roteiro para podcast - a reliquia apresentaÇÃo · o meu avô era padre e escreveu a vida de santa...

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ROTEIRO PARA PODCAST - A RELIQUIA APRESENTAÇÃO Oi! Eu sou a Cristiana Gimenes. Eu vou contar uma história muito divertida: o livro A Relíquia, de Eça de Queirós. O livro foi publicado em 1887 e o autor é português, então tem uma linguagem um pouco distante da nossa. Eu vou usar uma linguagem mais contemporânea, mais coloquial, mas em muitos momentos também vou manter as palavras do autor, o que é interessante para você perceber o estilo. Quem narra é o personagem Teodorico Raposo, então imagine que eu sou um homem... LOCUÇÃO CRIS CONTA – VESTIBULAR orgulhosamente apresenta: A RELÍQUIA, DE EÇA DE QUEIRÓS Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia LOCUÇÃO PRÓLOGO RAPOSO Resolvi escrever as memórias da minha vida porque elas têm uma lição lúcida e forte. Em 1875 fiz uma viagem à Terra Santa e gostaria de deixá-la registrada. Não pretendo escrever um guia pitoresco do Oriente. Se alguém tiver esse interesse, recomendo os escritos do meu companheiro de viagem, o alemão Topsius, doutor pela Universidade de Bonn e membro do Instituto Imperial de Escavações Históricas. São sete volumes com um título fino e profundo: JERUSALÉM PASSEADA E COMENTADA. Nesses volumes o Doutor fala muito de mim, nem sempre com exatidão, mas uma coisa não posso deixar passar. A respeito de dois pacotinhos que eu carregava, ele diz: TOPSIUS O ilustre fidalgo lusitano transportava ali restos dos seus antepassados, recolhidos por ele, antes de deixar o solo sacro da pátria!... RAPOSO Falando dessa forma, o doutor dá a entender que eu levava os ossos de meus avós num embrulhinho durante a viagem! Por isso, intimo o Dr. Topsius a corrigir essa informação, numa segunda edição, descrevendo detalhadamente o conteúdo desses pacotes, como eu farei aqui.

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ROTEIRO PARA PODCAST - A RELIQUIA

APRESENTAÇÃO

Oi! Eu sou a Cristiana Gimenes. Eu vou contar uma história

muito divertida: o livro A Relíquia, de Eça de Queirós. O

livro foi publicado em 1887 e o autor é português, então tem

uma linguagem um pouco distante da nossa. Eu vou usar uma

linguagem mais contemporânea, mais coloquial, mas em muitos

momentos também vou manter as palavras do autor, o que é

interessante para você perceber o estilo. Quem narra é o

personagem Teodorico Raposo, então imagine que eu sou um

homem...

LOCUÇÃO

CRIS CONTA – VESTIBULAR orgulhosamente apresenta: A

RELÍQUIA, DE EÇA DE QUEIRÓS

Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia

LOCUÇÃO

PRÓLOGO

RAPOSO

Resolvi escrever as memórias da minha vida porque elas têm

uma lição lúcida e forte. Em 1875 fiz uma viagem à Terra

Santa e gostaria de deixá-la registrada. Não pretendo

escrever um guia pitoresco do Oriente. Se alguém tiver esse

interesse, recomendo os escritos do meu companheiro de

viagem, o alemão Topsius, doutor pela Universidade de Bonn

e membro do Instituto Imperial de Escavações Históricas. São

sete volumes com um título fino e profundo: JERUSALÉM

PASSEADA E COMENTADA.

Nesses volumes o Doutor fala muito de mim, nem sempre com

exatidão, mas uma coisa não posso deixar passar. A respeito

de dois pacotinhos que eu carregava, ele diz:

TOPSIUS

O ilustre fidalgo lusitano transportava ali restos dos seus

antepassados, recolhidos por ele, antes de deixar o solo

sacro da pátria!...

RAPOSO

Falando dessa forma, o doutor dá a entender que eu levava os

ossos de meus avós num embrulhinho durante a viagem! Por

isso, intimo o Dr. Topsius a corrigir essa informação, numa

segunda edição, descrevendo detalhadamente o conteúdo desses

pacotes, como eu farei aqui.

LOCUÇÃO

CAPÍTULO I

RAPOSO

O meu avô era padre e escreveu a Vida de Santa Filomena. O

meu pai tinha um emprego no correio, e escrevia por gosto no

Farol do Alentejo. Inclusive por escrever uma crônica muito

elogiosa sobre uns ilustres sacerdotes, acabou se tornando

diretor da alfândega. Foi nessa época que papá conheceu o

Comendador Godinho e suas duas sobrinhas: a mais velha, D.

Maria do Patrocínio, usava óculos grossos e não perdia uma

missa; a mais nova, D. Rosa, gordinha e trigueira, tocava

harpa e sabia versos de cor. Esta era mamã... casaram-se.

Eu nasci em Viana, numa sexta-feira da Paixão e mamã morreu

no Sábado de Aleluia. Fui criado por papá até os 7 anos de

idade quando numa noite de Carnaval, usando uma máscara de

urso, papá teve uma apoplexia e se foi. Assim, fui levado

para viver com minha tia, D. Maria do Patrocínio, em Lisboa.

Depois de alguns dias de viagem com o Senhor Matias, chegamos

à casa dela e ele me disse: “Esta é a Titi. É necessário

gostar muito da Titi... É necessário dizer sempre que sim à

Titi!” A custo, ela baixou e me deu um beijo, frio como

pedra; e logo recuou, com nojo.

TITI

Credo, Vicência! Que horror! Acho que lhe puseram azeite no

cabelo!

RAPOSO

Com o beicinho a tremer, ergui os olhos para ela e murmurei:

“Sim, Titi”.

Então o Senhor Matias me elogiou, que tinha bom génio, que

era limpinho, que eu comia com educação... A Titi rosnou

secamente:

TITI

Está bem. Era o que faltava, portar-se mal, sabendo o que eu

faço por ele... Vá, Vicência, leve-o lá para dentro... lave-

lhe essa ramela; veja se ele sabe fazer o sinal da cruz...

RAPOSO

À noite, a Vivência me arrumou e fui conhecer os amigos de

Titi que vieram para o chá. Dois padres e um outro sujeito

que me perguntou se eu tinha saudades de Viana, a minha

terra. Eu murmurei, atordoado: “Sim, Titi”.

Então o padre mais idoso, Caemiro, me recomendou que eu fosse

temente a Deus, quietinho em casa, sempre obediente à Titi...

PADRE CASEMIRO

O Teodorico não tem ninguém senão a Titi... E necessário

dizer sempre que sim à Titi...

RAPOSO

Eu repeti, encolhido: “Sim, Titi.” A Titi, severamente, me

mandou tirar o dedo da boca e voltar para a cozinha, para a

Vicência.

TITI

E quando passar pelo oratório, onde está a luz e a cortina

verde, ajoelhe, faça o seu sinalzinho da cruz...

RAPOSO

Não fiz o sinal da cruz. Mas olhei pela cortina e o oratório

da Titi me deslumbrou! Nosso Senhor Jesus Cristo era todo de

ouro, e reluzia com a luz das velas. Na hora de dormir, a

Vicência me fez ajoelhar, juntou as minhas mãos, e ergueu

meu rosto para o céu. Então ditou os Padre-Nossos que eu

deveria rezar pela saúde da Titi, pelo repouso da mamã, e

pela alma de um comendador que tinha sido muito bom, muito

santo e muito rico, que se chamava Godinho.

Com 9 anos fui mandado para o colégio interno e logo que

cheguei fiquei muito amigo de um rapaz, Crispim, mais velho

que eu, filho da firma Teles, Crispim & Cia. Ele me dava

muitos beijos e mandava bilhetinhos me chamando de “seu

idolatrado”...

Só ia para a casa de Titi um domingo por mês. A Vicência me

buscava e no caminho me falava da Titi, que ela padecia do

fígado; que tinha sempre muito dinheiro em ouro numa bolsa

de seda verde; e que o Comendador Godinho, tio dela e da

minha mamã lhe deixara duzentos contos em prédios, papéis,

pratas e louças da Índia... Que rica que era a Titi! Era

necessário ser bom, agradar sempre à Titi! Quando me deixava

de volta no colégio a Vicência dizia "Adeus, amorzinho", e

me dava um beijo. Muitas vezes, de noite, abraçado ao

travesseiro, eu pensava na Vicência, e nos seus braços gordos

e brancos. E assim foi nascendo no meu coração, pudicamente,

uma paixão pela Vicência.

E os anos foram passando; o Crispim saiu do colégio; meu

alto amor pela Vicência desapareceu e eu comecei a estudar

retórica. Então me mandaram estudar em Coimbra, na casa do

Doutor Roxo.

A Titi me deu um papel com a oração que eu diariamente devia

rezar a São Luís Gonzaga, padroeiro da mocidade estudiosa,

para que ele conservasse no meu corpo a frescura da

castidade, e na minha alma o medo do Senhor.

Detestei o Doutor Roxo e sofri muito na sua casa, mas por

pouco tempo. Já no meu primeiro ano de direito o

eclesiástico morreu, fui morar em uma pensão e passava as

noites na rua, cantando fados, bebendo, arrumando briga,

namorando... Como meu sobrenome era Raposo e começava a me

crescer um barba negra e farta, meus amigos me chamavam de

Raposão.

A cada quinze dias, mandava uma carta para Titi, falando da

severidade dos meus estudos e do recato dos meus hábitos. E

os meses de verão em Lisboa eram dolorosos. Não podia sair

sem implorar para Titi. Devia me recolher virginalmente, à

noitinha, depois de rezar com a velha um longo terço no

oratório.

Um dia, passeando com o doutor Margaride, conheci um primo,

Xavier. Fui até a casa onde vivia na miséria com uma mulher

e três crianças. Logo me pediu para falar com Titi, apelar

para sua caridade, que ela não deixaria um Godinho vivendo

naquela miséria... Prometi interceder. Mas nem ousei falar

à Titi que tinha conhecido o Xavier e entrado naquele casebre

impuro onde ele vivia com uma espanhola...

Alguns meses depois Xavier mandou me chamar. Cheguei na sua

casa, ele estava deitado com uma bacia ao lado, cuspindo

sangue, e me contou que mandou uma linda carta a Titi e ela

não respondeu. Então, mandou publicar um anuncio no jornal

pedindo ajuda, assinando como "Xavier Godinho, primo do rico

Comendador Godinho". Queria ver se ela deixaria um parente,

um Godinho, mendigar assim, publicamente, na página de um

jornal. E me pediu, mais uma vez, que ajudasse a amolecer

Titi.

No dia seguinte, observei Titi abrir o jornal e ficar parada

lendo alguma coisa. Então me pareceu ver, lá do fundo nu do

casebre, os olhos aflitos do Xavier; as mãozinhas das

crianças, magras, à espera de pão... E todos esperando pelas

palavras que eu diria à Titi. Mas antes que eu pudesse

falar, Titi rosnou, com um sorrisinho feroz:

TITI

Que se aguente... É o que sucede a quem não tem temor de

Deus e se mete com bêbedas... Não tivesse comido tudo em

relaxações... Cá para mim, homem perdido com saias, homem

que anda atrás de saias, acabou... Não tem o perdão de Deus,

nem tem o meu! Que padeça, que padeça, que também Nosso

Senhor Jesus Cristo padeceu!

RAPOSO

Eu fui para o meu quarto pensando nas palavras ameaçadoras

de Titi, pois em Coimbra eu também tinha andado atrás de

saias... E tinha provas no meu baú, a fotografia da Teresa

e uma carta dela, em que me chamava "único afeto da sua alma"

e me pedia dezoito tostões! Eu tinha costurado tudo dentro

do forro de um colete, por causa das buscas que a Titi fazia

nas minhas coisas. Estava bem escondidinho, mas estava lá!

Só respirei aliviado depois de queimar tudo...

Noutro dia encontrei o Rinchão, um colega de Coimbra que

também estava em Lisboa de férias, ia ver uma rapariga e me

convidou para ir junto, pois ela tinha uma amiga, a Adélia.

Fui. Adélia era linda, que sorriso! E educada, conversamos...

E no doce instante em que nossos lábios se tocaram, o relógio

bateu 10h. A hora do chá da Titi. Corri o quanto pude, mas

quando cheguei, Titi gritava, esverdinhada de cólera,

sacudindo os punhos:

TITI

Relaxações na minha casa não admito! Quem quiser viver aqui

há de estar às horas que eu marco! Lá deboches e porcarias,

não, enquanto eu for viva! E quem não lhe agradar, rua!

RAPOSO

Padre Casimiro interveio, como sacerdote, como procurador,

influente e suave.

PADRE CASIMIRO

D. Patrocínio tem razão, tem muita razão em querer ordem em

casa... Mas talvez o nosso Teodorico se tivesse demorado um

pouco mais a ouvir falar de estudos, de compêndios...

RAPOSO amargamente

Nem isso, Padre Casimiro! Sabe onde estive? No convento da

Encarnação! Encontrei um condiscípulo meu, e a irmã vai

casar, ele andou a contar-me do noivo, e do enxoval, e da

apaixonada que ela está... Eu morto por me safar, mas com

cerimónia do rapaz, que é sobrinho do Barão de Alconchel...

E ele a falar da irmã, e do namoro, e das cartas...

TITI uivou de furor

Olha que conversa! Que porcaria de conversa! Que indecente

conversa para o pátio de uma casa de religião! Cala-te, alma

perdida, que até devias ter vergonha!... E fique entendendo!

Para outra vez que venha a estas horas, não me entra em casa!

Fica na rua.

PADRE CASEMIRO murmurava, ao meu lado, com brandura

Tome o seu chazinho, Teodorico, vá tomando o seu chazinho.

E creia que a tia não deseja senão o seu bem...

RAPOSO

Aos domingos, o chá era servido nas pratas do Comendador

Godinho. Eu olhava para elas diante de mim; e tudo pertencia

à Titi. Que rica que era a Titi! Era necessário ser bom,

agradar sempre A Titi! Por isso, mais tarde, quando ela foi

para o oratório para cumprir o terço, eu estava lá, gemendo,

martelando o peito, e suplicando ao Cristo de ouro que me

perdoasse ter ofendido a Titi.

Quando finalmente recebi meu diploma de bacharel, voltei

para a Lisboa para ficar e a Titi, reconhecendo meu esforço,

me deu de presente um cavalo. E além disso, uma mesada. Será

que Titi não pretende que eu trabalhe? Sobre isso,resolvi

consultar o Padre Casemiro...

PADRE CASEMIRO

Olhe, Teodorico, parece-me que a Titi não quer que você tenha

outro mister, senão temer a Deus... o que lhe digo é que o

amigo vai passá-la boa e regalada... E agora, ande, vá-lhe

lá dentro agradecer, e diga-lhe uma cousinha mimosa.

RAPOSO

E assim meus dias eram ir à missa com Titi de manhã e depois

sair à cavalo com um botão de camélia no peito, ia mandar um

recado de Titi para algum santo e passeava pela cidade. E

claro, ia ver Adélia, pois nunca tinha esquecido daquele

beijo de um ano atrás. Quando voltei para Lisboa, descobri

onde ela vivia agora, patrocinada por Eleutério Serra, da

firma Serra Brito & Cia. Escrevi uma carta muito séria e ela

aceitou me receber. Levei uma caixinha de pastilhas de

chocolate no nosso primeiro encontro. Ela quis saber se eu

era empregado ou estava no comércio... Eu contei com orgulho

a riqueza da Titi, e disse: “Se a Titi agora rebentasse, eu

é que lhe punha a menina uma casa chic!”

Sempre à noitinha, enquanto o Eleutério estava no clube

jogando manilha, eu visitava a Adélia. Logo Eleutério foi

passar uns tempos em Paris... E Titi me deixava chegar mais

tarde, pois estava convicta que eu era um homem de religião

e não andava atrás de saias.

Não lhe bastava reprovar o amor como coisa profana. Um moço

grave, amando seriamente, era para ela "uma porcaria!" Quando

sabia de uma senhora que teve um filho, cuspia para o lado,

rosnava "que nojo!" E quase achava a natureza obscena por

ter criado dois sexos.

Além de sempre sair pelos fundos da casa de Adélia, eu tomava

a precaução de antes de entrar em casa, queimar um incenso

deixando entrar bem na minha casaca e na barba. E quando

entrava em casa, Titi dizia:

TITI

Jesus, que rico cheirinho a igreja!

RAPOSO

Modesto, e com um suspiro, eu murmurava: “Sou eu, Titi...”

Um dia, fingi que tinha perdido no chão do corredor uma carta

para um amigo, sabendo que a Titi leria. Eu dizia: "Saberás

que fiquei de mal com o Simões, o de filosofia, por ele me

ter convidado a ir a uma casa desonesta. Não admito destas

ofensas. Tu lembras-te bem como já em Coimbra eu detestava

tais relaxações...” e por aí ia a carta. A Titi leu, a Titi

gostou.

Um dia, como me apareceu oportunidade de tomar um chá com

torradas com o doutor Margaride, aproveitei para falar da

minha insegurança com relação ao meu futuro, que às vezes

pensava se devia procurar um emprego...

MARGARIDE (comendo torrada e tomando chá)

A Titi tem-lhe amizade e você é o seu único parente... Mas

a questão é outra, Teodorico. É que você tem um rival.

RAPOSO

“Rebento-o!” Eu gritei com os olhos em chamas, esmurrando o

mármore da mesa.

MARGARIDE reprovou com severidade a minha violência

Essa expressão é imprópria de um cavalheiro, e de um moço

comedido. Em geral não se rebenta ninguém... E além disso o

seu rival não é outro, Teodorico, senão Nosso Senhor Jesus

Cristo!

RAPOSO

E o doutor revelou que a Titi, um ano antes da minha

formatura, disse que tencionava deixar a sua fortuna a

irmandades da sua simpatia e a padres da sua devoção.

MARGARIDE

Nem tudo está perdido, Teodorico. É possível que a senhora

sua tia tenha mudado de ideia... Você é bem comportado, reza

o terço com ela... Que é necessário dizê-lo, o rival é forte!

RAPOSO

É de arromba!

MARGARIDE

Olhe, quer você a minha opinião? Pois aí a tem, franca e sem

rebuço, para lhe servir de guia... Você vem a herdar tudo,

se D. Patrocínio, sua tia e a minha senhora, se convencer

que deixar-lhe a fortuna a você é como deixá-la à Santa Madre

Igreja...

RAPOSO

Eu sentia agora bem amargamente, o erro da minha vida...

Sim, o erro! Porque até aí, minha devoção era regular, mas

nunca fervente. Até aí a Titi podia dizer com aprovação: "É

exemplar". Para herdar, ela devia exclamar, de mãos postas:

"É santo!" Agora eu estava bem decidido a não deixar ir para

Jesus a fortuna do Comendador Godinho. Não bastavam ao Senhor

os seus tesouros incontáveis; as sombrias catedrais de

Mármore... E ainda voltava os olhos vorazes para um bule de

prata!

Pendurei nas paredes mais imagens santas, apresentei a Titi

Santos que ela não conhecia: São Telésforo, Santa Secundina,

Santa Restituta, Santa Umbelina, Santa Basilisca, São

Hipácio...

Eu pegava a primeira missa às 7h, corria para a das 9h e no

outro canto da cidade ao meio-dia, depois de uma tarde de

terços e novenas, chegava na casa da Adélia para tirar um

cochilo no sofá... A Adélia começou a ficar distraída,

pensativa... até que um dia parou de me fazer a minha carícia

preferida... a beijoquinha na orelha.

Uma noite, cheguei à sua casa e lá estava um rapaz de

bigodinho louro. Quando cheguei, ela ficou pálida e depois

me apresentou "seu sobrinho Adelino", que já estava de saída.

Nessa noite, me restituiu o beijinho na orelha e a semana

seguinte parecia o mais romântico noivado. Numa dessas tardes

maravilhosas, comendo morangos, Adélia me pediu 8 libras.

Eu fui embora pensando como arranjaria o dinheiro quando

encontrei, andando sorrateiramente naquelas ruas de

perdição, o Justino, o virtuosíssimo tabelião da Titi! Gritei

logo: "boas noites, Justininho!" E na manhã seguinte, fui

lhe pedir o dinheiro, que era para um amigo tísico que nem

para o caldinho tinha... e que estava vivendo num daqueles

cortiços horríveis e eu ia lá rezar e fazer companhia ao

coitado. Assim, consegui o dinheiro da Adelinha.

Pois passados alguns dias, veio a criada da Adélia falar

comigo. Que a Adélia me enganava! Que o Senhor Adelino não

era sobrinho; que assim que eu saía, ele entrava; que as

oito libras tinham sido para o Adelino comprar roupas

novas... E que se eu duvidava, que fosse nessa noite, depois

de uma hora, bater à porta da Adélia!

Pedi autorização à Titi para ficar até mais tarde servindo

de enfermeiro ao meu amigo tísico. À uma hora estava na porta

de Adélia. Não seria melhor acreditar nela, tolerar qualquer

coisa sobre o Senhor Adelino, e continuar a receber o meu

beijinho na orelha? Mas a ideia de que ela também beijava a

orelha do Senhor Adelino... me fez bater à porta com força.

Adélia apareceu dizendo que não ia abrir, que estava com

sono. Eu disse: “Abre ou vou me embora para sempre”. E ela

disse:

ADÉLIA

Pois vá à fava. Dê lembranças à titia...

RAPOSO

Como foram tristes os dias seguintes, como foi difícil...

Pedi a todos os Santos que fizessem a Adelinha voltar a me

amar, mas não fui atendido...

Meu amigo Rinchão tinha voltado de Paris, eu ouvi suas

histórias e fiquei pensando que se Titi abrisse sua bolsa

verde e me permitisse ir à Paris poderia esquecer Adélia.

Pois todos os lugares de Lisboa só me traziam lembranças

dela. Mas Titi jamais permitiria que eu fosse para aquele

lugar de treva moral.

Pois no jantar de domingo em casa de Titi o assunto era as

ambições de cada um. O Padre Casemiro não queria mais que o

arrozinho de forno da Titi, acompanhado de amigos. O Justino

gostaria de acabar seus dias em uma chácara, com roseiras e

parreiras... Enfim, chegou a minha vez e eu só conseguia

pensar em Paris. Mas disse que não tinha mais nenhuma ambição

que poder rezar ao lado de Titi... Como o doutor Margaride

insistiu, acabei confessando: “Gostaria de ver Paris”. A

senhora D. Patrocínio, gritou horrorizada

TITI

Cruzes! Ir a Paris!...

RAPOSO

Para ver as igrejas, Titi!

TITI

Não é necessário ir tão longe para ver bonitas igrejas. E lá

em festas com órgão, e um Santíssimo armado com luxo, e uma

rica procissão na rua, e boas vozes, e respeito, imagens de

dar gosto, ninguém bate cá os nossos portugueses!...

RAPOSO

O doutor Margaride apoiou Titi e seu patriotismo, mas disse

que se quisesse saborear coisas grandiosas da nossa santa

religião iria à terra Santa, ia ver Jerusalém e o Jordão...

Que linda viagem! E o Padre Piheiro rosnou baixo, e como

ciciando uma Oração.

PADRE PINHEIRO

Sem contar que o nosso Senhor Jesus Cristo vê com grande

apreço, e muito agradece, essas visitas ao seu Santo

Sepulcro.

JUSTINO

Até quem lá vai tem perdão de pecados. Não é verdade, Padre

Pinheiro? Eu assim li no Panorama... Vem-se de lá limpinho

de tudo!

PADRE PINHEIRO

Ah, Justino, não só para si, mas para uma pessoa querida de

família, piedosa, e comprovadamente impedida de fazer a

jornada...

RAPOSO

Margaride inspirado, batendo-me com força nas costas

MARGARIDE

Por exemplo! Assim para uma boa Titi, uma Titi adorada, uma

Titi que tem sido um anjo, toda virtude, toda

generosidade!...

RAPOSO

Assim que no dia seguinte, Titi me dá a notícia:

TITI

Teodorico! Estou decidida a que alguém que me pertença, e

que seja do meu sangue, vá fazer pela minha intenção uma

peregrinação à Terra Santa... Assim, vais a Jerusalém e a

todos os divinos lugares. Escusas de me agradecer; é para

meu gosto, e para honrar o túmulo de Jesus Cristo, já que eu

lá não posso ir...

RAPOSO

E onde era Jerusalém? Fui buscar o atlas, e comecei a

procurar... Lá estava, no meio do nada... Mas comecei a

pensar que para chegar até lá teria que passar por regiões

mais animadas. Talvez Andaluzia... Nápoles... Grécia... E a

viagem foi toda preparada! Passagens, roupas, remédios... No

dia anterior à partida, no jantar, eu perguntei quais

lembranças os amigos gostariam de receber da Terra Santa. E

foi aí que Titi disse:

TITI

Se entendes que mereço alguma coisa, pelo que tenho feito

por ti, desde que morreu tua mãe, já educando-te, já

vestindo-te, já dando-te égua para passeares, já cuidando da

tua alma, então traz-me desses santos lugares uma santa

relíquia, uma relíquia milagrosa que eu guarde, com que me

fique sempre apegando nas minhas aflições e que cure as

minhas doenças.

(E pela vez primeira, depois de cinquenta anos de aridez,

uma lágrima breve escorregou no carão da Titi, por sob os

seus óculos sombrios.)

LOCUÇÃO

CAPÍTULO 2

RAPOSO

Logo em Malta conheci meu companheiro de viagem, o Doutor

Topsius, alemão, Doutor pela Universidade de Bonn, sócio do

Instituto Imperial de Escavações Históricas, que fazia a

viagem para colher notas para seus livros. A sabedoria do

meu amigo era hereditária, seu avô era um naturalista e

escreveu um famoso tratado que assombrou a Alemanha: oito

volumes sobre a Expressão fisionómica dos Lagartos.

Como tínhamos o mesmo itinerário, resolvemos dividir o

quarto, além da companhia, diminuímos as despesas. Só

conservo recordações elevadas do Topsius. Raramente

compreendia o que ele dizia, com meu singelo intelecto de

bacharel em leis, mas tinha certeza que eram sempre palavras

plenas de saber. Ficou me devendo seis moedas; mas isso é

coisa sem importância, perto do muito que aprendi com ele.

Uma coisa apenas me desagradava nele, o hábito de usar da

minha escova de dentes.

Chegando a Alexandria nos hospedamos no Hotel das Pirâmides,

que tinha um funcionário português, o Alpedrinha. Foi ele

que me indicou os lugares da cidade onde podia rezar e

amar... Assim conheci a Miss Mary, uma inglesa que vendia

luvas e flores de cera. Eu a chamava de Maricoquinhas e não

desgrudamos durante toda a minha permanência no Egito. Para

não me afastar do calor das suas saias, eu renunciei a ver

o Cairo, o Nilo, e a eterna Esfinge.

Ela jantava sempre conosco no Hotel das Pirâmides; e Topsius

recitava versos de Goethe e nos contava das festas da velha

Alexandria. Na véspera da minha partida, prometendo que viria

vê-la no caminho de volta, apertei a minha Marocoquinha e

disse ao seu ouvido: rechonchudinha; riquinha! E comecei a

pensar que, mal a Titi morresse e fosse meu o seu ouro, eu

poderia ir para lá e viver ao lado da minha luveira, vestido

de turco, livre de todas as inquietações da civilização.

Na manhã seguinte, já com tudo pronto para a partida, o

Alpedrinha avisa que ficou roupa enrolada nos lençóis da

cama. Era a camisa de dormir da Mary, e ela, num rasgo

poético, me deu para que eu dormisse ao lado da roupa como

se fosse com ela. E ainda me fez uma dedicatória...

MARY

"Ao meu Teodorico, meu portuguesinho valente, em lembrança

do muito que gozamos! Assinado:M.M.”

RAPOSO

Eu já tinha fechado as malas, Topsius me apressando, lágrimas

escorrendo dos meus olhos, então Maricoquinhas pegou uma

folha de papel pardo; apanhou do chão uma fita vermelha; e

as suas habilidosas mãos de luveira fizeram um embrulho

redondo, cómodo, que pus debaixo do braço, apertando com

paixão.

No caminho, Topsius falava dos lugares por onde passávamos,

mas eu não prestava atenção às suas aulas. Depois que

embarcamos, assim que pude, me joguei na minha cama e chorei

sobre o embrulhinho de papel pardo...

Ainda no mar, numa tarde, com os olhos fechados tive a

impressão de sentir o chão. Estava ao lado Adélia e de dentro

do pacotinho saiu a Mary e eu ia andando com as duas, quando

veio se juntar a nós um homem nu, enorme, de olhos vermelhos

e com um rabo que fazia no chão um barulho de cobra que anda

por folhas secas. Percebi quem era, mas não me importei. A

Adélia olhava seus músculos admirada. Até o diabo serve?

Chegamos ao alto da montanha onde havia 3 cruzes e o diabo

disse:

DIABO

A do meio é a de Jesus e chegamos a tempo para saborear a

Ascensão.

RAPOSO

E de fato a cruz do meio, como um arbusto que vento arranca,

começou a subir, engrossando, atravancando o céu. Bandos de

anjos puxavam, de cima. Outros, de baixo, empurravam, todos

com muito esforço. Um ancião de barba branca comandava a

Ascensão.

DIABO

Mais outro deus! Mais outra religião! E esta vai espalhar em

terra e céu um inenarrável tédio.

RAPOSO

E descendo a colina, o diabo ia me falando dos cultos, das

festas, das religiões que floresciam na sua mocidade. Toda

esta costa estava atulhada de deuses. Uns deslumbravam pela

perfeição da sua beleza, outros pela complicação da sua

ferocidade. E me falou da Babilônia, do Egito, da Grécia...

DIABO

Mas apareceu este carpinteiro de Galileia, e logo tudo

acabou! A face humana tornou-se para sempre pálida, cheia de

mortificação; uma cruz escura, esmagando a terra.

RAPOSO

Vendo Lúcifer triste, eu procurava consolá-lo: "Deixe estar,

ainda há de haver no mundo muito orgulho, muita prostituição,

muito sangue, muito furor!" E distraído, conversado com

Satanás, estava agora em Lisboa. E ouvi de repente ao meu

lado um berro:

TITI

Olha o Teodorico com o Porco-Sujo!

RAPOSO

A Titi, querendo me espancar com seu livro de missa!

Acordei, coberto de suor. Tínhamos chegado à Palestina.

Na confusão da descida do barco, o embrulhinho da Mary caiu

das minhas mãos numa escada e quase foi para água, mas foi

salvo por uma religiosa, que o acomodou junto ao seu terço.

Nos juntamos ao nosso guia, Paulo Potes e fomos para o Hotel

do Mediterrâneo, em Jerusalém. Eu abri o guarda roupa como

se abre um relicário para guardar o meu embrulhinho bendito.

E olhando pelas janelas, disse: Isto é um horror, Topsius!

E nem um passeio, nem um bilhar, nem um teatro! Nada! Olha

que cidade para viver Nosso Senhor!

TOPSIUS

Sim! No tempo dele era mais divertida.

RAPOSO

Descemos para comer. Eu estava remexendo uma sopinha sem

graça quando entrou uma mulher maravilhosa, que logo iluminou

todo o refeitório... Topsius comparou-a à fortíssima deusa

Cibele. Ao lado de Cibele, acomodou-se um Hércules de barbas

grisalhas, fazendo ranger a cadeira com seu peso, que só ao

desdobrar o guardanapo, revelou a onipotência do dinheiro e

o hábito de mandar.

Depois de comer, subi para me preparar, íamos visitar o

sepulcro de Jesus. E vi, saindo do quarto ao lado do meu a

maravilhosa Cibele. Quando nos encontramos com Pote eu não

queria saber da casa de Pilatos, mas tudo que sobre ela, já

que o guia deles era amigo do nosso e já haviam conversado...

Chegamos ao Santo Sepulcro. Tinha um monte de vendedores,

gritando, oferecendo relíquias, rosários, cruzes,

escapulários, tábuas aplainadas por São José, medalhas,

bentinhos, frasquinhos de água do Jordão, caroços de azeitona

do Monte das Oliveiras! E na porta do sepulcro de Cristo,

onde a Titi tinha me recomendado que entrasse rastejando e

rezando tive que esmurrar um malandrão que se pendurou em

mim, insistindo que comprasse um pedaço de madeira da arca

de Noé! E foi praguejando que entrei no santuário sublime

onde a cristandade guarda o túmulo do seu Cristo.

Chegamos ao túmulo e eu procurava na multidão de peregrinos

a minha Cibele... Seguindo a procissão, chegamos à Pedra do

Calvário. Um arquidiácono grego gritou:

ARQUIDIÁCONO

"Nesta rocha foi cravada a cruz! A cruz! Miserere!”

RAPOSO

As rezas ficaram mais ardentes, assim como os soluços. E os

diáconos passaram rapidamente grandes sacos de veludo, onde

os fiéis depositavam suas oferendas.

Terminada a visita, voltamos para o hotel, Topsius registrou

suas impressões e foi dormir. Eu já estava na cama quando

ouvi o barulho da água sendo derramada na banheira no quarto

ao lado. Corri, colei a cara na parede e fui ouvindo todos

os rumores íntimos de um longo banho: o espremer da esponja;

o fofo esfregar da mão cheia de espuma de sabão...

Não resisti; descalço e de ceroulas, saí para o corredor e

olhei pelo buraco da fechadura. Enxerguei uma toalha e um

roupão vermelho. E agachado esperava que ela passasse nua

quando, atrás de mim, uma porta rangeu e um clarão banhou a

parede. Era o pai dela chegando...

Vagarosamente, calado, com método, o Hércules pousou a vela

no chão, ergueu a sua rude bota e me acertou. Depois,

tranquilamente, apanhou o seu castiçal. Eu não queria

escândalos na terra santa... Ah, se estivéssemos em Lisboa

ele ia ver! Comia o fígado dele! E muito digno, coxeando,

voltei para o quarto para fazer fricções de arnica. No outro

dia não fui com Topsius ao Monte das Oliveiras por causa das

dores, nem desci ao refeitório, para evitar encontros

desagradáveis. Já de noite, estava pronto para as festas e

Pote seria nosso guia!

Fomos ver a Flor de Jericó fazer a sua Dança da Abelha. Mas,

chegando lá soubemos que ela tinha ido dançar para um

príncipe alemão, o que me deixou muito ofendido. A dona da

casa, em substituição, nos trouxe uma circassiana, porém,

quando o véu que cobria seu rosto foi levantado, eu quis ir

embora imediatamente. Mas a dona da casa ainda quis nos

mostrar a sua secreta maravilha, uma virgem das margens do

Nilo, da alta Núbia, bela como a noite mais bela do Oriente.

Ela estava muito assustada e eu tentei lhe dizer palavras

doces, mas ela não entendia. Imaginando então despertar o

seu coração com a chama do meu, puxei-a para mim,

lascivamente. Ela fugiu; encolheu-se toda a um canto, a

tremer; e deixando cair a cabeça entre as mãos, começou a

chorar, longamente.

E depois dessa noite terrível, com saudades da minha Lisboa,

cheguei no hotel e escrevi uma linda carta para Titi. Cedo,

no dia seguinte, partimos para o Jordão e Topsius foi me

contando os detalhes da vida de São João Batista. Depois de

me banhar no Rio Jordão, acampamos por lá.

E no outro dia, não acompanhei Topsius, caminhei sozinho,

nas redondezas do nosso acampamento. E foi nessa caminhada

que me deparei com uma árvore horrenda, com galhos cheios de

espinhos e pensei que devia ser dali que saiu a coroa de

espinhos do nosso senhor... Eu me encontrava certamente

diante de uma árvore ilustre! E claro, seria aquela a

relíquia que eu levaria à Titi! Mas de repente pensei... E

se realmente uma virtude transcendente circulasse nas fibras

daquele tronco? E se a Titi começasse a melhorar do fígado,

por causa desse galho espinhoso? Resolvi interroga-la:

"Anda, monstro, diz! És tu uma relíquia divina com poderes

sobrenaturais? Ou és apenas um arbusto grotesco?” O monstro

não falou. Mas senti um pressentimento de que a Titi ia

morrer logo. Fui procurar o meu amigo e contei a Topsius o

meu achado, a minha incerteza...

TOPSIUS

Um arbusto de espinhos? Banalíssimo em toda a Síria!

RAPOSO

E foi ver pessoalmente. Eu quis saber: “a verdadeira coroa

de espinhos teria sido tirada daqui, deste tronco? A Titi

fazia tanto gosto que fosse daqui, Topsius! A Titi é tão

rica!...” Então este sagaz filósofo compreendeu que há razões

de família como há razões de Estado, e foi sublime. Estendeu

a mão por cima da árvore, com a garantia da sua ciência, e

disse:

TOPSIUS

D. Raposo, pode, pois, afiançar à senhora sua tia, da parte

de um homem que a Alemanha escuta em questões de crítica

arqueológica, que o galho que lhe levar daqui, arranjado em

coroa, foi o mesmo que ensanguentou a cara de Jesus de

Nazaré.

RAPOSO

Arranquei um galho e Pote trançou uma coroa. Para não

ficarmos carregando aqueles incômodos espinhos, Pote

envolveu a coroa com algodão macio e depois fez um pacotinho

com papel pardo, fechando com uma fita vermelha.

LOCUÇÃO

CAPÍTULO 3

TOPSIUS

Teodorico, ergue-te, e parte para Jerusalém! As éguas estão

seladas! Amanhã é Páscoa! Ao alvorecer devemos chegar às

portas de Jerusalém! Vamos cear com meu amigo Gamaliel.

RAPOSO

Sonolento, obedeci. Saímos à meia-noite. E tudo ao redor me

parecia diferente. Que mudança se fez em mim, que mudança se

fez no Universo? Paramos numa antiga estalagem, em que homens

se vestiam e falavam de uma maneira diferente.... Encontramos

muita gente no caminho, inclusive um leproso, que perguntou

qual era em Jerusalém o Rabi que curava. De repente, vi

assombrado, aparecerem soldados romanos, desses que tantas

vezes eu tinha amaldiçoado em imagens da Paixão!

Subimos o Monte das Oliveiras onde muita gente estava

acampada para celebrar a Páscoa. Os peregrinos não paravam

de chegar e os mais fortes traziam, apoiados nas costas,

presos pelos braços, os doentes que procuravam ansiosamente

as muralhas da Cidade Santa, onde todo o mal se cura.

Orientado por Topsius, olhava as belezas da cidade,

maravilhado: Tu és o palácio do Senhor, Jerusalém!

De repente, quase ao meu lado um homem brandindo uma espada,

saltou para cima de uma pedra e gritou desesperadamente:

HOMEM COM ESPADA

“Homens de Galileia, Rabi Jeschoua foi preso!”

TOPSIUS

D. Raposo o Homem foi preso, e compareceu já diante do

Sanedrim!... Depressa, depressa, amigo, a Jerusalém, à casa

de Gamaliel!

RAPOSO

Lá chegamos, comemos e logo Topsius conversava com os amigos

sobre a situação. Gamaliel dizia:

GAMALIEL

Sim esta noite, em Betânia, Rabi Jeschoua foi preso... Mas

Pôncio teve um escrúpulo... Não quis julgar um homem de

Galileia, que é súbdito de Antipas Herodes... E como o

tetrarca veio à Páscoa a Jerusalém, Pôncio mandou o Rabi à

sua morada...

TOPSIUS

Cousa estranha! Pôncio escrupuloso, Pôncio formalista! E

desde quando respeita Pôncio a judicatura do tetrarca?

Quantos pobres galileus não fez ele matar sem licença do

tetrarca, quando foi da revolta do aqueduto.

GAMALIEL

O romano é cruel, mas escravo da legalidade.

RAPOSO

Então Osânias, que estava ouvindo a conversa, disse com um

sorriso mole: “Ou talvez seja que a mulher de Pôncio proteja

o Rabi.” Ele ficou admirado que o doutor ignorasse coisas

tão conversadas no templo, Sempre que o Rabi pregava no

Pórtico de Salomão, Cláudia vinha vê-lo...

E um terceiro homem que estava naquela casa, Gade, protestou:

GADE

Osânias, o Rabi é casto!

RAPOSO

E aí começou uma discussão sobre as fofocas acerca do Rabi

da Galileia... Gamaliel seguiu:

GAMALIEL

Oh Gade, aos trinta anos o Rabi não é casado! Qual é o seu

trabalho? Onde está o campo que lavra? É claro que vive do

que lhe ofertam essas mulheres...

RAPOSO

Um argumentava que Jesus ia contra as escrituras sagradas,

que diziam: "Se pois entre vós aparecer um profeta, um

visionário que faça milagres e queira introduzir outro deus

e chame os simples ao culto desse deus, esse profeta e

visionário morrerá!". Outro dizia que era um traidor da

pátria, não se rebelando contra os romanos. Por um motivo ou

outro, nossos anfitriões julgavam que ele deveria morrer. Só

Gade não atacava o Rabi.

E eu, pensando que poderia ver Jesus pessoalmente, poderia

ouvir uma palavra nova do Cristo, não escrita no Evangelho.

Eu era uma testemunha inédita da Paixão. Tomava-me S.

Teodorico Evangelista! Então, com uma desesperada ansiedade,

eu gritei: “Onde o posso ver? Onde está Jesus de Nazaré, meu

Senhor?” E um escravo, caindo de joelhos aos pés de Gamaliel:

“Amo, o Rabi está no Pretório!” E corremos eu e Topsius para

o tribunal de Pilatos, acompanhados de Gade.

Quando, da galeria, baixei os olhos e vi Jesus, era como se

eu esquecesse os séculos de História e de religião. Eu era

Teodoricus, e aquele, um moço da Galileia com um grande

sonho. E eu presenciei a conversa de Pilatos e Jesus. Ou

melhor, o interrogatório...

PILATOS

És tu então o rei dos judeus?... Os da tua nação trazem-te

aqui!... Que fizeste tu?... Onde é o teu reino?

JESUS

O meu reino não é daqui! Se por vontade do meu pai eu fosse

Rei de Israel, não estaria diante de ti com esta corda nas

mãos... Mas o meu reino não é deste mundo!

PILATOS

Dizes então que és rei... E que vens tu fazer aqui?

JESUS

Eu vim a este mundo testemunhar a verdade! Quem desejar a

verdade, quem quiser pertencer à verdade tem de escutar a

minha voz!

PILATOS

Mas, homem, o que é a verdade?

RAPOSO

Presenciei Pilatos absolver Jesus, num primeiro momento. E,

crédulo, comemorava.

PILATOS

Eu interroguei o vosso preso e não lhe achei culpa que deva

punir o Procurador da Judeia... Esse homem diz apenas coisas

incoerentes, como os que falam em sonhos... Mas as suas mãos

estão puras de sangue... Esse homem é apenas um visionário.

RAPOSO

Presenciei também a pressão sobre Pilatos, as ameaças. Até

sua palavra final, quando lavou suas mãos, deixado a decisão

ao povo:

PILATOS (efeito: som de água, lavando as mãos)

Quereis a vida desse visionário? Que me importa? Tomai-a...

Não vos basta a flagelação? Quereis a cruz? Crucificai-o...

Mas não sou eu que derramo esse sangue!

RAPOSO

Depois de assistir a tudo, cansado, comecei a pensar se eu

ia ficar para sempre nesta cidade? Se tinha perdido

irremediavelmente a minha individualidade para me tornar um

homem da Antiguidade? E, considerando este retrocesso nos

tempos, se voltasse à minha pátria, o que eu encontraria?

Seria pastor nos montes? Varreria as escadarias do templo?...

Miséria incomparável!

Caminhamos ainda pela cidade, fomos ao templo, vimos rezas,

sacrifícios, brigas e lindas mulheres. Até que o Topsius me

disse:

TOPSIUS

É quase a nona hora, D. Raposo!... E temos de ir fora da

Porta Judiciária, a um sítio agreste que se chama o Calvário.

RAPOSO

Empalideci. E me pareceu que minha alma não obteria nenhuma

vantagem espiritual, por irmos contemplá-lo sofrendo; era

apenas um tormento para a nossa sensibilidade. Mas, submisso,

segui o meu amigo. Chegando lá perto, encontramos Gade, que

tinha defendido Jesus na casa de Gamaliel. Quando Topsius

perguntou pelo Rabi, ele respondeu

GADE

Sofreu muito! Sofreu quando lhe trespassaram as mãos... Mais

ainda ao erguer da cruz... E repeliu primeiro o vinho de

misericórdia, que lhe daria a inconsciência... O Rabi queria

entrar com a alma clara na morte porque chamara!... Mas José

de Ramata e Nicodemo, estavam lá vigiando. Ambos lhe

lembraram as coisas prometidas uma noite em Betânia... O

Rabi então tomou a malga das mãos da mulher de Rosmofim, e

bebeu.

RAPOSO

E olhando nos olhos de Topsius, disse:

GADE

Nos encontramos mais tarde, depois da ceia na casa de

Gamaliel.

RAPOSO

Pouco depois, começou um rumor em volta das cruzes, pois era

preciso baixar os condenados antes do anoitecer. Um centurião

mandou que os tirassem das cruzes e perguntou quem tinha

reclamado o corpo de Jesus. E José de Ramata lhe mostrou o

pergaminho que trazia e disse: “Eu, que o amei em vida!” E

saiu de lá levando o corpo de Jesus para que tivesse um

funeral digno.

Voltamos para a casa de Gamaliel para a ceia pascal. E depois

fomos ao terraço, onde nos encontrou Gade. Desta vez, olhou

no fundo dos meus olhos:

GADE

Todas as coisas esperadas se estão cumprindo... Agora, dizei!

Sentis o coração forte para acompanhar Jesus, e guardá-lo

até ao oásis de Engada?

RAPOSO

Eu não sabia de nada do que estava acontecendo, mas Topsius

respondeu:

TOPSIUS

Sim, talvez... O nosso coração é forte, mas... Além disso

não temos armas!

GADE

Vinde comigo! Passaremos por casa de alguém que nos dirá as

coisas que convém saber, e que vos dará armas!...

RAPOSO

E então Gade nos contou como José o tiraria em breve do

túmulo e o faria despertar do desmaio em que se encontrava

por causa do vinho narcotizado. Fomos encontrar o homem que

nos daria as armas para escoltarmos Jesus. Mas quando

chegamos, as notícias não eram boas. O homem disse: “São

coisas mais altas do que podemos entender.” O plano estava

perfeito, o Rabi chegou a acordar, mas não resistiu. Então,

seu corpo foi enterrado numa caverna.

TOPSIUS

Teodorico, a noite termina; vamos partir de Jerusalém!... A

nossa jornada ao passado acabou... A lenda inicial do

cristianismo está feita, vai findar o mundo antigo!

RAPOSO

Antes de deixarmos Gade chorando e voltarmos para o nosso

acampamento e para o nosso século, o doutor explicou:

TOPSIUS

Depois de amanhã, quando acabar o Sabá, as mulheres de

Galileia voltarão ao sepulcro onde deixaram Jesus

sepultado... E encontram-no aberto, encontram-no vazio!...

"Desapareceu, não está aqui!..." Então Maria de Magdala,

crente e apaixonada, irá gritar por Jerusalém — "ressuscitou,

ressuscitou!" E assim o amor de uma mulher muda a face do

mundo, e dá uma religião mais à humanidade!

LOCUÇÃO

CAPITULO 4

RAPOSO

No dia seguinte, todos os lugares por que passamos me

pareciam sem graça. Nenhuma das maravilhas que o alegre Pote

nos mostrava me empolgava. Eu, Raposo e bacharel, no farto

gozo de todos os confortos da civilização, tinha saudade

dessa bárbara Jerusalém, que habitei um dia!

Voltamos finalmente para o nosso hotel. Apalpei a cama fofa

e fiz uma carícia no embrulinho da Mary no fundo do armário.

Pote me trouxe a relíquia de Titi, que deixei sobre a cômoda

entre dois castiçais, enquanto planejava como encaixotá-la.

Queria uma madeira santa e Topsius aconselhava o cedro do

Líbano — tão belo que, por ele, Salomão fez aliança com

Hirão, Rei de Tiro. Pote lembrou o honesto pinho de Flandres

benzido pelo patriarca de Jerusalém. Eu diria à Titi que os

pregos para o pregar tinham pertencido à Arca de Noé...

Tramamos estas coisas, cervejando no Sinai.

Nos dias seguintes, eu organizei e embrulhei as outras

pequenas relíquias, enquanto imaginava minha volta para

Lisboa. Titi, com fios de baba no queixo, tremendo diante da

grande relíquia que eu, modesto, lhe oferecia. Então, na

presença de testemunhas celestes, de São Pedro, da nossa

Senhora do Patrocínio, de São Casimiro e de São José, ela me

chamava “seu filho, seu herdeiro!" E no outro dia começava

a ficar amarelada, a definhar, a gemer...

O que eu faria, depois que a velha morresse? Faria uma alta

justiça: ia correr ao oratório, apagar as luzes, desfolhar

os ramos, abandonar os santos à escuridão e ao bolor! Sim,

todo eu, Raposo e liberal, necessitava a desforra! Os contos

do comendador Godinho sendo meus; e libertado da asquerosa

senhora, eu já não devia aos seus santos nem rezas nem rosas!

Depois de cumprida esta obra de justiça filosófica, eu corria

para Paris, às mulherinhas!

No dia seguinte, já na porta, com tudo pronto para partir,

o moço do hotel veio correndo dizendo que esquecemos um

embrulho. Logo reconheci pelo papel pardo e pela fita

vermelha que era a camisa de dormir da Mary! E lembrei que,

arrumando as malas, não tinha visto o embrulho no guarda-

roupa. O empregado do hotel contou que, varrendo o quarto,

achou o pacotinho cheio de pó detrás da cómoda. Pensei que

o empregado mesmo, limpando outro dia, devia ter tirado do

guarda roupa e deixado cair ali. E teria sido melhor ficar

lá esquecida, porque eu não podia levar para Lisboa aquela

lembrança...

No meio da viagem, a égua de Topsius avistou uma fonte e

deixou a caravana, trotou para a água. Eu fui atrás para não

abandonar o meu amigo sozinho e já estava pensando que era

um bom lugar para me desfazer discretamente do embrulhinho

da Mary quando ouvi um choro. Era uma mulher com uma criança

no colo, e o nosso Pote falou com ela e soube da sua miséria.

Dei para ela o embrulhinho com a camisa de dormir e Pote lhe

explicou que poderia vender para alguma pecadora aquele

vestido de luxo, de amor e de civilização.

Ao chegarmos no Hotel de Josafate, na velha Jafa, para minha

surpresa encontramos lá o Alpedrinha! Ele me contou que

estava já entediado de viver em Alexandria por isso estava

se aventurando numa nova vida. Perguntei por Maricoquinhas

e ele me contou que ela estava em Tebas. Tinha ido acompanhar

um fotógrafo italiano, posando entre as ruínas. E estava

babadinha por ele! Nessa conversa, suspeitei de um suspiro

de Alpedrinha... Então ele confessou que não só já tinha

ficado com a Mary, como ela também tinha dado para ele uma

peça de roupa como lembrança...

Finalmente embarcamos

TOPSIUS

Adeus, adeus para sempre, terra da Palestina!

RAPOSO

Adeusinho, adeusinho, coisas de religião!

LOCUÇÃO

CAPÍTULO 5

RAPOSO

Duas semanas depois de me despedir do meu amigo Topsius,

avistei entre as árvores sem folhas o portão da casa da Titi!

E me deleitava com a certeza da gloriosa mudança que se

fizera na minha fortuna doméstica e na minha influência

social. Até aí, quem era eu na casa da senhora Dona

Patrocínio? O menino Teodorico que, apesar do seu diploma de

doutor e das suas barbas de Raposão, não podia mandar selar

a égua sem implorar licença à Titi... E agora? O nosso Doutor

Teodorico, que ganhara, no contato santo com os lugares do

Evangelho, uma autoridade quase pontificial!

Titi me recebeu muito bem e quando eu mostrei a caixa que

continha sua relíquia, as mãos da hedionda senhora tremeram

ao tocar aquelas tábuas que continham o princípio miraculoso

da sua saúde e o amparo das suas aflições. Depois, no

oratório, fui perfeito. Não ajoelhei, de longe fiz ao Jesus

de ouro, um aceno familiar, como a um velho amigo com quem

se tem segredos.

A Titi queria saber que relíquia era, para as velas, para o

respeito... “Logo se verá. À noite é que se desencaixotam as

relíquias... Foi o que me recomendou o patriarca de

Jerusalém... Em todo o caso acenda a Titi mais quatro luzes,

que até a madeirinha é santa!”

No jantar tinha uma travessa de arroz-doce com as minhas

iniciais, debaixo de um coração e de uma cruz, desenhadas à

canela pela Titi. E eu narrei a minha santa jornada.

TITI

Ai que santo! Ai que santo ouvir estas coisas! Jesus, até dá

uns gostinhos por dentro!...

RAPOSO

E, sem moderação, eu falava da minha intimidade com o céu.

Dizia: — "Uma tarde, no Monte das Oliveiras, estando a rezar,

passou de repente um anjo..." E depois: — "Fui ao túmulo do

nosso Senhor, abri a tampa, gritei para dentro..." E falei

das minhas rezas e jejuns. No deserto, onde viveu São João,

me sustentei, como ele, de gafanhotos...

TITI

Ai que ternura, ai que ternura, os gafanhotinhos!... E que

gosto para o nosso rico São João!... Como ele havia de ficar!

RAPOSO

E me perguntou se eu tinha trazido orações que curavam

doenças, porque ela andava sofrendo de câimbras. “Trago uma

que não falha em cãibras, que me deu um monge meu amigo a

quem costuma aparecer o Menino Jesus...” Disse e acendi um

cigarro. Eu nunca tinha ousado fumar diante da Titi!

Depois, perguntei sobre os amigos e Titi me falou que o Padre

Casimiro estava de cama, com as pernas inchadas, que estava

fazendo muita falta. E que o sobrinho dele, Padre Negrão,

andava fazendo companhia a Titi. Vinha jantar toda noite com

ela. Resmunguei com autoridade: “Lá em Jerusalém os padres

só vêm jantar aos domingos... Faz mais virtude.”

Fui me arrumar para receber os amigos que chegariam em breve

para me ver. E pensando que agora nada me separava da

herança, apenas a carne mesma da velha, habitada por uma

teimosa chama vital! Então não me contive. Atirei a alma

para as alturas, gritei desesperadamente, em toda a ânsia do

meu desejo: “Oh Santa Virgem Maria, faz que ela rebente

depressa!”

Desci e na sala estava o Padre Pinheiro, Margaride, Justino

e o tal Padre Negrão. E assim, fui contando todos os detalhes

da minha santa viagem. Até que os amigos se lembraram de

perguntar das lembrancinhas... A água do Jordão, o raminho

do Monte das Oliveiras... Fui no quarto buscar e quando

voltei ouvi o inestimável Doutor Margaride:

MARGARIDE

Dona Patrocínio, eu não lho quis dizer diante dele ... Mas

isto agora é mais do que ter um sobrinho e um cavalheiro!

Isto é ter em casa um amigo íntimo do nosso Senhor Jesus

Cristo!...

RAPOSO

Ah... bem, para a Titi, não lhe parecia delicado para Nosso

Senhor, que se repartissem estas relíquias mínimas antes de

lhe ser entregue a ela, como senhora e como tia, na capela,

a grande relíquia...

Assim, fomos todos ao oratório, que resplandecia. O Cristo,

de ouro maciço, suava ouro, sangrava ouro, reluzia

preciosamente. Coloquei o caixote na almofada de veludo e

solenemente, falei: antes de tudo, parece-me bem explicar

que tudo cá nesta relíquia, papel, fita, caixotinho, pregos,

tudo é santo! Assim por exemplo os preguinhos... são da Arca

de Noé... até ainda enferrujados... E tudo do melhor, tudo

a escorrer virtude! E agora, para que cada um esteja

prevenido e possa fazer as orações que mais lhe calharem,

devo dizer o que é a relíquia... Tossi, cerrei os olhos: “É

a coroa de espinhos!”

A Titi, com um rouco gemido caiu abraçando o caixote nos

braços trêmulos. Mas o Margaride coçava pensativamente o

queixo austero; Justino sumiu na profundidade dos seus

colarinhos; e o ladino Negrão escancarava para mim uma bocaça

de onde saía assombro e indignação!

Meu Deus! Magistrados e sacerdotes mostravam incredulidade!

Isso era péssimo para mim, eu comecei a tremer e suar. Então,

o Padre Pinheiro, muito sério, convicto, se debruçou, apertou

a mão da Titi para felicitá-la pela posição religiosa a que

se tinha elevado pela posse daquela relíquia. E cedendo à

forte autoridade litúrgica de Padre Pinheiro, todos, em fila,

cumprimentaram a senhora.

De posse das ferramentas adequadas abri o caixote e tirei de

lá o embrulhinho. “É à minha querida Titi, só a ela, que

compete, pela sua muita virtude, desembrulhar o

pacotinho!...” E ela, com a gravidade de um pontífice, com

o cuidado de quem teme magoar um corpo divino, foi desfazendo

uma a uma as dobras do papel pardo... Uma brancura de linho

apareceu... A Titi puxou e por entre os santos, aos pés da

cruz se espalhou, com laços e rendas, a camisa de dormir da

Mary!

Em todo o seu luxo, todo o seu impudor, com cada prega

cheirando a pecado! E pregado nela por um alfinete, o

bilhete:

MARY

"Ao meu Teodorico, meu portuguesinho valente, em lembrança

do muito que gozamos! Assinado:M.M.”

RAPOSO

Nem sei bem o que aconteceu porque desmaiei. Mas distingui

a bota do Negrão chutando a camisa para fora do oratório:

NEGRÃO

Escárnio! Camisa de prostituta! Profanação do oratório!

RAPOSO

Titi cuspiu em mim:

TITI

Porcalhão!

RAPOSO

Vicência surgiu na minha frente: “Menino! A senhora manda

dizer que saia imediatamente para o meio da rua, que o não

quer nem mais um instante em casa... se não sai já para a

rua, a senhora diz que manda chamar um polícia!”

RAPOSO

Peguei minha escova de dentes, um chinelo, uma das malas e

saí. Já na rua percebi que a mala era a das relíquias

menores... Como tinha ainda algum dinheirinho no bolso,

hospedei-me em um hotel barato.

No dia seguinte, no restaurante do hotel conheci um

cavalheiro, o Senhor Lino. Começamos a conversar, falei da

minha viagem a Jerusalém e pouco depois, estava negociando

um vidrinho de água do Jordão... Providencialmente, me tornei

vendedor de relíquias.

Em pouco tempo eliminei o Sr. Lino que servia de

intermediário e além de vender diretamente, já produzia eu

mesmo os vidrinhos de água batismal, colhidas no “rio

Jordão”... E todas as relíquias tinham um certificado de

autenticidade, com a assinatura do “Patriarca de Jerusalém”.

Além disso, a notícia da minha viagem à terra santa dava

mais credibilidade às relíquias.

Mas, em pouco tempo, os negócios começaram a ficar mais

difíceis e fui procurar o Sr. Lino para tentar retomar nossa

parceria.

SR LINO

Foi Vossa Senhoria que estragou o comércio!... Está o mercado

abarrotado, já não há maneira de vender nem um cueirinho do

Menino Jesus, uma relíquia que se vendia tão bem! O seu

negócio com as ferraduras é perfeitamente indecente...

Perfeitamente indecente! É o que me dizia noutro dia um

capelão, primo meu: "São ferraduras de mais para um país tão

pequeno!..." Quatorze ferraduras, senhor! É abusar! Sabe

Vossa Senhoria quantos pregos, dos que pregaram Cristo na

cruz, Vossa Senhoria tem impingido, todos com documentos?

Setenta e cinco, senhor!... Não lhe digo mais nada... Setenta

e cinco!

RAPOSO

Estava nessa situação difícil quando recebi uma carta do

Justino:

JUSTINO

Meu querido amigo. É o meu penoso dever, que cumpro com

lágrimas, participar-lhe que a sua respeitável tia e a minha

senhora inesperadamente sucumbiu...

RAPOSO

Ansiosamente saltei através das linhas, tropeçando sobre os

detalhes.

JUSTINO (Efeito de saltando linhas, passando rápido)

"congestão dos pulmões... Sacramentos recebidos... Todos a

chorar... O nosso Negrão!..." "do testamento da virtuosa

senhora, consta que deixa ao seu sobrinho Teodorico o óculo

que se acha pendurado na sala de jantar..."

RAPOSO

Inacreditável! Fui conversar com o Justino pessoalmente para

saber dos detalhes... A Vivência recebeu as roupas de cama.

Três contos de réis e o relógio para o Margaride. O Casimiro,

à beira da morte, tinha ficado com as melhores pratas, além

de uma casa. O Padre Pinheiro recebeu um prédio. A deliciosa

quinta do Mosteiro, a mobília do Campo de Santana e o Cristo

de ouro para o Padre Negrão. E eu tinha como herança a luneta

do Comendador Godinho. Justino considerou filosoficamente:

JUSTINO

Para ver o resto da herança de longe!

RAPOSO

Durante horas revolvi o desejo de ultrajar o cadáver da Titi

cuspindo naquela cara feia. Pedi às árvores que recusassem

sombra à sua sepultura! Invoquei o demônio: "Dou-te a minha

alma se torturares incansavelmente a velha!" Gritei com os

braços para as alturas: "Deus, se tens um céu, escorraça-a

de lá!" Decidi escrever comunicados nos jornais, contando

que ela se prostituía a um galego no sótão...

E analisando a situação a que tinha chegado, pensei: tudo

isto, por quê? Porque um dia, na estalagem de uma cidade da

Ásia, dois embrulhos de papel pardo tinham sido trocados!

Nunca houve zombaria igual da sorte! Oh Deus, me diz! Me

diz, demônio, como, como aconteceu esta troca de embrulhos

que é a tragédia da minha vida?

Enquanto estava com esses pensamentos, bati os olhos no

Cristo crucificado, ele tinha os olhos cravados em mim e

mais abertos, como gozando a derrota da minha vida. — Foste

tu! — gritei, de repente iluminado e compreendendo o

prodígio. Sim, foste tu. E por quê? O que eu te fiz? Já

tiveste devoção mais perfeita? Eu ia à missa todos os

domingos; comia bacalhau todas as sextas-feiras, para te

agradar; passava horas no oratório da Titi, com os joelhos

doloridos...

Olha bem para mim!... Não te lembras de ter visto este rosto

há séculos, quando eras um Rabi, quando eras apenas uma

inteligência criadora e uma bondade ativa, e, portanto,

considerado pelos homens sérios como um perigo social. Nesse

dia houve em Jerusalém um coração que espontaneamente, sem

engodo no céu, nem terror do inferno, estremeceu por ti. Foi

o meu!... E agora me persegues. Por quê?...

De repete, o Cristo deslizou para mim serenamente,

crescendo até o teto, belo e majestoso. Com um berro

caí sobre os joelhos; bati a cara o chão, apavorado. E

então ele disse:

JESUS uma voz repousada e suave (efeito de reverberação)

Quando tu ias ao alto da graça beijar no pé uma imagem — era

para contar servilmente à Titi a piedade com que deras o

beijo; porque jamais houve oração nos teus lábios, humildade

no teu olhar — que não fosse para que a Titi ficasse agradada

no seu fervor de beata. O deus a que te prostravas era o

dinheiro do comendador Godinho. Tu foste ilimitadamente

hipócrita! Tinhas duas existências e só eras verdadeiro para

o céu, quando rogavas a Jesus e à Virgem que rebentassem

depressa a Titi. Justiceiramente aconteceu que o embrulho

que ofertaste à Titi foi aquele que lhe revelava a tua

perversidade! Eu não sei quem fez essa troca dos teus

embrulhos, talvez ninguém; talvez tu mesmo! Os teus tédios

de deserdado não provem dessa mudança de espinhos em rendas;

mas de viveres duas vidas, uma verdadeira e de iniquidade,

outra fingida e de santidade. Tu dizes que eu te persigo!

Não. Eu não construo os episódios da tua vida; são obra das

tuas mãos, eu assisto a eles...

Perguntavas-me, há pouco, se eu me não lembrava do teu

rosto... Eu pergunto-te agora se não te lembras da minha

voz... Eu não sou Jesus de Nazaré, nem outro deus criado

pelos homens... Sou anterior aos deuses transitórios; eles

dentro em mim nascem; dentro em mim duram; dentro em mim se

transformam; dentro em mim se dissolvem; e eternamente

permaneço em torno deles e superior a eles, concebendo-os e

desfazendo-os, no perpétuo esforço de realizar fora de mim

o deus absoluto que em mim sinto. Chamo-me consciência; sou

neste instante a tua própria consciência refletida fora de

ti, no ar e na luz, e tomando perante os teus olhos a forma

familiar, sob a qual, tu, mal-educado e pouco filosófico,

estás habituado a compreender-me... Mas basta que te ergas

e me fites, para que esta imagem resplandecente de todo se

desvaneça.

RAPOSO

E quando levantei os olhos tudo já tinha desaparecido! Então,

atirei as mãos para o céu e bradei: Oh meu Senhor Jesus,

Deus e filho de Deus, que te encarnaste e padeceste por

nós... Mas me calei... Aquela voz ainda ressoava me mostrando

a inutilidade da hipocrisia. Consultei a minha consciência,

que tinha reentrado para dentro de mim e como não acreditava

que Jesus fosse filho de Deus e de uma mulher casada da

Galileia não disse o resto da oração, tornando meus lábios

para sempre verdadeiros.

No outro dia, casualmente, encontrei o meu amigo Crispim,

aquele que no colégio me dava beijos vorazes no corredor, e

me escrevia bilhetinhos à noite. O velho Crispim tinha

morrido; e meu amigo agora cuidava da firma. Conversamos

bastante, falei da minha situação...

CRISPIM

Um dos empregados do escritório começou a fazer versos, a

meter-se com atrizes... É muito republicano, achincalhando

as coisas santas... Enfim, um horror, desembaracei-me dele!

Ora, tu tinhas boa letra. Uma conta de somar sempre saberás

fazer... lá está a carteira do homem, vai lá, são vinte e

cinco mil-réis...

RAPOSO

Com duas lágrimas brotado dos olhos, abracei Crispim & Cia,

que me disse, com uma careta de quem sente um gosto azedo:

CRISPIM

Irra! Que estás muitíssimo feio!

RAPOSO

Fazia meu trabalho com muita dedicação, aprendi muitas

coisas... Até que num sábado à tarde, quando eu ia fechar o

livro de Caixa, Crispim & Cia. parou diante da minha

carteira, risonho:

CRISPIM

Ouve lá, ó Raposão, tu a que missa costumas ir? Eu pergunto

isto porque amanhã vou com a minha irmã à Outra Banda, a uma

quinta nossa, a Ribeira. Ora, se tu não estás muito apegado

a outra missa, venhas à de Santos, às nove; íamos almoçar ao

Hotel Central, e embarcávamos de lá para Cacilhas. Estou com

vontade que conheças minha irmã!...

RAPOSO

Crispim & Cia. era um homem religioso que considerava a

religião indispensável à sua saúde, à sua prosperidade

comercial, e à boa ordem do país. O empregado, que antes

ocupava o meu lugar, se tornou intolerável por escrever

folhetins ultrajando a eucaristia. Eu ia dizer a Crispim &

Cia. que estava tão apegado à missa da Conceição-Nova... Mas

lembrei daquela voz... calei a mentira beata e disse, muito

firme: Olha, Crispim, eu nunca vou à missa... Eu não posso

acreditar que o corpo de Deus esteja todos os domingos num

pedaço de hóstia feita de farinha. Deus não tem corpo, nunca

teve. Te digo isto rasgadamente. Podes fazer comigo o que

quiseres. Paciência!

CRISPIM considerou-me um momento mordendo o beiço

Pois olha, Raposo, calha-me essa franqueza!... Eu gosto de

gente lisa... O outro velhaco, que estava aí a essa carteira,

diante de mim dizia: "Grande homem, o Papa!" E depois ia

para os botequins e punha o Santo Padre de rastos... Pois

acabou-se! Não tens religião, mas tens cavalheirismo... Em

todo o caso, às dez no Central para o almocinho, e à vela

depois para a Ribeira!

RAPOSO

Assim eu conheci a irmã da firma. Chamava-se D. Jesuína;

tinha trinta e dois anos e era zarolha. Mas, desde esse

domingo no campo, os seus cabelos ruivos, o seu peito

suculento, a sua pele, o seu riso... tinham me tornado

pensativo... Foi educada nas Salésias; sabia geografia,

história e todos os reis de França; e me chamava Teodorico-

Coração-de-Leão, por eu ter ido à Palestina.

Agora, aos domingos eu jantava com a família Crispim. Uma

tarde, depois de Crispim louvar a família real e elogiar a

rainha, descemos eu e D. Jesuína ao jardim; e andando

suspirei e murmurei junto ao seu ombro: "Vossa Excelência,

D. Jesuína, é que estava a calhar para rainha, se cá o

Raposinho fosse rei!" Ela, corando, me deu a última rosa do

verão.

Uns dias depois, Crispim & Cia. chegou à minha carteira com

um riso de lealdade e estima:

CRISPIM

Então com quê; rainha, se o Raposinho fosse rei?... Ora,

diga lá o Senhor Raposo. Há aí dentro desse peito amor

verdadeiro à mana Jesuína?

RAPOSO

Crispim & Cia. admirava a paixão e o ideal. Eu ia já dizer

que adorava a senhora D. Jesuína como a uma estrela remota...

Mas recordei a voz... calei a mentira sentimental e disse

corajosamente: Amor, amor, não... Mas acho a sua irmã um

belo mulherão; gosto muito do dote; e havia de ser um bom

marido.

CRISPIM

Dá cá essa mão honrada!

RAPOSO

Casei. Sou pai. Tenho carruagem, a consideração do meu

bairro, a comenda de Cristo. E o Doutor Margaride, que janta

comigo todos os domingos, afirma que o Estado, pela minha

ilustração, as minhas consideráveis viagens e o meu

patriotismo — me deve o título de Barão do Mosteiro. Porque

eu comprei o Mosteiro, quando soube que o insuportável Negrão

decidiu vendê-lo.

Fiquei sabendo pelo Justino que o Negrão tinha herdado tudo

o que a Titi deixou para o Padre Casemiro e agora andava

cuidando com muito carinho do padre Pinheiro, que estava bem

mal... E além de tudo, soube que estava com Adélia!

Voltei para casa, pensativo. Tudo o que eu tinha esperado e

amado, agora era do horrendo Negrão!... E não era por causa

da troca dos meus embrulhos, nem dos erros da minha

hipocrisia. Agora, pai, comendador, proprietário, eu tinha

uma compreensão mais positiva da vida; e sentia bem que tudo

isso aconteceu por me faltar a coragem de afirmar!

Quando no lugar da coroa de espinhos apareceu sobre o altar

da Titi, a camisa da Mary, eu devia ter gritado, com

segurança: "Eis aí a relíquia! Quis fazer a surpresa... Não

é a coroa de espinhos. É melhor! É a camisa de Santa Maria

Madalena!... Deu-ma ela no deserto..."

E logo o provava com esse papel, escrito em letra perfeita:

MARIA MADALENA

Ao meu Teodorico, meu portuguesinho valente, em lembrança do

muito que gozamos!

RAPOSO

“O muito que gozamos" era sobre o meu prazer em mandar à

santa as minhas orações para o céu, e o dela no céu em

receber as minhas orações! E lá brilhavam as suas iniciais:

MARIA MADALENA

Assinado: M.M.

RAPOSO

E tudo isto eu perdi porque no momento me faltou esse

descarado heroísmo de afirmar, esse que, batendo com pé

forte, ou elevando os olhos ao céu, através da universal

ilusão, cria ciências e religiões.

LOCUÇÃO

FIM.

FICHA TÉCNICA DO PROJETO:

Texto original de Eça de Queiros

Adaptação, direção, interpretação e edição: Cristiana

Gimenes

Produção: CRIS CONTA - VESTIBULAR