rumo ao reconhecimento da pluriparentalidade?

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Rumo ao reconhecimento da pluriparentalidade? 1 Agnès Fine 2 As mudanças da família nos últimos trinta anos nas sociedades ocidentais estão ligadas em grande parte à evolução do estatuto das mulheres e ao novo lugar da vontade individual na criação de parentesco. Conhece-se o papel das mulheres na decisão do divórcio, ele é igualmente determinante na constituição da descendência. Pode-se hoje escolher o número de filhos, o momento do nascimento, é possível tornar-se pai ou mãe com um novo cônjuge, sem cônjuge, tornar-se pai ou mãe sendo estéril ou homossexual. A maternidade sendo, talvez ainda mais que outrora, constitutiva da identidade feminina, assiste-se ao aumento de apelos ao auxílio médico para procriação ou à adoção em caso de esterilidade, processos nos quais a vontade das mulheres é ainda dominante. Ora, esses dois modos de tornar-se pai ou mãe têm por característica introduzir outros pais no jogo. É um pouco o caso, de outra maneira, nas famílias recompostas após divórcio, nas quais a criança é frequentemente dotada de um pai e de um padrasto, de uma mãe e de uma madrasta. Vários tipos de pais sociais acrescentam-se então aos pais pelo sangue, de modo que poder-se-ia falar em pluriparentalidades. A perspectiva antropológica permite compreender de que modo as pluriparentalidades entram em contradição com os fundamentos de nosso sistema de filiação, explicando assim as dificuldades de nossas sociedades em integrar mutações tão importantes. Comecemos de início pela lembrança dos princípios que governam o sistema de filiação ocidental antes de analisar as respostas de nossas 1 Vers une reconnaissance de la pluriparentalité? Esprit, marsavril 2000, n. 273. Tradução José César Coimbra [Atualizada em 15.9.2014]. 2 Historiadora e antropóloga, professora na universidade de ToulouseLe Mirail. Publicou com C. Neirinck, Parents de sang, parents adoptifs: approches juridiques et anthropologiques de l ́adoption. France, Europe, Usa, Canada, Paris, Lcdt, 2000 et Adoptions: ethnologie des parentés choisies, Paris, Maison des sciences de l ́homme, 1998. Este texto é a versão resumida de uma contribuição intitulada “Pluriparentalidades e sistema de filiação nas sociedades ocidentais”, a ser publicada em D. Le Gall (dir) les Pluriparentalités dans les sociétés occidentales, Paris, PUF, 2001. Encontramse nessas referências uma bibliografia detalhada.

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Vers une reconnaissance de la pluriparentalité? Esprit, mars-avril 2000, n. 273, pp. 40-52 Tradução José César Coimbra

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Page 1: Rumo ao Reconhecimento da Pluriparentalidade?

Rumo ao reconhecimento da pluriparentalidade?1

Agnès Fine2

As mudanças da família nos últimos trinta anos nas sociedades ocidentais estão

ligadas em grande parte à evolução do estatuto das mulheres e ao novo lugar da

vontade individual na criação de parentesco. Conhece-se o papel das mulheres

na decisão do divórcio, ele é igualmente determinante na constituição da

descendência. Pode-se hoje escolher o número de filhos, o momento do

nascimento, é possível tornar-se pai ou mãe com um novo cônjuge, sem

cônjuge, tornar-se pai ou mãe sendo estéril ou homossexual. A maternidade

sendo, talvez ainda mais que outrora, constitutiva da identidade feminina,

assiste-se ao aumento de apelos ao auxílio médico para procriação ou à adoção

em caso de esterilidade, processos nos quais a vontade das mulheres é ainda

dominante. Ora, esses dois modos de tornar-se pai ou mãe têm por

característica introduzir outros pais no jogo. É um pouco o caso, de outra

maneira, nas famílias recompostas após divórcio, nas quais a criança é

frequentemente dotada de um pai e de um padrasto, de uma mãe e de uma

madrasta. Vários tipos de pais sociais acrescentam-se então aos pais pelo

sangue, de modo que poder-se-ia falar em pluriparentalidades. A perspectiva

antropológica permite compreender de que modo as pluriparentalidades entram

em contradição com os fundamentos de nosso sistema de filiação, explicando

assim as dificuldades de nossas sociedades em integrar mutações tão

importantes. Comecemos de início pela lembrança dos princípios que governam

o sistema de filiação ocidental antes de analisar as respostas de nossas

                                                                                                               1  Vers  une  reconnaissance  de  la  pluriparentalité?  Esprit,  mars-­‐avril  2000,  n.  273.  Tradução  José  César  Coimbra  [Atualizada  em  15.9.2014].  2  Historiadora   e   antropóloga,   professora   na   universidade   de   Toulouse-­‐Le   Mirail.   Publicou   com   C.  Neirinck,   Parents   de   sang,   parents   adoptifs:   approches   juridiques   et   anthropologiques   de   l  ́adoption.  France,   Europe,  Usa,   Canada,   Paris,   Lcdt,   2000   et  Adoptions:  ethnologie  des  parentés  choisies,   Paris,  Maison  des  sciences  de  l  ́homme,  1998.  Este  texto  é  a  versão  resumida  de  uma  contribuição  intitulada  “Pluriparentalidades  e  sistema  de   filiação  nas  sociedades  ocidentais”,  a  ser  publicada  em  D.  Le  Gall  (dir)   les   Pluriparentalités   dans   les   sociétés   occidentales,   Paris,   PUF,   2001.   Encontram-­‐se   nessas  referências  uma  bibliografia  detalhada.  

 

Page 2: Rumo ao Reconhecimento da Pluriparentalidade?

sociedades às questões colocadas pelas pluriparentalidades.

O SISTEMA DE FILIAÇÃO EUROPEU, UM “MODELO GENEALÓGICO”

Para nós, a filiação, que define o pertencimento a um grupo de parentes e os

direitos que estão a ele associados (sucessão, herança), parece biologicamente

fundada: deduz-se que nós somos aparentados do mesmo modo a nosso pai, a

nossa mãe, a nossos quatro avós, paternos e maternos. Ora, essa

representação da filiação que coincide com as leis da genética é em realidade

uma escolha cultural: outras sociedades ligam as crianças a um único sexo dos

pais (filiação unilinear), ao pai ou à mãe (filiação patrilinear e matrilinear). As

ligações de consanguinidade não são somente biológicas, como tenderia a

indicar a etimologia do termo, mas ligações socialmente reconhecidas.

Certamente, algumas de nossas instituições reconhecem isso, por exemplo, a

adoção plena que faz do adotado o filho de seus pais adotivos e o proíbe de

casar com sua irmã. Entretanto, nosso sistema de filiação nos leva a assimilar

engendramento e filiação. Assim qualifica-se de “verdadeira” mãe a mulher que

colocou no mundo a criança adotada e recorre-se às técnicas de cunho genético

para identificar o “verdadeiro” pai de uma criança. Também ficamos muito

surpresos diante de sociedades que distinguem totalmente essas duas noções.

Nosso sistema é então caracterizado por sua vez pela bilateralidade (a filiação é

transmitida pelos dois ramos paterno e materno) e pela ideologia do sangue,

este sendo entendido como o vetor de transmissão dos caracteres específicos,

físicos e morais, de uma mesma linhagem. Com efeito, a adoção desapareceu

do direito de família ocidental desde a alta Idade Média até o início do século

XIX e não entra verdadeiramente nos costumes senão nos anos 1920.

Até o fim do primeiro quarto do século XX, nossas sociedades tiveram poucas

experiências de partilha por diversos parentes de funções parentais referentes a

uma mesma criança3. As coisas mudaram muito em algumas décadas já que,

                                                                                                               3  Na   Europa   católica   antiga,   o   apadrinhamento,   a   filiação   espiritual   contratada   entre   padrinho   e  afilhado  pelo  batismo,  criava  entre  parentes  de  sangue  e  parentes  espirituais  uma  forma  original  de  coparentalidade,  a  copaternidade  e  a  comaternidade.  Mas  os  padrinhos  e  madrinhas  são   investidos  

Page 3: Rumo ao Reconhecimento da Pluriparentalidade?

como nós o indicamos, as ligações eletivas no parentesco ocupam um lugar

cada vez mais importante e valorizado - é em particular o caso da adoção. Esta

promoveu mudanças importantes nas representações de nossos sistema de

filiação tomado hoje numa “verdadeira tensão entre dois polos: de uma parte

aquele do sangue; de outro aquele das ligações puramente sociais”. Tal sistema

de filiação é fundado sobre isso que o antropólogo quebequense F.-R. Ouellette

chama um “modelo genealógico”, isto é um modelo segundo o qual cada

indivíduo é saído de dois outros indivíduos de uma geração ascendente e de

sexo diferente que o teriam conjuntamente engendrado, seu pai e sua mãe.

Esse modelo não veicula apenas a ideia de que a filiação é um fato natural. Ele

é acompanhado, sobretudo, de uma norma, aquela da exclusividade da filiação,

isto é que cada indivíduo não é colocado em posição de filho ou filha senão em

relação a um único homem e a uma única mulher. Isto explica as contradições

nas quais se batem nossas sociedades quando coexistem vários pais para uma

mesma criança. Que fazer dos pais “a mais”?

A OBSESSÃO DA CONCORRÊNCIA E O TRIUNFO DA SUBSTITUIÇÃO

Uma primeira resposta foi a expulsão [éviction] jurídica dos genitores e/ou o

segredo sobre sua identidade. Em nossas sociedades, nas quais as crianças

não têm senão um pai e uma mãe, em caso de esterilidade, tende-se a eliminar

os genitores para melhor estabelecer a parentalidade social. É assim que se

pode compreender a lógica que presidiu a elaboração das regras de

funcionamento dos Centros de Estudo e de Conservação de Sêmen (Cecos)

que, desde 1973 na França, praticam inseminações com doadores, quando a

esterilidade do pai é estabelecida, e a implantação de embriões formados com

os ovócitos doados por um terceiro, em caso de esterilidade feminina. Para que

a ficção funcione plenamente, a operação é feita em segredo, o anonimato do

doador sendo garantido. Essa regra de funcionamento dos Cecos era

considerada antes de tudo como necessária no plano jurídico, a ausência de                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          de  uma  função  simbólica  que  os  distingue  bem  daquela,  nutriz,  dos  pais,  de  modo  que  duas  ligações  de   filiação  não  são  de  nenhum  modo  concorrentes.  Ver  Agnès  Fine,  Parrains,  marraines.  La  parenté  spirituelle  en  Europe.  Paris,  Fayard,  1994.  

Page 4: Rumo ao Reconhecimento da Pluriparentalidade?

anonimato talvez desencorajando doadores eventuais. A lei de 29 de julho de

1994 sobre a bioética erige o anonimato do doador como um dos grandes

princípios qualificados como de ordem pública. O doador não tem existência

jurídica, ele não é uma pessoa, ele é somente produtor de substâncias,

gametas, ovócitos. Este segredo legal favorece o segredo familiar sobre as

circunstâncias do nascimento com relação ao qual os Cecos contribuem com

sua prática. É assim que a equipe médica não atende senão à demanda de

casais (casados ou em concubinato) e, no caso de inseminação de uma mulher,

são fornecidos os os gametas de doador cujas características físicas são as

mais próximas possíveis daquelas do pai, para que o nascimento pareça

“natural”.

É a mesma representação exclusiva da filiação que revelam as práticas em

torno da adoção nas sociedades ocidentais. Aparecida na maior parte dos

países ocidentais nos anos 1920, em seguida à Grande Guerra, ela foi

apresentada como uma maneira de dar uma família aos órfãos e uma

descendência aos casais estéreis. Doravante uma criança podia ser criada e

querida por seus pais adotivos como se eles fossem seus pais de sangue.

Durante muito tempo, a adoção foi praticada em segredo, as crianças ignorando

o fato mesmo de sua adoção. O segredo da adoção apareceu de início nos

EUA, o que não causa de modo algum espanto quando se conhece o passado

desse país tanto no que tange à legislação da adoção quanto em sua

organização concreta pelos serviços sociais. É um processo comparável ao que

se observa mais tarde nos países europeus. Ele não seria imposto de um lado e

do outro do Atlântico se ele não tivesse respondido em toda parte a um conjunto

profundo de interesses. Ele permitiu com efeito esconder a adoção, por muito

tempo considerada como uma filiação de segunda categoria, assim como a

esterilidade feminina, particularmente mal vivida, sobretudo no momento do

baby-boom quando se desenvolve uma mística da maternidade e explodem as

demandas de adoção de bebês. O segredo possibilitava, em acréscimo,

esconder a ilegitimidade da criança, mas, sobretudo, oferecia segurança aos

pais adotivos de estarem ao abrigo do toda concorrência, o que os incitava a

Page 5: Rumo ao Reconhecimento da Pluriparentalidade?

construir uma relação durável com seus filhos.

Em França, por muito tempo, a legislação protegeu as prerrogativas dos pais

naturais, até o voto em 1966 de uma nova modalidade jurídica, a adoção plena,

que rompe inteiramente os laços de uma criança com sua família de origem. A

criança perde seu sobrenome, entra em uma outra linhagem e perde também

eventualmente seu nome. Na adoção plena, o estado civil da criança é

modificado e sua certidão de nascimento afirma que ela é “nascida” de seus pais

adotivos, favorecendo assim a ficção do nascimento natural. A criança adotada

não é então incentivada a conhecer a identidade de seus pais biológicos. A

adoção simples, que permite conservar a filiação de origem, continua a existir na

França, mas ela é muito pouco utilizada já que, na maior parte dos países

ocidentais, essa forma de adoção cumulativa não existe. Aliás, existe na França

uma instituição original que organiza legalmente o segredo sobre a identidade

dos genitores: o parto sob X4, expressão perfeita do modelo de exclusividade já

que a filiação da criança não é estabelecida. O direito francês não impõe uma

ligação automática da criança aos seus genitores, de modo que a criança,

adotada o mais rapidamente possível, possui apenas uma única família, sua

família de adoção. Em resumo, nas adoções de crianças nas sociedades

ocidentais, o ideal buscado foi por muito tempo que pais de sangue e pais

adotivos não tivessem nenhum contato e mesmo que se ignorassem

completamente.

De modo diferente, as famílias recompostas após o divórcio parecem colocar em

xeque nosso modelo de exclusividade já que se vê ali em ato a

pluriparentalidade. Após a separação do casal, a configuração familiar a mais

frequente é aquela na qual a criança está sob a guarda de sua mãe e de seu

novo cônjuge ou companheiro. A criança vive então no quotidiano com sua mãe

e seu padrasto, eventualmente seus meio-irmãos e irmãs, enquanto que,

                                                                                                               4  Uma  mulher  grávida  que  entra  em  um  serviço  de  obstetrícia  pode  solicitar  o  segredo  de  sua  admissão  e  de  sua  identidade;  ela  não  precisa  abandonar  a  criança,  nem  consentir  sua  adoção  já  que  a  filiação  da  criança  não  é  estabelecida.    

Page 6: Rumo ao Reconhecimento da Pluriparentalidade?

periodicamente, ela vai viver um tempo limitado, aquele dos finais-de-semana e

das férias, na residência paterna, quando eventualmente ela é levada a viver

com uma madrasta. O padrasto guardião assume por vezes função nutriz e

educativa, de tipo paternal, da perspectiva de seu enteado que ele compartilha

em princípio com o pai e a mãe dessa criança. As pesquisas de sociologia e de

etnologia analisaram como a partilha das tarefas educativas, sempre

problemática, é assumida pelos adultos num clima de concorrência e de

rivalidade maior ou menor, esta sendo particularmente viva entre mulheres (a

mãe e a madrasta). Os estatutos do pai e padrasto, de mãe e da madrasta, são,

entretanto, em princípio claramente distintos, ao menos no direito, que enfatiza

ainda o sentido da exclusividade: somente os pais de sangue são os pais aos

olhos da lei e o padrasto é mergulhado na inexistência jurídica. Numerosos

autores mostraram as dificuldades dessa lacuna, na medida em que o padrasto

educador e nutriz não detém nem autoridade parental, nem possibilidade de

transmitir seus bens a seu enteado, a não ser da forma como se transmitiria a

um estranho.

Se as coisas parecem claras no plano jurídico, elas estão longe de ser tão

simples na prática. As análises revelam, com efeito, que, em um primeiro tempo,

as famílias recompostas, sendo percebidas negativamente, os serviços sociais e

os atores da recomposição favoreceram a instauração de um modelo de

substituição, o padrasto sendo convidado a assumir o lugar do pai ausente. Este

modelo, ainda muito respaldado nas famílias socialmente desfavorecidas,

encontra sua expressão última na adoção do filho do cônjuge, que sela sobre o

plano jurídico a expulsão de fato do pai. Esse tipo de adoção representa a maior

parte das adoções intrafamiliares na França, no Canadá e nos EUA. Na França,

limitou-se a possibilidade de utilizar a adoção plena, mas em outros países,

como ela é por vezes a única forma jurídica de adoção, esta tem por efeito cortar

definitivamente uma criança de sua família paterna, aí compreendida seus avós,

irmãos e irmãs, primos e primas. Há nessa escolha da mãe e do padrasto a

vontade de reconstituir uma nova família conforme a norma de exclusividade e

de fazer de todas as crianças, irmãos e irmãs, iguais entre elas. Essa decisão

Page 7: Rumo ao Reconhecimento da Pluriparentalidade?

tem por efeito eliminar a multiparentalidade e fazer coincidir a filiação legal com

a realidade disso que constitui a nossos olhos as relações entre pais e filhos.

Percebe-se a coerência das respostas apresentadas às situações de

pluriparentalidade sempre vividas como instáveis e ameaçadoras: elas vão todas

no sentido da substituição para se conformar ao modelo de exclusividade.

QUEM SÃO OS PAIS?

Essas coparentalidades colocam, com efeito, o problema da definição da

categoria ‘pais’. Quem são os pais ? Aquele que doa os seus genes ou aquele

que doa o nascimento? Aquele que cuida da criança e a cria? Aquele que lhe

oferece seu nome e lhe transmite seus bens? Tantos componentes da

parentalidade que são dissociados em outras sociedades, mas se recobrem até

data recente em nossas sociedades. Esse ponto pareceu evidente aos

etnólogos das sociedades não europeias, trabalhando sobre a circulação de

crianças entre as famílias, particularmente importante em certas sociedades

africanas ou da Oceania5. Enquanto que, em nossas sociedades, a criança

“pertence” a seus próprios pais, ali, os doadores de crianças respondem

geralmente a um tipo de direito do parentesco ascendente ou colateral

(consangüinidade e aliança) sobre a criança. Esse direito confere em acréscimo

aos doadores um prestígio social inconcebível em nossas próprias sociedades.

Eles se fazem o mais freqüentemente de tutores eles mesmos capazes de doar

seus próprios filhos a outros. A noção de propriedade da criança, e os direitos

que ela oferece aos pais face “captação” por outrem de sua progenitura, tem

feito o objeto de análises variadas que descrevem todas a força dos direitos

detidos sobre uma criança por outros indivíduos que seus pais: seus receptores

potenciais . De modo que nota-se uma fragmentação do papel parental tal como

nós o observamos nas sociedade ocidentais. A antropóloga inglesa Esther

                                                                                                               5  Ver  a  síntese  de  S.  Lallemand,   la  Circulation  des  enfats  en  société  traditionnelle.  Prêt,  don,  échange,  Paris,  L  ́Harmattan,  1993.    

 

Page 8: Rumo ao Reconhecimento da Pluriparentalidade?

Goody6 decompõe assim a parentalidade (parenthood) em cinco elementos

distintos: conceber e colocar no mundo, oferecer uma identidade ao nascimento

(elemento jurídico), alimentar, cuidar e garantir o acesso da criança ao estatuto

de adulto (acesso aos bens, a um emprego, ao casamento). A segunda função

parental, a transmissão da filiação, não se faz objeto de partilha nas sociedades

estudadas pela antropóloga, mas os outros atributos da função parental podem

ser dispersos entre vários lugares e diversos indivíduos. Ela mostra igualmente

como, reciprocamente, existe uma fragmentação possível dos deveres da

criança com respeito àqueles que a criaram.

Com as novas pluriparentalidades das sociedades ocidentais, nós estamos em

um mundo muito diferente, mas a análise de Goody convida a precisar a

natureza das funções parentais partilhadas. A partilha da residência, aquela da

função nutriz entre pai e padrasto, mãe e madrasta, nas famílias recompostas

após o divórcio, tem sido analisadas recentemente nessa perspectiva7. Nós não

nos espantaremos que as questões mais difíceis digam respeito à partilha do

processo de concepção e de inserção no mundo, resumo disso que nós

acabamos de dizer de nosso sistema de filiação. O que é um pai, o que é uma

mãe nas procriações medicamente assistidas, na adoção?

Nós temos, sobretudo, examinado as respostas que o direito tem oferecido. Em

nossas sociedades, com efeito, é a instância jurídica que estabelece a filiação.

As definições jurídicas de paternidade e maternidade não se apoiam unicamente

sobre a realidade genética, mas também sobre a ficção e a realidade das

situações sociais. O casamento faz, por exemplo, do marido o pai das crianças

que sua mulher colocou no mundo, mesmo se estes últimos não foram

realmente concebidos por ele. A declaração voluntária nos casos de

reconhecimento de paternidade natural tem os mesmos efeitos. O direito protege

                                                                                                               6  Esther  Goody,  Parenthood  and  Social  Reproduction:  Fostering  and  Occupational  Roles  in  West  Africa,  Cambridge,  1982,  e  “Sharing  and  Transferring  Components  of  Parenthood:  The  West  African  Case”,  in  M.  Corbier  (dir.),  Adoption  et  Fosterage,  Paris,  De  Boccard,  1999,  p.  369-­‐388.  7  A.  Martial,  Qu  ́est-­‐ce  qu  ́un  parent?  Etnologie  des  liens  de  familles  recomposées,  thèse  pour  le  doctorat  en  antropologie  (Agnès  Fine,  dir.),  Université  de  Toulouse-­‐Le  Mirail/Ehess,  2000.  

Page 9: Rumo ao Reconhecimento da Pluriparentalidade?

muito particularmente as filiações voluntárias que são a paternidade e a

maternidade adotivas e a paternidade do homem que consentiu a inseminação

de sua companheira ou de sua esposa. Contudo, desde há algumas décadas,

em particular desde a promulgação da lei de 1972 relativa à pesquisa de

paternidade, a referência implícita é a pesquisa da verdade, no caso a verdade

biológica. Suas aplicações jurisprudenciais indicam que hoje, a filiação não é

mais uma construção postulada em função de uma ligação institucional, o

casamento, ou de um ato jurídico, o reconhecimento: ela torna-se uma realidade

demonstrável. Ela se encontra sob o império da verdade, tanto no aspecto

biológico, quanto no aspecto social8.

Nossa sociedade tem, portanto, uma dupla referência à filiação, como o

sublinhou F. Héritier-Augé, o que tem por efeito fragilizar os laços que ela

institui9.

Todavia, mesmo quando o direito corta claramente e sem ambiguidade, a tensão

entre o sangue e a vontade é bem presente nos fatos. Assim, em nossas

famílias nascidas da inseminação artificial com doador (IAD) -forma de acesso

ao estatuto parental preferido à adoção, justamente porque ela preserva ao

menos uma ligação de sangue com uma das partes, o que liga a mãe à criança-,

a categoria ‘pai’ é objeto de discursos muito contrastados. Em um menor número

de casos, esses pais reivindicam claramente sua paternidade social, mas mais

frequentemente, eles exprimem uma atitude confusa de valorização da

paternidade biológica, e isso tanto mais quanto eles não fazem o luto de sua

esterilidade. Eles são convidados a afirmar sua paternidade social para melhor

preservar a maternidade biológica de sua esposa. As entrevistas que Corinne

                                                                                                               8  Laborde-­‐Barbanègre,  “La  filiation  en  question:  de  la  loi  du  3  janvier  1972  aux  lois  sur  la  bioéthique”,  in  A.  Fine  et  C.  Neirinck  (dir.),  Adoptions:  ethnologie  des  parentés  choisies,  op.cit.,  p.  185.  10  F.  Héritier-­‐Augé,  “La  cuisse  de  Jupiter.  Réflexions  sur  les  nouveaux  modes  de  procréation”.  L  ́Homme,  1985,  94,  XXV  (2),  p.  5-­‐22.  9  Ver  I.  Théry  (dir.),  “Malaise  dans  la  filiation”,  Esprit,  décembre  1996.    

Page 10: Rumo ao Reconhecimento da Pluriparentalidade?

Trouvé-Piquot10 conduziu junto às mães inseminadas revelam uma situação

igualmente contrastada. Assim, a vontade explícita dos Cecos de

despersonalizar o “doador”, designando-o por um termo que o associa a essa

única função, tem efeitos sobre as mulheres inseminadas. Algumas delas,

retomando por sua conta essa representação de ‘doador’, afirmam, por exemplo,

que querem esse homem “como aquele que doa espermatozoides e não como

indivíduo”; outras declaram que “ele não é alguém, é antes alguma coisa”.

Todavia, elas são mais numerosas a falar dele como uma pessoa, uma parte,

porque ele é aquele que as torna mães e com quem elas se sentem em dívida

(“sem ele, eu não teria podido jamais ter minha filha, ele faz parte de tudo isso

tanto quanto meu marido” ou “no momento do nascimento, eu o teria abraçado,

ele teria tido o seu lugar...”). Isso ocorre também porque os pais se interrogam

permanentemente sobre a questão da hereditariedade física11 e moral de seu

filho. Não dispondo do termo genitor, útil aos pesquisadores em ciências sociais

por sua precisão, essas mães utilizam aquele da língua corrente que assimila

concepção e paternidade, de modo que essa dupla paternidade não pode ser

descrita senão em termos de concorrência. “Se o doador fosse conhecido, nós

nos encontraríamos verdadeiramente frente aos pais”, diz uma mulher, enquanto

que outra leva a confusão ao seu paroxismo quando declara:

Para ela [sua filha], se eu lhe digo que seu pai foi um doador, ela irá querer talvez conhecê-lo e como é anônimo, ela se colocará questões por nada [...] É ele [seu marido] o pai, de todo modo. Eu penso que não se oferece nada a uma criança ao contar-lhe, após tudo, que ele não é seu pai, enquanto que o outro, finalmente, não será jamais seu pai.

Na adoção na França, a concorrência é conjurada pelo segredo sobre a

identidade dos genitores e, sobretudo na adoção internacional, pela distância e

pela inexistência de contatos diretos com os pais de sangue. A situação de

                                                                                                               10  Corinne   Trouvé-­‐Piquot,   Du   désir   d  ́enfant   Iad.   Essai   d  ́analyse   sociologique   du   processus   de  parentalité  dans  les  familles  Iad,  tese  para  o  doutorado  de  sociologie  (D.  Le  Gall,  dir.),  Universidade  de  Caen-­‐Basse  Normandie,  2000.  11  O   entusiasmo   expresso   quando   a   proximidade   física   entre   o   pai   social   e   a   criança   existe   é  equivalente  à   inquietude  que  precede  o  nascimento.  A  constatação  de  uma  semelhança  entre  pai  e  filho  é  uma  condição  de  manutenção  do  segredo  desejado  pela  maioridade  dos  pais.  

Page 11: Rumo ao Reconhecimento da Pluriparentalidade?

rivalidade fantasmática é vivida mais intensamente pelas mães que pelos pais,

porque a maternidade é comumente associada ao parto, e não há quase nunca

questão do pai de sangue nos processos de adoção. Numerosos são os

adotantes que nos revelaram preferir não conhecer aquelas que eles mesmos

chamariam de “verdadeiras” mães, e que tinham sentido uma mistura de mal-

estar e de fragilidade no momento em que se encontravam no avião com a

criança adotada nossos braços; mal-estar, pois, dizem alguns dentre eles, isso

parecia ser um tipo de rapto da criança; fragilidade porque eles sabiam que

nesse momento não tinham mais a temer senão que retomassem [o filho recém-

encontrado]. O anonimato e a ausência de contatos permitem representar uma

criança sem ligação; ela é menos aquela de uma mãe, que aquela órfã de tal ou

qual país. Esta imagem permite deslocar o problema da origem genealógica da

criança para aquele de sua origem geográfica12. Serão conservados, então,

sistematicamente, os traços do país da criança, a falta de lhe conservar sua

filiação de nascimento, simbolizado pelo seu nome e sobrenome. Na adoção,

vê-se que o que se faz objeto de concorrência entre pais de sangue e pais

adotivos é menos o estatuto jurídico deles (reconhecido pela lei em benefício

dos pais adotivos, sem nenhuma ambiguidade) do que o reconhecimento,

encarnado pela presença real de pessoas conhecidas, de uma dupla forma de

colocação no mundo da qual um ou outro casal não é o único ator. Vê-se toda a

importância que poderia revestir o reconhecimento simbólico da

pluriparentalidade na adoção, ao menos um reconhecimento da existência de

pais sucessivos, a manter-se, em acréscimo ao patronímico do adotante, o

primeiro patronímico da criança, como era o caso na adoção grega e romana e

na adoção francesa até 1939. Pode-se medir também a característica

extraordinária que representa a adoção aberta nos EUA e Canadá.

RUMO A UM RECONHECIMENTO DA PLURIPARENTALIDADE?

Assiste-se, com efeito desde há alguns anos, sobretudo nos EUA e Canadá, a

                                                                                                               12  F.-­‐R.  Ouellette,  l  ́Adoption.  Les  acteurs  et  les  enjeux  autour  de  l  ́enfant,  Sainte-­‐Foy  (Québec),  Presses  de  l  ́université  Laval,  coll.  “Diagnostic”,  1996.  

Page 12: Rumo ao Reconhecimento da Pluriparentalidade?

um movimento que vai no sentido de um reconhecimento legal de situações de

pluriparentalidade. Ele é o resultado da ação de grupos de pressão em favor do

interesse da criança, ao qual são reconhecidos novos direitos: o direito a ser

criado pelos pais substitutos conservando laços com sua família natural, o direito

à manutenção de seu nível de vida e de sua s ligações eletivas, ou aquela de

conhecer suas origens.

Evoquemos de início a questão do lugar respectivo de pai e de padrasto nas

famílias recompostas após divórcio. Nos países anglo-saxões, busca-se

encontrar soluções jurídicas que permitam à criança conservar laços com seus

dois pais biológicos, estabelecendo novos laços com seu padrasto. No Reino

Unido, o Children Act, de 1989 (que entrou em vigor em 1991), fundado sobre a

noção de “responsabilidade parental”, concede ao padrasto, que se ocupa

quotidianamente de uma criança desde há ao menos dez anos, os direitos e

deveres legalmente reconhecidos, até os 16 anos de vida dessa criança ou

adolescente. Esses direitos e esses deveres não colocam em causa os dois pais

legais da criança. Aliás, constatando a frequência crescente da ruptura das

segundas uniões na sociedade americana e o número importante de crianças

que se encontram lesadas materialmente pela partida do padrasto que

subvencionava a sua manutenção, juristas fazem proposições para lhe atribuir o

estatuto jurídico de pai, de fato, estatuto que criaria para ele obrigações

específicas, proporcionais ao tempo da assunção dos encargos materiais de

seus enteados. Isso seria uma maneira de reconhecer que o tempo de

convivência e a situação de pai nutriz criam um tipo de parentalidade entre

adulto e criança que é preciso reconhecer e, em certa medida, institucionalizar

no interesse da criança. Na França, as proposições de Irène Théry13 ao governo

propondo preservar a responsabilidade própria do pai, visariam permitir ao

padrasto exercer, da perspectiva de seu enteado, algumas funções parentais

relativas à vida quotidiana e de lhe legar seus bens de maneira preferencial

(suprimindo as antecipações fiscais sobre as doações entre estranhos).                                                                                                                13  I.  Théry,  Couple,  filiation  et  parenté  aujourd  ́hui.  Le  droit  face  aux  mutations  de  la  famille  et  de  la  vie  privée.  Paris,  Odile  Jacob,  1998.  

Page 13: Rumo ao Reconhecimento da Pluriparentalidade?

O reconhecimento da pluriparentalidade não é somente ligada ao lugar, sem

dúvida importante, das famílias recompostas em nossa sociedade. Ela foi

também pautada pela relevância crescente da questão identificatória que se

exprimiu sob a forma reivindicativa de um direito da criança ao reconhecimento

de suas “origens”, para a criança adotada ou aquela nascida por procriação

medicamente assistida. Nos EUA, as associações de adotados e as associações

dos pais naturais que abandonaram seus filhos e lutam pelo “reencontro” com

eles, fazem pressão sobre a opinião pública, tendo obtido mudanças

significativas, em particular no direito e na prática da adoção. Desde uma ou

duas décadas, nos EUA e Canadá, passou-se com efeito de um modelo

fechado, fundado sobre as ideias mestras de ruptura total do laço de filiação, do

anonimato das partes implicadas e do segredo dos processos de adoção como

atos de estado civil original, a um modelo aberto conhecido hoje como open

adoption. A França, contrariamente à Inglaterra e à Alemanha, permanece

provisoriamente afastada dessa evolução ainda que, desde vários anos, a

aparição de múltiplas associações de luta pelo direito às origens deixa antever

uma evolução no mesmo sentido.

A adoção aberta significa que se favorece o interconhecimento entre os

genitores e os pais adotivos, sob as formas mais variadas, as quais vão do

simples conhecimento de sua identidade à frequentação regular (com direito de

visita reconhecido), o contrato sendo negociado entre os participantes. Além do

objetivo explícito - evitar os problemas de confusão de identidade para o

adotado no momento da adolescência -, esse movimento revela outra função

menos visível: interromper a diminuição do número de crianças adotáveis,

oferecendo um lugar maior às mães naturais. A possibilidade, para estas

últimas, de poder escolher os pais adotivos de sua criança, e de não cortar

definitivamente o laço com ela, favoreceria com efeito sua decisão de consentir

na adoção. A maior parte das adoções de bebês faz-se nos EUA em agências

privadas sobre a base dessa abertura, particularmente buscada pelos pais

naturais, enquanto que as agências públicas, que mantêm a adoção tradicional,

fecharam suas portas umas após as outras. Nesse momento, a legislação é

Page 14: Rumo ao Reconhecimento da Pluriparentalidade?

muito diferenciada conforme os estados: um pequeno números dentre eles, tais

como a Califórnia e a Virgínia, exigem que todas as partes troquem informações

identificatórias, mas, na maior parte dos estados, as modalidades de

interconhecimento são deixados à discrição das partes.

No domínio das procriações medicamente assistidas (PMA), um movimento de

opinião vai no mesmo sentido. Na França, por exemplo, desde alguns anos, os

psicólogos que acompanham os casais requerentes de uma inseminação com

doador orientam a não manter as pessoas próximas e a criança na ignorância de

sua origem. Quanto ao anonimato do doador ou da doadora de óvulos, parece

haver uma contradição com entre a legislação francesa e a Convenção

internacional de Haya quanto ao direito das crianças em conhecer sua origem.

Os debates atuais deixam pensar que pode haver uma modificação na lei de

julho de 1994 sobre a bioética. Face às certezas francesas sobre o segredo, os

EUA fazem o papel de experimentadores, alguns dirão aprendizes de feiticeiros,

autorizando práticas que vão de encontro à lógica do nosso sistema. A prática

das ‘mães portadoras’, autorizada em vários estados, torna impossível a

eliminação dos genitores. Reportagens de televisão as mostram no momento do

parto, cercadas pelo casal ao qual prometeram a criança, e, após o nascimento,

as vemos, por vezes, manter relações de amizade com a família que

contribuíram para a formação.

Enfim, os debates recentes sobre as reivindicações do direito à adoção por parte

de casais homossexuais têm trazido à tona diferentes coparentalidades

daquelas experimentadas hoje. Embora elas não sejam ainda muito numerosas

na França, sua grande diversidade constitui um dos terrenos mais ricos a

observar desse ponto de vista, na medida em que as situações de

pluriparentalidade aí são a regra por definição, a parentalidade e a conjugalidade

sendo quase sempre dissociados14.

No caso em que as crianças são de uma união heterossexual anterior e que um

                                                                                                               14  M.  Gross  (dir.).  Homoparentalités.  État  des  lieux.  Paris,  ESF,  2000.  

Page 15: Rumo ao Reconhecimento da Pluriparentalidade?

dos pais vive agora com uma pessoa do mesmo sexo, a questão do estatuto do

‘padrasto’ ou da ‘madrasta’ lembra aquela das famílias recompostas, colocando

problemas específicos. Quando as crianças são adotadas por uma única pessoa

(como a lei as autoriza), mas são criadas e por vezes desejadas por duas

pessoas do mesmo sexo, coloca-se o problema do estatuto do ‘pai substituto’,

regulado em certos países por aquele de pai adotivo. Quatro pessoas podem

estar na origem do nascimento de uma criança: um casal de pais biológicos,

composto de uma mãe lésbica e de um pai gay e seus parceiros respectivos.

Essa coparentailidade, frequentemente praticada nos EUA, coloca o problema

do lugar de cada um dos atores da construção das diferentes parentalidades, de

suas relações com a filiação de sangue e convivência.

Enfim, crianças nascem também de PMA ou de recurso a mães substitutas. É o

caso, sobretudo, da adoção internacional já que a lei, na França, proíbe os PMA

às pessoas celibatárias ou homossexuais, assim como o recurso às ‘mães

portadoras’. Mas essa prática é já relativamente respaldada em certos estados

dos EUA e faz-se objeto dos primeiros estudos em ciências humanas e sociais.

Tantas situações que colocam a questão do lugar respectivo de cada um dos

adultos que concorrem à concepção, à colocação no mundo e à educação das

crianças, na lei e nas práticas.

PARENTALIDADE E FILIAÇÃO

As reivindicações da adoção nas famílias homoparentais, os debates ligados às

relações entre pais de sangue e pais sociais nas famílias IAD e na adoção, as

questões relativas ao estatuto a ser concedido ao padrasto nas famílias

recompostas colocam a questão da relação entre filiação (descent) e

parentalidade (parenthood). Esse neologismo, criado recentemente nas ciências

sociais e humanas - essencialmente a antropologia e a psicanálise15 -, recobre o

campo das relações pais/filhos, mas uma parte somente daquele do parentesco

(kinship). Essa noção e a palavra que lhe corresponde não existem no direito, já

                                                                                                               15  Como  o  lembra  G.  Delaisi  de  Parseval  em  M.  Gross  (dir)  Homoparentalités....,  op.cit.    

Page 16: Rumo ao Reconhecimento da Pluriparentalidade?

que ele não conhece senão os termos sexuados de pai e mãe, relativos à

filiação, seja a inscrição de um indivíduo em uma organização genealógica - um

sistema de parentesco. Ora, a análise da evolução do direito e da prática da

adoção conduz à constatação de que a segunda noção [parenthood] tem

tendência a recobrir a primeira [descent], o que significa que a relação pais/filhos

tende a ocupar todo o espaço da filiação. Como exprime mais precisamente F.-

R. Ouellette16, opera-se atualmente uma desimbricação conceitual entre família,

de uma parte, e a organização genealógica do parentesco, de outra parte, duas

esferas dotadas de uma autonomia relativa cujas relações recíprocas mudaram.

A análise da evolução histórica da instituição familiar, do direito familiar, das

representações da família e da criança, aquela, enfim, da definição do incesto

nas famílias recompostas, confirmam totalmente essa análise.

Então, reconhecendo-se que uma criança pode ter simultaneamente ou

sucessivamente em sua vida vários adultos exercendo ou tendo exercido por

sua vez funções parentais, podem ser apontadas as seguintes questões: seriam

eles instituídos igualmente como pais e mães no sentido jurídico (filiação)?

Independente do sexo? Se não, quais dentre eles devem dar à criança seu

estatuto jurídico? Em qual família no sentido genealógico (linhagem) a criança é

inscrita, a quem é aparentada e de quem deve portar o nome? Os direitos e

obrigações de manutenção podem ser divididos entre vários adultos? A filiação

deve ser automaticamente ligada ao nascimento? Ou bem à decisão de

colocação no mundo? A uma declaração solene das pessoas que desejaram o

nascimento? Deve-se admitir que alguém possa mudar de filiação? Quem pode

ter disso a iniciativa? Tantas questões numerosas e imensas, sobre as quais

tanto melhor se pode refletir à medida que a análise permita precisar,

separando-as, as duas noções de filiação e de parentalidade.

                                                                                                               16  Ver  em  particular,  a  propósito  da  adoção,  as  contribuições  de  F.-­‐R.  Ouellette  e  C.  Neirinck  em  Parents  de  sang,  parents  adoptifs...,  op.  Cit.