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PENTAGRAMA SUMÁRIO 2 EXPERIÊNCIA E REVELAÇÃO SABEDORIA PELA VIVÊNCIA 6 WITTGENSTEIN E A RELIGIÃO 11 KRISHNAMURTI , FILÓSOFO DO ESPÍRITO 17 BUSCAR DEUS É TRANSCENDER O HOMEM 23 ZIGMUNT BAUMAN E O PARADOXO DO AMOR 28 SOLIDÃO DA ALMA E DA PERSONALIDADE 32 O DRAMATURGO HENRIK I BSEN - PRECURSOR DE UMA NOVA ÉPOCA 38 ERUDIÇÃO OU SABEDORIA VERDADEIRA? ANO 28 N. 6 DEZEMBRO 2006 Capa: Óleo sobre tela. E. de Keyser, 1989. L S Tema deste número: O que é filosofia? No ser humano podem estar presentes sabedoria e compreensão, pois o homem original estava intimamente ligado à onisciência. A faculdade de compreensão do homem tríplice original podia reagir à onisciência – e poderá ser renovada mediante transfiguração. Por isso J. van Rijckenborgh no artigo “Erudição ou verdadeira sabedoria” compro- va: “Entre os conceitos saber e sabedoria há uma diferença grande e intransponível. Para o buscador no caminho espiritual é importante reconhecer que a sabedoria divina nunca é o mesmo que conhecimento, que pode ser obtido através do acúmulo de informações”. Os cinco filósofos e pensadores que iremos passar em revista nesta edição, Espinosa, Krishna- murti, Zygmunt Bauman, Wittgenstein e Deleuze, chegaram à conclusão, cada um a seu modo, que o conhecimento não leva à sabedoria. Eles permitem reconhecer que o conhecimento em si não traz a compreensão da vida, que a sabedoria apenas nasce da experiência e que o que mais falta ao homem é o “amor”, que pode reconduzir ao ponto de partida.

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PENTAGRAMA

SUMÁRIO

2 EXPERIÊNCIA E

REVELAÇÃO

SABEDORIA PELA

VIVÊNCIA

6 WITTGENSTEIN E A

RELIGIÃO

11 KRISHNAMURTI, FILÓSOFO DO ESPÍRITO

17 BUSCAR DEUS É

TRANSCENDER O HOMEM

23 ZIGMUNT BAUMAN E O

PARADOXO DO AMOR

28 SOLIDÃO DA ALMA E DA

PERSONALIDADE

32 O DRAMATURGO HENRIK

IBSEN - PRECURSOR DE

UMA NOVA ÉPOCA

38 ERUDIÇÃO OU SABEDORIA

VERDADEIRA?

ANO 28 N. 6DEZEMBRO 2006

Capa: Óleo sobre tela.

E. de Keyser, 1989.

L STema deste número:

O que é filosofia?

No ser humano podem estar presentes sabedoria e compreensão, pois

o homem original estava intimamente ligado à onisciência. A faculdade

de compreensão do homem tríplice original podia reagir à onisciência

– e poderá ser renovada mediante transfiguração. Por isso J. van

Rijckenborgh no artigo “Erudição ou verdadeira sabedoria” compro-

va: “Entre os conceitos saber e sabedoria há uma diferença grande e

intransponível. Para o buscador no caminho espiritual é importante

reconhecer que a sabedoria divina nunca é o mesmo que conhecimento,

que pode ser obtido através do acúmulo

de informações”. Os cinco filósofos e

pensadores que iremos passar em

revista nesta edição, Espinosa, Krishna-

murti, Zygmunt Bauman, Wittgenstein e

Deleuze, chegaram à conclusão, cada um a

seu modo, que o conhecimento não leva

à sabedoria. Eles permitem reconhecer

que o conhecimento em si não traz a

compreensão da vida, que a sabedoria

apenas nasce da experiência e que o que mais

falta ao homem é o “amor”, que pode reconduzir

ao ponto de partida.

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ara constituir essa imagem total, queé inevitavelmente subjetiva, a pessoase serve, evidentemente, tanto de seussentimentos como de sua inteligência.A imagem total somente atinge seuobjetivo quando, além de um inventá-rio do mundo exterior, a pessoa conse-gue captar também as relações subja-centes e suas leis efetivas. A necessida-de de conhecer o mundo, de penetrá-lo e de ordená-lo, tem como raiz a lutapela existência e a tendência de quererprolongar a vida pelo maior tempopossível. As reflexões sobre o sentidode nossa presença neste mudo estãoligadas a uma segunda necessidade: oimpulso de querer decifrar o “misté-

rio da vida”. Existem as questões: “Co-mo surgiu o mundo?”, “Será que eleoculta um objetivo superior?”, “Qualé a posição dos seres humanos nestemundo, e quais são os seus deveres?”

Do ponto de vista histórico as pes-quisas científicas fundamentais justifi-cam-se pelo fato de perscrutar os fun-damentos da criação. Segundo RobertFludd (1574-1637), cientista do séculoXVII, o impulso de pesquisar e sondaras “obras maravilhosas de Deus” eraclaramente a base de todos os esforçoscientíficos. O Criador é, evidente-mente, a causa primeva.

Também na pesquisa científica abase é o organismo sensorial natural,

Como complemento da experiência sensorial de seu meio ambiente o ser humano dispõe da

capacidade de ordenar e armazenar todas as impressões e reuni-las num “todo” experimentado

de modo pessoal. Quando ele dá suficiente atenção a determinado aspecto de sua vida, todas

as peças do quebra-cabeça finalmente se encaixam em seu lugar.

2

Experiência e revelação

Sabedoria pela vivência

P

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porém o cientista vai um passo além.As ciências naturais devem seu suces-so, em grande parte, à expansão doorganismo sensorial. É possível, porexemplo, servir-se dos fenômenoselétricos para registrar as batidas docoração num eletrocardiograma. Atémesmo a confiabilidade dos boletinsmeteorológicos diários deve-se àinterpretação de inúmeros aparelhosde medida de que os meteorologistasdispõem hoje em dia. A divisa dosfísicos é: “Medir é saber”.

Mas, cada vez mais, parece que avida não se deixa “medir” facilmente.Os pragmáticos afirmam, também,que é preciso dar preferência à pes-quisa científica aplicada, deixando emsegundo plano a pesquisa fundamen-tal. E isso faz que ela seja colocada aserviço da luta pela vida, pela preser-vação do indivíduo e da coletividade.Somas enormes são destinadas às pes-quisas médicas e farmacêuticas, às

novas energias, às telecomunicações eaos transportes. Somente na astrono-mia e nas viagens espaciais pode-seainda verificar que a satisfação da“curiosidade” é mais importante queo uso imediato. Refletir sobre os fun-damentos da criação é tarefa relegadaaos filósofos. Para muitos cientistasde orientação técnica “hard”, a filoso-fia continua “soft”. Além disso, comoa filosofia se mantém sempre amesma, ela sempre está se repetindocom citações de Sócrates ou de Platãoem notas ao pé da página! Por issodenomina-se a pesquisa de “funda-mental” se ela não pode ser utilizadade maneira imediata. E supõe-se queela crie os fundamentos para inova-ções futuras. Entre elas, é citada, tam-bém, a pesquisa sobre os fundamen-tos pluridimensionais da criação.Esses pensadores modernos, quefazem a ligação entre diversas discipli-nas científicas, perscrutam os pró-

Centro: Da fonte

inesgotável de luz

nasce a criação.

À direita: Fiat lux –

faça-se luz.A pomba

simboliza o Espírito

de Deus, princípio-

guia de todo desen-

volvimento. Robert

Fludd, Utriusque

Cosmi...[etc.]

Oppenheim, 1617.

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prios princípios da existência que, pa-ra eles, não são obrigatoriamente ma-teriais. Livros como o de Bill Bryson– Uma breve história de quase tudo1 –e o filme de William Arntz – Quemsomos nós? – nos dão uma imagemfascinante a respeito desse assunto.

O pensamento produtivo

A realidade comum parece ser umpouco mais conservadora. Ninguém étão ingênuo a ponto de achar que aciência só trouxe melhorias. Se tudopode ir cada vez mais depressa, então,temos também de ir cada vez maisdepressa! Hoje, a produtividade porhabitante é a medida da civilização.Mas estamos falando do lado materialda vida, do registro do “lucro”. Ora,em uma sociedade em que o homem ea mulher trabalham, está havendocada vez menos tempo para os conta-tos sociais espontâneos; e as criançasde tenra idade estão inseridas em ummodelo rígido, ao mesmo tempo emque vão sendo cada vez mais largadasem lugares fora de suas casas, abando-nadas nesses locais, e depois manda-das de volta para seus lares.

“Vivemos para produzir. A abor-dagem produtiva é a melhor. A escolaé uma empresa produtiva que forneceo ensino; a clínica é a empresa que temo trabalho de curar. O estudante cons-ciente escolhe seus estudos em funçãodas especificidades da produção; opaciente escolhe sua clínica em seupaís ou no estrangeiro.” Mas o que,sem dúvida, começou com a arte denão perecer pela penúria, agora pareceter se transformado na arte de nãoperecer pelo excesso.

Se no passado o homem se entedia-va pela falta de estímulos de seu meioambiente, hoje ele deve se defendercontra a avalanche de informações

que exigem sua atenção, sobretudo seele se utiliza das mídias modernas.

De modo paradoxal, mais informa-ção não leva necessariamente a umavisão de mundo mais completa oumais profunda – e o resultado óbvio éo caos mental. Para conservar umavisão geral, as pessoas devem isolar-sedo assédio de informações de maneiraseletiva e não rigorosa.

Perceber com os olhos do coração

Possuímos critérios para selecionaras informações? Quais são os critériosque a informação deve seguir para teralguma penetração? O critério daexperiência? Assim, não poderá acon-tecer de deixarmos passar apenas as“informações conhecidas”?

Quanto à luta pela vida, a experiên-cia pode ser o melhor mestre, mas asolução do mistério da vida já não éacessível a ela. Não seria exatamente oreconhecimento das falhas da expe-riência que poderia nos levar a veresse mistério de outras maneiras, demodos completamente diferentes? E,assim, essas novas maneiras de veresse assunto não poderiam nos abrirpara revelações que substituiriam asexperiências?

A “revelação” toma o lugar da infor-mação: geralmente é um “aviso” quenão podemos nem verificar nem me-dir com nossas faculdades naturais.Sob essa classificação podemos indi-car o Apocalipse de João, as revela-ções de Hermes Trismegisto provin-das das antigas tradições egípcias, mastambém os ensinamentos de Pitágo-ras e de Platão, as visões de JacobBoehme, os conceitos de Paracelso.Todas essas obras dão testemunho deuma realidade “metafísica” e “supra-sensorial”. Elas nos estimulam a apren-

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der a “perceber com os olhos do cora-ção”. “Dirige agora o teu coração pa-ra a luz e conhece-a”, recomenda Pi-mandro a Hermes. Dirigir o coraçãopara a luz... No coração do ser huma-no está um ponto por meio do qual ocontato com o mundo supra-senso-rial pode ser realizado. E esse mundocom o qual temos tanta intimidadepor meio de nossos sentidos não pas-sa de uma farsa, de um artifício, umengodo – assim testemunham os gran-des mestres do mundo. E mais ainda:aqui tudo é cambiante e efêmero.

No coração habita a “centelha daalma”: uma centelha do espírito divi-no, uma chama da luz – aquela que osFilhos originais de Deus possuem. E éessa centelha de luz que pode se tor-nar um órgão sensorial para a vidasupra-sensorial. Antes de vivenciar-mos o supra-sensorial de primeiramão, portanto antes de ver “face a fa-ce”, a atividade da centelha de luz per-mite perceber a justeza das revelações.

A verdadeira fé

Podemos vivenciar essa atividadena felicidade que emana da leitura doTao Te King de Lao Tsé. Por maisparadoxal que essa obra clássica possaparecer para a razão, ela nos faz ouvirdentro de nós uma voz que logo asso-ciamos à Sabedoria Universal – e,assim, continuamos a ler, fascinados.

A verdadeira fé baseia-se na pre-sença ativa da centelha de luz e pro-vém do mais profundo de nosso ser.Quem recebe uma revelação e a reco-nhece interiormente liberta-se detodas as autoridades. Podemos afir-mar que, embora a experiência permi-ta concluir que o mundo dos sentidosdá vida a inúmeras interpretações, elejamais poderá levar a uma interpreta-ção real e definitiva.

O caminho das experiências podelevar o ser humano a se tornar desgas-tado e esgotado espiritualmente, oumaduro e aberto. No último caso,permanece ativo um anseio interior.Quando verificamos, por fim, quetodas as coisas neste mundo conti-nuam se repetindo infinitamente eque elas devem ter mais sentido doque aparentam, é possível que esco-lhamos, com espontaneidade e avidezpara aprender, um caminho, quemarca o início de um adeus definitivoàs experiências meramente sensoriais.Esse caminho encerra a libertação daroda do nascimento da vida e damorte, tal como Buda a denomina.Pode ser que nos tornemos um alunoe, como Hermes, invoquemos Piman-dro: “Desejo ser instruído a respeitodas coisas essenciais, compreendersua natureza e conhecer Deus. Oh,quanto eu desejo entender!” E Pi-mandro responde: “Fixa em tua cons-ciência o que queres aprender e eu teinstruirei”. E Hermes continua:“Com essas palavras, o seu aspectomudou e logo a seguir tudo se tornouimediatamente claro para mim; tiveuma visão prodigiosa; tudo se trans-formou numa serena e deleitosa luz, eeu me alegrava sobremaneira com asua visão”. 2

1 Bryson, B., Uma breve historia de quase

tudo. São Paulo: Companhia das Letras,

2005.

2 Rijckenborgh, J. van, A Gnosis original

egípcia, t. 1, cap. IV, Jarinu: Editora

Rosacruz, 2006.

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problema mais importante já não era arevelação religiosa, mas o lugar da religiãodentro de uma concepção de mundo gerale racional. No início da era cristã e durantea Idade Média, filosofia e teologia estavamestreitamente ligadas, e a revelação tinha odomínio sobre a razão. Nos tempos

modernos, esses dois assuntos se separarame cada um adotou uma forma própria deresponder a essas duas questões: a revelaçãoe a razão.

No século XVII, Blaise Pascal tornou-secélebre, entre outras coisas, pela distinçãoque estabeleceu entre “o deus dos filóso-

O

A tradição ocidental testemunha de uma

relação complexa entre filosofia e religião.

A partir da ascensão do cristianismo,

a filosofia esteve por muito tempo a serviço

da teologia. No século XVI, com a

emergência do pensamento científico,

iniciaram-se os tempos modernos que

viram a filosofia se distanciar da teologia.

Não que o tema “religião” desaparecesse

da filosofia, mas esta última se desassociou

inteiramente da teologia.

Wittgenstein e

a religião

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fos”, conceito que tinha por objeto oraciocínio, e “o deus pessoal”, aceito pelareligião. Pascal constatou que essas duasnoções seguem caminhos radicalmentediferentes: a razão e a revelação.

Nos séculos seguintes essa distinção tor-nou-se mais precisa. Certos filósofos nãoaprovavam a necessidade de dar à religiãoum lugar em sua concepção de Universo;para outros, ela era uma seqüência lógicado pensamento científico e de seus avan-ços. Outros ainda se lançaram em polêmi-cas. Um exemplo famoso foi Nietzsche,que proclamou: “Deus está morto”. Dissotudo resultou que atualmente o conceitode deus e a experiência da fé permanecem àmargem dos sistemas filosóficos.

Nessas circunstâncias não se poderiaesperar encontrar o tema religião em pri-meiro plano na obra de um dos mais famo-sos filósofos do século passado, LudwigWittgenstein. Esse filósofo é, sobretudo,conhecido pelos seus trabalhos no âmbitoda lógica formal e da filosofia da lingua-gem. Ele é considerado um aliado impor-tante pelos lógicos positivistas, reputadospor sua rejeição a toda experiência que vá

além dos sentidos comuns e por sua abor-dagem científico-materialista. As duasobras maiores de Wittgenstein, Tractatuslogico-philosophicus e Philosofische unter-suchungen, aparentemente não dissertamsenão sobre a lógica, a linguagem, o conhe-cimento, as matemáticas e outras matériassimilares. Então por que falar sobre ele e areligião? Vejamos de maneira sumária suavida.

Ludwig Wittgenstein nasceu em Vienaem 1889, sendo o oitavo e último filho deLeopoldine Kalmus e Karl Wittgenstein,um dos mais prósperos industriais damonarquia austro-húngara, pertencente auma família que desempenhou grandepapel na vida cultural vienense. Tanto afamília Wittgenstein como a família Lud-wig eram de confissão judia, mas no séculoXIX eles se identificaram com o cristianis-mo e a ele se converteram. O jovem rapazrecebeu uma educação correspondente àsua época e à sua condição, incluindo a ins-trução religiosa. Contudo, a família Witt-genstein não era praticante, e Ludwig logose afastou da fé oficial.

“Oficial” é uma palavra-chave nesseacontecimento. Durante toda a sua vidaWittgenstein deu provas de princípiosmorais muito firmes e sempre lutou com oproblema de saber o que a religião deveriae poderia ser ou não ser. Bertrand Russel,seu professor em Cambridge antes da Pri-meira Guerra Mundial, conta em sua auto-biografia que, uma tarde, Wittgenstein fez-lhe uma visita e adentrou a sala em silêncio.Quando Russel finalmente perguntou-lhesobre o que ele pensava, se na lógica ou em

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À esquerda: Ludwig Wittgenstein, pintura a óleo segundo uma

foto por S. Martin, 1928.

Acima: Retrato de Kierkegaard por seu sobrinho N.C.

Kierkegaard. As concepções de Kierkegaard infuenciaram os

filósofos do século XX, sobretudo os existencialistas. Segundo

ele, nenhum sistema filosófico consegue explicar as experiências

interiores únicas do indivíduo.

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seus pecados, Wittgenstein respondeu:“Em ambos”, e continuou a caminhar. As experiências durante a guerra, da qualparticipou como soldado voluntário,influenciaram-no fortemente. Ele leu Meupequeno evangelho de Tolstói e mais tardeconfiou a Paul Engelmann que esse livro“lhe salvara a vida”. Quando Russel oreencontrou após a guerra de 1919, descre-veu-o numa carta a Ottoline Morredlecomo um “místico” que lê Kierkegaard eAngelus Silésius.

Em seguida, ao longo de sua vida, Witt-genstein se ocupou de religião, porémjamais no contexto de uma igreja oficial,nem com base num ensinamento particular.Alguns de seus alunos se converteram aocatolicismo e mesmo respeitando sua moti-vação, ele confessou a um de seus amigosque “jamais poderia crer em tudo o queeles crêem”. Para ele, não são os dogmas eas crenças que constituem a essência dareligião, e sim a prática e os atos.

Visto por esse ângulo, os trabalhos deWittgenstein mostram uma preocupação

ética e religiosa inegável apesar de essesassuntos raramente serem abordados demodo explícito. Comecemos por sua pri-meira publicação de envergadura, Tractatuslogico-philosophicus, obra notável compostade proposições meticulosamente dispostas,concluída durante a Primeira Guerra Mun-dial. Nessa obra ele trata dos fundamentosda lógica, da linguagem, do pensamento edesenvolve uma teoria da estrutura do real.Ele propõe, ademais, uma definição geraldaquilo que dá sentido a uma proposição.A obra mostra que um certo número deenunciados filosóficos, em particular osque tratam de ética, são desprovidos desentido! E o que é verdadeiro para a ética oé igualmente para a religião: para Wittgens-tein, as duas coisas são quase sinônimas.

Numa carta a Ludwig Fisher, de 1919,ele afirma: “Em suma, o Tractatus é umaética”, e acrescenta que seu objetivo tinhasido o de determinar, de uma vez portodas, a natureza mesma da ética. Segundoele, a ética faz parte de um domínio sobreo qual nada pode ser dito e sobre o qual

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À esquerda:Wittgenstein

estudou aerodinâmica

em Berlim e ocupou-se

da arquitetura de

vanguarda. Projeto de

uma cidade para R.

Mallet Stevens, 1923.

À direita: às margens do

Danúbio, próximo de

Viena. Para Egon Schiele,

contemporâneo e

concidadão de Wittgens-

tein, somente a arte

havia conservado “o que

restava da cultura

nobre”. Óleo sobre tela,

1913.

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nós, assim como ele o salienta na conclusãode sua obra, devemos calar.

Contrariamente ao grupo dos positivis-tas lógicos, Wittgenstein concede um gran-de valor “àquilo sobre o qual nada podeser dito”, pois é sobre isso que se situam asverdadeiras questões sobre a vida: “mesmoque se responda a todas as questões cientí-ficas, ainda assim não se disse nada sobreisso” –afirma ele no Tractatus. Para ele aética religiosa e a ciência são domíniosestrita e fundamentalmente separados.

Seus escritos da época fazem-nos enten-der que a conduta justa é em primeirolugar uma questão de equilíbrio. Trata-se,portanto, de harmonizar a própria vontade“a essa outra vontade da qual dependemosinteiramente”. Essa vontade, a vontade deDeus, não se manifesta no mundo de modoespecífico, ela coloca “o mundo como tal”como uma tarefa ética diante do homem.Nisso reside o verdadeiro sentido dosvalores ético-religiosos, e não nesta ounaquela condição do mundo ou dohomem. Essa é a razão pela qual não pode-ríamos dizer nada sobre esses valores.

Em Lecture on ethics, Wittgensteindeclara: “Se um ser onisciente conhecessetodos os fenômenos, tanto físicos comopsicológicos, bem como todas as suas rela-

ções, e pusesse todo esse conjunto em umlivro, ele chegaria a uma descrição comple-ta do mundo sem o menor ensinamento deordem ética. Todo discurso sobre o bem, osentido, deus”, insiste ele, “é um abuso dalinguagem”.

Wittgenstein fez essa conferência sobre aÉtica logo após seu retorno a Cambridgeem 1929. Após a Primeira Guerra Mundial,tendo terminado o Tractatus, e acreditandoter respondido sem equívocos as questõesque se fazia, ele se despediu da filosofia,renunciou aos bens de família para, segun-do ele, “tentar fazer de sua vida algumacoisa ordenada”. Seguindo a carreira deprofessor, ensinou durante alguns anos nointerior da Áustria, porém sem sucesso. Devolta a Viena, ele se ocupou da construçãode uma casa de estilo vanguardista para suairmã, Margarete Stonborough. Sob ainfluência de contatos e membros do Círcu-lo de Viena, de outros filósofos e de mate-máticos, ele voltou à filosofia. Percebendoque as teses do Tractatus comportavamcertas suposições insustentáveis, ele come-çou a trabalhar de novo. É aí que está o seutalento. Embora durante toda sua vidatenha sentido repugnância pelo academismo,ele percebia agora que tinha o dever dedesenvolver esse talento. Parece tambémque a prática iria permitir-lhe medir o valormoral de suas convicções: o critério não éo que se diz, mas o que se faz.

Delinear as concepções filosóficas deWittgenstein após o seu retorno à filosofianos anos vinte até sua morte em 1951 noslevaria muito longe. E menos necessárioainda é considerar que lugar a ética e a reli-gião ocupam nela, pois em relação a issonada muda. Nela vemos uma grandemudança de suas idéias sobre o sentido dasvogais (semântica), as relações entre lingua-gem e lógica, sobre o papel do pensamentoe sobre a maneira pela qual o conhecimen-to é estabelecido e justificado. Com suasidéias inovadoras, ele contribuiu de modoimportante para a filosofia contemporânea.

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O problema ético-religioso permaneceu,contudo, o mesmo para ele. Wittgensteinpermaneceu convicto de que esse aspectoda existência se subtrai à influência da ciên-cia e da filosofia. As convicções religiosas,por exemplo, não podem ser justificadaspelos fatos históricos e todos os esforçosnesse sentido lhe parecem “ridículos”. Amaneira como a ciência se aproxima domundo e o investiga permanece estrita-mente separada do mundo que pode serdenominado religioso e nada tem a vercom ele. A vida religiosa acarreta um certocomportamento, um ponto de vista sobre aexistência que condiciona tudo, portantotodas as ações. A convicção religiosa não éuma questão de razão e sim de paixão: umamaneira apaixonada de ver o mundo e a simesmo, de descobrir nele um sentido.

Isso significa que Wittgenstein rejeitavarituais, práticas formais, livros sagrados,fórmulas estereotipadas, etc, enfim, todosos elementos exteriores que desviam doâmago da questão. A religião não é umdomínio separado da vida. Ela interpenetrao ser inteiro, seus pensamentos, seus senti-mentos, seus atos. Na primeira de suasLectures on religious belief que data de1938, Wittgenstein diz: “Uma convicçãoreligiosa não é o fruto de raciocínio ou deum apelo normal a uma crença justificada;ela é o fruto de um fato que determina avida inteira”.

Assim ele dá à religião um lugar muitoespecial. Não ao lado da ciência como umconcorrente, ou como explicação alternati-va à realidade do mundo e do homem,porém como uma postura e uma maneirade como podemos ver as coisas, como algoque determina nossa ação e lhe dá sentido.O sentido da vida não está inscrito nomundo, “Deus não se manifesta nomundo”, diz ele no Tractatus, nem fora,nem em nenhuma outra parte, nem maistarde. É em face deste mundo, onde nosencontramos como por acaso, que deve-mos assumir essa posição. A ciência tenta

explicar este mundo em que vivemos nossavida, uma vida que não apresenta sentidosenão mediante uma postura ética religiosajusta.

Na longa evolução do pensamento filosófico no que diz respeito a religião,Wittgenstein ocupa um lugar à parte. Nãopor causa de suas idéias acerca das crençasreligiosas, pois houve outros que o prece-deram em sua insistência sobre o aspectopessoal, não dogmático e universal da fé.Um exemplo disto é Sören Kierkegaard, a quem ele se refere com freqüência. Acontribuição de Wittgenstein encontra-sesobretudo no fato de que ele redefiniu areligião e suas relações com o pensamentocientífico e as idéias comuns, e nela enraízade modo indireto suas teorias sobre lingua-gem, significado e conhecimento. Ele pró-prio achava que sua visão apresentariapouco interesse para a cultura européiamoderna. Mas a influência de sua obra nãodiminuiu, e soa ainda mais otimista.

Wittgenstein, L., Tractatus logico-philosophicus,

3ª ed. São Paulo: Edusp, 2001.

Wittgenstein, L., Investigações filosóficas,

3ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2005.

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Krishnamurti,

filósofo do espírito

Um espírito vivente é um espírito pacífico,

um espírito vivente é um espírito que

não possui um ponto central,

e portanto nem espaço nem tempo.

Esse espírito não possui fronteiras,

e é a realidade única.

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possível a vosso espírito”, perguntaKrishnamurti, “cessar de pensar em fun-ção do passado e do futuro, sendo que ofuturo é tão-somente uma expectativabaseada no passado? Está o espírito liber-to dos hábitos? Não está ele sempre for-jando novos hábitos? Se vos aprofundar-des nestas questões, descobrireis que tudoisso é possível.

Quando o espírito se renova e cessa deformar novos hábitos, ele permanece nofrescor da primeira juventude, fruindo,por isso, de uma compreensão ilimitada.

Para esse tipo de espírito a morte nãoexiste, pois ele já não segue o processoacumulativo de conhecimentos que geral-mente é a causa dos hábitos e da imitação.O espírito que acumula o saber deve espe-rar pelo declínio e pela morte. Porém,para o espírito que não acumula nemajunta nada, para o espírito que morre acada dia, a cada instante, já não existemorte. Ele se encontra no estado do espa-ço infinito.

O espírito deve, portanto, renunciar aoque acumulou – todos os hábitos, tudoem que ele confia para sentir-se em segu-rança. Só assim ele já não é embaraçadopela rede de seus próprios pensamentos.Ao abandonar a cada instante o passado, oespírito rejuvenesce, nunca perecerá enunca colocará em movimento a onda queprovoca a maré das trevas”.

A característica de Krishnamurti, quebebe diretamente das fontes do espírito, épara Eckartshausen o que ele denomina o

“É

Página precedente: Quando o pensamento vive tão-somente

de estereótipos, ele interdita a abertura e a receptividade da

alma. Janela de mármore, mausoléu de Salim Chisti em Fatehpur.

À esquerda: o jovem Jiddhu Krishnamurti. Foto E.Weston.

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“homem de luz”, e define da seguinteforma: “Tudo o que ele diz ou empreendeacontece em nome ou mediante as proprie-dades do fogo, da luz e do espírito, peloqual ele conduz tudo ao Amém, à realiza-ção total”.

Segundo Krishnamurti, a compreensão éum fator essencial para a libertação doespírito. Para ele, a libertação do espírito,que acarreta uma transformação, umarevolução interior total, é uma noçãochave. Ela significa antes de tudo a possede uma consciência correta do problema daliberdade, definida por ele como libertaçãodo medo ou da coação de toda tendênciapara buscar a segurança. Nosso maior obs-táculo é o impulso de querer ser algo oualguém, de possuir um status. “É estranhovermos a que ponto são numerosos os queaspiram à consideração, aos louvoresenquanto poeta ou filósofo, e àquilo quepoderia dar prestígio ao ego. Este ou aque-le título deve dar uma certa satisfação, mas

isso não tem nenhum significado. A consi-deração alimenta a vaidade, e talvez enchaa carteira, mas e daí? Esse homem se vê àparte e seu isolamento incessantemente lheapresenta problemas cada vez maiores. Oque importa é permanecer livre tanto desucesso como de fracasso”. Acaso nãoouvimos aqui a voz de um Espinosa doséculo XX, talvez de maneira mais conse-qüente que seu predecessor do séculoXVII?

“Quer seja no mundo da política, dopoder, da situação social, ou no pretensomundo espiritual no qual vos esforçaispara ser mais justos, piedosos e desinteres-sados... enquanto quiserdes ser alguém,não sereis livres. O homem ou a mulherque vê o absurdo de tudo isso e que tem ocoração puro e não deseja ser alguém élivre. Se compreenderdes a simplicidadedisso, vereis sua extrema beleza e profun-didade.”

Krishnamurti qualifica essa atitude de

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Jiddu Krishnamurti (1895-1986)

No começo do século XX, um jovem hindu de nome Krishna recebeu, na Sociedade Teosófica, uma formação

que deveria fazer dele, sob os auspícios dos teósofos ingleses Annie Besant (1847-1933) e C.W. Leadbeater

(1847-1934), o futuro “instrutor do mundo”. Em 1911 A. Besant e Leadbeater fundaram a Ordem da Estrela

do Oriente, que propagava no mundo inteiro a idéia de que Krishnamurti era o novo guia espiritual mundial.

Em 1929, Krishnamurti destruía a imagem que haviam feito dele. Ele não queria ser esse guia espiritual e

incessantemente repetia que cada um deveria examinar a si próprio, ver e quebrar o próprio condicionamen-

to e todos os modelos estereotipados segundo os quais se deve pensar, querer e agir. Para ele, os dogmas e

preceitos não têm a menor importância. O que importa é abandonar todas as autoridades e a si mesmo, e

desse modo vivenciar a unidade da vida em tudo o que surge, em tudo o que aparece e desaparece.

Krishnamurti não ofereceu técnicas. Embora não quisesse ser o instrutor mundial, ele começou a fazer

numerosas conferências em todo o mundo, atraindo uma grande audiência. Nessas conferências ele fez aná-

lises sutis do pensamento e do comportamento individuais e de suas repercussões na sociedade.

FONTES: Lutyens, M., Vida e Morte de Krishnamurti. Brasília: Editora Teosófica, 1996.Lutyens, M., La puerta abierta. Barcelona: Edhasa, s. d.Jayalkar, P., Krishnamurti: biografia. Buenos Aires: Editora Kier, 1988.

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“um espírito calmo”. “Somente essa calmapode dar-vos uma real percepção, pois oespírito é sensível à beleza”.

Krishnamurti enfatiza a distância exis-tente entre esse estado e a onda irresistíveldo assim chamado progresso tecnológico.

“O poder do pensamento aplicado à tec-nologia permitiu grandes descobertas. Essemesmo poder nós o empregamos pararesolver os problemas psicológicos impos-tos pelo egoísmo, pelo ódio e pelo medo.A psique, portanto, não evolui. O egoísmoe o medo não podem transformar-se emseu contrário. O egoísmo apenas podecrescer e ganhar força; ele jamais pode setransformar em desinteresse.”

Segundo Krishnamurti, é preciso ter-seum espírito livre do peso das tradições e dopassado. A mais ampla liberdade é umanecessidade. Mas tão logo alguém pense serlivre, já o deixou de ser. É preciso ter um

espírito livre, lúcido e sem entraves; porémter um espírito lúcido e penetrante éimpossível quando, por qualquer razão, seestá com medo.

O medo bloqueia o espírito. Tereis oespírito claro e penetrante se não cessardesde considerar vossos traços de caráter,estando profundamente conscientes devossos impulsos interiores, mas sem opor-lhes resistência. Somente então será possí-vel falar-se de um espírito sutil e calmo.Um espírito sutil atua de maneira lenta,hesitante. Esse espírito não tira conclusões,não julga nem formula. Ele permaneceatento, à escuta. Essa disposição de espíritonão deve surgir mais tarde, porém deveestar presente já no início. A respeito dessadisposição, Krishnamurti nos diz: “É pos-sível que já tenhais dado a ela oportunida-de de desabrochar!”

Para ele, a liberdade do espírito provémda compreensão, e o mais importante nessacompreensão é descobrir que nada sabe-mos. Esses são conhecimentos clássicos,que podem ser encontrados em Sócrates. ECristiano Rosacruz diz: “A soma de todosaber é que nada sabemos”. Krishnamurtio expressa da seguinte forma: “Se disserdes‘eu não sei’, o espírito permanece imóvel,totalmente silencioso, e esse silêncio seprolonga”.

O que para ele melhor ilustra o trabalhodo espírito é o rio, em particular a corren-teza do rio.

“De um modo ou de outro, a água pare-ce purificar-vos, lavar-vos da matéria daslembranças. O rio dá ao espírito a qualida-de de sua própria pureza, da pura naturezada água... O rio tudo recebe e permanecesendo ele mesmo, sem se preocupar emsaber o que é puro ou impuro.”

Para permanecer nessa corrente precisaisviver com leveza (não de maneira negligen-te), assim como um convidado em vossa

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casa ou corpo. Ser um convidado significanão ter amarras e caminhar sobre a terracom leveza. Podeis fazer uso de vossosórgãos sensoriais, contanto que eles nãodesperdicem energia “... dando-lhes livrecurso”.

As pessoas que viram Krishnamurticompararam sua presença a um rio. Estefoi o caso de sua biógrafa Pupul Jayakarque relata: “Um rio de calmo silêncio flui através dele. Sua mente jamais seimobiliza. Ele está aberto a toda espécie de crítica”.

Mas esse rio também convida a umarevolução interior quando ele diz: “Trata-se de uma revolução total, não apenas nasgrandes coisas, mas também nas pequenascoisas da vida cotidiana. Vós vos revoltas-

tes. Permanecei assim. Mantende a posição.Mantende o fogo interior ardendo”. ParaKrishnamurti a transformação é radical:“O espírito religioso é o espírito revolucio-nário, verdadeiro. Ele é explosivo, e criati-vo. É um estado criador”. Isso significa omesmo que o “cometa ígneo” GiordanoBruno dizia: “Tornai-vos eternidade”, eque a observação de Nietzsche: “Conduzia guerra em vós mesmos”, não no planopolítico ou mundial, evidentemente.

Com efeito, Krishnamurti afirma: “Apolítica é extremamente destrutiva. Quan-do os homens dizem que trabalham pelapaz ou por reformas, é sempre o eu que seencontra em primeiro plano. Políticos nãopossuem um espírito cheio de frescor. Omundo precisa de espíritos plenos de clare-za e frescor, e não de espíritos condicionados,sejam eles hindus ou muçulmanos”. Ele

disse isso a propósito da Índia, porém emoutro lugar ele afirma a mesma coisa con-cernente à política dos pretensos “cristãos”.

O condicionamento e o impulso interiorde libertar-se dele representam um papelpreponderante na filosofia de Krishnamur-ti. Esse pensador moderno é muito clarocom relação a esse assunto e o aborda comespírito científico prático: “A mente cientí-fica com sua lógica, sua preocupação quan-to à precisão e suas investigações orientasuas pesquisas sobre a natureza exterior domundo, e isso não pode levar a uma com-preensão interior das coisas. Apenas acompreensão interior pode levar à com-preensão exterior. Nós somos o resultadodas influências externas. O espírito científi-co é minucioso e claro em suas pesquisas.

Ele não é um espírito compassivo porquenão compreende a si próprio”. O espíritoreligioso também é capaz de pensar comexatidão, por isso esse espírito traz em si oespírito científico. Contudo, o espíritocientífico não contém o espírito religioso,pois ele se baseia no tempo e no conheci-mento, e está orientado para sucesso eresultados.

Krishnamurti sabe fazer a ligação, emsentido positivo, entre vida, amor, revolu-ção, eternidade, sem fazer qualquer conces-são à essência do espírito: “A vida é extre-mamente rica, possui tantos tesouros,porém nós a abordamos com o coraçãovazio. Contudo, não sabemos como preen-cher nosso coração com a superabundânciada vida. Somos interiormente pobres, equando uma riqueza nos é oferecida nós arecusamos. O amor é algo perigoso, ele é a

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“Um rio de calmo silêncio flui através dele. Sua mente jamais se imobiliza.

Ele está aberto a toda espécie de crítica.”

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causa da única revolução que nos tornainteiramente felizes. Há poucas pessoasentre nós que colocam o amor acima detudo, e portanto existem poucos que dese-jam o amor. Impomos nossas próprias con-dições ao amor e traficamos com ele.Temos mentalidade de comerciante, porémo amor não é uma mercadoria. Não se tratade tomar e de dar, mas de alcançar umestado de ser que traga a solução paratodos os problemas humanos. Nós vamosà fonte munidos de um dedal, e assim avida se torna mesquinha, raquítica, semnenhuma grandeza [...] Eu não sei, masacho que poderíeis arder de amor. Essaflama nunca se extingue. Possuís dela tantoquanto desejais dar aos demais e na medidaque o fazeis. Esse rio de corrente poderosalava e purifica cada cidade, cada grandecidade; ele é poluído pela sujidade doshomens, mas a água purifica a si mesma eprossegue o seu curso. O amor não podecorromper coisa alguma. Ele é a solução detudo, seja bom ou mau, belo ou feio. Ele éa única coisa eterna e inexaurível”.

Krishnamurti viveu a vida de um filósofodo espírito e seguiu os grandes processosde transformação. Ele mesmo dá o exem-plo de um homem aberto às influências dasenergias que produzem as transformaçõesatuais. Quando sua biógrafa, Pupul Jaya-kar, perguntou-lhe quem ele era, ele res-pondeu: “Pouco importa quem eu seja. Oque pensais, o que fazeis, as transformaçõespelas quais passais, isso é o que conta”. Desúbito, ela se lembra que Krishnamurtijamais disse uma palavra sobre si mesmo,jamais fez alusão a qualquer experiênciapessoal. Era isso que o tornava um estra-

nho, embora o conhecessem tão bem.“Mesmo num gesto amigável, em meio a

uma conversação cotidiana, era possívelsentir subitamente de sua parte um distan-ciamento, uma calma, uma concentração naqual não havia nenhum centro. Contudo,podíeis sentir em sua presença a infinitabênção de seu interesse”.

Amizade, eternidade, transcendência deespaço e tempo, rejeição do mundo deambições, da celebridade e das honrarias,aparência de estrangeiro, mas acima detudo encontrar-se na corrente do amoreterno e inexaurível. São estas as caracterís-ticas do homem-espírito que Krishnamurti,como verdadeiro homem aquariano, ante-cipou na corrente da nova era que irrom-peu na Europa, na Ásia e na América.

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É ao mesmo tempo difícil e cativante examinar como a filosofia moderna abre penosamente

um caminho para a eternidade, em direção a Deus – e, muitas vezes, desconhecendo-o.

Repete-se que o homem não tem a possibilidade de dizer o que quer que seja de sensato

a respeito de Deus. Mas Espinosa, assim como o filósofo francês Gilles Deleuze – que, três

séculos mais tarde, devia analisá-lo de maneira tão profunda – chegam à conclusão de que

o homem deveria abandonar a si mesmo e à sua personalidade para abrir-se ao eterno e

imutável. Mas será que estamos prontos para isso?

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Buscar Deus é

transcender o homem

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is o ensinamento do pensadorlímpido e do piedoso místico expulsoda sinagoga e estigmatizado pelos pa-dres cristãos que o xingavam de ‘ateuabominável’.” Foi assim que, em1915, Nico van Suchtelen introduziusua tradução da Ética de Espinosa.Ele sumariza sua filosofia da seguintemaneira: “Há alguma coisa que, por simesma e por seu próprio poder, é acausa de si mesma. Trata-se de Deus,a substância que existe por si mesma,substância eterna de prerrogativasinfinitas. Nós, os humanos, temosapenas duas: a faculdade mental e oespaço vital – espírito e matéria. Omundo aparente onde vivemos etodas as coisas em suas particularida-des são manifestações moventes, fini-tas, temporárias e instáveis da Divin-dade eterna e infinita. Nosso espíritoé um raio do Espírito divino; nossocorpo é uma parte do corpo divino. Oreconhecimento racional, claro e níti-do dessa Unidade faz crescer dentrode nós o amor espiritual por Deus.Deus nada mais é do que a conscien-tização de Deus mesmo em nossoespírito. E aí estão encerradas nossasalvação e bem-aventurança”.

O sistema de Espinosa é hermetica-mente fechado e não precisa de com-plementos. Discussões sobre sua obra

limitam-se, portanto, na maior partedas vezes, à questão se ele era ou nãoum místico.

Gilles Deleuze, pensador francêsque morreu em 1995, diz que Espino-sa é o mais paradoxal e o mais filosó-fico dos filósofos: aquele que conse-gue seduzir até mesmo os não-filóso-fos. Para as pessoas que não conse-guem seguir o ensinamento de Espi-nosa, ou que conseguem fazê-lo comdificuldade, sua obra contém muitosmomentos e passagens que podemtocar-nos e mudar radicalmente aimagem da realidade. Ao contrário,afirma Deleuze, um filósofo profis-sional não pode extrair nada do Espi-nosa “subterrâneo” e “ardoroso”: seele se debruçar apenas sobre seus con-ceitos, a própria essência de seu ensi-namento lhe escapará. Em um estudoapaixonante – Espinosa, filosofia prá-tica – publicado em 1970, Deleuzeexplica por que seus leitores são tãovariados. “Escritores, poetas, músi-cos, cineastas, pintores – e até mesmoum simples leitor – podem concluirque são adeptos de Espinosa. A pro-babilidade de que isso ocorra é de fatomuito maior do que entre filósofosprofissionais.”

“Espinosa gozava de um privilégioque ninguém antes ou depois dele

Página precedente:

Modelos. Árvore no

outono com fúcsias.

Óleo sobre tela,

Egon Schiele, 1909.

Abaixo: No painel

intitulado Três

filósofos, Max Ernst

mostra como os

brilhantes sistemas

filosóficos bastante

distantes da reali-

dade cotidiana

podem fazer uma

pessoa planar no

imaginário. Ou:

A que, ao certo,

a humanidade se

dirige? Óleo sobre

tela, 1957.

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“E

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Gilles Deleuze (1925-1995)

Gilles Deleuze é um pensador francês do século XX. Sua carreira como filósofo ele começa como pesquisador

científico, depois escreve sobre Bergson, Hume, Nietzsche e, por fim, sobre Espinosa. De acordo com ele, todas

as pessoas têm um olhar particular sobre a realidade, que depende do momento de sua reflexão. Deleuze afirma

que a meditação repetida sobre certas idéias leva à transformação delas.

Essa filosofia – denominada filosofia diferencial – parte da idéia de que falseamos imediatamente a realidade a par-

tir do momento em que aplicamos conceitos sobre ela, a partir do momento em que tentamos enquadrá-la em

modelos. O que é individual e familiar sempre se eclipsa quando empregamos fórmulas e conceitos gerais para

falar sobre isso. O problema mais notável de nossa época é, segundo Deleuze, a falta de fé: a certeza de poder

conhecer o mundo em sua totalidade e em sua coesão já não existe. Deleuze tem a idéia incrível de que é o

cinema atual que teria o poder de nos devolver a fé. O filme nos ensina que vivemos uma realidade que se

desintegrou em fragmentos: nela, há muito tempo, já nada existe em sua realidade integral.

Um laço muito forte, apesar de pouco comum, liga Deleuze a Espinosa. Primo Levi escreve em A tabela periódica:

“Quanto maiores forem as concordâncias, mais profundas serão as diferenças”. Se invertermos esse ditado, tere-

mos:“Quanto maiores forem as diferenças, mais profundas serão as concordâncias” – e esta é uma imagem bas-

tante espirituosa da relação entre a obra de Espinosa e de Deleuze. Se examinarmos a Ética, que é a obra princi-

pal de Espinosa, a idéia fundamental é a de que “a imutabilidade” está diretamente relacionada com “o ser”.

Deleuze, que tem a maior admiração pelo mundo intelectual positivo de Espinosa (e nisso ele é o seu continua-

dor) e que, ao mesmo tempo se esforça por fazer “o humano” se elevar com base no “ser”, começa suas teo-

rias pelo “movimento”. Portanto, podemos considerar que sua obra é uma homenagem a Espinosa. Como inver-

te seu ponto de partida, ele tenta dar uma nova forma, uma nova vida ao olhar fundamental do grande pensador

holandês – isso é válido sobretudo quando considera que Deus e a Natureza são unos. Nesse ponto, ele está

muito próximo de Espinosa. E do mesmo modo que ele, sua filosofia, por seu procedimento radical, invoca

sobre si o mesmo silêncio “ensurdecedor” que cercava Espinosa na época em que vivia, do mesmo modo que

ainda hoje na nossa.

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partilhou. Filósofo de envergaduraincontestável por seu saber e sua siste-mática, ele exige de seus leitores umaaplicação excepcional, mas, ao mesmotempo, ele lhes oferece a possibilidadede um encontro imediato, espontâneo,com sua filosofia: alguém que nadatem de filósofo ou até mesmo um lei-tor pouco culto pode sentir-se atraídopor ela, como que atingido por umraio. Em um momento como esse,descobre-se o ‘espinosismo’, como sese fosse acompanhado por Espinosa earrastado para o interior de sua obra.”

De fato, Deleuze é um modernoque está aberto para tudo. Suas inú-meras referências à literatura, à arte,ao cinema, não permitem delinearlimites precisos ao seu pensamento.

Assim, os dois filósofos, que possuemmétodos de trabalho, argumentos efilosofias tão distintas, estão mais ladoa lado, não se podendo dizer queDeleuze seja o sucessor de Espinosa.Podemos sustentar esta tese principal-mente no caso de Espinosa. Se, umavez que tem franqueza sobre osoutros pensadores, escritores e artis-tas, Deleuze sempre os apresentamuito arbitrariamente, da mesmaforma é preciso concluir que a obra deEspinosa é auto-suficiente, pela visãoque ela dá da imagem hermética daDivindade.

Colocando essa objeção de lado, épreciso dizer, principalmente, que aherança filosófica de Deleuze mal tevetempo de suscitar reações. Desde suamorte, em 1995, a filosofia não evo-

luiu o bastante e não se sabe ainda quelugar deve ser consignado a ele. Ape-sar de três séculos separarem Espino-sa e Deleuze, descobrimos que os doiseram, cada um em sua época, pensa-dores não-conformistas.

O espírito da época

O espírito de uma época ultrapassa,e muito, o espírito de um determina-do pensador. Para a maior parte daspessoas, os pensadores, cientistas,escritores, artistas e líderes dão apenasuma versão pessoal. Suas opiniõesapenas coincidem em certos pontos.Por mais que um pensador, escritor,líder ou artista possa apenas rarasvezes, ou mesmo jamais, refletir por

inteiro o espírito de seu tempo, namedida em que suas opiniões estão deacordo, eles são os representantesdessa época. Poderia o espírito daépoca ser expresso em uma únicaobra? Na maior parte das vezes, ele seexpressa em muitas obras, sob dife-rentes aspectos. Nisso as diferençasnão são importante, pois, supondoque, há um século, essas pessoas fos-sem diferentes das de hoje, aindaassim elas expressariam o corretosobre a humanidade. Estaria o astro-nauta americano Neil Armstrong, oprimeiro homem a colocar o pé nalua, falando de uma humanidade dife-rente quando, em 20 de julho de 1969,declarou: “Isso representa um peque-no passo para um homem, mas umgigantesco salto para a humanidade”?

À direita: Modelos

formais. Retrato

construtivista de

um filósofo por

Ljubow Popowa,

pintora russa que

trabalhou em Paris

em 1912-1913.

“Escritores, poetas, músicos, cineastas, pintores – e até mesmo um simples

leitor – podem concluir que são adeptos de Espinosa. A probabilidade de

que isso ocorra é de fato muito maior do que entre filósofos profissionais.”

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Vaso de terracota

desenterrado em

Kalibangan, Índia.

Cultura Pré-

Harappa, 3200-

2800 a.C.

A resposta começa com uma pergunta

Como já falamos sobre o pensa-mento, falaremos sobre a evolução dahumanidade. Que outro fenômenosenão a evolução poderia condicionaro espírito da época? Será que o espíri-to da época tem uma intenção, umobjetivo, que poderia nos fazer dizer:“Este era o espírito da época, e depoisdisso ele se manifestou de tal e talmodo”?

A resposta começa também comuma pergunta. Será que a evolução doespírito da época não teria recaídascomo as da humanidade? Pelo menosé o que parece, pois o espírito daépoca se manifesta tanto na arte comona ciência, na filosofia, na economia,na política, etc. É isso que Deleuzetenta captar. Todos esses aspectos emsua coesão formam o espírito daépoca. Tudo acontece como se algoque estava na atmosfera acabasse porse materializar no final de certo perío-do. Falemos sobre o Século dasLuzes, por exemplo. O espírito daépoca, nesse sentido, seria uma subs-tância que transcendia as diferentesmanifestações humanas. Poderia seruma nova maneira de ver o mundoem relação a uma necessidade queainda estava adormecida. E assim nóscaminhamos em frente, em direção auma resposta: se quisermos com-preender essa necessidade no tempode Espinosa, quando findava o Séculodas Luzes, poderemos afirmar, retros-pectivamente, que era uma necessida-de que o ser humano tinha de admitirsua individualidade, sua personalida-de. E, precisamente na época em quetodos descobriam sua própria perso-nalidade, Espinosa escrevia que o serhumano deveria abandonar a simesmo e abandonar sua experiência

pessoal para abrir-se ao eterno e aoimutável. Essa transcendência queEspinosa tinha em mente era divina,enquanto seus contemporâneos seocupavam em livrar-se do jugo de umdeus a fim de experimentar o humanode maneira nova. Apesar de Espinosater formulado isso com uma grandebeleza, oferecendo até mesmo umainterpretação original sobre o concei-to de Deus, as pessoas não enxerga-ram isso e continuam não enxergan-do. Deleuze também continua pas-sando despercebido. Esse pensador,assim como Espinosa, dá poucaimportância ao ser humano enquantoser que julga, que tem uma opinião econsidera idéias sobre o bem e o mal,portanto, que tem a capacidade de umjulgamento maduro e sem preconcei-tos. Deleuze denomina o homem“um desencaminhamento, um equí-voco, uma injustiça, que deve ser ani-quilado por uma justiça maior”. Massomos assim no íntimo? Alguns, tal-vez. Sempre houve buscadores daliberdade e discípulos de Espinosa.Mas a maioria que determina o que éo bem e o que é o mal parece estarlimitada aos caminhos batidos darepetição sem fim.

O que é eterno é imutável, sempresemelhante a si mesmo, jamais serepete. Não é um filme. É a justiçamaior que um dia elevará tudo para si.E o ser humano tem a escolha, a liber-dade e a alegria de permiti-lo.

Fontes:Levi, P. A tabela periódica. Rio de Janeiro:

Relume Dumará, s.d.Deleuze, G. Espinosa: filosofia prática.

São Paulo: Editora Escuta, 2002.Espinosa, B. Ética. São Paulo: Martin

Claret, 2002.

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Por mais francos que procuremos ser, os acontecimentos nos transtornam e não tardam a mudar nossa visão de

vida. Pensávamos que éramos francos, mas na realidade estávamos fechados e tudo permanecia escondido atrás

de portas bem fechadas. Ser verdadeiramente franco pressupõe uma grande confiança bem como a coragem de

ousar mudar. Uma criança pode ser bastante franca caso se sinta confiante, sustentada – talvez inconscientemente

– por sua família, seus pais, seu meio ambiente. Em nossa sociedade esse sentimento desapareceu, sendo

substituído pelo que poderíamos denominar uma sensação de incerteza, de instabilidade, de insegurança.

Zigmunt Bauman e o

paradoxo do amor

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igmunt Bauman, sociólogo polonês,considera-se “um intérprete do mundoatravés dos seus textos” e afirma que umconto de Jorge Luis Borges pode ser maisútil que um livro convencional sobresociologia. Muito se refletiu sobre ohomem moderno, sobre os problemas psi-cológicos apresentados pela sociedade des-crita por Borges. Ele fala acerca de uma“sociedade líquida”. Em sua opinião, todos

sofremos da “síndrome do Titanic”. Esta-mos perfeitamente cônscios de todos osperigos que ameaçam nossa civilização,porém vivemos “sem esperança” e “desam-parados”, sentindo que não dispomos dosmeios para fazer frente a esses perigos. Poroutras palavras, tendemos a ignorar tudo oque nos ameaça, pois preferimos divertir-nos. Bauman vê o nascimento de um novotipo humano, o homem eleitor ou homo

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Z

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eligens. Essa é uma bela expressão, porémde um peso inquietante, pois, esse homoeligens é impulsionado pela necessidadeobsedante de mudança. Sempre incomple-to, mas jamais realizado, ele está incessan-temente ocupado em mudar sua identida-de. Ele vive numa rede social multiforme etransfere a necessidade humana de crer emalgo e de pertencer a algum lugar para omundo do consumo. “Compro, portantoexisto”. Disso resulta um individualismoexacerbado. Ora, quando o sentido comu-nitário desaparece, o chão desaparecedebaixo dos pés do indivíduo.

Zigmunt Bauman conclui que existe umsólido sentimento de segurança unicamentenos países em que os cidadãos confiam noEstado e onde existe o sentimento de serparte de uma comunidade. Porém, tais paí-ses são raros e as sociedades modernas nãoconseguem oferecer segurança. A esse res-peito ele escreve:

“Após o Século das Luzes, o bom sensoda verdade diz que a emancipação dohomem, a manifestação do verdadeiropotencial humano, exige um rompimentodos laços com a comunidade e a libertaçãodos condicionamentos de nascença”. Emrazão da perda da confiança nas grandesinstituições como a Igreja, a religião, apolítica – quem ainda confia nos políticos?– bem como nas instituições menos impor-tantes (clubes esportivos, associaçõessócio-culturais), ninguém mais tem o senti-

mento de vinculação e de segurança. Daívem a dificuldade de “ser franco” para avida. Quando já nada está seguro, é precisoerigir novos muros.

Quando tudo ainda era bom

Outrora, a vida era feita de projetos cla-ros: formação, trabalho, casamento, apo-sentadoria. Para tanto, as pessoas se aplica-vam com diligência e vigor a fim de seaperfeiçoar e construir sua existência. Nasociedade de consumo, nós nos contenta-mos com soluções temporãs ou descartá-veis. À semelhança do show de tv Big Bro-ther, nossa existência parece ser feita deuma série infinita de pseudo-experiências.Para Bauman, os maiores empregadoresnos dias atuais seriam os despachantes; asrelações amorosas não durariam mais queum ano, e dois terços dos casamentos ter-minariam em divórcio; casas, veículos edemais coisas de aluguel dominariam nossaeconomia. Já não temos nenhuma ligaçãocom um passado sólido; não nos engaja-mos em nada e escolhemos sempre o “tem-porário”. Não voltamos atrás em nossasescolhas, porém estamos continuamentefazendo novas escolhas e continuamos

O amor é chamado a maior e mais poderosa força em todo o Universo. Deus é identificado com ele.

“Deus é amor”, diz a Escritura Sagrada. [...] Não é necessário argumentar que aquilo a que se chama

amor na dialética nada tem a ver com esse amor, nem mesmo pode ser comparado a ele. O amor em

nossa natureza é uma qualidade de nosso potencial natural de bondade. [...] O amor na natureza como

qualidade da bondade tem, primeiro, seus limites; segundo, não é incondicional; terceiro, exclui outros e

é, portanto, egocêntrico; quarto, surge sempre com diversas máculas, como por exemplo, estupidez,

egoísmo, indiferença e ódio. [...] O que é denominado amor na Doutrina Universal é a substância pri-

mordial da chama divina, da alma do mundo.

Rijckenborgh, J. v. O advento do novo homem. SP: Lectorium Roscirucianum, parte II, cap.8 e parte III cap. I.

Dança de Krishna com as gopis, século XVIII. Pintura em mus-

selina que glorifica o casamento, usada como presente de casa-

mento para ser guardado. O grupo de dançarinos simboliza o

casamento do céu e da terra.

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nossa rota numa contínua renovação, oque é justamente a característica de umasociedade de consumo. As pessoas nãoquerem estabelecer ligações, não podemconstruir e encontram-se em constantefuga. Quando as redes se tornam maisimportantes que as relações individuais,fica cada vez mais difícil encontrar repou-so. Ora, para que haja “franqueza”, orepouso e o equilíbrio são essenciais. “Anecessidade de uma renovação incessantecom a finalidade de manter abertas todas asopções – que um dia foi um privilégio –acaba se transformando em experiências

fatigantes”. A existência torna-se fugazporque tudo nela é fugaz, e a franquezaque surge é a de um invólucro vazio.

Amor. Mas o que é mesmo amor?

Zigmunt Bauman acredita que o serhumano é livre e também limitado. A reali-dade não é um bloco monolítico, porémevidentemente uma mistura caótica de for-ças que determinam por completo nossavida, assim se poderia dizer. Eis porque é

tão importante que cada um encontre, depreferência cedo na vida, um ponto deapoio estável e resistente, um fundamentointerior que se apóie no amor e seja unocom ele. Assim o ser humano pode reagirde maneira criativa a todas as mudançasque lhe sobrevêm, sem que estas o prejudi-quem.

Aspiramos ao amor porque ele nosembeleza interiormente. Bauman perguntase o que nos embeleza é o amor ou a cora-gem de participar do processo denominadoamor, pois: “O amor está relacionado àtranscedência”. Bauman afirma que esta éoutra palavra para se referir do impulsocriador com todos os riscos que ele com-porta. “Como em todo processo criador,não se sabe jamais para onde ele leva nemonde ele se detém”. Ele nos lembra que“poucas coisas na vida nos aproximamtanto da morte quanto o amor realizado”.

Em vez de aspirarmos às formas maiselevadas de amor, abaixamos os padrões edenominamos nossas relações superficiais“amor”. Bauman acredita que uma grandeparte do problema é que se ignora a dife-rença entre amor e cobiça. Para ele “a cobi-ça é querer consumir, absorver, assimilar,em suma, aniquilar; ela é, essencialmente,uma tendência à destruição e finalmente àautodestruição. Enquanto o amor é aspira-ção a cuidar, proteger e conservar o objetode seu amor”. O desejo toma, o amor doa.O desejo fecha e destrói, o amor abre ecura.

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Todos nós nos movemos sobre gelo fino e quebradiço, e podemos utilizar bem o auxilio de um com-

panheiro fiel. Mas o “até que a que morte nos separe” é também um freio que nos angustia. Não

conseguimos nos manter facilmente sobre a fina camada de gelo. Os eternos compromissos limitam

a flexibilidade que o futuro exige de nós. Contudo, sem uma ligação incondicional e a prontidão para

sacrificar os interesses próprios em benefício do parceiro, um amor verdadeiro é inimaginável. O

amor é a primeira vítima de nossa sociedade líquida.”

Citação de Blaise Pascal

“À maioria de nós falta tempo e

meios para ser um indivíduo”.

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Nota:As citações deste artigo foram extraídas de Liefde ishet eerste slachtoffer (O amor é a primeira vítima),entrevista de Zygmunt Bauman para Y. Zonderop,De Volkskrant, 29 de outubro de 2005.

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Zigmunt Bauman

1925 nascimento na Polônia1939 fuga com a família para a Rússia1945 retorno a Varsóvia e início dos estudos de sociologia1948 posição como cientista na Universidade de Varsóvia1968 emigração forçada para Israel com outros intelectuais judeus1972 residência na Inglaterra e cátedra na Universidade de Leeds1990 professor emérito, publica, desde então, numerosos livros e dá conferências em todo o mundo

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Todas as escrituras sagradas narram um

acontecimento de um passado longínquo que é

indicado como a “queda”. Após um longo

desenvolvimento, uma centelha divina tornou-se

uma alma vivente que, em colaboração com o

Espírito divino, aprendeu a atuar no sétimo domínio cósmico de maneira criadora.

Este é o domínio cuja energia vibratória corresponde à do homem atual. Os seis outros

domínios cósmicos possuem uma energia vibratória que se eleva progressivamente e são

os campos de desenvolvimento das ondas de vida que precederam a onde de vida humana.

Um dia, nossa humanidade, de posse de uma nova veste anímica, evoluirá gloriosamente

nesses domínios.

Solidão da alma e

da personalidade

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lenda de Narciso

A lenda conta que Narciso é ohomem que, ao perceber sua ima-gem divina original refletida naságuas eternas (as forças vitais cós-micas divinas) abandona-se inteira-mente a elas e nelas imerge.

Segundo outra interpretação, aalma ligou-se demasiado à formacorpórea magnífica que ela desen-volvera na matéria. Ela se afastoude seu arquétipo espiritual, por issosua forma luminosa esmaeceu e porfim desapareceu por completo.

Nosso artigo trata da solidão daalma e da personalidade decaídas.

Em qualquer idade e em qual-quer estágio da vida a personalida-de pode sentir solidão. Ela já come-ça quando o bebê chora e sua mãediz: “Deixemo-lo chorar um pou-quinho; ele se cansará e acabarádormindo”, ou então: “Chorar fazbem para o desenvolvimento dospulmões”. Nesse momento o bebê se sentesó e abandonado. Por uma razão ou outraele exige atenção, porém não a obtém.Uma criança cuja mãe lhe dá de tudo,como acontece freqüentemente, se senteprovavelmente mais segura. Desde a maistenra idade a criança pode sentir-se muitosó, sobretudo quando não é compreendi-da. Na adolescência ou na idade adulta, oser humano sempre experimenta essesmomentos de solidão. Quantas vezesalguém espera à janela para ver se chegaráalguma visita!

Quando começa a solidão da alma e oque ela significa? Há éons a alma originalvem conhecendo um grande abandono. Aruptura de sua ligação com o espírito a fezperder seu poder criador. O homem de luzdesapareceu por falta de alimento adequa-do e deixou o microcosmo como que ina-nimado.

Esse realmente foi um acontecimento

trágico. Quais foram as conseqüências?Apareceu uma personalidade capaz deassumir o lugar do homem de luz original.Essa personalidade, em dado momentopsicológico, possui a capacidade de sentir asolidão da alma e de reagir, encetandoassim a busca da ligação com o espírito,ligação essa perdida em tempos imemoriais.

No curso de sua evolução, a personali-dade que passou a substituir o homem deluz original adquiriu o poder de realizarum trabalho importante. Na verdade, oamor divino não cessa de chamar a almapara que retorne para o espírito. Contudo,como a personalidade terrestre está conti-nuamente voltada para si mesma e a almase vê presa a ela, é preciso que se comece aromper essa orientação e essa ligação.Após muitas experiências e sofrimentos

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A

À esquerda: Configuração, óleo sobre madeira, 1953.

Acima: Os doze discípulos, cruz de granito. Moone, Condado

de Kildare, Irlanda.

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ligados a isso, a alma, em sua miséria esolidão, clama e busca desesperadamentepor uma saída. Só então ela pode se abrirpara a força do espírito original. Em lugarde desejar qualquer bem terrestre, ela seorienta para os impulsos que emanam deum campo de vida totalmente diferente.Pelo fato de desejar intensamente encon-trar o espírito, a Luz original, ela se engajanum processo de purificação que irá con-duzi-la à cura. Então a personalidadecomeça a seguir a alma no caminho dalibertação. Semelhante cooperação faz queela obtenha a compreensão dessa novaevolução, uma via na qual um engajamen-to decisivo lhe é exigido: nada querer parasi mesma, ou, em outras palavras, fazer osacrifício total de si mesma.

Portanto, quando a alma se dirige paraespírito, o ser humano pode realizar umaatitude de vida completamente nova, o quetem conseqüências marcantes. Os corpossutis do ser humano são irradiados com asforças de nível elevado da alma, o que levaa um aumento constante do discernimen-to. Por fim, a orientação egocêntrica da

personalidade se desfaz. Uma nova cons-ciência cuja base é a alma atua então demaneira decisiva na vida.

Quando espírito e alma se tornaram um,uma nova criação é liberada dessa colabo-ração: o homem de luz que sempre existiue que agora resplandece outra vez. Ohomem comum, o “velho homem”, aindaparticipa por algum tempo da nova cons-ciência da alma, denominada consciênciaalma-espírito, mas, por fim, é absorvidocompletamente pelo novo homem. Pode-ríamos considerar isso como prêmio pelosacrifício do velho homem. Hermes deno-mina essa ligação com o espírito o “prê-mio da corrida”, a ligação com o espírito!A nova consciência continua a viver nonovo homem.

A luz se retira?

A solidão experimentada pela personali-dade que segue esse caminho é de outranatureza. Cada pessoa vivencia esse cami-nho de maneira totalmente diferente dasdemais e pode, por isso, sentir-se às vezes

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O mistério de Patmos

Uma única porta se abre para o caminho que leva à Ordem divina, uma só entrada dá acesso aos Mis-térios cristãos. Há apenas uma possibilidade de penetrar o mistério do Apocalipse. Patmos é a chaveda nova vida. Patmos é uma ilha rochosa, inóspita e melancólica, que na Antigüidade servia de lugar deexílio. Ela é o símbolo magnífico do estado espiritual e material do aluno que amadureceu para essafase de desenvolvimento.Patmos exprime o sentimento intenso de desolação, de petrificação experimentada no deserto, nocaminho para a vida verdadeira. Patmos traduz a idéia de que o aluno está no mundo, mas já não é domundo. Patmos representa os poderes e as forças da ordem natural terrestre que se opõem ao pere-grino e tentam repeli-lo enquanto ele quer servir o Reino longínquo esforçando-se para consagrar aele todos os poderes de sua alma.Todos os peregrinos se encontram em Patmos em razão de sua fidelidade “à Palavra de Deus e aotestemunho de Jesus”. Há, na vida de todo peregrino, um momento em que ele se torna um estran-geiro nesta natureza, e esta o considera um inimigo, portanto um criminoso, assim como aconteceucom Jesus, o Senhor. Daí não lhe resta senão Patmos, onde a natureza material, dura como pedra, serevela a ele. Então, semelhante a uma forte onda, a nova vida o subjuga, pois ele não só é “participanteda aflição”, mas também do Reino longínquo. E nesse instante seu espírito desabrocha como uma rosamagnífica.(Citação livre de J. van Rijckenborgh)

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totalmente solitária. No início desse desen-volvimento, o buscador pode experimentara alegria de ter finalmente compreendidoqual é o objetivo da sua vida e se consagrarpor inteiro a essa nova aventura. Contudo,os acontecimentos se precipitam e ele se vêincapaz de prever as conseqüências. Então épossível que ele se oponha e com isso sesubtraia às bênçãos da luz, mergulhando denovo na solidão.

No caminho ele é posto à prova. Porexemplo: ele terá a impressão de já não tergosto para mais nada e desejará reencontrar

a luz, percebê-la denovo interiormente.Mas a luz parece ter-se retirado, e então elese sente só, abandona-do. Ora, trata-se aquide uma prova: seráque ele segue o cami-nho apenas para suaalegria, para elevar-sepessoalmente, ou con-seguirá tudo suportara fim de libertar aalma de sua prisãoterrestre? Caso vejacom clareza, daráprioridade à alma epermanecerá fiel aocaminho escolhidoinicialmente.Se continuar seucaminho, chegará auma encruzilhadaonde ninguém poderáajudá-lo. Ele deverácontinuar sozinho, oque sente como gran-de solidão. A tentaçãode Jesus no deserto,que é o símbolo desse

estado, se apresenta diante do aluno nocaminho. Mas aí ele não encontrará apenasa solidão; muitos momentos de alegria e desolidariedade o aguardam. Certamente eleexperimentará altos e baixos, e o sentimen-to de solidão é, sem dúvida, necessário detempos em tempos, a fim de estimular odesejo de libertação. Ela é simbolizada porPatmos, a ilha da solidão.

Quando João chega a Patmos, tal comonarra o primeiro capítulo do Apocalipse,sua peregrinação quase chegou ao fim. Aílhe aparece o homem de luz original, ofilho do espírito e da alma. Após um perío-do interminavelmente longo, o novohomem se manifesta no microcosmo res-taurado.

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Os sete níveis do terraço em Machu Picchu,“a cidade per-

dida dos incas”, construída para receber a maior quanti-

dade possível de sol. Peru, ca. 1440 d.C.

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O dramaturgo

Henrik Ibsen,

precursor de uma

nova época

[Deus] fez surgir homens mui iluminados e dotados de nobreza de espírito que, em parte,

recuperaram a honra das artes degradadas e imperfeitas para que o homem compreenda,

finalmente, sua nobreza e sua majestade e perceba a razão pela qual ele é chamado de

microcosmo, e a extensão de sua arte na natureza”.

Rijkenborgh, J. v. O chamado da Fraternidade da Rosacruz - Fama Fraternitatis R.C. São Paulo: Lectorium Rosicrucianum, 2004.

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á se passou um século desde a morte deHenrik Ibsen, e as autoridades norueguesasdecidiram que este ano (2005) seria o dacelebração nacional e internacional dessedramaturgo de grande renome.

Em muitos trechos de sua obra, Ibsenaborda o tema da liberdade humana, masseu idealismo envolve um campo bem maiselevado. Ele nos mostra como podemoschegar à nossa libertação pessoal, e como“nos chacoalhar uns aos outros para queesta vida nos revele seus segredos”, deacordo com a expressão de James Joyce.Todos os dias as peças de Ibsen são apre-sentadas em algum lugar dos cinco conti-nentes. Mais do quequalquer autor, ele nosencoraja a refletir sobrenossos valores e direitosfundamentais. E os con-flitos sociais com osquais ele nos confrontasão sempre atuais.Ainda hoje, algumas desuas peças não são leva-das ao palco e outras sãocensuradas pelas autoridades porque, naopinião delas, as peças estariam bastantesujeitas a controvérsias ou constituiriamuma ameaça direta à ordem estabelecida.Assim, Joyce escreve: “Vocês podem inda-gar-se quem, nos tempos atuais, teve maisinfluência sobre o mundo intelectual doque Henrik Ibsen.”

Ibsen escreveu sua obra teatral na segun-da metade do século dezenove, paralela-mente à corrente teosófica. As novas possi-bilidades espirituais testemunhadas pelateosofia tocavam, com sua irradiação,todos os que haviam atingido determinadoestágio, nos Estados Unidos, na Europa ena Índia – o que lhes permitia repudiar aantiga sociedade egocêntrica e seguir, compropósito deliberado, o caminho libertadorda alma em auto-autoridade. A auto-reali-zação como realização consciente da cons-ciência humano-divina é a fase de desen-

volvimento do momento em que o homemmoderno se encontra.

Ibsen descreve os dilemas que suscitam arejeição de um antigo período e a formaçãode um novo. Ponto principal: começar, pri-meiro, por já não satisfazer seus desejosegoístas habituais; depois, reencontrar,dentro de si, o homem “feito à imagem deDeus” pois esta é a própria essência do serinterior e constitui a primeira fase desseprocesso.

O teatro, o palco, era a oficina de traba-lho de Ibsen. De 1848 a 1899, ele crioudezenove peças importantes, atingiu umpúblico bem grande e fascinou rapidamen-

te toda a Europa, come-çando pela Escandiná-via. Ele sacudiu forte-mente as relações sociaiscristalizadas da época epôs em cena uma novahumanidade, umapotente e verdadeirahumanidade, mantendo-se bem acima dos tími-dos compromissos diá-

rios. Ao mesmo tempo, ele criticou radical-mente a mentira, a fraqueza e o oportunis-mo corrompido da sociedade moderna. Eletratou das liberdades superiores, das liber-dades interiores que estão no campo daalma. Em seu tempo, as estruturas sociaisse mantinham por elas mesmas bem maisdo que hoje. É por isso que tudo passavapelo crivo de Ibsen: o casamento, a família,a religião – ele não excluía nada.

Em Casa de Bonecas (1879) ele coloca odedo na ferida de seu tempo: a questão damulher. “A sociedade moderna não éhumana. É uma sociedade masculina. Osadeptos da liberdade que querem melhorara condição feminina primeiro se informama respeito da opinião pública. Ou seja: aopinião dos homens de acordo como o sta-tus quo – exatamente como se perguntas-sem aos lobos se estão de acordo com asnovas regras que visam à salvação dos car-

J

“Vocês podem indagar-se

quem, nos tempos atuais,

teve mais influência sobre o

mundo intelectual do que

Henrik Ibsen.” James Joyce

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neiros.” Ibsen denunciou essa forma decovardia, de falsidade, e se opôs a ela for-malmente.

“O que importa é a revolução do espírito humano”

Para Ibsen, a revolução francesa aindanão passara – e ele ainda sentia suas reper-cussões. “Mas o que isso significa, nofundo?” – essa era uma das perguntas queele se fazia. No dia da derrota da Françapela Alemanha, 20 de setembro de 1870,ele escreveu ao famoso crítico GeorgeBrandes: “O que está acontecendo nomundo me faz pensar muito. O velhoreino da França foi vencido. Os novosprussianos, esses também serão vencidos,e nós vamos aterrissar de repente na auro-ra de uma era muito nova. Até agora,vivíamos unicamente das migalhas caídas

da mesa da revolução do século anterior.”E ele afirmou, desencantado: “Os

homens querem apenas revoluções espe-ciais, exteriores, etc. Porém, essas sãomigalhas. O que importa são os valores eas tarefas da existência humana. O queimporta é a revolução do espírito humano!”

Os pilares da sociedade

Escândalos e corrupção pertencem aocotidiano e envenenam tudo. Os “pilaresda sociedade” são completamente vitima-dos pelas tentações por poder, dinheiro efama. Onde estão os verdadeiros pilaresda sociedade? Por toda parte reina umclima de frieza e de indiferença. É precisochegar a compreender que “o espírito daverdade e o espírito da liberdade são osverdadeiros pilares da sociedade”. E dequantas armadilhas o ser humano tem de

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se livrar! Ibsen compara a sociedade euro-péia a um navio em bom estado aparentevogando no mar – mas cujos passageiros,inconscientemente, estão tomados demedo. “O que aconteceu a bordo? Porque estão todos cheios de medo? O queparalisou os sentidos e a vontade, o braçoe a palavra? Da popa à proa circula secre-tamente um murmúrio: o navio embarcouum cadáver!”

De fato, nessa sociedade do século deze-nove tudo não passa de “falsa aparência,de odor suspeito”. Tudo clama a necessi-dade de uma purificação, em todos os pla-nos e até na esfera espiritual – e o clamor égrande.

Vejam quanto espanto existe nessa afir-mação do crítico Alfred Kerr: “O que háde melhor no que inspirou Ibsen nestaépoca mentirosa é uma aspiração à verdadeno domínio artístico; um impulso de vida

para o que há de sério nesta época de gran-de superficialidade nas artes; a vontade demovimentar-se em um tempo de estagna-ção; e a coragem de agarrar qualquer mate-rial que contenha o humano, venha ele deonde vier!”

A missão de Ibsen

Ibsen sentia-se chamado – o que nãoquer dizer que ele recebia encorajamentode alguém. No final de sua vida, ele viviaem condições muito modestas e, em 1866,requisitou ao rei da Suécia e da Noruegaum sustento financeiro: “Não estou bus-cando fugir das minhas obrigações e ficardespreocupado. Meu trabalho é aquelepara o qual Deus me chamou: a missão dedespertar o povo e ensiná-lo a pensargrande.”

Em muitas conversas e cartas ele sempreprocurava dirigir a atenção para as grandespossibilidades no ser humano. Ele afirma-va: “Acredito que não podemos fazer nadadiferente ou melhor do que nos realizar-mos em espírito e verdade”. E isso nãotem nada a ver com qualquer tipo de reali-zação em nível horizontal. Esse esforçoprecisa seguir novos caminhos, e isso eleexpressa no poema Pa vidderne (Nas altu-ras) de 1860. Essa linguagem simbólicamostra que o homem pleno de aspiraçãodeve se livrar de tudo o que geralmente éadmitido, apesar de todos os seus laçoscom seus semelhantes. Essa incitação àliberdade só alcançará sua meta se os obs-táculos interiores forem eliminados.

O período criativo, “Brand”

Quanto mais claramente Ibsen observavaa sociedade mais ele se via implicado noprocesso de autoconhecimento. Sem dúvi-da, ele descreveu muito da própria alma napeça intitulada “Brand”. Nela ele segura oespelho diante do próprio semblante. Eledisse: “Brand sou eu nos meus melhores

Acima: Hendrik Ibsen, 1828-1906.

À esquerda: Cabeça de uma jovem vista de perfil,Aristide

Maillol, Paris, 1861-1944, pastel e carvão.

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momentos”. Aqui ele presta contas a simesmo de sua visão de vida nessa época. Em1865, ele morou na Itália e sentiu repentina-mente como encontrara “uma forma forte eclara” para aquilo que tinha a dizer. O con-teúdo da peça é perfeitamente claro, emboraa crítica não o tenha compreendido bem.Ibsen põe em cena um pastor protestante(Brand), que é a encarnação do novo ho-mem, aquele que quer substituir o miseráveldeus do dinheiro e dos compromissos, e atémesmo o deus das igrejas, cujo princípio é alibertação do homem físico, pelo grandeDeus eterno que mora no imo de todos osseres humanos. É o Deus que irradia atravésdo Universo inteiro a energia e a sabedoria;o Deus à imagem do qual os homens foramcriados originalmente e que se manifestaapenas naqueles que renunciam a todo equalquer egoísmo e baixeza; o Deus cuja

exigência é “tudo ou nada”.O divino só se expande no homem que

se entrega sem restrição a essa energia inte-rior. Enquanto ele ainda estiver preso,mesmo que seja minimamente, aos hábitosque mais preza; enquanto ele pensar quesua salvação virá de seus ideais elevados oude seu status social, a porta não se abrirá. Étudo ou nada. Uma atitude como essadesenvolve uma dinâmica incrível: ela faznascer a tempestade do espírito. É precisodizer que os limites do pastor Brand (e,portanto, de Ibsen) são evidentes. Pode serque Brand exija de si mesmo “tudo ounada”, mas ele também o exige dos outros.Algumas vezes ele o exige à maneira doDeus do Antigo Testamento. E, fazendoisso, ele oprime outros à sua volta e tam-bém a si mesmo. Brand deveria trabalhar

em si mesmo e com outros para, mediantediscernimento e nova atitude de vida, abrirum caminho para o superior. Contudo elefracassa, não apenas por causa da fraqueza eda indiferença de seus semelhantes, mastambém pela dureza consigo mesmo e comseus semelhantes. Entretanto, parece queno final da peça ele compreende o que fize-ra de errado: ele reconhece que Deus não éapenas um Deus de exigências intransigen-tes, porém também um Deus da graça!Conseqüentemente, não devemos falar deum deus de determinada igreja, ou da pala-vra na qual é preciso acreditar para sermossalvos. É o trabalho interior que é determi-nante. A lei que diz que a natureza terrestrenão pode revestir a natureza celeste conti-nua válida. E com isso também a exigênciaintransigente de que a natureza celestesomente pode ser alcançada mediante a

libertação da natureza terrestre. Mas eledever ter confiança: a “graça” divina viráem seu auxílio se ele se esforçar por seguir asenda do “tudo ou nada” e se seu antigo euse submeter ao dever de se tornar interior-mente à imagem de Deus. A partir daí, “agraça”, as forças divinas, se encarrega dotrabalho que não lhe seria possível pelaspróprias forças.

Peer Gynt, o Faust escandinavo

Peer Gynt, o Fausto escandinavo doperíodo pré-romântico, é um aventureiro eum mentiroso que quer subir na vida dequalquer maneira. Seus pensamentos só cir-culam ao redor de seu próprio ego. Pode-ríamos dizer que ele é o homem que reageao chamado da realização do ser divino no

O caminho do egocentrismo leva à frieza e ao completo isolamento.

Pelo contrário, a busca pela verdade, pelo que é divino na criação, leva

à comunhão do amor com todos os seres com base na nova alma.

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nível de seu eu comum, e busca sua salva-ção neste mundo. Ele abandona a mulherque ama e tenta a sorte como armador,garimpeiro, cientista e filósofo. Ele é céle-bre, rico, altamente considerado. Em Ale-xandria, é coroado “imperador do egocen-trismo”. Ele vai atrás de seus inúmerosdesejos, mas não consegue tornar-se com-pletamente adulto e está sempre buscandoa si mesmo. Quando chega a uma idadeavançada, cansado da vida, ele faz umbalanço, sem piedade. Nesse ponto, Ibsenescolhe uma simbologia magnífica: o velhoPeer Gynt está em cena e está descascandouma cebola; a cada camada que ele tira vaipassando um dos personagens cujo papelele desempenhou em sua vida. Mas umacebola não tem caroço nem semente, e,portanto, ele não encontra nada disso. Eele declara: “Uma alma pode se achar indi-zivelmente pobre na névoa do nada. Terramagnífica, não fique irritada se eu percorrisuas pradarias completamente perdido. Solesplêndido, esbanjei sua luz radiosa emuma casa vazia. Não há ninguém dentrodela. O proprietário, assim me disseram,nunca esteve nela.”

Nessa hora, Ibsen coloca em cena umhomem talentoso, mas que no fim fracas-sa, pois empregou inutilmente sua vitalida-de, desperdiçou suas oportunidades. Essa éuma ocasião extremamente estimulantepara o espectador; ele pode comprovar onada para o qual o egocentrismo conduz eentrever, através desse nada, pelo menos apossibilidade de uma existência em umplano mais elevado. Nesse momento eletambém pode aprender que a tentativa debuscar a realização de sua verdadeira natu-reza no plano terrestre só o levará aovazio. O ser divino só crescerá quando oser terrestre diminuir.

“Quando despertarmos dentre os mortos”

Essa última peça (1899), foi escrita por

Ibsen seis anos antes de sua morte. Trata-se de um escultor que alcançou o sucesso eque, apesar disso, não é feliz. Como o pró-prio Ibsen, depois de muitos anos, ele vol-tou para a Noruega, seu país natal. Umade suas esculturas tem o nome de: “Lutopor uma vida desperdiçada”. Quando elevolta, aparece seu amor de juventude, quelhe estende o espelho da verdade. E o queele vê nesse espelho? Ele destruiu sua vidae a de outras pessoas, sacrificando-as àforça, com suas ambições desenfreadas.Ele negou seus ideais de outrora e abando-nou o amor de sua juventude.

O que Ibsen quer dizer com isso? Que oegoísmo é difícil de reconhecer. Mas, se“nós, os mortos, despertarmos interiormen-te”, veremos o que negligenciamos. Vere-mos que, até agora, não vivemos: estávamoscomo que mortos, e essa visão pode noslevar a uma nova vida. O caminho do ego-centrismo leva à frieza e ao completo isola-mento. Pelo contrário, a busca pela verdade,pelo que é divino na criação, leva à comu-nhão do amor com todos os seres com basena nova alma.

FONTE:Ibsen, H. Obras completas, 1909 Berlin,Hg. Elias J. & Koht H.

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uem examinar seriamente descobriráque a filosofia universal faz uma grandediferença entre “sabedoria” e “inteligên-cia”. Não porque a sabedoria seja tudo ea inteligência, nada; mas elas são descritascomo duas qualidades ou capacidadesdiferentes. O Criador conferiu aohomem sabedoria e inteligência. O Todo-Poderoso ligou o homem original à onis-ciência. E para que pudesse reagir à onis-ciência, o ser humano recebeu a faculda-de da inteligência.

Essa faculdade transformou a sabedo-ria, de forma que o homem a pudessemanter. A memória humana funcionoucomo um acumulador, no qual a onis-ciência pode ser armazenada. Na memó-ria encontravam-se os centros da razão eda ação e também das funções sensoriaispuras.

Portanto, o homem podia considerarsobre a sabedoria recebida e experimen-

tada pelos sentidos, para, em seguida,tomar uma decisão para agir de acordocom a razão. Isso significava viver demodo perfeitamente responsável. E nessesentido podemos interpretar a expressão“o primeiro homem estava ligado a Deuspor uma obediência deliberada e cami-nhava pela mão de Deus”. Ele reagiaespontânea e inteligentemente à onisciên-cia de Deus. O homem era, assim, um“Deus de Deus, Filho do Pai, perfeitocomo seu Pai no céu é perfeito”. Haviaexclusivamente crescimento, revelação,como uma nebulosa que eventualmentese desenvolve em grupos de estrelas, sim-bolizados no zodíaco.

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Q

Erudição ou

sabedoria

verdadeira?

Acima: O novo homem, esboço construtivista de El Lissitsky,

Moscou, 1913.

À direita: A árvore da Vida, Gustav Klimt.Têmpera e grafite

sobre papel. Viena, 1905-1909.

Há uma diferença grande e intransponível entre os conceitos “erudição” e “sabedoria”. Para os

buscadores que estão no caminho da espiritualidade é importante compreender que a sabedoria

divina jamais será o mesmo que a erudição que se pode obter pela reunião de informações.

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A causa de muitos sofrimentos

Quando falamos a respeito de “bomsenso”, o que devemos compreender é evi-dente. O Criador deu à pré-humanidadesabedoria e bom senso. E aí descobrimosuma das mais profundas causas dos sofri-mentos humanos, pois há muitíssimotempo o homem perdeu todo o bomsenso. Ele está seriamente doente e desor-ganizado. O santuário da cabeça está des-naturado e o pensamento racional destanatureza tornou-se uma terrível caricaturada glória passada. Esses fatos, que podemser confirmados na prática, criaram umasituação extremamente confusa e inquie-tante. Nós nos damos conta daquilo que oapóstolo Tiago desejava dizer quandoindagava: “Mas quem é sábio e inteligenteentre nós?” (Tiago 3:13) Eis aí a terrívelconclusão: ninguém é sábio e inteligente!

No mundo dialético, ninguémdispõe de uma faculdade deinteligência saudável. Conse-qüentemente, ninguém estáligado com a onisciência. Arecomendação de “caminharpela mão do Senhor” é umahistória doce, porém perigosa.Nesse sentido, as palavras deJesus são muito atuais: “Nin-guém é bom, senão só um, queé Deus” (Lucas 18:19).A fim de nos aprofundar nesseproblema, digamos que hádiferentes tipos humanos. Oprimeiro tipo é o homemculto, que há tempos se ocupaem desenvolver sua faculdadede inteligência. Ora, no estadode queda da sabedoria na terra,a faculdade de inteligênciadepende sempre dos estímulosexteriores. Como a influênciado Logos já não se faz sentir, e

como falta o poder daquilo que chamamoscundalini, as normas, hipóteses, cultura ereligião ou outras especulações afetivassubstituíram o saber absoluto. Assim, obom senso viu-se constrangido e forçadoem determinada direção.

O sangue transmite esse fato de geraçãoem geração.

Os estímulos exteriores repetitivos emonótonos ligados ao correspondenteimpulso interior do sangue transformaramo ser humano no ser intelectual que ele éagora ou no qual se tornará. A inteligênciada criança já é determinada por um planoeducativo protegido por lei. A experiênciamostra, entretanto, que também o homemé ou será extremamente infeliz. Ele estácontinuamente na busca por uma felicida-de que sempre lhe escapa. Enquanto issoeles causam um dano incalculável para simesmos e para seus filhos: um dano que semanifesta, por fim, até mesmo em suaestrutura orgânica.Retrato de Jan van Rijckenborgh, 1896-1968.

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As conseqüências no físico

Cada órgão do corpo humano é santifi-cado ou condenado de acordo com o obje-tivo com que é usado. A intelectualidadedesenvolvida exageradamente tornaimpossível a assimilação da sabedoriamaior. Os órgãos apropriados do cérebro,que permitem essa assimilação, funcionamem uma condição inquietante. Uma for-mação intelectual desse tipo só pode seguiraté certo ponto, além do qual surgem ouestagnação ou dano.

Um outro tipo humano é o das pessoasde pouco entendimento. Suas capacidadesmentais, por diversas razões, continuamabaixo de certo nível. A ciência esotéricachama esse estado de “consciência cerebrallunar”. As pessoas desse tipo são sensíveisaos contatos com o abstrato, mas nãopodem nem compreender nem assimilar osimpulsos de natureza universal. Elas sãoprofundamente atraídas para o que é mis-

terioso e oculto, e se perdem facilmente nomisticismo. Por outro lado, elas quasesempre invejam os temperamentos intelec-tuais que se destacam na sociedade. Essainveja geralmente se expressa sob a formade um desejo de sucesso rápido, ou deuma vontade de ganhar mais para si mes-mas ou para seus filhos. A luta de classesestá estreitamente ligada a isso.

Além desses dois tipos humanos, exis-tem ainda inúmeras subdivisões que, semexceção, são desprovidas de compreensãosaudável.

Se examinamos esse problema mais deperto, torna-se claro que o ser humanopossui três centros importantes. Em nossafilosofia, nós os denominamos: santuárioda cabeça, santuário do coração e santuá-rio pélvico ou santuário da bacia. Nohomem atual, esses três núcleos já nãoestão em harmonia. O intelecto e o senti-mento, por exemplo, podem cooperar,enquanto a ação permanece distante. Ou

Consultando a Bíblia, vemos que Satã – um dos filhos de Deus (Jó, 1:6) é o diabo na interpretação exotérica

e o dragão no sentido pejorativo e infernal desse termo. Mas, de acordo com a Cabala, Samael, ou Satã, é

idêntico a Micael, ou Miguel, vencedor do dragão. Como se pode explicar isso? […] Esses dois vocábulos

vêm das palavras hebraicas ruach (espírito), neshamah (alma), e nephesh (vida). No Livro caldeu dos números,Samael é a sabedoria oculta e Micael é a sabedoria terrestre superior; os dois emanam da mesma fonte,

mas, após seu aparecimento, se separam da alma do mundo, que, na terra é mahat (a compreensão intelectual)

ou manas (a sede do intelecto). Eles se separam porque um deles (Micael) está sob a influência de neshamah,

enquanto o outro (Samael) não é influenciável.

A igreja dogmática mutilou esse ensinamento porque abominava seu espírito independente que não se deixava

influenciar pela forma exterior (portanto, pelos homens). Ela transformou Samael-Satã, o espírito mais sábio

e espiritual de todos, em Satanás, o opositor de seus deus antropomorfo e também do homem material e

sensorial-orgânico!

Assim, quando a igreja amaldiçoou Satanás, ela amaldiçoou o reflexo cósmico de Deus; ela proferiu um

anátema sobre Deus que se manifesta na matéria e no objetivo; ela amaldiçoou Deus, a sabedoria sempre

incompreensível, que se manifesta na natureza como luz e sombra, bem e mal, portanto na única forma em

que ela pode ser compreendida pelo intelecto limitado do homem.

Essa é a verdadeira interpretação filosófica e metafísica do opositor (Samael ou Satanás), na Cabala.

Encontramos o mesmo ensinamento e o mesmo espírito nas interpretações alegóricas de todas as outras

religiões antigas.

A Doutrina Secreta, Helena Blavatsky

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então o cérebro volta-se para a ação sem seocupar dos sentimentos. Ou a ação e ossentimentos estão sintonizados e o intelectonão desempenha um papel significativo. Napsicologia moderna encontramos inúmerosexemplos que ilustram esse antigo ensina-mento.

A teofania

Qualquer pessoa que se sinta como seestivesse em uma descida escorregadiacomeçará a pensar que é preciso urgente-mente mudar a direção de sua vida e vai seindagar como deve fazer isso. Isso é possí-vel: basta operar uma mudança completa ese empenhar no processo de transfiguração.Não se trata de uma cultura da personalida-de, mas de uma re-criação do inteiro micro-cosmo. Para evitar qualquer tipo de malentendido, não vamos falar a respeito de“renascimento”, pois esse conceito podesuscitar enganos, êxtases místicos, confusãoou morosidade – e, para muita gente esseconceito leva a uma conversão de formareligiosa natural, seguida de uma espécie deobumbramento causada por forças incon-

troláveis. Os antigos indicavam a ciência datransfiguração como “teofania”, uma novamanifestação do homem divino. As tradi-ções mais antigas dizem que nesse momen-to Jesus aparece visivelmente no mundo;em seguida, é dito que o Espírito Santomostra-se a Jesus. Ao pé da letra, “teofa-nia” significa a manifestação perceptível dadivindade.

Essa ciência é tão vasta, tão grandiosa eao mesmo tempo tão complexa que éimpossível avaliá-la em sua totalidade. Defato, cada processo de transfiguração devecomeçar com um ataque profundo à arro-gante inteligência humana, pois a inteligên-cia atual é o principal fator que se opõe aosurgimento do homem divino. A doutrinauniversal explica a cada candidato que seucérebro (o órgão de sua natureza organo-sensorial) é o maior inimigo da sabedoriauniversal. Pouco importa se a pessoa temum preparo intelectual ou não: no plano danatureza, todo e qualquer método de cultu-ra do poder mental é perigoso, sem exce-ção, e seu resultado é sempre negativo.Uma inteligência sadia: é isso o que a trans-figuração tem como meta. Porém isso é

CundaliniLiteralmente esse termo sânscrito significa “enrolado” ou “enrolado como uma serpente”. Muitas outras

traduções sublinham essa semelhança com a serpente – daí vem a palavra fogo serpentino ou força da

serpente.A representação de duas serpentes enlaçadas, formando o caduceu, simboliza esta força da

cundalini: o poder da força que segue em linha tortuosa. É o princípio universal de vida que se manifesta

em tudo e por toda parte na natureza, sob a forma de duas grandes forças: uma, de atração; outra, de

repulsão – uma adaptação contínua das relações exteriores às interiores.

Acontece que, se o desejo modifica o estado interior, uma potente energia é liberada no coração, que é

o centro espiritual – uma energia que nossa filosofia qualifica de cundalini do coração.

A força da cundalini constitui o fundamento da transfiguração. No começo da edificação da alma, essa

energia vai impregnando sucessivamente todos os órgãos e fluidos até o momento em que ela acaba

atingindo o santuário da cabeça, onde surge, então, um núcleo espiritual orientado de forma totalmente

nova: é o templo da sabedoria no ser humano, o templo da rosa áurea. Apenas um esforço puramente

altruísta que tenha em vista a nova vida pode ativar a energia da cundalini do coração. Qualquer outra

forma de trabalho com a cundalini tem o risco de ser perigosa.

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impossível no contexto da dualidade, e daísurge a pergunta embaraçante: Como esca-par das conseqüências dessa situação? Aresposta é, mais uma vez: “o socorro chegaao mesmo tempo em que o homem divinoreaparece”.

Como a constituição biológica, moral eespiritual do homem impede essa novamanifestação, esse novo nascimento éimpossível. Ao homem natural falta tudo oque é necessário para realizá-lo. Por isso ohomem necessita de um novo martelo euma nova palavra: ele deve ser um franco-maçom legítimo. Para fazer isso, cada umde nós precisará de ajuda, de um interces-sor, da mão estendida de Deus, sem a qualnada podemos. Ora, o homem perdidorecebe essa ajuda da força denominada“Cristo”. Não estamos falando do Cristohistórico, teológico, mas sim da força que,em seu incomensurável amor, desce aomundo para salvar os seres humanos.

Um novo martelo e uma nova palavra

Se o construtor quiser realizar sua obrasem ver seus esforços desperdiçados, eledeve adquirir um novo martelo e uma novapalavra. Ou seja: ele precisa alcançar a forçaque o Logos lhe confere. Quando, após 120anos, o corpo de Cristiano Rosacruz é des-coberto em perfeito estado em seu túmulo,vê-se a gravação sobre a placa de bronzeque fechava sua tumba, onde havia a seguin-te inscrição: “Jesus é tudo para mim”. Insis-timos mais uma vez: isso não tem nada aver com um suposto Jesus que nasceu hádois mil anos. Trata-se da mão estendida deDeus, que nos impulsiona e nos conduz àtransfiguração.

Se quisermos compreender algo desseprocesso de salvação com a inteligência,então a ciência da libertação vem em nossoauxílio. No cérebro existem sete cavidadesou ventrículos. Quando um candidato sério

inicia o caminho da libertação na força deCristo, essa força divina mediatriz entra emcontato com as sete cavidades cerebrais.Trata-se da efusão do Espírito Santo Sétu-plo, ou do “som das sete harmonias divi-nas”. No momento em que as sete cavida-des cerebrais são assim estimuladas, e oprocesso da transfiguração é apoiado pelaforça do sangue, essas cavidades se enchemde energia libertadora. Ao mesmo tempo, ocerebelo e a maravilhosa medula adquiremum novo poder, que permite um intercâm-bio mental espiritual entre o homem e oCriador.

O antigo Livro caldeu dos números falasobre isso quando conta a ligação deSamael – o hierofante do mistério oculto –e de Micael – a sabedoria terrestre superior.É somente depois dessa efusão sétupla doEspírito Santo que poderemos qualificar ocandidato como “pensador”, ou “Manas”,ou “mahatma”. A partir de então, inicia-seo processo de transfiguração.

Sem a inteligência que conhece a sabedo-ria ninguém poderá percorrer sequer umcentímetro na senda da iluminação.

J. van Rijckenborgh

O pensador,Auguste Rodin. Escultura em bronze. Paris, 1880.

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