos encomenderos privilégios honoríficos de hidalguía. Foram poucos os conquistadores que conseguiram pertencer às ordens militares de Santiago, de Calatrava ou de Alcántera.

Se o exercício da aeque principaler não pode ser entendido para o caso das Índias espanholas, certamente um “estado de consenso” se estabeleceu de forma semelhante

14 PUJOL, Xavier Gil. Centralismo e localismo? Sobre as relações políticas e culturais entre capital e territórios nas monarquias européias dos séculos XVI e XVII. Penélope, Lisboa, n. 6, 1991, p. 124.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 169

ao que ocorria na península. Apesar dos privilégios de uma elite criolla ser possível através de outros mecanismos, esta mesma elite se sentiu parte do Império espanhol e teve a capacidade de negociar com o governo central. Certamente estas relações foram distintas daquelas mantidas pelas províncias espanholas. A América era uma conquista, uma colônia dependente politicamente de seu centro, não possuindo uma tradição ou fortes instituições para dialogar com Madri. Mas como nos diz Lynch, a noção de pacto deve ser reinterpretada. As possessões espanholas na América (assim como as portuguesas e inglesas) tiveram a capacidade de barganhar e de se impor através de outros meios. Apenas assim podemos entender os motivos que levaram ataques aos vice-reis e as contínuas expressões de descontentamento com a política central, assim como a importância dos Cabildos enviarem continuamente representantes ao Conselho das Índias. Com isso, a noção de descentralização também merece uma outra interpretação e pode ser entendida como um exercício de governar, frágil e elástico, mas resistente o suficiente para manter uma ordem a partir de seu centro.

Para Jack Greene a autoridade não fluiu do centro para as periferias, mas foi construída por uma série de negociações, de barganhas promovidas tanto de um lado como do outro. Estas práticas envolveram o exercício da força de um centro, mas que também permitiram o uso da autoridade nas margens do Império. A força centrífuga das periferias não foi depreciável e ocorreu principalmente através de uma “criolização” dos cargos régios e o direito dos colonos se sentirem consultados antes da promulgação das ordens do centro. Nesta delicada relação, a Coroa espanhola foi obrigada a agir com o mesmo cuidado que mantinha com seus nobres espanhóis na península15.

O Antigo Regime é conhecido pela historiografia como o período em que o centro se tornou cada vez mais perceptível. A importância da relação do rei com seus súditos também trouxe à tona a relevância das relações entre a capital e seus territórios. Assim, por mais auto-suficientes que as colônias fossem elas não podiam e nem estavam fechadas em si mesmas. O governo central e as localidades necessitavam de uma colaboração mútua e não desejavam que essa relação se quebrasse. O que centro e periferias estabeleceram foram canais de colaboração, mantidos formalmente ou não, que criaram redes de interesses comuns pautadas nas necessidades cotidianas. A força e a capacidade de negociação entre as próprias localidades e com o seu centro de governo se mostraram mais amplas do que puderam parecer a princípio, criando um complexo tecido de relações internas e externas16.

O “império da lei” que emergiu ao longo do Antigo Regime através das práticas administrativas dos Estados buscou interiorizar na sociedade uma nova disciplina. A incorporação destas práticas não foi completamente bem recebida e sofreram rejeições e modificações em seus respectivos espaços de atuação. Aos poucos, os próprios encarregados de aplicar esta justiça ao mundo local terminaram se adaptando aos valores da comunidade. Não necessariamente pelas resistências

15 GREENE. Negotiated authorities: the problem of governance in the extended polities of the Early Modern Atlantic World. In: __________. Negotiated Authorities. Essays in Colonial Political and Constitutional History. Charlottesville and London: University Press of Virginia, 1994.

16 GREENE, Jack. Transatlantic colonization and the redefinition of Empire in the Early Modern Era. In: DANIELS, C.; KENNEDY, M. (ed.). Negotiated Emperies: centers and periphery in the Americas - 1500-1820. London: Routledge, 2002.

170 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

locais, mas porque os saberes de um determinado espaço atuavam de forma mais inteligível e eficaz do que o uso direto de um saber externo. Sem que se rejeitassem os organismos judiciais, a sua aplicação dependia, no final das contas, do consentimento e colaboração de uma comunidade local.

Tamar Herzog, em seu estudo sobre a administração da justiça de Quito nos séculos XVII e XVIII, mostra como a readaptação e o reuso de um espaço de poder oficial também foi possível na América17. Sem que isso signifique necessariamente ineficiência dos funcionários reais, Herzog estuda como o funcionamento de um aparato burocrático dependia diretamente de um grupo de agentes locais. Os burocratas superiores da justiça acabaram sendo “reféns” de personagens subalternos que gozavam de uma posição central na sociedade, mas pouco admitida pelo discurso oficial. Neste emaranhado de relações, em que os subalternos passaram a ter uma importância tão grande ou até maior que a de seus juízes, a própria concepção do que era profissional e leigo ganharam novos significados. O controle sobre as fontes de informações e sobre pessoas e meios materiais produziu uma dependência dos superiores aos subalternos, possibilitando a estes obter uma influência e poder dentro da instituição.

Tendo a liberdade para levantar, escrever, sistematizar, apresentar e interpretar os casos para os juízes, os subalternos agiam em um importante espaço de poder capaz de absolver amigos ou castigar desafetos. Como se não bastasse, os arquivos judiciais e administrativos ficavam sob responsabilidade dos escrivães. Apesar destes arquivos fazerem parte do patrimônio público, acabaram sendo “patrimonializados” pelos funcionários subalternos. Até mesmo quem desejasse comprar algum cargo régio nas audiências deveria antes se certificar com quem estavam os papéis e, então, adquiri-los através de uma compra em separado. A conversão dos arquivos públicos em mercadoria em Quito foi possível pela própria importância que ganharam com a burocracia: pagava-se pelas cópias simples ou autorizadas, assim como as partes interessadas deveriam se dirigir ao escrivão “guardião” para poder abrir ou dar continuidade a processos judiciais. Resumindo, nos diz Herzog, pode-se dizer que quem possuía os autos era como um dono informal dos negócios incluídos neles.

O caso das práticas da formalidade e da informalidade na administração judicial de Quito nos permite perceber a intrínseca e conturbada relação entre centro e periferia. A aparente contradição de castigos efetuados a subalternos por falhas nos processos repousa no fato que não se poderia responsabilizá-los diretamente pela má administração. Afinal, esta era responsabilidade dos oidores e do fiscal das audiências. Talvez por isso, nos diz Herzog, nunca foi debatido seriamente na documentação até então encontrada os verdadeiros responsáveis pelo bom desenvolvimento de um processo judicial. Justificar a culpa remetendo à excessiva responsabilidade dos subalternos na administração judicial significava contradizer a hierarquia funcional da burocracia na América.

17 HERZOG, Tamar. !Viva el rey, muera el mal gobierno!’ y la administración de justicia quiteña, siglos XVII y XVIII. In: BELLINGERI, Marco (coord.). Dinámicas de Antiguo Régimen y Orden Constitucional: Representación, justicia y administración en Iberoamérica. Siglos XVIII-XIX. Torino: Otto, 2000.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 171

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O pacto, apesar de ser imposto às periferias do Império no começo da conquista, se mostrou maleável. A possibilidade de negociação entre centro e periferias permitiu isso. Por sua vez, a possibilidade de negociação mostra a existência de interesses e, portanto, de conflitos, disputas e o uso da força. A existência de laços de interesses que permeavam todo o Império não significou necessariamente descentralização, entendida aqui como enfraquecimento do poder central. A existência de um “estado de consenso” ou “estado colonial” não significou perda de poder, mas uma diluição tida como necessária para a manutenção das próprias redes de poder. São estas redes que formaram o que entendemos como Império; foi a existência de disputas e as possibilidades de negociação que permitiram a sua existência e manutenção ao longo do século XVII, por mais precária que possa nos parecer. Foi justamente a falta de compreensão das práticas da informalidade do Império espanhol no Antigo Regime que levaram muitos historiadores a encontrarem na corrupção da burocracia e sua aparente “ineficiência” os grandes determinantes para a independência das colônias hispano-americanas no século XIX.

***RESUMO

Na arquitetura de poderes que emergiram no Antigo Regime, quais foram as relações que se estabeleceram entre o centro e suas periferias? A conquista das Índias Ocidentais criou novos capitais simbólicos, novas formas de legitimação de poder, mas também espaços de disputa. A dinâmica do Império espanhol criou dispositivos que concretizaram a emergência de uma capital e a sua importância como centro das decisões políticas e administrativas. Mas se este centro possuiu importantes dispositivos de intervenção sobre as margens, esta também se manteve entrelaçada à arquitetura de poderes. Neste intrincado jogo que ora se perdiam, ora se ganhavam vantagens e privilégios, as redes imperiais puderam gerar e manter uma ordem, uma hierarquia de valores em que o monarca foi sua figura principal. Meu objetivo neste artigo é apresentar uma leitura sobre a constituição política e administrativa da América espanhola nos séculos XVI e XVII. Para isso, conceitos como “centro e periferias” e “autoridades negociadas” tornam-se imprescindíveis para a compreensão de um mundo cuja dinâmica está além da dicotomia entre “metrópole” e “colônia”.

Palavras Chave: América Hispânica; Administração Colonial; Autoridades Negociadas.

ABSTRACT

Which were the relationships established between the center and its peripheries during the Ancient Regime? The America’s conquest created a new symbolic capital, new forms of power, but also areas of conflicts. The Spanish Empire dynamics formed a capital like a center of political and administrative decisions. But if the center interfered on its margins, it also remained interwoven with the power’s frames. In this intricate conflict with gains and losses, imperial networks could generate and maintain the administrative order, a hierarchy of values in which the monarch was the main figure. The aim of this paper is to argue a view of the political and administrative establishment of Spanish America in the sixteenth and seventeenth centuries. For this, concepts like “center and periphery” and “negotiated authorities” are important to understand the dynamic of a world which is beyond the dichotomy between concepts of “metropolitan” and “colony”.

Keywords: Spanish America; Colonial Administration; Negotiated Authorities.

172 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 173

PROTESTANTISMO E INQUISIÇÃO NO BRASIL COLONIAL:

O “LUTERANISMO” NAS CONFISSÕES DA PRIMEIRA

VISITAÇÃO DO SANTO OFÍCIO AO BRASIL (1591-1595)1

Daniel Soares Simões2

INQUISIÇÃO PORTUGUESA E PROTESTANTISMO

A vasta documentação produzida pela Inquisição portuguesa – entre regimentos, denúncias, confissões e processos – tem se demonstrado uma rica fonte de estudos sobre a história colonial brasileira. Pioneiras, neste sentido, são as obras de Anita Novinsky e Sônia Siqueira, escritas ainda nos anos setenta, seguidas, nos anos oitenta e noventa, pelos trabalhos de Laura de Mello, Luís Mott e Ronaldo Vainfas, para citar apenas os mais representativos3. Neles são investigados temas relacionados às mentalidades e à vida religiosa, à moral e à sexualidade, à presença cristã-nova na Colônia, além da própria estrutura do Tribunal: sua legislação, seus funcionários, seus procedimentos, etc.

Os estudos produzidos até agora têm dedicado, no entanto, pouca atenção à relação entre a Inquisição Portuguesa e o advento e expansão do protestantismo no século XVI. Isso talvez se explique pelo fato de, segundo nos informa Francisco Bethencourt, a perseguição à heresia protestante pelos tribunais ibéricos – ao contrário do que acontecia na Itália setentrional – apresente números relativamente baixos, embora tenha se mantido regular. Em Portugal, apesar dos “erros luteranos” figurarem entre os crimes sob a alçada do Santo Ofício desde a sua fundação, em 1536, o judaísmo ocupa um lugar de permanente destaque. O mesmo autor também nos revela que a maior parte dos processos envolvendo a adesão ao “luteranismo” – designação genérica do protestantismo na época – pertencem ao tribunal de Lisboa, uma vez que sua jurisdição se estendia às colônias portuguesas do Atlântico4.

No que diz respeito ao Brasil, no levantamento feito por Sônia Siqueira dos motivos da instalação dos processos nas Visitações do Santo Ofício de 1591 e 1618, num total de 179, o “luteranismo” ocupa a sétima colocação, lado a lado com as “gentilidades” – ambos com 12 processos. A título de comparação, no topo da lista estão as blasfêmias e irreverências contra Cristo, a Virgem, os santos e o clero, somando 50 processos, enquanto o judaísmo e a sodomia renderam 17 e 16 processos, respectivamente5. Ainda de acordo com Sônia Siqueira, durante

1 Uma primeira versão deste texto foi apresentada no I Encontro Nordestino de História Colonial, realizado na Universidade Federal da Paraíba, em setembro de 2006.

2 Mestre em História pela Universidade Federal da Paraíba.3 NOVINSKY, Anita. Cristãos-novos na Bahia. São Paulo: Perspectiva, 1972; SIQUEIRA, Sônia. A Inquisição portuguesa e a sociedade colonial. São Paulo: Ática, 1978; SOUZA, Laura de Mello. O diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras, 1986; MOTT, Luiz. O sexo proibido: virgens, gays e lésbicas nas garras da Inquisição. Campinas: Papirus, 1988; VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

4 BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália – séculos XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 168-172, p. 316-319.

5 SIQUEIRA, A Inquisição..., p. 301.

174 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

as referidas Visitações, dentre as 950 denúncias que chegaram à mesa do Santo Ofício, apenas 27 envolviam a aceitação de idéias “luteranas”6. Quanto às culpas confessadas, num total de 283 confissões, 19 estavam relacionadas ao “luteranismo”, enquanto – novamente para efeito de comparação – 22 tiveram como pretexto práticas judaizantes e 16 o uso de “costumes gentílicos”7.

É possível, portanto, estudar o protestantismo nas fontes da Inquisição portuguesa. É bem verdade que as referências a ele são relativamente pontuais e, por vezes, imprecisas. O termo “luterano”, além de designar por metonímia os adeptos dos diversos credos reformados, estava associado a uma série de heterodoxias que nem sempre eram protestantes de fato. Quando interrogado pelo Santo Ofício na Itália, o moleiro Menocchio, por exemplo, reproduzindo o uso corrente na época, respondeu que acreditava ser luterano “quem siga ensinando o mal e coma carne às sextas e sábados”8. Por semelhante modo, os inquisidores portugueses tomavam com freqüência “luterano” e “herege” por sinônimos, empregando-os intercambiavelmente.

De qualquer forma, ao utilizar fontes inquisitoriais para um estudo do protestantismo, importa antes perceber como o mesmo foi representado – logo, “reapresentado” – por aqueles que as produziram9. Pretendemos, neste artigo, tecer algumas considerações sobre o luteranismo nas Confissões da Primeira Visitação ao Brasil (1591-1595), atentando para as experiências geradoras das culpas confessadas e, ao mesmo tempo, para os elementos que, na lógica inquisitorial, suscitaram as suspeitas de adesão à “seita luterana”.

MEDOS, REFORMAS E INQUISIÇÕES

A Inquisição Portuguesa foi fundada em 1536 pela bula Cum ad nihil magis, do Papa Paulo III. Quatro anos mais tarde, o mesmo pontífice aprovaria a criação da Companhia de Jesus e, outros cinco anos depois, convocaria o Concílio de Trento (1545-1563). Era a resposta da Igreja aos desafios impostos por uma época marcada, ao mesmo tempo, pela descoberta do Novo Mundo e pela ascensão da heresia com a Reforma Protestante, deflagrada na Alemanha por Martinho Lutero. De acordo com Jean Delumeau, o advento do protestantismo foi visto pela cristandade católica como sinal de uma “ofensiva demoníaca generalizada”, da qual também participavam judeus e mouriscos, levando à extensão máxima o medo da heresia e dos hereges. Ao paroxismo da “obsessão do herético” correspondeu o recrudescimento das medidas tomadas contra os adversários da ortodoxia. Era o aprofundamento de uma crise que se arrastava desde o século XIV e que havia tornado os inquisidores “indispensáveis”10.

À crise, a Igreja também respondeu com reformas. Estas tiveram como eixo o Concílio de Trento (1545-1563), cujas deliberações foram caracterizadas pela rigidez doutrinal, pela rejeição da diversidade e por um esforço de normalização

6 SIQUEIRA, A Inquisição..., p. 255.7 SIQUEIRA, A Inquisição..., p. 227.8 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 59.

9 CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 1990.10 DELUMEAU, Jean. A história do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 393-404.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 175

das crenças e das condutas. Buscou-se disciplinar a vida do clero e do laicato; deu-se novo destaque aos sacramentos, sobretudo os do matrimônio, da eucaristia e da penitência; foi confirmada a importância das obras para a salvação, do culto à Virgem e aos santos, além de ser colocado em relevo a primazia do estado clerical. Tais deliberações, em larga medida, representaram uma refutação ao protestantismo. Para Delumeau, além de promover a chamada Restauração Católica, Trento representou “uma recusa de diálogo com a Reforma, uma abrupta afirmação de posições antiprotestantes”11.

A ação inquisitorial situa-se, deste modo, na confluência dos esforços a fim de combater o avanço das heresias e reformar a cristandade, consagrados pelo Concílio de Trento. Segundo se acreditava, fazia-se necessário lutar – tanto em solo europeu como no ultramar – contra aqueles que atentavam contra a verdadeira fé, fossem eles falsos convertidos judeus ou seguidores da “seita luterana”. Era preciso reconduzi-los ao grêmio da Igreja ou, quando isso não fosse possível, livrar o orbe cristão de sua presença ameaçadora. Reconhecia-se também a necessidade de corrigir erros menores, porém não menos danosos, instruindo os desviados a crer catolicamente a respeito dos dogmas afirmados em Trento. Os modernos Tribunais da Fé, entre eles o português, orientavam-se por esses objetivos, colocando-se a serviço da Restauração Católica.

ENTRE CULPAS E SUSPEITAS

Já vigorava a União Ibérica – instituída com a vacância do Trono de Portugal após a morte do cardeal D. Henrique – quando Heitor Furtado de Mendonça, então deputado da Inquisição portuguesa, foi designado para visitar os bispados do Brasil, São Tomé e Cabo Verde. Entre julho de 1591 e fevereiro de 1595, o Visitador percorreu as capitanias da Bahia, Pernambuco, Itamaracá e Paraíba, colhendo nada menos que 187 confissões de pessoas de variadas ascendências, idades, ocupações e extrações sociais, os quais compareceram à mesa do Santo Ofício por motivos igualmente diversos12.

Dentre essas confissões, em 40 encontramos pelo menos uma referência direta ao “luteranismo”, seja por boca do próprio confitente, seja no interrogatório do inquisidor que, em muitos casos, lhe pergunta “se leu alguns livros de hereges ou luteranos ou se comunicou e andou com eles em suas terras”. Outras duas confissões fazem menção ao luteranismo indiretamente, empregando – em contextos nos quais estão em pauta idéias protestantes – os termos “heresia” e “herege”. Dos confitentes, a maioria é composta por cristãos-velhos residentes na Colônia, dos quais somente três são mulheres. Pretendemos abordar as referências ao luteranismo nas Confissões da Bahia e Pernambuco a partir de duas questões básicas: (1) Que culpas motivaram as confissões em que elas ocorrem? (2) Que confissões suscitaram no inquisidor a suspeita de influência luterana?

Destacam-se, em primeiro lugar, as confissões dos que, sob cativeiro, tiveram contato com luteranos. Foi o que aconteceu com o mercador Baltasar André, que se encaminhou à mesa do Santo Ofício para relatar como ele e alguns companheiros, quando em viagem a Portugal, foram tomados por “ingleses luteranos”. Estes “sempre

11 DELUMEAU, Jean. Nascimento e afirmação da Reforma. São Paulo: Pioneira, 1989, p. 169.12 SIQUEIRA, A Inquisição..., p. 208-229.

176 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

pela manhã e à noite faziam suas orações luteranas, assentados, desbarretados, em língua inglesa”, em cujas ocasiões ele e os companheiros “se punham também desbarretados como os ditos luteranos”, alegando terem sido constrangidos a isso. Levado à Inglaterra, foi várias vezes, por “curiosidade”, “às mesquitas e igrejas dos luteranos”, nas quais os mesmos faziam suas pregações e onde não havia “retábulo, nem imagem de Deus, nem de santo, nem cruz”. Ali também observou a presença de “um púlpito donde pregam os luteranos por um livro” e de “uns bancos cobertos de panos finos, roxos e azuis, nos quais comungam os luteranos ao seu uso luterano”. Durante os ofícios religiosos, se punha de joelhos e se desbarretava, mas assegurou ao inquisidor que “sempre em seu coração teve firme a fé de Cristo e nunca creu na dita seita luterana”13.

Situação semelhante também viveu Domingos Luis Matosinhos, marinheiro, que esteve em poder de “franceses luteranos” por pouco mais de cinco meses, capturado por eles quando vinha do Reino para a Bahia. Depois de acompanhar diversos assaltos a outras embarcações, tendo ele mesmo, em certa ocasião, colaborado com seus captores, encarregou-se de orientar aqueles que eram feitos prisioneiros quanto a se desbarretarem durante as “salvas luteranas”, feitas duas vezes ao dia. Confessando-se em Pernambuco, afirmou haver feito isso para que os luteranos “não lhes fizessem mal”, asseverando que “não tinha tenção de favorecer o luteranismo” e que “nunca em seu coração lhe pareceu bem o luteranismo nem coisas suas”. Pelo contrário, declarou que “muitas vezes no dito tempo em que andou com os ditos luteranos debateu e porfiou com eles que era melhor a nossa religião cristã da santa fé Católica que a seita dêles luteranos”14.

O contato com luteranos também poderia se dar em outras circunstâncias. Pero de Vila Nova, francês católico, relatou ter vindo da França em 1557 na frota conduzida por Bois le Comte – sobrinho de Nicolau de Villegaignon, fundador da França Antártica – trazendo para o Rio de Janeiro “muitos monsenhores e outra muita gente francesa, dos quais a maior parte eram luteranos”. Estando em maior número, estes começaram a difundir seus livros e doutrinas, fundando também “escolas públicas de sua seita luterana, constrangendo e forçando com açoites todos os moços e mancebos de pouca idade que fossem às ditas escolas e doutrinas”, entre eles o próprio confitente. Meses depois, tratou de bandear-se para a Capitania de São Vicente, então povoada por católicos portugueses, após o que nunca mais voltou a ter “conversação nem mistura com luteranos”.

Durante a mesma confissão, ao ser perguntado se lembrava de alguns erros dos luteranos contra a fé católica, o confitente respondeu que os tais afirmavam “que Deus não fizera a missa, e que a missa era feitura dos homens, que na hóstia consagrada na missa não estava o verdadeiro corpo de Cristo e que o verdadeiro sacramento é receber uma fatia de pão em comemoração ao corpo de Cristo”. Também “negavam haver de se venerar a cruz, nem imagem alguma de Nossa Senhora” e diziam “que se não haviam de confessar a homens pecadores como eles, e que não tinham sacerdotes ou confessores”. Admoestado a fazer “confissão inteira

13 VAINFAS, Ronaldo (org.). Confissões da Bahia: Santo Ofício da Inquisição de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 296-299.

14 PRIMEIRA visitação do Santo Ofício às partes do Brasil; Denunciações e Confissões de Pernambuco (1593-1595). Recife: FUNDARPE, 1984, p. 85.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 177

e verdadeira”, Pero de Vila Nova ainda declarou haver feito menção dos referidos erros em algumas conversas, mas que o fizera “não por modo de os afirmar, nem de os ensinar, nem de os dizer como coisa boa”15.

Nos três casos citados acima, fica evidente o trânsito de estrangeiros no litoral brasileiro, sobretudo franceses e ingleses, seja com fins de “comércio” (que envolvia, muitas vezes, assaltos e pilhagens) seja para o estabelecimento de colônias, a exemplo da França Antártica. Este trânsito – favorecido pela vastidão de nossa faixa litorânea e por alianças estratégicas com indígenas – representava para a coroa portuguesa uma ameaça à integridade de seus domínios e ao monopólio que procurava manter sobre os mesmos. Com a União Ibérica, observou-se, por sua vez, uma crescente hostilidade com relação aos estrangeiros, principalmente os suspeitos de heresia.16 Para além dos interesses econômicos em jogo, os conflitos entre os reinos de Portugal e Espanha e as chamadas “Nações do Norte” foram marcados por um forte componente religioso, à medida que as fés católica e protestante foram assumidas dos dois lados como traço de identidade e fator de coesão social.17

As diferenças litúrgicas entre católicos e protestantes também podem ser percebidas: os luteranos fazem suas orações em língua vernácula e em suas igrejas não existem imagens. A esse respeito, Felipe Fernández-Armesto e Derek Wilson comentam que

O gosto exuberante do barroco católico pela cor e pelas formas retorcidas, sua afirmação da pompa e do esplendor, o culto aos santos, a posição central da missa e a permeação do material pelo sagrado contrastam acentuadamente com o tratamento protestante da igreja como um mero auditório conveniente, onde os eleitos podiam reunir-se para escutar a proclamação da palavra.18

Nota-se ainda o papel do Concílio de Trento na definição do que vem a ser considerado erro contra a fé. Incorriam os luteranos em heresia por falar contra os sacramentos, contra a veneração de imagens e contra o clero, dentre outros itens consagrados pelos decretos tridentinos. De igual modo, para os inquisidores, tornava-se alvo de suspeitas quem quer que expressasse proposições heréticas semelhantes. Estas poderiam ser indícios de uma influência luterana a ser erradicada para a salvação da alma e conservação da ortodoxia. A suspeita, neste sentido, exercia um papel preponderante durante as confissões: era necessário manter-se atento em relação a erros ocultos que se deixavam trair nas palavras.

Nos casos considerados, a proposição herética que atrai com mais freqüência a suspeita de luteranismo é a afirmação de que o estado dos casados é tão bom ou melhor que o dos religiosos. Segundo Ronaldo Vainfas, “a opinião desfavorável à

15 Confissões da Bahia, Op. Cit., p.191-195. Pero de Vila Nova foi processado pelo Visitador, sentenciado a abjurar de leve perante a mesa e guardar silêncio em relação aos “costumes luteranos”.

16 HOLANDA, Sergio Buarque de & PANTALEÃO, Olga. Franceses, holandeses e ingleses no Brasil quinhentista. In: HOLANDA, Sergio Buarque de (org.). História geral da civilização brasileira: a época colonial, tomo I - vol. 1. São Paulo: DIFEL, 1985, p. 162-163.

17 SILVA, Ana da & HESPANHA, António Manuel. A Identidade portuguesa. In. HESPANHA, A. (coord.). História de Portugal. Lisboa: Estampa, 1994.

18 FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe & WILSON, Derek. Reforma: o cristianismo e o mundo (1500-2000). Rio de Janeiro: Record, 1997, p. 157-158.

178 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

primazia do estado religioso era muito perigosa para o catolicismo: minava a principal meta da Contra-Reforma, orientada para a remodelação do clero e a valorização do sacerdócio”19. Via de regra, os que compareceram à mesa inquisitorial para confessar-se a esse respeito alegaram ignorância, reconhecendo-se culpados apenas com a publicação do Édito da Fé e do Monitório Geral que abria os trabalhos do Santo Ofício durante as visitações. Foi o que declarou André Pinto, cristão-novo, o qual “quando ouviu publicar o édito da fé e os papéis da Santa Inquisição na sua freguesia, soube e entendeu ser a dita proposição errada e herética e conheceu o engano em que estivera simplesmente”20. Para Sônia Siqueira, nisto pode-se constatar o quanto as determinações tridentinas, apesar de vigorarem no Reino desde 1564, ainda eram largamente ignoradas21.

Também levantavam suspeitas aqueles que se pronunciavam contra a adoração aos santos, como Baltasar da Fonseca, residente em Itamaracá, em cuja confissão afirmou “que não cria nem adorava em Nossa Senhora, nem em São Paulo, nem em São Pedro, nem em Santo outro algum, e que não cria na Cruz nem a adorava, e que somente cria e adorava um só Deus todo poderoso”. Segundo ele, tinha isso por certo e verdadeiro uma vez que “no Credo não se diz mais que creio em Deus Padre todo poderoso” e porque “nem a Cruz, nem Nossa Senhora, nem os Santos têm poder de perdoar pecados”. Chegou mesmo a ignorar as reprimendas de um clérigo local por considerar-se mais entendido do que ele, tomando-o por iletrado. Ao fim de sua confissão, foi intimado a retornar posteriormente à mesa para receber “remédio e doutrina saudável”22.

Outras afirmações podiam gerar a desconfiança do Santo Ofício, como falar mal da autoridade papal, difamar o clero, zombar de relíquias e indulgências e questionar o valor das interdições alimentares da Igreja. Entre outras culpas, Estêvão Cordeiro, por exemplo, confessou haver dito que “em Roma andavam as mulheres com os peitos descobertos e que os padres santos concediam indulgências aos homens que com elas dormissem carnalmente”23. O supracitado Baltazar da Fonseca, pródigo em opiniões consideradas heréticas, afirmava que “bem poderia um homem comer carne em qualquer dia proibido” e, ao ouvir da burrinha em que a Nossa Senhora fora para o Egito e das correntes com as quais São Bartolomeu prendera o demônio, declarou que “havia êle entre os idiotas” quem cresse nas mesmas24.

Igualmente suspeitas eram as blasfêmias. Pronunciadas, em geral, irrefletidamente, fruto de alguma irritação momentânea, elas podiam, entretanto, denunciar a presença de crenças indisciplinadas, heterodoxas. De qualquer forma, de acordo com Delumeau, a luta contra as blasfêmias foi um dos componentes do esforço de normalização empreendido a partir da segunda metade do século XVI no contexto das reformas religiosas25. Entre os casos examinados, encontramos a confissão de

19 VAINFAS, Confissões..., p. 205.20 Confissões de Pernambuco, Op. Cit., p. 30-31.21 SIQUEIRA, A Inquisição..., p. 100.22 Confissões de Pernambuco..., p. 110-114.23 Confissões de Pernambuco..., p. 27.24 Confissões de Pernambuco..., p. 113. De acordo com a tradição hagiografia cristã, São Bartolomeu, um dos doze apóstolos de Cristo, esteve na Índia, onde teria impedido a ação de um demônio que habitava no interior de um ídolo, amarrando-o com correntes de fogo. DE VARAZZE, Jacopo. Legenda áurea: vidas de santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 697-698.

25 DELUMEAU, A história..., p. 404-407.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 179

Bartolomeu Garcez que, por perder a compra de uma criação de porcos para um padre, disse que “por clérigos e frades se há de perder o mundo”, pelo que chegou a ser interrogado se andara na Itália, França ou Inglaterra, e se havia tratado com luteranos ou lido por seus livros26. Esta mesma pergunta foi feita ao castelhano João Biscainho, que, numa peleja com a esposa, blasfemara dizendo “arrenego de Jesus Cristo”, e a Maria de Reboredo, porquanto afirmara, agastada com o marido, que “assim como S. Tomé não creu senão vendo as chagas, que assim ela, se não visse vingança do dito seu marido, seria como S. Tomé e não creria em Deus”27.

Por fim, as suspeitas inquisitoriais também pairavam sobre os que cometiam atos contra a Eucaristia, delito que poderia ser “sintoma” de luteranismo. Rodrigo de Almeida, ao confessar não ter comungado em jejum como prescrevia a Igreja, recebendo o Santíssimo Sacramento depois de almoçar farinha da terra e beber vinho, foi logo interrogado se cria “que na hóstia consagrada está o verdadeiro corpo de Cristo nosso Senhor e que o contrário é heresia”. Respondeu afirmativamente e assegurou nunca haver tratado com luteranos nem lido seus livros28. Incorreram em culpa semelhante Catarina Fernandes, por haver comido ananás antes da comunhão, e Luzia Cabelos, por inadvertidamente receber a Eucaristia duas vezes seguidas, razão pela qual tiveram sua fé no dogma da transubstanciação – divisor de águas entre católicos e protestantes – examinada29.

As culpas e suspeitas associadas ao luteranismo nas confissões da Primeira Visitação podem ser situadas, portanto, em pelo menos quatro categorias: (1) contato com luteranos, (2) proposições heréticas, (3) blasfêmias e (4) atos contra o Santíssimo Sacramento. A partir dos exemplos citados, acreditamos ter demonstrado que, mesmo na Colônia, o protestantismo se encontrava na mira da Inquisição portuguesa. Ainda que de forma mitigada, as visitações transplantaram para o Brasil as tensões vividas na Europa envolvendo católicos e reformados, numa época de mútua intolerância quando, citando mais uma vez Jean Delumeau, “amar e praticar sua religião significava muitas vezes combater a de outrem”30.

***

26 Confissões da Bahia..., p. 175-177.27 Confissões da Bahia..., p. 338, 320.28 Confissões da Bahia..., p. 230-231.29 Confissões da Bahia..., p. 78-80, p. 312-314.30 DELUMEAU, A história..., p. 162.

180 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

RESUMO

Por ocasião da Primeira Visitação do Santo Ofício ao Brasil (1591-1595), compareceram à mesa do tribunal pessoas que confessaram haver tido contato com “luteranos” ou foram inquiridas a esse respeito por expressar opiniões consideradas “heréticas”. Em tais casos, o “luteranismo” abrange um conjunto variado de proposições que não são necessariamente protestantes nem implicam uma adesão de fato ao credo reformado. Apesar de sua imprecisão e de serem relativamente pontuais, os registros de suspeita de “luteranismo” são reveladores da atitude da Igreja perante o avanço do Protestantismo no Novo Mundo. Acreditava-se ser necessário combater também ali os inimigos da verdadeira fé – fossem eles reais ou apenas presumidos. Este artigo pretende examinar as referências ao “luteranismo” nas confissões da Bahia e de Pernambuco, tema ainda pouco visitado pelos historiadores das inquisições no Brasil.

Palavras Chave: Inquisição Portuguesa; Protestantismo; Confissões da Bahia e Pernambuco.

ABSTRACT

During the First Visitation of the Holy Office to Brazil (1591-1595), arrived to the table of the. Tribunal people confessing that they had contact with “Lutherans” or who were inquired in this respect for expressing opinions considered “heretic”. In such cases, “Lutheranism” includes a diverse set of propositions that were not necessarily protestant nor implied in a true adherence to the reformed creed. Despite their imprecision and punctuality, the records of suspicion of “Lutheranism” are revealing of the attitude of the Church before the advance of the Protestantism in the New World. It was believed that, even there, was necessary to struggle against the enemies of the true faith – real or presumed. These paper intents to examine the references to “Lutheranism” in the confessions of Bahia and Pernambuco, a theme little explored by the historians of the inquisitions in Brazil.

Keywords: Por tuguese Inquisi t ion; Protestantism; Confessions of Bahia and Pernambuco.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 181

A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE AFROBRASILEIRA EM

HISTÓRIAS DE VIDA, LUTAS E RESISTÊNCIAS1

Alba Cleide Calado Wanderley2

Mirian de Albuquerque Aquino3

INTRODUÇÃO

A identidade está presente em todas as sociedades. A sociedade pós-moderna engendra a compreensão do conceito de identidade não apenas em seu caráter de construção, mas também aponta as várias adjetivações que surgem no interior das áreas do conhecimento (Sociologia, Psicologia, Antropologia, História e a Política, dentre outras). Nessa construção é possível identificar que o substantivo identidade se adere a adjetivações, formando termos como identidade cultural; identidade social; identidade pessoal; identidade coletiva; identidade profissional; identidade étnica; identidade racial; identidade local; identidade regional; identidade nacional e outras, tornando o termo mais difuso com o intuito de especificar e qualificar ainda mais o conceito de identidade, que já se constitui uma qualidade do sujeito e diz respeito às características desse sujeito.

A identidade “se refere a um modo de ser no mundo e com os outros, estando ligada aos planos cultural, sociopolítico e histórico. Em relação a identidade negra, podemos pensá-la como uma construção social, histórica, cultural e plural que um grupo etnicorracial tem sobre si mesmos a partir da relação com o outro4.

Neste artigo, inicialmente, procuraremos justificar a nossa opção pelo uso do conceito afrobrasileiro no lugar de afrodescendente. Afrobrasileiro é entendido como aquele que resulta da miscigenação na sociedade brasileira. Porém, não implica dizer que os afrobrasileiros também não sejam descendentes de africanos, pois o que diferencia uma denominação da outra é a “mistura” cultura-espaço. Os afrodescendentes podem ser afrodescendentes em outros espaços, como a China, os Estados Unidos, entre outros. No segundo momento, abordaremos a construção da identidade no sertão paraibano, permeada pelas falas dos sujeitos entrevistados.

AFROBRASILEIRO E AFRODESCENDENTE: DIFERENÇAS

O estudioso Cunha Júnior (2005)5 prefere usar e justificar o uso do conceito “afrodescendente”, relacionando-o às produções intelectuais sobre o negro nas décadas de 1930 e de 1940, as quais, segundo este autor, ancoravam-se ainda em

1 Este trabalho é parte integrante da tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba, em 2009, financiada pela CAPES.

2 Historiadora, Doutora em Educação pela Universidade federal da Paraíba. Professora da UNAVIDA. Mediadora de EAD na Universidade Federal da Paraíba.

3 Doutora em Educação, Professora dos Programas de Pós-Graduação em Educação e em Ciência da Informação da Universidade Federal da Paraíba.

4 GOMES, Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão. In: __________. Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.639/03. Brasília: MEC, 2005, p. 39.

5 CUNHA JR., Henrique. Nós, afro-descendentes: história africana e afro-descendente na cultura brasileira. In: ROMÃO, Jeruse (org.) História da Educação do Negro e outras historias. Brasília: MEC, 2005.

182 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

pensamentos de intelectuais que conservavam e disseminavam idéias incompatíveis com a cultura e a história africana. Esses intelectuais e seus seguidores, segundo este autor, nutriam teorias racistas que consideravam a cultura afrocêntrica inferior em comparação com a cultura eurocêntrica. Ele afirma que o conceito “afrodescendência” nasce com um profundo conhecimento do passado africano e, sobretudo, [...] com a necessidade de relacionar o passado africano com a história do Brasil6.

Em trabalhos mais recentes, o autor vai afirmar que o conceito “afrodescendência” serve para definir a população de negros, pardos e mestiços nos censos demográficos do IBGE. Para o autor, é de base étnica atribuído pela história sociológica desse grupo, tendo como “base a história e os processos de formação identidade afrodescendente”7. Este autor ainda coloca que o conceito afrodescendência na educação, afirmando que se insere nos “enfoques atuais das ciências que rejeitam as idéias de raças humanas [...]”8

Ao insistirmos no uso do conceito de “afrobrasileiro” não incorremos em um equívoco conceitual, posto que, do nosso ponto de vista, o que é significativo para os afrodescendentes e/ou afrobrasileiros é a afirmação de sua identidade enquanto negros e a igualdade de direitos em relação à sociedade que se identifica como branca. Assim, preferimos usar o conceito de afrobrasileiro sob o argumento de que os afrobrasileiros seriam afrodescendentes que construíram sua identidade africana no espaço brasileiro. Pode ser dito também que afrobrasileiro é aquele que tem de si e em si a imagem de ser africano no Brasil, em todas as circunstâncias. É aquilo que uma pessoa considera determinante, ou seja, a identidade que o sujeito assume, da qual se apropria e torna de si próprio. As teorias racistas e o racismo ainda predominam na sociedade brasileira, apesar de algumas políticas de ações afirmativas e da luta dos movimentos negros, das associações e das Irmandades negras.

Devido a isso, não podemos afirmar que a identidade afrobrasileira foi imposta e justificada pela cor da pele, numa representação binária: branco/preto, construída pelos brancos. Nesse sentido, essa classificação branco/preto muito difundida na Europa e importada pelos literatos brasileiros, expressa no poema retrata bem o contexto cultural que serve de terreno para o pensamento racista pelo qual perpassa a constituição da identidade do povo afrobrasileiro.

O branco é o símbolo da divindade ou de um Deus. O negro é o do espírito do mal e do demônio. O branco é o símbolo da luz... O negro é o símbolo das trevas, e as trevas, exprimem simbolicamente o mal. O branco é o emblema da harmonia. O negro, o emblema do caos. O branco significa a beleza suprema. O negro, a feiúra.

6 CUNHA JR., Nós..., p. 253.7 CUNHA JR., Henrique. Afrodescendência e espaço urbano. In: CUNHA JR., Henrique & RAMOS, Maria Estela Rocha (orgs.). Espaço urbano e afrodescendência : estudos da espacialidade negra urbana para o debate das políticas públicas. Fortaleza: Edições UFC, 2007.

8 CUNHA JR., Henrique. Me chamaram de macaco e eu nunca mais fui á escola. In: GOMES, Ana Beatriz & CUNHA JR., Henrique (org.). Educação e afrodescendência no Brasil. Fortaleza: Edições UFC, 2008.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 183

O branco significa a perfeição. O negro significa o vício. O branco é o símbolo da inocência. O negro, da culpabilidade, do pecado ou da degradação moral. O branco, cor sublime, indica a felicidade. O negro, cor nefasta, indica tristeza. O combate do bem contra o mal é indicado simbolicamente pela oposição do negro colocado perto do branco.9

Podemos considerar que a construção da identidade dos afrobrasileiros está relacionada ao tipo de tratamento que os negros receberam ao longo da história. Essa questão diz respeito, inclusive, ao reconhecimento de vivermos em uma sociedade racista, onde o que prevalece é o modelo eurocêntrico, que origina um processo conflituoso e contribui para que alguns afrobrasileiros construam uma imagem negativa de si mesmos.

A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE AFROBRASILEIRA NO SERTÃO PARAIBANO

O modo de tratar o afrobrasileiro abre infinitas possibilidades de comprometimento e condicionamento para a construção de sua identidade, mas não a determinou. Prova disso são as identidades afirmadas nos espaços das Irmandades do Rosário do Sertão Paraibano, que traduzem as tradições africanas, produzem saberes e valores que fortalecem uma imagem positiva de si mesmas. São identidades construídas por uma trajetória de luta, de direitos negados, de trabalho, de construção de saberes e de estudos. Assim também são identidades políticas. Essa construção da identidade brasileira é visível na fala de Laura Maria (Laura Maria da Silva, negra, nasceu em Santa Luzia - PB, professora, com Ensino Superior e Pós-Graduação, membro da Irmandade do Rosário de Santa Luzia - PB) ao narrar a trajetória de vida na Irmandade:

Bem, eu sou Laura Maria da Silva, nascida no Sítio Xique-Xique, em [...] Fui estudar, fui trabalhar numa região chamada Junco, depois fui para a região das Espinharas, lá eu fiz um curso superior que foi o curso de História, e coordenei durante oito anos a região, lá atendendo a vinte e cinco municípios, depois eu sair de lá, fui para João Pessoa trabalhar na coordenação de educação especial pelo estado, logo depois, ingressei no município, toda minha vida no município eu fazia questão de trabalhar em periferia [...] Eu gosto de ser negra, porque eu devo primar pela geração dos nossos antepassados, pela coragem que eles tiveram e pela coragem que eles passaram pra gente, que foi deles que eu herdei essa coragem. Lamento quando tem um negro que tem vergonha de ser negro. Eu não porque eu sou eu, eu acho que devo valorizar as minhas raízes, porque a arvore sem raiz morre, se eu não tivesse raiz já tinha morrido, então, acho que tenho que primar por eles e gritar que sou negra e lutar, por uma coisa melhor.

9 SANTOS, Gislene Aparecida dos. A invenção do ser negro: um discurso das idéias que naturaliza-ram a inferioridade dos negros. Rio de Janeiro: Pallas, 2002, p. 58.

184 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

A protagonista inicia a sua fala narrando sua história de vida por meio dos estudos e do trabalho, a qual é comum à história dos sertanejos que ascendem por meio dos estudos e do trabalho e não obstante as condições socioeconômicas adversas de sua região, deslocam-se de sua terra natal em busca da sobrevivência. Mas Laura Maria torna-se para nós um exemplo de vida, por assumir-se como negra e lutar contra a opressão histórica em que se encontra o negro. Em seu trabalho no do setor educacional, ela encontrou um meio de amenizar tal situação, mas sempre preferiu trabalhar em locais de difícil acesso, onde se localizava a população pobre. Apesar disso, não se distanciou da academia, mas cursou várias pós-graduações com o objetivo de manter a teoria e a prática da educação sempre relacionada ao seu cotidiano. Em sua fala, o que nos chama à atenção são os sentimentos de pertença à cultura de matriz africana, sua militância na educação e nas questões etnicorraciais, a apropriação e a afirmação cultural. Ela declara ser negra, e essa postura estaria relacionada aos seus antepassados, que lhe ensinaram a ter coragem de assumir a sua identidade e lutar para que as futuras gerações possam também se reconhecer como afrobrasileiras.

A partir de sua fala, a nossa hipótese de que a identidade é construída também pelos saberes tecidos nos espaços das Irmandades do Rosário e passa a ser considerada, pois a convivência com os mais velhos da Irmandade, a escuta das histórias narradas por meio de suas lembranças, a experiência de vida, a luta e a resistência dos antepassados configuram o posicionamento de Laura Maria como negra. O sentimento de pertença é construído, e o desejo de compartilhar esse sentimento alarga-se ao lutar em defesa dos direitos iguais para os negros. O “primar” que aparece em sua fala demonstra a tomada de posição de que o negro deve assumir-se como tal na sociedade que se apresenta como racista; primar é tornar-se notório, presente na luta contra as discriminações raciais, conquistar o espaço e apropriar-se dele até o momento negado aos afrobrasileiros.

É assim que os afrobrasileiros dos espaços das Irmandades do Rosário do Sertão Paraibano constroem suas identidades culturais e as afirmam por meio desse ato político. Isso implica ser protagonista da sua própria história, ser parte da história nacional dos afrobrasileiros, herdada da matriz africana. Portanto, Laura Maria se coloca como uma protagonista dessa história que, além de conquistar espaço pelo discurso e ação, agora, luta para registrar a sua fala, as experiências, as percepções e opiniões, por meio de sua produção bibliográfica:

Eu pertenço ao quilombo, então eu sei o fio da meada a gente chega ao fim, ou melhor eu sei a raiz, então quando a gente pega o fio da meada e quero se Deus quiser daqui para o próximo ano publicar o meu livro, acho que será o primeiro livro de negro, escrito por negro no dia-a-dia. Existem poucos livros publicados por negro e sobre, porque os negros que já estão na história é Henrique Cunha Junior [...] são pouquíssimos, então eu quero mostrar que negro também tem raiz, se sempre o branco super-poderoso tentou cortar a raiz do negro, não conseguiu. E nem vai conseguir.

O que poderíamos deduzir dessa fala é que a protagonista mostra sua postura frente a uma sociedade branca e racista, colocando a necessidade de os afrobrasileiros

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 185

também conquistarem espaço por intermédio da literatura sobre essa história, uma história de negro contada por quem faz a história afrobrasileira; por quem luta no cotidiano por essa história possível, diante da tentativa secular de dominação do branco. O desejo de Laura Maria só será possível de ser realizado se ela tiver formação escolar. Pelo que se depreende dessa sua fala, os membros das Irmandades aqui estudadas precisam se escolarizar, não só pela burocracia interna e externa da Irmandade, mas também pela possibilidade registrar sua história e pela possível mudança de concepção sobre o negro em nossa sociedade.

A mais importante revelação encontrada na fala de Laura Maria é a defesa do fortalecimento da educação escolar para que as crianças possam conhecer quem elas são e, a partir daí, iniciarem o processo de construção identitária. Sua ligação com os saberes escolares traz o sentimento de que, mesmo reconhecendo que a educação não pode resolver, sozinha, todas as questões da identidade afrobrasileira, ela ocupa um lugar de destaque em nossa sociedade e na discussão sobre a diversidade cultural10. Assim, entendemos que, nessas Irmandades, a identidade afrobrasileira não deve ser construída apenas com práticas educativas do seu interior, mas também com a educação escolar, que é necessária à formação integral da criança:

Eu ressalvo que é preciso um fortalecimento na educação no ensino fundamental, nós temos que dar base a nossos alunos para que eles possam construir um edifício. A escola como essa e nosso aluno é uma vergonha. O aluno tem que ser alfabetizado. Se não houver isso, nós teremos doutores, mas infelizmente, o número de doutores analfabetos não vai caber nas páginas de jornal, tem que ensinar ao aluno como ele aprende.

A construção da identidade de Laura Maria aproxima-se da história de outras identidades do espaço das Irmandades do Rosário do Sertão Paraibano. Essas falas revelam histórias extraordinárias de luta e de resistência dos afrobrasileiros na tentativa de dominar e oprimir a sociedade branca. Entendemos que o campo de “segredos” (MANOEL), guardados pelas Irmandades, pode revelar uma história ainda não conhecida nas páginas de nossa história. Então, que é pelo sentimento de pertença que os membros das Irmandades do Rosário do Sertão Paraibano vão construindo suas identidades, cujo sentimento está ligado aos saberes relacionados à memória, à história e à cultura, tecidas pelos mais velhos e pelos jovens da Irmandade, com a presença da educação escolar. A fala de Dona Ana Maria expressa o sentimento de pertença, na qual identificamos uma identidade cultural construída na circularidade dos momentos que delineiam a sua vida na infância, nos estudos e na participação na Irmandade:

Fiz história e ensinei a vida toda matemática. Sempre ensinei matemática. E aqui, na Irmandade, desde pequena, moleca pequena, que eu participava da festa do rosário, mais minha paixão mesmo é para ser juíza, mas pai e mãe não tinham condições, tinha que criar [...]filhos, tinha que estudar, ai não dava. Minha vontade não era de ser rainha,

10 MUNANGA, Kabengele (org). Estratégias e políticas de combate à discriminação racial. São Paulo: Edusp, 1996.

186 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

era de ser juíza, ai o tempo passou, eu nem fui rainha e nem juíza. E estou aqui, na Irmandade do Rosário, primeiro para ajudar, eu tenho um grande amor a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, desde criança tive essa paixão, e temos que ajudar. Mais, já que estou aqui meu compromisso é ajudar. Outra coisa também, o que eu souber eu tenho que passar para outro, porque não adianta se eu ficar só para mim, tenho que deixar algo para o povo, agora tudo o que eu faço é por amor a minha paixão é essa, a Irmandade do Rosário [...] Eu sou negra, tenho orgulho da cor que tenho, sou filha de Deus, igual a vocês. Todo mundo aqui é igual.

O movimento das fases da história de vida de Dona Ana Maria (negra, nasceu em Santa Luzia-PB, professora com formação em história e música, Presidente da Irmandade do Rosário de Santa Luzia - PB) está estreitamente vinculado à Irmandade. Observamos que a protagonista discorre rapidamente sobre a sua vida profissional, remetendo-a tão logo para a relação com a Irmandade e seus sonhos desde criança. Ela deixa evidente sua dedicação às atividades na Irmandade, confirmando o sentimento de pertença ao grupo. Assim, o movimento constitutivo de sua história de vida começa com um processo de maturidade que vai além da idade, e a circularidade das fases de sua vida nos permite enxergar a formação identitária relacionada à cultura afrobrasileira revelada no imaginário infantil até a sua visão de mundo, já adulta, quando a protagonista toma uma posição do lugar que fala e assume a identidade afrobrasileira, negra. Dona Ana Maria nos faz compreender que o aprendizado de sua experiência não se deu apenas no âmbito da Irmandade. Na verdade, ela concluiu o Curso Superior em História e em Música e, com esse conhecimento, pode contribuir mais com a Irmandade.

A participação dos membros na Irmandade, em suas atividades cotidianas é relatada como parte de suas vidas.

Olha professora, a minha função na Irmandade do Rosário é dupla, eu sou tesoureiro e sou escrivão, enquanto tiver vagância no cargo, também sou aquela pessoa que, na ausência do Rei, eu assumirei, sou aquela pessoa que respondo pelo grupo, me carrego de dar explicação quando alguém procura, me carrego de representar quando o rei não tem condições, então, eu sou aquela pessoa com condições de responder questões, respondo pela Irmandade, até porque pois desde a sua fundação a Irmandade tem pessoas analfabetas, são pessoas que se a gente perguntar sobre a Irmandade eles misturam, um responde de uma forma outro de outra, não há convergência nas respostas, então eu sou a pessoa que faço com que funcione de acordo com o Estatuto, o que é bastante difícil.

Nessa fala de Antonio (negro, nasceu em Pombal - PB, segurança bancário e poeta, ensino médio completo, Tesoureiro e Escrivão da Irmandade do Rosário de Pombal), o que é possível observar é que a história das Irmandades do Rosário do Sertão Paraibano é construída por meio da participação de seus membros com marcas diferentes, devido ao contexto social, ao tempo/ espaço e à razão de entrada

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 187

na Irmandade, mas iguais ao construir o sentimento de pertença. São membros que almejam objetivos comuns enquanto grupos, mas têm posições diferentes. Assim, todos os membros são importantes para a Irmandade e são respeitados de forma igual, porquanto cada um carrega suas experiências e histórias que contribuem para a história das Irmandades do Rosário.

Em sua resposta á nossa pergunta “quem era ele”, Antonio não se revelou, enquanto pessoa, mas como membro da Irmandade do Rosário, mostrando, em nosso entender que a sua vida pessoal é indissociável de sua vida das atividades da Irmandade e, ali, ele procura suprir várias funções. Ele demonstra o seu potencial de organização, experimentando o que estaria ligado com o que aprendeu no processo de sua formação, visto que a Irmandade necessita de pessoas com certo grau de escolaridade para dirigir algumas das suas atividades. Isso mostra que seus membros recebem as mesmas condições, sem hierarquias. Na Irmandade, algumas funções assumidas são de acordo com a escolaridade de cada um, com o objetivo de manter o caráter organizacional da entidade.

Essa condição de não alfabetizados, como menciona Antonio, ao que nos parece, contribui para que alguns membros não cumpram fielmente o Estatuto, posto que não sabem interpretar todas as suas diretrizes escritas, posto que preserva a oralidade. Com a entrada de jovens na Irmandade, essa situação tende a mudar. Por isso, a educação escolar é primordial para a construção da identidade afrobrasileira e a cultura de matriz africana, pois a oralidade tem sido uma prática que mantém a tradição do processo de ensino-aprendizagem da Irmandade. Todavia, é necessário ir além dos “muros” da Irmandade, expandir a educação aos afrobrasileiros, para que eles tenham acesso à educação, como cumprimento de um dos seus direitos, dentre outros, constitucionalmente, garantidos.

Durante a entrevista, Antonio não expressou diretamente palavras para se declarar negro, assumindo, portanto, uma identidade afrobrasileira. Porém, ao falar sobre preconceito, revela que os membros que participam da Irmandade do Rosário assumem-se como negros e não têm vergonha disso, ao contrário de muitos que não são membros da Irmandade. Para Antônio, “o preconceito também acontece por parte da própria comunidade negra, tem vergonha de ser negro, não quer participar da Irmandade” (ANTONIO). Assim, esse assumir-se como negro também o contempla como um membro da Irmandade do Rosário.

Já para Francisco (negro, nasceu em Santa Luzia - PB, professor com formação em economia, irmão de mesa da Irmandade do Rosário, de Santa Luzia-PB), a sua iniciação na Irmandade do Rosário está relacionada à herança cultural da sua família. Então, consideramos que, só a partir dessa relação, foi possível desenvolver o sentimento de pertença.

Bem, é tão difícil a gente falar da gente, mais sou formado em economia, estou participando dessas coisas tudo, minha mãe não é muito participativa mais gosta de influenciar a gente, ela não é muito participativa porque é muito tímida. Assim, a única festa que ela gostava era a festa do rosário, mais teve uma sequência de anos que ela não pode participar. Mais sempre eu acho que eu sou assim por causa de mainha, ela é introvertida, mais sempre procurou ser extrovertida pra gente, tanto

188 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

para mim quanto para meu irmão. Sou comunicativo, sou professor, ensino história, procuro não só me limitar aos livros didáticos, mais trazer a história para a realidade. Sou muito festeiro, solteiro [...] a gente nasceu negro e foi criado vendo o lado de ser negra, está entendendo Alba? ... de ter orgulho da cor que a gente tem. Não ter vergonha de esconder atrás, e dizer que eu sou moreno escuro não, eu não sou mesmo moreno escuro, eu sou negro. Existe essa cor por amor de Deus Alba, a gente sempre foi bem consciente, é participar da Irmandade, a gente aprende a aceitar, a viver e a levar isso para a vida.

Francisco comenta pouco sobre sua vida, mas fala das relações com a mãe, com a família, da participação na Irmandade e do trabalho, de forma pontual. Ele entrou para a Irmandade devido a sua história familiar e o sentimento de pertença ao grupo. Ele coloca que herdou esse sentimento da família, que tem orgulho de participar da Irmandade e comenta que, com o tempo, a sua ligação com ela tornou-se mais forte. É esse conjunto de valores culturais que vão responder pela identidade dos afrobrasileiros no sertão da Paraíba. Esse sentimento de pertença faz que os povos africanos cresçam com a consciência de que são diferentes do outro. Muniz Sodré11 diz que a “ideia de cultura aqui vale a de uma unidade de identificações”. A cultura é uma maneira de abordar o real. Por isso mesmo, numa religião de brancos, o negro participa do sagrado dele ou se aproxima com os olhos e concepções de sua cultura. Assim, a identidade cultural anuncia e provoca um sentimento de pertença12.

Em relação a Francisco, entendemos que ele atribui o sentimento de pertença à herança familiar e que, na vivência no grupo, esse sentimento cresce. Ele refere, ainda, que, aos poucos, com a sua participação na Irmandade, foi descobrindo que esse era o espaço dele. Sua participação na instituição antes fora limitada, devido aos estudos e ao trabalho, mas, atualmente, ele pode se dedicar mais intensamente à Irmandade, onde aprendeu a lutar contra o racismo. Apesar de não declarar sua identidade negra, foi na Irmandade que o ser negro foi fortalecido.

Essa experiência de luta pela afirmação cultural, em meio às barreiras condicionadas socialmente, também é expressa por Manoel, um dos membros mais idoso da Irmandade do Rosário. Seu Manoel (nasceu em Pombal-PB, negro, aposentado e zelador da Igreja do Rosário, analfabeto, Juiz da Irmandade e Rei da Festa do Rosário). Homem simples, simpático e cativador, ele nos falou durante horas e horas, informalmente, com os seus familiares. Como se tratava de uma pessoa idosa, essa conversa inicial foi cercada de cuidados, sendo gravada posteriormente. Assim, ele fala da dificuldade que enfrenta para dirigir a Irmandade frente ao não reconhecimento da cultura de matriz africana pela sociedade.

Bem, eu sou Manoel, negro, trabalhador tenho pouca coisa a dizer, quero passar o cargo da Irmandade para outro irmão, já estou velho e tem que alguém continuar o trabalho que vem sendo feito né, é muita luta, difícil minha filha [...]sou o rei negro sem reinado. Mas tudo quando quis fazer eu fiz. Quem reina aqui somos nós.

11 SODRÉ, Muniz. Claros e escuros. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 45-47.12 SODRÉ, Claros...

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 189

Fazendo uso de poucas palavras, o protagonista Manoel (negro, nasceu em Pombal - PB, aposentado e zelador da Igreja do Rosário, analfabeto, Juiz da Irmandade e Rei da Festa do Rosário) fala seu nome e, em seguida, expressa a sua identidade, assumindo ser negro e trabalhador. Essas características são comuns aos membros da Irmandade do Rosário e a muitos negros brasileiros, mesmo que a sociedade brasileira tenha criado estereótipos diferentes, conceituando-os como malandros, marginais e ladrões, entre outros. Manoel redimensiona a sua fala sobre sua vida para a Irmandade e anuncia a passagem de cargo que fará no futuro. Ele lembra que a Irmandade é um espaço de luta, assume-se como rei da Irmandade, mas sem reinado. Devido ao preconceito da sociedade, ele não consegue ter um reinado, pois não lhe é permitido ser rei na sociedade branca, razão por que seu reinado é na Irmandade, onde todos reinam. O retorno desse reinado africano, através da Irmandade, também é lembrado por Raimundo (falecido em Janeiro de 2008; sua última participação na Irmandade deu-se em outubro de 2007, nas apresentações dos Congos na Festa do Rosário), ao compartilhar sua história de vida nesta pesquisa:

Minha filha, dançar, pular e cantar no grupo me torna feliz. Eu sou tudo isso ai, sou um negro feliz, feliz por está no grupo. Quando faço isso parece que estou vivendo o que os meus antepassados viveram no reino deles, só que agora é diferente, a gente tem mais liberdade, naquela época à coisa era mais difícil, neguinho era preso por dançar a dança dos Congos, quer dizer hoje as pessoas deveriam valorizar mais, mas tenho fé que ainda irão. Pois, a situação sempre muda, nasci no sítio, trabalhava de sol a sol e hoje, trabalho pouco, porque sou aposentado, daí sobra mais tempo para participar do grupo, isso é que é vida minha filha, trabalho escravo não é vida para ninguém. Agora, você está estudando para fazer isso ai, você pode ter uma situação melhor ainda do que a minha, todos somos diferentes você não é eu e eu não sou você, mas muita coisa só depende da gente, entende para mudar e melhor o grupo?

“Seu” Raimundo assume ser negro e sua herança africana. Esse reconhecimento é um ato político, pois, ao afirmar a identidade de afrobrasileiro da Irmandade, ele apropria-se da memória, da história e da cultura de matriz africana, como elementos de sua identidade. Mesmo admitindo a importância da educação escolar (ao mencionar a melhoria de vida através dos estudos), é no espaço das Irmandades onde se celebram e se vivem as práticas de matrizes africanas (do reino africano), que nem lá se é possível viver e nem essas práticas aqui podem ser iguais às de lá. Assim, a África (o local do reinado mencionado por Manoel e por Raimundo) deve ser considerada no processo de construção identitária do afrobrasileiro, mas é impossível recuperar a sua totalidade original13.

Na fala de Raimundo, ainda podemos encontrar a noção de diferentes identidades no mesmo grupo. Ele e a pesquisadora fazem parte da Irmandade, mas Raimundo enfatiza que não são iguais. Além disso, deposita esperanças de melhorias para o grupo através dos estudos (destaca “você está estudando”) dos membros da 13 PINHO, Patrícia de Santana. Reinvenções da África na Bahia. São Paulo: Annablume, 2004.

190 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

Irmandade que conseguiram chegar à escola e à universidade. Por isso, esse retorno dos membros da Irmandade após os estudos tem sido uma variável comum nas Irmandades do Sertão Paraibano, o que justifica o seu grau de compromisso. Assim, nossa hipótese da importância da educação escolar para a construção das identidades dos membros da Irmandade passa a ser considerada. Essa mesma felicidade que acompanha Raimundo, por participar da Irmandade através dos Congos, também é expressa por Severino:

Severino pra mim é uma pessoa boa, um cidadão de bem. E eu gosto de fazer o que eu faço, tenho três profissões, sou locutor, gosto muito de fazer esse trabalho, sou guarda e também faço outra coisa que é dançar nos Congos, uma coisa que vem desde meus tios. Ele fazia naquele tempo, ele cantava, dizia como fazia. É isso, Severino é isso. Sou amigo, uma pessoa que gosta de fazer amizade.

Ao falar de si, Severino (negro, nasceu em Pombal - PB, guarda municipal e locutor, ensino médio completo, secretario/ embaixador dos Congos da Irmandade do Rosário de Pombal) descreve-se como um homem trabalhador e que faz o que gosta. A participação nos congos é uma das atividades mais prazerosas para ele, pois criou laços de amizade que o tornaram uma pessoa melhor. Refere-se a si mesmo como um “cidadão de bem”, e a sua iniciação na Irmandade se deu através dos tios. Isso indica que, na Irmandade, existe um entrelaçamento familiar, o que pode colaborar para o sentimento de pertença ao grupo.

O resgate da história do grupo, por intermédio da pesquisa ou pelas lembranças dos mais velhos da Irmandade, podem também auxiliar na construção desse sentimento de pertença. A respeito disso, vejamos o que assevera Geraldo:

Eu descobri que nós tínhamos toda uma história idêntica [...] que tinha como enfrentante, como você sabe, um negro, fundador, criador, Manoel Cachoeira, um negro, um ex-escravo [...] Olha, professora, eu me sinto com uma responsabilidade muito grande, na verdade, eles foram observando o nosso trabalho, eles sabiam que eu me esforçava, tomei conhecimento sobre os congos e a Irmandade [...] Então me sinto muito feliz, porque sei que estou no caminho certo,o grupo ele vai ter mais algumas oportunidades.

Ao se identificar com o fundador da Irmandade do Rosário, que era negro e ex-escravo, Geraldo (negro, nasceu em Pombal-PB, vereador, ensino médio, Rei dos Congos, da Irmandade do Rosário de Pombal) expressa sua identidade. Assim, o retorno à figura de Manoel Cachoeira é um fundamento de construção do sentimento de pertença e da identidade afrobrasileira, da relação da sua história do tempo presente com a história vivida por Cachoeira, no contexto da escravidão visível do Brasil, pois, hoje, existem outras formas de escravidão, de castigos psicológicos, como por exemplo, a discriminação racial. Para ele, coordenar os Congos é uma tarefa de responsabilidade e de respeito à cultura afrobrasileira. Manter um diálogo constante com os membros do grupo contribui para que ele ensine/aprenda também sobre a história dos Congos. Assim, a educação escolar também é um elemento da

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 191

construção da identidade do grupo, cuja aprendizagem é reforçada ao se colocar como importante para manter, através do registro escrito, a história do grupo.

O Estatuto da Irmandade do Rosário da cidade de Santa Luzia - PB, ao reger os requisitos para associados, não específica características etnicorraciais. No entanto, todo o seu texto se refere a “nosso povo”. Por isso, entendemos que o interesse da Irmandade é deixar aberto para que os participantes se reconheçam como negros e construam a identidade afrobrasileira no processo de vivência na Irmandade. Assim, é possível afirmar que, na Irmandade, o que importa não são as características etnicorraciais, mas a identidade afrobrasileira, politicamente assumida.

Esses aspectos aqui abordados nos levam a considerar que ser afrobrasileiro é continuar a lutar por sua negritude, e que não são os elementos biológicos nem as teorias sobre identidade, etnia e raça que determinam a identidade afrobrasileira, mas o sentimento de pertença à cultura de matriz africana. Por isso essa identidade deve ser construída também politicamente, lutar, viver, defender e apropriar-se do que é afrobrasileiro. É assim que os protagonistas constroem e afirmam suas identidades.

Portanto, no espaço das Irmandades do Rosário do Sertão Paraibano, aprende-se a lutar pela igualdade, pois, na esfera social, a recusa de um reconhecimento da dignidade humana pode acarretar um prejuízo para aqueles que são excluídos. A projeção de uma imagem inferior ou depreciativa, em função do racismo - é a sustentação da idéia de superioridade de uma raça qualquer sobre outra. O artigo 5º, inciso XLII, da Constituição Brasileira, diz que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”-, que desvaloriza a imagem coletiva do afrobrasileiro, pode tornar-se interiorizada. Essa condição sugere que os afrobrasileiros reconheçam o poder das associações negras, dos movimentos negros e das Irmandades como forma de fortalecimento e de espaços de lutas para assegurar seus direitos.

Os afrobrasileiros poderão superar essa exclusão, questionando o modelo imposto, fortalecendo os seus laços ancestrais, constituindo-se enquanto militantes de movimentos negros ou associações negras. Isso fará com que se conscientizem de que são vítimas de um estigma milenar e perceberão que são diferentes do modelo europeu. Só assim se sentirão impelidos a procurar as mesmas condições de direitos do homem europeu.

Para que possa, firmar sua identidade, os afrobrasileiros não precisam repetir o mesmo modelo de conduta recebido pela cultura branca, o qual deseja extinguir. Eles devem permanecer numa militância constante, reconstruir os valores de sua cultura e de sua história. Os que assumem essa postura militante, tais como os negros da Irmandade do Rosário do Sertão Paraibano, buscam maneiras de articular seu senso de negritude, em um plano de ação e de compromisso como participantes de um grupo. Deixam de se referenciar no preconceito e na condição de oprimidos14, para construir e conquistar espaços que se estendem desde as Irmandades à participação direta na política brasileira, lutando por políticas públicas que lhes assegurem o direito de viver dignamente com seus diferentes.

14 FREIRE, Paulo. Conscientização,teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Morais, 1992.

192 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nas Irmandades do Rosário do Sertão Paraibano, a construção da identidade afrobrasileira acontece por meio de um processo mutável e relacional, com base na realidade em que esta inserida. Por isso não podemos remeter a noção de cultura dessas irmandades a uma ideia de África de antes, porquanto sua base é a cultura de matriz africana, reconstruída a partir de um novo espaço brasileiro. Assim, essa identidade afrobrasileira passa por processos de reconfiguração e ressignificação. Portanto, para entendermos a delineação desse processo, temos que considerar a história, a memória e a cultura como elementos de construção dessa identidade afrobrasileira, que é embasada, também, pelos saberes construídos através da troca de experiências entre velhos e jovens. No entanto, esses saberes passam a ganhar fundamentos mais consistentes quando seus elaboradores procuram vinculá-lo à educação escolar.

Com isso, consideramos que o sentimento de pertença é fundamental para a inteiração do participante com o grupo na construção da identidade afrobrasileira, vinculando-se a individualidade ao coletivo e, ainda, que esse processo de construção se dá pela apropriação cultural e de forma consciente. Portanto, a construção da identidade afrobrasileira é alicerçada pelo sentimento de pertença ao grupo. A afirmação dessa identidade permite que reescrevamos a história das Irmandades do Rosário do sertão paraibano, “dando voz” aos que, historicamente, foram silenciados. Para isso, é necessário valorizarmos a história afrobrasileira, com base nas experiências dos seus membros, articuladas ao seu fazer, a sua prática e ao seu contexto.

Reafirmamos, portanto, que os afrobrasileiros devem conhecer e compreender a cultura e a história africana e conhecer, através da memória dos mais velhos, a trajetória de lutas e de resistência do processo de formação da identidade afrobrasileira. Assim, esta discussão aponta a possibilidade de se construir uma história viva da cultura afrobrasileira, cujos protagonistas são os próprios membros das Irmandades, os quais descrevem sua história de lutas e de resistências.

***

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 193

RESUMO

As mutações do mundo contemporâneo relacionadas às questões teóricas, políticas, tecnológicas e culturais fizeram com que o conceito de “identidade” tivesse uma maior ressonância no interior e no exterior dos meios acadêmicos, perspectivando novos modos de entendermos a interação entre as experiências subjetivas do mundo e os cenários históricos e culturais onde se formam essas subjetividades frágeis e significativas”. Este artigo propõe discutir a construção da identidade afrobrasileira a partir das falas de membros das Irmandades do Rosário do Sertão Paraibano. Para tanto, utilizamos a pesquisa do tipo etnográfica que trabalha com a cultura por meio da oralidade no seu ambiente natural, permitindo que os sujeitos construam a História e a história de vida, nos espaços sociais e culturais, que se expressa por meio da fala como exteriorização natural da memória. Nesse sentido, articulamos a etnografia Palavras Chave: Negros; Identidade Afrobrasileira; Afrodescendência; Sertão Paraibano; Lutas e Resistências.

ABSTRACT

The contemporary world mutations related to theoretical, politics, technological and cultural subjects, changed the “identity concept and got a larger resonance in interior and exterior of the academic areas, it present new ways for we understand interaction between the subjective experiences on world and the historical and cultural sceneries where they are formed those fragile and significant subjectivities”. This article proposes to discuss the Afro-Brazilian identity construction, starting from Rosario Fraternities members speeches in Paraíba Country region. For that, we used ethnographic research, it works with oral culture in its natural atmosphere, and allowing subjects build the History and the life history, in social and cultural spaces, it is expressed speech as natural memory exteriorization.

Keywords: Black; Afro-Brazilian Identity; Afro-descendant; Paraíba’s Countryland; Fights and Resistances.

194 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 195

A ARTE DE CONCEBER/ ARTES DE CONCEIÇÃO:

ESCRITURAS DO MATERNO EM IMAGENS DE INFANTICÍDIO

(PARAÍBA, 1960-1970)1

Gilmária Salviano Ramos2

INTRODUÇÃO

Quando analisamos os discursos sobre casos de infanticídios em três jornais locais do Estado da Paraíba, Diário da Borborema, O Norte e A União, entre as décadas de 60 e 70, observamos como uma intricada rede discursiva fora constituída em torno do que foi visto como um crime. Vizinhos, curiosos, testemunhas, policiais, investigadores e jornalistas, estes considerados como agentes da ordem, empenhavam-se em descobrir a responsável pelo achado do natimorto, em desvendar uma suposta “a verdade”, numa aparente tentativa de prevenir ou eliminar certos comportamentos vistos como nocivos à sociedade. Desde o momento da denúncia até o levantamento dos testemunhos sobre o achado, aos poucos, paulatinamente ia se constituindo naquele espaço a configuração de um crime, pelo qual alguém deveria ser investigado e punido.

As suspeitas, a princípio, poderiam recair sobre qualquer um, mas bastava uma averiguação mais detalhada dos agentes da ordem sobre o acontecido para a identificação da autoria do delito. Poderia ser uma mulher que residisse próximo ao local do achado, que estivesse apresentando sinais de gravidez ou que recentemente tivesse sido hospitalizada com sintomas desta natureza, já que os indícios no corpo da criança poderiam levar à diferenciação entre um aborto espontâneo ou infanticídio. Bastava, para tanto, que um médico legista entrasse em cena e desse o seu parecer técnico, apontando para a suposta causa mortis do recém-nascido; o resultado do laudo poderia influenciar ou não na absolvição das mães abortivas ou infanticidas. Contudo, o episódio citado é destacado por outros contornos e dimensões quando extrapola o campo médico e o jurídico, chegando às páginas dos jornais. O objeto e o sujeito do crime são redimensionados e reconstituídos por uma rede discursiva que exacerba as dimensões do ocorrido, articulando o fato a toda uma concepção discursiva moralista, produzindo diversos estereótipos acerca da figura feminina nas décadas de 1960 e 1970 no Estado da Paraíba.

Nesta direção, é que os discursos veiculados pelos articulistas dos jornais da Paraíba apontavam, ou seja, os jornalistas não conseguiam conceber o fato de mulheres que teriam sido desde a infância orientadas e educadas para, como uma obra de arte, pincelar os seus desejos, suas percepções, suas emoções com o único objetivo de se tornarem boas mães, viessem a se tornar o que denominavam assassinas dos filhos. E indagavam como podia ser concebível que essas “verdadeiras artes humanas” da maternidade pudessem cometer tantos infanticídios numa cidade que, segundo o cronista Cristino Pimentel, caminhava a passos largos para tornar-

1 Este artigo é resultado do trabalho de dissertação, apresentado ao Programa ao Programa de Pós-Graduação em História do Norte e do Nordeste do Brasil da Universidade Federal de Pernambuco, realizado com financiamento da CAPES.

2 Mestre em História pela Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: <[email protected]>.

196 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

se uma metrópole? Seria devido ao fato da cidade ter crescido vertiginosamente a exemplo das grandes cidades do país, como Recife, Rio de Janeiro e São Paulo? Cogitavam: “Uma cidade civilizada. Com cara de civilizada. Com gente civilizada arrotando grandeza e cultura”3 e com a sua mania de superlativos não poderia ter outro nome: Campina Grande4. Nas palavras do jornalista Luiz Aguiar, uma cidade onde o desenvolvimento teria atingido “todas as camadas da comunidade”5. Se o desenvolvimento se dava de forma tão evidente, na visão de Pimentel e de Luiz Aguiar, especialmente no plano material, o que estava acontecendo então com as coisas do espírito? Por que tanto “desregramento” e desordem, especialmente no que se referia a um suposto aspecto simbólico do sentimento materno, que parecia estar se perdendo ou sendo corrompido e malogrado por diversas práticas “monstruosas”, como o aborto e o infanticídio? Esta indagação parecia uma das principais preocupações de jornalistas, médicos, juristas, e intelectuais do Estado da Paraíba no período aqui estudado.

Esses sujeitos falantes, ocupantes dos lugares de discursos que circulavam pela cidade, os “homens da ordem”, letrados e intelectuais traziam à tona estes supostos crimes, muitas vezes movidos por indignação ou por desejos de justiça, e, num silêncio rompido, anunciavam nomes de mulheres, destinados a permanecer submersos nas águas do esquecimento. E era através de suas vozes que se constituíam discursos que queriam materializar, senão essencialmente, iluminar acerca de personagens que lhes eram até então estranhas. Desse modo, em seus discursos, médicos, jornalistas e juristas arrancavam do anonimato protagonistas de tragédias que teriam acometido vidas, mulheres infames, ou melhor, mulheres sem alma, sem “natureza”, sem normalidade, sem nome; ao falar delas, sobre e por meio delas, os discursos dos agentes da ordem pareciam articulá-las a um jogo de semelhança, de espelhamento, como se um caso pudesse refletir o outro pelo inverso, pelo avesso. As mães ternas, feitas à imagem e semelhança da Virgem Maria, nestes discursos, pareciam refletir mais a Virgem Maria às avessas, apresentando-as como “desalmadas”, “desnaturadas”, “anormais”, “víboras”, “monstruosas”, “feras”. Essas imagens pareciam articular-se a outro enunciado não tão menor em sua força de sentido: o princípio da suposta “essência” materna. Assim, o que se lerá aqui está longe de ser uma obra literária ou coisa do gênero; pelo contrário. Contudo, não nos privemos de ser atravessados pelos efeitos de realidade que as histórias narradas aqui produzem, deixemo-nos ser afetados a ponto de ouvir o choro, ver as lágrimas, sentir juntamente com as mães dores de parto, como se de algum modo, à semelhança de alguns dos agentes da ordem que, por meio de seus discursos mostravam compaixão pelas chamadas “desalmadas”, nós nos deixássemos afetar pelas artes de conceber, artes de mulheres de sobrenome Conceição. O que se lerá são histórias de personagens que estariam fadadas a passar por debaixo de todas as convenções, e, que só alcançaram a celebridade porque deixaram rastros de suas existências “monstruosas”. O que se lerá aqui é uma coletânea de fragmentos

3 Diário da Borborema, 6 mar. 1960, n. 1136, p. 7.4 LIMA, Luciano Mendonça. Cativos da “Rainha da Borborema”: uma história social da escravidão em Campina Grande. Tese (Doutorado em História). Universidade federal de Pernambuco. Recife, 2008.

5 Artigo de opinião jornalística. Polícia persegue a “Mulher-Monstro”. Diário da Borborema, 8 mai. 1974, p. 7.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 197

jornalísticos póstumos só possíveis de serem novamente postos no palco da história porque, em algum momento, alguém se interessou em tomar notas sobre estes casos; com uma câmera fotográfica cuidou de congelar imagens e de registrar o acontecido; organizar as reportagens e notícias; delegar tudo aos entregadores de jornais para que, assim como Hermes, o mensageiro que levaria a mensagem dos deuses para a compreensão dos humanos, eles levassem a notícia (ainda nas primeiras horas da matina) à sociedade “paraibana”. Enfim, fora por meio do infortúnio de suas práticas que aquelas mulheres “infames” se chocaram com o poder e entraram no campo de visibilidade de seus holofotes e foram inscritas e escritas nas páginas dos jornais da Paraíba das décadas de 60 e 70.

Nesse caminho, notemos como era construído o cenário de uma das cidades de onde teriam ocorrido os casos de infanticídio. Em um artigo de opinião escrito no mês de abril de 1963, o jornalista Ismael Marinho6 afirmava que o desenvolvimento havia chegado à cidade de Campina Grande, tendendo a torná-la uma futura metrópole. Articulado ao enunciado de que a urbe teria de crescer, prosperar, “ser pujante, dinâmica e dominar o comércio provinciano”7, essa declaração reproduzia a idéia de uma cidade privilegiada e promissora num momento em que ela mesma recebia uma leva de migrantes atraída por melhores condições de vida.

Marinho ainda indicava que a cidade devia ser cuidada como o próprio ambiente familiar. O crescimento econômico estaria associado a uma boa impressão que a urbe encarnaria e isso teria de ser responsabilidade de todos. No plano da vegetação, o jornalista afirmava que havia uma variedade de plantas harmoniosamente combinadas com a estrutura física da cidade, as “árvores frondosas, com êsse clima fabuloso, árvores entapetada de flores, irradiando alegria constantemente como se estivesse eternamente nos dias de primavera”8. Todo esse cenário promovia uma sensação de serenidade em meio ao momento de transição política por que passava o país naquele momento. Tratava-se de um período de transformações em quase todas as áreas e recorrer à beleza da paisagem natural podia, na percepção do articulista, ao menos fazer “esquecer as durezas do quotidiano”9. Os campinenses poderiam, doutra maneira, assumir uma “educação à altura do desenvolvimento”10, colaborando com a plantação de árvores que pudessem ornamentar a cidade. Reeducar as atitudes das populações com base nas condições materiais do lugar onde se morava parecia indicar para a construção da imagem que Campina acompanhava o mesmo ritmo de crescimento do país.

Assim, desde a primeira metade do século XX, as pretensões dos letrados, a exemplo de Cristino Pimentel, Elpídio de Almeida, Ismael Marinho, entre outros ultrapassavam o objetivo da construção de uma cidade em seus termos físicos, agenciando os seus discursos e iniciativas em “prol do desenvolvimento integral do Brasil”11, bem como do Estado da Paraíba. Nesta visão, a cartografia citadina teria

6 Ismael Marinho Falcão. Formou-se em jornalismo e Direito em João Pessoa. Professor universitário e autor de várias obras de Direito processual trabalhista. Disponível em: <http://www.geocities.com/Athens/Parthenon/3313/artigos2.html>. Acesso em: 21 jan. 2009.

7 Campina começou sob o signo do comércio. Diário da Borborema, 26 abr. 1963, p. 8.8 Artigo de opinião de Ismael Marinho. Diário da Borborema, 23 jun. 1964, p. 5.9 Artigo de opinião de Ismael Marinho. Diário da Borborema, 23 jun. 1964, p. 5.10 Artigo de opinião de Ismael Marinho. Diário da Borborema, 23 jun. 1964, p. 5.11 Campina Grande cidade hospitaleira e acolhedora. Diário da Borborema, 31 dez. 1964, p. 1.

198 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

de indicar uma percepção simbólica da pujança e grandeza de seus governos e, por extensão, de seus habitantes. Teria de denotar um desenvolvimento capaz de ser conhecido em todo o país. Segundo esse discurso, os caminhos para tal realização se promoveriam por via da ciência e da técnica, ou seja, pela influência que a cidade galgava através de seus investidores no setor industrial, no centro acadêmico, bem como por meio da divulgação das transformações da estrutura urbanística, sócio-política e cultural.

Essa imagem sugeria que cada vez mais a sociedade tivesse acesso ao conhecimento, para assim se libertar do ranço do atraso, visando a reduzir as dificuldades coletivas. Neste sentido, quanto maior fosse o uso da razão, maior a possibilidade de uma integração social, tendo como objetivo o desejo de progredir, de crescer e de se desenvolver. Segundo a feminista Ilka Rodrigues, aquele momento configurava-se em “plena era da tecnologia, da ciência e das novas descobertas no domínio dos seres vivos”12. A fala da feminista aparecia atrelada e cristalizada nos discursos dos letrados, constituindo a noção de que a época atravessava uma fase com características novas em todos os campos da atividade humana. Nesse mesmo caminho, o médico Francisco Brasileiro, convocava a sociedade a percorrer “os caminhos da paz com patriotismo, conciliação, liberdade, progresso, justiça, sacrifício e lealdade”13. Esse discurso indicava como o plano material estava atrelado a uma produção subjetiva nos termos de valores como “sacrifício e lealdade”.

Todavia, ao que parece, para além da preocupação com a estética da cidade, bem como os processos políticos e de ordem material, havia outras implicações que pareciam permear o pensamento daqueles letrados, a exemplo de certos comportamentos femininos que teriam destoado dos princípios da maternidade.

Dados estes primeiros comentários sobre a configuração espacial e temporal de Campina Grande/ Paraíba, buscamos problematizar: como se promoviam os debates por parte da medicina legal, da psiquiatria e da justiça em torno de casos de infanticídios, entremeados e difundidos pelos discursos jornalísticos? Indagamo-nos ainda de que maneira, por que e sob que formas os discursos promoviam um tratamento específico para as mães que não desejavam criar os filhos? Como se davam as estratégias de pedagogização dos corpos femininos entre as décadas de 60 e 70 na Paraíba?

Segundo o advogado criminalista Paulo Sérgio Leite Fernandes, a característica principal do infanticídio “é que nele o feto é morto enquanto nasce ou logo após o nascimento”14. Note-se que, na visão do advogado, não se trata de uma criança em estado completo de formação, mesmo estando com vida extra-uterina, mas sim de um feto, ou seja, um embrião no estágio de desenvolvimento intra-uterino. Todavia, em se tratando dos casos de infanticídios catalogados para a construção desta pesquisa, as mães que teriam praticado o infanticídio agiram em circunstâncias nas quais os filhos já se encontravam em estado completo de formação; na maioria das vezes elas os asfixiavam assim que nasciam, ainda na vulva, ou seja, na passagem do órgão genital.

12 Artigo de opinião Ilka Rodrigues. O problema da liderança. O Norte, 23 nov. 1975, p. 9.13 Pronunciamento no Programa “A voz dos municípios”, da Rádio Borborema. Diário da Borborema, 23 mar. 1963, p. 8.

14 FERNANDES, Paulo Sérgio. Aborto e Infanticídio. São Paulo: Sugestões Literárias, 1972, p.135.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 199

Desta forma, o presente texto busca problematizar como o discurso médico-jurídico constrói as imagens de práticas de infanticídio, e como essa prática passa a ser constituída um crime excepcional praticado somente por mães, e como tal discurso vai sendo reproduzido por outros espaços de poder, como os dos jornais locais.

ESPETÁCULOS DE SANGUE NO ESPAÇO PÚBLICO:PEDAGOJIZANDO CONDUTAS MATERNAS

Antigamente segundo rezam os livros de histórias, de cada vêz que nascia uma criança, uma fada surg[ia] no dia do batizado para assegurar-lhe as melhores alegrias no decorrer desta vida, sorte, dinheiro, amor. Outros havia, entretanto, em cujas famílias, [tinha] uma velha inimiga bruxa vingativa e má...

Praga de Feiticeira (Germana Vidal- A União)

A epígrafe acima mostra como os pares de oposição constituem um maniqueísmo exacerbado que percorre gerações a fio. Essas dicotomias configuram-se desde os tenros anos de idade da criança, quando ela costuma ouvir contos de fadas nos quais os personagens geralmente se posicionam de lados opostos: do bem ou do mal. O “mal” parece estar sempre presente, embora muitas vezes disfarçado na aparente doçura da “bruxa vingativa e má” ou da madrasta “malvada”. Não importa a dimensão e a extensão de seus significados, reapropriados por diversos personagens ou revestidos pelo tempo: os pares de oposição sempre andaram emparelhados; um opondo-se e, ao mesmo tempo, complementando a existência do outro.

De forma semelhante, os discursos dos jornais parecem apresentar essa dualidade eclesial, que aludia à presença da mãe “materna” em contraste com a mãe “monstruosa”. Essas imagens pululam em quase todas as páginas dos periódicos Diário da Borborema, A União e O Norte, seja para declamar o modelo mulher-mãe, seja para estigmatizar a mulher-infanticida; a mãe-terna ou a mãe-desalmada, como se apenas existissem esses dois modelos de mães. Como se uma fosse essencialmente terna e a outra dotada apenas de pulsões instintivamente vistas como corrompidas. Conceitos como essência e amor maternos atravessavam os discursos sobre infanticídio como se consistissem em um ato de incessante repetição, num drama que constantemente fazia parte da vida das mães, numa prática de ritualização contínua. No entanto, a questão torna-se mais complexa se considerarmos que o ato em si teria sido produzido numa dada situação, circunstância ou mesmo contingência. Tratava-se de discursos que as situavam ora como vítimas, ora como desviantes dos sentimentos maternos, articulando-as ao enunciado da mulher-mãe.

Em 1958, o Diário da Borborema direcionava suas lentes e também o seu foco narrativo para uma pequena cidade do interior da Paraíba para noticiar um “caso dos mais revoltantes”15. O acontecimento teria deixado a “população revoltada”, sobretudo porque, segundo o jornal, teria sido a primeira vez que ocorria um fato daquela natureza naquela comunidade.

Tratava-se de uma matéria intitulada “Desenterrada e salva, milagrosamente, a criança”, a qual noticiava que uma mulher, Francelina Maria da Conceição, de 19

15 Diário da Borborema, 10 jul. 1958, p. 8.

200 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

anos, solteira, residente no sítio Cardeiro, no município de Soledade, “temendo as conseqüências de um desencaminhamento da vida”16 teria enterrado o filho em um buraco de formigueiro, alguns minutos após o parto. Possivelmente num momento de dores e aflições motivados pelo medo de ser descoberta. Quatro horas depois do acontecimento, o caso teria sido levado ao conhecimento do sargento Francisco Gonçalves Dias, comissário daquele município, o qual teria tomado “imediatas e oportunas providências”, inclusive comparecendo ao local.

O referido comissário, ao saber que o “feto” teria sido enterrado em um formigueiro, determinou que ele fosse desenterrado. Todavia, segundo a reportagem, “para espanto geral” não se tratava de um feto, mas de uma “inocente vítima [que] ainda vivia”; isto porque na precipitação das palavras repousa freqüentemente um erro de análise. A criança teria sido rapidamente colocada para fora da sepultura e logo após assistida pelos médicos, “apesar de seu estado de saúde não expirar cuidado”17. Segundo o periódico, “a desnaturada mãe foi prêsa no local do crime e quando lhe comunicaram as ocorrências, teria “tranquilamente” declarado: Agora, não há outro jeito, vou criar o menino”18. Devido à tentativa de infanticídio, ela teria sido prontamente punida por meio da prisão.

Com base no episódio observam-se indícios de como se dava o tratamento à mãe que tentava se livrar do filho. A afirmação “temendo as conseqüências de um desencaminhamento da vida” sugere indícios de como se figuravam o controle dos desejos e a disciplina do corpo. Tomando por base a maneira como se usava o corpo, as maneiras de falar sobre ele e de interpretar suas mensagens temos uma visão de como era operacionalizada a normatização e como os princípios morais eram instituídos naquela sociedade. “Um desencaminhamento da vida” denunciaria o fato da mulher ter mantido relações sexuais estando fora da lei do casamento, o que seria classificado como um ato ilícito segundo os princípios da religião, e da justiça, mas, sobretudo da moral. O corpo seria pensado naquela configuração social como um conjunto de leis morais, formado por um regime de discursos que o constituíam. Segundo Elisabeth Meloni Vieria,

ao longo da história da humanidade, o corpo feminino tem sido tratado como especialmente ameaçador para a estabilidade moral e social. Nas diferentes sociedades, esse corpo tem sido regulado através das normas, sejam elas baseadas em crenças mágicas, religiosas ou médicas19.

Contudo, é possível observarmos que o enunciado mais importante contido na matéria do jornal anteriormente citado não seria apenas o de disciplinarização dos corpos femininos, mas a própria relação infanticídio versus “natureza” feminina, ou de “essência” materna, isto porque com base nas práticas sociais e culturais, Francelina M. da Conceição estaria destinada a conceber e ser mãe. Em outras palavras a questão de como esta mulher, arrebatada por um acontecimento, a gravidez fora do casamento e suas possíveis conseqüências dentro daquela sociedade na qual vivia, produz outras práticas que a desarticula do enunciado mulher-mãe. Ou seja, ao que 16 Diário da Borborema, 10 jul. 1958, p. 8.17 Diário da Borborema, 10 jul. 1958, p. 8.18 Diário da Borborema, 10 jul. 1958, p. 8.19 VIEIRA, Elisabeth Meloni. O desenvolvimento da tecnologia. In: __________. A medicalização do corpo feminino. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2002, p. 25.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 201

parece, a grande questão aqui é a tentativa do jornal de enquadrá-la e articulá-la a outro conceito, o da “mulher monstruosa”.

Com base no jornal, a vida de uma jovem de 19 anos foi marcada por uma “fatalidade” em razão de ela ter concebido um filho “indesejado”. O fato de ter gerado a criança a obrigaria a se “conformar com o destino”: “agora, não há outro jeito, vou criar o menino.” Nota-se neste caso como a maternidade era vista, pelos articulistas do jornal, mais como uma condição natural e menos como uma satisfação em si. O corpo de Francelina da Conceição estaria destinado a reproduzir, o que faz jus as palavras de Tania Navarro Swain, ao afirmar que “(...) a mulher torna-se corpo inteligível enquanto mãe, pois as significações atribuídas ao feminino conferem-lhe um sentido unívoco: mulher-mãe, da qual a maternidade revela seu ser profundo, sua própria razão de ser”20.

Embora, neste trabalho, não seja foco de análise problematizar os motivos pelos quais as mães praticavam o ato de infanticídio ou as razões que pressionavam mulheres destinadas a serem mães a cometerem o que era visto e chamado crime, a maioria das mulheres neste trabalho desenvolvido na dissertação, envolvidas nesse tipo de episódio como o que vimos acima, eram pobres e tinham de trabalhar para se sustentar e ajudar suas famílias, não querendo com isso justificar o fato de elas decidirem se livrar dos filhos, ou tampouco que tal condição era determinante para suas práticas.

O objetivo aqui consiste em mapear um breve perfil das mulheres para que ao menos alguns de seus vestígios não se percam na penumbra de seus atos, em razão da relevância que damos as suas práticas. Com base nas matérias jornalísticas, parte delas morava na zona rural e se deslocava para trabalhar na cidade como empregada doméstica, e nesse espaço urbano elas acabavam se relacionando com os patrões. Outras teriam engravidado em razão de serem estupradas ou “defloradas” pelos supostos sedutores. Havia também aquelas que teriam se envolvido com os namorados e, logo em seguida, teriam sido abandonadas. E, também as que eram casadas e que, por isso mesmo, mantinham uma relação que permitia a elas ter quantos filhos desejassem, mas algumas alegavam cometer o infanticídio como forma de planejar a família.

Cabe também ressaltar que naquele período marcado pelo domínio do regime militar, impunha-se um modelo de família pautado na idéia de futuro promissor para a nação. Como vimos no primeiro capítulo deste trabalho, a criança era especialmente valorizada, assim como as mães, o que nos fornece indícios para problematizar como se promovia a política de planejamento familiar, tema do nosso próximo capítulo. A preservação da honra e o pudor como forma de continuar convivendo socialmente eram, comumente, os motivos alegados pelas mulheres para justificarem as práticas de aborto ou infanticídio.

Podemos perceber como no caso narrado acima, os discursos mobilizados pelas matérias jornalísticas investiam na pedagogização das condutas femininas com base na representação da maternidade. Tal representação, nas palavras de Maria Izilda S. de Matos, “transbordava seu caráter biológico para abarcar um significado 20 STEVENS, Cristina. Maternidade e feminismo: diálogos na literatura contemporânea. In: __________. Maternidade e Feminismo: diálogos interdisciplinares. Organizadora. Florianópolis: Ed. Mulheres; Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2007, p. 223.

202 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

social, segundo o qual deveriam ser desenvolvidos os ‘sentimentos maternais’ que justificariam a dedicação aos filhos”21. O modo como as notícias sobre infanticídios eram veiculadas nas páginas dos jornais parecia querer reeducar determinados comportamentos, que por sua vez contradiziam os discursos pautados pela idéia de “essência” materna.

Eis uma nota do Diário da Borborema na manhã de maio de 1960, que chegava às bancas trazendo outra manchete com o seguinte título: “Achado Macabro”22. O título já indicava um sentido depreciativo do que seria o conteúdo da matéria. Tratava-se de um recém-nascido, cujo “antebraço” havia sido encontrado na Rua Quebra Quilos. Aquele achado teria se tornado um “denso mistério [que] envolve o fato até o momento”23, pois as pistas que teriam levado a encontrá-lo foram a presença de urubus, que supostamente teriam deixado o membro do recém-nascido no “oitão” próximo à residência do Sr. Sabino de Souza Lima. E ao ver do que se tratava, o senhor logo comunicou o fato à polícia para que fossem feitas as “diligências a fim de investigar a origem do achado”24.

Mais depressa possível, atuando sobre os detalhes do ocorrido, tomou parte nos trabalhos de investigações uma equipe de reportagem do jornal, que logo buscou entrevistar “diversas pessoas residentes” próximo ao local onde fora encontrado o membro da criança. Contudo, nada teria apurado nem mesmo “o menor indício que conduzisse uma pista”. Segundo o repórter, que tomou como base o tamanho do membro encontrado, tratava-se provavelmente de uma criança de aproximadamente seis meses de idade, “parecendo pelas características apresentadas ter nascimento normal com diversas manchas de mercúrio cromo”25 encontrado no membro.

Parece ter sido a marca de mercúrio que conduziu a reportagem à Maternidade Municipal, onde a equipe verificou que naquele dia as duas únicas crianças que haviam falecido tinham sido sepultadas no cemitério do Monte Santo. No entanto, para os curiosos que estiveram no local, parecia tratar-se de um caso de infanticídio26 e o corpo poderia ter sido atirado às águas do Açude Velho, onde urubus teriam encontrado o antebraço, abandonando-o na rua Quebra Quilos. Em razão disso, levantou-se a hipótese de infanticídio num primeiro momento, contudo fora descartada pela imprensa. Possivelmente esta era uma tática, naquela ocasião,

21 MATOS, Maria Izilda Santos. Delineando corpos: as representações do feminino e do masculino no discurso médico. In: MATOS, Maria Izilda Santos & SOIHET, Rachel. O corpo feminino em debate. São Paulo: Editora da UNESP, 2003, 112.

22 Diário da Borborema, 19 mai. 1960, p. 8. Essa mesma matéria foi registrada literalmente pelo jornal oficial A União. Fundado em 1882, esse jornal foi criado tendo como objetivo principal atender aos interesses do governo do Estado. Cf. Encontrado em Campina Grande Antebraço de Recém-nascido. A União, João Pessoa, 20 mai. 1960, p. 4.

23 Diário da Borborema, 19 mai. 1960, p. 8.24 Diário da Borborema, 19 mai. 1960, p. 8.25 Diário da Borborema, 19 mai. 1960, p. 8.26 De acordo com o Manual de Direito Penal, o conceito de infanticídio consiste em um homicídio privilegiado, cometido pela mãe contra o filho em condições especiais. O infanticídio é definido no Código vigente nos seguintes termos: “Matar, sob a influência do estado puerperal o próprio filho, durante o parto ou logo após: Pena- detenção, de dois a seis anos” (art. 123). Cf. MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal. 22 ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 88. É importante ressaltar que a definição desse conceito no referido artigo acerca do ato de infanticídio cometido apenas pela mulher e não pelo o homem, indicam possivelmente uma hierarquia de gênero, desigualdades de gênero no qual prescreve uma lei revestida de um conceito atribuído somente a mulheres.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 203

para acalmar os ânimos das pessoas, diante das diferentes versões e dúvidas que pairavam “nos espíritos de quantos ali compareceram”27.

Segundo o jornal, ao tomar conhecimento do episódio, os vizinhos divulgavam-no chamando a atenção da sociedade. As dúvidas sobre quem teria cometido o ato resultavam do intuito de colaborar com as investigações e de promover uma ação política junto às autoridades públicas, com o apoio da polícia. Noutras palavras, pode-se afirmar que, com esse tipo de atitude, a justiça colocava em prática a concepção do infanticídio, por esse ser definido como um delito social, praticado na quase totalidade dos casos por mães solteiras ou mulheres abandonadas pelos maridos. Talvez por se tratar de um delito social, a reportagem responsável por investigar o ocorrido não se contentou com as informações obtidas através dos moradores que residiam próximo ao local onde fora encontrado o antebraço da criança. As investigações combinadas com os depoimentos pareciam dar ao fato um caráter de problema de ordem pública. Os repórteres, diligentemente, se deslocaram até a Maternidade Municipal em busca de indícios que comprovassem um caso de infanticídio; senão naquele trágico dia, pelo menos em dias próximos.

Observamos como o jornal noticiava detalhadamente o caso. Ao tomar como referência as manchas de mercúrio cromo no corpo da criança, a equipe mostrava como a partir daquele indício poderia chegar-se ao responsável pelo ato. Além disso, teria investigado pessoas próximas que tomaram conhecimento do fato, valendo-se de que o caso teve grande repercussão, o que nos leva a perceber como o articulista buscava investir na pedagogização das condutas femininas, reforçando o conceito de maternidade através da exposição pública da mãe. Ao que parece, a reportagem assumia naquele caso a própria função dos investigadores de polícia. Punia-se o corpo, antes mesmo de identificá-lo. O modo como os jornais locais noticiavam o acontecimento parecia querer atingir ao corpo social. Ao que nos parece tratava-se de “sistemas de conexão direta entre as grandes máquinas produtivas, as grandes máquinas de controle social e as instâncias psíquicas que definem a maneira de perceber o mundo”28. Isso porque não bastava divulgar o caso, mas também mostrar as formas de tratamento que as mães que infringissem a lei do materno poderiam receber. Tal tratamento só era possível devido ao modo como a sociedade tinha assimilado a maneira padrão de comportamento das mães. Assim, foi mobilizada toda uma rede discursiva em torno da suposta praticante do delito, o que nos leva a perceber que a

subjetivação dessa prática, como criminosa, contou certamente com a divulgação que os casos recebiam pela imprensa, pela ação policial, bem como as próprias sessões de julgamento, tornando-se, assim, instrumento de uma pedagogia que divulgou esse conhecimento a uma parcela mais ampla da população.29

Outro infanticídio registrado pelo Diário ocorreu em 1962, na cidade de Sousa,

27 Diário da Borborema, 19 mai. 1960, p. 8.28 GUATTARI, Félix & ROLNIK, Suely. Subjetividade e História. In: __________ & __________. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis:Vozes, 2005, p. 35.

29 PEDRO, Joana Maria. Práticas proibidas: práticas costumeiras de aborto e infanticídio no século XX. Florianópolis: Cidade Futura, 2003, p. 88-89.

204 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

que teria sido “tomada de revolta”30 quando circulou a reportagem de que fora encontrado, por volta das cinco horas e meia da manhã, o feto de uma criança, já em estado de putrefação, sendo comido por três porcos, à beira de um matagal. A fetidez pútrida resultante do corpo da criança e a cena dos animais dilacerando os pedaços certamente não impressionaram mais os sentidos dos repórteres do que a sede de justiça promovida por uma testemunha, Olivia Martins dos Santos. Esta teria sido a primeira pessoa a presenciar aquela “revoltante cena” e, com o auxílio de outras pessoas, a primeira também a afastar os suínos que pastavam soltos e já tinham “devorado os membros inferiores, o estômago, os braços e o rosto da inditosa criançinha, que apresentava ainda a língua fora da boca, como se houvesse sido estrangulada”31.

Logo em seguida, Olívia Martins levou o caso ao conhecimento da polícia. O comissário, comparecendo ao local em companhia do médico João Nóbrega de Figueiredo, teria adotado as providências cabíveis, localizando, inclusive, o local onde “a perversa mãe cavara uma pequena cova para sepultar a criança e de onde os porcos a haviam retirado a fim de estraçalhá-la”32. No depoimento à polícia, a senhora Olívia Martins testemunhou que a doméstica Anansita Francisca da Conceição, empregada na casa do senhor Tirbutino Martins de Sá, “até a noite do dia 11 vinha apresentado o estômago bastante crescido; e que sempre que alguém insinuava tratar de gravidez, ela mesma alegava que aquilo era apenas conseqüência de um caroço que ela tinha no estômago”33. Olívia Martins ainda teria testemunhado que a citada senhora fora a sua mercearia, na manhã do dia 12 de junho de 1962, já com o estômago muito menor. “Com o semblante contraído demonstrava sentir fortes dores e andava com visível dificuldade”. O comissário de polícia havia se encaminhado para a maternidade com o objetivo de interrogar a mulher, tendo ela declarado ao tenente José Olímpio, na presença de várias pessoas, talvez com uma expressividade incomum, que a “criança havia nascido morta na manhã do dia 12 e que a enterrara no mato com medo de sua família”34. Contudo, de acordo com o Diário, as declarações da mulher não convenceram as autoridades.

Esses espíritos tacanhos, nas palavras de Foucault, atentos à malevolência que de tudo se alimenta e do que geralmente escapa à percepção masculina, racionalizavam o crime por meio do detalhe na contabilidade moral35. Deste modo, os gestos faciais, a forma de andar e a debilidade física pareciam ser indícios fundamentais para constatar a eliminação de uma criança indesejada. Com base nos discursos dos jornais, podemos perceber como muitas delas disfarçavam a gravidez com tal maestria, durante todo o seu processo, que só eram descobertas após o parto ou após a realização de um aborto, geralmente em razão de seu estado emocional ou de doenças derivadas da prática abortiva, como veremos em outros casos aqui estudados.

Um aspecto importante que deve ser observado era que a função reprodutiva

30 Diário da Borborema, 16 jun. 1962, p. 8.31 Diário da Borborema, 16 jun. 1962, p. 8.32 Diário da Borborema, 16 jun. 1962, p. 8.33 Diário da Borborema, 16 jun. 1962, p. 8.34 Diário da Borborema, 16 jun. 1962, p. 8.35 FOUCAULT. Os corpos dóceis: In: __________. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 120.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 205

feminina chegava ao ponto de ser utilizada como propaganda política. Tratava-se de um anúncio de jornal do dia 26 de junho de 1960, edição que divulgava o candidato a governador do Estado, Janduhy Carneiro. A imagem reproduzia a idéia do amor materno enquanto uma vocação feminina, apresentando fotografias de crianças com a mãe, nas quais apareciam as seguintes inscrições: “Cabe à senhora que é esclarecida defendê-los contra a demagogia, a falta de escolas, o desamparo em que viveram até agora”. “A senhora tem grandes responsabilidades... É uma mãe de família, vive as dificuldades do casal e, sobretudo, sente a diferença dos que estiveram “DE CIMA” e nada fizeram pelo futuro dos seus filhos...”; “Use o voto como defesa”. “A defesa dos seus filhos é o nosso voto”36. Observemos a foto do anúncio logo abaixo:

Para além de um simples anúncio de propaganda, vemos por meio desse discurso um jogo de dois enunciados diferentes, mas que ao mesmo tempo se imbricavam e se articulavam entre si. Primeiro, vemos como a metáfora do corpo materno fora investida como estratégia para transmitir um efeito subjetivo, pautado pela representação de que as mães seriam o baluarte da nação, ou, simbolicamente, a própria representação política com base na responsabilidade de decidir visando uma melhor nação para os filhos. Segundo, podemos ver como o “marketing” da fertilidade parecia promover o sentido de que, ao defender o voto supostamente correto, as mães assegurariam o futuro do Estado com base na idéia da essência materna, pautada pela imagem da divindade. Esses dois enunciados extraídos desse discurso denotam como o corpo feminino era atravessado simbolicamente por valores e práticas políticas e sociais. Neste sentido, esse tipo de imagem persuadia, pelo terreno da subjetividade, a percepção de que aquelas mães que não se portassem de modo zeloso e cuidadoso acabariam indo na contracorrente do bem-estar da sociedade e, por isso, receberiam tratamento diferenciado não somente pelo mecanismo da prisão, mas também pelos discursos que rechaçavam seus corpos e condutas, tirando-lhes a capacidade de escolhas e, ao mesmo tempo, colocando-as fora da condição de cidadãs com consciência de seus deveres políticos.

A imagem estereotipada atribuída às mães infanticidas tornava-se, neste momento, talvez mais intensa em razão do modo como os jornais freqüentemente reproduziam a idéia do amor materno, produzindo sobre ele um efeito sedutor que parecia influenciar as subjetividades tanto masculinas como femininas. Na visão do Diário, todas as atitudes das mães em relação aos filhos teriam de ser entendidas como a exaltação do amor materno, sendo este refletido irrefutavelmente em todas as condutas. De outra parte, verificamos como o discurso jornalístico buscava naturalizar a imagem da infanticida ao utilizar termos que desqualificavam as mulheres, tais como “revoltante cena”, “perversa mãe”, “desnaturada”. Esses estereótipos nos permitem perceber que, ao passo que divulgava episódios envolvendo mães que praticavam o infanticídio, o Diário buscava reafirmar o modelo de mulheres-mãe em consonância ao modelo do (e)terno feminino. O caso Edifício Lisboa, registrado em 1974, analisado no primeiro capítulo e já citado neste trabalho, nos dá indícios de como o Diário polarizava as ações das mães, negando a estas a possibilidade de cometer o infanticídio em razão da concepção subjetiva do “Amor materno”.

36 Diário da Borborema, 26 jun. 1960, p. 1.

206 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

a criatura humana que mata o próprio filho para esconder da sociedade um erro que praticou, é claro que não merece perdão pelo crime que praticou. Por mais frágil que possa ser em suas decisões, a Justiça humana não terá condições de absolver ré de crime tão monstruoso quão repelente.37

Segundo o discurso do jornal, o infanticídio aparecia como um ato excepcional, sobrepondo-se a todos os demais delitos. No entanto, veremos que se por um lado o Diário divulgava que não existia punição capaz de reeducar o corpo feminino para a sociedade, por outro, o discurso médico mostrava um atenuante que não somente possibilitava a absolvição das mulheres, como também as justificariam pelos seus atos. Além disso, o jornal mostra como teriam se levantado duas possibilidades de acusação: o “erro que praticou”, isto é, o fato de ter gerado uma criança estando fora do casamento, e o segundo como conseqüência do primeiro, ter se livrado da criança. Ao que parece, era o fato de ter gerado um filho sem ser casada que aumentava para as mulheres a intensidade do seu delito. O corpo feminino parecia ser assim exaltado se tivesse articulado aos objetivos da instituição do casamento. Conforme afirma a historiadora Silede Leila Cavalcanti, desde a primeira metade do século XX essa prática social era definida como “lugar sagrado, procriador e educador das mulheres”38.

O discurso que se apresentava nas matérias não figurava uma opinião isolada, pois ele estava vinculado a outras redes de poder que reforçavam a idéia do amor materno como uma característica inerente às mulheres. Essa imagem tem sido reproduzida recorrentemente. As palavras da psicanalista Silvia Turbert, por exemplo, demonstram a promoção desse discurso fazendo parte da subjetividade feminina: “O amor maternal é, por natureza, heróico, e está disposto a realizar todos os sacrifícios possíveis. A verdadeira mãe é somente aquela disposta a sacrificar-se pelo filho”39. A fala da autora aparece colada aos discursos dos jornais, que reproduziam a idéia de existir uma essência feminina pautada pelo amor materno.

Ao estabelecer os códigos de punição sobre as infanticidas, vimos aqui como se dava a pedagogização das condutas feminina sob o enfoque dos discursos da maternidade, tomando por base os atos das mães que teriam infringido as regras da maternidade. Essa maquinaria transformava “os corpos individuais em corpo social”40. O ato de infanticídio cometido por elas, nos discursos dos jornais, inscrevia a quebra do pacto social; inscrevia o fato de que elas não pertenciam mais ao corpo social, isto em razão de certas legalidades que funcionavam na Paraíba. Assim, os seus corpos pareciam fadados a se tornarem para sempre invisíveis, individuais; eles passavam a ser vistos na relação inversa com outros corpos femininos reputados como boas mães, na medida em que as práticas de infanticídio eram publicizadas pela imprensa e os corpos femininos criminalizados pela justiça. À medida que os

37 Diário da Borborema, Amor materno. 10 mai. 1974, p. 4. 38 CAVALCANTI, Silêde Leila. Mulheres modernas, mulheres tuteladas: o discurso jurídico e a moralização dos costumes. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2000, p. 111.

39 TURBET, Silvia. Mulheres sem sombra: maternidade e novas tecnologias reprodutivas. Tradução Graciela Rodrigues. Rio de Janeiro: Record; Rosas dos Tempos, 1996, p. 113.

40 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Tradução de Ephaim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 233.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 207

códigos “civilizados” eram introduzidos e dava-se continuidade às responsabilidades pedagógicas e eugênicas que julgavam fundamentais para a ordem e o progresso do país.

As mães que ocuparam o lugar de protagonistas nas tramas da justiça, nos entremeios da medicina legal, nos espetáculos discursivos jornalísticos consistem em nomes que já nada dizem, como Luiza Francisca Maria da Conceição, Francelina Maria da Conceição, Anansita Francisca da Conceição, e tantos outros de sobrenome igual ou diferente destes. Seus nomes e sobrenomes, Maria ou Conceição, os quais pareciam articulados a um sentido universal e compulsório, significando a “Virgem, mãe em toda plenitude” que deveria carregar os filhos no ventre, alimentá-los, orientá-los em suas predicações, sustentá-los em sua paixão, assisti-los em sua morte, mães perfeitas na “essência” da maternidade.

Contudo, delas e por elas, o hino do irresistível “instinto” materno era (res)significado, (re)apropriado, denotando outro sentido: a morte disfarçada de doçura em vez da função biológica: “conceição”, conceber. E o que se ouvia dessa última era apenas um choro irrompido ou o seu ruído. Em vez da imagem mariana embalando o seu filho no braço, embalando o berço do mundo ou dos possíveis rebentos para a nação, o que se pode inferir eram mãos apressadas e, talvez, (in)sensibilizadas por conta daqueles infortúnios momentos.

***

208 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

RESUMO

No alvorecer das décadas de 1960 e 1970, o Estado da Paraíba figurava as transformações político-sociais, culturais, e também de ordem material, quais sejam: o Golpe militar de 1964, o desenvolvimento das tecnologias e farmacêuticas, o crescimento populacional, o movimento feminista, entre outras. Ao lado destas transformações estavam atreladas outras de cunho simbólico, sobretudo no que dizia respeito às maneiras de ver e dizer o mundo e as pessoas e, em especial, as mulheres-mães. O presente artigo consiste em problematizar como e por que havia toda uma construção discursiva estereotipada em torno de mulheres que praticavam infanticídio no Estado da Paraíba nas décadas de 60 e 70. Tomando como fio condutor tal objetivo, o presente texto busca descrever e analisar as condições históricas de possibilidades que construíram esse objeto enquanto crime, com sua especificidade e conceito dentro dos campos médico e jurídico. Para tanto, utilizamos como fontes principais três jornais locais, O Diário da Borborema, da cidade de Campina de Grande, O Norte e A União, da capital João Pessoa. Com base na documentação supracitada, é possível analisar as práticas discursivas que constituíam a prática de infanticídio enquanto um “crime” de mão própria, ou seja, praticado somente por mães acometidas pelo denominado estado puerperal, circunstância atenuante que, segundo o conceito médico-jurídico, pode culminar no ato de infanticídio durante ou logo após o parto.

Palavras Chave: Infanticídio; Imprensa; Discurso.

ABSTRACT

At the dawn of the 1960s and 1970s, the State of Paraíba figured socio-political transformations, cultural, and also order material, which are: the military Coup of 1964, the development of the technologies and pharmaceutical, population growth, the feminist movement, among others. These transformations were towed other symbolic issue, particularly on the ways to see and tell the world and the people and, in particular, women-mothers. This article consists of any problems can be how and why there was a whole stereotypical around discursive construction of women who were infanticide in the State of Paraiba in the 60 and 70 decades. Taking as such, this text seeks to describe and analyse the historical conditions of possibilities that built this object as a crime, with its uniqueness and concept within the medical and legal fields. To this end, we used as main sources of three local newspapers, the Diário da Borborema, of city of Campina Grande, O Norte and A União of the capital João Pessoa. On the basis of the above-mentioned documentation, you can analyze the discursive practices that constitute the practice of infanticide as a "crime" of hand, mothers only practised by named State paresis irrationality, mitigating circumstance which, according to the medical-legal concept can culminate in the act of infanticide during or shortly after birth.

Keywords: Infanticide; Press; Speech.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 209

resenha

210 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 211

A CONQUISTA DA PARAÍBA SOB FOICE, ESPADA E CRUZ

Josemir Camilo de Melo1

GONÇALVES, Regina Célia. Guerras e Açúcares: política e economia na Capitania da

Parayba (1585-1630). Bauru: Edusc, 2007, 329 p.

Sob o título de Guerras e açúcares, a historiadora paulista radicada na Paraíba, Regina Célia Gonçalves, estudou um pequeno recorte da colonização da Paraíba em sua tese de doutorado, pela USP, defendida em 2004, sob a orientação da Dra. Vera Lúcia Amaral Ferlini, prefaciadora da obra. Trata-se de um belo livro da Editora da Universidade do Sagrado Coração. Apesar de seu recorte ser de apenas 45 anos (1585-1630) procura desvendar as tramas políticas para dizimar os Potiguara e obter suas terras para o açúcar, principalmente a partir do acordo de paz firmado com os Tabajara em 1585. Gonçalves fez um excelente trabalho sobre esse período incipiente da construção da Paraíba, mas o mais importante é sua premissa, a de que se criou na mentalidade local uma paraibanidade tabajarina, fruto da representação que o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano tem feito desde sua criação, em 1905. A autora tenta também desmontar este favoritismo historiográfico que deixou de lado exatamente um dos expoentes mais forte da resistência à invasão das terras indígenas, o povo Potiguara.

A historiografia paraibana contextualizada, e não mais a triunfalista que buscava uma identidade paraibana, tem, nas últimas duas décadas, mudado para uma historiografia regional acadêmica, seja de matriz da École des Annales, seja pelo viés marxista, bem como de forte influência de pesquisadores lusitanos, como António Manuel Hespanha, Pierre Cardim e outros2. Trata-se de uma revisão na História da Paraíba Colonial, tanto em nível teórico sobre o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano (IHGP), como faz Margarida Maria Santos Dias3, em sua sintética obra, como em nível de pesquisa empírico-documental e analítica, em que também se destaca Elza Régis de Oliveira4 com seu estudo sobre a subordinação da Capitania da Paraíba à de Pernambuco (já em segunda edição). Portanto, essas obras encontrarão complemento historiográfico na obra de Regina Célia Gonçalves. Esta revisão historiográfica se aprofunda, mais recentemente, graças à coleção de manuscritos do Projeto Resgate Barão do Rio Branco, em que novos autores como Serioja Mariano e Mozart Vergetti Menezes5 têm dado grande contribuição aos

1 Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor aposentado da Universidade Federal de Campina Grande.

2 Cf. BICALHO, Maria Fernanda & FERLINI, Vera Lúcia Amaral (orgs.). Modos de governar: idéias e práticas políticas no império português – séculos XVI-XIX. São Paulo: Almeida, 2005.

3 DIAS, Margarida Maria Santos. Intrépida ab Origene: o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano e a produção da história local. João Pessoa: Almeida, 1996.

4 OLIVEIRA, Elza Régis de. A Paraíba na Crise do Século XVIII (1755-1799). 2. ed. João Pessoa: Editora Universitária/ UFPB, 2007.

5 MARIANO, Serioja Rodrigues Cordeiro. Família e Relações de Poder na Capitania da Paraíba: o Governo de Jerônimo de Melo e Castro (1764-1797). Actas do Congresso Internacional Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2005;

212 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

estudos de História Colonial(ista).

Gonçalves, em apenas três capítulos, se prende ao seu recorte histórico para provar como a política suja dos colonialistas foi usada para afastar os Potiguara de suas terras. Se entendemos que o conhecimento histórico é pós-gnóstico e retrodicção, como asseveram Reis e Veyne6, veríamos que a traição dos portugueses ao chefe Zorobabé poderia ser ilustrada com outra ocorrida no século XVIII, como fizeram ao capitão dos índios, Antônio Camarão. Ou quando a autora mostra as manobras de alguns senhores de engenho para não pagar impostos e ainda fazer aliança temporária com os holandeses; usando-se do mesmo argumento, poderíamos comparar com o caso, quase sempre escondido pela historiografia regional, do senhor de engenho em Pernambuco, João Fernandes Vieira. Mas a autora coloca claro como o conflito ideológico entre os indígenas (ficar a favor ou contra os portugueses) não foi uma coisa fácil como se mostra em certos livros locais: Potiguara, a favor dos franceses, contra Tabajara, aliado dos portugueses. As tramas são complicadas e a autora resgata um momento interessante de nossa História o debate entre dois líderes Potiguara em que um defende a religião protestante (Pedro Poty, aliado aos holandeses) e outro defende os católicos (Poty Camarão, aliado aos portugueses, o celebrado das guerras contras os holandeses,cuja descendência recebeu o título de Governador dos Índios). Vai mais além, a autora, ao buscar explicar, no caso da resistência potiguara, o complexo guerra-vingança-antropofagia o comportamento deste grupo étnico em relação à aliança com os franceses e guerra aos portugueses, aliados do Tabajara, inimigos dos Potiguara.

Neste último aspecto, a autora segue um caminho vislumbrado no terceiro capítulo em que se refere a uma “verdadeira viragem teórica que caracterizou essas novas abordagens” e, que, segundo ela, foi “suscitada pela incorporação das análise de juristas, linguistas e antropólogos, que resultaram numa mudança no olhar dos historiadores (...) passaram a se preocupar, centralmente, com a reconstrução ‘por dentro’ da realidade investigada” (p. 157). Nesta vertente, Gonçalves dá a preferência às teorizações de Hespanha, embora reconheça valor na abordagem que via a colônia como acumulação primitiva de capital.

O livro apresenta dois níveis diferentes em que os dois primeiros capítulos assumem um caráter de narrativa que é de ‘recontar’ esta história, como aponta a própria prefaciadora/orientadora Vera Lúcia Amaral Ferlini (p. 16), e como se depreende dos próprios títulos. Se o o primeiro capítulo se chama “Lutas e sangue ab origine”, (em itálico, no original) e o segundo “Sob o signo da violência, a construção da nova ordem”, o terceiro capítulo se intitula “Terras e engenhos, as malhas do poder”. Ou seja, narrativa de tramas e análise de estruturas. o mesmo gênero narrativo a autora aplica neste capítulo, optando talvez por uma ‘leitura’ muito mais da Nova História (Nouvelle Histoire) do que para a segunda geração dos Annales, em que pesaria mais a análise serial, embora, como nos mostra à página 182, busque ver tendências de preço do açúcar. Gonçalves opta, então, por um equilíbrio entre esta última e a narrativa da trama. Melhor, não é simples narrativa que Gonçalves executa, mas

MENEZES, Mozart Vergetti de. Sonhar o céu, padecer no inferno: governo e sociedade na Paraíba do século XVIII. In: BICALHO & FERLINI, Modos de Governar..., p. 327-340;

6 REIS, José Carlos. História e Teoria: Historicismo, Modernidade, Temporalidade e Verdade. Rio de Janeiro, FGV, 2003; VEYNE, Paul. Como se escreve a história. Brasília, UNB, 1998.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 213

sim explicar a trama, pois como diz o historiador francês: “(...) explicar, da parte do historiador, quer dizer ‘mostrar o desenvolvimento da trama, fazer compreendê-lo”7.

Isto quer dizer que a autora circula na cartografia da École des Annales. Aliás tem sido esta vertente a sintetizadora dos trabalhos produzidos sobre Colônia em várias universidades do Nordeste do Brasil. Parece ter sido também esta compreensão de Romeiro8.

Não é à toa que se criou o fértil Encontro Internacional de História Colonial (já partindo em 2010 para sua terceira versão em seis anos), herdeiro do I Encontro Nordestino de História Colonial, que teve sua sede exatamente na Universidade Federal da Paraíba, em 2006. Portanto a vertente de Annales, que Guerras e Açúcares representa, nos vem mais diretamente de Portugal, do trabalho incansável que foi o Projeto Resgate Barão do Rio Branco9, e que tem tido continuidade através do intercâmbio com as universidades portuguesas e com o Encontro Internacional acima citado.

Muitas contradições emperraram a administração colonialista no que diz respeito à superposição de leis e de jurisdição conflitante, bem como superposições de hierarquias, devido, principalmente à peculiaridade de a Capitania da Paraíba, ter nascido Real, e não donatária, e tardiamente (1585) em relação à divisão de capitanias hereditárias de Dom João III, na década de 1530. Tratava-se de uma capitania do rei em meio às donatárias do Rio Grande, ao norte e, ao sul, a de Itamaracá. Abaixo da de Itamaracá ficava a de Pernambuco, que de fato prosperava e expandia a conquista material portuguesa, dizimando os nativos e expulsando-os para o sertão. O território da Capitania da Paraíba, como demonstra Gonçalves, resultou da incorporação, pela Coroa, em 1585, de 16 léguas da Capitania de Itamaracá devido a não ocupação da terra pelo donatário, terras estas que se alongavam até a Baía da Traição. Assim, Itamaracá, de suas 23 léguas originais, ficou com apenas sete léguas, entre a Ilha de Itamaracá e a foz do rio Goiana.

A indefinição quanto a limites e juridições colonialistas adentraram o Império, como a jurisdição religiosa sobre a Freguesia de Taquara, no território da Paraíba, que só foi incorporada à Paraíba em 1867. Portanto, no clima de guerras para o açúcar, não se trata só de conflitos de administração e jurisprudência da e para a Capitania da Paraíba, mas de um caos de mandos e desmandos, de uma territorialidade fugidia, empiricamente amorfa, mas coesa quando se tratava de exterminar os donos da terra, principalmente, os resistentes potiguaras, que, por volta de 1735, ainda se sublevarão contra os brancos, conclamando negros a matarem seus senhores e se juntarem a eles, guerreiros.

A autora também enfatiza a formação dos troncos familiares locais e suas ramificações a partir de troncos pernambucanos - Albuquerque, Cavalcanti e

7 VEYNE, Paul. Como se escreve a história: Foucault revoluciona a história. Tradução de Alda Baltar e Maria Auxiliadora Kneipp. 4. ed. Brasília: editora da UnB, 1998, p.82.

8 ROMEIRO, Adriana. Prefácio. In: OLIVEIRA, Carla Mary S.; MENEZES, Mozart Vergetti de & GONÇALVES, Regina Célia (orgs.). Ensaios sobre a América Portuguesa. João Pessoa: Editora Universitária/ UFPB, 2009, p. 9-21.

9 OLIVEIRA, Elza Régis de; MENEZES, Mozart Vergetti de & LIMA, Maria da Vitória Barbosa de (orgs.) Catálogo dos documentos manuscritos avulsos referentes à Capitania da Paraíba existentes no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa. João Pessoa: Editora Universitária/ UFPB, 2002.

214 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

Hollanda – que controlaram, em seu período, a concentração de terras e impuseram ao índio uma política de terra arrasada. No entanto, é sobre este ‘espaço colonial único’ (p. 100) a matriz cartográfica deste ‘revival’ historiográfico nordestino, que Gonçalves depõe contra as interpretações freireanas que têm gerado uma consciência de pernambucanidade e que, no fundo, têm provocado historiadores tradicionais a buscar uma paraibanidade. Não foi simplesmente uma elite pernambucana. Este tipo de consciência seria impossível à época. O que há é um corredor canavieiro (econômico), a tentativa de erigir e ou manter três ou quatro capitanias (administração) – Pernambuco-Itamaracá-Paraíba e Rio Grande do Norte, sistema que desafia a natureza: a floresta tropical substituída pelo ‘lençol monotonamente verde da manufatura açucareira’ (p. 155) (antropologia) incluindo-se nesta leitura, obviamente, as sociedades indígenas. Portanto, Gonçalves desconstrói, assim, parte desta falsa liderança/ consciência oligárquica pernambuco-freyreana.

Para o leitor leigo, ou não paraibano, por exemplo, mapas que mostrassem os territórios das aldeias tribais bem como os engenhos seriam necessários para uma maior compreensão do estudo de Gonçalves. No entanto, em anexo, a autora fornece excelentes quadros sobre sesmarias e engenhos, além de ricas informações estatísticas sobre produção e exportação açucareira.

Infelizmente, ao falar em passant da ‘guerra dos bárbaros’ (p.40) a autora não recorreu a Ireneo Joffily10 para descrever e situar o tapuia cariri. O leitor poderia perguntar sobre o resto da Paraíba de como teria sido a conquista à foice, espada e cruz. Isto não compete à autora, que se manteve fiel a seu recorte não só temporal, mas principalmente geográfico, à zona da mata diretamente ligada ao açúcar. É claro que o recorte temporal do livro é outro, mas volto a insistir no caráter do conhecimento histórico ser pós-gnóstico, portanto passível a outros níveis de retrodicção. Ou como diz Reis: “É o fim já conhecido a priori (em itálico, no original) que organiza a trama”11.

Nesta sequência de estilo, evita o período da dominação holandesa (1630-1654) mesmo que comece uma narrativa como crônica: “Corria o ano de 1644...”. O que quer mostrar é a política colonialista luso-espanhola, até 1630, embora não complete os dez anos a mais da administração espanhola (até 1640). É claro que a dominação holandesa, outra experiência colonialista, daria outra tese.

Através de seus três capítulos, seu estilo é agradável, prende o leitor ente, porque persegue os fios de uma densa trama, fruto também do seu ‘lugar’, uma paulista que tenta compreender um passado ‘exótico’, um seu não-passado, um seu não-lugar. Daí, uma narrativa atraente. Embora a temática pareça se repetir, está mais para um rondó onde cada nível de surgimento dos sujeitos históricos e ou da trama aparece em um novo patamar, complementando-o ou estendendo-o. Deixa para teorizar no terceiro capítulo, sobre a economia açucareira, reproduzindo não só excelentes estatísticas, mas incluindo seu tema na perspectiva do geral – a economia mercantil, o açúcar para a exportação. É através desta base material, a produção açucareira, que se forma realmente o que se pode chamar de ‘colônia’. E, aí, a autora recorre

10 JOFFILY, Irenêo. Notas sobre a Parahyba. Rio de Janeiro: Typographia do Jornal do Commercio, 1892.

11 REIS, José Carlos. História e Teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003, p. 40.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 215

a um conceito polêmico, o patrimonialismo, na vertente de Eduardo d’Oliveira França, para compreender a centralização da monarquia, a Paraíba no contexto do Império português.

A autora se beneficiou do contato direto com as fontes a partir do Programa Resgate Barão do Rio Branco e Arquivo Histórico Ultramarino, feito por Portugal e Brasil, através de uma rica coleção de CD-ROMs e um excelente Catálogo desses manuscritos produzido por professores da UFPB. No entanto, deu crédito ao esforço pessoal do historiador Lyra Tavares em sua copilação das sesmarias da Paraíba.

Interpretando cronistas, viajantes e padres da época, Gonçalves consegue uma síntese importante sobre a identidade indígena, dividida em sangue (soldado para as escaramuças contra estrangeiros e outros índios), substância de povoamento e sustentáculo (transformado em) da economia agrícola tanto a camponesa como a latifundiária, quando da falta de africanos seqüestrados e escravizados.

Muito importante é a Introdução onde a autora traz grande contribuição para a Historiografia ao demonstrar como o IHGP privilegiou, ideologicamente, os antigos aliados dos portugueses em detrimento dos Potiguara. É quase como uma reconstituição desta lacuna historiográfica em que a elite se perpetuou através de imagens sustentadas pelos historiadores tradicionais. Contesta ainda, a autora, a historiografia tradicional, e principalmente certo setor contemporâneo de historiadores que se digladiam em torno da fundação da capitania da Paraíba (1574, 1580?) após o massacre de Tracunhaém, cuja trama é descrita com minúcias.

A partir da leitura de Regina Célia Gonçalves, não acredito que se possa estudar a História da Paraíba como uma sucessão de fatos produzidos pela elite histórica e pela elite historiográfica para seu auto-regojizo.

***

216 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 217

entrevista

218 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 219

HISTÓRIA, TEORIA DA HISTÓRIA E CULTURAS HISTORIOGRÁFICAS:

ENTREVISTA COM ASTOR ANTÔNIO DIEHL

Entrevistadores: Cláudia Engler Cury, Elio Chaves Flores e Raimundo Barroso Cordeiro Jr.

Transcrição: Alessandro Moura de Amorim (Mestrando PPGH/UFPB)

No mês de abril de 2009 o professor Astor Antônio Diehl nos deu a honra de ser o conferencista que abriu o II Seminário de História e Cultura Histórica: 80 anos dos Annales, contribuições historiográficas (PPGH/UFPB). Com doutorado em Teoria, Metodologia e Didática da História, pela Ruhr-Universität Bochum, em 1991, na Alemanha recém unificada, cujo orientador, Jörn Rüsen, passaria a ser referência na área dos estudos teóricos no Brasil, com parte de sua obra traduzida. Astor Diehl foi entrevistado para Saeculum e discorreu sobre a complexidade do seu ofício, falou sobre o tabu da aridez da teoria e analisou os legados das culturas historiográficas e não deixou de pensar historicamente os debates contemporâneos.

Coordenador do Centro de Pesquisas Historiográficas do Rio Grande do Sul (UPF), Astor Diehl publicou, entre 1990 e 2007, em torno de trinta livros entre próprios e como organizador ou como co-autor. Em toda essa produção os temas centrais não deixaram de ser a teoria da história e as culturas historiográficas. Por isso mesmo é que Saeculum traz aos seus leitores as impressões “face ao vento” – essa é a situação metodológica de um relato oral – do nosso entrevistado para o dossiê História e Teoria da História.

Se, como disse Rüsen na introdução ao seu livro Razão Histórica, de que a teoria da história vai “além da práxis dos historiadores”, então não podemos desconsiderar que “um pensar sobre o pensamento histórico” somente poderá ser exercido pelo “eixo da racionalidade”.

Aqui temos um bom começo para a reflexão em tempos de “sociedade do ato”.

Os editores

***

Sæculum: Para sua formação acadêmica, que pessoas ou situações tiveram influência sobre sua decisão de seguir a carreira de historiador?

Astor Antônio Diehl: Bem a minha formação acadêmica, e em especial a de historiador, tem que ser colocada num contexto bastante diferente. Eu comecei a estudar na graduação já numa idade relativamente avançada comparando com os dias atuais. Comecei a minha graduação com 23 anos. Eu sou oriundo de uma família de agricultores, no interior, no Município de Estrela, no Rio Grande do Sul, o que em tese não tem nada a ver com esta opção, mas eu acho que a situação diretamente envolvida em relação à escolha foi o fato de eu ter tido um professor de história no segundo grau que efetivamente, posso dizer hoje, depois de muitos anos, me influenciou. Talvez nem tanto pelas aulas em si, mas pela forma como ele colocava os assuntos vinculados à história. E aqui eu posso abrir o coração. Na

220 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

verdade, eu não era para ser historiador. Pela tradição familiar, eu deveria ter sido agrônomo. Mas como no primeiro vestibular, o mal fadado primeiro vestibular, eu não consegui entrar para a universidade. E isso, depois de dois anos, me fez repensar, já com certa maturidade, na função que eu iria exercer. Depois disso, veio a opção por fazer história. Efetivamente, num primeiro momento se criou uma certa rusga familiar, diria assim, mas que com o decorrer do tempo, foi plenamente contornada. Então, a partir dos 23 passei a estudar história.

Sæculum: Conte-nos um pouco a sua formação de historiador, a partir do lugar social do Rio Grande do Sul, ainda hoje conhecido pela alcunha de “Estado positivista”.

Professor Astor Antônio Diehl: Olha, depois eu até posso falar da alcunha de “Estado positivista”. Podemos até usar essa expressão para o Estado da República Velha, mas a minha formação de historiador se fez num primeiro momento, na graduação, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, ainda no final dos anos de 1970 e, a partir desta graduação, ingressei imediatamente no curso de especialização em História do Brasil. Logo em seguida eu fiz o Mestrado1, também na mesma instituição, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e, em 1988, por sugestão de alguns colegas, consegui uma bolsa de estudos para ingressar no Doutorado na área de Teoria, Metodologia e Didática da História, para poder estudar no exterior, na Alemanha. Em relação à conhecida alcunha de “Estado positivista”, essa efetivamente tem uma vinculação muito importante no Rio Grande do Sul. “Estado positivista”: Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros, seus seguidores, alguns historiadores colocam isso em termos de pós 1930, com Getúlio Vargas. Evidentemente nós, hoje, podemos verificar que, talvez, o Estado do Rio Grande do Sul, junto com o Rio do Janeiro tenham sido os Estados mais positivistas do Brasil, inclusive exercendo um lugar de destaque com as idéias de Comte, ao lado de Paris, quer dizer, o Rio Grande do Sul talvez tenha sido o mais positivista em alguns aspectos ou onde o positivismo exerceu um papel doutrinário, político, partidário, ideológico, do que em qualquer outro lugar do Brasil.2

Sæculum: Quais os historiadores, estrangeiros e brasileiros, que mais marcaram a sua formação acadêmica?

Astor Antônio Diehl: Olha, se me permitirem eu vou mais ou menos colocar isso. Eu tive um excelente professor, na graduação ainda, que se chamava João José Planella. Planella era um professor que trabalhava fundamentalmente com Filosofia da História. Ele teve um papel muito importante na opção dentro da História, na

1 Publicado com o título Os círculos operários no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora PUC-RS, 1990.

2 Existe uma farta historiografia regional sobre o positivismo e o regionalismo gaúcho. Ver, entre outros, LOVE, J. O regionalismo gaúcho. São Paulo: Perspectiva, 1975; FÉLIX, L. O. Coronelismo, borgismo e cooptação política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987; FRANCO, S. da C. Júlio de Castilhos e sua época. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1988; DACANAL, J. H. & GONZAGA, S. (orgs.) RS: cultura e ideologia. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980; FLORES, E. C. No tempo das degolas: revoluções imperfeitas. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1996.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 221

área de Teoria. Em primeiro lugar, eu gostava muito das aulas dele. Eu me lembro que alguns colegas não eram tão assíduos nas aulas do professor Planella, mas ele tinha uma maneira de transmitir, sobretudo erudição, conhecimento profundo, amplo, que me aproximou da Teoria. Ele lecionava Filosofia da História com um caráter múltiplo e não trabalhava apenas a tradição francesa, mas tinha um conhecimento exemplar em relação às tradições filosóficas, as tradições históricas, por exemplo, do grupo anglo-saxônico, em especial a Alemanha, enfim a filosofia da história na Alemanha. Na pós-graduação tive outra influência muito forte, que foi decisiva nas minhas opções futuras, o professor René Ernani Gertz3, que ainda hoje é Professor da Pontifícia Universidade Católica e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ele foi meu orientador na dissertação de mestrado, mas, para além da orienta-ção, sempre foi um colega que disponibilizou tempo e espaço para que se pudesse conversar, extra-classe, temas vinculados à história.

Pois bem, em termos de historiadores estrangeiros, isso talvez tenha ocorrido um pouco mais tarde, mas eu tive contato muito especial com historiadores como Re-inhart Koselleck (1923-2006)4, que tive a oportunidade de conhecer pessoalmente. Ainda na Alemanha, outra influência importante foi o orientador da minha tese de doutoramento, o professor Jörn Rüsen.5 Na historiografia inglesa E. P. Thompson (1924-1993)6 foi um historiador, um intelectual que palpitou muito, vamos dizer assim, nas opções que eu faria depois. Parece claro que quando se faz uma tese, ou quando se estuda na graduação, passamos em revista uma série de autores. Então, não gostaria de deixar ninguém fora da lembrança, mas, de certa forma, foram estes que me chamaram a atenção, e as leituras que eu fiz deles talvez tenham sido melhor aproveitadas. Claro que, hoje, procuro dialogar com outros autores, especialmente

3 Pesquisador da temática do fascismo e nazismo no Brasil meridional. Autor de O Fascismo no Sul do Brasil: germanismo, nazismo, integralismo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987. Para os propósitos desse dossiê, ver GERTZ, René E. (org.). Max Weber & Karl Marx. São Paulo: Hucitec, 1994. A presente obra é organizada em três partes: 1) teoria e metodologia; 2) o capitalismo; e, 3) o marxismo e Weber.

4 Historiador alemão que se dedicou a investigar a teoria da história e as unidades conceituais do mundo moderno e contemporâneo. Entre seus livros traduzidos no Brasil, constam Crítica e Crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio de Janeiro: Editora da UERJ; Contraponto, 1999 [1.ª ed. alemã 1959] e, mais recentemente, o extraordinário Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Editora da PUC-RJ; Contraponto, 2006 [1.ª ed. alemã 1979].

5 Historiador e filósofo alemão, foi professor da Universidade Livre de Berlim e da Universidade de Bochum. Inicialmente traduzido no Brasil por René Gertz e, mais recentemente, teve a sua trilogia de teoria da história traduzida pela Editora da Universidade de Brasília, coordenada por Estevão de Rezende Martins. Ver RÜSEN, Jörn. Narratividade e Objetividade na Ciência Histórica. Tradução de René Gertz. In: Estudos Ibero-Americanos, Porto alegre, PUC-RS, v. XXIV, n. 2, dez. 1998, p. 311-335; a trilogia está assim publicada: RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da história I (fundamentos da ciência histórica). Tradução de Estevão de Rezende Martins. Brasília: Editora UnB, 2001 [1.ª edição alemã 1983]; Reconstrução do Passado: teoria da história II (os fundamentos da pesquisa histórica). Tradução de Asta-Rosa Alcaide. Brasília: Editora da UnB, 2007 [1.ª edição alemã 1986]; História viva: teoria da história III (formas e funções do conhecimento histórico). Tradução de Estevão de Rezende Martins. Brasília: Editora UnB, 2007 [1.ª edição alemã 1986].

6 Não há exatamente um livro de teoria da história do “empirista” Thompson, mas talvez os que mais se discutem a sua visão da história são dois que identificamos pela tradução brasileira: THOMPSON, E. P. A miséria da teoria. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981; e As peculiaridades dos ingleses e outros ensaios. Campinas: Editora da Unicamp, 2001.

222 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

com Paul Ricoeur7 e Hans-Georg Gadamer (1900-2002)8. São autores com os quais eu tenho uma espécie de identificação, não uma identidade, mas uma identificação muito grande naquilo que eu proponho apresentar, discutir, enfim. Talvez sejam esses autores me trouxeram mais dúvidas para os meus problemas de pesquisa.

Sæculum: Como você avalia a sua experiência acadêmica na Universidade Bochum, no “país da filosofia da história”?

Astor Antônio Diehl: Em outras palavras, eu vou usar um argumento aqui, eu nem sei se é argumento, mas eu vou usar uma explicação para isso. É a mesma que eu digo aos alunos, sejam eles da graduação ou da pós-graduação. Eu acho que toda experiência de estudo, em outro contexto cultural, seja noutra região brasile-ira, seja no exterior, é extremamente válida. Eu sou contra alguém fazer graduação, mestrado e doutorado na mesma instituição, ou muito próximo. Eu acho que a gente precisa exatamente romper com os vínculos, romper um pouco com os lastros, por que isso ajuda também a redefinir as próprias posições que se tem. Então, a minha experiência foi na Universidade de Bochum e, por tabela, também na Universi-dade de Bielefeld, porque Jörn Rüsen se transferiu – me parece que em 1990 – de Bochum para Bielefeld. Ele teve a gentileza de levar todo o grupo de orientandos junto com ele, continuando os seminários e as atividades acadêmicas em Bielefeld, apesar de nós termos sidos titulados por Bochum. Foi uma experiência muito rica por que lá se conviveu num contexto extremamente plural. Eu me lembro que eu tive colegas doutorandos da Alemanha, tive colegas coreanos, ingleses, poloneses e um africano que, nas conversas, são extremamente válidas, principalmente no sentido de socializar frustrações e alegrias, enfim, quando se está num contexto de país diferente. Então, esta experiência foi muito válida, ela é muito presente em mim, e fez com que, de certa forma, também eu rumasse - eu vou dizer isso com certo cuidado – para uma tradição historiográfica e teórica, muito mais vinculada à tradição alemã do que qualquer outra, ou seja, essa experiência para mim tem uma validade excepcional.

Sæculum: Em sua trajetória acadêmica, o que o levou ao interesse pela Teoria e Metodologia da História?

Astor Antônio Diehl: Eu penso que são dois pontos que se pode destacar aqui. Primeiro, no final dos anos de 1980, o debate sobre teoria, metodologia, no contexto brasileiro, ainda era bastante raro, bastante rarefeito. Poucos eram aqueles que usavam desta área do conhecimento para fazer um exercício profissional. Eu me lembro que normalmente as aulas de teoria, de metodologia, eram aulas quase secundárias, quase rifadas nos departamentos, ou seja, ninguém gostava muito

7 Filósofo e professor da Universidade de Estrasburgo, lecionou como professor convidado em várias universidades européias, nos EUA e no Canadá. Representante da “filosofia reflexiva” fez com que suas obras fossem muito lidas por historiadores. No Brasil destacam-se a publicação da sua trilogia Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, Tomo I, 1994; Tomo II, 1995; Tomo III, 1997 e, mais recentemente, A memória, a história e o esquecimento. Campinas: Editora Unicamp, 2007.

8 Filósofo alemão, com notável contribuição para os estudos hermenêuticos, autor de Verdade e método: esboços de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes, 1997; e, O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1998.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 223

desta – eu vou dizer agora – sub-área do conhecimento. Então, uma das razões que me levou à área de Teoria e Metodologia foi exatamente essa, esse vazio. Essa lacuna que existia nos debates, nos escritos e assim por diante. Eu me lembro muito bem que eram poucos. José Roberto Amaral Lapa (1929-2000)9, José Honório Rodrigues (1913-1987)10, eram os nomes da historiografia brasileira mais recente, que nos davam exatamente algumas posturas sobre as quais seria o ofício do his-toriador naquele contexto. Posto isso, acho que tem uma segunda questão ainda. Talvez tenha sido a própria experiência no contexto alemão. A Cultura Histórica e a Cultura Historiográfica alemãs são bastante assíduas ao debate, e não se faz tanta diferenciação entre o professor que ministra aula de conteúdo de história e aquele professor que tem mais inclinação para teoria, metodologia e didática da história. Para os alemães não existe esse distanciamento tão visível por aqui. E isso me apeteceu de uma forma especial, ou seja, eu imagino que um professor que trabalha com conteúdos de História do Brasil ou de História Universal, possa tam-bém, na sua disciplina, fazer um exercício teórico, um exercício metodológico, um exercício historiográfico. Então, é nessa tentativa de aproximar, de criar interfaces entre esses dois aspectos, que talvez tenha me levado a essas orientações teóricas. Há ainda um terceiro aspecto que também é passível de ser dito aqui: depois que eu entrei no curso de graduação e no mestrado, começou despertar um pouco a idéia de que eu poderia rumar para esta área. Eu não sei exatamente a que fato se deve isso, mas, enfim, começou a ocorrer uma inclinação para e, a partir daí, eu estabeleci como parâmetro, como projeto de vida acadêmica, de rumar para o contexto da teoria da história.

Sæculum: Nessa identificação e interesse pela teoria e metodologia da história, há também o interesse e a preocupação com a didática da história e uma aproxi-mação com a educação nos seus últimos projetos. A que se deve isso?

Astor Antônio Diehl: Para tentar responder a pergunta, eu parto do princípio que não se deveria separar a produção do conhecimento histórico com a questão da intermediação do conhecimento. Eu acho que são dois exercícios que se complemen-tam. Em segundo lugar, penso que a discussão em torno da didática da história tem de ser restabelecida. Eu vou dar um exemplo bem claro. Quando eu fiz graduação, didática da história representava um exercício de técnico, um exercício de quase um comportamento do professor em sala de aula. Hoje se observa que quando se fala nessa noção de didática da história, ela tem um conteúdo também de produtor do conhecimento. Ou seja, didática da história também pode ser uma área extremamente fértil para a história no que diz respeito ao exercício da própria pesquisa. Isso porque

9 Foi professor de história da UNICAMP e diretor do Centro de Memória da mesma instituição. Publicou livros sobre a produção historiográfica brasileira. Ver LAPA, José Roberto do Amaral. A História em Questão: historiografia brasileira contemporânea. Petrópolis: Vozes, 1976; História e Historiografia: Brasil Pós-64. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985;

10 Historiador de uma vasta obra sobre temas teóricos, historiográficos e de conteúdo de história do Brasil, com sucessivas edições. Elencamos algumas obras (de cunho teórico e historiográfico) e as suas primeiras edições. Ver RODRIGUES, José Honório. Teoria da História do Brasil: introdução metodológica (1949); A Pesquisa Histórica no Brasil: sua evolução e problemas atuais (1952); História e Historiadores do Brasil (1965); História e Historiografia (1970); História da História do Brasil (1979).

224 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

didática da história envolve questões que para mim são importantes. Em primeiro lugar, a cultura de sala de aula. Em segundo lugar, o livro didático. Em terceiro lugar, toda a questão da legislação do ensino. E, sobretudo, não podemos esquecer que através da didática da história, nós podemos legitimar o próprio processo de pes-quisa histórica, ou seja, é ali exatamente que se configura o exercício do por que nós estamos produzindo conhecimentos históricos. Por isso que a minha tese seria que nós não devêssemos separar a área do conhecimento histórico propriamente dito das questões vinculadas à didática. As funções didáticas da história fazem com que haja um exercício não só de sala de aula, mas também de sala de aula que legitima nossa profissão, o nosso ofício de historiador. Por outro lado, também quando se fala em didática da história, ainda existe uma separação bastante profunda entre os departamentos de história, os cursos de história e as faculdades de educação. Eu acho que a didática da história, olhando sobre este prisma, pode ser um elemento de aproximação e, essa aproximação, seria a possibilidade com que os nossos estudantes, principalmente os da licenciatura, adquirissem habilidades e qualidades para o exercício da profissão, uma vez egressos da universidade. Portanto, eu acho que a didática da história é uma área do conhecimento que precisa de um carinho muito especial dos próprios historiadores. Nós não podemos usar uma estratégia de avestruz, de enterrar a cabeça pensando que estamos com o corpo escondido. Não, pelo contrário! Então a idéia que está subjacente a isso é exatamente fazer com que a didática da história, que toda essa cultura escolar, possa também ser trazida, catapultada para dentro dos cursos de história, agora não mais como um conhecimento complementar, mas como uma área do conhecimento que faculte também a própria pesquisa11.

Sæculum: Considerando as linhagens historiográficas contemporâneas, a qual delas haveria maior proximidade com a orientação teórico-metodológica dos seus trabalhos?

Astor Antônio Diehl: Bem, acho que essa pergunta não deveria ser feita para mim, mas para quem leu, enfim, quem faz parte do debate, que são as pessoas com as quais a gente dialoga. De uma forma bastante ampla, com muito cuidado, eu me colocaria mais propenso a dizer que estaria muito mais próximo a uma orientação dos debates feitos, realizados no contexto acadêmico alemão. Posto isso, acho que é necessário observar que eu não tenho uma filiação direta. Eu acho apenas que os interlocutores têm uma experiência, um exercício desafiador muito maior do que qualquer outro. Há algum tempo, eu fui publicamente chamado de weberiano. Talvez tenha sido em função de um livro que escrevi sobre Weber e a história, fato que de certa forma não me incomodou tanto assim12. Mas isso não significa que eu não tenha uma leitura aproximada das orientações metodológicas weberianas, um autor que ainda carece de ser explorado, tendo em vista que apenas na década de 1990 passou a ser lido, estudado e trazido para o debate pelos historiadores, embora na sociologia e na ciência política, ele tenha sido exercitado desde o inicio dos anos de 1930, com Gilberto Freire, Sérgio Buarque de Holanda e tantos outros. 11 Um exemplo dessa perspectiva pode ser observado em DIEHL, Astor Antônio. Teorias da História: uma proposta de estudos. Passo Fundo: EdUPF, 2004.

12 DIEHL, Astor Antônio. Max Weber e a História. Passo Fundo: EdUPF, 1996.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 225

Isso quer dizer a tradição weberiana no Brasil existe há muito tempo. No entanto, na história, parece-me que é um exercício relativamente recente, produtivo também pela ampla possibilidade metodológica e conceitual que o Max Weber nos oferece. Eu acho ainda que, em relação a Max Weber, existe a possibilidade de muitos tra-balhos inovadores.

Sæculum: Nos anos de 1990, você publicou livros sobre a Cultura Historiográfica brasileira, a partir da sua tese de doutorado. Qual a origem desse conceito e como você o encara hoje?

Astor Antônio Diehl: Bom a origem desse conceito, cultura historiográfica, está vinculado de uma forma muito próxima com o pensamento e obra de Jörn Rüsen. Ele tinha a preocupação, no inicio dos anos de 1980 – e ainda hoje – em produzir conhecimentos que pudessem ampliar esse conceito de cultura historiográfica, cultura histórica e assim por diante. A influência de Rüsen foi muito importante para mim não apenas nas questões práticas de orientador de tese, mas fundamentalmente para o exercício quase hermenêutico de sua obra, principalmente da trilogia, que agora já está traduzido no Brasil e que facilita muito o acesso às suas reflexões.13 O que me chamou muito a atenção na obra do Rüsen é exatamente a forma como ele conseguiu operacionalizar o campo de estudos epistemológicos para a história, tendo em vista um contexto de muito debate na Alemanha, principalmente do debate entre os modernos e os pós-modernos, entre os tradicionais e os modernos e assim por diante. Efetivamente, a ciência histórica na década de 1980 passou por uma profunda mudança estrutural que solicitou da comunidade de historiadores uma resposta nova para a velha pergunta: afinal de contas, o que é a história? Afinal de contas, quais são as funções sociais do conhecimento histórico produzido? Essas perguntas, relativamente fáceis de serem feitas, foram traduzidas num amplo de-bate teórico e metodológico naquele contexto. Eu tive a felicidade de estar naquele contexto e, de certa forma, de me apropriar um pouco desse debate, mesmo que não participasse diretamente. Então, a postura de Rüsen era exatamente fornecer, apresentar para a comunidade, uma constelação de elementos que possibilitassem mudanças no conhecimento histórico, mudanças teóricas na história, mas que ao mesmo tempo, fosse um elemento metodológico para se estudar a própria teoria, o próprio desenvolvimento teórico da ciência histórica. Essa noção passou a ser importante, fundamentalmente por que a partir dela eu tive a possibilidade de de-senvolver um arsenal suplementar de matrizes que pudessem ser utilizadas como elementos metodológicos para se estudar também a historiografia brasileira. A partir daí foram desenvolvidas matrizes que me possibilitaram desenvolver os meus estudos em relação à “cultura historiográfica brasileira”14.

Nesse sentido existe sim uma influência relativamente visível, explícita, em relação ao debate promovido por Jörn Rüsen. Para os estudos históricos, o que se observa

13 Vide nota 5.14 A tese de doutorado foi desdobrada em quatro livros publicados. Ver DIEHL, Astor Antônio. Matrizes da cultura histórica brasileira. Porto Alegre: Editora da PUC-RS, 1993; A cultura historiográfica nos anos 80. Porto Alegre: Editora da PUC-RS, 1993; A cultura historiográfica brasileira: do IHGB aos anos 1930. Passo Fundo: EdUPF, 1999; A cultura historiográfica brasileira: da década de 1930 aos anos 1970. Passo Fundo: EdUPF, 1999.

226 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

hoje, no Brasil, é estão surgindo alguns grupos que de uma forma muito próxima estão olhando com muito carinho a obra de Rüsen. Nós temos lá no Rio Grande do Sul um grupo de colegas vinculado ao GT de Teoria da História da ANPUH que está se interessando pela obra dele. Em Minas Gerais, especialmente em Ouro Preto, no curso de história, também existe afinidade em relação aos seus escritos. Em Goiânia, há um professor estudando a sua obra. Claro que quando eu digo Goiânia, Ouro Preto, Porto Alegre, eu não estou dizendo que são departamentos que estão vinculados, mas são pessoas que estão se interessando pela obra de Rüsen e são talvez aqueles que estejam discutindo com ele. Rüsen esteve várias vezes no Brasil, fez palestras em vários lugares, inclusive aqui no Nordeste. Isso ajudou que sua obra tivesse alguma publicidade. Claro que o acesso às vezes é dificultado − agora não mais pela tradução – pela língua alemã, enfim, que talvez tenha sido um obstáculo, mas isso agora se quebrou e é uma obra que está à disposição para o debate em torno da teoria da história.

Sæculum: Nessas mesmas obras, também aparece a categoria de Cultura Histórica. Haveria distinção epistemológica entre Cultura Historiográfica e Cultura Histórica?

Astor Antônio Diehl: Essa pergunta eu vou responder com cuidado. Nós esta-mos em pleno andamento de um seminário que exatamente tem por título cultura histórica e eu me lembro que alguns debates estão acalorados e bem a contento dos objetivos do seminário. Mas, para fins didáticos, eu vou tentar colocar uma postura pessoal sobre essas duas categorias que acabam sendo tão importantes nos estudos teóricos e metodológicos. Em relação à cultura histórica, parece-me que a gente poderia se aproximar de uma resposta que frisasse elementos constituidores, elementos de constituição da própria reconstituição do passado. Eu acho que cultura histórica tem a ver com a comunidade acadêmica, tem a ver com o próprio pas-sado, tem a ver também com os historiadores não acadêmicos e assim por diante. Quando falamos de cultura historiográfica, nós estamos nos referindo às matrizes paradigmáticas, às matrizes teóricas, estamos falando também da história viva, seja ela individual, seja ela coletiva. Portanto, nós estamos nos referindo principalmente aos referenciais documentais que, diga-se de passagem, nós historiadores inven-tamos constantemente, nós reinventamos a nossa documentação constantemente. Se eu digo que tem a ver com os referenciais documentais, isso também quer dizer que a cultura historiográfica está muito presente quando se fala, por exemplo, em pesquisa, ou seja, todos os nossos referenciais de pesquisa. Cultura historiográfica tem a ver com os sujeitos históricos, tem a ver com os grupos sociais, tem a ver com algo que poucas vezes chama a atenção, tem a ver com tradições. A palavra tradição no contexto da cultura historiográfica possibilita uma dimensão extrema-mente ampla, principalmente se levarmos em conta as longas durações. Cultura historiográfica tem a ver com influências, com interfaces que fazem com que nós tenhamos a capacidade de reconstruí-las. Cultura histórica me parece também uma noção que tem uma ampla vinculação com o debate da história como disciplina. Ou seja, a própria constituição, ou as próprias mudanças da história como disci-plina, dentro dos seus devidos contextos. Nós abandonamos, quando falamos em

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 227

cultura histórica, um pouco a ideia de que apenas os historiadores profissionais têm a ver com a produção de conhecimentos do passado. Quer dizer, esse exercício de reconstituição do passado pode ser feito por uma gama enorme de profissionais ou de não profissionais, como pode também ser feito naquele exercício mais simples de cada um de nós quando nos lembramos do nosso próprio passado. Se eu me lembro do meu passado e tento reconstituir esse passado, eu também diretamente estou produzindo uma cultura histórica, mesmo que seja individual.

Agora, como historiador, estou fazendo algo a mais, estou argumentando, tentando argumentar o mais próximo possível de uma racionalidade disciplinar, de uma racionalidade acadêmica, e assim por diante. Isso não quer dizer que esse conhecimento racionalizado pelos historiadores seja mais ou menos importante do que aquele que é subjetivado individualmente ou por grupos sociais. Portanto, parece-me que essa noção de tradição passa a ter um papel importante nesse debate. Apenas como elemento de distinção, cultura historiográfica me parece que tem uma vinculação mais direta com as estruturas narrativas, ou seja, as estruturas narrativas contidas naquelas representações dos passados inventados pelos historiadores. Quer dizer, me parece que há um patamar, existe um nível diferenciador, e aqui não é negativo ou positivo, mas existe um nível diferenciador da cultura histórica nesse contexto, pois quando se fala em cultura historiográfica está se tratando do topoi interpretativo do conhecimento histórico. Por que o topoi é o espaço da experiência na qual nós exercitamos um conjunto de estratégias para interpretar a própria cultura histórica, individual ou coletiva, seja ela feita por profissionais da área ou feita por não profissionais da área. Portanto, esse topoi compõe exatamente as estratégias de compreensão. Por que se não fosse assim, nós estaríamos caindo num arcabouço, numa estrutura explicativa. Exatamente, nós, historiadores, nos últimos anos, estamos querendo fugir da explicação histórica. Nós estamos gradativamente sendo quase que assumidos por uma estratégia compreensiva dos diversos discursos produzidos. Evidentemente que a cultura historiográfica é o lugar que aparecem de uma forma bastante nítida, as estruturas de construção, publicização e da recepção do conheci-mento. Nós não podemos esquecer que é nesse nível que ocorre a publicização e, por outro lado, a recepção. Isso forma de maneira complexa, uma rede muito grande no qual podemos levar em conta três ou quatro elementos que eu rapidamente poderia apontar. Em primeiro lugar, me parece que é importante quando se fala em cultura historiográfica falar das formas de comunicação. Em segundo lugar, os diferentes sentidos da cultura histórica, ou seja, as facetas culturais que podem ser promovidas pelo próprio conhecimento histórico. E, em terceiro lugar, penso que é importante ver também quais são os sentidos do tempo histórico. De certa forma, nos últimos debates nós abandonamos o tempo histórico como exercício das difer-entes pluralidades, o que significa que estamos mexendo de novo com experiências. E quando exercitamos a idéia de experiência, caímos de novo num certo grau de subjetividade. Claro que para nós, na história, enquanto defendermos a ideia de que história tem plausibilidade, temos que achar uma forma de sair dessa subjeti-vação do conhecimento. A saída para essa subjetivação do conhecimento, talvez pudesse ser um pequeno exercício feito por Jürgen Habermas, quando ele fala, por exemplo, da intersubjetividade comunicativa, ou seja, me parece que este poderia ser um exercício que nos levaria subjetivamente a uma conceituação daquilo que

228 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

seriam as funções da cultura historiográfica.

No entanto, eu gostaria de fazer uma observação, e esta observação tem a ver com um cuidado para que não se separem essas duas noções. Elas não são estanques. Elas não são paralelas. Elas se nutrem. Elas se realimentam. Elas estão imbricadas. Existem interfaces entre elas. Existem formas de intermediação entre elas. Talvez, poderia até usar uma expressão do Walter Benjamin, que disse, “uma via de mão dupla”, entre as duas, portanto, elas não são estanques. Ambas as noções, ambos os conceitos, tem uma historicidade. E se têm uma historicidade, também possuem um alto grau de possibilidade de mudanças, então, se a gente está representando um conceito como uma forma ideal, como nós estamos colocando aqui, isso não significa necessariamente que isso seja um tipo ideal que não tenha possibilidades de uma alteração com o próprio debate. Portanto, eu acho extremamente interes-sante, que se faça um seminário e que se tenha um programa de pós-graduação, que tenha como núcleo duro, o debate em torno da cultura histórica e da cultura historiográfica. Bem, me parece que talvez se pudesse chamar atenção, ainda em termos dessas duas noções, que quando se fala em cultura historiográfica, se devesse também lançar os nossos olhos para as estruturas narrativas da história. Talvez esse não fosse o momento de falarmos nisso, mas refiro-me às estruturas narrativas, não tanto aquelas postas por Hayden White15, mas àquelas postas por Jörn Rüsen. Existe um debate intenso entre esses dois historiadores. Existem vários textos em que eles debatem essas questões. Devemos tirar um pouco essa idéia que a conceituação narrativa da história esteja tão vinculada às premissas da análise do discurso, ou das premissas da teoria literária, como propõe Hayden White, mas trazê-las também, assim como a didática da história, para o menu, para o centro do debate da teoria da história. Afinal de contas, são poucos historiadores que ainda usam dizer, por exemplo, fazer uma análise de discurso de um texto historiográfico. Não, hoje todo mundo está buscando exatamente as estruturas narrativas, seja a partir do Hayden White, Paul Ricouer ou Jörn Rüsen ou de outra filiação teórica. O importante é trazer essas estruturas narrativas para dentro do próprio debate historiográfico.16

Sæculum: Podemos então qualificar o debate e tentar demonstrar, para o leitor brasileiro, quais as aproximações de Rüsen com Weber?

Astor Antônio Diehl: Essa pergunta me lembra uma curiosidade que nós orientandos tínhamos na época do doutorado. Todos indiretamente queríamos saber qual seria a filiação, qual seria a vertente do pensamento do Rüsen. Talvez se pudesse dizer que ele tem um profundo conhecimento do século XIX alemão. Talvez se pudesse recuar um pouquinho, e afirmar que ele tem um profundo conhecimento do Aufklärung, do Iluminismo alemão. Isso faz com que, por exemplo, ele transite

15 Professor emérito da “história da consciência” na Universidade da Califórnia, Santa Cruz (EUA), cuja teoria “meta-histórica” questiona o estatuo de ciência para as “narrativas historiográficas”. Dois de seus principais livros foram traduzidos no Brasil. Ver WHITE, Hayden. Trópicos do Discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Editora USP, 1994 [1.a edição inglesa 1978]; Meta-História: a imaginação histórica no século XIX. São Paulo: Editora USP, 1995 [1.a edição inglesa 1973].

16 Conferir DIEHL, Astor Antônio. Cultura Historiográfica: memória, identidade e representação. Bauru: Edusc, 2002; Com o Passado na Cadeira de Balanço: cultura, mentalidade e subjetividade. Passo Fundo-RS: EdUPF, 2006.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 229

de uma forma muito tranqüila dentro dos autores do iluminismo para o romantismo alemão. Em segundo lugar, a tese de doutoramento de Jörn Rüsen foi sobre Gustav Droysen (1808-1884) que, dentro da tradição historiográfica alemã, foi uma espécie de ícone que colocou, pela primeira vez, uma pauta para os historiadores alemães no final da década de 1850. As reflexões de Droysen, através da Historik e da definição de ciência histórica na dimensão de “compreensão mediante pesquisa”, tornam-se importantes para a própria constituição do pensamento de Rüsen, que vai transitar depois pelo historicismo e pela crise provocada pelo historicismo, principalmente pela obra de Wilhelm Dilthey (1833-1911), que distinguia as ciências da natureza” das “ciências do espírito”, tornando-se um grande divisor das ciências nos debates filosóficos na Alemanha.

Jörn Rüsen, evidentemente, transita de uma forma bastante tranqüila na obra de Max Weber, e eu me lembro dos seus seminários e conferências sobre a obra de Max Weber, que é um autor importante nessa transição do historicismo alemão para a profunda crise na qual a cultura historiográfica alemã se envolve na Primeira Guerra Mundial, no entre guerras, no pós-guerra, e parece que isso foi de difícil superação para os historiadores alemães. Basta ver o debate em torno de determinados te-mas da Segunda Guerra Mundial, ou mesmo do entre-guerras, que somente foram possíveis no final dos anos 1960 em diante. Ou seja, para a tradição histórica e historiográfica alemã, isso foi de certa forma traumática, tanto é que nos anos 1970, autores como Friedrich Nietzsche passaram a ser relidos de novo, principalmente a crítica que Nietzsche fazia à sociedade técnica, à sociedade burguesa, à sociedade tecnológica e, sobretudo, o papel do intelectual. Nietzsche foi um ferrenho crítico da intelectualidade alemã e européia no final do século XIX. Nietzsche faleceu em 1900 e, portanto, não observa toda essa disputa traumática: de um lado, a industrializa-ção tardia da Alemanha e, por outro, o avanço das grandes filosofias da história, desde Hegel, Marx, e assim por diante. Então, isso fez com que a grande crise do final do século XIX para o século XX fosse sentida na Alemanha ainda no século XX, nos anos 1960 e 1970. Quer dizer, o que para nós, aqui, nos anos 1980, foi uma crise relativamente tranqüila, uma mudança relativamente tranqüila, para eles foi traumática. Nesse sentido, me parece que Rüsen sabe fazer algo que, talvez, nós não exercitamos, ou seja, utilizar-se também da literatura para entender história, para entender o contexto no qual há uma inserção no debate. Eu me lembro muito bem de um exercício que foi feito com a gente com a obra do Goethe. Ou seja, para nós, hoje, talvez isso seja tranqüilo, mas para aquele contexto, foi um elemento eminentemente inovador. Talvez isso mostre também por que Jörn Rüsen tenha uma facilidade tão grande em transitar em culturas tão diferentes. Por exemplo, para ele é tranqüilo ir para África, para a Ásia, vir para o Brasil ou ir para os Estado Unidos, ele transita com certa facilidade em relação a isso. Claro que essa facilidade de transitar em culturas diferentes também exige uma postura metodológica mais refinada para dar conta exatamente dessa pluralidade no sentido de compreensão de uma totalidade social.

Sæculum: Como um especialista em historiografia brasileira, que instituições e autores você reputa como fundamentais para a formação do historiador no Brasil.

230 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

Astor Antônio Diehl: Em relação à historiografia brasileira, eu acho um caso típico, especial, particular, e eu não gostaria de fazer com que ele aparecesse com-parado com qualquer outro. Em tese, eu poderia dizer que os estudos historiográficos, no sentido tradicional, começam a ser desenvolvidos no Brasil nos anos de 1980. Isso efetivamente não quer dizer que nós não tenhamos autores que se interessaram por esta questão anteriormente. Nós temos autores anteriormente – citei o José Honório Rodrigues, José Roberto do Amaral Lapa, entre tantos outros – que con-tribuíram de uma forma espetacular para que se pudesse, nos anos 1980, despertar a questão. Com efeito, me parece que os anos 1980 são um momento de transição. E por que um momento de transição? Acho que o fato, o aspecto mais importante que se deva considerar, é a própria consolidação do sistema da pós-graduação no Brasil. Isso é inegável, é um fato que não podemos desprezar, tanto que os primeiros cursos de pós-graduação são de 1973 e 1974 e, a partir dos anos 1980, começa um amadurecimento em relação a esses debates. Evidentemente, temos autores que contaram esse debate como Ciro Flamarion Cardoso17, Rogério Forastieri18 e, especialmente, a publicação do livro escrito por Carlos Fico e Ronald Polito19, em dois volumes, que me parece que foi um elemento importante para chamar a atenção para a grande tarefa que a comunidade de historiadores teria a sua frente. Lamento que o Centro de Referência de Ouro Preto tenha se extinguido, porque era um espaço, não só de quantificação das publicações, mas também, através dos seus boletins, um elemento de divulgação das publicações.20 Nos anos 1980 nós não tínhamos ainda uma facilidade tão grande como nós temos hoje que é a rede, que é a Internet. Quer dizer, hoje as coisas são facilitadas, até por que os programas de pós-graduação colocam à disposição as suas dissertações, as suas teses, revistas, e assim por diante.

Talvez fosse necessário retomar esse magnífico projeto, através de um Centro de Referência Nacional de Estudos Históricos no Brasil. Talvez pudéssemos dividir isso com colegas das regiões e, esses grupos regionais, ligados à própria ANPUH (As-sociação Nacional dos Professores de História), se incumbissem de fazer inventários localizados, e que se pudesse colocar isso à disposição sob forma de síntese, de textos, enfim, para que didaticamente os próprios estudantes pudessem ter acesso a grande quantidade de informações históricas no Brasil. Aliás, desde os anos 1980, estão anunciando que nunca se produziu tanto conhecimento histórico no Brasil. Hoje é

17 Professor da Universidade Federal Fluminense. O debate referido consta na obra Ensaios Racionalistas. Rio de Janeiro: Campus, 1988. Outras obras do autor, pertinentes ao dossiê, podem ser conferidas: CARDOSO, C. F. & BRIGNOLI, H. P. Os métodos da História: introdução aos problemas, métodos e técnicas da história demográfica, econômica e social. Rio de Janeiro: Graal, 1979; CARDOSO, C. F. Uma introdução à História. São Paulo: Brasiliense, 1981; Narrativa, sentido e História. Campinas: Papirus, 1997; e, mais recentemente, Um historiador fala de teoria e metodologia: ensaios. Bauru: Edusc, 2005.

18 SILVA, Rogério Forastieri da. História da Historiografia: capítulos para uma história das histórias da historiografia. Bauru: Edusc, 2001.

19 POLITO, R. & FICO, Carlos. A História do Brasil (1980-1989). Vol. I: elementos para uma avaliação historiográfica. Ouro Preto: Editora da UFOP, 1992; A História do Brasil (1980-1989). Vol. II: série de dados. Ouro Preto: Editora UFOP, 1994.

20 O Centro Nacional de Referência Historiográfica (CNRH) foi fundado pelos historiadores Ronaldo Polito e Carlos Fico, junto a Universidade Federal de Ouro Preto, e funcionou entre 1990 e 1998. O CNRH possuía três publicações para catalogação e divulgação da produção historiográfica brasileira: a publicação periódica Bibliografia Anual, o jornal Registro, que teve dez edições, e o indexador de periódicos de história, Repertório Semestral, que também teve dez edições.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 231

praticamente impossível ter um domínio mínimo sobre aquilo que é produzido no Brasil, haja vista uma grande expansão positiva, no meu modo de vê, dos programas de pós-graduação. Isso naturalmente descentralizou o campo de produções que estava naquele momento localizado no litoral, nas capitais litorâneas brasileiras. Eu acho que o papel desses programas fez com que houvesse uma interiorização da produção do conhecimento e, diga-se de passagem, de um conhecimento com muita qualidade.

Sæculum: Você foi testemunha dos acontecimentos dramáticos que levaram ao fim do socialismo real e a derrubada do muro de Berlim (1989-1991). À luz da teoria da história como seria possível compreender no “tempo quente” esses acon-tecimentos e como a “subjetividade” da memória os encara quase duas décadas depois?

Astor Antônio Diehl: Certo dia eu contei para os meus alunos da graduação que tive a felicidade ou o azar de estar em Berlim naquele novembro, exatamente no dia em que foi derrubado o muro de Berlim. E, imediatamente os estudantes me perguntaram: Professor, você trouxe um pedaço do muro? Eu disse “sim, eu tenho um pedaço do muro em casa”, tanto é que eu tive que levar para a aula e mostrar para eles. Mas esta questão para mim é simbólica, ela tem uma simbologia muito grande que realmente naquela noite, dia 9 de novembro de 1989, Berlim se transformou num grande palco de alegria, tanto para os ocidentais, como para os da Alemanha do leste, de Berlim oriental. Mas independente disso, esse é um fato componente daquilo que foi colocado aqui como “tempo quente”, o tempo do nosso momento, o tempo do nosso contexto. Eu me lembro que, em seguida à queda do muro de Berlim, imediatamente começou um grande debate, promovido inicialmente por Francis Fukuyama, que escreveu um pequeno texto chamado The End of His-tory, que causou na intelectualidade internacional furores extra-acadêmicos, para não dizer políticos.21 Mas aquele texto, apesar das posições de Fukuyama, trouxe à tona uma questão que, intelectuais com a qualidade de Perry Anderson, Josef Fontana22, Jörn Rüsen e outros, passaram a escrever sobre “o fim da história”. Eu tive a oportunidade, em 1997, de escrever um pequeno livro, tentando exatamente argumentar que esse debate sobre o fim da história, é um debate que já tem, no mínimo, 200 anos23. Ou seja, se nós olharmos nas posturas levantadas por Fukuyama, ele vai beber água exatamente na fonte de Hegel e no liberalismo. Se nós olharmos outros autores, as suas posições são a partir de Marx, e assim por diante. Então, os acontecimentos de novembro de 1989, vinculados à queda do muro de Berlim, também indiretamente influenciaram – talvez ainda continuem influenciando – o

21 Francis Fukuyama, economista nipo-americano, taxado de “neoconservador”, publicou o artigo The end of history, no periódico The National Interest, 1989. Alguns anos depois seria publicado o seu livro, traduzido em vários idiomas. Ver FUKUYAMA, Francis. O Fim da História e o último homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992. Imediatamente, vários intelectuais e “historiadores de esquerda”, passaram a criticar duramente as teses do “fim da história”. Ver, entre outros, ANDERSON, Perry. O fim da História: de Hegel a Fukuyama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

22 Historiador catalão, autor de História depois do fim da História. Bauru: Edusc, 1998. Sobre o mesmo tema, ver o Epílogo à edição brasileira de História: análise do passado e projeto social. Bauru: Edusc, 1998, p. 267-81.

23 DIEHL, Astor Antônio. Vinho velho em pipa nova: o pós-moderno e o fim da História. Passo Fundo: EdUPF, 1997.

232 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

debate em torno da teoria da história. Com certo cuidado, se poderia dizer que o fim do muro de Berlim também causou, para certos setores intelectuais, uma espécie de frustração em relação aos futuros.

Nós vivemos hoje uma época de frustrações intelectuais, sejam elas liberais, sejam elas vindas de setores socialistas. E, para mim, isso é importante na medida em que, quando o futuro frustra, o passado passa a reconfortar. O debate também muito se incumbiu das questões culturais, deixando muitas vezes as questões es-truturais de lado. Nós vivemos uma época em que há uma certa tendência a um neo-romantismo. Parece que nós estamos buscando as falhas, buscando os erros no passado. Isso se explica também pelo próprio abandono da tridimensionalidade do tempo histórico que se utilizava até poucos anos atrás. Parece-me que os histo-riadores, hoje, estão muito mais vinculados à busca, à reconstituição de uma idéia de futuro no passado. E essa idéia de um futuro no passado, é buscar a utopia no passado, é buscar a emancipação no passado. Buscar a utopia no passado nada mais é do que entender a complexidade do nosso próprio presente. Ou seja, isso faz com que muitas vezes se projeta ao passado, uma qualidade de acontecimentos subjetivos e de setorialização pela própria sociedade. É possível observar isso, por exemplo, nos próprios estudos históricos, quando se faz referência à fragmentação excessiva do passado que, talvez, até esteja realimentando outro processo que é a legitimidade da própria segmentação da sociedade no contexto atual. Para mim, é chegado o momento retornarmos a busca de uma espécie de totalidade do pas-sado, buscar uma síntese do passado. Talvez como Marc Bloch e Lucien Febvre, os primeiros annalistes24, que, lá em 1929, propunham uma totalidade social do passado, recompondo fragmentos na busca de um sentido.

Afinal de contas, qual é a razão de tudo isso? Max Weber dizia o seguinte: por que alguém passa a vida inteira buscando algo que de antemão ele já sabe que não irá encontrar? Ou seja, esta lacuna, me parece que pode ser preenchida pelo debate, pela pesquisa, na produção do conhecimento histórico. Depois de vinte anos, depois da euforia – e de certa brabeza minha, por que nada andava em Berlim –, talvez se possa dizer hoje que os alemães ainda estão pagando os custos da própria unificação. Foi algo que lhes custou muito. A queda do muro de Berlim foi um dos grandes acontecimentos, independente de sua qualidade ou da nossa postura política em relação a ele. Foi um dos grandes acontecimentos, que poderia, inclusive, ser o delimitador do século, se é que isso é possível. Não tanto pelo fato em si, mas pelas repercussões internacionais, pelas repercussões universais que sugere. Coitados dos geógrafos que estão constantemente redesenhando o mapa político, o mapa das nações. Isto faz com que esse fato simbolicamente signifique uma grande mudança nas estruturas. Ele é importante inclusive para se redefinir a questão do Estado/Nação, Região/Cultura, Global/Local, e assim por diante.

***24 Marc Bloch (1886-1944) e Lucien Febvre (1878-1956) fundaram, em 1929, na Universidade de Estrasburgo, a Revue des Annales, que marcou as grandes transformações do ofício do historiador no século XX. Entre as várias abordagens sobre as gerações dos Annales e suas influências historiográficas, ver BURKE, Peter. A Revolução Francesa da Historiografia: a escola dos Annales (1929-1989). São Paulo: Editora Unesp, 1991; e DOSSE, François. A História em Migalhas: dos Annales à Nova História. São Paulo: Ensaio, 1992.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 233

NORMAS EDITORIAIS

1. A revista Sæculum aceita para publicação artigos, comunicações, resenhas, entrevistas e memórias (palestras, depoimentos, documentos e fontes) na área de História, redigidos em português, inglês, francês ou espanhol, de autores com titulação mínima de Mestre em História ou áreas afins.

2. Todos os trabalhos deverão ser encaminhados em CD-ROM (compatível com padrão IBM PC) e duas cópias impressas, sem identificação do autor, para:

Comissão de Editoração - SæculumDepartamento de HistóriaUniversidade Federal da ParaíbaCentro de Ciências Humanas, Letras e ArtesConjunto Humanístico - Bloco VCampus I - Cidade UniversitáriaCastelo Branco - João Pessoa - PBCEP 58051-970 - Brasil

3. Os artigos deverão ter no máximo 20 (vinte) páginas, ser digitados em Editor de Texto compatível com Word for Windows (arquivo em formato “DOC”), com a seguinte formatação: fonte Times New Roman corpo 12; espaço entre linhas de 1,5; margens de 2,5 cm; papel A4.

4. A primeira página do arquivo “DOC” com o texto deve conter o título do trabalho, nome do autor e, no rodapé, seu vínculo institucional e titulação e, quando necessário, indicação de entidade patrocinadora da pesquisa que o originou ou evento em que foi apresentado. A divulgação de e-mail para contato com os leitores é opcional mas, quando houver, deve constar nesta nota.

5. Na segunda página do trabalho deve constar um resumo em português (máximo de 250 palavras) e sua versão para o inglês (abstract), além de três palavras-chave e três keywords. Os textos redigidos em inglês, francês ou espanhol podem ter resumos em seu idioma original, mas devem trazer, obrigatoriamente, também o resumo em português.

6. As notas de rodapé devem ater-se ao mínimo necessário, não excedendo o total de 40 (quarenta). Devem ainda seguir a seguinte formatação: fonte Times New Roman corpo 10; espaço entre linhas simples; e um máximo de 8 (oito) linhas em cada nota.

7. Caso o trabalho contenha imagens, essas não poderão exceder o número de 5 (cinco) e deverão ser enviadas em arquivos independentes, no formato JPEG ou TIFF, com resolução mínima de 300 dpi e dimensões máximas de 15 cm x 21 cm, com escala de cinza de 256 tons. A revista Sæculum não publica imagens coloridas. O local de inserção das imagens no corpo do texto deve ser indicado por legenda (Ex.: “Figura 1”, etc., etc.).

8. Caso o trabalho contenha caracteres especiais - como alfabeto grego, hebraico, cirílico, chinês, japonês, coreano, hindu, ou sinais matemáticos, por exemplo - a fonte utilizada (arquivo formato “TTF”) deve ser enviada à Comissão de Editoração juntamente com o arquivo “DOC” que contém o texto.

234 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

9. As resenhas deverão ter entre 8 (oito) e 10 (dez) páginas, e devem versar sobre obra publicada no Brasil ou no exterior, durante os últimos dois anos. Tanto estas como as demais categorias de trabalho devem seguir as indicações de digitação e normatização estabelecidas para os artigos.

10. Traduções devem ser acompanhadas da autorização do autor.

11. As referências bibliográficas das citações, obras e autores comentados devem ser feitas apenas em notas de rodapé, através do sistema numérico, segundo normas da ABNT (NBR 6023: ago. 2002). A revista Sæculum não publica bibliografias ao final dos trabalhos.

12. Em anexo ao trabalho devem constar endereço postal, endereço eletrônico e telefones (fixo e celular), para possível contato durante a fase de editoração.

13. Todos os textos serão submetidos à análise de um ou mais membros do Conselho Editorial, para a verificação de aspectos ligados ao conteúdo, forma e pertinência dos temas. Os trabalhos que não contemplarem as normas editoriais não serão avaliados para publicação nem devolvidos aos autores.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009. 235

236 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [21]; João Pessoa, jul./ dez. 2009.

Esta revista foi impressaem papel Pólen 80g/m2 (miolo) e papel Supremo 240g/m2 (capa),

com tiragem de 500 exemplares, em dezembro de 2009.Sua editoração utilizou os softwares Adobe InDesign CS4 e CorelDRAW! 14.0.

O corpo do texto foi composto com a fonte Souvenir Light BT,e na capa foram utilizadas as fontes Castellar e Friz Quadrata.

Solicitamos permutaRogamos scambio

Nous solicitons l’échange de numeróExchanged requested

Wir bitten um Austausch

Os textos aqui publicados sãode inteira responsabilidade de seus autores.

As opiniões neles emitidas não exprimem, necessariamente,o ponto de vista deste periódico, de sua Comissão de Editoração

ou da Universidade Federal da Paraíba.