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Anais do XXVI Simpósio Nacional de História ANPUH • São Paulo, julho 2011 1 SACERDOTE E MILITANTE: RELIGIÃO E POLÍTICA NA TRAJETÓRIA DE PAULO TONUCCI (1965-1994) Gisele Oliveira de Lima * INTRODUÇÃO Baía de Guanabara, 29 de outubro de 1965. A paisagem do Rio de Janeiro marcou o início de um novo caminho a ser trilhado pelo Pe. Paulo Maria Tonucci juntamente com o seu colega Pe. Renzo Rossi que, com o tempo, se tornou seu amigo. Foi no porto do Rio de Janeiro que o novo mundo apontou, mas foi nas terras baianas que as novas descobertas - amizades, conflitos, pobreza, política e religião passaram a fazer parte da história desse padre que aos 26 anos chegou ao Brasil com muitos sonhos e expectativas. Depois de conhecer Rio de Janeiro e São Paulo, Paulo Tonucci seguiu para Salvador de ônibus, hospedando-se, ao chegar, no Mosteiro de São Bento onde conheceu o abade Dom Timóteo Amoroso Anastácio 1 , durante sua permanência de uma semana naquele templo. Em meados de novembro de 1965, ele foi transferido para o Centro de Treinamento de Líderes de Itaparica onde aprendeu português. No início do mês de dezembro desse mesmo ano, Pe. Paulo foi encaminhado para o interior do estado da Bahia, mais precisamente para a paróquia da cidade de Muritiba para exercer suas atividades religiosas. O mesmo aconteceu com o Pe. Renzo que seguiu para Nazaré das Farinhas. Essa separação durou pouco tempo, pois no dia 06 de janeiro de 1966 os dois, retornando à Salvador, tomaram posse da Paróquia de Nossa Senhora de Guadalupe, localizada nas proximidades do Largo do Tanque, no bairro do Alto do Peru. A paróquia abrangia outros bairros como Fazenda Grande, São Caetano e Capelinha de São Caetano, todos na periferia da capital baiana. Diante do trabalho a ser * Doutoranda do Programa de Pós-Graduação de História da Universidade Federal da Bahia. 1 Dom Timóteo Amoroso Anastácio, 77º abade do Mosteiro de São Bento em Salvador, desde 1965 até 1981, ele marcou a história baiana não só pelo seu posicionamento frente ao Regime Militar, mas também por pensar numa liturgia mais próxima à cultura negra, para maior aprofundamento ler: CARVALHO NETO, Joviniano (Org.) D. Timóteo presença histórica. Salvador, 1996 ou Trabalho de conclusão de curso de Everaldo de Jesus e Regina Bandeira Por Amor aos meus irmãos. D. Timóteo, Profeta da Bahia. FACOM/UFBA, 2002.

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Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 1

SACERDOTE E MILITANTE: RELIGIÃO E POLÍTICA NA

TRAJETÓRIA DE PAULO TONUCCI (1965-1994)

Gisele Oliveira de Lima*

INTRODUÇÃO

Baía de Guanabara, 29 de outubro de 1965. A paisagem do Rio de Janeiro

marcou o início de um novo caminho a ser trilhado pelo Pe. Paulo Maria Tonucci

juntamente com o seu colega Pe. Renzo Rossi que, com o tempo, se tornou seu amigo.

Foi no porto do Rio de Janeiro que o novo mundo apontou, mas foi nas terras baianas

que as novas descobertas - amizades, conflitos, pobreza, política e religião passaram a

fazer parte da história desse padre que aos 26 anos chegou ao Brasil com muitos sonhos

e expectativas.

Depois de conhecer Rio de Janeiro e São Paulo, Paulo Tonucci seguiu para

Salvador de ônibus, hospedando-se, ao chegar, no Mosteiro de São Bento onde

conheceu o abade Dom Timóteo Amoroso Anastácio1, durante sua permanência de uma

semana naquele templo. Em meados de novembro de 1965, ele foi transferido para o

Centro de Treinamento de Líderes de Itaparica onde aprendeu português. No início do

mês de dezembro desse mesmo ano, Pe. Paulo foi encaminhado para o interior do

estado da Bahia, mais precisamente para a paróquia da cidade de Muritiba para exercer

suas atividades religiosas. O mesmo aconteceu com o Pe. Renzo que seguiu para Nazaré

das Farinhas. Essa separação durou pouco tempo, pois no dia 06 de janeiro de 1966 os

dois, retornando à Salvador, tomaram posse da Paróquia de Nossa Senhora de

Guadalupe, localizada nas proximidades do Largo do Tanque, no bairro do Alto do

Peru.

A paróquia abrangia outros bairros como Fazenda Grande, São Caetano e

Capelinha de São Caetano, todos na periferia da capital baiana. Diante do trabalho a ser

* Doutoranda do Programa de Pós-Graduação de História da Universidade Federal da Bahia.

1 Dom Timóteo Amoroso Anastácio, 77º abade do Mosteiro de São Bento em Salvador, desde 1965 até

1981, ele marcou a história baiana não só pelo seu posicionamento frente ao Regime Militar, mas

também por pensar numa liturgia mais próxima à cultura negra, para maior aprofundamento ler:

CARVALHO NETO, Joviniano (Org.) D. Timóteo presença histórica. Salvador, 1996 ou Trabalho de

conclusão de curso de Everaldo de Jesus e Regina Bandeira Por Amor aos meus irmãos. D. Timóteo,

Profeta da Bahia. FACOM/UFBA, 2002.

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desenvolvido, eles resolveram dividir as áreas de atuação: Pe. Renzo ficou responsável

pela área do Alto do Peru e Capelinha de São Caetano — esta última se expandia até a

Baixa do Marotinho2 e Bom Juá. Pe. Paulo se incumbiu de organizar grupos

comunitários na Fazenda Grande, onde começava a ser construída a Capela de Vila

Natal3, feita à base de taipa. Essa divisão de trabalho se deu até 1970. Com a chegada de

Pe. Sergio Merlini, os religiosos fizeram uma nova divisão: Pe. Sergio passou a cuidar

do Alto do Peru, que era a Igreja matriz da paróquia; Pe. Renzo ficou com Capelinha de

São Caetano; e Pe. Paulo assumiu, definitivamente, a Fazenda Grande.

Renzo e Paulo trabalharam juntos durante quinze anos - exercitando a Teologia

da Libertação, lutando contra a pobreza e a ditadura-, entretanto com algumas

divergências. Eles possuíam muitas diferenças nas interpretações sobre a realidade e o

modo de agir politicamente, tanto que Dom Avelar Brandão Vilela quando assumiu a

Arquidiocese de Salvador, em 1971, tentou encaminhar a proposta de dividir a Paróquia

Nossa Senhora de Guadalupe entre os três (Renzo, Paulo e Sergio). Mas isso não se

efetivou, pois, segundo Emiliano José (2002), Renzo havia afirmado que os três iriam

continuar trabalhando juntos mesmo com a divisão entre eles.

No momento em que Pe. Paulo se instalou na periferia de Salvador, a cidade e

sua região metropolitana vivenciavam muitas mudanças: movimentação estudantil,

transformações urbanas e industriais, repressão policial, e, mais tarde, articulação dos

movimentos populares. Alguns integrantes da AP (Ação Popular)4 – organização que

fez parte do processo de visão crítica da Igreja Católica, nascida no próprio ventre da

Igreja –, encontraram refúgio na Paróquia do Alto do Peru, sob os cuidados de Pe. Paulo

e Pe. Renzo. De acordo com Emiliano José (2002), os padres italianos tiveram contato

com Haroldo Lima, Ronald de Freitas e Jorge Leal, todos integrantes da AP que, mais

tarde, vieram a aderir ao Partido Comunista do Brasil (PC do B).

2 Sobre Baixa do Marotinho ver: LIMA, Gisele Movimento Baixa do Marotinho: A luta pela moradia em

Salvador(1974-1976). Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação de História, UFBA,

2009.

3 A Capela de Vila Natal foi fundada com o nome de João XXIII, por Pe. Paulo Tonucci. Hoje essa capela

se chama Natividade do Menino Jesus.

4 OLIVEIRA JR., Franklin de Carvalho. Paixão e revolução: Capítulos sobre a história da AP. Tese de

Doutorado - UFPE, 2000; SANTANA, Cristiane Soares de. Maoísmo na Bahia (1967-1970).

Dissertação de Mestrado – UFBA/PPGH, 2008.

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As articulações entre a igreja progressista e as esquerdas no Brasil tiveram início

em 1967. Um dos momentos que ilustra essas relações foi aquele em que o movimento

estudantil, em 08 de agosto de 1968, em Salvador, encontrou refúgio no Mosteiro de

São Bento tendo a proteção do abade Dom Timóteo Amoroso Anastácio. Esse episódio

ficou marcado na memória de muitos militantes de esquerda em virtude da invasão do

exército nas dependências daquele Mosteiro. Isso explicitou a divisão de caráter político

que a Igreja Católica vivenciava internamente na Bahia.

Desde os anos de 1950, o Estado brasileiro foi desenvolvendo políticas de

enquadramento no modelo de desenvolvimento da economia mundial e isso tomou

proporções maiores após a tomada de poder pelos militares.5 Esse desenvolvimento

provocou modificações e/ou deformações tanto nas relações externas quanto na

estrutura interna que se reverberou em Salvador.6 Na década seguinte, 1960, na capital

baiana, em meio ao regime militar, as ações da Prefeitura e dos governos Estadual e

Federal, no âmbito econômico e social, promoveram a expansão do sistema viário, com

a incorporação de novas áreas e a construção de conjuntos habitacionais. Os

investimentos do Estado em habitação e no setor industrial da RMS7 provocaram uma

dinamização no mercado imobiliário da capital baiana e, portanto, valorização do solo e

conflitos entre os sem moradia, o Estado e o mercado imobiliário.8

5 Milton Santos analisa o processo de enquadramento de países subdesenvolvidos ao mercado mundial

ver isso em Pensando o Espaço do Homem, 2007 e A Urbanização Brasileira, 1994.

6 Maria Azevedo Brandão em seu artigo O último Dia da criação: mercado, propriedade e uso do solo

em Salvador, In: VALLADARES, Lícia do P. (Org.). Habitação em questão. Rio de Janeiro: Zahar,

1980, discute sobre o processo de capitalização da propriedade e uso do solo em Salvador até a década

de 1960.

7 A Região Metropolitana de Salvador – RMS foi instituída pela Lei Complementar nº 14, de 8 de junho

de 1973, como área estratégica em termos políticos e econômicos para o Brasil e, em particular, para o

desenvolvimento industrial regional. Inicialmente, a RMS era composta por oito municípios,

compreendendo: Camaçari, Candeias, Itaparica, Lauro de Freitas, Salvador, São Francisco do Conde,

Simões Filho e Vera Cruz, sendo posteriormente incluídos dois novos municípios: Dias D’Ávila,

desmembrado de Camaçari em 1985, e Madre de Deus, desmembrado de Salvador em 1989.

8 Paulo Fábio Dantas Neto em seu livro Tradição, Autocracia e Carisma. A política de Antonio Carlos

Magalhães na modernização da Bahia (1954-1974), Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro:

IUPERJ, 2006, analisa como o prefeito e governador ACM durante o regime militar atuou no

desenvolvimento e dinamização do mercado imobiliário além dos conflitos sociais de moradia. Ver

também: FRANCO, Ângela Maria A. Habitação popular e solo urbano em Salvador. 1983.

Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, UFBA,

Salvador; e GORDILHO SOUZA, Ângela M. Limites do Habitar. Tese de Doutorado, FAUUSP,

2000.

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Além das transformações sociais, econômicas, políticas e espaciais que Salvador

vivenciava, a Igreja passava também por inquietações de ordem teológica e política. A

chegada de Pe. Paulo ao Brasil foi durante a finalização do Concílio Vaticano II, que

trouxe muitas modificações para a missão social da Igreja Católica. Segundo José Oscar

Beozzo (1993, p. 11), ―João XXIII, e de modo particular o Concílio foram para Igreja

do Brasil como águas longamente represadas se houvessem soltado, correndo

livremente, abrindo e aprofundando o próprio leito‖. Os pontos importantes de mudança

propostos pelo Concílio que impulsionaram a Igreja do Brasil a correr livremente

foram: ênfase na missão social da Igreja, defesa do laicato, uma maior parceria entre

padres e leigos dentro da Igreja, valorização do diálogo ecumênico, desenvolvendo a

noção de Igreja como o povo de Deus e modificação na liturgia, o que permitiu maior

acessibilidade para os leigos nos ritos católicos. (MAINWARING, 2004, p. 62)

As deliberações do Concílio legitimaram tendências já existentes e que, de certa

forma, impulsionaram maiores reflexões a respeito da Igreja como o povo de Deus. A

respeito disso, Dom José Maria Pires, que foi arcebispo de João Pessoa, afirmara que:

Sempre houve, na Igreja, teólogos, pastores e leigos que assumiram uma

posição dialética, em favor dos oprimidos, mas só foi a partir do Vaticano II

que essa posição tornou-se oficial e as atitudes foram sendo sistematizadas.

(…) O que fez com que eu me colocasse ao lado do povo, foi o Vaticano II.

(MAINWARING, 2004, p. 63)

Guardados os limites das generalizações, podemos perceber que, de um lado, a

esquerda católica estava comprometida com a transformação social; do outro, estavam

os tradicionalistas, de onde surgiu a direita católica, que auxiliou na queda do presidente

Goulart em 1964 e pressionou o governo militar contra a esquerda e os bispos

progressistas. Junto com essa segmentação havia movimentações nas ruas como o

Movimento Tradição, Família e Propriedade (TFP) 9

organizado pelos leigos, liderado

por Plínio Correia de Oliveira, com o apoio da direita católica e contava com o

incentivo de líderes episcopais como Dom Antônio de Castro Mayer e Dom Geraldo de

Proença Sigaud10

.

9 Scott Mainwaring (2004) e Ediane Santana (2009) são referências para discutir o Movimento Tradição,

Família e Propriedade tanto enfocando a atuação da Igreja, quanto a ação das mulheres nesse

movimento.

10 Dom Geraldo de Proença Sigaud, arcebispo de Diamantina, foi secretário do arcebispo Mons. Marcel

Lefebvre, líder do Coetus Internationalis Patrum. Dom Antônio de Castro Mayer, bispo da Diocese

de Campos, se tornou um secretário e companheiro fiel de Dom Geraldo de Proença Sigaud tendo

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O contato de Pe. Paulo com organizações de esquerda se iniciou desde os

primeiros anos de sua chegada na Bahia. Pe. Paulo junto com Délia Boninsegna11

e

outros integrantes da Paróquia promoviam debates políticos com a comunidade,

envolvendo novas pessoas dentro das Comunidades Eclesiais de Base e nos movimentos

sociais. Foi no bojo desse processo que começou a se discutir a fundação da Associação

de Moradores da Fazenda Grande como também a criação do Grupo de Evangelização

da Periferia. Esse Grupo envolveu diversos bairros da periferia como Fazenda Grande,

São Caetano, Alto do Peru, bem como os bairros de Boa Vista de São Caetano e

Periperi.

Para se aproximar das comunidades Pe. Paulo conciliava o seu gosto pelo

desenho com uma linguagem mais acessível e mais convidativa para comunidade

carente que muitas vezes não sabia ler, por isso ele desenvolveu diversas histórias em

quadrinhos denominadas de ―Artigos do Mensageiro‖. A maioria das histórias retratava

o cotidiano, as dificuldades vivenciadas pelo bairro e enfocava a importância da união

dos moradores para enfrentamento dos problemas sociais. Além desse material, Pe.

Paulo publicou vinte oito livros. Durante a década de 1980, com a participação na

Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA), produziu e

publicou diversos materiais.

Selecionamos uma das imagens desenvolvidas no livro Abrir las puertas a um

nuevo mundo: Puebla (1980) - um caderno com texto e quadrinhos onde faz uma

análise sobre o curso de formação de comunicadores de Puebla - Conferência de Puebla

organizada pelo Conselho Episcopal Latino Americano,CELAM, na cidade de La Ceja -

com o objetivo de apresentar o quanto o sacerdote era um crítico atento a conjuntura da

Igreja Católica. O desenho ilustra uma linha de produção do curso.

uma forte participação no Concílio Vaticano II. (BEOZZO, 2005, p. 186-187)

11 Délia Boninsegna, italiana, leiga missionária, que chegou no Brasil em 1971, passou a compor a

Paróquia Nossa Senhora de Guadalupe, trabalhando com Padre Paulo Tonucci no bairro de Fazenda

Grande, além de auxiliar o movimento do Marotinho. Ela nos concedeu entrevista em 22.01.2008. A

figura de Délia é extremamente importante para este trabalho, em virtude da riqueza de informações

que ela já nos demonstrou ter acerca do trabalho de Pe. Paulo.

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Nesta imagem, Tonucci é crítico e irônico ao caminho trilhado pela Igreja sob o

papado de João Paulo II e destacamos o quanto os desenhos transmitem informações e

reflexões que não se prendem somente à palavra escrita. Esse recurso didático foi muito

usado nos vários exemplares do Artigo do Mensageiro, assim como no Diário do

Marotinho, jornal produzido por Tonucci, e distribuído no Movimento Baixa do

Marotinho. Fora as histórias em quadrinhos, Pe. Paulo esteve presente e atuante no

Grupo Moisés.

Formado em Salvador por pessoas advindas de diferentes nacionalidades,

profissões e realidades, o Grupo Moisés unia estas pessoas em um só

objetivo: oferecer resistência à ditadura militar a partir de uma experiência

de fé. Era um espaço de reflexão e de partilha de vivências e informações. O

nome Moisés fora escolhido para denominar o Grupo porque o personagem

bíblico representa a libertação dos hebreus do jugo do faraó. (…) Os

integrantes do Grupo viviam intensamente a Teologia da Libertação e

encontravam o respaldo de que precisavam em suas reuniões mensais, que, a

princípio, aconteciam no Mosteiro de São Bento, onde se deu a leitura do

manifesto contra expulsão do padre belga José Comblin. (VARÓN &

CLAÚDIO, 2001, p. 10)

O nome Moisés remete, por um lado, ao líder dos hebreus durante a fuga do

Egito e da opressão do Faraó; por outro, evidencia a predestinação daquele que tinha a

legitimidade garantida por Deus para guiar o povo. Segundo o Pe. Andrés Matos o

grupo se ―formalizou‖ enquanto tal, no dia 31 de março de 1972, com a leitura pelo

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abade D. Timóteo Amoroso Anastácio da carta de protesto pela expulsão do Pe. José

Comblin12

. O grupo, em sua carta, proferia a repulsa pelo ato de injustiça que atingia os

sacerdotes no Brasil, apontando que não eram casos isolados, mas que fazia parte de um

contexto da vida pública nas terras brasileiras. O grupo era composto pelos integrantes

do CEAS como, Joviniano Neto13

, José Crisóstomo de Souza14

, além dos padres jesuítas

Gianfraco Confalonieri, o Confa, Andrés Matos e Claúdio Perani. Além desses, havia os

padres seculares italianos, leigos italianos e belgas e o pastor presbiteriano Celso

Dourado15

. Dom Timóteo também fazia parte do grupo, mas não ocupava a linha de

frente, ação exercida por Pe. Paulo e Pe. Claúdio Perani (JOSÉ, 2002, p. 81).

O Grupo Moisés foi um grupo com reuniões freqüentes e com presença, bem

variadas, de diversos setores da Igreja, que tinha como objetivo ―oferecer resistência à

ditadura militar a partir de uma experiência de fé.‖ (VARÓN & CLAÚDIO, 2001, p.

10).

O Grupo Moisés se constituiu no centro da articulação da Igreja progressista

na Bahia. Hoje pode-se dizer que foi uma espécie de primeiro passo da

Teologia da Libertação no Estado. Pretendia ser um sinal de fé, de esperança

em meio ao cenário de repressão e desesperança em que viviam a Bahia e o

Brasil. (José, 2002, p. 80)

O Grupo Moisés atuou em diversos setores frente à resistência à ditadura militar:

auxiliou o movimento estudantil, partidos clandestinos; ajudou na organização de

movimentos populares; esteve presente na articulação e organização do Trabalho

Conjunto. Esse engajamento político foi pensado, trabalhado e construído tendo como

lastro a fé cristã..

Após quinze anos exercendo sacerdócio na Paróquia Nossa Senhora de

Guadalupe, Pe. Paulo, em 1981, assumiu a Paróquia São Tomaz de Cantuária em

Camaçari. De acordo com Theresinha Dantas de Menezes, a sua motivação em ir para

12 Pe. José Comblin era assessor de D. Hélder Câmara, escritor e conferencista pelo Brasil a fora.

13 Sociólogo, professor do Departamento de Ciências Sociais da UFBA.

14 Filósofo, professor do Departamento de Filosofia da UFBA

15 Pastor e atualmente Reverendo da Igreja Presbiteriana Unida, participou, quando ainda estudante do

Seminário Presbiteriano de Campinas, de um grupo de estudantes comprometidos com os problemas

sociais, dentro deste grupo estavam Rubem Alves, Jovelino Ramos, Joaquim Beato e Áureo Bispo,

sobre esse assunto ver o artigo de Elizete da Silva, ―Protestantismo Ecumênico e Questões Sociais na

Bahia‖ nos Anais do IV Encontro Estadual de História – ANPUH-BA, História: Sujeitos, Saberes e

Práticas. Vitória da Conquista, 2008; e o artigo de Edilece Couto ―Ecumenismo de serviço‖ nos Anais

do X Simpósio da ABHR, 2008.

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Camaçari era a vontade de desenvolver o trabalho sacerdotal com os operários do Pólo

Petroquímico. Uma das primeiras atuações políticas do sacerdote naquela cidade foi a

Campanha contra o Benzeno, produto químico que estava poluindo o ar e provocando

diversas doenças. Ele permaneceu em Camaçari até 1993, quando retornou para Itália

dando prosseguimento no tratamento contra o câncer até 1994 quando veio a falecer.

CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS

A história de Pe. Paulo é uma espécie de fio condutor para pesquisarmos e

tentarmos compreender as relações, as diferenças políticas, os diversos objetivos não só

do sacerdote como dos outros integrantes do Grupo Moisés, assim como do Grupo de

Evangelização da Periferia. O engajamento político de Pe. Paulo, o auxílio deste

militante político, a sua participação junto a Associação de Moradores de Fazenda

Grande, e ao Movimento do Marotinho, a participação no Trabalho Conjunto, as suas

reflexões sobre as transformações da Igreja, sobre a Teologia da Libertação são

elementos que o caracterizam não como único, mas como um sacerdote singular16

.

Ao investigarmos a vida do Pe. Paulo, deparamo-nos com as dinâmicas políticas,

sociais, culturais que se entrelaçaram na sua vida religiosa na Igreja Católica, junto aos

movimentos sociais, junto à comunidade carente da periferia de Salvador e Camaçari, e

isso tudo pode vir a nos ajudar a compreender melhor o processo histórico pelo qual

passou Salvador, a Bahia e o Brasil desde o final dos anos de 1960 até o início da

década de 1990.

A proposta fazer uma biografia de Pe. Paulo Maria Tonucci, e discorrê-la

atentando para as diversas discussões em torno dessa opção que foi muito questionada

e, ao mesmo tempo, muito usada. A biografia viveu um longo período de repúdio pelos

historiadores, muito em função do interesse pelas grandes estruturas, pelas histórias

quantitativas e pela temporalidade de longa duração, perspectivas analíticas encampadas

pela Écoles des Annales e seus seguidores (BURKE, 1991). A grande desconfiança

quanto à biografia ser um campo exploratório da história se dava ao receio de se

abandonar a ―história problema‖, de ser um retorno da história cronológica, sem maior

16 Singular não por ser o único, pois já existem estudos retratando as relações entre os sacerdotes, as

comunidades de base, tanto na cidade quanto no campo, e organizações de esquerda, mas distinto por

desenvolver outra forma de linguagem com as comunidades de base.

Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 9

fundamentação teórica (LORIGA, In. REVEL, 1998)17

. No entanto, esse distanciamento

biografia e história-problema já vêm sendo superado a exemplo da extensa pesquisa e

trabalho desenvolvido por Jacques Le Goff em São Luis (1999), onde o historiador tem

todo um cuidado em tratar do personagem político e seu universo de atuação.

A revalorização dos estudos biográficos se dá, justamente, num período de crise

de paradigmas – marxistas e funcionalistas – o que despertou a atenção dos

historiadores pelas estratégias cotidianas, pelos hiatos de liberdade e de criação, pelas

ações informais de resistência indo de encontro às determinações estruturais, das

regularidades quantitativas, da temporalidade de longa duração. As práticas e

representações individuais se destacam na história social brasileira em meados dos anos

de 1980, e isso foi muito influenciado pela nova história francesa, pelo novo marxismo

inglês, pela micro-história italiana, entre outras correntes.

E. P. Thompson grande inspirador dessa renovação em A formação da classe

operária inglesa mostrou a importância das ações individuais no ―fazer-se‖ da classe,

sendo como um ―(…) processo ativo, que se deve tanto à ação humana como aos

condicionamentos‖ (THOMPSON, 1987, p. 9), e é dentro desta perspectiva que ele

publicou um artigo sobre The History from Below em 1966, onde percebe a necessidade

de compreender o povo sob a ótica de sua própria experiência e reações desta. Tendo

essa preocupação, Thompson também desenvolve, em 1977, uma biografia do socialista

William Morris18

. Segundo Bryan D. Palmer, Thompson apresentou um grande

interesse em relação a Morris, devido às suas publicações em que enfatizava a produção

não em função do lucro, mas do uso, da felicidade, da vida e que para Thompson era

algo inseparável: a necessidade econômica de fatores culturais. Na busca de

compreender esse romântico revolucionário, Thompson fez uma intensa pesquisa que

resultou numa biografia de 800 páginas, onde ele tenta compreender o contexto no qual

Morris estava inserido.

A preocupação com os excluídos da história, em fazer a ―história vista de

baixo‖, em discutir a cultura subalterna, a história das mulheres, trouxe novas fontes e

17 LORIGA (1998) discute sobre o retorno da biografia – questionamentos e proposições - e faz uma

análise sobre como era concebida a biografia durante o século XIX.

18 William Morris foi um dos fundadores do Movimento das Artes e Ofícios Britânico e do movimento

socialista na Inglaterra, ele era também pintor e escritor – THOMPSON, E. P. William Morris:

romantic to revolutionary. Nova York, Pantheon Books, 1977.

Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 10

novos métodos e arcabouços teóricos para exploração destas. Diante dessas novas

perspectivas de pesquisas, os historiadores começaram a pensar a respeito das histórias

individuais e, portanto, novos questionamentos e propostas nos aspectos metodológicos

e teóricos passaram a ser trabalhados. Neste cenário redescobriram a biografia como

uma forma de se discutir o indivíduo, as suas relações sociais, culturais, econômicas e

políticas concatenadas com a análise macro-histórica (LORIGA, In. REVEL, 1998).

A abordagem individual não é contraditória à social, é uma abordagem diferente

da história social. É uma espécie de fio condutor onde analisamos a multiplicidade dos

espaços e dos tempos e das relações neles inscritas (REVEL, 1998, p.21). Pesquisar e

analisar a vida de Pe. Paulo não significa expressar uma narrativa linear que evidencie

um objetivo final, ou a procura de um ―sentido da existência‖19

, mas trazer novos

elementos de análise social que contribuam para a melhor compreensão do indivíduo e

também do contexto social em que vive.

―O que equivale a dizer que não podemos compreender uma trajetória (…)

sem que tenhamos previamente construído os estados sucessivos do campo

no qual ele se desenrolou e, logo, o conjunto das relações objetivas que

uniram o agente considerado – pelo menos em certo número de estados

pertinentes – ao conjunto dos outros agentes envolvidos no mesmo campo e

confrontados com o mesmo espaço dos possíveis.‖ (BOURDIEU, In:

AMADO & FERREIRA, 2006, p. 190)

Escrever a história de uma pessoa é também procurar compreender o tempo, os

espaços, ou seja, o momento histórico, o local, as relações sociais e culturais que esta

vivenciava com outras pessoas. Os acontecimentos biográficos não são episódios

embasados totalmente dentro de uma logicidade ou linearidade, são processos em

movimentos onde as mudanças transcorrem de acordo com o sentido ou a importância

que se tem no momento em destaque, levando em consideração, também, os espaços

sociais e geográficos. Pe. Paulo estava inserido em diversos grupos religiosos e

políticos, produzia textos e livros. Assim, analisar o sacerdote é observar também os

grupos, os objetivos e atuações destes; é buscar compreender as relações sociais

presente nestes; é analisar as críticas e perspectivas de Pe. Paulo.

Pesquisar sobre a vida de uma pessoa não é somente discorrer sobre um único

sujeito, mas analisar o seu entorno – pessoas ou grupos, que se envolvem e fazem parte

19 Pierre Bourdieu (2006) no artigo ―Ilusão Biográfica‖ critica os pesquisadores que discorrem a vida

como organizada, cronológica e embasada por uma ordem lógica, como se houvesse um sentido da

existência.

Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 11

desse novelo de lã. João José Reis (2008) adentrou em diferentes mundos quando

tornou Domingos Sodré o seu guia para penetrar no mundo dos libertos africanos que

fizeram acordos com os seus senhores ou compraram sua alforria. Segundo Reis (2008),

as biografias:

(…) além de iluminar muitos aspectos de experiência de vidas específicas,

elas servem como guia para conhecer uma época, uma sociedade e em

particular os homens e mulheres que compunham as redes de relações que

pertenciam os biografados, com suas diferenças étnicas, suas hierarquias

sociais e econômicas, suas instituições e práticas culturais. (REIS, 2008, p.

17)

A discussão biográfica do sacerdote realizada por Reis apresentou elementos e

estratégias sociais que enriquecem a análise social do século XIX, o que também pode

ser realizado através da biografia de Pe. Paulo trazendo novos fatores sobre a atuação da

Igreja Católica diante da ditadura militar. Salientando que não devemos visualizar o

contexto social como algo coerente, homogêneo e sistemático. O contexto pode ser

interpretado:

(…) como um local que imputa significado a particulares supostamente

―estranhos‖ ou ―anômalos‖, revelando seu significado oculto e

conseqüentemente seu ajustamento a um sistema; ou, por outro lado, como

um ponto de descoberta do contexto social em que um fato aparentemente

anômalo ou insignificante assume significado, quando as incoerências

ocultas de um sistema aparentemente unificado são reveladas. (LEVI, In:

BURKE, 1992, p. 155).

A proposta desta pesquisa biográfica não é partir de um contexto global, situá-lo

e interpretá-lo a partir deste, mas é constituir a pluralidade destes contextos no qual Pe.

Paulo fez parte para compreender as relações, as escolhas, as experiências e as

representações dele e dos outros em relação a ele. Ao analisarmos sobre a trajetória de

um sacerdote secular, que segundo Weber (1999, p. 294) é funcionário que exerce sua

função a serviço de uma associação com base em relações associativas e é capacitado

pelo saber específico dentro de uma doutrina fixamente regulada, nos estimula a estudar

o seu envolvimento com movimentos populares e militantes de esquerda, e procurar

entender os parâmetros que se estabelecia nessas relações. Pe. Paulo se destacou não só

por ser um sacerdote, mas também por estar a frente de diversos grupos religiosos e, a

todo o momento, refletia e produzia livros sobre a Teologia da Libertação. A sua

qualificação profissional não só embasava suas análises teológicas como também suas

experiências sociais e políticas, o que pode nos aproximar de pontos aparentemente

Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 12

imperceptíveis e ganhar uma interpretação divergente ou trazer à tona contradições

presentes na sociedade ao longo do regime militar.

Durante o processo de pesquisa e estudo do objeto e seu contexto, nos

defrontaremos com lacunas, questionamentos que não poderão ser dirimidos por

completo e isto faz parte do trabalho do historiador. Henrique Espada Lima (2007) ao

analisar o trabalho de Carlo Ginzburg - O queijo e os vermes.

O livro de Ginzburg compunha-se então como um quebra-cabeça, um jogo

de montar: o narrador acompanha as vicissitudes de Menocchio, tentando

compreender como a sua cosmologia peculiar havia sido possível. Cada peça

é analisada e testada. Será o moleiro anabatista ou suas idéias correspondem

a um genérico luteranismo? E aproveitada ou descartada conforme sua

relação com outras peças adjacentes. O resultado que emerge daí, mesmo

depois de montado diante do leitor, revela-se menos armado do que se

poderia esperar: algumas perguntas e hipóteses permaneciam convivendo

com respostas mais seguras. O resultado final se assemelhava a um vaso

cerâmico escavado por um arqueólogo, cujos fragmentos sobreviventes

tivessem sido juntados cuidadosamente, mas cujas alças, ou o fundo,

tivessem sido complementados com outra argamassa, deixada aparente pelo

restaurador. Nenhum artifício a esconder os remendos que ajudavam de um

modo ou de outro, a manter o vaso de pé. O narrador reluta, expõe suas

dúvidas, argumenta, conjectura, ora se colocando sobre os ombros de seu

personagem, ora sobre os de seus acusadores. Em termos narrativos, tanto a

linearidade quanto a onisciência do narrador saem do livro abaladas. O

ganho interpretativo é inegável. (LIMA, 2007, p. 102)

O estudo biográfico de Pe. Paulo nos faz deparar com lacunas entre os

fragmentos; os documentos e as fontes orais não compõem um quebra-cabeça de

encaixe perfeito para formar um todo harmonioso. O processo de estudo, de análise e

pesquisa sobre os contextos nos permite construir análises e possibilidades

interpretativas sobre esses espaços vazios. Livros, histórias em quadrinhos, cartas

pessoais escritas por ele e seus amigos, reportagens em jornais, documentos produzidos

pelos grupos nos quais ele participava, nos permite, juntamente com estudos sobre os

contextos e o diálogo com a literatura especializada, elaborar possibilidades de

interpretações sobre esses vazios.

Os diferentes documentos e depoimentos orais nos apontam imagens divergentes

sobre Pe. Paulo, que provocam tensões e disputas pela primazia do conjunto. É

interessante destacar que Tonucci era apontado como radical, inclusive, como ―a

esquerda dos mais esquerdistas‖ e isto foi enfatizado por Pe. Renzo que se coloca com

um perfil de mediador. Já para os moradores do Novo Marotinho20

ele era visto como

20 Bairro conquistado após a luta do Movimento Baixa do Marotinho ver em LIMA, Gisele O., 2009.

Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 13

líder comunitário, tanto assim que encontramos uma placa de homenagem póstuma da

comunidade na praça principal do bairro. Vimos também na casa de um dos moradores,

uma foto do padre emoldurada e pendurada na parede da sala. Entretanto para

Theresinha Dantas de Menezes21

, Pe. Paulo era um homem batalhador como muitos

outros, com qualidades e defeitos. Ela não o adjetiva, simplesmente, o aponta como um

homem comum. Nesses breves relatos identificamos imagens diferenciadas sobre uma

mesma pessoa. Para compreendermos essas diversas visões sobre o mesmo sujeito

histórico temos que nos ater às relações existentes entre os depoentes e o sacerdote.

Qual a lógica que perpassa em cada conjunto documental? Como, por exemplo,

Abrir las puertas a um nuevo mundo: Puebla. O livro de Tonucci é uma resposta ao

curso de formação para os comunicadores de Puebla que aconteceu em La Ceja.

Segundo as próprias palavras do sacerdote:

O ano de 1979 teve como fato marcante para a Igreja da América Latina a

Conferência de Puebla.

Alguns meses depois, em La Ceja (Colômbia) o CELAM fez um curso para

a formação de Comunicadores de Puebla.

Conforme Boletim do CELAM o curso foi um verdadeiro sucesso.

As críticas que nós, mais ou menos 30 dos 120 participantes, tínhamos

apresentado ao diretor do curso mons. Lozano, não chegaram às páginas do

boletim.

Este caderno quer lembrar – um ano depois os dias passados em La Ceja e

ser um porta-voz daqueles que não puderam ter voz.

O profeta Jeremias dizia: ―Será por gente que balbucia, será numa língua

bárbara que o Senhor falará a este povo‖ (Jer. 28, 11). (TONUCCI, 1980, p.

1)

O autor deixou explícitas as intenções da confecção desse material, se propondo

a ser um meio de locução dos que fizeram críticas ao curso e não tiveram direito de voz.

Mas nem sempre estes documentos deixaram tão visíveis os seus propósitos, por isso

não basta nos atermos ao conteúdo, mas ao conjunto de documentos no qual ele está

inserido. No caso dos Artigos do Mensageiro teremos muita atenção ao conjunto dos

artigos. Tonucci, no ano de 1976, produziu diversos números dos artigos com o título

―Caminhar Juntos‖, lema da Campanha da Fraternidade. Portanto, ao analisarmos esses

artigos precisamos ter ciência sobre o objetivo geral e específico sobre esta campanha,

daí a importância de estarmos cuidadosos aos conjuntos mais amplos nos quais os

documentos estarão inseridos.

21 Amiga do sacerdote desde a sua chegada na Paróquia Nossa Senhora de Guadalupe.

Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 14

Além das fontes impressas trabalhamos com fontes orais onde, temos acesso a

informações que dificilmente encontraríamos em outros documentos. Para explorar

melhor as entrevistas que já possuímos e as que serão realizadas, utilizamos os trabalhos

desenvolvidos por Marieta Ferreira e Tânia Fernandes (2000) e Marieta Ferreira e

Janaína Amado (2006), respectivamente, História Oral: desafios para o século XXI e

Usos e Abusos da História Oral. Não podemos visualizar os depoimentos ou os

registros escritos como fontes suficientes em si mesmos, mas procurar averiguar

possíveis contradições apresentadas entre as fontes escritas e as entrevistas. Este

confronto não tem como pretensão estabelecer qual é o mais verdadeiro, mas analisar os

pontos de convergência e compreender os pontos díspares sobre o fato, avaliando os

variados posicionamentos, os sentimentos e identificando as opiniões dos sujeitos à

época do acontecimento e atualmente.

Afinal, as opiniões podem sofrer mudanças ao longo do tempo. O informante

pode reavaliar certos posicionamentos que possuía por meio do acesso às informações

ou análises que desconhecia ou, até mesmo, mudar de visão perante os problemas da

realidade, influenciando na sua interpretação sobre os fatos (ROSEMAN. In:

FERREIRA E FERNANDES, 2000). A noção de marcos constitutivos da memória22

apontado por Michael Pollack (1992, vol. 5, n. 10) nos permitirá identificar e analisar os

lugares de memória, os acontecimentos e personagens que se tornam marco e

referencial para solidificação da memória. O que auxiliará a compreender a imagem dos

entrevistados do ponto de vista social e pessoal em relação a Pe. Paulo.

Além dos elementos constitutivos da memória devemos atentar para as relações

e as situações ou elementos relatados ou não durante a entrevista e procurar

compreender se determinadas discrepâncias ou o silêncio não são provocados pela

própria memória, reflexo de autoproteção, podendo ser inconsciente ou resultado de

uma omissão intencional. O trabalho com a fonte oral requer um conhecimento prévio e

profundo sobre o tema para que durante a entrevista o pesquisador possa identificar

essas variantes e tentar dirimi-las no transcorrer do depoimento. (PORTELLI. In:

FERREIRA & AMADO, 1996).

22 Os marcos constitutivos da memória podem ser tanto acontecimentos vividos ou acontecimentos

vividos pelo grupo e pode ser também acontecimentos dos quais a pessoa não participou devido ao

espaço-tempo, mas que marcou provocando uma identificação com tal acontecimento (Pollack, 1992,

vol. 5, n. 10).

Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 15

Quando analisamos a atuação de Pe. Paulo nos grupos Moisés e Evangelização

da Periferia aproveitamos as reflexões de Pollack sobre memória e identidade para

compreendermos melhor o sentido de pertencimento dos integrantes dentro do grupo.

A memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto

individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator

extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de

uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si. (1992, vol. 5, n. 10,

p. 5)

Através das entrevistas que realizaemos com os integrantes destes grupos

tentamos investigar a construção de identidade destes. Entretanto não podemos perder

de vista que:

Ninguém pode construir uma auto-imagem isenta de mudança, de

negociação, de transformação em função dos outros. A construção da

identidade é um fenômeno que se produz em referência aos outros, em

referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de

credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta dos outros. Vale

dizer que memória e identidade podem perfeitamente ser negociadas, e não

são fenômenos que devam ser compreendidos como essências de uma

pessoa ou de um grupo. (POLLACK, 1992, vol. 5, n. 10, p. 5)

Pretendemos analisar as entrevistas tendo como pressuposto que a memória e a

identidade não são formas engessadas, mas tolerantes a mudanças e negociações.

Rememorar é trazer o passado ao presente exteriorizando novas interpretações, novas

experiências, novas informações. A continuidade dos estudos em torno dos métodos e

análises teóricas sobre a história oral prosseguirão ao longo da pesquisa para o

aperfeiçoamento da realização e exploração das entrevistas.

CONCLUSÃO

Procuramos analisar a atuação de Pe. Paulo dentro dos movimentos populares e

militantes de esquerda tendo como referência o conceito de sociedade civil

desenvolvido por Gramsci (2001), a atuação destes setores da sociedade é considerada

como fundamentos intelectuais e morais do Estado, ou seja, formadores de uma

ideologia de classe, como também de uma concepção de mundo, tendo esta capacidade

de se adaptar a diferentes grupos. A religião sendo formadora e difusora de uma

concepção de mundo e Paulo Tonucci um sacerdote, mas que reflete, produz e difunde

uma visão de mundo que diverge da concepção hegemônica da Igreja Católica. Estamos

tentando analisar, através dos estudos de Gramsci, de que forma esta instituição mantém

Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 16

uma unidade ideológica ―oficial‖ e como o grupo dominante reprime ou isola grupos

insubordinados como, por exemplo, Moisés e Evangelização da Periferia. Essa biografia

busca compreender a relação política da Igreja durante toda ditadura militar e os

primeiros anos de redemocratização.

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