ruy mauro marini - dialética da dependência
TRANSCRIPT
MIA> Biblioteca> Marini > Novidades Dialtica da DependnciaRuy Mauro Marini1973
Primeira edio: Ensaio datado de 1973. No mesmo ano o autor
escreveu um texto complementar, guisa de post-scriptum, segundo ele
"para esclarecer algumas questes e desfazer certos equvocos que o
texto tem suscitado."
Traduo: Marcelo Carcanholo, Universidade Federal de Uberlndia MG.
Post-scriptum traduzido por Carlos Eduardo Martins, Universidade
Estcio de S, Rio de Janeiro, RJ.
Fonte: Editora Era, Mxico, 1990, 10a edio (Ia edio, 1973). O
post-scriptum conforme: Revista Latinoamericana de Cincias
Sociales, Flacso, (Santiago de Chile), n 5, junho 1973. Verso
digitalizada conforme publicado em "Ruy Mauro Marini: Vida e Obra",
Editora Expresso Popular, 2005. Orgs. Roberta Traspadini e Joo
Pedro Stedile. Este documento encontra-se em
www.centrovictormeyer.org.br
Transcrio: Diego Grossi
HTML: Fernando A. S. Arajo
Sumrio1. A integrao ao mercado mundial2. O segredo da troca
desigual3. A superexplorao do trabalho4. O ciclo do capital na
economia dependente5. O processo de industrializao6. O novo anel da
espiral7. Post-scriptum[...] o comrcio exterior, quando se limita a
repor os elementos (tambm enquanto a seu valor), no faz mais do que
deslocar as contradies para uma esfera mais extensa, abrindo para
elas um campo maior de atuao.
Marx, O CapitalAcelerar a acumulao mediante um desenvolvimento
superior da capacidade produtiva do trabalho e aceler-la por meio
de uma maior explorao do trabalhador, so dois procedimentos
totalmente distintos.
Marx, O CapitalEm sua anlise da dependncia latino-americana, os
pesquisadores marxistas incorreram, geralmente, em dois tipos de
desvios: a substituio do fato concreto pelo conceito abstrato, ou a
adulterao do conceito em nome de uma realidade rebelde para
aceit-lo em sua formulao pura. No primeiro caso, o resultado tem
sido os estudos marxistas chamados de ortodoxos, nos quais a
dinmica dos processos estudados se volta para uma formalizao que
incapaz de reconstru-la no mbito da exposio, e nos que a relao
entre o concreto e o abstrato se rompe, para dar lugar a descries
empricas que correm paralelamente ao discurso terico, sem fundir-se
com ele; isso tem ocorrido, sobretudo, no campo da histria
Econmica. O segundo tipo de desvio tem sido mais frequente no campo
da sociologia, no qual, frente dificuldade de adequar a uma
realidade categorias que no foram desenhadas especificamente para
ela, os estudiosos de formao marxista recorrem simultaneamente a
outros enfoques metodolgicos e tericos; a consequncia necessria
desse procedimento o ecletismo, a falta de rigor conceituai e
metodolgico e um pretenso enriquecimento do marxismo, que na
realidade sua negao.Esses desvios nascem de uma dificuldade real:
frente ao parmetro do modo de produo capitalista puro, a economia
latino-americana apresenta peculiaridades, que s vezes se
apresentam como insuficincias e outras nem sempre distinguveis
facilmente das primeiras como deformaes. No acidental portanto a
recorrncia nos estudos sobre a Amrica Latina a noo de
"pr-capitalismo". O que deveria ser dito que, ainda quando se trate
realmente de um desenvolvimento insuficiente das relaes
capitalistas, essa noo se refere a aspectos de uma realidade que,
por sua estrutura global e seu funcionamento, no poder
desenvolver-se jamais da mesma forma como se desenvolvem as
economias capitalistas chamadas de avanadas. por isso que, mais do
que um pr-capitalismo, o que se tem um capitalismo sui generis, que
s adquire sentido se o contemplamos na perspectiva do sistema em
seu conjunto, tanto em nvel nacional, quanto, e principalmente, em
nvel internacional.Isso verdade, sobretudo, quando nos referimos ao
moderno capitalismo industrial latino-americano, tal como se tem
constitudo nas duas ltimas dcadas. Mas, em seu aspecto mais geral,
a proposio vlida tambm para o perodo imediatamente precedente e
ainda para a etapa da economia exportadora. bvio que, no ltimo
caso, a insuficincia prevalece ainda sobre a distoro, mas se
desejamos entender como uma se converteu na outra luz desta que
devemos estudar aquela. Em outros termos, o conhecimento da forma
particular que acabou por adotar o capitalismo dependente
latino-americano o que ilumina o estudo de sua gestao e permite
conhecer analiticamente as tendncias que desembocaram nesse
resultado.Mas aqui, como sempre, a verdade tem um duplo sentido: se
certo que o estudo das formas sociais mais desenvolvidas lana luz
sobre as formas mais embrionrias (ou, para diz-lo com Marx, "a
anatomia do homem um a chave para a anatomia do macaco")(1), tambm
certo que o desenvolvimento ainda insuficiente de uma sociedade, ao
ressaltar um elemento simples, torna mais compreensvel sua forma
mais complexa, que integra e subordina esse elemento. Como assinala
Marx:[...] a categoria mais simples pode expressar as relaes
dominantes de um todo no desenvolvido ou as relaes subordinadas de
um todo mais desenvolvido, relaes que j existiam historicamente
antes de que o todo se desenvolvesse no sentido expressado por uma
categoria mais concreta. S ento, o caminho do pensamento abstrato,
que se eleva do simples ao complexo, poderia corresponder ao
processo histrico real.(2)Na identificao desses elementos, as
categorias marxistas devem ser aplicadas, isto , realidade como
instrumentos de anlise e antecipaes de seu desenvolvimento
posterior. Por outro lado, essas categorias no podem substituir ou
mistificar os fenmenos a que se aplicam; por isso que a anlise tem
de ponder-las, sem que isso implique em nenhum caso romper com a
linha do raciocnio marxista, enxertando-lhe corpos que lhe so
estranhos e que no podem, portanto, ser assimilados por ela. O
rigor conceitual e metodolgico: a isso se reduz em ltima instncia a
ortodoxia marxista. Qualquer limitao para o processo de investigao
que dali se derive j no tem nada relacionado com a ortodoxia, mas
apenas com o dogmatismo.1. A integrao ao mercado mundialForjada no
calor da expanso comercial promovida no sculo 16 pelo capitalismo
nascente, a Amrica Latina se desenvolve em estreita consonncia com
a dinmica do capitalismo internacional. Colnia produtora de metais
preciosos e gneros exticos, a Amrica Latina contribuiu em um
primeiro momento com o aumento do fluxo de mercadorias e a expanso
dos meios de pagamento que, ao mesmo tempo em que permitiam o
desenvolvimento do capital comercial e bancrio na Europa,
sustentaram o sistema manufatureiro europeu e propiciaram o caminho
para a criao da grande indstria. A revoluo industrial, que dar
incio a ela, corresponde na Amrica Latina independncia poltica que,
conquistada nas primeiras dcadas do sculo 19, far surgir, com base
na estrutura demogrfica e administrativa construda durante a
Colnia, um conjunto de pases que passam a girar em torno da
Inglaterra. Os fluxos de mercadorias e, posteriormente, de capitais
tm nesta seu ponto de entroncamento: ignorando uns aos outros, os
novos pases se articularo diretamente com a metrpole inglesa e, em
funo dos requerimentos desta, comearo a produzir e a exportar bens
primrios, em troca de manufaturas de consumo e quando a exportao
supera as importaes de dvidas.(3) a partir desse momento que as
relaes da Amrica Latina com os centros capitalistas europeus se
inserem em uma estrutura definida: a diviso internacional do
trabalho, que determinar o sentido do desenvolvimento posterior da
regio. Em outros termos, a partir de ento que se configura a
dependncia, entendida como uma relao de subordinao entre naes
formalmente independentes, em cujo marco as relaes de produo das
naes subordinadas so modificadas ou recriadas para assegurar a
reproduo ampliada da dependncia. A consequncia da dependncia no
pode ser, portanto, nada mais do que maior dependncia, e sua
superao supe necessariamente a supresso das relaes de produo nela
envolvida. Neste sentido, a conhecida frmula de Andr Gunder Frank
sobre o "desenvolvimento do subdesenvolvimento" impecvel, como
impecveis so as concluses polticas a que ela conduz(4). As criticas
que lhe so dirigidas representam muitas vezes um passo atrs nessa
formulao, em nome de precises que se pretendem tericas, mas que
costumam no ir alm da semntica.Entretanto, e a reside a debilidade
do trabalho de Frank, a situao colonial no o mesmo que a situao de
dependncia. Ainda que se d uma continuidade entre ambas, no so
homogneas; como bem afirmou Canguilhem, "o carter progressivo de um
acontecimento no exclui a originalidade do acontecimento".(5) A
dificuldade da anlise terica est precisamente em captar essa
originalidade e, sobretudo, em discernir o momento em que a
originalidade implica mudana de qualidade. No que se refere s
relaes internacionais da Amrica Latina, se, como assinalamos, esta
desempenha um papel relevante na formao da economia capitalista
mundial (principalmente com sua produo de metais preciosos nos
sculos 16 e 17, mas sobretudo no 18, graas coincidncia entre o
descobrimento de ouro brasileiro e o auge manufatureiro ingls),(6)
somente no curso do sculo 19, e especificamente depois de 1840, sua
articulao com essa economia mundial se realiza plenamente.(7) Isto
se explica se considerarmos que com o surgimento da grande indstria
que se estabelece com bases slidas a diviso internacional do
trabalho.(8)A criao da grande indstria moderna seria fortemente
obstaculizada se no houvesse contado com os pases dependentes, e
tido que se realizar sobre uma base estritamente nacional. De fato,
o desenvolvimento industrial supe uma grande disponibilidade de
produtos agrcolas, que permita a especializao de parte da sociedade
na atividade especificamente industrial.(9) No caso da
industrializao europeia, o recurso simples produo agrcola interna
teria bloqueado a elevada especializao produtiva que a grande
indstria tornava possvel. O forte incremento da classe operria
industrial e, em geral, da populao urbana ocupada na indstria e nos
servios, que se verifica nos pases industriais no sculo passado, no
poderia ter acontecido se estes no contassem com os meios de
subsistncia de origem agropecuria, proporcionados de forma
considervel pelos pases latino-americanos. Isso foi o que permitiu
aprofundar a diviso do trabalho e especializar os pases industriais
como produtores mundiais de manufaturas. Mas no se reduziu a isso a
funo cumprida pela Amrica Latina no desenvolvimento do capitalismo:
sua capacidade para criar uma oferta mundial de alimentos, que
aparece como condio necessria de sua insero na economia
internacional capitalista, prontamente ser agregada a contribuio
para a formao de um mercado de matrias primas industriais, cuja
importncia cresce em funo do mesmo desenvolvimento industrial.(10)
O crescimento da classe trabalhadora nos pases centrais e a elevao
ainda mais notvel de sua produtividade, que resultam do surgimento
da grande indstria, levaram a que a massa de matrias primas voltada
para o processo de produo aumentasse em maior proporo.(11) Essa
funo, que chegar mais tarde a sua plenitude, tambm a que se revelar
como a mais duradoura para a Amrica Latina, mantendo toda sua
importncia mesmo depois que a diviso internacional do trabalho
tenha alcanado em novo estgio.O que importa considerar aqui que as
funes que cumpre a Amrica Latina na economia capitalista mundial
transcendem a mera resposta aos requisitos fsicos induzidos pela
acumulao nos pases industriais. Mais alm de facilitar o crescimento
quantitativo destes, a participao da Amrica Latina no mercado
mundial contribuir para que o eixo da acumulao na economia
industrial se desloque da produo de mais-valia absoluta para a de
mais-valia relativa, ou seja, que a acumulao passe a depender mais
do aumento da capacidade produtiva do trabalho do que simplesmente
da explorao do trabalhador. No entanto, o desenvolvimento da produo
latino-americana, que permite regio coadjuvar com essa mudana
qualitativa nos pases centrais, dar-se- fundamentalmente com base
em uma maior explorao do trabalhador. esse carter contraditrio da
dependncia latino-americana, que determina as relaes de produo no
conjunto do sistema capitalista, o que deve reter nossa ateno.2. O
segredo da troca desigualA insero da Amrica Latina na economia
capitalista responde s exigncias da passagem para a produo de
mais-valia relativa nos pases industriais. Esta entendida como uma
forma de explorao do trabalho assalariado que, fundamentalmente com
base na transformao das condies tcnicas de produo, resulta da
desvalorizao real da fora de trabalho. Sem aprofundar a questo,
conveniente fazer aqui algumas precises que se relacionam com nosso
tema.Essencialmente, trata-se de dissipar a confuso que se costuma
estabelecer entre o conceito de mais-valia relativa e o de
produtividade. De fato, se bem constitui a condio por excelncia da
mais-valia relativa, uma maior capacidade produtiva do trabalho no
assegura por si s um aumento da mais-vala relativa. Ao aumentar a
produtividade, o trabalhador s cria mais produtos no mesmo tempo,
mas no mais valor; justamente esse fato o que leva o capitalista
individual a procurar o aumento de produtividade, j que isso
permite reduzir o valor individual de sua mercadoria, em relao ao
valor que as condies gerais de produo lhe atribuem, obtendo assim
uma mais-valia superior de seus competidores ou seja, uma
mais-valia extraordinria.Dessa forma, essa mais-valia extraordinria
altera a repartio geral da mais-valia entre os diversos
capitalistas, ao traduzir-se em lucro extraordinrio, mas no
modifica o grau de explorao do trabalho na economia ou no setor
considerado, ou seja, no incide na taxa de mais-valia. Se o
procedimento tcnico que permitiu o aumento de produtividade se
generaliza para as demais empresas e, por isso, torna uniforme a
taxa de produtividade, isso tampouco acarreta no aumento da taxa de
mais-valia: ser elevada apenas a massa de produtos, sem fazer
variar seu valor, ou, o que o mesmo, o valor social da unidade de
produto ser reduzido em termos proporcionais ao aumento da
produtividade do trabalho. A consequncia seria, ento,no o
incremento da mais-valia, mas na verdade a sua diminuio.Isso se
deve ao fato de que a determinao da taxa de mais-valia no passa
pela produtividade do trabalho em si, mas pelo grau de explorao da
fora de trabalho, ou seja, a relao entre o tempo de trabalho
excedente (em que o operrio produz mais-valia) e o tempo de
trabalho necessrio (em que o operrio reproduz o valor de sua fora
de trabalho, isto , o equivalente a seu salrio).(12) S a alterao
dessa proporo, em um sentido favorvel ao capitalista, ou seja,
mediante o aumento do trabalho excedente sobre o necessrio, pode
modificar a taxa de mais-valia. Para isso, a reduo do valor social
das mercadorias deve incidir nos bens necessrios reproduo da fora
de trabalho, os bens-salrio. A mais-valia relativa est ligada
indissoluvelmente, portanto, desvalorizao dos bens-salrio, para o
que contribui, em geral, mas no necessariamente, a produtividade do
trabalho.(13)Esta digresso era indispensvel se desejssemos entender
bem porque a insero da Amrica Latina no mercado mundial contribuiu
para desenvolver o modo de produo especificamente capitalista, que
se baseia na mais-valia relativa. J mencionamos que uma das funes
que lhe foi atribuda, no marco da diviso internacional do trabalho,
foi a de prover os pases industriais dos alimentos exigidos pelo
crescimento da classe operria, em particular, e da populao urbana,
em geral, que ali se dava. A oferta mundial de alimentos, que a
Amrica Latina contribuiu para criar, e que alcanou seu auge na
segunda metade do sculo 19, ser um elemento decisivo para que os
pases industriais confiem ao comrcio exterior a ateno de suas
necessidade de meios de subsistncia.(14) O efeito dessa oferta
(ampliado pela depresso de preos dos produtos primrios no mercado
mundial, tema a que voltaremos adiante) ser o de reduzir o valor
real da fora de trabalho nos pases industriais, permitindo assim
que o incremento da produtividade se traduza ali em taxas de
mais-valia cada vez mais elevadas. Em outros termos, mediante a
incorporao ao mercado mundial de bens-salrio, a Amrica Latina
desempenha um papel significativo no aumento da mais-valia relativa
nos pases industriais.Antes de analisar o outro lado da moeda, isto
, as condies internas de produo que permitiro Amrica Latina cumprir
essa funo, cabe indicar que no s no nvel de sua prpria economia que
a dependncia latino-americana se revela contraditria: a participao
da Amrica Latina no progresso do modo de produo capitalista nos
pases industriais ser por sua vez contraditria. Isso se deve a que,
como assinalamos antes, o aumento da capacidade produtiva do
trabalho acarreta um consumo mais que proporcional de matrias
primas. Na medida em que essa maior produtividade acompanhada
efetivamente de uma maior mais-valia relativa, isso significa que
cai o valor do capital varivel em relao ao do capital constante
(que inclui as matrias primas), ou seja, que aumenta a
composio-valor do capital. Assim sendo, o que apropriado pelo
capitalista no diretamente a mas-valia produzida, mas a parte desta
que lhe corresponde sob a forma de lucro. Como a taxa de lucro no
pode ser fixada apenas em relao ao capital varivel, mas sobre o
total do capital adiantado no processo de produo, isto , salrios,
instalaes, maquinrio, matrias primas etc, o resultado do aumento da
mais-valia tende a ser sempre que implique, ainda que seja em
termos relativos, uma elevao simultnea do valor do capital
constante empregado para produzi-la uma queda da taxa de lucro.Essa
contradio, crucial para a acumulao capitalista, contraposta por
diversos procedimentos que, desde um ponto de vista estritamente
produtivo, se orientam tanto no sentido de incrementar ainda mais a
mais-valia, no intuito de compensar a queda da taxa de lucro,
quanto no sentido de induzir uma baixa paralela no valor do capital
constante, com o propsito de impedir que o declnio se apresente. Na
segunda classe de procedimentos, interessa aqui o que se refere
oferta mundial de matrias primas industriais, a qual aparece como
contrapartida desde o ponto de vista da composio-valor do capital
da oferta mundial de alimentos. Tal como se d com esta ltima,
mediante o aumento de uma massa de produtos cada vez mais baratos
no mercado internacional, que a Amrica Latina no s alimenta a
expanso quantitativa da produo capitalista nos pases industriais,
mas tambm contribui para que sejam superados os obstculos que o
carter contraditrio da acumulao de capital cria para essa
expanso.(15) Existe, entretanto, outro aspecto do problema que deve
ser considerado. Trata-se do fato suficientemente conhecido de que
o aumento da oferta mundial de alimentos e matrias primas tem sido
acompanhado da queda dos preos desses produtos, relativamente ao
preo alcanado pelas manufaturas.(16) Como o preo dos produtos
industriais se mantm relativamente estvel, e em alguns momentos ca
lentamente, a deteriorao dos termos de troca est refletindo de fato
a depreciao dos bens primrios. evidente que tal depreciao no pode
corresponder desvalorizao real desses bens, devido a um aumento de
produtividade nos pases no industriais, j que precisamente ali onde
a produtividade se eleva mais lentamente. Convm, portanto, indagar
as razes desse fenmeno, assim como as do porqu no se traduziu em
desestmulo para a incorporao da Amrica Latina na economia
internacional.O primeiro passo para responder a essa interrogao
consiste em deixar de lado a explicao simplista que no quer ver ali
nada mais do que o resultado da lei de oferta e procura. Ainda que
seja evidente que a concorrncia desempenha um papel decisivo na
fixao dos preos, ela no explica por que, do lado da oferta,
verifica-se uma expanso acelerada independentemente de que as
relaes de troca estejam se deteriorando. Tampouco seria possvel
interpretar o fenmeno se nos limitssemos a constatar empiricamente
que as leis mercantis tm sido falseadas no plano internacional,
graas presso diplomtica e militar por parte das naes industriais.
Esse raciocnio, ainda que se apoie em fatos reais, inverte a ordem
dos fatores, e no v que a utilizao de recursos extra-econmicos
derivada precisamente do fato de existir por trs uma base econmica
que a torna possvel. Ambos os tipos de explicao contribuem,
portanto, para ocultar a natureza dos fenmenos estudados e conduzem
a iluses sobre o que realmente a explorao capitalista
internacional.No porque foram cometidos abusos contra as naes no
industriais que estas se tornaram economicamente dbeis, porque eram
dbeis que se abusou delas. No tampouco porque produziram alm do
necessrio que sua posio comercial se deteriorou, mas foi a
deteriorao comercial o que as forou a produzir em maior escala.
Negar-se a ver as coisas dessa forma mistificar a economia
capitalista internacional, fazer crer que essa economia poderia ser
diferente do que realmente . Em ltima instncia, isso leva a
reivindicar relaes comerciais equitativas entre as naes, quando se
trata de suprimir as relaes econmicas internacionais que se baseiam
no valor de troca.De fato, medida que o mercado mundial alcana
formas mais desenvolvidas, o uso da violncia poltica e militar para
explorar as naes dbeis se torna suprfluo, e a explorao
internacional pode descansar progressivamente na reproduo de relaes
econmicas que perpetuam e amplificam o atraso e a debilidade dessas
naes. Verifica-se aqui o mesmo fenmeno que se observa no interior
das economias industriais: o uso da fora para submeter a massa
trabalhadora ao imprio do capital diminui medida que comeam a jogar
mecanismos econmicos que consagram essa subordinao.(17) A expanso
do mercado mundial a base sobre a qual opera a diviso internacional
do trabalho entre as naes industriais e as no industriais, mas a
contrapartida dessa diviso a ampliao do mercado mundial. O
desenvolvimento das relaes mercantis coloca as bases para que uma
melhor aplicao da lei do valor tenha lugar, mas, simultaneamente,
cria todas as condies para que operem os distintos mecanismos
mediante os quais o capital trata de burl-la.Teoricamente, o
intercmbio de mercadorias expressa a troca de equivalentes, cujo
valor se determina pela quantidade de trabalho socialmente
necessrio que as mercadorias incorporam. Na prtica, observam-se
diferentes mecanismos que permitem realizar transferncias de valor,
passando por cima das leis da troca, e que se expressam na forma
como se fixam os preos de mercado e os preos de produo das
mercadorias. Convm distinguir os mecanismos que operam no interior
de uma mesma esfera de produo (tratando-se de produtos
manufaturados ou de matrias primas) e os que atuam no marco de
distintas esferas que se interrelacionam. No primeiro caso, as
transferncias correspondem a aplicaes especficas das leis de troca;
no segundo, adotam mais abertamente o carter de transgresso delas.E
assim como, por conta de uma maior produtividade do trabalho, uma
nao pode apresentar preos de produo inferiores a seus concorrentes,
sem por isso baixar significativamente os preos de mercado que as
condies de produo destes contribui para fixar. Isso se expressa,
para a nao favorecida, em um lucro extraordinrio, similar ao que
constatamos ao examinar de que maneira os capitais individuais se
apropriam do fruto da produtividade do trabalho. E natural que o
fenmeno se apresente sobretudo em nvel da concorrncia entre naes
industriais, e menos entre as que produzem bens primrios, j que
entre as primeiras que as leis capitalistas da troca so exercidas
de maneira plena; isso no quer dizer que no se verifiquem tambm
entre estas ltimas, principalmente quando se desenvolvem ali as
relaes capitalistas de produo.No segundo caso transaes entre naes
que trocam distintas classes de mercadorias, como manufaturas e
matrias primas o mero fato de que umas produzam bens que as outras
no produzem, ou no o fazem com a mesma facilidade, permite que as
primeiras iludam a lei do valor, isto , vendam seus produtos a
preos superiores a seu valor, configurando assim uma troca
desigual. Isso implica que as naes desfavorecidas devem ceder
gratuitamente parte do valor que produzem, e que essa cesso ou
transferncia seja acentuada em favor daquele pas que lhes venda
mercadorias a um preo de produo mais baixo, em virtude de sua maior
produtividade. Neste ltimo caso, a transferncia de valor dupla,
ainda que no necessariamente aparea assim para a nao que transfere
valor, j que seus diferentes provedores podem vender todos a um
mesmo preo, sem prejuzo de que os lucros se distribuam
desigualmente entre eles e que a maior parte do valor cedido se
concentre em mos do pas de produtividade mais elevada.Frente a
esses mecanismos de transferncia de valor, baseados seja na
produtividade, seja no monoplio de produo, podemos identificar
sempre no nvel das relaes internacionais de mercado um mecanismo de
compensao. Trata-se do recurso ao incremento de valor trocado, por
parte da nao desfavorecida: sem impedir a transferncia operada
pelos mecanismos j descritos, isso permite neutraliz-la total ou
parcialmente mediante o aumento do valor realizado. Esse mecanismo
de compensao pode ser verificado tanto no plano da troca de
produtos similares quanto de produtos originados de diferentes
esferas de produo. Preocupamo-nos aqui apenas com o segundo caso.O
que importa assinalar aqui que, para aumentar a massa de valor
produzida, o capitalista deve necessariamente lanar mo de uma maior
explorao da fora de trabalho, seja atravs do aumento de sua
intensidade, seja mediante a prolongao da jornada de trabalho, seja
finalmente combinando os dois procedimentos. A rigor, s o primeiro
o aumento da intensidade do trabalho se contrape realmente s
desvantagens resultantes de uma menor produtividade do trabalho, j
que permite a criao de mais valor no mesmo tempo de trabalho.
Factualmente, todos contribuem para aumentar a massa de valor
realizada e, por isso, a quantidade de dinheiro obtida atravs da
troca. Isso o que explica, neste plano da anlise, que a oferta
mundial de matrias primas e alimentos aumente medida que se acentua
a margem entre seus preos de mercado e o valor real da produo.(18)O
que aparece claramente, portanto, que as naes desfavorecidas pela
troca desigual no buscam tanto corrigir o desequilbrio entre os
preos e o valor de suas mercadorias exportadas (o que implicaria um
esforo redobrado para aumentar a capacidade produtiva do trabalho),
mas procuram compensar a perda de renda gerada pelo comrcio
internacional por meio do recurso de uma maior explorao do
trabalhador. Chegamos assim a um ponto em que j no nos basta
continuar trabalhando simplesmente a noo de troca entre naes, mas
devemos encarar o fato de que, no marco dessa troca, a apropriao de
valor realizado encobre a apropriao de uma mais-valia que gerada
mediante a explorao do trabalho no interior de cada nao. Sob esse
ngulo, a transferncia de valor uma transferncia de mais-valia, que
se apresenta, desde o ponto de vista do capitalista que opera na
nao desfavorecida, como uma queda da taxa de mais-valia e por isso
da taxa de lucro. Assim, a contrapartida do processo mediante o
qual a Amrica Latina contribuiu para incrementar a taxa de
mais-valia e a taxa de lucro nos pases industriais implicou para
ela efeitos rigorosamente opostos. E o que aparecia como um
mecanismo de compensao no nvel de mercado de fato um mecanismo que
opera em nvel da produo interna. para essa esfera que se deve
deslocar, portanto, o enfoque de nossa anlise.3. A superexplorao do
trabalhoVimos que o problema colocado pela troca desigual para a
Amrica Latina no precisamente o de se contrapor transferncia de
valor que implica, mas compensar a perda de mais-valia, e que,
incapaz de impedi-la no nvel das relaes de mercado, a reao da
economia dependente compens-la no plano da produo interna. O
aumento da intensidade do trabalho aparece, nessa perspectiva, como
um aumento da mais-valia, obtido atravs de uma maior explorao do
trabalhador e no do incremento de sua capacidade produtiva. O mesmo
se poderia dizer da prolongao da jornada de trabalho, isto , do
aumento da mais-valia absoluta na sua forma clssica; diferentemente
do primeiro, trata-se aqui de aumentar simplesmente o tempo de
trabalho excedente, que aquele em que o operrio continua produzindo
depois de criar um valor equivalente ao dos meios de subsistncia
para seu prprio consumo. Deve-se assinalar, finalmente, um terceiro
procedimento, que consiste em reduzir o consumo do operrio mais alm
do seu limite normal, pelo qual "o fundo necessrio de consumo do
operrio se converte de fato, dentro de certos limites, em um fundo
de acumulao de capital", implicando assim em um modo especfico de
aumentar o tempo de trabalho excedente.(19)Precisemos aqui que a
utilizao de categorias que se referem apropriao do trabalho
excedente no marco de relaes capitalistas de produo no implica o
suposto de que a economia exportadora latino-americana se baseia j
na produo capitalista. Recorremos a essas categorias no esprito das
observaes metodolgicas que avanamos ao iniciar este trabalho, ou
seja, porque permitem caracterizar melhor os fenmenos que
pretendemos estudar e tambm porque indicam a direo para a qual
estes tendem. Por outra parte, no a rigor necessrio que exista a
troca desigual para que comecem a operar os mecanismos de extrao de
mais-valia mencionados; o simples fato da vinculao ao mercado
mundial, e a converso conseguinte da produo de valores de uso em
produo de valores de troca que isso acarreta, tem como resultado
imediato desatar um af por lucro que se torna tanto mais
desenfreado quanto mais atrasado o modo de produo existente. Como
observa Marx,"[...] to logo como os povos cujo regime de produo
vinha se desenvolvendo nas formas primitivas de escravido, relaes
de vassalagem etc, se vem atrados ao mercado mundial, onde impera o
regime capitalista de produo e onde imposto a tudo o interesse de
dar vazo aos produtos para o estrangeiro, os tormentos brbaros da
escravido, da servido da gleba etc, se vem acrescentados pelos
tormentos civilizados do trabalho excedente".(20)O efeito da troca
desigual medida que coloca obstculos a sua plena satisfao o de
exacerbar esse af por lucro e aguar portanto os mtodos de extrao de
trabalho excedente.Pois bem, os trs mecanismos identificados a
intensificao do trabalho, a prolongao da jornada de trabalho e a
expropriao de parte do trabalho necessrio ao operrio para repor sua
fora de trabalho configuram um modo de produo fundado
exclusivamente na maior explorao do trabalhador, e no no
desenvolvimento de sua capacidade produtiva. Isso condizente com o
baixo nvel de desenvolvimento das foras produtivas na economia
latino-americana, mas tambm com os tipos de atividades que ali se
realizam. De fato, mais que na indstria fabril, na qual um aumento
de trabalho implica pelo menos um maior gasto de matrias primas, na
indstria extrativa e na agricultura o efeito do aumento do trabalho
sobre os elementos do capital constante so muito menos sensveis,
sendo possvel, pela simples ao do homem sobre a natureza, aumentar
a riqueza produzida sem um capital adicional.(21) Entende-se que,
nessas circunstncias, a atividade produtiva baseia-se sobretudo no
uso extensivo e intensivo da fora de trabalho: isso permite baixar
a composio-valor do capital, o que, aliado intensificao do grau de
explorao do trabalho, faz com que se elevem simultaneamente as
taxas de mais-valia e de lucro.Alm disso, importa assinalar que,
nos trs mecanismos considerados, a caracterstica essencial est dada
pelo fato de que so negadas ao trabalhador as condies necessrias
para repor o desgaste de sua fora de trabalho: nos dois primeiros
casos, porque lhe obrigado um dispndio de fora de trabalho superior
ao que deveria proporcionar normalmente, provocando assim seu
esgotamento prematuro; no ltimo, porque lhe retirada inclusive a
possibilidade de consumo do estritamente indispensvel para
conservar sua fora de trabalho em estado normal. Em termos
capitalistas, esses mecanismos (que ademais podem se apresentar, e
normalmente se apresentam, de forma combinada) significam que o
trabalho remunerado abaixo de seu valor(22) e correspondem,
portanto, a uma superexplorao do trabalho. o que explica que tenha
sido precisamente nas zonas dedicadas produo para exportao em que o
regime de trabalho assalariado foi imposto primeiro, iniciando o
processo de transformao das relaes de produo na Amrica Latina. E
til ter presente que a produo capitalista supe a apropriao direta
da fora de trabalho, e no apenas dos produtos do trabalho; nesse
sentido, a escravido um modo de trabalho que se adapta mais ao
capital que a servido, no sendo acidental que as empresas coloniais
diretamente conectadas com os centros capitalistas europeus como as
minas de ouro e de prata do Mxico e do Peru, ou as plantaes de cana
do Brasil foram assentadas sobre o trabalho escravo.(23) Mas, salvo
na hiptese de que a oferta de trabalho seja totalmente elstica (o
que no se verifica com a mo de obra escrava na Amrica Latina, a
partir da segunda metade do sculo 19), o regime de trabalho escravo
constitui um obstculo ao rebaixamento indiscriminado da remunerao
do trabalhador. "No caso do escravo, o salrio mnimo aparece como
uma magnitude constante, independente de seu trabalho. No caso do
trabalhador livre, esse valor de sua capacidade de trabalho e o
salrio mdio que corresponde ao mesmo no esto contidos dentro desses
limites predestinados, independentes de seu prprio trabalho,
determinados por suas necessidades puramente fsicas. A mdia aqui
mais ou menos constante para a classe, como o valor de todas as
mercadorias, mas no existe nesta realidade imediata para o operrio
individual cujo salrio pode estar acima ou abaixo desse mnimo."(24)
Em outros termos, o regime de trabalho escravo, salvo em condies
excepcionais do mercado de mo de obra, incompatvel com a
superexplorao do trabalho. No ocorre o mesmo com o trabalho
assalariado e, em menor medida, com o trabalho servil.Insistamos
neste ponto. A superioridade do capitalismo sobre as demais formas
de produo mercantil, e sua diferena bsica em relao a elas, reside
em que aquilo que se transforma em mercadoria no o trabalhador ou
seja, o tempo total de existncia do trabalhador, com todos os
momentos mortos que este implica desde o ponto de vista da produo
mas sua fora de trabalho, isto , o tempo de sua existncia que pode
ser utilizada para a produo, deixando para o mesmo trabalhador o
cuidado de responsabilizar-se pelo tempo no produtivo, desde o
ponto de vista capitalista. esta a razo pela qual, ao se subordinar
uma economia escravista ao mercado capitalista mundial, o
aprofundamento da explorao do escravo acentuado, j que interessa
portanto a seu proprietrio reduzir os tempos mortos para a produo e
fazer coincidir o tempo produtivo com o tempo de existncia do
trabalhador.Mas, como assinala Marx,"o escravista compra operrios
como poderia comprar cavalos. Ao perder o escravo, perde um capital
que se v obrigado a repor mediante um novo investimento no mercado
de escravos".(25)A superexplorao do escravo, que prolonga sua
jornada de trabalho mais alm dos limites fisiolgicos admissveis e
redunda necessariamente no esgotamento prematuro, por morte ou
incapacidade, s pode acontecer, portanto, se possvel repor com
facilidade a mo de obra desgastada. "Os campos de arroz da Gergia e
os pntanos do Mississipi influem talvez de uma forma fatalmente
destruidora sobre a constituio humana; entretanto, essa destruio de
vidas humanas no to grande que no possa ser compensada pelos
cercados transbordantes da Virgnia e do Kentucky. Aquelas
consideraes econmicas que poderiam oferecer uma espcie de
salvaguarda do tratamento humano dado aos escravos, enquanto a
conservao da vida destes estava identificada com o interesse de
seus senhores, foram modificadas ao se implantar o comrcio de
escravos por outros tantos motivos de espoliao implacvel de suas
energias, pois to logo a vaga produzida por um escravo pode ser
coberta pela importao de negros de outros cercados, a durao de sua
vida cede em importncia, enquanto dura a sua produtividade".(26) A
evidncia contrria comprova o mesmo: no Brasil da segunda metade do
sculo passado [19], quando se iniciava o auge do caf, o fato de que
o trfico de escravos tenha sido suprimido em 1850 fez a mo de obra
escrava to pouco atrativa para os proprietrios de terras do Sul que
estes preferiram apelar para o regime assalariado, mediante a
imigrao europeia, alm de favorecer uma poltica no sentido de
suprimir a escravido. Recordemos que uma parte importante da
populao escrava encontrava-se na decadente zona aucareira do
Nordeste e que o desenvolvimento do capitalismo agrrio no Sul
impunha sua liberao, a fim de constituir um mercado livre de
trabalho. A criao desse mercado, com a lei da abolio da escravatura
em 1888, que culminava uma srie de medidas graduais nessa direo
(como a condio de homem livre assegurada aos filhos de escravos
etc), constitui um fenmeno dos mais interessantes; por um lado,
definia-se como uma medida extremamente radical, que liquidava com
as bases da sociedade imperial (a monarquia sobreviver pouco mais
de um ano lei de 1888) e chegava inclusive a negar qualquer tipo de
indenizao aos antigos proprietrios de escravos; por outra parte,
buscava compensar o impacto de seu efeito, por meio de medidas
destinadas a atar o trabalhador terra (a incluso de um artigo no
cdigo civil que vinculava pessoa as dvidas contradas; o sistema de
"barraco", verdadeiro monoplio do comrcio de bens de consumo
exercido pelo latifundirio no interior da fazenda etc.) e da
outorga de crditos generosos aos proprietrios afetados.O sistema
misto de servido e de trabalho assalariado que se estabelece no
Brasil, ao se desenvolver a economia de exportao para o mercado
mundial, uma das vias pelas quais a Amrica Latina chega ao
capitalismo. Observemos que a forma que adotam as relaes de produo
nesse caso no se diferencia muito do regime de trabalho que se
estabelece, por exemplo, nas minas chilenas de salitre, cujo
"sistema de fichas" equivale ao "barraco". Em outras situaes, que
ocorrem sobretudo no processo de subordinao do interior s zonas de
exportao, as relaes de explorao podem se apresentar mais
nitidamente como relaes servis, sem que isso impea que, atravs da
extorso do mais-produto do trabalhador pela ao do capital comercial
ou usurrio, o trabalhador se veja implicado em uma explorao direta
pelo capital, que tende inclusive a assumir um carter de
superexplorao.(27) Entretanto, a servido apresenta, para o
capitalista, o inconveniente de que no lhe permite dirigir
diretamente a produo, alm de colocar sempre a possibilidade, ainda
que terica, de que o produtor imediato se emancipe da dependncia em
que o coloca o capitalista.No , entretanto, nosso objetivo estudar
aqui as formas econmicas particulares que existiam na Amrica Latina
antes que esta ingressasse efetivamente na etapa capitalista de
produo, nem as vias atravs das quais teve lugar a transio. O que
pretendemos to somente fixar a pauta em que h de ser conduzido este
estudo, pauta que corresponde ao movimento real da formao do
capitalismo dependente: da circulao produo, da vinculao ao mercado
mundial ao impacto que isso acarreta sobre a organizao interna do
trabalho, para voltar ento a recolocar o problema da circulao.
Porque prprio do capital criar seu prprio modo de circulao, e/ou
disso depende a reproduo ampliada em escala mundial do modo de
produo capitalista:[...] j que s o capital implica as condies de
produo do capital, j que s ele satisfaz essas condies e busca
realiz-las, sua tendncia geral a de formar por todos os lugares as
bases da circulao, os centros produtores desta, e assimil-las, isto
, convert-las em centros de produo virtual ou efetivamente
criadores de capital.(28)Uma vez convertida em centro produtor de
capital, a Amrica Latina dever criar, portanto, seu prprio modo de
circulao, que no pode ser o mesmo que aquele engendrado pelo
capitalismo industrial e que deu lugar dependncia. Para constituir
um todo complexo, h que recorrer a elementos simples e combinveis
entre si, mas no iguais. Compreender a especificidade do ciclo do
capital na economia dependente latino-americana significa,
portanto, iluminar o fundamento mesmo de sua dependncia em relao
economia capitalista mundial.4. O ciclo do capital na economia
dependenteDesenvolvendo sua economia mercantil, em funo do mercado
mundial, a Amrica Latina levada a reproduzir em seu seio as relaes
de produo que se encontravam na origem da formao desse mercado, e
determinavam seu carter e sua expanso.(29) Mas esse processo estava
marcado por uma profunda contradio: chamada para contribuir com a
acumulao de capital com base na capacidade produtiva do trabalho,
nos pases centrais, a Amrica Latina teve de faz-lo mediante uma
acumulao baseada na superexplorao do trabalhador. E nessa contradio
que se radica a essncia da dependncia latino-americana.A base real
sobre a qual se desenvolve so os laos que ligam a economia
latino-americana com a economia capitalista mundial. Nascida para
atender as exigncias da circulao capitalista, cujo eixo de
articulao est constitudo pelos pases industriais, e centrada
portanto sobre o mercado mundial, a produo latino-americana no
depende da capacidade interna de consumo para sua realizao.
Opera-se, assim, desde o ponto de vista do pas dependente, a
separao dos dois momentos fundamentais do ciclo do capital a produo
e a circulao de mercadorias cujo efeito fazer com que aparea de
maneira especfica na economia latino-americana a contradio inerente
produo capitalista em geral, ou seja, a que ope o capital ao
trabalhador enquanto vendedor e comprador de
mercadorias.(30)Trata-se de um ponto-chave para entender o carter
da economia latino-americana. Inicialmente, h de se considerar que,
nos pases industriais, cuja acumulao de capital se baseia na
produtividade do trabalho, essa oposio que gera o duplo carter do
trabalho produtor e consumidor , ainda que seja efetiva, se v, em
certa medida, contraposta pela forma que assume o ciclo do capital.
assim como, em que pese o privilgio do capital pelo consumo
produtivo do trabalhador (ou seja, o consumo de meios de produo que
implica o processo de trabalho), e se inclina a desestimular seu
consumo individual (que o trabalhador emprega para repor sua fora
de trabalho), o qual lhe aparece como consumo improdutivo,(31) isso
se d exclusivamente no momento da produo. Ao ser iniciada a fase de
realizao, essa contradio aparente entre o consumo individual dos
trabalhadores e a reproduo do capital desaparece, uma vez que o
dito consumo (somado ao dos capitalistas e das camadas improdutivas
em geral) restabelece ao capital a forma que lhe necessria para
comear um novo ciclo, quer dizer, a forma dinheiro. O consumo
individual dos trabalhadores representa, portanto, um elemento
decisivo na criao de demanda para mercadorias produzidas, sendo uma
das condies para que o fluxo da produo se resolva adequadamente no
fluxo da circulao.(32) Por meio da mediao que se estabelece pela
luta entre os operrios e os patres em torno da fixao do nvel dos
salrios, os dois tipos de consumo do operrio tendem assim a se
complementar, no curso do ciclo do capital, superando a situao
inicial de oposio em que se encontravam. Essa , ademais, uma das
razes pelas quais a dinmica do sistema tende a se canalizar por
meio da mais-valia relativa, que implica, em ltima instncia, o
barateamento das mercadorias que entram na composio do consumo
individual do trabalhador.Na economia exportadora latino-americana,
as coisas se do de outra maneira. Como a circulao se separa da
produo e se efetua basicamente no mbito do mercado externo, o
consumo individual do trabalhador no interfere na realizao do
produto, ainda que determine a taxa de mais-valia. Em consequncia,
a tendncia natural do sistema ser a de explorar ao mximo a fora de
trabalho do operrio, sem se preocupar em criar as condies para que
este a reponha, sempre e quando seja possvel substitu-lo pela
incorporao de novos braos ao processo produtivo. O dramtico para a
populao trabalhadora da Amrica Latina que essa hiptese foi cumprida
amplamente: a existncia de reservas de mo de obra indgena (como no
Mxico), ou os fluxos migratrios derivados do deslocamento de mo de
obra europeia, provocado pelo progresso tecnolgico (como na Amrica
do Sul), permitiram aumentar constantemente a massa trabalhadora,
at o incio do sculo 20. Seu resultado tem sido o de abrir livre
curso para a compresso do consumo individual do operrio e,
portanto, para a superexplorao do trabalho.A economia exportadora ,
portanto, algo mais que o produto de uma economia internacional
fundada na especializao produtiva: uma formao social baseada no
modo capitalista de produo, que acentua at o limite as contradies
que lhe so prprias. Ao faz-lo, configura de maneira especfica as
relaes de explorao em que se baseia e cria um ciclo de capital que
tende a reproduzir em escala ampliada a dependncia em que se
encontra frente economia internacional. assim como o sacrifcio do
consumo individual dos trabalhadores em favor da exportao para o
mercado mundial deprime os nveis de demanda interna e erige o
mercado mundial como nica sada para a produo. Paralelamente, o
incremento dos lucros que disso se deriva coloca o capitalista em
condies de desenvolver expectativas de consumo sem contrapartida na
produo interna (orientada para o mercado mundial), expectativas que
tm de ser satisfeitas por meio de importaes. A separao entre o
consumo individual fundado no salrio e o consumo individual
engendrado pela mais-valia no acumulada d origem, portanto, a uma
estratificao do mercado interno, que tambm uma diferenciao de
esferas de circulao: enquanto a esfera "baixa", onde se encontram
os trabalhadores que o sistema se esfora por restringir , se baseia
na produo interna, a esfera "alta" de circulao, prpria dos
no-trabalhadores que aquela que o sistema tende a ampliar , se
relaciona com a produo externa, por meio do comrcio de importao.A
harmonia que se estabelece, no nvel do mercado mundial, entre a
exportao de matrias primas e alimentos, por parte da Amrica Latina,
e a importao de bens de consumo manufaturados europeus, encobre a
dilacerao da economia latino-americana, expressa pela ciso do
consumo individual total em duas esferas contrapostas. Quando,
chegado o sistema capitalista mundial a um certo grau de seu
desenvolvimento, a Amrica Latina ingressar na etapa da
industrializao, dever faz-lo a partir das bases criadas pela
economia de exportao. A profunda contradio que ter caracterizado o
ciclo do capital dessa economia e seus efeitos sobre a explorao do
trabalho incidiro de maneira decisiva no curso que tomar a economia
industrial latino-americana, explicando muitos dos problemas e das
tendncias que nela se apresentam atualmente.5. O processo de
industrializaoNo cabe aqui entrar na anlise do processo de
industrializao na Amrica Latina, nem muito menos tomar partido na
atual controvrsia sobre o papel que nesse processo desempenhou a
substituio de importaes.(33) Para os fins a que nos propomos,
suficiente fazer notar que, por significativo que tivesse sido o
desenvolvimento industrial no seio da economia exportadora (e, por
consequncia, na extenso do mercado interno), em pases como
Argentina, Mxico, Brasil e outros, no chegou nunca a conformar uma
verdadeira economia industrial, que, definindo o carter e o sentido
da acumulao de capital, acarretasse em uma mudana qualitativa no
desenvolvimento econmico desses pases. Ao contrrio, a indstria
continuou sendo ali uma atividade subordinada produo e exportao de
bens primrios, que constituam, estes sim, o centro vital do
processo de acumulao.(34) apenas quando a crise da economia
capitalista internacional, correspondente ao perodo compreendido
entre a primeira e a segunda guerras mundiais, limita a acumulao
baseada na produo para o mercado externo, que o eixo da acumulao se
desloca para a indstria, dando origem moderna economia industrial
que prevalece na regio.Desde o ponto de vista que nos interessa,
isso significa que a esfera alta da circulao, que se articulava com
a oferta externa de bens manufaturados de consumo, desloca seu
centro de gravidade para a produo interna, passando sua parbola a
coincidir, grosso modo, com a que descreve a esfera baixa, prpria
das massas trabalhadoras. Parecia assim que o movimento excntrico
que apresentava a economia exportadora comeava a se corrigir, e que
o capitalismo dependente orientava-se no sentido de uma configurao
similar dos pases industriais clssicos. Foi sobre essa base que
prosperaram, na dcada de 1950, as diferentes correntes chamadas
desenvolvimentistas, que supunham que os problemas econmicos e
sociais que afetavam a formao social latino-americana tivessem
origem na insuficincia do desenvolvimento capitalista e que a
acelerao deste bastaria para faz-los desaparecer.De fato, as
similaridades aparentes da economia industrial dependente com a
economia industrial clssica encobriam profundas diferenas, que o
desenvolvimento capitalista acentuaria em lugar de atenuar. A
reorientao para o interior da demanda gerada pela mais-valia no
acumulada implicava um mecanismo especfico de criao de mercado
interno radicalmente diferente do que operava na economia clssica e
que teria graves repercusses na forma que assumiria a economia
industrial dependente.Na economia capitalista clssica, a formao do
mercado interno representa a contrapartida da acumulao de capital:
ao separar o produtor dos meios de produo, o capital no s criou o
assalariado, isto , o trabalhador que s dispe de sua fora de
trabalho, como tambm criou o consumidor. De fato, os meios de
subsistncia do operrio, antes produzidos diretamente por ele, so
incorporados ao capital, como elemento material do capital varivel,
e s so restitudos ao trabalhador quando este compra seu valor baixo
a forma de salrio.(35) Existe, pois, uma estreita correspondncia
entre o ritmo da acumulao e o da expanso do mercado. A
possibilidade que tem o capitalista industrial de obter no
exterior, a preo baixo, os alimentos necessrios ao trabalhador,
leva a estreitar o nexo entre a acumulao e o mercado, uma vez que
aumenta a parte do consumo individual do operrio dedicada absoro de
produtos manufaturados. por isso que a produo industrial, nesse
tipo de economia, concentra-se basicamente nos bens de consumo
popular e procura barate-los, uma vez que incidem diretamente no
valor da fora de trabalho e portanto medida que as condies em que
se d a luta entre os operrios e os patres tende a aproximar os
salrios desse valor -na taxa de mais-valia. Vimos que essa a razo
fundamental pela qual a economia capitalista clssica deve se
orientar para o aumento da produtividade do trabalho.O
desenvolvimento da acumulao baseada na produtividade do trabalho
tem como resultado o aumento da mais-valia e, em consequncia, da
demanda criada pela parte desta que no acumulada. Em outras
palavras, cresce o consumo individual das classes no produtoras,
com o que se amplia a esfera da circulao que lhes corresponde. Isso
no s impulsiona o crescimento da produo de bens de consumo
manufaturados, em geral, como tambm o da produo de artigos
suprfluos.(36) A circulao tende portanto a se dividir em duas
esferas, de maneira similar ao que constatamos na economia
latino-americana de exportao, mas com uma diferena substancial: a
expanso da esfera superior uma consequincia da transformao das
condies de produo e se torna possvel medida que, aumentando a
produtividade do trabalho, a parte do consumo individual total que
corresponde ao operrio diminui em termos reais. A ligao existente
entre as duas esferas de consumo distendida, mas no se rompe.Outro
fator contribui para impedir que a ruptura se realize: a forma como
se amplia o mercado mundial. A demanda adicional de produtos
suprfluos que cria o mercado exterior necessariamente limitada,
primeiro porque, quando o comrcio se efetua entre naes que produzem
esses bens, o avano de uma nao implica no retrocesso de outra, o
que suscita, por parte da ltima, mecanismos de defesa; e depois
porque, no caso da troca com os pases dependentes, essa demanda se
restringe s classes altas, e se v assim constrangida pela forte
concentrao de renda que implica a superexplorao do trabalho.
Portanto, para que a produo de bens de luxo possa se expandir,
esses bens tm de mudar o seu carter, ou seja, converter-se em
produtos de consumo popular no interior mesmo da economia
industrial. As circunstncias que permitem elevar ali os salrios
reais, a partir da segunda metade do sculo 19, s quais no estranha
a desvalorizao dos alimentos e a possibilidade de redistribuir
internamente parte do excedente subtrado das naes dependentes,
ajudam, na medida em que ampliam o consumo individual dos
trabalhadores, a se contrapor s tendncias desarticuladoras que
atuam no nvel da circulao.A industrializao(37) latino-americana se
d sobre bases distintas. A compresso permanente que exercia a
economia exportadora sobre o consumo individual do trabalhador no
permitiu mais do que a criao de uma indstria dbil, que s se
ampliava quando fatores externos (como as crises comerciais,
conjunturalmente, e a limitao dos excedentes da balana comercial,
pelas razoes j assinaladas) fechavam parcialmente o acesso da
esfera alta de consumo para o comrcio de importao.(38) a maior
incidncia desses fatores, como vimos, o que acelera o crescimento
industrial, a partir de certo momento, e provoca a mudana
qualitativa do capitalismo dependente. A industrializao
latino-americana no cria, portanto, como nas economias clssicas,
sua prpria demanda, mas nasce para atender a uma demanda
pr-existente, e se estruturar em funo das exigncias de mercado
procedentes dos pases avanados.No incio da industrializao, a
participao dos trabalhadores na criao da demanda no joga portanto
um papel significativo na Amrica Latina. Operando no marco de uma
estrutura de mercado previamente dada, cujo nvel de preos atuava no
sentido de impedir o acesso do consumo popular, a indstria no tinha
razes para aspirar uma situao distinta. A capacidade de demanda
era, naquele momento, superior oferta, pelo que no se apresentava
ao capitalista o problema de criar mercado para suas mercadorias,
mas uma situao inversa. Por outro lado, ainda quando a oferta
chegue a se equilibrar com a demanda isso no colocar de imediato
para o capitalista a ampliao do mercado, levando-o antes a jogar
sobre a margem entre o preo de mercado e o preo de produo, ou seja,
sobre o aumento da massa de lucro em funo do preo unitrio do
produto. Para isso, o capitalista industrial forar, por um lado, o
aumento de preos, aproveitando-se da situao monopolista criada de
fato pela crise do comrcio mundial e reforada pelas barreiras
alfandegrias. Por outro lado, e dado que o baixo nvel tecnolgico
faz com que o preo de produo seja determinado fundamentalmente
pelos salrios, o capitalista industrial valer-se- do excedente de
mo de obra criado pela prpria economia exportadora e agravado pela
crise que esta atravessa (crise que obriga o setor exportador a
liberar mo de obra), para pressionar os salrios no sentido
descendente. Isso lhe permitir absorver grandes massas de trabalho,
o que, acentuado pela intensificao do trabalho e pela prolongao da
jornada de trabalho, acelerar a concentrao de capital no setor
industrial.Partindo ento do modo de circulao que caracterizara a
economia exportadora, a economia industrial dependente reproduz, de
forma especfica, a acumulao de capital baseada na superexplorao do
trabalhador. Em consequncia, reproduz tambm o modo de circulao que
corresponde a esse tipo de acumulao, ainda que de maneira
modificada: j no a dissociao entre a produo e a circulao de
mercadorias em funo do mercado mundial o que opera, mas a separao
entre a esfera alta e a esfera baixa da circulao no interior mesmo
da economia, separao que, ao no ser contraposta pelos fatores que
atuam na economia capitalista clssica, adquire um carter muito mais
radical.Dedicada produo de bens que no entram, ou entram muito
escassamente, na composio do consumo popular, a produo industrial
latino-americana independente das condies de salrio prprias dos
trabalhadores; isso em dois sentidos. Em primeiro lugar, porque, ao
no ser um elemento essencial do consumo individual do operrio, o
valor das manufaturas no determina o valor da fora de trabalho; no
ser, portanto, a desvalorizao das manufaturas o que influir na taxa
de mais-valia. Isso dispensa o industrial de se preocupar em
aumentar a produtividade do trabalho para, fazendo baixar o valor
da unidade de produto, depreciar a fora de trabalho, e o leva,
inversamente, a buscar o aumento da mais-valia por meio da maior
explorao intensiva e extensiva do trabalhador, assim como a reduo
de salrios mais alm de seu limite normal. Em segundo lugar, porque
a relao inversa que da se deriva para a evoluo da oferta de
mercadorias e do poder de compra dos operrios, isto , o fato de que
a primeira cresa custa da reduo do segundo, no cria problemas para
o capitalista na esfera da circulao, uma vez que, como deixamos
claro, as manufaturas no so elementos essenciais no consumo
individual do operrio.Dissemos anteriormente que a uma certa altura
do processo, que varia segundo os pases,(39) a oferta industrial
coincide em linhas gerais com a demanda existente, constituda pela
esfera alta da circulao. Surge ento a necessidade de generalizar o
consumo de manufaturas, o que corresponde quele momento em que, na
economia clssica, os bens suprfluos tiveram de se converter em bens
de consumo popular. Isso leva a dois tipos de adaptaes na economia
industrial dependente: a ampliao do consumo das camadas mdias, que
criado a partir da mais-valia no acumulada, e o esforo para
aumentar a produtividade do trabalho, condio sine qua non para
baratear as mercadorias.O segundo movimento tenderia, normalmente,
a provocar uma mudana qualitativa na base da acumulao de capital,
permitindo ao consumo individual do operrio modificar sua composio
e incluir bens manufaturados. Se agisse sozinho, levaria ao
deslocamento do eixo da acumulao, da explorao do trabalhador para o
aumento da capacidade produtiva do trabalho. Entretanto,
parcialmente neutralizado pela ampliao do consumo dos setores
mdios: este supe, de fato, o incremento das rendas que recebem
ditos setores, rendas que, como sabemos, so derivadas da mais-valia
e, em consequncia, da compresso do nvel salarial dos trabalhadores.
A transio de um modo de acumulao para outro se torna, portanto,
difcil e realizada com extrema lentido, mas suficiente para
desencadear um mecanismo que atuar no longo prazo no sentido de
obstruir a transio, desviando para um novo meio a busca de solues
para os problemas de realizao encarados pela economia
industrial.Esse mecanismo o recurso tecnologia estrangeira,
destinado a elevar a capacidade produtiva do trabalho.6. O novo
anel da espiral um fato conhecido que, na medida em que avana a
industrializao latino-americana, altera-se a composio de suas
importaes, por meio da reduo do item relativo a bens de consumo e
sua substituio por matrias primas, produtos semielaborados e
maquinrio destinados para a indstria. Entretanto, a crise
permanente do setor externo dos pases da regio no havia permitido
que as necessidades crescentes de elementos materiais do capital
constante pudessem ser satisfeitas exclusivamente pela troca
comercial. por isso que adquire singular importncia a importao de
capital estrangeiro, sob a forma de financiamento de investimentos
diretos na indstria.As facilidades que a Amrica Latina encontra no
exterior para recorrer importao de capital no so acidentais.
Devem-se nova configurao que assume a economia internacional
capitalista no perodo do ps-guerra. Por volta de 1950, ela havia
superado a crise que a afetara, a partir da dcada de 1910, e se
encontrava j reorganizada sob a gide estadunidense. O avano
conseguido pela concentrao de capital em escala mundial coloca ento
nas mos das grandes corporaes imperialistas uma abundncia de
recursos, que necessitam buscar aplicao no exterior. O trao
significativo do perodo que esse fluxo de capital para a periferia
se orienta de forma preferencial para o setor industrial.Para isso
concorre o fato de que, enquanto durou a desorganizao da economia
mundial, desenvolveram-se bases industriais perifricas, que
ofereciam graas superexplorao do trabalho possibilidades atrativas
de lucro. Mas no ser o nico fato, e talvez no seja o mais decisivo.
No curso do mesmo perodo, verificara-se um grande desenvolvimento
do setor de bens de capital nas economias centrais. Isso levou, por
um lado, a que os equipamentos ali produzidos, sempre mais
sofisticados, tivessem de ser aplicados no setor secundrio dos
pases perifricos; surge ento, por parte das economias centrais, o
interesse de impulsionar nestes o processo de industrializao, com o
propsito de criar mercados para sua indstria pesada. Por outro
lado, na medida em que o ritmo do progresso tcnico reduziu nos
pases centrais o prazo de reposio do capital fixo praticamente
metade,(40) colocou-se para esses pases a necessidade de exportar
para a periferia equipamentos e maquinrio que j eram obsoletos
antes de que tivessem sido amortizados totalmente.A industrializao
latino-americana corresponde assim a uma nova diviso internacional
do trabalho, em cujo marco so transferidas para os pases
dependentes etapas inferiores da produo industrial (observe-se que
a siderurgia, que correspondia a um sinal distintivo da economia
industrial clssica, generalizou-se a tal ponto que pases como
Brasil j exportam ao), sendo reservadas para os centros
imperialistas as etapas mais avanadas (como a produo de
computadores e a indstria eletrnica pesada em geral, a explorao de
novas fontes de energia, como a de origem nuclear etc.) e o
monoplio da tecnologia correspondente. Indo ainda mais longe,
pode-se distinguir na economia internacional escales, nos quais vo
sendo recolocados no s os novos pases industriais, mas tambm os
mais antigos. assim como, na produo de ao e na de veculos
automotores, a Europa Ocidental e o Japo competem vantajosamente
com os mesmos Estados Unidos, mas no conseguem ainda faz-lo no que
se refere indstria de mquinas e ferramentas, principalmente as
automatizadas.(41) O que temos aqui uma nova hierarquizao da
economia capitalista mundial, cuja base a redefinio da diviso
internacional do trabalho ocorrida nos ltimos 50 anos.Seja como
for, no momento em que as economias industriais dependentes vo
buscar no exterior o instrumental tecnolgico que lhes permita
acelerar seu crescimento, elevando a produtividade do trabalho,
aquele tambm em que, a partir dos pases centrais, tm origem
importantes fluxos de capital que se direcionam para elas, fluxos
que lhes trazem a tecnologia requerida. No examinaremos aqui os
efeitos prprios das distintas formas que assume a absoro
tecnolgica, e que vo desde a doao at o investimento direto de
capital estrangeiro, j que, desde o ponto de vista que orienta
nossa anlise, isto no tem maior importncia. Ocupar-nos-emos to
somente do carter dessa tecnologia e de seu impacto sobre a ampliao
do mercado.O progresso tecnolgico caracteriza-se pela economia de
fora de trabalho que, seja em termos de tempo, seja em termos de
esforo, o operrio deve dedicar para a produo de uma certa massa de
bens. E natural, portanto, que, globalmente, seu resultado seja a
reduo do tempo de trabalho produtivo em relao ao tempo total
disponvel para a produo, o que, na sociedade capitalista, se
manifesta por meio da diminuio da populao operria paralelamente ao
crescimento da populao que se dedica a atividades no produtivas, s
que correspondem aos servios. Essa a forma especfica que assume o
desenvolvimento tecnolgico em uma sociedade baseada na explorao do
trabalho, mas no a forma geral do desenvolvimento tecnolgico. por
isso que as recomendaes que se tm feito para os pases dependentes,
onde se verifica uma grande disponibilidade de mo de obra, no
sentido de que adotem tecnologias que incorporem mais fora de
trabalho, com o objetivo de defender os nveis de emprego,
representam um duplo engano: levam a preconizar a opo por um menor
desenvolvimento tecnolgico e confundem os efeitos sociais
especificamente capitalistas da tcnica com a tcnica em si.Alm
disso, essas recomendaes ignoram as condies concretas em que se d a
introduo do progresso tcnico nos pases dependentes. Essa introduo
depende, como assinalamos, menos das preferncias que eles tenham e
mais da dinmica objetiva da acumulao de capital em escala mundial.
Ela foi a que impulsionou a diviso internacional do trabalho a
assumir uma configurao, em cujo marco foram abertos novos rumos
para a difuso do progresso tcnico e deu-se a esta um ritmo mais
acelerado. Os efeitos da derivados para a situao dos trabalhadores
nos pases dependentes no poderiam diferir em essncia dos que so
consubstanciais a uma sociedade capitalista: reduo da populao
produtiva e crescimento das camadas sociais no produtivas. Mas,
esses efeitos teriam de aparecer modificados pelas condies de
produo prprias do capitalismo dependente. assim como, incidindo
sobre uma estrutura produtiva baseada na maior explorao dos
trabalhadores, o progresso tcnico possibilitou ao capitalista
intensificar o ritmo de trabalho do operrio, elevar sua
produtividade e, simultaneamente, sustentar a tendncia para
remuner-lo em proporo inferior a seu valor real. Para isso
contribuiu decisivamente a vinculao das novas tcnicas de produo com
setores industriais orientados para tipos de consumo que, se tendem
a convert-los em consumo popular nos pases avanados, no podem
faz-lo sob nenhuma hiptese nas sociedades dependentes. O abismo
existente entre o nvel de vida dos trabalhadores e o dos setores
que alimentam a esfera alta da circulao torna inevitvel que
produtos como automveis, aparelhos eletrodomsticos etc. sejam
destinados necessariamente para esta ltima. Nessa medida, e toda
vez que no representam bens que intervenham no consumo dos
trabalhadores, o aumento de produtividade induzido pela tcnica
nesses setores de produo no poderia se traduzir em maiores lucros
por meio da elevao da taxa de mais-valia, mas apenas mediante o
aumento da massa de valor realizado. A difuso do progresso tcnico
na economia dependente seguir, portanto, junto a uma maior explorao
do trabalhador, precisamente porque a acumulao continua dependendo
fundamentalmente mais do aumento da massa de valor e portanto de
mais-valia que da taxa de mais-valia.Pois bem, ao se concentrar de
maneira significativa nos setores produtores de bens suprfluos, o
desenvolvimento tecnolgico acabaria por colocar graves problemas de
realizao. O recurso utilizado para solucion-los tem sido o de fazer
a interveno do Estado (por meio da ampliao do aparato burocrtico,
das subvenes aos produtores e do financiamento ao consumo
suprfluo), assim como fazer intervir na inflao, com o propsito de
transferir poder de compra da esfera baixa para a esfera alta da
circulao; isso implicou em rebaixar ainda mais os salrios reais,
com o objetivo de contar com excedentes suficientes para efetuar a
transferncia de renda. Mas, na medida em que se comprime dessa
forma a capacidade de consumo dos trabalhadores, fechada qualquer
possibilidade de estmulo ao investimento tecnolgico no setor de
produo destinado a atender o consumo popular. No pode ser,
portanto, motivo de surpresa que, enquanto as indstrias de bens
suprfluo crescem a taxas elevadas, as indstrias orientadas para o
consumo de massas (as chamadas "indstrias tradicionais") tendem
estagnao e inclusive regresso.Na medida em que se realizava, com
dificuldade e a um ritmo extremamente lento, a tendncia aproximao
entre as duas esferas de circulao, que se havia observado a partir
de certo momento, no pode continuar se desenvolvendo. Ao contrrio,
o que se impe novamente o afastamento entre ambas as esferas, uma
vez que a compresso do nvel de vida das massas trabalhadoras passa
a ser a condio necessria da expanso da demanda criada pelas camadas
que vivem da mais-valia. A produo baseada na superexplorao do
trabalho voltou a engendrar assim o modo de circulao que lhe
corresponde, ao mesmo tempo em que divorciava o aparato produtivo
das necessidades de consumo das massas. A estratificao desse
aparato no que se costuma chamar "indstrias dinmicas" (setores
produtores de bens suprfluos e de bens de capital que se destinam
principalmente para estes) e "indstrias tradicionais" est
refletindo a adequao da estrutura de produo estrutura de circulao
prpria do capitalismo dependente.Mas no se detm a a reaproximao do
modelo industrial dependente ao da economia exportadora. A absoro
do progresso tcnico em condies de superexplorao do trabalho
acarreta a inevitvel restrio do mercado interno, a que se contrape
a necessidade de realizar massas sempre crescentes de valor (j que
a acumulao depende mais da massa que da taxa de mais-valia). Essa
contradio no poderia ser resolvida por meio da ampliao da esfera
alta de consumo no interior da economia, alm dos limites
estabelecidos pela prpria superexplorao. Em outras palavras, no
podendo estender aos trabalhadores a criao de demanda para os bens
suprfluos, e se orientando antes para a compresso salarial, o que
os exclui de fato desse tipo de consumo, a economia industrial
dependente no s teve de contar com um imenso exrcito de reserva,
como tambm se obrigou a restringir aos capitalistas e camadas mdias
altas a realizao das mercadorias suprfluas. Isso colocar, a partir
de certo momento (que se define nitidamente em meados da dcada de
1960), a necessidade de expanso para o exterior, isto , de
desdobrar novamente ainda que agora a partir da base industrial o
ciclo de capital, para centrar parcialmente a circulao sobre o
mercado mundial. A exportao de manufaturas, tanto de bens
essenciais quanto de produtos suprfluos, converte-se ento na tbua
de salvao de uma economia incapaz de superar os fatores
desarticuladores que a afligem. Desde os projetos de integrao
econmica regional e subregional at o desenho de polticas agressivas
de competio internacional, assiste-se em toda a Amrica Latina
ressureio do modelo da velha economia exportadora.Nos ltimos anos,
a expresso acentuada dessas tendncias no Brasil nos levou a falar
de um subimperialismo.(42) No pretendemos retomar aqui o tema, j
que a caracterizao do subimperialismo vai mais alm da simples
economia, no podendo ser levada a cabo se no recorrermos tambm
sociologia e poltica. Limitar-nos-emos a indicar que, em sua
dimenso mais ampla, o subimperialismo no um fenmeno especificamente
brasileiro nem corresponde a uma anomalia na evoluo do capitalismo
dependente. certo que so as condies prprias da economia brasileira
que lhe permitiram levar bem adiante a sua industrializao e criar
inclusive uma indstria pesada, assim como as condies que
caracterizam a sua sociedade poltica, cujas contradies tm dado
origem a um Estado militarista de tipo prussiano, as que levaram o
Brasil ao subimperialismo, mas no menos certo que esse no nada mais
do que uma forma particular que assume a economia industrial que se
desenvolve no marco do capitalismo dependente. Na Argentina ou em
El Salvador, no Mxico, Chile, Peru, a dialtica do desenvolvimento
capitalista dependente no essencialmente distinta da que procuramos
analisar aqui, em seus traos mais gerais.Utilizar essa linha de
anlise para estudar as formaes sociais concretas da Amrica Latina,
orientar esse estudo no sentido de definir as determinaes que se
encontram na base da luta de classes que ali se desenvolve e abrir
assim perspectivas mais claras para as foras sociais empenhadas em
destruir essa formao monstruosa que o capitalismo dependente: este
o desafio terico que se coloca hoje em dia para os marxistas
latino-americanos. A resposta que lhe dermos influir sem dvida de
maneira no desprezvel no resultado a que chegaro finalmente os
processos polticos que estamos vivendo.7. Post-scriptum: Sobre a
Dialtica da dependnciaInicialmente, minha inteno foi a de escrever
um prefcio ao ensaio precedente. Mas difcil apresentar um trabalho
que por si mesmo uma apresentao. E Dialtica da dependncia no
pretende ser seno isto: uma introduo temtica de investigao que me
vem ocupando e s linhas gerais que orientam este trabalho. Sua
publicao oferece o propsito de adiantar algumas concluses a que
tenho chegado, suscetveis talvez de contribuir com o esforo de
outros que se dedicam ao estudo das leis de desenvolvimento do
capitalismo dependente, assim como com o desejo de oferecer a mim
mesmo a oportunidade de contemplar no seu conjunto o terreno que
busco desbravar.Aproveitarei, pois, este post-scriptum para
esclarecer algumas questes e desfazer certos equvocos que o texto
tem suscitado. Com efeito, apesar do cuidado posto em matizar as
afirmaes mais conclusivas, sua extenso limitada levou a que as
tendncias analisadas se traassem em grandes linhas, o que lhe
conferiu muitas vezes um perfil muito destacado. Por outra parte, o
nvel mesmo de abstrao do ensaio no propiciava o exame de situaes
particulares, que permitissem introduzir no estudo um certo grau de
relativizao. Sem pretender justificar-me com isso, os
inconvenientes mencionados so os mesmos a que alude Marx quando
adverte:"... teoricamente, se parte do suposto de que as leis da
produo capitalista se desenvolvem em estado de pureza. Na
realidade, as coisas ocorrem sempre aproximadamente, mas a
aproximao tanto maior quanto mais desenvolvida se faz a produo
capitalista e mais se elimina sua mescla e entrelaamento com os
vestgios de sistemas econmicos anteriores".(43)Por conseguinte, uma
primeira concluso a destacar precisamente a de que as tendncias
assinaladas em meu ensaio incidem de forma diversa nos diferentes
pases latino-americanos, segundo a especificidade de sua formao
social. provvel que, por deficincia minha, o leitor no se advirta
de um dos supostos que informam minha anlise: o de que a economia
exportadora constitui a transio a uma autntica economia capitalista
nacional, a qual somente se configura quando emerge ali a economia
industrial,(44) e que as sobrevivncias dos antigos modos de produo
que regiam a economia colonial determinam todavia em grau
considervel a maneira como se manifestam nesses pases as leis de
desenvolvimento do capitalismo dependente. A importncia do regime
de produo escravista na determinao da atual economia de alguns
pases latino-americanos, como por exemplo Brasil, um fato que no
pode ser ignorado.Um segundo problema se refere ao mtodo utilizado
no ensaio, que se explicita na indicao da necessidade de partir da
circulao para a produo, para empreender depois o estudo da circulao
que esta produo engendra. Isso, que tem suscitado algumas objees,
corresponde rigorosamente ao caminho seguido por Marx. Basta
recordar como, em O Capital, as primeiras sees do livro I esto
dedicadas a problemas prprios da esfera da circulao e somente a
partir da terceira seo se entra no estudo da produo: do mesmo modo,
uma vez concludo o exame das questes gerais, as questes
particulares do modo de produo capitalista se analisam de idntica
maneira nos dois livros seguintes.Mais alm da exposio, isso tem a
ver com a essncia mesma do mtodo dialtico, que faz coincidir o
exame terico de um problema com seu desenvolvimento histrico; assim
como essa orientao metodolgica no s corresponde frmula geral do
capital, mas tambm d conta da transformao da produo mercantil
simples em produo mercantil capitalista.A sequncia se aplica com
mais forte razo quando o objeto de estudo est constitudo pela
economia dependente. No insistamos aqui na nfase que os estudos
tradicionais sobre a dependncia do ao papel que desempenha nela o
mercado mundial, ou, para usar a linguagem desenvolvimentista, o
setor externo. Destaquemos o que constitui um dos temas centrais do
ensaio: ao comeo de seu desenvolvimento, a economia dependente se
encontra inteiramente subordinada dinmica da acumulao nos pases
industriais, a tal ponto que em funo da tendncia queda da taxa de
lucro nestes, ou seja, da maneira como ali se expressa a acumulao
de capital,(45) que dito desenvolvimento pode ser explicado.
Somente na medida em que a economia dependente se v convertendo de
fato num verdadeiro centro produtor de capital, que traz
incorporada sua fase de circulao(46) o que alcana sua maturidade ao
se constituir ali um setor industrial que se manifestam plenamente
nela suas leis de desenvolvimento, as quais representam sempre uma
expresso particular das leis gerais que regem o sistema em seu
conjunto. A partir desse momento, os fenmenos da circulao que se
apresentam na economia dependente deixam de corresponder
primariamente a problemas de realizao da nao industrial a que ela
est subordinada para se tornar cada vez mais em problemas de
realizao referidos ao prprio ciclo do capital.Haveria de se
considerar, ademais, que a nfase nos problemas de realizao somente
seria censurvel caso se fizesse em detrimento do que cabe s condies
em que se realiza a produo e no contribusse para explic-las.
Portanto, ao constatar o divrcio que se verifica entre produo e
circulao na economia dependente (e sublinhar as formas particulares
que assume esse divrcio nas distintas fases de seu desenvolvimento)
se insistiu:no fato de que esse divrcio se gera a partir das
condies peculiares que adquirem a explorao do trabalho em dita
economia as que denominei superexplorao; e
na maneira como essas condies fazem brotar, permanentemente, desde o seio mesmo da produo, os fatores que agravam o divrcio e o levam, ao se configurar a economia industrial, a desembocar em graves problemas de realizao.
1. Dois momentos na economia internacional nessa perspectiva que poderemos avanar para a elaborao de uma teoria marxista da dependncia. Em meu ensaio tratei de demonstrar que em funo da acumulao de capital em escala mundial, e em particular em funo de seu instrumento vital, a taxa geral de lucro, que podemos entender a formao da economia dependente. No essencial, os passos seguidos foram examinar o problema desde o ponto de vista da tendncia baixa da taxa de lucro nas economias industriais e coloc-lo luz das leis que operam no comrcio internacional, e que lhe do o carter de intercmbio desigual. Posteriormente, o foco de ateno se desloca para os fenmenos internos da economia dependente, para prosseguir depois na linha metodolgica j indicada. Dado o nvel de abstrao do ensaio, preocupei-me to somente, ao desenvolver o tema do intercmbio desigual, do mercado mundial capitalista em seu estado de maturidade, isto , submetido plenamente aos mecanismos de acumulao de capital. Convm, entretanto, indicar aqui como esses mecanismos se impem.A diversidade do grau de desenvolvimento das foras produtivas nas economias que se integram ao mercado mundial implica diferenas significativas em suas respectivas composies orgnicas do capital, que apontam para distintas formas e graus de explorao do trabalho. A medida que o intercmbio entre elas vai se estabilizando, tende a se cristalizar um preo comercial cujo termo de referncia , mais alm de suas variaes cclicas, o valor das mercadorias produzidas. Em consequncia, o grau de participao no valor global realizado na circulao internacional maior para as economias de composio orgnica mais baixa, ou seja para as economias dependentes. Em termos estritamente econmicos, as economias industriais se defrontam com essa situao recorrendo a mecanismos que tem como resultado extremo as diferenas iniciais em que se dava o intercmbio. E assim como lanam mo do aumento da produtividade, com o fim de rebaixar o valor individual das mercadorias em relao ao valor mdio em vigor e de elevar, portanto, sua participao no montante total de valor trocado. Isso se verificada tanto entre produtores individuais de uma mesma nao quanto entre as naes competidoras. Entretanto, esse procedimento, que corresponde ao intento de burlar as leis do mercado mediante a aplicao delas mesmas, implica a elevao de sua composio orgnica e ativa a tendncia queda de sua taxa de lucro, pelas razes assinalas em meu ensaio.Como se viu, a ao das economias industriais repercute no mercado mundial no sentido de inflar a demanda de alimentos e de matrias primas, mas a resposta que lhe d a economia exportadora rigorosamente inversa: em vez de recorrer ao aumento da produtividade, ou mesmo faz-lo com carter prioritrio, ela se vale de um maior emprego extensivo e intensivo da fora de trabalho; em consequncia, baixa sua composio orgnica e aumenta o valor das mercadorias produzidas, o que faz elevar simultaneamente a mais-valia e o lucro. No plano do mercado, leva a que melhorem em seu favor os termos do intercmbio, onde havia se estabelecido um preo comercial para os produtos primrios. Obscurecida pelas flutuaes cclicas do mercado, essa tendncia se mantm at a dcada de 1870; o crescimento das exportaes latino-americanas conduz, inclusive, a que comecem a se apresentar saldos favorveis na balana comercial, que superam os pagamentos por conceito de amortizao e juros da dvida externa, o que est indicando que o sistema de crdito concebido pelos pases industriais, e que se destinava primariamente a funcionar como fundo de compensao das transaes internacionais, no suficiente para reverter a tendncia. evidente que, independentemente das demais causas que atuam no mesmo sentido e que tm a ver com a passagem do capitalismo industrial etapa imperialista, a situao descrita contribui para motivar as exportaes de capital para as economias dependentes, uma vez que os lucros so ali considerveis. Um primeiro resultado disso a elevao da composio orgnica do capital em ditas economias e o aumento da produtividade do trabalho, que se traduzem na baixa do valor das mercadorias que (se no houver a superexplorao) deveriam conduzir baixa da taxa de lucro. Em consequncia, comeam a declinar intencionalmente os termos do intercmbio, como se indica em meu ensaio.Por outra parte, a presena crescente do capital estrangeiro no financiamento, na comercializao e, inclusive, na produo dos pases dependentes, assim como nos servios bsicos, atua no sentido de transferir parte dos lucros ali obtidos para os pases industriais; a partir de ento, o montante do capital cedido pela economia dependente por meio das operaes financeiras cresce mais rapidamente do que o saldo comercial.A transferncia de lucros e, consequentemente, de mais-valia para os pases industriais aponta no sentido de formao de uma taxa mdia de lucro em nvel internacional, liberando, portanto, o intercmbio de sua dependncia estrita em relao ao valor das mercadorias; em outros termos, a importncia, que, na etapa anterior, tinha o valor como regulador das transaes internacionais cede progressivamente lugar primazia do preo de produo (o custo de produo mais o lucro mdio, que, como vimos, inferior mais-valia, no caso dos pases dependentes). Somente ento se pode afirmar que (apesar de seguir estorvada por fatores de ordem extraeconmica, como por exemplo, os monoplios coloniais) a economia internacional alcana sua plena maturidade e faz jogar em escala crescente os mecanismos prprios da acumulao de capital.(47)Recordemos, para evitar equvocos, que a baixa da taxa de lucro nos pases dependentes, como contrapartida da elevao de sua composio orgnica, se compensa mediante os procedimentos de superexplorao do trabalho, ademais das circunstncias peculiares que favorecem, nas economias agrrias e mineiras, a alta rentabilidade do capital varivel. Em consequncia, a economia dependente segue expandindo suas exportaes, a preos sempre mais compensadores para os pases industriais (com os efeitos conhecidos na acumulao interna destes) e, simultaneamente, mantm seu atrativo para os capitais externos, o que permite dar continuidade ao processo.2. 0 desenvolvimento capitalista e a superexplorao do trabalho nesse sentido que a economia dependente e, por consequncia, a superexplorao do trabalho aparece como uma condio necessria do capitalismo mundial, contradizendo queles que, como Fernando Henrique Cardoso, a entendem como um fenmeno acidental no desenvolvimento deste. A opinio de Cardoso, emitida num comentrio polemico ao meu ensaio, a de que, tendo em vista que a especificidade do capitalismo industrial reside na produo de mais-valia relativa, tudo o que se refere s formas de produo baseadas na mais-valia absoluta, por significativa que seja sua importncia histrica, carece de interesse terico. Entretanto, para Cardoso, isso no implica abandonar o estudo da economia dependente, uma vez que nesta se d um processo simultneo de desenvolvimento e de dependncia, o que faz que, em sua etapa contempornea, ela esteja baseada tambm na mais-valia relativa e no aumento da produtividade.Assinalemos, inicialmente, que o conceito de superexplorao no idntico ao de mais-valia absoluta, j que inclui tambm uma modalidade de produo de mais-valia relativa a que corresponde ao aumento da intensidade do trabalho. Por outra parte, a converso do fundo de salrio em fundo de acumulao de capital no representa rigorosamente uma forma de produo de mais-valia absoluta, posto que afeta simultaneamente os dois tempos de trabalho no interior da jornada de trabalho, e no somente o tempo de trabalho excedente, como ocorre com a mais-valia absoluta. Por tudo isso, a superexplorao melhor definida pela maior explorao da fora fsica do trabalhador, em contraposio explorao resultante do aumento de sua produtividade, e tende normalmente a se expressar no fato de que a fora de trabalho se remunera abaixo de seu valor real.No esse, entretanto, o ponto central da discusso. O que se discute se as formas de explorao que se afastam das que engendra a mais-valia relativa sobre a base de uma maior produtividade devem ser excludas da anlise terica do modo de produo capitalista. O equvoco de Cardoso est em responder afirmativamente a essa questo, como se as formas superiores da acumulao capitalista implicassem a excluso de suas formas inferiores e se dessem independentemente destas. Se Marx houvesse compartilhado essa opinio, seguramente no teria se preocupado da mais-valia absoluta e no a haveria integrado, enquanto conceito bsico, em seu esquema terico.(48)Por conseguinte, o que se pretende demonstrar em meu ensaio , primeiro, que a produo capitalista, ao desenvolver a fora produtiva do trabalho, no suprime, e sim acentua, a maior explorao do trabalhador; e, segundo, que as combinaes das formas de explorao capitalista se levam a cabo de maneira desigual no conjunto do sistema, engendrando formaes sociais distintas segundo o predomnio de uma forma determinada.Desenvolvamos brevemente esses pontos. O primeiro fundamental, caso se queira entender como atual a lei geral da acumulao capitalista, ou seja, porque se produz a polarizao crescente de riqueza e misria no seio das sociedades em que ela opera. E nessa perspectiva, e somente nela, que os estudos sobre a chamada marginalidade social podem ser incorporados teoria marxista da dependncia; dito de outra maneira, somente assim esta poder resolver teoricamente os problemas colocados pelo crescimento da superpopulao relativa com as caractersticas extremadas que apresenta nas sociedades dependentes, sem cair no ecletismo de Jos Nun, que o mesmo Cardoso criticou com tanta razo,(49) nem tampouco no esquema de Anibal Quijano, que, independentemente de seus mritos, conduz identificao de um polo marginal nessas sociedades que no guarda relao com a maneira como ali se polarizam as contradies de classe.(50) Sem pretender fazer aqui uma verdadeira anlise do problema, vamos esclarecer alguns elementos explicativos que derivam das teses acima enunciadas.A relao positiva entre o aumento da fora produtiva do trabalho e a maior explorao do trabalhador, que adquire um carter agudo na economia dependente, no privativa dela, mas inerente ao prprio modo de produo capitalista. Isso se deve maneira contraditria como essas duas formas fundamentais de explorao incidem no valor da produo e, por consequncia, na mais-valia que esta gera. O desenvolvimento da fora produtiva do trabalho, que implica produzir mais no mesmo tempo e com um mesmo gasto de fora de trabalho, reduz a quantidade de trabalho incorporada ao produto individual e rebaixa seu valor, afetando negativamente a mais-valia. A maior explorao do trabalhador oferece duas alternativas: aumentar o tempo de trabalho excedente (modificando ou no a jornada de trabalho), ou, sem alterar a jornada e o tempo de trabalho, elevar a intensidade do trabalho; em ambos os casos, aumenta a massa de valor e a mais-valia produzidas, mas no ltimo (que se diferencia do aumento de produtividade porque, ainda que se produza mais no mesmo tempo, isso acarreta um maior gasto de fora de trabalho(51)), desde que o novo grau de intensidade se generalize, cai o valor individual das mercadorias e, em circunstncias iguais, diminui a mais-valia.No marco do regime capitalista de produo, essas tendncias opostas que se derivam das duas grandes formas de explorao tendem a se neutralizar, uma vez que o aumento da fora produtiva do trabalho no somente cria a possibilidade de uma maior explorao do trabalhador, mas conduz a esse resultado. Com efeito, a reduo do tempo total de trabalho que o operrio necessita para produzir uma certa massa de mercadorias permite ao capital, sem estender a jornada legal e inclusive reduzindo-a, exigir do trabalhador mais tempo de trabalho efetivo e, portanto, uma massa superior de valor. Com isso, a ameaa que pesava sobre a taxa de mais-valia e de lucro se compensa total ou parcialmente. O que aparece, no plano da produo, como uma diminuio do tempo de trabalho, converte-se, do ponto de vista do capital, em aumento