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Saber Viver EDIÇÃO ESPECIAL PARA PROFISSIONAIS DE SAÚDE ADOLESCÊNCIA E AIDS Experiências e reflexões sobre o tema

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Saber ViverE D I Ç Ã O E S P E C I A L P A R A P R O F I S S I O N A I S D E S A Ú D E

ADOLESCÊNCIA E AIDSExperiênciase reflexõessobre o tema

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EDIÇÃO ESPECIAL SABER VIVER PROFISSIONAIS DE SAÚDE

JANEIRO 2004

Coordenação, organização e edição:Adriana Gomez e Silvia Chalub

Saber Viver Comunicação - [email protected]

Projeto Gráfico e Arte Final:A 4Mãos Comunicação e Design

Impressão:Minister

Programa Nacional DST Aids:Alexandre Grangeiro, Diretor PNDST Aids

Raldo Bonifácio, Diretor AdjuntoRicardo Pio Marins, Diretor Adjunto

Denise Doneda, Unidade de PrevençãoVera Lopes, Unidade de Prevenção

Eliane Izolan, AscomMauro Siqueira, AscomRogério Scapini, UDAT

Cledy Eliana, UDAT

Ilustrações:Jovens vivendo com HIV/aids que participaram das oficinas

realizadas pelo Programa Nacionalde DST/aids em diversas

cidades do país em maio de 2003.

Tiragem:100.000 exemplares

É permitida a reprodução total ou parcial dos artigos desta publicação,desde que citados a fonte e o respectivo autor.

As opiniões aqui representadas são de exclusiva responsabilidade dos autores.

Agradecimentos especiais a todos os profissionais de saúdeque participaram desta publicação, divulgando suas experiências.

SVSaber Viver Comunicação

Material financiado pelo Programa Nacional de DST e AIDS / SVS-Ministério da Saúde

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Uma atenção especial ao adolescente soropositivopor Vera Lopes, Cledy Eliana e Suely Andrade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .6

Adolescência como oportunidadepor Mario Volpi . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .8

Os adolescentes nos serviços de saúdepor Viviane Castello Branco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .10

A consulta do adolescente e jovem por Luiza Cromack, Maria Helena Ruzany, Eloísa Grossman e Stella Taquette . . . . . .12

Como atender o adolescente soropositivopor Maria Letícia Santos Cruz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .15

Adolescentes e o tratamento anti-retroviralpor Jorge Pinto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .17

A diferença entre quem se infectou pelo HIV por transmissão vertical e horizontalpor Marinella Della Negra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .18

Revelação do diagnóstico e aconselhamento em HIV/aidspor Débora Fontenelle, Denise Serafim e Sandra Filgueiras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .19

Gestante HIV+: o atendimento em sala de esperapor Iraína F de Abreu Farias, Maria de Fátima L Garcia, Regina T C Mercadante,Verônica M da Costa e Virgínia de A Ximenes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .22

Sexualidade, uso do preservativo e direito reprodutivopor Valdi Craveiro Bezerra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .24

O espaço ideal para o adolescente soropositivopor Sidnei Pimentel . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .27

Serviço de saúde e sociedade civil: a importância das parceriaspor Alaíde Elias da Silva e Edvaldo Souza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .29

Tributo a um guerreiropor Juliana Mattos e Maria Helena Leite de Castro Mendonça . . . . . . . . . . . . . . . . . .31

Crianças e adolescentes no Fórum ONG/Aids de São Paulopor Elizabeth Franco Cruz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .34

A experiência da Brinquedoteca do Gapa/Bapor Gladys Almeida e Isadora Oliveira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .36

Adolescer em casa de apoiopor Júlio Lancelotte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .38

Trabalhar com adolescentes soropositivos: alegrias e problemaspor Maria Lúcia Araújo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .39

O outro lado da moedapor Terezinha C R Pinto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .40

A inclusão do adolescente na escolapor Nájla Veloso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .42

Lições de um programa de redução de danospor Tarcísio de Andrade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .45

Jovens em situação de rua: desafios para a prevençãopor Verônica de Marchi . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .47

Adolescentes em conflito com a leipor André de Souza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .49

Oficinas com adolescentes soropositivospor Luiza Cromack . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .50

Livros, sites, telefones e endereços – Dicas úteis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .54

Sumário

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4 Saber Viver >> [Profissionais de Saúde]

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[Profissionais de Saúde] << Saber Viver 5

Trabalhar com jovens soropositivos:

Uma experiênciaenriquecedora

aids no Brasil já completou 20 anos.As previsões

pessimistas que tomavam conta da sociedade no

início da epidemia, felizmente, não se concre-

tizaram.Apesar de muitas perdas,hoje temos o que

celebrar.

A chegada à adolescência de meninos e meninas

que, ao nascer na década de 80 ou início de 90,

infectados pelo HIV, tinham pouca ou nenhuma

chance de tratamento, sem dúvida, é um bom

indício de que a aids está se tornando uma doença

crônica. Cada aniversário desses jovens guerreiros

foi e será motivo de comemoração para eles e para

todas pessoas à sua volta,sejam familiares,funcionários de casas de apoio,voluntários

de ONGs ou profissionais de saúde.Todos, sempre, com a emoção à flor da pele e

também com a certeza de que terão muitos desafios pela frente.

Foi pensando nesses desafios que a Saber Viver elaborou esta publicação destinada

aos profissionais de saúde que, em seu cotidiano profissional, convivem com esses

jovens. Nós nos aliamos ao esforço do Programa Nacional de DST/aids em aperfeiçoar

o atendimento aos adolescentes vivendo com HIV/aids e promover a integração

social deste grupo. Por diversas vezes,este ano,o PNDST/aids reuniu profissionais que

já trabalham com jovens vivendo com HIV/aids em eventos realizados pelo Brasil. Na

maioria deles,a Saber Viver esteve presente,colhendo dados e entrevistando pessoas.

Ao organizar a presente revista,construída a partir dos temas discutidos durantes

os encontros,nosso objetivo é tornar acessível aos profissionais de saúde,experiências

e reflexões que possam colaborar para o aperfeiçoamento de ações voltadas aos

adolescentes vivendo com HIV/aids e tornar a convivência de profissionais e jovens

uma experiência enriquecedora para ambos.

Além desta publicação,está sendo lançada,concomitamente,uma edição especial

da Saber Viver destinada ao jovem soropositivo,voltada ao universo desse grupo.

A partir do que aprendemos com estes trabalhos, temos a certeza de que não há

regras pré-estabelecidas para o atendimento ideal. Pelo contrário, as especificidades

individuais,culturais e sociais de cada jovem devem ser respeitadas e preservadas.

Um grande abraço.

Adriana Gomez e Silvia Chalub

Saber Viver Comunicação

A

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Uma atenção especial aoadolescente soropositivo

Programa Nacional de DST/aids desenvolveu, em

2003, uma ampla discussão sobre a situação dos

adolescentes vivendo com HIV no país e sua rede

de apoio social. A partir de um grupo de pro-

fissionais de saúde e representantes de ONGs que,

com sua larga experiência de trabalho junto a ado-

lescentes,expressou diferentes preocupações no sentido de ampliar este trabalho,foi

desencadeada uma série de encontros envolvendo adolescentes de algumas cidades

e profissionais de todos os estados,com o objetivo de juntos elaborarmos diretrizes

e propostas dirigidas ao trabalho com os adolescentes vivendo com HIV.

Mais da metade das novas infecções por HIV que ocorre na atualidade afeta jovens

de 15 a 24 anos de idade.No Brasil,estima-se que,a cada ano,quatro milhões de jovens

tornam-se ativos sexualmente. Segundo a BEMFAM (DHS 1996), a idade mediana da

primeira relação sexual para homens é de 14 anos, e para as mulheres, 15 anos. O

início precoce da vida sexual pode ser considerado um agravante para o com-

portamento de risco frente ao HIV/ aids. Em alguns países da América Latina e Caribe,

pesquisas revelam um baixo índice do uso freqüente do preservativo entre os jovens

de baixa escolaridade e um alto índice de gravidez e abortos realizados em condições

de alto risco,entre pré-adolescentes e adolescentes.

Na população brasileira,desde 2000,estão ocorrendo mais casos de aids em meninas

do que em meninos,com idade entre 13 a 19 anos. No período de 2000 a 2002,foram

notificados 531 novos casos de aids em meninas de 13 a 19 anos,contra 372 casos em

rapazes da mesma idade,mostrando uma proporção de dois novos casos em mulheres

para um caso em homens,logo no início da atividade sexual.Na faixa etária subseqüente

(de 20 a 24 anos), a relação praticamente se igualou, com 2.346 casos em homens e

2.299 casos em mulheres nos últimos dois anos.

O número elevado de ocorrências de gravidez na adolescência em jovens entre 10

e 19 anos (210.946 partos e 219.834 casos de abortos atendidos no Sistema Único de

Saúde - SUS, no período de 1999 até abril deste ano), o aumento da ocorrência de

doenças sexualmente transmissíveis e a intensificação do consumo de drogas lícitas

(álcool, cigarro e tranqüilizantes) e ilícitas (maconha, cocaína e crack) – com a

agravante do uso de drogas injetáveis com compartilhamento de agulhas e seringas

– ajudam-nos a entender melhor porque os jovens brasileiros são,em cada vez maior

número,vulneráveis à infecção pelo HIV/aids.

6 Saber Viver >> [Profissionais de Saúde]

OVERA LOPES1, CLEDY ELIANA2 E SUELY ANDRADE3

1. ANTROPÓLOGA, ASSESSORA TÉCNICA DA UNIDADE DE PREVENÇÃO/PN DST AIDS

2. MÉDICA, ASSESSORA TÉCNICA DA UNIDADE DA UDAT/PN DST AIDS

3. PSICÓLOGA, ASSESSORA TÉCNICA DA SCDH/PN DST AIDS

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Caracteriza-se, ainda, como fator de

vulnerabilidade dos jovens frente ao

HIV/aids, a violência sexual praticada

contra adolescentes, incluindo o abuso

sexual e a exploração sexual comercial.

A Rede Feminista de Saúde identificou

que 48% dos atendimentos nos serviços

de abortos previstos por lei são de

jovens entre 10 e 19 anos.

Educar os jovens sobre os riscos de

transmissão do HIV, apoiá-los na cons-

trução de habilidades para negociar,

resolver conflitos e ter opiniões críticas

melhora a confiança em si mesmos e

aumenta a capacidade de tomar decisões

responsáveis para se proteger e motivar

seus parceiros e colegas para que tomem

decisões seguras. Não é diferente para os

adolescentes vivendo com HIV.

Como conseqüência do uso da terapia

anti-retroviral no Brasil,atualmente,chega-

mos à primeira geração de adolescentes

vivendo com HIV que se enquadram na

categoria de transmissão vertical.São 1675

pessoas entre 10 e 19 anos fazendo uso da

terapia anti-retroviral no país. No entanto,

ainda nos deparamos com muitas barreiras

que contribuem para uma baixa adesão ao

tratamento em diferentes regiões do país.

Daí a importância da abordagem

integral do adolescente, para além do

tratamento e administração da terapia

anti-retroviral.

O PN DST/Aids tomou a iniciativa de

ouvir os adolescentes sobre o atendi-

mento nos serviços de saúde e na rede

de apoio social para orientar a formu-

lação de diretrizes do Ministério da

Saúde, considerando as demandas dos

adolescentes.Para tanto,foram realizadas

8 oficinas de trabalho com os adolescen-

tes em 8 cidades,além de três encontros

macro regionais, nos quais estiveram

presentes representantes de todas as

unidades federadas: profissionais que

atuam em serviços de saúde,profissionais

da área da saúde do adolescente,ONGs,

adolescentes vivendo com HIV/aids e

adolescentes em situação de risco social.

Finalmente,um fórum nacional alinhavou

propostas para serem discutidas com

outros programas governamentais,já que

a atenção integral ao adolescente

depende de políticas intersetoriais.

As falas dos adolescentes vivendo

com HIV nos mostraram avanços alcan-

çados e,ao mesmo tempo,muitas neces-

sidades e lacunas, tal como consta no

documento preliminar do Fórum Na-

cional:

� Os adolescentes com vida sexual ativa têm

tido acesso ao preservativo nos serviços de saúde;

� Os adolescentes não têm espaços coletivos

de interlocução para tratar de temáticas como a

sexualidade, saúde reprodutiva, acesso e per-

manência na escola, troca de vivências e suas

percepções sobre as instituições de apoio social;

� Os cuidadores/ familiares destes ado-

lescentes têm pouca ou nenhuma oportunidade

de discutirem, em espaços coletivos, suas dúvidas

e alternativas para apoiarem adequadamente os

adolescentes;

� A maioria dos adolescentes que vivem em

instituições de apoio, embora reconheçam e

mantenham vínculo afetivo com estes cuidadores,

têm expectativa de viverem com maior autonomia

para tomada de decisões e em ambiente familiar

– com madrinha, padrinho, avós, tios, etc;

� A revelação do diagnóstico é uma grande

dificuldade para profissionais de saúde e

familiares – sendo que muitos adolescentes,

embora "desconfiem" que são portadores do HIV,

não tiveram ainda seu diagnóstico explicitado. A

maioria destas situações foi constatada entre os

adolescentes da categoria de transmissão vertical;

� Muitos adolescentes têm tomado conhe-

cimento do diagnóstico durante internação, na

transmissão vertical ou no pré-natal, quando da

transmissão sexual;

� Estrutura dos serviços inadequada para

atendimento dos adolescentes – espaços pouco

humanizados e pensados para os adolescentes –

ou são de pediatria ou são de adultos;

� Falta de articulação dos serviços es-

pecializados de aids e serviços de saúde do

adolescente;

� Reconhecem nos profissionais de saúde

um bom acolhimento individual e apontam para a

necessidade de serem atendidos por diferentes

profissionais, como psicólogos e assistentes

sociais;

� Discriminação – receio de revelar seu

estado sorológico a amigos, receio do isolamento,

referência a situações de discriminação pre-

conceito na escola.

Enfim, propor atenção especial para o

adolescente soropositivo nos remete à

necessidade de avaliar o quanto temos

dedicado de atenção ao aolescente de um

modo geral… Como os profissionais da

saúde têm convivido com as especifici-

dades expressas neste período da vida?

[Profissionais de Saúde] << Saber Viver 7

O PN DST Aids tomou a

iniciativa de ouvir os

adolescentes sobre o

atendimento nos

serviços de saúde e na

rede de apoio social

para orientar a

formulação de diretrizes

do Ministério da Saúde,

considerando as

demandas

dos adolescentes

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visão predominante e estereotipada de nossa

sociedade sobre adolescência pode ser resumida

na expressão "aborrecência". Mais do que uma

simples brincadeira com a palavra, trata-se de uma

visão fundada no olhar do adulto sobre esta fase

da vida. Um olhar preconceituoso que vê o

adolescente por aquilo que ele não é: não é

maduro, não é responsável, não é paciente, não é

obediente ...

Diversas explicações sobre esta fase da vida

foram construídas a partir da observação de aspectos do desenvolvimento físico e

psicológico do adolescente, resultando numa visão reducionista da adolescência

como fase da explosão de hormônios, das tensões e conflitos por afirmação da

identidade,da inquietude e da contestação dos valores dos adultos.

Ao observarmos a participação dos adolescentes nos diferentes campos da vida

social,percebemos que os aspectos citados fazem parte da adolescência,mas não são

toda a adolescência. Fase da vida,com características específicas de desenvolvimento,

a adolescência está longe de ser um problema como pode parecer a adultos e teóricos

do tema.Antes de tudo,a adolescência é uma grande oportunidade.

Oportunidade para o próprio adolescente, pois, em função do seu desen-

volvimento,sua capacidade de aprendizagem é mais veloz e sua abertura para novas

relações possibilita-lhe transcender ao universo familiar. Como sujeito que vai

ampliando sua autonomia diante do mundo, o adolescente abre-se para novas

experiências,enfrentando desafios e propondo-se a participar como parte da solução

dos seus próprios problemas e dificuldades.

Oportunidade para a família, que passa a ter um sujeito que, além de demandar

atenção e cuidados, pode contribuir na tomada de decisões; ajuda na solução de

problemas; insere a família em novos contextos culturais, artísticos e de lazer; e

interage de forma mais crítica, levando os pais e adultos a reverem suas atitudes,

posturas e valores.Toda a família cresce e evolui quando o adolescente encontra nela

um espaço de realização. O mito de que a adolescência é uma fase de ruptura com a

família não se sustenta quando observamos o resultado da pesquisa “A voz dos

adolescentes” (Unicef, 2002), que demonstrou que, entre diferentes formas de

8 Saber Viver >> [Profissionais de Saúde]

Adolescênciacomo oportunidade

AMÁRIO VOLPI

OFICIAL DE PROJETOS DO UNICEF NO BRASIL E

COORDENADOR DO PROGRAMA CIDADANIA DOS ADOLESCENTES

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expressão, 95% dos adolescentes afirmaram ser a família o seu principal espaço de

realização e de prazer, onde se sentem bem, onde buscam apoio e onde se sentem

valorizados.

A adolescência é também uma grande oportunidade para a comunidade. Grupos

de adolescentes fazendo teatro, música, esportes, defendendo o meio ambiente,

debatendo as questões relativas à sexualidade, produzindo seus próprios meios de

comunicação,organizando ações de voluntariado e assumindo responsabilidades nos

grupos e associações comunitárias dão vida às comunidades e constituem-se em

verdadeiros atores sociais capazes de modificar para melhor o lugar onde vivem. São

adolescentes comunicadores que,na rádio comunitária,no jornalzinho que circula na

escola e no grupo de teatro que debate questões como a violência, movimentam

toda a comunidade com idéias novas e abordagens diferenciadas para velhos temas,

gerando uma dinâmica de descobertas dos valores,da cultura,da história e das pessoas

da comunidade que, em geral, são esquecidas pela supervalorização dos produtos

culturais da sociedade de consumo.

A adolescência é também uma grande oportunidade para as políticas públicas.A

escola,os programas de saúde,de assistências social,de trabalho,de cultura,esporte

e lazer,dentre outros,podem se transformar em espaços de experiências profundas

de cidadania, desde que sejam capazes de favorecer o diálogo, a participação e a

presença dos adolescentes com seus saberes,desejos, sonhos e vivências.

As experiências de participação de adolescentes na gestão das políticas públicas

como, por exemplo, nos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente,

demonstram que a simples presença de adolescentes nas plenárias do conselho

modifica a agenda,obriga a um debate mais objetivo e pragmático e traz a discussão

das políticas públicas para o cotidiano de suas necessidades e direitos.

Portanto, os mais de 21 milhões de adolescentes brasileiros representam uma

grande oportunidade de desenvolvimento e mudanças positivas para o país.Tratá-los

como problema implica reprimir todas as forças criativas e construtivas presentes

nesta fase da vida.Tratá-los como cidadãos, sujeitos de direitos e atores sociais com

uma contribuição específica para a sociedade, contribuirá para fazer um mundo

melhor para todos.

[Profissionais de Saúde] << Saber Viver 9

Grupos de

adolescentes dão

vida às

comunidades e

constituem-se em

verdadeiros

atores sociais

capazes de

modificar para

melhor o lugar

onde vivem

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VIVIANE MANSO CASTELLO BRANCOPEDIATRA – MESTRE EM SAÚDE PÚBLICA COLETIVA – GERENTE DO PROGRAMA

DE SAÚDE DO ADOLESCENTE DA SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE-RJ

u,que era apenas uma menina de cabeça baixa,perce-

bi que conseguia fazer tudo o que queria: consegui

dar apoio às meninas grávidas, dei informações, con-

segui dar amor e,melhor,consegui me sentir útil.Ago-

ra, vejo a vida com outro olhar.Aprendi que devemos

lutar pelos nossos objetivos" (Branco et al. 2003). O

depoimento de C., jovem de 18 anos, mãe de dois filhos e promotora de saúde do

Adolescentro da Maré, no Rio de Janeiro, ilustra porque diferentes trabalhos (Costa,

1999;Brasil,1999) têm apontado o protagonismo juvenil como estratégia privilegiada

para promover a saúde e o desenvolvimento do adolescente e da comunidade na qual

está inserido. O envolvimento direto do adolescente no planejamento,implementação

e avaliação das ações aumenta sua auto-estima, favorece sua autonomia, amplia suas

oportunidades de desenvolvimento pessoal e profissional,melhora sua qualidade de

vida e contribui para dar legitimidade e relevância ao trabalho do setor saúde junto

a outros jovens.

Embora a experiência venha mostrando a relevância da atuação dos adolescentes

como promotores de saúde nas unidades de saúde e na comunidade, a implantação

dessa proposta não é simples. Para que os profissionais incentivem a participação do

adolescente,é preciso que aceitem a sua autonomia e percebam o que é ser jovem na

sociedade atual e as contribuições que os adolescentes podem dar. Exige, portanto,

uma nova relação dos profissionais de saúde com eles mesmos,com os adolescentes

e com os demais setores da sociedade.A avaliação do Programa de Saúde do Adoles-

cente da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro,realizada em parceria com

o NESC/UFRJ (Branco,2002), identificou alguns dos elementos que dificultam a par-

ticipação dos adolescentes nos serviços de saúde.Ao estudar os sentidos que os pro-

fissionais de saúde atribuem à saúde do adolescente, percebe-se uma ênfase muito

grande na informação. Dessa forma,os profissionais valorizam o seu próprio trabalho,

e a crença na sua capacidade de mudar comportamentos,deixando em segundo pla-

no o papel da sociedade,da família e dos próprios adolescentes em promover a saú-

de.Além disso, ao descreverem o adolescente que sua unidade atende, destacam as

10 Saber Viver >> [Profissionais de Saúde]

Os adolescentes nos serviços de saúde

E“

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carências em detrimento de suas poten-

cialidades. Essas posturas dificultam uma

relação mais horizontal com os adoles-

centes. Por outro lado,o mesmo estudo

mostrou importantes avanços como a

valorização do trabalho em equipe e a

ênfase na disponibilidade do profissio-

nal,na escuta e na adequação da unidade

às necessidades dos adolescentes como

elementos importantes na captação,

adesão e qualidade na atenção.

Para que se possa avançar na promo-

ção da autonomia,da saúde e do bem es-

tar dos adolescentes e ampliar suas opor-

tunidades de participação é fundamental

que os serviços de saúde:

� garantam espaços democráticos

de planejamento, avaliação e troca de

experiências entre os trabalhadores da

unidade. Se os profissionais não opinam

sobre o seu próprio trabalho, como

podem abrir espaço para a participação

dos adolescentes ou de qualquer outro

usuário? As atividades devem favorecer

uma reflexão sobre o papel dos profis-

sionais frente ao adolescente,à família e

à comunidade, de forma a promover

mudanças;

� propiciem a seus trabalhadores

oportunidades de reflexão e auto-conhe-

cimento, abrindo para os profissionais

de saúde novas possibilidades de trans-

formação e crescimento pessoal em ou-

tras áreas que estão além do intelecto

(Branco e Robin, 2002). É importante

que eles possam repensar valores, dese-

jos,sentimentos,surpreender-se consigo

mesmos e descobrir suas próprias poten-

cialidades,sua criatividade e capacidade

de transformação. Só dessa forma pode-

rão valorizar as potencialidades dos ado-

lescentes e estar disponíveis para im-

plantar as inovações propostas por eles;

� percebam que o adolescente não

é "propriedade" de nenhum serviço em

especial.Toda a unidade deve se respon-

sabilizar pelos adolescentes,capacitando-

se para lidar com suas especificidades

individuais, culturais e sociais, mesmo

que haja profissionais mais interessados

e preparados para lidar com esse grupo.

O intercâmbio entre os programas, os

serviços e os usuários de diferentes

gerações é essencial para uma aborda-

gem mais holística.Um adolescente soro-

positivo,por exemplo,além de ser acom-

panhado pelo serviço específico, deve

poder participar dos grupos de adoles-

centes e das demais atividades culturais,

esportivas e lúdicas desenvolvidas pelos

parceiros. Pouco adianta organizar um

serviço de qualidade, se as diferentes

portas de entrada da unidade (como o

balcão,o guarda,o setor de Imunizações,

o teste de gravidez,entre outros) afastam

os adolescentes por desrespeitarem os

princípios básicos do atendimento;

� resguardem o sigilo e a confiden-

cialidade como elementos fundamentais

para a captação e adesão dos adolescen-

tes ao serviço;

� consigam dar visibilidade aos ado-

lescentes que já freqüentam a unidade

de saúde,como clientes ou como acom-

panhantes, aproveitando ao máximo

todas as oportunidades para divulgar e

facilitar o acesso às atividades que o

serviço oferece;

� respeitem as singularidades relati-

vas à idade,gênero,raça/etnia,condição

sócio-econômica, vínculos familiares,

domicílio, incapacidades,escolaridade e

trabalho,entre outras;

� utilizem metodologias participati-

vas que promovam o desenvolvimento

de habilidades e favoreçam a reflexão e

a troca de experiências;

� estabeleçam parcerias e projetos

integrados com outros setores de forma

a ampliar sua atuação junto aos adoles-

centes, criar retaguardas e oferecer

acesso a atividades profissionalizantes,

esportivas, artísticas e de convivência

comunitária;

� ampliem gradativamente os espa-

ços de participação dos adolescentes

nos serviços,ouvindo e implementando

suas propostas e criando parcerias com

grupos organizados de jovens.

Só o esforço integrado dos diferentes

atores poderá tornar os serviços de

saúde mais aptos a interagir com os

adolescentes, incentivando a sua

participação nas atividades de aconse-

lhamento e promoção de saúde desen-

volvidas na unidade e na comunidade.

Dessa maneira, estarão criando oportu-

nidades para que outros jovens de cabe-

ça baixa possam erguê-la e encarar a vida

de forma mais construtiva e otimista.

Referências Bibliográficas:COSTA, A.C.G. O Adolescente como Protagonista. In:

SCHOR,N; MOTA, M.S.T; BRANCO, V.C (org). Cadernos deJuventude, Saúde e Desenvolvimento. Brasília: Ministério daSaúde, 1999.

BRASIL. Saúde e desenvolvimento da juventude brasileira:construindo a agenda nacional. Brasília: Ministério da Saúde,Secretaria de Políticas de Saúde, 1999.

BRANCO, V.M.C., ROBIN, M. Contribuindo para odesenvolvimento pessoal do profissional de saúde. Saúde emfoco. Rio de Janeiro, n.23, julho/2002.

BRANCO, V.M.C. Emoção e razão: os sentidos atribuídospor profissionais de saúde à atenção ao adolescente.Dissertação de Mestrado em Saúde Coletiva. Rio de Janeiro:Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva, Universidade Federal doRio de Janeiro, 2002.

BRANCO, V.M.C; COUTINHO, M.F.G.C; MEDEIROS, d.C.;PEREIRA,A.R. Fomentando a participação dos adolescentes.Anais do VII Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva. ABRASCO,2003.

[Profissionais de Saúde] << Saber Viver 11

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s adolescentes atravessam um processo dinâmico e

complexo de mudanças.As transformações do cor-

po, o surgimento de novas habilidades cognitivas e

seu novo papel na sociedade são determinantes do

questionamento dos valores que os cercam. Muitas

vezes se predispõem a novas experiências, que po-

dem ameaçar sua saúde,como por exemplo,exposição a risco de acidentes,relações

sexuais desprotegidas e uso de drogas.

A assistência aos adolescentes e jovens nos serviços de saúde não deve ser desvinculada

do contexto em que vivem.Houve mudanças significativas no perfil de morbi-mortalidade

neste grupo populacional, com aumento de agravos que poderiam ser evitados por

medidas de promoção de saúde e prevenção, como a aids. Cabe aos profissionais de

saúde incluir medidas preventivas como componente fundamental de sua prática clínica.

A equipe de saúdeA atenção integral à saúde de adolescentes e jovens requer a abordagem de

profissionais de diversas disciplinas que devem interagir através de um enfoque multi

ou interdisciplinar. O trabalho multidisciplinar tem como principal característica a

prestação do serviço a uma mesma população através da interconsulta ou referência.

Essa atuação, mesmo com uma boa interação entre os componentes da equipe, é

realizada de forma independente, às vezes em diferentes locais e na maioria das

situações com a visão apenas de sua própria especialidade e/ou disciplina.

O trabalho interdisciplinar é centrado no sujeito,não havendo limites disciplinares.

Define-se a equipe interdisciplinar como um conjunto de profissionais de diferentes

disciplinas que interatuam para prestar o atendimento ao cliente. Ele permite uma

discussão conjunta.As decisões são compartilhadas e tomadas dentro das diferentes

perspectivas,resultando em uma proposta de intervenção mais eficaz.

A recepção nos serviços de saúdeA acolhida aos adolescentes e jovens nos serviços deve ser cordial e compreensiva,

para que se sintam valorizados e à vontade,buscando garantir sua adesão ao serviço,

12 Saber Viver >> [Profissionais de Saúde]

A consulta doadolescente e jovem

OLUIZA CROMACK1, MARIA HELENA RUZANY2,

ELOÍSA GROSSMAN3, STELLA TAQUETTE4

1 GINECOLOGISTA E OBSTETRA. MESTRADO EM SAÚDE COLETIVA PELO NESC/UFRJ2.DIRETORA DO NÚCLEO DE ESTUDOS DA SAÚDE DO ADOLESCENTE (NESA)

3 E 4. PEDIATRAS DO NESA

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que deve ser permanentemente acessível. Muitas vezes, eles têm dificuldades em

respeitar os horários de agendamento, determinando que o serviço construa

mecanismos de organização mais flexíveis. Vale lembrar que toda a equipe está

envolvida neste acolhimento e deve estar capacitada para o mesmo: segurança,

porteiro, recepcionista, auxiliar de enfermagem

A adequação do espaço físicoEm geral, os adolescentes preferem uma sala de espera exclusiva para sua

utilização nos horários de atendimento. Esse espaço deve ser, acima de tudo,

acolhedor e confortável para os clientes e seus acompanhantes. Isto pressupõe

locais amplos, bem ventilados e limpos, adequados para o desenvolvimento de

atividades de grupo que podem ter múltiplos objetivos,tais como a apresentação do

serviço, integração com a equipe e educação para a saúde. O acesso a materiais

educativos (livros, revistas, vídeos, programas de informática) é de grande valor

porque, além de facilitar a troca de informações, ajuda a aproveitar o tempo livre e

permite o desenvolvimento de autonomia nas escolhas. Divulgação dos serviços

existentes e local para distribuição de preservativos,bem como materiais específicos

sobre DST/aids e práticas sexuais mais seguras devem estar disponíveis.

A entrevista – características do profissional de saúdeIndependentemente da razão que faz com que o adolescente/jovem procure o

serviço de saúde, cada visita oferece ao profissional a oportunidade de explorar

outros aspectos de sua vida,contribuindo para a detecção,reflexão e resolução de ou-

tras questões distintas do motivo principal da consulta.A entrevista deste usuário e

sua família ou acompanhante é um exercício de comunicação interpessoal, que

engloba a comunicação verbal e a não-verbal.Além das palavras,deve-se estar atento

às emoções, gestos, tom de voz e expressão facial do cliente. É importante formular

perguntas que auxiliem a conversação, buscando compreender sua perspectiva,

afastar preconceitos, evitando fazer julgamentos, especialmente no que diz respeito

à abordagem de determinadas temáticas como sexualidade e uso de drogas.

O profissional de saúde não deve ficar restrito a obter informações sobre o motivo

focal que levou o adolescente ao serviço de saúde,mas oferecer um espaço de escuta,

para que o adolescente se sinta à vontade para trazer dúvidas e anseios, que muitas

vezes escondem-se em uma dor física.

As ações preventivas como componentes da consultaÉ importante trocar informações com os adolescentes a respeito de seu

crescimento físico e desenvolvimento psicossocial e sexual. Deve ser discutida a

importância de se tornarem ativamente envolvidos em decisões pertinentes aos

cuidados de sua saúde, como uso de preservativos e outros métodos para evitar

gravidez, adesão a tratamentos etc.As consultas são momentos privilegiados para o

aconselhamento de práticas sexuais responsáveis e mais seguras.Também se tornam

um espaço de esclarecimento de dúvidas,de conversa sobre a importância do afeto,

do cuidado e do prazer nas relações e de aconselhamento sobre situações de risco

para abuso sexual.

O consumo de cigarros,álcool ou drogas ilícitas e anabolizantes deve ser abordado

nas consultas para reflexão e encaminhamento. Outros assuntos importantes são as

dificuldades na escola e no trabalho. Essa abordagem deverá ser desenvolvida de

[Profissionais de Saúde] << Saber Viver 13

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forma criativa,não se revestindo de um caráter inquisitivo. Não há obrigatoriedade de

esgotar todos os tópicos em uma única ocasião.

A familiaÉ importante estar disponível para atender o paciente e sua família sem

autoritarismos, promovendo uma relação profissional horizontal. De forma ideal,

devem existir dois momentos na consulta: o adolescente sozinho e com os fami-

liares/acompanhantes. Entrevistar o adolescente sozinho cria a oportunidade de es-

timulá-lo ao diálogo,buscando que se torne,de forma progressiva,responsável por sua

própria saúde e pela condução de sua vida.A entrevista com a família é fundamental

para o entendimento da dinâmica e estrutura familiar e para a elucidação de dados da

história pregressa e atual. Bem como inserir a família/cuidadores no acompanhamen-

to e apoio do adolescente,construindo um vínculo de parceria entre equipe de saúde

– familiares e adolescente. É fundamental que o adolescente e a família tenham cla-

ro o papel confidencial e sigiloso da consulta do adolescente, que é o foco da equi-

pe, sem o que ficaria comprometida toda a assistência.

Trabalho de grupo/dinâmicasÉ bastante interessante que todo o serviço voltado para adolescentes possa

desenvolver práticas educativas de grupo. Estas práticas visam proporcionar um

espaço de troca de vivências, no qual o adolescente possa sentir-se à vontade para

trazer suas dúvidas e compartilhá-las com o grupo. Neste espaço, trabalha-se com o

conhecimento trazido pelos participantes buscando a construção do conhecimento

daquele grupo. Para isso, são utilizadas técnicas lúdicas, tais como desenho, corte e

colagem, dramatização, exposição de vídeo entre outras.A coordenação idealmente

é realizada por dois profissionais de saúde capacitados, de qualquer categoria

profissional. O adolescente sugere os temas a serem discutidos e estabelece con-

juntamente com a coordenação as normas de funcionamento do grupo. São temas que

sempre surgem:conhecimento do corpo,gênero,sexualidade,namoro,masturbação,

virgindade,contraceptivos e DST/aids.

O grupo deve ter duração máxima de duas horas para não perturbar a rotina de

adolescentes e cuidadores,e a confidencialidade é um ponto a ser marcado. É uma ati-

vidade de que os adolescentes gostam muito e que complementa o trabalho da

consulta individual. O mesmo trabalho pode também ser realizado com familiares e

cuidadores.

ConclusãoO momento da consulta dos adolescentes e jovens,bem como das atividades de

grupo, deve ser aproveitado pela equipe de saúde para a troca de informações. A

equipe deve ter em mente que,tratando-se de uma população em constante mudança,

é necessário que,para aumentar a efetividade dos serviços,exista uma preocupação

de conhecer o que está em transição e os novos costumes adotados.

Outra questão,que muitas vezes os serviços evitam adotar,é a maior participação

do usuário na gestão e na atenção prestada. Com esse grupo etário,o distanciamento

poderá significar a pouca compreensão das normas e condutas, diminuindo a

aderência ao serviço e às atividades planejadas. É muito importante que o adolescente

sinta que faz parte daquele serviço e ajude a construí-lo.

14 Saber Viver >> [Profissionais de Saúde]

A atenção integral

à saúde de

adolescentes e

jovens requer a

abordagem de

profissionais de

diversas disciplinas

que devem interagir

através de um

enfoque multi ou

interdisciplinar

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oucas são as unidades que possuem serviço ou setor voltado

para a assistência ao adolescente. Normalmente,os serviços

de Medicina do Adolescente estão em hospitais universi-

tários e a maioria dos programas de aids não conta com es-

sa opção de assistência.

Para muitos profissionais de saúde,os adolescentes são

pessoas desagradáveis, mal educadas e intratáveis. A

intolerância e o despreparo de muitos profissionais dificultam e podem inviabilizar o

acesso do jovem aos cuidados necessários.

O serviço que recebe pessoas soropositivas entre 10 e 20 anos deve contar com

profissionais que gostem de trabalhar com adolescentes e que estejam preparados

especificamente para acompanhar portadores de HIV.A identificação de profissionais

com essas características é o ponto de partida para o trabalho.A complexidade da

demanda faz com que seja indispensável o trabalho em equipe. Não queremos aqui

propor nenhuma fórmula ou composição formal de equipe, mas pelo menos duas

pessoas precisam estar envolvidas e disponíveis para a assistência a adolescentes

HIV +. Podem ser dois médicos, um médico e um enfermeiro, um médico e um

psicólogo ou assistente social. O ideal é que essas pessoas estejam articuladas às

diferentes formas de assistência que podem ser necessárias (SAE, Hospital Dia,

internação e atendimento domiciliar) e que mantenham o contato com os pacientes

mesmo quando eles forem transferidos temporária ou definitivamente para esses

serviços. O objetivo deve ser prestar assistência integral ao adolescente HIV+ desde

o momento do diagnóstico até o fim da adolescência (idade variável) quando ele

poderá ser transferido para um programa de aids geral, dentro da mesma unidade e

às vezes com a mesma equipe.

A experiência do Hospital dos Servidores do Estado do Rio de JaneiroO atendimento a adolescentes soropositivos no Hospital dos Servidores do Estado

ocorre no serviço de Doenças Infecciosas e Parasitárias (DIP). O hospital não conta

com serviço específico para adolescentes. Definimos,no ambulatório geral do DIP,um

horário específico para atendê-los.

[Profissionais de Saúde] << Saber Viver 15

Como atender oadolescentesoropositivo

Maria Letícia Santos CruzMÉDICA PEDIATRA E INFECTOLOGISTA DO SERVIÇO DE DOENÇAS INFECCIOSAS DO

HOSPITAL DOS SERVIDORES DO ESTADO DO RJ P O serviço deve

contar com

profissionais que

gostem de

trabalhar com

adolescentes e

que estejam

preparados

especificamente

para acompanhar

portadores de HIV

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A equipe é composta por uma

médica infectologista e uma pediatra,

uma psicóloga e duas enfermeiras. O

serviço de DIP conta com uma assistente

social e com setores de SAE,internação,

Hospital Dia e atendimento domiciliar.

Os adolescentes têm consultas

mensais no DIP, geralmente no dia em

que é desenvolvida uma atividade em

grupo. O início dos anti-retrovirais é

adiado enquanto o estado clínico e imu-

nológico (contagem de células CD4)

permitirem. Sempre que possível,

optamos por usar esquemas simplifica-

dos, com drogas que possam ser usadas

uma ou duas vezes ao dia. Todos são

tratados de acordo com o Guia de Trata-

mento Clínico da Infecção pelo HIV em

adultos e adolescentes do Programa

Nacional de DST/aids do Ministério da

Saúde.

No serviço de DIP do Hospital dos

Servidores do Estado, são atendidos

adolescentes provenientes de dois pro-

gramas:aids pediátrico e ambulatório de

prevenção de transmissão vertical do

HIV.Apesar de terem em comum o vírus,

são populações com características bem

distintas.

Da Imunopediatria para o DIPOs pacientes da Imunopediatria

normalmente já são acompanhados

naquele setor há alguns anos e estão

habituados ao ambulatório e enfermaria

de Pediatria. Os pediatras,muitas vezes,

adiam ao máximo a transferência desses

pacientes para o programa de adolescen-

tes. São jovens que, em alguns casos,

apresentam atraso no desenvolvimento

somático e emocional decorrentes da in-

fecção e de situações de perdas asso-

ciadas ao HIV. A transferência geralmen-

te só se concretiza quando se torna

inevitável,como na necessidade de uma

internação hospitalar que não pode mais

ocorrer na enfermaria de pediatria. Nes-

sas situações, a internação tem sido tra-

balhada pela equipe como uma opor-

tunidade de aproximação do jovem com

o serviço do DIP,devido à possibilidade

de contatos diários entre o paciente e

diferentes profissionais. Esses pacientes

geralmente já estão em uso de anti-re-

trovirais e nessa ocasião a administração

das drogas deve ser revista pela equipe,

que identifica quem é o responsável por

"se lembrar" dos remédios.Normalmente

um adulto ou irmão mais velho tem essa

responsabilidade e o adolescente pode

ou não estar comprometido com seu

tratamento. Durante esses primeiros

contatos, o comprometimento com o

próprio tratamento é estimulado.

Outro problema com os adolescen-

tes provenientes do programa de aids

pediátrico é que eles,por vezes,chegam

ao nosso ambulatório ainda sem conhe-

cer sua condição de portador de HIV.

A revelação do diagnóstico pode

levar bastante tempo ou se completar

em poucas consultas.Tudo depende da

resposta do adolescente, à medida que

damos as informações. Logo nas primei-

ras consultas, conversamos na presença

dos pais sobre o que o novo paciente

sabe a respeito do problema que o traz

tão freqüentemente às consultas. Deixa-

mos claro para os pais que vamos preci-

sar informar o adolescente sobre sua

condição de HIV + . Nem sempre os pais

aceitam bem a idéia neste momento. Às

vezes, a família precisa de um tempo

antes da revelação.

Gravidez precoce e HIVAs meninas provenientes do

ambulatório de prevenção de trans-

missão vertical do HIV (onde a cada ano

cresce o número de gestantes infectadas

entre 13 e 18 anos) chegam ao serviço

precisando lidar com dois fatos novos

em suas vidas: a maternidade precoce

(apesar de algumas vezes desejada e até

planejada) e a infecção pelo HIV. O

serviço oferece testagem para os

parceiros das gestantes e aqueles com

diagnóstico positivo para o HIV que

estão na mesma faixa etária das parceiras

também são admitidos para acom-

panhamento.

Grupos de discussãoDesde o início,tivemos a proposta de

formar um grupo de adolescentes que

favorecesse a discussão e a troca de

experiências entre jovens com o mesmo

"desafio". Mas o grupo demorou mais de

oito meses para se formar.Durante os pri-

meiros meses, o encontro dos jovens

ocorreu apenas na sala de espera do

ambulatório,pois a freqüência era muito

irregular e a resistência ao acompanha-

mento era patente. Apesar de conversa-

rem muito pouco entre si, eles percebe-

ram que aquele espaço/horário era

destinado a eles e que o serviço os estava

acolhendo. Nesses primeiros meses,eles

tiveram acesso a atendimentos indivi-

duais com a médica,a psicóloga e a enfer-

meira. Com o tempo,esses encontros in-

formais facilitaram a formação do grupo.

Desde que tiveram início, em 2002,

os encontros em grupo têm acontecido

regularmente e são agendados uma vez

16 Saber Viver >> [Profissionais de Saúde]

Procuramos afinar

o conhecimento

dos profissionais

sobre adolescência

e discutir os casos

regularmente

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O adolescente infectado pelo HIV

através de transmissão sexual ou uso de

drogas injetáveis,após a puberdade,pare-

ce ter curso clínico semelhante ao do

adulto. Entretanto,um número crescente

de crianças infectadas perinatalmente

pelo HIV está atingindo a adolescência e

apresenta curso clínico diferente dos

adolescentes infectados mais tardiamente.

A prescrição de medicação anti-retro-

viral deve ser adaptada de acordo com o

estadiamento da puberdade. Para isto,

utiliza-se a escala de Tanner. O adoles-

cente nas fases iniciais da puberdade

(Tanner I e II) deve ser tratado segundo

as recomendações pediátricas,enquanto

aquele em fase adiantada de maturação

sexual (Tanner V) deve seguir as reco-

mendações estabelecidas para os adultos.

Nas fases intermediárias (Tanner III e IV),

o tratamento deve ser individualizado a

critério médico. As rápidas transfor-

mações biológicas observadas nos adoles-

centes requerem adequações posológicas

freqüentes, monitorando toxicidade e

eficácia do regime anti-retroviral em uso.

Os adolescentes precisam conhecer sua

condição de infectados pelo HIV e ser

totalmente informados sobre os diferentes

aspectos e implicações da infecção,a fim de

cumprirem adequadamente as orientações

médicas. Além disso, necessitam ser

orientados sobre os aspectos de sua

sexualidade e os riscos de transmissão

sexual aos seus parceiros. Finalmente,

devem ser encorajados a envolver seus pais

ou responsáveis em seu atendimento.

A adesão do adolescente à terapia anti-

retroviral sofre a influência de algumas

peculiariedades observadas nessa faixa

etária, tais como: a negação e o medo de

sua condição de infectado pelo HIV;a de-

sinformação; o comprometimento da

auto-estima; o questionamento sobre o

sistema de saúde e a eficácia da tera-

pêutica e as dificuldades em obter apoio

familiar e social.

Com a finalidade de melhorar o acom-

panhamento clínico e a adesão ao trata-

mento,sugerem-se as seguintes estratégias:

� Preparar adequadamente o adoles-

cente para a revelação do diagnóstico,de

preferência com suporte psicológico;

� Negociar um plano de tratamento

em que haja envolvimento e com-

promisso do adolescente, informando-o

adequadamente sobre questões ligadas

ao prognóstico;

� Buscar a participação da família,

amigos e, eventualmente, de instituições

para apoiá-lo durante seu tratamento;

� Estimular a criação de grupos de

discussão entre a clientela de adoles-

centes atendida pelo serviço;

� Na escolha do regime anti-

retroviral, considerar não somente a po-

tência, mas também a viabilidade do

esquema, levando em conta a como-

didade posológica;

� Esclarecer sobre a possibilidade de

efeitos colaterais e conduta frente a

eles.

por mês. Para ser convidado a participar

do grupo, o adolescente precisa co-

nhecer seu estado de portador do HIV.

Os assuntos tratados no grupo são

sugeridos pelos adolescentes. O termo

HIV surgiu desde o primeiro encontro e

raramente deixa de ser o centro das

discussões. Os principais temas abor-

dados em grupo têm sido:preconceitos,

medo de contar o diagnóstico a familiares

e amigos, contar ou não contar para os

namorados,o impacto do diagnóstico em

suas vidas, o que significam os exames

que fazem periodicamente (CD4 e carga

viral) e a possibilidade do vírus se tornar

resistente aos medicamentos.

O entrosamento da equipe de profis-

sionais é fundamental para o bom anda-

mento deste trabalho. Procuramos afinar

o conhecimento dos profissionais sobre

adolescência e discutir os casos regular-

mente. Algumas noções sobre aspectos

práticos ao longo da adolescência po-

dem ser úteis.

[Profissionais de Saúde] << Saber Viver 17

Adolescentes e otratamento antiretroviral (modificado do Guia de Tratamento Clínico da Infecção pelo HIV em Crianças 2002/2003)

Jorge Andrade PintoPROF. ADJUNTO DO DEPARTAMENTO DE PEDIATRIA E COORDENADOR DO GRUPO DE AIDS MATERNO INFANTIL DA FACULDADE DE MEDICINA DA UFMG

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uando traba-

lhamos com

adolescentes

soropositivos,

notamos que

há, tanto na

parte clínica

como na psi-

cossocial,uma

grande dife-

rença entre os adolescentes de trans-

missão vertical e adolescentes de

transmissão horizontal.

Os adolescentes do primeiro grupo,

ou seja,infectados através da transmissão

mãe / filho,são adolescentes que durante

sua vida já foram submetidos a segui-

mento e tratamento,deles próprios e de

seus pais. Estão convivendo com pais

doentes ou já são órfãos. São cuidados

por familiares ou estão institucionaliza-

dos. Esta população é tratada com muito

cuidado e poupada,na maioria das vezes,

do seu diagnóstico,crescendo e chegan-

do à adolescência sem ter o conhecimen-

to do porquê do constante acompanha-

mento médico e da medicação utilizada.

Esses adolescentes, devido às con-

dições em que são cercados durante o

crescimento,apresentam,na maioria das

vezes, um retardo em seu desenvolvi-

mento psicossocial. Há uma resistência

por parte de familiares e cuidadores da

revelação diagnóstica,apesar da tentativa

dos profissionais de saúde (médicos,

psicólogos) de convencer os cuidadores

do quanto é importante que o adoles-

cente saiba da sua condição sorológica

para que possa tomar as rédeas de seu

próprio tratamento,de seu cuidado e do

próximo.

Os adolescentes de transmissão hori-

zontal,ou seja, infectados por via sexual,

usuários de drogas endovenosas e

infectados por sangue e hemoderivados,

com exceção desses últimos, que têm

por parte da família e do serviço de saúde

um tratamento e cuidados semelhantes

ao de transmissão vertical, apresentam

um comportamento de sua parte e do

serviço de saúde, totalmente diferente.

Os adolescentes infectados por via

sexual e uso de drogas endovenosas não

têm, via de regra, um atraso no desen-

volvimento psicossocial.São,em sua maio-

ria,originários de famílias desestruturadas

e das quais não recebem apoio.

Quando esses adolescentes, por

alguma razão,procuram o serviço de saúde

e é pedido um teste para HIV (muitos são

adolescentes grávidas que fazem o teste

no pré-natal),o resultado lhe é passado sem

nenhum preparo prévio, mesmo tendo

este adolescente a mesma idade do ado-

lescente de transmissão vertical,como se o

fato de praticar sexo ou usar droga, os

preparassem para receber um resultado

deste porte.

Acredito que,devido ao aumento do

número de adolescentes vivendo com

HIV/AIDS, é a hora propícia para que,

juntos,os profissionais de saúde e esses

adolescentes discutam uma melhor abor-

dagem e o melhor momento, por parte

da equipe profissional e dos familiares

em revelar o diagnóstico, para que pos-

samos ter um resultado mais promissor

no tratamento, na socialização e na

qualidade de vida.

18 Saber Viver >> [Profissionais de Saúde]

A diferença entre quem seinfectou pelo HIV portransmissão vertical ou horizontal

Marinella Della NegraSUPERVISORA DA 2ª UNIDADE DE INTERNAÇÃO DO INSTITUTO DE INFECTOLOGIA EMÍLIO RIBAS

Q

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prática do aconselhamento desempenha um pa-

pel fundamental no contexto da epidemia da aids

e se reafirma como uma tecnologia de cuidado

estratégico para o momento da revelação do diag-

nóstico do HIV e na promoção da integralidade na

atenção à saúde.

O trabalho no campo da aids tem,por um lado,demonstrado a falência do modelo

técnico-científico-normativo,prescritivo e coercitivo – que é insuficiente para atender

as necessidades das pessoas que vivem e convivem com a aids. E,por outro lado,tem

revelado o quanto faltam respostas no cotidiano dos profissionais de saúde, em

especial no atendimento ao adolescente com HIV/aids. Com certeza, não teremos

respostas para tudo, mas é importante entendermos o aconselhamento como uma

tecnologia estratégica, que favorece o emergir de respostas indispensáveis para o

processo de cuidado à saúde, à medida que o profissional estimula a autonomia e

liberdade do adolescente para expressar suas questões,utilizando seu conhecimento

para escutá-lo melhor e pensar com ele em como podem resolver o seu problema.

O aconselhamento é uma ação em saúde que implica a construção de uma relação

de confiança mútua e o estabelecimento do diálogo "profissional – adolescente" e

"profissional – família – adolescente".Prima pela utilização de linguagem acessível,pela

confidencialidade e o respeito às diferenças e à cidadania. Desta forma, contribui

para que temas relacionados à aids,difíceis e necessários de serem abordados,como

sexualidade, morte, uso de drogas, tabus, estigma e preconceitos, fluam mais

naturalmente.

As principais características do processo de aconselhamento são a ESCUTA e a

TROCA. Escutando os anseios e medos do adolescente, reconhecendo suas crenças

e valores,podemos conhecê-lo melhor. Do mesmo modo, trocando saberes, afetos e

experiências, podemos perceber os limites e também as possibilidades que o

[Profissionais de Saúde] << Saber Viver 19

Revelação do diagnósticoe aconselhamento emHIV/aids

A O aconselhamento

é uma ação em

saúde que implica a

construção de uma

relação de confiança

mútua e o

estabelecimento do

diálogo “profissional

– adolescente” e

“profissional – família

– adolescente”

Débora Fontenelle1, Denise Serafim2 e Sandra Filgueiras3

1MÉDICA CLÍNICA GERAL DO HUPE-UERJ (NÚCLEO DE EPIDEMIOLOGIA ) E GERÊNCIA DE DST/AIDS DA SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE DO RIO DE JANEIRO (SMS),

2 ASSESSORA TÉCNICA DA UNIDADE DE PREVENÇÃO DO PNDST/AIDS,3 PSICÓLOGA SANITARISTA DA ASSESSORIA ESTADUAL DE DST/AIDS - SES/RJ

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adolescente tem para lidar com as adversidades do viver com o vírus da aids. O

aconselhamento implica uma reflexão conjunta,na qual o adolescente é estimulado

a participar ativamente e, junto com o profissional, encontrar recursos para o alívio

do sofrimento físico e psíquico. Pressupõe o acolhimento do sofrimento que o

adolescente traz e o entendimento de seu contexto de vida.

O momento da revelação do diagnóstico pelo HIV é uma situação crucial para o

adolescente e pode gerar ansiedade e estresse para o profissional de saúde.A postura

acolhedora do profissional no processo de aconselhamento contribui para uma

melhor condução deste momento. Este processo implica CONHECER.

Quem é o adolescente com HIV/aids que estamos atendendo?� aquele que adquiriu o HIV por transmissão mãe-filho; pelo uso de drogas

injetáveis;por transfusão sanguínea;por transmissão sexual;que descobriu ter

o vírus durante a gravidez; ou que ainda desconhece seu diagnóstico porque

a família não quer / não consegue contar;

� aquele que reage a esta situação com raiva,revolta,desespero,tristeza,negação,

passividade,ou que consegue lidar com sua condição de soropositivo;

� aquele que não tem com quem contar ou o que tem o apoio da família e/ou de

uma rede social;

� aquele que faz parte de algum grupo social (escola, igreja, rua ...) ou não faz

parte de nenhum grupo;

� que se culpa ou culpa o outro;

� que gosta de usar drogas;

� que tem namorado(a),companheiro(a) e tem vida sexual

Qual é a maior preocupação deste adolescente?� fazer parte de um grupo, ter amigos,namorado(a);

� a revelação do diagnóstico para os outros;

� ser discriminado;

� ser abandonado;

� o medo da morte;

� o exercício da sexualidade;

� como viver uma relação afetiva,constituir família.

Conhecendo o adolescente,podemos contextualizar melhor nossas mensagens à

sua vivência e torná-las mais eficazes. Na continuidade do processo de

aconselhamento,aspectos como as dúvidas,o saber,crenças,valores,anseios e medos

deste adolescente potencializam o diálogo, contribuindo para que a orientação de

medidas preventivas seja mais compatível a sua realidade. É importante realizar uma

avaliação de risco com o adolescente,ajudando-o a identificar as situações que vivencia

em relação ao HIV/aids e outras DST,para evitar ou,pelo menos,minimizar os riscos,

de acordo com as suas possibilidades e limites.

Cada adolescente é capaz de despertar diferentes sentimentos em nós,

profissionais. Muitas vezes,nos sentimos impotentes quando os pais não permitem a

revelação do diagnóstico ao adolescente, quando o adolescente não quer revelar o

diagnóstico à parceria sexual. Ficamos ansiosos em abordar aspectos da sexualidade,

nos sentimos culpados pela não adesão do adolescente a medidas de prevenção e ao

20 Saber Viver >> [Profissionais de Saúde]

O momento da

revelação do

diagnóstico pelo

HIV é uma

situação crucial

para o

adolescente e

pode gerar

ansiedade e

estresse para o

profissional de

saúde

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tratamento e podemos até identificar o adolescente com nossos próprios filhos etc.

Para o aconselhamento fluir, é importante que possamos, além de conhecer o

adolescente, identificar nossos sentimentos e dificuldades durante o atendimento,

evitando ruídos na comunicação e até iatrogenia. Compartilhar com a equipe nossas

dúvidas e sentimentos pode nos ajudar na condução do atendimento. Neste sentido,

entendemos que a construção de uma prática interdisciplinar é de suma importância

para o aprimoramento da atenção. Contar com uma equipe interdisciplinar facilita a

abordagem de questões complexas e, muitas vezes, difíceis de serem tratadas por

um único profissional.

Também a participação da família, de pessoas mais próximas e dos parceiros/as

sexuais do adolescente é fundamental para garantir a integralidade e a resolutividade

da ação.Todos precisam de atenção e apoio emocional para se integrar ao processo

de assistência do adolescente.

Por fim, cabe ressaltar o quanto é comum na assistência ao adolescente com

HIV/aids, principalmente nos infectados por transmissão vertical, uma tendência a

adiar a comunicação de sua condição sorológica. Muitos deles chegam a passar anos

tomando anti-retrovirais sem saber explicitamente o seu diagnóstico. Com o

argumento de "proteger" o adolescente,a família e os profissionais de saúde se tornam

cúmplices no "silêncio" da questão, o que pode implicar a infantilização deste

adolescente. Observamos aí uma enorme dificuldade dos pais e profissionais,adiando

o enfrentamento desta situação e a abordagem de temas como sexualidade,

reprodução,consumo de drogas,doença e morte, supostamente mais "reservados" à

vida adulta.

É importante lembrar que, como qualquer pessoa, o adolescente tem direito de

saber seu diagnóstico. O aconselhamento pressupõe uma postura de acolhimento e

respeito por parte do profissional,para estabelecer o diálogo,apesar das diferenças.

Trata-se de procurar uma comunicação clara e objetiva, dando instrumentos ao

adolescente para cuidar da sua saúde com autonomia e liberdade.

Referências bibliográficas:

CN DST/AIDS. COORDENAÇÃO NACIONAL DE DST E AIDS, 1997. Aconselhamento em DST, HIV e Aids: Diretrizes eProcedimentos Básicos.

ABIA. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA INTERDISCIPLINAR DE AIDS, 2003. Reflexões sobre Assistência à Aids – Relação Médico-Paciente, Interdisciplinaridade, Integralidade.

PAULO FREIRE. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. Editora Paz e Terra: 1996. p. 127-137.

[Profissionais de Saúde] << Saber Viver 21

As dúvidas,

o saber, crenças,

valores, anseios

e medos deste

adolescente

potencializam

o diálogo,

contribuindo

para que a

orientação de

medidas

preventivas seja

mais compatível

a sua realidade

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O atendimento em sala de espera

ASSISTÊNCIA INTEGRAL À GESTANTE HIV+

atendimento à gestante com HIV+ iniciou-se em

1996 no Instituto de Puericultura e Pediatria Marta-

gão Gesteira (IPPMG),uma unidade da Universidade

Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) que passou a ser

uma das referências para o Programa de Assistência

Integral à Gestante HIV+ no Estado do Rio de Janeiro. No programa atuam dois

infectologistas,um obstetra,duas enfermeiras,uma assistente social,uma nutricionista

e uma psicóloga. À exceção dos médicos,os demais profissionais realizam também o

atendimento de sala de espera.

Em relação à estratégia proposta como sala de espera,é importante destacar que

a mesma ocorre em um espaço físico restrito no Setor Materno Infantil,onde as ges-

tantes aguardam o atendimento.

Os encontros têm como objetivo trabalhar as informações e vivências, pois

consideramos que, a partir dos sentimentos mais clarificados, há possibilidade de

melhor absorção das informações e conseqüentemente uma perspectiva de adesão

ao acompanhamento,visando evitar a transmissão vertical.

No tocante à adolescência,cabe ressaltar que esta é uma fase de mudanças e desco-

bertas.Na busca de sua identidade individual e grupal,os adolescentes vivenciam cada vez

mais cedo novos valores comportamentais relacionados à afetividade e vida sexual que,

associados à pouca valorização para percepção de risco e o limitado acesso efetivo às in-

formações sobre sexualidade,DSTs,aids e drogas,acabam tornando-os mais vulneráveis.

O despreparo dos serviços de pré-natal em oportunizar um atendimento específico

à gestante adolescente, por diferentes justificativas, acaba retardando o início do

acompanhamento e conseqüentemente observa-se demora na realização dos exames,

dentre eles a testagem para o HIV. Como unidade de referência,recebemos em média

seis adolescentes por mês na faixa de 14 a 18 anos para a confirmação de diagnóstico

de HIV.Não raro,no segundo ou terceiro trimestre de uma gestação não planejada,não

desejada ou rejeitada pela família,isso quando há referência desta e com agravante de

22 Saber Viver >> [Profissionais de Saúde]

ORepresentação da adolescente no grupo, sobrea expectativa do filho ser HIV negativo

EQUIPE DA SALA DE ESPERA DO INSTITUTO DE PUERICULTURA (IPPMG) DA UFRJ:IRAÍNA FERNANDES DE ABREU FARIAS (ENFERMEIRA)

MARIA DE FATIMA LAGO GARCIA (PSICÓLOGA)REGINA TIRRE CARNEVALE MERCADANTE (ENFERMEIRA)

VERÔNICA MEDEIROS DA COSTA (NUTRICIONISTA)VIRGINIA HELANE DE ALMEIDA XIMENES (ASSISTENTE SOCIAL)

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não terem recebido adequado aconse-

lhamento pré e pós-teste HIV, como

recomendado pelo Ministério da Saúde.

Diante da confirmação do diagnós-

tico, é oferecido à gestante o espaço do

grupo como parte do seu acompanha-

mento.Em nossos encontros,observamos

várias situações conflituosas a partir de

colocações feitas pelas adolescentes ou

por seus responsáveis, que estão relacio-

nadas à: descoberta e aceitação do dia-

gnóstico;revelação do resultado ao com-

panheiro e/ou familiares; início do

tratamento; uso do preservativo; sigilo;

preconceito;direitos e benefícios sociais;

mudança dos hábitos alimentares; lazer,

drogas lícitas e ilícitas; os horários da

medicação;a impossibilidade de amamen-

tar; cuidados no pós-parto com o corpo;

adesão ao acompanhamento do recém

nato; fortalecimento da cidadania e pers-

pectiva de futuro.

Constatamos, ao longo desses anos, a

necessidade de atendermos as adolescen-

tes de forma diferenciada, considerando

as particularidades da fase vivenciada.

Sendo assim, destacamos a importância

em priorizar cada vez mais o acon-

selhamento pré e pós-teste HIV como

marco inicial na trajetória do diagnóstico

e manutenção do acompanhamento em

relação à condição de ser adolescente,

estar grávida e com diagnóstico de HIV,

como garantia da qualidade de vida atual

e futura. Porém,tal não ocorre conforme

preconizado.

Cabe ressaltar a importância da cons-

trução em equipe, de uma abordagem

específica, levando em conta, entre

outros,os seguintes aspectos:

� Assegurar a abordagem multipro-

fissional;

� Acolher desde o atendimento

inicial;

� Estimular o comparecimento de

um responsável no atendimento;

� Considerar as informações prévias

quanto à infecção do HIV/aids,mé-

todos contraceptivos, uso do pre-

servativo etc;

� Esclarecer dúvidas mencionadas e

veladas;

� Sensibilizar o responsável para o

acompanhamento à adolescente

na gestação e pós-parto;

� Estimular o resgate do vínculo

familiar;

� Garantir sigilo;

� Orientar quanto aos cuidados

necessários ao recém-nato;

� Incentivar a continuidade do

acompanhamento da adolescente

e da criança;

� Interagir com as coordenações de

áreas visando assegurar os fluxos

de encaminhamentos precoces;

� Estimular a inclusão em programas

específicos à adolescência.

Devemos destacar que as reações e

sentimentos, mesmo estando a adoles-

cente "assistida", poderão estar fragmen-

tados e suscetíveis às interferências

alheias, e suas expressões podem nos

levar à reflexão...

"O profissional me tratou como umatábua ao me falar do resultado doexame de HIV"

"Estou me sentindo um ET"

"Meu pai disse que estou bichada"

"Estou preocupada com o que euvou falar quando me perguntarem porque não estou dando o peito"

"Eu não sabia que estava fazendoesse exame"

"Você tem aids. Procure estehospital, aqui está o endereço"

"Pensei que ia morrer no diaseguinte"

"Aqui é o único lugar que possoconversar, só tenho vocês pra falarsobre isso..."

Acreditamos que o trabalho em

equipe que valoriza as atividades em

grupo nas discussões sobre a infecção

pelo o HIV junto às adolescentes propor-

ciona novas reflexões sobre a prevenção,

para uma qualidade de vida melhor. O

grupo de sala de espera revela-se um

espaço promissor como estratégia educa-

tiva e terapêutica, pois possibilita o tra-

balho em equipe e a caminhada para a

atuação interdisciplinar.

[Profissionais de Saúde] << Saber Viver 23

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"Se trago as mãos distantes do meu peito,

é que há distância entre intenção e gesto."

(Fado Tropical – Chico Buarque & Ruy Guerra)

pesar dos três temas do título possuírem uma

estreita correlação óbvia no discurso,a maneira

como nós, governo, profissionais e sociedade,

agimos em relação a cada um deles é de forma

totalmente dissociada e perigosa.

Entendemos a sexualidade como o exercí-

cio da vida com prazer. Exercemos nossa sexua-

lidade quando intencionalmente colocamos

prazer em nossas relações com o mundo e com

nós mesmos. O prazer é um ato intencional da

subjetividade humana, o qual consiste em dar

um sentido e um significado específico a uma sensação, que pode ser agradável,

desagradável ou neutra. No entanto,o prazer não se reduz a esta sensação. Enquanto

para alguns a sensação de queimação intensa de uma pimenta malagueta pode ser uma

experiência extremamente desagradável, para outros a mesma sensação se constitui

num imenso prazer. O que diferencia as duas experiências é o significado dado pelo

sujeito da experiência a esta sensação. Do mesmo modo, apesar do estupro ser uma

relação sexual,a vítima não exerce sua sexualidade nesse momento.O prazer produzido

em um relacionamento sexual consensual parece até o momento não ter precedentes

comparativos,mesmo levando em conta seus efeitos colaterais.A gravidez não planejada

e as DSTs, tendo a aids como a mais recente e mais temida,são seus efeitos colaterais

mais comuns e perseguem a humanidade até os dias de hoje. Enquanto o homem

paga o preço das DSTs,a mulher sofre com os dois.A gravidez não planejada sempre

foi o preço que a mulher, casada ou não, teve que pagar pelo exercício de sua

sexualidade, ou, quando pior, por sofrer o exercício da sexualidade do homem pela

violência ou por seus "deveres matrimoniais",o que de fato é a mesma coisa.

As tentativas para se evitar uma gravidez na história da humanidade vão desde o

coito interrompido,provavelmente a maneira mais antiga,que mesmo interrompido

era e continua sendo pecado, passando por vários métodos de barreira, como as

primeiras camisinhas utilizando intestinos de animais,até os métodos mais eficientes

atualmente,como a camisinha de látex,os contraceptivos orais e o DIU.

24 Saber Viver >> [Profissionais de Saúde]

Sexualidade,uso do preservativo e direito reprodutivo

Valdi Craveiro BezerraCLÍNICO DE ADOLESCENTES (HEBIATRA), PSICOTERAPEUTA, TERAPEUTA DE FAMÍLIA.

COORDENADOR DO ADOLESCENTRO CENTRO DE REFERÊNCIA, PESQUISA, CAPACITAÇÃO E ATENÇÃO À ADOLESCÊNCIA E FAMÍLIA - DF

A

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A camisinha, quando usada corretamente, isto é, sem falha no uso e no

acondicionamento, oferece uma proteção de 99% contra a aids e de 100% para

gravidez não planejada. Considerando as possibilidades de ruptura e deslizamento

intravaginal,o uso da camisinha durante um ano oferece uma proteção para a gravidez

não planejada de 97% se usada de forma correta, e de 86% se for usada sem muitos

cuidados (Trussel e col,2001). Este mesmo autor calculou que a economia feita com

o uso de camisinha por ano por adolescente sairia em média de 946 dólares para o

setor privado e de 525 dólares para o setor público. O custo anual calculado por

adolescente para uma gravidez foi de 1.079 dólares e de 188 dólares com tratamento

para DST,num total de 1.267 dólares para o setor privado e de 677 dólares (541 para

gravidez e 137 com tratamento para DST) para o setor público. (Trussell e col,1997a

e 1997b).A conclusão lógica é que o uso da camisinha é seguro, eficiente e muito

econômico para qualquer governo que invista em seu uso,no entanto,tanto a gravidez

quanto a aids estão aumentando na faixa etária da adolescência. Costumamos

responsabilizar os adolescentes por estas taxas, sem nos perguntarmos por nossa

participação neste fenômeno.

Neste momento entramos no chamado direito reprodutivo, o que significa que

temos o direito de escolher se queremos ou não ter filhos. Para garantir uma escolha

ou outra, lançamos mão dos métodos contraceptivos,e a camisinha é um deles. Com

isso fechamos o ciclo: sexualidade, uso do preservativo e direito reprodutivo. Até

agora parece uma simples lógica matemática,mas a questão é que,em outras palavras,

direito reprodutivo quer dizer que nós, inclusive "nós adolescentes", temos o direito

de nos relacionarmos sexualmente sem termos que pagar com uma gravidez não

planejada ou uma doença sexualmente transmissível pelo pecado de exercermos

nossa sexualidade. A questão é que, na verdade, não concedemos esse direito aos

nossos filhos adolescentes.

Se nossa preocupação como pais, profissionais de saúde, educadores, governo e

sociedade em geral fosse de fato evitar os danos causados por uma gravidez não

planejada ou uma DST/aids, o uso da camisinha como solução para diminuir estes

enormes problemas de saúde pública deveria ser estimulado e principalmente

viabilizado.A camisinha deveria ser distribuída segundo a necessidade de cada um,em

todos os locais de encontros, como as escolas, quartéis, locais de diversão, e

principalmente nos serviços de saúde.

Apesar das campanhas freqüentes para o uso da camisinha, nós, profissionais da

saúde,educação e governo,sistematicamente desenvolvemos formas de distribuição

que são verdadeiras maratonas cheias de constrangimentos,que parecem planos bem

elaborados para afastarmos nossos adolescentes do exercício de uma sexualidade

protegida. Para um adolescente obter 6 camisinhas,dependendo do serviço de saúde,

deverá marcar uma consulta com um médico ou enfermeira e ser cadastrado,o que

significa declarar que já está tendo relacionamento sexual. Toda esta dificuldade

criada é justificada pela necessidade de fazer uma educação sexual e de obter uma

estatística. Esta desculpa,no entanto,pode estar encobrindo a verdadeira razão dessa

estratégia,que é o controle ao exercício da sexualidade do adolescente.

Em agosto de 2003,o governo lançou um projeto dos Ministérios da Educação e

da Saúde para disponibilizar camisinhas para colégios da rede pública de ensino,que

comprovarem que seus alunos já recebem educação sexual. Imediatamente surgiram

"profissionais" questionando a distribuição, afirmando que isso seria um estímulo à

relação sexual desenfreada,ou que a distribuição por si só não resolveria o problema,

[Profissionais de Saúde] << Saber Viver 25

Se nossa

preocupação como

pais, profissionais

de saúde,

educadores,

governo e

sociedade em geral

fosse de fato evitar

os danos causados

por uma gravidez

não planejada ou

uma DST/aids, o

uso da camisinha

deveria ser

estimulado e

principalmente

viabilizado

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e outras asneiras mais. Não duvidamos que a educação sexual seja a estratégia mais

importante e eficiente. A questão é que a mesma não sai do papel há mais de 20

anos,pela mesma necessidade de controle da sexualidade do outro. Com isso,criaram-

se dois problemas. O primeiro é que alguns de nossos filhos adolescentes, seguindo

nossos passos iniciados com o advento do contraceptivo oral na década de 60, já

saltaram do avião e já estão tendo relações,queiramos ou não. Em plena queda livre,

nós ficamos discutindo sobre quem empurrou, se realmente era a hora de saltarem,

ou concluímos que está tudo errado e que não deveriam ter feito isso,que deveriam

ter tido aulas de pára-quedismo antes. Nessa situação,o mais sensato e honesto que

temos de fazer é perguntar: "alguém sabe como abrir um pára-quedas?". — Nossa

obrigação é garantir que nossos adolescentes cheguem são e salvos até embaixo, e

com eles vivos, sem danos, discutirmos todas as outras opções. Em outras palavras,

devemos proceder com a distribuição de camisinhas de forma livre e sem

constrangimentos – o pára-quedas. O outro problema diz respeito à turma que ainda

não subiu no avião. São os adolescentes que ainda não iniciaram sua atividade sexual

e, se continuarmos a não fazer nada a respeito, como educação para um exercício

saudável da sexualidade sem problemas,inexoravelmente,ficarão na mesma situação

dos que já estão pulando.

No Adolescentro, disponibilizamos a camisinha na sala de espera em uma caixa

confeccionada para este fim, para quem quiser pegar seu preservativo. Além dos

adolescentes,os pais,mães,tios,avós pegam camisinhas para outros filhos,sobrinhos,

netos e amigos. A cada dia somos gratos a essas pessoas maravilhosas, nossos

verdadeiros multiplicadores no combate contra a aids e a gravidez não planejada,por

fazerem nossa tarefa. Em nenhum momento, nenhum pai ou mãe questionou nossa

atitude. As únicas reações contrárias a esta forma de distribuição vieram dos

profissionais. O mais interessante é que,com este fornecimento de livre demanda,as

questões sobre métodos contraceptivos aumentaram em todas as consultas. Se um

adolescente faz da camisinha um balão de festa,de duas uma:1) Este ato é um ótimo

indicador de uma dificuldade na sua relação com ele mesmo e com o mundo,aí nós

podemos ajudá-lo, ou 2) será pura gozação (merecida) sobre nossa maneira

compulsiva de querer controlar a sexualidade dos outros.

Referências bibliográficas:

TRUSSELL J, KOENIG J, ELLERTSON C, STEWART F. (1997a) Preventing unintended pregnancy: the cost-effectiveness of three

methods of emergency contraception. Am J Public Health, Jun; 87(6):932-7

TRUSSELL J, KOENIG J, STEWART F, DARROCH JE (1997b) Medical care cost savings from adolescent contra-ceptive use.

Fam Plann Perspect, 1997 Nov-Dec;29(6):248-55, 295.

TRUSSELL J, WIEBE E, SHOCHET T, GUILBER E. (2001) Cost savings from emergency contraception pill en Canada. Obstet

Gynecol, May;97(5Pt1):789-93.

26 Saber Viver >> [Profissionais de Saúde]

No Adolescentro,

disponibilizamos

a camisinha na

sala de espera ...

nenhum pai ou

mãe questionou

nossa atitude.

As únicas reações

contrárias vieram

dos profissionais

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[Profissionais de Saúde] << Saber Viver 27

PEDIATRIA OU AMBULATÓRIO DE ADULTOS

O espaço ideal parao adolescente soropositivo

Sidnei PimentelINFECTOPEDIATRA DO AMBULATÓRIO DE PEDIATRIA E HOSPITAL-DIA DO

CENTRO DE REFERÊNCIA E TREINAMENTO EM DST/AIDS DE SÃO PAULO

alvez um dos tópicos mais discutidos quando se aborda a ques-

tão do atendimento ao adolescente soropositivo é o espaço

ideal para isso. Nesse momento, duas correntes principais se

distanciam: uma defende o seguimento em ambulatório de

pediatria, principalmente motivada pela questão do vínculo

como fator imprescindível para a aderência; a outra é a favor

do seguimento no ambulatório de adultos,uma vez que os adolescentes não se sen-

tiriam bem ao ser atendidos num ambiente voltado para a pediatria,com brinquedos

espalhados e gravuras de bonequinhos nas paredes. Lembremos ainda que falamos de

uma população heterogênea: de um lado, as crianças infectadas por transmissão

vertical,acompanhadas desde a infância e que adolesceram;de outro,aqueles adoles-

centes que adquiriram a doença já nesta fase da vida através de relações sexuais,uso

de drogas ou por via sangüínea.

Em verdade,o espaço ideal para o seu atendimento seria aquele especificamente

criado para a clientela de adolescentes. Ou seja: uma equipe multidisciplinar e

interdisciplinar treinada para as especificidades dos adolescentes, num espaço com

características especiais e atividades voltadas para aquela faixa etária.

Por "equipe multidisciplinar e interdisciplinar treinada" se entende aquela formada

por profissionais de diversas áreas capazes de se inter-relacionar e abordar as questões

específicas surgidas na adolescência, como as dificuldades de adesão, o sigilo do

diagnóstico, o afloramento da sexualidade, a lipodistrofia, o medo do preconceito e

da discriminação etc.

O espaço físico ideal seria aquele que não lembrasse um ambiente infantil (uma

vez que é comum no adolescente o conflito entre manter e abandonar os hábitos e

gostos "de criança") e que possuísse outros ambientes além do consultório em si,

especialmente um espaço para reuniões de grupos de discussões,onde pudessem ser

abordadas questões relativas ao processo da adolescência em si, à promoção de

saúde, bem como outras questões relacionadas à soropositividade, permitindo um

intercâmbio de informações saudável. Uma área de convívio social, com atividades

culturais e educativas que utilizem uma linguagem mais próxima daquela usada pelos

jovens no dia-a-dia,também seria bem vista (e aproveitaria a tendência grupal comum

nos adolescentes, de forma construtiva). Nestes espaços seria fundamental poder

trabalhar a questão do apoderamento do adolescente em relação à sua condição,

desenvolvendo a aptidão para o envolvimento com as questões sociais,aproveitando

T

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também da natureza reivindicatória que comumente aflora nesse período do

desenvolvimento. A formação de adolescentes soropositivos multiplicadores de

informações e participantes ativos de ONGs seria uma conquista importantíssima.

Na prática, é verdade, temos uma realidade social e política que ainda nos limita

a capacidade de aplicar todos esses princípios,restando-nos a possibilidade de adap-

tarmos os nossos serviços para oferecer,da melhor forma possível,um atendimento

com qualidade.

Um dos assuntos mais críticos relacionados à questão do adolescente soropositivo

atualmente é a adesão ao tratamento. Diversos fatores influenciam essa adesão:a difi-

culdade em raciocinar longe do hoje e agora,numa perspectiva de futuro; a fantasia

de que "comigo isso não acontece";as atitudes de enfrentamento das condutas impos-

tas e o afastamento em relação aos pais,todas características comuns no processo de

mudanças que é a adolescência. Nesse momento, o vínculo entre o profissional do

serviço de saúde (médico/a,enfermeiro/a,psicólogo/a,etc),o cuidador e o paciente

é de fundamental importância para a superação dos obstáculos "naturais" que surgem.

Em termos práticos, então, e levando em consideração a adesão como um fator

indispensável para o sucesso do processo terapêutico, poderíamos dividir os

adolescentes com relação ao momento de chegada ao serviço de saúde para definir

o ambulatório ideal para seu seguimento.

Os adolescentes seguidos desde a infância deveriam continuar seu acompanha-

mento no ambulatório de pediatria,uma vez que a mudança neste momento implica-

ria conflitos relacionados à readaptação do adolescente/cuidador,confiança na nova

equipe, insegurança frente ao futuro etc, todas questões que poderiam exercer

influência nociva na adesão, muitas vezes comprometendo um trabalho que vinha

sendo feito com aquele paciente/cuidador. Em algum momento do futuro, esses

pacientes terão, obviamente, que deixar o serviço de pediatria, porém acredito que

este processo deva ocorrer de forma lenta e gradual, estabelecendo, ao menos de

início,um acompanhamento em paralelo como forma de adaptação.

Aqueles adolescentes com infecção recente e que iniciam o acompanhamento

nesta fase provavelmente se beneficiariam ao serem seguidos no ambulatórios de

adultos. Certamente esses jovens,baseados na crença errônea de que já venceram os

"ritos de passagem" para a vida de adulto (o início da atividade sexual, por vezes a

paternidade/maternidade e o uso de drogas) teriam grandes dificuldades de adesão

a um serviço de pediatria.

Isso não exclui,obviamente,que esses ambulatórios sejam serviços de pediatria ou

de adultos, tenham que se preparar para oferecer serviços voltados especificamente

para estes "novos" clientes. Ou seja, como já citado anteriormente, uma equipe

multidisciplinar e interdisciplinar treinada para suas especificidades e capaz de

desenvolver atividades voltadas para aquela faixa etária.

Apenas entendendo o adolescente como um indivíduo que vive um processo de

evolução normalmente conturbado e oferecendo a ele suporte para crescer e se

desenvolver adequadamente, teremos um paciente capaz de entender, aceitar e

participar do seu tratamento de forma satisfatória,ou próxima ao ideal.

Um dos assuntos

mais críticos

relacionados à

questão do

adolescente

soropositivo

atualmente é a

adesão ao

tratamento

28 Saber Viver >> [Profissionais de Saúde]

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[Profissionais de Saúde] << Saber Viver 29

SERVIÇO DE SAÚDE E SOCIEDADE CIVIL

A Importância das Parcerias

Alaíde Elias da SilvaPRESIDENTE DO GRUPO VIVA RACHID

Edvaldo SouzaCOORDENADOR DO SERVIÇO DE IMUNOLOGIA E

REUMATOLOGIA CLINICA DO INSTITUTO MATERNO INFANTIL DE PERNAMBUCO (IMIP)

primeiro caso de aids em criança (transmissão vertical)

no estado de Pernambuco foi diagnosticado no

Instituto Materno Infantil de Pernambuco (IMIP) em

1987.A partir deste caso, o IMIP se tornou Centro de

Referência Estadual para aids em crianças em 1988 e Centro de Referência Nacional

em 1992. Inicialmente,a maior proporção de casos era de crianças e adolescentes que

adquiriram o HIV por transfusões. Posteriormente, os casos de aids por transmissão

vertical foram aumentando progressivamente de acordo com acometimento de mu-

lheres em idade fértil.A epidemia da aids, desde seu início, sempre requisitou uma

abordagem mais abrangente do paciente e seus familiares,não se limitando somente

à abordagem médica tecno-científica. Os primeiros profissionais de saúde do início da

epidemia,geralmente de formação médica exclusiva,tiveram que desdobrar sua aten-

ção para áreas da psicologia,enfermagem e serviço social. A aids pediátrica por trans-

missão transfusional não se revestiu de particularidades diferentes da aids do adulto

pela mesma categoria de transmissão. Contudo,a aids pediátrica por transmissão ver-

tical se revestiu de particularidades próprias,como orfandade,revelação de diagnós-

tico em escolas e creches,dependência de cuidador para adesão ao acompanhamento

e tratamento. Posteriormente, foi formada a equipe multiprofissional melhorando a

assistência dos indivíduos portadores de infecção pelo HIV/aids e seus familiares,

porém persistiam dificuldades sociais que limitavam a assistência e uso de anti-retro-

virias:dificuldade financeira para transporte nas visitas agendadas,renda familiar bai-

xa impedindo a oferta de alimentação adequada e cuidados de higiene individual e

ambiental, tudo isso associado a condições precárias de moradia.Todos esses fatores

dificultavam muito a assistência das crianças portadoras de infecção pelo HIV e trazia

muita frustração aos profissionais de saúde, por se sentirem incapazes de atuar fora

de sua área de trabalho.

O Grupo Viva Rachid foi fundado em 1994 pela Sra.Alaíde Elias da Silva, mãe de

um menor que faleceu de aids transfusional em 1993.A Sra.Alaíde sempre lutou pela

melhor qualidade de assistência integral para seu filho Rachid e, com sua morte,

O

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resolveu continuar e ampliar sua luta para ajudar as crianças carentes com infecção

pelo HIV/aids atendidas no IMIP. O Grupo Viva Rachid possui equipe de trabalho

multiprofissional atendendo na sede do GVR e também no IMIP,incluindo psicóloga,

terapeutas ocupacionais, assistente social, voluntários, entre outros. Dentre as

atividades realizadas pelo GVR, podemos citar visitas domiciliares, distribuição de

cestas básicas (135/mês),distribuição de vitaminas e suplementos alimentares,eventos

sociais (festa do dia das crianças e de natal), intermediação com conselhos tutelares,

benefícios do INSS, serviços jurídicos, prefeituras e secretarias municipais, reformas

de domicílios,distribuição de filtros,colchões,travesseiros,roupas,geladeiras,fogões,

camas, televisores e armários.

Desde o início das atividades do Grupo Viva Rachid com os pacientes cadastrados

no IMIP,ficou evidente a semelhança e o objetivo principal de Dr. Edvaldo e D.Alaíde,

que era e continua sendo a luta pela melhor qualidade na assistência às crianças e

adolescentes com infecção pelo HIV/aids. De um lado, Dr. Edvaldo lutando por

melhores condições físicas e de conforto no setor assistencial, controlando a oferta

regular de medicamentos, atualizando e capacitando outros profissionais, etc. De

outro lado,D.Alaíde elaborando projetos para dar sustentatibilidade às ações sociais

e filantrópicas realizadas pelo Grupo Viva Rachid e colaborando com a qualidade de

assistência em saúde oferecida pelo IMIP. Essa característica de articulação entre

serviço de saúde e ONG foi sempre ímpar,pelo menos no estado de Pernambuco,e

caracterizada por trabalho mútuo, integrado,articulado e complementar.

Atualmente,essa parceria está trabalhando em projeto de criação de dois grupos

para estimular e melhorar a adesão ao tratamento, revelação de diagnóstico e saber

viver positivamente com o HIV,que são os Grupos de Cuidadores e de Adolescentes.

Pode-se dizer que a qualidade de vida e sobrevida das crianças infectadas pelo HIV

no estado de Pernambuco apresenta dois marcos bem evidentes:a criação do Grupo

Viva Rachid e a terapia anti-retroviral combinada.

30 Saber Viver >> [Profissionais de Saúde]

Desde o início

das atividades

do Grupo Viva

Rachid com os

pacientes

cadastrados no

IMIP, ficou evidente

a semelhança

e o objetivo

principal de

Dr. Edvaldo e

D. Alaíde, que

era e continua

sendo a luta pela

melhor qualidade

na assistência às

crianças

e adolescentes

com infecção

pelo HIV/aids

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[Profissionais de Saúde] << Saber Viver 31

Juliana Martins de MattosMaria Helena Leite de Castro Mendonça

PSICÓLOGAS E COORDENADORAS DO PROJETO CONVHIVENDO

epidemia de aids tem afetado cada vez mais os jovens.

Além disso, com o advento da terapia anti-retroviral

combinada e o acesso universal gratuito aos anti-retro-

virais, o número de internações hospitalares por in-

fecções oportunistas vem diminuindo significativamente e a sobrevida dos pacientes

pediátricos vem aumentando consideravelmente. Com isso,muitas crianças estão se

tornando adolescentes. Diante disso,torna-se um grande desafio para os profissionais

de saúde e educação o atendimento a um número cada vez maior de adolescentes,

tanto no nível da prevenção quanto da assistência.

O trabalho com adolescentes,desenvolvido pelo Projeto ConvHIVendo – Projeto

de Atendimento Psicológico a Crianças e Adolescentes Portadores de HIV/aids, seus

Familiares e Profissionais de Saúde, no Hospital Universitário Gaffrée e Guinle do

Rio de Janeiro,desde 1995,favorece o encontro,a troca de experiências,a criação de

laços de amizade,o resgate de sonhos e projetos de vida,vínculo afetivo e sentimento

de pertencimento entre os jovens pacientes vivendo com HIV/aids.

Jovens que chegam ao Projeto infectados por transmissão vertical,por transfusão

de sangue ou por transmissão sexual. Jovens com angústias,medos de revelar a seus

pares que são portadores e mais ainda do preconceito e da discriminação expe-

rienciados por quem vive com aids. Os desafios de conciliar tratamento, estudo e a

inserção no mercado de trabalho com a angústia de conviver com medicações difíceis

e de efeitos colaterais muitas vezes severos podem dificultar a reconfiguração de

seus sonhos e projetos de vida.

Esta é a história de T, um jovem que foi infectado por transmissão vertical e

descobriu-se portador aos 13 anos,sozinho. Quando começou a freqüentar o Projeto

ConvHIVendo, era uma pessoa amarga, solitária, em nada acreditava e achava que

nada dava certo para ele. Pessimista, ficou conhecido no grupo por seu estado de

espírito sempre "do contra". Se houvesse sol, preferia que chovesse, e se chovesse,

melhor seria se houvesse sol. Descrente dos homens e de Deus! Sua mãe fora

prostituta e usuária de drogas e bem pequeno o entregou para que o pai e a avó

paterna o criassem.T se ressentia dessa atitude materna e não entendia o que lhe

acontecera. Cuidava da avó paterna e dele mesmo,– pois o pai tinha problemas com

álcool – sentia-se desamparado,desamado e responsabilizava os pais por sua infecção.

Tributo a um jovem guerreiro

O Projeto

ConvHIVendo

favorece o encontro,

a troca de

experiências,

a criação de laços

de amizade, o

resgate de sonhos e

projetos de vida,

vínculo afetivo e

sentimento de

pertencimento entre

os jovens pacientes

vivendo com

HIV/aids

A

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Foi assim que T chegou ao Convhivendo! Convidamos para participar das

atividades desenvolvidas pelo Projeto. "Ah! Isso era muito chato!",reclamava T,porque

o grupo ainda começava a se formar. Para motivá-lo a participar dos atendimentos em

grupo, as coordenadoras do ConvHIVendo introduziram uma nova metodologia de

atendimento, incluindo atividades externas.

A partir desse estilo de atendimento,T, devagarinho e desconfiado, chegou ao

grupo,que de forma carinhosa e brincalhona apontava para seu mau humor.

O trabalho de grupo com os adolescentes intercalava então atividades internas no

Hospital e eventos externos – Cristo Redentor,cinema,seguido de almoços,passeios

em parques de diversão, etc.T foi saboreando esses encontros, desfrutando de cada

momento, resgatando o sentimento de pertencimento, de calor humano e

amorosidade que vivenciava junto com o grupo de adolescentes, os familiares

atendidos pelo Projeto e a equipe interdisciplinar, sabores por ele outrora

desconhecidos. Foi se reconhecendo e se validando como ser humano. E na vida,

como na música de Almir Sater e Renato Teixeira,T conheceu outras formas de viver...

"Conhecer as manhas e as manhãs,o sabor das massas e das maçãs. É preciso amor pra

poder pulsar,é preciso paz pra poder sorrir. É preciso a chuva para florir".

No grupo foi se afinando com seus pares e solidificando amizades. Mas a saúde de

T era muito frágil. A descoberta tardia do HIV, o início do tratamento quando seu

organismo já não era capaz de responder tão bem aos medicamentos e o contexto

familiar adversos foram fatores decisivos para uma perspectiva pouco otimista.

Os grupos de familiares e de adolescentes atendidos pelo Projeto,a equipe médica,

os enfermeiros, as coordenadoras do Projeto, todos sofriam a cada recaída que T

apresentava. O Projeto ConvHIVendo e o grupo de familiares cuidavam e o

acompanhavam quando ele se internava. Havia um mutirão de solidariedade e de

afetividade entre os familiares,que passaram a cuidar de T.

Num determinado momento,T estava mais pessimista do que nunca e tinha todas

as razões para isso. Havia um desconforto físico por conta de uma enorme úlcera na

sua língua.T não respondia bem às atuais medicações para o seu tratamento. Nesse

momento,a médica que o atendia iria viajar (era um feriado longo) e telefonou para

uma das coordenadoras falando de sua preocupação com T, que estava muito

deprimido.Temia que seu estado emocional comprometesse ainda mais sua saúde.

Nesse dia de feriado o Hospital não funcionaria. A profissional marcou com ele assim

mesmo e realizou o atendimento no Parque Lage. Momento difícil para ambos,

paciente e profissional! O sol refletia na imagem do Cristo Redentor e a profissional

pedia inspiração a Deus para esse atendimento decisivo.Teria que falar para T que

chegava o limite médico e farmacológico! Que havia um limite para o tratamento dos

homens,só não havia limite para Deus. A profissional sabia que T em nada acreditava.

E assim,nessa conversa tão delicada foi possível falar de espiritualidade,do religar-se

à vida,e assim foi se desenhando uma nova perspectiva para T. Começava uma grande

virada em sua vida,com a inclusão da espiritualidade no seu cotidiano!

Seu tratamento era circundado de amorosidade por todos que o cuidavam,gotas

de afetividade perpassavam a vida desse adolescente. O grupo criou uma rede de

suporte emocional, começou a visitá-lo e a sair com ele. A amizade se solidificou

entre T e M, que passou a ser o irmão que ele tinha, mas não sabia onde estava. Sua

saúde melhorava cada vez mais,apesar de seu CD4 ser apenas 2. Ele não se internou

mais e passou para uma escola técnica federal! É um momento de celebração. T

passou a se considerar o bem-amado do hospital! Por ocasião da premiação pela

32 Saber Viver >> [Profissionais de Saúde]

Os grupos de

familiares e de

adolescentes

atendidos pelo Projeto,

a equipe médica, os

enfermeiros, as

coordenadoras do

Projeto, todos

sofriam a cada

recaída que T

apresentava.

Havia um mutirão

de solidariedade

e de afetividade entre

os familiares, que

passaram a

cuidar de T

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[Profissionais de Saúde] << Saber Viver 33

adesão ao tratamento,evento instituído pelo Projeto ConvHIVendo para estimular os

pacientes a melhor se engajarem no tratamento,T ganhou o 1º lugar! Houve sorteios

de prêmios e T ganhou novamente! Para sua grande surpresa, uma vez que não

acreditava na sorte em sua vida.T passou a sorrir,estava quase alegre,ainda resmungão,

claro,para não perder seu estilo!

Ao completar 19 anos, começou o seu processo de despedida da vida. Sofreu

surtos psicóticos,deixando todos em total desalento. O grupo de adolescentes sofria,

se entristecia com uma nova internação de T.

Porém,quando todos estavam desesperançados,T se recuperou novamente,e mesmo

com menos de 1 de CD4 ele voltou a freqüentar o grupo. Naquele momento,passou a

ser cuidado por seu pai! Aquele pai que esteve ausente por tanto tempo retomava o

tratamento do filho e passava a cuidar dele! Por mais um tempo, pai e filho, juntos,

percorriam o caminho da vida! T passou por mais uma etapa. Como diz Ivan Lins:

"Desesperar, jamais

Aprendemos muitos nesses anos

Afinal de contas não tem cabimento

Entregar o jogo no primeiro tempo"

Após algum tempo,T voltou a se internar e dessa vez foi levado à UTI.A médica

que o atendia disse às coordenadoras, que estavam de férias, que continuassem os

atendimentos a T, pois seria o momento da despedida, ele não passaria de 24 horas.

As psicólogas coordenadoras começaram a atender T na UTI e perguntaram a ele o

que gostaria de resgatar,alguma coisa que ele deixou de dizer para alguém.T disse que

gostaria de estar com seu grande amigo M e também que o aparelho de vídeo do

Projeto fosse levado para a UTI para que ele pudesse assistir os filmes "Homem

Aranha" e "O Senhor dos Anéis". Esse era o momento de talvez poder atender seus

últimos desejos e a psicóloga então disse que quando ele retornasse à enfermaria,

providenciaria o vídeo. Disse isso por acreditar que enquanto houvesse vida haveria

esperança.

Para a surpresa de todos,T saiu da UTI, venceu uma infecção generalizada e

retornou à enfermaria. O vídeo foi providenciado e ele pôde assistir todos os filmes

que desejou. Os amigos levaram algumas fitas e as psicólogas alugaram os filmes que

ele pediu,e ele pôde então assisti-los todos!

Na semana anterior ao Carnaval,havia uma previsão de alta para T e ele começou

a fazer planos,mas uma pneumonia o venceu.T partiu,assim como um dia todos nós

partiremos,porém antes descobriu o amor pela vida,conquistou amigos, resgatou o

relacionamento paterno, realizou sonhos, viveu muito mais do que qualquer

prognóstico médico. Viveu melhor! Numa frase dita por ele: "O ConvHIVendo

transformou minha vida. Antes era de casa para o hospital. Agora eu tenho uma

família". O que T. não sabia era que ele transformou o ConvHIVendo,humanizou um

sistema de saúde e trouxe a certeza de ter valido à pena para duas psicólogas

coordenadoras ter criado o Projeto ConvHIVendo,com amor e com afeto!

Após algum tempo,

T voltou a se internar

e dessa vez foi levado

à UTI. A médica

que o atendia disse

às coordenadoras,

que estavam de férias,

que continuassem

os atendimentos a T,

pois seria o momento

da despedida

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Elizabete Franco CruzPSICÓLOGA, DOUTORANDA GEISH/FE/UNICAMP, ASSESSORA DE PROJETOS E

ATIVISTA DO GIV GRUPO DE INCENTIVO À VIDA, COORDENADORA DO GT DE

CRIANÇAS E ADOLESCENTES DO FORUM DE ONG AIDS DE SÃO PAULO E

PROFA. UNIVERSIDADE SÃO MARCOS

o ano de 2001, o Fórum de ONG aids de São Paulo

criou um Grupo de Trabalho voltado para a

discussão da problemática de criança e adolescente

vivendo e convivendo com HIV/aids. Esse grupo é

formado por ONG aids vinculadas ao Fórum que

desenvolvem ações de prevenção às DST HIV/aids e

de apoio a crianças e adolescentes vivendo e

convivendo com HIV/aids.

Uma das iniciativas do grupo foi a realização do

Projeto Encontro,que articulou diferentes atores da sociedade civil (incluindo crianças

e adolescentes).

O Projeto Encontro teve como objetivo o empoderamento e melhoria da qualidade

de vida de crianças e adolescentes vivendo e convivendo com HIV/aids no estado de

São Paulo. Suas metas foram contribuir para o fortalecimento de crianças e

adolescentes que vivem e convivem com HIV/aids no estado de São Paulo para o

enfrentamento da vida e da epidemia; incrementar a qualidade de atenção oferecida

por profissionais da saúde, educação, voluntários e familiares de crianças e

adolescentes vivendo e convivendo com HIV/aids;combater o preconceito,estimular

a inclusão social de crianças e adolescentes vivendo e convivendo com HIV/aids.

Para atingir suas metas,o projeto propôs,no primeiro ano do seu desenvolvimento,

um conjunto de atividades: Festa Junina com ênfase na diversidade,Workshop para

profissionais e voluntários,Workshop para familiares e cuidadores e Encontro de

Crianças e Adolescentes Vivendo e Convivendo com HIV/aids.

O projeto reuniu cerca de 700 pessoas na festa junina, 100 profissionais e

voluntários no workshop,350 crianças (40 % soropositivas) e 150 familiares no dia do

Encontro. Contamos com a contribuição de 70 voluntários, que ajudaram no

desenvolvimento das atividades.

Esta iniciativa impactou positivamente a vida de crianças e adolescentes vivendo

com HIV/aids de diferentes maneiras,mas principalmente através:

34 Saber Viver >> [Profissionais de Saúde]

CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO FÓRUM DE ONG/AIDS - SP

Articulação, formaçãoe construção de caminhos

N

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[Profissionais de Saúde] << Saber Viver 35

� Dos familiares, que tiveram espaço

para repensar suas relações com crian-

ças e adolescentes, principalmente per-

cebendo a importância do diálogo e do

respeito.

Exemplo:uma mãe chorou no intervalo

do almoço porque percebeu que não

vinha tratando sua criança com respei-

to e franqueza, estava emocionada por

descobrir que podia estabelecer a rela-

ção com sua filha baseada em novos pa-

râmetros.Além disso, percebeu que sua

dificuldade era compartilhada por mui-

tas pessoas.

� Dos profissionais e voluntários, que

tiveram oportunidade de rever sua práti-

ca e ficaram sensibilizados para a humani-

zação do atendimento e maior respeito

com as perspectivas e direitos das crian-

ças e adolescentes. O depoimento de um

profissional na ficha de avaliação do

workshop dizia o seguinte:"trabalho com

aids há seis anos e nunca fiquei tão sensi-

bilizado para a questão da criança e do

adolescente como fiquei neste encontro".

� Do exemplo de solidariedade ofereci-

do pelos voluntários.

� Da convivência entre crianças e adoles-

centes soropositivos e soronegativos e da

oportunidade de discussões sobre convi-

vência,prevenção,solidariedade e amizade.

� Da vivência (e não do discurso) da di-

versidade num espaço onde reunimos pa-

cífica e respeitosamente adultos, crian-

ças, adolescentes, velhos, soropositivos,

soronegativos, familiares, voluntários, ne-

gros, brancos, asiáticos, homens, mulhe-

res,homossexuais,heterossexuais de dife-

rentes pertencimentos econômicos.

� Da construção de um espaço onde

pessoas vivendo com aids foram tra-

tadas como sujeitos com direitos e

dignidade.

Além disso, todos nós – crianças,

adolescentes e adultos – vivemos com

emoção a confecção de um laço gigante

preenchido com a produção artística das

crianças e adolescentes.

Quem esteve presente e observou o

cuidado e carinho que as crianças de-

monstravam quando seguravam seus

"paninhos" para colocar no laço,sabe que

o projeto cumpriu seu papel despertando

a solidariedade e respeito com o outro.

Em 2002, nosso ritmo foi um pouco

menor,em decorrência de problemas en-

frentados pelas principais lideranças do

grupo;mesmo assim,conseguimos repetir

a festa junina e manter as reuniões

mensais.

No ano de 2003,novamente voltamos

com força total. Uma das avaliações que

fizemos após o Projeto Encontro foi a ne-

cessidade de ampliar a formação técnica

do movimento social, com vistas à me-

lhoria da qualidade do atendimento.

Neste sentido, estabelecemos uma par-

ceria com o GEISH-Grupo Interdisciplinar

de Sexualidade Humana da Faculdade de

Educação da UNICAMP e,sem nenhum fi-

nanciamento, viabilizamos um curso

mensal para representantes de 15 ins-

tituições ligadas ao Fórum. Nestes encon-

tros, temos realizado leituras e debates

sobre temas como concepções de infân-

cia,adolescência,sexualidade,relações de

gênero, participação e ações educativas

junto à população atendida.

O curso contribuiu para a adesão de

mais pessoas ao GT,para o fortalecimento

do grupo e permitiu que pudéssemos

delinear as iniciativas para 2004, quando

manteremos o curso, desenvolveremos

novamente o Encontro para crianças e

adolescentes, os workshops para profis-

sionais e voluntários,a festa junina,um se-

minário sobre instituições de apoio para

crianças e adolescentes e uma publicação.

A experiência do GT tem sido enrique-

cedora em diferentes aspectos.Um deles é

comprovar o envolvimento,compromisso

e seriedade de pessoas e entidades da

sociedade civil.Outro ponto fundamental

é observar que, paulatinamente, vamos

conseguindo contribuir para uma

mudança de mentalidades,tentando fazer

com que as ações caminhem de uma

perspectiva predominantemente assisten-

cialista para uma perspectiva de direitos,

que inclui a formação técnico política dos

trabalhadores e voluntários deste campo.

Fundamental ainda tem sido o percurso

para subsidiar a revisão das concepções

de infância e adolescência e o incentivo à

participação da população infanto-juvenil

nas ações e decisões.

No entanto,nossa maior vitória é que

conseguimos manter uma articulação de

ONG e dar destaque ao tema da infância

e adolescência na pauta política do mo-

vimento de luta contra a AIDS,no Estado

de São Paulo. Ainda é pouco, porque

temos consciência dos muitos desafios

que temos pela frente,incluindo tocar no

que aparentemente é intocável: a pers-

pectiva adultocêntrica que ainda vigora

nos serviços de saúde, ONGs, escolas,

comunidades – e ampliar o raio de ação e

articulação com os outros fóruns do país.

O caminho está sendo trilhado, e, como

caminhantes,estamos acreditando que o

caminho se faz ao caminhar...

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Gladys Almeida1 e Isadora Oliveira2

1PSICÓLOGA E COORDENADORA DA ÁREA DE PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DO GAPA/BA2PSICÓLOGA DA BRINQUEDOTECA DO GAPA/BA

lúdico, no contexto da aids, vem se revelando como um

componente auxiliar no processo terapêutico, uma outra

forma de cuidado que vai além da medicalização da doença,

que lida com o homem como um todo e com o que ele

tem de mais fundamental:a sua subjetividade.Através desse

viés, se constrói o caminho para a cidadania.

É fato que brincamos desde que nascemos. Brincamos com as nossas mãos,com o

seio materno,com o primeiro objeto que se aproxime do nosso campo visual. E,por

que será que insistimos em continuar brincando? Se pararmos para refletir,cada um de

nós poderá enumerar várias respostas.Afinal,a atividade lúdica permite que possamos

nos desconectar por alguns minutos ou segundos das tensões e aflições cotidianas.Ela

descontrai,nos aproxima das nossas emoções,nos proporciona a descoberta,estimula

a criatividade e permite fluir o sorriso,dentre tantas outras respostas.

A atividade lúdica propicia a formação de conexões associativas no cérebro,

facilita o processo de elaboração acerca dos acontecimentos da nossa vida cotidiana

e daqueles que podem vir para nós como algo traumático ou uma experiência

impactante: a primeira ida à escola, a injeção no hospital, o barulho do motor no

dentista ou,ainda,a perda dos pais,a falta de moradia,a violência em casa e na rua ou

o lidar com um diagnóstico de sorologia positiva para o HIV.Além disso, favorece a

socialização,a superação de desafios e o lidar com os limites impostos pela realidade.

Diante disso, desde 2000, o projeto Brinquedoteca – uma nova perspectiva de

atendimento para crianças pobres portadoras do HIV/aids do Gapa-Bahia garante

um espaço onde crianças e adolescentes vivendo com o HIV ou de certa forma

afetados pelo vírus são acolhidos através de atividades lúdicas, culturais e artísticas,

oficinas de criação,apoio psicológico,social e nutricional. É um lugar que,desde a sua

entrada, propõe uma nova perspectiva no trato da aids, seja pelo encantamento

proporcionado pelas cores das paredes,pelos desenhos do painel logo à entrada ou

pelo clima de acolhimento e calor humano presente no lugar.

A Brinquedoteca do Gapa-Bahia surgiu voltada para o atendimento infantil.

Entretanto, com o passar do tempo, quem era criança cresceu e aí nos vimos

desafiados a criar um espaço onde os adolescentes vivendo com HIV/aids ou afetados

pelo vírus pudessem ter garantido o direito ao desenvolvimento,às oportunidades e

à convivência com outros da sua idade. Um local onde eles sejam escutados em suas

demandas, onde possam compartilhar seus momentos e ter uma posição ativa na

36 Saber Viver >> [Profissionais de Saúde]

A experiência dabrinquedoteca do Gapa-Ba

O

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[Profissionais de Saúde] << Saber Viver 37

vivência de sua realidade e na busca de soluções para os desafios com que se deparam.

O fato do espaço da brinquedoteca ser bastante flexível tem ajudado bastante,

permitindo que trabalhemos com adultos, crianças e adolescentes, desenvolvendo

atividades diversas de acordo com as demandas e os desejos. Ela se propõe a assegurar

às crianças e aos adolescente um dos seus direitos fundamentais – o direito ao brincar,

ao desenvolvimento e às oportunidades. Esses direitos, garantidos pelo ECA, são

elementos-base para a uma formação humana saudável, para o desenvolvimento do

pensar, da fala, da criatividade, do incremento da consciência crítica em relação ao

mundo e da vivência das regras e os limites sociais.

Além disso, a sala (que parece encantada) tem se estabelecido como uma

referência não só para os cuidadores,no sentido de que é um lugar seguro em que os

garotos e garotas têm o apoio de profissionais de psicologia,serviço social,advocacia,

das letras e das artes,mas para os próprios jovens,que têm respeitados os seus anseios

e,convidados a conhecer o novo e a olhar o mundo com novos olhos,são acolhidos

em atividades para o desenvolvimento e o despertar de suas habilidades. É um espaço

que tem fortalecido o estreitamento de vínculos de amizade, a emergência de

características pessoais de liderança e de expressões de autonomia e solidariedade

entre os adolescentes.

São realizadas oficinas de criação com sucata,material colhido na natureza,máscaras

artísticas, barroterapia, criação literária, contação de histórias, além do atendimento

psicológico,social e jurídico e encaminhamento para outros serviços de apoio.

Como respostas, temos assistido à ampliação do vínculo e do compartilhamento

de idéias junto à equipe médica do ambulatório de aids pediátrica do Hospital das

Clínicas,onde boa parte das crianças e adolescentes é atendida;ao fortalecimento dos

laços entre técnicos e o público atendido; à sensibilização da comunidade para a

garantia dos direitos das crianças e adolescentes; e, principalmente, à garantia do

respeito a direitos fundamentais do homem, como o direito ao desenvolvimento, à

dignidade e à igualdade.

Ademais,a Brinquedoteca desperta a capacidade para mobilizar voluntários através

da sensibilização pela causa, estimula a espontaneidade das crianças e jovens,

sensibiliza os cuidadores em relação à importância do lúdico e de freqüentar um

espaço onde eles possam discutir suas inquietações em relação ao cuidado com a sua

criança e adolescente. Além de ser um local em que fervilham questionamentos e

buscam-se soluções.

A Brinquedoteca do Gapa-BA se constitui como um novo paradigma para a oferta

de um suporte mais humano voltado para as crianças e adolescentes afetados pela

aids,posto que visa assegurar o brincar como um direito fundamental. Nesse espaço,

a criança tem acesso ao mundo mágico dos jogos,dos livros,das bonecas,da música,

onde poderá ter despertado o seu potencial criativo, suas idéias, sentimentos e

autonomia para fazer as suas próprias escolhas.

Acreditar e investir no brincar é um passo elementar para que se possa ter uma

atenção mais abrangente e humana no trato das crianças e adolescentes infectados e

afetados pelo HIV/aids. Jovens que,muitas vezes,têm sido cerceados deste direito em

razão de variadas situações de hospitalizações,adoecimento,orfandade,entre outras

tantas coisas.

No projeto

Brinquedoteca o

Gapa-Bahia garante

um espaço onde

crianças

e adolescentes

vivendo com o HIV

ou de certa forma

afetados pelo vírus

são acolhidos

através de atividades

lúdicas, culturais

e artísticas, oficinas

de criação, apoio

psicológico, social e

nutricional

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Adolescer na Casa de ApoioPadre Júlio Lancelotte

RESPONSÁVEL PELA CASA VIDA 1 E 2

dolescer na casa de

apoio é, em primeiro lu-

gar,adolescer no mundo

concreto em que se vive,como acontece

com todos os outros adolescentes. A

síndrome da adolescência tem suas

características próprias e circunstancia-

das para todos os adolescentes, indepen-

dentemente de viverem ou não em Casas

de Apoio por serem HIV positivos.

Antes de serem HIV positivos, eles são

adolescentes,e isso tem que ficar muito cla-

ro para nós,que somos seus responsáveis e

educadores. A questão de serem jovens

soropositivos se compõe com a questão da

adolescência.Essa composição nos questio-

na trazendo desafios que supõem ação e re-

flexão constantes (como já seria o caso da

adolescência comum) e uma clareza de

propósitos e métodos, com o estabeleci-

mento de vínculos positivos e duradouros.

A experiência mostra que mais pro-

blemático do que ser HIV positivo é ter

que morar em uma Casa de Apoio. O HIV

ninguém vê e a Casa de Apoio sim, ligan-

do uma coisa à outra.Morar em uma Casa

de Apoio acaba explicitando socialmente

o HIV: "Moro em uma Casa de Apoio

porque sou HIV positivo".

A responsabilidade de gerenciar e am-

bientar uma Casa de Apoio para Ado-

lescentes HIV positivo é uma tarefa com-

plexa e desafiadora. Como proporcionar

o desenvolvimento de valores? Estabe-

lecer limites, responsabilidades e co-

responsabilidades? Como educar para a

autonomia e a cidadania?

A Casa de Apoio favorece a proteção,

a aderência ao tratamento e a qualidade

de vida em relação à alimentação,

higiene, cuidados de enfermagem e

detecção precoce de intercorrências

clínicas, mas por outro lado pode

favorecer a dependência e o afastamento

da realidade da vida,como saber o custo

para manter uma casa e outras questões

do cotidiano da vida. É preciso levar em

conta, porém, o mundo próprio do

adolescente que quer testar limites e

estabelecer sua própria liberdade.

A Casa de Apoio com adolescentes

tem problemática própria que sugere a

necessidade imperiosa da co-educação,

da participação nas atividades da vida diá-

ria, como limpeza, cuidados com as rou-

pas de uso pessoal (como lavar e passar),

com os estudos, as tarefas escolares e a

freqüência à escola,a profissionalização e

o primeiro emprego.

Os adolescentes não podem viver em

grupos numerosos, pois isso dificulta o

atendimento mais personalizado,além do

acompanhamento psicológico e outras

necessidades que vão surgindo de maneira

acelerada, como psiquiatria, neurologia,

fonoaudiologia, fisioterapia, e outras que

fazem parte da rotina ambulatorial, como

consultas e coletas para exames.A adoles-

cência traz necessidades específicas,como

ginecologia e urologia, as questões da

sexualidade, sociabilidades, contatos com

amigos e amigas e com a família.

Adolescer na Casa de Apoio exige do

adulto presença constante e diálogo per-

manente para que o adolescente possa

enfrentar a perda e o luto, as fantasias e

ansiedades,a busca de modelos em tem-

po de instabilidade, o acesso ao mundo

da informação globalizado, enfim, tudo

aquilo que pai e mãe de filhos e filhas

adolescentes têm que vivenciar.

Os pais e mães biológicos podem di-

zer que são marinheiros de primeira via-

gem; os responsáveis por uma Casa de

Apoio,não.

As Casas de Apoio são fiscalizadas

pelo Judiciário, Ministério Público,

Conselhos Municipais e Tutelares, pelos

financiadores,parceiros e doadores e têm

que se explicar em várias instâncias.

Como explicar ou justificar que um ou

uma adolescente abrigada em Casa de

Apoio está usando drogas ilícitas? Como ex-

plicar uma gravidez ou paternidade precoce

ou doenças sexualmente transmissíveis?

As Casas de Apoio com adolescentes

têm que administrar o aproveitamento

escolar,as questões afetivas e emocionais,

a aderência ao tratamento,o exercício da

sexualidade,a saúde mental,a cidadania,a

integração comunitária e familiar,executar

as sugestões das teorias jurídicas,dos psicó-

logos e terapeutas e,sobretudo,administrar

os sonhos e desejos dos adolescentes que

têm baixa resistência à frustração.

A cobrança é grande, forte e contun-

dente, mas poderíamos concluir que o

amor pode ser mais.

A

38 Saber Viver >> [Profissionais de Saúde]

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Maria Lúcia AraújoPRESIDENTE DA SOCIEDADE VIVA CAZUZA

o nos envolvermos com este trabalho junto a

crianças soropositivas, tínhamos uma única

certeza:vontade de trabalhar.

Conviver diariamente com estas crianças há 10

anos é uma fonte inesgotável de vida, amor e

aprendizado. Conseguimos, juntos, formar uma

família de moldes diferentes,mas com quase todos

os elementos emocionais incluídos nessa palavra

ou conceito. Todas as crianças abrigadas são

originárias de famílias carentes e, muitas vezes,

provenientes de outros abrigos,antes de chegar até nós.

A desintegração do vínculo familiar é fator com o qual temos que trabalhar e

sempre que possível resgatar.A chegada de uma criança, na maioria das vezes com

saúde debilitada,é sempre uma aula de solidariedade.

Preocupação e cuidado fazem com que se sintam "em casa e parte da família".

O avanço na descoberta de novos medicamentos possibilitou maior e melhor

qualidade de vida. Conseqüentemente,começaram nossos problemas e preocupações

com as crianças crescendo e se tornando adolescentes. Chegou a hora de trabalhar

a prevenção entre eles, afinal estamos no lugar de seus pais. É isso que estamos

fazendo nos últimos anos,nem sempre com sucesso,mas sempre com boa intenção.

Se com os nossos próprios filhos já é difícil, com uma criança com aids em uma

instituição é duas vezes mais;mas é um desafio maior também.

Procuramos deixar que sonhem seus sonhos e vivam suas vidas e torcemos para

que as orientações que demos surtam o efeito desejado.

Apesar de tudo,somados ao desgaste emocional e gasto financeiro,achamos que

vale a pena. Enquanto isso,trabalhamos arduamente,vivendo basicamente dos direitos

autorais, legado de Cazuza, que nos deixou bem mais que discos, boas músicas e

poesia. Ficou a coragem de quem, encarando a aids, favoreceu milhões de

soropositivos na luta por respeito e contra o preconceito.

[Profissionais de Saúde] << Saber Viver 39

Alegrias eproblemas

Trabalhar com adolescentes soropositivos

A A desintegração do

vínculo familiar é

fator com o qual

temos que trabalhar

e sempre que

possível resgatar

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Teresinha C R PintoBIOMÉDICA, PEDAGOGA, PRESIDENTE DA APTA

E CONSULTORA DA PN DST/AIDS/MEC

enso na minha tarefa:escrever aos que,do lado de

lá, nos ajudam a transformar a vida das crianças

HIV+ em vidas cidadãs.

Como Profissional da Educação, chamo de

lado de lá o que me é desconhecido: não vivo,

portanto não conheço, o dia a dia dos atendi-

mentos de emergência,dos choros intermitentes,

da angústia de colocar uma agulha num bracinho

já quase sem veia, no olhar de um adulto que

espera que o seu olhar lhe dê a certeza que ninguém nesse mundo pode dar! Quando

me coloco a tarefa de escrever a vocês – mulheres e homens profissionais dos nossos

serviços de saúde – imagino que vocês tenham imagens e pré-conceitos criados a

partir da experiência que tiveram de passar na escola:experiências prazerosas,ruins,

desastrosas enfim,experiências diversas que constroem a visão de hoje do que somos

nós,os educadores e educadoras e as nossas escolas.

Assim,convido vocês a fechar os olhos e imaginar as cenas que descrevo agora:

Cena 1Atendo ao telefone. É Maria, diretora da Escola de Educação Infantil X da cidade

de São Paulo. Ela me diz que a mãe de sua aluna Yara,de 5 anos, acaba de lhe contar

que é soropositiva e que a menina também é. Pede ajuda para lidar com a questão

porque nunca passou por essa situação e não quer que mãe e filha se sintam

discriminadas.

Em uma reunião na escola, oriento, tiro dúvidas, friso a importância da

confidencialidade do diagnóstico. Noto no quadro da sala uma frase de Paulo Freire

dizendo que escola é lugar de gente feliz! Faço seis encontros de 8 horas com todos

os educadores e educadoras da escola sobre HIV,DST e drogas. Ninguém fica sabendo

que há uma aluna com HIV.

Oriento a diretora a falar com o (a) médico (a) que acompanha a criança a fim de

que possam estabelecer contato e parceria.

Uma semana depois,a mesma diretora me liga estarrecida:quando telefonou para

o serviço de saúde, foi atendida pela assistente do médico. Quando se identificou,

ouviu de imediato: "Olha, não pega, não tem perigo não adianta querer transferir a

criança,aqui a gente é muito ocupado para ficar agüentando essa falta de informação

de vocês de escola...".

40 Saber Viver >> [Profissionais de Saúde]

O Outro lado da moeda

P

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Dias depois,com a minha intermediação,serviço e escola passam a se entender e

a estabelecer uma admiração mútua. Yara precisou de um aparelho de oxigênio

portátil para poder freqüentar a aula.A decisão de que seria melhor estar na escola que

em casa veio da diretora, o aluguel do aparelho é pago pela APTA, e o transporte da

garota,pela escola.

Yara está feliz. Deixa o aparelho na escola ao ir embora (tem outro em casa forne-

cido pelo serviço).Ao sair,beija o tubo de oxigênio e nós choramos a cada lembrança

dessa cena...

Cena 2:Paulo é uma pessoa soropositiva. Começa a namorar Ana,que não tem o vírus.A

coordenadora da escola fica preocupada e liga para o serviço que atende Paulo,que-

rendo uma orientação. Ouve que precisa avisar aos pais de Ana, pois ela é menor.

Insegura,a coordenadora liga para mim.Aconselho ela a falar com Paulo. Ela faz isso

e ouve dele a certeza que usará preservativo na hora do sexo.

Ela torna a me ligar e pergunta se pode confiar nele. Tenho vontade de lhe

perguntar se ele pode confiar nela, mas, ao invés disso, marco um encontro onde

conversamos longamente sobre o papel de cada uma de nós nesse caso. Chegamos

à conclusão de que não podemos viver a vida de Ana e de Paulo por eles.

Como medir o grau de angústia e tensão que nossas profissões carregam? Durante

anos,e provavelmente ainda será assim ainda por muitos mais,aprendemos a pensar

em compartimentos:saúde,educação,finanças e assim por diante. De repente,chega

uma enfermidade que nos mostra nossa impotência e nossa força. Ao tempo que nos

exaure,nos desafia e nos estimula a fazer diferente,compartilhando e resignificando

nossas profissões. Aqui e ali, experiências animadoras e apaixonantes da parceria

entre serviço e escola,mas ainda é aqui e ali.

Proponho,neste breve artigo,que façamos um pacto de estabelecer de fato uma

parceria que possa servir de orientação de conduta em todo o país: ao saber que

uma aluna ou aluno é soropositivo,o educador deve entrar em contato com o serviço

que a (o) atende para que um trabalho em conjunto se estabeleça, sem cobranças e

pré-conceitos,mas cujo centro é o bem estar da criança. Só o educador que convive

diariamente com essa criança ou adolescente, pode dizer ao (à) médico(a) detalhes

do desenvolvimento emocional de seus alunos. Porém, somente sabendo de sua

condição sorológica, o profissional de educação poderá identificar os distúrbios de

aprendizagem causados pelo HIV para que o profissional de saúde intervenha a

tempo.

Os estudos mostram que as crianças que estudam têm 60% menos internações que

as que não estudam; isso certamente deve ter alguma importância. Isso deve servir

para o início de um pacto de confiança onde os dois lados da moeda compreendam

que não há moeda de um lado só.

Viva a vida,que é fruta rara!

[Profissionais de Saúde] << Saber Viver 41

Os estudos

mostram que as

crianças que

estudam têm 60%

menos internações

que as que não

estudam; isso

certamente deve ter

alguma

importância

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u poderia iniciar este artigo citando uma série de ações

ou projetos para inclusão do adolescente soropositivo

na comunidade escolar. Contudo, não acredito que

ações e projetos isolados,pontuais,realmente alterem o

quadro de exclusão que os adolescentes,não apenas os

soropositivos, vivem no nosso país. Ao contrário, os

projetos devem existir em decorrência de um novo

olhar sobre a função da escola, sobre o processo

educativo e sobre o papel do currículo escolar. Além

disso, não poderia perder a oportunidade de propor

esta reflexão a um grupo de profissionais que já avançou

tanto na luta pelo direito e pela inclusão social.

Trabalhando muito proximamente com a equipe do Programa Nacional de Aids do

Ministério da Saúde, percebo que a questão da prevenção das DST/aids demanda

dois eixos de ação: uma frente imediata, com ações e projetos que intervenham

imediatamente nesta realidade e uma frente a médio e longo prazo, que intervenha

no paradigma de currículo que ainda impera em nossas escolas.

Uma breve análise da vida do adolescente em nossas escolasSe fizermos um passeio por algumas escolas brasileiras,especialmente as urbanas,

provavelmente encontraremos adolescentes e jovens sentados em grupo conversando

sobre os mais variados assuntos.Alguns fumando,outros mascando chicletes,outros

se abraçando e beijando,alguns ouvindo música (um rap,um reggae, talvez),muitos

jogos de sedução,e uma constante luta pela aceitação no grupo e pelo sentimento de

"eles me acham legal, então eu sou legal". Enfim,muitas coisas1 acontecendo que não

estão,necessariamente,relacionadas com aquilo que a escola planejou como conteúdo

programático,como atividade curricular.

42 Saber Viver >> [Profissionais de Saúde]

Propostas do MEC

A inclusão do adolescentesoropositivo na escola

Não acredito que

ações e projetos

isolados, pontuais,

realmente alterem

o quadro de exclusão

que os adolescentes,

não apenas os

soropositivos, vivem

no nosso país

Nájla VelosoDOUTORANDA EM SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO (UNB), MESTRE EM EDUCAÇÃO NA ÁREA DE CURRÍCULOS E PROGRAMAS E GRADUADA

EM PEDAGOGIA. COORDENADORA GERAL DE ENSINO FUNDAMENTAL DA SECRETARIA DE EDUCAÇÃO INFANTIL E FUNDAMENTAL DO

MEC E REPRESENTANTE DESTE MINISTÉRIO NA COMISSÃO NACIONAL DE DST/AIDS DO MINISTÉRIO DA SAÚDE

E1. Esse movimento na adolescência é bastante explicitado no filme americano "Aos treze", de Catherine Hardwicke e NikkiReed, exibido no Brasil a partir do mês de outubro/2003.

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Tudo isso nos parece muito natural.

Seria se não fosse o fato de termos no

Brasil um modelo de escola organizado

por séries e níveis de ensino, com

conteúdos programáticos definidos para

cada ano letivo (que, por sua vez, se

enquadra dentro do ano civil gregoriano)

com provas e testes bimestralmente

planejados e com uma série de atividades

para os adolescentes e jovens

desenvolverem ao mesmo tempo, num

mesmo período.

Tendo por referência a organização

seriada, a escola foi se engessando.

Burocratizou-se ao extremo. É certo que

não temos uma tradição de escola

brasileira ocupada com a aprendizagem,

mas com o ensino que temos. Numa

escola tão centrada neste aspecto (que

eu caracterizo como cognitivista), o

currículo é entendido como o conjunto

dos saberes, dos conteúdos, das

informações a serem transmitidas (por

alguns) ou construídas (por uma

minoria).

Essa perspectiva de escola gera uma

série de responsabilidades,para aqueles

adolescentes e jovens descritos no pará-

grafo anterior, que nem sempre tem

sentido para eles. Eu ouso dizer que

aquilo que a área da saúde entende e

valoriza como "protagonismo" ainda não

está muito próximo de grande parte de

nossas escolas,uma vez que nelas o foco

do processo não é o sujeito atuante em

vida,em tempo de formação e de desen-

volvimento humano.

Makarenko2, um fabuloso sociólogo

ucraniano, do século XIX, afirmava que

toda indisciplina é manifestação de

desacordo. Eu sinto isso quando vou às

reuniões de pais nas escolas dos meus

filhos (sempre escolas públicas!) e mesmo

quando participava dos conselhos de

classe de minha própria escola. Geral-

mente,os professores dos quais os alunos

mais reclamavam de inércia e de

monotonia metodológica eram os que

mais reclamavam da indisciplina das

turmas.

Mas a síntese que eu gostaria de

deixar dessa parte é que os nossos adoles-

centes e jovens vivem num ambiente

escolar que não foi organizado para eles,

que tem como referência a sua formação

e as suas características como sujeito.Pior

que isso:na maioria das vezes,não conta

com e nem valoriza a sua participação

nas decisões,na organização.

Assim, o que recebem de informa-

ções nesse espaço não está, necessa-

riamente, relacionado com seu tempo

de vida. Não é desenvolvido de uma ma-

neira que se encaixe com seus interesses

e a expectativa de seu papel é de um ser

passivo. Muito sério isso,especialmente

quando pensamos que os adolescentes e

os jovens estão numa fase da vida em

que se sentem absolutamente ativos,

capazes, entendedores do mundo e da

realidade, "quase donos dos seus pró-

prios narizes". Eles são praticamente

ignorados na escola.Aliás,há quem diga

que melhor seria ela sem eles. Infeliz-

mente, o resultado desse processo é

quase sempre a não aprendizagem e o

desprezo pela instituição educativa,

quando não a evasão e o abandono.

Mas há algo que julgo mais grave em

tudo isso:esse modelo de educação e de

escola foi feito para alguns. Ele foi

pensado para os que aprendem,para os

de melhor renda, para os brancos, para

os "saudáveis", para os moradores da

cidade e para os de "família". Assim, os

negros, a comunidade indígena, os

pobres,as mulheres,os portadores de al-

guma deficiência física ou mental (per-

manente ou temporária) e a população

do campo, os ciganos, os estrangeiros,

entre outros, nunca foram a população

"legítima" dessa escola.

O Ministro Cristovam Buarque afirma

que ainda não completamos a abolição e

nem construímos a República; apenas,

"libertamos" os escravos de uma situação

e os aprisionamos em outra,pelo desem-

prego, pela falta de educação e pela

desigualdade de oportunidades.

O paradigma de currículo nabusca da aprendizagem eda inclusão de todosO MEC (especialmente a Secretaria

de Educação Infantil e fundamental, de

onde eu falo) tem clareza de sua função

na educação brasileira. Nós não exe-

cutamos políticas em escolas. O que

fazemos é estimular, acompanhar o

desenvolvimento e avaliar as políticas,

em parceira com os sistemas de ensino

municipais e estaduais.

Assim, o que se tem feito é ques-

tionar, promover a reflexão sobre essa

lógica de organização de tempo e de

espaço da escola e, sobretudo, propor

um repensar sobre o currículo e sua

função, a construção coletiva das dire-

trizes político-pedagógicas para o ensino

fundamental, além da proposição de

alguns projetos para ação conjunta com

os sistemas de ensino.

O currículo é um elemento impor-

tante a ser repensado porque foi sobre o

seu tradicional conceito que esse

modelo mais comum de organização

escolar – o seriado – se estabeleceu.

Por muito tempo,o conceito de cur-

rículo foi relacionado ao de carga horária

[Profissionais de Saúde] << Saber Viver 43

2. Anton Makarenko concebeu um modelo de escola baseado na vida em grupo, na autogestão, no trabalho e na disciplina, que contribuiu para a recuperação de jovens infratores.

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e de organização de disciplinas. O que

foi, além de hegemônico, para alguns,

inquestionável. Ouso dizer que esse

velho paradigma de currículo não per-

mitiu que a escola e os sistemas,ao longo

dos séculos, pensassem com maior

profundidade sobre a importância da

formação do indivíduo proporcionada

pela escola.

No sentido de ampliar esse conceito

de currículo,a segunda metade do século

XX trouxe importantes contribuições

quando evidenciou questões como liber-

dade e transformação,libertação da escola

de preconceitos, a democracia como

forma de convivência social e a ética

como fundamento das relações humanas.

No mesmo alinhamento, o século

XXI tem enfatizado: 1) o conhecimento

na sua forma mais complexa, em sua

relação dialógica entre o todo e as

partes, 2) o rompimento com a lógica

fragmentadora dos saberes,3) o presente

em movimento, na sua totalidade,

complexidade e multidimensionalidade,

4) o currículo escolar relacionado ao

modelo de homem, de sociedade e de

mundo que se pretende, e 5) os

princípios, valores e fins da educação,

estruturados no posicionamento

curricular. Sinto necessidade de maior

aprofundamento desse conceito, mas,

por uma questão de espaço, ficará para

outra edição da Revista, se houver a

possibilidade.

Propostas e projetos do MECpara abordagem dasexualidade, da prevençãoàs DST/aids e para inclusãodo adolescente soropositivoSempre achei interessante o conceito

de vulnerabilidade. No mês de outubro

tive a oportunidade de,em um encontro

com profissionais da área da saúde,

conhecer um outro conceito que me

chamou muito a atenção: a "resiliência".

Na Física, este termo diz respeito à

resistência ao choque ou a propriedade

pela qual a energia potencial armazenada

em um corpo deformado é devolvida

quando cessa a tensão incidente sobre o

mesmo. Na área das Humanas, a

resiliência passou a designar a capacidade

de resistir flexivelmente à adversidade,

utilizando-a para o desenvolvimento

pessoal,profissional e social.Aprendi que

a resiliência diz respeito à capacidade das

pessoas, dos grupos e das comunidades,

não só de resistir à adversidade, mas de

utilizá-la em seus processos de desen-

volvimento pessoal e social.

No caso da convivência com o HIV,

com a aids e com outras questões da vida,

refletir tendo por parâmetro a resiliência

é absolutamente formativo e educativo.

Será que o currículo da escola,tendo por

foco a formação e o desenvolvimento

humano, não poderia ser permeado por

discussões dessa natureza?

Dentre muitas ações que este

Ministério vem desenvolvendo, vou me

restringir a citar aquelas desenvolvidas

em parceira com o Ministério da Saúde:

1) Estão sendo coletados dados sobre

a formação de professores que os

sistemas têm desenvolvido sobre a

sexualidade e DST/aids, como subsídio

para a implantação e implementação de

políticas públicas nessa área;

2) Está sendo implementado o

Projeto "Saúde e Prevenção nas Escolas",

inicialmente em seis municípios, que

pressupõe uma sistemática de contínua

e permanente de formação de profes-

sores sobre o tema – abordando, inclu-

sive, a relação do profissional com os

alunos que vivem com aids – que tem

por estratégia de consolidação da cultura

da prevenção, a disponibilização de

preservativos na escola;

3) Estão programados seminários

regionais para o final do ano de 2003 e

início de 2004,com vistas a propor termo

de compromisso com os sistemas na

oferta de cursos para profissionais da

educação na ampla dimensão da pro-

moção da saúde.Uma das temáticas será a

convivência com os alunos soropositivos;

4) Levantamento e desenvolvimento

do programa "Escolas Promotoras da

Saúde",em parceria também com a OPAS;

5) Socialização, junto aos sistemas de

ensino,das propostas de alunos que vivem

com aids no encontro promovido pelo

Programa Nacional de DST/aids e Unicef,

em Brasília,no mês de agosto de 2003;

6)Discussão com a Secretaria de

Ensino Superior sobre a formação inicial

e a abordagem das questões relativas à

promoção da saúde e relação com alunos

que vivem com aids.

Enfim, pensamos que muitas das

distorções e anomalias presenciadas em

nossas escolas são fruto de uma

concepção reduzida de currículo e da

ausência de políticas de formação inicial

e continuada, suficientemente capazes

de promover a reflexão e a conscien-

tização dos nossos profissionais da

educação sobre o seu relevante papel na

efetiva condição de cidadania de todo o

povo brasileiro.

Não há que se esperar que em um

curto espaço de tempo, seja por um

projeto ou por uma política,questões de

natureza tão complexas sejam sanadas mo-

mentaneamente. Mas há que se manter a

esperança de que através da reflexão, da

conscientização e da formação alcan-

cemos uma existência digna daquilo que

pode ser chamado de vida,para todos.

44 Saber Viver >> [Profissionais de Saúde]

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Tarcísio AndradeMÉDICO, PSICANALISTA, PROFESSOR ADJUNTO-DOUTOR DA

FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA. PESQUISADOR E COORDENADOR DA DIVISÃO DE REDUÇÃO

DE RISCOS E DANOS DO CENTRO DE ESTUDOS E

TERAPIA DO ABUSO DE DROGAS – CETAD/UFBA

o Brasil, os usuários de drogas sob maior

risco de infecção pelo HIV, os Usuários de

Drogas Injetáveis (UDI),são,em sua maioria,

do sexo masculino e com média de idade

em torno de 25 anos. Um estudo realizado

no Centro Histórico de Salvador, em 1996,

mostrou que 20% dos UDI HIV positivos

tinham menos de 18 anos de idade e uma

taxa de infecção maior do que o restante

dos entrevistados. Esse dado, embora

específico daquele local,chama atenção para a maior vulnerabilidade dos jovens UDI

às complicações infecciosas decorrentes do uso de drogas.Tal fato tem como provável

explicação a menor autodeterminação desses jovens diante dos adultos que os iniciam

no uso injetável. Os mais jovens, habitualmente, dispõem de menos recursos para a

aquisição de droga e,não incomum,as conseguem por intermédio de um adulto que

também disponibiliza os equipamentos de injeção,muitas vezes já utilizados por ele

próprio.

Com a intensificação do consumo de crack no Brasil,sobretudo na segunda metade

da década de 90, tornou-se evidente a grande vulnerabilidade das mulheres usuárias,

sobretudo as mais jovens e menos experientes,à infecção pelo HIV e outras DST.Pelas

mesmas razões apresentadas para os UDI mais jovens,no universo do uso de drogas,

as mulheres estão habitualmente colocadas em situação de desvantagem em relação

aos homens,sobretudo aquelas mais jovens e inexperientes.Não incomum,a aquisição

do crack se faz mediante a troca por práticas sexuais, que, quando genitais, muitas

vezes se dão sem a devida excitação e conseqüente lubrificação vaginal,o que propicia,

pelo atrito,escoriações,sangramentos e maior risco de infecção por HIV e outras DST.

Em estudo recente realizado pela Divisão de Redução de Riscos e Danos do

[Profissionais de Saúde] << Saber Viver 45

Jovens usuários de drogas com e sob risco de HIV:

Lições de um programa deredução de danos

Ser jovem,

sobretudo

adolescente e

usuário de

drogas, reúne

duas condições

socialmente

desfavoráveisN

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CETAD/UFBA entre 124 mulheres (idade ± 24 anos) revelou 1.6% de infecção pelo HIV

e 2.4% para Hepatite C.

Ser jovem, sobretudo adolescente e usuário de drogas, reúne duas condições

socialmente desfavoráveis. Em verdade, o adolescente não tem um lugar na nossa

cultura ocidental pós-moderna:fatos idênticos ocorridos com adultos e considerados

acidentes, entre adolescentes, não incomum, são rotulados de imprudência e

desatenção; termos como "aborrecente" refletem a intolerância dos adultos para os

jovens nessa quadra da vida. Mas o que definitivamente denuncia a falta de lugar do

adolescente em nossa cultura é a tão familiar frase dos pais para seus filhos "estude

para ser alguém na vida", o que significa que nesse momento ele não é ninguém.

Quando às condições de jovem e usuário de droga se soma a de HIV positivo, torna-

se ainda mais difícil. Difícil para o próprio portador, que, além do seu discurso de

contestação aos que o discriminam e o oprimem, também carrega consigo esse

mesmo discurso, se recrimina por essas condições e sonha com um mundo adulto,

de realizações e de plenos direitos.

A não percepção pelos profissionais de saúde dessas peculiaridades pode

constituir fator de entrave na provisão,e também na aceitação por parte do portador,

dos cuidados necessários à condição de jovem usuário de droga e HIV positivo.

A grande contribuição dos princípios e práticas das políticas de Redução de

Danos na minimização dos riscos e agravos decorrentes do uso de drogas — não

apenas das injetáveis, mas de toda e qualquer substância lícita ou ilícita que altere a

senso-percepção do sujeito — está no respeito ao direito dos usuários de drogas às

suas drogas de consumo. Estendido esses princípios a outros campos de práticas,seja

na esfera pedagógica, social ou da prevenção e assistência à saúde, teremos como

resultados ações mais sintonizadas com as necessidades das populações e,portanto,

muito mais eficazes.

A adequada assistência à saúde constituída na capacidade técnica,mas sobretudo

na individualidade do outro, visto em todas as suas potencialidades, condições

demográficas, culturais, comportamentos e atitudes, possibilitará uma melhor

percepção do jovem usuário de droga HIV positivo. Desse modo, torna-se possível

perceber os motivos para a negação do estado de portador e ou doente com aids,uma

vez que,apesar dos avanços obtidos,torna-se muito difícil nessa quadra da vida aceitar

algo cuja solução definitiva lhe foge ao controle. Do mesmo modo, o uso de drogas

que na maioria das vezes é para os usuários, independente de idade, uma forma de

automedicação, entre os jovens HIV positivos, não incomum, se constitui em um

meio de enfrentar a adversidade e propiciar tranqüilidade,ânimo,melhora do apetite

ou mesmo disfarçar os efeitos da doença,quando já manifestada e não adequadamente

tratada. Essa última condição tem sido observada entre jovens HIV positivo fora de

tratamento,que encontram no uso de crack uma forma para disfarçar a anorexia e o

desgaste físico decorrente da doença.

46 Saber Viver >> [Profissionais de Saúde]

Quando a essas

condições de

jovem e usuário de

droga se soma a

de HIV positivo,

torna-se ainda

mais difícil

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um passado não tão distante assim, a rua como

lugar de brincadeiras e aventuras fez parte da

infância de muitos de nós. Este espaço de práticas

antigas e tradicionais em nossa sociedade é um

local de sociabilidade, sobrevivência e trabalho

para crianças, jovens, famílias entre outros.

No entanto, a utilização da rua como espaço

para aquelas crianças e adolescentes excluídos

ou que se excluem, os transforma em "meninos

de rua","infratores","drogados" e inúmeros adjetivos que associam sempre à pobreza

e à marginalidade.

Pelo perigo que simbolicamente esta situação representa para a sociedade,desde

o final do século passado,vimos o surgimento de políticas sociais e regulamentações

jurídicas com o objetivo de disciplinar esses meninos e meninas,vistos até hoje,pela

maioria da sociedade,como possíveis agentes da desordem e das crises nacionais.

Na década de 80, com o Estatuto da Criança e do Adolescente, crianças e

adolescentes, até então classificados como em "situação irregular", passam a ser

considerados sujeitos de direito,com prioridade absoluta na garantia desses direitos.

Mas a realidade ainda é outra. O que presenciamos atualmente é um aumento pro-

gressivo dessa população, cujas garantias, prometidas pela Constituição, não saíram

ainda do papel e,como afirma Dimenstein,o direito de se viver decentemente ainda

é proibitivo para muita gente.

Diante desse retrato, que aos poucos vem sendo modificado pela atuação de

movimentos sociais,de pesquisadores,de setores comprometidos com a infância e ju-

ventude e pela esperança de que o país encontre realmente seu caminho para uma

sociedade mais justa, ainda há muito a construir e refletir sobre as nossas práticas e

políticas sociais.

Buscando desenvolver um trabalho que levasse em conta a situação de abandono

destes jovens, inauguramos em 2000, no município de Itajaí/SC, o CAPS - Centro de

Atenção Psicossocial a crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade às

drogas, violência e DST/aids, que tem por objetivo a promoção da saúde física e

mental dessa população.

[Profissionais de Saúde] << Saber Viver 47

Jovens em situação de rua:

Desafio para a prevenção

N Todo e qualquer

programa e ação

de prevenção e

assistência deve

considerar valores,

crenças, costumes

e práticas

individuais

e grupais

Verônica de MarchiPSICÓLOGA E COORDENADORA DO CAPS DE ITAJAÍ/SC

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O maior desafio a que nos propomos

é o de estabelecer uma metodologia

que, fundamentada numa visão de so-

ciedade,de homem,de vida e mesmo de

uma educação, possibilite um reco-

nhecimento do universo desses jovens

de forma a resgatar sua auto-estima e

conseqüentemente vislumbrar oportu-

nidades de construção de um projeto de

vida. E como realizar este percurso com

adolescentes marcados por situações

extremadas de risco e violência? Como

trazê-los, espontaneamente, para um

espaço de opções mais saudáveis?

O CAPS não é somente um centro de

atendimento,é antes de tudo um centro

de atenção. Estar atento significa estar o

tempo todo comprometido com o

receber,com o escutar,com o olhar,com

o acolher o sofrimento destes adoles-

centes, que aparece a todo instante, a

qualquer momento. E todos ali

presentes, da recepção ao técnico,

devem estar atentos.

Esta metodologia está fundamentada

em princípios que consideramos nortea-

dores para o trabalho de prevenção e

assistência que desenvolvemos, tais

como:

� A atenção à criança e ao adolescente

deve ser integrada e integral, realizada

por uma rede multidisciplinar e inter-

setorial de cuidados que promova o

desenvolvimento físico, mental e

social dessa população;

� A estruturação de vínculos saudáveis

como instrumento primordial de tra-

balho com crianças e adolescentes

permite a adaptação ativa à realidade e

uma retroalimentação dialética entre o

sujeito e o meio, promovendo mudan-

ças nos padrões comportamentais e

afetivos e fortalecendo a estruturação

da identidade individual e grupal.

� A vulnerabilidade ao consumo e

abuso de SPA e as DST/HIV/aids exige

das intervenções de prevenção e

redução de danos, a compreensão do

contexto sociocultural de vida, das ca-

racterísticas biológicas e psicológicas

desses jovens, das questões de sexua-

lidade e gênero,de sociabilidade e gru-

pos, além dos aspectos psicofarmaco-

lógicos das SPA.

� A exclusão familiar, escolar e social é

o maior fator de vulnerabilidade à

saúde de crianças e adolescentes, de-

corrente:da situação de miséria econô-

mica em que vive grande parte da po-

pulação do Brasil; de práticas pedagó-

gicas inadequadas às demandas e ne-

cessidades desses jovens; da falta de

instrumentos técnicos e de vontade

política para implementação das dire-

trizes de atenção propostas pelo Esta-

tuto da Criança e do Adolescente/ECA;

e da carência de uma verdadeira REDE

de serviços de saúde, assistência so-

cial, educação e de Organizações da

Sociedade Civil que promova a saúde

física, mental e a cidadania desses pe-

quenos brasileiros.

Crianças e adolescentes em situação

de vulnerabilidade social são seres

plenos de potencialidades, e, nesse

sentido, a prevenção e a redução de

danos à saúde devem estar orientadas

pelo desenvolvimento e fortalecimento

dessas habilidades e competências.

A adolescência, como momento

crucial e característico do desenvol-

vimento humano e pelo seu caráter de

transição biológica e psicossocial, leva o

indivíduo a viver conflitos internos e

externos na construção de sua identi-

dade individual e grupal, na busca de

vivências afetivas e de prazer, de sua

independência econômica, do ques-

tionamento de valores e normas fami-

liares e sociais. Todo e qualquer pro-

grama e ação de prevenção e assistência

deve considerar, portanto, além das

características de desenvolvimento do

adolescente, seus valores, crenças,

costumes e práticas individuais e

grupais, sua linguagem e simbologia.

Referências bibliográficas:

BUCHER, Richard. Drogas e Sociedade nos tempos daAids. Brasília: Ed. UNB, 1996.

CARVALHO, Denise B.Birche; SILVA, MariaTerezinha(org.). Prevenindo a drogadição entre crianças eadolescentes em situação de risco. Brasília:MS/COSAM/;UnB/PRODEQUI;UNDCP. 1999.

DIMENSTEIN, G. O cidadão de papel. São Paulo: Atica.1995

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. 15ª ed. Riode Janeiro: Ed. Paz e Terra. 2000

LESCHER, Auro Danny et al.Cartografia de uma Rede.SãoPaulo: UNIFESP/MS/UNDCP/COFECUB/USP. 1998.

MARTINS, Jose de Souza. A experiência precoce dapunição. In: O massacre dos inocentes. A criança sem Infânciano Brasil. São Paulo: Ed. Hucitec, 1991.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Cadernos Juventude, Saúde eDesenvolvimento. Vol. 1 Brasília: 1999.

PASSETTI, Edson. Violentados: crianças, adolescentes ejustiça. São Paulo:Ed. Imaginário.1999.

PILOTTI, Francisco; RIZZINI,Irene. A arte de governarcrianças. Rio de Janeiro: Santa Úrsula. 1995.

RIZZINI, Irene. O Século perdido: raízes históricas daspolíticas públicas para a Infância no Brasil. Rio de Janeiro: Ed.Universitária. 1997

VERONESE, Josiane Rose Petry. Entre violentados eviolentadores. São Paulo: Ed. Cidade Nova. 1998.

48 Saber Viver >> [Profissionais de Saúde]

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o trabalhar junto a

jovens privados

de liberdade, nos-

so objetivo é im-

pulsioná-los a tri-

lhar um caminho

diferente daquele que eles já conhecem

– o caminho da criminalidade. Nossa

meta é criar oportunidades para que

esses jovens percebam que só eles têm o

poder de mudar seu projeto de vida.

Atualmente,coordeno o projeto Sen-

sibilização e Conscientização em DST,

HIV/aids e Drogas, que há três anos de-

senvolve oficinas com jovens internos na

Febem. Durante as dinâmicas realizadas,

pudemos perceber que muitos deles

guardam dentro de si uma criança que

raramente teve oportunidade de brincar.

Diante disso,foi preciso mudar nossa pos-

tura como educadores, cuidadores e

monitores para que obtivéssemos algum

resultado com esse trabalho.Também se

tornou evidente, ao trabalhar com esses

adolescentes, a necessidade de incluir

seus pais e acompanhantes e os funcioná-

rios da Febem nas dinâmicas do projeto.

Passamos a olhá-los com um olhar dife-

renciado, não como números, mas

individualmente. Cada um tem sua his-

tória e sua família,que sofre também pelo

preconceito de ter um filho na Febem.

É importante que a sociedade

perceba que aqueles adolescentes que

vemos, através da TV, em telhados du-

rante as rebeliões, não vivem em uma

realidade que não nos diz respeito. Eles

poderiam ser um membro da nossa

família ou comunidade que,por algum

momento, não foi assistido de forma

correta, por nós ou pelo governo. Pre-

cisamos urgentemente de políticas pú-

blicas específicas para estes jovens.

Desde a prevenção contra DST/aids,

devido à vulnerabilidade em que vivem

dentro das unidades de detenção, até

subsídios para sua liberdade.

É preciso acreditar que o futuro vai

ser melhor e ter consciência de que a

chance de mudar a nossa história que

está em nossas próprias mãos.

Como funcionam as oficinasDurante a semana,os adolescentes e

funcionários são divididos em três

turmas de oficinas. Pais e acompanhan-

tes participam nos finais de semana,

aproveitando o dia de visitas, para não

sobrecarregar financeiramente pessoas

já tão sofridas e com dificuldade de obter

o dinheiro da passagem, muitas do

interior de SP.

No primeiro ano do projeto, realiza-

mos o vídeo "A Escolha".Vídeo pioneiro,

onde o adolescente constrói desde a

história até o trabalho de ator.

No segundo ano do projeto, foi feito

o vídeo "Adolescência Interrompida".

Este projeto foi um pouco mais com-

plexo devido à situação atual da Febem.

O vídeo,na verdade, se transformou em

um pequeno documentário, com a

participação dos adolescentes.

[Profissionais de Saúde] << Saber Viver 49

Adolescentes emconflito com a lei

André de SouzaEDUCADOR SOCIAL / PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO VIDA POSITIVA

A

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m fevereiro de 2003,impulsionado entre outras coisas

pelos dados epidemiológicos,o Programa Nacional de

DST/aids convocou uma reunião com técnicos de

várias partes do país que trabalham com adolescentes

e HIV, no intuito de incrementar ações voltadas para

esta população.

Uma das primeiras estratégias pensadas foi a

organização de grupos focais com adolescentes ligados

a diferentes serviços do país para que estes pudessem

ter voz na construção das referidas estratégias.

Desta forma,no período de abril a maio,foram realizadas oficinas em 8 cidades do

Brasil com adolescentes vivendo com HIV.

As oficinas tiveram duas horas de duração e participaram adolescentes de várias

idades,de ambos os sexos,em grupos de no máximo 12 jovens.

Os principais objetivos eram fazer uma avaliação do serviço em que o adolescente

estava inserido, perceber como o adolescente se sente vivendo com HIV e traçar

propostas para melhorar sua assistência e qualidade de vida.

As oficinas foram divididas em três momentos:o primeiro,para apresentação do

grupo e sua proposta;o segundo,para que se falasse sobre o serviço; e o terceiro,que

buscou perceber o adolescente vivendo com HIV e seu cotidiano.

Foram utilizadas técnicas lúdicas, que facilitassem a expressão de todos e

tornassem o encontro agradável.

Sobre os serviçosDe maneira geral, os adolescentes gostavam dos serviços nos quais estavam

inseridos.Têm ótima relação com o (a) médico (a) assistente. Contudo, apenas dois

locais já desenvolviam algum tipo de trabalho de grupo, o que os adolescentes

consideram uma experiência rica e agradável.

"...é uma chance de fazer amigos..."

"...hoje eu aprendi como fazer para tomar o remédio quando eu saio..."

"...importante que fosse feito também com nossos pais..." … "...eles sabem

menos que a gente e ficam muito tristes..."

Colocaram como carência nos serviços a participação de profissionais de outras

categorias, já que muitas vezes o atendimento é basicamente médico.

"...eu gosto de ser atendido pela psicóloga..."

50 Saber Viver >> [Profissionais de Saúde]

Oficinas com adolescentessoropositivos

Os principais objetivos

[das oficinas] eram

fazer uma avaliação

do serviço em que o

adolescente estava

inserido, perceber

como o adolescente

se sente vivendo com

HIV e traçar propostas

para melhorar sua

assistência e

qualidade de vida

ELuiza Cromack

GINECOLOGISTA E OBSTETRA. MESTRADO EM SAÚDE COLETIVA PELO NESC/UFRJ

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Os locais e horários de atendimento

foram vistos como inadequados. Muitas

vezes são atendidos na pediatria, onde

não se identificam com toda a estrutura

voltada para crianças. Os horários muitas

vezes impedem a freqüência à escola,

levando-os constantemente a ter que

justificar suas faltas, o que é constran-

gedor para eles.

O acesso aos preservativos e a ma-

teriais educativos sobre o tema não era

visível na maioria dos serviços.

Revelação do diagnósticoEssa questão surgiu como problema

em todos os grupos,já que era necessário

que o adolescente conhecesse seu estado

sorológico para participar das atividades

e,em muitos serviços,vários adolescentes

não conheciam. Os profissionais e fami-

liares/cuidadores ainda têm muita difi-

culdade em lidar com esta questão.

Quem contar, quando e como fazer? Os

familiares e cuidadores têm medo da

discriminação e da reação dos filhos. Os

profissionais muitas vezes têm

dificuldade para discutir com as famílias.

Na verdade,o que se observou foi que,

em geral,os adolescentes já sabiam antes

da revelação feita pela família e/ou pelos

profissionais de saúde,por causa de seus

medicamentos,do local de atendimento,

de conversas familiares.Contudo,esta não

explicitação gerava um aprisionamento

para o adolescente, que se via sem ter

com quem discutir estas questões.

Eles querem saber de seu estado

sorológico, para entender o motivo do

tratamento, a tristeza dos familia-

res/cuidadores, a quantidade dos medi-

camentos e os preconceitos sociais.

"...eu já desconfiava , aí fui ler o

vidro do remédio..."

"...eu sou revoltado até hoje, não

desculpo minha mãe por ter demorado

tanto a me contar..."

"...agora eu sei porque minha mãe

olha pra mim e chora"

"...claro que é melhor saber , mas

tem uma idade certa..."

Muitas vezes o profissional ameniza

para o adolescente a importância dos

cuidados com sua saúde, levando ao

comprometimento da mesma.

"...passei a tomar menos os

remédios, é só para controlar..."

Os adolescentes vivendo com HIV/aidsFalaram muito do seu afeto por coisas

e atividades, da necessidade e desejo de

amigos e da dificuldade de tê-los e "não

poder contar" ou da dificuldade de

aproximação. Falou-se da vivência da

orfandade e a ausência de figuras

parentais.

O lazer apareceu, em geral, como

solitário, mas com desejo de expansão

para um grupo. As meninas se ressentem

da falta de amigas e os meninos gostariam

de praticar esportes coletivos

"...se as pessoas não quiserem

brincar com você, deixa pra lá..." (mãe

falava para filha)

"...eu queria ter mais amigos..."

Surge espontaneamente a preo-

cupação com os namorados (contar ou

não contar; quando o namorado só quer

transar, aceitariam ou não?):

"...eu uma vez até ensaiei contar,

mas na hora não saiu..."

"...penso um dia em casar e ter

filhos..."

Os meninos se mostraram preocupa-

dos se poderiam ser pais sem transmitir

o vírus para a mulher; as adolescentes,

mais preocupadas com a transmissão

vertical.

Existe uma tristeza no adolescer e não

poder viver esta adolescência como

outros.

"...eu queria poder contar para meus

amigos..."

"...se você pensar nisso 24horas/dia,

você não vive..."

[Profissionais de Saúde] << Saber Viver 51

O acesso aos

preservativos

e a materiais

educativos sobre

o tema não era

visível na maioria

dos serviços

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Discriminação e PreconceitoEste assunto sempre foi impregnante

nos grupos e as instâncias mais mencio-

nadas são aquelas com as quais os ado-

lescentes mais convivem: a família e a

escola.

"...minha prima foi guardar a

caneca dela de alumínio dentro do

guarda roupas. Eu falei para ela que

ali passava rato; ela preferiu mesmo

assim..."

Em todos os grupos surgiram situa-

ções bastante graves de discriminação e

preconceitos na escola. Houve casos de

expulsão, afastamento temporário e

muitas vezes necessidade de mudança

de escola.

"...eu sempre levava atestado

quando ficava doente, aí elas (as

freiras da escola) foram investigar o

que a doutora tratava e me expul-

saram da escola. Eu gostava daquela

escola, não queria sair..."

"... eu tinha que sentar na última

fileira, a professora disse que eu não

podia respirar o mesmo ar que os

outros alunos".

Questionadas pelas famílias sobre a

necessidade de falar na escola, muitas

mães contam como uma atitude de "ho-

nestidade", outras buscam apoio e soli-

dariedade,ou ainda há aquelas que que-

rem "dividir o problema com alguém".

"...eu gosto de ser honesta, mas aí a

professora foi fazer uma palestra e todo

mundo ficou sabendo, até a minha

filha..."

Muitas vezes,a desinformação leva a

esta atitude que expõe o/a adolescente à

discriminação.

"Minha mãe teve que contar na

escola, afinal eu podia me machucar

na Educação Física...".

Escolas de futebol e natação, por

exemplo, também excluem os adoles-

centes que vivem com HIV.

"...nunca tem turma pra mim..."

Comentários finaisComo lições aprendidas, podemos

ressaltar as seguintes necessidades:

� Realização de grupos com adoles-

centes e grupos com familiares e cuida-

dores para troca de vivências, informa-

ções,aumento da rede de apoio.

� Facilitação do acesso à informação,

a materiais educativos e aos preservativos.

� Melhora do fluxo para atendi-

mentos por outras categorias profissio-

nais e outras especialidades médicas.

� Promoção de treinamentos e dis-

cussões entre profissionais, buscando

minimizar sua ansiedade no cotidiano do

lidar com os adolescentes HIV+ e seus

familiares/cuidadores.

� Promoção de fóruns permanentes,

junto aos diversos setores (saúde,educa-

ção, ação social, cultura, esportes, lazer)

visando facilitar a inclusão dos adoles-

centes e seus familiares

Para terminar uma frase dita por uma

das adolescentes:

" ... às vezes fica tudo escuro, cheio

de nuvens..."

Cabe a nós, profissionais que vivem

com HIV, tentar clarear um pouco (ou

muito) esse horizonte.

AS OFICINAS FORAM PLANEJADAS E REALIZADAS POR LUIZA

CROMACK E CLAUDIO PICAZIO – PSICÓLOGO/SEXÓLOGO E

INTEGRANTE DA ONG REVIVER NO PROJETO TECER O FUTURO

(UNICEF)

52 Saber Viver >> [Profissionais de Saúde]

Em todos os

grupos, surgiram

situações bastante

graves de

discriminação

e preconceitos

na escola

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54 Saber Viver >> [Profissionais de Saúde]

BOAS LEITURASA história social da família e da criançaPhillip Ariés

A história da vida privadaPhillip Ariés e outros

A arte de governar criançasIrene Rizzini

Aids e EscolaTeresinha Pinto e Isabel da Silva Telles

Diferentes desejosCláudio Picazio

O século perdido - Raízes históricas daspolíticas públicas para a infância brasileiraIrene Rizzini

Sexo Secreto: Temas polêmicos da sexualidadeCláudio Picazio

SITES PARA PESQUISACoordenação Nacionalde DST e AidsPrograma Nacional de Aids do Ministério daSaúde. Dados sobre a epidemia no paíse últimas informações.www.aids.gov.br

Agência AidsDivulga notícias, informações e artigos sobrea doença. Reúne ainda dados estatísticos,dicas de livros e relação de ONGs voltadas aotratamento e orientação de doenteswww.agenciaaids.com.br

Abrapia - Associação Brasileira multi-profissional de Proteção à Infância eAdolescênciaONG que trabalha na promoção e defesa dosdireitos de crianças e adolescentes.www.abrapia.org.br

Associação Internacional pelo Direito daCriança Brincar - IPAOrganização não governamental, formada porprofissionais que atendem creches, trabal-ham em saúde e realizam serviços deassistência social.www.ipa-br.org.br

Centro de Referência, Estudo e Açõessobre Crianças e Adolescentes - CecriaCentro de pesquisa, capacitação e formação,criado para estudar as questões relacionadasa violação, promoção, proteção e defesa dosdireitos da criança e adolescente.www.cecria.org.br

ECOS - Comunicação em SexualidadeONG que produz materiais educativos na áreade sexualidade e aids.www.ecos.org.br

Grupo Pela ViddaONG que trabalha com o compromisso depromover a integração das pessoas vivendocom HIV e Aids, o respeito à sua cidadania, asua participação no enfrentamento da epi-demia, e também contribuir para a prevençãoe o controle da Aids.www.pelavidda.org.br

GAPA - Grupo de Apoio à Prevenção à AidsONG existente em diversos estados do país ,desenvolve trabalhos em prol dos direitos eintegração das pessoas portadoras de Aids.www.gapars.com.br www.gapabahia.org.br

NEPAIDS - Núcleo de Estudos para aPrevenção da AidsCentro de estudos e discussão e divulgaçãode conhecimento sobre HIV/ Aids.www.usp.br/nepaids

Projeto Adolec - BIREMEBiblioteca virtual que tem por objetivo pro-mover acesso on-line à informação científicapara a saúde do adolescente no Brasil.www.adolec.br

TELEFONES ÚTEISMinistério da Saúde0800-611997 – Ligação gratuita

Disque adolescentes – S. PauloTel: (11) 3819 2022 – das 11 às 14 horas

Tele Aids – Centro Corsini0800-111213 – Ligação gratuita – De 2ª a 6ªfeira, das 8h às 18h

ALGUMAS ONGS QUE PROMOVEMPALESTRAS, DINÂMICAS E OFICINASSOBRE HIV/AIDS EM ESCOLAS PARAPROFISSIONAIS DA ÁREA DE EDUCAÇÃOE/OU PARA OS JOVENS

BahiaFederação de Bandeirantes do BrasilTel: (71) 247-6906Rua Recife, 142 - Jardim Brasil Barra AvenidaSalvador-BACep: 40.140-360

CearáGapa-CETel: (85) 253-4159Rua Castro e Silva, 121/sala 305Fortaleza-CECep: 60.030-010

Distrito FederalGapa-DFTel: (61) 326-7000SCLN 404, bloco b, loja 50 – Asa NorteBrasília-DF – Cep: 70.845-520

ParáFederação de Bandeirantes do BrasilTel: (91) 229-4790Av. Senador Lemos, 421 – UmarizalBelém-PACep: 66.050-000

PernambucoFederação de Bandeirantes do BrasilTel: (81) 3241-8989Av. Rosa e Silva, 670/603 – AflitosRecife-PECep: 52.020-220

São PauloAssociação de Apoio à Criança HIV PositivoProjeto ReviverTel: (11) 6692-1112Rua Toledo Barbosa, 964 - BelenzinhoSão Paulo – SPCep: 03.061-000

APTA - Associação para Prevenção eTratamento da AidsTel: (11) 3266-3345Alameda Ribeirão Preto, 28 – Conjunto 21 RSão Paulo-SPCep: 01.331-001

Rio de JaneiroGrupo Pela Vidda RioTel.: (21) 2518-3993Av. Rio Branco, 135/sala 709 - CentroRio de Janeiro - RJCep: 20.040-006

Rio Grande do SulRNP+ núcleo Porto AlegreTel: (51) 3227-3777Rua Lopo Gonçalves, 626 – Cidade BaixaPorto Alegre – RSCep: 90.050-350

RoraimaRNP- núcleo Boa VistaTel: (95) 626-8155Rua Manoel Felipe, 309 – BuritisBoa Vista – RRCep: 69.309-070

Santa CatarinaGerminar – Centro de Desenv. HumanoTel: (47) 349-3415Rua Felipe Schmitt, 174/sobreloja – CentroItajaí-SC Cep: 88.301-010