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11 DOSSIÊ DEMOCRACIA, POLÍTICOS E PARTIDOS RESUMO Rev. Sociol. Polít. , Curitiba, 15, p. 11-29, nov. 2000 1 Este trabalho é resultado do estágio pós-doutoral que desenvolvi na Faculdade de Ciência Política Cesare Alfiere, da Universidade de Florença, entre setembro de 1998 e janeiro de 1999. Agradeço ao Professor Leonardo Morlino, que me proporcionou esta oportunidade valiosa, bem como aos Professores Jean Blondel, Maurizio Cotta e Luca Verzichelli, da Universidade de Siena, pelo relacionamento amigável e pelos subsídios teóricos adquiridos durante esses meses de convivência. Agradeço também ao CNPq pelo apoio, e à Marcolina Tomazini de Carvalho pela colaboração na pesquisa dos dados do PRODASEN. RUMOS DA DEMOCRATIZAÇÃO BRASILEIRA: A CONSOLIDAÇÃO DE UM MODELO MAJORITÁRIO DE DEMOCRACIA? 1 Luzia Helena Herrmann de Oliveira Universidade Estadual de Londrina O objetivo do artigo é analisar as questões teóricas da consolidação democrática no Brasil, tendo em vista que o tema é controverso dentro da ciência política. A tese desenvolvida é que o modelo poliárquico de Dahl, costumeiramente apresentado como o referencial das democracias estáveis, não se adapta à análise dos processos de democratização em países como o Brasil, de passado autoritário. Propõe-se, assim, um estudo comparativo com os países do sul da Europa, hoje considerados democracias consolidadas, observando-se em que medida a relação entre partidos e governos no Brasil tende à consolidação de um modelo “majoritário” de democracia. Palavras-chave: consolidação democrática; legitimidade política; partidos e governos. I. INTRODUÇÃO A nova ordem constitucional democrática no Brasil já completou doze anos, mas persistem dúvidas sobre a capacidade de o país consolidar sua democracia. A questão colocada é em que medida o Brasil caminha (ou não) para o que se convencionou chamar de consolidação demo- crática, ou seja, para a finalização de um processo de democratização que, embora não-linear, apresenta uma seqüência reconhecível. Em um primeiro momento, tem-se a transição, quando ocorre a mudança do regime, ainda mantendo fortes elementos do passado; em seguida, vem a instalação ou instauração, em que são implantadas as estruturas político-institucionais democráticas e são formalizadas novas regras de procedimento político; a permanência ou manutenção é a terceira etapa, quando as regras vão sendo sedimentadas em toda a sociedade; finalmente, pode-se chegar à consolidação, momento em que o sistema ad- quire sustentação, continuidade e legitimidade 2 . Na conceituação de Linz e Stepan (1999), a consolidação propriamente dita é um estágio final, em que cinco campos em interação aparecem de forma plenamente visível: uma sociedade civil livre e ativa, com cidadãos e grupos que podem se ex- pressar e se associar para defender suas opiniões e seus interesses; uma sociedade política relativa- mente autônoma e valorizada, na qual os partidos, as lideranças e as instituições democráticas são canais de intermediação entre a sociedade civil e o Estado; um Estado de Direito respeitado e valori- zado tanto pela sociedade civil quanto pela socie- dade política e pelo próprio Estado; uma burocracia estatal subordinada ao governo, capaz de prestar os serviços básicos à população; e, finalmente, uma sociedade econômica institucionalizada, que seria, na visão dos autores, “um conjunto de nor- mas, instituições e regulamentações, construídas e acordadas de forma sócio-política” (LINZ & STEPAN, 1999, p. 30) e que têm por função me- diar as relações entre o Estado e o mercado. 2 O conceito de consolidação é especialmente tomado de Morlino (1998). A definição de Liz e Stepan (1999), embora mais enxuta, é essencialmente a mesma; ver também Di Palma (1990).

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 15: 11-29 NOV. 2000DOSSIÊ DEMOCRACIA, POLÍTICOS E PARTIDOS

RESUMO

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 15, p. 11-29, nov. 2000

1 Este trabalho é resultado do estágio pós-doutoral quedesenvolvi na Faculdade de Ciência Política Cesare Alfiere,da Universidade de Florença, entre setembro de 1998 ejaneiro de 1999. Agradeço ao Professor Leonardo Morlino,que me proporcionou esta oportunidade valiosa, bem comoaos Professores Jean Blondel, Maurizio Cotta e LucaVerzichelli, da Universidade de Siena, pelo relacionamentoamigável e pelos subsídios teóricos adquiridos durante essesmeses de convivência. Agradeço também ao CNPq pelo apoio,e à Marcolina Tomazini de Carvalho pela colaboração napesquisa dos dados do PRODASEN.

RUMOS DA DEMOCRATIZAÇÃO BRASILEIRA:A CONSOLIDAÇÃO DE UM MODELOMAJORITÁRIO DE DEMOCRACIA?1

Luzia Helena Herrmann de OliveiraUniversidade Estadual de Londrina

O objetivo do artigo é analisar as questões teóricas da consolidação democrática no Brasil, tendo em vistaque o tema é controverso dentro da ciência política. A tese desenvolvida é que o modelo poliárquico deDahl, costumeiramente apresentado como o referencial das democracias estáveis, não se adapta à análisedos processos de democratização em países como o Brasil, de passado autoritário. Propõe-se, assim, umestudo comparativo com os países do sul da Europa, hoje considerados democracias consolidadas,observando-se em que medida a relação entre partidos e governos no Brasil tende à consolidação de ummodelo “majoritário” de democracia.

Palavras-chave: consolidação democrática; legitimidade política; partidos e governos.

I. INTRODUÇÃO

A nova ordem constitucional democrática noBrasil já completou doze anos, mas persistemdúvidas sobre a capacidade de o país consolidarsua democracia. A questão colocada é em quemedida o Brasil caminha (ou não) para o que seconvencionou chamar de consolidação demo-crática, ou seja, para a finalização de um processode democratização que, embora não-linear,apresenta uma seqüência reconhecível. Em umprimeiro momento, tem-se a transição, quandoocorre a mudança do regime, ainda mantendofortes elementos do passado; em seguida, vem ainstalação ou instauração, em que são implantadasas estruturas político-institucionais democráticase são formalizadas novas regras de procedimentopolítico; a permanência ou manutenção é a terceiraetapa, quando as regras vão sendo sedimentadas

em toda a sociedade; finalmente, pode-se chegarà consolidação, momento em que o sistema ad-quire sustentação, continuidade e legitimidade2.

Na conceituação de Linz e Stepan (1999), aconsolidação propriamente dita é um estágio final,em que cinco campos em interação aparecem deforma plenamente visível: uma sociedade civil livree ativa, com cidadãos e grupos que podem se ex-pressar e se associar para defender suas opiniõese seus interesses; uma sociedade política relativa-mente autônoma e valorizada, na qual os partidos,as lideranças e as instituições democráticas sãocanais de intermediação entre a sociedade civil e oEstado; um Estado de Direito respeitado e valori-zado tanto pela sociedade civil quanto pela socie-dade política e pelo próprio Estado; uma burocraciaestatal subordinada ao governo, capaz de prestaros serviços básicos à população; e, finalmente,uma sociedade econômica institucionalizada, queseria, na visão dos autores, “um conjunto de nor-mas, instituições e regulamentações, construídase acordadas de forma sócio-política” (LINZ &STEPAN, 1999, p. 30) e que têm por função me-diar as relações entre o Estado e o mercado.

2 O conceito de consolidação é especialmente tomado deMorlino (1998). A definição de Liz e Stepan (1999), emboramais enxuta, é essencialmente a mesma; ver também DiPalma (1990).

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É de se notar que a idéia de democracia con-solidada não se distingue da institucionalizaçãode Huntington (1975), pois é possível entender-se que nas democracias consolidadas, tal comonas democracias institucionalizadas, as normas eas instituições políticas encontram-se plenamenterotinizadas e incorporadas ao cotidiano doscidadãos. Contudo, o conceito de consolidaçãonão se reduz ao conceito de institucionalização,pois se refere a um processo que não obedece aum período seqüencial de estabilização e habituação(em alguns casos pode demorar décadas ou nemmesmo se concretizar) e, devido à incerteza quelhe é inerente, pode atravessar momentos de crises,rupturas e retrocessos, capazes de colocar emrisco o desfecho desejado.

Como lembra Giuseppe di Palma (1990), oconceito de consolidação democrática diz respeitoà consolidação de instituições democráticas e issoenvolve uma malha de relações entre sociedadecivil e Estado que interagem para a construção donovo modelo. Em cada momento do processo éimportante observar-se não apenas as instituiçõescriadas pelo novo regime, mas sobretudo a quali-dade das alianças e das coalizões estabelecidas,verificando-se em que medida as escolhas estraté-gicas dos atores políticos contribuem positiva ounegativamente para a consolidação. Portanto,diferentemente de institucionalização, que é maispassiva, a consolidação é dinâmica e prospectiva,dependendo diretamente da ação dos atores emdisputa.

O processo de democratização no Brasil insere-se no movimento denominado terceira onda(HUNTINGTON, 1991), que se iniciou em 1974com o fim da ditadura salazarista, em Portugal, eestendeu-se aos países da América Latina, Ásia eEuropa. Essas novas democracias têm enfrentadodificuldades comuns que Huntington denominaproblemas de transição, problemas contextuais eproblemas sistêmicos.

Durante a transição surgem várias questõescomo, por exemplo, qual deve ser o procedimentomais correto das forças democráticas diante dosgrupos políticos que apoiaram o regime autoritárioe desrespeitaram os direitos humanos, matando etorturando civis que se opuseram à ditadura. Omelhor seria negociar, ou romper e vingar-se?Outro dilema é o que fazer para reduzir oenvolvimento das Forças Armadas na direçãopolítica do novo sistema. Um governo que se

pretende democrático e soberano não pode acei-tar imposições de forças políticas exteriores aopoder legitimamente constituído. Mas é sabido queem muitas dessas novas democracias os grupospolíticos do regime anterior permaneceram nopoder e os militares mantiveram uma profundainterferência na construção do novo regime.

Por problemas contextuais, Huntington com-preende os chamados problemas endêmicos,constitutivos das sociedades em questão. Refere-se a acontecimentos específicos de cada realidadehistórica, tais como a presença de grupos rebeldes,insurrectos que não aceitam a ordem jurídicademocrática; a extrema pobreza que atinge umgrande grupo de países; o profundo grau de desi-gualdade sócio-econômica a que outra parcela depaíses encontra-se submetida; a persistência decrises econômicas, como inflação, baixo índicede crescimento e desequilíbrios na balança depagamentos.

Problemas sistêmicos encontram-se relaciona-dos aos dois itens anteriores, mas aparecem demaneira mais visível no sistema político. Tornam-se visíveis, seja pelo baixo grau de legitimidadedemocrática ou eficácia decisória dos governos,seja pela vulnerabilidade do sistema à demagogiapolítica e à predominância dos interesses privadosna vida pública.

No Brasil, as dificuldades políticas enfrentadasnas últimas décadas levaram os analistas a conver-girem para a constatação de que, nesse país, aconstrução da democracia não tem sido tarefafácil, persistindo tanto problemas do período datransição, quanto os endêmicos e os sistêmicos.A incerteza tem prevalecido nessas análises e adificuldade teórica torna-se evidente porque amaior parte desses estudos toma como parâmetroas poliarquias de Dahl (1997), modelo funda-mentado na história de países que não passarampelas experiências dessas novas democracias.Embora relevantes, essas análises são prejudicadaspela dificuldade em comparar realidades históricasmuito diversas. Um segundo problema é que em-bora a literatura disponível sobre a democratizaçãobrasileira seja bastante ampla, prevalece um grandedesacordo, com interpretações e diagnósticosprofundamente díspares.

A meu ver, para compreender os rumos dademocratização brasileira seria mais útil o desen-volvimento de um estudo comparativo que reu-nisse democracias novas e, dentre essas, mais

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3 Vários autores trabalham com essa hipótese. Ver,especialmente, Gunther et alii (1995).

especificamente aquelas que conseguiram com-pletar o ciclo da democratização, apresentando-se hoje como democracias consolidadas. Refiro-me aos países do sul da Europa (Portugal, Espanha,Grécia e Itália incluída), os quais já vêm mere-cendo um grande número de análises dentro dapolítica comparada. São estudos que têm procu-rado verificar em que medida tais países podemser considerados casos paradigmáticos dos pro-cessos de consolidação democrática em curso nomundo atual3.

Como veremos a seguir, a partir dessa abor-dagem comparativa será possível dar um novoenfoque ao processo político brasileiro, observan-do aspectos que não têm merecido a atenção dosanalistas. Uma análise abrangente dos váriosprocessos de consolidação poderá acrescentaralgo de importante ao debate sobre democraciaque ora se desenvolve no Brasil. Antes, porém, éconveniente mostrar os pontos centrais dessedebate.

II. VISÕES SOBRE O PROCESSO DE CON-SOLIDAÇÃO DA DEMOCRACIA BRA-SILEIRA

Em artigo recentemente publicado, VicentePalermo (2000a) afirma que, embora as análisessobre o processo de democratização no Brasiltenham, em sua maioria, preferido observar arelação entre sistema de governo presidencialistae sistema partidário (considerado bastantefragmentado), as conclusões desses estudos têmapresentado profundas divergências. Realmente,a literatura produzida durante os últimos quinzeanos sobre a democratização brasileira tende adividir-se em tendências explicativas, cujasdiferenças trazem embutidas visões distintas so-bre a realidade histórica do país.

Uma primeira postura é aquela que procuraenfatizar o caráter conservador da novademocracia brasileira, mostrando o quanto atransição manteve os aspectos autoritáriosvigentes no período anterior e o quanto essesaspectos continuaram influenciando, no sentidode cercear e limitar o alcance da democratização.

Um texto seminal desta primeira visão foi publi-cado em 1986, por Share e Mainwaring (1986),

no qual os autores apresentavam as semelhançasobservadas entre a transição que se desenvolviano Brasil e a transição espanhola, concluída algunsanos antes. Em ambos os casos, o governo autori-tário teria mantido a transição sob seu controle epermanecido como força eleitoral relevante no mo-mento seguinte à transição. Tais característicassão fundamentalmente importantes na explicaçãosobre esse tipo de transição pela transação, emque, implícita ou explicitamente, governo autori-tário e oposições democráticas teriam estabelecidoacordos, visando à abertura de novos espaços polí-ticos para a oposição (em virtude principalmenteda volta do mercado eleitoral e partidário) e a per-manência dos antigos grupos do poder no cenáriopolítico. Para Share e Mainwaring, essa permanên-cia interferiu decisivamente no processo de cons-trução das regras institucionais do novo regime,contribuindo para que as mudanças institucionaise estruturais fossem bastante tímidas e conserva-doras, determinando um caráter mais de continui-dade que de ruptura.

Com a instauração do jogo constitucional de-mocrático, uma expressiva parcela dos cientistaspolíticos procurou aprofundar essa interpretação,abordando aspectos da cultura política do país eda organização institucional do Estado que tende-riam a reforçar o sentimento de incerteza quantoà possibilidade de democratização. Essas análisesapontavam as dificuldades políticas, relacionando-as ao modelo de transição adotado, ao modelonegociado, que manteve no cenário político os gru-pos que foram leais ao governo autoritário. Dentreesses grupos, destacavam-se os militares – quese mantiveram influentes, impondo uma série derestrições à nova ordem constitucional – e os gru-pos políticos tradicionais – que permaneceram nopoder graças aos acordos firmados com a opo-sição.

Segundo tal raciocínio (O’DONNELL &SCHMITTER, 1986; WEFFORT, 1992; HAGO-PIAN, 1992), a oposição democrática foi cooptadano Brasil pela idéia da transição negociada e esteprocesso garantiu a permanência na política brasi-leira de seus antigos vícios, ou seja: a prática desen-freada do clientelismo político, a fragilidade e afalta de opções programático-ideológicas dos parti-dos, e o comprometimento das instituições demo-cráticas com o poder privado. Assim, o modo ne-gociado da transição teria marcado profundamenteo nascimento da nova democracia brasileira e,conseqüentemente, determinando em grande me-

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4 Mais recentemente, o autor tem utilizado outros argu-mentos para defender a mesma idéia (O’DONNELL, 1999).

dida os momentos políticos posteriores. Daí agrande distância que o atual sistema mantém dasmodernas poliarquias ocidentais.

É claro que um sistema político com tais ca-racterísticas, embora constitucionalmente demo-crático e com as instituições em pleno funcio-namento, encontra-se muito distante da imagemde uma democracia consolidada. E essa consta-tação tem efetivamente sido feita por um númerosignificativo de cientistas políticos, como GuillermoO’Donnell (1996), quando se refere ao sistemapolítico brasileiro como democracia delegada4.Para O’Donnell, mesmo sob um regime políticoconstitucional, o exercício da autoridade políticano Brasil mantém os padrões tradicionais, preser-vando o extremo personalismo do presidente daRepública e a fraqueza das instituições democrá-ticas, dos partidos e das organizações da sociedadecivil.

Segundo esses analistas, a democracia que sedesenvolve no Brasil seria uma democracia a meiocaminho, que não se efetiva, não se consubstancia,podendo ser duradoura ou mesmo permanente,mas mantendo-se meramente formal e conser-vando os grupos privilegiados de sempre. Vale citarEli Diniz (1997) quando afirma que a fragilidadedo poder Legislativo frente ao Executivo é tradi-cional na política brasileira, visto que o país vemsendo dominado há muitas décadas pelo autorita-rismo das burocracias estatais. Por essa razão, aautora entende que a consolidação da democraciabrasileira depende de uma profunda transformaçãoque envolva não apenas o Estado, mas sobretudoas relações entre Estado e sociedade.

Contrariando essa visão, contudo, outra parce-la dos cientistas políticos desenvolve uma argu-mentação que nega a primeira teoria em, pelomenos, três pontos. Primeiro, na crença de que atransição democrática brasileira foi problemáticapelo caráter negociado que evitou a ruptura como momento anterior. Pelo contrário, estes autoresacreditam que a maior dificuldade da transiçãobrasileira foi não se ter estabelecido, de maneirapública, nenhum tipo de acordo político entre osgrupos (democráticos e autoritários) que partici-param da transição. Segundo, diferentemente dosanalistas que costumam atribuir o mau funciona-mento das instituições políticas brasileiras a fato-

res macro-sociais, estes defendem a idéia de quea causa deve ser buscada no próprio processo deinstauração da nova democracia e das escolhaspolíticas de seus atores. Terceiro, aparece entretais autores uma enfática preocupação com a cons-trução das regras do jogo democrático que, nessaótica, passa a ser considerada um dos momentoscruciais do processo de consolidação.

Ludolfo Paramio (1989) encontra-se neste gru-po à medida que procura desencorajar a formulaçãode algo semelhante a uma teoria das transiçõespactuadas, mostrando que os processos de demo-cratização no Brasil e na Espanha apresentamsignificativas diferenças. Segundo Paramio, a atua-ção legalizada do partido oposicionista brasileiro(MDB) durante a ditadura militar contribuiu paradiluir o posicionamento ideológico e político daoposição. Diferentemente, na Espanha, a clandesti-nidade compulsória durante a ditadura de Francoajudou os oposicionistas a permanecerem com cla-ras posturas programático-ideológicas que foramúteis no período da transição. Essa mesma análiseaparece em Maria do Carmo Campello de Souza,quando argumenta que na transição brasileira pre-valeceu um “vasto centro (partidário-parlamentar)– um espaço onde todos estão com todos e deque não se conhecem nem os limites nem a espinhadorsal” (SOUZA, 1988, p. 569). Segundo os doisautores, tal embaralhamento ideológico foi preju-dicial à transição brasileira.

Para os adeptos dessa teoria, no Brasil o pro-cesso de transição foi muito prejudicado porquemisturou a temática social e econômica à discussãosobre a regulamentação formal do novo sistemademocrático. Com isso, relegou para um segundoplano a organização do sistema político, que seriafundamental para a instauração da democracia.Segundo Bolívar Lamounier, a transição demo-crática brasileira foi extremamente competitiva edesgastante para os dois lados (democratas eautoritários), criando um impasse prejudicial, por-que os problemas sociais e políticos avolumaram-se sem que um dos segmentos ou uma liderançalegítima fosse capaz de tomar a direção do pro-cesso. Não houve, segundo ele, “um foro apropria-do para a focalização das atenções em diagnósticosglobais”, prevalecendo temas pontuais e desarticu-lados, em lugar da construção de uma “engrena-gem institucional mais ampla” (LAMOUNIER,1996, p. 22).

Sob essa ótica, não há dúvida de que uma das

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5 A bibliografia sobre a necessidade da reforma é muitoampla. Ver, sobre as dificuldades do sistema presidencialistacombinado com o pluripartidarismo, Mainwaring (1993) eos artigos de Bolívar Lamounier, Juan Linz, Arend Lijpharte Arturo Valenzuela em Lamounier (1991). Sobre adesproporcionalidade do sistema eleitoral, ver Nicolau(1991). Uma análise do debate no Brasil encontra-se emOliveira (1997).

maiores dificuldades para a consolidação democrá-tica brasileira é a incapacidade de formularem-seregras político-institucionais duradouras. Doisaspectos são reiteradamente lembrados por essesanalistas: de um lado, a importância do consensodemocrático na formulação das leis fundamentais;de outro, a necessidade de fortalecer o sistema,para facilitar a tomada de decisões e, assim, per-mitir a eficácia dos governos (a governabilidade).Dessa maneira, o acordo político sobre a organi-zação institucional é considerado de primordialimportância, primeiro, porque contribuiria paradar legitimidade ao sistema e, segundo, porque asregras vigentes no Brasil têm sido consideradasprofundamente inadequadas ao aprimoramentodemocrático do país.

Para eles, um dos pontos nodais da questão éque a permissividade da legislação partidária e oextremo consociativismo do sistema eleitoral noBrasil conflitam com o sistema presidencialista,dificultando a formação de maiorias parlamentaresde apoio ao poder Executivo. Note-se, portanto,que em lugar da clássica noção de equilíbrio dospoderes, a opção aqui é por um sistema capaz de“desenvolver uma série de incentivos para ageração de maiorias coligadas” (LINZ & STEPAN,1999, p. 218). Implantação do sistema parlamenta-rista e reformas no sistema partidário-eleitoralteriam por objetivo harmonizar a relação entre ospoderes, estruturando-os para que adquiram capa-cidade de enfrentar as questões-chave que têmimpedido a consolidação democrática5.

Em última instância, a consolidação da demo-cracia no Brasil dependeria da solução dos proble-mas de política substantiva: a busca por maiorequilíbrio sócio-econômico, visto que hoje a desi-gualdade atinge um dos piores índices do planeta;o desenvolvimento de um legítimo Estado deDireito, que seja capaz de garantir, com imparcia-lidade, o respeito aos direitos de cidadania; a cons-trução de uma eficiente burocracia estatal, dirigidapara a promoção do desenvolvimento econômico

e para o atendimento às demandas da sociedade6.Contudo, os adeptos dessa linha de análise acredi-tam que o trabalho de engenharia política, quandobem sucedido, pode facilitar a superação destesobstáculos.

Esta postura, entretanto, vem sendo criticadaem uma série de estudos recentes. Polemizandocom essa interpretação, análises direcionadas maisespecificamente para o processo decisório do Es-tado têm frisado que, durante a última década, opoder Executivo no Brasil manteve grande autono-mia, assumindo crescentemente atribuições legisla-tivas e mantendo à sua disposição uma série demecanismos institucionais e informais, capazes deconstranger e disciplinar o Congresso Nacional.

O objetivo desses novos trabalhos é demonstrarque o poder Executivo detém o controle decisóriono Brasil e que, portanto, o país não corre o riscoda ingovernabilidade. Como salienta VicentePalermo, os teóricos desta linha criticam as visõesanteriores, afirmando que elas “não levam emconta todas as variáveis relevantes” (PALERMO,2000a, p. 537). Vários autores têm abordadoaspectos dessa questão.

Argelina Figueiredo e Fernando Limongi (1996;1997; 1998) têm publicado uma série de trabalhosque esmiúçam o processo de tramitação dos proje-tos de lei, mostrando que alguns procedimentosusuais do processo decisório garantem o controledo poder Executivo sobre o Legislativo e evitam adispersão e a pulverização dos votos parlamentares.Segundo eles, o sistema político inaugurado em1988 garantiu ao poder Executivo prerrogativaslegais que lhe conferem grande autonomia e capa-cidade de interferência sobre o poder Legislativocomo, por exemplo, a concentração de poder noColégio de Líderes e na Mesa Diretora dentro doCongresso Nacional. Essas prerrogativas legaisgarantem a entrada para a pauta legislativa apenasdos projetos que interessam às lideranças parla-mentares que controlam o Legislativo e que estãoafinadas com o poder Executivo.

A iniciativa legislativa de editar Medidas Provi-sórias é outra forma de intervenção que garanteenorme autonomia ao poder Executivo, princi-

6 Estas questões são discutidas por Linz e Stepan (1999),quando se referem à ausência desses campos democráticosno Brasil. Também Bolívar Lamounier estabelece uma relaçãodireta entre desconcentração de renda e consolidação dademocracia brasileira (LAMOUNIER, 1995).

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palmente porque o Legislativo tem, muitas vezes,abdicado do direito de analisar a admissibilidadeda lei, aceitando para discussão todos os projetosque o poder Executivo considera urgentes e rele-vantes. Além disso, o poder Legislativo permite areedição das matérias não examinadas pelo Con-gresso no prazo legal de trinta dias. Com isso,sem passar pela apreciação do Congresso, algumasdezenas de Medidas Provisórias vêm sendo suces-sivamente reeditadas durante os últimos dez anos(FIGUEIREDO & LIMONGI, 1997).

O alto índice de fragmentação partidária dosistema político brasileiro também não deve serconsiderado um empecilho ao desenvolvimentodemocrático. Em Multipartidarismo e democra-cia, Jairo Nicolau afirma que a fragmentação par-tidária é um elemento constitutivo da política bra-sileira (principalmente a partir da década de 90),mas em nenhum momento “a fragmentação apa-receu como um problema” (NICOLAU, 1996, p.105). Segundo ele, sistemas multipartidários esti-mulam a formação de governos de coalizão, e issovem efetivamente ocorrendo no Brasil.

Rachel Meneguello reafirma essa postura quan-do analisa a relação entre partidos e governos noBrasil democrático. Para isso, apóia-se no levanta-mento da formação ministerial de todos os gover-nos federais desde 1985, concluindo que “os parti-dos exercem papel central na organização e funcio-namento do poder Executivo” (MENGUELLO,1998, p. 165). Segundo ela, a autonomia dopresidente da República é limitada pela interferênciados partidos no processo decisório e estes, porsua vez, têm interesse nessa proximidade paradesenvolvimento de suas políticas. Dessa forma,cria-se um círculo vicioso que favorece a coalizãoe a governabilidade.

Como se sabe, governo de coalizão é umacaracterística dos modelos consociativos de demo-cracia, mas para grande parte desses analistas oalto grau de controle do poder Executivo e a eficá-cia decisória do governo estariam demonstrandoque se desenvolve no país um modelo com carac-terísticas de “majoritarismo exacerbado” ou “lógicamajoritária”7. O ponto fundamental é que o Presi-dente da República, aliado às lideranças partidáriasque dão sustentação política ao governo, conse-

guiria determinar a agenda legislativa, controlan-do todo o processo político.

No entanto, mesmo dentro dessa perspectivateórica que enfatiza a governabilidade, uma leituraatenta leva-nos a concluir que a consolidação dademocracia não foi atingida. Mesmo esses autorestêm constatado que a eficácia decisória acontecegraças à utilização rotineira de mecanismos políti-cos de legitimidade duvidosa. Medidas Provisóriasque não são apreciadas pelo Congresso Nacional(PESSANHA, 1999), a desorganização partidária8

e a prática da política invisível9 são expedientesque podem funcionar no curto prazo, mas é difícilprever como serão recebidos pela sociedade nofuturo próximo. Como alguns pesquisadores vêmpercebendo, a dinâmica partidária observada naprática parlamentar mais recente indica que “oprocesso político brasileiro está marcado por umaincerteza muito maior do que os autores represen-tativos do terceiro enfoque (concentração de po-der/governabilidade) registram” (PALERMO,2000a, p. 539).

Sendo esse raciocínio verdadeiro, observa-seque muitas questões sobre os rumos da democra-tização brasileira permanecem em aberto. O pontode vista desenvolvido neste artigo é que a conso-lidação democrática envolve elementos que vãoalém da governabilidade, pois, independentementedos problemas relativos à preservação do sistemapolítico e da eficácia dos governos, há que seconsiderar a qualidade da democracia que vemsendo construída. Como será visto a seguir, umacomparação com os países do sul da Europa seráútil para mostrar que determinadas questões apare-cem como centrais nesse processo.

7 O primeiro termo é de Figueiredo et alii (2000, p. 50) e osegundo de Cláudio Gonçalves Couto (apud PALERMO,2000a, p. 535).

8 Como observa Jairo Nicolau (1996, p. 98), “A intensatroca de legenda [...] sem dúvida é um sinal da poucainstitucionalização dos partidos brasileiros. Porém, é possívelavaliar seus efeitos como funcionais para a operação dopresidencialismo brasileiro, já que facilitam o processo deampliação de sustentação parlamentar do Executivo”.

9 Ao analisar a aprovação da Lei da Previdência Social,Figueiredo e Limongi (1998, p. 65) argumentam que “aimplantação de reformas que visam cortar e limitar benefíciosé condicionada por fortes resistências da parte de grupos deinteresse e burocracias constituídas em torno dos programasexistentes e pelo apoio popular a determinados programas.Portanto, a aceitação dessas políticas depende do uso deestratégias que permitam diminuir a visibilidade e apossibilidade de identificação dos responsáveis últimos pelaaprovação das reformas”.

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 15: 11-29 NOV. 2000

III. UM OLHAR COMPARADO COMO PRO-POSTA ANALÍTICA

Em período relativamente curto, os países dosul da Europa (Espanha, Portugal, Grécia e Itália10)conseguiram completar o ciclo da democratização,constituindo-se nos casos mais bem-sucedidos detransição democrática ocorridos desde a décadade 7011. Apresentando em comum a permanênciado regime autoritário e um índice de desenvolvi-mento econômico inferior à média dos países euro-peus, o sul da Europa passou por uma profundatransformação durante as três últimas décadas,conseguindo institucionalizar a cultura democráticae avançar significativamente seus padrões sócio-econômicos. Analisando-se a trajetória de cada umdesses países, é surpreendente observar a diversi-dade dos caminhos percorridos no que diz respeitoa questões essenciais, como as que foram discuti-das na segunda parte deste artigo. Se não, veja-mos.

III.1 OS PROCESSOS DE CONSOLIDAÇÃO:ESPANHA, PORTUGAL, GRÉCIA E ITÁ-LIA

A Espanha é considerada o modelo por exce-lência da transição pactuada, no qual todas as for-ças relevantes (da extrema direita à extrema es-querda) contribuíram decisivamente para a ins-tauração da nova democracia. A transição espa-nhola iniciou-se em 1975 quando, após a mortedo General Franco, o próprio regime tomouconsciência de que o autoritarismo havia seesgotado, embora a oposição não tivesse forçapara, sozinha, tomar o poder. Foi então que o reiJuan Carlo tomou a direção do processo, incum-bindo-se de organizar o desmonte da estruturainstitucional franquista e construir a novademocracia.

Em 1976, a Lei para a Reforma Política,aprovada em referendo popular, promoveu uma

profunda mudança na composição do Legislativo,abrindo a possibilidade de uma ampla participaçãopartidária. Em junho de 1977, foram realizadas aseleições do Parlamento incumbido de elaborar anova Constituição. Em 1978, a Constituição foiaprovada por meio de referendo. Todas asreformas posteriores foram fruto de pactosenvolvendo os partidos e lideranças vitoriosos naseleições nacionais. Em 1981, uma frustradatentativa de golpe militar recebeu inequívocarejeição da opinião pública espanhola, bem comode todos os grupos políticos importantes. Em 1982,os socialistas venceram as eleições e indicaram oPrimeiro-Ministro, Felipe Gonzáles. Há consensoentre os cientistas políticos de que, neste mo-mento, a democracia espanhola já havia seconsolidado.

O caso espanhol apresenta peculiaridades quetêm sido apontadas como importantes para osucesso de sua democratização. De um lado, amemória da Guerra Civil contribuiu para colocarsociedade e grupos políticos a favor da democraciae do Estado de Direito. Além disso, os segmentosmilitares não exerceram papel atuante no governoautoritário e a economia não apresentava problemassérios que pudessem acirrar o conflito social. Deoutro, o nacionalismo das regiões basca e catalã,que poderiam limitar fortemente a legitimidade dasmudanças, foi controlado com uma inteligenteorganização da agenda eleitoral, iniciada comeleições nacionais e terminada com um referendoem que se indagava a viabilidade da autonomiadessas regiões. Como argumentam Linz, Stepane Gunther (1995), a correta elaboração da agendafoi importante para evitar problemas de estata-lidade que poderiam colocar em risco a demo-cratização12.

Em relação ao apoio da sociedade à demo-cracia, pesquisas de opinião mostram que aEspanha apresentava um baixo percentual desegmentos sociais anti-democráticos, bem comode grupos e partidos anti-sistema. No entanto, aorganização partidária – que sempre é observadacom atenção pelos analistas, por ser consideradaum canal de fundamental importância na vidademocrática – apresentava uma atuação ambígua

10 Em rigor, a Itália não deveria ser incluída na análise,porque sua transição para a democracia ocorreu na décadade 40, com a derrota do regime fascista durante a II Guerra.Mas, em virtude das similaridades históricas entre esses países,também o caso italiano tem sido estudado.

11 Dentre os países que passaram por transições democráti-cas durante as últimas décadas, o Uruguai, a Hungria e aRepública Checa têm sido igualmente incluídos entre asdemocracias consolidadas; cf. Linz et alii (1995).

12 Os autores comparam os problemas da Espanha com osconflitos étnicos da Iugoslávia e União Soviética, afirmandoque estes foram agravados por uma escolha equivocada daagenda eleitoral (LINZ et alii, 1995).

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na Espanha. Embora as lideranças partidárias te-nham sido fundamentais durante a transição e ainstauração da democracia, verificava-se um graumuito baixo de identificação partidária com asociedade. Também o relacionamento entre par-tidos e grupos de interesse não apresentavarelações tão estreitas quanto em outros países daEuropa. Pode-se observar também que as lide-ranças partidárias, especialmente as do PartidoSocialista (PSOE), foram plenamente dominantesdurante todo o período, exercendo um papelcrucial na consolidação da democracia espanhola.

Dentre os países da chamada terceira onda,Portugal foi o que iniciou primeiro a transição paraa democracia (em 1974) mas, diferentemente daEspanha, não desenvolveu nenhum tipo de pacto,pois o governo foi derrubado por jovens oficiaisque se opunham à política colonialista de Portugal.O sucesso do golpe deveu-se, em grande parte,ao apoio maciço da sociedade portuguesa, que saiuàs ruas empunhando cravos vermelhos e apoian-do o fim do autoritarismo.

Com a tomada do poder pela junta militar, ini-ciou-se uma fase de profundas transformações:no campo da economia, prevaleceu o teor socia-lizante, implantando-se a nacionalização dos bancose a tomada de fábricas e propriedades rurais; nocampo da política, os militares assumiram todosos postos de comando (legislativos, executivos ejudiciários), adotando um rígido controle sobre asociedade civil, com base na justificativa de queera necessário afastar os grupos leais ao regimeanterior. Esses segmentos militares aproximaram-se dos partidos revolucionários portugueses,dentre os quais o mais relevante era o PartidoComunista (PCP), de linha stalinista.

Durante esse tumultuado período que duroudois anos, não havia indícios de que a transiçãoportuguesa caminharia para a consolidação demo-crática. Contudo, dois acontecimentos alteraramesse processo. Primeiro, as eleições para a Assem-bléia Constituinte, que estavam previstas noprograma revolucionário do Movimento das ForçasArmadas, e efetivamente foram realizadas em abrilde 1975. Nessas eleições, os partidos democráticosobtiveram 72% dos votos, sinalizando claramenteque a sociedade optava pela democracia. O se-gundo fato relevante aconteceu no interior daspróprias Forças Armadas, quando o Coronel Ra-malho Eanes, apoiado por um grupo de oficiais dealta patente e por forças civis de Portugal e do

exterior, deu um contra-golpe dentro das ForçasArmadas, impondo a retomada da ordem e da hi-erarquia militar.

Como é perceptível nesta sumária descriçãoda transição democrática portuguesa, as ForçasArmadas exerciam amplo controle sobre a socie-dade e sobre os partidos, afetando profundamenteo processo de consolidação. O Conselho Revolu-cionário, composto por militares, impunha umasérie de restrições às instituições e às forças polí-ticas, atuando como uma reserva de domínio quese auto-proclamava um organismo de supervisãodo Estado. Por sua interferência direta, a Consti-tuição portuguesa de 1976 continha uma série deartigos que legalizavam a atuação do Conselho.

Analisando a trajetória política portuguesa du-rante essa fase, os pesquisadores tendem a con-cordar que um fator importante para a consolida-ção democrática foi o declínio eleitoral dos parti-dos anti-sistema. Isso fez com que os partidosdemocráticos gradativamente adquirissem forçapara realizar a reforma constitucional de 1982, queextinguiu o Conselho da Revolução e reorganizouo Estado em moldes plenamente democráticos.Observam, também, que a transição portuguesademonstra uma faceta paradoxal, pois ao mesmotempo em que a sociedade, majoritariamente, a-poiava a democracia, o sistema partidário portu-guês estava entre os mais polarizados de todo osul da Europa. Apenas a Grécia assemelhava-se aPortugal, no que se refere à relevância dos parti-dos anti-sistema atuando naquele período.

Numa primeira fase, o Partido Comunista foipreponderante, seja por suas relações com oMovimento das Forças Armadas, seja porquemantinha ligações estreitas com as organizaçõestrabalhistas, incentivando a mobilização socialrevolucionária. Numa segunda fase, caracteris-ticamente parlamentar e eleitoral, o Partido Co-munista perdeu relevância, sendo substituído peloPartido Socialista (PSP), que era central e maisprogramático, e pelo Partido Social Democrata(PSD), que possuía uma vasta teia de ligações comas localidades, com os grupos organizados e comoutras formas de representações da micropolítica.Também o conservador Centro Democrático So-cial (CDS) mantinha profundas ligações clien-telistas e personalistas. A organização partidáriafoi fundamental para a consolidação da democraciaportuguesa, principalmente por sua atuação noParlamento durante a segunda fase do processo.

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A transição para a democracia na Grécia foirápida (menos de um ano), porque o regime auto-ritário não conseguiu apoios significativos duran-te os sete anos em que esteve no poder (1967-1974). A base de sustentação do regime era muitoestreita, havendo evidentes divisões no interior dasForças Armadas, assim como a franca oposiçãoda monarquia e de grande parte dos políticos e dasociedade civil.

Em 1973, os protestos estudantis contra a di-tadura receberam amplo apoio da sociedade, masa derrota do governo autoritário só foi precipitadapela intervenção da Grécia no golpe político doChipre, e pela posterior invasão do Chipre pelaTurquia. A tibieza do governo grego diante daameaça de guerra levou o Estado-Maior grego aisolar as Forças Armadas do governo, facilitandoa deposição dos militares que controlavam oregime. Foi o próprio Estado que negociou oretorno do líder político conservador ConstantineKaramanlis, entregando-lhe o poder com a garantiade que as Forças Armadas permaneceriamafastadas dos próximos governos que viriam a serformados.

Karamanlis iniciou uma grande reforma. Nocurto período de 142 dias, o regime autoritário foidesmontado, extinguindo-se a monarquia atravésde um referendo, legalizando-se os partidoscomunistas, abolindo-se leis discricionárias doregime militar e realizando-se eleições para aabertura do Parlamento. Os militares que haviamsido expurgados pela ditadura foram chamadosde volta e os militares comprometidos com oregime foram presos, julgados e, muitos deles,condenados. Pode-se dizer, portanto, que a tran-sição estava completada. O período de conso-lidação, no entanto, foi mais longo, em virtudedos desacordos partidários que se verificaram nosanos seguintes.

A nova Constituição, escrita pelos parla-mentares eleitos, foi elaborada com a participaçãode todos os partidos relevantes e não sofreu inter-ferências que denotassem reservas de domínio.No entanto, a legitimidade da Carta foi duramentecontestada pelos partidos de oposição que, emrazão das regras eleitorais, ficaram drasticamentesub-representados no Congresso Constituinte. ANea Democratia (ND), partido conservador doprimeiro-ministro Karamanlis, recebeu 54,4% dosvotos, mas conquistou 73,3% das cadeiras parla-mentares. Os partidos da oposição, o socialista

PASOK (Movimento Socialista Pan-Helênico) e ospartidos comunistas, KKE (pró-Moscou) e KKI(euro-comunista), ficaram limitados a 6,7% dascadeiras, o que reduziu significativamente suainfluência na redação da Constituição (ALIVI-ZATOS, 1990).

Os partidos encontravam-se profundamentepolarizados, não somente por suas divergênciaspolítico-ideológicas, mas principalmente peladesconfiança recíproca, dificultando a democra-tização na Grécia. Contudo, alguns elementosparecem ter contribuído para a consolidação. Pri-meiramente, a atitude predominantemente demo-crática da sociedade: uma pesquisa desenvolvidapor Leonardo Morlino e José Montero nos quatropaíses do sul da Europa mostrou que a populaçãogrega era a que demonstrava maior apego àdemocracia e guardava a pior lembrança dostempos da ditadura13. Em segundo lugar, atransformação política dos partidos de esquerdaque, gradativamente, foram-se incorporando aojogo parlamentar. Nessa fase, cresceu a aceitaçãodo PASOK junto à opinião pública e os partidoscomunistas perderam apoio eleitoral, o que levouo conflito partidário a reduzir-se, fundamen-talmente, a dois grandes partidos: o direitista NDe o esquerdista PASOK.

Durante os anos 80, estudos demonstram umaprogressiva aproximação entre esses dois partidos,não apenas na forma de atuação política (ocorporativismo de Estado, o localismo e o clien-telismo político não têm sido exclusividade dadireita), mas sobretudo nos acordos informaisdentro do Parlamento. Há divergências, entre osanalistas, sobre o momento em que a democraciagrega poderia ser considerada consolidada. Paradeterminados autores, é possível afirmar que issoaconteceu já no final dos anos 70, quando ospartidos de esquerda passaram a demonstrargrande adaptabilidade ao jogo eleitoral. Para outros,a certeza da consolidação veio em 1981, quandoo PASOK venceu as eleições, possibilitando aalternância do poder.

13 Afirmaram que “a democracia é sempre preferível”: 87%dos gregos, 70% dos italianos, 70% dos espanhóis e 61% dosportugueses; que o passado autoritário foi “ruim”: 59% dosgregos, 37% dos italianos, 28% dos espanhóis, 30% dosportugueses; que “a democracia funciona bem”: 35% dosgregos, 4% dos italianos, 8% dos espanhóis, 5% dosportugueses (MORLINO & MONTERO, 1995, p. 236).

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O processo de consolidação da democracia naItália diferencia-se em vários aspectos dos casosanteriormente apresentados. Na questão do tem-po transcorrido, foi o que mais demorou paraconsolidar-se, pois, embora a transição tenha sidorápida, os conflitos partidários posteriores criaramum clima de instabilidade. Na questão da orga-nização política da sociedade, observa-se tambémque a Itália se destaca. Em comparação entre osquatro países, Leonardo Morlino mostra que a Itáliaapresenta percentuais bastante superiores de iden-tificação e filiação partidária14.

Nesse país, a democratização iniciou-se em1943, após a derrota fascista. Com o fim doregime, monarquistas e políticos ligados ao antigosistema procuraram controlar o processo detransição, mas a oposição (a chamada coalizão anti-fascista) foi unanimemente contra, conseguindoafastá-los do processo decisório.

A formação da Assembléia Constituinte repre-sentou um momento de grande consenso em tornoda democracia e a instauração democrática foiigualmente bem-sucedida. Esse acontecimentopode ser considerado extraordinário, pois conflitosideológicos no interior da Assembléia Constituintetendiam a impedir o consenso, mas essas diver-gências foram paulatinamente contornadas. Porexemplo, relativamente ao sistema eleitoral, a direitaideológica preferia o sistema majoritário, os gover-nistas procuravam impor fórmulas que favore-cessem a maioria e a esquerda defendia o votofacultativo e um sistema bastante proporcional.Como explica Maurizio Cotta (1990), o conflitofoi solucionado com a organização de um sistemaque privilegiou o atendimento às demandasfragmentadas presentes no Parlamento. Se issoprovocou, de um lado, um prejuízo à coerência eà homogeneidade da Constituição, de outro foivantajoso, porque acomodou interesses contra-ditórios, garantindo a legitimidade do novo regime.

O período da consolidação da democraciaitaliana (entre 1947 e meados dos anos 70) foiigualmente de grande complexidade. Durante quasetrês décadas o sistema partidário manteve-se

altamente polarizado, com os três maiores parti-dos apresentando profundas diferenças entre si: omaior partido era o PDC (Partido Democrata-Cris-tão), democrático, confessional, do tipo “pega-todos” e profundamente ligado aos interesses lo-cais e privados; diferentemente, o PCI (PartidoComunista Italiano) mantinha uma retórica anti-sistema e caracterizava-se pela organização cen-tralizada junto aos movimentos sociais; o PSI(Partido Socialista) procurava seguir os moldesorganizacionais do PCI, mas, na realidade, erafederalizado e dependente de lideranças locais.Foram esses três partidos (combinados a um nú-mero expressivo de outros menores) que compu-seram o enredo da democratização italiana.

O PDC manteve-se no gabinete executivo porcerca de quatro décadas, graças às composiçõescom o Partido Socialista e outros pequenos par-tidos, impedindo, assim, que o Partido Comunistaconquistasse o poder. O PCI permaneceu durantetodos esses anos com uma expressiva representa-tividade parlamentar, sem contudo atingir per-centual suficiente para formar a maioria de go-verno. Como oposição, entretanto, os comunistaseram bastante fortes, preservando o caráterpolicêntrico do Parlamento italiano, conformedefinição de Maurizio Cotta (1996).

Análises têm mostrado que o sistema políticoitaliano, para o bem e para o mal, possibilitou aparticipação da oposição e dos interesses privadosno jogo parlamentar, integrando-os ao sistemapolítico15. Em meados da década de 70, o PartidoComunista Italiano encontrava-se plenamenteintegrado ao jogo parlamentar. Nessa fase, umareforma política ampliou os poderes das comis-sões parlamentares, aumentando a capacidade deinterferência do PCI no poder. É nesse momentoque os cientistas políticos tendem a considerar ademocracia italiana consolidada.

Nos anos 90, uma profunda crise políticaabalou toda a Itália, envolvendo partidos e governoem escândalos de corrupção e outras denúnciascriminais. Esses acontecimentos abalaram forte-mente a sociedade italiana, provocando transfor-mações políticas e mudanças no quadro partidário:os partidos tradicionais foram duramente gol-peados e, à direita do espectro ideológico, surgiram

14 Identificação partidária em 1989: 49% em Portugal;30% na Espanha; 57% na Grécia e 63% na Itália. Quanto aoíndice de filiação partidária, a Itália aparece em primeirolugar, seguida da Grécia, Portugal e Espanha, nessa ordem(MORLINO, 1995). 15 Ver, especialmente, Cotta (1990) e Morisi (1991).

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novos partidos, como a Forza Itália, a Lega Norde o neo-fascista Alianza Nazionale.

Tais mudanças têm suscitado discussões im-portantes na Itália, sobre a necessidade de reformaspolíticas que fortaleçam o poder Executivo. Bus-cando compreender os motivos da crise, MaurizioCotta (1996) analisa a vulnerabilidade de umsistema político que privilegiou, concomitante-mente, os grandes embates ideológicos e o exer-cício cotidiano da micropolítica. Para ele, osproblemas relativos à organização econômica,social e institucional do país – as chamadasmesopolíticas –, que são cruciais e que verdadei-ramente interessam à sociedade mais ampla16, nãomereceram a devida atenção dos governosdemocráticos italianos. Daí ter advindo a crise.

IV. UM MODELO MAJORITÁRIO DE DEMO-CRACIA?

Muitas facetas dos processos descritos acimapoderiam ser esmiuçadas em um exercício com-parativo com o Brasil e, efetivamente, algunsdesses aspectos já vêm sendo analisados, comoacontece com as questões relativas à culturapolítica e ao sistema político-institucional. Entre-tanto, creio ser oportuno voltar aos temas que têmdominado o debate político brasileiro, conformefoi apresentado na segunda parte deste artigo.

IV.1 RELAÇÃO ENTRE OS PODERES EXE-CUTIVO E LEGISLATIVO

Um primeiro ponto a ser destacado diz respeitoà relação entre os poderes Executivo e Legislativo.Certamente, um dos estudos mais profícuos sobrea relação entre esses poderes nos países do sul daEuropa é de Lijphart et alii (1988), por demons-trarem que estas democracias não apresentamcaracterísticas específicas que as distingam dasoutras democracias ocidentais, podendo sercolocadas ao longo do contínuo democraciasmajoritárias-democracias consociativas17, ou seja,ao longo das formas de organização do Estadodemocrático que privilegiam ou o poder concen-trado da maioria de governo, ou o poder equilibrado

entre o maior número possível de partidos (inclu-sive da oposição).

Analisando esses aspectos, os autores con-cluem que apenas a Itália pode ser consideradacaracteristicamente consociativa; Portugal encon-tra-se em uma situação intermediária, apresentandomais aspectos consociativos que majoritários; aEspanha é mais majoritária que consociativa; aGrécia situa-se entre as democracias mais majo-ritárias do mundo ocidental. Vê-se que a relação ébastante variável, com organizações político-institucionais que tanto podem favorecer a tomadade decisões por uma maioria executiva, quantofortalecer as minorias políticas presentes noLegislativo.

Essa parece ser uma questão importante nocaso brasileiro, cabendo verificar em que medidao crescente grau de interferência do poderExecutivo no Congresso é um indício de que opaís caminha para um modelo majoritário dedemocracia (aliás, em conformidade com atendência dos sistemas presidencialistas degoverno18 ). Em realidade, os critérios de medidaadotados por Lijphart são de difícil averiguaçãono Brasil, observando-se grande controvérsiateórica quanto a esse ponto. Contudo, parece queo “índice de iniciativa legislativa” sugerido porLeonardo Morlino (1998) é um indicador maisoperacionalizável para analisar o grau de controledo Executivo sobre os partidos presentes noLegislativo.

Visto sob esse ângulo, os resultados no Brasilsão bastante significativos. Dados do PRODASENdemonstram que, durante o período entre 1995-1999, a produção legislativa de iniciativa doExecutivo correspondeu a 81% da legislaçãosancionada. Como se observa no Quadro I, cercada metade (47%) corresponde à prerrogativaconstitucional do poder Executivo de enviar aoCongresso projetos orçamentários e solicitarliberação especial no orçamento da União (solici-

16 Cotta apóia seu argumento na pesquisa de opiniãoorganizada por Morlino e Montero, que mostra a insatisfaçãodo povo italiano com a política do governo; esses dadosestão reproduzidos na nota 13.

17 O artigo é uma referência direta ao livro de Lijphart(1984). Os dados referentes à Itália encontram-se nesse livro.

18 Os primeiros artigos de Lijphart sobre as democraciasmajoritárias e consociativas são cautelosos na afirmação deque o sistema presidencialista é tendencialmente majoritário(LIJPHART, 1984). Essa idéia vai aparecer plenamenteconfigurada no final dos anos 80. Ver o artigo de ArendLijphart, Presidencialismo e democracia majoritária, emLamounier (1991); ver também sobre a autonomia dosPresidentes americanos em Katz (1996).

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tações para liberação de verbas). As medidas pro-visórias corresponderam a 17% do total da legis-lação, sendo que, destas, somente 5% foram trans-formadas em projetos de lei de conversão. Por-tanto, a maioria das medidas provisórias foi apro-vada na íntegra, sem receber emendas doLegislativo19. O Executivo conseguiu aprovar, ain-da, projetos de leis ordinárias, leis complementa-res e emendas constitucionais.

Embora sejam dados contundentes, um qua-dro comparativo com as democracias do sul daEuropa é útil para relativizar a questão, uma vezque esses países desenvolveram modelos que ofe-recem um mosaico de possibilidades. Segundo oQuadro II, no início da democratização a interfe-rência do poder Executivo foi muito intensa emtodos os países. Isso ocorreu mesmo na Itália,que possui um Parlamento sabidamente atuante eque se caracteriza por apresentar alto grau de

consociativismo entre governistas e oposição. Con-tudo, à medida que transcorriam as legislaturas, aforça do Parlamento italiano cresceu rapidamen-te, embora nunca tenha atingido a maioria percen-tual das aprovações. Somente durante a décadade 90 – ou seja, 50 anos depois – vem ocorreruma mudança drástica que inverte a relação: opercentual de aprovações dos projetos do Execu-tivo caiu para 11! Isso é explicado pela crise polí-tica decorrente dos escândalos e denúncias decorrupção que abalaram toda a Itália.

Portugal também se insere entre os países deParlamento forte, pois em nenhum momento oExecutivo foi plenamente dominante. No início, arelação era de 64% de aprovações do Executivopara 35% do Parlamento. Vinte anos depois, a si-tuação inverteu-se.

Espanha e Grécia têm sido considerados ospaíses mais fortemente majoritários. A Espanhavem mantendo um alto percentual de interferên-cia do Executivo, embora durante as duas últimaslegislaturas esse índice tenha decrescido signifi-cativamente. O caso da Grécia é mais impressio-nante, pois durante duas décadas foi nula a capaci-dade de o Legislativo aprovar leis de sua autoria.Como analisa Leonardo Morlino (1998), a legitimi-dade da democracia grega não foi abalada porqueo sistema político daquele país permite que o Par-lamento interfira decisivamente nos projetos emtramitação, garantindo aos partidos presentes noLegislativo, inclusive aos partidos da oposição, queapresentem emendas que são incorporadas ao pro-jeto original. Segundo ele, somente essa possibili-dade de interferência explicaria a permanência deum sistema tão fechado quanto o grego.

19 As medidas provisórias não apreciadas pelo CongressoNacional não foram computadas nessa análise.

20 Não foram considerados os Decretos (do Legislativo e

Executivo), as Resoluções e as Leis de autoria da Justiça(Ministério Público, Supremo Tribunal Federal e SupremoTribunal do Trabalho).

Tipo e origem da legislação sancionada e promulgada (1995-1999)

1948-53

Executivo 70,3 75,8

Legislativo 29,7 24,2

Quadro II

1953-58 1958-63 1963-68 1968-72 1972-76 ... 1994-96

ITÁLIA

1974-77

Executivo

Legislativo

1977-81 1981-85 1985-89 1989 1989-90 1990-93 1993-95

GRÉCIA

88,8 74,7

11,2 25,3

73,2 69,3

26,8 30,7

11,3

88,7

100 100

— —

99,9 100

0,1 —

100 100

— —

99,7 100

0,3 —

Tipo e origem da legislação sancionada e promul-gada (1995-1999)

ORIGEM Nº ABS. %

Medidas Provisórias (Executivo) 116 12

Leis de Conversão (Executivo) 49 5

Projetos do Senado* 41 4

Projetos da Câmara* 150 15

Projetos Orçamentários (Executivo) 470 47

Projetos do Executivo* 167 17

TOTAL20 993 100

Quadro I

* Projeto de Lei Ordinária, Lei Complementar e Emenda Constitucional.

Fonte: SENADO FEDERAL. PRODASEN [Online].

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Comparando esses casos com o Brasil, algunspontos merecem ser salientados. Em primeirolugar, em contraste com as outras democracias, ademocratização brasileira tem pouco mais de dezanos de funcionamento, e esse período pareceinsuficiente para definir o modelo democrático noqual o país se insere. Realmente, o percentual deinterferência do Executivo tem sido bastante altono Brasil (aproxima-se da situação espanhola dasúltimas décadas), mas é preciso considerar aspeculiaridades desta fase da política brasileira.

Conforme tem argumentado Vicente Palermo,o Brasil enfrentou durante o período de transiçãouma situação de excepcionalidade que combinoudois problemas: a crise econômica e a necessidadede recomposição do Estado. A superação dessesobstáculos, aliada a uma transformação nasexpectativas sociais, “convergem criando con-dições favoráveis para uma nova etapa de re-formas” (PALERMO, 2000b, p. 88). Como oQuadro II deixa claro, a relação entre os poderesé bastante dinâmica e pode sofrer mudançasdrásticas com o transcorrer das legislaturas. Oque se percebe é que o comportamento eleitoralda população exerce, significativamente, influêncianesse processo e o poder Legislativo encontra-sediretamente relacionado a esta dinâmica eleitoral21.Visto sob esse ângulo, crescem os indícios de quea presença do Legislativo tende a aumentar nospróximos anos.

IV.2 DA TRANSIÇÃO À CONSOLIDAÇÃO

Um segundo ponto a se refletir é o processode consolidação propriamente dito. Nos paíseseuropeus considerados, há grandes diferenças nosprocessos de transição no que diz respeito aotratamento dispensado aos segmentos que parti-ciparam ou apoiaram a ditadura. Como foi ditoanteriormente, o caso espanhol é um exemplo detransição pactuada visto que, desde o primeiromomento, todas as forças políticas, inclusive osdetentores do poder autoritário, compreenderama necessidade de romper com o passado e inau-gurar a democracia.

Diferentemente, em Portugal, na Grécia e naItália a transição deu-se por meio de ruptura, umavez que nos três países o governo ditatorial foidestituído do poder. Da mesma forma, os trêsapresentavam relevantes partidos anti-sistema,mas o desenvolvimento histórico a esse respeitovariou bastante. Como é possível perceber, o dile-ma entre romper ou não com os segmentos queapoiaram o governo autoritário, muito mais queum ato de vontade, é o resultado de circunstânciashistóricas que independem da ação dos indiví-duos22.

Parece lícito supor que, no caso do Brasil, bemcomo no dos outros países analisados, os pro-blemas da transição não devem ser consideradosobstáculos intransponíveis para o aprimoramentodemocrático. A permanência no poder dos seg-mentos sociais e políticos que apoiaram o regime

21 Estudos recentes vêm demonstrando que no caso brasileiroo alto número de partidos parlamentares relevantes deve-seà diversidade de opiniões presentes na sociedade brasileiraatual; cf. Nicolau (1996) e Oliveira (1997).

22 Sobre os limites e/ou potencialidades da democratizaçãono Brasil, cf. Silva (1995).

Fonte: Morlino (1998, tabelas 2/5, 2/6, 2/7, 2/8), Figueiredo, et “alii” (2000, tabela: média mensal de leis sancionadas por tipo e origem).

1976-80

Executivo 36,4 34,7

Legislativo 63,6 65,3

1980-83 1983-85 1985-87 1987-91 1991-95

PORTUGAL

1977-79

Executivo

Legislativo

1979-82 1982-86 1986-89 1989-93 1993-96

ESPANHA

64,3 69,1

35,7 30,9

22,4 22,9

77,6 77,1

85,2 84,9

14,8 15,1

92,0 98,4

8,0 1,6

92,9 91,5

7,1 8,5

Sarney

Executivo

Legislativo

Collor Itamar FHC

BRASIL

85,0 86,7

15,0 11,3

81,9 82,3

18,1 17,7

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RUMOS DA DEMOCRATIZAÇÃO BRASILEIRA

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militar é uma característica que deve ser consi-derada, mas não deve ser compreendida como umfator determinante para o futuro da democra-tização.

Conforme se viu no item anterior, muito maisdecisivas para o processo de consolidação foramas atitudes tomadas pelos grupos sociais que par-ticipam do jogo político. O mais importante paraa consolidação parece ser o apoio aberto – da opi-nião pública, das organizações e dos partidospolíticos – à democracia. Analisando-se os rumosda democratização européia, nota-se que a in-fluência dos partidos políticos foi fundamental.E, apesar das flagrantes diferenças no caráter des-ses partidos, estudos demonstram que é possívelextrair um sentido nesses processos históricos quederam certo.

Quanto à questão da polarização ideológica, porexemplo, somente devem ser considerados preju-diciais à democracia os partidos anti-sistêmicosque atuam contra as regras institucionais, negandoa legitimidade democrática. Quando isso não acon-tece, e os partidos aceitam a disputa parlamentar(como foi o caso do partido comunista italiano edo socialista PASOK), a polarização pode ser umpoderoso aliado do fortalecimento partidário entrea população. O mesmo acontece em relação àsdemandas fragmentadas da sociedade, que nemsempre são negativas.

Para Leonardo Morlino (1995; 1998), um doselementos-chave dessa relação parece ser a capa-cidade encontrada pelos partidos em canalizar asreivindicações da sociedade, de modo a controlá-las como uma espécie de gatekeeper. Independen-temente da natureza das demandas, crescem aschances de consolidação democrática quando ospartidos ou as lideranças partidárias exercemcontrole sobre a sociedade organizada, auxiliandoo processo de centralização decisória. LeonardoMorlino apresenta várias possibilidades derelacionamento entre os partidos, a sociedade e oEstado e constrói uma tipologia, mostrando emcada caso as conseqüências para a democra-tização.

Na consolidação via Estado, existe uma con-sensual legitimidade democrática e o atendimentoàs demandas sociais acontece predominantementepela utilização de recursos do Estado, ou seja,através da patronagem, do clientelismo político e

do corporativismo. No processo de consolidaçãovia elites, o consenso democrático aparece damesma forma, mas não se verifica uma ligaçãoclara entre grupos organizados e partidos, os quaisconseguem atuar com neutralidade em relação aessas demandas. Nesse caso, são as liderançaspolíticas e partidárias que tomam a frente doprocesso, ditando os rumos da democratização.Quando prevalece a consolidação via partidos, asociedade encontra-se dividida por partidos anti-sistema que impedem o consenso democrático.Entretanto, se esses partidos mantiverem relevanteenvolvimento com a sociedade civil e se adapta-rem às regras do jogo democrático, poderão atuarcomo intermediadores entre a sociedade e o Esta-do e, assim, beneficiar o processo de consolida-ção. A questão se agrava e as chances de demo-cratização efetivamente diminuem quando coexis-tem dois problemas: de um lado, não prevaleceum claro consenso democrático; de outro, os par-tidos são incapazes de controlar as demandasmultifacetadas que partem da sociedade. Nessecaso, os interesses privados adquirem vida pró-pria, encontrando canais abertos em direção aoEstado.

Com a finalidade de analisar essa questão, foidesenvolvida uma pesquisa sobre a legislaçãosancionada no Brasil entre 1995 e 1999 com origemna Câmara dos Deputados. O Quadro III procuraestabelecer a relação entre o número dos De-putados por partido presentes na Câmara Federale a quantidade de leis sancionadas23, verificandoem que medida os partidos de sustentação dogoverno – que são absolutamente dominantes emnúmeros absolutos – sufocam, de fato, os partidosda oposição. Os dados são surpreendentes.

Conforme se vê, o índice de aprovação é deum modo geral baixo, mas nota-se que determi-nados partidos não têm como prioridade a apro-vação de projetos de lei. Isso acontece com par-tidos grandes e governistas, como o PFL e o PPBque, apesar de sua enorme bancada, aprovaramapenas 16 projetos cada um. Diferentemente, oPMDB é um partido atuante, com um índice bemsuperior de aprovações. Outro dado da tabela é

23 Leis Ordinárias e Complementares com origem na CâmaraFederal, sancionadas entre 1995 e 1999.

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que os micro-partidos apresentam uma taxa deaprovação bastante baixa, o que pode indicar uma

certa dificuldade em colocar seus projetos na pautalegislativa.

* Número de filiados em 1998, ou seja, ao final da 50ª legislatura.

** TNJR – Leis Ordinárias e Complementares Transformadas em Normas Jurídicas.

*** Outros de esquerda: PSB/PcdoB/PPS/PV/PSTU.

**** Micropartidos: PTN/PSC/PST/PL/PSL/PMN/PSD/sem partido.

FONTES: TSE, Eleições 1994 [Online]; SENADO FEDERAL. PRODASEN [Online]; CÂMARAFEDERAL, 2000.

Relação entre número de Deputados e aprovação de projetos comorigem na Câmara

Quadro III

Entretanto, o curioso é que os partidos deoposição apresentam índices altos de aprovaçãode projetos. O PT é – de longe – o partido comrelação mais positiva entre número de deputadose leis sancionadas. O PDT apresenta desenvolturamais modesta, mas também positiva. Esses sãoos partidos da oposição que apresentam umabancada bastante reduzida: eram 49 deputados doPT e 21 do PDT em 1998, de um total de 513deputados. Vê-se, portanto, que tais partidos nãotêm se limitado ao exercício crítico, mas sim quevêm assumindo com determinação uma posturade governo. É inegável a importância disso para ademocracia.

Outra questão pertinente é a natureza da legisla-ção proposta pelo Legislativo, pois são dados que,se conhecidos, podem esclarecer em que medidao Legislativo mantém-se como reduto dosinteresses privados e das demandas fragmentadasda sociedade civil. Com o objetivo de fazer essaverificação, foi realizada uma análise dessesprojetos sancionados (com origem na CâmaraFederal). Procurou-se observar se os projetosapresentam um caráter eminentemente privado,

voltado para interesses particulares da sociedade,ou se prevalecem as questões de conteúdo políticomais abrangente.

Adotou-se o seguinte critério em relação àanálise:

1. Questões de Estado: envolvem dois aspectos:primeiro, a legislação especificamente relacio-nada ao Estado e ao funcionamento da buro-cracia estatal (as chamadas questõesburocráticas); segundo, leis que dizem respeitoàs questões políticas mais amplas de organi-zação da sociedade e da vida pública (as cha-madas políticas de governo).

2. Direitos civis, políticos e difusos: relativos àsquestões amplas da cidadania, as quais atingema todos os cidadãos indistintamente, sem espe-cificar um segmento social determinado.

3. Direitos sociais: consistem, além da clássicanoção de que Educação e Saúde são prerroga-tivas do Estado para atender aos cidadãos,também as leis que procuram atingir e favo-recer a determinados segmentos sociais (as

PartidosTaxa de aprovação(por 10 deputados)

PPB

Deputados* TNJR**

PFL

PTB

PMDB

PSDB

PT

PDT

Outros esquerda***

Micropartidos****

Comissões

TOTAL

72

110

22

98

91

49

21

30

20

-

513 146

16

16

7

35

28

22

6

7

4

5

2,2

1,5

3,2

3,6

3,1

4,5

2,9

2,3

2,0

-

2,8

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chamadas minorias políticas), dando a eles umtratamento exclusivo.

4. Corporativismo e localismo: circunscrevem alegislação que atinge a grupos sociais especí-ficos, claramente determinados. Não existenessa classificação nenhum julgamento devalor, pressupondo-se que os interesses res-tritos são, tanto quanto os outros, plenamentelegítimos em uma democracia.

5. Outros: engloba a legislação que não se encaixanos itens anteriores. Reduz-se a dois casosespecíficos: as homenagens e a legislação sobreos feriados.

Partindo desses critérios, a análise da legislaçãoordinária e complementar com autoria na CâmaraFederal levou aos resultados apresentados na Ta-

bela I. Em termos gerais, observa-se que a maio-ria dos projetos aprovados diz respeito às ques-tões de Estado (40%). Em segundo lugar, sãocontemplados os direitos sociais (22%); defesade interesses corporativos ou legislação que venhaa atender regiões específicas somam 16% do total;direitos civis, políticos e difusos ocupam 13% dalegislação.

Pelos números não é possível verificar o graude interferência de um partido sobre o projeto dooutro, mas sabe-se que essa interferência ocorree que a legislação aprovada pode muitas vezes sersubstancialmente diversa do projeto originalmenteapresentado. Evidentemente, isso acontece tam-bém com os projetos apresentados pelo Executivo,o que atenua em grande parte a predominânciaavassaladora dessa esfera de poder.

Pequenos de Esquerda: PDT/PSB/PcdoB/PPS/PV/PSTUMicro Partidos: PTB/PTN/PSC/PST/PL/PSL/PMN/PSD/sem partidoFONTE: SENADO FEDERAL. PRODASEN [Online]. SENADO FEDERAL Sistema de Informações do Congresso Nacional [Online].

Tabela I

Natureza da legislação sancionada (1995-1999), segundo autoria partidária na Câmara dos Deputados(em porcentagem)

A tabela mostra que os partidos apresentamfeições claramente diferenciadas. Partidos comoo PFL e PPB apresentam uma preocupação maisnítida com questões particulares, como interessescorporativos e representação dos interesses locais(31%). Encontra-se também entre esses partidoso maior número absoluto e percentual de “outros”,ou seja, há entre esses dois partidos uma preo-cupação específica com as homenagens.

No que diz respeito às questões relativas aosdireitos civis, políticos e difusos, o PSDB apareceem primeiro lugar. E os direitos sociais sãodefendidos primeiramente pelo PMDB e, em se-gundo, pelo PT. Os pequenos partidos (sejam ounão de oposição) apresentam um número inferiorde projetos aprovados, mas também entre elesprevalecem as temáticas relativas às questões deEstado (em primeiro lugar) e aos direitos sociais(em segundo lugar).

De fato, como a Tabela II simplificadamentedemonstra, as divisões ideológico-partidárias evi-denciam-se nessas questões. De um lado, as políti-cas mais abrangentes e de longo alcance têm sidouma preocupação predominante, inclusive entreos partidos de esquerda, que hoje formam a oposi-ção ao governo. Em todos os casos analisados,questões de Estado e de cidadania ocupam maisde 50% da legislação originada nos partidos. Deoutro, a diferença entre esses percentuais é muitovariada, com diferenças claras inclusive entre ospartidos da coalizão de centro-direita, de apoio aoPresidente Fernando Henrique Cardoso. Observa-se, portanto, uma heterogeneidade na natureza dalegislação proposta. Como é visível, 88% dosprojetos aprovados com origem na esquerda(43%+14%+31%) são de natureza social ampla.Esse percentual cai para 80% (35%+21%+ 24%)no centro ideológico e reduz-se para 54%(31%+5%+18%) entre os partidos da direita.

PFL PPB PSDB PMDB PTPequenosesquerda* Micropartidos** Comissões TOTAL

Questões de Estado 25 25 43 29 41 46 64 100 39

Direitos civis, políticos e difusos 6 6 32 11 18 8 0 0 14

Direitos Sociais 19 19 3,5 40 36 23 9 0 23

Corporativismo e localismo 31 31 18 17 0 8 18 0 16

Outros 19 19 3,5 3 5 15 9 0 8

Nº ABSOLUTO 16 16 28 35 22 13 11 5 146

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V. CONCLUSÃO

Deve-se salientar que a produção legislativa deorigem na Câmara Federal demonstra que todosos partidos, inclusive os partidos da oposição, têmparticipado co-responsavelmente da elaboração depolíticas voltadas para a esfera pública. Os inte-resses particulares não apresentam trânsito livrepelo menos no que diz respeito à produção legis-lativa. Talvez essa seja uma indicação de que ocaso brasileiro tende mais para o modelo de“consolidação via elites”, proposto por LeonardoMorlino e analisado nas páginas deste artigo.

Natureza da legislaçãoEsquerda

(PT/PDT/PPS/PSB/PcdoB)

Centro

(PSDB/PMDB)

Direita

(PFL/PPB/PTB)

Questões de Estado 15 - 43% 22 - 35% 12 - 31%

Direitos civis 5 - 14% 13 - 21% 2 - 5%

Direitos sociais 11 - 31% 15 - 24% 7 - 18%

Corporativa e Localista 1 - 3% 11 - 17% 12 - 31%

Outros 3 - 9% 2 - 3% 6 - 15%

TOTAL 35 - 100% 63 - 100% 39 - 100%

Tabela II

Natureza da legislação (1995-1999), segundo posição ideológica dos partidos de origem

FONTE: SENADO FEDERAL. PRODASEN [Online]; SENADO FEDERAL Sistema de Informações do Congresso Nacional[Online].

Mesmo admitindo-se a ampla dominância dopoder Executivo durante o período analisado,observa-se que o poder Legislativo apresentou umaatuação relevante para o equilíbrio da democracia.A idéia do controle absoluto do Executivo sobre oLegislativo deve ser considerada com cuidado.Como é possível observar, o reduzido campo deatuação que cabe ao Legislativo tem sido produ-tivamente aproveitado, percebendo-se que aCâmara Federal é o espaço de atuação das oposi-ções, que participam ativamente do processo legis-lativo.

Recebido para publicação em 19 de setembro de 2000.

Luzia Helena Herrmann de Oliveira ([email protected]) é Doutora em Ciências Sociais na PUC-SP e Professora de Ciência Política na Universidade Estadual de Londrina.

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