fernão de magalhães - biografia romanceada

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Biografia Romanceada

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Page 1: Fernão de Magalhães -  Biografia Romanceada
Page 2: Fernão de Magalhães -  Biografia Romanceada

Em uma manhã, provavelmente do ano de 1516, um Junco vindo de Malaca chega ao porto de Ternate, na ilha de Amboína, situada no paradisíaco arquipélago do mar de Sonda. Logo é rodeado pelas canoas e jangadas do rei da ilha. O comandante desce numa delas e dirige-se à terra. Traz com ele um grande trunfo para obter a simpatia de Sua Majestade.

Atravessa o areal, cruza as poucas ruas onde pipocam cabanas de telhados curvos e pontiagudos, construídas sobre pilares. Finalmente alcança o palácio. Não é difícil conseguir uma audiência com o monarca, é um Rei afável, governando um povo ainda sem temores e ambições, pois a natureza lhes dá tudo o que precisam Têm bom clima, boas terras, boas colheitas, praticamente não utilizam dinheiro em uma economia primitiva e natural. Com alguns enfeites e bugigangas se pode obter em troca algumas centenas de quilos de cravo. Sua Majestade aparece. O comandante faz uma reverência respeitosa e diz: — Que Alá proteja Vossa Majestade. O rei retribui o cumprimento.

— Venho de Malaca, apenas para alegrar a existência de um súdito seu que anda distante de sua família e de sua longínqua pátria.

— Serrão? — pergunta o Rei. O comandante confirma. Sua Majestade manda chamar o Vizir. Pouco depois um homem de pele clara e grande barba entra na sala. É um homem de traços duros e ao mesmo tempo amáveis, um conquistador rendido à magia dos trópicos.

O comandante árabe o saúda com astúcia, sem especificar nomes de deuses. — Que o Deus Todo-Poderoso o proteja senhor. Vim de Malaca lhe trazendo uma

carta vinda de Portugal... Os olhos de Francisco Serrão se umedecem. Trocara voluntariamente de pátria e de

vida, mas o prazer de saber que ali estão algumas palavras escritas em sua língua materna despertam-lhe subitamente a saudade, reminiscências antigas, amizades passadas e indestrutíveis.

—... E sabendo como se encontra distante e isolado de seus entes queridos, não quis deixar de agradar a Deus, por estar levando alegria ao coração de um semelhante... Serrão toma logo em suas mãos a carta enquanto o Rei o contempla bondosamente. Não pode ele entender a angústia que agita este homem nascido além de Malaca, além do Ceilão, além da Arábia, além mesmo do longínquo reinado do Egito. Desse marinheiro a serviço de um Rei nunca visto e que ao naufragar no Mar de Sonda enfrentou grandes aventuras até chegar na ilha de Amboína. No início pensou em construir um barco e com seus amigos navegar até Malaca que na época já estava em poder dos portugueses. A lealdade ao seu Rei e a sua pátria o deixava com esta obrigação. Mas os dias foram passando e os náufragos mais e mais adiavam sua partida e ao final das contas acabaram por ficar definitivamente na ilha. O Rei, considerando as aptidões de Serrão, o nomeou Vizir. Deu-lhe casas, terras, escravos e uma princesa como esposa, com a qual teve três filhos. O monarca pensava ainda como um súdito de um Rei tão poderoso, um comandante de um navio tão grande como era o seu, trocara suas honrarias pela vida tão pacata e despida de opulências como a que levava em Amboína. Nunca conseguiu entender este mistério.

— A carta é de seu amigo Magalhães? Pergunta Sua Majestade. — Sim, é uma carta de Fernão. — Majestade, diz o comandante árabe — Já que a carta ao Vizir me trouxe a Amboína,

aproveitei também para trazer alguns presentes para Sua Majestade e para seu povo. Espelhos, sedas, braceletes, sinetas...

O Rei logo se interessa pelo assunto e deixa Francisco Serrão entregue ao prazer da leitura. Notou no entanto que seus olhos ardiam de curiosidade e emoção. Encolheu os ombros, deu um sorriso paternal e começou a admirar maravilhado a campainha dourada que o comandante árabe tirara do bolso.

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A Amizade de dois Conquistadores Serrão sofre de uma súbita nostalgia ao pensar no amigo Fernão de Magalhães. Lembra-se deste homem duro, inflexível, reservado, de gestos e decisões certeiras, agindo sempre sem alardes e de maneiras comedidas. Fidalgo menor, mas com direito a brasão e à freqüência do Paço Imperial, foi ele um dos quinhentos homens que em 25 de março de 1505, juraram fidelidade à fé de Cristo e ao Rei de Portugal antes de embarcarem na esquadra com que D. Francisco de Albuquerque iria conquistar o império do oriente, o fabuloso mercado de sedas, pedrarias e especiarias. Nesta época Fernão de Magalhães tinha 24 anos. Embarcou como um soldado anônimo, que manejava a espada, recolhia as velas em caso de tufão, levantava fortificações e carregava nas costas as preciosas mercadorias. Foi ainda um anônimo vencedor da Batalha Naval de Cananor, que deu aos portugueses uma das chaves de todo o comércio no Oriente, interrompendo assim as longas caravanas de especiarias, que iam através do Egito, rumo a Veneza. O sultão do Egito chegou a ameaçar o Papa com a destruição do Santo Sepulcro, mas o centro da Europa deslocara-se irremediavelmente para Lisboa. As especiarias, ansiadas e indispensáveis, contornam agora o Cabo da Boa Esperança sob a bandeira de D. Manuel, para serem descarregadas nos cais do Tejo. Faltava ainda porém à coroa lusitana uma pérola preciosa para lhe dar maior brilho e poder: Malaca, a cidade estratégica por onde era obrigatória a passagem de todos os cargueiros de especiarias. Em 1509, uma pequena frota parte de Lisboa e chega à Índia, o comandante era Lopes Sequeira, o objetivo era Malaca. Em um dos quatro navios estão dois amigos: Francisco Serrão e Fernão de Magalhães, que estava em Lisboa desde 1507 se recuperando dos ferimentos recebidos na Batalha de Cananor. Em 19 de agosto partem de Cochim e a 11 de setembro aproximam-se de Malaca, que admiram maravilhados. Estão chegando a um enorme porto, com centenas de velas de todas as procedências, falando palavras de centenas de línguas estranhas e incompreensíveis, cargueiros com especiarias das Molucas, juncos com porcelana chinesa, paraús com rubis e marfim do Ceilão, pimenta de Malabar, escravos de Bornéo, caxemira de Bengala, além de centenas de comandantes de pele amarela, bronzeada ou escura que pagavam tributo ao sultão de Malaca para atravessarem o estreito que recebera o nome da fabulosa cidade. Os portugueses ficam maravilhados, mas o sultão de Malaca sente a ameaça que se aproxima. Ele sabe das lendas e notícias que correm acerca desses homens pálidos vindos do Ocidente com uma sanguinária sede de conquista e poderio. Ele usa a tática de agir cautelosamente, para poder matar a serpente ainda dentro do ovo. O sultão dispensa aos portugueses a mais hospitaleira das acolhidas, oferece a Lopes Sequeira quanta pimenta e cravo seus navios puderem carregar e deixa que seus marinheiros vagueiem pela cidade, visitando as exóticas casas de chá, se extasiando nos prazeres do ópio e das mulheres, entre sedas, leitos de marfim e sândalo do Timor. Após alguns dias o sultão manda que os quatro navios se aproximem da praia para receberem a carga preciosa. O comandante Lopes Sequeira fica a bordo enquanto os barcos malaios cercam os quatro navios. Os indígenas trepam pelas enxárcias sob o pretexto de auxiliarem no embarque das mercadorias e a cada instante seu número aumenta. Garcia de Sousa, comandante de uma das quatro caravelas começa a ficar desconfiado e impaciente. Tantos barcos, tantos indígenas subindo a bordo, não estarão apenas aguardando um sinal para se lançarem ao ataque? Garcia de Sousa manda um homem de confiança ao navio-almirante, um homem de confiança e decidido, incapaz de acovardar-se diante de uma situação adversa e ameaçadora: Fernão de Magalhães. Este rema velozmente em direção ao navio-almirante , sobe ao tombadilho e vai ao camarote do comandante que está calmamente jogando uma partida de xadrez sob os olhares interessados de um grupo de malaios e sussurra-lhe algumas palavras, já com as mãos no cabo da espada. Neste momento, uma coluna de fumaça se ergue do palácio do sultão. Era o sinal. Lopes Sequeira salta e afasta os malaios com algumas estocadas, ordenando em seguida a levantada das âncoras. Os portugueses que estavam em terra logo estão cercados por uma horda ameaçadora de indígenas, um a um vão caindo sob os golpes, correm para a praia, mas lá já os esperava outro grupo, estão totalmente cercados. Ficam costas com costas e retalham a primeira fileira de atacantes, mas para cada malaio tombado surgem dez em seu lugar. Subitamente ouvem o primeiro tiro de canhão. Lopes Sequeira afundava os paraús que cercavam as caravelas. Uma débil esperança levanta-lhes o ânimo, os companheiros não haviam sido surpreendidos a

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bordo e se atingirem a praia conseguirão se salvar. Assim eles investem, de estoque em punho.

Serrão rasga à sua volta um círculo sangrento e corre abrindo passagem num corredor de pragas e corpos retalhados. É o único a atingir o mar e quando já achava-se perdido e sem esperanças, vê surgir um único escaler, com um único tripulante, que se aproxima da praia. É Fernão de Magalhães que acode em socorro do amigo.

Os olhos de Serrão enchem-se de lágrimas e mancham as primeiras linhas da carta. Uma amizade férrea tornou-os desde então inseparáveis. Apenas o destino ou os interesses do Rei poderiam afastá-los e é exatamente isto que acontece: Fernão é mandado a Portugal, comboiando uma frota de especiarias e naufraga. Regressa ao Oriente, participa do cerco à Goa e da conquista de Malaca, a mesma Malaca onde cinco anos antes salvara a vida de Serrão. Este é enviado ainda mais pra oriente, em busca das ilhas das especiarias, consegue chegar mas naufraga, deixando-se render pelos encantos de uma vida simples, sem artifícios, pacífica, serena, natural, gentil. Em vão convida Fernão a juntar-se a ele. “ Encontrei aqui um mundo novo, maior e mais rico que o de Vasco da Gama”, escreve-lhe, mas Fernão recusa sempre, havia regressado a Portugal.

Mas eis que hoje, um marinheiro árabe lhe traz uma carta onde Fernão, pela primeira vez, lhe promete vir um dia a Ternate. Porém não pelo caminho usual... E Fernão de Magalhães termina a carta com umas reticências misteriosas.

Um Conquistador Regressa à Pátria A Lisboa de Fernão de Magalhães está transformada. Nos poucos anos em que esteve

fora, a cidade crescera e modificara-se. Desapareceu até a pequena igreja onde jurara lealdade à cristo e ao rei de Portugal, em seu lugar construíram o suntuoso mosteiro dos Jerônimos. No Estuário do Tejo, velas e bandeiras de toda a Europa esvoaçam. Nos cais e armazéns amontoam-se as especiarias. Pimenta, cravo, noz-moscada, marfim, sedas, madeiras aromáticas... as fabulosas riquezas que ele ajudou a conquistar. Belos palácios brotaram nas ruas da velha cidade. Fernão quase não reconhece Lisboa mas reconhece as pedras ostentadas por nobres damas e que um dia já estiveram em suas mãos.

O Rei D. Manuel chegou a enviar a Roma um extraordinário cortejo após a conquista de Malaca e em toda a Europa não se fala em outra coisa: Escravos negros, aves exóticas, sedas, pedrarias, ouros e até um elefante que aspergia a multidão com perfumes orientais e que dobrou por três vezes o joelho diante do Papa.

De toda esta riqueza, sobrou para Fernão de Magalhães apenas algumas cicatrizes e um escravo malaio. Para quem combateu e ajudou a conquistar um império no Oriente, que transformou sangue e suor em ouro que abarrota agora os cofres dos grãos-senhores, sobrou apenas uma pensão de 1850 reais mensais e pensão esta não por haver combatido no Oriente, mas porque ainda tem um brasão e direito a vegetar na antecâmara real. Esta vida não satisfaz a Fernão, que não a considera digna da sua honra de guerreiro. Pede ao Rei para engajá-lo em uma nova expedição militar, mas fica ainda por um ano inativo, roído pelo ócio, quando finalmente parte para o Marrocos e luta com os mouros, onde recebe um ferimento de lança no joelho que o deixará mutilado para sempre. É ainda caluniado de fazer pacto com o inimigo na partilha do espólio de guerra. Volta novamente à Lisboa, irritado, e sem prestar satisfação ao alto-comando, exige uma audiência com o Rei, não para se defender, mas para atacar. Ele sabe de seu valor, das privações que passou para o engrandecimento da pátria e quer seu desagravamento público e uma posição mais condigna de sua tradição.

O rei pouco se importa com um soldado anônimo, não concede a audiência exigida e ainda manda que se apresente imediatamente ao alto-comando em Marrocos, sob pena de ser considerado desertor. A contragosto ele vai. O alto-comando não ousa acusá-lo, mas acaba o licenciando novamente, obrigando-o a regressar a Lisboa e ao marasmo. Torna-se então um homem suspeito, ferido, mas com uma vontade férrea e silenciosa, articulando um plano audacioso, digno da têmpera em que se forjou seu caráter.

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A Entrevista com o Rei Depois de um tempo, Fernão novamente exige que o rei o receba. Mesmo de má-

vontade, desta vez Sua Majestade D. Manuel lhe concede a audiência. Apresenta-se sozinho, orgulhoso, dono de uma ambição secreta e desmedida. Arrastando a perna aproxima-se de Sua Majestade, curva-se numa reverência respeitosa e entrega-lhe os documentos que comprovavam sua inocência no caso de Marrocos. Fala altivamente ao Rei, olhando-o de frente. Exige ainda que sua pensão seja aumentada em 100 míseros reais. Pouco importa a Fernão a quantia, o que lhe interessa é a dignidade que ela envolve. O Rei, irritado, recusa. A ele também pouco importam os 100 reais, mas ele está acostumado a curvaturas dengosas, a pedidos feitos em punhos de renda, e estava incomodado com o olhar ferino de um conquistador que lhe devia obediência e respeito.

Fernão não se verga ante à má disposição do monarca e faz uma segunda exigência: o comando de um navio para a Índia. Alega que ninguém como ele conhece os segredos da arte náutica, que tem apenas 35 anos e energia de sobra para ficar inativo à sombra de uma simples pensão.

O Rei recusa-se secamente, mas Fernão não se retira, insiste. Formula agora uma terceira pergunta:

— Majestade, desejo saber se por acaso vos parecerá ofensa eu ir procurar servir outro monarca católico, na esperança de alcançar maiores proventos? — Não, que não! Faz o que quiseres... Sua Majestade se desinteressa pelo assunto. Mancando, altivo e escorraçado, Fernão de Magalhães retira-se da sala do trono.

A Teoria e a Prática

Fernão fica ainda mais um ano em Lisboa. Em silêncio suporta orgulhosamente a

afronta recebida. Todos se afastaram dele, exceto uma figura de natureza totalmente oposta à sua, o cartógrafo e cosmógrafo Rui Faleiro. Este é considerado a maior autoridade portuguesa em suas ciências e mesmo assim também ele foi perseguido pelo Rei e não foi nomeado astrônomo real, não por falta de aptidões, mas porque Sua Majestade se aborrecia com seu caráter vibrátil, nervoso e irritadiço.

Rui e Fernão formavam uma parelha singular, o teórico e o prático, o homem que jamais pôs os pés num tombadilho de caravela e o argonauta intrépido, o sábio que desenha cartas e rotas e o marinheiro que empunha o leme por instinto, um pálido intelectual de gabinete e o navegante de pele curtida pelos sóis orientais. Passaram a ser chamados de “Os inseparáveis”. Pareciam conspirar secretamente, se completavam. A sabedoria de um confirmando a intuição do outro. E juntos elaboraram um plano fantástico e secreto: atingir as ilhas das especiarias pelo ocidente. Eles sabem que existe uma passagem entre o atlântico e os Mares do Sul. Fernão por pura intuição e Rui por ter consultado no arquivo secreto do Rei, um velho e desprezado documento que mostrava ao sul do Brasil, a 40 graus de latitude, uma passagem que poderia abrir caminho para os Mares do Sul. Se fosse assim, o continente descoberto por Colombo não estaria ligado em bloco ao continente austral. O prático e o teórico argumentavam que era possível atravessá-lo. Não sabiam eles ainda que naquela latitude o que iriam encontrar era apenas a imensa desembocadura do Rio da Prata.

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Em Espanha Fernão de Magalhães sabe ao que vai se expor ao emigrar para a Espanha. Será

considerado para sempre um cavaleiro desonrado em Portugal, um traidor de seu Rei e de sua gente, um suspeito aos olhos de outros Reis, já que abandonou aquele a quem jurou obediência e lealdade. Mas o que fazer se tem ele em mente um plano fantástico a realizar e o próprio D. Manuel o escorraçara da corte? Além de que, tem uma permissão formal de seu Rei para servir a qualquer outro monarca católico que lhe pague melhor. Sendo assim Fernão cruza a fronteira. Rui Faleiro, menos corajoso, fica em Lisboa, aguardando as diligências do amigo.

Fernão sabe da desconfiança que lhe espera. Não se dirige à “Casa Del oceano”, onde eram considerados todos os projetos marítimos e todos os empreendimentos que se relacionavam com o ultramar, e nem sequer tenta uma audiência com o jovem Carlos V.

Aproxima-se de um velho combatente português, Diogo Barbosa, que vivia em Sevilha e era naturalizado espanhol, e que como ele, combatera por vários anos nos mares da Índia. Isto os tornava grandes amigos. Diogo é um homem já idoso e conceituado na corte de Valhadoli, já que era cavaleiro da Ordem de Santiago.

Fernão acaba por casar com a filha do amigo, Beatriz, e torna-se genro de Diogo Barbosa, cavaleiro da Ordem de Santiago, além de alcaide do arsenal de Sevilha. Está certo de que estas atribuições estão abrindo seus caminhos para a “Casa del Oceano”. Consegue enfim marcar uma audiência. Mas a comissão de três representantes da Casa em uma primeira reunião consideram o plano de Fernão extraordinário e irrealizável. Fernão se desilude na hora. Porém poucos dias mais tarde recebe surpreendido a notícia de que Juan de Aranda, um dos três conselheiros, ficara pessoalmente muito impressionado com o projeto e convida-o a expô-lo de maneira mais detalhada em sua casa. Fernão fica então muito empolgado e talvez tenha até mesmo confidenciado a latitude da passagem para conseguir seu intento, apesar das recomendações em contrário de Rui Faleiro. O certo é que Aranda realmente se entusiasmou com o projeto e depois de recolher informações em Portugal sobre a competência de Fernão de Magalhães e Rui Faleiro, tratou de abrir caminho através das armadilhas burocráticas da corte, até conseguir uma audiência com Carlos V.

A audiência com o Rei de Espanha

Fernão manda chamar Rui Faleiro para vir a Sevilha. Quando este sabe que uma

terceira pessoa está a par da “passagem”, e que além disso Aranda queria participar dos lucros da expedição, eles discutem violentamente, quase que destruindo sua sólida amizade por conta das desavenças. Porém, quando estavam quase chegando às portas de Valhadoli, acabam entrando em acordo: estará tudo certo se Aranda ficar com um oitavo dos lucros em troca de suas diligências no negócio.

Encerrado o entrevero, Fernão e Rui vão juntos à Audiência com Carlos V. O Rei e o Conselho da Coroa olham interessados para o português renegado. Um dos

presentes , o bispo de Burgos, fora um dos maiores inimigos do projeto de Cristóvão Colombo. Magalhães não se amedronta e fala altivamente como sempre. O Rei e o Conselho sentem que tem diante de si uma forte personalidade. Fernão de Magalhães sabe mais sobre o Oriente do que todos os arquivos secretos da Coroa, cruzou os Mares das Índias, combateu em Cananor, foi derrotado em Malaca e cinco anos depois retornara para se vingar, vencendo e conquistando.

Fernão manda chamar Henrique, o escravo que trouxera de Malaca. O Rei e os conselheiros espantam-se ao ver a raça desconhecida para eles. Depois manda vir uma escrava de Sumatra, vestida com os trajes de sua terra, falando uma língua incompreensível, que remetia a algo longínquo e misterioso. Os espanhóis ficam impressionados mas ainda não sabem da real intenção de Magalhães.

E assim, mancando, rude, altivo, Fernão se aproxima do Rei.

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— Majestade, os portugueses esforçaram-se para atingir as ilhas das especiarias contornando a África, fazendo escala em Calecute, Cochim e Malaca, avançando sempre mais para oriente. Mais fácil seria atravessar as Índias Ocidentais e avançar para as ilhas das especiarias pelo Ocidente.

Carlos V e os conselheiros novamente se espantam. — E só eu, Majestade, só eu e Rui Faleiro sabemos da passagem que liga o Atlântico

aos Mares do Sul. Não revelamos agora exatamente por onde, pois pretendemos guardar segredo até o último momento. Não quero no entanto deixar de chamar a atenção para o fato de que as ilhas das especiarias estão dentro da metade que vos cabe, de acordo com o Tratado de Tordesilhas. Rui Faleiro, melhor do que eu, poderá explicar a Vossa Alteza os motivos por que essas ilhas se encontram na esfera cedida pelo Santo Padre ao reino de Espanha.

A convicção de Fernão de Magalhães e a detalhada e competente apresentação do projeto por Rui Faleiro, que incluía um globo onde mostrava que as fabulosas ilhas cabiam por direito à Espanha, empolgam de vez Carlos V, que pensa poder dar o golpe de morte em D. Manuel de Portugal, pois de nada valeria aos lusitanos o domínio das Índias, se acaso as ilhas das especiarias fossem de propriedade de Espanha, de acordo com o Papa, que dividira o mundo em duas metades, traçando a 370 léguas de Cabo Verde uma linha divisória. A metade ocidental caberia à Espanha e a oriental à Portugal.

O que o Rei não sabia é que os cálculos de Rui Faleiro estavam baseados em hipóteses e não eram nada precisos. Faleiro não imaginava naquela época a imensidão do Oceano Pacífico, daí seu erro. Mesmo assim, com o impacto que a apresentação proporcionou, Carlos V acaba cedendo a Fernão de Magalhães e a Rui Faleiro a frota pedida, assim como todos os interesses e prerrogativas exigidas: o controle exclusivo para ambos, durante dez anos, de todas as expedições ao mar e terras a descobrir, a vigésima parte dos lucros de todas as expedições às novas ilhas, o governo de todas as terras descobertas, com direito de transmissão aos herdeiros e posse de duas ilhas, no caso de descobrirem seis.

Assim, subitamente, a “Casa Del Oceano” passa a gravitar em torno de dois portugueses desconhecidos até a véspera. É uma honraria inesperada, que fere profundamente o brio nacionalista dos senhores de Espanha.

A intriga

Fernão de Magalhães torna-se agora ainda mais inflexível. Se há alguma dificuldade no

cumprimento de qualquer de suas exigências, dirige-se diretamente a Carlos V e o monarca ordena a imediata satisfação das ordens dadas. Os espanhóis sentem-se cada vez mais afrontados e conspiram. Conspiram também os portugueses em Lisboa. D. Manuel percebe que cometeu um grave erro ao não dar ouvidos a Magalhães. Teme pela possibilidade da Espanha conquistar as ilhas das especiarias. Manda que seu embaixador em Espanha aniquile por todos os meios a projetada expedição. E o diplomata tenta argumentar com Magalhães usando primeiro palavras cativas, tentando imbuir no compatriota brios nacionalistas, oferecendo-lhe larga recompensa. Diante da recusa de Fernão, o ameaça com o ódio dos portugueses e a perseguição de D. Manuel. Magalhães lastima mas não se verga à vontade do embaixador, que continua a conspirar, acirrando os comandantes espanhóis da frota, dizendo-lhes que estarão subordinados a um estrangeiro renegado. No porto de Sevilha, quase consegue provocar um motim contra Magalhães, mas este domina a situação com mão de ferro. Em Lisboa, até o bispo de Lamego mostra-se cruamente partidário do assassinato daquele a quem chamava de traidor.

Enquanto conspiram contra ele, Magalhães cuida da minuciosa reparação dos cinco navios cedidos. Examina pessoalmente cada tábua de cada um dos navios, cada mastro, cada vela, cada corda e enxárcia. Revista todas as mercadorias embarcadas, todas as ferramentas, todos os mantimentos. Não quer que nada falte em nenhum momento. Mas vencida uma dificuldade, logo aparece outra: Não é possível encontrar os 250 homens necessários para tripulação, os velhos marinheiros desconfiam da misteriosa expedição, cujo rumo não é anunciado, além disso, os navios estão sendo carregados com mantimentos para dois anos. Resta a Fernão vasculhar por Sevilha, Cádiz e Palos, para formar uma tripulação heterogênea

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e estranha, formada por portugueses, espanhóis, italianos, alemães, ingleses, negros e cipriotas, homens dispostos a tudo por algumas moedas. Muitos eram foragidos ou criminosos, procurando um abrigo seguro sobre as águas.

Vencidos os obstáculos, finalmente a 20 de setembro de 1519, a frota parte sem Rui Faleiro, que à ultima hora retira-se da expedição dizendo que seu horóscopo lhe indicava morte violenta caso embarcasse.

Fernão segue a bordo da Trinidad de 110 tonéis (unidade de medida náutica), seguido pelo San Antonio, de 120 tonéis, do Concepción, de 90 tonéis, do Victória, de 85 tonéis e do Santiago, de 75 tonéis.

A aventura começara definitivamente.

A Afronta em Alto Mar

Ao fazer a escala em Tenerife, uma caravela vinda de Espanha traz uma carta a Fernão. Era de seu sogro, Diogo Barbosa, que lhe avisava sobre uma conspiração dos capitães castelhanos para minar sua autoridade.

Juan de Cartagena, personagem com proteção da corte de Espanha, vedor principal da frota, “Conjuncta persona”, como rezam os documentos, fomenta esta afronta, não se colocando como subordinado, já que estes mesmos documentos não especificam nada sobre o assunto. Tudo dependeria de qual personalidade se vergaria primeiro. Desde o início Fernão exerceu uma disciplina férrea, rumou para o sul, ao largo da costa africana, em vez de seguir a rota do Brasil. Talvez pretendesse evitar a esquadra portuguesa que ouvira dizer ter D. Manuel enviado para lhe dar combate, ou talvez pretendesse seguir até a costa da Guiné para tomar barlavento, um segredo de navegação que nesta época apenas os portugueses detinham. Mas o fato é que acabou por cair em uma calmaria estagnada, seguida por súbitas tempestades e perdeu com esta manobra cerca de quinze dias de viagem. E quando Juan de Cartagena foi indagar-lhe o porque deste rumo, respondeu-lhe secamente que o seguissem sem mais perguntas. Isto aumentou à sua volta o clima de desconfiança e despeito.

Ao cair da noite, segundo praxe estabelecida por Fernão de Magalhães, o San Antonio deveria aproximar-se do Trinidad e Juan de Cartagena deveria aparecer e saudar com esta frase: — Deus vos guarde, senhor capitão-general, e ao mestre e à boa companhia.” Mas o que aconteceu foi a aparição do furriel, que a plenos pulmões gritou de modo a que todos os tripulantes de todas as embarcações pudessem ouvir:

— Deus vos guarde, senhor capitão e mestre. Fernão sofre o golpe em silêncio, sem demonstrar um gesto de irritação ou

contrariedade, apenas manda dizer a Juan de Cartagena que espera no futuro ouvir a saudação que lhe é devida. Cartagena logo manda responder que lamenta mas que não vai obedecer.

Acendeu-se o rastilho da insubordinação. Fernão ouve ainda por três dias a saudação que o insultava, simulando uma derrota contemporizada e depois convida todos os capitães a se reunirem no Trinidad, para decidirem um caso de atentado à moral acontecido entre dois marinheiros. Os capitães ficam agradavelmente surpreendidos e julgam haverem dobrado o conquistador inflexível. Comparecem à reunião e Juan de Cartagena lhe indaga novamente o porquê do desvio até a costa da Guiné. Fernão não responde. Cartagena novamente ataca e Magalhães não se defende. Empolgado pelo seu silêncio, precipita-se em um ataque cada vez mais violento, lança insultos, chama-o de incompetente. Só então Fernão reage, segura Juan de Cartagena bruscamente pelos braços e lhe dá ordem de prisão. Tem agora o motivo para agir assim. Os outros capitães ficam paralisados com a rapidez do golpe e percebem que caíram numa ardilosa armadilha. Em vão Juan de Cartagena os instiga a reagir, mas todos percebem o poder que emana daquele português inflexível. Está vencida mais uma batalha. Juan de Cartagena fica sob a guarda de Luis de Mendoza, comandante do Victória, dando a palavra de honra que o terá sempre ao dispor do Almirante. Porém é uma amarga vitória, pois se agora o novo comandante do San Antonio já te saúda como estabelecido, o orgulho espanhol continua, mais do que nunca, por vingar.

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E assim, na mais calma das serenidades, a frota chega enfim, a 13 de dezembro de 1519, na baía de São Januário, a maravilhosa baía a que mais tarde seria dado o nome de Rio de Janeiro.

Em Busca da Passagem Para os Mares do Sul

A tripulação passa apenas 13 dias na baía de São Januário. São breves mas felizes

dias, onde os marinheiros maravilham-se com a paisagem magnífica e divertem-se com a amabilidade e ingenuidade dos Guaranis. Fernão de Magalhães deixa que desfrutem do descanso mas não admite excessos. E ao fim destes treze dias, com grande pesar da marinhagem, manda levantar âncoras.

Navegam agora sem escalas rumo aos ansiados e secretos 40 graus de latitude. Uma fúria interna apoderou-se do Almirante, não há descanso nem quartel, rumando sempre para o sul. A 10 de janeiro avistam uma colina a qual dão o nome de Montevidi, e logo depois uma grande enseada, um grande caudal. Estas águas correndo tão impetuosamente para oeste só podem ser um indício de um canal ligando dois oceanos. Um espanto e uma súbita alegria toma conta de todos, fora mais fácil do que se supunha encontrar a passagem para os Mares do Sul.

Fernão mal pode ocultar sua íntima satisfação. O imenso estuário coincidia com as secretas informações de Rui Faleiro. E manda que se inicie a descoberta da “passagem”, com os navios menores na frente. E passam dois, três dias, uma semana e as pesquisas revelam-se infrutíferas. Magalhães insiste, perde ainda mais uma semana e finalmente aceita que o fabuloso canal nada mais era do que um gigantesco rio. E manda rumar mais para o sul.

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A paisagem vai se tornando desértica, desolada, a temperatura cai mais e mais.

Aparecem os primeiros gelos e Magalhães enfrenta agora uma dupla frente de batalha. A desconfiança dos comandantes espanhóis que o olham quase como vitoriosos e a dúvida interna que lhe consome a altivez. A tripulação começa a ficar impaciente e os comandantes espanhóis aguardam ansiosos a hora de caírem sobre ele, de o humilharem perante toda a marinhagem, afinal o português não conhecia a passagem como tão veementemente afirmara. Juan de Cartagena, embora ainda preso, sente-se vitorioso.

Mas o sombrio capitão-general não se verga, tem agora que disputar sua autoridade palmo a palmo. Seria mais prudente que retornassem um pouco, para passar o inverno em uma região de clima mais ameno e suave, mas Fernão achava que ao dar ordem para que rumassem ao norte sua competência seria colocada em questão e os comandantes espanhóis promoveriam um motim. Assim sendo, para horror de todos, D. Fernão de Magalhães ordena que se franqueie a desolada baía de São Julião e que se baixem as âncoras. Deverão passar por ali todo um inverno.

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O Motim

Os comandantes já o viam sem a antiga certeza e determinação e os marinheiros

murmuravam desolados que melhor seria regressar a Espanha ou mesmo cruzar o Cabo da Boa Esperança em direção ao Índico do que continuar numa tão infrutífera exploração em paragens tão hostis. Os fidalgos espanhóis passam a exigir de Magalhães que revele definitivamente onde se encontra a célebre “passagem”, é um direito que lhes cabe. Mas Fernão não pode ceder e revelar que os cálculos de Faleiro falharam, que sua própria certeza hoje era dúvida.

E o inevitável aconteceu. No domingo de páscoa, os capitães fingem desconhecer o convite de Magalhães para

que almocem todos a bordo do Trinidad. Apenas Álvaro de Mesquita, primo de Fernão que fora nomeado comandante do San Antonio senta-se à mesa. E à noite, uma fria noite de inverno, um escaler se aproximou do San Antonio e a bordo subiram os capitães espanhóis Juan de Cartagena, Gaspar Quesada e Antonio de Coca. Aprisionam Álvaro de Mesquita e com uma punhalada, Quesada mata o mestre Floriaga, que tentava se opor à traição. Ao amanhecer, apenas o pequeno Santiago oferece lealdade a Magalhães. Um parlamentar é enviado ao Trinidad com uma respeitosa carta dos comandantes espanhóis, que exigem apenas serem tratados com mais consideração e serem ouvidos a respeito da decisão da rota futura. Fernão sente que a situação é desesperadora e que pode minar todos os seus planos. Com uma rapidez impressionante elabora um ardiloso plano para que a situação volte a seu controle.

Apreende o escaler que transportou o parlamentar do San Antonio e nele envia cinco homens de sua confiança para levar uma carta ao comandante do Victória, Luiz de Mendoza. Os espanhóis certamente esperavam por um ataque ao navio rebelde mais poderoso, mas Fernão envia emissários a um dos menores. Mendoza lê a carta e ri, mas nesse momento um dos homens de Fernão o ataca com uma certeira punhalada no pescoço. Enquanto isso, já subia pela borda contrária, Duarte Barbosa, cunhado de Magalhães, com mais quinze homens de espada em punho. Está dominado o Victória.

Agora Fernão conta novamente com a maioria, pois detém o controle de três navios. Fecha a saída da baía e os amotinados se aterrorizam, sabem das conseqüências de haverem afrontado tão duro capitão e se rendem. Magalhães tem agora mais uma difícil tarefa: julgar os amotinados. Não é possível decapitar todos os senhores de confiança de Sua Alteza Carlos V, Rei de Espanha. Mas alguém teria que dar o exemplo e isto sobra para Quesada, que fora o único a derramar sangue em todo o motim, e assim ele é executado. Juan de Cartagena e um padre, que na verdade foram os principais instigadores da revolta, em virtude de suas posições de vedor oficial e sacerdote, escapam da pena capital, mas são condenados a permanecer em terra, uma terra inóspita e hostil, para que Deus decida se vão ou não morrer. Antonio de Coca e Sebastian Del Cano, que assumira o comando do San Antonio, são perdoados.

O Estreito de Magalhães

Cinco meses se passam, marcados pelo inverno rigoroso e pela tragédia do motim. Os

marinheiros saem à terra, encontram pegadas enormes e se atemorizam, julgando haverem chegado à uma terra de gigantes. Chamam estes seres de “patagões”, ou seja, de pés grandes. Cria-se uma lenda. Mais tarde acabam encontrando os índios que produziam estas pegadas, não eram absolutamente gigantes, apenas faziam calçados com volumosas tiras de pele de guanaco, que deixavam as enormes e misteriosas pegadas, e junto aos índios se divertiram com suas danças e seu voraz apetite, até as ferozes tempestades começarem a amainar.

O Santiago é enviado à frente, para fazer um reconhecimento da costa mais ao sul, mas acaba naufragando na foz de um rio, que recebeu o nome de Santa Cruz, durante um súbito vendaval. Com isso Fernão decide que é hora do tudo ou nada, manda levantar âncoras e começam a rumar lentamente em direção à barra. Dos quatro navios restantes os

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marinheiros olham por uma última vez a desolada baía de São Julião. É possível distinguir dois vultos que ficaram abandonados à sua própria sorte, Juan de Cartagena e o sacerdote.

Após finalmente dobrarem a barra, surge novamente o grande oceano à sua frente e continuam rumando cada vez mais ao sul. Mas o inverno ainda não amainara por completo os obriga a ficar ainda mais dois meses ancorados na foz do rio Santa Cruz, onde naufragara o Santiago.

Fernão de Magalhães começa a aceitar a idéia de dobrar o Cabo da Boa Esperança, caso a “passagem” não seja em breve encontrada. Sua férrea vontade e obstinação começam a abalar-se, já admite a derrota, pensando em como ficará sua situação diante de Carlos V, em uma expedição fracassada e com penas capitais a fidalgos espanhóis.

Mas haveria uma última tentativa, navegariam no máximo mais 10 graus ao sul e estaria concluída a exploração. No entanto, navegando apenas dois graus abaixo de onde ficaram por dois meses parados e estagnados, encontraram uma agreste e estreita enseada. Todos olham desconfiados, dizendo estarem diante de um fiorde sem saída, como os da Noruega, mas a última esperança de Magalhães lhe levanta o ânimo. Manda que o San Antonio e o Concepción entrem no estreito e lhes dá cinco dias de prazo para a exploração. Uma tempestade açoita a frota em pleno estreito e Fernão teme pelas duas unidades avançadas. Se acaso a passagem fosse apenas um fiorde estreito como quase todos suspeitavam, os navios deveriam ter-se despedaçado de encontro à parede de rochedos.

Os dias escorrem lentamente, a apreensão aumentando, quando um vigia avista uma coluna de fumaça. Fernão teme que seja um sinal dos náufragos, mas logo em seguida eis que todos avistam um, dois mastros, as velas enfunadas e ouvem um rugido de trovão, uma salva da artilharia. É a alegria, a louca alegria da vitória que toma conta do Concepción e do San Antonio e começa a tomar forma em toda a frota. “Há passagem!”, gritam os marinheiros. Existe um labirinto a se decifrar, mas certamente a passagem existe, devido ao constante fluxo e refluxo das marés. Está descoberto o estreito a quem a história haveria de chamar de Magalhães. Depois de esquadrinhar cada um dos falsos canais, finalmente avistam o imenso Mar do Sul, o imenso Oceano Pacífico, como lhe batiza Fernão de Magalhães. Neste momento, dizem, demonstrou-se o primeiro sinal de que o grande capitão-general era um ser humano. Lágrimas sulcaram seu rosto curtido de sol.

A Travessia Os espanhóis do San Antonio, a mais bem abastecida nau da frota, aproveitam as pesquisas do labirinto do estreito e novamente se rebelam, aprisionando seu comandante e desertando. Magalhães pressente um desastre. Se já era temeroso atravessar o desconhecido Pacífico com os mantimentos completos, sem o San Antonio parecia suicídio. Ele pensa ainda sobre as calúnias que os desertores lhe lançarão em Espanha e chama os comandantes para uma reunião, onde coage-os a declararem por escrito que em conjunto decidiram iniciar a

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grande travessia. Os comandantes recordam do cepo onde foi degolado Quesada, recordam dos vultos solitários na baía São Julião e cedem às ordens de Fernão. E avançam rumo a oeste. A cada dia vendo como estavam errados os cálculos de Rui Faleiro, estão navegando em um oceano imenso e sem fim. São dias e dias de sol causticante e saturados de azul, onde o céu se confundia com o mar no horizonte, apenas o balançar monótono dos barcos navegando na imensidão. E as provisões chegam inexoravelmente ao fim, a fome começa a tomar conta da tripulação. E passam-se, quarenta, e cinqüenta, e sessenta e setenta dias... A pouca comida que resta está podre, cheia de vermes, a água dos barris torna-se fétida e putrefata, os marinheiros fecham o nariz ao tomar o único gole permitido por dia. Começam a comer até as cordas de cânhamo e o couro dos mastros e quem tinha dinheiro podia ainda conseguir comprar uma ratazana dos marujos que trabalhavam nos porões, tornou-se uma iguaria rara e disputada. Os homens começam a ficar cada vez mais fracos, os olhos encovados, pústulas e feridas arrebentam em seus corpos, sangram suas gengivas e seus lábios, é o temido escorbuto começando a tomar conta da tripulação. Fernão achava que já há muito deveriam ter ultrapassado a ilha de Cipângu (Japão), mas na verdade estavam ainda a um terço da viagem. E avançam, com os marinheiros se arrastando, parecendo espectros humanos içando e levantando velas. Quando a 6 de março de 1521, no centésimo dia de navegação, o gajeiro grita: — Terra, terra à vista! Finalmente a terra. Uma ilha povoada, luxuriosa e hospitaleira. Os indígenas cercam os navios com suas canoas e sobem à bordo. São uma gente alvoroçada, fazem uma tremenda algazarra e roubam com extrema agilidade tudo o que encontram ao alcance das mãos, até o escaler do Trinidad tem sua amarra cortada e é levado para a praia. Fernão de Magalhães não podia permitir isso. O escaler é por demais precioso e imprescindível. Desce a terra com alguns marinheiros e com alguns tiros de besta colocam os indígenas para correr. Os homens matam então a fome de cem dias, apanham galinhas, frutas, renovam as provisões, enchem os barris com água fresca. E partem. Fica para trás a ilha cujo nome perdura até hoje: Ilhas dos Ladrões. Uma semana depois, chegam a outra ilha. Fernão julga haver chegado às Molucas, mas na verdade acabara de descobrir um arquipélago jamais registrado em mapas europeus: as Filipinas. A Morte do Grande Capitão-General Chegam a uma ilha chamada Saluan. Lá aportam por nove paradisíacos dias. Os indígenas são amáveis e hospitaleiros. Fartam-se de água, frutas, carne, sombras, descanso e a companhia gentil das belas nativas de pele bronzeada. Fernão decide visitar uma ilha fronteiriça, chamada de Massava e manda na frente Henrique, seu fiel escravo malaio. Do tombadilho percebe que Henrique está chocado e excitado. O escravo fala e os indígenas entendem algumas palavras e respondem. São duas línguas diferentes, mas pertencendo ambas ao grupo malaio. Henrique não pode acreditar. Arrancado de Sumatra, vendido em Malaca, dera a volta ao mundo para voltar à sua terra natal. É certamente o primeiro ser humano a realizar tal façanha. Magalhães fica comovido, afinal sua idéia era vitoriosa, está a um passo do triunfo. Dentro em breve poderá abraçar o amigo Serrão, carregar os navios com as preciosas especiarias e retornar à Espanha contornando o Cabo da Boa Esperança. Havia provado a esfericidade da terra, como afirmavam os sábios. Tornara-se a partir desse momento, imortal. E o grande Capitão-General concede mais uma semana de festas, comilanças e descanso, junto ao amável e ingênuo povo de Massava, que facilmente se deixa converter ao cristianismo e se declara aliado de Carlos V. Por indicação do rei de Massava, Fernão navega agora em direção à ilha de Cebu, a maior do arquipélago. Nela reina um príncipe já não tão ingênuo, que é sabedor de algumas coisas do mundo. Magalhães, ao contrário das expedições espanholas de Cortez e Pizarro, que sempre marcaram com sangue suas conquistas, é duro e severo, mas usa delicadeza e bondade para convencer o rei a converter-se ao cristianismo e se declarar aliado de Carlos V. Nomeia o rei como senhor do arquipélago das Filipinas, ao qual todos os reis das outras ilhas devem reconhecer como soberano.

Uma das ilhas, chamada de Mactan, tem um rei que não quer reconhecer tal autoridade. Fernão decide resolver o impasse, vai até a ilha propositadamente com poucos homens, para que os espanhóis ganhassem fama de invencibilidade aos olhos de todos os

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indígenas. Mas não contou com a acidentada costa de corais, que impedia a aproximação dos escaleres portadores de bombardas. Subitamente vê-se rodeado de indígenas e começa uma batalha. Luta por quase uma hora, sem tentar fugir, mas a diferença numérica de combatentes vai derrubando um a um. Uma flecha atinge o rosto de Fernão de Magalhães, e logo outra no braço, e logo mais uma em sua perna. O grande conquistador tomba. Incrivelmente ferozes os indígenas avançam sobre o corpo e o despedaçam.

“Assim tiraram a vida ao nosso espelho, à nossa luz, ao nosso amparo, ao nosso fiel chefe”. Escreveu assim Pigaffetta, um marinheiro italiano e incondicional admirador do grande Capitão-General. Estava morto um mito. O Término da Viagem Os espanhóis destroem em pouquíssimo tempo o que Magalhães havia construído pacientemente. Abusam, roubam, saqueiam. Incitam o rei de Cebu à traição. E inesperadamente, durante um banquete que aparentava normalidade, os capitães e mestres de navegação são trucidados pelos nativos. Os quatro navios vagueiam agora pelo arquipélago de Sonda, sem rumo, sem uma voz de comando que os conduza. Praticam a pirataria pura e simples para se abastecerem. Finalmente atingem Ternate. Ficam sabendo pelo rei que Serrão, o grande amigo de Magalhães morrera há poucas semanas. Se por vinte e sete meses haviam navegado às cegas, o rumo agora era mais fácil e conhecido. Carregam com as preciosas especiarias o único navio capaz de suportar a viagem de volta à Espanha e cinqüenta e um homens ficam voluntariamente na ilha de Tidore, esperando um resgate que talvez lhes mandasse Sua Majestade Carlos V. O Victoria, comandado por Sebastian Del Cano, o antigo amotinado, contorna o Cabo da Boa Esperança, e após inúmeras e desesperadas aventuras, entra no porto de Sevilha. Dos cinco navios, apenas um regressara. Dos duzentos e cinqüenta homens que partiram, apenas dezoito retornam. Dezoito espectros, dezoito heróis para a Espanha. As especiarias trazidas no Victoria cobriram as despesas de toda a frota. Fernão de Magalhães é logo esquecido e Sebastian Del Cano é glorificado, concedem-lhe até direito a usar brasão. Talvez tenha sido ele mesmo quem destruiu os diários do Almirante da frota. Del Cano não pode esquecer que também participou do motim na baía de São Julião... Até mesmo depois de sua morte o grande conquistador continuava suspeito. Para lançar uma última afronta à sua memória, Carlos V vende a concessão das ilhas das

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especiarias para D. Manuel por trezentos e cinqüenta mil ducados, um vil e miserável negócio é no que se transforma o grande plano que consumiu a vida de Magalhães. Nem seus herdeiros sobraram para reclamar os haveres devidos, a desgraça atinge também a todos seus entes queridos. Morreu Beatriz, sua esposa e morreram seus dois filhos, o mais novo Fernão nem chegou a conhecer. Duarte Barbosa, seu cunhado, morreu em Cebu. Henrique continuou sendo tratado como escravo. Rui Faleiro é detido ao entrar em Portugal. Álvaro Mesquita, seu primo, comandante do San Antonio, é preso por lhe ter sido fiel. Foi um destino trágico, grandioso e fatal. “Mas a terra é redonda!” podem agora os homens afirmar com segurança. E Fernão de Magalhães havia escrito seu nome para sempre na história da humanidade. O vento continua açoitando a desolada baía de São Julião e quem para ela olhe, talvez ainda possa distinguir dois vultos perdidos, vagando sem rumo pela praia...

Fim Fernão de Magalhães (1480? – 1521) Adaptação baseada na obra de Fernando Correa da Silva, “Os Descobridores”, de 1960. Por Mauricio Figueiredo em agosto de 2005.