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Idries Shah 1 Sabedoria dos Idiotas IDRIES SHAH

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Idries Shah

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Sabedoria dos

Idiotas

IDRIES SHAH

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Idries Shah

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Idries Shah

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SABEDORIA DOS IDIOTAS

IDRIES SHAH

CONTOS

∗ A FRUTA DO CÉU 5

∗ ALTANEIRO E GENEROSO 5

∗ A CAIXA DE JÓIAS 6

∗ AHRAR E O CASAL RICO 6

∗ BAHAUDIN E O ERRANTE 7

∗ COMIDA E PLUMAS 7

∗ O OLHAR DO PODER 8

∗ PARA O HOMEM, SÓMENTE AQUILO QUE TIVER OBTIDO 9

∗ LEITE E LEITE DE MANTEIGA 9

∗ O TALISMÃ 10

∗ DISPUTA COM OS ACADÊMICOS 11

∗ A HISTÓRIA DE HIRAVI 11

∗ ALGO QUE APRENDER COM MIRI 12

∗ O ÍDOLO DO REI LOUCO 12

∗ DOIS LADOS 13

∗ BOAS VINDAS 14

∗ AJMAD HUSSEIN E OS ERUDITOS 14

∗ TAMERLÃO E HAFIZ 14

∗ REPLETO 15

∗ CHARKHI E SEU TIO 15

∗ O PRISIONEIRO DE SAMARKANDA 15

∗ O LIVRO EM TURCO 16

∗ MENDIGOS E TRABALHADORES 17

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∗ INALTERADO 17

∗ DIAGNÓSTICO 17

∗ O KASHKUL 18

∗ A VACA 18

∗ INDIVIDUALIDADE E QUALIDADE 19

∗ O PARAÍSO DA CANÇÃO 19

∗ O TESOURO DOS GUARDIÃES 20

∗ O APEGO CHAMADO GRAÇA 21

∗ CORREÇÃO 22

∗ O SANTO E O PECADOR 22

∗ OS SHEIKS DOS GORROS 23

∗ O SEGREDO DO QUARTO FECHADO 24

∗ O MILAGRE DO DERVICHE REAL 24

∗ A PROVA DE ISHAN WALI 25

∗ MILAGRES OCULTOS 26

∗ A ENTRADA EM UM GRUPO SUFI 26

∗ UMA HISTÓRIA DE IBN-HALIM 27

∗ A MULHER SUFI E A RAINHA 27

∗ O ASSISTENTE DE COZINHEIRO 27

∗ POR QUE MOLHADO NÃO É SECO? 28

∗ LIVROS 29

∗ QUANDO UM HOMEM ENCONTRA A SI MESMO 29

∗ O SUFI E A HISTÓRIA DE HALAKU 30

∗ PEIXES NA LUA 30

∗ KILIDI E AS PEÇAS DE OURO 30

∗ TRIGO E CEVADA 31

∗ A GARRAFA DE VINHO 32

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∗ BAHAUDIN NAQSHBANDI DISSE: 32

∗ A ESPONJA DOS PROBLEMAS 32

∗ O PEIXE DE CRISTAL 33

∗ O PORTADOR DO SELO 33

∗ PLENO 34

∗ UMA VOZ NA NOITE 34

∗ PERCEPÇÃO 34

∗ SOBRAS 34

∗ A MOSCA DE OURO 34

∗ PROMESSA NA TABERNA 35

∗ A FACA 35

∗ CARAVANÇARÁ 35

∗ FANTASIAS 36

∗ A FONTE DO SER 36

∗ IRRELEVANTE 37

∗ FIDELIDADE 37

∗ O SANTUÁRIO DE JOÃO BATISTA 37

∗ O SIGNIFICADO 38

∗ O MÉTODO 38

∗ ABU TAHIR 39

∗ CONTENÇÃO 39

∗ PENEIRAR 39

∗ O MESTRE PERFEITO 39

∗ DAR E TOMAR 39

∗ A PROVA DA RAPOSA 40

∗ OPORTUNIDADE 40

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∗ O EMPRÉSTIMO 40

∗ TECENDO LUZ 40

∗ EXPLICAÇÃO 41

∗ DIA E NOITE 41

∗ MANCHADO 41

∗ WAHAB IMRI 41

∗ O VILÃO E O DERVIXE 41

∗ ESPERANÇA 42

∗ QUERER 42

∗ O ARQUEIRO 42

∗ MAHMUD E O DERVIXE 43

∗ ETAPAS 43

∗ O QUE TEM DENTRO 43

∗ SÃO E ENFERMO 43

∗ GUISADO DE CORDEIRO 44

∗ ENCONTRANDO FALHAS 44

∗ ESCUTAR 44

∗ O ELEFANTE 44

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A FRUTA DO CÉU Certa vez uma mulher que ouviu falar da Fruta do Céu e a cobiçava. Em conseqüência, perguntou a certo dervixe, a quem chamaremos Sabar: - Como posso encontrar essa fruta, para poder imediatamente obter conhecimento? - Melhor seria se estudasses comigo - disse o dervixe -. Mas se não o queres fazer, terás que viajar decididamente e, às vezes, inquietamente pelo mundo. A mulher o deixou e procurou a outro dervixe, Arif, o Sábio; depois encontrou a Hakim, o Sábio; mais tarde a Hajzub, o Louco e posteriormente a Alim, o Científico e a muitos mais... Passou trinta anos em sua busca. Finalmente, chegou a um jardim. Ali estava a Arvore do Céu, e de seus galhos pendiam as brilhantes Frutas do Céu. De pé, ao lado da Árvore, estava Sabar, o primeiro dervixe. - Por que não me dissestes quando nos conhecemos pela primeira vez que tu eras o Guardião da Fruta do Céu? - perguntou a mulher. - Porque naquela época não me terias acreditado. Além do mais, a Árvore produz frutos somente uma vez a cada trinta anos e trinta dias.

ALTANEIRO E GENEROSO Os sufis, diferentemente de outros místicos ou supostos possuidores de conhecimentos especiais, têm reputação de ser altaneiros. “Esta altivez, explicam eles mesmos, se deve somente a que as pessoas não compreendem seu comportamento - e falam como exemplo -: Uma pessoa que pudesse fazer fogo sem frotar varas, e o dissesse, pareceria altaneira a alguém que não pudesse fazê-lo”. Também têm reputação de ser extremamente generosos. Sua generosidade com as coisas materiais só é um reflexo de sua generosidade com a sabedoria. A pessoa que quer estudar o caminho sufi a miúdo pratica a generosidade com as coisas materiais, com a intenção de alcançar uma forma superior de generosidade. Seja como for, existe uma história que se conta, sobre três homens generosos da Arábia. Um dia havia entre os árabes uma disputa sobre quem seria o homem mais generoso. Os argumentos seguiram durante muitos dias e, finalmente, os candidatos, por acordo geral, se reduziram a três. Posto que os que apoiavam a cada um dos três estavam a ponto de golpear-se, por causa da ênfase com que defendiam seus respectivos favoritos, se formou um comitê para tomar uma decisão final. Concordaram que, como prova final, deveria ser mandada uma mensagem a cada um dos três com os seguintes dizeres: -”Teu amigo Wais está muito necessitado e em graves apuros. Te suplica que o ajudes economicamente.” Mandaram três representantes, para buscar a estes três homens, entregar-lhes a mensagem e dar conta do resultado. O primeiro mensageiro chegou à casa do Primeiro Homem Generoso e lhe entregou a mensagem. O Primeiro Homem Generoso disse: - Não me molestem com tais bobagens. Tomem o que quiserem do que é meu e dêem-no a meu amigo Wais. Quando voltou este emissário, as pessoas que estavam reunidas pensaram que , com segurança, não poderia haver maior generosidade do que esta, em tampouco maior altivez. Mas o segundo mensageiro, quando entregou sua menagem , recebeu esta resposta do servente do Segundo Homem Generoso: - Como meu amo é sumamente altivo, não posso molestá-lo com uma mensagem deste tipo. Mas eu mesmo te darei tudo o que ele tem e, além disso, uma hipoteca sobre suas propriedades imóveis. Quando o comitê teve notícia desta decisão, imaginou que com segurança este devia ser o homem mais generoso da Arábia. Mas ainda não haviam considerado o resultado da gestão do terceiro mensageiro. Chegou este ao lugar do Terceiro Homem Generoso, que lhe disse: - Pegue todos os bens de minha propriedade e leve esta nota ao prestamista para que os liquide. Volte aqui e espera até que alguém venha a te ver de minha parte. Então, o Terceiro Homem Generoso se foi. Quando o mensageiro terminou sua tarefa, soube que um agente do mercado público estava na porta, e ao conversar com ele, o ouviu dizer:

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- Se tu és o mensageiro de Wali, tenho que entregar-te o preço de um escravo que acaba de ser vendido no mercado. O escravo vendido tinha sido o Terceiro Homem Generoso. Se conta que uns meses mais tarde, Wais, que por sua vez havia sido um dos juizes do comitê, visitou uma casa na qual o escravo que o esteve servindo foi seu amigo: o Terceiro Homem Generoso. Wais então disse: - Uma brincadeira pode ir longe demais! Já não é hora de que sejas libertado do cativeiro? O Terceiro Homem Generoso que era um sufi, respondeu: - O que alguns consideram uma brincadeira, pode não sê-lo para outros. Além do mais, eu estou, de acordo com a lei, trabalhando para ser libertado através de acertos com meu amo. Não tens porque se preocupar. Se necessitarão somente de dois a três anos para que volte a ser livre.

A CAIXA DE JÓIAS

Se conta a história de uma mulher que levava para a joalheria uma caixa com jóias de vários tamanhos. Justamente em frente à joalheria tropeçou e a caixa caiu no chão. A tampa do cofrezinho se abriu e as jóias se espalharam. Os ajudantes do joalheiro saíram da joalheria correndo, para impedir que alguém, que passasse por ali, se apoderasse de alguma da jóias, e ajudaram a mulher a recolhe-las. Um avestruz que passeava pelo lugar chegou velozmente e, sem que ninguém visse, em meio à excitação, engoliu a maior e melhor das pedras. Quando a mulher se deu conta de que lhe faltava esta gema começou a se lamentar e , apesar de procurá-la por toda parte, não conseguiu encontrá-la. Alguém disse: - A única pessoa que pode ter pego a pedra é aquele derviche que está sentado silenciosamente junto à joalheria. O derviche havia visto o avestruz comer a pedra, mas não queria que se derramasse sangue. Por isso, quando o prenderam e até o golpearam, não disse mais que: - Eu não peguei absolutamente nada. Enquanto o estavam batendo, chegou outro derviche e instou a multidão para que tivesse cuidado com o que estava fazendo. Então, também a ele o prenderam e o acusaram de ter tomado a pedra, que subreptíciamente o passou o primeiro derviche, sem acreditar quando ele o negava ter feito. Enquanto se desenrolava a cena, apareceu um homem dotado de conhecimento e, ao perceber a presença do avestruz, perguntou: - Estava aqui este pássaro quando a caixa caiu no chão? - Sim - disseram as pessoas - Neste caso - aconselhou - prestem atenção ao avestruz. Pagaram ao dono do avestruz o valor do pássaro, ao qual mataram, e em seu estômago encontraram a jóia que faltava.

AHRAR E O CASAL RICO Emirudin Arosi, que pertencia a uma família muito conhecida por sua adesão às crenças de uma seita de entusiastas, encontrou-se com um sábio e disse: - Minha esposa e eu temos tratado durante muito anos de seguir decididamente o caminho derviche. Precavendo-nos de que sabíamos menos do que muitos outros, nos temos contentado, por muito tempo, em gastar nossas riquezas em promover a causa da verdade. Temos seguido pessoas que se arrogavam a responsabilidade de ensinar e de quem agora duvidamos. Estamos sofrendo, não pelo que temos perdido em doações materiais, que nossos anteriores mentores gastaram em empresas comerciais ruinosas, em nome da tarefa, senão pela perda de tempo e de esforço, e pelas pessoas que permanecem todavia subjugadas por tais autonomeados e incompetentes mestres, os quais negligentemente ocupam uma casa dirigida por falsos sufis, numa atmosfera de completa anor-malidade. O sábio, a que a tradição chama Khwaja Ahrar, o Senhor dos Livres, respondeu: - Vocês estão arrependidos de suas ligações com falsos mestres, mas ainda não se arrependeram de sua própria suficiência, que os faz imaginar que têm uma responsabilidade com as vítimas dos enganadores. Muitos desses cativos se apegam entretanto às teias da falsidade, porque tão pouco eles se arrependeram do engano e querem obter o conhecimento facilmente.

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- Que devemos fazer? - perguntou Emirudin Arosi. - Venham a mim com o coração aberto e sem condições. Embora essas condições sejam o serviço da humanidade ou que eu pareça para vocês razoável - disse o mestre - o assunto do aprisionamento de seus companheiros pode ser um assunto para especialistas, mas não para vocês. Vossa capacidade para formar uma opinião sobre mim está minada, e me nego a basear-me nela. Mas, como é comum entre os homens, Arosi e sua mulher, com medo de equivocar-se novamente, seguiram adiante. Encontraram outro homem: um que acreditaram que os podia consolar. E aconteceu que era outro impostor. Passaram os anos e o casal se encontrou novamente na casa de Khwaja Ahrar. - Viemos com toda submissão - informaram ao guardião da porta - para nos colocar nas mãos do Senhor dos Livres, como se fossemos cadáveres nas mãos de quem lava os mortos. - Boas pessoas! - disse o guardião -. Vossa decisão parece excelente e muito de acordo com a decisão daqueles a quem o Senhor dos Livres a miúdo aceitaria como discípulos. Mas não há uma segunda oportunidade para vocês nesta vida, porque Khwja Ahrar está morto.

BAHAUDIN E O ERRANTE Bahaudin el Shah, grande mestre dos dervixes Naqshband, um dia se encontrou com um “colega” na grande praça de Bokhara. O recém-chegado era um Kalendar errante, dos Malamati, os “Dignos de Culpa”. Bahaudin estava rodeado de discípulos. - De onde vens? - perguntou ao viajante com a frase sufi usual. - Não tenho idéia - disse o outro, sorrindo tontamente. Alguns dos discípulos de Bahaudin murmuraram sua desaprovação pela falta de respeito. - Aonde vais? - persistiu Bahaudin. - Não sei - gritou o dervixe. - O que é bom? (Já então uma grande multidão se havia reunido). - Não sei. - O que é mal? - Não tenho idéia. - O que é correto? - Aquilo que é bom para mim. - O que é incorreto? - O que seja incorreto para mim. A multidão irritada perdeu a paciência pela impertinência do dervixe e o escorraçaram dali. Ele se distanciou, intencionalmente, a grandes passos, numa direção que parecia não levar-lhe a nenhum lugar. - Tolos! - disse Bahaudin Naqshband.- Este homem estava representando o papel da humanidade! Enquanto vocês o estavam detestando, ele, deliberadamen-te, os estava demonstrando sua falta de propósito real, como cada um de vocês faz, sem dar-se conta, cada dia de sua vida.

COMIDA E PLUMAS

Havia uma vez - e esta é uma história verídica - um estudante que todos os dias ia sentar-se aos pés de um mestre sufi, para tomar notas do que ele dizia. Por estar tão abstraído em seus estudos, não podia exercer nenhuma ocupação lucrativa, que lhe aportasse ganhos. Uma noite, ao chegar em casa, sua esposa colocou à sua frente uma tigela coberta com uma toalha. Ele tomou a toalha e a colocou em volta do pescoço. Então viu que a tigela estava cheia de plumas e papel. - Posto que isto é o que fazes todos os dias - ela disse - trata de comê-lo. Na manhã seguinte, o estudante se foi, como de costume, a aprender com seu mestre. Embora as palavras de sua mulher o tivessem entristecido, conti-nuou seguindo o padrão de estudos costumeiros e não saiu para buscar trabalho. Depois de alguns minutos escrevendo, percebeu que sua pluma não estava funcionando

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corretamente. - Não te apresses - lhe disse o mestre -. Vá à despensa, traga uma caixa que encontrarás ali e coloque-a à sua frente. Quando se sentou e abriu a tampa da caixa descobriu que ela estava cheia de comida.

O OLHAR DO PODER (La mirada de poder)

A um dervixe, que havia estudado sob a direção de um grande mestre sufi, se disse que aperfeiçoasse seu conheci-mento do exercício da sensação e que voltasse depois para seu mestre para ampliar sua instrução. Se retirou para um bosque e se concentrou em meditar sobre a natureza de seu ser, com grande intensidade e aplicação, até que quase nada o podia perturbar. Mas, sem dúvida, não se concentrou o suficiente sobre a necessidade de manter unidos em seu coração todos seus objetivos, e seu zelo em lograr aperfeiçoar-se no exercício se fez mais forte que a resolução de voltar à escola de onde havia sido enviado para meditar. E assim, um dia, enquanto se concentrava sobre seu eu íntimo, escutou um som. Irritado, o dervixe olhou para os galhos de uma árvore, de onde parecia vir o som, e viu um pássaro. Passou por sua mente o pensamento de que este pássaro não tinha nenhum direito de interromper os exercícios de um homem tão dedicado. Tão logo concebeu esta idéia, o pássaro caiu morto a seus pés. O dervixe não estava suficientemente avançado no caminho do sufismo para dar-se conta de que o homem é submetido a provas ao longo de toda sua vida. A única coisa que pôde ver, nesse momento, era que havia obtido um poder que nunca havia possuído: podia matar um ser vivo, e até podia ser que o pássaro tivesse morrido por alguma força externa a ele, mas, sem dúvida, morreu por haver interrompido suas devoções. “Em verdade devo ser um grande sufi”, pensou o dervixe. Se levantou e começou a caminhar até o povoado mais próximo. Quando chegou, viu uma casa muito elegante e decidiu pedir algo para comer. Quando uma mulher abriu a porta, o dervixe disse: - Mulher, traga-me comida. Sou um dervixe avançado e é meritório, para quem o faz, dar de comer aos que estão no Caminho. - Tão pronto quanto possa, reverendo sábio, - respondeu a mulher, e desapareceu até o interior da casa. Passou bastante tempo e a mulher não regressava. Cada momento que transcorria fazia aumentar a impaciência do dervixe. Quando finalmente a mulher regressou, ele disse: - Considera-te afortunada por eu não ter dirigido sobre ti a irritação do dervixe, pois nem todos sabem que desgraças podem advir por desobedecer aos Eleitos. - A desgraça em verdade pode chegar, a menos que se possa rechaçá-la por meio de suas próprias experiências - disse a mulher. - Como te atreves a me responder assim? - gritou o dervixe-. Em todo caso, o que é que queres dizer? - Só quero dizer - disse a mulher -que não sou um pássaro no bosque. Ao ouvir estas palavras o dervixe ficou perplexo. “Minha irritação não lhe causa nenhum dano, e até pode ler meus pensamentos”, balbuciou. Rogou à mulher que se tornasse seu mestre. - Se desobedecestes a teu primeiro mestre, a mim também me falharás - disse a mulher. - Bem, pelo menos diga-me como alcançastes uma etapa de sabedoria muito mais elevada que a minha - solicitou o dervixe. - Obedecendo a meu mestre. Ele me disse que atendesse a seus ensinamentos e exercícios quando me chamasse; de outra forma teria que tomar minhas tarefas mundanas como meus exercícios. Desta forma, ainda que não tenha estado com ele em anos, minha vida interna se tem intensificado constantemente, dando-me tais poderes como os que vistes, e muito mais. O dervixe regressou à tekkia de seu mestre para receber mais ensinamentos. O mestre, quando ele apareceu e sem deixá-lo discutir, disse somente: - Vai e serve às ordens de um certo varredor que limpa as ruas em tal cidade. Como o dervixe tinha em alta estima a seu mestre, se foi para aquela cidade. Mas quando chegou ao lugar onde trabalhava o varredor e o viu, de pé e coberto de sujeira, se negou a

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aproximar-se, e não pôde se imaginar a si mesmo como seu servente. Enquanto estava ali contemplando-lhe, parado e duvidando, o varredor disse, chamando-lhe por seu nome: - Lajaward, que pássaro matarás hoje? Lajaward, que mulher lerá hoje teus pensamentos? Lajaward, que tarefa repugnante te imporá teu mestre amanhã? Lajaward então perguntou: - Como podes ler meus pensamentos? Como pode um varredor fazer coisas que ermitãos piedosos não podem fazer? Quem és? O varredor replicou: - Alguns eremitas piedosos podem fazer estas coisas, mas não as fazem frente a ti, porque têm outras coisas para fazer. Te pareço um varredor porque essa é minha ocupação. Como não gostas da ocupação, não gostas do homem. E como imaginas que a santidade consiste em lavar-se e prostrar-se a meditar, nunca a encontrarás. Eu obtive minhas capacidades atuais porque nunca pensei sobre santidade. Pensei somente no dever. Quando alguém te ensina a servir a um mestre, ou a servir a algo sagrado, está te ensinando a servir. Tonto! Tudo que podes ver é o serviço ao homem, ou o serviço ao templo. Se não és capaz de te concentrar em servir, estás perdido. E Lajaward, quando pôde esquecer que era servente de um varredor, e se deu conta de que ser um servente era servir, se converteu naquele que conhecemos como o Iluminado, o Milagroso, o Perfumado Sheik Abdurrazaq Lawardi de Badakhshan.

PARA O HOMEM, SOMENTE AQUILO QUE TIVER OBTIDO A experiência superior e conhecimento só se farão acessíveis ao homem ou à mulher, em exata proporção com seu próprio valor, sua capacidade e seu poder para ganhá-lo. Portanto, se um burro vê um melão, comerá sua casca; as formigas comerão o que conseguirem; o homem consumirá sem saber o que consumiu. Nosso objetivo é conseguir, pela compreensão da Origem, o conheci-mento que vem por meio da experiência. Isto se faz como uma viagem, somente com aqueles que já conhecem o Caminho. Esta classe de justiça é a maior de todas: porque enquanto o conhecimento não se pode negar a aquele que o merece, não pode ser dado a aquele que não o merece. È a única justiça que leva em si a faculdade de discriminação própria da justiça inerente. (Yussuf Hamadani)

LEITE E LEITE DE MANTEIGA Murid Laki Humayun fez esta pergunta a Maulana Bahaudin: - Em nossa cidade de Gulafshan tem um círculo de discípulos. Alguns deles estão na etapa de exercícios, mas a maioria se reúne semanalmente para aprender dos acontecimentos diários e dos ensinamentos do murshid (guia). Muitos dos murids (discípulos) compre-endem o significado das histórias e contos e os usam para corrigir seu comportamento externo e interno. Sem dúvida, muitos dos seguidores externos, não parecem beneficiar-se dos eventos e acontecimentos, e buscam, em substituição, livros e ensinamentos que lhes procure promessas precisas de progresso. Como é que tem discípulos que estão entristecidos porque os seguidores ordinários não podem compreender o significado das histórias e dos eventos? Especialmente quando se trata de amigos íntimos. E cada um deseja que chegue a ter unificação entre os discí-pulos e os seguidores, mesmo entre os da classe externa. Bahaudin respondeu: - O alunato (grupo de alunos) foi estabelecido para poder concentrar a aqueles que podem aprender sem necessidade de estímulos vulgares. Os discípulos que sofrem porque seus companheiros não estão aprendendo da mesma forma e com a mesma rapidez, estão sofrendo porque imaginaram que o carinho deve produzir capacidade. A capacidade, sem dúvida, se ganha: o carinho se dá e se toma. Agrupamentos não selecionados de pessoas interessados em um ensinamento, sempre

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poderão tolerar uma diferença entre elas, semelhante a separação do leite e da manteiga, quando o primeiro é agitado conve-nientemente. O agente agitador pode ser visível ou oculto mas, nos dois casos, está presente e se manifesta quando começa a operar uma renovação de ensinamento. Esta renovação é semelhante à agitação do leite no recipiente que o contém. As pessoas imaginam que da mesma forma que acontece com o leite e a manteiga, quando há um movimento (jumbish), todos serão afetados da mesma forma. Mas tanto a manteiga como o leite desnatado têm suas funções, ainda que estas sejam em campos diferentes.

O TALISMÃ Conta-se que um faquir que queria aprender sem esforçar-se foi, depois de um tempo, descartado do círculo do Sheik Shah Gwath Shattar. Quando Shattar o estava despedindo, o faquir disse: - Você tem a reputação de poder ensinar todo o conhecimento em um abrir e fechar de olhos; sem dúvida, espera que eu fique muito tempo com você. - Ainda não aprendestes a “aprender a aprender”, mas chegarás a saber o que quero dizer - disse o sufi. O faquir simulou partir, mas voltou a entrar às escondidas na tekkia todas as noites, para poder ver o que fazia o Sheik. Não muito depois viu Shah Gwath pegar uma jóia do interior de um noz se metal gravado. Esta gema a colocava sobre a cabeça de seus discípulos dizendo: “Este é o recep-táculo de meu conhecimento e não é outro que o Talismã da Iluminação”. “Então este é o segredo do poder do Sheik” - pensou o faquir. Em hora avançada da noite entrou novamente na sala de meditação e roubou o Talismã. Mas, em suas mãos, por mais que tentasse, a jóia não proporcionava nem poder, nem segredos, e ficou amar-gamente decepcionado. Se instalou como mestre, recrutou discípulos e tratou uma vez ou outra de iluminá-los e iluminar-se por inter-médio do Talismã, mas sem nenhum resultado. Um dia estava sentado em sua sala de meditação, meditando seus problemas depois que seus discípulos tinham ido deitar, quando Shattar apareceu à sua frente. - Oh, faquir - disse Shah Gwath - sempre poderás roubar algo, mas nem sempre poderás fazê-lo funcionar. Até poderás roubar conhecimento, mas não terá nenhum valor para ti, como o ladrão que roubou a navalha do barbeiro e morreu na miséria, por não ser capaz de fazer uma só barba, cortando porém vários pescoços ao tentar. - Mas eu tenho o Talismã e tu não o tens - disse o faquir. - Sim, tu tens o Talismã, mas eu sou Shattar - disse o sufi.- Eu posso, com minha habilidade, fazer outro Talismã. Tu, com o Talismã, não te podes converter em Shattar. - Então porque viestes me torturar? - gritou o faquir. - Vim para dizer-te que se não tivestes sido de mente tão literal, tal como imaginar que ter uma coisa é o mesmo que ser capaz de ser transformado por ela, terias estado pronto para aprender a aprender. Mas o faquir pensou que o sufi só estava tratando de recuperar o Talismã, e como não estava pronto para aprender a aprender, decidiu persistir em seus experimentos com a jóia. Seus discípulos se limitaram a imitar-lhe e outro tanto fizeram seus conti-nuadores e quem sucedeu a estes. De resto, os rituais que foram o resultado de sua experimentação desassossegada formam, na atualidade, a essência de sua religião. Ninguém poderia imaginar, depois de haver chegado a considerar santificadas suas observações, que estas têm origem nas circunstâncias que se acabam de relatar. Os decadentes anciãos , praticantes desta fé, se consideram tão veneráveis e infalíveis que estas crenças nunca morrerão.

DISPUTA COM OS ACADÊMICOS Conta-se que alguém perguntou a Bahaudin Naqshband: - Por que não discutes com os acadêmicos? Tal e tal outro o fazem regularmente. Isto causa total confusão nos escolásticos, e seus discípulos invariavelmente os admiram.

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A que ele respondeu: - Vá e pergunte aos que recordam os tempos em que eu me contendia com os acadêmicos. Com regularidade, refutava suas conjecturas e suas provas imaginárias, com relativa facilidade. Aqueles que estavam presentes, então, testemunharão tantas vezes quanto achar suficiente. Mas, um dia, um homem mais sábio que eu me disse: “Tão freqüentemente e tão previsivelmente envergonhas a estes homens, que se torna monótono. Isto é assim especialmente porque tuas discussões carecem de verdadeiro objetivo, já que os acadêmicos carecem de compreensão e continuam com sua rotina muito depois de teres destruído suas posições”. Ao que agregou: “Teus estudantes estão em um estado de constante admiração por tuas vitórias. Têm aprendido a admirar-te. Em vez disso, deveriam ter percebido a falta de mérito e carência de significado de teus oponentes. Assim, na vitória, tu falhaste, digamos, por uma quarta parte. Também a admiração que têm por ti ocupa muito do tempo deles, enquanto poderiam estar apreciando algo que valesse a pena... Assim é que, talvez, tenhas falhado por outra quarta parte. Duas quartas partes são iguais a uma metade. Te resta a metade de uma oportunidade”. E Bahaudin comentou: - Mas isso foi há vinte anos; razão pela qual já não me ocupo, nem faço com que outros se ocupem dos acadêmicos, seja para perder ou para ganhar. E completou: - De vez em quando alguém pode dar-lhes um golpe para demonstrar sua vacuidade a nossos estudantes, como quando alguém golpeia uma vasilha vazia. Fazer mais que isto seria um desperdício de atenção, equivalente a dar a estes intelectuais, gratuitamente, uma importância que eles certamente não poderiam obter por si mesmos.

A HISTÓRIA DE HIRAVI

Nos tempos do Rei Mahmud, o Conquistador de Ghazna, viva um homem jovem chamado Haidar Ali Jan. Seu pai, Iskandar Khan, decidiu conseguir-lhe a proteção do imperador e o mandou estudar temas espirituais com os maiores sábios de seu tempo. Quando Haidar Ali dominou as repetições e os exercícios, quando soube os récitos e as posturas físicas das escolas sufis, foi levado por seu pai à presença do imperador. - Poderoso Mahmud - disse Iskandar - tenho feito com que este jovem, meu filho mais velho e mais inteligente, seja treinado nas técnicas dos sufis, para que possa obter uma posição digna em vossa corte, sabendo que sois o mentor do conhecimento desta época. Mahmud não se deteve em averiguações. Simplesmente disse: - Traga-o novamente dentro de um ano. Um pouco desiludido, mas com grandes esperanças, Iskandar mandou Ali estudar os trabalhos dos grandes sufis do passado e visitar os templos dos antigos mestres de Bagdad, para que o tempo que havia a transcorrer não fosse desperdiçado. Quando levou o jovem novamente à corte, disse: - Pavão Real desta época, meu filho tem levado a cabo grande e difíceis viagens e, ao mesmo tempo, tem agregado a seus conhecimentos uma familiaridade completa com os clássicos. Rogo que o examinem, para que se demonstre que poderia ser um adorno na corte de vossa majestade. - Deixe que regresse depois de outro ano - disse Mahmud imediatamente. Durante os doze meses seguintes, Haidar Ali cruzou o Oxus e visitou Bokhara e Samarkanda, Qasr-i-Arifin e Taqshqand, Dushande e as tumbas dos santos sufis do Turquistão. Quando regressou à corte, Mahmud de Ghazna o olhou e disse: - Pode ser que queira regressar dentro de mais um ano. Haidar Ali fez esse ano a peregrinação a Meca. Viajou à Índia, e na Pérsia consultou livros raros e nunca perdeu a oportunidade de encontrar e estar com os grandes dervixes da época. Quando regressou a Ghazna, Mahmud lhe disse: - Agora, selecione um mestre e, se ele te aceitar, regresse dentro de um ano. Quando terminou esse ano e Iskandar Khan estava se preparando para levar seu filho à corte, Haidar Khan não mostrou nenhum interesse em ir. Simplesmente ficou sentado aos pés de seu mestre em Herat, e nada do que disse seu pai o fez mover-se dali. - Tenho desperdiçado meu tempo e meu dinheiro e este jovem tem falhado nas provas

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impostas pelo Rei Mahmud - se lamentava o pai, e abandonou a empresa. Entretanto, o dia em que o jovem teria que se apresentar chegou e passou; então Mahmud disse a seus cortesãos: - Preparem-se para fazer uma visita a Herat. Por lá tem alguém a quem tenho que ver. Ao entrar o Imperador e seu cortejo em Herat, ao som de trombetas, o mestre de Haidar Ali o tomou pelas mãos. Levou-o à porta da tekkia e ali esperaram. Pouco depois Mahmud e seu cortesão Ayaz, tirando os sapatos, se apresentaram no santuário. - Aqui está, Mahmud - disse o Sheik sufi - o homem que não era nada enquanto visitava os reis, mas que agora é alguém a quem os reis visitam. Toma-o como teu conselheiro sufi, pois está pronto. Esta é a história dos estudos de Hiravi, Haidar Ali Jan, o Sábio de Herat.

ALGO QUE APRENDER COM MIRI O renomado sábio sufi Baba Saifdar tinha um discípulo chamado Miri, o qual se queixava de que Saifdar quase nunca o via, depois de tê-lo admitido como discípulo. - Estava melhor antes de me fazer seu discípulo - dizia - porque então, pelo menos, ele me tratava como um amigo e podia beneficiar-me de sua companhia. Sem dúvida Baba Saifdar conhecia os sentimentos de seu estudante e, durante seus encontros ocasionais, não fazia referência a eles. Preferia esperar a oportunidade de proporcionar uma demonstração efetiva sobre a relação e seu significado. Um dia estava Miri testemunhando em um julgamento ao ar livre, quando passou Baba Saifdar. O juiz acabava de perguntar à testemunha: - Realmente, te lembras ter visto ao acusado no roubo? Miri, ao ver seu mestre e recordando como conseqüência somente o exercício “recordar-se”, que havia aprendido com ele, disse involuntariamente: - Recordo. O presumido ladrão foi imediatamente declarado culpado, baseando-se nesta declaração de um testemunho “ocular”. Sem dúvida, era inocente e quando Miri se retratou de sua declaração, por pouco o julgaram por perjúrio. Quando finalmente foi liberado, el Baba lhe disse: - Este foi um exemplo, em um assunto comum, do que pode suceder em assuntos mais profundos. Lamentar-se e queixar-se de seu mestre só o levará a cometer bobagens. Também o descartar de qualquer de suas regras. O que é visível para ele é invisível para o estudante. - Eu só posso esperar que meu exemplo possa ser valioso para outros, para que assim, longe de ter que passar por este tipo de experiências, possam buscar a coisas mais altas. - disse Miri. Por isso esta história é chamada “A lição de Miri”.

O ÍDOLO DO REI LOUCO Havia uma vez um rei violento, ignorante e idólatra. Um dia jurou que se seu ídolo pessoal o concedesse certa vantagem na vida, capturaria as três primeiras pessoas que passassem por seu castelo e as forçaria a dedicar-se à idolatria. Aconteceu que o desejo do rei se cumpriu, e imediatamente mandou seus soldados saírem e trazerem as três primeiras pessoas que encontrassem. E resultou que eram: um homem de letras, um sayed (descendente do Profeta) e uma prostituta. Fazendo com que os lançassem em frente a seu ídolo, o desequilibrado rei contou-lhes sua promessa e ordenou-lhes que se prostrassem perante a imagem. O homem de letras disse: - Esta situação, sem dúvida, entra na doutrina de “força maior”. Existem numerosos precedentes que permitem a qualquer pessoa aparentar conformar-se a um costume, caso lhe forcem, sem que realmente seja de alguma forma passível de culpa, legal ou moral. Assim dizendo, fez profundas reverências ao ídolo. Quando chegou a vez do sayed, este falou: - Como pessoa especialmente protegida, levando em minhas veias o sangue do santo Profeta, minhas ações em si mesmas purificam qualquer coisa que eu faça e, por tanto, não há razão para

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que deixe de fazer o que este homem exige. E se prostrou diante do ídolo. A prostituta, por sua vez, disse: - Eu não tenho nem treinamento intelectual, nem prerrogativas especiais e, por tanto, temo que, seja o que for que me façam, não poderei adorar a este ídolo, nem sequer em aparência. Ao ouvir o que ela disse, imediatamente desapareceu a enfermidade do rei louco. Como por magia viu o engano dos adoradores da imagem. Em seguida, fez com que decapitassem ao erudito e ao sayed, e libertou a prostituta.

DOIS LADOS

Os mantos coloridos dos dervixes, copiados com propósitos de ensinar e eventualmente, imitados como mera decoração, foram introduzidos na Espanha na Idade Média, da seguinte maneira: Um certo rei cristão gostava dos desfiles pomposos e também se orgulhava de seu saber filosófico. Pediu a um sufi, conhecido com o nome de el-Agarin, que o instruísse no conhecimento. El-Agarin disse: - Te oferecemos observação e reflexão, mas primeiro tens que aprender seu significado em toda sua extensão. - Já sabemos como prestar nossa atenção, pois temos estudado bem todos os passos preliminares para o conhecimento, através de nossa própria tradição. - disse o rei. - Muito bem- disse el-Agarin -, daremos a Sua Majestade uma demonstração de nosso ensinamento, durante o desfile de amanhã. Fizeram os acertos necessários e no dia seguinte os dervixes do ribat de Agarin (centro de ensinamento) desfilaram pelas estreitas ruas da cidade andaluz. O rei e seus cortesão estavam de um lado e do outro do trajeto: os nobres à direita e os cavaleiros à esquerda. Quando terminou a procissão, el-Agarin voltou-se para o rei e disse: - Majestade, por favor, pergunte a seus cavaleiros do lado esquerdo a cor dos mantos dervixes. Todos os cavaleiros juraram sobre as escrituras e sobre sua honra que as vestimentas eram azuis. O rei e o resto da corte se mostraram surpresos e confusos, pois de forma alguma era o que eles haviam visto. - Todos nós vimos com clareza que estavam vestidos com hábitos cafés - disse o rei -, e entre nós tem homens de grande santidade e fé, e muito respeitados. O rei ordenou a todos os cavaleiros que se preparassem para ser castigados e degradados. Aqueles que haviam visto as roupagens de cor café, foram postos a um lados para serem premiados. O processo durou bastante tempo. Depois, o rei perguntou a el-Agarin: - Que feitiço terás feito, homem malvado? Que atos do demônio são os teus, que podem fazer com que os cavaleiros mais honrados do cristianismo neguem a verdade, abandonem suas esperanças de ser redimidos e traiam a nossa confiança, o que os incapacita para a batalha? O sufi disse: - Os mantos, em sua metade visível do teu lado, eram cor de café. Em sua outra metade, cada manto era azul. Sem preparação, tua predisposição é a causa do teu auto-engano e de nos interpretar mal. Como podemos ensinar a alguém nessas circunstâncias?

BOAS VINDAS

Nós damos as boas-vindas aos eruditos que querem compreender o Caminho. Que acontece com os demais? Eles crêem que não lhes damos as boas-vindas, mas em realidade são eles que não no-las dão. Não poderão fazê-lo enquanto retenham concepções tão estranhas sobre o Caminho. Me refiro a duas classes: Aqueles que dizem: “Nós negamos o valor do Sufismo”, e aqueles que dizem: “Nós aceitamos o sufismo, mas isto não é sufismo”. Dos dois grupos, aqueles que rechaçam os sufis são melhores dos que aqueles que pretendem que as pessoas de quem não gostam não pode, por isto, ser sufi. Os primeiros têm sido enganados por outros, que lhes fizeram crer que os sufis não têm nenhum valor, e qualquer um pode ser enganado.

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E os últimos são aqueles que se enganaram a si mesmos, imaginando algo que não é correto. Nenhum erudito pode dizer quem é e quem não é um sufi. As pessoas que tratam de fazer alguma coisa que é incapaz de fazer sempre, devem constituir uma lição para nós.

AJMAL HUSSEIN E OS ERUDITOS

O sufi Ajmal Hussein era sempre criticado pelos eruditos que temiam que sua reputação pudesse eclipsar a deles. Não perdiam oportunidade para desacreditar seus conhecimentos, o acusavam de refugiar-se em seu misticismo para não enfrentar as críticas deles e também alegavam que havia exercido práticas incorretas que o desacreditavam. Passado algum tempo, o sufi disse: - Se eu respondo a meus críticos, convertem isto em uma nova oportunidade para fazer-me novas acusações, nas quais as pessoas acreditam, porque os diverte acreditar em tais coisas. Se não respondo, se envaidecem, e as pessoas acreditam que são eruditos verdadeiros. Eles se imaginam que os sufis se opõe à erudição. Não é assim. Mas nossa simples existência é uma ameaça à erudição falsa dos pequenos ruidosos. O academicismo faz muito que desapareceu. Agora temos que enfrentar ao falso academicismo. Os eruditos gritaram mais forte do que nunca. Finalmente, Ajmal Hussein disse: - A argumentação não é tão efetiva quanto a demonstração. Os darei uma idéia do que, na realidade, é esta gente. Convidou os eruditos a lhe mandarem inúmeras perguntas para permitir-lhes colocar em prova seus conhecimentos e suas idéias. Cinqüenta diferentes professores e estudiosos o enviaram perguntas. Ajmal respondeu a todos de forma diferente. Quando os eruditos se reuniram em uma conferência para discutir as respostas, havia tantas versões que cada um acreditou que havia desmascarado a Ajmal, e todos se negavam a renunciar à sua própria tese, em apoio a qualquer outra. O resultado foi a famosa “disputa dos eruditos”. Durante cinco dias se atacaram uns aos outros amargamente. - Isto - disse Ajmal - é uma demonstração. O que a cada um importa mais é sua própria opinião e sua interpretação. A eles não importa a verdade. Isto é o que fazem com os ensinamentos de qualquer pessoa. Quando está viva, a atormentam. Quando morre, se convertem em experts de seus trabalhos. Sem dúvida, o motivo real desta atividade é disputar entre si e opor-se a qualquer um que esteja fora de suas fileiras. Queres te converter em um deles? Escolha rápido.

TAMERLÃO E HAFIZ

O poeta sufi Hafiz de Shiraz, escreveu o famoso poema: Se essa donzela turca Shirazi, tomasse meu coração em suas mãos,

Eu daria Bokhara pelo luar em suas mechas, ou Samarkanda. O conquistador Tamerlão fez levarem a Hafiz em sua presença e disse: - Como podes dar Bokhara ou Samarkanda por uma mulher? Além do mais, estas cidades estão dentro dos meus domínios e não deixarei que ninguém pretenda subtraí-las de mim. Hafiz respondeu: - Sua maldade pode ter lhe dado poder. Minha generosidade me colocou em seu poder. Obviamente sua maldade é mais efetiva que minha generosidade. Tamerlão riu e libertou o sufi.

REPLETO

Um homem chegou diante de Bahaudin Naqshband e disse: - Tenho passado de um mestre a outro, e tenho estudado muitos caminhos. Todos eles me têm dado muitos benefícios e vantagens de todos os tipos. Agora desejo converter-me em um de seus discípulos, para poder beber do poço do conhecimento e, por tanto, avançar mais e mais na Tarika, o Caminho Místico. Bahaudin ao invés de responder diretamente à pergunta, chamou para que servissem a ceia. Quando o prato de arroz e carne chegou, pressionou seu convidado para que se servisse várias vezes. Depois o deu frutas e pastéis e, finalmente, pediu que trouxessem mais pilau e mais pratos de verduras, saladas e pastéis. No começo, o homem se sentia privilegiado e, como Bahaudin mostrava prazer em cada porção que

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ele engolia, comeu tanto quanto pode. Quando começou a comer mais lentamente, o Sheik sufi se mostrou extremamente irritado e, para evitar tal desgosto, o desafortunado homem comeu quase outra porção inteira de comida. Quando já não podia engolir nem mesmo um grão de arroz e se balançava sobre sua almofada com grande mal-estar, Bahaudin lhe falou dessa forma: - Quando chegaste para ver-me, estavas tão cheio de ensinamentos sem digerir, como estás agora de carne, arroz e frutas. Te sentias incomodado e, devido a que não estás acostumado ao verdadeiro incomodo espiritual, interpretastes isto como avidez de mais conhecimento. Tua verdadeira situação era a indigestão. Eu posso te ensinar, se segues minhas instruções e ficas aqui comigo, digerindo por meio de atividades que poderão te parecer não-iniciatórias, mas que será igual a comer algo que permitirá que tua comida seja digerida e se transforme em nutrição e não em desagradável peso no estômago. O homem aceitou. Contou sua história muitas décadas depois, quando se converteu no famoso e grande mestre sufi Khalil Ashrafzada.

CHARKHI E SEU TIO

Relata-se que um jovem, discípulo de Baba Charkhi, estava sentado no portal da casa de Baba, quando um homem chegou e disse: - Quem és? O discípulo respondeu: - Sou um seguidor de Baba Charkhi. O homem disse: - Como pode Chakhi ter seguidores? Eu sou tio dele e, se os tivesse, eu saberia; e quanto a ele ser um Baba te informaram mal, meu filho. Depois disto, o tio de Charkhi ficou naquela casa por muitos anos, até que morreu. Se recusava a entrar nas “assembléias de cultura” dadas pelo Baba e nunca pôde crer que Charkhi fosse um mestre sufi. - Eu o conheci desde que era um menino e não posso imaginar-lhe ensinando-me nada, porque nunca pude aprender nada. Mesmo depois da morte de Charkhi, havia muita gente , alguns que freqüentavam a casa dele com freqüência, incluindo mercadores com quem ele tivera tratos de negócios, que não acreditavam que fosse um santo. O teólogo Yunus Abu-Aswad Kamali falou por algumas dessas pessoas quando disse: - Eu conheci a Charkhi durante trinta anos e ele nunca discutiu coisas elevadas comigo. Para minha mente, tal comportamento é impossível em um homem sábio. Ele nunca tratou de descrever suas teorias e nunca tentou fazer-me seu discípulo. A única pessoa de quem ouvi dizer que ele seria supostamente um sufi, foi um açougueiro.

O PRISIONEIRO DE SAMARKANDA Hakim Iskandar Zaramez e Abdul Wahab el-Hindi passavam um dia pela esquina de uma casa muito grande em Samarkanda, quando escutaram um forte grito. - Estão torturando um pobre homem - disse el-Hindi, detendo-se e ficando quieto enquanto os gritos aumentavam. - Gostarias que o sofrimento cessasse? - perguntou Zarames. - Naturalmente. Como Wali, um santo, tu seguramente podes fazê-lo, se Deus permitir... - Muito bem - disse Hakim - e, então, poderei demonstrar-lhe algo. Zaramez se retirou cinco passos da esquina da casa. Os gritos cessaram. - Te retiras e os gritos cessam. Sempre escutei dizer que é o aproximar-se de uma pessoa afligida o que faz cessar a dor - disse el-Hindi. El-Hakim sorriu, mas não disse mais nada, fazendo um sinal que entre os sufis significa: “Uma pergunta pode não ter resposta em certo momento pelo estado espiritual de quem pergunta”. Muitos anos depois, estando el-Hindi em Marrocos, na cidade cercada de Maula Idriss, ouviu uma noite um derviche relatar suas experiências a um grupo de estudantes. Entre outras coisas, disse o derviche: - Em tal e tal noite, no mês de Ramadan el-Mubarak, faz tantos anos, me tomaram por um vagabundo por causa da minha pobreza aparente e do meu mal aspecto. Me prenderam, esperando julgamento, em uma cela com paredes de pedra, situada na quina do muro externo da casa do Cadi.

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Sucedeu isto na parte norte de Samarkanda. Estava suficientemente contente com minha sorte e sentado em contemplação silenciosa, quando senti, sem nenhuma dúvida vindo de fora, não muito longe, a presença de um santo. Comecei a gritar e a agitar-me. Senti o efeito de um estranho poder e não pude escapar, por mais que quisesse ir ao seu encontro. Logo notei que ele havia se distanciado dali, como se meu clamor o houvesse molestado. Tratei de que se aproximasse novamente de mim, procurando estar o mais quieto possível e tão silencioso como a noite. O sheik do círculo sufi disse: - Tua experiência te poderia haver ensinado que as pessoas são afetadas mais profundamente pela baraka (poder espiritual), quando aparentemente estão mais além de seu alcance. O Wali te estava ensinando isto, embora estivesses em prisão e ainda que pudesse parecer a observadores externos, que ele estava fazendo algo totalmente distinto, ou não estar fazendo nada. El-Hindi concluiu: - Esta ocasião foi o princípio da minha verdadeira compreensão de que não é maravilhoso que as pessoas tenham “experiências espirituais”. O que pode ser maravilhoso é que tão poucas pessoas as tenham. O que certamente é menos maravilhoso é que, em vez de aprender com elas, idolatrem a experiência e a tomem como algo que não é.

O LIVRO EM TURCO Certa pessoa que queria ser discípulo de Bahaudin foi ter com ele. O mestre estava rodeado por trinta de seus estudantes no jardim, depois da janta. O recém-chegado disse: - Eu queria servir-te. Bahaudin respondeu: - A melhor forma de servir-me é lendo minhas Risalat (cartas). - Isto já o fiz - disse o recém-chegado. - Se já o tivesses feito de verdade, e não só em aparência, não te terias aproximado de mim desta maneira - disse Bahaudin, e perguntou - Por que acreditas que podes aprender? - Estou pronto para estudar com você. Bahaudin disse: - Que se levante o Murid (discípulo) mais jovem. Anwari, que tinha dezesseis anos, se levantou. - Quanto tempo estás conosco? - lhe perguntou el-Shah. - Três semanas, oh Murshid. - Te ensinei algo? - Não creio. Bahaudin disse: - Na mochila deste recém-chegado encontrarás um livro de poemas. Toma-o em tuas mãos e recita todo o conteúdo sem erro e sem sequer abri-lo. Anwari encontrou o livro. Não o abriu, mas disse: - Temo que esteja em turco. Bahaudin insistiu: - Recita-o. Anwari o fez e, quando o estava terminando, o estranho se mostrava mais e mais impressionado por esta maravilha. Estavam lendo um livro sem sequer abri-lo e por alguém que não sabia o turco. Caindo aos pés de Bahaudin suplicou que este lhe aceitasse dentro do Círculo (Halka). Bahaudin disse: - Este é o tipo de fenômeno que te atrai. Enquanto for assim, não poderás te beneficiar realmente com ele. Por isso, ainda que tenhas lido minhas risalat, em verdade não as lestes. Regresse quando as tiver lido como o fez este menino imberbe. Foi tal estudo o que lhe deu o poder para recitar um livro que não abriu e, ao mesmo tempo, fez com que não ficasse pasmado por tê-lo feito.

MENDIGOS E TRABALHADORES

Conta-se que a Ibn el-Arabi as pessoas disseram: - Teu círculo se compõe principalmente de mendigos, esposos comuns e artesãos. Não podes encontrar pessoas de intelecto que te sigam, para que assim talvez teus ensi-namentos sejam

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julgadas com mais auto-ridade? Ele respondeu: - O dia da Calamidade estará infinitamente mais próximo quando eu tiver homens influentes e eruditos que cantem meus louvores, pois, sem dúvida alguma, o estarão fazendo para si mesmos e não por causa de nosso trabalho.

INALTERADO Nawab Moahamed Khan, Jan Fishan, estava caminhando um dia em Delhi, quando chegou em um lugar onde certo número de pessoas estavam discutindo. Se aproximou e perguntou a um dos presentes: - O que está acontecendo aqui ? O homem disse: - Alteza sublime, um de seus discípulos está criticando o comportamento das pessoas desta localidade. Jan Fishan abriu espaço entre as pessoas e disse a seu seguidor: - Explica-te. O homem falou: - Estas pessoas têm sido hostis comigo. As pessoas se opuseram: - Isso não é verdade. nós pelo contrário, estávamos honrando-o por sua causa. - O que disseram eles? - perguntou o Nawab. - Disseram: “Louvado sejas, grande erudito”. Eu os estava explicando que a ignorância dos eruditos é responsável pela confusão e desespero do homem. Jan Fishan Khan disse: - É geralmente a presunção a responsável pela miséria humana. E foi tua presunção, ao dizer que não eras um erudito, a causa deste tumulto. O não sê-lo supõe o desapego das pequenezas, e isto tem que ser conquistado. Poucos eruditos têm sabedoria, sendo somente homens inalteráveis, repletos de pensamentos e de livros. Esta gente está te louvando. Se algumas pessoas crêem que o lodo é ouro, se é seu lodo, respeita-o. Tu não és um mestre. Não te dás conta que atuando de forma tão sensível e auto-suficiente, estás atuando justamente como um erudito e, portanto, te fazes merecedor do nome, ainda que seja apenas como um epíteto? Ponha-te em guarda, meu filho. Demasiados esbarrões no Caminho da Conquita-Suprema podem fazer com que te convertas em um erudito.

DIAGNÓSTICO Bahaudin Naqshband uma vez visitou Alucha. Logo após, uma junta de cidadãos, ao saberem estes que êle passava por um caminho vizinho, o esperaram e suplicaram que se detivesse algum tempo com eles. - Querem satisfazer sua curiosidade a meu respeito, entreter-me, fazer-me as honras ou convidar-me para transmitir-lhes meus conhecimentos? - os perguntou. O chefe do grupo, depois de consultar os seus companheiros, respondeu: - Temos ouvido muitos comentários sobre você, mas você não pode ter escutado falar de nós. Posto que, ao que parece, nos concede o raro privilégio de receber seus ensinamentos, agradecidamente aceitamos essa alternativa entre aquelas que nos ofereceu. Bahaudin entrou no povoado. O povoado inteiro se juntou na praça pública. Seus próprios mestres espirituais conduziram Bahaudin a um lugar de honra e, quando ele sentou, o chefe dos filósofos de Alucha começou seu discurso nos seguintes termos: - Sublime presença e grande mestre: todos nós temos ouvido falar de você, pois quem não ouviu?. Mas, posto que você, sem dúvida, não está familiarizado com os pensamentos de tão insignificantes pessoas como nós, o suplicamos que nos permita delinear nossas idéias, para que possas apoiá-las, repará-las ou refutá-las para nós, em nosso indubitável benefício. Mas Bahaudin os deteve, dizendo: - Certamente lhes direi o que podem fazer, mas não há necessidade de que me digam nada sobre si mesmos. Então passou a descrever-lhes seus métodos de pensar, também seus defeitos, assim como a forma

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com que viam diferentes problemas sobre a vida e o homem. Depois do que disse aos surpreendidos cidadãos: - Agora, antes que lhes diga como remediar este estado de coisas, talvez vocês queiram falar sobre os sentimentos reprimidos em seus corações, para que eu os possa explicar para sua modificação, a fim de que possam atender mais completamente ao que estou por dizer. O mesmo porta-voz, depois de conferenciar com as pessoas, disse: - Oh, ancião e guia. A causa inânime do que nos tem maravilhado e despertado grande curiosidade, é : como é que sabes tanto sobre nós, nossos problemas e nossas especu-lações. É correto que creiamos que tal conhecimento só pode existir onde há uma forma superior de percepção direta, em um indivíduo altamente bem-aventurado? Em resposta, Bahaudin pediu um jarro, água em um recipiente, um pouco de sal e farinha. Pôs o sal, a farinha e a água dentro do jarro e, então, disse ao orador principal: - Por favor, tenha a bondade de dizer-me o que há dentro deste jarro. - Reverência, há uma mistura de farinha, água e sal, - Como sabes a composição da mistura? - perguntou Bahaudin. - Quando se conhecem os ingredientes - disse o porta-voz - não pode haver dúvida sobre a natureza da mistura. - Essa é a resposta à sua pergunta, que com segurança, não requer mais nenhuma explicação de minha parte - disse Bahaudin Naqshband.

O KASHKUL Conta-se que um derviche deteve um dia a um rei na calçada. O rei disse: - Como te atreves, tu um homem insig-nificante, a interromper o passo de teu soberano? O derviche replicou: - Podes tu seres um soberano se nem sequer consegues encher meu kashkul,, a cuia que uso para mendigar? Levantou a cuia, e o rei ordenou que a enchessem com ouro. Mas tão logo a cuia se enchia de moedas, estas desapareciam e parecia estar vazio novamente. Sacos e sacos de ouro foram trazidos e, mesmo assim, a surpreendente cuia devorava as moedas. - Parem! - gritou o rei -. Este trapaceiro está esvaziando meu tesouro. - Na tua opinião estou esvaziando teu tesouro - observou o derviche - mas para outros estou simplesmente ilustrando uma verdade. - E qual é essa verdade? - perguntou o rei. - A verdade é que a cuia é o desejo dos homens, e o ouro o que se dá ao homem. Não há fim para a capacidade do homem em devorar, se ele não é, de alguma forma, transformado. Verás, a cuia comeu tua riqueza quase toda, mas segue sendo uma casca de coco do mar cortada e em nada se alterou pela presença do ouro. Se desejas - prosseguiu o derviche - entre na cuia. A ti também ela devorará. Como, em vista disto, pode um rei acreditar-se importante?

A VACA Havia uma vez uma vaca. Em todo o mundo não havia um animal que, com tanta regularidade, desse tanto leite e de tão alta qualidade. As pessoas vinham, perto e de longe, para ver essa maravilha. A vaca era elogiada por todos. Os pais contavam a seus filhos sobre como ela era dedicada à sua tarefa. Os ministros da religião diziam às suas congregações que, à sua maneira, a imitassem. Oficiais do governo se referiam a ela como o modelo exemplar, que podia ser duplicado na comunidade humana, se se pensava, se planejava e se tinha um comportamento correto. Em breve, todos poderiam beneficiar-se pela existência desse animal maravilhoso. Só que havia uma característica que a maioria das pessoas havia deixado de observar por estarem tão absortos admirando as aparentes vantagens da vaca. É que ela tinha um pequeno hábito. E este hábito era que, tão logo o balde se enchia com este leite admiravelmente inigualável, ela dava uma patada e o derrubava.

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INDIVIDUALIDADE E QUALIDADE Yaqub, o filho do Juiz, disse que um dia perguntou a Bahaudin Naqshband: - Quando eu estava em companhia do Murshid de Tabriz, quando estava em estado de reflexão especial, ele geralmente fazia um sinal para que não lhe falassem. Mas você está acessível a todo momento para nós. É correto concluir que esta diferença se deve à sua maior capacidade de desapego, permane-cendo esta capacidade sob teu domínio, ao invés de ser fugaz? Bahaudin disse: - Não, tu sempre estás buscando comparações entre pessoas e estados. Sempre estás buscando evidências e diferenças e, quando assim não é, estás buscando semelhanças. Em verdade, não necessitas tanta explicação de coisas que não estão ao alcance de tais medições. Diferentes formas de comportamento por parte dos sábios se deve tomar como sendo devido às diferenças em individualidades, não em qualidade.

O PARAÍSO DA CANÇÃO

Ahangar era um poderoso forjador de espadas que vivia em um dos vales do leste do Afeganistão. Em tempos de paz fazia arados de ferro, ferrava cavalos, e sobre tudo cantava. As canções de Ahangar, que é conhecido por diferentes nomes em várias partes da Ásia Central, eram avidamente escutadas pelas pessoas dos vales. Vinham dos bosques de nogueiras gigantescos, das montanhas nevadas do Hindu-Kush, de Qatagan, de Badakshan, de Khanabad e Kunar, de Herat e Paghman para ouvir suas canções. Sobretudo as pessoas vinham para ouvir a canção de todas as canções, que era a canção do Vale do Paraíso, de Ahangar. Esta canção tinha a qualidade de fascinar. Possuía uma toada estranha e sobretudo, uma história que era mais estranha ainda, tão estranha que as pessoas sentiam que conheciam o remoto Vale do Paraíso, sobre o qual cantava o forjador. Por vezes, quando não estava com ânimo para cantá-la, pediam que ele a cantasse e ele recusava. Ás vezes, as pessoas perguntavam se o Vale era em verdade real, e Ahangar só podia dizer: - O Vale da Canção é tão real como a realidade pode ser. - Mas, como o sabes? - perguntavam -. Alguma vez esteve lá? - Não de uma forma convencional - dizia Ahangar. Para Ahangar, como para quase todos que o escutavam, o Vale da Canção era, sem dúvida, real, tão real como a realidade pode ser. Aisha, uma donzela local a quem ele queria, duvidava da existência deste lugar, e também Hassan, um pretensioso e temido esgrimista que havia jurado casar-se com Aisha e não perdia oportunidade de rir-se do forjador. Um dia quando as pessoas do povoado estavam silenciosamente sentados ao redor de Ahangar, que os havia estado contando para eles a sua história, Hassan falou: - Se você acredita que este vale é tão real e está, como dizes, naquelas montanhas longínquas de Sangan, lá onde se levanta a neblina azul, por que não tratas de encontrá-lo? - Sei que fazê-lo não estaria bem - disse Ahangar. - Tu sabes o que te convém saber e não sabes o que não queres saber! - gritou Hassam -. Agora, amigo proponho uma prova. Queres a Aisha, mas ela não confia em você. Ela não tem fé nesse teu absurdo Vale. Nunca poderás te casar com ela, porque quando não existe confiança entre o homem e a mulher, eles não podem ser felizes e sobrevêm todo tipo de males. -Então, esperas que eu vá ao Vale? - perguntou Ahangar. - Sim - disseram Hassam e todos os presentes. - Se vou e volto a salvo, Aisha consentirá em casar-se comigo? - perguntou Ahangar. - Sim - murmurou Aisha. E foi assim que Ahangar tomou algumas amoras secas e um pouco de pão seco e caminhou até as distantes montanhas. Escalou e escalou, até que chegou a um muro que rodeava toda a serra. Quando já havia ultrapassado seus escarpados lados, encontrou outro muro ainda mais difícil de passar que o primeiro. Depois deste, um terceiro e um quarto e, finalmente, um quinto muro. Quando desceu do outro lado, Ahangar se encontrou em um vale, surpreendentemente similar ao seu. As pessoas saíram para saudá-lo e, ao vê-los, Ahangar se deu conta de algo muito estranho estava acontecendo. Meses depois, Ahangar, o forjador de espadas, caminhando como um ancião e coxeando, chegou a

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seu povoado natal e se dirigiu à sua humilde cabana. Ao espalhar-se pelas redondezas a notícia de que ele havia voltado, as pessoas se juntaram frente a sua casa para ouvir suas aventuras. Hasan, o esgrimista, falou por todos e chamou Ahangar pela janela. Houve um silêncio quando viram o muito que havia envelhecido. - Bem, mestre Ahangar, chegaste ao Vale do Paraíso? - Sim, cheguei. - E como é? Ahangar, buscando as palavras, olhou as pessoas que estavam reunidas com um cansaço e um sentimento de desalento que nunca antes havia sentido e disse: - Escalei, escalei e escalei. Quando parecia que não podia haver mais sinal de vida humana em um lugar tão desolado e depois de muitas provas e desilusões, cheguei a um vale. Este vale era exatamente igual a este em que vivemos. E então observei as pessoas. Essas pessoas não somente são como nós, elas são as mesmas pessoas. Para cada Hasan, cada Aisha, cada Ahangar, por cada um dos que estamos aqui, tem outro exatamente igual nesse vale. Estas são semelhanças e reflexos para nós, quando vemos tais coisas. Mas somos nós os que nos parecemos e refletimos a aqueles que ali estão, nós somos seus gêmeos. Todos pensaram que Ahangar tinha enlouquecido por causa das dificuldades pelas quais passara, e Aisha se casou com Hasan, o esgrimista. Ahangar rapidamente envelheceu e morreu. E todos os que haviam escutado a história dos lábios de Ahangar, primeiro se desalentaram e logo se tornaram velhos e morreram, pois sentiam que ia se passar algo sobre o qual não tinham nenhum controle, e que não tinham esperanças. Assim perderam interesse pela vida mesma. Somente uma vez cada mil anos é visto este segredo pelo homem. Quando o vê, muda. Quando conta os fatos tal qual são, se definha e morre. As pessoas crêem que tal evento é uma catástrofe, e que, portanto, não devem saber sobre ele, pois não podem compreender (tal é a natureza de suas vidas comuns) que têm mais de um eu, mais de uma esperança, mais de uma oportunidade lá em cima, no Paraíso da Canção de Ahangar, o poderoso forjador de espadas.

O TESOURO DOS GUARDIÃES Um príncipe da ilustre casa dos Abbas, parentes do tio do Profeta, vivia uma vida humilde em Mosul, no Iraque. Sua família havia perdido tudo e fôra obrigado a trabalhar. Depois de três gerações, a família havia conseguido melhorar um pouco de situação e o príncipe havia alcançado a posição de um pequeno feirante. Como é costume entre os nobres árabes, este homem, cujo nome era Daud Abbassi, era chamado de Daud, filho de Altaf. Passava seus dias no mercado vendendo feijões e ervas, tratando de reconstruir a fortuna da família. Este processo continuou por vários anos, até que Daud se enamorou da filha de um rico mercador: Zobeida Ibnat Tawil. Ela estava mais do que disposta a se casar com ele, mas, em sua família existia o costume de que qualquer futuro genro tinha que obter uma gema de igual valor a uma rara gema, especialmente selecionada pelo pai, com o objetivo de comprovar a astúcia e valor do pretendente. Depois das negociações preliminares, quando mostraram a Daud o brilhante rubi que Tawil havia selecionado para a prova do pretendente à mão de sua filha, o coração do jovem feirante se entristeceu. Não só era uma gema de uma transparência cristalina, como seu tamanho e cor eram tais que as minas de Badakhsan, seguramente, não poderiam produzir algo dessa classe mais que uma vez cada mil anos.... O tempo passou e Daud pensou em todos os meios para encontrar o dinheiro que necessitaria para obter uma jóia equivalente. Com o passar do tempo descobriu, através de um joalheiro, que só existia uma possibilidade: mandar arautos que oferecessem, a quem pudesse igualar a jóia, não somente sua casa e todas as suas posses, como também três quartas partes de cada centavo que ganhasse para o resto de sua vida. Só assim haveria a possibilidade de encontrar um rubi similar ao que lhe fôra apresentado. Daud fêz com que se anunciasse sua decisão, tal como lhe haviam aconselhado. Dia após dia se divulgava que se procurava um rubi de grande valor, brilho e cor, e pessoas de perto e de longe se apresentavam na casa do mercador para ver se podiam prover algo tão magnífico. Mas após três anos, Daud concluiu que não havia um rubi em Arabistam ou Ajam, em Khorasan ou Hindi, em África ou no Oeste, em Java ou Ceilão, que se aproximasse à excelência daquele que seu possível sogro havia encontrado.

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Zobeida e Daud estavam a beira do desespero. Parecia que nunca poderiam se casar, já que o pai da jovem recusava terminantemente a aceitar um rubi que não fosse idêntico ao seu. Uma noite, estando Daud sentado em seu pequeno jardim, tratando de imaginar pela milésima vez, algum meio de obter Zobeida, se deu conta de que uma alta e delgada figura estava de pé ao seu lado. Em sua mão tinha um bastão, sobre sua cabeça um gorro derviche, pendurado na cintura uma cuia de metal de mendigar. - A paz esteja contigo, oh meu rei! - disse Daud, usando a saudação costumeira e pondo-se de pé. - Daud el Abbassi, descendente da casa de Koreish - disse a aparição -. Eu sou um dos guardiães dos tesouros do Apóstolo e vim para ajudar-te em tua necessidade. Tu buscas um rubi inigualável. Eu te darei um dos tesouros que têm estado a salvo, em mãos de paupérrimos guardiães. Daud o olhou e disse: - Todo o tesouro que estava em posse de nossa casa foi gasto ou se vendeu ou se desperdiçou, faz séculos. Não nos resta nada mais que nosso nome, e nem sequer o usamos por medo de deshonrá-lo. Como pode restar algo do tesouro de meu patrimônio? - Existe ainda o tesouro precisamente por não ter ficado em mãos da casa - disse o derviche -, pois as pessoas sempre roubam primeiro à aqueles de quem se sabe que têm algo a ser roubado. Sem dúvida, quando este se acaba, os ladrões não sabem mais onde buscar. Esta é a primeira medida dos guardiães. Daud refletiu, pensando que muito dervixes tinham reputação de excêntricos e, então, disse somente: - Quem deixaria tesouros inestimáveis, tais como a jóia de Tawil, em mãos de um mendigo esfarrapado, e que mendigo esfarrapado, tendo sido dado a ele ainda que somente uma coisa de valor, não a tomaria, ou a venderia gastando o obtido em alguma loucura? O derviche replicou: - Meu filho, isso é exatamente o que se espera que pensem as pessoas. Por serem esfarrapados os mendigos, as pessoas crêem que desejem roupa. Se um homem tem uma jóia, não sendo êle um mercador esperto, as pessoas imaginam que ele a tomaria para si. A maneira de pensar das pessoas ajuda para que nosso tesouro esteja seguro. - Então, leve-me ao tesouro - disse Daud -, para que eu possa acabar com minhas dúvidas e medos intoleráveis. O derviche vendou os olhos de Daud e o fêz cavalgar dias e noites, vestido como um cego, sobre um burro esquálido. Desmontaram e caminharam por uma trilha em uma montanha e, quando a venda dos olhos foi retirada, Daud viu que estava em uma casa de tesouro, onde havia incalculáveis quantidades de incríveis gemas preciosas de todas variedades, que brilhavam em estantes encostadas às paredes de pedra. - Este é o tesouro de meus antepassados? Nunca tinha ouvido falar sequer de algo parecido, mesmo dos tempos de Haroun al Rachid! - disse Daud. - Podes estar seguro de que o é - disse o derviche - e ainda mais, esta é somente a caverna que contem as jóias que tu podes escolher. Mas há muito mais. - E tudo isto é meu? - É teu. - Então, levarei tudo - exclamou Daud, quase fora de si, tomado de ganância pelo que via. - Tomarás somente o que vieste buscar - disse o derviche -. Estás tão mal preparado para administrar estas riquezas, como o estiveram teus antepassados. Se não fosse assim, os guardiães teriam entregue, há séculos, o tesouro inteiro. Daud escolheu o único rubi que igualava exatamente ao de Tawil, e o derviche o levou de volta para casa da mesma forma que o havia trazido até ali. Daud e Zobeida se casaram. E se relata que desta forma os tesouros da casa se entregam ao devido herdeiros quando têem verdadeira necessidade deles. Hoje em dia nem todos os guardiães são sempre dervixes com mantos de retalhos. Ás vezes, parecem ser os homens mais comuns. Mas não entregarão os tesouros, exceto quando haja verdadeira necessidade.

O APEGO CHAMADO GRAÇA Um Buscador da Verdade, dedicado e estudioso, chegou à tekkia de Bahaudin Naqsband. De acordo com o costume, assistiu às conferências e não fêz perguntas. Finalmente, Bahaudin disse: - Peçam-me algo. E este homem respondeu:

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- Shah, antes de vir vê-lo, estudei tal e tal filosofia, com fulano e fulano. Atraído por tua reputação, viajei até tua tekkia. Tendo ouvido teus discursos, fiquei impressionado pelo dissestes e gostaria de continuar meus estudos com você. Mas, posto que tenho tal gratidão e apego a meus estudos e mestres anteriores, gostaria que me concedestes uma das duas coisas: ou me explique que conexão têem meus estudos e mestres com o teu trabalho, ou me faças esquecê-los para que possa continuar sem uma mente dividida. Bahaudin disse: - Não posso fazer nenhuma destas coisas. O que posso fazer é informar-te que um dos sinais mais certos da vaidade humana é o de mostrar-se apegado a uma pessoa ou credo, e imaginar que tal apego provem de uma fonte superior. Se um homem estivesse obcecado por doces, os chamaria divinos, se lhe fosse permitido. Com esta informação podes alcançar a sabedoria. Sem ela, somente poderás aprender apego e chamá-lo graça.

“O homem que necessita malumat (informação), sempre supõe que necessita maarifat (sabedoria)”.

Se de verdade és um homem informado, verá que o que necessita depois é sabedoria. Se és um homem de sabedoria, somente então estarás livre da necessidade de infor-mação.

CORREÇÃO Abdullah Ben Yahya estava mostrando a um visitante uma manuscrito que ele havia feito. Este homem disse: - Mas esta palavra foi mal escrita. Imediatamente Abdullah corrigiu a palavra, escrevendo-a na forma que aprovava seu convidado. Quando o homem se foi, perguntaram a Adullah: - Por que fizestes isto, se sabias que a correção que ele fêz está incorreta, e escrevestes errado a palavra quando a original é que estava correta? Ele replicou: - Esta foi uma mostra de sociabilidade; o homem acreditou que estava me ajudando e pensou que a expressão de sua ignorância era uma indicação de conhecimento. Eu apliquei o comportamento da cultura e da cortesia, não o comportamento da verdade, porque quando uma pessoa busca cortesia e intercâmbio social, não pode suportar a verdade. Se eu tivesse tido a relação de mestre a discípulo com esse homem, as coisas teriam sido diferentes. Somente os tontos e os pedantes crêem que seu dever é instruir a todos, quando o motivo das pessoas é, geralmente, não buscar instrução, mas sim atrair a atenção.

O SANTO E O PECADOR Havia uma vez um derviche devoto que acreditava que sua tarefa era admoestar à aqueles que faziam coisas malvadas e oferecer-lhes pensamentos espirituais para que pudessem encontrar o caminho correto. O que este derviche não sabia era que um mestre não é aquele que diz aos outros que devem fazer as coisas atuando através de princípios fixos. Se o mestre não souber exatamente qual é a situação interna de cada estudante, ele pode obter o efeito contrário ao que deseja. Um dia, este devoto encontrou um homem que jogava excessivamente e que não sabia como se curar deste mau hábito. O derviche se acomodou em frente à casa do jogador. Cada vez que via o homem encaminhar-se à casa de jogos, o dervixe colocava uma pedra para marcar cada pecado formando um pequeno monte que ia acumulando como recordação visível do mal. Cada vez que o homem saía, se sentia culpado. Cada vez que regressava, via outra pedra sobre o monte. Cada vez que adicionava uma pedra ao monte, o devoto sentia nojo contra o jogador e prazer pessoal (do que ele dizia ser pelo bem de “Deus” por haver registrado um pecado). Este processo durou vinte anos. Cada vez que o jogador via o devoto, se dizia si mesmo: “Quisera compreender o bem. Como trabalha este homem santo pela minha redenção. Quisera arrepender-me e, mais ainda, ser como ele, pois seguramente estará entre os eleitos quando chegar a hora final.” Aconteceu que, por uma catástrofe natural, ambos morreram ao mesmo tempo. Um anjo veio pela alma do jogador e disse suavemente: - Deverás vir comigo ao Paraíso. - Mas como pode ser assim? - disse o jogador - Eu sou um pecador e devo ir ao inferno. Deves estar buscando ao devoto, que se sentava próximo da minha casa e tentou reformar-me durante duas décadas. - O devoto? - disse o anjo - Não, êle está sendo levado às regiões profundas, pois tem que assar na

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fornalha. - Que justiça é essa? - disse o jogador, esquecendo sua situação -. Deves ter confundido as instruções. - Não, é assim - disse o anjo -. Agora te explicarei. O sucedido é como segue: o devoto se gratificou durante vinte anos com sentimentos de superioridade e de mérito. Agora chegou o momento de ajustar a balança. Na verdade, ele colocou essas pedras sobre o monte para êle mesmo, não para você. - E o que me dizes do prêmio que eu ganhei? - Tu receberás teu porque cada vez que passavas por onde estava o derviche, primeiro pensavas no bem e, em segundo lugar, no derviche. E é o bem, não o homem, quem te está premiando por tua fidelidade.

OS SHEIKS DOS GORROS Os Sheiks de quatro grupos sufis de Índia, Egito, Turquia e Pérsia, procuraram por Bahaudin Naqshband. Pediram-lhe, em cartas redigidas com eloquência, que lhes mandasse ensinamentos que eles pudessem transmitir a seus seguidores. Primeiro, Bahaudin disse: “O que tenho não é novo. Vocês o têm e não o utilizam corretamente. Portanto, simplesmente dirão quando receberem minhas mensagens: Isto não é novo”. Os Sheiks responderam: “Com todo respeito, acreditamos que nossos discípulos não pensarão assim”. Bahaudin não contestou estas cartas, mas as leu em suas assembléias, dizendo: - Nós, à distância, podemos ver o que acontece. Aqueles que estão envolvidos não farão o esforço para ver o que está se passando. Então os Sheiks escreveram a Bahaudin e lhe pediram que os enviasse alguma mostra de seu interesse. Bahaudin mandou um pequeno gorro ( la araquia ), para cada estudante, dizendo aos Sheiks que os distribuísse, de sua parte, sem dizer qual poderia ser a razão. E insistiu ante sua assembléia: - Eu tenho feito tal e tal coisa. Nós que estamos distantes, veremos o que aqueles que estão próximos aos eventos não poderão ver. Por fim, passado um tempo, escreveu a cada um dos Sheiks, perguntando se haviam cumprido com seus desejos e qual havia sido o resultado. Os Sheiks escreveram: “Temos cumprido com teus desejos”. Mas, quanto aos resultados, o Sheik do Egito escreveu: “Minha comunidade aceitou avidamente teu presente, como um sinal especial de santidade e benedição e, tão logo os gorros foram distribuídos, cada pessoa considerou-o do maior significado interno e como um sinal de estar cumprindo seu mandato”. Por outro lado, o Sheik dos turcos escreveu: “A comunidade considera seu gorro com grandes suspeitas. Imaginam que tu expressas desejo de ser o líder deles. Alguns até tem medo de que você possa chegar a influênciá-los, mesmo de longe, através deste objeto”. O resultado enviado pelo Sheik da Índia, foi diferente. Escreveu: “Nossos discípulos estão sumamente confusos e todos os dias me pedem que os interprete o significado da distribuição das araquias . Enquanto não lhes disser alguma coisa sobre isso, não saberão como agir”. A carta do Sheik da Pérsia dizia: “O resultado da distribuição dos gorros foi que os Buscadores, contentes com o que lhes enviastes, aguardam tuas futuras disposições, para que possam colocar às ordens de teu ensinamento e de si mesmos, os esforços que devam ser feitos”. Bahaudin explicou a uma audiência de ouvintes em Bokhara: - A característica superficial dominante das pessoas dos círculos da Índia, Egito, Turquia e Pérsia, se manifestou em cada caso nas reações de seus membros. O comportamento deles ante um objeto trivial, como é o gorro, teria sido exatamente igual, mesmo que o tivessem recebido diretamente de mim. E o mesmo se daria com os ensinamentos por mim enviados. Nem as pessoas, nem os Sheiks aprenderam que devem buscar entre eles mesmos suas características sufocantes. Não deveriam usar estas peculiaridades triviais como métodos para julgar os outros. Entre os discípulos do Sheik persa existe a possibilidade da compreensão, porque não têm a arrogância de imaginar que “compreendem” que os gorros os agraciaram, os ameaçaram, os confundiram. As caracte-rísticas são em cada um dos três casos: esperança no Egito, medo na Turquia e incerteza na Índia. Algumas das epístolas de Bahaudin Naqshband haviam sido copiadas como um ato piedoso e haviam sido distribuídas por dervixes bem intencionados, mas não iluminados, no Cairo, na Índia e

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nas áreas da Pérsia e da Turquia. Com o tempo, caíram nas mãos dos círculos que rodeavam aos Sheiks dos Gorros. Então Bahaudin Naqshband pediu a um errante kalendar que visitasse a cada uma destas comunidades e que o informasse sobre as reações às suas epístolas. Este homem quando voltou relatou: - Todos reagiram dizendo: “Isto não é nada novo. Todos estamos fazendo já estas coisas. E não somente isto, pois estamos baseando nossa vida diária sobre elas e, por nossa existente tradição, nos ocupamos, dia após dia, em recordá-las”. Então el-Shah Bahaudin Naqshband chamou a todos seus discípulos e lhes disse: - Vocês, que estão à distância de certos acontecimentos concernentes a estes quatro grupos de Sheiks, puderam ver quão pouco se tem logrado entre eles pelo trabalho do Conhecimento. Aqueles que estão lá têm aprendido tão pouco que já não podem beneficiar-se de suas próprias experiências. Portanto, onde está a vantagem de As recordações diárias e de sua luta ? - Tomem como tarefa recolher toda a infor-mação sobre este fato, informem-se de toda a história, incluindo o intercâmbio de cartas e daquilo que eu disse, assim como a infor-mação trazida por este kalendar. Sejam testemunhas de que temos oferecido os meios pelos quais outros podem aprender. Façam com que este material seja escrito e seja estudado e que aqueles que tenham estado presentes sejam testemunhas, para que, se Deus quiser, mesmo que seja lendo, possam evitar que tais coisas sucedam freqüen-temente no futuro e possam chegar também aos olhos e ouvidos daqueles que foram afetados tão profundamente pela ação dos gorros inativos.

O SEGREDO DO QUARTO FECHADO Ayaz era o companheiro e escravo do grande conquistador Mahmud, o Destruidor de Ídolos, monarca de Ghazna. Havia chegado à côrte como um escravo mendigo e Mahmud o havia feito seu conselheiro e amigo. Os demais cortesãos tinham inveja de Ayaz, e observavam todos os seus movimentos, com a intenção de denunciá-lo por alguma falta e, assim, presenciar sua queda. Um dia, essas pessoas invejosas foram até Mahmud e disseram: - Sombra de Allah sobre a Terra. Deves saber que, sempre infatigáveis em te servir, temos mantido a teu escravo Ayaz sob minuciosa vigilância. Agora temos que informar-te que todos os dias, tão logo sai da Côrte, Ayaz se retira para um quarto onde nunca permite a ninguém entrar. Passa algum tempo ali e depois se vai para sua própria habitação. Tememos que este hábito dele possa estar conectado com algum terrível segredo: talvez esteja tramando com algumas pessoas que têem planos para matar Vossa Majestade. Durante muito tempo, Mahmud recusou-se a escutar algo contra Ayaz, mas o mistério do quarto fechado o inquietava, até que sentiu que deveria perguntar ao próprio Ayaz. Um dia, quando Ayaz saía de seu quarto privativo, Mahmud, rodeado de cortesãos, apareceu e ordenou que ele lhe mostrasse o quarto. - Não - disse Ayaz. - Se não me permites entrar no quarto, toda confiança em ti, como pessoa leal e confiável, se evaporará e, daqui em diante, nunca mais poderemos seguir nos mesmos termos. Escolhe! - disse o furioso conquistador. Ayaz chorou. Depois, abriu a porta do quarto e deixou que entrassem Mahmud e os cortesãos. O quarto não tinha um só móvel. Tudo o que tinha era um gancho na parede; do gancho pendia um manto puído, cheio de remendos, um bastão e uma cuia de mendigar. O rei e sua corte não puderam compreender o significado desta descoberta. Quando Mahmud pediu explicações, Ayaz disse: - Mahmud, durante anos tenho sido teu escravo, amigo e conselheiro. Mas tenho tratado de não esquecer minhas origens e, por esta razão, tenho vindo todos os dias a este quarto para recordar o que fui. Eu pertenço a ti e tudo quanto me pertence são meus trapos, meu bastão, minha cuia e minha travessia pela face da terra.

O MILAGRE DO DERVICHE REAL Conta-se que o mestre sufi Ibrahim Ben Adam, estava sentado um dia no claro de um bosque, quando dois dervixes errantes se aproximaram dele. Este deu-lhes as boas-vindas e conversaram sobre temas espirituais até o anoitecer. Tão logo chegou a noite, Ibrahim convidou os viajantes a comer. Imediatamente depois terem ambos aceitado, uma mesa cheia da mais fina comida apareceu ante seus olhos.

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- Há quanto tempo te tornastes derviche? - perguntou um deles a Ibrahim. - Dois anos - respondeu. - Eu tenho seguido o Caminho Sufi há quase três décadas e nunca se me há manifestado a capacidade que tens me mostrado - disse o homem. Quando a comida estava por terminar, um estranho personagem, coberto com um manto verde, entrou no claro do bosque. Se sentou e compartilhou a comida. Todos se deram conta, por um sentimento interno, que era Khidr, o guia imortal dos sufis. Esperaram que compartilhasse com eles algo de sua sabedoria. Quando se levantou para partir, Khidr simplesmente disse aos dervixes: - Vocês dois se perguntam a si mesmos sobre Ibrahim, mas, a que renunciaram vocês para seguir o Caminho Derviche? Vocês renunciaram às expectativas de segurança e de uma vida comum. Ibrahim Ben Adam abdicou a soberania do Sultanato de Balkh para fazer-se sufi. Essa é a razão pela qual está mais adiantado que vocês. Além disso, vocês durante trinta anos, têm obtido múltiplas satisfações por intermédio da renúncia mesma. Este tem sido vosso pagamento. Ele sempre se absteve de pedir qualquer pagamento por seu sacrifício. E imediatamente Khidr se foi.

A PROVA DE ISHAN WALI Quando Ishan Wali apareceu de repente na Síria, vindo do Turkestão, mostrou possuir uma notável gama de técnicas (chamadas por externalistas de “suas sabedorias”), com as quais pôde provocar um movimento de progresso naquilo que então era o lento estudo do sufismo. Por exemplo, percebeu que as escolas sufis haviam se tornado organizações unidas por tradicionalismo e por sua reverência para com um mestre, em detrimento dos ensinamentos sufis como um todo. Efetuavam exercícios e cultivavam idéias que, na verdade, correspondiam a outras pessoas e ainda a outros lugares. A forma com que Wali encarou este problema impressionou muito a quem, ainda que ignorantes de seus métodos, acreditavam que deviam ajudá-lo. Entre eles estavam Mustafá Ali Darazi, Ali-Mohammed Husseini e a Tawil Tirmidhi, cujos ditos ainda sobrevivem. Ele lhes disse: - Para quem vê pela primeira vez a estes grupos de pessoas, ainda que em realidade tenham se convertido em moinhos de farinha em vez de escolas, lhes é impossível diferenciar a quem se deve aproximar daqueles que não têm a capacidade de aprender. Como sabem, eu tenho mostrado que todos são defeituosos, no presente, para o Trabalho. Mas, qual deles é capaz de ressuscitar? Mostrou uma fileira de palmeiras que estavam perecendo pelo calor. - Se a água de que dispomos é limitada, que árvore regaríamos? Os tenho mostrado que praticamente estão secos, coisa da qual antes não se davam conta. Agora lhes mostrarei uma forma de provar se algumas dessas árvores podem ou não recuperar-se. Como demonstração, Ishan Wali se reuniu com todos os sheiks das escolas de repetição, a maioria das quais lhe deram boas-vindas com amabilidade, e se mostraram dispostos a receber sua ajuda para restabelecer os Ensinamentos. Não lhes deu nenhuma segurança. Se separou deles e, posteriormente, escreveu a cada um da seguinte forma: “Tenho algo de suma importância a dizer a você e nada que dizer a outros por seu intermédio. Quero significar que tens que me dar permissão para dirigir-me a teus discípulos diretamente. Se recusar, terás te afastado de mim, e eu não poderei dirigir-me a você. Posto que tenho a responsabilidade para com todos ou ninguém, a princípio não poderei usá-lo como canal nas ocasiões que estabeleça um contato com você. Posto que alcancei uma grande afinidade com tua comunidade, deverei tratá-lo como um membro essencial da comunidade e não desligá-lo dela”. Explicou a seus ajudantes que aqueles sheiks que estivessem dispostos a serem tratados como discípulos, tal e como eles tomavam, por sua vez, a seus próprios estudantes como discípulos, seriam os que dirigiriam as escolas que poderiam ressurgir. Alguns sheiks responderam com compreensão, e outros reagiram com grande desconfiança, manifesta ou oculta, pela forma com que Ishan Wali se havia dirigido a eles. Ainda que dando as boas-vindas à compreensão daqueles que se consideravam seus discípulos, Wali sofria pelas plantas fenecidas. Ali-Mohamed Husseini perguntou: - Devemos estar tristes pelos que se mostraram estar mortos? Respondeu Wali:

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- Nem todos estão mortos, ainda que suas suspeitas os façam se comportar como se estivessem. Tão logo disse isto, alguns dos sheiks das escolas divididas, como se o houvessem percebido internamente, mudaram de atitude e puseram seus turbantes a seus pés. Majzub, um dos sheiks que se havia mostrado confuso, disse depois: - Senti sobre mim algo opressivo se revelar e soube que tinha sido meu medo e minhas suspeitas. Mas Ishan Wali disse: - As preces dos sheiks “fenecidos” foram mais fortes que seus medos e suspeitas, e propiciaram a que viessem a nós e recebessem o que tínhamos para oferecer-lhes. O mérito, na verdade, é todo deles. Como podemos nós ter mérito por fazer algo que conhecemos? No passado temos tido mérito por exercitar virtudes. Mas, neste caso, tudo se deveu ao fato de terem olhado para frente, deixando o erro e polindo o espelho da compreensão. Desta forma, os sheiks retiveram sua importância em suas próprias escolas, e ganharam grande respeito entre seus discípulos. Os poucos que se mantiveram afastados perceberam que seus alunos se inclinavam mais e mais para a confusão ou para aderir a Wali, mesmo tendo ele escrito para dizer-lhes: “Não tomo a teus discípulos, e não o faço por cortesia para com você, mas sim porque sem a compreensão do todo, a parte não funciona. Portanto, se temes perder discípulos por minha causa, não temas, pois eu não posso ajudá-los e sempre o direi. Apesar disto, tenho medo por teu futuro”. As plantas murchas, exceto alguns, não responderam a esta chuva bondosa. Atualmente, possivelmente, não existe sinal algum sobre a terra dos discípulos daqueles sheiks que não se aproximaram dos métodos de Ishan Wali durante sua permanência na Síria.

MILAGRES OCULTOS Alguém perguntou a Fuwad Ashiq, um dos discípulos maiores de Bahaudin Naqshband: - Pode dizer-me porque o Maulana oculta seus milagres? Freqüentemente o tenho visto em alguns lugares e, como confirmam testemunhas fidedignas que estiveram com ele, ao mesmo tempo, em muitos outros lugares diferentes. Igualmente quando cura a alguém por intermédio de suas preces sempre diz que, de qualquer forma, se teria curado. Pessoas lhe pedem favores e aquele que se vê favorecida por seu interesse, obtém grandes benefícios no mundo e mesmo assim ele nega sua influência ou a atribue à mera coincidência e ao trabalho de outros. Fuwad disse: - Eu mesmo pessoalmente tenho observado isto muitas vezes. Está claro que, estando tão constantemente com ele, é já algo que pertence à experiência de todos os dias. A razão é que os milagres são a operação do “serviço extraordinário”. Não acontecem para que as pessoas fiquem contentes ou tristes. Se impressionam, esta impressão vai fazer com que as pessoas imaturas se tornem crédulas e se excitem, em vez de aprender algo.

A ENTRADA EM UM GRUPO SUFI Se lê, se pratica, pode ser que se capacite para entrar em um círculo sufi. Se somente lê, não o conseguirá. Se crê que tem experiências sobre as quais pode construir, pode ser que não esteja apto. As palavras sozinhas não comunicam: tem que preparar algo, do qual as palavras são só uma insinuação. A prática somente não aperfeiçoa a humanidade. O homem necessita o contato com a verdade, de uma que inicialmente possa ajudá-lo. O que é conveniente e irrepreensível em determinado tempo e lugar, geralmente mostra-se inadequado, limitado e um obstáculo em outro lugar e tempo. Isto é certo na busca e em muitos outros campos da vida comum. Tenha esperança e trabalhe para que possas ser aceito em um círculo sufi. Não trates de julgá-lo ou de julgar a seus membro, a menos que estejas livre da avareza. A avareza faz com que acredites em coisas que normalmente não acreditarias. E, do mesmo modo, que não acredites naquilo que normalmente acreditarias. Se não podes sobrepôr-te à avareza, exercite-a somente onde seja adequado, e não a introduzas no círculo dos iniciados. ( Nazir el Kazwini, “Ditos do Solitário”)

UMA HISTÓRIA DE IBN-HALIM Haviam dois homens de grande notoriedade, como mestres do Caminho Correto. Ibn-Halim relata que foi primeiro ver a um deles, cujo nome era Pir Ardeshir de Qazwin. E lhe disse:

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- Me aconselharás sobre o que devo fazer e o que não devo fazer? Ao que Pir respondeu : - Sim, mas te darei instruções que acharás muito difíceis de cumprir, posto que irão contra tuas preferências, ainda que estas preferências sejam, às vezes, o mais difícil. Ibn-Halim passou vários meses com Pir Ardeshi e constatou que seus ensinamentos eram em verdade muito difíceis para ele. Ainda que os anteriores discípulos de Pir Ardeshi fossem famosos em todo o mundo como mestres iluminados, ele não podia suportar as trocas, as incertezas e as disciplinas que lhe eram impostas. Ao fim de algum tempo pediu ao Pir permissão para sair e mudou-se para a tekkia do segundo mestre, Murshid Amali: - Me imporias tarefas que eu achasse quase intoleráveis: Amali respondeu: - Não, não te as imporia. Ibn-Halim perguntou: - Então, me aceitarás como discípulo? O Murshid respondeu: - Não, até que me pergunte porque meu treinamento não seria tão penoso quanto o de Pir Ardeshir. Ibn-Halim perguntou: - Porque não seria tão penoso? O Murshid disse: - Por que não me interessaria por ti, nem por teu verdadeiro bem como Ardeshir. Portanto, não deves pedir-me que te aceite como discípulo.

A MULHER SUFI E A RAINHA

Certa mulher da desonrada casa dos Omeyya se havia tornado sufi e foi visitar a rainha da casa de el-Mahdi, que havia substituído os Omeyya. A dita rainha era conhecida como uma mulher de delicadeza e compaixão. Quando viu a figura magra e esfarrapada da pobre princesa Omeyya à sua porta, a pediu que entrasse, e se tratou de dizer-lhe palavras confortantes e a dar-lhe presentes que a ajudassem em sua evidente necessidade. Mas tão logo a princesa disse: “Eu sou filha da família Omeyya”.... a rainha esqueceu sua caridade e gritou: - Uma mulher dos malditos Omeyya! Viestes sem dúvida pedir-me esmola, esquecendo o dano que os homens de tua família fizeram à nossa, como se opuseram a ela e como a trataram sem misericórdia, não deixando nenhum recurso mais que Deus. - Não - disse a princesa Omeyya -, não vim em busca de comiseração, perdão ou dinheiro. Vim para ver se a família de el-Mahdi aprendeu a comportar-se como é justo, aprendendo com os erros de seus predecessores que não souberam comportar-se e foram impiedosos; ou se a conduta deles, que consideras deplorável, se deveu a um contágio, em cujo caso bom será que saibas que todos aqueles que estiverem contagiados tornam inevitável sua própria queda. A princesa Omeyya se foi e nunca mais foi vista. Mas nos restou este conto, transmitido oralmente pela rainha el-Mahdi, e é possível que a ele se deva, em parte, alguma melhora na conduta humana.

O ASSISTENTE DE COZINHEIRO Certo famoso, apreciado e influente mercador, visitou a Bahaudin Naqshband, e disse em plena assembléia: - Vim para oferecer minha submissão a você e a seu ensinamento e lhe rogo que me aceite como discípulo. Bahaudin lhe perguntou: - Por que sentes que poderás te beneficiar com o ensinamento? O mercador respondeu: - Tudo o que tenho conhecido e buscado na poesia e ensinamento dos anciãos, tal como figura nos livros deles, o encontro em você. Tudo o que outros mestres sufis apregoam, louvam e citam dos sábios, o encontro em você, e não na perfeição e plenitude deles. Considero a você como um dos grandes, pois posso discernir o aroma da verdade em você e em tudo o que está ligado a você. Bahaudin disse ao homem que se fosse, prometendo-lhe que, quando chegasse o momento, lhe faria conhecer sua decisão sobre sua aceitação.

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Após seis meses, Bahaudin chamou o mercador para que viesse, e lhe perguntou: - Estás disposto conversar comigo publicamente, na presença de outras pessoas? - Sim, por meus olhos e minha cabeça. Uma manhã, durante uma reunião, Bahaudin chamou ao homem do lugar onde estava sentado no círculo e o fez sentar-se a seu lado. Disse aos ouvintes: - Este é tal e tal, o distinto rei dos mercadores desta cidade. Há seis meses veio aqui e pensou que podia discernir o aroma da verdade em tudo o que me concerne. O mercador disse: - Este período de prova e separação, estes seis meses sem olhar o mestre, este exílio, tem sido causa de minha maior submersão nos clássicos, para que desta forma, pelo menos, pudesse manter alguma relação com quem desejo servir, Bahaudin el-Shah, que visivelmente é idêntico aos grandes. Bahaudin disse: - Seis luas se passaram desde estivestes aqui. Não tens estado fazendo mal uso do teu tempo: tens estado trabalhando em tua tenda e tens estado estudando as vidas dos grandes sufis. Sem dúvida, poderias ter estado estudando a mim, a quem consideras igual aos sábios do passado, pois tenho estado duas vezes por semana em tua tenda. Durante estes seis meses, nos quais “não temos mantido contato”, estive em tua tenda quarenta e oito vezes. Em muitas ocasiões, fiz algumas transações contigo, comprando ou vendendo mercadoria. Mudando a mercadoria e com uma simples mudança no meu vestir e minha aparência, tu não me reconhecestes. É isto discernir o aroma da verdade? O mercador permaneceu calado. Bahaudin continuou: - Quando te aproximas ao homem a quem outros chamam Bahaudin, podes sentir que ele é a verdade. Quando te encontras com o homem que se chama o mercador Khalaja Alavi ( um dos pseudônimos de Bahaudin), não podes discernir o aroma da verdade naquilo que está conectado com Alavi. Tu encontras perceptivelmente em Naqshband só o que outros apregoam e não são. Em Alavi não encontras o que os sábios são e não parecem ser. A poesia e o ensinamento a que te tens referido é uma manifestação externa. Tu te alimentas de manifestações externas. Por favor, não dês a isso o nome de espiritualidade. Este mercador era Mahsud Nadimzada, mais tarde um famoso santo, que se fez discípulo de Bahaudin depois de se ter submetido a estudar sob as ordens do cozinheiro do Khanqa, que não tinha nenhuma instrução sobre poesia, práticas espirituais ou exercícios. Em uma ocasião disse: - Se não houvesse estudado o que eu imaginava ser um caminho espiritual, não teria tido que esquecer os numerosos erros e superficialidades que Khalifa-Ashpaz ( o cozinheiro) queimou em mim, ignorando minhas pretensões.

POR QUE MOLHADO NÃO É SECO?

Mil anos antes de ser conhecido pelas pessoas, Khidr viajou pelo mundo, buscando a quem ensinar. Quando encontrou bons estudantes, lhes transmitiu verdades e artes proveitosas. Mas tão logo introduzia novos ensinamentos, as pessoas se apropriavam deles e faziam mal uso. Ás pessoas só lhes importava a aplicação da habilidade e das leis e não a compreensão profunda; e desta forma o conhecimento não podia se desenvolver integralmente. Assim foi que, um dia, Khidr decidiu aplicar meios diferentes de ensinamento. Fez com que muitas coisas fossem seus opostos. Por exemplo, fez com que o que havia sido molhado fosse seco, e fez com que o seco fosse molhado. As pessoas se acostumaram a isto e simplesmente se ajustaram a considerar que molhado era seco e seco molhado. Havendo trocado um grande número de coisas, Khidr regressará algum dia para ensinar novamente qual é qual. Até que ele faça isto, somente uns poucos poderão se beneficiar do trabalho de Khidr. Aqueles que não podem, são os mesmos que gostam de dizer: Eu já sabia isso, quando em realidade não sabiam.

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LIVROS

Se eu te entrego um livro vazio, dando-te a entender “tu não podes te beneficiar com meu livro”, talvez pensarás: “Está me insultando”. Mas se ofereço um livro completo e compreensível, todos os leitores tomarão suas superficialidades como um estímulo, exclamando: “que magnífico, que profundo!”. As pessoas seguirão estas coisas externas depois de eu ter partido, convertendo-as em uma fonte de estímulo e debates. Dirão que contém didática, poesia, exercícios ou histórias. Se não lhes dou livros, ou lhes dou um pequeno, os acadêmicos zombarão, e arruinarão as mentes dos estudantes potenciais e vulneráveis com outra literatura, ainda mais do que fazem no presente. Os estudantes desconcertados se converterão em destrutivos, imaginarão soluções e tratarão de impô-las aos outros. Se lhes dou um livro extenso, algumas pessoas imaginarão que é pretensioso. Notarás que existem todas estas suposições, simplesmente porque as pessoas gostam de fazer isto, não porque tenham a menor probabilidade de ser verdade. Se lhes dou um livro crítico, imaginarão que contem estranhos segredos. Ou podem se fazer desnecessariamente astutos para tratar de compreendê-lo. Quantas coisas mais como estas se diz, mais as pessoas se mostram mais petulantes e afirmam com desdém: “Você não nos compreende. Nós não nos comportamos assim. A falta de compreensão está em você”. Mas se eu digo estas coisas e reflito sobre elas, mesmo que brevemente, prestando a cada declaração a mesma atenção, eu me darei por satisfeito.

( Bahaudin Naqshband )

QUANDO UM HOMEM SE ENCONTRA A SI MESMO

Uma das maiores dificuldades do homem é também sua mais óbvia desvantagem. Poderia ser corrigida se alguém se desse ao trabalho de a assinalar com mais freqüência e com suficiente gentileza. Esta dificuldade é a que encontra o homem que crê que está descrevendo a outros, quando na realidade está descrevendo a si mesmo. Quando a miúdo se escutam as pessoas falarem sobre mim: “Considero a este homem como o Qutub ( eixo magnético ) desta Época”. Na verdade o que ele quer dizer é: “Eu considero a este homem...” Está descrevendo seus próprios sentimentos ou convicções, quando o que queríamos saber é algo sobre a pessoa ou coisa que ele trata em vão de descrever. Quando ele diz: “Este ensinamento é sublime”, quer dizer: “Se ajusta a minha conveniência”. Mas possivelmente queríamos saber algo sobre o ensinamento, não sobre a forma como crê que o está influenciando. Alguns argumentam: “Uma coisa pode ser conhecida pelo efeito que produz. Por que não observar seu efeito sobre uma pessoa?” A maioria não entende que o efeito do sol sobre as árvores é algo constante. Para conhecer a natureza do ensinamento, teríamos que observar a natureza da pessoa sobre a qual tem atuado. As pessoas comuns não podem saber isto. Tudo o que podem saber é o que pretendem que tenha sido o efeito sobre si mesmo e carecem de uma imagem coerente do que “si mesmo” é. Posto que um simples observador sabe menos que a pessoa que se está descrevendo a si mesma, deixa-nos com uma evidencia totalmente inútil. Não temos uma testemunha em quem confiar. Lembre-se que, enquanto a situação siga assim, o número de quem diz “isto é maravilhoso” será igual ao daqueles que dizem: “isto é ridículo”. E “isto é maravilhoso” significará “isto a mim me parece maravilhoso”, e a frase “isto é ridículo” só significará “isto a mim me parece ridículo” De verdade, podes sentir-te satisfeito sendo assim? Muitas pessoas estão, ainda que pretendam firmemente o contrário. Em verdade, gostarias de poder comprovar o que realmente é ridículo ou maravilhoso, ou nem uma coisa nem outra senão algo intermediário? Podes fazê-lo, mas não enquanto pretendas que podes fazê-lo sem uma prática, sem um treinamento, enquanto ainda estás sumamente incerto do que és e do por que aprecias ou desgostas das coisas.

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Quando te encontrares a ti mesmo poderás ter conhecimento. Até então só terás opiniões. As opiniões se baseiam no hábito e no que crês que é conveniente para ti. O estudo do caminho requer que a pessoa se encontre a si mesmo no caminho. Tu ainda não te encontrastes. Enquanto isso a única vantagem de que te reunas com outros é que um deles te apresente a ti mesmo. Até que assim seja, possivelmente imaginarás muitas vezes que te encontrastes a ti mesmo. Mas a verdade é que quando te encontrares a ti mesmo, obterás um legado de conhe-cimento que não se parecerá a nenhuma outra experiência no mundo.

( Tariqavi )

O SUFI E A HISTÓRIA DE HALAKU

Várias pessoas de diferentes crenças foram visitar um sufi e lhe disseram: - Aceite-nos como seus discípulos. Temos nos dado conta de que a verdade não mais existe em nossas religiões e estamos seguros de que o que você está ensinando é o caminho verdadeiro. O sufi disse: - Vocês ouviram falar do mongol Halaku Khan e sua invasão da Síria? Deixem-me contar-lhes. Ahmad, vizir do Kalifa Mustasin, de Bagdad, convidou ao mongol para invadir os domínios de seu amo. Quando Halaku havia vencido a batalha de Bagdad, Ahmad foi vê-lo, com a pretensão de ser recompensado. Halaku lhe disse: - Tu buscas recompensa? O vizir respondeu: - Sim. Halaku observou: - Traístes a teu amo e ainda esperas que eu acredite que me serás fiel? Ordenou que prendessem a Ahmad. - Antes de pedir a alguém que os aceite, perguntem-se a si mesmos se não o solicitam simplesmente por haver deixado de seguir o caminho de seu próprio mestre. Se realmente estiverem satisfeitos com sua própria conduta, venham pedir que lhes aceitem como discípulos, tal como desejam.

PEIXES NA LUA

Perguntaram ao Sheik Bahaudin Naqshband: - Por que dizes que ninguém pode aprender o sufismo por si mesmo e que todo aquele que pense estar mais avançado do que outro no Caminho carece de valor? Bahaudin respondeu: - Porque é um assunto de experiência diária e aqueles que pensam que podem aprender o sufismo por si mesmos de fato não podem fazê-lo: são demasiados egocêntricos. Aqueles que pensam que não podem aprendê-lo sozinhos, de fato o podem. Mas, por causa da vaidade, só um autêntico mestre está capacitado para permitir-lhes proceder sozinhos, posto que ele pode diagnosticar sua verdadeira situação. Qualquer um que pense que está mais avançado que outro no conhecimento, é quase completamente ignorante e incapaz de aprender mais. Dá voltas e voltas nos “intestinos de Satanás” de sua ignorância. Isto é assim porque a experiência do verdadeiro conhecimento de nenhuma maneira se conforma com a idéia de que um está mais avançado que outro. Observa que não aceito como discípulo a alguém a quem critico por ser obstinado. Isto é assim porque com certeza sentirá aquele a quem repudio que minha critica a ele foi motivada pelo desejo de ensinar-lhe. Por isto sempre despeço a quem critico. Resta-lhes a esperança de poder encontrar, em algum lugar, um mestre que não os adule, ainda que isto seja tão provável quanto haver peixes na lua.

KILIDI E AS PEÇAS DE OURO

O mestre sufi Kilidi soube que muitos de seus discípulos passavam grande parte de seu tempo contando histórias sobre as incríveis virtudes e poderes inauditos de antecipar-se aos pensamentos e necessidades de instrução de seus discípulos. Ele os repreendia sobre isto uma vez ou outra, mas a tendência humana de ostentar sobre alguém

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de quem se é servidor ou se admira, era neles demasiado forte. Um dia ele lhes disse: - A menos que deixem esta prática, que não somente faz com que eu esteja rodeado de pândegos mas também me impossibilita dividir com vocês conhecimentos importantes, terei que fazer algo que vos será desagradável. Poderia fazer de vocês pessoas risíveis e ridículas por me haverem seguido. Como este aviso não teve o efeito desejado, Kilidi, pouco depois, em presença de numerosos discípulos e público em geral, deu cem peças de ouro a um mendigo que passava. Pouco depois, o mendigo regressou com o ouro, dizendo: - Este ouro não fez nenhum bem. Minha esposa disse que lhe caberia a metade, ou que tem o direito de receber de você uma quantidade igual à minha, posto que ela é tão pobre quanto eu. Kilidi tomou o ouro e o deu a um homem rico que estava presente, dizendo: - As pessoas ricas não se queixa de seu dinheiro - e dirigindo-se ao mendigo o aconselhou - : Já estás novamente tão pobre quanto antes, refaça tuas boas relações com tua esposa. E voltando-se para seus discípulos acrescentou: - Agora estão vendo que Kilidi se equivoca e o mesmo foi visto pelo mundo alheio a nós.

TRIGO E CEVADA

Um destacado estudante que visitava a Bahaudin Naqshband, perguntou: - Por teu caráter, exercícios e manifesta capacidade para fazer o bem, tens obtido estima pública e conquistado os corações de teus discípulos, sendo por isso considerado o Mestre da Época. Tudo foi sempre assim para você? Bahaudin falou: - Não, nem sempre foi assim. O visitante disse: - Os antigos, entre os sufis, eram quase sempre considerados imitadores, repudiados pelos estudiosos, temidos pelos intérpretes. Alguns deles, a quem os adeptos contam entre seus mais nobres exemplos, estão registrados nos livros dos eruditos como indesejáveis ou como pessoas de nociva influencia, mal aceitas pelas autoridades. Se têm contribuído para o conhecimento e prática do caminho, não deveriam contar-se entre os adeptos? Bahaudin disse: - Alguns evidentemente são adeptos, outros evidentemente não são nada. - Então, onde reside a qualidade essencial do dervixe? - Está em sua realidade, não em sua aparência. - Carecem essas pessoas de qualidades por intermédio das quais todos possam reconhecê-las? Bahaudin respondeu: - Lembre da história do trigo e da cevada. Em um certo tempo as pessoas plantavam trigo no campo. Todos se acostumaram a ver como crescia e a viver com o pão que faziam com sua farinha. Mas o tempo passou e foi necessário plantar cevada. Quando chegou esse tempo, muitas pessoas, exageradamente inclinadas ao textual, como só o sabem ser os acadêmicos comuns, gritaram: - Isto não é trigo. - Sim, mas é um cereal - disseram os que plantavam a cevada - e são de cereais que necessitamos. - Charlatão - gritaram seus oponentes. E muitas vezes quando acontecia uma colheita de cevada, o clamor para expulsar aos que a cultivavam era tão grande e efetivo, que não podiam prover as pessoas de farinha. As pessoas morriam de fome; mas, persuadidas por seus conselheiros de mente estreita, pensavam que estariam melhor não consumindo a colheita cultivada pela gente-da-cevada. O visitante perguntou: - Então, o que nós chamamos “sufismo” eqüivale realmente ao cereal de tua história? Nesse caso temos estado chamando de cereal ao trigo e à cevada, e temos que nos dar conta de que existe algo mais profundo, do qual ambas colheitas são uma manifestação. - Sim - disse o Maulana. - Na verdade, seria mais desejável que nós pudéssemos procurar o conhecimento dos cereais - disse o que perguntava. - Naturalmente. Seria melhor, se pudesse fazê-lo - disse Bahaudin -, mas o certo é que a maioria das pessoas, por seu próprio desejo ou pelo desejo de outras pessoas, ainda têm que trabalhar pela colheita para poder comer. Muito pouco são os que sabem o que são os cereais. São as pessoas a quem vocês chamam guias. Quando um homem sabe que se pode morrer de fome, tem que prover a comida que possa. Somente aqueles que não estão trabalhando no campo tem tempo de pensar

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sobre os grãos. Também são eles que não têm direito a fazê-lo, posto que não o experimentaram, nem tampouco estão trabalhando para produzir farinha para as pessoas. - É ruim dizer às pessoas que façam coisas quando não se pode compreender por que devem fazê-las - disse o visitante. - É pior explicar que uma árvore vai cair, com tal detalhe que, antes de ter terminado a história, sua platéia venha a ser esmagada embaixo dela - respondeu Bahaudin.

A GARRAFA DE VINHO

Conta-se nas reuniões de sábios que existiu um homem que queria receber a um amigo com grande hospitalidade. Quando ele e seu amigo, depois de comer, ficaram um pouco à mesa, o anfitrião disse: - Talvez pudéssemos beber um pouco de vinho, para não nos enfadarmos e estimular a agudeza de nossos sentimentos? Seu convidado concordou. Mas como o homem só tinha em casa uma garrafa de vinho, contou isto a seu convidado. Mandou ir buscar o vinho a seu filho, que tinha um problema nos olhos e via em dobro, de modo que quando voltou, disse: - Pai, tem duas garrafas: qual das duas quer que eu traga? Envergonhado por pensar que seu convidado poderia acreditar que não lhe estava dando tudo o que tinha, o padre respondeu: - Quebre uma garrafa e traga a outra. O jovem lançou uma pedra sobre a única garrafa que havia, e pensou que, sem querer, havia quebrado as duas. Não teve vinho aquela noite, nem para o anfitrião e nem para o convidado. O convidado pensou que o jovem era um tonto, quando na verdade sofria de uma enfermidade. O orgulho do anfitrião sobre sua hospitalidade, foi a causa da destruição da garrafa. O rapaz sofreu por pensar que havia feito algo ruim. Tudo aconteceu porque o anfitrião teve medo de dizer a seu convidado que seu filho estava enfermo dos olhos e via dobrado, pensando que talvez seu convidado imaginaria que só se tratava de um pretexto para não lhe dar todo o vinho.

BAHAUDIN NAQSHBAND DISSE: Estávamos parados em um pequeno claro nas montanhas altas de Kohistan. Meu mestre disse: - Olhe os pinheiros. Alguns são pequenos, outros grandes. Alguns estão bem enraizados, outros se dobram fragilmente. Outros, sem razão evidente, têm seus ramos estragados. Eu disse: - Que podemos aprender com eles? Ele respondeu: - Os altos estão cheios de alento, de aspiração. - Todos tem êxito? - De forma nenhuma. - E os que estão estragados? - São aqueles que buscaram uma justificativa. - São melhores os pequenos do que os altos? - Algo pode ser pequeno por herança, por falta de oportunidade, por falta de nutrição ou por seu próprio desejo. - E os que estão bem enraizados? - Tudo depende de sua natureza e da seleção natural que leva a suas raízes para obter verdadeira nutrição. Alguns que estão bem enraizados o estão por desnecessária avareza de consumir. As vezes são os primeiros que os lenhadores cortam e usam como lenha...

A ESPONJA DE PROBLEMAS Durante muitos séculos o túmulo de Boland Ayshan curou os enfermos, concedeu desejos e beneficiou a todos os que o visitavam. Era conhecida com “a esponja de problemas”. O santuário estava situado próximo ao pequeno povoado de Murghzar, no Iran, e ali trabalhou

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Faisal Nadim como cozinheiro, no Ashkhana (restaurante), cerca de vinte anos. Faisal nunca ia ao santuário. Mas os viajantes que entravam em sua cozinha e passavam seu tempo com ele enquanto trabalhava, constituíram a linha de iluminados sufis chamada “Os Nadimis”. E os visitantes da tumba nunca foram celebrados de forma alguma como gente sagaz, exceto entre os ignorante. Alguém perguntou ao sábio Khorram Ali, porque os peregrinos piedosos não eram transformados por assistir a um lugar tão milagroso, e por que os sufis que freqüentavam uma cozinha se convertiam em santos sufis. Khorram respondeu: - Uma esponja suga a água que não se necessita, mas também serve para impedir, de acordo com a circunstância, que se leve a cabo um trabalho produtivo. É totalmente insensível, sejam quais forem os méritos que se lhe atribuam. Um cozinheiro sabe medir ingredientes e o que fazer para que sejam digeríveis. Um cozinheiro pode necessitar uma esponja para eliminar alguma coisa que o atrapalhe, como a água suja; somente os estúpidos, que só se fixam na esponja, imaginam que funciona por sua própria vontade.

O PEIXE DE CRISTAL

Um homem jovem recebeu um pequeno pescado de cristal da parte de um barqueiro a quem havia feito um favor. O perdeu e, em seu desespero por haver extraviado tão belo e tão raro objeto, ao ver um outro homem que levava um peixe de cristal preso por um fio em volta do pescoço, ficou muito revoltado. O jovem conduziu o homem aos tribunais e fez com que fosse processado por roubo. Na última hora, quando perguntaram ao acusado se tinha algo a dizer antes de ser levado para a prisão, ele disse: - Perguntem a qualquer barqueiro da comarca. Todos temos um emblema como este, e este é meu. Não pertence ao jovem. Também eu tenho dois olhos e uma boca, e tampouco são dele. - Por que não falastes antes? - perguntou o juiz ao barqueiro. - Porque o mérito é maior para a humanidade quando se chega à verdade exercitando, desde o começo, o bom senso por parte de todos ; para quando acontecer de alguém ter que provar alguma coisa que pudesse ser, depois de tudo, impossível de comprovar. - Sem dúvida, todos devemos aprender - disse o juiz. - Assim - disse o barqueiro - se essa aprendizagem tem que depender da apresentação de provas, só teremos a metade do conhecimento, e seguramente estaremos perdidos. Os Kishtiwabis, escola à qual pertencia este barqueiro, eram conhecidos pelo seu hábito de enfatizar o fato de que as pessoas passam a maior parte do tempo tirando conclusões precipitadas e não tomando em conta os fatos.

O PORTADOR DO SELO Pouco tempo depois da morte de Maulana Bahaudin Naqshband, um homem esfarrapado chegou próximo ao lugar onde ele havia sido enterrado e ordenou: - Levem-me ao kalifa ( deputado ). O kalifa não estava ali. Então disse: - Que Bibi Jan, a viuva de Maulana, me identifique. Todos se mostraram perplexo por causa daquele estranho, e os seguidores de Maulana não sabiam o que dizer ou que fazer... O maltrapilho disse: - Se não há kalifa, não há compreensão. Vou mostrar-lhes algo, que o mais imbecil dos homens deve conhecer. E colocou ante eles o selo de Bahaudin Naqshband. Desse momento em diante foi tratado com todas as honras. Pediu então que fosse levado ao muro próximo da colina de Tillaju. Mandou tirar parte do mesmo. Pegou certos objetos que estavam enterrados ali e disse: - Estes são para mim. Teria sido para os discípulos se tivessem sido adeptos. Alguém perguntou: - Por que não os recolheram os discípulos? - El Shah lhes disse que escavassem o cimento do muro, mas em vez de fazê-lo construíram sobre

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ele para torna-lo mais alto. Com o tempo esse muro teria caído e estes incomparáveis objetos se teriam perdido. O medo dos murids ( discípulos ) para realizar trabalhos manuais, e sua inclinação para todo tipo de fantasias, causou sua nulidade no reino espiritual. Um murid perguntou: - Poderias dar-nos notícia de quem não é como nós, porque nós temos ânsia de conhecimento? O dervixe misterioso disse: - Aqueles que poderiam saber, já sabem. Para os demais já é tarde. Estão sobejamente satisfeitos de ter estado próximos de El-Shah. Mais melhor seria que se separassem. De outra forma só repetiram os nomes e fórmulas de El-Shah e haverão pessoas que se extraviarão, acreditando que isto é sufismo. Alguém disse: - Qual dos iluminados é você, que wali, que abdal? Não ficará conosco? Ele respondeu: - Sou o servente mais humilde dos mestres, os Khwjagan. Um servente só pode ficar onde pode executar as ordens de seu amo. Eu não posso levar a cabo o serviço da humildade em companhia da arrogância. Alguém perguntou: - Como podemos reduzir nossa arrogância? Ele respondeu: - Podem reduzi-la dando-se conta de que não são dignos representantes dos ensinamentos de El-Shah. Os indignos estão duplamente incapacitados. Se extraviam imaginando que estão estudando o caminho. Extraviam a outros pretendendo ensinar-lhes, ainda que seja por sugestões. Isso não é estudo. Isso não é ensinamento. Onde não há represen-tante, a imitação por suposição é igual a usurpação. A usurpação destrói a Alma.

PLENO Um astrônomo que era vaidoso e estava muito satisfeito de sua sabedoria, estava viajando e foi visitar a Kushyar o Sábio, mestre de Avicena. Mas Kushiar não quis ter nenhum contato com ele e se recusou a ensinar-lhe sob qualquer forma que fosse. O astrônomo se retirava tristemente, quando Kushyar lhe disse: - Tua crença de que sabes muito tem o efeito de fazer-te igual a um recipiente cheio de água. És incapaz de receber mais. Mas tua forma de estar pleno é a plenitude da vaidade. Em realidade, estás totalmente vazio, pouco importando o que sintas.

UMA VOZ NA NOITE

Uma voz me disse à noite, em segredo: - Não existe tal voz que sussurra em segredo na noite! ( Haidar Ansari ).

PERCEPÇÃO

Sabe-se que alguém disse ao grande filósofo Saadi: - Desejo ter percepção, para poder converte-me em um sábio. Saadi disse: - Possuir a percepção sem sabedoria é pior que não ter nada. - Como pode ser isso? Saadi disse: - Como no caso do abutre e do gavião. O abutre disse ao gavião: “Tenho a visão muito melhor do que a tua. Posso ver um grão de trigo lá embaixo na terra, enquanto você não pode ver absolutamente nada”. As duas aves desceram para buscar o trigo que o abutre podia ver e o gavião não. Quando estavam muito próximo da terra o gavião viu o trigo. O abutre continuou sua descida e engoliu o trigo... e então desmoronou: o trigo estava envenenado.

SOBRAS

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As sobras da comida do Emir, são maiores que as dadivas de halwa do comerciante.

A MOSCA DE OURO Havia uma vez um homem chamado Salar, que distinguia o bem e o mal e conhecia o que se podia fazer e o que não se podia fazer. Sabia muito de livros. De fato, conhecia tanto que havia sido nomeado assistente pessoal do Mufti Zafrani, eminente jurisconsulto e juiz. Mas Salar não conhecia tudo, e ainda nas coisas que conhecia, nem sempre atuava de acordo com seu conhecimento. Um dia, quando havia posto de lado seu jarro de suco doce, uma pequena e brilhante mosca dourada pousou no bordo do vaso e sorveu um gole. A mesma coisa aconteceu no dia seguinte e no terceiro dia e assim sucessivamente, até que a mosca cresceu de tamanho e Salar pode ver facilmente. Mas a mosca havia crescido tão lentamente que Salar quase não havia notado. Finalmente, após várias semanas, quando Salar se achava ensimesmado no estudo profundo de um problema legal muito complicado, ao olhar para o alto se deu conta de que a mosca parecia muito maior do que deveria ser. Ele a espantou e a mosca em seguida levantou vôo, deu uma volta na jarra e se afastou. Mas voltou. Quando Salar não estava vigiando, a mosca descia, pousava no bordo do jarro e bebia tanto quanto podia. Conforme passaram os dias, a mosca se tornou cada vez maior, quanto mais bebia, mais mudava seu aspecto. A princípio, Salar a enxotava. Depois, se deu conta de que tinha que tomar uma vara para pegá-la. As vezes também lhe parecia que a mosca tomava forma semi-humana. Era, possivelmente, um gênio e não uma mosca. Finalmente, Salar gritou com a mosca. E, oh surpresa!, a mosca respondeu dizendo: - Não bebo muito de tua bebida e, além do mais, sou muito formosa, não achas? Primeiro Salar se mostrou assombrado, depois assustado e, finalmente, comple-tamente confuso. Começou a sentir prazer com as visitas da mosca, mesmo se ela bebia parte de seu suco. Olhava como dançava a mosca, e pensava muito sobre ela, trabalhava cada vez menos e, a medida que a mosca crescia, ele se sentia mais e mais fraco. Salar se encontrou em dificuldades com o Mufti. Tratou acertar sua situação e decidiu acabar com a mosca. Com toda resolução deu-lhe um violento golpe, e ela voou dizendo: - Fizeste mal. Eu só queria ser tua amiga. Me vou, se é isto o que queres. A princípio Salar achou que havia se desfeito da mosca para sempre. E disse: “Eu a venci e isto comprova que eu sou mais poderoso do que ela, seja ela um homem ou gênio, mosca ou não”. Quando Salar já se tinha convencido de que todo o assunto havia terminado, apareceu de novo a mosca. Havia crescido enormemente e desceu do teto como um lago resplandecente, adotando a forma de um homem. Duas mãos enormes se extenderam e apertaram o pescoço de Salar. Quando o Mufti chegou para buscar seu assistente, ele jazia estrangulado no solo. O muro de um lado da casa havia sido derrubado pelos pés do gênio, e o única coisa que restava como mostra de seu enorme tamanho era um bracelete que ficou , como mostra , sobre o cal da parede. E era tão grande como as costas de um elefante.

PROMESSA NA TABERNA

Se poderia dizer : “Vieram em vão”. Que não seja que tenham vindo em vão.

Nós te deixamos este legado, para ti. Nós terminamos o que pudemos. Te deixamos o resto, para ti.

Recorda, isto é trabalho encomendado. Recorda, bem-amado: Nós voltaremos a nos ver.

( Canção derviche )

A FACA Um derviche errante correu até onde estava um sufi, sentado em profunda contemplação, e disse: - Rápido, devemos fazer algo. Um macaco acaba de pegar uma faca. - Não te preocupes, a menos que tenha sido um homem - disse o sufi.

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Quando o derviche olhou novamente para o macaco, viu que de fato já havia largado a faca. ( Kardan )

CARAVANÇARÁ

Havia uma vez um homem chamado Muin, que havia sido lesado e traído em sua juventude por outro chamado Halim, indivíduo extremamente avarento. Muin se disse a si mesmo: “Algum dia estarei em posição de quitar-me com esse homem. Me farei rico e sua inveja o arruinará, especialmente se eu lhe negar dinheiro”. Mas os anos se passaram e Muin não se fez rico. Os esforços de toda sua vida só poderiam manter a um homem rico por um mês. Quando tinha quarenta anos adoeceu, e os médicos disseram que teria apenas umas semanas de vida. Muin tinha um preceptor sufi, chamado Daud, filho de Zakaria, e lhe perguntou o que deveria fazer. - Despertar a inveja não é parte do trabalho de um sufi - disse Daud . Por que a inveja é uma podridão fatal que mata ao homem por alimentar-se dela e só com grande dificuldade pode ser extirpada. De fato, o único método para o afligido é a prática da generosidade intensa e real, e isto é algo que o homem raras vezes está disposto a fazer. Aqui está o que posso te dizer: “Os invejosos se corroem a si mesmos pelo que pensam que é verdade, não pela verdade real”. Deixarei que tu faças o resto. Muin ponderou profundamente sobre estas palavras. Depois chamou seu filho Aram e lhe disse: - Tenho muito pouco que deixar-te, mas creio que, se consigo fazer uma inversão justa, posso receber uma dívida e conseguir que fiques bem provido. Para isso terás que me obedecer escrupulosamente até o mínimo detalhe. Me resta muito pouco tempo de vida. Seguindo suas instruções ao pé da letra, Aram tomou todos os bens de seu pai e comprou luxuosos mantos, algumas jóias, duas formosas casas e muito mais. Então pai e filho foram ao caravançará mais luxuoso, próximo à casa do vilão, e pediram que este os fosse ver. Muin o aguardou encostado na cama, debilitado pelo esforço. Quando viu Halim, lhe disse: - Provavelmente estou em meu leito de morte e tu és a única pessoa a quem conheço nesta localidade. Tenho um filho, como podes ver, e a ele ensinarei um segredo sufi que produz todas as coisa que vês que dão de minha propriedade. Cuida deste jovem Aram e, chegado o momento correto, ele te dirá o segredo que eu o terei confiado. Muin morreu pouco depois. Halim, que tinha muito dinheiro, cobriu o jovem de presentes e fez todo o possível para impressioná-lo com sua bondade, pois cobiçava o segredo sufi. E permaneceu alerta na espera de que chegasse o momento oportuno para a transmissão do segredo. Mas Muin havia dito a Aram: - Revelarás as palavras do sufi a Halim, somente no caso dele ter sido suficientemente generoso contigo, e si tu julgares que ele já não é mais avarento. Foi assim que Aram observou durante anos a Halim. Halim lhe ofereceu dinheiro, mas nunca chegou a dar-lhe tanto quanto prometia. Aram tomou o que se lhe dava, e até pediu mais, tanto diretamente como por intermediários, para descobrir se Halim mostrava oposição e descobriu que sua oposição era grande. Este processo continuou durante anos. Halim sofria alternativos ataques de euforia e de depressão, e, para aliviar as tensões de sua vida, começou a interessar-se por todo tipo de diversões e passatempos. Um dia, estava lendo um livro sufi no qual se dizia: “Prometer e não cumprir impede a transmissão dos segredos sufis”. Repen-tinamente lembrou-se que não havia cumprido todas suas promessas a Aram. Nesse mesmo dia deu a Aram uma grande soma que lhe havia oferecido. Aram disse: - Não posso julgar o por que fizeste isto, mas como pode ser a razão correta, te direi agora o segredo sufi. E disse a Halim o que havia ocorrido entre o sufi e Muin. Halim havia vencido sua própria avareza por causa da admiração que tinha com a sabedoria do sufi e disse: - Aram, não resta lugar em meu mesquinho coração para lamentar o dinheiro que gastei. Faça uma só coisa por mim: diga-me como encontrar esse sufi para que eu possa beijar-lhe os pés. Esta história é contada pelo próprio Halim, o grande sábio sufi, que chegou a ocupar o lugar do Sheik Daud, filho de Zakaria.

FANTASIAS

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Ah, homem! Se ao menos soubesses quantas das falsas fantasias da imaginação estão mais próximas da verdade que as cuidadosas conclusões dos cautelosos. E como estas verdades mostram-se inúteis até que aquele que as imagina atua sobre sua imaginação e se faz menos imaginativo. ( Shab-Parak)

A FONTE DO SER

Permite que a fonte do ser mantenha contato contigo. Ignore as impressões e opiniões de teu ser habitual. Se este pudesse servir-te de ajuda em tua busca, já te haveria conseguido a realização. Mas o único que pode fazer é depender de outros. (Amin Suhrawardi)

IRRELEVANTE

Um dos sábios sufis nomeou um deputado para que transmitisse suas instruções aos discípulos. Entretanto, sem que se passasse muito tempo, os discípulos começaram a tomar ao deputado não como um instrumento do sábio e sim como a um homem de santidade e autoridade. Por sua vez, ele começou a imaginar que tudo o que dizia era importante. Pouco depois, alguns dos discípulos começaram a duvidar dos resultados das ações do deputado, e se perguntaram uns aos outros: “Está este homem atuando em completa concordância com seu mandato?”. Alguns deles tomaram estes pensamentos como traição e fecharam os olhos a todos os abusos. O Sábio escutou as perguntas que fizeram, e respondeu: - A vaidade tem se apoderado do meu representante, mas tem sido alimentada pelo desejo de venerar a alguém que vocês têm mostrado. Os discípulos se sentiram desalentados e perguntaram : - Se isto pode suceder a um representante em quem se tem depositado confiança, o que não poderia suceder no nosso caso? O Sábio disse: - Nada poderia ter passado se ambas as partes não tivessem estado erradas. Se vocês tivessem obedecido minhas ordens, em vez de criar seu próprio falso mestre, não satisfeitos com as instruções recebidas, não estariam, ao contrário, buscando ídolos. Por outro lado, quando estas tendências se manifestam, não só acontece algo como que tem que acontecer algo. Em lugar de cavucar sobre o ocorrido, deveriam observar quão incapazes são de distinguir o falso do verdadeiro; ainda não tendes a suficiente qualidade humana para evitar supor que o falso é verdadeiro. Esta é sua lição. Então eles comentaram: - O que acontecerá com ele? - Isto não lhes concerne. Por haverem se interessado no irrelevante, criaram obstáculo para seu próprio desenvolvimento, e ainda agora o seguem fazendo. Com isto demonstram que, longe de estar mais adiantados que as pessoas comuns, estão muito atras delas. Querem recuperar o tempo perdido?

FIDELIDADE

Najmaini ( O Homem das Duas Estrelas) despediu a um estudante com estas palavras: - Tua fidelidade tem sido posto a prova. A encontro tão firme e segura que tens que retirar-te. O estudante disse: - Ir-me-ei, mas não posso entender como a fidelidade possa ser razão para despedir-me. Najmaini disse: - Durante três anos a temos posto a prova . Tua fidelidade para com o conhecimento inútil e para com os juízos superficiais é completa. Por isto tens que partir.

O SANTUÁRIO DE JOÃO BATISTA

Saadi, o autor sufi do clássico persa “O jardim das Rosas”, escreve sobre sua visita à tumba de João Batista na Síria. Chegou ali um dia , exausto e com os pés doloridos. Mas enquanto se condoía e sentia pena de si mesmo, viu um homem que não só estava cansado, mas que não tinha pés. Saadi deu graças a Deus por que ele ao menos os tinha. Esta história, em seu nível óbvio, significa “seja agradecido pelas pequenas misericórdias”. Seu

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ensinamento nesse nível se encontra em todas as culturas. É de utilidade para ajudar a si mesmo a encontrar um melhor perspectiva sobre a situação própria, se se está sofrendo de obstáculo da auto-compaixão. O uso de tais histórias com propósitos emocionais, para mudar a atitude mental, e inclusive para fazer com que uma pessoa se contente e talvez momentaneamente agradecida por sua sorte, é característico de uma instrução convencional. Os modernos sofisticados dizem: - A única coisa que fez Saadi foi inculcar as chamadas virtudes morais. Seu trabalho está fora de moda. Os grosseiros tradicionalistas sentimentais podem dizer: “Que formoso é contemplar a miséria dos demais, comparada com a boa sorte que temos!” Mas Saadi, sendo um sufi, em seus escritos incluía materiais que tinham mais de uma função possível. Esta história é um entre tantos outros. Nas escolas sufis este exemplo é tratado como o que é: um exercício. O estudante pode beneficiar-se de qualquer interpretação “alentadora” e convencional da moral desta história. Mas sem introspecção, senão com observação de si mesmo, o estudante deveria poder dizer: “Me dou conta de que as mudanças de meu estado de animo dependem de estímulos emocionais. Terei sempre que depender de “ver um homem sem pés” ou de ler sobre isso, antes de me dar conta de que “tenho pés”? Quanto da minha vida se desperdiça enquanto eu espero que alguém me diga o que se tem que fazer, ou a que aconteça algo que mude minha condição e meu estado mental? De acordo com os sufis, o homem tem melhores e mais seguros sentidos interiores, e mais capacidade para educá-los do que o constante estímulo emocional. O objeto da interpretação sufi desta lição perderia o valor se incitasse as pessoas a iniciar uma orgia de auto-interrogação do tipo emocional. O propósito de assinalar o uso sufi desta narração é que seja registrado na mente, de maneira que o estudante possa visar no futuro uma forma superior de avaliação de sua situação, quando esta história começar a operar nele.

O SIGNIFICADO

Um homem que havia passado muitos anos tratando de interpretar significados, foi visitar um sufi, e lhe falou sobre a sua busca. O sufi disse: - Vê e analisa isto: IHMN O homem se foi. Quando voltou, o sufi havia morrido. “Agora nunca saberei a Verdade”, gemeu o que gostava de resolver problemas. Nesse momento apareceu o discípulo mais avançado do sufi e lhe disse: - Se estás te preocupando com o significado secreto de IHMN, eu te direi. São as iniciais da frase persa “In Huruf maani nadarand”. Estas letras carecem de significado real. - Mas por que me deu ele esta tarefa? - gemeu o homem. - Porque quando um burro vem a ti, lhe dás forragem. Dela ele se alimenta, chame-a como quiser chamar. Os burros provavelmente pensam que estão fazendo algo muito mais transcendental do que comer forragem.

O MÉTODO

Certo mestre sufi estava explicando como havia sido desmascarado um falso sufi. - Um verdadeiro sufi mandou um de seus discípulos para servir ao impostor. O discípulo obedeceu, e o serviu dia e noite. Logo todos começaram a ver como agradava ao impostor estas atenções, e as pessoas começaram a abandoná-lo, até que se encontrou completamente só. Uma das pessoas que escutava esta história se disse a si mesmo: - Que idéia maravilhosa... Vou fazer o mesmo... Foi onde se encontrava um santão (homem hipócrita que aparenta santidade), que estava na moda, suplicando apaixonadamente ser recrutado como discípulo. Após três anos, sua abnegação era tal que chegou a congregar centenas de devotos. “Este sábio deve em verdade ser um grande homem”,

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se diziam uns aos outros, “ para inspirar tal lealdade e sacrifício por parte de seu discípulo”. Por fim, o homem voltou ao sufi, de quem havia escutado a história, e lhe explicou o sucedido: - Suas histórias não são dignas de crédito - o disse - porque quando tentei colocar em prática sua teoria, aconteceu o contrário do esperado. - Ah - exclamou o sufi - só havia um erro em suas tentavas de aplicar métodos sufis : você não é um sufi.

ABU TAHIR

Mir Abu Tahir atraiu muitos estudantes por meio de seus brilhantes discursos e pelas cartas que fazia circular, as quais eram favoravelmente comentadas pelos maiores pensadores da época. Mas quando as pessoas se agrupavam para ouvi-lo falar pessoalmente, só o escutavam repetir uma só frase: - O desejo do mérito, não do homem. Esta admoestação foi feita várias vezes por dia, durante cinco anos. Alguns foram até o sábio Ibriqi, e lhe suplicaram que lhes desse alguma explicação da estranha conduta de Abu Tahir. Ibriqi disse: - Vocês se queixam de que el Mir diz algo com regularidade. Mas não se queixam de que o sol saia e se oculte todos os dias. Sem dúvida, estas duas coisas são o mesmo. Como o sol, el Mir está fazendo algo valioso. Se vocês não fazem uso dele, ele deve continuar ‘brilhando’ para benefício daqueles que podem beneficiar-se ou para vocês quando puderem se beneficiar.

CONTENÇÃO Um dervixe viajante relata: - Visitei um certo sheik que era um iman para pessoas de caráter muito diversificado. Eu lhe disse: “Como você consegue tolerar a companhia de pessoas tão vis. Eles não se tem beneficiado por estar próximo de você, nem foram atraídos a você por suas virtudes, porque segundo sua própria confissão, só buscam poderes que não possuem os demais homens”. Nunca esquecerei o que ele me disse: - Amigo, se todas as serpentes do mundo estivessem soltas matando, e nenhuma fosse desviada por promessas vãs, que evitasse que pusessem em prática sua maldade, não mais haveria ser humano que estivesse vivo”.

PENEIRAR Oh! Pedante. Tu examinas, durante toda tua vida, os escritos e ditos dos sábios. Mas, antes de tudo, aprende uma coisa: estás usando uma peneira que deixa passar a casca e descarta o grão: O trigo. ( Shab-Parak)

O MESTRE PERFEITO

Certo homem decidiu que buscaria o mestre perfeito. Leu muitos livros, visitou sábios e mais sábios, escutou discursos e praticou incansavelmente, mas sempre se sentia inseguro e cheio de dúvidas. Após vinte anos conheceu um homem no qual cada palavra e ação correspondia a sua idéia do homem completamente realizado. O viajante não perdeu tempo.

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- Você me parece o mestre perfeito - lhe disse. - Se você o é, minha viajem acabou. - Certamente dizem que o sou - respondeu o mestre. - Então, o suplico que me aceite como discípulo. - Isso não o posso fazer - disse o mestre -, porque enquanto você deseja o mestre perfeito, este, por sua vez , só aceita ao discípulo perfeito.

DAR E TOMAR

O chefe toma menos do se lhe dá e dá mais do que lhe tomaram. ( Kitab-i-Amu-Daria )

A PROVA DA RAPOSA Havia uma vez uma raposa que se encontrou num bosque com um jovem coelho. O coelho lhe disse: - Quem és? A raposa respondeu: - Sou uma raposa e se quiser posso te comer. - Como podes provar que és uma raposa? - perguntou o coelho. A raposa não soube o que dizer, porque no passado, os coelhos sempre haviam corrido sem fazer tais perguntas. Então o coelho disse: - Se podes mostrar-me uma prova escrita de que és uma raposa, então acreditarei. Foi assim que a raposa correu até o leão, o qual lhe deu um certificado de que era uma raposa. Quando voltou ao local onde o coelho o esperava, a raposa começou a ler o documento. Ela gostou tanto do documento que se detinha com deleite a cada parágrafo. Enquanto isso, ao captar desde as primeiras linhas o conteúdo da mensagem, o coelho se meteu num buraco e nunca mais foi visto novamente. A raposa voltou até o leão e viu que um veado falava com ele. O veado dizia: - Quero uma prova escrita de que és um leão. O leão disse: - Quando não tenho fome, não necessito me incomodar. Quando tenho fome não necessitas nada escrito. A raposa disse ao leão: - Por que não me dissestes que fazes isto quando te pedi o certificado para o coelho? - Meu querido amigo - disse o leão - deverias ter me dito que um coelho te havia pedido. Eu pensei que era para algum estúpido ser humano, de quem alguns destes animais idiotas aprenderam este passatempo.

OPORTUNIDADE

As palavras : “ Tu tens oportunidade”, dos lábios de quem possui autoridade, valem mais que cem vezes “tu és o maior homem do mundo” ditas por um tonto. (Nuri-Falaki)

O EMPRÉSTIMO

Um homem dizia a seus amigos numa casa de chá: - Emprestei uma moeda de prata a uma pessoa, e não tenho testemunhas. Temo que quem a recebeu negue que eu a tenha posto em suas mãos. Seus amigos se compadeceram, mas um sufi, que estava sentado em um canto, levantou a cabeça e disse: - Convida-o aqui para tomar um chá e diz-lhe, na presença de toda essa gente, que lhe emprestastes

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vinte moedas de ouro. - Como? Mas eu só lhe emprestei uma moeda de prata! - É exatamente isto que ele te responderá indignado - disse o sufi - e todos poderão ouvir isto dos lábios dele. Não querias testemunhas?

TECENDO LUZ Perguntaram a Firmani: - Como soubeste que tal homem era um malvado? Recusastes conversar profunda-mente com ele enquanto esteve aqui, apesar de todos dizerem que ele era um santo. Firmani disse: - Se um estranho se dirige a pessoas comuns e diz: “A luz se faz tecendo. Eu teci toda a luz que há e que houve”. De que se dariam conta? Eles responderam: - Se dariam conta de que o que diz não é verdade. Firmani disse: - Da mesma forma, quando um indivíduo perverso entra em contato com um homem honesto, não é difícil para ele julgá-lo, sem importar o que imaginem ou digam as pessoas.

EXPLICAÇÃO

A suposição de que alguém de valor pode explicar-se a si mesmo completamente e com lucidez, no tempo que lhe é dado por aqueles que querem aprender o que ele sabe, é das duas uma: uma piada ou uma estupidez. ( Shab- Parak)

DIA E NOITE

Um homem letrado disse a um sufi: - Vocês os sufis dizem freqüentemente que nossas perguntas lógicas são incompre-ensíveis para vocês. Pode me dar um exemplo do que lhe parecem? O sufi respondeu: - Aqui tens um exemplo. Uma vez, estava viajando de trem e passamos por sete túneis. Na minha frente estava sentado um camponês que obviamente nunca havia viajado em um trem. Depois do sétimo túnel, o camponês se dirigiu a mim e disse: “Esse trem é demasiado complicado. No meu burro posso chegar em minha aldeia em um só dia. Mas por trem, que parece viajar mais rápido que o burro, não pudemos chegar ao meu lugar, apesar do sol ter saído e se ocultado sete vezes.

MANCHADO

Conta-se que um homem foi à reunião do mestre Baqi-Billah, de Deli, e lhe disse: - Tenho estado lendo os famosos versos do mestre Hafiz: “Se teu mestre te pede para manchar com vinho tua almofada de oração, obedece-lhe”, mas não me é fácil fazê-lo. Baqi-Billah disse: - Viva distante de mim por algum tempo e te ilustrarei o assunto. Depois de um período considerável de tempo, o discípulo recebeu uma carta do sábio. Dizia: “Toma todo o dinheiro que tens e dê-lhe ao porteiro de qualquer casa de prostituição”. O discípulo ficou assombrado e pensou que o mestre era uma fraude. Sem dúvida, depois de lutar consigo mesmo durante alguns dias, foi à casa de má reputação mais próxima, e deu ao porteiro todo o dinheiro que tinha. - Por esta quantia de dinheiro - disse o porteiro - te indicarei a jóia mais apreciada de nossa coleção, uma mulher que nunca foi tocada. Tão logo entrou no aposento, a mulher que ali estava lhe disse: - Enganaram-me para trazer-me a esta casa e aqui me retêm pela força e com ameaças. Se teu sentido de justiça é mais forte que tua razão para vir aqui, ajude-me a escapar.

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Então o discípulo soube o significado do poema de Hafiz: “Se teu mestre te pede para manchar com vinho tua almofada de oração, obedece-lhe”

WAHAB IMRI

Um homem visitou a Wahab Imri, e lhe disse: - Ensina-me a ter humildade. Wahab respondeu: - Não posso fazê-lo, porque a humildade é teu próprio mestre. Se aprende praticando-a. Se não podes praticá-la, não poderás aprender a tê-la. Se não podes aprender a tê-la, é que realmente não queres aprendê-la em sua forma interior.

O VILÃO E O DERVIXE

Certo dervixe planejou a forma na qual daria uma lição. Pagou um ator para que se instalasse como mestre religioso em um povoado. - Agrega todos os discípulos que puderes - lhe disse - pretendendo ser um homem de grande santidade. Quando eu chegar te desmascararei. As pessoas, quando as terás mostrado a superficialidade de suas crenças, se darão conta de que foram enganadas e escutarão meus ensinamentos. Alguns meses depois, o dervixe entrou no povoado e se dirigiu à casa do místico. Ali estava o ator rodeado de discípulos que o adoravam, o reverenciavam, davam-lhe presentes, e louvavam cada uma de suas palavras. O dervixe começou a falar: - Senhores! Saibam que vim para explicar-lhes tudo. Eu enviei este homem para provar como as pessoas crêem em qualquer coisa se assim o quiserem. Agora, em lugar disto, lhes darei o ensinamento verdadeiro. O ator não disse absolutamente nada. As pessoas pegaram o dervixe e o levaram a um manicômio, como se estivesse louco. Uma noite o ator foi à janela gradeada da cadeia e lhe disse: - Ainda que na aparência eu era um vagabundo, tive sabedoria suficiente para aceitar teu conselho. Ainda que, em tua própria opinião, fosses um homem sábio, fostes suficientemente tolo para crer em teus próprios planos. Um plano fraudulento só beneficiará aos embusteiros, e um plano sábio só aos sábios.

ESPERANÇA

Havia uma vez um rei, descendente de uma antiga e poderosa casta, que havia sido despojado do trono pela adversidade e estava fugindo de seus inimigos. O rei estava ensopado pela chuva, em meio de um pântano deserto, quando chegou a uma pequena cabana de pastores. Pensou em descansar ali por algum tempo. Mas, quando entrou, encontrou dois pastores que lhe haviam antecipado, e descansavam envoltos com mantas para proteger-se do frio. Amavelmente lhe deram as boas-vindas e compartilharam com ele um pouco de queijo e cebola, que era a única comida de que dispunham. O rei disse: - Algum dia, quando retomar meu reino, os pagarei com moeda própria de um rei. Acontece que, embora os dois pastores houvessem oferecido comida ao rei e tivessem sido igualmente generosos, não se comportavam da mesma maneira em tudo. E assim o primeiro pastor começou a dizer a todos que ele era melhor do que um nobre, pois havia dado comida a um rei, quando ninguém mais o podia fazer. Mas o segundo pastor, refletindo, se disse a si mesmo: - O ter estado na cabana e haver tido um pouco de comida foram simples acidentes. O haver oferecido comida ao rei foi uma ação normal. Mas o rei, com uma generosidade realmente nobre, quis interpretar estes fatos como algo de mérito. Agora eu devo me inspirar em seu exemplo e fazer-me digno de tal nobreza. Dois ou três anos depois, o rei recuperou seu reino e mandou chamar os pastores. A cada um deu valiosos presentes, e os dois obtiveram posições poderosas na corte. Mas o primeiro pastor, não tendo feito nenhum esforço para melhorar-se e preparar-se, não tardou

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a tomar parte em uma intriga, e foi executado como castigo por sua conspiração. Ao contrário, o segundo pastor trabalhou tão bem e com tal lealdade que quando o rei chegou a avançada idade, foi nomeado e aceito como seu sucessor.

QUERER

Se queres estar com o mestre quando ele quer que estejas afastado dele, deves obedecê-lo e deixá-lo. Se discutes isto, és mais que desobediente. ( Halqavi)

O ARQUEIRO O campeão dos arqueiros do povoado de Salimia se queixava de não ter rival. - Estas pessoas, os salimitas, não são arqueiros e por isso não podem julgar minha grandeza. Sempre repetia isto a qualquer um que o quisesse escutar, e convenceu a todos de sua infelicidade. Um dia um certo mestre sufi passava pelo povoado e se deteve para tomar um pouco de chá. Na casa de chá alguém lhe contou o sofrimento do arqueiro. - Ele pode crer que está sofrendo - disse o sábio -, mas de fato o Altíssimo tem sido muito generoso com esse homem. Se ele estivesse colocado entre arqueiros, estaria com o medo constante de ser vencido. Se realmente necessitasse de adversários da mesma categoria dele, nada o teria impedido de encontrá-los. Até que o homem - e sua capacidade de ouvir - possam escutar a mensagem sem palavras e esquecer a mensagem verbal, permanecerá prisioneiro.

MAHMUD E O DERVIXE

Mahmud Ghazna caminhava um dia pelo seu jardim, quando tropeçou em um dervixe cego que dormia ao lado de um arbusto. Despertando, o dervixe gritou: - Desajeitado, idiota, não tens olhos para assim tropeçar nos filhos do homem? O acompanhante de Mahmud, que era um de seus cortesãos gritou: - Tua cegueira é somente igualada por tua estupidez! Posto que não podes ver, deverias ter muito mais cuidado em saber a quem estás acusando de negligência. - Se com isso queres dizer que não devo criticar a um sultão, és tu o que tens de dar-se conta de sua superficialidade. Mahmud, impressionado pelo fato do cego saber que estava em presença de um rei, disse suavemente: - Oh, dervixe, por que um rei escutaria teus insultos? O dervixe disse: - Precisamente porque proteger as pessoas, de qualquer categoria que seja, da crítica que lhes é devida, pode ocasionar sua queda. O metal polido é o que brilha mais reluzente, a navalha que foi afiada pela pedra é a que melhor corta, e o braço exercitado é o que melhor pode levantar peso.

ETAPAS

Primeiro pensei que um mestre devia ter razão em tudo. Depois imaginei que meu mestre estava equivocado em muitas coisas. Depois me dei conta do que estava bem e do que estava mal. O que estava mal era permanecer em qualquer das duas primeiras etapas. O que estava bem era transmitir isso a todos. ( Ardabili )

O QUE TEM DENTRO

Certo dervixe Bektashi era respeitado por sua devoção e aparente virtude.

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Sempre que alguém lhe perguntava como se havia tornado tão santo, respondia: - Eu conheço o que há dentro do Corão. Um dia, num café, acabava de dar esta resposta a alguém que lhe havia perguntado, quando um imbecil lhe perguntou: - Bem, que há dentro do Corão? O Bektashi disse: - No Corão tem duas flores prensadas e uma carta do meu amigo Abdullah.

SÃO E ENFERMO Um buscador errante viu um dervixe em uma casa de descanso onde se encontrava uma multidão de mestres. - Tenho estado em mil climas e escutado os ensinamentos de muitos mestres. Tenho aprendido a distinguir quando o mestre não é um homem espiritual. Não posso dizer quem é um guia genuíno ou como encontrá-lo, mas ter cumprido a metade da tarefa é melhor do que não ter feito nada. O dervixe rasgou as roupas e gritou: - Homem miserável! Converter-se em um expert do inútil é como poder distinguir maçãs podres sem aprender as características das maçãs sãs. Mas existe uma possibilidade pior do que esta para ti. Tome cuidado para não ser como o doutor do conto: “Para certificar-se do conhecimento de um certo médico, um rei mandou que ele examinasse a um número de pessoas sãs. A cada uma o doutor deu medicamentos. Quando o rei lhe chamou e o acusou por seu engano, o sanguessuga respondeu: - Grande Rei, tenho visto somente enfermos durante tanto tempo, que comecei a imaginar que todos o estão verdadeiramente e confundi os olhos brilhantes da saúde com os sintomas de febre.”

GUISADO DE CORDEIRO

Em certa ocasião, Bahaudin Shah pronunciou um discurso sobre os princípios e práticas dos sufis. Certo homem, que acreditava que era esperto e que poderia se beneficiar por criticá-lo disse: - Se este homem ao menos dissesse algo novo. Essa é minha única crítica. Bahaudin soube disto e convidou ao crítico para comer. - Espero que aprove meu guisado de cordeiro - lhe disse. Quando comeu o primeiro bocado, o hóspede pulou gritando: - Está querendo me envenenar! Isto não é guisado de cordeiro! - Claro que o é! - disse Bahaudin-. Mas posto que você não gosta das velhas receitas, tratei de preparar algo novo. Isto, na verdade, contem cordeiro, mas também tem uma boa quantidade de mostarda, mel e vomitivo.

ENCONTRANDO FALHAS

Isa Ibn Abdulwahab Al-Hindi manteve largas e freqüentes conversações durante anos, sobre qualquer tema imaginável. Um dia, certo sheik muito respeitado foi visitá-lo e lhe disse: - Meu coração está pesado, porque me disseram que me tens criticado em muitas ocasiões. Isa disse: - Eu disse vinte vezes que há grande diferença entre tuas palavras e tuas ações. Podes duvidar de que isto é verdade? O sheik respondeu: - Gostaria de escutar as bases sobre as quais fundas minha culpa. Isa falou: - As conhecerás no momento em que reconheças que em duzentas ocasiões o tenho louvado diante das mesmas pessoas que agora, em nome da exatidão, busca separar-nos. Dizer a metade da verdade é igual a não dizer nada. Dizer somente a décima parte da verdade é igual a mentir.

ESCUTAR

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Um visitante que havia chegado de um país distante, disse a Bahaudin Shah: - Permita que me sente em seu durbar e escute suas palavras, porque se diz que na verdade a leitura não é substituto da palavra. Bahaudin disse: - Ah! Se não você não é surdo, é triste que tenha tido que esperar tanto tempo para dar-lhe as boas vindas. Verás que na atualidade já não mais dou conferências. O visitante perguntou por que. Bahaudin disse: - Não mais tenho dado conferências desde o dia em que veio um grupo de pessoas meio surda. Eu lhes disse: “Não sejam como cachorros ou porcos” e, quando se foram, saíram discutindo se eu havia dito “seja um cachorro”...ou até “comam carne de porco...”. Com a palavra escrita isto não é possível. Se alguém está cego, sempre encontra outro que possa ler para ele.

O ELEFANTE

Havia certa vez um filhote de elefante que escutou alguém dizer “olhem, ali vai um rato”. A pessoa que o disse estava realmente vendo uma rato, mas o elefante pensou que estavam se referindo a ele. Haviam muito poucos ratos naquele país e, em todo caso, preferiam ficar em seus esconderijos e suas vozes não eram muito fortes. Mas o filhote de elefante gritou por todas as partes, maravilhado por sua descoberta: “sou um rato”. Disse-o tão forte, tão freqüentemente e a tantas pessoas que, acreditem ou não, na atualidade existe um país no qual quase todas as pessoas crêem que os elefantes e particularmente os filhotes de elefante, são ratos. É verdade que, de tempos em tempos, os ratos tem tentado argumentar com aqueles que sustentam a crença das maiorias, mas sempre se lhes têm feito fugir. Traduzido do livro “Sabiduria de los Idiotas”, Idries Shah, publicado pelas Edições Tarika, México em setembro de 1987.