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1 INTRODUÇÃO O título desta dissertação, uma frase atribuída a Nuno Álvares Pereira pelo cronista Fernão Lopes 1 , poderia indicar o que era, na sua essência, a guerra de cerco na época medieval: um combate direccionado às muralhas de uma posição detida por um adversário, na tentativa de as transpôr e assim conquistar uma determinada fortificação: uma povoação amuralhada ou um castelo. Realizada no âmbito do mestrado em História, na área de especialização de História medieval, esta dissertação procurará, pois, analisar as operações de cerco ocorridas na guerra entre os reinos de Portugal e Castela desde o início da Crise Sucessória, em 1383, até ao segundo cerco de Tui, pertencente à última campanha militar do século XIV empreendida por D. João I, no ano de 1398, e estudar os diversos aspectos que compunham este tipo de episódios militares. As operações de cerco envolviam muito mais do que o que está contido na frase “combato com as paredes”. Era necessário reunir um grande número de homens e armá- los o melhor possível, recolher todo o tipo de mantimentos e materiais, construir ou montar diversos tipos de engenhos e de estruturas, entre muitas outras acções. Isto tudo numa fase prévia ao início das operações propriamente ditas, mostrando a necessidade de um elevado grau de preparação para as forças em confronto, se estas quisessem sair vitoriosas. Depois do início do conflito entre sitiados e sitiantes, assistia- se a uma sequência de diversas manobras e acções que resultavam num duelo entre forças adversárias, em que uns e outros procuravam frustrar os desígnios dos seus inimigos, ao longo de um período repleto de incógnitas, perigos e sofrimentos diversos onde a vida dos intervenientes estaria permanentemente em risco. Apesar de não existir nenhum outro estudo que tenha analisado especificamente as operações de cerco durante o período compreendido entre 1383 e 1398, este não é um tema totalmente inexplorado. Como teremos oportunidade de ver em maior detalhe no primeiro capítulo desta dissertação, a historiografia militar, até à segunda metade do século XX, pouca 1 CDJ I, 2ª, cap. LXXVI, p. 175.

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Page 1: run.unl.pt£o_afonso.pdf · 1 INTRODUÇÃO O título desta dissertação, uma frase atribuída a Nuno Álvares Pereira pelo cronista Fernão Lopes1, poderia indicar o que era, na

1

INTRODUÇÃO

O título desta dissertação, uma frase atribuída a Nuno Álvares Pereira pelo

cronista Fernão Lopes1, poderia indicar o que era, na sua essência, a guerra de cerco na

época medieval: um combate direccionado às muralhas de uma posição detida por um

adversário, na tentativa de as transpôr e assim conquistar uma determinada fortificação:

uma povoação amuralhada ou um castelo.

Realizada no âmbito do mestrado em História, na área de especialização de

História medieval, esta dissertação procurará, pois, analisar as operações de cerco

ocorridas na guerra entre os reinos de Portugal e Castela desde o início da Crise

Sucessória, em 1383, até ao segundo cerco de Tui, pertencente à última campanha

militar do século XIV empreendida por D. João I, no ano de 1398, e estudar os diversos

aspectos que compunham este tipo de episódios militares.

As operações de cerco envolviam muito mais do que o que está contido na frase

“combato com as paredes”. Era necessário reunir um grande número de homens e armá-

los o melhor possível, recolher todo o tipo de mantimentos e materiais, construir – ou

montar – diversos tipos de engenhos e de estruturas, entre muitas outras acções. Isto

tudo numa fase prévia ao início das operações propriamente ditas, mostrando a

necessidade de um elevado grau de preparação para as forças em confronto, se estas

quisessem sair vitoriosas. Depois do início do conflito entre sitiados e sitiantes, assistia-

se a uma sequência de diversas manobras e acções que resultavam num duelo entre

forças adversárias, em que uns e outros procuravam frustrar os desígnios dos seus

inimigos, ao longo de um período repleto de incógnitas, perigos e sofrimentos diversos

onde a vida dos intervenientes estaria permanentemente em risco.

Apesar de não existir nenhum outro estudo que tenha analisado especificamente

as operações de cerco durante o período compreendido entre 1383 e 1398, este não é um

tema totalmente inexplorado.

Como teremos oportunidade de ver em maior detalhe no primeiro capítulo desta

dissertação, a historiografia militar, até à segunda metade do século XX, pouca

1 CDJ I, 2ª, cap. LXXVI, p. 175.

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importância deu à guerra na Idade Média, reconhecendo pouca ou nenhuma evolução na

arte da guerra neste período, balizado pela Antiguidade Clássica e pelo Renascimento.

No prefácio para a edição inglesa de La Guerre au Moyen Âge2 (edição original de

1980), Philippe Contamine refere que o progresso na historiografia medieval, após a

Segunda Guerra Mundial, levou a uma subestimação do fenómeno da guerra nos

estudos da medievalidade. Desta forma, o autor tinha o seguinte objectivo aquando do

início deste projecto: “to restore to war its decisive place both as an explanatory factor

and as the product of a whole cultural, technical and economic environment”3. Assim,

esta obra vinha cobrir cerca de um milénio da história militar, desde a queda de Roma

até à queda de Constantinopla, procurando tratar uma multitude de aspectos referentes à

guerra medieval, como, por exemplo, o armamento, o recrutamento, os costumes

militares ou regras estabelecidas para o regulamento dos conflitos, não se cingindo

somente a um reino, mas procurando estudar um pouco todo o Ocidente, da Península

Ibérica ao Levante, numa altura em que poucos trabalhos aprofundados existiam sobre o

tema.

Para o estudo específico das operações de cerco medievais (embora presente na

obra de Contamine, não era este o único tema em que a sua obra se focava), foram

necessários mais doze anos até Jim Bradbury editar The Medieval Siege, em 19924.

Embora a guerra de cerco tenha sido tão frequente na época e raras são as fontes

primárias de carácter narrativo que não possam contribuir para o estudo desta temática,

o autor reconheceu uma ausência de estudos recentes sobre o tema, com o próprio a

admitir que essa falta dificultou o seu trabalho5. Contudo, Jim Bradbury elaborou uma

obra que se tornou num marco na historiografia militar sobre os cercos medievais,

estudando a evolução deste tipo de operações militares na Europa e no Levante desde o

fim do Império Romano do Ocidente até ao cerco de Malta de 1565, já na época

moderna. O autor analisa, por exemplo, o papel das fortalezas no plano político e militar

na Idade Média, os diversos tipos de engenhos utilizados nos cercos, variados episódios

militares que pautaram este período um pouco por toda a Europa, entre outros aspectos,

fazendo desta obra um ponto de partida para o estudo desta temática.

2 CONTAMINE, Phillipe, War in the Middle Ages, tradução de Michael Jones, Barnes & Noble, Inc.,

New York, 1998. 3 Idem, Ibidem, p. x. 4 BRADBURY, Jim, The Medieval Siege, 3ª edição, The Boydell Press, Woodbridge, 1998. 5 Idem, Ibidem, p. xiii.

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Em 1995, a colaboração de doze historiadores na obra The Medieval City under

Siege, organizada por Ivy A. Corfis e Michael Wolfe6, trouxe um novo contributo para

esta temática através de doze artigos, estudando temas como a relação entre a guerra de

cerco e as cidades, a evolução das tecnologias de assalto e das fortificações urbanas, o

cerco nas narrativas da época e, ainda, o impacto que as primeiras armas de fogo

tiveram nas operações de cerco, aprofundando assim o estudo da temática através do

destaque dado ao papel das urbes e das fortificações nas operações de cerco e também o

lugar que este tipo de operações ocupava na sociedade e na cultura da época medieval.

Antes de passar à historiografia militar portuguesa, é necessário fazer ainda uma

referência às operações de cerco na historiografia medieval da vizinha Espanha. Por

exemplo, em 1994, Antonio Silva Torremocha edita a sua obra Algeciras entre La

Cristiandad y el Islam, Estudios sobre el Cerco y Conquista de Algeciras por el Rey

Alfonso XI de Castilla, así como de la Ciudad y sus Términos Hasta el final de la Edad

Media7, um estudo de caso sobre o cerco de Algeciras, iniciado em 1342 e que se

prolongou até 1344, bem como a história da própria cidade (destruída em 1379 por

forças muçulmanas) e termo, desde o cerco até ao final da Idade Média. No ano

seguinte, Jorge Jiménez Esteban estuda os alvos da guerra de cerco, neste caso as

fortalezas hispânicas, em El castillo Medieval Español y su Evolución8. Por último,

destaca-se a obra de Francisco García Fitz, de 1998, intitulada Castilla y León frente al

Islam – Estrategias de expansión y tácticas militares (siglos XI – XIII)9, na qual o autor

trata, em grande pormenor, a estratégia militar medieval no contexto da Reconquista,

dividindo o seu livro entre as incursões e a guerra de desgaste, as operações de cerco e

as batalhas campais.

Eis que chegamos ao panorama nacional em relação à historiografia militar

medieval. O artigo intitulado “The Medieval Military History”, da autoria de Miguel

Gomes Martins e João Gouveia Monteiro, inserido na obra The Historiography of

6 CORFIS, Ivy A., e WOLFE, Michael (ed.), The Medieval City under Siege, The Boydell Press,

Woolbridge, 1999. 7 TORREMOCHA SILVA, Antonio, Algeciras entre La Cristiandad y el Islam, Estudios sobre el Cerco y

Conquista de Algeciras por el Rey Alfonso XI de Castilla, así como de la Ciudad y sus Términos Hasta el

final de la Edad Media, Intituto de Estúdios Campogibralteños / Junta de Andaluzia, s.l., 1994. 8 JIMÉNEZ ESTEBAN, Jorge, El Castillo Medieval Español y su Evolución, Agualarga, s.l., 1995. 9 GARCÍA FITZ, Francisco, Castilla y León frente al Islam: Estrategias de expansión y tácticas militares

(siglos XI-XIII), 2ª Edição, Secretariado de Publicaciones de la Universidad de Sevilla, Sevilla, 2005.

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Medieval Portugal (c. 1950-2010)10, serviu como base para a elaboração do estado da

arte desta temática em Portugal. Este trabalho indica que embora tenham surgido, desde

a década de 80 do século passado, novos estudos sobre a temática, a historiografia

militar portuguesa ainda tem muito para ser explorado. Os autores começam por referir

a importância de três obras para este tema: A Guerra em Portugal – nos finais da Idade

Média11, a tese de doutoramento de João Gouveia Monteiro editada em 1998, que

trabalha a guerra no período entre o reinado de D. Fernando e a Batalha de Alfarrobeira,

em 1449; da Nova História Militar de Portugal, coordenada pelo General Manuel

Themudo Barata e por Nuno Severiano Teixeira, destaca-se o Volume I, do ano de

2003, dirigido por José Mattoso e com as contribuições de Mário Jorge Barroca, João

Gouveia Monteiro e Luís Miguel Duarte, dedicado à história militar da Idade Média

portuguesa 12 ; e a tese de doutoramento de Miguel Gomes Martins, editada

posteriormente à elaboração do artigo, em 2014, como A Arte da Guerra em Portugal -

1245-136713, cujo período tem como balizas cronológicas a guerra civil de 1245-1248 e

o reinado de D. Pedro I14. Estes são, na opinião dos autores do artigo, os trabalhos

historiográficos sobre a temática militar mais relevantes sobre o período medieval, visto

serem até hoje os trabalhos mais completos, pois estudam vários aspectos relacionados

com a arte da guerra, desde assuntos como recrutamentos, a preparação dos

combatentes, logística, diferentes tipos de operações, incluindo a guerra de cerco, etc.,

oferecendo a um leitor uma visão global e também pormenorizada da guerra medieval

em Portugal15.

Para o período entre a morte de D. Fernando I, em 1383, e o tratado de paz de

Ayllón, em 1411, existe um número mais substancial de estudos sobre matérias

militares, quando comparado com outros períodos (por exemplo, para as Guerras

Fernandinas, para além do que João Gouveia Monteiro escreveu sobre este tema na

Nova História Militar de Portugal e na sua tese de doutoramento, acima já referida,

10 MARTINS, Miguel Gomes e MONTEIRO, João Gouveia, “The Medieval Military History”, The

Historiography of Medieval Portugal (c. 1950-2010), dir. de José Mattoso, IEM, Lisboa, 2011, pp. 459-

481. 11 MONTEIRO, João Gouveia, A guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, Editorial Notícias,

Lisboa, 1998. 12 BARATA, Manuel Themudo, e TEIXEIRA, Nuno Severiano (dir. de), Nova História Militar de

Portugal, Vol. I, coord. de José Mattoso, Círculo de Leitores, Rio de Mouro, 2003. 13 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra em Portugal - 1245-1367, Imprensa da Universidade de

Coimbra, Coimbra, 2014. 14 Idem e MONTEIRO, João Gouveia, “The Medieval Military History”, The Historiography of Medieval

Portugal (c. 1950-2010), pp. 460-461. 15 Idem, Ibidem, p. 461.

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existe somente uma obra relevante de panorama geral, a de Armando Martins, As

Guerras Fernandinas. 1369-1371, 1372-1373, 1381-138216, e três estudos de casos)17.

No entanto, este mesmo período carece de estudos após a batalha de Aljubarrota,

havendo assim uma maior concentração de trabalhos na fase compreendida entre 1383-

1385 do que para os anos seguintes do conflito. A própria batalha de Aljubarrota é um

dos episódios militares portugueses mais estudados, chamada por João Gouveia

Monteiro como “a mãe de todas as batalhas portuguesas”18. O artigo que temos vindo a

seguir refere que após Aljubarrota e até à paz de Ayllón existe um período rico em

eventos de ordem militar que está pouco trabalhado, referindo somente três estudos, um

sobre a campanha Anglo-Portuguesa de 1387 em Castela (J. G. Monteiro, “A Campanha

Anglo-Portuguesa em Castela, em 1387: Técnicas e Tácticas da Guerra peninsular nos

Finais da Idade Média”, Actas do VI Colóquio da Comissão Portuguesa de História

Militar – Portugal na História Militar19), outro sobre os ataques castelhanos na costa

algarvia (Humberto Baquero Moreno, “A ameaça externa sobre o Algarve durante a

crise dos fins do século XIV”, Revista de Ciências Históricas, vol. 3, 198820), e um

último sobre o papel desempenhado pelas milícias de Lisboa, tanto no cerco de 1384,

como nas ofensivas tomadas pela coroa portuguesa nos anos de 1385, 1386, 1387 e

1398 (M. G. Martins, Lisboa e a Guerra. 1367-141121)22.

A temática das operações de cerco na historiografia portuguesa não está, ainda,

muito explorada. Embora seja possível encontrarmos referências a episódios de cercos e

alguns pequenos capítulos sobre a forma como estes se desenrolavam em diversas obras

historiográficas portuguesas, faltava um estudo dedicado à temática. Somente no início

de 2016 é que uma obra veio, enfim, dar o devido destaque às operações de cerco no

Portugal medievo. Guerreiros de Pedra – Castelos, Muralhas e Guerra de Cerco em

16 MARTINS, Armando, Guerras Fernandinas. 1369-1371, 1372-1373, 1381-1382, Academia

Portuguesa da História, Lisboa, 2006. 17 MARTINS, Miguel Gomes, e MONTEIRO, João Gouveia, “The Medieval Military History”, The

Historiography of Medieval Portugal (c. 1950-2010), p. 469. 18 Idem, Ibidem, pp. 470-471. 19 MONTEIRO, João Gouveia, “A Campanha Anglo-Portuguesa em Castela, em 1387: Técnicas e

Tácticas da Guerra peninsular nos Finais da Idade Média”, Actas do VI Colóquio da Comissão

Portuguesa de História Militar – Portugal na História Militar, Comissão Portuguesa de História Militar,

Lisboa, 1995. 20 MORENO, Humberto Baquero, “A ameaça externa sobre o Algarve durante a crise dos fins do século

XIV”, Revista de Ciências Históricas, vol. 3, 1988, pp. 173-182. 21 MARTINS, Miguel Gomes, Lisboa e a Guerra. 1367-1411, Livros Horizonte, Lisboa, 2000. 22 Idem e MONTEIRO, João Gouveia, “The Medieval Military History”, The Historiography of Medieval

Portugal (c. 1950-2010), pp. 471-472.

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Portugal na Idade Média, da autoria de Miguel Gomes Martins23. Para além de ser um

estudo exaustivo das fortalezas medievais portuguesas, os palcos da guerra de cerco, e

da sua evolução ao longo da Idade Média, aborda também as operações militares que

visavam a conquista destas praças-fortes durante este período, observando a vigilância e

a defesa destas, as diversas formas de ataque a que poderiam estar sujeitas, as acções

tomadas tanto por sitiados como sitiantes no decorrer de uma operação de cerco, entre

muitos outros aspectos, tornando-se assim numa leitura obrigatória para o estudo desta

temática no espaço português.

O último parágrafo de “The Medieval Military History” termina com o seguinte

trecho: “there continues to be a need for more case studies, whether on operations and

campaigns, on castles and city walls, or on the multi-faceted relationships between

certain localities and war. We hope, therefore, that these pages may contribute to

encourage researchers in their task, opening up new avenues in Portuguese medieval

military history”24. É precisamente para poder dar um contributo que ajude a colmatar

esta falha que foi escolhido o estudo deste tema na presente dissertação.

Para além do gosto pessoal pela época e pela temática militar, o que possibilitou

o estudo de um conflito a vários títulos decisivo na História medieval do nosso país,

rico em episódios militares e personalidades que marcaram a guerra portuguesa, assim

nasceu a motivação para a elaboração desta dissertação, um desejo de que esta, embora

focada num período relativamente curto, venha contribuir, de alguma forma, para o

enriquecimento da historiografia sobre a medievalidade portuguesa, especificamente na

temática das operações de cerco, procurando oferecer uma visão mais aprofundada de

todas as vicissitudes associadas aos bloqueios e assaltos que pautaram os anos finais do

século XIV do nosso país.

Esta tese de mestrado terá como metodologia a análise de vários episódios de

cercos através do testemunho das fontes narrativas, utilizando ainda documentos da

chancelaria de D. João I, relativos aos acontecimentos ocorridos neste conflito dos finais

do século XIV, recorrendo depois à bibliografia escolhida para o enriquecimento da

informação e da problematização contida na dissertação, para assim explanar o processo

23 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em Portugal

na Idade Média, Esfera dos Livros, Lisboa, 2016. 24 Idem e MONTEIRO, João Gouveia, “The Medieval Military History”, The Historiography of Medieval

Portugal (c. 1950-2010), p. 481.

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no qual consistia uma operação de cerco, desde a sua preparação até às medidas

tomadas após a conquista de uma praça-forte.

As crónicas consultadas na elaboração do presente trabalho são as seguintes: a

Cronica del rei Dom Joham I – de boa memória e dos Reis de Portugal o decimo, por

Fernão Lopes25; a Crónica do Condestável de Portugal – D. Nuno Álvares Pereira, de

autoria desconhecida26; as Crónicas, da autoria de Pero López de Ayala27. Por último,

recorreremos à Chancelaria de D. João I, publicada sob o título de Chancelarias

Portuguesas. D. João I, num conjunto de quatro volumes organizados por João José

Alves Dias e editados pelo Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de

Lisboa, em Lisboa, entre os anos de 2004 e 200628.

25 LOPES, Fernão, Chronica del Rei Dom João I da Boa Memória. Parte Primeira, reprodução

facsimilada da Edição do Arquivo Histórico Português (1915), preparada por Anselmo Braamcamp

Freire, com prefácio de Luís Filipe Lindley Cintra, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1972, e

Cronica del Rei Dom Joham I. Parte Segunda, copiada por William James Entwistle, Lisboa, Imprensa

Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1968. De acordo com passagens da própria crónica, esta começou a

ser elaborada no ano de 1443 (CDJ I, 1ª, pp. XXI-XXII) por Fernão Lopes, que foi cronista e guarda-mor

da Torre do Tombo, de 1418 até 1452, responsável também pelas crónicas dos reis anteriores a D. João I

(CDJ I, 1ª, pp. XXIX e XXXIII-XXXIV), por ordem de D. Duarte (“LOPES, Fernão”, MARQUES, A. H.

de Oliveira, Dicionário de História de Portugal, direcção de Joel Serrão, Volume II, “E-MA”,

Iniciativas Editoriais, Lisboa, 1971, pp. 806-808). A crónica de D. João I diz respeito ao seu reinado,

tendo, no entanto, início ainda antes de este se tornar rei, no ano de 1382, quando ainda reinava D.

Fernando, explorando a relação entre a rainha D. Leonor Teles e o Conde João Fernandes Andeiro e os

acontecimentos que levaram à morte deste, pela mão de D. João, à época Mestre de Avis. A primeira

parte termina com a aclamação de D. João como rei de Portugal nas cortes de Coimbra de 1385. A

segunda parte vai até à paz de Ayllón, em 1411, acordada entre os reinos de Portugal e Castela,

terminando a crónica, pouco depois, com capítulos sobre o casamento de D. Afonso, filho bastardo de D.

João e futuro 1º duque de Bragança, com a filha do Condestável, D. Beatriz, e de D. Beatriz, filha de D.

João, com o conde inglês Thomas de Arundel. 26 Crónica do Condestável de Portugal – D. Nuno Álvares Pereira, edição de António Machado de Faria,

Academia Portuguesa de História, Lisboa, 1972. Esta crónica relata os acontecimentos da vida do

Condestável, figura de grande relevo nos acontecimentos da época, iniciando-se com uma breve descrição

da linhagem à qual o Condestável pertencia até à sua morte, quando já se havia retirado para uma vida

religiosa no Mosteiro do Carmo, em Lisboa, no ano de 1431. A autoria desta crónica, uma questão ainda

por resolver, foi explorada por António Machado de Faria, que apresenta as quatro hipóteses consideradas

por historiadores dos séculos XIX e XX: Fernão Lopes; o escrivão da puridade do Condestável, Gil Aires;

um membro da casa do Condestável, provavelmente um seu companheiro de armas; e um frade do

mosteiro do Carmo. Machado de Faria considera que o autor teria sido alguém que acompanhara o

Condestável em vida, considerando assim a terceira hipótese como a mais viável. Para uma melhor

compreensão desta questão, cf. CCP, pp. XX-XXX. 27 LÓPEZ DE AYALA, Pero, Crónicas, edição de José-Luis Martin, Editorial Planeta, Barcelona, 1991.

Pero López de Ayala, um contemporâneo do período cronológico tratado nesta dissertação e presumível

testemunho de diversos acontecimentos, foi um cavaleiro que participou na Batalha de Aljubarrota, onde

foi preso, e foi também chanceler-mor de Castela (CRC, pp. XLV-XLVI). López de Ayala elaborou as

crónicas de quatro reis de Leão e Castela, Pedro I, Enrique II, Juan I, Enrique III (somente os seus seis

primeiros anos de reinado), cobrindo quase toda a segunda metade do século XIV, de 1350 a 1396 (CRC

p. XLV), dividindo a sua narrativa por reinados primeiro, anos de reinado, e, finalmente, por capítulos, ao

invés da divisão somente em capítulos como se encontra nas crónicas de D. João I e do Condestável. 28 Contém os documentos relacionados com a coroa durante o reinado de D. João I, começando quando

este era ainda regedor e defensor do reino, em 1384 (ChDJ I, Volume I, Tomo I, Centro de Estudos

Históricos da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2004, p. 7).

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A cronística será assim a fonte principal na elaboração deste trabalho,

destacando-se a crónica de D. João I que é, de entre as três crónicas acima mencionadas,

a mais pormenorizada nos relatos dos acontecimentos da época, enquanto as outras duas

servirão essencialmente para completar a informação ou para compará-la. Por um lado,

a Crónica do Condestável apresenta informações sobre a vida e papel desempenhado

por uma das figuras mais importantes da época e do quadro observado, e por outro, as

crónicas de Juan I e Enrique III, embora tenham bastante menos informação do que as

outras duas por se focarem em Castela e o seu autor ser mais sintético do que os outros,

oferecem a visão castelhana dos conflitos, complementando-se assim com a visão

portuguesa. A pesquisa feita nos documentos da Chancelaria de D. João I terá como

objectivo a recolha de informação adicional, não presente nas crónicas, procurando

confirmação de datas dos eventos, dos intervenientes nestes episódios militares, ou

outras informações que possam ser relevantes para o tema da dissertação.

Claro que temos a perfeita noção de que, no que às fontes narrativas diz respeito,

teremos de estar alerta para a parcialidade dos autores das crónicas, afectos à coroa para

a qual elaboraram estas narrativas. É recorrente encontrar concordâncias entre os relatos

dos autores em diversos momentos, mas ao longo destas obras não será de espantar a

ausência de determinados episódios numas e noutras, que, consoante o seu resultado,

poderiam não “merecer” a sua inclusão no projecto do cronista, ou até mesmo

discrepâncias nos relatos dos mesmos acontecimentos, sendo óbvia a tentativa de

apresentar uma imagem mais favorável à facção à qual pertencia o cronista29. Assim,

embora as crónicas sejam fontes repletas de informação e estas tenham sido analisadas

tendo em conta essa parcialidade, ressalva-se a possibilidade de, por vezes, poderem

induzir em erro.

Esta nossa viagem pelos cercos que pautaram os finais do século XIV no

conflito luso-castelhano iniciar-se-á com uma tentativa de compreender a importância

que este tipo de operações ocupava no quadro da estratégia militar da época.

Procuraremos também perceber quem eram os intervenientes nestes conflitos,

29 A título de exemplo, na batalha naval do Tejo, ocorrida no âmbito do cerco de Lisboa de 1384, Fernão

Lopes refere a participação de 17 galés e 17 naus portuguesas (CDJ I, 1ª, cap. CXXXI, p. 225), ao invés

de Pero López de Ayala, que indica a presença de 18 galés e 6 naus, (CRC, Juan I, Año Sexto (1384), cap.

VIII, p. 567). Um outro exemplo é a denominação dada a D. João I ainda em 1394, nove anos após a sua

eleição nas Cortes de Coimbra: na perspectiva de Castela e, por conseguinte, do cronista, D. João era

ainda o “maestre Davis” (CRC, Enrique III, Año cuatro (1394), cap. XXII, p. 867).

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analisando os exércitos – tanto os que atacaram, quanto os que defenderam as

fortificações –, estudando a sua composição e a sua dimensão, bem como o armamento

utilizado por essas forças. De seguida, debruçar-nos-emos sobre as diversas medidas

preventivas que tanto sitiados como sitiantes tentariam aplicar para conseguirem ter

vantagem sobre os seus adversários e aumentarem assim as probabilidades de saírem

vitoriosos nessas operações, olhando também para os meios envolvidos nestes episódios

militares. Depois passaremos para o estudo das diversas dificuldades que poderiam

surgir no decorrer de um cerco, analisando o efeito nefasto que situações como períodos

de carência de mantimentos ou condições climatéricas desfavoráveis, entre outras,

poderiam ter nas ambições das forças em conflito. Veremos seguidamente as várias

soluções de que dispunham os comandantes para a conquista das praças-fortes,

observando episódios militares de relevo e também de grande astúcia, terminando esta

nossa abordagem com a análise das medidas tomadas pelos sitiantes vitoriosos, tendo

em vista o estabelecimento do novo poder no local recém-conquistado.

Assim, através do conhecimento dos combatentes e das suas armas, da

organização de um arraial, das descrições de sofrimento de que padeceram os

envolvidos nestes episódios, da preparação e execução de assaltos bastante engenhosos,

dos relatos das conquistas, entre uma miríade de outros aspectos, tentaremos a

elaboração de um retrato global do que era a guerra de cerco e todas as suas

envolvências ao longo de um período de quinze anos repleto deste tipo de operações

militares, operações essas que moldaram a História de Portugal naquele período. Para

além disso, teremos também a oportunidade de compreender o porquê da frequência

com que ocorreram estas operações de cerco durante estes anos, acções essenciais no

plano da estratégia militar medieval e que preencheram um relevante período de guerra

entre dois reinos ibéricos.

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CAPÍTULO I – A ESTRATÉGIA E OS EXÉRCITOS NAS OPERAÇÕES DE CERCO

Antes de nos debruçarmos sobre o estudo das operações de cerco ocorridas nos

finais do século XIV entre os reinos de Portugal e Castela, é essencial analisar, ainda

que de forma breve, os exércitos que nelas participaram, para assim conhecermos

melhor não só a forma como a guerra se desenrolava na altura, mas também os seus

intervenientes. É com esse intuito que nos debruçaremos primeiramente sobre os

princípios estratégicos que moldavam a guerra na Idade Média e o porquê das operações

de cerco ocorrerem com grande frequência, juntamente com a sua importância no

contexto militar da época, passando então para a composição e a dimensão dos exércitos

medievais que participaram nos cercos que ocorreram ao longo do período

compreendido entre 1383 e 1398, olhando, por fim, para o equipamento utilizado pelos

combatentes que fizeram parte destes conflitos.

Francisco García Fitz ao interrogar-se se “¿Hubo estrategia en la Edad

Media?” 30 , afirmou que a historiografia, durante muito tempo, não reconheceu a

existência de algo que se comparasse com estratégia ao longo da Idade Média, no

âmbito militar, criando assim a ideia de um interregno na evolução da arte da guerra

entre a Antiguidade Clássica e o Renascimento31. Este autor aponta, como exemplo

desta tendência, Charles Oman, que, nos finais do século XIX, considerava que no

período medieval pouca ou nenhuma estratégia ou táctica pautavam as batalhas ou as

campanhas militares, baseando-se na ideia de que a organização feudal da sociedade

medieval convertera “todo noble en un guerrero, pero no en un soldado”. Esta

mentalidade resultaria numa hierarquia conflituosa ou até mesmo inexistente, pois,

segundo Oman, esta era organizada de acordo com o estatuto social dos nobres, não

dando assim importância às capacidades ou à experiência do indivíduo, o que, aliado ao

espírito guerreiro característico dos nobres medievais (“la temeridad de algún caballero

que no escuchara nada más que la llamada de su proprio valor”), levava estes a

cometerem erros do ponto de vista estratégico ou táctico num processo militar, o que

30 GARCÍA FITZ, Francisco, “Hubo estrategia en la Edad Media? A proposito de las relaciones

castellano-musullmanas durante la segunda mitad del siglo XIII”, in IV Jornadas Luso-Espanholas de

História Medieval. As Relações de Fronteira no Século de Alcanices. Actas, Vol. 2, Faculdade de Letras

da Universidade do Porto, Porto, 2000, pp. 837-854. 31 Idem, Ibidem, p. 838.

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resultaria, assim, em exércitos que padeciam de insubordinações, indisciplina e

desorganização32. A visão de Oman era partilhada por outros historiadores da época,

como Hans Delbrück, cujos pensamentos em torno da guerra medieval se baseavam na

ideia de que as legiões disciplinadas da Antiguidade haviam sido substituídas por uma

classe guerreira cujo comportamento militar assentava nas habilidades do indivíduo33,

ou como Basil Liddell Hart, que considerava que no Ocidente europeu os líderes

militares não tinham em conta qualquer teoria da arte da guerra, salvo alguns rasgos de

brilhantismo de alguns indivíduos ao longo deste período34. Assim, García Fitz chama a

atenção para o pouco destaque dado pela historiografia à estratégia e táctica militar

medieval, até ao início deste milénio, em prol de outras épocas, e, além disso, para a

elaboração, por essa mesma historiografia, de uma imagem dos líderes militares do

período cujo comportamento era baseado no espírito de cavaleiro ou guerreiro,

motivados pela honra ou pelo desejo de glória e ignorando qualquer planificação ou

organização (“aquellos dirigentes militares se comportaban como guerreros, pero no

como comandantes”)35.

Contudo, a partir da segunda metade do século XX, a historiografia passou a

aceitar a existência de um pensamento estratégico por detrás das acções de vários

líderes militares medievais, através dos contributos, por exemplo, de André Beaufre,

Philippe Contamine, ou Jim Bradbury36. Segundo estes, a guerra medieval era pautada

por uma estratégia que dava primazia a acções de guerrilha (como as cavalgadas,

emboscadas ou ciladas, por exemplo) e cercos, deixando as batalhas campais para

último recurso, devido ao carácter decisivo que estas tinham, procurando assim

desgastar e debilitar o inimigo ao invés de arriscar o desfecho, incerto, de uma guerra

num campo de batalha37. No caso dos cercos, os sitiados confiavam nas vantagens que

as estruturas fixas de defesa tinham sobre os meios ofensivos coevos (resultado da falta

de ritmo de acompanhamento na inovação de formas de assalto a fortalezas quando

comparada com a evolução da arquitectura militar ao longo da Baixa Idade Média),

32 GARCÍA FITZ, Francisco, “Hubo estrategia en la Edad Media? A proposito de las relaciones

castellano-musullmanas durante la segunda mitad del siglo XIII”, in IV Jornadas Luso-Espanholas de

História Medieval. As Relações de Fronteira no Século de Alcanices. Actas, Vol. 2, p. 839. 33 Idem, Ibidem, p. 840. 34 Idem, Ibidem. 35 Idem, Ibidem, p. 841. Charles Oman, no entanto, acabaria por mudar, em parte, de opinião,

reconhecendo a existência de uma “gran estrategia” ao analisar as Cruzadas, Idem, Ibidem, p. 840, nota

de rodapé nº 4. 36 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra em Portugal - 1245-1367, p. 339. 37 Idem, Ibidem, pp. 338-341.

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motivando as forças mais fracas a procurarem a segurança por detrás dessas estruturas38,

enquanto os sitiantes preferiam também cercar uma localidade ao invés da participação

numa batalha campal, o que significaria um risco menor e ainda, “pelo menos em teoria,

algum controlo sobre o curso dos acontecimentos”39. Desta forma, a estratégia medieval

ficou marcada, de acordo com Philippe Contamine, pelo medo da batalha campal (o

confronto no terreno entre exércitos) e por uma mentalidade de cerco (perante um

ataque, os defensores procurariam o refúgio por detrás das suas muralhas e fortalezas).

Os comandantes medievais aplicavam aquilo a que então se designava guerra

guerreada, isto é um tipo de “guerra de desgaste”, que visava subjugar o inimigo

através do desgaste físico e psicológico das suas pessoas e dos seus recursos, da fome,

da sede, das doenças, e de acções de guerrilha e de devastação40.

Para compreender o lugar que os cercos tinham na estratégia da época, é

necessário, em primeiro lugar, perceber a importância dos alvos cercados no contexto

político e militar da época. Jim Bradbury refere que, ao longo dos séculos XI e XII, a

multiplicação de castelos no Ocidente veio afectar a forma como a guerra era

praticada41. O controlo destas fortalezas tornou-se sinónimo de domínio do espaço, pois

era através da posse destes pontos-fortes42 que um senhor teria “a corto o medio plazo,

el control, tanto físico como, sobre todo, político, administrativo, económico y

psicológico, de las regiones circundantes”43. Estas estruturas, em conjugação com a sua

guarnição, ofereciam protecção a pessoas e bens, não só às que habitavam no local, mas

também às que viviam nas redondezas44, e permitiam a vigilância do território em que

se encontravam 45 , fazendo com que a defesa de um determinado espaço passasse,

necessariamente, pela defesa de grande parte dos pontos-fortes aí localizados, assim

como a anexação e o domínio desse território só se materializariam com a conquista

destes, pois, tal como García Fitz afirma, por mais eficaz, organizada ou bem sucedida

que uma incursão fosse, “ningún ejército podía mantenerse permanentemente sobre el

38 MONTEIRO, João Gouveia, A Guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, p. 337. 39 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra em Portugal - 1245-1367, p. 398. 40 Idem, Ibidem, pp. 339-340, e MONTEIRO, João Gouveia, A Guerra em Portugal - nos finais da Idade

Média, p. 207. 41 “From the eleventh century siege warfare was dominated by castles”, BRADBURY, Jim, The Medieval

Siege, p. 71. 42 E também “pequenas torres, fortificaciones de variado tipo y entidade, cuidades amuralladas”,

GARCÍA FITZ, Francisco, Castilla y León frente al Islam: Estrategias de expansión y tácticas militares

(siglos XI-XIII), p. 176 43 Idem, Ibidem, pp. 176-177. 44 Idem, Ibidem, p. 180. 45 Idem, Ibidem, p. 196.

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campo”46. Para além destas funções defensivas, era a partir das fortalezas (apetrechadas

com mantimentos e diversos tipos de armamento) que as cavalgadas ou as campanhas

militares se iniciavam, servindo assim como verdadeiras bases de operações para

incursões em território inimigo47. A importância dada às fortalezas no contexto militar e

político da época pode ser vista na acção dos reis portugueses, que, após o Tratado de

Alcañizes de 1297 e começando logo com D. Dinis, tomaram diligências para aplicar

um projecto de restauro e construção de castelos ao longo das fronteiras terrestres do

reino (pois estas zonas fronteiriças “serían los espácios más expuestos a la agresión

enemiga y a una posible conquista” 48 ), com especial atenção para as zonas que

continham vias fluviais ou vias terrestres direccionadas a fortalezas ou a cidades

importantes, procurando assim controlar efectivamente o território49.

Mas não eram só as fortalezas que representavam baluartes de resistência para os

exércitos atacantes. Philippe Contamine refere que também as vilas ou cidades, com ou

sem fortalezas no seu interior, mesmo possuíndo fortificações mais rudimentares do que

fortalezas isoladas, representavam espaço, recursos materiais e morais que favoreciam,

ou facilitavam, uma resistência prolongada a um exército sitiante, fazendo com que um

líder de uma campanha militar ofensiva em território inimigo não pudesse ignorar a

conquista destas fortalezas e centros urbanos, que representavam um polo político,

militar e económico de uma dada região, que geralmente continham em si contingentes

militares que poderiam atacar directa ou indirectamente uma hoste invasora 50 .

Utilizando o exemplo dos reinos ibéricos, ao longo do período da Reconquista, as

monarquias cristãs emergentes procuraram conquistar territórios que estavam nas mãos

das forças muçulmanas que haviam invadido a Península Ibérica no século VIII, e o

papel das cidades foi fulcral neste processo. As urbes ibéricas eram não só núcleos

populacionais dedicados a actividades económicas, que possibilitariam o sustento de

forças cada vez maiores, mas também locais de onde se poderiam lançar campanhas

ofensivas em território inimigo e defender mais eficazmente um território, com uma

46 GARCÍA FITZ, Francisco, Castilla y León frente al Islam: Estrategias de expansión y tácticas

militares (siglos XI-XIII), p. 198. 47 Idem, Ibidem, pp. 205-207. 48 Idem, Ibidem, p. 199. 49 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 164. 50 CONTAMINE, Phillipe, War in the Middle Ages, p. 101.

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posição defensiva consolidada51 . Desta forma, uma cidade conseguiria impor-se na

região onde se encontrava, contribuindo para o efectivo domínio, ocupação e exploração

do território circundante, estabelecendo assim o controlo daquele espaço como

pertencente à coroa à qual era afecta52. Um exército que enveredasse por uma campanha

em território inimigo, sem conquistar estes centros urbanos ou fortalezas da região,

corria o risco de ser atacado pela retaguarda, em campo aberto ou mesmo no decorrer de

um cerco, por forças que não tinham sido incomodadas na movimentação do exército

atacante durante essa campanha53.

Como afirma Philippe Contamine, “In its most usual form medieval warfare was

made up of a succession of sieges accompanied by skirmishes and devastation, to which

were added a few major battles or serious clashes whose relative rarity was made up for

by their often sanguinary character”54. A importância estratégica dos pontos-fortes no

controlo do território, por um lado, e a incapacidade – causada pelo recrutamento de

exércitos ad hoc, pela fiscalidade pouco orientada para o financiamento das operações

militares, e pela ineficácia da artilharia – de levar a cabo uma acção mais directa contra

o inimigo – nomeadamente através de uma batalha campal –, por outro lado,

condicionaram então a forma como a guerra se desenrolava na época, dando assim

primazia a um tipo de estratégia de aproximação indirecta. Os cercos, em caso de serem

bem sucedidos, resultavam na conquista de fortalezas que permitiam aos exércitos, por

um lado, exercerem controlo sobre uma nova região (o que significaria, por exemplo,

mais recursos para a hoste) e a possibilidade de penetrarem mais ainda em território

inimigo minimizando os riscos de serem atacados pela retaguarda, em campo aberto ou

mesmo no decorrer de um cerco, por forças que não tinham sido incomodadas nas

movimentações desses exército ao longo das suas campanhas55. Em suma, os atacantes

vitoriosos conseguiriam assim “retirar ao inimigo as bases económicas e sociais em que

ele alicerçava o seu esforço de guerra”56.

A estratégia militar medieval em Portugal obedecia também a estes princípios,

aplicando-se aqui igualmente uma aproximação indirecta. Após a vitória das forças de

51 POWERS, James F., “Life on the Cutting Edge: The Besieged Town on the Luso-Hispanic Frontier in

the Twelfth Century”, in The Medieval City under Siege, p. 17. 52 Idem, Ibidem. 53 Idem, Ibidem, p. 30. 54 CONTAMINE, Philippe, War in the Middle Ages, p. 101. 55 POWERS, James F., “Life on the Cutting Edge: The Besieged Town on the Luso-Hispanic Frontier in

the Twelfth Century”, in The Medieval City under Siege, p. 30. 56 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra em Portugal - 1245-1367, p. 534.

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D. João I em Aljubarrota, John of Gaunt, duque de Lancaster, declarou ao monarca

português o seu intuito de tomar o trono castelhano através de uma campanha militar

contra Juan I. Esta é uma notícia muito bem recebida por D. João I, pois este considera

que “guereamdo o Duque dhuuma parte e jsso mesmo elle per outra”, Castela teria

então de combater duas ameaças ao mesmo tempo. Desta forma, D. João I reconhecia a

vantagem que teria nesta fase do conflito, resultante da divisão das forças castelhanas

para combater em duas frentes, fazendo com que o monarca castelhano não pudesse

ripostar ou empreender uma campanha militar contra Portugal com a plenitude das suas

forças57.

Por último, debrucemo-nos sobre o exemplo de uma reunião, relatada por Fernão

Lopes, entre o rei Juan I e os seus conselheiros, após a sua hoste ter saído de Santarém,

em Março de 1384, na qual se discute o plano de acção para a campanha militar que

tinha então início, sendo sugeridas nesse conselho duas hipóteses: espalhar as forças

castelhanas em várias direcções do país, separando a hoste mas diminuindo o perigo de

contágio de doenças que começavam a surgir entre os combatentes e causando dano aos

vários locais que tinham voz pelo Mestre de Avis, ou cercar e procurar conquistar

Lisboa, que seria a hipótese escolhida pelo monarca castelhano58. Os que defendiam

esta última hipótese sugeriram que se usasse a frota castelhana para auxiliar o cerco,

bloqueando a travessia e a foz do rio Tejo, dificultando ainda mais a resistência dos

sitiados, e justificando o cerco a Lisboa com o facto de esta cidade ser “o melhor logar

de todos, e cabeça primçipall do rreino; e que de tall guisa tiinham neelha olho, quamtos

logares hi avia; que gaanhada Lixboa, todo Portugall era cobrado” 59 . Esta reunião

demonstra, por um lado, o cuidado dos castelhanos em reduzir a capacidade de

resistência da cidade, conjugando o cerco terrestre com o bloqueio naval do Tejo,

procurando cortar qualquer possibilidade de apoio marítimo que Lisboa pudesse contar

receber, facilitando assim, na teoria, a conquista, e, por outro, a importância que esse

centro urbano, a “capital e chave militar do reino” 60 , tinha no plano político e

57 CDJ I, 2ª, cap. LXV, pp. 156-157. No entanto, a vinda do duque de Lancaster para a Península Ibérica,

e após uma primeira fase em que as forças inglesas invadem, sozinhas, a Galiza, resultou numa acção

conjunta entre as forças inglesas e as forças portuguesas, que ficou conhecida como a Campanha Anglo-

Portuguesa de 1387. RUSSELL, Peter E., A Intervenção Inglesa na Península Ibérica Durante a Guerra

dos Cem Anos, trad. de Maria Ramos, rev. científica de João Gouveia Monteiro, Imprensa Nacional –

Casa da Moeda, Lisboa, 2000, pp. 435-530. 58 CDJ I, 2ª, cap. LXXXVI, pp. 144-145. 59 Idem, Ibidem, cap. LXXXVI, p. 145. 60 MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, Esfera dos Livros,

Lisboa, 2011, p. 271.

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estratégico do reino português e o que a sua conquista poderia representar para o rumo

da guerra entre Portugal e Castela61.

No entanto, havia outros factores que limitavam os comandantes militares à

implementação de uma estratégia de aproximação indirecta, como, por exemplo, as

características dos exércitos medievais: a sua heterogeneidade, os seus números

reduzidos e o facto de a sua mobilização ser restringida a períodos limitados62.

Focando-nos na hoste régia medieval portuguesa, esta “não era senão o resultado

da congregação de uma série de parcelas com elevado grau de autonomia”63, retomando

assim a heterogeneidade referida anteriormente e relacionada, essencialmente, com a

proveniência de cada contingente. Com um carácter provisório e excepcional (a

manutenção deste exército acarretava elevados custos, sendo assim convocado

principalmente para campanhas de grande envergadura encetadas pelo monarca ou para

a defesa do reino perante ameaças internas ou externas), a hoste régia era composta por

indivíduos que se ausentavam das suas terras, casas e dos seus ofícios por um período

considerável, e que, por isso e pelo elevado risco de vida que acarretava a participação

em operações militares, esperavam assim ser bem recompensados pelo serviço prestado

ao seu senhor64. A hoste régia contava com indivíduos provenientes das três ordens

sociais, tanto do povo, como do clero (através das ordens militares) e da nobreza, com

esta última a representar o núcleo principal da hoste (com os elementos mais rotinados

na arte guerreira e melhor equipados quando comparados com os membros oriundos do

povo)65.

61Onze anos antes, Diogo Lopes Pacheco, que havia fugido de Portugal após a sua participação no

assassinato de D. Inês de Castro, tinha aconselhado Enrique II da mesma forma, “dizendo que entrasse

logo supitamente per Portugall e que sse fosse logo lançar sobre Lixboa, nom curando d’outro logar

nẽhũu, a quall podia tomar ligeiramente; e que cobrando esta cidade entendesse que tiinha todo o rreino

cobrado e fiinda sua guerra”, o que demonstra, uma vez mais, a importância da cidade de Lisboa para o

planeamento da guerra contra o reino português por parte dos monarcas castelhanos. LOPES, Fernão,

Crónica de D. Fernando, ed. de Giuliano Macchi, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1975, cap.

LXX, p. 246-247, e MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, pp.

274-276. 62 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra em Portugal - 1245-1367, p. 339. 63 MONTEIRO, João Gouveia, A Guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, p. 27. 64 Idem, Ibidem. 65 Idem, Ibidem, p. 31.

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Começando pela nobreza medieval, esta tinha, de acordo com o “modelo

funcional tripartido da sociedade medieval – oratores, bellatores, laboratores”66, como

função principal a prática da guerra, “competia[-lhe] pegar em armas e lutar”67. Assim,

os combatentes provenientes da nobreza, pelo facto de possuírem bom equipamento e

montadas (tinham possibilidades financeiras para adquirirem as melhores armas e o

equipamento mais completo) e por terem treino regular no manejo das armas e, em

alguns casos, um bom conhecimento de tácticas bélicas, representavam a elite militar

desses exércitos, a “espinha dorsal” das hostes medievais68. Para a coroa poder então

usufruir do serviço (e garantir a lealdade) destes combatentes, esta tinha de criar

condições apelativas, ou seja, recompensas, para aliciar a nobreza a participar na guerra

ao seu serviço. No reino de Portugal, pelo menos desde o reinado de D. Dinis69 ,

desenvolve-se um processo, semelhante aos que se observavam nos outros reinos da

Europa ocidental, no qual o rei entregava a determinado vassalo uma “contia” anual70,

uma quantia fixa em numerário, cuja contrapartida seria o serviço militar quando o rei o

requeresse, levando ainda consigo um contingente com um número de “lanças”,

calculado em função da respectiva “contia” que o vassalo recebia71. A partir do reinado

de D. Fernando, estas “contias” poderiam ser reforçadas ou até mesmo substituídas por

doações de terras, bens, rendas e até de direitos para os vassalos do rei72. Para além das

“contias” anuais, os vassalos na época, e também as suas “lanças”, quando serviam o rei

numa campanha, recebiam ainda um soldo mensal, pago em numerário ou bens e

proporcional à duração da campanha e ao equipamento que o combatente deveria

66 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra em Portugal - 1245 a 1367, Imprensa da Universidade

de Coimbra, Coimbra, 2014, p. 24. 67 Idem, Ibidem. 68 BARROCA, Mário Jorge, "Da Reconquista a D. Dinis", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p.

79. 69 “Embora pareça ter surgido, algo timidamente, ainda durante o reinado de Afonso III”, MARTINS,

Miguel Gomes, A Arte da Guerra em Portugal - 1245 a 1367, p. 44. 70 Nomeados por Fernão Lopes como “vassallos del-Rey”, estes fidalgos recebiam a sua “contia” do rei,

calculada em função da do seu pai, após o seu nascimento e sujeita a posteriores alterações consoante a

vontade do rei. Quando falecesse o pai, o filho mais velho passaria a receber a “contia” que era destinada

ao seu pai, efectivamente substituíndo-o. D. Fernando acabaria por alterar este processo, pagando a

“contia” somente ao pai e ao filho mais velho, devido ao esforço financeiro que a coroa teve que

empreender, motivada pelas guerras fernandinas, mas “per morte del-Rey dom Fernamdo, [...], çessou

esta hordenamça de todo”. Cf. CDJ I, 2ª, cap. LXXI, pp. 167 e 168, e MONTEIRO, João Gouveia, A

Guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, pp. 33-34. 71 MONTEIRO, João Gouveia, A Guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, pp. 32-34. 72 Idem, Ibidem, pp. 34-35.

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possuir, procurando assim a coroa motivar a nobreza a participar nas campanhas

encetadas pelo rei73.

A crise sucessória de 1383-1385 e o conflito que se seguiu fracturaram a nobreza

portuguesa em facções políticas, afectas a D. João ou ao partido castelhano, o que

causou desordem no sistema de “contias” e “lanças” que vinha dos reinados anteriores,

com, por exemplo, D. João I a incorporar na sua hoste indivíduos que, por iniciativa

própria, se ofereciam para defender a sua causa. Isto resultaria numa necessidade de

recompensar os combatentes que iam engrossando as fileiras do partido joanino, fossem

vassalos ou não, tivessem direito às “contias” ou não, proliferando assim um sistema de

recompensas diverso (em numerário, doações, direitos, bens, ...) a indivíduos que

podiam ou não pertencer à nobreza74. Esta conjuntura iria originar uma situação confusa

na nobreza, a qual o rei procura regularizar a partir de 1387, aplicando novas “contias”

anuais para os vassalos e para as suas lanças, e estabelecendo que os filhos dos fidalgos

somente receberiam a “contia” que lhes era destinada a partir da idade em que poderiam

servir militarmente o monarca 75 . É necessário referir ainda que, influenciadas pela

conjuntura que se viveu nesse período, as fontes da época empregam termos como

“escudeiro”, “vassalo”, “homem de armas”, “lança”76, entre outros, para, na maior parte

dos casos, designar os elementos da nobreza que combatiam nos exércitos77.

Passamos agora para o estudo das forças concelhias que figuravam na hoste

régia, compostas pelos aquantiados (em cavalo e armas, em cavalo, e em besta), e pelos

besteiros do conto. Aos aquantiados pertenciam os moradores do reino com casa

própria, sendo irrelevante estes serem casados ou não, incluindo-se ainda clérigos de

ordens menores, deixando assim de fora clérigos beneficiados, e a baixa nobreza, como

cavaleiros, escudeiros vassalos do rei e escudeiros de ascendência fidalga (tanto paterna

73 MONTEIRO, João Gouveia, A Guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, p. 36. 74 Idem, Ibidem, pp. 36-38. 75 Idem, Ibidem, pp. 40-41. 76 Uma “lança” representava um combatente a cavalo e devidamente equipado que pertencia ao séquito de

um vassalo do rei, e inclui-se nesta designação o próprio vassalo e os seus cavaleiros (geralmente

fidalgos, mas não só), recebendo “contias” pelo serviço militar prestado. Idem, Ibidem, pp. 33-34 e nota

37 da p. 100. 77 No entanto, estes termos nem sempre remetiam para elementos da nobreza, pois, como Fernão Lopes

diz a propósito do alardo de Vilariça, em 1386, “estas lamças que ally acharom, nom cuides que eram

vassallos del-Rey como ora sam; ca ajmda el em este tempo nom hordenara contyas, nem os tomara da

guissa que os outros reis faziam, pollo gramde aficamento da guerra em que fora posto depois que

começara de reger e regnar; mas cada huum seruia com aquelles que podia seruir, assy homeens darmas

come de pee, e para todos auya soldo”, ou seja, neste alardo, as “lanças” não eram somente fidalgos, mas

também se inseriam indivíduos que não tinham ascendência nobre nesta designação. CDJ I, 2ª, cap.

LXXI, p. 167, e MONTEIRO, João Gouveia, A Guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, pp. 31-

32.

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como materna). Estes indivíduos, de acordo com uma avaliação dos seus bens, móveis e

imóveis, eram integrados em determinadas categorias militares que exigiam a posse de

determinadas armas e, nos casos de indivíduos mais ricos, de um cavalo também78. A

avaliação dos bens dos aquantiados estava a cargo de determinados oficiais locais

(coudéis, auxiliados por, geralmente, entre um e três homens-bons do concelho, e

escrivães das coudelarias, responsáveis por fazer o registo da avaliação) e, noutros

casos, era feita aquando da realização de alardos79 . Para o período estudado, João

Gouveia Monteiro apresenta cinco escalões militares distintos através da documentação

da época, especificando o armamento que um aquantiado teria segundo a sua categoria:

os combatentes mais abastados eram obrigados a possuir um bom cavalo e a mantê-lo,

necessitando ainda de ter armamento (defensivo e ofensivo) completo; no escalão

seguinte era obrigatória a posse e manutenção de “um cavalo de menor envergadura

(por isso chamado ‘singelo’ ou ‘raso’)”; de seguida, os elementos deste escalão

deveriam apresentar-se com uma besta de garrucha juntamente com um bacinete e uma

couraça ou solha; os combatentes menos abastados teriam somente que possuir uma

besta de polé ou uma lança (neste caso necessitando também de um dardo ou de um

escudo); aos combatentes que recebessem quantias muitíssimo baixas, “apenas se exigia

a apresentação de um escudo, eventualmente acompanhado de alguma arma branca

rudimentar, como um punhal ou uma adaga”80. Estes escalões estariam ainda sujeitos a

alterações, como, por exemplo, os aquantiados em cavalo e armas de um concelho

serem autorizados pelo rei a equiparem-se com dois arneses em vez de um arnês

completo, com uma besta de garrucha81. É ainda importante referir que esta pequena

amostragem dos escalões que compunham a estrutura dos aquantiados é mais um

exemplo da heterogeneidade no armamento dos elementos que integravam uma hoste,

visto que membros oriundos do mesmo local, com a mesma origem social e

pertencentes ao mesmo grupo militar tinham entre si equipamentos variados.

Os besteiros do conto compõem um corpo militar peculiar, quando comparados

com os outros corpos que se inserem na hoste régia. Os besteiros do conto são uma

milícia de número limitado (cuja quantificação é possível graças aos arrolamentos de

78 MONTEIRO, João Gouveia, A Guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, p. 44. 79 Idem, Ibidem, pp. 44-46. 80 Idem, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios da Maturidade", in

Nova História Militar de Portugal, Vol. I, pp. 195-196. 81 Idem, Ibidem, p. 196

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besteiros do conto que sobreviveram até aos nossos dias 82 ), com uma estrutura

hierárquica própria (estes contingentes eram comandados pelo respectivo anadel local83,

existindo ainda o anadel-mor do reino), e era uma milícia na qual os seus membros se

especializavam somente no manejo da besta, cuja utilização eficaz requeria um treino e

uma prática constantes84. Estes membros eram mesteirais, casados, excluindo-se assim

do arrolamento lavradores e solteiros (sendo, no entanto, possível que, em caso de uma

localidade não ter mesteirais suficientes para cumprir o conto, mancebos, sem mester,

que vivessem com as suas mulheres e que soubessem manejar a besta podiam fazer

parte da milícia 85 ). Para além disso, desde D. Dinis (em cujo reinado surgem os

primeiros besteiros do conto, sendo a milícia oficialmente estabelecida nas cortes de

Santarém de 1331, por D. Afonso IV86), e principalmente com D. João I, a coroa

empenhou-se em conceder aos membros desta milícia direitos e privilégios (como, por

exemplo, o usufruto dos mesmos direitos e condições dos cavaleiros em demandas e

custos judiciais, a sua hierarquia e mobilização separadas, sendo responsabilidades do

anadel, e não de, por exemplo, um alcaide, isenções nos pagamentos de várias peitas e

talhas concelhias, entre outros87) que tornassem apelativa a pertença a este grupo de

combatentes, indispensável “ao sucesso da maioria das operações militares”88. Estes

elementos eram ainda obrigados a possuir, para além da besta, 100 virotões, dardos (o

número exacto não é conhecido) e um bacinete89.

De seguida, encontramos os membros das ordens militares. Embora fosse

possível encontrar entre a nobreza e alguns sectores das milícias concelhias efectivos

com um elevado grau de especialização na arte de guerrear, os membros das ordens

militares afirmavam-se “como os verdadeiros ‘profissionais’ da guerra”90. Estes corpos

militares, para além de serem tacticamente bem disciplinados, de terem treinos

82 O rol de besteiros do conto presente no primeiro livro da Chancelaria de D. João I (que contém

documentos do período compreendido entre 1384-1388), intitulado “Titollo dos besteiros do conto.,,”,

apresenta uma lista de 54 localidades das comarcas de Entre-Tejo-e-Guadiana e do Algarve, indicando o

número de besteiros que estas localidades teriam que garantir, representando um total de 1182 besteiros

nessas comarcas. ChDJ I, Vol. I, Tomo II, fls. 112vº-113, doc. 778, pp. 138-140. 83 De acordo com João Gouveia Monteiro, os anadéis eram eleitos pelos besteiros da respectiva milícia

até ao reinado de D. João I, com essa tendência a prolongar-se, pelo menos, até ao fim do século XIV.

MONTEIRO, João Gouveia, A Guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, p. 70. 84 Idem, Ibidem, pp. 58-60. 85 Idem, Ibidem, pp. 62-63. 86 Idem, Ibidem, p. 59. 87 Idem, Ibidem, pp. 65-66. 88 Idem, Ibidem, p. 58. 89 “Titollo dos besteiros do conto”, ChDJ I, Vol. I, Tomo II, fls. 112vº-113, doc. 778, org. DIAS, João

José Alves, Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2004, pp. 140. 90 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra Em Portugal - 1245 a 1367, p. 160

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frequentes, de estarem bem equipados, de terem um carácter de serviço permanente e

serem comandados por indivíduos com grande experiência militar, todos dedicados à

arte da guerra, não tinham limitações no tempo de serviço e, embora fossem

contingentes com números de efectivos reduzidos, tornaram-se assim peças importantes

nas acções do período da Reconquista91. Fundadas nos Estados Latinos do Levante nos

inícios do século XII, estas ordens vão gradualmente tornando-se no “mais importante

suporte militar” 92 da Cristandade contra as forças muçulmanas no Levante e na

Península Ibérica, recebendo, por isso, doações que lhes possibilitaram acumular

fortuna e patrimónios (como fortalezas cuja defesa ficava a cargo da respectiva ordem),

resultando numa crescente capacidade bélica 93 . Este poderio, após o fim da

Reconquista, é aproveitado pela coroa portuguesa nas suas guerras, com as ordens a

manterem o controlo de fortalezas importantes (localizadas em regiões de elevado valor

estratégico), ficando a seu cargo a protecção e a defesa dos territórios circundantes e das

vias de comunicação que por aí passavam, assumindo assim “um papel crucial no

quadro da defesa do reino”94.

Mas o fim da Reconquista no espaço peninsular trouxe também uma mudança

importante nas ordens: estas deixaram de somente combater forças muçulmanas,

começando a ser utilizadas pelas coroas ibéricas nos seus conflitos externos e também

internos, com o rei D. Dinis a utilizar efectivos das ordens na sua intervenção em

Castela, aquando da guerra civil que flagelava o reino vizinho nos anos de 1295-98, mas

também nos confrontos com o infante D. Afonso, irmão do rei95. Reconhecendo então o

valor bélico e estratégico destas ordens96, até ao período estudado nesta dissertação, a

coroa procurou colocar as ordens militares sob a sua tutela 97 , influenciando até a

atribuição dos cargos de mestres das ordens (D. Pedro nomeia o seu filho bastardo, o

futuro D. João I, como Mestre da Ordem de Avis com cerca de sete anos)98, e, no caso

da Crise de 1383-1385 e consequente conflito com Castela, D. João I pôde contar com o

apoio militar das ordens de Cristo, Santiago e Avis (o Priorado do Hospital participou

91 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra Em Portugal - 1245 a 1367, p. 165. 92 Idem, Ibidem, p. 160. 93 Idem, Ibidem, p. 160-165. 94 Idem, Ibidem, p. 178. 95 Idem, Ibidem, pp. 199-201. 96 A coroa portuguesa continua a deixar sob o controlo das ordens fortalezas importantes (localizadas em

regiões de elevado valor estratégico), ficando a seu cargo a protecção e a defesa dos territórios

circundantes e das vias de comunicação que por aí passavam, assumindo assim “um papel crucial no

quadro da defesa do reino”, Idem, Ibidem, p. 178. 97 MONTEIRO, João Gouveia, A Guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, p. 79. 98 COELHO, Maria Helena da Cruz, D. João I, Temas e Debates, Rio de Mouro, 2008, p. 21.

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no conflito pelo partido castelhano), contribuindo para a vitória do novo monarca

português99.

Embora somente no século XV se tenha institucionalizado uma “guarda militar

permanente e montada da pessoa do rei”, é bastante provável a existência prévia de um

corpo militar cuja função seria a protecção do monarca. Inicialmente uma “guarda da

«câmara», portanto doméstica, palaciana, sem atribuições militares específicas fora da

esfera da corte régia”, com D. Afonso IV começou a assistir-se a uma crescente

definição e organização deste corpo, surgindo, pelo menos desde o reinado de D. Pedro

I, o cargo de guarda-mor do reino. No reinado de D. João I encontramos a presença

deste grupo a acompanhar o rei, por exemplo, na batalha de Aljubarrota, começando a

participar assim nos palcos de guerra, deixando as suas “funções exclusivamente

palacianas”. Os membros desta guarda seriam cavaleiros e escudeiros (ou, ainda,

besteiros montados e combatentes a pé) da criação do monarca, assumindo-se, a partir

do período estudado, “como que um primeiro elemento constitutivo da hoste régia”, um

contingente de guerreiros que, embora fosse de números reduzidos, seria de fácil

mobilização e, sobretudo, fiéis e dedicados ao seu rei100. É necessário acrescentar ainda

que de acordo com João Gouveia Monteiro, logo a partir do início do reinado de D.

João I, é criado um corpo permanente de 100 besteiros que deveriam acompanhar o rei,

os “besteiros da câmara do rei”, que teria alguma relação com a guarda do rei, mesmo

que só complementar101.

As hostes medievais continham também, em diversos casos, a presença de

contingentes de mercenários. Estes grupos de, no máximo, algumas centenas de

combatentes viviam da guerra, lutando “em troca de um estipêndio (e não de um ideal

ou, sequer, de um senhor)”, e eram peritos em diversos tipos de operações militares,

podendo ser utilizados não só como “fortalezas de picos impenetráveis colocadas no

centro das batalhas”, ou em assaltos furtivos, infiltrando-se em vilas ou fortalezas,

sendo os seus efectivos “em nada […] inferiores aos nobres, em matéria de ousadia e de

arte de fazer a guerra”. Desta forma, estes contingentes eram muito procurados pelas

coroas europeias durante o período, pois o contributo de um corpo de combatentes

experientes e eficazes poderia fazer a diferença tendo em vista a “feliz resolução dos

99 MONTEIRO, João Gouveia, A Guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, p. 81. 100 Idem, Ibidem, pp. 28-29. 101 Idem, Ibidem, pp. 30-31.

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seus problemas político-militares” 102 . No conflito estudado, mercenários ingleses

fizeram parte da campanha realizada por D. João I no Minho, na Primavera de 1385,

com Fernão Lopes a referir a sua presença no cerco de Ponte de Lima103, e encontramos

mercenários franceses, entre outros, a auxiliar as forças castelhanas, por exemplo, na

defesa de Valderas, em 1387, frente às forças de D. João I e do duque de Lancaster104.

Por último, é necessário referir ainda a presença dos homiziados nos exércitos da

época. Estes eram criminosos ou marginais, incluindo até, por vezes, homicidas, ou seja

“indivíduos a contas com a justiça”, que eram integrados na hoste régia, trocando o seu

serviço militar por uma amnistia, fosse uma redução da pena ou até mesmo um perdão

total, sendo esta uma forma que D. João utilizou para engrossar as suas fileiras em

1384105.

Conhecendo a composição das hostes medievais que participaram nas operações

de cerco no período estudado, observemos agora as dimensões dessas forças sitiantes e

sitiadas. Ao observarmos ambas as forças em confronto, é possível verificar uma

disparidade entre os números de efectivos das hostes participantes nestes conflitos,

números esses que se alteravam de campanha para campanha e de local para local ou se

fosse um exército sitiante ou uma guarnição defensiva de uma determinada localidade

ou fortaleza. Começando pelas hostes que realizaram campanhas militares que

incluíram cercos, os cronistas deixaram-nos algumas estimativas do número de

combatentes, por vezes díspares de cronista para cronista, outras vezes semelhantes, e

veremos, como exemplos, o alardo realizado em Valariça em 1386, a hoste real que

participou na campanha anglo-portuguesa de 1387 e a hoste do rei Juan I de Castela que

cercou Lisboa em 1384, entre outros casos.

No primeiro caso, o alardo de Valariça, D. João I reúne, em Junho de 1386, uma

hoste com cerca de 4500 lanças, para além de um número indefinido de combatentes a

pé e besteiros, numa situação que Fernão Lopes descreveu como “o mais fremoso

allardo que ata ally em Portugall fora visto”106. Este alardo ocorre após a vitória no

cerco de Chaves de 1386, e a hoste dirige-se depois para Coria, tomando Almeida pelo

102 MONTEIRO, João Gouveia, A Guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, pp. 84-85. 103 “vijnte de cauallo, jngreses frecheros”, CDJ I, 2ª, cap. XVII, p. 33. 104 “Em esto logar estaua […] monse Roby Brocamonte, com framçeses e outros estrangeiros que por

guarda daquela comarca eram postos”, Idem, Ibidem, cap. CVI, p. 221 105 MONTEIRO, João Gouveia, A Guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, pp. 86-88. 106 CDJ I, 2º, cap. LXXI, p. 166.

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caminho. D. João I sai do Porto em direcção a a Trás-os-Montes, “que he terra de

Portugall, por cobrar alguns logares que naquela comarca ajnda comtra elle

reuelauom107, desy per emtrar per Castella”108, procurando assim atrair para uma batalha

campal as forças de Juan I, que ainda estavam a recuperar da derrota na Batalha de

Aljubarrota109.

Em 1387 ocorre a campanha anglo-portuguesa, com o intuito de reclamar o

trono castelhano para o duque de Lancaster, John of Gaunt, durando somente alguns

meses, entre Abril e Julho110. De acordo com Fernão Lopes, as hostes combinadas

perfaziam um total de cerca de 11000 efectivos, com o exército do duque a ser

composto por 2000 combatentes, dos quais 600 eram homens de armas e outros 600

arqueiros, e D. João I a trazer consigo 3000 lanças, 2000 besteiros e 4000 peões, mais

um número indefinido de combatentes que se foram juntando à hoste ao longo da

campanha 111 (Pero López de Ayala refere também que seriam cerca de 9000 os

combatentes portugueses)112. Embora tenha terminado em fracasso, devido à crescente

dificuldade em manter uma tão volumosa hoste113, na bem sucedida tomada de Valderas

a hoste anglo-portuguesa encontra uma força castelhana auxiliada por combatentes de

outros reinos europeus, principalmente franceses114, sendo este confronto um exemplo

de que esta guerra não envolveu somente Portugal e Castela, com as rivalidades

resultantes da Guerra dos Cem Anos a propagarem-se para território ibérico115.

O cerco de Lisboa de 1384 é um cerco marcante deste conflito (e do período e

tema que esta dissertação observa), no qual participou um grande número de

107 Para além de Chaves, também Bragança tinha voz por Castela, mas João Afonso Pimentel, por recear

ser cercado por D. João I e o rei castelhano não acorrer em seu auxílio, tal como se sucedeu com Chaves,

e “por seguramça da sua homra e estado cuidou preitejar com el-Rey qye lhe ficasse Bragamça com todo

aquello que tinha, e que tomasse sua voz”, CDJ I, 2ª, cap. LXXII, p. 169. 108 Idem, Ibidem, cap. LXIII, p. 152. 109 Idem, Ibidem, caps. LXVII, LXVIII, LXIX, pp. 160-164. 110 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 277. 111 CDJ I, 2ª, cap. C, p. 214, e MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de

Alfarrobeira (1449) - Os Desafios da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 277. 112 CRC, Juan I, Año Noveno (1387), cap. I, pp. 626-627. 113 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 278. 114 CDJ I, 2ª, caps. CV, CVI, pp. 220-222. 115 As tréguas assinadas em Brétigny, em Maio de 1360, entre ingleses e franceses obrigaram companhias

de mercenários de ambos os reinos a procurarem um outro local onde pudessem continuar a pelejar,

encontrando na Península Ibérica um palco propício para a continuidade da sua actividade, participando

nos conflitos internos castelhanos (entre o rei D. Pedro I de Castela e o seu irmão bastardo, o conde D.

Enrique de Trastâmara), nas Guerras Fernandinas e ainda em diversos momentos da guerra entre Portugal

e Castela causada pela crise sucessória de 1383-1385, especialmente na já referida campanha de 1387.

MONTEIRO, João Gouveia, A guerra em Portugal - nos finais da idade média, p. 286.

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combatentes e meios, e será frequentemente visitado ao longo desta dissertação116. As

forças sitiantes castelhanas eram compostas por, de acordo com Fernão Lopes117, 5000

lanças de cavalaria, 1000 ginetes, 6000 besteiros e um número indefinido de peões, para

além de membros da nobreza portuguesa afectos a Juan I e D. Beatriz, de um

contingente de 2000 mercenários franceses, e ainda as tripulações da frota castelhana. A

esta hoste com mais de 14000 combatentes adicionam-se ainda acompanhantes da hoste,

com funções auxiliares, fazendo com que esta ascendesse a um número, de acordo com

Miguel Gomes Martins, entre 15000 e 20000 homens, referindo ainda que alguns

autores apontam para cerca de 25000 pessoas118.

No primeiro cerco de Alenquer de 1384, o Mestre de Avis procura, sem sucesso,

conquistar a vila com 200 lanças e alguns besteiros e soldados a pé, sem, no entanto,

levar qualquer engenho de cerco119. No assalto à mesma localidade, cerca de quatro

meses depois, 50 homens de armas liderados por Manuel Pessanha, juntamente com a

população, tentam a conquista do castelo, resultando, no entanto, em fracasso120. O

Condestável consegue a conquista de Neiva e de Viana do Castelo liderando um

contingente de 150 escudeiros a cavalo, 40 homens de armas e um número indefinido de

combatentes a pé, tanto “gallegos come portugueses”121. Mértola é cercada em 1385, de

acordo com Pero López de Ayala, por cerca de 200 homens a cavalo e 4000

combatentes a pé, que são depois derrotados com o auxílio de um exército de socorro122.

Para o cerco de Melgaço de 1388, D. João I leva consigo 1500 lanças e “muyta gente de

pee”123. Por último, em 1398, após um alardo em Ponte de Lima, no qual reúne um

exército de “quatro myl lanças e (muitos) peoẽes e beesteiros” 124 (embora tenham

morrido afogados vários combatentes na travessia do rio Minho)125, D. João cerca e

conquista Salvatierra, Sotomayor e depois Tui126.

116 Entre a decisão de Juan I de Castela de cercar Lisboa, no capítulo LXXXV, e o fim do cerco, no

capítulo CL, as ocorrências do cerco, e eventos relacionados com este, são relatadas por Fernão Lopes em

24 capítulos da Crónica de Dom Joham I. 117 CDJ I, 1ª, cap. CXIV, pp. 192-195. 118 MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, p. 308. 119 CDJ I, 1ª, cap. LI, pp. 90-91. 120 Idem, Ibidem, cap. CIX, pp. 184-186. 121 Idem, Ibidem, cap. VI, pp. 14-15. 122 CRC, Juan I, Año Séptimo (1385), cap. IX, pp. 588-589. 123 CDJ I, 2ª, cap. CXXXIV, p. 275. 124 Idem, Ibidem, cap. CLXVIII, p. 356. 125 Idem, Ibidem, cap. CLXVIII, pp. 357-358. 126 Idem, Ibidem, cap. CLXVIII, p. 356.

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Agora, vamos olhar para o outro lado da barricada, e tentar perceber qual a

dimensão dos contingentes que asseguravam a defesa das fortalezas, ou seja, qual a

dimensão da oposição com que os sitiadores se deparavam. Ao longo deste conflito,

João Gouveia Monteiro refere que estas guarnições contavam, geralmente, com cerca de

200 combatentes127. Este número é uma média, pois as forças defensoras oscilavam

bastante de local para local, e apresentam-se em seguida alguns exemplos que permitem

compreender este número: no cerco de Guimarães de 1385, Aires Gomes resistiu

durante um mês com cerca de 110 escudeiros galegos e castelhanos128; Lopo Gomes de

Lira e cerca de 80 combatentes defendem-se durante três dias das forças combinadas de

D. João I e do Condestável em Ponte de Lima, em Maio de 1385, utilizando as torres da

vila129; a guarnição castelhana de Chaves, liderada pelo alcaide Martim Gonçalves de

Ataíde, composta por cerca de 110 lanças e um número indefinido de combatentes a pé

e besteiros, contando ainda com um trom, resistem durante quase quatro meses, entre

Janeiro e Abril de 1386, ao assédio da força de D. João I130; no cerco de Melgaço de

1388, as forças sitiadas de cerca de 300 homens de armas e um número indefinido de

peões fazem frente à hoste de D. João I, composta por 1500 lanças e um número

indeterminado de combatentes a pé131; no segundo cerco de Tui, em 1398, a cidade era

defendida por um contingente de 300 lanças e um número indefinido mas razoável de

peões e besteiros132.

Como último exemplo, no caso da tentativa de cerco do Porto protagonizada, em

1384, por uma força castelhana liderada pelo arcebispo de Santiago, composta por 700

lanças e 2000 combatentes a pé galegos e portugueses, não se consegue, numa primeira

fase, cercar eficazmente a cidade e, com a chegada de reforços vindos de Lisboa, a força

sitiada inicial de 700 homens de armas, 300 besteiros e 1500 combatentes a pé que se

encontravam no Porto (um número de efectivos, já neste momento, bastante mais

considerável quando comparado com o número das outras guarnições mencionadas)

torna-se numa força de cerca de 1000 homens de armas, 800 besteiros e 5000

127 MONTEIRO, João Gouveia, A Guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, p. 512. 128 Idem, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios da Maturidade", in

Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 268. 129 CDJ I, 2ª, caps. XV, XVI, XVII, XVIII, pp. 29-37. 130 Idem, Ibidem, caps. LXIII, LXIV, LX, LXVI, LXVII, LXVIII, LXIX, pp. 152-164. 131 Idem, Ibidem, cap. CXXXIV, p. 275. 132 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 281.

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combatentes a pé, o que acabaria por dissuadir as forças castelhanas de levar a cabo o

cerco à cidade portuense133.

No caso do cerco de Lisboa de 1384, o Mestre de Avis tinha sob o seu comando

cerca de 2000 homens de armas, mais o contingente de besteiros e peões que

compunham as forças de infantaria da milícia concelhia lisboeta134. Porém, não foram

somente estes combatentes que participaram e contribuíram para a defesa bem sucedida

da cidade, pois também os habitantes e refugiados que aí se encontravam participaram e

auxiliaram nas tarefas defensivas ao longo dos cerca de quatro meses de cerco. Em caso

de perigo, mesteirais, e não só, paravam de trabalhar, pegavam em armas e auxiliavam

no combate, e as mulheres transportavam cestas com pedras para os adarves que

posteriormente seriam atiradas contra os sitiantes que se aproximassem da cidade135.

Também os clérigos faziam a sua parte, “espeçiallmente da Trindade”, participando nas

vigias das muralhas e das torres136, e até os prisioneiros137. Aos fidalgos e homens bons

que se encontravam em Lisboa por altura do cerco foram-lhes atribuídas diversas tarefas

de grande importância respeitantes à organização da defesa da cidade, como a guarda

das portas e das torres que se encontravam ao longo das muralhas lisboetas138.

Nota-se também nestes exemplos que as guarnições que defenderam os castelos

e localidades neste conflito (exceptuando o caso do Porto, após a chegada dos reforços)

tinham, na generalidade dos casos, inferioridade numérica em relação aos sitiantes. No

entanto, esta inferioridade não era sinónima de derrota, pois, nas palavras de João

Gouveia Monteiro, “em condições ideais (isto é, com uma guarnição minimamente

numerosa e fiel, com bons muros e com uma boa provisão de armas e de mantimentos),

uma fortaleza era potencialmente capaz de resistir ao assédio de um exército inimigo,

para mais tendo em conta que estes exércitos eram geralmente recrutados por períodos

de tempo limitados e incluíam no seu seio importantes contingentes de mercenários,

133 CDJ I, 1ª, caps. CXVIII, CXIX, CXX, CXXI, CXXII, CXXIII, pp. 202-212. 134 MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, p. 311. 135 CDJ I, 1ª, cap. CXV, p. 196. 136 Idem, Ibidem, cap. CXV, p. 197. 137 “E [o Mestre] perdoava as mortes e mallefiçios a quamtos lho rrequeriam, com tamto que nom fosse

alleive ou treiçom, e sse forom feitos amte do primeiro dia de dezembro, em que ell matou o Comde

Joham Fernamdez, da era de quatroçemtos e viimte e huũ, com condiçõ que a çertos dias sse vehessem a

Lixboa pera servir aa sua custa em quamto durasse a guerra”, Idem, Ibidem, cap. XXVII, p. 50 e

MARTINS, Miguel Gomes, Lisboa e a Guerra. 1367-1411, p. 87. 138 MARTINS, Miguel Gomes, Lisboa e a Guerra. 1367-1411, p. 88.

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cuja manutenção prolongada no terreno era (financeira e disciplinarmente) muito difícil

de suportar”139.

Por último, terminamos este capítulo inicial com uma breve observação do

armamento individual ofensivo e defensivo utilizado em Portugal durante o período em

análise neste estudo e, como tal, pelos combatentes que participaram nos cercos

ocorridos nesse mesmo espaço de tempo. Ao longo da Idade Média, Philippe

Contamine considera que existiram dois modelos contrastantes em relação ao

equipamento de um combatente. Por um lado, um modelo em que o armamento de um

combatente, ofensivo e defensivo, e até mesmo o cavalo, era adquirido por este,

consoante os seus meios económicos e o que este pretendia para a sua própria segurança

e eficácia em combate. Por outro lado, embora mais raro e sem ser completamente

implementado, um outro modelo em que o poder político se encarregava de equipar os

seus combatentes, zelando pela definição e regulamentação do equipamento para

assegurar a uniformização e a padronização do seu exército140. Em relação ao primeiro

modelo, praticado na medievalidade portuguesa, as autoridades, régias ou locais,

exerciam, no entanto, uma influência na escolha do equipamento, pois, embora não o

fornecessem em muitos casos 141 , poderiam exigir que os seus combatentes se

apresentassem com um equipamento específico ou decretar leis que estabeleciam o tipo

de armamento que um indivíduo deveria possuir aquando da sua chamada para

combater ou, ainda, as autoridades poderiam simplesmente procurar garantir que esse

equipamento fosse facilmente acessível e que os seus custos fossem o mais económicos

possível (proibindo a exportação de armas ou cavalos em período de guerra ou

concedendo benefícios aos artesãos que trabalhassem com equipamento bélico) 142 .

Assim, as hostes medievais apresentavam um armamento bastante heterogéneo. Para

além disso, este modelo permitia que os combatentes tivessem consigo ou guardadas em

139 MONTEIRO, João Gouveia, A Guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, pp. 338-339. 140 CONTAMINE, Philippe, War in the Middle Ages, pp. 188-189. 141 Havia excepções comprovadas pela existência de arsenais, sendo, em Portugal, os maiores exemplos

disso os grandes arsenais régios em Lisboa (século XIII) e no Porto (século XIV), nos quais o rei

acumularia armamento ofensivo e defensivo, controlando o seu estado de conservação e a quantidade de

equipamento à sua disposição, permitindo-lhe fornecer essas mesmas armas aos combatentes (membros

da sua guarda e da sua mesnada), planear melhor as suas campanhas, e enviar, em caso de necessidade,

auxílio sob esta forma para fortalezas em perigo. Também os senhores, que tinham capacidade para tal,

forneciam armamento (e até montadas) aos combatentes que integravam as suas mesnadas, MARTINS,

Miguel Gomes, A Arte da Guerra Em Portugal - 1245 a 1367, pp. 211 e 255-260. 142 CONTAMINE, Philippe, War in the Middle Ages, pp. 188-189.

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sua casa, mesmo em tempos de paz, as suas próprias armas143, num processo que se

manteria, pelo menos, até ao terceiro quartel do século XV, de acordo com Luís Miguel

Duarte, que observou ainda, citado por João Gouveia Monteiro, que os portugueses “na

sua esmagadora maioria, andavam armados; e todos eles tinham acesso fácil e rápido

a armas”144.

De acordo com o modelo de classificações utilizado por João Gouveia Monteiro,

o armamento dos finais da Idade Média dividia-se em armas individuais e armas

colectivas. Neste capítulo trataremos somente as armas individuais ofensivas (de mão

ou de arremesso) e defensivas. Começando pelas armas ofensivas de mão, encontramos

neste grupo as armas brancas (espada, punhal, cutelo, etc.), as armas de choque (fachas,

achas-de-armas ou maças), e as armas de haste (principalmente as lanças145). Das armas

brancas, João Gouveia Monteiro destaca a importância e contínuo uso das espadas neste

período (“a arma mais importante dos cavaleiros medievais, a par da lança”146), devido

à sua versatilidade, podendo ser utilizada tanto para fender, cortar ou espetar o seu

adversário 147 . Em relação às armas de choque, João Gouveia Monteiro refere a

importância da facha (ou acha-de-armas), uma arma frequentemente utilizada não só por

combatentes dos estratos populares mas também, em alguns casos, por membros da

nobreza148, e Miguel Gomes Martins refere também as maças de armas149. Por último,

nas armas de haste, com um uso tão disseminado como as espadas, encontramos as

lanças, que serviam para arremessar ou para estocar150.

As armas ofensivas de arremesso eram divididas em armas de arremesso de

“simples propulsão muscular”, como o dardo e as azagaias, e armas de arremesso

143 MONTEIRO, João Gouveia, A Guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, p. 144. 144 Idem, Ibidem. 145 Idem, Ibidem, p. 184. 146 Idem, Ibidem. 147 As espadas de estoque ganham popularidade nesta época face à evolução dos equipamentos

defensivos, pois permitiam penetrar por entre as falhas e pequenas aberturas dos arneses. MARTINS,

Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, p. 277, e MONTEIRO, João

Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios da Maturidade", in

Nova História Militar de Portugal, Vol. I, pp. 184-185. 148 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, pp. 185-186. 149 “que funcionavam como verdadeiros «abre-latas», usados para rasgar as defesas adversárias”,

MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, pp. 277-278. 150 As lanças foram ainda adaptadas ao combate a cavalo, aliando a força do cavaleiro com o

embalamento da montada, resultando num movimento com um impacto final sobre o adversário mais

potente ainda. BARROCA, Mário Jorge, "Da Reconquista a D. Dinis", in Nova História Militar de

Portugal, Vol. I, p. 138.

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neurobalístico, como os arcos, bestas e fundas151. Deste tipo de armas ofensivas, as que

mais se destacam neste período são as bestas. Estas ressurgem no panorama militar

europeu no último quartel do século XI (eram já utilizadas na Antiguidade mas não há

registos da sua utilização ao longo da Alta Idade Média), encontrando uma enorme

adesão e difusão na Península Ibérica152, não só pela conjuntura de constante conflito

com forças muçulmanas153, mas também por medidas régias como a instituição dos

besteiros do conto 154 . A eficácia e poder das bestas vinham do facto de estas

possibilitarem ao combatente, após armá-la, esperar em repouso até a oportunidade

surgir para desferir um tiro bastante certeiro, de longo alcance (entre 200 a 300 metros),

e com grande poder de impacto e perfuração (graças à ponta do virotão, volumosa,

maciça e pesada), resultando numa arma extremamente mortífera155.

Prosseguimos agora para as armas defensivas, começando pelo escudo, que era

na época medieval uma protecção de extrema importância156. No período estudado, os

escudos mais utilizados tinham uma forma aproximadamente triangular, os mais

comuns na época, ou ainda em forma de “U” 157 . Os besteiros, exclusivamente,

utilizavam ainda outro tipo de escudo, os paveses, que eram escudos canelados de

grandes dimensões e protegiam totalmente o combatente (oferecendo uma protecção

mais eficaz ainda quando este se encontrava acocorado), permitindo-lhes recarregar a

sua arma em maior segurança158.

151 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, pp. 186-187. 152 O uso da besta na Península Ibérica é de tal forma popular que no período estudado o arco é

praticamente inexistente, sendo somente utilizado pelas forças inglesas que auxiliaram D. João I (os

ingleses preferiam e especializavam-se no manejo do longbow, arco de maior alcance, potência e

resistência do que o arco comum, e com uma maior cadência de tiro que a besta). Idem, Ibidem, pp. 186-

187. 153 As bestas eram armas tão mortíferas que a Igreja procurou restringir o seu uso, através da condenação

por parte do papa Urbano II e a proibição da sua utilização em combates entre cristãos no II Concílio de

Latrão no século XII, acabando por, no entanto, ser uma arma comummente utilizada por toda a Europa já

no século XIII. BARROCA, Mário Jorge, "Da Reconquista a D. Dinis", in Nova História Militar de

Portugal, Vol. I, pp. 140-142. 154 Idem, Ibidem, e MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra Em Portugal - 1245 a 1367, pp. 227-

229. 155 BARROCA, Mário Jorge, "Da Reconquista a D. Dinis", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I,

pp. 142-143. 156 No entanto, graças à evolução observada nas protecções de corpo, a dimensão dos escudos foi

tornando-se cada vez mais reduzida, MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na

Idade Média, p. 277. 157 Idem, Ibidem. 158 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, pp. 187-188.

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Para além do escudo, o guerreiro medieval necessitava também das protecções

para a cabeça e para o corpo. Neste período o bacinete era a protecção para a cabeça

mais comum e eficaz159, pois era uma peça que protegia toda a nuca e cabeça, e era

frequentemente complementada por uma viseira móvel (“cara” ou “volante”) que

conferia protecção para a cara do combatente, contendo frechas que facilitavam a

visibilidade e a respiração160. Em conjugação com o bacinete utilizava-se ainda o camal,

um avental de malha de ferro para o pescoço161, que protegia o pescoço e a garganta dos

combatentes, e, com o mesmo intuito, o gorjal (utilizado com os capelos ou as

capelinas), feito de malha, placas de ferro ou couro fervido162. Vemos nas crónicas

referências ao uso do bacinete, como, por exemplo, Nuno Álvares Pereira na batalha de

Atoleiros, em 1384, que ainda antes da batalha “pos seu baçinete sem cara, e tomou a

lamça nas maãos que lhe tragia o Page” 163 , ou ainda o alcaide de Neiva, quando

defendia o castelo de um ataque do Condestável, embora tenha sido atingido por um

virotão pela “vasagem do baçinete”, falecendo e levando ao fim desse cerco164.

Para o corpo, o arnês assume-se como a protecção mais utilizada pelos

combatentes da época, tanto portugueses como castelhanos 165 , vindo substituir ou

reforçar as couraças ou as solhas, que ainda se utilizam em finais do século XIV. O

arnês era um conjunto de cerca de 20 a 30 placas metálicas polidas e resistentes,

independentes, unidas e articuladas por dobradiças, gonzos e atilhos de couro166, que

facilitavam o deslize das armas dos combatentes inimigos, para além de permitirem uma

articulação e flexibilidade razoáveis para o combatente, sendo, no entanto, necessário o

complemento das protecções de malhas de ferro, como a loriga ou as brafoneiras, para

159 A barbuda e o bacinete surgem por volta da década de 1340, com a primeira a ser introduzida logo no

início dessa década no contexto ibérico, simultaneamente ao contexto extra-peninsular, e a segunda a

partir de, pelo menos, 1347. A barbuda é, no entanto, rapidamente substituída pelo bacinete por este ser

mais eficaz na protecção da cabeça do combatente, “ao ponto de, em 1366, o inventário dos bens da

Ordem de Avis registar apenas a existência de bacinetes nos vários arsenais da ordem”, MARTINS,

Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, p. 277. 160 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 188. 161 Idem, Ibidem. 162 MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, p. 277. 163 CDJ I, 1ª, cap. XCV, p. 159. 164 CDJ I, 2ª, cap. VI, p. 15. 165 MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, p. 276. 166 Das peças que faziam parte do conjunto do arnês, destacam-se o peitoral ou peito (que protegia o

tronco do combatente), as gorjais ou babeiras (protegendo o queixo, pescoço e ombros), peças discoidais

que protegiam as articulações dos membros superiores, arnês de braços (braçais, avambraços e

manoplas), a panceira ou escarcela, para proteger a cintura, e, por fim, o arnês de pernas (coxotes,

joelheiras, grevas e sapatos de ferro ou escarpins). MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325)

à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal,

Vol. I, p. 189.

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proteger as articulações e outras partes do corpo não protegidas pelo arnês167. Como

exemplo de um armamento defensivo de um combatente, encontramos, no cerco de

Guimarães de 1385, “Aluaro dOuter de Fumos [...] armado dhuumas solhas e huum

loudell e huum gorjall de malha e huum baçinete de camal em çima e huuma aduffa de

madeira antelle e huum escudo no braço”168.

Após esta breve síntese inicial focada na estratégia militar medieval e nos

exércitos que a praticaram, os capítulos que se seguem analisarão as diversas fases de

um cerco, desde a chegada de um exército sitiante e a instalação do respectivo arraial,

bem como as medidas tomadas por sitiados previamente, as dificuldades que ambos os

exércitos enfrentavam ao longo do período do cerco, as diversas formas de ataque a uma

fortaleza, ou ainda as acções tomadas por parte de vencedores e vencidos após o

término do cerco, procurando assim demonstrar a complexidade da estratégia (e a

própria existência desta) no âmbito dos cercos ocorridos ao longo dos cerca de 15

últimos anos do século XIV, no contexto da guerra entre os reinos de Portugal e Castela.

167 MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, p. 276, e

MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios da

Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, pp. 188-189. 168 CDJ I, 2ª, cap. XII, p. 24.

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CAPÍTULO II – OS PREPARATIVOS PARA ATACAR OU RESISTIR

Antes de se dar início a um cerco, ambas as forças em conflito tinham a hipótese

de pôr em prática determinados preparativos, medidas ou precauções que poderiam

conferir alguma vantagem sobre o adversário, previamente ou mesmo durante o

decorrer do cerco. Assim, este capítulo terá como objectivo o estudo desses mesmos

preparativos, medidas e precauções que sitiantes e sitiados tomavam no período que

antecedia o início de um cerco, desde as tentativas de controlo do território que

circundava o alvo a ser cercado, as características pelas quais se regiam as instalações

dos arraiais e a própria composição destes, as recolhas prévias de mantimentos e

armamento, ou ainda a atenção dada às estruturas fixas de defesa, entre outros aspectos.

Iniciamos o estudo dos preparativos do cerco pelo lado das forças que cercariam

e procurariam conquistar a localidade. Os sitiantes de uma praça-forte poderiam,

previamente, caso fossem necessárias (o cerco poderia perspectivar-se como tendo um

elevado grau de dificuldade) e tivessem os meios para as concretizarem, desencadear

determinadas acções que isolassem ainda mais o alvo do cerco, impedindo o acesso a

essa praça de reforços ou de mantimentos, enfraquecendo assim a sua capacidade em

resistir ao assédio e aumentando, do lado dos agressores, as probabilidades de sucesso

dos atacantes.

A razia dos campos e povoações vizinhas do local assediado169, assim como a

presença de combatentes dos sitiantes na região, impediam as forças prestes a serem

sitiadas e os próprios moradores do local de se movimentarem livremente e

conseguirem recolher mantimentos (ou destruí-los)170, podendo esta acção servir ainda

não só para a recolha de mantimentos, mas também como um efeito de intimidação aos

sitiados através dessas demonstrações da força dos futuros sitantes171. É com este intuito

que Juan I de Castela ordena a um contingente de combatentes castelhanos, comandado

por Pero Fernández Cabeza de Vaca, Pero Fernández de Velasco e Pero Rodríguez de

169 Como, por exemplo, no cerco de Cória de 1386, no qual, partindo do arraial, “coriam as gemtes comtra

Prazemça e Gallisteo e outros logares que per ally ha”, CDJ I, 2ª, cap. LXXV, p. 173. 170 Tal como D. João I ordenou que se fizesse nos dias que antecederam o cerco a Guimarães em 1385.

Idem, Ibidem, cap. X, p. 21. 171 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 227.

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Enxarmiento172, a ir para o termo de Lisboa antes da chegada do exército principal.

Assim, esta força chega ao Lumiar no dia 8 de Fevereiro e espalha-se pelas aldeias

próximas para procurar impedir a chegada de mantimentos à cidade, dificultar possíveis

movimentações dos habitantes de Lisboa e dos seus arredores, obrigando uns a

manterem-se no interior da cidade e condicionando e pondo em perigo a deslocação

daqueles que procuravam refúgio dentro das muralhas, e semeando a destruição nos

territórios circundantes173. No cerco de Meaux, ocorrido no Inverno de 1421-1422 no

âmbito da Guerra dos Cem Anos, as forças inglesas de Henry V queimaram as

redondezas da localidade para impedir que a guarnição conseguisse reabastecer-se, de

tal forma que Jean Juvenal des Ursins, autor de Histoire de Charles VI Roy de France,

observou, a propósito deste episódio, que “war without fire is like sausages without

mustard”174.

No mesmo cerco de Lisboa, e ao contrário do que tinha sucedido no cerco de

Enrique II à cidade no ano de 1373175, Juan I contava agora com o apoio das principais

fortalezas próximas, nas quais se incluíam Sintra, Óbidos, Santarém, Alenquer e Torres

Vedras, que tinham voz por si e pela sua esposa, garantindo assim uma maior segurança

para o seu arraial e para as linhas de abastecimento que se formariam176. Ficava, no

entanto, a faltar Almada, o que levou o monarca castelhano, já no decorrer do cerco a

Lisboa e face à recusa da vila em se entregar, a ordenar o cerco a essa vila, assim

impedindo e dissuadindo qualquer tentativa vinda daquele local de envio de socorro

militar ou de mantimentos para a cidade, bem como mostrar a Lisboa uma operação

militar bem sucedida sobre um local que ainda conferia alguma esperança aos sitiados,

procurando assim desmoralizá-los e forçar uma rendição mais célere177. Com o sucesso

nessa operação, as forças castelhanas garantiam assim o controlo dessa praça e também

da margem Sul do Tejo, e, estando o rio já sob o controlo castelhano 178 e Lisboa

cercada, Juan I havia conseguido isolar por completo o Mestre de Avis e a cidade

lisboeta179.

172 CDJ I, 1ª, Cap. LXXI, p. 122. 173 MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, pp. 302-303. 174 BRADBURY, Jim, The Medieval Siege, p. 170. 175 MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, p. 297. 176 Idem, Ibidem, p. 324. 177 Idem, Ibidem, p. 323. 178 CDJ I, 1ª, cap. CXXXIII, p. 228. 179 MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, p. 324.

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Tendo o caminho aberto para a instalação do acampamento, os comandantes das

hostes sitiantes tinham de fazer uma observação cuidada da praça a ser atacada, para

que os sitiantes pudessem planear o melhor local para assentarem o arraial e a melhor

forma de atacarem o alvo180. Nos próximos parágrafos iremos utilizar o exemplo do

arraial castelhano construído no cerco de Lisboa de 1384 devido à extensa e

pormenorizada descrição apresentada por Fernão Lopes181, que permite a observação de

uma concepção geral do que seria um arraial completo (ou melhor, de um arraial de

grandes dimensões e com mais aspectos e características para serem estudados) nesta

época.

Em primeiro lugar, o arraial deveria ser instalado num local que permitisse aos

sitiantes estarem suficientemente afastados das muralhas do objectivo para não serem

fustigados directamente pelos defensores (tanto pelo arremesso de projécteis como pelas

possíveis sortidas por parte dos sitiados) 182 , e a uma distância que permitisse a

utilização eficaz dos seus engenhos 183 . Ainda, se possível, a instalação do arraial

próximo da margem ou com acesso a uma via fluvial permitia chegar com mais

facilidade e rapidez a vias de abastecimento marítimas e fluviais, e também abria a

perspectiva de uma retirada com maior segurança por essa via, caso fosse necessário184.

Por exemplo, no cerco de Lisboa de 1384, Juan I ordena a instalação do arraial

castelhano em redor do mosteiro de Santos-o-Velho, a “pouco mais de dous tiros de

beesta” da cidade185, onde é construída “uma cómoda «casa» de dois pisos, assente

sobre quatro traves grossas e com paredes de pedra” 186 na qual o rei e a rainha se

instalam, encontrando-se em seu redor as tendas dos membros mais proeminentes da

hoste e os seus principais capitães, com o resto dos elementos do arraial a espalharem-se

180 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 226. Por exemplo, Fernão Lopes indica

que, no cerco de Chaves de 1386, D. João I, após a recusa de Martim Gonçalves em lhe entregar a vila,

procede à observação da zona para encontrar o melhor sítio para assentar o arraial. CDJ I, 2ª, cap. LXIV,

p. 154. 181 No capítulo CXIV, “Como elRei de Castella chegou sobre Lixboa, e como asseemtou seu arreall

sobrella”, na primeira parte da Cronica del rei Dom Joham I, pp. 192-195. 182 No cerco de Benavente de Campos por parte de D. João I e do duque John of Gaunt, o arraial foi

instalado tendo em conta a observação prévia da praça e também o facto de os sitiados não terem

engenhos para disparar sobre o arraial. “E assy chegarom ao meo dia e assentarom seu areall muyto

açerca da villa, homde nojo fazer nom podesse o tirar dos viratoões; ca outro troom nem emgenho nom

auya demtro que lhe nojo podesse fazer”, CDJ I, 2ª, cap. C, p. 215. 183 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 226. 184 Idem, Ibidem. 185 A cerca de 400-600 m da cidade, sendo o alcance de um tiro de besta entre 200-300 m. BARROCA,

Mário Jorge, "Da Reconquista a D. Dinis", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p.140. 186 MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, p. 307.

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por “Alcamtara, e per Campolide, e per a comarca darredor, em grandes e bem

hordenadas rruas; e todas em çima com bamdeiras e pemdoões de desvairadas armas e

sinaaes”187. A escolha inicial para a instalação do acampamento teria o seu centro no

monte Olivete, um local mais alto (o que facilitaria a sua defesa e permitiria uma melhor

vigilância e observação da cidade), mas não tão próximo do rio Tejo como o mosteiro, e

a proximidade a essa via fluvial, e aos navios com reforços e mantimentos que aí

estavam ancorados, pesou mais na decisão do monarca castelhano 188 . Em caso de

necessidade, os sitiadores poderiam mover o acampamento para outro local, tal como

ocorreu nos inícios do cerco de Coria em Junho de 1386, no qual D. João I, devido ao

calor que se fazia sentir na altura e ao adoecimento de alguns combatentes, ordena a

deslocação do arraial para que este ficasse “aaquem do rio açerca da cidade”189.

Era também ideal para os sitiantes, se porventura os meios dos quais estes

dispunham o permitissem, cercar a praça na sua totalidade, não deixando assim qualquer

via aberta para a saída e entrada de combatentes adversários ou mantimentos, e nisto se

incluía, se existisse, o acesso ao mar ou a vias fluviais, pelas quais os sitiados poderiam

também estabelecer linhas de apoio marítimo 190 . Se, por falta de meios, pelas

características geográficas do local ou pela extensão das muralhas, não fosse exequível

o cerco total do espaço circundante da praça, ou estes aspectos não favorecessem essa

acção, então os sitiantes teriam que espalhar as suas forças por mais do que um

acampamento ou o arraial deveria concentrar-se num ponto que permitisse perturbar

mais eficazmente qualquer tipo de acção por parte dos sitiados no exterior das muralhas,

e somente se distribuíam as forças sitiadoras em redor da fortaleza aquando de um

187 CDJ I, 1ª, cap. CXIV, p. 193. 188 MARTINS, Miguel Gomes, Lisboa e a Guerra. 1367-1411, p. 71. 189 CDJ I, 1ª, cap. LXXVI, pp. 174-175. 190 O arcebispo de Santiago de Compostela, quando se discutia a possibilidade de cerco à cidade do Porto,

reconheceu a desvantagem que teriam caso concretizassem o cerco, pois não conseguiriam bloquear o

acesso marítimo aos portuenses, para além de reconhecer que a cidade tinha demasiada gente, preferindo

causar dano ao termo da cidade e assim impedir o livre-trânsito de pessoas e mercadorias naquela região:

“Vaamos ao Porto que ssom daqui oito legoas, e cerquemollo per huũa parte; e nosso arreall seja posto

a porta do Olivall, e em breves dias o tomaremos; (...).

O Arçebispo quamdo esto ouvio, rrespomdeo estomçe e disse: Eu nom som em esse comsselho por duas

rrazoões: a huũa por a çidade seer de muita gemte que a poderom bem deffender; a outra porque he

porto de mar, que per muitas guisas pode aver acorrimento quamdo tall cousa avehesse; mas pareçeme

que sera bem nom nos chegarmos muito a elle, mas amdemos a geito duas legoas arredor, e tirarlhemos

os mantiimentos; e porque elles nom ssom emcavallgados, nom nos podem viinr fazer nojo; e emtamto

hirsseam gastando amtressi; e per vemtuira por este aazo se tornarom da nossa parte, sem outro nenhuũ

nosso dano”, Idem, Ibidem, cap. CXVIII, p. 203.

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ataque directo a esta, procurando assim também evitar a concentração dos sitiados num

ou em poucos locais191.

O arraial deveria estar bem organizado, ordenado e vigiado para prevenir

situações em que os sitiados poderiam aproveitar o efeito surpresa sobre os sitiantes,

permitindo uma defesa mais eficaz em caso de uma sortida vinda de dentro das

muralhas ou da chegada de um exército de socorro 192 . Assim, as hostes sitiantes

estabeleciam atalaias diurnas e escutas nocturnas para a vigia dos sitiados, do espaço em

redor do arraial e da própria região em que se encontravam, e, no caso do cerco de

Lisboa de 1384, é estabelecido ainda no arraial “um rigoroso sistema de policiamento

interno e externo, adequado à envergadura da operação em curso”193, e também de

vigilância ao arraial e à cidade, com as forças castelhanas a estabelecerem uma vigia

constante sobre os sitiados, onde se incluíam combatentes a cavalo, de tal forma que

“nenhuũ podesse sahir [de Lisboa], que logo delles nom fosse visto” e rapidamente

interceptado, e a garantir o policiamento do arraial, que “Era muito mamtheudo em

justiça, de guisa que nenhuũ homem rreçeava de dormir soo, posto que muitos dinheiros

comssigo tevesse”. Também o rio Tejo foi alvo de vigilância constante através do

patrulhamento permanente do rio por parte de duas galés. Outros acampamentos, de

dimensões bem menores, e postos de observação foram criados em redor da cidade para

auxiliar na tarefa de vigia à urbe lisboeta194.

A fortificação do arraial era também, e pelos mesmos motivos, uma medida

aconselhada aos líderes militares, com a escavação de fossos ou a construção de

trincheiras, paliçadas e até algumas torres, em redor do acampamento, para dificultar o

ataque por parte de um exército de socorro ou as sortidas encetadas pelos defensores.

Através destas construções, os sitiantes passavam a beneficiar de um conjunto de

estruturas fixas que permitiriam uma defesa mais eficaz do arraial. Ironicamente, as

sortidas dos sitiados ou a chegada de um exército de socorro enfrentariam então uma

das características fulcrais (se bem que feita de construções improvisadas) que

compunham as defesas das localidades e uma das maiores vantagens de que os sitiados

191 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 226. 192 Idem, Ibidem. 193 Idem, Ibidem, p. 226. 194 CDJ I, 1ª, cap. CXIV, pp. 193-194.

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dispunham num cerco195. No arraial castelhano no cerco à urbe lisboeta foi erigida uma

paliçada virada para a cidade, protegendo o acampamento das eventuais sortidas

realizadas pelos sitiados, não considerando que fosse necessária a fortificação do resto

do arraial pois as fortalezas em redor de Lisboa estavam sob o controlo de Juan I196. Por

seu turno, no segundo cerco de Tui, em 1398, D. João I ordena a construção de uma

paliçada em redor de todo o arraial197.

Era necessário também estabelecer linhas de abastecimento ao arraial, mantendo

o livre acesso a uma via fluvial ou marítima (caso o cerco se desenrolasse nas

proximidades de um rio ou do mar), e assegurando as comunicações e a segurança ao

longo dessas mesmas linhas de abastecimento, terrestres ou aquáticas, para impedir a

disrupção destas198. O arraial castelhano era servido por linhas de abastecimento por via

marítima, com uma rota que vinha desde Santarém, com mantimentos transportados em

barcas pelo rio Tejo, e outra de navios que vinham de Sevilha, e por via terrestre, não só

de Santarém, mas também “de todollos outros logares que por elRei de Castella

estavom”, com Juan I a ordenar a colocação de guardas em determinados pontos dessa

linha onde receasse que o transporte dos mantimentos pudesse ser ameaçado199.

Estas linhas de abastecimento tornaram arraial “avomdado e muito farto de

manttiimentos”, podendo aí encontrar-se, de acordo com Fernão Lopes, “nom (...)

soomente (...) mantiimẽtos, mas espeçiarias de muitas e desvairadas maneiras”,

“desvairados modos de comfeitos e açucares e comservas”, “Agua rrosada, e outras

destilladas aguas de que os viçosos homẽes husam no tempo da paz”, ou “Panos de

sirgo e de lãa de desvairadas maneiras”, rematando o cronista que, naquele arraial,

“muitas outras cousas que dizer nom curamos, achariees em ell a vemder”, havendo,

aparentemente, só falta de sapateiros. As linhas de abastecimento e as necessidades dos

combatentes permitiam a presença de, e até atraíam, diversos elementos cuja função no

arraial não era militar 200 , sendo assim possível encontrar aí, para além do grande

número de combatentes que Juan I liderava, outros indivíduos como físicos, cirurgiões

195 MONTEIRO, in João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os

Desafios da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 226. 196 CDJ I, 1ª, cap. CXIV, p. 193. 197 CDJ I, 2ª, cap. CLXIX, p. 359. 198 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 226. 199 CDJ I, 1ª, cap. CXIV, p. 193. 200 Fernão Lopes indica a paragem de dois navios mercantis oriundos do Levante e com destino a

Flandres na zona do Restelo devido ao mau tempo, aproveitando Juan I para convencer esses mercadores

a encetarem trocas comerciais com os “habitantes” do arraial. Idem, Ibidem.

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ou boticários (que tinham também acesso a bastantes ingredientes necessários para

poderem cuidar dos seus pacientes), assim como ruas repletas de oficinas de mesteirais,

armeiros, ferreiros, mercadores cristãos e judeus, cambistas e ainda prostitutas (havendo

mesmo uma “rua de molheres mumdayras […] tamanha como se costuma [encontrar]

nas gramdes çidades”)201.

Todas estas atracções, como referimos, atraíam indivíduos cuja função não era

guerreira, o que chegou a levar o Condestável a expulsar todas as mulheres do seu

arraial próximo de Bragança, em 1386202, considerando-as como distracções e fazendo-

o por “seruiço a Deus e prol dos que eram em sua companha”, causando bastante

desagrado entre os seus combatentes203. No entanto, Nuno Álvares convence ainda o rei,

que entretanto se juntara a este com a sua hoste, a aplicar a mesma sanção e a proibir

também “o arenegar e jogo dos dados”204.

A implementação de um sistema de abastecimento era, no entanto,

“extremamente exigente e complexo em termos logísticos”: uma linha de abastecimento

terrestre exigia um “número muito avultado de animais de carga e de tiro”, carros e

carroças para o transporte dos mantimentos, os condutores destes veículos, escoltas

armadas e vias em bom estado para uma movimentação célere (para impedir que os

víveres não se deteriorassem ao ponto de se tornarem “impróprios para consumo”). E

embora as vias de abastecimento marítimas ou fluviais permitissem um transporte mais

rápido e uma maior quantidade de mantimentos, de tal forma que “os comandantes

militares optavam [por estas] – sempre que fosse possível”, também estas rotas estariam

sujeitas a diversos perigos, como condições climatéricas adversas ou a ataques 205 .

201 CDJ I, 1ª, cap. CXIV, pp. 193-194. 202 “E estamdo assy em terra de Bragamça, mandou poer em obra huuma cousa que muyto auya tinha

vomtade de o fazer, vemdo que o comtrario era perigoso pera homeens que em querra auyam de

comtinuar; a quall foy esta: que por quamto os de sua companhia tragiam todos mançebas, tambem os que

eram casados como os que nom eram casados, hordenou que nenhuum dhij em diante nom trouuesse

molher comsigo, e se alguuma fosse mais achada no areall, que fosse logo açoutada pubricamente per

elle”, CDJ I, 2ª, cap. LXX, pp. 165-166, e CCP, cap. LV, p. 162, no entanto, em ambas as crónicas, é dito

que algumas mulheres se mantiveram subrepticiamente com o arraial. 203 “Deste mandado desprougue tamto a todollos que as [mulheres] tragiam, que nom ouue hij tall que o

soffrer podesse com paçiemçia; (...) E huuns diziam que ante saberiam perder sua merçee. Outros se

desnaturauom delle, que nunca o mais serueriam; outros dauom com as armas em terra, dizemdo palauras

e mostrando geitos que seria longo descpreuer; em tanto que o Comde dezia depois per vezes que ante

quisera sperar huuma batalha, posto que de muyta gente fora, que esperar de respomder a tamtas razoões

e tam desuairadas quamtas cada huum mostraua por sy, a ser-lhe forçado tragel-la consigo”, CDJ I, 2ª,

cap. LXX, p. 165. 204 Idem, Ibidem, cap. LXX, p. 166. 205 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em

Portugal na Idade Média, p. 224.

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Assim, eram necessárias outras alternativas para garantir o sustento da hoste sitiadora,

como a pilhagem do território circundante e as forragens, “meios consideravelmente

menos dispendiosos, mais fiáveis e, sobretudo, mais eficazes”206. Já tendo referido a

acção do contingente avançado castelhano no cerco de Lisboa de 1384, fazemos menção

das forragens ocorridas no cerco de Chaves de 1386207 ou no cerco de Coria de 1386,

onde o destacamento responsável por esta operação dirige-se para Hervás (a cerca de 75

km do local cercado), pois nesta localidade “deziam que auya muytos vinhos, de que o

areal era muyto mynguado”. Ao fim de cerca de 50 km, nas proximidades de

Granadilla, este grupo intercepta uma caravana que transportava vinho de Hervás para

Plasencia, voltando para o arraial e trazendo ainda consigo muitas vacas e porcos208.

Os sitiantes que tivessem engenhos ou fossem forçados a recorrer a estes,

podiam construir e montar os engenhos no arraial ou transportá-los, montados ou em

peças, de outros locais. Na perspectiva de os engenhos terem de ser construídos no

próprio local209, era necessário então que artesãos especializados acompanhassem as

hostes para os erigir, num processo longo e que requeria também a existência de

ferramentas e matérias-primas para a sua construção no arraial ou nas suas redondezas,

e cuja visualização de todo o processo de construção, em determinados casos, poderia

mesmo ser entendido como uma forma de intimidação aos sitiados através da

demonstração das suas máquinas de guerra, procurando, através da sugestão do poder

destrutivo que estas representavam, demovê-los de resistirem ao cerco 210 . Quando

possível, os sitiantes traziam consigo ou ordenavam o transporte de engenhos de um

local para o outro, como é o caso dos engenhos vindos de Lisboa a pedido do Mestre de

Avis, utilizando primeiro barcas e depois animais de carga, para o último cerco de

Alenquer211, nos finais de 1384, levando-os depois para o cerco de Torres Vedras212, ou

206 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em

Portugal na Idade Média, pp. 225-226 207 A qual desenvolveremos em maior detalhe no capítulo seguinte. 208 CDJ I, 2ª, cap. LXXV, p. 174. 209 No cerco de 1386 a Chaves, D. João I ordena a construção de uma bastida “açerca da ponte pera

defender aquella agua e combater a uylla; a quall tijnha tres sobrados; e ssuyam-lhe chamar antygamente

castellos de madeira. A bastida estaua forrada de canjços e cajqueija por guarda das pedras como he

custume; e homens darmas e beestejros em ella, que husauom de tal defemsom que os da villa nom

podyam tomar agua do ryo”, Idem, Ibidem, cap. LXIV, p. 154; ou no caso de Melgaço, em 1388, onde D.

João I ordena a construção de uma bastida de 3 andares e duas escadas, num processo que durou 15 dias,

Idem, Ibidem, cap. CXXXV, pp. 276-277. 210 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, pp. 226-227. 211 CDJ I, 1ª, cap. CLXVI, pp. 313-314. 212 Idem, Ibidem, cap. CLXIX, p. 317.

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dos engenhos vindos do Porto para auxiliar o cerco a Guimarães em 1385213. Para o

cerco de Chaves de 1386, a hoste de D. João I transportou consigo “muytos caros com

emgenhos”214, e estes foram armados no local, após a organização do acampamento,

iniciando-se assim o conflito215.

Por último, é necessário referir que as montadas dos combatentes, juntamente

com os animais de carga e aqueles que eram destinados ao abate para sustento da hoste

deveriam ser colocados em currais afastados do arraial, para procurarem evitar a

propagação de doenças que a urina e dejectos animais poderiam causar216.

A organização e ordenação do arraial castelhano em Lisboa não deveria ser

original, obedecendo a determinadas regras base, com Miguel Gomes Martins a referir

que tanto o arraial do cerco à urbe lisboeta em 1373 como o de 1384 poderiam ter sido

projectados e construídos segundo os mesmos “princípios básicos da estruturação de um

cerco”217. Nascia assim uma nova “cidade” a escassas centenas de metros de Lisboa,

cujas dimensões consideráveis, meios e a amálgama de artigos e mercadorias

disponíveis nesse arraial encontram algumas semelhanças com o cerco de Calais de

1346, inserido no âmbito da Guerra dos Cem Anos, no qual o acampamento sitiante de

Edward III de Inglaterra é responsável pela construção de uma “New Town”, mostrando

também que os princípios básicos acima referidos não eram somente aplicáveis no

contexto ibérico218.

Também os sitiados tinham à sua disposição diversos argumentos para contrariar

e, se possível, frustrar a acção do inimigo, começando desde logo pelas estruturas fixas

de defesa. Com efeito, estes meios defensivos conferiam ao local assediado, à partida e

caso estivessem em boas condições, vantagem sobre os meios ofensivos que as forças

sitiantes tinham à sua disposição, fazendo com que os defensores preferissem organizar

a resistência a um exército adversário (especialmente se este fosse numericamente

213 “Entom hordenou el Rey de combater a çerca velha, e fez vijr do Porto emgenhos e armas e gemtes e

mesteiraaes e todallas outras cousas que pera combater faziam mester”, CDJ I, 2ª, cap. XII, p.24. 214 Idem, Ibidem, cap. LXIII, p. 152. 215 Idem, Ibidem, cap. LXIV, p. 154. 216 MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, pp. 308-309. 217 Idem, Lisboa e a Guerra. 1367-1411, pp. 74-75. 218 “[Edward III em Calais, 1346] constructed a ‘New Town’ for the besiegers, consisting of hutted

accomodation, with its own streets and shops and a regular market. Letters were sent round the

neighbouring towns to obtain flour, bread, corn, wine, beer, meat and fish”, BRADBURY, Jim, The

Medieval Siege, p. 158.

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superior) por detrás da segurança que muralhas e torres ofereciam, do que encontrarem

e confrontarem em campo aberto as forças inimigas219.

Assim sendo, começaremos por falar sobre as características e inovações que o

castelo gótico e as estruturas a si ligadas trouxeram à arte da guerra medieval.

Contrastando com o seu antecessor, o castelo românico, o castelo gótico teve várias

inovações que permitiram às guarnições destas estruturas aplicar concepções de “defesa

activa”, inovações essas como, segundo observou João Gouveia Monteiro: o aumento

do número de torres no perímetro amuralhado, possibilitando o ataque a agressores que

se encontrassem na base das muralhas; a construção de cubelos ou torreões cilíndricos,

permitindo um ângulo de tiro mais amplo; um alargamento do espaço nos adarves ou

nos caminhos de ronda, conferindo uma maior capacidade de circulação aos

combatentes que por aí se movimentavam; o surgimento de ameias de corpo largo,

protegendo com maior eficácia os atiradores e incorporando no seu centro seteiras,

propícias aos disparos de arqueiros ou besteiros; e a difusão de balcões, principalmente

na zona das portas, com matacães, “aberturas arredondadas” através das quais os

sitiados poderiam desferir tiros directos do pavimento superior aos adversários que se

encontrassem nas portas220. Para além destas inovações, os castelos dos finais do século

XIV e inícios do XV começaram a ser construídos, reparados ou remodelados tendo em

conta a crescente utilização de armas pirobalísticas, rasgando no pano das muralhas

buracos redondos apelidados de troneiras, através dos quais eram disparados trons,

fazendo muros um pouco mais baixos e engrossando-os (reduzindo a possibilidade dos

sitiantes acertarem nos muros e fortalecendo-os, respectivamente), e erigindo barreiras

ou barbacãs em determinados pontos considerados mais importantes da muralha, em

geral, no caminho de torres ou portas221. Ainda no período do castelo gótico, as torres

distribuídas ao longo das muralhas foram sendo construídas com intervalos cada vez

menores, para além de as próprias torres serem edificadas com uma maior área e altura.

A partir deste período, de acordo com Philippe Contamine, as torres passaram a

constituir unidades de defesa autónomas 222 , ligadas entre si através das galerias

219 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 227. 220 Idem, A guerra em Portugal - nos finais da idade média, pp. 337-338. 221 Idem, Ibidem, p. 338. 222 Tal como é demonstrado no cerco a Ponte de Lima em 1385, numa localidade que, não tendo castelo,

tinha torres, as quais João I, após já ter conseguido entrar nas muralhas, teve de conquistar até à última.

CDJ I, 2ª, caps. XV-XVIII, pp. 29-37.

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superiores das muralhas223. O cerco de Ponte de Lima de 1385, após a entrada das

forças de D. João I na vila, foi o palco de um combate pelas várias torres da vila, “que

eram muy fortes e fornecidas darmas e de gemtes”224.

Assim, era de extrema importância que o “pano da muralha, as torres, a barbacã,

as portas, e tudo o mais que tradicionalmente protegia os defensores [estivessem] em

boas condições para resistir ao assalto inimigo”225. Para que uma guarnição sitiada

conseguisse eficazmente resistir ao assédio adversário, era então necessário garantir o

bom estado de conservação dos elementos defensivos que tinha à sua disposição (os

seus muros, as suas torres, as suas barbacãs, etc.). Este aspecto assumia uma elevada

importância para os sitiados que se traduzia no facto de os preparativos para a

resistência a um assédio começarem exactamente pelas reparações ou reforços destes

elementos226, dando especial atenção às partes mais degradadas das muralhas, e ainda a

construção de estruturas improvisadas, como os caramanchões, dos quais falaremos

adiante, que conferiam ainda mais vantagens aos defensores da praça227.

Uma das outras preocupações iniciais de uma guarnição pertencente a uma praça

ameaçada de ser alvo de um cerco seria o bloqueio do maior número possível de

aberturas e passagens para dentro das muralhas e a desobstrução de todo o terreno em

volta destas no lado interior, de forma a permitir a rápida circulação por parte dos

combatentes sitiados e elementos que auxiliavam na defesa do local, tanto nas bases das

muralhas como no topo destas228. Por exemplo, as forças de D. João I que atacam Ponte

de Lima em 1385 têm somente uma porta por onde entrar na vila, pois todas as outras

“estauom çarradas com pedra”229. Para além das medidas de desobstrução dos espaços

próximos dos muros, eram também destruídos todos os tipos de edifícios que estivessem

223 CONTAMINE, Philippe, War in the Middle Ages, p. 114. 224 CDJ I, 2ª, cap. XVIII, p. 34. 225 MONTEIRO, João Gouveia, A guerra em Portugal – nos finais da idade média, p. 344. 226 Nas Siete Partidas, no Título XVIII da Segunda Partida, a Lei XV estabelece a necessidade de uma

célere reparação das estruturas em caso de guerra, e refere que em caso de algo ser derrubado, os homens

que no castelo se encontrassem deveriam logo acorrer ao local e repará-lo. Mesmo em tempo de paz, caso

o senhor não ordenasse as reparações, os homens que se encontrassem no castelo deveriam repará-las.

AFONSO X, Las Siete Partidas Del Sabio Rey Don Alonso El Nono / Nvevamente Glosadas Por El

Licenciado Gregorio Lopez, Del Consejo Real de Indias de su Magestad, Vol. I, em Madrid por Juan

Hasrey, 1610-1611, Segunda Partida, Titulo XVIII – “qual deue el pueblo ser en guardar, e en bastecer, e

en defender los castillos e las fortalezas del rey e del reyno”, Lei XV – "Como los castillos deuen ser

acorridos e labrandolos", fls. 59v-60. 227 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 227. 228 CONTAMINE, Philippe, War in the Middle Ages, p. 107. 229 CDJ I, 2ª, cap. XV, p. 29.

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encostados ou próximos do pano das muralhas230 , para impedir os atacantes de os

tomarem e utilizarem para seu benefício231. No exterior das muralhas, essas casas e

outros edifícios, assim como pomares, dificultavam a defesa aos sitiados, pois

permitiam aos atacantes aproximarem-se das muralhas com a protecção desses edifícios

e ainda utilizá-los para facilitar o acesso ao topo das muralhas ou para encetar acções de

sabotagem a partir do interior destes contra os muros e as torres da praça cercada, como

a escavação de minas232. Ao mesmo tempo, era necessário reparar, reforçar ou construir

plataformas, passagens levadiças ou paliçadas, e era dada também uma especial atenção

às portas da localidade, sendo comum o seu bloqueio e a presença de homens e

armamento nas torres onde essas portas se localizavam ou nas que as flanqueavam, e

ainda a construção de barreiras, barbacãs, fossos e valas à frente destes elementos

defensivos, bem como muros interiores e aberturas por cima de portas (através das quais

os sitiados poderiam fustigar os atacantes que destas se aproximassem)233.

Observemos agora algumas medidas relacionadas com a defesa ao cerco

castelhano a Lisboa em 1384. O anterior cerco de Lisboa, no ano de 1373, causou

grandes estragos na cidade, não só ao nível dos seus edíficios, mas também nas suas

muralhas, resultando assim na necessidade de encetar um plano de reconstrução

significativo que permitisse uma defesa mais eficaz e segura em caso de a cidade ser de

novo ameaçada por uma força inimiga. Assim, D. Fernando ordenou a construção de

uma nova cerca, que acabaria por ficar conhecida como a Cerca Fernandina, e que

“alterou por completo a fisionomia da cidade, rodeando-a de um perímetro amuralhado

que abrangia a totalidade das edificações existentes, mas que deixava ainda grandes

espaços por urbanizar”234. Esta cerca seria testada onze anos depois, no novo cerco

castelhano à cidade, estando ainda em boas condições aquando da chegada de Juan I às

imediações da urbe e do início do subsequente cerco235. Às torres da cidade236 (77, de

230 No cerco de Lisboa de 1373, D. Fernando ordena a demolição de várias casas que se encontravam

encostadas à Cerca Moura e à barbacã, mesmo contra a vontade dos respectivos proprietários, para evitar

a existência de estruturas próximas das muralhas que permitissem às forças castelhanas aproveitarem-nas.

MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, p. 280. 231 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 227. 232 CONTAMINE, Philippe, War in the Middle Ages, p. 107. 233 Idem, Ibidem, e MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira

(1449) - Os Desafios da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 227. 234 MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, p. 293. 235 Idem, Ibidem, pp. 293-294. 236 Para além do hasteamento de bandeiras de São Jorge, bandeiras com as armas de Portugal e de Lisboa

no castelo e em algumas torres, em casos em que um nobre tivesse a seu cargo a defesa de uma torre teria

os seus próprios sinais no topo dessa torre, representando a divisão de tarefas e a atribuição do comando

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acordo com Fernão Lopes 237 ) que se encontravam ao longo da muralha foram

acrescentados caramanchões 238 no seu topo que permitiam um disparo directo aos

combatentes castelhanos que se aproximassem da base das muralhas, pois

possibilitavam ângulos de disparo diferentes e também com maior amplitude. Para além

disso, os caramanchões estavam apetrechados com diversos tipos de armas ofensivas e

defensivas, como escudos, bacinetes e armaduras, lanças, lanças de armas, dardos e

bestas, e também trons e os seus respectivos projécteis239. É construída também uma

barbacã entre as muralhas e o local onde se instalaria o arraial castelhano, indo desde a

porta de Santa Catarina até à Torre de Álvaro Pais, percorrendo uma distância de cerca

de 400-600 metros240. São ainda erguidas duas barricadas junto ao rio, perpendiculares a

este e em ambos os extremos da cidade, para impedir o acesso à praia e a ocupação

desta pelos castelhanos nas proximidades da cidade, procurando assim estorvar o

transporte de reforços e mantimentos naquela zona241, e utilizando para a sua construção

madeiras de diversas proveniências, vinda dos armazéns do rei e de particulares, e todo

o tipo de objectos de madeira aos quais tiveram acesso, “como era corrente em situações

de cerco”242. Para além destas construções e adições, é ainda improvisada nas portas de

Santa Catarina, que eram as portas mais próximas do arraial castelhano (tornando-as no

principal ponto de partida de sortidas), uma enfermaria improvisada para prestar um

célere apoio e tratamento aos combatentes que regressavam à cidade243.

No entanto, citando Miguel Gomes Martins, “de nada serviria um conjunto

eficaz de estruturas fixas de defesa se nelas não se encontrasse uma guarnição capaz e

motivada, auxiliada por uma população cooperante”244. Era então necessário conjugar as

estruturas fixas de defesa de que os sitiados dispunham com uma guarnição fiel e

preparada para combater, com uma dimensão considerável (auxiliada ainda pela

população local, como já foi referido no anterior capítulo o exemplo da participação de

vários elementos da população lisboeta na resistência ao cerco de 1384), que permitisse

de determinadas torres e portas a elementos proeminentes da guarnição sitiada. CDJ I, 1ª, cap. CXV, p.

196. 237 CDJ I, 1ª, cap. CXV, p. 196. 238 “galerias de madeira de onde era possível efectuar tiro vertical sobre os inimigos que se aproximassem

da base dos muros”, MARTINS, Miguel Gomes, A vitória do quarto cavaleiro: O cerco de Lisboa de

1384, Prefácio, Lisboa, 2006, p. 28. 239 Idem, Ibidem. 240 “que sseriam dous tiros de beesta”, CDJ I, 1ª, cap. CXV, pp. 197-198. 241 MARTINS, Miguel Gomes, Lisboa e a Guerra. 1367-1411, p. 87. 242 Idem, A vitória do quarto cavaleiro: O cerco de Lisboa de 1384, p. 29. 243 Idem, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, p. 313. 244 Idem, Lisboa e a Guerra. 1367-1411, p. 86.

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a defesa da fortaleza e das suas muralhas, e que possibilitasse vigias, nocturnas e

diurnas, eficazes245, para ser possível assim fazer face ao assédio inimigo246. É uma

guarnição como essa que, por exemplo, resiste a um assédio de quase quatro meses247

no cerco de Torres Vedras de 1384/1385248, frustrando as várias tentativas do Mestre

para conquistar a praça ao longo desse tempo, acabando as forças sitiantes por

abandonar este cerco sem terem concretizado o seu objectivo249.

A vigilância das fortalezas estava geralmente a cargo do alcaide (em alguns

casos, fosse pela natureza do concelho ou da posição estratégica do local, poderia estar a

cargo de homens bons da localidade), e, em tempo de guerra, era necessária uma

vigilância constante e apertada250, fazendo com que o alcaide convocasse os moradores

do lugar e do termo (juntando-se ainda as pessoas que se refugiavam naquele momento

no local) para estes prestarem o serviço de “vela”, “rolda” e guarda de portas251, não só

nas muralhas e nas torres, mas também no castelo. Assim, “a obrigação de velar e roldar

os castelos acabava por tocar gente que vivia bastante longe da fortaleza em causa, mas

cuja colaboração era considerada imprescindível” 252 . Havia, no entanto, algumas

excepções, aplicáveis a membros das ordens religiosas, servidores dessas mesmas

ordens, de fidalgos e também de ordens militares, moradores ou trabalhadores de

245 No caso de Ponte de Lima, aquando do cerco realizado em 1385 por D. João I, a vila era guardada da

seguinte forma: a guarda era feita por membros da vila e do termo, e de manhã cinco peões percorriam as

redondezas à procura de ciladas ou de inimigos. Após garantirem que nada havia, voltavam à vila e os

que estavam de guarda durante a noite iam dormir. CDJ I, 2ª, cap. XVII, pp. 31-32. 246 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 227. 247 WERMERS, Manuel Maria, "Nun'Álvares Pereira. A sua cronologia e o seu itinerário", Lusitania

Sacra, 1ª Série, nº5 (1960-1961), Centro de Estudos de História Eclesiástica, Lisboa, 1961, p. 31. 248 CDJ I, 1ª, cap. CLXIX, CLXXIII, CLXXIV, pp. 317-319, 324-325, 325-327. 249 “Joham Duque que a villa por elRei de Castella tiinha, era huũ fidallgo castellaão bem acompanhado

dhomeẽs darmas e peoões e beesteiros, que pera deffemssom do logar eram assaz abastamtes”, Idem,

Ibidem, cap. CLXIX, p. 317. 250 No caso do cerco de Lisboa de 1384, o Mestre ordena que as vigias fossem repartidas entre fidalgos e

“çidadaãos homrrados”, liderando grupos de “beesteiros e homeẽs darmas”, fazendo com que todos os

elementos da guarnição fossem chamados a exercer esta função e garantindo assim que tanto as torres

como as muralhas estariam sempre sob vigia, mesmo que fossem poucos elementos, mas garantindo uma

resposta e rápida afluência de combatentes, através do aviso de sinos presentes ao longo das muralhas, em

caso de alarme. Idem, Ibidem, cap. CXV, p. 196. 251 João Gouveia Monteiro, contrariando pensamentos e historiografia anteriores, considera que a vela e a

rolda eram acções distintas. A primeira consistia na colocação de um número reduzido de sentinelas,

cerca de duas, em torres, geralmente nas maiores e nas principais, especialmente nas que estivessem nas

proximidades de portas, a partir das quais poderiam vigiar as torres, as portas e as possíveis investidas dos

sitiantes. A segunda consistia numa acção móvel, ao contrário da vela, que era estática, na qual algumas

sentinelas, também à volta de duas, procediam à vigilância dos muros e dos lanços de muralhas entre

torres, mediante uma constante deambulação em vaivém. MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV

(1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios da Maturidade", in Nova História Militar de

Portugal, Vol. I, p. 178. 252 Idem, Ibidem.

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reguengos, profissionais de determinados ofícios, indivíduos de idade avançada ou em

fraca condição física, e, ainda, habitantes de localidades fronteiriças ou pouco povoadas.

As velas e as roldas ocorriam à noite, sendo assim necessário um estabelecimento de

turnos253, começando logo ao cair da noite e terminando ao raiar do dia. A vigilância era

uma missão de elevada importância no contexto de cerco, existindo mesmo a supervisão

dos elementos que participavam nas acções de vigilância, estando este controlo a cargo

das “sobrevelas” e das “sobreroldas”, que, periodicamente e através de chamamentos,

provavelmente codificados, iam verificando se as sentinelas estavam acordados e

atentos. Por altura do assalto furtivo a Portel em 1384, as roldas eram compostas por

castelhanos que iam supervisionando as velas, compostas por portugueses naturais do

local254. Os alcaides tinham também o cuidado de não colocar as mesmas sentinelas

repetidamente nos mesmos locais, numa medida que visava impedir a acomodação e o

surgimento de rotinas, que poderiam resultar num desleixo nas suas funções, além de

reduzir os riscos de uma possível traição255. A vigilância e guarda das portas também

eram preocupações bastante relevantes para as guarnições sitiadas. As portas eram

geralmente todas fechadas durante a noite, sendo as chaves destas portas entregues a

indivíduos considerados leais, e durante o dia somente algumas portas, tidas como

essenciais às movimentações de homens e animais, se mantinham abertas, sendo

necessário garantir a guarda destas passagens abertas com um destacamento de

combatentes que teriam como função o controlo rigoroso das entradas e saídas de

pessoas da praça; as torres que se encontrassem em cima de portas eram também

reforçadas com mais combatentes ainda e material bélico, procurando assim dissuadir

ou neutralizar prontamente qualquer situação que surgisse na respectiva porta256. Em

253 De acordo com João Gouveia Monteiro seriam, geralmente, três turnos por noite, de três a quatro

horas, mas que podiam variar bastante, tendo em conta as condições climatéricas ou a estação do ano, a

extensão e o estado de conservação da muralha, ou o número de combatentes disponíveis. MONTEIRO,

João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios da Maturidade",

in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 178. 254 CDJ I, 1ª, cap. CLVII, p. 295. 255 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 17 256 Durante o cerco de Lisboa de 1384, das 38 portas que Fernão Lopes afirma terem existido nesse

período em Lisboa [de acordo com o Atlas de Cidades Medievais Portuguesas, Lisboa naquela época

tinha 3 portas na alcáçova, 9 (7 portas e 2 postigos) na cerca Moura, 11 (9 portas e 2 postigos) na cerca

Dionisina, e 30 (16 portas e 14 postigos), na nova cerca Fernandina, MARQUES, A. H. de Oliveira,

“Lisboa”, in Atlas de Cidades Medievais Portuguesas, dir. de A. H. de Oliveira Marques, Iria Gonçalves

e Amélia Aguiar Andrade, Instituto Nacional de Investigação Científica, Lisboa, 1990, p. 55], 12 estavam

abertas todo o dia, com o Mestre à noite a encarregar alguém da sua confiança de as ir fechar e devolver

as respectivas chaves a D. João, que tinha em sua posse todas as chaves da cidade, exceptuando as de

algumas portas, cujas chaves ficavam durante a noite com homens leais para a eventualidade de terem de

ser abertas, pela chegada de mantimentos a coberto da escuridão. CDJ, 1ª, cap. CXV, p. 197.

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conjugação com a vigilância de muros, torres e portas, era também feita uma vigilância

do território circundante, através das atalaias, diurnas, e das escutas, nocturnas, para

poder conhecer de antemão as movimentações inimigas e assim evitar que estes se

aproximassem da praça sem conhecimento prévio, visto que “a guerra praticada na

Península Ibérica durante a Idade Média era uma guerra sustentada por ataques de

surpresa e por golpes de mão fulgurantes, [daí ser] indispensável garantir uma boa

vigilância nocturna do território em redor das fortificações, especialmente quando se

suspeitava de que o inimigo andava (ou podia surgir) por perto”257.

Para além da reparação ou remodelação das estruturas fixas de defesa e da

organização da vigilância e guarda da praça e dos territórios circundantes, aquando da

ameaça de um cerco, os sitiados procuravam também recolher dentro das suas muralhas

os habitantes dos arrabaldes e das povoações mais próximas258, aumentando assim o

número de indivíduos que pudessem contribuir para a defesa do local. Do mesmo modo,

juntava-se todo o tipo de mantimentos, garantindo uma boa reserva de alimentos para os

sitiados e impedindo os sitiadores de aproveitarem esses mesmos recursos. A

importância da existência de uma reserva considerável e variada de mantimentos é

visível nas palavras de João Gouveia Monteiro, que refere que “Pode, assim, dizer-se

que o resultado de um cerco começava a decidir-se na forma como a praça sitiada se

encontrava abastecida, em particular de certos géneros alimentícios de primeira

necessidade, tais como o pão, a carne e o peixe (muitas vezes salgados), o sal, óleo,

legumes e, evidentemente, água, muita água (especialmente caso a praça não dispusesse

de cisterna própria, ou não tivesse acesso a uma nascente, a uma fonte ou a uma

qualquer linha de água)”259 . Com a chegada dos refugiados à praça, as bocas que

necessitavam de alimento aumentavam, o que, aliado ao facto de o cerco que se seguiria

dificultaria ou impediria mesmo a recolha de mais mantimentos, conferia uma

importância fulcral à recolha prévia de todo o tipo de mantimentos da região para, por

um lado, os sitiados poderem assim resistir mais tempo e não terem de depender de

257 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, pp. 177-179. 258 Uma das primeiras medidas tomadas pelo Mestre, após ter abandonado o cerco de Alenquer em

direcção a Lisboa para organizar a defesa da cidade perante a iminência do cerco, foi ordenar a todos os

moradores do termo de Lisboa que se refugiassem dentro das muralhas da cidade, trazendo todos os

mantimentos que pudessem carregar consigo: “Oo! Que doorida cousa era desguardar, veer de dia e de

noite, tamtos homeẽs e molheres viir em manadas pera a çidade com os filhos nos braços e pella maão, e

os pais cõ outros aos pescoços, e suas bestas carregadas dalfayas e cousas que trager podiam!”, CDJ I, 1ª,

Cap. LXX, p. 121. 259 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 227.

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auxílio exterior, e, por outro, impedir os sitiantes de poderem usufruir dos víveres que a

população, em fuga, teria deixado para trás na região. Nestes mantimentos, a prioridade

era dada a que fossem recolhidas as maiores quantidades possíveis de pão, carne

(principalmente salgada) e vinho260.

Para este efeito, o Mestre de Avis, antes do cerco de Lisboa de 1384, aplicou

algumas medidas para conseguir abastecer o melhor possível a cidade para o assédio

que se avizinhava. Por exemplo, o Mestre envia para a região do Ribatejo barcas e

batéis para recolherem gado morto, que era posteriormente colocado em tinas e salgado,

para se conservar mais tempo261; incentiva a captura de navios que se encontrassem nas

proximidades, sendo exemplo disso a apreensão de embarcações de mercadorias

castelhanas e, noutra ocasião, genovesas, antes do início do cerco262; concede a isenção

dos pagamentos de portagem, usagem e costumagem aos lisboetas, procurando motivar

mercadores a transportarem ainda mais mantimentos para a cidade263; e ordena a ida de

vários combatentes a locais que tivessem voz por Castela nas proximidades de Lisboa,

para aí procurarem mantimentos que apoiariam os seus adversários, sendo exemplo

disso a ida de Nuno Álvares Pereira, juntamente com 300 lanças, entre escudeiros e

cidadãos, e alguns combatentes a pé, ao termo de Sintra, onde “apanhou muitos

mantiimentos de gaados e triigo, e outras cousas de comer” 264 . Era ainda comum

proceder-se à destruição de largas quantidades de produtos agrícolas e cabeças de gado

que não podiam ser transportados para dentro da praça, impedindo assim também os

sitiantes de aproveitarem esses mesmos mantimentos 265 . Embora fora do período

estudado, durante a Guerra Civil de 1319-1324, o futuro D. Afonso IV, ao chegar a

Tomar para cercar a localidade, encontrou uma região desprovida de quaisquer

mantimentos, tanto para os seus efectivos como para as suas montadas, “em resultado

260 MONTEIRO, João Gouveia, A guerra em Portugal – nos finais da idade média, p. 342. Nas Siete

Partidas, no Título XVIII da Segunda Partida, a Lei X estabelece que o alcaide deveria garantir que no

seu castelo, em tempos de paz e de guerra, existissem sempre mantimentos em quantidades consideráveis,

como carne, pescado, pão, legumes, sal e azeite. O alcaide deve ainda garantir a existência de aparelhos

de produção e cozinha de comida, como moinhos ou lenha e carvão. AFONSO X, Las Siete Partidas,

Segunda Partida, Titulo XVIII – “qual deue el pueblo ser en guardar, e en bastecer, e en defender los

castillos e las fortalezas del rey e del reyno”, Lei X – “En que manera deuen ser bastecidos los castillos de

viandas: e de todas las otras cosas que son menester”, fls. 58-58v. 261 MARTINS, Miguel Gomes, Lisboa e a Guerra. 1367-1411, p. 94 e CDJ I, 1ª, cap. CXV, p. 195. 262 MARTINS, Miguel Gomes, Lisboa e a Guerra. 1367-1411, p. 94 e CDJ I, 1ª, cap. LXIX, pp. 118-119. 263 MARTINS, Miguel Gomes, A vitória do quarto cavaleiro: O cerco de Lisboa de 1384, p. 29. 264 CDJ I, 1ª, Cap. LXXI, p. 122 265 Embora não se encontrem registos da aplicação desta medida antes do cerco de Lisboa de 1384,

Miguel Gomes Martins considera que existe a possibilidade de tal ter ocorrido, visto que no cerco de

1373 o mesmo foi feito. MARTINS, Miguel Gomes, A vitória do quarto cavaleiro: O cerco de Lisboa de

1384, p. 29.

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da recolha feita pela população local”, que destruiu ainda diversos bens e também

“meios de produção, como as segurelhas dos moinhos, de modo a que o inimigo não

pudesse moer os cereais que, eventualmente, pudesse encontrar”266.

Mas, mais importante do que qualquer tipo de mantimento, assegurar o

abastecimento de água, de preferência em abundância, era a tarefa mais relevante nesta

fase267, sendo bastante proveitosa a existência dentro das muralhas de fontes perenes,

poços ou cisternas, ou, caso se encontrassem fora dos muros, garantir a protecção destas

fontes, fosse pelo lançamento de projécteis vindos das torres e das ameias das muralhas,

ou mesmo através da existência de uma pequena fortificação no local268. No caso do

cerco de Almada em 1384, a vila, embora estivesse bem aprovisionada, tendo

quantidades consideráveis de pão, vinho, carnes, etc., somente podia contar com uma

pequena cisterna para o abastecimento de água, o que levou a um racionamento muito

cuidado do seu consumo, que, contudo, foi na mesma insuficiente para poder resistir ao

assédio castelhano269. No cerco de Chaves de 1386, D. João I ordenou a construção de

uma bastida na margem do rio Tâmega para impedir o acesso à água por parte dos

sitiados, motivando-os a, eventualmente, realizarem uma sortida tendo em vista a

destruição daquele engenho, com sucesso, conseguindo assim restabelecer a recolha de

água270.

Para além da recolha de mantimentos e mais elementos para a defesa da praça e

de assegurar o acesso a fontes de água, a guarnição tinha também a necessidade de

recolher armas e munições em grande quantidade, não só armamento individual, mas

também pedras (para serem disparadas pelos engenhos e para serem directamente

arremessadas sobre os sitiadores quando estes se aproximassem das portas ou da base

das muralhas) e ainda líquidos e materiais inflamáveis 271 . A existência destes na

fortaleza permitia à guarnição a construção ou reparação de estruturas, instrumentos,

266 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em

Portugal na Idade Média, p. 227. 267 Nas Siete Partidas, no Título XVIII da Segunda Partida, a Lei X refere a importância do castelo estar

bem abastecido de água, “que es cosa, que pueden menos escusar que las otras”, alertando-se ainda para o

facto de que em caso cerco, para além das ameaças externas, a guarnição do castelo poderá começar a

guerrear-se pela água restante e por isso a água deve ser bem guardada e racionada. AFONSO X, Las

Siete Partidas..., Segunda Partida, Titulo XVIII – “qual deue el pueblo ser en guardar, e en bastecer, e en

defender los castillos e las fortalezas del rey e del reyno”, Lei X – “En que manera deuen ser bastecidos

los castillos de viandas: e de todas las otras cosas que son menester”, fls. 58-58v. 268 MONTEIRO, João Gouveia, A guerra em Portugal – nos finais da idade média, p. 343. 269 CDJ I, 1ª, cap. CXXXVI, pp. 233-234. 270 CDJ I, 2ª, caps. LXIV, LXV, pp. 154-155. 271 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, pp. 227-228.

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projécteis e máquinas de guerra essenciais à defesa da praça, garantindo assim a

possibilidade de contrariarem a eventual destruição que os sitiantes iriam causar nas

estruturas de defesa do local. Destes materiais, era dada prioridade à madeira, na forma

de vigas e tábuas, mais pregos, tanto para o fabrico de engenhos ou rodas, como para a

construção ou melhoramento das estruturas defensivas, ferro e carvão para armas,

alcatrão, azeite, enxofre e pez utilizados para incendiar e queimar engenhos adversários

e os próprios combatentes sitiantes, cordas feitas de nervos e tendões de animais para

serem utilizadas em engenhos de arremesso por torsão, e couros crus que serviam como

protecção para as máquinas de guerra sitiadas272.

Estando todos os preparativos e medidas aplicadas, o melhor possível dentro das

suas possibilidades, tanto pelos sitiantes como sitiados, as forças de ambos os lados

encontravam-se assim preparadas para, respectivamente, cercar e resistir a um conflito

com um desfecho e duração imprevisíveis, devido a uma miríade de variáveis,

condições e situações que testariam todos os envolvidos em vários aspectos ao longo do

assédio que se iniciava. Para terminar este capítulo, adequam-se as palavras de Fernão

Lopes acerca do início do cerco de Lisboa de 1384: “Oo que fremosa cousa era de veer!

Huũ tam alto e poderoso senhor como he elRei de Castella, com tamta multidom de

gemtes assi per mar come per terra, postas em tam gramde e boa hordenamça, teer

çercada tam nobre çidade. E ella assi guarneçida comtra elle de gemtes e darmas com

taaes avisamentos por sua guarda e deffenssom; em tamto que diziam os que o virom,

que tam fremoso çerco de çidade nom era em menoria dhomeẽs que fosse visto de mui

lomgos anos ata aquell tempo”273.

272 MONTEIRO, João Gouveia, A guerra em Portugal – nos finais da idade média, p. 345. 273 CDJ I, 1ª, cap. CXV, p. 198.

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CAPÍTULO III – AS INCÓGNITAS E OS PERIGOS NO ARRASTAR DOS CERCOS

Neste capítulo teremos a oportunidade de compreender os vários perigos e riscos

que corriam os participantes nas operações de cerco. Começando pela duração dos

cercos ocorridos no período estudado (no qual estudaremos problemas surgidos graças

ao arrastar das operações, incluindo-se ainda as sortidas e escaramuças, assim como a

acção dos espiões na guerra de cerco), veremos também como as estações do ano

poderiam influenciar o desenrolar do cerco, e, ainda, o peso que situações de sede, fome

ou doenças teriam ao longo destes episódios. Assim, tenciona-se transmitir o ambiente e

as relações entre os intervenientes nas operações e os riscos a que estes se sujeitavam.

Ao iniciar-se um cerco, nenhuma das partes teria, à partida, uma ideia exacta do

quanto esse conflito se iria prolongar. Todas as características das forças em confronto,

as suas dimensões, mantimentos e armamentos disponíveis, a aplicação de determinadas

práticas ofensivas e defensivas, bem como as condições climatéricas e outras

vicissitudes a que os combatentes poderiam estar sujeitos, tornavam estes episódios

militares em eventos de duração variável e bastante imprevisível.

De entre os 39 eventos militares estudados neste período 274 , 14 foram

considerados como tomadas de localidades ou fortalezas (caracterizadas por confrontos

de rápida resolução, não durando mais do que um dia, e que envolviam, geralmente,

apenas o assalto ao respectivo alvo, como as tomadas, em 1384, do castelo de Évora275,

Arronches 276 ou Monsaraz 277 , entre outros), e os outros 24 278 como cercos

(caracterizados por uma permanência de combatentes sitiantes em redor do alvo, que

decorre durante um determinado período superior a um dia, e confinando os sitiados ao

seu espaço amuralhado ou à fortaleza, bloqueando movimentações para dentro ou para

fora do local, como os cercos de Lisboa de 1384279, Torres Vedras, em 1384/1385280, ou

274 Para uma melhor compreensão, remetemos para o “Quadro 5 – Durações, Datas, Estações e Resultados

dos Episódios”, nos Anexos. 275 CDJ I, 1ª, caps. XLIV e XLV, pp. 77-80. 276 Idem, Ibidem, cap. XCVI, pp. 161-162. 277 Idem, Ibidem, cap. CXLIII, pp. 256-257. 278 Excluindo a tentativa de cerco ao Porto, Idem, Ibidem, CXVIII-CXXIII, pp. 202-212. 279 Idem, Ibidem, caps. CXXXVI, CXXXVII, CXXXIX, CXL, CXLI, CXLII, CXLVIII, CXLIX, CL, pp.

235-237, 237-238, 242-247, 247-249, 249-252, 253-255, 268-271, 271-273, 273-276. 280 Idem, Ibidem, caps. CLXIX, CLXXIII, CLXXIV, CLXXX, pp. 317-319, 324-325, 325-327, 339-341.

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Guimarães, em 1385 281 , entre outros). Considerando 22 dos cercos convencionais

estudados282 , encontramos durações (algumas exactas, outras aproximadas) bastante

díspares, tendo, num extremo, por exemplo, os cercos de Portel, Braga e Ponte de Lima,

no ano de 1385, com uma duração de 3 dias. No extremo oposto, encontramos o cerco

de Torres Vedras de 1384/1385, que se prolongou por cerca de 106 dias, o cerco de

Chaves de 1386 que decorreu ao longo de um período de 105 dias, ou ainda o cerco de

Lisboa de 1384, estando a cidade completamente cercada por 100 dias283. Fazendo uma

média da duração dos cercos estudados neste período e no contexto desta dissertação,

chegamos a um resultado de cerca de 35 dias. No entanto, e como já foi referido, os

cercos tinham durações bastante desiguais entre si, tendo 8 deles uma duração igual ou

inferior a uma semana284. Assim sendo, uma média feita somente com os outros 14

cercos, os que se prolongaram por mais do que uma semana285, apresenta-nos uma

duração média de cerca de 52 dias. É possível então depreender que, em média, os

cercos mais longos estudados neste período representavam um confronto que poderia

durar aproximadamente cerca de dois meses, um largo intervalo de tempo ao longo do

qual tanto sitiados como sitiantes estariam sujeitos a uma panóplia de dificuldades que

poriam em risco a vida dos intervenientes, podendo estas serem escaramuças ou os

assaltos, bem como a fome, a sede ou diversas enfermidades.

Para os sitiados o prolongar do cerco iria, gradualmente, erodir a sua moral e a

sua capacidade de resposta e resistência, flagelados durante largos períodos pelo assédio

inimigo, através de assaltos dirigidos à praça-forte, ou pela destruição causada pelos

seus engenhos, pela fome e, por vezes, pela sede, o que resultava num avolumar do

281 CDJ I, 2ª, caps. X, XI, XII, XIII, pp. 19-28. 282 Não contando, uma vez mais, com a tentativa de cerco ao Porto e, ainda, com os cercos de Coimbra de

1384 e de Mértola de 1385, visto não ter encontrado nas fontes ou na bibliografia qualquer referência à

duração exacta ou aproximada destes episódios. 283 Estes 100 dias são contados a partir de 27 de Maio de 1384, dia a partir do qual Lisboa se encontra

totalmente cercada por terra e por mar (CDJ I, 1ª, cap. CXII e CXIII, p. 190). Fernão Lopes refere que o

cerco durou 4 meses e 27 dias, contando a partir do momento em que Juan I chega ao Lumiar, no dia 5 de

Abril (CDJ I, 1ª, cap. CL, p. 276). A presença de uma força avançada castelhana nas imediações da

cidade e na comarca, no entanto, é constatada através de alguns confrontos desde o dia 8 de Fevereiro

(CDJ I, 1ª, Cap. LXXI, pp. 122-123, e MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra

na Idade Média, p. 302). 284 Cerco do castelo de Lisboa de 1383, primeiro cerco de Alenquer de 1384, cerco de Portel de 1384,

cerco de Braga de 1385, cerco de Ponte de Lima de 1385, cerco de Benavente de Campos de 1387, cerco

de Villalobos de 1387, e cerco de Sotomayor de 1398. 285 Cerco de Lisboa de 1384, cerco de Almada de 1384, cerco de Vila Viçosa de 1384, segundo cerco de

Alenquer de 1384, cerco de Torres Vedras de 1384/1385, cerco de Guimarães de 1385, cerco de Elvas de

1385, cerco de Chaves de 1386, cerco de Coria de 1386, cerco de Melgaço de 1388, cerco de Campo

Maior de 1388, primeiro cerco de Tui de 1389, cerco de Salvatierra de 1398, e segundo cerco de Tui de

1398.

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número de baixas entre os defensores, conferindo aos sobreviventes uma perspectiva

pouco animadora em relação à probabilidade de resistirem ao cerco que não parecia ter

um fim à vista286.

Embora em muitos casos os sitiadores preferissem limitar as suas acções

ofensivas à permanência nas proximidades do seu alvo de cerco, não arriscando a vida

dos seus combatentes em assaltos directos e esperando pela rendição dos sitiados,

forçada pela fome, pela sede, ou por outros factores287, o arrastamento da acção poderia

resultar também num acumular de dificuldades para as forças sitiantes. Quando isto

sucedia, os sitiantes enfrentavam inúmeros problemas, o mais sério dos quais era, muito

provavelmente, a eventualidade da chegada de um exército de socorro com o objectivo

de forçar o levantamento do cerco.

O arrastar do cerco aumentava a probabilidade do surgimento de um exército

vindo em socorro dos sitiados que poderia forçar um fim prematuro do cerco, obrigando

os sitiantes a retirarem-se ou a serem sujeitos a um desfecho desse assédio numa batalha

campal contra as forças de auxílio e as forças sitiadas. A vitória para os sitiadores nesse

confronto poderia resultar na rendição imediata da fortaleza cercada, mas a derrota

significaria um rude golpe nas aspirações dos sitiantes e um consequente fim do cerco,

terminando este assim da pior maneira288, sendo um exemplo disto o cerco de Mértola

de 1385, no qual as forças atacantes portuguesas são vencidas por um exército de

socorro oriundo de Sevilha, levando à retirada das forças afectas a D. João I do local e,

assim, ao término da acção289.

A renovação dos efectivos era necessária quando os cercos duravam para além

do período de serviço a que determinados contingentes, como as mesnadas senhoriais

ou as milícias concelhias, estavam sujeitos. Nesses casos, os comandantes eram

obrigados, para manterem a sua força e poderem prosseguir com o assédio, a

procurarem convencer os membros dos contingentes que estariam de saída a

permanecerem em troca do pagamento de um soldo adicional proporcional ao período

de serviço necessário para o término do cerco ou a procurarem convocar outras forças

286 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em

Portugal na Idade Média, p. 268. 287 Idem, Lisboa e a Guerra. 1367-1411, p. 73. 288 Idem, A Arte da Guerra em Portugal - 1245-1367, pp. 437-438. 289 CRC, Juan I, Año Séptimo (1385), cap. IX, pp. 588-589.

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para substituir as que saíam ou as baixas sofridas290, como é o caso da convocação por

D. João I, quando já decorria o cerco de Chaves de 1386, das milícias concelhias de

Lisboa, Coimbra e Santarém291. Assim, o arrastamento do cerco fazia com que este se

tornasse ainda mais dispendioso, podendo obrigar alguns comandantes a abandonarem

os cercos por não terem capacidade financeira suficiente que lhes permitisse sustentar a

continuação da operação e a permanência das suas forças no local292.

A deserção entre os sitiantes era também um problema causado pelo

arrastamento da situação. O arrastamento do cerco influenciava vários combatentes,

“compreensivelmente impelidos pelo medo, mas também pela doença, pela fome e pelo

descontentamento causado pela inexorável passagem do tempo”293, a procurarem uma

forma de abandonar o cerco antes do término deste e ainda com vida, enfraquecendo

ainda mais o contingente dos sitiantes294, como veio a suceder no cerco de Coria de

1386295.

Um outro aspecto que contribuía para o arrastar do assédio era a resistência

demonstrada pelos agredidos e expressa, por exemplo, no lançamento de sortidas. A

missão dos sitiados ao longo do cerco não era “a adopção de uma postura de

passividade” 296 , esperando que as estruturas fixas de defesa de que dispunham

bastassem para que o inimigo fosse forçado a terminar o cerco, mas sim a tentativa de

frustração das acções ofensivas levadas a cabo pelos sitiantes e a resistência ao flagelo

por essas mesmas forças, procurando assim enfraquecer os seus adversários até ao ponto

em que estes fossem forçados a desistirem. O lançamento de sortidas, diurnas e

nocturnas, era uma das medidas de que as forças sitiadas dispunham para procurarem

290 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra em Portugal - 1245-1367, pp. 438-439. 291 Em relação aos reforços oriundos de Lisboa, “E logo per todos foy acordado que por sseruiço del-Rey

e honra da cidade lhe emvysassem trigosamente duzentas e dez lanças bem corregidas, as duzentas da

cidade e as dez da villa de Sint(r)a que estonçe era seu termo, e duzentos e cincoenta beesteiros e

duzentos homeens de pee e que fosse por capitaão destas gentes com a bandeira da cidade, de que era

alferez, Gonçallo Vaasquez Carregueiro (e) Steuam Vaasquez Filipe, anadal moor de todo o reyno, e que

leuassem duas trombetas e dous alueitares e dous ferradores e dous sselheiros e dous correheiros e huum

jogral; e todos pagados por tres meses, saber, março e abril e mayo, e trezenta(s) liuras cada lança por

aquell tempo, as duzentas e seteenta em dinheiro e as trinta lhe dauom em pano pera todos hirem dhuma

liuree pella guysa que foy acordado. E assy pagarom aos de Sintra que hiam em companha da bandeira da

cidade. E ao besteeiro dauom vijnte e cinquo liuras por mes, que eram cinquo dobras e ao homem de pee

vinte, que eram quatro”, CDJ I, 2ª, LXVI, cap. LXVI, p. 157. 292 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra em Portugal - 1245-1367, p. 438. 293 Idem, Ibidem, p. 439. 294 Idem, Ibidem, pp. 437-439. 295 O qual será abordado ainda neste capítulo na análise das doenças ocorridas num contexto de cerco 296 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra em Portugal - 1245-1367, p. 444.

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frustrar as acções dos sitiantes297. Olhando para a acção dos sitiados no cerco de Lisboa

de 1384, restava-lhes somente procurar repelir ataques castelhanos ou desencadear

sortidas, fazendo com que as acções militares de ambos os lados deste conflito

resultassem em escaramuças quase diárias 298 . Estas escaramuças ocorriam

frequentemente na guerra de cerco, de tal forma que estas se tornavam em episódios de

“exercícios de adestramento e de «desentorpecimento»”299.

No entanto, as sortidas, e consequentes escaramuças, não eram somente uma

quebra da rotina num contexto de cerco, ou ainda momentos propícios à demonstração

de habilidades bélicas e de bravura do indivíduo perante adversários e companheiros de

armas 300 . Em vários casos, essas operações eram desencadeadas tendo em conta

objectivos estratégicos que beneficiariam a defesa da praça. Em primeiro lugar, as

sortidas e as escaramuças permitiam aos comandantes analisarem as defesas montadas

pelos seus adversários e o seu arraial, bem como o seu armamento, o moral dos seus

combatentes, e, ainda, a sua capacidade bélica, possibilitando uma defesa mais eficaz

graças aos conhecimentos adquiridos nessas acções301. As sortidas eram também uma

forma de ir desgastando gradualmente as forças sitiantes, causando baixas nos inimigos,

embora em número reduzido, ou a captura de combatentes adversários (o que reduzia o

número de opositores, assim como encetar trocas de prisioneiros com o seu adversário,

e ainda, mediante a libertação através do pagamento de resgates, poderia ser uma fonte

de rendimentos extraordinária)302. Para além disso, as sortidas poderiam ser executadas

com propósitos mais peculiares, como a destruição ou inutilização de todo o tipo de

engenhos que os sitiantes aí tivessem303, a tentativa de impedimento da construção de

297 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra em Portugal - 1245-1367, pp. 444-445. 298 O facto de os episódios bélicos ocorridos ao longo do cerco de Lisboa de 1384 se reduzirem

principalmente à realização de escaramuças de pequena dimensão teve a particularidade de permitir, sem

pôr em causa o cerco à cidade, a utilização de vários combatentes castelhanos para, por um lado,

realizarem pilhagens e causarem destruição em todo o termo de Lisboa, e, por outro, cercarem também

Almada. Idem, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, pp. 313-314. 299 Idem, Ibidem. 300 Idem, Ibidem. 301 Idem, Ibidem, p. 288, e Idem, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em

Portugal na Idade Média, p. 264. 302 Idem, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em Portugal na Idade Média, p.

264. 303 No cerco de Chaves de 1386, uma sortida dos sitiados bem sucedida culmina com a destruição da

bastida de três andares construída sob as ordens de D. João I e que defendia a ponte sobre o rio Tâmega.

CDJ I, 2ª, cap. LXV, p. 155

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minas ou de formas de travessia de fossos ou cavas304, a recolha de mantimentos305, ou,

ainda, a tentativa de matar ou capturar o comandante da força sitiante306 para forçá-la a

abandonar o cerco307.

As sortidas tinham ainda uma outra função. Um dos aspectos fulcrais para a

resistência a um cerco era a reacção à pressão psicológica ofensiva, ou seja, resistir ao

medo causado pelo desfilar dos combatentes e engenhos inimigos e pela perspectiva das

dificuldades que iriam surgir ao longo do cerco. Uma das formas de tentar fomentar esta

resistência passava pela realização de uma sortida nos primeiros momentos do cerco,

“sacudindo temores e tornando pública uma grande disponibilidade para resistir”308. O

cerco de Lisboa de 1384 tem, logo nos seus primeiros instantes, enquanto as forças

castelhanas desfilavam à vista da cidade, uma violenta escaramuça que ocorre diante

das portas de Santa Catarina. À passagem das forças castelhanas, um contingente de

alguns homens de armas, besteiros e combatentes a pé das forças sitiadas coloca-se

diante das portas, mantendo-se o Mestre na torre que estava a cargo de Álvaro Pais para

poder observar os castelhanos. Juan I, ao ver que esta força lisboeta tinha saído da

cidade, estando à “vista delles, sem mostramdo que lhe aviã medo”, ordena o ataque a

esse contingente, mesmo com alguns conselheiros seus a procurarem dissuadi-lo de o

fazer, pois não entrariam na cidade. Embora as forças sitiadas contassem com apoio

vindo da muralha, na forma de lançamento de pedras, trons e virotões em direcção aos

combatentes castelhanos, as forças adversárias eram mais numerosas e o contingente

lisboeta acabaria por ficar encurralado entre as muralhas e as forças castelhanas, dando

origem a uma retirada em direcção à cidade. O Mestre, face a essa retirada

desorganizada e que poderia permitir a entrada de castelhanos na cidade, ordena o

encerramento das portas de Santa Catarina, obrigando assim as suas forças a colocarem-

se entre a muralha e a barbacã, defendendo-se mais acerrimamente contra o avanço

304 No 2º cerco de Alenquer de 1384, os sitiados, ao aperceberem-se da construção de uma cava por parte

dos sitiantes, saem da vila na direcção da cava para impedir a sua construção, dando-se início a uma

escaramuça. CDJ I, 1ª, cap. CLXVI, p. 314. 305 No cerco de Elvas de 1385, as forças sitiadas conseguem interceptar um carregamento de mantimentos

com destino ao arraial castelhano, um episódio que retomaremos mais adiante neste capítulo. CDJ I, 2ª,

cap. XXVI, pp. 52-53. 306 Embora não fosse resultar numa mera escaramuça e sim numa batalha campal, a situação de desespero

vivida dentro da cidade de Lisboa no cerco de 1384 levou o Mestre e os seus conselheiros a procurarem

encetar um derradeiro ataque contra o arraial castelhano através de uma sortida oriunda da cidade, em

conjugação com outros combatentes liderados por Nuno Álvares Pereira. CDJ I, 1ª, cap. CXLII, pp. 253-

254. 307 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em

Portugal na Idade Média, p. 264. 308 MONTEIRO, João Gouveia, A guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, p. 361.

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castelhano, e acabando por o suster. Eventualmente, as forças castelhanas retiram-se,

visto que a escaramuça já durava há algum tempo e estava a revelar-se infrutífera para

as aspirações dos sitiantes309.

As sortidas e as resultantes escaramuças, embora não fossem “momentos

decisivos de defesa da praça sitiada”310, acabavam por ser, devido às vantagens que

poderiam ser obtidas pelos sitiados, uma ocorrência recorrente ao longo de todo o

período de quase todos os cercos311, representando assim uma ameaça constante para os

sitiantes enquanto estes prosseguissem com o assédio, podendo arrastar o cerco até que

as forças sitiadoras não pudessem mais prosseguir o ataque.

A acção de espiões e agentes infiltrados tinha também a sua influência no

contexto da guerra de cerco, podendo causar o fim do cerco ou o arrastar deste. Estes

agentes eram uma peça importante no decorrer dos cercos, pois a recolha de informação

a respeito das estruturas defensivas locais (o seu estado de conservação ou número de

portas e torres), as dimensões das guarnições, os hábitos dos seus efectivos ou as suas

movimentações permitiriam a organização de acções que aproveitassem momentos

oportunos para desencadearem determinadas operações 312 . Para os sitiados, saber

quando o inimigo descansava ou comia, ou como decorriam e eram organizados os seus

turnos de vigia, possibilitava a realização de sortidas ao arraial adversário, aproveitando

o factor surpresa para procurarem causar o maior dano possível aos sitiantes e pegar

fogo às suas máquinas de guerra313. Por seu lado, os sitiados tinham também de ter em

atenção a presença de agentes adversários no interior da sua praça cercada, pois estes

espiões poderiam fazer a diferença no desfecho dos combates através do seu auxílio aos

sitiantes314.

No período estudado nesta dissertação, um exemplo que demonstra a eficácia da

acção dos espiões em cercos é o sucedido em de Torres Vedras em 1384/1385. Por duas

vezes, o Mestre de Avis ordena a construção de minas, em segredo, uma indo de uma

309 CDJ I, 1ª, cap. CXIII, pp. 190-192 310 MONTEIRO, João Gouveia, A guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, p. 361. 311 No cerco de Melgaço de 1388, por exemplo, ocorrem na primeira semana quatro escaramuças. CDJ I,

2ª, cap. CXXXIV, p. 275. 312 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em

Portugal na Idade Média, p. 190. 313 MONTEIRO, João Gouveia, A guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, p. 366. 314 MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, pp. 314-315.

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tenda no arraial até ao adro da igreja de Santa Maria, já no interior da vila315, e a outra

até às fundações da muralha e de uma torre, com o intuito de criar uma brecha no

perímetro fortificado 316 . Graças a elementos próximos do Mestre, a guarnição

castelhana, através de “sinaaes e outras emcubertas maneiras”, como, por exemplo, a

utilização de virotões com mensagens317, é avisada da construção do primeiro túnel e,

assim que as forças sitiadoras o completam e procuram entrar na igreja, os defensores

utilizam tábuas e portas para estorvar a saída e atiram água para apagar os fogos que os

sitiantes utilizavam para tentar destruir os pedaços de madeira que bloqueavam o túnel.

É ainda colocado um trom no túnel para ir destruindo os destroços, embora sem que

fizesse a diferença, pelo que os sitiantes abandonam esta manobra318. O Mestre ordena

então a construção de um novo túnel em direcção à muralha da vila, para lhe atear fogo

e tentar fazer desabar parte da muralha e uma torre. Uma vez mais, os defensores já

sabiam as intenções de D. João e reforçaram o local com uma bastida; perante a abertura

da brecha e as estruturas fixas de defesa provisórias aí colocadas, o Mestre acaba por

desistir de atacar 319 . Ainda no mesmo cerco, D. João ordenava que os engenhos

disparassem contra o muro e contra as torres, mas os elementos que estavam em conluio

com a guarnição sitiada pressionavam o Mestre a disparar somente contra a muralha da

vila, “e que per alli fariam huũ portall, per que emtrassem a tomar o castello”. O

encarregado pelos engenhos continuava a disparar tal como o D. João havia ordenado,

mas este, pela forte pressão daqueles “nom fiees comsselheiros”, acabaria por ordenar o

encarregado dos engenhos a disparar somente contra a muralha da vila e, que caso não o

fizesse, “o mamdaria lamçar na fumda do seu emgenho dentro no castello”, o que faria

com que o encarregado, “que por seu boom serviço lhe prometiam tall gallardom de que

ouve gram medo, fugio aquella noite e foisse pera Leirea”320.

Outras situações ocorreram ao longo deste período nas quais as acções destes

espiões ou agentes infiltrados mereceram destaque em diversas operações de cerco. Em

Lisboa, no cerco de 1384, D. Pedro de Castro, após a morte do seu pai D. Álvaro Peres

de Castro, conde de Arraiolos, fica encarregue da vigia de uma quadrilha entre as portas

de Santo André e Santo Agostinho. De acordo com Fernão Lopes, “dom Pedro de

315 CDJ I, 1ª, cap. CLXIX e CLXXIV, pp. 318 e 325-326. 316 Idem, Ibidem, cap. CLXXIV, p. 326. 317 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em

Portugal na Idade Média, p. 279. 318 CDJ I, 1ª, cap. CLXXIV, p. 326. 319 Idem, Ibidem, cap. CLXXIV, pp. 326-327. 320 Idem, Ibidem, cap. CLXXIV, p. 327.

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Castro com todos seus vassalos, por gramde cãtidade douro e de prata que delRei [Juan

I] avia de rreçeber, lhe tinha vemdida a dita çidade”, planeando permitir a entrada de

combatentes castelhanos na cidade pelo lanço de muralha que estava à sua guarda, na

noite de 14 para 15 de Agosto. O sinal para dar início à operação seria a colocação de

uma vela numa seteira, significando que era seguro prosseguir com o plano e um

contingente de sitiadores avança então com escadas para subir aos adarves. No entanto,

João Lourenço da Cunha, ex-marido da rainha D. Leonor, confessa, no leito da morte,

estar a par das acções de D. Pedro, fazendo com que o Mestre ordenasse a colocação de

efectivos nas proximidades do local, recebendo esta força avançada com “seetas e

pedras e outras cousas”, rechaçando-os e frustrando esta tentativa de assalto. D. Pedro

“ficou bem preso e arrecadado” e os seus companheiros foram todos expulsos da

cidade321.

O assalto furtivo a Portel, 1384322, e a entrada das forças de D. João I em

Guimarães, no início do cerco a esta vila em 1385 323 , casos que abordaremos no

próximo capítulo, foram bem sucedidas graças ao papel desempenhado por agentes

infiltrados. Também Ponte de Lima é um exemplo da acção fulcral destes agentes nas

operações de cerco. Na manhã de 19 de Maio de 1385, a vila é invadida por um

contingente liderado pelo monarca português através da acção de dois indivíduos, os

irmãos Estêvão e Lourenço Rodrigues, auxiliados no planeamento e na execução por

frei Gonçalo da Ponte, a esposa de Estêvão e um combatente local. Os dois irmãos

(juntamente com oito companheiros que acabariam por desistir de participar na

operação com receio de sofrerem represálias) planeiam a abertura da única porta da vila

que se encontrava em utilização a uma força de D. João, contando com o auxílio de frei

Gonçalo que viaja ao Porto para pôr o rei a par deste plano. Na data combinada, Estêvão

Rodrigues sai da vila sob o pretexto de ir buscar animais que se encontravam fora da

vila, “que cuidaua que lhe eram furtadas”, indo, no entanto, encontrar-se com o monarca

(que tinha vindo de Guimarães, onde a sua hoste cercava ainda a alcáçova, com cem

lanças) durante a noite, e esperam pela manhã, a escassos dois tiros de besta da vila,

numa “deuessa escussa e cuberta daruores”. Como era costume, todas as manhãs um

grupo de cinco peões saía para patrulhar as redondezas da vila e garantirem que não

havia qualquer perigo em deixar a porta aberta durante o dia. Nessa manhã, como

321 CDJ I, 1ª, cap. CXXXVIII, pp. 239-242. 322 Idem, Ibidem, cap. CLVII, pp. 294-296. 323 CDJ I, 2ª, caps. X, XI, pp. 19-23.

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expectável, os cinco peões saem para fazer a sua ronda, cruzando-se com Estêvão

Rodrigues, que lhes conta como tinha andado a perseguir em vão durante a noite dois

animais, afirmando ainda que nada de irregular se passava nas imediações e

convencendo os peões a irem beber “duas duas vezes de muy boom vynho” a sua casa

antes de irem para a sua ronda. Os peões, ao verem que naquela manhã “fazia huum

pouco neuoaço, e [Estêvão Rodrigues] uinha molhado do orualho”, aceitaram o convite

e foram para casa de Estêvão. A mulher de Estêvão, em conluio com o marido, convida

os homens também a comer, passando depois para um jogo de dados. Estêvão

Rodrigues, deixando os outros em sua casa a jogar, ausenta-se e encontra-se depois com

o seu irmão e outro combatente a pé e dirigem-se para a porta. Aí, pedem ao porteiro

que a abra porque já era tarde, mas este esperava ainda pela patrulha. Estêvão Rodrigues

assegura o porteiro que estes ainda demorariam pois estavam em sua casa a jogar, e que

ele próprio havia já feito a ronda por eles. O porteiro abre então a porta, e Lourenço

Rodrigues, propositadamente e discretamente, coloca várias moedas no chão e começa a

apanhá-las lentamente (e voltando a deixar cair algumas delas à medida que as ia

recolhendo) referindo que as havia perdido ao serão. O porteiro e outros guardas que aí

se encontravam procuram ajudar Lourenço Rodrigues, e o seu irmão, aproveitando a

distracção, coloca a pedra que servia de assento para os guardas para impedir a porta de

se mover. O outro companheiro faz sinal a Estêvão que, por sua vez, faz outro para as

forças de D. João I, que rapidamente se dirigem para a ponte e para a porta, que se

mantém aberta pela acção dos dois irmãos Rodrigues, com Lourenço a defender o lado

de dentro da porta contra os guardas que aí se encontravam e se tinham apercebido,

entretanto, do iminente assalto, permitindo a entrada na vila dos atacantes. Ao fim de

três dias de combate pela conquista das torres da vila, a última é incendiada e a vila fica

em poder do monarca português324.

Mas não seria somente a duração do cerco que poderia trazer vantagens ou

desvantagens às forças de ambos os lados das muralhas. Para os comandantes

medievais, era necessário ter também em atenção o período do ano em que o bloqueio

ou o assalto iria decorrer, já que isso poderia influenciar o rumo das operações325. Com

o intuito de aumentarem a probabilidade de serem bem sucedidos, os sitiantes teriam de

324 CDJ I, 2ª, caps. XV, XVI, XVII, XVIII, pp. 29-37. 325 A tomada do castelo de Gaia, em 1384, por não ser possível precisar a data exacta deste episódio e, por

conseguinte, a sua estação, não é contada nesta parte.

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aproveitar qualquer vantagem que lhes permitisse levar a bom termo o cerco a que se

propusessem e uma dessas vantagens seria a realização de cercos (que representavam

processos que potencialmente poderiam prolongar-se ao longo de semanas ou até

meses) durante períodos em que o clima fosse o mais propício à sustentabilidade e

sobrevivência da hoste atacante326. A Primavera, principalmente, e o Verão assumiam-

se assim como os períodos mais oportunos para os comandantes empreenderem

operações de cerco, visto que, ao longo desses meses, as temperaturas e as condições

climatéricas eram as mais favoráveis, os campos providenciavam uma fonte mais rica

de mantimentos para as forças sitiantes, e, principalmente durante o Verão, o calor

causava secas em rios e fontes, eliminando assim algumas vantagens que poderiam

beneficiar os sitiados, como fossos ou cavas que tivessem água, ou a probabilidade de

ocorrência de uma maior escassez desse bem essencial para a sobrevivência humana

entre os sitiados327 . Havia, no entanto, alguns perigos relacionados com os cercos

decorridos ao longo do Verão para os sitiantes, que abordaremos mais à frente neste

capítulo quando analisarmos a ameaça que as doenças representavam para a vida dos

participantes nestas operações. O período compreendido entre o Outono e, sobretudo, o

Inverno não seria então o mais conveniente para que um cerco fosse bem sucedido. O

cerco de Chaves, ocorrido entre 15 de Janeiro e 30 de Abril de 1386328 e sendo assim

coincidente com uma grande parte do Inverno, embora tenha terminado com a vitória

das forças sitiantes comandadas por D. João I, é um exemplo do perigo que representava

a realização de cercos neste período, visto que a hoste sitiante foi fustigada por

condições climatéricas extremamente adversas, como o frio e a neve, que causaram

várias mortes entre os combatentes ao serviço do monarca português329.

No período estudado, as tentativas de conquistas de praças-fortes tiveram uma

maior incidência na estação da Primavera, com 23 operações a ocorrerem ao longo desta

estação, seja na sua totalidade ou com o seu início ou o seu término nesta. De entre estes

23 episódios, 15 são cercos convencionais. Sendo uma estação com condições

favoráveis para a sustentabilidade e sobrevivência da hoste, era natural neste período os

326 Para a verificação das estações em que ocorreram as operações de cerco neste conflito, remetemos, de

novo, para o “Quadro 5 – Durações, Datas, Estações e Resultados dos Episódios”, nos Anexos. 327 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 226. 328 MORENO, Humberto Baquero, Os itinerários de el-rei Dom João I: 1384-1433, Instituto de Cultura e

Língua Portuguesa, Lisboa, 1988, “1386”, p. 25, e MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325)

à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal,

Vol. I, p. 277. 329 CDJ I, 2ª, cap. LXV, pp. 155-156.

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comandantes empreenderem campanhas militares onde decorriam vários cercos ou

tomadas, como é o caso da acção das forças de D. João I entre Maio e Junho de 1385,

que cercaram, neste período, Guimarães, Braga e Ponte de Lima, ou ainda a campanha

anglo-portuguesa de 1387, que, entre Abril e Maio, cercou Benavente de Campos e

Villalobos, tomando ainda Roales e Valderas. A estação seguinte com um maior

número de episódios de tentativas de conquistas de fortalezas é a do Inverno com 11,

dos quais 7 foram cercos convencionais. Das 8 operações de assalto ou cerco que são

concorrentes com o Verão, 7 são cercos, e, por último, coincidiram com o Outono 6

cercos convencionais e nenhuma tentativa de tomada de praças-fortes.

Analisando estes números, podemos constatar então que no período que envolve,

principalmente, a Primavera e também o Verão330 ocorreram a maior parte dos cercos (6

dos cercos estudados neste período têm o seu início na estação primaveril e terminam na

estação seguinte). Aliás, era esta a altura preferida pelos comandantes militares para a

realização das campanhas, independentemente do seu objectivo. A campanha militar

empreendida no Minho pelo rei D. João I na Primavera de 1385, aproveitando o ímpeto

causado pela sua eleição nas cortes de Coimbra de 1385, resulta na conquista de

Braga331, Ponte de Lima332 e Guimarães333 no espaço de um mês, entre os inícios de

Maio e de Junho desse ano.

No entanto, é possível verificar ainda que, ao longo deste conflito, coincidem

com o Inverno cercos e tomadas que perfazem números superiores aos ocorridos no

Verão ou no Outono, teoricamente a estação que representaria um maior perigo para os

sitiantes. Os episódios que coincidem com o Inverno, contudo, são, regra geral,

motivados pela conjuntura política que se vivia na altura e não por uma preferência dos

comandantes das hostes sitiantes em realizar estas operações naquela estação, como nos

exemplifica o período de transição entre os anos de 1383 e 1384, no qual os episódios

de cercos e tomadas dos castelos de Lisboa, Évora, Beja, Portalegre, Estremoz, Évora e

a tentativa falhada de conquista de Alenquer334 são resultado das acções de partidários e

330 Ocorrem, no período estudado, 6 episódios (todos cercos) que coincidem com a Primavera e com o

Verão. 331 CDJ I, 2ª, cap. XIV, pp. 28-29. 332 Idem, Ibidem, caps. XV, XVI, XVII, XVIII, pp. 29-37. 333 Idem, Ibidem, caps. X, XI, XII, XIII, pp. 19-28. 334 Alenquer, devido à sua proximidade com Lisboa e por se localizar sensivelmente a meio caminho

entre a cidade lisboeta e Santarém, serviria como base de operações para fustigar as movimentações da

hoste castelhana que iria cercar Lisboa e, posteriormente, como ponto de encontro para as forças afectas

ao partido de Avis para daí desferirem ataques contra o arraial castelhano. MARTINS, Miguel Gomes, De

Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, p. 301.

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apoiantes do Mestre de Avis e das insurreições populares que alastraram após a morte

do conde João Fernandes Andeiro, devidas ao descontentamento e receio de

concretização dos termos acordados em Salvaterra de Magos com Castela335. O cerco de

Torres Vedras, ocorrido no Inverno de 1384/1385, surge num contexto de tentativa de

recuperação de fortalezas em redor de Lisboa pouco tempo após o cerco castelhano a

esta cidade. Após a recuperação de Almada e a conquista de Alenquer, a vila torreense

foi o alvo seguinte, pois esta encontrava-se próxima do litoral e também de Lisboa,

afigurando-se como um local de elevada importância estratégica na defesa da cidade

lisboeta336.

Na sequência da vitória na batalha de Aljubarrota, a 14 de Agosto de 1385, D.

João I procura, rapidamente, aproveitar um momento em que as forças castelhanas

estavam debilitadas, iniciando uma campanha que o levaria a cercar, já em 1386,

Chaves e Coria, conquistando Almeida pelo meio. O monarca sai do Porto com a sua

hoste indo para “tras os Montes, que he terra de Portugall, por cobrar alguuns logares

que naquella comarca ajnda comtra elle reuelauom” para depois fazer uma incursão em

território castelhano. “reçeauom as gemtes aquella partida” pois o Inverno estava a

aproximar-se, mas o desejo do rei manteve-se, acabando por conquistar Chaves, após

um longo cerco, e Almeida, num assalto, mas falhando o cerco a Coria337.

Assim, é possível compreender a decisão dos intervenientes em cercarem

localidades ou fortalezas num período de Inverno: impelidos pelas conjunturas vividas e

pela sucessão dos eventos ocorridos, os comandantes eram forçados ou consideravam

mais vantajoso naquele momento arriscar o cerco e o confronto com as forças sitiadas e

com as condições climatéricas adversas típicas da estação invernal para atingirem os

seus objectivos.

Como já foi referido no capítulo anterior, garantir o abastecimento de água era a

tarefa mais relevante na preparação da defesa por parte dos sitiados, sendo assim de

elevado valor para a resistência a um cerco a manutenção de cisternas, poços e fontes

em boas condições que permitissem aos sitiados acesso a água potável durante o

decorrer de um cerco. Tal como a fome, a sede poderia levar à capitulação de uma

335 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 261. 336 Idem, Ibidem, p. 267. 337 CDJ I, 2ª, cap. LXIII, p. 152.

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guarnição, e com um efeito mais célere ainda, fazendo com que os sitiadores, para

pressionar e forçar a rendição dos seus adversários, tentassem, quando possível,

envenenar as fontes de abastecimento de água dos sitiados ou impedir o acesso destes a

fontes fora das muralhas. Era então de elevada importância garantir um bom

abastecimento de água, o que iria assegurar um contributo fulcral para a resistência a

um assédio inimigo338.

O segundo cerco a Alenquer, ocorrido entre Novembro e Dezembro de 1384, é

um exemplo do valor que o acesso a água tinha na defesa contra um cerco. O alcaide

desta localidade, Vasco Peres de Camões, decide render-se quando, por um lado, vê o

engenho e as cavas que o Mestre ordenara que fossem feitas, e, por outro, ao fim de

mais de um mês de cerco a água começava a escassear no interior da vila, mesmo

estando em “tempo dimverno, nom chovia cousa que aproveitasse”, levando assim a

guarnição e a população a uma situação próxima de uma carência absoluta de água e

sem qualquer perspectiva do panorama se alterar339. No cerco de Torres Vedras de

1384/1385, ao fim de algum tempo, “começarom os da villa daver mimgua dagua de

duas çisternas que tiinham demtro”, embora o Mestre, líder da hoste sitiadora, acabasse

por não prosseguir com o cerco340. Também os sitiados em Elvas, aquando do cerco

imposto à vila por Juan I, passaram por uma situação de “tamanha […] fame e sede”341.

Mas, no período estudado, o caso do cerco de Almada, no Verão de 1384, é o

que melhor exemplifica a influência que a falta de água poderia ter num cerco. A vila é

cercada ao longo de sensivelmente dois meses, resistindo com sucesso a vários assaltos

castelhanos, e estava abastecida com mantimentos para durarem, de acordo com Fernão

Lopes, pelo menos cerca de seis meses342. No entanto, a principal fonte de acesso a água

potável aí existente era somente uma pequena cisterna dentro da vila, sendo esta vigiada

e racionada pela guarnição343.

À medida que o cerco prosseguia e a água ia escasseando, os sitiados decidiram,

no contexto de racionamento de água, impedir os animais presentes na vila344 de a

consumirem, reservando-a assim somente para consumo da guarnição e população

338 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra em Portugal - 1245-1367, pp. 447-449. 339 CDJ I, 1ª, cap. CLXVIII, p. 317. 340 Idem, Ibidem, cap. CLXXIV, p. 326. 341 Voltaremos, em maior pormenor, a este cerco adiante. CDJ I, 2ª, cap. XXVI, p. 52. 342 CDJ I, 1ª, cap. CXXXV, pp. 233-234. 343 “damdo a cada huũa pessoa por dia huũa canada e mais nom”, Idem, Ibidem, cap. CXXXV, p. 234. 344 “eram huũs quareemta cavallos, afora outras bestas de serventia”, Idem, Ibidem, cap. CXXXVI, p. 235.

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sitiadas345. A água é também necessária para a confecção de alimentos e, como outra

medida de racionamento deste elemento, os habitantes de Almada tiveram de substituir

a água por vinho para poderem fazer pão e cozer carne e peixe346.

A água contida na cisterna acaba por se esgotar no decorrer do cerco, e a

população teve de recorrer à água do fosso, indo homens, principalmente a coberto da

noite e por meio de cordas, buscar essa água, a qual aí jazia graças às chuvas do Inverno

mas que havia sido previamente utilizada para a lavagem de roupa (incluíndo as fraldas

das crianças) e onde se encontravam diversos animais mortos. Esta água347 era fervida

antes de ser consumida ou utilizada na preparação de alimentos, mas as forças sitiantes

terão acabado por colocar guardas ao pé do fosso, ocorrendo várias escaramuças no

local, até durante o dia, com feridos e mortes para ambos os lados348.

As forças castelhanas acabariam por impedir o acesso à água encontrada no

fosso, que estava próxima de se esgotar também, e então os sitiados procuram uma

outra alternativa, que foi a tentativa de recolha de água do mar e de água proveniente de

uma ribeira próxima, encontrando-se no local tinas para o transporte desta. No primeiro

dia, os almadenses conseguem trazer água para a vila mas os castelhanos reparam nas

suas movimentações, preparando uma emboscada para o dia seguinte, na qual, de

acordo com Fernão Lopes, dezassete sitiados são surpreendidos por cerca de cem

adversários, resultando numa escaramuça na qual morrem três pessoas da vila e os

restantes são “mui mall feridos de seetas e de dardos” 349. Somente chegam à vila dois

odres e meio de água e as tinas foram destruídas, impedindo assim novas recolhas de

água através deste método350.

A situação em Almada no fim do cerco era então de desespero pela falta de água

e pela impossibilidade de renovar as suas reservas. Esta carência resultou no

falecimento de pessoas pela sede “assi homẽes e molheres, come moços pequenos”,

levando indivíduos a fugir da vila durante a noite em busca de melhores condições de

345 Os animais, não tendo outra forma de saciarem a sede, “homde mijavom os homeẽs, hiam as bestas

chuchar, e comiam aquella terra molhada”. A população acabaria por matar esses animais lançando-os

“todos pella barroca affumdo comtra o mar”, CDJ I, 1ª, cap. CXXXVI, p. 235. 346 “e comiã o pam em quamto era queemte, e como era frio, nom o podia nemguem comer, e assi outras

viamdas”, Idem, Ibidem, cap. CXXXVI, p. 236. 347 “a quall era verde e muito çuja, e jaziam em ella bestas mortas, e caães, e gatos que era nojosa cousa

de veer”, Idem, Ibidem. 348 Idem, Ibidem. 349 Idem, Ibidem. 350 Idem, Ibidem.

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sobrevivência351. Almada estava a ser gradualmente derrotada pela sede, mantendo-se,

no entanto, a resistir às forças sitiantes até conseguir trocar mensagens com Lisboa, que

se encontrava também cercada no outro lado do rio, tendo o Mestre ordenado à

guarnição de Almada que procurasse chegar a acordo com o monarca castelhano para a

rendição da vila, o que eventualmente acabaria por suceder352.

Ao longo deste cerco, a crescente míngua de água obrigou as forças sitiadas, em

vários momentos, a arriscarem as vidas de diversos combatentes na obtenção do

precioso líquido, a consumirem água que potencialmente poderia causar graves doenças

ou até mortes no seio da população, e, ainda, a desfazerem-se dos seus animais. Estes

sacrifícios foram feitos na procura de alívio da escassez de água, mostrando o quão

importante seria a existência de água em abundância dentro de um local assediado,

podendo-se observar os riscos tomados por sitiados na recolha e no racionamento deste

elemento e do resultado que uma situação de carência poderia dar a um cerco.

O bloqueio a que as localidades sitiadas estariam sujeitas no decorrer de um

cerco tinha como um dos seus principais objectivos criar uma crescente e gradual

carência de alimentos no interior do local assediado, procurando, por este meio, levar os

sitiados a capitularem sem que as forças sitiantes tivessem de arriscar as vidas dos

combatentes da sua hoste num assalto directo. Em 1385, Juan I, por exemplo, inicia

uma nova ofensiva em território português meses após o falhanço do cerco de Lisboa de

1384, dirigindo-se para Elvas, localidade essa que, segundo haviam informado o

monarca, tinha poucos mantimentos, “e que se jouuesse sobrella quinze dyas, que a

tomarya per fame”353. O cerco não durou os previstos quinze dias e arrastou-se por mais

outros dez, num período marcado por escaramuças e por um episódio em que as forças

sitiadas conseguem mesmo interceptar um carregamento de mantimentos oriundo de

Badajoz, renovando as suas reservas, e tornando assim a perspectiva de vitória

castelhana nesse cerco mais longínqua. Perante este percalço, e aliado à derrota de um

outro exército castelhano na batalha de Trancoso, Juan I abandona Elvas, considerando

que a sua vitória nesse cerco seria bem mais complicada e morosa do que aquilo que

inicialmente havia previsto354. A possível iminente falta de mantimentos em Elvas tinha

351 CDJ I, 1ª, cap. CXXXVI, p. 236. 352 Idem, Ibidem, cap. CXXXVI, pp. 237-238. 353 CDJ I, 2ª, cap. XXVI, p. 52. 354 Idem, Ibidem, cap. XXVI, pp. 52-54.

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tornado esta localidade num alvo apetecível para o rei castelhano, mas a intercepção de

mantimentos foi um rude golpe para as aspirações castelhanas, pois os elvenses

poderiam então resistir por mais tempo sem serem afectados pela fome, o que

demonstra o peso que a diferença entre um alvo bem aprovisionado e outro à beira de

uma situação de carência tem na guerra de cerco medieval.

A conquista de Monsaraz por Nuno Álvares Pereira, no Verão de 1384, tem a

peculiaridade de a guarnição estar a viver um período de escassez de alimentos sem

estar cercada, com o futuro Condestável a aproveitar essa situação para ludibriar os

combatentes castelhanos e tomar o castelo355.

Para as forças castelhanas no cerco de Lisboa de 1384 desde cedo ficou claro

que somente através da fome é que os habitantes da cidade se renderiam. Lisboa tinha

na época uma nova muralha e estruturas fixas de defesa em boas condições, muita gente

no seu interior, não só os combatentes mas também uma população que estava disposta

a resistir ao cerco castelhano, e tinha à sua disposição bastante armamento, o que fazia

com que um assalto directo à cidade representasse um risco bastante elevado. No

entanto, as suas reservas de mantimentos não seriam suficientes para aguentarem um

cerco prolongado num local com uma população tão elevada356. Esperar que as reservas

de mantimentos em Lisboa minguassem seria, no entanto, um processo que demoraria

um período considerável, ao longo do qual as forças castelhanas teriam de manter o

cerco à cidade, o que poderia causar diversas dificuldades, como o próprio

abastecimento dos sitiadores, vendo-se assim ameaçados pelo próprio flagelo com o

qual pretendiam forçar a rendição da urbe. Para então garantirem que não sofreriam de

uma carência de alimentos, as forças castelhanas vieram cercar Lisboa bem

aprovisionadas: mantimentos e equipamentos foram trazidos por via marítima na frota

oriunda de Sevilla (que continuou a fazê-lo ao longo do cerco), e terrestre, com a hoste e

o estabelecimento de rotas de abastecimento com as localidades mais próximas afectas a

Castela, realizando ainda forragens e pilhagens ao longo do caminho até Lisboa e nas

355 No capítulo seguinte desenvolveremos com maior detalhe esta operação. CDJ I, 1ª, cap. CXLIII, pp.

256-257. 356 MARTINS, Miguel Gomes, “Abastecer as cidades em contexto de guerra. O cerco de Lisboa de

1384”, in Alimentar la ciudad en la Edad Media – Encuentros Internacionales del Medievo, Instituto de

Estudios Riojanos, Logroño, 2009, p. 137.

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redondezas da própria cidade, antes e durante o cerco, acumulando assim sustento

suficiente para a hoste castelhana357.

No cerco de Benavente de Campos em 1387, D. João I envia para forragem

alguns membros do seu contingente que, chegados às proximidades da localidade

Castrocalbón, pegam fogo às suas portas, entram no local e saqueiam-no, procedendo

depois à pilhagem de aldeias nas suas imediações, recolhendo assim mais mantimentos

para o sustento da hoste anglo-portuguesa que se encontrava em campanha militar em

Castela358.

O cerco a Cória em 1386, por seu turno, termina quando as forças sitiantes de D.

João I desistem de prosseguir com o assédio porque, por um lado, no arraial começaram

a surgir vários doentes e, por outro, as provisões de mantimentos estavam já bastante

reduzidas e a perspectiva de uma carência de alimentos entre as forças atacantes estaria

próxima de se tornar numa realidade (o que, para além de poder causar mortes devido à

fome, poderia piorar e aumentar ainda mais o número de doentes na hoste)359.

A fome era então uma “arma” que poderia fazer pender o resultado do cerco

para ambos os lados, consoante as características deste. No entanto, o risco de se chegar

a uma situação de carência de alimentos era mais provável de ocorrer no interior dos

perímetros amuralhados sitiados, visto que o bloqueio aplicado pelas forças sitiantes

dificultava ou impedia a movimentação dos sitiados e a recolha e o transporte de

mantimentos para a localidade cercada. Embora houvesse o cuidado de garantir, face à

ameaça de um cerco, que os armazéns das fortalezas tivessem em qualquer altura uma

quantidade considerável de mantimentos aprovisionados 360 , era sempre necessário

recolher mais alimentos ainda, estes, mesmo com um consumo racionado, nem sempre

seriam suficientes para garantir a subsistência da guarnição e também da população que

se encontrava no local, um número que aumentava consideravelmente aquando da vinda

de reforços para a guarnição ou dos habitantes da região que procuravam refúgio atrás

das muralhas. Embora estes pudessem trazer víveres consigo, esse contributo não seria

357 MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, pp. 309-310. 358 CDJ I, 2ª, cap. CI, pp. 216-217. 359 Idem, Ibidem, cap. LXXVIII, p. 179-181. 360 Na Segunda Partida, no título XVIII – “qual deue el pueblo ser en guardar, e en bastecer, e en

defender los castillos e las fortalezas del rey e del reyno”, a lei VI – “Quales deuen ser los alcaydes de los

castillos: e que es lo que deuen fazer por sus cuerpos, en guarda dellos”, fl. 57, refere-se que o alcaide de

um castelo deve garantir o abastecimento deste, e a lei X – “En que manera deuen ser bastecidos los

castillos de viandas: e de todas las otras cosas que son menester”, fls. 58-58v., refere que o alcaide

deveria garantir a existência no seu castelo de víveres como a carne, o pescado, pão, legumes, sal e azeite.

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o necessário para garantir que a praça-forte resistisse por muito mais tempo face ao

súbito crescimento da população na localidade cercada361. Isto é visível no cerco de

Lisboa de 1384, no qual, como Fernão Lopes descreveu, “esta fame e falleçimento que

as gemtes assim padeçiam, nom era por seer o çerco perlomgado, ca nom avia tamto

tempo que Lixboa era çercada; mas era per aazo das muitas gemtes que sse a ella

colherom de todo o termo; e isso meesmo da frota do Porto quamdo veo, e os

mantiimentos seerem muito poucos”362.

A escassez de víveres começava a sentir-se através de um brusco aumento dos

preços em alimentos de primeira necessidade, como, por exemplo, nos cereais, que,

mesmo com preços bastante inflacionados, acabavam por eventualmente se esgotar363.

No caso do cerco de Lisboa de 1384, o trigo ia escasseando cada vez mais e, em

contrapartida, o seu preço ia subindo364, levando as pessoas carenciadas a procurarem

outras fontes de subsistência, como comerem “pam de bagaço dazeitona, (...) queyjos

das mallvas e rraizes dervas, e [outras] desacostumadas cousas, pouco amigas da

natureza”, ou ainda, nos locais onde se vendia trigo era possível encontrar, de acordo

com Fernão Lopes, pessoas a procurarem na terra grãos de trigo e a ingeri-los ali e sem

qualquer preparação do cereal365. Mas não era somente o preço e as reservas de trigo

que seriam afectadas pela escassez que derivava do cerco inimigo: a carne de porcos,

vacas ou galinhas, e os seus respectivos produtos derivados, à medida que as suas

reservas iam sendo consumidas também aumentavam os seus preços, tornando-se

incomportáveis para uma considerável porção da população presente no interior das

muralhas, tendo esta carência de proteína ainda o efeito de facilitar o surgimento e a

propagação de doenças366. Até os cavalos seriam sacrificados pela sua carne, procurada,

por esta altura, “nom soomente [pelos] pobres e mimguados, mas grãdes pessoas da

361 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra em Portugal - 1245-1367, pp. 446-447. 362 CDJ I, 1ª, cap. CXLVIII, p. 271. 363 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra em Portugal - 1245-1367, pp. 447-448. 364 “Na çidade nom avia triigo pera vemder, e se o avia, era mui pouco e tam caro, que as pobres gemtes

nom podiam chegar a elle; ca vallia ho alqueire quatro livras; e o alqueire do milho quareemta solldos; e a

canada do vinho tres e quatro livras; e padeçiam mui apertadamente, ca dia avia hi, que, aimda que

dessem por huũ pam huũa dobra, que o nom achariam a vemder”, CDJ I, 1ª, cap. CXLVIII, p. 269. 365 Idem, Ibidem. 366 “Das carnes, isso meesmo, avia em ella gramde mimgua; e sse alguũs criavom porcos, mantiinhãsse

em elles; e pequena posta de porco, vallia çimquo e seis livras que era huũa dobra castellãa; e a gallinha,

quareemta solldos; e a duzia dos ovos, doze solldos; e se almogavares tragiam alguũs bois, vallia cada

huũ sateemta livras, que eram quatorze dobras cruzadas, vallemdo emtom a dobra çimquo e seis livras; e

a cabeça e as tripas, huũa dobra; assi que os pobres per mimgua de dinheiro, nom comiam carne e

padeçiam mall”, Idem, Ibidem.

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çidade”367. Outros ainda utilizavam a água para tentarem aplacar a fome que sentiam, e,

por a consumirem em grandes quantidades, acabavam por falecer “imchados nas praças

e em outros logares”368. Esta situação traduzia-se numa cidade repleta de imagens de

carência extrema e de desespero, com crianças a pedirem qualquer tipo de comida na

rua, não havendo frequentemente quem pudesse doar, ou mães, que por falta de

alimento não conseguiam amamentar os recém-nascidos e “choravom ameude sobrelles

a morte amte que os a morte privasse da vida”369. Desta forma, surgiam também no seio

da população querelas e discórdias, contribuindo para um adensar maior deste ambiente

mórbido, de tal forma que, nas palavras de Fernão Lopes, havia quem preferisse que “a

morte que os levasse, dizemdo que melhor lhe fora morrer, que lhe seerem cada dia

rrenovados desvairados padeçimentos” 370 . Os sitiados lisboetas viam-se assim

confrontados com duas guerras: “hũa dos emmiigos que os çercados tiinham, e outra

dos mantiimentos que lhes minguavom, de guisa que eram postos em cuidado de sse

deffemder da morte per duas guisas”371, e Juan I, ciente da situação vivida em Lisboa,

acreditava que seria somente uma questão de tempo até o Mestre e a população cederem

e renderem-se ao monarca castelhano372. Este estado de desespero causado pela fome

poderia, contudo, provocar outra reacção que não a rendição: em Lisboa, a fome

motivava cada vez mais a ideia de desferir um ataque directo ao arraial castelhano373,

uma jogada bastante arriscada para os defensores, pois poderia resultar numa derrota

retumbante e no fim das aspirações da resistência lisboeta e até do próprio Mestre de

Avis. Contudo, esta acção afigurava-se como a única forma para os sitiados

conseguirem o fim do cerco com a sua vitória, havendo alguns momentos em que este

ataque esteve mesmo próximo de ocorrer374.

À medida que o cerco se prolongava, as reservas de mantimentos iam sendo

consumidas, pelo que não sendo possível renová-las, os comandantes das forças

sitiadas, por vezes, recorriam à expulsão de elementos supérfluos à defesa da praça-

forte, como animais, numa primeira instância, mas também idosos, doentes, mulheres e

367 CDJ I, 1ª, cap. CXLVIII, p. 269. 368 Idem, Ibidem. 369 Idem, Ibidem. 370 Idem, Ibidem, cap. CXLVIII, p. 270. 371 Idem, Ibidem, cap. CXLVIII, p. 271. 372 Juan I: “e tenhoa [Lisboa] ja tam aficada per fame que os de dentro padeçem, que sem combato nem

outra pelleja, segumdo as novas que eu sei de çerto, elles me rrogarom com ella ante de muitos dias, e

farom a minha voomtade”, Idem, Ibidem, cap. CL, p. 275. 373 Idem, Ibidem, cap. CXLII, pp. 253-255. 374 MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, p. 317.

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crianças, procurando através da evacuação destes membros para fora das muralhas fazer

durar mais tempo os mantimentos que restavam à guarnição, os elementos que tinham

maior capacidade para melhor defenderem o local375. No cerco de Lisboa de 1384, o

Mestre de Avis, face à crescente míngua de alimentos, ordena a expulsão dos elementos

supérfluos já referidos376, sendo estes, numa primeira instância, recebidos com agrado

pelas forças castelhanas, até se aperceberem do porquê da saída dos sitiados da cidade,

passando a impedi-los de passarem ou recusando-se a prestar-lhes auxílio, fazendo com

que alguns dos elementos de Lisboa preferissem serem feitos cativos do rei castelhano,

podendo assim ter a esperança de serem alimentados377. Henry V de Inglaterra, num

cerco a Rouen ocorrido entre 1418-1419, também impediu os sitiados que haviam sido

expulsos da cidade de passarem pelo seu arraial e obrigou-os a ficarem no fosso que se

encontrava entre as forças sitiantes e as muralhas, sem qualquer tipo de mantimentos,

destinados, portanto, a morrer à fome. Os sitiados procuraram, sem sucesso, negociar

com o monarca inglês a passagem destas pessoas carenciadas, e este limita-se a

retorquir “‘who put them there?’”, pois, como Jim Bradbury assinalou, a visão de

pessoas deixadas a morrer à fome à frente das muralhas de um local sitiado era uma

forma comum na época de os sitiantes aplicarem pressão aos sitiados. “We may not

much admire such ruthlessness, but it was part of the normal siege code”378.

O período em que decorria uma guerra podia ainda causar bastantes dificuldades

às populações presentes no espaço do conflito. A redução da mão-de-obra,

principalmente agrícola, e as passagens de exércitos pelos campos traduziam-se numa

escassez de mantimentos devido ao abandono, recolha excessiva ou mesmo destruição

dos campos, levando, como por exemplo no cerco de Chaves de 1386, diversas pessoas

375 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra em Portugal - 1245-1367, pp. 448-449. 376 “Em esto gastousse a çidade assi, apertadamente, que as pubricas esmollas começarom desfalleçer, e

nenhuũa geeraçom de pobres achava quem lhe dar pam; de guisa que a perda comuũ vemçemdo de todo a

piedade, e veemdo a gram mingua dos mamtiimentos, estabelleçerom deitar fora as gemtes mimguadas e

nom perteeçemtes pera deffemssom; e esto foi feito duas ou tres vezes, ataa lamçarem fora as mançebas

mundairas e Judeus e outras semelhamtes, dizemdo que pois taaes pessoas nom eram pera pellejar, que

nom gastassem os mantiimentos aos deffemssores; mas isto nom aproveitava cousa que muito prestasse”,

CDJ I, 1ª, cap. CXLVIII, pp. 268-269, e MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra

na Idade Média, p. 316. 377 “Os Castellaãos aa primeira prazialhe com elles, e davomlhe de comer e acolhimento; depois veemdo

que esto era com fame, por gastar mais a çidade, fez elRei tall hordenamça, que nẽnhuũ de demtro fosse

rreçebido em seu arreall, mas que todos fossem lamçados fora; e os que sse hir nom quisessem, que os

açoutassem e dezessem tornar pera a çidade; e esto lhes era grave de fazer, tornarem per força pera tall

logar, omde choramdo nom esperavom de seer rreçebidos; e taaes hi avia que de seu grado se sahiam da

çidade, e se hiam pera o arreall, queremdo amte de todo seer cativos, que assim pereçerem morremdo de

fame”, CDJ I, 1ª, cap. CXLVIII, p. 269 378 BRADBURY, Jim, The Medieval Siege, p. 309.

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daquela região, em busca de apoio e alimento, a juntarem-se à hoste do rei D. João I,

que, face ao assédio que liderava e às gentes que se juntavam ao seu arraial, ordenava

incursões na Galiza até 8 ou 10 léguas de distância para a recolha de mantimentos e

forragem, com os encarregados destas acções a levarem consigo 2000 animais de carga

ou até mais379.

A realização de um cerco implicava ainda a possibilidade de as hostes serem

ameaçadas por outros factores que não somente os combates, a fome ou a sede. As

hostes sitiantes e as forças sitiadas corriam também o risco de, ao longo do desenrolar

do cerco, serem assoladas por surtos de doenças que poderiam causar um grande

número de baixas entre os combatentes. No cerco de Coria de 1386, o arraial de D. João

I via-se afectado por uma carência de mantimentos e por um crescente número de

doentes. A situação vivida nesse arraial era tal380 que levava elementos da hoste a

fingirem que padeciam de alguma maleita para poderem ser levados para Penamacor381,

e, pelo caminho, tentavam escapar da sua escolta e voltar para as suas terras, obrigando

mesmo D. João I a inspeccionar todos aqueles que insinuavam estarem doentes382. O

cerco pouco evoluía e a possibilidade de vitória estava cada vez mais longínqua383,

fazendo com que, eventualmente, e também motivado pela falta de engenhos de cerco, o

monarca português desse por terminadas as operações384.

Mas, para ter uma melhor noção da influência que um surto de doenças poderia

ter no desfecho de um cerco, é necessário voltarmos ao cerco de Lisboa de 1384 e

analisar o que sucedeu no arraial castelhano. A realização de um cerco implicava a

concentração de um elevado número de pessoas e de animais no mesmo local, o que

resultaria numa situação de deficiente higiene. Não existindo formas eficazes de

379 CDJ I, 2ª, cap. LXV, pp. 155-156. 380 “de guissa que mais eram ja os doentes que os saãos”, Idem, Ibidem, cap. LXXVIII, p. 180. 381 “E taaes desejauom de [serem doentes] por teer aazo de se partir da hoste; outros fingiam que o eram,

atamdo panos nas cabeças, porque el-Rey mandaua leuar os doentes a huum logar de seu regno que

chamam Penamacor”, Idem, Ibidem. 382 “E taaes desejauom de o seer por teer aazo de se partir da hoste; outros fingiam que o eram, atamdo

panos nas cabeças, porque el-Rey mandaua leuar os doentes a huum logar de seu regno que chamam

Penamacor, que eram dally treze legoas, e homens darmas com elles em guarda; delles er fugiam sem

liçemça, e tornauam-sse pera a terra. El-Rey, quamdo semtio esto, começou de os veer per pessoa, e bem

conheçeo de muytos que nom eram doemtes”, Idem, Ibidem. 383 O Condestável e o conselho do rei estavam cientes de que o cerco, enquanto durasse, só pioraria a

situação e mais elementos da hoste procurariam abandoná-lo, e “diseram a el-Rey: Senhor, que feuza

podees uos teer em taaes homeens pera uos seruir nem fazer nenhuum bem per sas maãos, quando elles,

nom semdo doemtes, fingem sinaaes de gramde doemça”, Idem, Ibidem. 384 Idem, Ibidem.

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eliminação de resíduos poluentes como lixo, fezes e urina, tanto de humanos como de

animais, ou o transporte destes para locais bem afastados do arraial, a concentração dos

resíduos poluentes nas proximidades dos arraiais (muitas vezes “auxiliada” pelo calor

que se fazia sentir no período Primavera-Verão, no qual decorre o cerco em questão, o

que permitia uma maior libertação de bactérias e odores para o ar e também o

aparecimento de pragas de insectos) contribuíam ainda mais para o surgimento e

propagação de doenças, em muitos casos de elevada gravidade. Para além disso, a

penetração destes resíduos no solo e a sua subsequente infiltração nos lençóis freáticos

contaminavam a água que se encontrava na zona do arraial e que era consumida pelos

sitiantes, tornando-se assim num outro foco de origem e propagação de doenças,

principalmente do foro gastro-intestinal, como disenteria ou febres que resultavam em

mortes385.

A hoste castelhana que se deslocava para Lisboa liderada por Juan I, de acordo

com Fernão Lopes, era, desde que havia entrado no reino português, assolada por

“pestellemça”386, causando, gradualmente, um crescente número de mortos entre os

elementos da hoste. O surgimento deste surto entre os seus combatentes obrigou o rei

castelhano a movimentar-se frequentemente entre aldeias nas proximidades de Lisboa,

enquanto esperava pela chegada da sua frota à cidade, procurando reduzir a propagação

do surto e, por conseguinte, as baixas na sua hoste. Porém, tendo já Lisboa cercada,

elementos da frota castelhana começam também a adoecer e a falecer, e desde a

chegada à cidade e início do assédio que o surto foi crescendo cada vez mais387.

A situação foi motivando, ao longo do cerco, alguns elementos da hoste a

tentarem dissuadir Juan I de prosseguir com o assédio, incluindo o infante D. Carlos,

herdeiro ao trono de Navarra e cunhado de Juan I, e também o próprio conselho do rei

castelhano. Argumentavam que o próprio monarca se arriscava a ser contagiado e que

havia ainda no território português “cavalleiros e outras gemtes que tiinham muitas

villas e castellos, domde fariam guerra ao Meestre, e aos que sua voz quisessem

mamteer”388 . Para além disso, o infante e o conselho argumentam ainda que uma

retirada para Castela permitir-lhes-ia recuperarem das perdas causadas pela peste e

385 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra em Portugal - 1245-1367, pp. 436-437. 386 CDJ I, 1ª, cap. CXLIX, p. 272. 387 “e desque y [Lisboa] fue, era ya la pestilencia muy grande en los suyos”, CRC, Juan I, Año Sexto

(1384), cap. VII, p. 566, e “Pero la mortandad fue luego en el real muy grande, e morían cada día muy

muchos omes”, Idem, Ibidem, Año Sexto (1384), cap. VII, p. 567. 388 CDJ I, 1ª, cap. CL, p. 274

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esperarem um término para a epidemia389, renovando assim a sua hoste e podendo voltar

numa data posterior a cercar novamente Lisboa 390 , havendo ainda quem tentasse

convencer o monarca a chegar a alguma preitesia com o Mestre, “por levar alguũa

homrra de sua viimda” 391, e a campanha não resultaria assim num fracasso total. No

entanto, o rei castelhano foi recusando estes conselhos, visto considerar que, sem

qualquer perspectiva de auxílio, o Mestre acabaria por se render num espaço de poucos

dias, permitindo assim ao rei conquistar Lisboa392.

Contudo, a continuação do cerco levou a uma cada vez maior propagação do

surto de peste, tanto no arraial como na frota castelhana, chegando a um ponto em que,

de acordo com Fernão Lopes, morriam entre 100 e 200 membros da hoste diariamente,

levando a que os do arraial passassem os dias “ocupados em soterrar seus mortos”393.

Este surto de peste acaba por afectar elementos da hoste oriundos de todas as ordens

sociais, falecendo assim muitos combatentes nobres castelhanos, incluindo membros

importantes da alta nobreza e titulares de cargos de relevo394, chegando a morrer, ao

longo de dois meses, mais de dois mil homens de armas que estavam ao serviço do rei

de Castela395. Assim, a hoste castelhana era afectada por uma peste que atingia “nom

soomente escudeiros e fidallgos, e doutros de pequena comdiçom, tamtos que era

estranha cousa de veer; mas ainda começou de emçetar nos senhores de gramde estado,

de guisa que pos gramde espamto em todos”396, mostrando que este surto era um perigo

para qualquer indivíduo aí presente, independentemente das condições em que viviam

no arraial. Para além disto, aparentemente tanto os nobres portugueses que tinham voz

por Castela e se encontravam no arraial como os prisioneiros portugueses, e também os

389 CDJ I, 1ª, cap. CL, p. 275. 390 Idem, Ibidem, cap. CXLIX, p. 272. 391 Idem, Ibidem, cap. CXLI, p. 249. 392 Idem, Ibidem, cap. CXLIX, p. 272, e cap. CL, p. 274. 393 Idem, Ibidem, cap. CXLIX, p. 272. 394 “Ca do dia que sse finou de trama o Meestre de Santiago dom Pedro Fernamdez Cabeça de Vaca ataa

esta sazom, [morreram também] dom Rui Gomçallvez Mexia a que elRei deu o Meestrado depois da

morte de dom Pero Fernamdez; e dom Pero Rodriguez de Samdovall, Comemdador moor, que cuidou de

ser meestre; e Pero Fernamdez de Vallasco, Camareiro moor delRei; e dom Fernam Samchez de Thoar

seu Almiramte moor; FernamdAllvarez de Tolledo, Mariscall de Castella: Pero Rodriguez Sarmento,

Adeamtado em Galliza; dõ Pero Nunez de Lara, Comde de Mayorgas, que pouco avia que casara como

ouvistes; dom Joham Affomsso de Benavides; dom FernamdAffomsso de Çamora, Meestre de Samtiago,

e com este forõ tres Meestres; Joham Martiinz de Rojas; Lopo Uchoa dAvellaneda; e treze cavalleiros

delRei da çidade de Tolledo; e muitos outros cavalleiros e escudeiros de Castella e de Leom”, Idem,

Ibidem, cap. CXLIX, p. 272. 395 “en manera que del día que morió el maestre de Sanctiago fasta dos meses morieron de las compañas

del rey dos mil omes de armas de los mejores que tenía”, CRC, Juan I, Año Sexto (1384), cap. XI, p. 570,

e “mais de dous mill homẽes darmas dos melhores que elRei de Castella tiinha”, CDJ I, 1ª, cap. CXLIX,

p. 272. 396 CDJ I, 1ª, cap. CXLI, p. 249.

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sitiados em Lisboa, não contraíam a doença, contribuindo assim para o aumento do

sentimento de frustração no seio da hoste castelhana e funcionando como um tónico

para a moral dos sitiados397.

Os últimos momentos do cerco de Lisboa acabariam assim por ser uma “guerra

de persistência”: enquanto os habitantes da cidade de Lisboa estavam sujeitos a uma

crescente situação de fome cada vez mais grave, os elementos do arraial castelhano

viam-se confrontados com uma crescente mortalidade causada pela peste que aí

grassava, resultando num impasse, no qual o Mestre e Juan I esperavam que o outro

desistisse. 398 No entanto, a rainha D. Beatriz começou a mostrar sintomas que

indicavam que ela própria poderia ter contraído a doença, o que levou a que Juan I, por

fim, ordenasse o levantamento do cerco, a partir de 3 de Setembro, sendo a destruição

do arraial executada ao longo de um fim-de-semana, com o rei a abandonar a cidade na

2ª feira seguinte pela manhã, dia 5 de Setembro, terminando assim um assédio que

durou cerca de três meses e uma semana399.

Este capítulo demonstra que, por melhor que fosse a preparação dos

intervenientes, diversas vicissitudes poderiam afectar decisivamente o desenrolar do

cerco, tanto para sitiadores como para sitiados. As forças em confronto nestas operações

militares teriam que ser capazes de enfrentar todas as envolvências de um cerco, os

frequentes combates, as condições climatéricas desfavoráveis ou períodos de

sofrimento, cuja duração se desconhecia, causados por fome, sede ou surtos de doenças.

Estes aspectos transmitem-nos a importância que a guerra de cerco tinha na época e

também o papel que fortalezas ou povoações desempenhavam no plano político, com

nenhuma das forças a quererem ceder perante os seus adversários, procurando rumar à

vitória, arriscando assim a travessia de um período em que todos os intervenientes

teriam, em todos os momentos, as suas próprias vidas em perigo.

397 “E era gram maravilha per juizo a nos nom conheçido, que em fervor de tamanha pestellemça, nenhuũ

dos fidallgos portugueeses que hi amdavom nem prisiuneiros, ou doutra quallquer guisa, que nenhuũ nom

morria de trama, nem era tocado de tall door. E os Castellaãos doemtes, e dos Portugueeses nenhuũ

pereçia, nem demtro na çidade que era tam perto do arreal, nẽ fora em no termo”, CDJ I, 1ª, cap. CXLIX,

p. 272. 398 Idem, Ibidem, cap. CL, pp. 273-274 399 Idem, Ibidem, cap. CL, pp. 275-276.

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CAPÍTULO IV – À PROCURA DA CONQUISTA

Fosse pela estratégia delineada pelos seus comandantes, pela contínua

resistência ao assédio por parte dos sitiados, ou pelo surgimento de uma oportunidade

vantajosa antes ou no decorrer do cerco, muitas destas acções armadas foram

conduzidas com o recurso ao assalto às muralhas, através do qual os sitiadores

procuravam conquistar a praça-forte sitiada. Segundo João Gouveia Monteiro, o assalto

às praças fortificadas poderia ser desencadeado de acordo com quatro formas gerais400:

através da utilização de determinados tipos de engenhos consoante as suas

características, por um lado, os engenhos de aproximação e, por outro, os de arremesso

de projécteis, do escavamento de túneis com diversos propósitos, ou, ainda, a partir de

assaltos furtivos ou recorrendo a estratagemas ludibriosos.

A primeira forma e, simultaneamente, a mais comum, era levada a cabo através

de “técnicas específicas de aproximação às muralhas”401, na qual as forças sitiantes

avançavam em direcção a estas com o intuito de as transporem, através da

ultrapassagem das muralhas ou da destruição ou queima das portas, contando com o

auxílio de determinado tipo de engenhos que conferiam protecção aos combatentes nas

manobras de aproximação ou que permitissem o acesso ao topo das muralhas sitiadas.

Atulhando previamente fossos e cavas que se encontrassem no local, entre o arraial e o

perímetro amuralhado402, e após ultrapassarem ou destruírem as barbacãs, caso estas

existissem403, os sitiantes poderiam então avançar em direcção às muralhas livres desses

obstáculos e com o caminho livre para a deslocação dos engenhos de aproximação404.

400 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 228. 401 Idem, Ibidem. 402 Como foi feito pelas forças de D. João I no cerco de Melgaço de 1388, no qual as forças do monarca

português, enquanto construíam os engenhos que seriam depois utilizados no assalto, “nam quedauam em

tanto fazer camynhos e calçadas pera homde avião dhir a bastida e escallas” (CDJ I, 2ª, cap. CXXXV, p.

277), ou no cerco de Campo Maior em 1388, por exemplo, no qual, após uma cava aí existente ser tapada,

as forças sitiantes avançam em direcção às muralhas e procedendo a um assalto com uma escada (Idem,

Ibidem, cap. CXXXVII, pp. 280-281). 403 A ultrapassagem das barbacãs era também de extrema dificuldade, devido à possibilidade da presença

de inimigos nesta, aos projécteis lançados pelos sitiados de dentro da praça-forte, ou ainda pela altura

destas, “que geralmente oscilava entre os 3,25m e os 8,85m”, MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de

Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em Portugal na Idade Média, p. 245. 404 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 228.

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Após termos observado o armamento individual da época no primeiro capítulo,

olharemos agora para o armamento colectivo, começando pelos engenhos de

aproximação, utilizados nesta forma de assalto. Daremos início ao estudo destes

engenhos com as escadas, quase sempre de madeira, devido à resistência do material,

pois teriam que aguentar com a escalada de vários combatentes ao mesmo tempo, mas

existindo também de corda. Eram, normalmente, de simples e rápida construção

(geralmente no local do cerco, mas, por vezes, as hostes transportavam consigo escadas,

em peças ou até mesmo completas405), devendo apresentar uma altura equivalente ou

superior à das muralhas, para permitir aos sitiantes aceder aos adarves e tomar controlo

destes ou transpô-los. Contudo, a escalada das escadas representava um risco para os

sitiantes devido à relativa facilidade com que os sitiados conseguiam tombá-las, mesmo

com combatentes a trepá-las no momento, para além de que as escadas não ofereciam

qualquer protecção aos utilizadores contra os diversos tipos de projécteis lançados pelos

sitiados. Por exemplo, a primeira escada utilizada pelas forças sitiantes comandadas por

D. João I no cerco de Campo Maior de 1388 parte-se num momento em que diversos

combatentes procuravam escalá-la, resultando em “muytos ferydos, e prouue a Deus de

nam morrer nenhuum”406. Mesmo tendo em conta os riscos corridos pelos combatentes

nesta forma de assalto, a utilização das escadas justificava-se não só pela rapidez de

construção destas, mas também pela possibilidade de concretizar um assalto com várias

escadas, permitindo um ataque simultâneo a diversos pontos das muralhas, fazendo com

que as escadas fossem frequentemente utilizadas no contexto da guerra de cerco na

época407. No cerco de Guimarães de 1385 encontra-se, por exemplo, uma referência à

construção de “escadas de maão, feitas de madeira, pera por ao muro” no assalto à cerca

interior da vila408, assim como no já referido cerco de Campo Maior de 1388, no qual as

forças sitiantes de D. João I vencem com o auxílio de uma segunda escada colocada

próxima de uma torre e que permitiu a tomada da vila pela força das armas409. Ainda no

cerco de Tui de 1389, encontra-se referência à construção e utilização de “huma gramde

escalla” neste assédio410, provavelmente mais complexa que as usadas em 1385 e 1388.

405 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em

Portugal na Idade Média, p. 248. 406 CDJ I, 2ª, cap. CXXXVIII, p. 282. 407 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra Em Portugal - 1245 a 1367, pp. 412-413, e

MONTEIRO, João Gouveia, A guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, p. 347. 408 CDJ I, 2ª, cap. XII, p. 24. 409 Idem, Ibidem, p. 282. 410 Idem, Ibidem, cap. CXL, p. 288.

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Nas fontes encontramos, por vezes, expressões como “combatendo muy

rijamente de toda parte” ou “combater afficadamente per todallas partes”411 durante

ataques a determinados locais, nestes casos, o castelo de Neiva e Viana do Castelo412.

Atendendo à frequência, referida na bibliografia, com que se recorria às escadas no

contexto de guerra de cerco medieval, é muito possível que estas expressões se refiram,

precisamente, à utilização dessas escadas413.

Contudo, nem sempre as escadas utilizadas nos cercos da época eram tão

simples ou rudimentares como as que acabámos de descrever. D. João I utilizou, em três

cercos diferentes, escadas com características e construções bem mais complexas do que

as escadas comuns. No cerco de Guimarães de 1385, é construída por ordem do

monarca uma escada que é utilizada no assalto à segunda cerca da vila e que era

constituída por três eixos verticais, o que permitia a subida às muralhas de combatentes

aos pares, contando ainda com rodas para facilitar a sua deslocação até às muralhas414.

Em Chaves, no cerco de 1386, D. João I projecta, e as suas forças concretizam, uma

escada com uma resistência impressionante que, de acordo com Fernão Lopes, era de

“tam forte maneira quall na Espan(h)a amte desto nom fora vista, de que se todos

espantauom”415, e que foi um dos factores que contribuíram para a decisão do alcaide

em procurar a preitesia com as forças sitiantes416. Por último, no cerco de Melgaço de

1388, foram construídas duas escadas com quatro rodas cada, descritas por Fernão

Lopes, em grande detalhe, como sendo compostas por eixos verticais de ferro “bem

grosos”, contando ainda com seis traves e outros paus que serviriam como esteios para

poderem suportar e também ajustar a altura destas escadas417. Estas contavam ainda

411 CDJ I, 2ª, caps. VI e VII, p. 15. 412 Ocorridos em Abril de 1385, inseridos num contexto de uma expedição, ordenada por D. João I e

liderada pelo Condestável, na tomada de localidades que tinham voz por Castela na comarca do Entre-

Douro-e-Minho, Idem, Ibidem, cap. V, p. 12. 413 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em

Portugal na Idade Média, p. 213. 414 CDJ I, 2ª, cap. XII, p. 24. 415 Idem, Ibidem, cap. LXVI, p. 159. 416 “Martym Gonçalluez, vemdo todas estas cousas [para além da escada, as forças sitiantes não cessavam

de arremessar projécteis através de engenhos e havia ainda uma bastida], e reçeamdo seer emtrado per

força, pois se nom podia defemder, preitejou-sse emtom com el-Rey”, Idem, Ibidem, cap. LXVI, p. 159. 417 Idem, Ibidem, cap. CXXXVI, p. 277.

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com um sistema de guindaste para as erguer418 e com traves que as ligavam à torre de

assalto (engenho que será abordado de seguida) que estava a ser construída419.

As torres de assalto eram também um outro engenho de aproximação

comummente utilizado nos cercos da época em análise neste estudo, frequentemente

referidas nas fontes como “bastidas”420. O método em que estas eram utilizadas era o

“mais seguro e, simultaneamente, o mais aparatoso de efectuar a aproximação e a

abordagem às muralhas de uma praça-forte”421. Embora tivessem de ser construídas no

local do cerco (ou, em alguns casos, montadas, com partes da torre previamente

construídas e transportadas com a hoste), devido à sua dimensão que impossibilitava a

deslocação ao longo de grandes distâncias, as torres de assalto ofereciam aos

combatentes uma maior protecção na ultrapassagem das muralhas do que escadas de

cordas ou madeira, pois assim os combatentes podiam chegar ao topo da muralha sem

serem expostos aos disparos dos defensores. Além disso, tinham um acesso directo ao

cimo desta, visto que as torres eram construídas com uma altura superior à das muralhas

que atacavam. Os sitiados procurariam defender-se destas torres através de sortidas –

durante as quais as tentavam derrubar ou incendiar – ou de disparos de projécteis para

as reduzir a cinzas422. Por seu lado, os sitiantes tentavam minimizar o risco de incêndio

418 “e em cada huma [das escadas] d(u)as polles de guymdar, que guymdauão doze cabres grosos de linho

canaue, e tres dobaduras detras pera guymdarem e dous gramdes cabrestantes como de nao”, CDJ I, 2ª,

cap. CXXXVI, p. 277. 419 “E hia cada huma escalla pregada de tauoas grossas sobre quatro paos, compridos como pontõees, em

que avya de longo quorenta e oyto couados e em ancho noue, e çimqoenta degraaos de meyos pontõees e

canyços, e coyros de vaca verdes nos logares homde conprião, pera hirem na bastida (cada hum) de sua

parte”, Idem, Ibidem. 420 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 229. O termo “castellos de madeira”

também era utilizado nas fontes para se referirem a torres de assalto. CDJ I, 2ª, cap. LXIV, p. 154. 421 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em

Portugal na Idade Média, p. 249. 422 Vegécio recomendava, no Epitoma Rei Militaris, primeiro, “se existir audácia e forças militares”, a

realização de uma sortida e o posterior ateamento de um fogo, após serem retirados os couros de

protecção, e, segundo, caso “os sitiados não ousarem sair”, fazer uso dos engenhos de arremesso de

projécteis que pudessem disparar “malleoli ou faláricas incendiárias”. Os primeiros eram “como setas, e

onde quer que se fixem incendeiam tudo uma vez que vêm a arder”, e as segundas eram como “uma

lança, [...] guarnecida com um ferro bem forte; mas, entre a haste e a ponta, ela é envolvida por enxofre,

resina, betume e estopas e ensopada com um óleo a que chamam de ‘incendiário’”, e que através do seu

lançamento e impacto perfuraria as protecções da torre e, aí fixa, atearia o fogo que destruiria o seu alvo a

partir do interior. VEGÉCIO, Compêndio da Arte Militar, trad. de José Eduardo Braga e João Gouveia

Monteiro, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2009, p. 351.

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e a força de impacto dos projécteis lançados por sitiados contra estas torres forrando-as

com vimes, peles cruas de animais humedecidas423 ou lama424.

Estas torres moviam-se através de várias rodas colocadas por debaixo destas, “de

tal forma que um volume e um peso tão grande possa ser deslocado por meio de um

deslize fácil”425. Compostas geralmente por três pisos, no andar inferior de uma torre de

assalto poderia encontrar-se um aríete ou um espaço protegido para que combatentes

pudessem picar as muralhas ou destruir as portas de uma fortaleza. O piso intermédio

servia como um espaço de abordagem aos muros, existindo, por vezes, uma ponte

levadiça que poderia ser lançada ao topo das muralhas, criando assim uma passagem

pela qual os combatentes sitiantes poderiam aceder aos adarves. O piso superior

conferia uma posição segura e elevada onde homens de armas e atiradores podiam

atacar com armas de arremesso426 os combatentes adversários que se encontravam ao

longo dos adarves e das torres, enfraquecendo assim a defesa e facilitando o ataque e a

passagem dos seus companheiros que assediavam a muralha no piso intermédio427 .

Deste modo, as torres de assalto ofereciam diversas possibilidades de assalto aos

sitiantes no decorrer do ataque às muralhas inimigas428. A torre de assalto construída no

cerco de Melgaço de 1388 pelas forças sitiantes de D. João I, composta por quatro

andares e com rodas, é descrita por Fernão Lopes em grande detalhe. Começando pelas

medidas da torre, esta tinha “de roda e roda do carro em ancho treze couados, (e) em

alto, des homde se começaua per cima dos carros, avia treze braças e mea”. O primeiro

andar estava “madeira(do) de pontões bem grossos (e) estrados de bastos canyços” para

os combatentes se poderem deslocar, “e avya deradir cemto e xxxvj. pontõees”. O

segundo andar teria “derador cemto e xxiiij. pontõees” e continha quinze recipientes

cheios de vinagre para apagar qualquer tentativa de pegar fogo à torre, “e o terçerio

cento e xxx.”. Um último andar, aberto, tinha “cento e xxviij.º meyos pontõees derador,

em que hiam tres mjl pedras de maão”. A parte de trás da bastida (em relação às

muralhas) era aberta e aí encontravam-se escadas de alçapão que ligavam os diversos

423 Como as utilizadas na torre de assalto construída a propósito do cerco de Melgaço de 1388. CDJ I, 2ª,

cap. CXXXV, pp. 276-277. 424 BARROCA, Mário Jorge, "Da Reconquista a D. Dinis", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I,

pp. 146-147, e MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra Em Portugal - 1245 a 1367, pp. 414-416. 425 VEGÉCIO, Compêndio da Arte Militar, p. 349. 426 Setas, virotões, dardos ou pedras. MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos,

muralhas, e guerra de cerco em Portugal na Idade Média, p. 249. 427 Idem, Ibidem, e MONTEIRO, João Gouveia, A guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, pp.

348-349. 428 MONTEIRO, João Gouveia, A guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, p. 348.

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pisos da torre, e esta, como protecções, “leuaua diante seis gramdes canyços, forados da

carqueyja, e xxiiij. coyros de bois verdes, pregados sobre ella por goarda do fogo e dos

troons”429.

É necessário ainda referir que as torres de assalto nem sempre eram utilizadas

num ataque directo às muralhas: por exemplo, no ataque à segunda cerca de Guimarães

no assédio ocorrido no ano de 1385, D. João I ordena a construção de uma bastida no

topo de umas casas próximas dessa cerca para que besteiros pudessem usufruir de uma

posição mais alta e protegida, tendo assim um ângulo de disparo mais vantajoso contra

as forças sitiadas430. Também as torres de assalto construídas no cerco de Chaves de

1386 eram utilizadas para um efeito semelhante. Uma primeira, destruída com fogo

numa sortida nocturna, encontrava-se próxima do rio Tâmega, impedindo os sitiados de

recolherem água do rio e permitindo aos sitiantes atacar a vila431. A segunda torre de

assalto é construída perto da barbacã e de uma das entradas da vila, num local mais

próximo do arraial do que a anterior432, pois a capacidade dos sitiantes em acorrerem em

socorro da primeira torre foi prejudicada pela distância que separava a torre destruída do

acampamento. Por ter uma altura superior às muralhas, a segunda torre de assalto

permitia aos combatentes que estavam no piso superior o lançamento de virotões e

pedras contra os adversários presentes num lanço das muralhas, de tal forma que, de

acordo com Fernão Lopes, nenhum dos sitiantes “ousaua em elle destar, com reçeo do

dano que da bastida reçebiam”433. A torre permitiu também às forças sitiantes o derrube

de uma parte da barbacã, possibilitando, assim, a passagem de combatentes para

procurarem britar as muralhas434.

Um outro tipo de engenho de aproximação era a “gata”, uma estrutura construída

com madeiras leves, “com superfícies da ordem dos 2,50 metros x 5 metros e com

alturas de cerca de 2 metros”435, com um telhado coberto por uma dupla cobertura de

tábuas juntas e por couro, cru e recém-esfolado, estando ainda as faces laterais

429 CDJ I, 2ª, cap. CXXXV, pp. 276-277. 430 Idem, Ibidem, cap. XII, p. 24. 431 Idem, Ibidem, caps. LXIV e LXV, pp. 154 e 155. 432 Esta segunda torre foi construída de forma a ser bastante mais resistente do que a anterior, “era tam

forte e assy forrada de traues e caniços e coiros cruus que per(o) huum emgenho que demtro tinham lhe

tirasse huuma noite trimta pedras e as vimte e sete dessem em ella, nenhuuma dellas lhe pode fazer nojo”,

Idem, Ibidem, cap. LXV, p. 155. 433 Idem, Ibidem. 434 Idem, Ibidem, cap. LXVI, p. 159. 435 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 229.

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protegidas com vimes436. Este engenho tinha como objectivo proteger a aproximação de

um pequeno grupo de combatentes em direcção às muralhas, permitindo-lhes depois

pegar fogo às portas, picar os muros ou minar os alicerces das muralhas com alguma

protecção em relação aos projécteis arremessados dos adarves437. É com um destes

engenhos que o Mestre de Avis, no final de 1383, pretende atacar o castelo de Lisboa,

embora não tenha sido utilizada por a guarnição se ter rendido ao fim de 3 dias438.

Semelhantes às gatas, nesta época eram utilizadas ainda as “mantas”, também

denominadas como “manteletes”. Com dimensões bem mais reduzidas do que as gatas –

e por isso com capacidade para proteger um número mais reduzido de combatentes –,

serviam para dar cobertura contra projécteis lançados pelos sitiados contra os homens

que, por exemplo, procuravam atulhar os fossos, ou que avançavam em direcção às

escadas, às bastidas ou que se deslocavam nas imediações das muralhas (nomeadamente

com o intuito de recolherem os feridos ou os corpos dos camaradas falecidos), ou,

ainda, para o ataque às portas dos castelos ou das barbacãs, protegendo os guerreiros

que procurariam pegar fogo às portas439. É necessário referir ainda que, para além da

função de protecção dos combatentes, as mantas permitiam também proteger os

engenhos de arremesso de projécteis, quer contra possíveis sortidas, quer contra o

arremesso dos projécteis lançados pelos adversários440. De acordo com Fernão Lopes,

no cerco de Almada de 1384, as forças de Juan I utilizaram este tipo de engenhos num

assalto à vila441, assim como as forças de D. João I, no cerco de Tui de 1389442.

Com o auxílio dos engenhos acima referidos, a aproximação às muralhas podia

ser feita de modo mais seguro, ou seja, com um número menor de baixas. No entanto,

só o acesso a estes pontos das muralhas ou das fortalezas não bastaria, pois os sitiantes

teriam ainda que resistir à acção dos sitiados. No assalto ao castelo de Alenquer,

ocorrido em 1384, as forças sitiantes afectas ao Mestre contam com a ajuda da

população, que abre as portas da vila, e, perante a recusa do alcaide em entregar o

castelo, os combatentes atacantes iniciam o combate por este, procurando pegar fogo às

436 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 229. 437 Idem, Ibidem. 438 CDJ I, 1ª, cap. XLI, pp. 70-71. 439 MONTEIRO, João Gouveia, A guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, p. 351. 440 Idem, Ibidem. 441 CDJ I, 1ª, cap. CXXXVI, p. 235. 442 CDJ I, 2ª, cap. CXL, p. 288.

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suas portas443. No entanto, os defensores, com a água que atiravam e pelo facto de a

porta estar abrigada do vento, conseguiram apagar os fogos que os sitiantes tentavam aí

atear. Esta contrariedade, juntamente com as notícias de que Juan I estaria a caminho de

Alenquer com o seu exército, fez com que os atacantes, ao aperceberem-se da

impossibilidade de tomarem rapidamente o castelo, desistissem do ataque444. No cerco

de Vila Viçosa de 1384, Nuno Álvares Pereira procurou que as suas forças entrassem na

vila pela porta da Torre, “que he a mais forte que ella tem”445, localizada na base de

uma torre bastante larga com uma abóboda que se encontrava directamente sobre a

porta e que a defendia. Uma força avançada, liderada Fernão Pereira, procurou atacar

essa porta, mas este foi atingido por “huũ gramde camto de çima, [...] que lhe esmagou

o baçinete e a cabeça toda, e foi logo morto” 446 . Álvaro Coitado, por outro lado,

conseguiu chegar à porta, mas, ao entrar na vila, foi ferido e aprisionado, e as portas da

vila foram fechadas, antes ainda de Nuno Álvares Pereira chegar com o resto do seu

contingente. Ao saber da morte do seu irmão e da dificuldade que teria em tomar a vila,

o comandante das forças sitiantes decidiu então retirar447. Há, no entanto, casos de

sucesso para os sitiantes, como são exemplos a tomada do castelo de Beja, por altura da

passagem de 1383 para 1384, pela população, em nome do Mestre, após a queima das

portas e entrada na fortaleza448, ou cerco de Ponte de Lima de 1385, no qual as forças de

D. João I entram na vila e iniciam o assalto às torres, bem guarnecidas de homens e

abastecidas, com ataques vindos de dentro e de fora (liderados pelo Condestável) das

muralhas, pelos lanços dos muros, e através da “força darmas e de fogo e per

preitesya”449 foram todas tomadas. Ficava a faltar então a última torre, “a mais alta e a

mais defemssauel de todallas outras que ha na villa”450, e esta é prontamente atacada,

havendo o intuito de pegar fogo às portas da torre. Após negociações para preitesia, que

falharam, o combate é retomado, com Martim Afonso de Melo, João Rodrigues da

Guarda e Antão Vasques a subirem as escadas do muro em direcção a uma das portas,

443 “ca huũs levavom tramcas e touçinhos, outros lenha e azeite”, CDJ I, 1ª, cap. CIX, p 185. 444 Idem, Ibidem, cap. CIX, pp. 184-186. 445 Idem, Ibidem, cap. CLXXII, p. 322. 446 Idem, Ibidem. 447 Idem, Ibidem, caps. CLXXI, CLXII, pp. 320-323. 448 Refere-se ainda o caso da tomada do castelo de Beja pela população, em nome do Mestre, após a

queima das portas e entrada na fortaleza, Idem, Ibidem, cap. XLII, pp. 72-75. 449 “e auya em ella dous sobrados, e he toda chea ataa ho muro.[...] Esta tore, estaua açalmada de muitos

touçinhos e lenha ataa o prymeiro sobrado; e porque naquella quomarca ha muytas egrejas e moesteiros,

ademais da prata e denheiros que hij auia tinha o dito Lopo Gomez em guarda naquella tore”, CDJ I, 2ª,

cap. XVIII, p. 35. 450 Idem, Ibidem.

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sendo o segundo atingido por um canto e morrendo, o terceiro ferido gravemente, mas o

primeiro, protegido pelo arco da porta, estava já a tentar atear fogo à mesma. O fogo

que foi posto na porta acabaria por alastrar para dentro da torre, queimando a lenha e o

toucinho que aí se encontrava, deixando o primeiro andar em chamas, forçando os

defensores que estavam no segundo andar a irem para as ameias da torre, renegando

Lopo Gomes de Lira e os seus apoiantes, e anunciando a sua rendição451. Um último

caso é a tomada de Almeida, na qual as forças de D. João I conseguem começar a picar

o muro e a pôr fogo às portas de uma grande torre que aí havia, fazendo com que o

alcaide, ao deparar-se com a situação, pedisse para discutir termos para a entrega do

castelo452.

As diferentes características destes engenhos de que temos vindo a dar conta

permitiam ainda a sua utilização em conjunto num assalto à praça-forte, conferindo às

forças sitiantes mais soluções e possibilidades de saírem vitoriosas no ataque. Exemplos

disto são os cercos de Melgaço de 1388 e o primeiro cerco de Tui, de 1389. No primeiro

caso, as forças de D. João I constroem as já atrás referidas duas escadas e a torre de

assalto453, atacando depois a vila com esse conjunto de engenhos a avançarem até à

muralha, de tal forma que “chegou-sse tanto a villa que punhaão huum pee no muro

dentro e outro na escala”454. O monarca ordenou que um grupo de combatentes se

colocasse no último piso da torre, com besteiros a dispararem virotões e homens de

armas a atirarem pedras de mão contra os sitiados que se encontravam nos adarves, e,

após as escadas serem postas contra a muralha, iniciou o assalto que fez com que os

sitiados (que procuravam atingir os atacantes e os engenhos com pedras, cantos e fogo,

mas sem sucesso) acabassem por procurar chegar a um acordo para a sua rendição, face

à impossibilidade de resistirem ao assalto455. No segundo caso, no cerco de Tui, as

forças sitiantes lideradas por D. João I usaram uma grande escada, uma torre de assalto

e mantas para combater a cidade, acabando também por forçar a rendição da guarnição

sitiada456. A possibilidade da conjugação destes engenhos no ataque deveria “imprimir

ao assalto uma grande espectacularidade”457, de tal forma que em ambas as ocasiões o

451 CDJ I, 2ª, cap. XVIII, pp. 34-37. 452 Idem, Ibidem, cap. LXXIII, pp. 170-171. 453 Num processo que durou quinze dias, Idem, Ibidem, cap. CXXXV, p. 277. 454 Idem, Ibidem, cap. CXXXVI, p. 278. 455 Idem, Ibidem, cap. CXXXVI, pp. 278-279. 456 Idem, Ibidem, cap. CXL, p. 288. 457 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 229.

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monarca português convidou a rainha D. Filipa de Lencastre a deslocar-se aos cercos

para assistir ao desenrolar dos assaltos458.

A segunda forma de assalto às praças fortes era feita através da “utilização de

engenhos (neuro ou pirobalísticos)” 459 . Usufruindo do poder de destruição destes

engenhos, as forças sitiantes460 procuravam causar o maior dano possível nas diversas

estruturas fixas de defesa que auxiliavam os sitiados na sua resistência ao adversário,

retirando-lhes assim uma das principais vantagens na defesa do local. Ao derrubar torres

ou partes da muralha, os atacantes procuravam também abrir uma brecha por onde

pudesse ser lançado o assalto, permitindo a entrada de combatentes no interior do local

assediado. A destruição provocada pelos projécteis nas estruturas fixas poderia ainda

atingir os defensores que aí se encontravam, causando baixas entre os sitiantes e

aliviando assim a pressão que estes poderiam exercer sobre atacantes que estivessem

nas imediações das muralhas461.

Antes de iniciarmos o estudo destes engenhos de arremesso, de diversos tipos de

projécteis, “geralmente pelouros de pedra de peso variável, mas também materiais em

chamas”462, é necessário observar, em primeiro lugar, que, para o período estudado, as

fontes cronísticas indicam a utilização de “engenhos” nos palcos de guerra relatados,

sem, no entanto, serem especificados os tipos de engenhos presentes nos cercos. João

Gouveia Monteiro, ao alertar para este facto, refere que Fernão Lopes, embora fazendo

várias referências à presença dos engenhos nas operações militares por si narradas, não

foi nenhuma excepção e não distinguia os seus tipos, nomeando-os somente como

“engenhos”463. Assim, de entre os existentes na época, que se dividiam de acordo com a

sua forma de arremesso do projéctil, havia os engenhos que funcionavam por tensão ou

458 Melgaço, “E queremdo el-Rey mandar mouer os seus artefiçios pera combater o logar, fez saber a

Raynha que viesse ver o dia do combato. E veo entam ally” (CDJ I, 2ª, cap. CXXXVI, p. 278), e Tui, “E

mamdou por a Raynha ao Porto, que vyesse ver como combatião; e veo e estaua com el-Rey no cerco”

(Idem, Ibidem, cap. CXL, p. 288). 459 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 229. 460 Também as forças sitiadas poderiam fazer uso destes engenhos, como sucede, por exemplo, no cerco

de Chaves de 1386, no qual Fernão Lopes refere a existência de um engenho que dispara trinta pedras

contra uma torre de assalto (CDJ I, 2ª, cap. LXV, p. 155), ou no cerco de Melgaço de 1388, onde os

defensores da vila disparam trons (tipo de engenhos que será abordado mais à frente) constantemente ao

longo do assédio (Idem, Ibidem, caps. CXXXIV, CXXXV, CXXXVI, pp. 275-280). 461 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em

Portugal na Idade Média, pp. 235-236. 462 Idem, Ibidem, p. 236. 463 MONTEIRO, João Gouveia, A guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, pp. 353-354.

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torsão de cordas (como a balista e a catapulta, “descendentes medievais das antigas

máquinas romanas”464, que recebiam designações como “algarrada”, a “mangana”, e o

“mangonnel”, considerados como “descendentes do célebre onager romano”465), e ainda

por contrapeso, como o trabuco. Seriam estes últimos, de acordo com João Gouveia

Monteiro, o tipo de engenho mais utilizado durante este período na guerra de cerco em

Portugal466 , se não mesmo os únicos que foram utilizados neste contexto 467 . Estes

engenhos de contrapeso468 tinham um maior poder de destruição do que os anteriores,

podendo disparar projécteis maiores e mais pesados, tendo assim um “efeito arrasador,

destruindo construções no interior das fortificações e abalando seriamente a estrutura

das muralhas”469. A frequente presença a que se assiste dos trabucos na poliorcética da

época justifica-se com a possibilidade de afinação com algum rigor da altura e da

distância do lançamento do projéctil470, através de ajustes efectuados “no braço e/ou no

contrapeso” 471 , permitindo um disparo relativamente certeiro de projécteis, que

poderiam ascender a mais de 100 quilos, às muralhas, torres ou outras estruturas que se

encontravam no local assediado472. Dois exemplos da utilização com sucesso destes

464 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 180. 465 Idem, Ibidem, pp. 180-181. 466 Idem, Ibidem, p. 181. 467 Idem, “3. Armamento de sítio”, in Pera guerrejar. Armamento medieval do espaço português, coord.

científica de Mário Jorge Barroca e João Gouveia Monteiro, Câmara Municipal de Palmela, Palmela,

2000, p. 409. 468 O trabuco de contrapeso “consistia numa longa trave assente num eixo suportado por dois grandes

cavaletes ou estruturas de madeira. Para armar o dispositivo, a ponta do lado mais comprido da trave era

rebaixada para que o projéctil fosse colocado numa funda, ou numa «colher» aí instalada, ficando a arma

então travada, através de um mecanismo de linguetas, até ao momento do disparo. Na outra extremidade,

elevada agora a alguns metros do solo, pendia uma caixa cheia de pedras, chumbo ou outros materiais

pesados, ou seja, o contrapeso. Assim que a máquina era destravada, a força exercida pelo contrapeso

fazia rapidamente descer essa mesma extremidade, elevando simultaneamente a oposta, imprimindo

velocidade à funda e soltando o projéctil, que descrevia uma trajectória parabólica até ao alvo”,

MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em Portugal

na Idade Média, p. 238. 469 BARROCA, Mário Jorge, "Da Reconquista a D. Dinis", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I,

pp. 145-146. 470 De tal forma que, por ordem de D. João I, a catedral de Tui não foi atingida em nenhum dos dois

cercos aí realizados, tanto em 1389 (“E de todas partes faziam grande destroyçam na cidade, saluo a see,

que nam tirauam”, CDJ I, 2ª, cap. CXL, p. 288) como em 1398 (caso referido no capítulo anterior do

acordo entre sitiados e sitiantes, “E el-Rey comsemtio em ello, porque lhe não prazia per nenhuum modo

que huma honrrada see antiga que ha na cidade, domde haa fama que jaz o corpo (de) frey Pero

Gonçalluez, recebesse nenhuum dapno da sua parte”, Idem, Ibidem, cap. CLXIX, p. 359). MARTINS,

Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em Portugal na Idade

Média, p. 239. 471 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em

Portugal na Idade Média, p. 239. 472 Idem, Ibidem.

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engenhos ocorrem nos cercos de Chaves de 1386473 e de Campo Maior em 1388474, nos

quais são destruídas, respectivamente, duas e uma torre. Um outro exemplo que

demonstra o potencial destruidor destes engenhos que poderiam permitir a abertura de

brechas nas muralhas ou a destruição de torres, ocorreu no cerco de Torres Vedras de

1384-1385. A discussão, já abordada no capítulo anterior, entre os “nom fiees

comsselheiros” e o mestre de artifícios sobre qual seria o melhor local para orientar os

disparos dos projécteis, se para uma parte das muralhas ou se para a torre de menagem e

um lanço dos muros, demonstra a confiança depositada no poder destrutivo destes

engenhos e na sua capacidade de criarem brechas pelas quais os agressores poderiam

invadir o perímetro amuralhado475.

Em relação ao transporte dos engenhos, dificultado pelo peso e dimensões

destes, embora fosse complicado, era possível fazê-lo, através da desmontagem e

montagem destes, o que por vezes facilitava e acelerava uma operação de cerco,

utilizando engenhos construídos para outras operações anteriores, transportados com a

hoste ou guardados em localidades ou fortalezas. Por exemplo, no segundo cerco de

Alenquer de 1384, após o cerco de Lisboa, o Mestre de Avis ordena o transporte de dois

engenhos de cerco e um trom de Lisboa, que são levados para o arraial por barcas476, e,

após ter sido bem sucedido nesse cerco, D. João dirige-se para Torres Vedras, onde João

Fernandes Pacheco já tinha iniciado o cerco à vila, levando consigo os engenhos de

cerco e o trom utilizados em Alenquer477. No cerco de Vila Viçosa de 1384, Nuno

Álvares Pereira ordena o transporte de um engenho de cerco vindo de Elvas, devido à

proximidade das vilas e para não ter que despender tempo na construção de um novo

engenho 478 . É necessário frisar ainda que devido à complexidade da construção,

montagem e manuseamento de engenhos de cerco a presença de elementos

especializados – os “mestres dos engenhos”, como são designados – nos exércitos era

fulcral para um uso eficiente destas armas479.

473 CDJ I, 2ª, cap. LXIV, p. 154. 474 Idem, Ibidem, cap. CXXXVIII, p. 282. 475 Idem, Ibidem, cap. CLXIX, p. 319. 476 Idem, Ibidem, cap. CLXVI, pp. 313-314. 477 Idem, Ibidem, cap. CLXIX, p. 317. 478 CDJ I, 1ª, cap. CLXXII, p. 323. 479 A estes especialistas eram atribuídos privilégios e recompensas, demonstrando a sua importância no

contexto de cerco da época. MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e

guerra de cerco em Portugal na Idade Média, p. 236, e MONTEIRO, João Gouveia, A guerra em

Portugal - nos finais da Idade Média, p. 357.

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Após este breve estudo sobre os engenhos neurobalísticos, passamos agora para

os engenhos pirobalísticos, sobre os quais Philippe Contamine defende que, ao longo do

último quartel do século XIV e do primeiro quartel do século XV (no contexto da

Guerra dos Cem Anos), estes tenham tido uma utilização reduzida quando comparada

com a dos engenhos neurobalísticos, que continuavam a ter um papel preponderante na

poliorcética da época480. A utilização da pólvora na Europa, e, por conseguinte, de

armas pirobalísticas, inicia-se, de acordo com aquele autor, no século XIV,

possivelmente em 1324 (num cerco a Metz) ou a partir de 1331, em Cividale, no

nordeste da Península Itálica, referindo ainda que estas armas são introduzidas na

Península Ibérica pelas mãos dos muçulmanos, com fontes hispânicas a referirem a sua

utilização pelos exércitos islâmicos na guerra contra Afonso XI de Castela em 1343481.

No contexto português, começam a surgir as primeiras armas de fogo, ou pirobalísticas,

como os trons ou as bombardas, pelo menos desde o reinado de D. Fernando482. Estas

armas disparavam projécteis de pedra ou ferro a grande velocidade e que poderiam

percorrer grandes distâncias. No entanto, nesta fase inicial, a pontaria e o alcance destes

disparos eram reduzidos, devido a factores como a falta de um qualquer mecanismo que

permitisse apontar com precisão (visto que somente era possível apontar a olho), o

vento483, ou a imprevisibilidade do projéctil à saída da boca de fogo, devido à rotação e

choques daquele ao longo do interior da arma, resultando assim numa maior dispersão

do tiro e numa redução considerável da velocidade inicial do disparo484. No entanto,

estas armas tinham ainda outras desvantagens, como as suas dimensões e peso, que

dificultavam o seu transporte, a cadência reduzida de disparo, os perigos no seu

manuseamento ou os seus custos de fabrico ou de aquisição, resultando assim numa

480 CONTAMINE, Philippe, War in the Middle Ages, pp. 194-195. 481 Idem, Ibidem, pp. 138-139. 482 Nuno José Varela Rubim aponta para uma passagem na Crónica de D. Fernando, de Fernão Lopes,

que permite constatar que, pelo menos desde 1381, já eram produzidas em Portugal armas pirobalísticas.

Para além disso, o mesmo autor refere ainda que, também de acordo com uma passagem da Crónica de D.

Fernando (Cap. CXXXIV), em 1382 algumas peças pirobalísticas já eram fabricadas em Évora. RUBIM,

Nuno José Varela, Sobre a possibilidade técnica do emprego de Artilharia na Batalha de Aljubarrota,

separata da Revista de Artilharia, Serviços Gráficos da Liga dos Combatentes, Lisboa, 1986, pp. 8-9 (nºs

725-726, Jan-Fev 1986, pp. 257-283) e RUBIM, Nuno José Varela, “3.2. Bocas de Fogo”, in Pera

guerrejar. Armamento medieval do espaço português, p. 417. 483 Nuno José Varela Rubim indica uma diferença de 9% entre as velocidades iniciais das bombardas do

século XIV e as do século XVI, causada por influência do vento (velocidades iniciais de 286 m/s e 315

m/s, respectivamente). RUBIM, Nuno José Varela, “Sobre a possibilidade técnica do emprego de

Artilharia na Batalha Aljubarrota”, Revista de Artilharia, p. 17. 484 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, pp. 181-183.

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utilização pouco frequente, quando comparada com os engenhos neurobalísticos485. O

uso destes engenhos pirobalísticos era, na sua maioria, feita pelos sitiados486, visto que a

limitada mobilidade e ângulo de tiro dos primitivos trons e bombardas dificultavam o

seu uso pelos sitiantes487. Um exemplo desta dificuldade maior para os sitiantes é a

tentativa de utilização de um trom por parte das forças que montam cerco a Torres

Vedras em 1384-1385, no qual o Mestre ordena a colocação de um destes engenhos no

túnel que havia sido escavado para dentro da vila para ir destruindo os destroços

colocados pelos defensores à saída deste túnel, sem, no entanto, atingir o resultado

esperado, acabando por abandonar esse plano488. Existia, no entanto, a possibilidade de

utilizar as bocas-de-fogo de menor dimensão, por exemplo, a bordo de algumas

embarcações. A frota castelhana que se encontrava no rio Tejo a participar nos cercos

de Lisboa e Almada, em 1384, tinha alguns barcos equipados com bocas-de-fogo489.

Atentemos ainda em dois exemplos que demonstram as diferentes eficácias dos

engenhos neuro e pirobalísticos: o primeiro, no cerco de Chaves de 1386, no qual os

engenhos das forças sitiantes faziam grandes danos à vila e ao castelo, não só materiais

mas também causando baixas, enquanto o trom e o engenho que a vila tinha pouco dano

faziam ao arraial, mostrando que um uso eficaz dos engenhos dava uma grande

vantagem no conflito à força respectiva490. Um segundo exemplo é o cerco de Melgaço

de 1388, que durou 51 dias, com Fernão Lopes a relatar que “cada dia tirauão os troons

(e emgenhos huns aos outros); e o enjenho fazia muyto mal na villa. E os troons não

enpeçião nada” 491 , e no qual foram lançadas pelos sitiados 120 pedras de trons,

enquanto os sitiantes lançaram 336 pedras de engenho, mostrando o considerável fosso

na cadência de disparo entre as armas comparadas (cuja média resulta em,

respectivamente, cerca de 2 disparos de trons e 6 lançamentos de pedras por dia)492.

485 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 183. 486 Como acontece no cerco de Almada em 1384, onde as forças almadenses atingem com um disparo de

um trom um estrado no campanário da igreja de Santiago que o monarca castelhano havia ordenado

construir para poder observar o assalto à vila, matando dois combatentes castelhanos e ferindo outros três.

CDJ I, 1ª, cap. CXXXV, p. 235. 487 MONTEIRO, João Gouveia, A guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, p. 355. 488 CDJ I, 1ª, cap. CLXXIV, p. 326. 489 Idem, Ibidem, cap. CXXXIX, p. 242. 490 CDJ I, 2ª, cap. LXV, p. 155. 491 Idem, Ibidem, cap. CXXXVI, p. 277. 492 Idem, Ibidem, cap. CXXXVI, p. 279, e MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à

Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol.

I, pp. 279-280.

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Os incessantes disparos destas máquinas de guerra por parte dos sitiantes, em

determinados casos tanto durante o dia como durante a noite493, e por vezes de vários

engenhos ao mesmo tempo494, criavam um ambiente de constante ameaça aos sitiados,

destruindo estruturas fixas de defesa ou edifícios e podendo resultar num elevado

número de ferimentos ou mortes dentro do local assediado, exercendo assim uma

intensa pressão psicológica sobre a guarnição e população cercadas que poderia levar à

rendição destes e à tomada da praça fortificada495.

Antes de prosseguirmos com as outras formas de conquista de praças, é

necessário referir a utilização em conjunto de engenhos de aproximação e de arremesso

de projécteis. O cerco de Melgaço de 1388 é um exemplo da pressão psicológica

exercida pelos vários tipos de engenhos, quando conjugados uns com os outros, pois,

como João Gouveia Monteiro assinala, “para além desta saborosa contabilidade dos

tiros trocados entre os beligerantes496 [...], deve sublinhar-se que boa parte da pressão

exercida pelos sitiadores se consumou graças ao fabrico de duas grandes escadas [...] e

de uma bastida”497.

A terceira forma de tomada de fortalezas era executada através da “escavação de

túneis (as cavas ou minas)”498 . Num processo algo moroso e complexo, as forças

sitiantes escavavam um túnel devidamente sustentado por vigas de madeira secas para

evitar um desmoronamento precoce e garantir a segurança dos assaltantes que aí se

encontravam, profundo o suficiente para ultrapassar fossos presentes no local,

493 No cerco de Chaves de 1386, “Os emgenhos jsso mesmo tirauom ameude de dia e de noite, e

deribauom no castello e na villa muytas casas, e matauom as gemtes e faziam muyto dano”, CDJ I, 2ª,

cap. LXV, p. 155. 494 No cerco de Braga de 1385, as forças sitiantes (a população toma a iniciativa de cercar o castelo, sob o

controlo de Vasco Lourenço, que tinha voz por Castela, juntando-se depois ao assédio um contingente

liderado pelo Condestável) aproveita os quatro engenhos que se encontravam na cidade para disparar

contra o castelo, e, quando o Condestável aí se encontra, os quatro engenhos disparam “contynuadamente

per espaço de duas noites e huum dya, de guisa que eram dentro no castello alguuns mortos e ferjdos”,

Idem, Ibidem, cap. XIV, p. 28. 495 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em

Portugal na Idade Média, pp. 239-240, e MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à

Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol.

I, pp. 229-230. 496 Referida anteriormente. 497 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 280. 498 Idem, Ibidem, p. 230.

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direccionado às fundações das muralhas ou de torres499. Após o túnel atingir a distância

desejada pelos sitiantes, estes pegariam fogo aos materiais inflamáveis aí colocados que

acabaria por alastrar às vigas que sustentavam o túnel, fazendo este ruir e, assim,

desabar parte das muralhas ou uma torre, abrindo uma brecha pela qual os atacantes

poderiam invadir o local assediado500. Havia, no entanto, outra possibilidade para as

forças sitiantes, que consistia no prolongamento do túnel para além da cintura das

muralhas e para o interior do local cercado, criando assim uma entrada dentro do

período amuralhado, através da qual, durante a noite, um pequeno contingente de

combatentes sairia da cava de surpresa e poderia rapidamente dirigir-se às portas da

praça-forte, abrindo-as e possibilitando o assalto em força com o resto dos seus

companheiros501.

No segundo cerco de Alenquer de 1384, as forças sitiantes lideradas pelo Mestre

de Avis iniciam a escavação de um fosso a partir de uma casa nos arredores da vila, que

tinha como objectivo provocar o colapso de uma torre que se encontrava na porta de

Santa Maria da Várzea (ou também chamada de porta do Carvalho)502. Embora não

tenha sido terminado, este fosso foi um dos motivos pelos quais o alcaide Vasco Peres

de Camões acabou por se decidir por uma preitesia com o Mestre503.

Após Alenquer, as forças do Mestre dirigem-se para Torres Vedras, e cercam a

vila entre os finais de 1384 e inícios de 1385. Por ordem de D. João os sitiantes

constroem uma mina, “larga e espaçosa, de guisa que tres homeẽs darmas podiam hir

apar folgadamente per ella”504, com um intuito diferente: o de criar uma passagem até

ao adro da igreja de Santa Maria, “que he demtro no logar, amtre a villa e o castello”505.

O túnel foi construído sob grande secretismo a partir de uma tenda que se encontrava já

nos arrabaldes da vila, afastada do centro do arraial, e, assim, da atenção tanto dos

sitiados como dos sitiantes, esperando o Mestre que se mantivesse em segredo esta

acção, sendo a terra escavada transportada somente a coberto da noite. Para não levantar

499 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em

Portugal na Idade Média, pp. 241-242. 500 Idem, Ibidem, p. 241. 501 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 230. 502 CDJ I, 1ª, cap. CLXVI, p. 314. 503 Para além da sede que se começava a fazer sentir no interior da vila, também “as cavas [esta é a única

referência a cavas no plural neste cerco] que lhe faziam, e o emgenho gramde que armavõ pera lhe tirar”

convenceram o alcaide da “voomtade de comthinuar seu çerco” que o Mestre tinha. Idem, Ibidem, cap.

CLXVIII, p. 317. 504 Idem, Ibidem, cap. CLXIX, p. 318. 505 Idem, Ibidem.

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suspeitas, o Mestre passou, a partir de determinada altura, a visitar a tenda somente

durante a noite, de forma a não dar a entender a importância daquele local para as vigias

castelhanas e também para possíveis espiões no seio da sua hoste. Eventualmente, o

túnel é completado506 e D. João envia por este combatentes, liderados por João Gomes

da Silva, que encontram, no entanto, uma tenda à volta do buraco e grande resistência

por parte dos defensores, que haviam sido informados da construção do túnel e do local

onde este desembocaria pelos nossos já conhecidos “nom fiees comsselheiros” do

Mestre de Avis507. Para impedir a saída dos assaltantes, os sitiados utilizaram tábuas e

portas para estorvar a saída e atiraram água para apagar os fogos que os sitiantes

tentavam atear para destruir os materiais com que os defensores procuravam bloquear a

saída do túnel. O Mestre ordena então a colocação de um trom no túnel para ir destruído

os destroços, mas, no entanto, sem sucesso508.

O Mestre ordena depois a construção de um novo túnel em direcção à muralha

da vila, com o intuito de fazer desabar parte da muralha e torres e criar assim uma

passagem para dentro do perímetro amuralhado. A galeria é incendiada, abrindo a

brecha mas, uma vez mais, os defensores já sabiam das intenções de D. João e

reforçaram o local, com “cubas e tonees” e com uma bastida. A brecha estava então

eficazmente protegida pelos sitiados, de tal forma que Fernão Lopes relata que “de guisa

que omde o Meestre cuidou que ficasse per alli bem largo portall, pera emtrarem aa sua

voomtade, e elle porque o logar he amotado, ficou mais forte do que amte era, emtamto

que nenhuũ podia combater nem fazer cousa que lhe dano fezesse”, e D. João manda os

seus combatentes retirar, acabando por desistir de tomar a vila através desta forma509.

Como o exemplo deste último cerco demonstra, este método de tomada de

fortalezas era de elevada dificuldade de execução e eram vários os riscos que poderiam

frustrar os desígnios dos sitiantes. Estes teriam de levar a cabo a escavação do túnel de

forma discreta e prudente, sob o risco de os sitiados se aperceberem do plano dos seus

adversários e encetarem acções que impedissem o sucesso desta manobra. Para além

disso, era necessário que os intervenientes na escavação do túnel fossem indivíduos

peritos nesta prática para evitar derrocadas enquanto prosseguiam os trabalhos ou

mesmo para não calcularem mal a trajectória do túnel, correndo o risco de

506 Durante o processo, os sitiantes foram furando a terra, e tapando esse furo com barro, para observarem

o caminho que iam fazendo. CDJ I, 1ª, cap. CLXXIV, p. 325. 507 Idem, Ibidem, caps. CLXIX e CLXXIV, pp. 318 e 325-326. 508 Idem, Ibidem, cap. CLXXIV, p. 326. 509 Idem, Ibidem.

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desembocarem no local errado510. Por exemplo, no cerco de Almada de 1384 as forças

castelhanas escavam uma mina que, embora tivesse o intuito de chegar a uma torre da

vila, acaba, com erros de cálculo, por desembocar no fosso da barbacã, estando os

sitiados já preparados para receber os sitiantes, frustrando assim as forças de Juan I511.

O sucesso destas manobras até aqui descritas, caso a guarnição continuasse

ainda a resistir ao “desgaste e à debilitação prévia das forças adversárias e, acima de

tudo, das estruturas de defesas que as protegiam”512, permitia o desencadear de um

“assalto frontal massivo”513, contra uma guarnição já bastante enfraquecida, tendo assim

uma maior probabilidade de conseguir conquistar o local assediado.

Uma outra forma havia de proceder à conquista de uma praça-forte que não

envolvia a utilização dos diversos tipos de engenhos ou de processos morosos. Caso a

oportunidade surgisse, os atacantes poderiam recorrer a uma quarta e última forma, de

acordo com o modelo apresentado por João Gouveia Monteiro, que “consistia em

recorrer a um estratagema ardiloso”514 . Através de um plano astucioso, as forças

sitiantes tentariam com um ardil tomar o seu alvo de uma maneira menos arriscada do

que pela força bruta de um assalto frontal ou por um cerco prolongado, poupando assim

tempo, recursos e as vidas dos combatentes. No período observado nesta dissertação

encontramos alguns casos em que estes estratagemas são aplicados com sucesso,

momentos em que a astúcia se sobrepõe à força das armas.

Conjugados com estes estratagemas, era possível empreender assaltos furtivos às

fortalezas, que teriam de ocorrer sob o maior secretismo possível e com determinados

cuidados515 para que os atacantes pudessem aproveitar ao máximo o efeito de surpresa

sobre os defensores e assim fazer uso dessa vantagem. Para isso, os próprios

comandantes teriam que ter determinados cuidados na fase de planeamento da operação,

510 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em

Portugal na Idade Média, p. 242. 511 CDJ I, 1ª, cap. CXXXV, p. 235. 512 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em

Portugal na Idade Média, p. 235. 513 Idem, Ibidem. 514 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 230. 515 Estes cuidados eram de tal forma fulcrais e tinham que ser impostos com tal zelo que, por exemplo, no

cerco de Guimarães de 1385 D. João I ordenou aos seus combatentes que evitassem que os seus cavalos

relinchassem, e havendo “huum cauallo que rynchou, mandou logo el-Rey que o matassem”, CDJ I, 2ª,

cap. XI, p. 21.

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de forma a evitar fugas de informação. Antes do assalto furtivo a Portel em 1384, Nuno

Álvares Pereira mantém as suas intenções em segredo somente entre os principais

envolvidos na operação, saindo de Évora ao final da tarde e indo em direcção a

Evoramonte, e, ao fim de uma légua, o seu contingente envereda “per hũa rribeira

affumdo, atravessamdo sempre sem caminho, ataa que foi sahir aa estrada que vai pera

Portell” 516 . Como forma de minimizarem os riscos de serem descobertos, os

combatentes poderiam armar-se com equipamentos mais ligeiros, de forma a

movimentarem-se mais depressa, com menos restrições de movimento e sem o ruído do

tilintar das suas armas e protecções517, e, ainda, arranjar formas de reduzir o relinchar

dos cavalos, como, por exemplo, sucedeu no cerco de Ponte de Lima, no qual, durante a

aproximação das forças de D. João I à vila, as línguas das montadas são atadas com fitas

feitas com as caudas dos cavalos518. Essas cautelas deviam ser tomadas, desde logo,

durante a aproximação às praças-fortes, que deveria ser feita à revelia da atenção dos

defensores, utilizando “estradas pouco frequentadas, afastadas das vias mais

movimentadas e, se possível, escondidas pelas irregularidades do terreno ou pela

cobertura vegetal”519, ou mudando subitamente o trajecto da hoste, como fez D. João I

antes de dar início ao já referido cerco de Ponte de Lima520. À partida, os assaltantes

teriam uma maior possibilidade de sucesso se a deslocação para o local ocorresse

durante a noite, principalmente em noites nubladas ou de lua nova, permitindo às forças

atacantes aproximarem-se do seu alvo a coberto da escuridão e, assim, evitar que

fossem descobertos pelos defensores. No entanto, a escuridão também dificultaria a

visibilidade dos atacantes no momento em que estes iniciassem a sua ofensiva, fazendo

com que os comandantes, na generalidade, preferissem reunir as suas forças num local

relativamente próximo do seu alvo mas afastado o suficiente para que não levantassem

suspeita, desencadeando o ataque ao amanhecer, pois embora não estivessem já a

516 CDJ I, 1ª, cap. CLVII, p. 295. 517 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em

Portugal na Idade Média, pp. 194. 518 “E ally ficou el-Rey (e) todo(s) a pee terra, deçidos das bestas, atando-lhe as lingoas com as sedas do

rabo por nom rincharem e poderem seer descubertos”, CDJ I, 2ª, cap. XVI, p. 31. 519 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em

Portugal na Idade Média, p. 193. 520 De Guimarães “calladamente partio el-Rey [...] e fingeo que hija caminho do Moesteiro da Costa, pol-

lo nenhuum nom entender. Pero, nom embargamdo jsto, como se el-Rey Partio, logo huum homeem que

hij amdaua por emculca se foy apresa a Pomte de Lima e disse a Lopo Gomez: Sabee de çerto que el-Rey

he partido de Guimaraaes, e nom sabem pera homde vay. Mas afirma-sse desua hida que leua caminho

do Moesteiro da Costa; outros dizem que se vay a Villa Reall. – Certamente, disse Lopo Gomez, sobre

Villa Reall hira, [...]. El-Rey, himdo per aquell fingido caminho ja boom espaço, deu volta era Ponte de

Lima, e chegou bem noite aaquem do logar huuma legoa”. CDJ I, 2ª, cap. XVI, p. 31.

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coberto da escuridão, este era o período do dia em que, por um lado, ainda grande parte

da guarnição e da população estaria a dormir e, por outro, as sentinelas, já cansadas e

sonolentas e a prepararem-se para terminarem os seus turnos de velas e roldas,

começavam a abrir as portas do local, tornando-se este período do dia num momento em

que as forças defensivas menos atentas e preparadas estariam para resistir a uma

ofensiva rápida e sem aviso prévio521. As condições climatéricas poderiam também

auxiliar as aproximações furtivas às fortalezas, com os atacantes a aproveitarem,

principalmente durante o Inverno, o tempo frio, nevoeiros, chuvas ou até neve,

condições estas que, para além de dificultarem a visibilidade aos defensores, poderiam

fazer com que as sentinelas não desempenhassem as rondas com o mesmo afinco do que

num clima menos agreste522.

A tomada do castelo de Monsaraz, ocorrida em 1384, é um destes exemplos de

conquista através de um ardil. Gonçalo Rodrigues de Sousa, senhor do castelo de

Monsaraz, que “se lamçara com os Castellaãos”523, ordenara ao alcaide desse castelo

que tomasse voz pelo rei castelhano. Atendendo à posição estratégica de relevo que o

castelo ocupava naquela região fronteiriça, Nuno Álvares Pereira, que se encontrava em

Évora, ao saber que a guarnição do castelo era reduzida, que “o escudeiro que era

Alcaide, nom tiinha comssigo salvo sua molher, e pouco homeẽs, e que estava

mimguado de mantiimento”524, procura uma forma de tomar a fortaleza, que facilitaria a

execução de operações militares na região. Nuno Álvares Pereira ordena então que um

seu escudeiro levasse dez a doze homens consigo e que se infiltrassem no arrabalde de

Monsaraz esperando pela libertação de algumas vacas nas proximidades do local para

assim atrair os castelhanos a saírem do castelo e a deixá-lo indefeso. Prevendo que

aqueles, graças à situação de iminente falta de mantimentos, sairiam pela porta de

Solórquia525 e que não a fechariam até trazerem de volta o gado, Nuno Álvares Pereira

põe em prática o seu plano, lançando o isco em direcção a um vale próximo da vila. O

alcaide, ao ver as vacas “teve que Deos lhe tragia boa vemtuira pella porta”526, saindo

521 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em

Portugal na Idade Média, pp. 194-196 522 Idem, Ibidem, pp. 194-195. 523 CDJ I, 1ª, cap. CXLIII, p. 256. 524 Idem, Ibidem. 525 Miguel Gomes Martins refere a existência das portas da Vila, de Évora, da Alcoba e do postigo do

Buraco no perímetro amuralhado da vila, acrescentando que, no entanto, não é possível saber qual destas

seria a porta de Solórquia referida nas fontes narrativas. MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra

– Castelos, muralhas, e guerra de cerco em Portugal na Idade Média, p. 57. 526 CDJ I, 1ª, cap. CXLIII, p. 257.

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rapidamente com alguns homens com o intuito de trazerem as vacas para o castelo,

caindo assim no engodo. Estando a porta da vila aberta e sem guarda, os assaltantes, que

se encontravam por entre “alguũas casas mais chegadas bem açerca do castello; e outros

tras penedos e barramcos que ssom jumtos muito preto”527, entram na vila e tomam

facilmente controlo do castelo528.

No assalto furtivo a Portel, ocorrido nos inícios de Novembro de 1384, a acção

de um “clerigo de missa”529 local chamado João Mateus é fulcral na conquista desta vila

pelas forças afectas de Nuno Álvares Pereira. Este clérigo arranja moldes em cera das

chaves de uma porta da vila e dirige-se a Évora, onde fala com Nuno Álvares Pereira,

referindo o seu desejo que Portel tomasse voz pelo Mestre de Avis. As cópias das

chaves são feitas e, após voltar a Portel e verificar que estas funcionavam, volta de novo

a Évora, onde Nuno Álvares Pereira elabora um plano para tomar o castelo de Portel.

Assim, Nuno Álvares sai de Évora com um contingente de combatentes530, e, a coberto

da noite, percorrem as seis léguas até Portel, chegando de madrugada às imediações da

vila 531 . Aí esperam por um sinal de João Longo (que juntamente com outros

companheiros portugueses estavam encarregues da vigilância das muralhas e das torres

da praça-forte e haviam sido convencidos por João Mateus a cooperar com o plano de

Nuno Álvares e a rebelarem-se contra a guarnição castelhana) que indicaria a presença

de combatentes castelhanos a rondar aquele lanço das muralhas na altura532. As forças

assaltantes, após a passagem da rolda castelhana, dirigem-se até à porta, “o mais

calladamente que sse fazer pode”533, aberta entretanto pelo clérigo534, entrando assim na

vila, onde são vistos por alguns defensores castelhanos que fazem soar imediatamente o

alarme. Este aviso, no entanto, veio tarde pois as forças de Nuno Álvares Pereira535 já se

encontravam dentro do perímetro amuralhado. Todo este alarido acorda o fronteiro D.

Garcia Fernández, líder da guarnição, e os seus combatentes, que, na pressa de

527 CDJ I, 1ª, cap. CXLIII, p. 256. 528 Idem, Ibidem, cap. CXLIII, pp. 256-257. 529 Idem, Ibidem, cap. CLVII, p. 294. 530 Que, como já foi acima referido, saem de Évora com destino a, supostamente, Evoramonte. 531 “com os baçinetes nas cabeças, e suas acostumadas armas com as lamças nas maãos”, CDJ I, 1ª, cap.

CLVII, p. 295. 532 “E os da vela que disto tiinham esperto cuidado, como semtirom que eram açerca, e cirom viinr a

rrollda pello muro, começarom de braadar apupamdo: Ex a rraposa vai! Eylla rraposa vay! que era o

çerto sinall amtrelles”, Idem, Ibidem. 533 Idem, Ibidem. 534 “que dabrir as portas tiinha moor cuidado que de rrezar as matinas”, Idem, Ibidem, cap. CLVII, pp.

295-296. 535 Que, após o alarme dos defensores, ordena também que toquem as suas trombetas.

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chegarem ao castelo, equipam-se mal, sendo assim facilmente capturados pelos

atacantes que se encontravam já no interior da vila. Através deste assalto furtivo, as

forças sitiantes conseguem cercar o castelo, e, sob a ameaça de Nuno Álvares Pereira de

que combateria o castelo “logo e o rromperia per tres partes”536, a guarnição castelhana

rende-se uns dias depois537.

No cerco de Guimarães de 1385, a passagem da primeira cerca pelas forças de

D. João I é feita graças a Afonso Lourenço, que pede a João Azedo, porteiro da porta do

Postigo, que de madrugada tivesse a porta aberta, pois este “andaua soo e querja trager

huma cuba em humm carro, [...], pol-lo nenhuum veer”538. O porteiro acedeu e tinha a

porta aberta à hora combinada, sendo depois atacado por Paio Rodrigues e um grupo de

combatentes avançado, que passaram a guardar a porta, colocando-se também no muro

para estorvar qualquer tentativa de defensores que se apercebessem da situação. Afonso

Lourenço chega à porta pouco depois e faz sinal a quem estava de atalaia, que por sua

vez avisa o rei, que assim cavalga com as suas forças em direcção à porta. Embora um

escudeiro de Aires Gomes da Silva, alcaide-mor, se tenha apercebido da situação e

tenha feito soar o alarme, grande parte das forças afectas a Castela, apanhadas

desprevenidas, fogem em direcção à protecção das muralhas da alcáçova, eclodindo

pequenas escaramuças dentro da vila que são resolvidas rapidamente a favor das forças

portuguesas (que contaram ainda com o apoio da população). Ao fim de poucas horas as

forças de D. João I tinham então sob o seu controlo a vila baixa e iniciam assim um

cerco à alcáçova já a partir do interior da vila, que se prolongaria por mais um mês539.

Importa referir que nestes dois últimos cercos a acção de habitantes da praça-

forte, vistos de uma certa perspectiva como acções de traição a favor dos assaltantes,

conferia uma maior probabilidade de sucesso a este tipo de assaltos.

A tomada de Badajoz em 1396 é um outro exemplo de como um ardil e um

assalto furtivo poderiam surpreender com sucesso a guarnição de um local e dar a

vitória com uma relativa facilidade às forças assaltantes. Meses antes da tomada,

Martim Afonso de Melo e Gonçalo Eanes de Cão reúnem-se para engendrarem um

plano para fazer entrar um contingente de combatentes na cidade e assim tomá-la. Para

ganhar a confiança de um porteiro local, essencial para o plano, Gonçalo Eanes

536 CDJ I, 1ª, cap. CLVIII, p. 296. 537 Idem, Ibidem, cap. CLVIII, pp. 297-298. 538 CDJ I, 2ª, cap. XI, p. 22. 539 Idem, Ibidem, cap. XI, pp. 21-23.

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convence-o a ir durante a noite até Elvas buscar um monte de trigo abandonado

(deixado aí por Martim Afonso) e que seria repartido com o referido porteiro. A mulher

do porteiro manteria a porta aberta à espera do regresso do seu marido e de Gonçalo

Eanes. Este processo repetir-se-ia várias vezes, fazendo com que o porteiro confiasse

então em Gonçalo Eanes.

O casamento de Martim Afonso com D. Beatriz, filha de João Afonso

Pimentel 540 , viria a adiar o plano, assim como uma crescente desconfiança dos

habitantes de Badajoz em relação a Gonçalo Eanes (fazendo com que este abandonasse

a cidade e se dirigisse para Sevilha de forma a apaziguar essa mesma desconfiança541).

Passados cerca de nove meses542 estes dois encontram-se de novo em Évora, e Gonçalo

Eanes convence Martim Afonso a uma vez mais tentarem tomar Badajoz, não se

importando de correr o risco e voltar à cidade543. Embora a sua entrada tenha sido

proibida, Gonçalo Eanes consegue entrar em contacto com o porteiro com quem tinha

transportado várias vezes trigo a coberto da noite meses antes, avisando-o que viria

durante a noite a Badajoz trazendo animais carregados com trigo 544 . Assim, na

madrugada do dia 12 de Maio, Gonçalo Eanes encontra-se com o porteiro, que já tinha a

porta aberta e afastam-se um pouco da torre em que esta se encontrava, dizendo o

português para que o porteiro esperasse um pouco por si enquanto ia buscar os animais.

Gonçalo Eanes encontra-se com Martim Afonso, que estava perto de Badajoz com um

contingente de combatentes, e, após dominarem o porteiro, leva dez destes até à porta,

onde estava a mulher do porteiro à espera (que é depois posta em sua casa, garantindo

que não daria alarme), enquanto Martim Afonso se aproximava com os restantes

combatentes. O grupo de Gonçalo Eanes é descoberto enquanto esperava pela chegada

de Martim Afonso, envolvendo-se numa escaramuça no adarve com os guardas

castelhanos que estavam aí de guarda, deixando a entrada livre para o resto dos

combatentes. Badajoz oferece pouca resistência, exceptuando duas torres que

eventualmente são também tomadas, visto que chegam a Badajoz contingentes de

540 CDJ I, 2ª, cap. CLVI, pp. 326-327. 541 Idem, Ibidem, cap. CLVI, pp. 327- 328. 542 O dia da tomada de Badajoz ocorreu no “dia dAçensão do anno de iiij.ᶜ xxxiiij, avemdo noue meses

que se este segredo amdaua goardado”, Idem, Ibidem, cap. CLVIII, p. 333. 543 Idem, Ibidem, cap. CLVII, pp. 328-329. 544 Idem, Ibidem, cap. CLVII, p. 330.

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combatentes a pé e a cavalo vindos de Elvas, Olivença e Campo Maior, liderados por

Álvaro Coitado para apoiar na tomada da cidade545.

Havia ainda um outro tipo de estratagemas, “mais cruéis”546, a que os sitiantes

poderiam recorrer para forçar a guarnição de uma fortaleza a render-se. Colocando

familiares do alcaide ou de membros da guarnição sitiada nos engenhos, na funda dos

engenhos de arremesso ou no topo dos engenhos de aproximação, os atacantes

procuravam pressionar os defensores e impedir que estes atacassem esses artifícios,

“divididos entre a obrigação de resistir ao assalto e a repugnância natural em ver morrer

os seus próprios familiares!”547, ou ameaçando matar esses mesmos parentes à vista da

guarnição, impotente em relação a esta acção.

Na conquista do castelo de Lisboa em 1383, Martim Afonso Valente, alcaide em

representação do conde João Afonso Teles, envia um escudeiro ao conde para informá-

lo da situação, referindo que os habitantes de Lisboa ameaçavam colocar os familiares

da guarnição em cima da “gata” que seria utilizada no assalto ao castelo548.

Também em Estremoz e em Évora, nas tomadas dos respectivos castelos entre os

últimos dias de 1383 e primeiros de 1384, as populações locais, que estavam contra a

regência de D. Leonor Teles e os termos acordados em Salvaterra de Magos entre o

falecido rei D. Fernando e Juan I, recorrem a estes estratagemas. No primeiro caso, a

população de Estremoz exige que o alcaide saia da cidade e que lhes entregue o castelo

e, face à recusa deste em fazê-lo, a população prepara-se para tomar a fortaleza,

colocando familiares de elementos da guarnição num carro que haviam posto na praça.

A guarnição, face à ameaça aos seus familiares, pede ao alcaide que entregue o

castelo549.

Em Évora, perante a dificuldade que a população teria em tomar o castelo, “o

quall era mui forte de torres e muro, e çerco de cava, e mui maao de tomar sem gram

trabalho”550, os atacantes juntam os familiares dos defensores e colocam-nos em carros,

545 Idem, Ibidem, cap. CLVIII, pp. 330-334. 546 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 230. 547 Idem, Ibidem. 548 CDJ I, 1ª, cap. XLI, pp. 70-71. 549 Idem, Ibidem, cap. XLIII, p. 76. 550 Idem, Ibidem, cap. XLIV, p. 77.

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amarrados, e aproximando-os do castelo551. Os atacantes exigiram que o alcaide lhes

desse o controlo do castelo, ameaçando que queimariam os familiares dos defensores à

vista da guarnição552, e de seguida puseram fogo às portas da fortaleza. O alcaide,

deparando-se com esta situação, e temendo também a reacção dos atacantes caso fosse

capturado, reuniu-se com o seu contingente e decide entregar a praça553.

Estas eram então as formas de que os sitiantes dispunham para conquistarem um

ponto-forte, gorada a hipótese de os sitiados se renderem por outros meios ou para os

sitiantes forçarem o fim do cerco a seu favor, antes que estes corressem o risco de eles

próprios serem forçados a abandonar o assédio. Através de uma aproximação e de uma

aplicação de pressão às estruturas fixas de defesa, fosse pelo assalto de combatentes ou

pela sua destruição, ou através de assaltos de surpresa, traições ou enganos, os exércitos

medievais recorriam às medidas que tivessem ao seu dispor para poderem, finalmente,

conquistar a praça-forte e dar por terminado o cerco, controlando assim a fortaleza e o

espaço que esta dominava.

551 “era huũm jogo que os poboos meudos em semelhamte caso, muito customavom entom de fazer”, CDJ

I, 1ª, cap. XLIV, p. 77. 552 Fernão Lopes refere ainda que a tomada do castelo foi mais célere e fácil, visto que era bem

defensável, devido a esta táctica, “O castello era bem forte, e çerto he que nom fora tomado tam a pressa,

da guisa que o foi, se nom fora aquell modo que teverom em poer as molheres e filhos dos que demtro

eram em çima daquelles carros”, Idem, Ibidem, p. 78. 553 Idem, Ibidem, caps. XLIV e XLV, 77-80.

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CAPÍTULO V – APÓS A VITÓRIA

O prolongamento da operação de cerco poderia resultar num assalto frontal

decisivo, fosse pela estratégia delineada pelos comandantes atacantes ou porque a

conjuntura assim os obrigaria, procurando então os sitiantes a conquista do local através

da força das armas, num assalto frontal decisivo. Para os sitiados, esta perspectiva

representaria um desfecho do conflito extremamente desfavorável. A conquista do local

daria aos sitiantes o controlo total sobre a vida e o destino dos sitiados, o que poderia

resultar em inúmeras atrocidades cometidas contra os derrotados, tais como massacres

ou violações, escravatura, pilhagens, apropriação ou destruição de bens, móveis e

imóveis554. Por exemplo, na tomada de Arronches, em 1384, após as portas do castelo

serem queimadas e os combatentes liderados por Nuno Álvares Pereira entrarem no

castelo pela força, prendem cavaleiros castelhanos, enviando-os posteriormente para

Elvas, apropriando-se das armas e cavalos da guarnição555.

Assim, os sitiados, quando confrontados com um cerco cuja possibilidade de

saírem vencedores era diminuta, procuravam iniciar negociações com os sitiantes para a

sua rendição, tentando assim evitar as atrocidades que provavelmente se seguiriam à

entrada das forças que atacavam a sua localidade 556 . A possibilidade de poderem

negociar uma saída do conflito com as suas vidas, e, por vezes, com os seus bens, ao

invés de sofrerem às mãos dos atacantes, era então uma perspectiva bastante sedutora

para os sitiados557. Estas negociações poderiam ocorrer a qualquer momento do cerco,

se fosse esse o entendimento entre ambas as partes, mas o arrastar das operações

poderia diminuir a generosidade dos sitiantes, pois os riscos tomados por estes

multiplicavam-se e cresciam gradualmente558.

Contudo, as operações de cerco acarretavam bastantes dificuldades para as

forças em conflito, tornando o recurso às negociações como uma solução apelativa a

ambas as partes, para evitarem o arrastamento do cerco e todos os riscos que isso

554 “Storm gave the attacker complete control over the lives and fate of the defeated, almost any atrocity

was given the cloak of legality: rape, enslavement, killing, in addition to the seizure of homes and

property”, BRADBURY, Jim, The Medieval Siege, p. 317. 555 CDJ I, 1ª, cap. XCVI, pp. 161-162. 556 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra Em Portugal - 1245 a 1367, pp. 439-440. 557 CONTAMINE, Philippe, War in the Middle Ages, p. 102. 558 No cerco de Melgaço de 1388, D. João I chegou a considerar não negociar qualquer tipo de preitesia

com os sitiados, querendo “tomal-los per força por se vingar dalgumas desmessuradas pallauras que

contra elle dizião per vezes”, CDJ I, 2ª, cap. CXXXVI, p. 279.

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traria559. Eram, por vezes, os próprios sitiantes que procuravam iniciar as negociações

para se chegar a acordo para o fim do cerco560. O número de baixas que crescia ao longo

do assédio, os custos associados ao arrastar da operação ou os diversos padecimentos a

que os sitiantes poderiam ser sujeitos neste período faziam com que a perspectiva de um

acordo com os seus adversários, fustigados também por diversas vicissitudes, fosse do

agrado dos atacantes561. “Uma solução negociada convinha, pois, a ambas as partes”562.

Por exemplo, na sequência da conquista da vila de Portel, em 1384, o alcaide

Fernão Gonçalves de Sousa, que ainda resistia no interior do castelo, enceta negociações

para discutir os termos para a rendição da sua guarnição com Nuno Álvares Pereira,

para tentarem chegar a “algũu preitejamento razoado”563 para a entrega da fortaleza564.

Também os cercos de Alenquer, o segundo de 1384565, de Chaves, 1386566, ou Melgaço,

em 1388567, entre outros, terminam com acordos entre ambos os comandantes e não

com um combate levado até às últimas instâncias.

Os comandantes de ambas as forças em conflito568 procuravam então acordar

uma preitesia, o compromisso negociado entre ambas as partes569. Neste momento, era

geralmente acordado um período de 30 a 40 dias para que o alcaide informasse o seu

senhor da impossibilidade da sua guarnição em continuar a resistir, por si só, à pressão

dos sitiantes e a defender a fortaleza, pedindo para que fosse enviado socorro ou a

autorização para a entrega do comando da praça-forte ao seu adversário570. Nos cercos

559 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 232. 560 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra Em Portugal - 1245 a 1367, p. 440. 561 MONTEIRO, João Gouveia, A Guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, pp. 368-369. 562 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra Em Portugal - 1245 a 1367, p. 443. 563 CCP, cap. XXXVII, p. 107. 564 Já perto do final do cerco de Lisboa de 1384, as forças castelhanas procuram a rendição dos sitiados,

com o emissário castelhano, de acordo com Fernão Lopes, a dizer ao Mestre que a cidade estava cercada

por terra e mar, os mantimentos escasseavam, e, sendo o Mestre filho de rei, não deveria querer ser

derrotado dessa forma, mas através de uma preitesia ser-lhe-iam entregues honras e mercês dadas por

Juan I, CDJ I, 1ª, cap. CXLI, pp. 250-251. 565 Idem, Ibidem, cap. CLXVIII, p. 317. 566 CDJ I, 2ª, cap. LXIX, p. 164. 567 Idem, Ibidem, cap. CXXXVI, p. 280. 568 Os comandantes – habitualmente cavaleiros – vencidos na época receariam não receber um tratamento

adequado ao seu estatuto social, geralmente negociando ou rendendo-se somente a outros cavaleiros,

garantindo assim que, após o fim das hostilidades, ficassem sob a protecção do seu congénere,

BRADBURY, Jim, The Medieval Siege, pp. 301 e 304. 569 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 232. 570 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra Em Portugal - 1245 a 1367, p. 441. É necessário ainda

referir que o estabelecimento destes prazos de cessar-fogo poderia beneficiar a guarnição sitiada devido

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de Campo Maior de 1388 571 e de Chaves de 1386 572 , são acordados entre os

comandantes das forças em oposição os prazos de 30 e 40 dias, respectivamente, para a

entrega das fortalezas na ausência de auxílio em socorro dos sitiados. No entanto, os

comandantes sitiantes nem sempre seriam tão benevolentes, como se sucedeu no cerco

ao castelo de Lisboa de 1383, no qual os sitiantes dão somente 40 horas à guarnição

para avisarem o conde D. João Afonso Teles, um período que não permitia ao conde

planear qualquer hipótese de ripostar contra as forças afectas ao Mestre573.

A solicitação feita pelo comandante sitiado ao seu senhor para a rendição da

fortaleza era, na generalidade, uma forma deste conseguir capitular de forma honrosa,

pois esta seria feita com a autorização do seu senhor574, sendo frequente na época o

senhor aceder ao pedido do pelo seu súbdito, reconhecendo que a insistência na defesa

não resultaria numa vitória das suas forças575.

É isto que ocorre no cerco Guimarães de 1385, no qual o alcaide Aires Gomes

da Silva envia o seu genro, Gonçalo Marinho, a Córdoba, onde se encontrava Juan I. O

monarca castelhano elogia a defesa de Guimarães, tendo já conhecimento do que aí se

sucedia, mas informa que lhe era impossível ir em socorro de Aires Gomes, pois os

recursos e a estratégia que Juan I estava prestes a aplicar (uma nova incursão da hoste

real castelhana no reino de Portugal) não lhe permitiam socorrer as suas forças sitiadas.

Assim, o alcaide, ao saber da resposta do rei de Castela, age conforme o que havia sido

acordado, entregando o castelo a D. João I e abandonando a cidade576. No cerco de

Chaves de 1386, o alcaide Martim Gonçalves de Ataíde informa o monarca castelhano

da preitesia realizada com o rei português devido à impossibilidade de continuar a

resistir às forças portuguesas. Juan I, por esta altura, procurava auxílio junto do rei

francês Carlos VI, na forma de combatentes ou de dinheiro, para poder prosseguir com a

guerra contra Portugal (e para isso precisava de recuperar das perdas sofridas na derrota

aos períodos de serviço militar pelos quais os combatentes sitiantes se regiam, pois este prolongamento

poderia significar o fim do tempo de serviço estipulado, forçando os comandantes atacantes a procurarem

forma de pagarem soldos extraordinários para evitarem o desmembramento da sua hoste ou forçarem a

empreender um assalto directo ao local, ao invés de procurarem uma preitesia com as já debilitadas forças

sitiadas, BRADBURY, Jim, The Medieval Siege, p. 326. 571 CDJ I, 2ª, cap. CXXXVIII, p. 282 572 Idem, Ibidem, LXIX, p. 164 573 CDJ I, 1ª, cap. XLI, p. 71 574 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em

Portugal na Idade Média, p. 300. 575 BRADBURY, Jim, The Medieval Siege, pp. 325-326. 576 CDJ I, 2ª, cap. XIII, p. 27.

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na batalha de Aljubarrota)577, mas, naquele momento, não lhe era possível acorrer em

auxílio do seu vassalo, escrevendo a Martim Gonçalves que “lhe quitaua a menagem

que por o logar feita tinha”578.

Havia, no entanto, ocasiões em que o pedido de auxílio ao senhor do castelo não

era contemplado na preitesia579, decorrendo negociações para a imediata rendição e

entrega da fortaleza, em troca da garantia de saída a salvo da guarnição, ou até mesmo

da população sitiada, com ou sem os seus bens, como é o caso do cerco de Portel em

1384580.

Ocorriam ainda, por vezes, trocas de reféns entre as forças em conflito, durante

as negociações entre os comandantes ou durante o período de tréguas que pudesse vir a

ser acordado nessas conversações. Esta oferta de reféns era então “in essence an

extension of the truce” 581, uma forma de garantir que as promessas seriam cumpridas,

pois, caso contrário, os reféns teriam a sua vida à mercê dos seus adversários,

motivando assim o cumprimento do acordado. No cerco de Lisboa de 1384, de acordo

com Fernão Lopes, há uma troca de reféns antes do início de umas negociações entre o

Mestre e Pero Fernández Velasco, próximas do fim do cerco582, assim como sucede na

tomada de Almeida, em 1386, onde Gonçalo Vasques Coutinho vai para esta praça

como refém, enquanto D. João I e Lopo Gonçalves Pé-de-Ferro, alcaide local,

negoceiam a rendição da guarnição castelhana583.

Ao longo do período de negociações e tréguas observavam-se determinadas

práticas comuns nesta conjuntura, como a cessação das hostilidades, não podendo

ocorrer assaltos ou sortidas de ambos os lados, ou a proibição de reabastecimentos ou

obras de recuperação para os sitiados, ou o deslocamento ou a construção de novos

577 CDJ I, 2ª, cap. LXVI, p. 160. 578 Idem, Ibidem, cap. LXIX, p. 165. 579 Os sitiantes, por vezes, podiam eles mesmos impedir o pedido de auxílio dos sitiados, como sucede em

Calais, no ano de 1346: “The besieged did try to send out messages to the French king. One messenger

was seen, and as he was pursued, threw his message into the sea tied to an axe. Unfortunately for his

efforts, the next morning the tide washed the message ashore: it described the suffering and need of the

citizens and begged for supplies. It said that they were eating cats and dogs, and all that remained was to

eat each other: they would have to surrender if they did not receive supplies or relief. Edward III, with

some wit, forwarded the message to Philip VI”, BRADBURY, Jim, The Medieval Siege, p. 158. 580 CDJ I, 1ª, cap. CLVIII, pp. 297-298, e MONTEIRO, João Gouveia, A Guerra em Portugal - nos finais

da Idade Média, p. 370. 581 BRADBURY, Jim, The Medieval Siege, p. 311. 582 CDJ I, 1ª, cap. CXLI, p. 249. 583 CDJ I, 2ª, cap. LXXIII, pp. 170-171.

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engenhos de cerco por parte dos sitiantes584. Embora os acordos fossem geralmente

cumpridos e os comandantes esperassem que os tratos fossem respeitados585, em alguns

casos, contudo, os sitiados poderiam, à revelia dos sitiantes, aproveitar este período de

tréguas para ganhar alguma vantagem sobre o adversário. No entanto, caso os sitiantes

se apercebessem dessas acções, isto seria um motivo para o fim do cessar-fogo e para o

retomar das hostilidades, com tudo o que isso significava, nomeadamente para a vida

dos reféns586. No já referido cerco de Guimarães, após os comandantes terem acordado

um prazo de 30 dias para a rendição da guarnição, surge entre os atacantes o rumor de

que os defensores estariam a colocar gado dentro do castelo (abastecendo-o), o que ia

contra o acordo estabelecido e levou as forças sitiantes a retomarem o combate587.

O objectivo destas negociações era, geralmente, a garantia da salvaguarda das

vidas dos sitiados e, por vezes, também dos seus bens, em troca do controlo desse

local588. Retomando uma vez mais o cerco de Guimarães, o alcaide-mor Aires Gomes

da Silva e D. João I acordam o seguinte: se Juan I não acorresse à vila no prazo de 30

dias, a guarnição render-se-ia e sairiam todos os combatentes derrotados incólumes da

vila, inclusive os seus familiares589. O cerco de Almada de 1384 termina após uma

preitesia que garante aos almadenses as suas vidas, mantendo também as suas

habitações e as suas posses590. As negociações para a rendição da guarnição de Portel,

em 1384, estabeleceram que os bens que haviam sido roubados à guarnição sitiada ser-

lhe-iam devolvidos e seria também garantido salvo-conduto até Castela, tendo por guia

um escudeiro de nome Diogo Lopes até à fronteira para salvaguardar a segurança, de

acordo com Fernão Lopes (ou ficando Nuno Álvares Pereira, comandante atacante, com

a garantia de que os combatentes derrotados não encetariam uma tentativa de

reconquista do local)591. Na tomada de Almeida, em 1386, por exemplo, é acordado

entre as forças sitiadas e D. João I a saída da guarnição e dos seus apoiantes do local

sem incorrerem qualquer risco de vida e levando consigo os seus bens592. Por seu turno,

584 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 232. 585 “Often the agreements indicate a degree of trust between the two sides, and clearly, on the whole, it

was expected that agreements once made would be kept”, BRADBURY, Jim, The Medieval Siege, p. 297. 586 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 232. 587 CDJ I, 2ª, cap. XII, p. 25 588 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra Em Portugal - 1245 a 1367, p. 441. 589 CDJ I, 2ª, cap. XII, p. 25 590 CDJ I, 1ª, cap. CXXXVII, pp. 237-238. 591 CCP, cap. XXXVII, pp. 108-109. 592 CDJ I, 2ª, cap. LXXIII, p. 171.

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no segundo cerco de Tui ocorrido neste conflito, em 1398, a guarnição e apoiantes da

coroa castelhana são expulsos da cidade com as suas vidas, mas sem os seus bens, com

os derrotados a saírem da cidade, dirigindo-se aos sitantes que “somente apupauão-lhe,

escarneçemdo delles, e mais nam”593. De facto, em alguns casos, no entanto, os sitiados

derrotados rendiam-se somente pelas suas vidas, “the lowest agreement, and the least

that the defeated would expect”594. Um último exemplo é a tomada de Neiva, em 1385,

na qual à mulher do alcaide (que assume as negociações com Nuno Álvares Pereira,

comandante sitiante, após a morte do seu marido no decorrer do assalto) é dado salvo-

conduto até Ponte de Lima, onde se encontrava o seu pai, Lopo Gomes de Lira, que

tinha voz por Castela595.

Por vezes, a perspectiva de uma solução negociada não agradava aos

combatentes sitiantes, principalmente quando a vitória parecia ser iminente596 e o saque

posterior bastante apelativo597, levando a que muitos combatentes se insubordinassem e

ignorassem as ordens dos seus comandantes, “geralmente mais preocupados em

alcançar objectivos à custa do mínimo sacrifício de vidas humanas e de bens

materiais”598, continuando assim as hostilidades e levando, por vezes, ao fim das tréguas

acordadas599. Em caso de quebra das negociações, os sitiantes continuariam então o

assédio até que a guarnição se rendesse, fosse por pressão directa (como um assalto à

fortaleza) ou indirecta (as diversas vicissitudes às quais uma força sitiada era sujeita)600.

Atendendo aos riscos associados ao prolongamento de um cerco, tanto para

sitiados como sitiantes, era assim natural que grande parte dos cercos na época

terminasse com uma preitesia, ao invés de ambas as forças levarem o confronto até às

593 CDJ I, 2ª, cap. CLXXIV, p. 375. 594 BRADBURY, Jim, The Medieval Siege, p. 327. 595 CDJ I, 2ª, cap. VI, p. 15. 596 Como sucede no cerco de Ponte de Lima, em 1385, no qual D. João I rejeita o pedido de Lopo Gomes

para enviar um mensageiro ao monarca castelhano, alegando que já tinha a vila e todas as torres sob o seu

controlo salvo uma, na qual se encontrava o resto da guarnição, Idem, Ibidem, cap. XVIII, pp. 34-36. 597 “The division of spoil was a matter to be settled by the victors. Surrender terms sometimes resulted in

the winning of spoil, but one reason that armies often preferred victory by storm, if it could be achieved,

was that it gave the right to spoil”, BRADBURY, Jim, The Medieval Siege, p. 323. 598 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 232. 599 Idem, Ibidem. 600 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra Em Portugal - 1245 a 1367, p. 441.

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últimas instâncias601. Ao longo do conflito observado nesta dissertação, dos 27 cercos

que terminaram com a vitória dos sitiados, 20 foram através de preitesias602.

Após as negociações terminarem, o alcaide e a guarnição derrotada rendiam-se,

deixando o controlo da fortaleza nas mãos das forças vitoriosas, podendo então, como

acordado, abandonar o local603. Os combatentes vitoriosos podiam, por fim, entrar no

espaço que lhes havia resistido. Para simbolizar a conquista da praça-forte e para

assinalar o fim efectivo do cerco, as forças sitiantes vitoriosas colocavam a sua

bandeira, o seu estandarte ou o pendão no interior da praça-forte num local de destaque

que permitisse que estas insígnias pudessem ser avistadas por quem quer que se

aproximasse do local 604 , geralmente na sua porta principal, como acontece em

Villalobos, em 1387, onde a bandeira do duque de Lancaster é hasteada após a

conquista da vila pela hoste anglo-portuguesa605, ou num dos edifícios mais altos do

lugar, sendo exemplo disso a colocação da bandeira de D. João I pela mão do seu alferes

numa torre da sé de Tui, no final do cerco ocorrido em 1398606. Desta forma, aquela

fortaleza ou povoação mostrava assim que prestava menagem ao seu novo senhor.

As preitesias estabelecidas entre os comandantes das forças em conflito num

cerco nem sempre contemplavam a saída ou expulsão dos elementos derrotados que

participaram na defesa do local. Por vezes, os derrotados acordavam uma troca de

fidelidades, tomando voz pelo partido dos sitiantes, passando assim a reconhecer a

autoridade das forças vitoriosas e a prestar menagem a um novo senhor. Na tomada de

Villalobos, inserida na campanha anglo-portuguesa de 1387, os derrotados acederam a

tomar voz pelo duque de Lancaster, oferecendo ainda alguns mantimentos às forças do

duque e encetando trocas comerciais com os combatentes da hoste607. O primeiro cerco

de Tui, ocorrido em 1389, termina com o comandante sitiado derrotado, Paio Serôdio, a

601 BRADBURY, Jim, The Medieval Siege, pp. 324-325. 602 No “Quadro 5 – Durações, Datas, Estações e Resultados dos Episódios”, é possível verificar os

diversos resultados ocorridos nestas operações durante o conflito. 603 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios

da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, pp. 231-232. 604 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em

Portugal na Idade Média, p. 317. 605 CDJ I, 2ª, cap. CIX, p. 229. 606 Idem, Ibidem, cap. CLXXIV, p. 375. 607 Idem, Ibidem, cap. CIX, p. 228.

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tomar voz por Portugal (contudo, este acabaria por fugir da cidade ao fim de quatro

dias, o que levou a que D. João I entregasse-a a Gonçalo Vasques Coutinho)608.

O final do cerco de Guimarães de 1385 demonstra uma divisão entre as forças

derrotadas. Após ser acordada a rendição da guarnição sitiada, à saída deste contingente,

de acordo com Fernão Lopes, 53 escudeiros e combatentes a pé decidem ficar e servir

D. João I, com o rei a conceder-lhes perdão e a entregar-lhes os bens que “dados eram,

mas nom os que lhe forom tomados na entrada da ujlla”, não seguindo então o caminho

que o alcaide e fronteiro Aires Gomes da Silva (que vê, também, todos os seus bens

confiscados) e os seus restantes companheiros tomaram após a sua derrota609.

Por último, vamos ver uma outra situação na qual, após o fim do cerco, os

comandantes acordam entre si uma tomada de voz por parte dos sitiados derrotados com

determinadas condições. A preitesia feita no final do segundo cerco de Alenquer de

Dezembro de 1384, que culmina com a vitória das forças do Mestre, estabelece a

tomada de voz de Alenquer pelo regente, o Mestre, com Vasco Peres de Camões a

manter-se como alcaide do local e a expulsar todos os homens de armas e besteiros

castelhanos, enviados para Santarém, garantindo, no entanto, que, caso a rainha D.

Leonor voltasse ao reino “em seu livre poder, sem companha de Castellaãos pera ajudar

a deffemder o rreino”, a vila seria entregue à rainha610. Contudo, passado pouco mais de

um mês, a 21 de Janeiro de 1385, Vasco Peres de Camões toma de novo voz por

Castela, levantando “huũ pemdom na torre da menagem”, prometendo mercês aos

elementos que D. João havia aí deixado que quisessem apoiar Juan I e deixando sair da

vila aqueles que recusassem essa proposta611.

Como já foi referido acima, sem ser realizada uma preitesia, os sitiados, em caso

de derrota, ficavam sujeitos aos desígnios das forças vitoriosas, impedidos, assim, de

decidir por si próprios o seu futuro. Por vezes, o destino dos derrotados significava

sujeitarem-se à captura por parte dos sitiantes. Na tomada de Arronches de 1384, após a

conquista do castelo, os combatentes derrotados que tinham voz por Castela (onde se

incluíam cavaleiros castelhanos, como Afonso Sanchez, Gonçalo Sanchez de Gumtes ou

Sancho Sanchez, trinta lanças castelhanas e ainda elementos portugueses) “forõ todos

608 CDJ I, 2ª, cap. CXL, pp. 288-289. 609 Idem, Ibidem, caps. XII e XIII, pp. 25-28. 610 CDJ I, 1ª, cap. CLXVIII, pp. 316-317. 611 Idem, Ibidem, cap. CLXXIX, pp. 337-339.

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tomados”, com Afonso Sanchez e Sancho Sanchez a serem levados para Elvas612. Em

Ponte de Lima, no cerco de 1385, após não se ter concretizado um acordo entre Lopo

Gomes da Silva (alcaide sitiado) e D. João I, as forças sitiantes conseguem a rendição

do que restava da guarnição através da força, sendo Lopo Gomes, os seus familiares e

os seus apoiantes feitos prisioneiros e enviados para o Porto613. Na tomada de Badajoz

em 1396, as forças portuguesas capturam somente figuras proeminentes como Garcia

Gonçalves de Grijalba, marechal de Castela, e o bispo da cidade, e os atacantes“ aos

outros nam fazião nenhuum nojo, nem lhe tomauão coussa do seu”614. A captura destas

figuras importantes, para além de poderem valer um resgate considerável, poderiam

prejudicar a reacção dos seus adversários pois os seus líderes encontravam-se presos e

não podiam assim exercer as suas funções.

Mas não era somente no fim de um cerco que combatentes eram feitos

prisioneiros. Ao longo de um cerco, a qualquer momento, como, por exemplo, em

sortidas ou escaramuças, os intervenientes corriam risco de ser aprisionados pelos seus

adversários. No início do cerco de Almada de 1384, o contingente castelhano que dá

início à operação começou por atrair uma força de almadenses, liderada por Diogo

Lopes Pacheco, para fora da vila, emboscando-os e fazendo prisioneiros, entre outros, o

próprio Diogo Lopes e ainda Afonso Galo, regedor local. O Mestre, ao saber da captura

de Diogo Lopes615, enceta negociações com o monarca castelhano, oferecendo Juan

Ramirez de Arellano em troca da libertação do português616. No cerco de Lisboa de

1384, aquando do agravar do surto de peste que se fazia sentir no arraial de Juan I, os

sitiantes, segundo Fernão Lopes “por vimgamça e menemcoria”, juntaram os

prisioneiros portugueses com os castelhanos doentes, na esperança que os seus

adversários “morressem pestellemciados”617.

Após a conquista da praça-forte e a garantia de que o local estava, enfim, sob o

controlo total dos sitiantes vitoriosos, iniciava-se então “o momento de proceder à

612 CDJ I, 1ª, cap. XCVI, p. 162. 613 CDJ I, 2ª, cap. XVIII, pp. 35-37. 614 Idem, Ibidem, cap. CLVIII, p. 333. 615 Que Juan I “tiinhao preso no arreall, avemdo dell gramde queixume”, CDJ I, 1ª, cap. CXVI, p. 200. 616 D. João “comprou Joham Ramirez dArelhano a Perrim Gascom e a Diegue Esteveẽz, cujo prisoneiro

era”, Idem, Ibidem. 617 Idem, Ibidem, cap. CXLIX, p. 273.

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pilhagem e à divisão do espólio”618, altura em que os combatentes receberiam a sua

recompensa pela sua participação no cerco que havia sido bem sucedido619. A pilhagem

deveria ser feita somente a partir do momento em que o lugar estivesse sob o controlo

das forças conquistadoras, para evitar um frenesim por parte dos combatentes na busca

de riqueza, pois estes e os seus companheiros poderiam ser expostos a riscos

desnecessários620. De acordo com Fernão Lopes, quando as forças de D. João I entram

na vila no cerco de Guimarães de 1385, João Rodrigues de Sá, na tentativa de chegar às

portas da cerca interior e impedir a retirada dos combatentes castelhanos para dentro da

alcáçova, encontra-se, subitamente, sozinho e frente-a-frente com um grupo de cerca de

vinte adversários, pois “nenhuum portugues acompanhaua Joham Rodriguez, mas

andauom pella villa roubamdo das cousas dos castellaãos que achauom em casa dos

ospedes”621.

Antes de se iniciar o saque do local era necessário, em primeiro lugar, que os

comandantes determinassem o modo como a pilhagem se iria processar, indicando o

momento em que esta se iniciaria, bem como estabelecendo a repartição do espólio de

uma forma justa entre os combatentes, de forma a satisfazê-los e a não originar conflitos

entre estes622. Por exemplo, também no cerco de Guimarães, após a entrada e controlo

das forças sitiantes na parte da vila que se encontrava entre a cerca exterior e a

interior623, D. João I somente consente o saque a propriedades castelhas e a apoiantes de

Aires Gomes da Silva (alcaide e fronteiro do local), protegendo da pilhagem “os da uilla

[que] veherom todos beijar a maão a el-Rey, reçebemdo-o por senhor”624. Na tomada de

Roales no decorrer da campanha anglo-portuguesa de 1387, os habitantes daquele

618 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em

Portugal na Idade Média, p. 319. 619 Só após o local estar totalmente sob o controlo dos sitiantes e com o novo comandante escolhido para

governar a praça-forte é que os sitiantes poderiam proceder à pilhagem, para, desta forma, esta realizar-se

num ambiente controlado e sem descurar o objectivo principal das forças atacantes. Idem, Ibidem. 620 Idem, Ibidem. 621 CDJ I, 2ª, cap. XI, p. 23. 622 “The restoration of order was a vital matter for the victorious commander; it was usually important to

satisfy his own nobles and men”, BRADBURY, Jim, The Medieval Siege, pp. 323-324, e MARTINS,

Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em Portugal na Idade

Média, p. 319. 623 A “vila baixa”, em oposição à “vila alta, ou seja, a alcáçova”, MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros

de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em Portugal na Idade Média, p. 258. É necessário

ainda referir que esta situação, a vila/cidade sob o controlo dos sitiantes enquanto o que resta da

guarnição sitiada continua a resistir a partir do castelo, acontece com alguma frequência na guerra de

cerco medieval, como são os casos de, por exemplo, Guimarães ou a tentativa de tomada de Alenquer em

1384 (CDJ I, 1ª, cap. CIX, pp. 184-186), BRADBURY, Jim, The Medieval Siege, p. 332. 624 CDJ I, 2ª, cap. XI, p. 23.

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local625, ao se aperceberem de que não tinham forma de se defenderem, acordam com as

forças atacantes a sua saída da aldeia, permitindo assim a pilhagem do lugar, sendo este

“roubado de mantimentos e de quanto hij auya”626. Por último, no cerco de Tui de 1398,

após o acordo entre sitiantes e sitiados para a entrega da cidade ser concretizado, os

bens dos sitiados627 são reunidos no interior da sé, procedendo-se depois à divisão do

espólio. Antes de sair da cidade, o monarca português nomeou Lopo Vasques como

fronteiro e “deu-lhe a riqueza que hy foy achada, pera elle e pera os que com elle

fycaram por goarda do lugar”628.

Na campanha anglo-portuguesa supramencionada existe um exemplo de uma

pilhagem que ilustra a existência de normas rígidas neste processo. Na tomada de

Valderas, logo a seguir a Roales, é acordada a entrega da vila ao duque de Lancaster e o

saque é planeado da seguinte forma: os ingleses poderiam saquear até ao meio-dia e os

portugueses, depois, até à noite. Contudo, segundo Fernão Lopes os combatentes

ingleses começaram a entrar na vila e os portugueses, ao verem isto, entraram também.

O duque dirigiu-se a D. João I, dizendo que os portugueses tinham começado a saquear

antes do permitido e que estavam a roubar o que os ingleses tinham também tirado.

Perante este desrespeito pelas normas acordadas, o rei foi à vila expulsar os portugueses

que aí estavam indevidamente, “leuamdo huuma espada nas maãos, fazia sayr fora,

damdo com ella aos que achaua pellas ruas, de guissa que ouue hij feridos e [2] mortos

per tall aazo”629.

Estando o local controlado, a escolha do novo alcaide era então uma tarefa de

elevada importância, pois seria este o encarregado de defender a fortaleza recém-

conquistada e de nela restabelecer a ordem. Assim, Fernão Lopes faz referências

frequentes nos finais dos seus relatos de cercos à nomeação do novo alcaide, como

acontece, por exemplo, na tomada de Neiva, em 1385, onde Nuno Álvares Pereira, antes

de sair do local, nomeia Afonso do Casal como alcaide630, ou no segundo cerco de Tui,

em 1398, cidade na qual fica como alcaide e fronteiro Lopo Vasques, comendador-mor

625 “Ally nom estauom gentes darmas, saluo lauradores, assy do logar come das aldeas daredor”, CDJ I,

2ª, cap. CV, p. 220. 626 Idem, Ibidem, cap. CV, p. 221. 627 Os derrotados chegaram a pedir a D. João I, embora sem sucesso, que este lhes permitisse sair da

cidade com os seus bens. Idem, Ibidem, cap. CLXXIV, p. 375. 628 Idem, Ibidem. 629 Idem, Ibidem, cap. CVII, pp. 223-224. 630 Idem, Ibidem, cap. VI, p. 15.

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da Ordem de Avis na época631. É importante referir ainda que a defesa do local não era

descurada após a conquista. Nos acontecimentos acima mencionados, Neiva632 e Tui633,

por exemplo, Fernão Lopes refere a permanência de contingentes de combatentes que,

às ordens do seu novo alcaide, teriam como responsabilidade a defesa da localidade

conquistada.

A posse do local também era um assunto que teria de ser determinado após a

vitória das forças sitiadas, cabendo ao líder da hoste (ou do partido pelo qual este

lutava) a escolha de quem iria tornar-se no novo senhor da fortaleza ou da povoação.

Por exemplo, após o cerco de Chaves de 1386, D. João I oferece a vila e os seus direitos

a Nuno Álvares Pereira634, em quem depois recai a escolha do novo alcaide, com o

Condestável a nomear um seu escudeiro de nome Vasco Machado635. Um documento

proveniente da coroa (rei ou regente) confirmaria a mudança da posse do castelo, como,

por exemplo, sucede após a tomada de Monsaraz, em 1384. Gonçalo Rodrigues de

Sousa, senhor do castelo de Monsaraz e que “se lamçara com os Castellaãos” 636 ,

ordenara ao seu alcaide que tomasse voz pelo rei castelhano. Nuno Álvares Pereira, em

Julho de 1384, toma de assalto a fortaleza e expulsa a guarnição castelhana, passando o

controlo do castelo e da vila para as forças afectas ao Mestre637. Este, a 24 de Setembro

de 1384, emite um documento no qual condena a acção e traição de Gonçalo

Rodrigues638 e entrega a vila de Monsaraz, juntamente com todos os seus respectivos

631 CDJ I, 2ª, cap. CLXXIV, p. 375. 632 O cronista refere que o Condestável deixa com Afonso do Casal alguns homens de armas e

combatentes a pé, Idem, Ibidem, cap. VI, p. 15. 633 Antes de sair de Tui, D. João I deixa na cidade Lopo Vasques como alcaide e fronteiro e “deu-lhe a

riqueza que hy foy achada, pera elle e pera os que com elle fycaram por goarda do lugar”, Idem, Ibidem,

cap. CLXXIV, p. 375. 634 Algo frequente neste período de conflito, com o monarca português a premiar o contributo do

Condestável para a sua causa, dando-lhe também, por exemplo, Guimarães, em 1385, Idem, Ibidem, cap.

LXIX, pp. 163-164. 635 Idem, Ibidem, cap. LXIX, p. 164. 636 CDJ I, 1ª, cap. CXLIII, pp. 256. 637 CCP, cap. XXXII, pp. 89-91. 638 “lhe fazemos pura e irreuogauel doaçam antre viuos valedoira pera sempre de todas as terras e beeens

de todos e de todas as outras cousas que / o dicto gonçallo rodriguez ha e auja em estes regnos de que

lhe nos agora nouamente fizemos mercee ou doutros quaãesquer que fossem que perteencesem aa coroa

dos dictos regnos Reseruando os que elle auja de seu patrimonjo porque fizemos delles mercee a outrem

Porquanto ho dicto gonçallo rodriguez staua em nossa companha na cidade de lixboa e recebera o nosso

soldo de nos e outras mujtas cousas E nom esguardando as mercees que assy de nos recebeo foe se pera

el rrey de castella nosso Jmjgo e sta agora em nosso deserujço e destes regnos”, ChDJ I, Vol. I, Tomo I,

fols. 39–39 vº, Doc. 294 “doaçam da villa de monsaraz a meem Rodriguez de uasconcellos”, p. 154.

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direitos, a Mem Rodrigues de Vasconcelos 639 , oficializando e efectivando assim a

mudança da posse do castelo.

Após a conquista de uma fortaleza cercada, como já referimos, os sitiados

acabariam por ficar à mercê das forças vitoriosas, correndo assim o risco de serem alvos

da violência que poderia seguir-se à entrada dos sitiados. No entanto, no conflito tratado

nesta dissertação, raros foram os casos de violência cometidos contra os sitiados na

sequência da capitulação de uma praça-forte, já que, por norma, eles parecem ter sido

cometidos no decurso dos cercos640. Por exemplo, um navegante capturado enquanto

transportava trigo para Lisboa sitiada em 1384, é “preso e arrastado, e deçepado e

emforcado” pelas forças castelhanas641. No cerco de Torres Vedras de 1384/1385, após

ser descoberta uma tentativa de traição a D. João por elementos que estavam na sua

hoste642, um dos responsáveis, Garcia Gonçalves de Valdés, é feito prisioneiro e, após

confessar a sua parte nesse estratagema, é queimado vivo, pois o Mestre “nom o quis

mandar matar de simprez e honesta morte, mas cruell de fogo, e grave de sofrer”643.

Como retaliação, o alcaide sitiado João Duque “mamdou tomar huũs seis ou sete

Portugueeses, homẽes de trabalho que tiinha presos, e mamdouhos todos deçepar das

maãos e fanar dos narizes, e poer todallas maãos ao collo dhuũ delles, e mamdouhos

assi ao Mestre”, levando este a considerar “lamçar na fumda do emgenho demtro aa

villa os prisuneiros que tiinha castellaãos”644. Um outro exemplo ocorre antes de Juan I

abandonar o cerco a Elvas em 1385, onde o monarca castelhano ordena que se

decepasse um prisioneiro da vila, enviando o prisioneiro “com huum scprito ao

pescoço” em que avisava que o monarca faria o mesmo a todos os que se encontrassem

na vila quando a conquistasse. Como resposta, Gil Fernandes ordena que o mesmo seja

639 “E queremos e mandamos que o dicto meem rodriguez possa tomar auer e cobrar a posse e senhorio da

dicta villa e lugares que o nom leixem por ello de fazer sua obra pella guisa que dicto he

E mandamos que o dicto meem rodriguez tenha de nos o castello da dicta vila de monsaraz e nos faça por

elle menagem E aia tidas as proees e djreitos delle”, ChDJ I, Vol. I, Tomo I, fols. 39–39 vº, Doc. 294

“doaçam da villa de monsaraz a meem Rodriguez de uasconcellos”, p. 155. 640 Talvez porque grande parte dos cercos em que os sitiados vencem terminam com preitesias, como já

anteriormente foi mencionado. No decorrer da Guerra dos Cem Anos, por exemplo, ocorrem alguns casos

de extrema violência contra as guarnições e populações vencidas, com Jim Bradbury a destacar os

massacres por parte de forças inglesas no cerco de Limoges, em 1370 (no qual participou o duque de

Lancaster, que em 1387 lideraria, juntamente com D. João I, a hoste anglo-portuguesa), e em Caen, no

ano de 1417, BRADBURY, Jim, The Medieval Siege, pp. 161 e 166. 641 CDJ I, 1ª, cap. CXLVIII, p. 268. 642 Idem, Ibidem, caps. CLXXV, CLXXVI, CLXXVII, pp. 327-334. 643 Idem, Ibidem, cap. CLXXVII, pp. 333-334. 644 Idem, Ibidem, cap. CLXXVIII, p. 335.

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feito a dois prisioneiros castelhanos, enviando-os para o arraial com a mensagem de que

deceparia os outros oitenta prisioneiros que tinha consigo em Elvas se o castelhano

voltasse a decepar algum elvense, acabando o rei por levantar o cerco e deslocar-se para

Ciudad Rodrigo (pelo caminho, no entanto, em Arronches reúne dezassete homens

locais e decepa-os)645. De acordo com Fernão Lopes, no cerco de Almada de 1384, por

exemplo, após os almadenses se recusarem a entregar a vila e após a morte de um

cavaleiro castelhano com um disparo de um trom, Juan I jura “que todos aviam de

morrer aa espada” 646. Contudo, o cerco acabaria com uma preitesia – por pressão da

rainha D. Beatriz –, como já foi acima referido, com o rei, após a rendição da vila, a

convocar os seus habitantes, ordenando-lhes que estes lhe fossem leais, oferecendo-lhes

benefícios, acedendo a alguns pedidos que lhe foram feitos, ordenando aos tabeliães a

escreverem em seu nome, e manteve os mesmos juízes da vila, não concretizando, pois,

o monarca a sua ameaça647.

No entanto, o caso da tomada do castelo de Évora por forças populares, no dia 2

de Janeiro de 1384, é um exemplo de violência ocorrida após a conquista de uma

fortaleza. Após a saída do alcaide e da sua guarnição, o castelo é saqueado e incendiado.

De seguida, a população acabaria por “sse mover per brava sanha, multiplicamdo novos

queixumes, comtra quem lhe nom avia feito erro; husavom de seu livre poder,

desdenhamdo quem aa primeira tomavõ por capitaães”, forçando “grandes do logar” a

abandonarem a cidade e acabando por matar a abadessa de São Mateus num episódio

particularmente violento. De acordo com Fernão Lopes, um grupo de populares

liderados por Gonçalo Eanes, pastor, e Vicente Eanes, alfaiate, encontra a abadessa

escondida na sé648 e aí tiram-lhe as roupas, arrastando-a para a rua, fazendo-a percorrer

parte da cidade até à praça, onde um elemento da população dar-lhe “huũa cuitelada

pella cabeça, de que cahiu morta em terra, e desi os outros começarom de acuitellar per

ella, cada huũ como lhe prazia”. Deixam o corpo da abadessa nessa praça, “forom

comer, e buscar outros desemfadamentos” e só à noite a vão buscar, “[lançam-lhe] huũ

645 CDJ I, 2ª, cap. XXVI, pp. 53-54. 646 CDJ I, 1ª, cap. CXXXVI, p. 236. 647 Idem, Ibidem, cap. CXXXVII, pp. 237-238. 648 Fernão Lopes avança duas hipóteses para esta perseguição à abadessa: Gonçalo Eanes havia

convencido os seus companheiros a matar “a alleivosa da Abadessa, que he paremta da Rainha e sua

criada”, ou a abadessa havia insurgido-se contra a acção destes populares, dizendo “Ex os bevados!

Amdam com sa bevedice, leixadeos vos, ca aimda sse elles mall ham de achar por estas cousas que

amdam fazemdo”, Idem, Ibidem, cap. XLV, p. 79.

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baraço nos pees, e levaromna arrastamdo ataa o Ressio, açerca do currall das vas; e

leixamdo alli aquell desomrrado corpo”649.

Antes de concluirmos este capítulo, observaremos de forma breve as relações

entre os intervenientes nas operações de cerco. Estando perante um contexto de uma

localidade cercada durante um período que, à partida, se desconhecia quando poderia

terminar, sob a ameaça de um adversário que poderia causar a morte dos locais, e vice-

versa, e ainda as vicissitudes referidas ao longo do terceiro capítulo, as relações entre

sitiados e sitiantes eram, geralmente, de rivalidade e de inimizade, originando episódios

extremamente cruéis e violentos no decorrer de alguns cercos. Os acontecimentos acima

mencionados, relatados por Fernão Lopes na sua crónica, demonstram a violência que

poderia ocorrer num cerco, gerada pelo factor emotivo humano ou com um propósito

estratégico de incutir o receio nos oponentes.

Contudo, durante os cercos analisados nesta dissertação são alguns os momentos

em que as relações entre sitiados e sitiantes amenizaram um pouco, encontrando ambas

as partes períodos em que o conflito se suaviza, havendo até tempo para inimigos

conviverem uns com os outros. No cerco de Lisboa de 1384, no último dia de Agosto,

ocorre um casamento entre o conde de Mayorga e a filha do, entretanto falecido, conde

D. Álvaro Peres de Castro, com o Mestre a acompanhar a noiva “de rredea”, em vez do

falecido conde, e o conde D. Gonçalo, recebendo-a, leva-a, e à sua mãe, com os outros

homens que os seguiram de volta para o arraial650.

Em Chaves, no cerco de 1386, D. João I enviava todos os dias um cântaro de água

à mulher do alcaide, Mícia Vasques Coutinho, “por amor de seu jrmão Gomçallo

Vaasquez”, que se encontrava na hoste sitiante651. No mesmo cerco, enquanto decorria o

período de tréguas previsto na preitesia realizada entre o monarca português e Martim

Gonçalves de Ataíde, alcaide local, para que este último avisasse Juan I, “hiam alguns

demtro aa villa a falar ao alcayde e a Mjçia Vaasquez, quamdo lhe prazia”, incluindo

um escudeiro chamado Afonso Madeira, que tinha “boom conhecimento” do alcaide e

da sua esposa652.

649 CDJ I, 1ª, cap. XLV, p. 79-80. 650 Idem, Ibidem, cap. CXLI, p. 252 651 CDJ I, 2ª, cap. LXIV, p. 154. 652 Idem, Ibidem, cap. LXVI, p. 159.

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Por ocasião da Páscoa de 1387, a hoste anglo-portuguesa encontrava-se a cercar

Benavente de Campos, por ocasião da campanha do duque de Lancaster em Castela, e aí

“fallando os de demtro com os de fora como he costume aa salua ffee”653 organizaram-

se justas654 entre um combatente português, Álvaro Gomes, criado do Condestável, e

um escudeiro castelhano, e também entre o cavaleiro inglês Maaborny e monse Roby.

Enquanto as justas decorriam, D. João I garantiu aos habitantes da localidade castelhana

que estes podiam vir assistir e conviver sem correrem qualquer risco (exceptuando um

castelhano que, por “desmesuradas pallauras comtra el-Rey”655, foi agredido por Álvaro

Coitado)656.

Mesmo em questões relacionadas com o próprio combate, havia por vezes

abertura para dialogar entre ambas as partes, como demonstra o sucedido no cerco de

Tui de 1398. Desde o início do cerco que as forças de D. João I começaram a utilizar os

seus engenhos contra Tui, de tal forma que ambas as partes acabaram por acordar o

seguinte trato: os sitiantes não disparariam os seus engenhos durante a noite para não

atingirem a catedral e os sitiados não utilizariam setas envenenadas no decorrer do

assédio657.

As operações de cerco resultavam em períodos de constante conflito, onde seria

natural o surgimento de violência entre os seus intervenientes. Era um momento de

guerra em que as forças em confronto eram adversárias directas e onde as vidas dos

participantes estavam sempre em risco de se perderem. E a par dessa violência corrente,

existiam ainda casos em que se atingia patamares de grande crueldade.

No entanto, os exemplos acima apresentados mostram uma outra face dos

cercos: havia também, no decurso destes, lugar para momentos de paz, de festa, de

confraternização e de espírito cavaleiresco. Embora existissem muralhas que separavam

os sitiados dos sitiantes neste conflito entre Portugal e Castela, muitos destes indivíduos

tinham relações de parentesco ou amizade com adversários, havendo ainda uma

653 CDJ I, 2ª, cap. CII, pp. 217 654 “as quaaes auyam de seer coridas a cauallo com baçinetes de camal sem escudos, nom mais de tres

careiras”, Idem, Ibidem. 655 Idem, Ibidem. 656 Idem, Ibidem, caps. CII e CIII, pp. 217-218 e 218-219. 657 “El-Rey pos seus engenhos aredor della, que tirauão de cada parte. E por muyto dapno que faziam, foi

pretejado desta guyssa: Que os engenhos nam tirassem de noute nem os de demtro nam lançassem

nenhumas seetas com erua. E el-Rey comsemtio em ello, porque lhe não prazia per nenhuum modo que

huma honrrada see antiga que ha na cidade, domde haa fama que jaz o corpo (de) frey Pero Gonçalluez,

recebesse nenhuum dapno da sua parte”, Idem, Ibidem, cap. CLXIX, p. 359.

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observância e respeito pelas práticas religiosas, bem como a procura de uma vivência na

guerra que fosse honrada, à luz dos valores cavaleirescos.

Com o fim deste capítulo termina também a demonstração do processo que

consistia numa operação de cerco em Portugal nos finais do século XIV, tendo estudado

as forças e os combatentes que participavam nestes conflitos, as preparações prévias que

tanto sitiados como sitiantes teriam de observar para que o assédio lhes corresse de

feição, os diversos perigos a que todos os envolvidos estavam sujeitos ao longo do

período de combate, as variadas formas como a conquista da fortaleza ou da povoação

se poderia verificar. Neste capítulo vimos então a maneira como se processava o

estabelecimento e a afirmação de poder das forças vitoriosas sobre os derrotados nos

locais recém-conquistados, mostrando as várias questões com que o comandante da

hoste vencedora teria de lidar após o combate terminar, como os diversos aspectos dos

acordos feitos entre os comandantes em conflito, o processo de tomada de voz por um

novo senhor, o que sucedia aos combatentes aprisionados no decorrer de uma operação

de cerco, como se efectivava o controlo da fortaleza ou da localidade nas mãos da

facção vencedora, bem como exemplos da violência que poderia ocorrer durante o cerco

ou a seguir à entrada das forças vitoriosas no lugar que havia sido tomado.

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CONCLUSÃO

Chegamos ao final desta dissertação, tendo tido a oportunidade de analisar e

melhor compreender a importância das operações de cerco no âmbito da guerra

medieval e a forma como estas se processavam no conflito que opôs dois reinos

ibéricos, Portugal e Castela, entre os anos de 1383 e 1398.

Este estudo deu-nos a oportunidade de analisar 39 operações de cerco, todas com

as suas próprias peculiaridades, desde assaltos frontais ou furtivos a cercos

convencionais, conjugações de bloqueios navais e marítimos, ardis ou até mesmo

revoltas populares. Em comparação, nos cerca de quinze anos que este estudo observa

ocorreram somente quatro batalhas campais (e logo nos primeiros anos do conflito,

Atoleiros, em 1384, Trancoso, Aljubarrota e Valverde, em 1385), o que traz à memória

as palavras de Jim Bradbury que, com algum exagero, define a guerra na Idade Média

como sendo composta por “perhaps one per cent battles and ninety-nine per cent

sieges”658. Encontramos assim as operações de cerco com um grande peso no quadro da

estratégia militar, embora a guerra medieval não se fizesse somente de cercos ou

batalhas, sendo necessário dar o devido destaque também às acções de “guerrilha”,

como as cavalgadas. Não fugindo à regra, os comandantes militares que lideraram os

exércitos nesta guerra procuraram através de uma estratégia de aproximação indirecta o

domínio do território, conjugando diversos cercos com algumas incursões, com o

objectivo de debilitar e desgastar o seu adversário, para assim forçarem o seu inimigo a

capitular, e, deste modo, saírem vitoriosos. É claro que não se pode diminuir a

importância que as batalhas tiveram neste conflito entre Portugal e Castela,

principalmente a de Aljubarrota, que se saldou numa pesada derrota que impediu a

progressão desta hoste no território português, frustrando os planos de invasão de Juan

I. Mas este desfecho está ligado a um outro episódio militar ocorrido cerca de um ano

antes. A derrota castelhana no cerco de Lisboa de 1384, para além de não ter terminado

com a conquista da urbe lisboeta – a “chave do reino” –, terminou com um elevado

número de baixas sofridas no seio da cadeia de comando castelhana, o que pode ter tido

influência no modo como a hoste do monarca castelhano foi comandada em Aljubarrota

e significou um rude golpe para as pretensões de Juan I à coroa portuguesa.

658 BRADBURY, Jim, The Medieval Siege, p. 71.

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Ao longo deste trabalho foi-nos possível também estudar os diversos

preparativos que tanto sitiados como sitiadores faziam nos momentos que antecediam

uma operação de cerco, procurando reforçar as vantagens de que dispunham e atenuar

as suas fraquezas para resistirem ou atacarem da forma mais eficaz o seu inimigo. Estes

preparativos, como pudemos observar, seguiam determinados preceitos e convenções,

encontrando-se assim semelhanças transversais a grande parte dos cercos analisados. Os

comandantes preparavam as operações militares com os meios que tinham à sua

disposição – os homens que tinham sob o seu comando juntamente com toda a logística

associada à guerra de cerco –, com os sitiantes, por um lado, a procurarem planear da

melhor forma o ataque, através da instalação do seu arraial num local vantajoso, da

construção de engenhos de assalto ou impedindo o acesso do seu adversário a água, por

exemplo, enquanto os comandantes sitiados, por outro lado, se dedicavam à reparação

das estruturas fixas de defesa ou à acumulação de mantimentos no interior da fortaleza,

entre muitos outros aspectos. Isto traduzia-se num processo complexo de organização de

homens e de logística, para ambos os lados, o que demonstra que uma operação de

cerco não começava quando os sitiantes chegavam ao local que iriam atacar, mas sim

nos seus preparativos, podendo estes fazer pender os pratos da balança para um ou outro

lado. Assim, quando as forças sitiantes acabavam de montar o seu arraial ou iniciavam

um ataque, teriam de fazer frente a uma guarnição que havia também realizado os seus

preparativos, abrindo o caminho para um longo e árduo cerco, cuja duração era sempre

uma incógnita, sujeito ainda ao surgimento de diversos problemas, muitas vezes

inesperados.

Desta forma, a melhor preparação possível, tanto para sitiados como para

sitiadores, poderia revelar-se insuficiente perante factores aleatórios que estavam fora

do controlo dos comandantes. A sede ou a fome que por vezes se sentiam devido ao

alongamento da operação ou as doenças que surgiam nos arraiais ou no interior dos

perímetros amuralhados, fossem surtos pontuais ou causadas por carências de

mantimentos, conjugadas com imprevisíveis caprichos do clima, frequentes combates

ou a destruição causada pelos diversos tipos de engenhos, podiam, de um momento para

o outro, frustrar os desígnios das forças em confronto, forçando uns a abandonarem a

tentativa de conquista e outros a renderem-se após períodos de grande sofrimento.

Para além disso, pudemos estudar as variadas soluções através das quais os

sitiantes procuravam a conquista dos pontos-fortes. Um cerco não significava somente

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um bloqueio a uma praça-forte durante o qual se aguardava pacientemente pela rendição

do inimigo sitiado. Na verdade, os comandantes militares dispunham de várias soluções

para derrotar o seu inimigo ou levá-lo à capitulação: em muitos casos, era necessário

que os sitiantes pressionassem os seus adversários, como através de assaltos directos, do

poder destrutivo dos seus engenhos, ou da aplicação de pressão psicológica, incutindo o

receio e o desespero na mente dos seus inimigos, eventualmente dando a estes somente

duas alternativas: ou a rendição ou a morte. E embora os comandantes militares

preferissem, geralmente, operações de cerco convencionais, tivemos a oportunidade de

analisar um período rico em outras formas de ataque menos convencionais, algumas de

uma criatividade notável, onde observámos episódios de assaltos furtivos e traições de

elementos de ambos as forças em conflito, mostrando que a conquista de uma fortaleza

poderia residir num ínfimo pormenor, onde até mesmo a acção de um só indivíduo

poderia fazer toda a diferença para o sucesso destas operações.

Caso a operação fosse bem sucedida e os sitiantes conseguissem conquistar o

local, as suas tarefas não estariam ainda terminadas. Como vimos, era necessário que os

vitoriosos se estabelecessem como a força dominante do ponto-forte, para aí poderem

exercer a sua autoridade e aproveitarem os recursos que a nova conquista poderia

oferecer. Através da conjugação de várias acções, como a colocação do seu pendão num

local visível para qualquer pessoa que se aproximasse da fortaleza ou da localidade que

simbolizava o controlo daquela povoação ou praça, o aprisionamento ou a expulsão dos

combatentes adversários, a mudança do alcaide ou a atribuição do ponto-forte a um

novo senhor, as forças vitoriosas ficavam, enfim, com o controlo do alvo e dos seus

recursos, pelos quais tinham combatido contra um adversário que não lhes havia

facilitado a tarefa.

Para terminarmos este estudo das operações de cerco que ocorreram nos finais

do século XIV entre Portugal e Castela, adequa-se uma conclusão de Jim Bradbury:

“Perhaps what we have learned above all, and what will remain longest in the mind, is

the tremendous pain and deprivation which man can inflict upon his fellow, and yet

which can be overcome; and the great courage under duress which the human race is

able to display”659. Todas estas dificuldades, riscos, actos de violência e sofrimentos

pelos quais os intervenientes passaram, bem como as façanhas desempenhadas por

estes, algumas verdadeiramente heróicas, que fomos observando ao longo destes

659 BRADBURY, Jim, The Medieval Siege, p. 334.

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confrontos, tinham em conta um objectivo: a posse dos pontos-fortes e o consequente

domínio dos seus espaços circundantes para, assim, vencer uma guerra.

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