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“Além da capital, pelo Saneamento do Maranhão”: a instituição do Serviço de Profilaxia
Rural (1918-1924)
Mariza Pinheiro Bezerra
Introdução
No dia 3 de junho de 1919, às 9 horas, uma comitiva formada por cerca de 40
autoridades locais e representantes federais partia do centro de São Luís, capital do Maranhão,
em direção a Vila do Anil, região distante cerca de 6 km do perímetro urbano da capital. Na
ocasião, bondes e automóveis conduziam esta comitiva formada por políticos, médicos,
comerciantes, religiosos e educadores que julgavam testemunhar uma nova fase na saúde
pública do Maranhão. O jornal local Pacotilha acompanhava o evento e, no dia seguinte,
estampava matéria fornecendo detalhes daquele acontecimento.
Em clima festivo, esta espécie de marcha para o interior da ilha de São Luís, chegou
às 10 horas no Posto Profilático do Anil, o primeiro montado pela comissão de Profilaxia Rural
do estado. Raul Almeida Magalhães, bacteriologista que atuava no Instituto de Manguinhos, no
Rio de Janeiro, ali desempenhava a função de chefe do Serviço de Profilaxia Rural do
Maranhão. Diante das autoridades, o médico fez um breve discurso sobre a importância daquela
iniciativa que visava combater as endemias que acometiam a sorte das populações que
habitavam as áreas rurais. Após o discurso, “ouviram-se aplausos e a banda de música local
executou várias peças do seu repertório” (PACOTILHA, 04.06.1919).
Esta espécie de “espetáculo científico”, que passou pelas ruas de São Luís, adentrou
o interior da ilha e que virou notícia de jornal, tratava-se de uma das primeiras ações do
movimento pelo saneamento rural do Brasil no Maranhão. Delimitava, na ótica de médicos e
autoridades que atuavam no estado, um momento de inserção do considerado longínquo, e
mesmo, negligenciado Maranhão no rol das preocupações das políticas federais.
Doutoranda em História das Ciências e da Saúde (COC-FIOCRUZ). Bolsista CAPES. Orientadores: Jaime Larry
Benchimol e Juliana Manzoni. Email: [email protected]
2
Este evento, esquecido em um jornal de época, instigou-me a buscar entender que
nova fase na saúde pública julgava pertencer autoridades políticas e sanitárias daquela época.
Por isso, o objetivo deste estudo é analisar as origens e o funcionamento inicial do Serviço de
Profilaxia Rural no Maranhão, chefiado, a princípio, pelo médico Raul Almeida Magalhães,
funcionário da saúde pública no Distrito Federal. Serão apresentadas as motivações para o
estabelecimento desta iniciativa, caracterizando as ações empreendidas por Almeida
Magalhães, à época nomeado diretor do serviço. Busco entender como foi gestada a primeira
política federal voltada para as endemias rurais em terras maranhenses, serviço que prometia
sanear a capital ludovicense1, suas zonas periféricas e as margens do rio Itapecuru.
As informações sobre as ações iniciais do Serviço de Profilaxia Rural do Maranhão
foram auferidas através do relatório intitulado A prophylaxia rural redigido pelo Dr. Almeida
Magalhães e publicado no jornal local Pacotilha (21.10.1919). Trata-se de um documento
destinado ao Ministro da Justiça e Negócios interiores, que tinha como finalidade fazer um
balanço do primeiro trimestre da missão (maio a junho de 1919).
Além desse, utilizei três relatórios elaborados pelo médico Cassio Miranda, que
tinham como objetivo descrever as atividades deste médico e prestar contas da verba federal
utilizada. O primeiro, de caráter trimestral, foi publicado no Diário Oficial do Estado do
Maranhão, em 1920, e estava direcionado ao diretor do Instituto Oswaldo Cruz, Carlos Chagas.
O segundo relatório era semestral e estava direcionado ao governador do Maranhão, Godofredo
Viana. Este documento, produzido em 1923, refere-se ao primeiro semestre do ano de 1922, e
traz maiores informações sobre o período citado, além de 10 fotografias que retratam o
desempenho da Filial do IOC no Maranhão. Por fim, utilizei um relatório produzido por
Miranda, ainda em 1923, no momento que substituía o dr. Raul Almeida de Magalhães, como
chefe interino do Serviço de Saneamento e Profilaxia Rural do Maranhão.2
Serviço de Profilaxia Rural no Maranhão: concepções norteadoras
1 Nome atribuído aos indivíduos nascidos em São Luís, capital do Maranhão. Termo usado, também, para
denominar algo natural de São Luís. 2 Esta análise não tem a finalidade de julgar os discursos em termos de verdade e falsidade das ideias e práticas ali
definidas e, sim, recuperar e compreender historicamente as ações voltadas à saúde pública veiculadas àquela
época, sobretudo, àquelas voltadas ao combate das endemias rurais prevalentes.
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Viabilizado através do decreto n. 81, de 22 de outubro de 1918, lei que autorizava
o governo do Maranhão firmar contrato com o governo federal (FERNANDES, 2003, p.94-95),
o Serviço de Profilaxia Rural foi uma campanha idealizada com a finalidade de combater
especialmente a febre amarela, mas ganhou maiores proporções devido a constatações feitas
pelo dr. Almeida Magalhães, chefe da missão. Segundo aponta em levantamento inicial, além
da febre amarela, malária, úlceras, lepra, verminoses, leishmaniose eram doenças prevalentes
na capital e interior do Maranhão.
De início, o Serviço de Profilaxia Rural passou a funcionar no final de abril de 1919
e era formado por dois inspetores sanitários, o médico carioca Raul Almeida Magalhães e o
médico maranhense Carlos Peixoto da Costa Rodrigues, ambos funcionários da saúde pública
no Distrito Federal. Além desses, registra-se nessa comissão a presença do médico Cassio
Miranda, responsável por instalar naquele mesmo ano uma filial do Instituto Oswaldo Cruz em
São Luís, capital do Maranhão (GAZETA DE NOTÍCIAS, 14.03.1919).
Naquele ano, a chegada do serviço de profilaxia rural estava revestida de
expectativas, algo que incentivava a emergência de discursos que traziam à tona a esperança
que os ludovicenses depositavam naquela ação federal de combate a doenças. Por exemplo,
dias após a chegada da equipe liderada pelo dr. Almeida Magalhães o jornal Pacotilha
(06.05.1919) anunciava que “a terra maranhense vae sentir, dentro de pouco tempo, os
benefícios de uma séria campanha de profilaxia”. Em seguida, o jornal prometia que esta
campanha de higiene era “defensiva e agressiva” ao mesmo tempo, estabelecendo, assim, uma
tônica bem ampla para a missão, uma vez que estaria “contra os males vários que flagelam,
desde as enfermidades com caráter epidêmico, restrito ou pandêmico, até as moléstias que
fazem parte das endemias no quadro nosológico daquela unidade da federação”.
O médico maranhense Justo Jansen, em publicação intitulada O saneamento do
Maranhão demonstra expectativa positiva em relação ao serviço montado, mesmo após dois
anos de funcionamento. No discurso que apresento a seguir, o médico denota um ideal de
serviço médico da época, revestido da ideia de “missão civilizatória” e de inserção da população
doente no projeto modernizador da República:
4
O serviço de saneamento do Maranhão instalado nesta capital, estenderá a sua
influência benéfica até os mais longitudinais pontos por meio de postos médicos.
Assim como o magistrado conduz a lei aos mais remotos lugares, o sacerdote, a
religião; o professor, o ensino; ao médico compete ir de cidade e cidade, de vila em
vila, e de povoado em povoado espalhando a educação higiênica, fazendo alvorecer
no espírito de cada habitante a certeza de que poderá prolongar a vida, emancipar-se
das causas que a deprimem mediante os preceitos da moderna profilaxia e terapia. Só
assim o Brasil terá um povo apto ao trabalho. Livre dos germens que lhe destroem o
organismo deixará o sertanejo em evidenciar com toda a exuberância, a robustez física
e com esta o soerguimento das qualidades morais e intelectuais (JANSEN, 1921, p.8-
9).
Algumas questões emergem quando nos aproximamos dos escritos de época que
tratam da instalação desse tipo de serviço em regiões distantes de capitais que, à época, estavam
na vanguarda da saúde pública. Isso por que, trata-se de um momento de inserção do Maranhão,
para além de sua capital, no movimento pelo saneamento do Brasil, período que “revelou”
populações desassistidas pelas políticas públicas.
Segundo Lima & Hochman (2000) este período estava regido pela ideia de um
“Brasil doente” que impulsionava o movimento pelo saneamento do país. Trata-se de um
contexto que “revelou” populações desassistidas pelas políticas públicas, através de viagens e
expedições científicas ao interior do Brasil. Com isso, ficava explícita a presença de “um outro
Brasil”, essencialmente “rural”, “sertanejo”, com sua população doente, em completo estado de
pobreza e sem qualquer identificação nacional. Em consequência disto, os sertões seriam objeto
de “planos de salvação nacional”, materializando-se em ações como a Liga Pró-Saneamento do
Brasil.
Prevalece nesses discursos um certo modo de compreender o Brasil através de suas
ausências, sendo que esses locais passavam a ser reconhecidos através do binômio “abandono
e doença”, e subsumidos no conceito “sertões”. Estes, passaram a constituir uma categoria
relacionada às dimensões política e social, não se restringindo à “referência simbólica ou
geográfica” do interior do país. Com isso, serão desenvolvidos “planos de salvação nacional”,
concretizando-se em ações como a Liga Pró-Saneamento do Brasil, criada em 1918 (LIMA;
HOCHMAN, 2000). Nestes planos destaca-se, inicialmente, a instituição do Serviço de
Profilaxia Rural no Paraná, Minas Gerais e, por último, Maranhão, materializando uma
intervenção mais efetiva das políticas federais em âmbito local.
5
Nesta lógica, o Maranhão, à época pertencente à longínqua e genérica região Norte
do Brasil, passava a ser concebido pelas autoridades federais, como sertão e, do ano de 1918
em diante, figurava na agenda de autoridades médicas, que visavam combater doenças que
comprometiam o fortalecimento da nação3. Naquele momento, as viagens realizadas por
médicos e autoridades sanitárias rumo à territórios poucos conhecidos passavam a ser
compreendidas como “expedições civilizatórias”, que tinham como finalidade integrar tais
regiões ao projeto modernizador dos anos iniciais da primeira República (LIMA, 2013, p.116).
Outro ponto importante a ser considerado como concepção norteadora para
instalação de um Serviço de Profilaxia Rural no Maranhão, diz respeito à consolidação do
Instituto de Manguinhos como “agência do poder central”, com seus cientistas “reconhecidos”
e que se “reconhecerão como agentes e porta-vozes da nação” (BENCHIMOL; TEIXEIRA,
1993, p.16). Afinal, os dois médicos designados para liderar as duas frentes de saneamento rural
no Maranhão, dr. Almeida Magalhães e dr. Cassio Miranda, (Serviço de Profilaxia Rural e Filial
do IOC no Maranhão, respectivamente), eram provenientes do IOC, instituição que estava na
vanguarda das pesquisas na área de microbiologia.
Há que se considerar que o discurso de Oswaldo Cruz, depois que assumiu a
liderança do saneamento da Capital Federal e a direção de Manguinhos em 1902, estava
marcado pela importância dada à dilatação de fronteiras tanto da política sanitária como das
ações do Instituto nos três campos em que vinha se firmando: “fabricação de produtos
biológicos, pesquisa e ensino” (BENCHIMOL; TEIXEIRA, 1993, p.19), o que denotava uma
concepção mais ampla de ciência, para além de uma visão imediatista da política sanitária.4
3 Atualmente o Maranhão está inserido na região nordeste, seguindo a última definição regional do IBGE de 1970.
Ao referi-lo com parte da região norte, neste estudo, quero enfatizar que essas delimitações eram muito instáveis
no início do século XX. A região norte do Brasil, muitas vezes, era uma denominação genérica dada por
autoridades políticas e intelectuais da época para regiões consideradas longínquas, atrasadas, em relação ao Rio
de Janeiro e São Paulo. Com a expansão do movimento pelo saneamento do Brasil rural, reconhecido por uma
“consciência de interdependência” ou “consciência social”, ou ainda, “senso de responsabilidade” em relação aos
problemas de saúde pública (HOCHMAN, 2012, p.28), o Maranhão, principalmente a partir de 1910, passou a ser
concebido, também, como sertão. 4 Segundo Benchimol e Teixeira (1993, p.19-20) a dilatação das fronteiras de ação do instituto também tinha uma
“conotação geográfica”, pois seus cientistas, à semelhança das instituições europeias que serviam aos projetos
colonialistas na África e Ásia, poderiam combater doenças responsabilizadas pelos entraves ao capitalismo.
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Ações prioritárias: organização do serviço e a importância do diagnóstico laboratorial
A primeira providência tomada pelo Serviço de Profilaxia Rural no Maranhão,
como retratou seu chefe Almeida Magalhães (1919, p.3), foi abrir um curso prático de
microscopia clínica. A razão para viabilizar esta empresa foi a dificuldade para encontrar
“pessoal idôneo”, como disse, para composição do quadro de funcionários da instituição. O
próximo passo foi anunciar concurso para aquisição de funcionários.
Durante o mês de maio de 1919 o curso funcionou regularmente. Os candidatos
receberam instruções teóricas e práticas sobre princípios de hematologia e coprologia. O
objetivo era identificar, através de diagnóstico parasitológico, diversas modalidades da malária
e ovos de helmintos.
O desenvolvimento de técnicas desta natureza estava sintonizado aos preceitos de
higiene da época que atribuíam relevância à prática laboratorial para consecução de eficientes
ações de saúde pública. Sobre isso, Cunningham (1992, p.209) explica que o advento do
laboratório mudou “radicalmente a identidade das doenças infecciosas”, como a peste bubônica,
por exemplo.
Isso ocorre por que a medicina laboratorial está alicerçada na ideia de que cada
doença possui uma “causa única”, “identificável”, exclusivamente, através do laboratório,
conforme argumenta Cunningham (1992, p.209). Em consequência disso, esta prática seria
capaz de afastar qualquer diagnóstico calcado em suspeitas e, consequentemente, seria capaz
de retirar de cena doenças comumente apresentadas como “mistas” (CUNNINGHAM, 1992,
p.223). Nesta lógica, a indeterminação da real causa das doenças inviabilizava ou tonava
ineficaz qualquer ação voltada ao enfrentamento de enfermidades.5
Sintonizado aos princípios do sanitarismo vigente, para o qual o estabelecimento
do diagnóstico é fundamental para os trabalhos posteriores, o Serviço de Profilaxia Rural
5 É importante citar, que essa importância dada à prática laboratorial tem dois aspectos que devem ser considerados:
em primeiro lugar, o reducionismo, afinal todo o complexo de fatores biológicos e sociais implicados no
desencadeamento da doença como fenômenos individual ou coletivo, nessa ótica pode ser encoberto. Em segundo
lugar, na prática, o advento da medicina de laboratório nem sempre elimina as ambiguidades, uma vez que
diagnósticos diferenciais, indeterminados ou mesmo equivocados, por vezes prevalecem. Vale lembrar que, por
muito tempo, por exemplo, febre amarela e malária seriam confundidas no Nordeste do Brasil e em outras partes.
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assumiu a direção do Posto de Socorro aos Ulcerados, reconhecendo-o como Posto da Capital
e prometendo diagnósticos mais eficazes para as chamadas “úlceras” tão comuns na população.
Além desse, o Serviço inaugurou, como mencionamos no início do texto, um posto na periferia
de São Luís, localizado na Vila do Anil. Auxiliava nos diagnósticos a filial do IOC recém
instituída em São Luís:
Procurando com a colaboração do dr. Costa Rodrigues, diretor atual do posto, e do dr.
Cassio Miranda do Instituto Oswaldo Cruz, determinar a etiopatogenia dessas ulceras
– que em forte porcentagem estropiam as populações baldas de recursos deste Estado
– verificamos que esses processos ulcerativos correm por conta do conhecido
phagledenismo tropical, determinado por uma simbiose fuso espiralar assinalada pela
primeira vez por Le Dantec e posteriormente por Vincent, Coyon, Del Vechio e
outros. De fato, nos esfregaços feitos com material retirado dessas ulceras ora
constatava a existência de bacilos fusiformes, ora de espirilos, sendo raros os casos
em que se verificou a coexistência dos elementos patogênicos acima referidos
(MAGALHÃES, 1919, p.3).
O posto de socorro aos ulcerados foi fundado pelo médico maranhense Achilles
Lisboa e sobrevivia, principalmente, através do auxílio da caridade. Com a passagem da direção
do posto para o Serviço de Profilaxia recém instituído, essa assistência transformou-se em uma
espécie de “policlínica” que oferecia à população atendimento médico e farmacêutico.
Através de análise dos primeiros meses de atuação da nova direção, Almeida
Magalhães concluiu que as úlceras predominantes eram provenientes de um tipo de
“phagledenismo tropical”, como citou. Além desse tipo, predominavam úlceras provenientes
de manifestações sifilíticas e de leishmaniose.
Agravava a situação o fato dos ulcerados apresentarem-se com verminoses que
debilitavam cada vez mais seus organismos:
Concorrendo e contribuindo para a constituição dessas ulceras, que se apresentam em
todo o estado com frequência dolorosamente acabrunhadora, a miséria e discrasia
sanguínea, decorrente da uncinariose, constituem talvez os fatores principais desse
grande flagelo a juntar-se aos outros que dizimam as populações de nosso hinterland.
O serviço não está, infelizmente, apercebido de recursos para combater com eficácia
esse mal (MAGALHÃES, 1919, p.3).
Isso por que, argumenta Magalhães, as injeções de novoarzenobenzol utilizadas
como tratamento mais eficaz só fazem efeito quando associadas à dieta adequada e repouso,
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algo inviável para população mais carente. Nesta lógica, a presença de um Hospital de
Profilaxia Rural, o Hospital Central, inaugurado em 1921, tornava-se cada vez mais necessário:
Os ulcerados, em quase totalidade pertencentes às classes pobres, ou são obrigados a
um trabalho exaustivo para manutenção de sua existência, ou entregam-se a
mendicância, claudicando a esmolar, horas a fio, pelas ruas da cidade. Malnutridos,
anemiados pelo estado discrásico do meio interno, andrajosos, seminus, estropiados
e manquejantes, necessitam esses míseros ulcerados [de] uma assistência alimentar e
terapêutica que, evidentemente, só poderão encontrar no hospital.
A malária também foi objeto de significativa atenção do Serviço de Profilaxia.
Almeida Magalhães (1919, p.3) identificou em relatório as áreas mais afetadas pela doença no
interior do estado: margens dos rios Turiaçu, Itapecuru, Pindaré Mirim, Grajaú e Parnaíba.
Conforme citou, “paga a população sertaneja um grande e pesado tributo à malária, máxime na
estação chuvosa”. Identificou, também, que na cidade de São Luís e em localidades vizinhas a
doença imperava. Bairros como Codozinho, Baixinha e Madre Deus, regiões próximas do
centro urbano da cidade, apresentavam inúmeros casos.
No centro da cidade, em ruas onde residem pessoas de tratamento, várias verificações
microscópicas positivas têm documentado a existência de malária nas suas
modalidades mais frequentes: a terçã benigna e maligna. Para melhor demonstrar o
grau de endemicidade da moléstia na capital, basta referir que no mês de julho, só em
uma casa à Rua Oswaldo Cruz (a principal da cidade) tive ocasião de medicar oito
doentes de paludismo, após verificação parasitológica em três enfermos da
modalidade maligna da parasitose.
Consta nos escritos de Magalhães que as medidas preliminares para o combate à
doença foram:
1. Fechamento de centenas de poços e cisternas em toda área urbana;
2. Inserção de petróleo em áreas alagadas;
3. Desmatamento das zonas silvestres;
4. Abertura de drenos para escoamento das águas pluviais;
5. Serviço de sistemático de assistência médica domiciliária aos doentes.
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Mas foram as verminoses as principais enfermidades a serem combatidas pelo
Serviço de Profilaxia Rural, especialmente a uncinariose (ancilostomose). A prática laboratorial
foi utilizada, principalmente, para detectar a presença da doença e de indivíduos portadores.
Por isso, a assistência no posto de profilaxia da capital e da Vila do Anil envolvia a
obrigatoriedade de os doentes trazerem material fecal para submeter à exame. Conforme
argumenta Magalhães (1919, p.3), “positivado o diagnóstico microscópico o encarregado de
medicação administra o vermífugo e fornece ao doente o purgativo para ser ingerido duas horas
depois”.
Há que se considerar que, seguindo os princípios do sanitarismo vigente, a
distribuição de medicamentos nos postos não era o meio mais eficiente para a extinção da
doença. Conforme explica Magalhães (1919, p.3), “o método intensivo ou tratamento
domiciliário é o que melhores benefícios determina”, porém, demandam ações contínuas, que
requerem, mesmo, a presença de guardas sanitários para o acompanhamento da população em
tratamento.
Assim, na ótica do dr. Almeida Magalhães a distribuição de medicamentos em
ambulatório, seria tão somente, um tratamento “coadjuvante” uma vez que o combate à essa
doença necessita além de acompanhamento do paciente o tratamento dos indivíduos portadores,
também responsabilizados pela propagação dos vermes.
O médico aponta que as principais dificuldades para promover o saneamento da
população maranhense, no tocante à extinção das verminoses, corresponde à “obrigatoriedade
da construção de fossas biológicas ou fossas fixas para depuração ou simples receptáculo das
matérias excrementícias” (MAGALHÃES, 1919, p.3). Mas isto era uma realidade inatingível
para uma população que há tempos estava desassistida pelas políticas de saúde do período. Por
isso, Almeida Magalhães limitou-se a elaborar um Regulamento de Profilaxia Rural que estava
em fase de apreciação pelo governo do Estado na época.
Uma Filial do IOC para o Maranhão e o advento de um Hospital Central
10
Outra ação que denotava a inserção do Maranhão no movimento pelo Saneamento
do Brasil Rural refere-se à instalação de uma filial do IOC na capital ludovicense.
Desembarcando em São Luís em 20 de maio de 1919, dias depois da chegada do dr. Almeida
Magalhães, o bacteriologista Cassio Miranda, foi responsabilizado por instalar a filial.
Nomeado por Carlos Chagas, de quem foi aluno entre 1913 e 1914, em um curso de
Protozoologia (FIOCRUZ, 2015), o objetivo deste médico e de sua equipe era criar uma filial
do IOC que trabalhasse em conjunto com a Comissão Federal, mas que também desenvolvesse
ações autônomas, como o diagnóstico de doenças, cobrando para isso, taxas a quem pudesse
pagar.
Cassio Miranda recebeu do governador do Estado os prédios de número 22, 30 e 32
da Rua Afonso Pena, no centro de São Luís (MIRANDA, 1923, p.2). Posteriormente, seguiram-
se trabalhos de melhoramento e adaptação dessas casas às atividades da instituição. A estrutura
física da filial foi dividida da seguinte forma: Seção de Bacteriologia, Instituto Vacinogênico,
Secção do Instituto Pasteur (para tratamento e administração da vacina antirrábica) e um Posto
antiofídico.
A análise dos relatórios produzidos pelo médico evidencia certa regularidade dos
serviços prestados pela filial do IOC ao Serviço de Profilaxia (especialmente a seção de
bacteriologia) ali instituído. As ações eram desempenhadas por uma equipe pequena, se
levarmos em consideração a amplitude da Instituição e os problemas de saúde que afligiam o
Maranhão Sertão. As fontes denotam que, até 1922, o quadro de funcionários era composto
por três médicos (Cassio Miranda, Luiz Viana e Heitor Pinto), um funcionário do Instituto Vital
Brazil (Benedicto Laurindo de Moraes), um escriturário (José Mariano da Cunha), três
serventes (Augusto Teixeira Pinto, Benigno Bezerra da Cruz e Avelino Gandra) e 1 chauffer
(Leonel Bezerra da Cruz) (MIRANDA, 1923, p.40-43).
A demanda crescente por exames para detectar vermes, amebas e outros
protozoários, inclusive os de paludismo, bacilo de Hansen e outras bactérias patogênicas, filaria
e outros agentes de doenças exigiu que Miranda organizasse um anexo à seção bacteriológica,
11
dividindo-o em “seção de exames histopatológicos” e uma seção de “análises química”
(MIRANDA, 1923, p.25).6
Outra ação prioritária da filial corresponde à instalação de um Instituto
Vacinogênico dentro do instituto. Inaugurado em 5 de fevereiro de 1920 esta seção teve suas
primeiras atividades ligadas ao preparo da vacina contra a varíola (MIRANDA, 1920, p.3).
Estabelecidas as seções prioritárias do IOC, Cassio Miranda passou para um
segundo momento de atuação. Em 5 de abril de 1922 foi inaugurada a seção do Instituto Pasteur
na filial, cujo o objetivo era produzir a vacina antirrábica na capital. A última seção da filial
apresentada à população naquela época de estruturação do IOC no Maranhão, diz respeito ao
posto antiofídico que prometia lançar luz em quadro quase generalizado de desconhecimento
sobre as serpentes da região.
Outro evento significativo relacionado ao Serviço de Profilaxia Rural no Maranhão
diz respeito à transformação do antigo Hospital Militar7 em Hospital Central da Profilaxia
Rural. Segundo o médico maranhense Justo Jansen (1921, p.9), em artigo intitulado “O
Saneamento do Maranhão” a adaptação do antigo prédio aos princípios sanitários da época foi
iniciada na administração do dr. Almeida Magalhães, em 1919, e concluída sob a direção do dr.
Carlos Costa Rodrigues, em 1921.
Segundo Justo Jansen (1921, p.10) do antigo prédio só restaram as telhas e paredes
que, após reforma, ganharam aspectos consoantes à assepsia. Assim o autor descreve a estrutura
física do hospital:
O edifício que forma um vasto quadrilátero é de dois pavimentos. As enfermarias
destinadas aos paludados ocupam uma das alas do pavimento superior. Além de lhe
proporcionarem muito conforto, apresentam todas as janelas e portas protegidas por
telas metálicas, vedando cabalmente a entrada dos mosquitos. Assim se evitam a
reinfecção e difusão de moléstias.
6 Observo que além de exames bacteriológicos a filial passa a fazer exames histopatológicos – ou seja mobiliza
especialistas – patologistas – e procedimentos diferentes para identificar não só parasitos, mas também lesões e
estruturas anômalas nos tecidos entregues para investigação pelos médicos ou cirurgiões. O laboratório químico
envolvia, provavelmente, outro tipo de demandas, também diferentes dos exames bacteriológicos. Julgamos
necessário, em estudos futuros, verificar essas ações nos relatórios produzidos por Cassio Miranda. 7 O prédio a que me refiro, atualmente, corresponde ao Hospital Geral Tarquínio Lopes Filho, localizado no bairro
Madre Deus e está sob administração do Governo do Estado do Maranhão. Ao longo do tempo, desde 1713,
período em que foi estabelecido ali os pilares de uma ermida dedicada à Santa que dá nome ao bairro, o prédio
serviu como edifício religioso, Hospital para variolosos, Hospital Militar, Hospital para pestosos, chegando a
abrigar o Serviço de Profilaxia Rural do Maranhão, em 1921 (PAXECO, 1922).
12
O hospital ainda dispunha de sala de operações, de espera e de consulta. Contava
com ala para curativos, salas de pesquisa bacteriológicas, de cloroformização, esterilização e
manipulação farmacêutica. Até a publicação de Justo Jansen o aparelho de Raio X ainda não
havia sido instalado, mas já existiam salas disponíveis para este serviço.
Justo Jansen (1921, p.10) reitera que toda estrutura do Hospital obedece
criteriosamente aos preceitos da higiene, como por exemplo, o contato frequente com a
ventilação e a luz direta.
Considerações finais
Registro, portanto, significativa atuação do Serviço de Profilaxia Rural no
Maranhão nos anos iniciais de sua instalação. Observei que esta iniciativa se tratava da
viabilização de uma concepção maior que almejava o enfrentamento de doenças nas zonas
rurais e a inserção da população do interior do Brasil ao processo civilizatório em curso.
Assumo a tese de que a presença deste serviço demostrava uma reciprocidade das autoridades
locais com o governo federal, que passava a conceber o Maranhão Norte e Sertão como alvo
de investidas do campo médico-sanitário. Com isso, a cidade de São Luís, àquela época, seria
concebida como ponto estratégico para distribuição de assistência médica, visando a superação
do binômio “abandono – doença”.
Devido o objetivo deste estudo e a ausência de bibliografias que tratem da
instalação do Serviço de Profilaxia Rural no Maranhão, decidi dar ênfase à estruturação que
Almeida Magalhães e Cassio Miranda estabeleceram para as atividades de profilaxia rural no
Maranhão. Percebo que mesmo diante de limitações, importantes ações de combate às doenças
como a verminoses, malária e úlceras foram concretizadas.
Quero destacar que minha intenção não é atribuir a estes médicos total
protagonismo das ações de saúde pública materializadas na época. Acenei a participação de
médicos maranhenses no processo, como Costa Rodrigues e Aquilles Lisboa. Este já havia
estruturado um posto de socorro aos ulcerados em São Luís. Estudos posteriores poderão
13
demonstrar as feições internas que o movimento passou a apresentar no estado, especialmente
após os anos iniciais do Serviço de Profilaxia.
Outro ponto importante que deve ser considerado, no intuito de não conceder à
Almeida Magalhães e Cassio Miranda total protagonismo dessas ações, refere-se aos alicerces
das atividades de saneamento na capital. Estas só foram viabilizadas através de negociações
políticas e técnicas, locais e federais, que permitiram iniciativas de combate às endemias rurais
que grassavam no estado.
Por fim, reitero que estudos posteriores também poderão esclarecer em que medida
uma consciência ligada à Saúde Pública foi materializada no estado, com a finalidade de ir além
das medidas emergenciais de combate de doenças, priorizando o desbravamento das fronteiras
do interior do Brasil.
Referências
Documentos
GAZETA DE NOTÍCIAS, 14.03.1919.
JANSEN, Justo. O saneamento do Maranhão. Jornal do Commercio. N. 289, a.95. 1921.
MAGALHÃES, Raul de Almeida. A prophylaxia rural. Pacotilha. 21.10.1919. 5 p.
MIRANDA, Cassio. Relatório da Filial do Instituto Oswaldo Cruz no Maranhão. Diário
Official do Estado do Maranhão, n.127, a.XV. 1920.
___. Relatório do Instituto Oswaldo Cruz referente o primeiro semestre do ano de 1922.
1923.
___. Serviço de Saneamento e Prophilaxia Rural do Maranhão. Relatorio apresentado pelo
Dr. Cassio Miranda, Chefe interino do Serviço, no ano de 1923, à Directoria do Serviço de
Saneamento e Prophilaxia Rural. São Luís, Typogravura Teixeira. 1925.
PACOTILHA. 06.05.1919.
___. 04.06.1919.
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