roteiro para o professor - coletivo leitor · 87 caro professor, o projeto leitura e didatizaÇÃo...

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ROTEIRO PARA O PROFESSOR

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ROTEIRO PARA O PROFESSOR

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Caroprofessor,

Alémdaediçãodostextosintegraisdealgumasdasme-lhores e mais reconhecidas obras das literaturas brasileira,portuguesaeuniversal,osCLÁSSICOS SARAIVAoferecemaoprofessoramplomaterialdeapoiodidáticoparaotrabalhoemsaladeaula.

Cadaobratrazemseucorpooseguinteconteúdo:• Texto integral;• Diários de um Clássico;• Contextualização Histórica;• Entrevista Imaginária.Alémdisso,oleitorrecebe,encartadonoexemplar:• Suplemento de Atividades.Eoprofessor,emseuexemplarofertado,encontraainda:• Suplemento de Atividades com respostas e orientações;• Projeto Leitura e Didatização.OPROJETOLEITURAEDIDATIzAÇÃOéummaterial

didáticobastanteconsistente,configurandoumgrandediferen-cialparaosCLÁSSICOS SARAIVA.

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Aseguir,relacionamoscadaumadessasseções,alémdotextointegraldaobra,definindo-as:

DIÁRIOS DE UM CLÁSSICO

Após a leitura, o aluno mergulha nos DIÁRIOS DE UMCLÁSSICO,queoferecemumroteiropormenorizadodealgumasabordagenspossíveisparacadalivro:

• Por Dentro da Obra: umaabordageminusitadadaobra.• Na Intimidade do Autor:Aspectosdavidadoautor.• Navegando pelo Contexto Literário:Suaobranopanorama

literáriodaépoca.• Passeando pela Cidade:Cenasdacidadedoescritor.• Conhecendo a Obra:Análisedealgunspontosestruturais

daobra,como:–Narrador–Personagens–Foconarrativo–Estrutura–Espaço–Linguagem–Outrasquestõesespecíficasdaobra•Expressões Artísticas:Adaptaçãodaobraporoutrasartes.•Obras:Listadetodasasobrasdoautor.

CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA

Paineldetextosselecionadosquedizemrespeitoaalgumascaracterísticasdeestilodaobra,etambémaoseucontextohistó-ricoeartístico,ajudandoaconstruirumpanoramadaépocaedoambientecultural,históricoeliterárioemqueoautorviveu.

ENTREVISTA IMAGINÁRIA

Conversafictíciacomoescritoremalgummomento-chavedesuavida,comperguntaserespostasimaginadas.

SUPLEMENTO DE ATIVIDADES

Encartecomatividadesparaoalunoresponder,divididonosseguintestópicos:

•Uma Obra Clássica:Atividadessobreaobraeseuvalorli-terário.

•Narrativa:Atividadessobreahistória.

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•Narrador:Atividadessobreotipodenarrador,sobreofoconarrativo.

•Personagens:Atividadessobreoprotagonistaeoutrosper-sonagensdedestaque.

• Intertextualidade: Atividades sobre possíveis relações daobracomoutrosgênerosoutiposdetexto.

•Contextualização Histórica: Atividadesenfocandoostrechosselecionadosnaseçãoespecíficadolivro.

•A Nova do Cadáver – A sua Entrevista Imaginária:Atividadedeproduçãodetextonaqualoalunosimulaasuaprópriaentre-vistacomoautor.

PROjETO LEITURA E DIDATIZAÇÃO

É uma proposta dialógica para o trabalho com literatura,desenvolvida a partir de pressupostos oferecidos pelo professorWilliam Cereja. São traçados possíveis dialogismos entre a obralidaeoutrasobrasafins,sejamelasdaliteraturabrasileiraoues-trangeira,contemporâneasounão.

NoPROJETOLEITURAEDIDATIzAÇÃO,oprofessoren-contraumasériedequestõeseorientaçõesdemodoagarantirodesenvolvimentodehabilidadesde leituraecontribuirparaumareflexãosobrealiteraturaeaculturaemmomentosdiversos,pro-porcionandosituaçõesdeintensotrabalhoeprazerdeaprenderemsaladeaula.

Esseprojetoéapresentadomaisadiante,paraoprofessor,defor-macompleta,comorientaçõeserespostasdasatividades.Paraoaluno,o PROJETO LEITuRA E DIDATIZAÇÃOestádisponívelnositedosCLÁSSICOS SARAIVA(www.editorasaraiva.com.br/classicossaraiva).

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Caro professor, O PROJETO LEITURA E DIDATIZAÇÃO é uma proposta

alternativa de ensino de literatura, baseada nos pressupostos apre-sentados por William Cereja em seu Ensinode literatura–Umapropostadialógicaparaotrabalhocomliteratura (Atual, 2005). Neste Projeto, atividades de leitura de textos literários e não literá-rios são formuladas para o aluno, acompanhadas de discussões e justificativas teórico-metodológicas que permitem ao professor com-preender não apenas por que fazer diferente o ensino da literatura, mas também como fazer.

Este Projeto didatiza e organiza uma proposta dialógica de ensino de literatura, de forma que se possa garantir o desenvolvimento de habi-lidades de leitura e contribuir para uma reflexão sobre a literatura e a cultura em momentos diversos.

Um curso de literatura não se constrói apenas com atividades es-pecíficas de leitura, mas também com uma série de outras interações, mediadas por textos literários e não literários, por textos didático-expo-sitivos, por linguagens verbais e não verbais etc. Assim, as atividades apresentadas a seguir apenas indicam um ponto de partida para uma abordagem dialógica da literatura.

Apresentamos respostas previstas para as questões, a fim de que pos-sam ser avaliadas por completo, para que seja possível verificar sua perti-nência e as habilidades de leitura demandadas em cada uma delas.

O PROJETO da obra Autodabarcadoinferno foi desenvolvido por Davi Fazzolari, professor da rede particular de ensino em São Paulo e mestre em Literatura Portuguesa pela USP.

PROjETO LEITURAE DIDATIZAÇÃO

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Mas lembre-se:1. Este Projeto é abrangente e não precisa, necessariamente, ser

trabalhado de forma integral. Componha-o dentro de seu plano de aula, conforme seus interesses e as necessidades de seus alunos, explorando uma, duas ou mais leituras.

2. O texto integral do PROJETO LEITURA E DIDATIZA-ÇÃO de cada obra dos CLÁSSICOS SARAIVA está disponível no site www.editorasaraiva.com.br/classicossaraiva. Lá, o professor e/ou o alu-no poderão copiar o Projeto, sem as orientações e sem respostas previstas, naturalmente.

Bom trabalho!

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PROjETO LEITURA E DIDATIZAÇÃO

AUTO DA BARCA DO INFERNOGIL VICENTE

Deus é bom mas o Diabo também não é mau.FernandoPessoa/BernardoSoares

Possíveis dialogismos trabalhados neste Projeto:

1.OAuto:gêneroliterário(Leitura1)I–AorientaçãomoraleoencontrocomodivinoII–Julgamentoecondenação/crimeecastigoIII–Julgamentoeabsolvição

2.Literaturaecondutadeorientaçãoreligiosa(Leitura2)I–“Comtodasastuascriaturas”II– AbaixodasleisdivinasIII–“Entreosimeonãoexisteumvão”

3.Estruturaprocessionaleaalegoriavicentina(Leitura3)I–Ciranda,cirandinha...II–Personagensalegóricas

LEITURA 1

O AUTO: GêNERO LITERÁRIO

Oautoéogênerodramático-literárioelaboradocompropósitodidático,apartirdeumensinamentomoral.É,muitasvezes,ailus-traçãodasorientaçõesqueseencontramemalgunslivrosdaBíblia,como Salmos, Provérbios, Juízes etc. Essa característica funcionaljustificasuapresençamenosoumaisacentuadaemalgunsperíodosdahistóriaeemalgunslugaresdacivilizaçãocristã.OBrasiltemge-rado,aténossosdias,umaproduçãoconsideráveldetextoscomessainclinaçãodidático-religiosa,concentrando-senãosónaliteraturadecordel,mas tambémnachamadaalta literatura,comonaobradeJoãoCabraldeMeloNetooudeGuimarãesRosa.

I - A ORIENTAÇÃO MORAL E O ENCONTRO COM O DIVINO

Leiaotrechoabaixoerespondaàsquestõesparainiciarsuasreflexõessobreessegêneroartísticodenominadoauto.

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TEXTO 1AUTO DA BARCA DO INFERNO

Vem o Fidalgo e, chegando ao batel infernal, diz:

FIDALGO Estabarcaondevaiora, queassimestáapercebida?

DIABO Vaiparaailhaperdida ehádepartirlogoagora.

FIDALGO Paralávaiasenhora?

DIABO Senhor,avossoserviço.

FIDALGO Parece-meissocortiço...

DIABO Porqueavedesládefora!

FIDALGO Porém,aqueterraspassais?

DIABO ParaoInferno,senhor.

FIDALGO Terraébemsem-sabor.

DIABO Quê?Etambémcázombais?

FIDALGO Epassageirosachais paratalhabitação?

DIABO Vejo-voseucomfeição parairaonossocais...

FIDALGO Parece-teatiassim.

DIABO Emqueesperasterguarida?

FIDALGO Quedeixonaoutravida quemrezesemprepormim.

DIABO Quemrezesempreporti?... Hi,hi,hi,hi,hi,hi... Etuvivesteateuprazer

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cuidandocáguarecer porquerezamláporti?

Embarca,ouembarcai, quehaveisdeiràderradeira... Mandaimeteracadeira, queassimpassouvossopai.

FIDALGO Quê?Quê?Quê?Assimlhevai?

DIABO Vaiouvem,embarcaiprestes! Segundoláescolhestes, assimcávoscontentais.

Porquejáamortepassastes, haveisdepassarorio.

FIDALGO Nãoháaquioutronavio?

DIABO Não,senhor,queestefretastes, eprimeiroqueexpirastes metínheisdadosinal.

FIDALGO Quesinalfoiessetal?

DIABO Quevósvoscontentastes.

FIDALGO Aestaoutrabarcamevou. –Houdabarca,paraondeis? Ah,barqueiros!Nãomeouvis? Respondei-me!Houlá!Hou!... PorDeus,bemfadadoestou! Quantoaistoéjápior... Quejericos,ohsenhor! –Cuidamcáquesouumgrou!

ANJO Quemandais?

FIDALGO Quemedigais, poispartitãosemaviso, seabarcadoParaíso éestaemquenavegais.

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ANJO Estaé;quedemandais?

FIDALGO Quemedeixeisembarcar; soufidalgodesolar, ébemquemerecolhais.

ANJO Nãoseembarcatirania nestebateldivinal.

FIDALGO Nãoseiporquehaveispormal queentreminhasenhoria.

ANJO Paravossafantasia émuipequenaestabarca.

FIDALGO Parasenhordetalmarca nãoháaquimaiscortesia?

Venhaapranchaeoatavio, levai-medestaribeira!

ANJO Nãovindesvósdemaneira paraentrarnestenavio. Esseoutrovaimaisvazio: acadeiraentrará eorabocaberá etodovossosenhorio. Ireislámaisespaçoso, Comfumosasenhoria, cuidandonatirania dopobrepovoqueixoso! Eporque,degeneroso, desprezastesospequenos, achar-vos-eistantomenos quantomaisfostesfumoso.

DIABO Àbarca,àbarca,senhores! Oh!quemarétãodeprata! Umventozinhoquemata evalentesremadores!

E, cantando:

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“vosmeveniredesalamano alamanoveniredes, yvosveredes peixesnasredes”

FIDALGO AoInfernotodavia! Infernoháaíparamim? Ohtriste!Enquantovivi nãocuideiqueaíohavia Tiveerafantasia; folgavaseradorado; confieiemmeuestado enãoviquemeperdia.

Venhaessapranchaeveremos estabarcadetristura.

DIABO Embarqueavossadoçura, quecánosentenderemos... Tomareisumparderemos, veremoscomoremais; e,chegandoaonossocais, nósvosdesembarcaremos.

VICENTE,Gil.Auto da barca do inferno.SãoPaulo:Saraiva,2008.(ClássicosSaraiva).

1.AentradadoFidalgoemcenaestabeleceoprimeirodebatedetodo o auto. Relacione, ao seu modo, as primeiras perguntas deFidalgoaoDiabo.Professor – o mais importante neste primeiro questionamento é fazer o aluno se apropriar da linguagem do auto.O Fidalgo pergunta sobre o destino da barca do Diabo e se, atéaquelemomento,jáencontroupassageiros...

2.QuerespostasoFidalgorecebe?Odestinoéa“ilhaperdida”,ouseja,oInferno.ODiaboapontaopróprioFidalgocomoumpassageiroadequado.

3.Enquantopedeinformaçãosobreodestinodabarca,oFidalgocomete um pequeno descuido de tratamento em relação ao seu

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interlocutor.a)Dequesetrata?OFidalgochamaoDiabodesenhora...

b)Essaatitudepoderevelaralgumacaracterísticadapersonagemounãopassadeummomentobem-humorado?Apassagem,aindaquedemodosutil,poderevelarcaracterísticasdapersonagem.OFidalgomostra-searroganteaumpontodenãoternotadoosexodeseuinterlocutor.

4.Como,afinal,éconcluídooepisódiodoFidalgo?Destaqueumafaladeterminanteparaodesfecho.OFidalgoreconheceseusatosindignosdoCéueassumeserpas-sageirodabarcadoInferno:“folgavaseradorado;/confieiemmeuestado/enãoviquemeperdia”.

5.Levandoemconsideraçãoqueoautocaracteriza-sepelaorien-taçãomoralista,qual falapodeservircomoa“moraldahistória”paraoFidalgo?Professor – apesar de admitir certa flexibilidade com as respostas, é im-portante que o aluno reconheça e registre o discurso moralizador da obra de Gil Vicente.AfaladoAnjo:“Nãoseembarcatirania/nestebateldivinal”.

6.GilVicentepregaapráticacristã,masparececondenarosvíciosdareligião.EmquefaladoFidalgoépossívelreconheceressamen-talidadedoautorhumanista?AfaladoFidalgoé:“Quedeixonaoutravida/quemrezesemprepor mim”. Ao que prontamente responde o Diabo: “Quem rezesemprepor ti?.../Hi,hi,hi,hi,hi,hi.../E tuvivestea teuprazer/cuidandocáguarecer/porquerezamláporti?”

7.FernandoPessoa,poetaconterrâneodeGilVicente,masqueveioaomundoquatroséculosdepois,escreveu,noiníciodoséculoXX,umpoemacuriosamente intituladoAuto das bacantes,noqualexploraomesmoconflitovividopeloFidalgodoautovicentino.Leiacomatençãoerespondaàsquestõesqueseguem.Professor – há aqui oportunidade de solicitar uma breve pesquisa sobre Baco e o paganismo, a partir da palavra bacantes. Esse contraponto pessoano ao cristianismo vicentino é importante para o bom aproveitamento da atividade.

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TEXTO 2AUTO DAS BACANTES

Qualé,senhor,amelhorsorte?Maisvaleavidaoumaisquerer?Há,alémdoportaldamorte,Melhorviver?SerámelhorviveramandoEbuscaroamorentreavida,Ou,indaquechorando,BuscaroamorOndetudoéasombraeovago,EoguardanegroafauceestendePorsobreodesoladolago

Haveráescondidamargem,Ocultaregiãofeliz,Ondeoutramais(...)aragemBanheumamorcomosequis?

PESSOA,Fernando.Autodasbacantes.In: LOPES,TeresaRita.Pessoa por conhecer – textos para um novo mapa.Lisboa:Estampa,1990.

8.Qualé,emsuaspalavras,oquestionamentopropostopeloeulíriconaprimeirapartedopoemadePessoa?Respostapessoal.Sugestão:“Maisvaleavidaoumaisquerer?”Vi-verouquerer?Émelhoramaremvidaouesperarparaamarapósamorte?

9.ComovocêresponderiaaoeulíricodoAuto das bacantes?Professor – aqui é importante que o aluno perceba a extensão da orien-tação moralista cristã. Baco não é o Deus cristão, mas um deus mito-lógico. Enquanto o cristianismo prega a negação dos prazeres munda-nos, o deus evocado pelo poema de Pessoa é geralmente associado ao hedonismo.

10.Porque,emsuaopinião,FernandoPessoausouapalavraautoparanomearseupoema?Assimcomonosautospropriamenteditos,há,nopoemadePes-soa,umquestionamentodeordemreligiosa.Emseusversos,estáembutidoumjulgamentodecondutamoral.

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11.Qualé,afinal,oconflitoqueaproximaoepisódiodoFidalgodopoemadePessoa?Oeulíricodo Auto das bacantes clamaemvidaoqueoFidalgola-mentaemmorte,naquelaespéciedejuízofinalpropostopeloAuto da barca do inferno.

II - jULGAMENTO E CONDENAÇÃO/CRIME E CASTIGO

OAuto da barca do infernoparecetrabalharcomumtipodeescritaimutáveldeleismoralizantesresponsávelpelamaiorpartedosconflitosestabelecidosduranteapeça.Aliteraturacontemporâ-neabrasileiraoferececomcertafrequênciaesseconflitoinstauradoentreoshomens,quandosedefrontamcomoscânonesreligioso-culturais.Assim,apoetisaOridesFontelaregistrouotema:

TEXTO 3MARCA

Asleisolhamdoalto:ArcanjosdebasaltoSobrevoampesadasQuadriculamohumano.

Nemolham:subsistem.AlémdoinstanteedosangueAsleispuramentereinam.

NaEstelaaprimeiramarcanamenteaprimeiraforma

Configurando—violentando—ohumano

FONTELA,Orides.Poesia reunida. SãoPaulo/RiodeJaneiro:CosacNaify/7letras,2006.

12.Aqueleis,emsuaopinião,oeulíricodopoemaMarcarefere-se,ajulgarpeloprimeiroverso?“Asleisolhamdoalto” sugereasleisdivinasanunciadasnoPen-tateuco.

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13.ComooshomensserelacionamcomasleisnopoemaMarca?NopoemadeOridesFontela,ohomemnãosebeneficiadasleis;elesubmete-seàsleisapontodeserviolentadoporelas.

TEXTO 4AUTO DA BARCA DO INFERNO

Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas, chega ao batel infernal e diz:

SAPATEIRO Houdabarca!

DIABO Quemvemaí? Santosapateirohonrado, comovenstãocarregado!

SAPATEIRO Mandaram-mevirassim... Masparaondeéaviagem?

DIABO Paraolagodosdanados.

SAPATEIRO Osquemorremconfessados ondetêmsuapassagem?

DIABO Nãocuresdemaislinguagem, queestaéatuabarca,esta!

SAPATEIRO Renegariaeudafesta edaputadabarcagem!

Comopoderáissoser, confessadoecomungado?

DIABO Tumorresteexcomungado, nãooquisestedizer. Esperavasdeviver, calastedoismilenganos, turoubastebemtrintaanos opovocomteumister.

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Embarca,pobredeti, quehájámuitoqueteespero!

SAPATEIRO Poisdigo-tequenãoquero!

DIABO Aindaquetepese,hásdeir,si,si!

SAPATEIRO Quantasmissaseuouvi, nãomehãoelasdeprestar?

DIABO Ouvirmissa,entãoroubar, écaminhoparaaqui.

SAPATEIRO Easofertas,quedarão? Eashorasdosfinados?

DIABO Eosdinheirosmallevados, quefoidasatisfação?

SAPATEIRO Ah!Nãoprazaaocordovão, nemàputadabadana, seéestaboatraquitana emquesevêJoãoAntão!

OrajuroaDeusqueégraça!

Vai-se à barca do Anjo e diz:

SAPATEIRO Houdasantacaravela, podereislevar-menela?

ANJO Essacargateembaraça.

SAPATEIRO NãohámercêquemeDeusfaça? Issoemqualquerparteirá.

ANJO Essabarcaqueláestá levaquemroubadepraça.

Ohalmasembaraçadas!

SAPATEIRO Oraeumemaravilho haverdesporgrãopeguilho

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quatroforminhascagadas quepodembemiraícolocadas numcantinhodesseleito!

ANJO Setuviverasdireito elasforamcáescusadas.

SAPATEIRO Assimquedeterminais quevácozernoinferno?

ANJO Escritoestásnocaderno dasementasinfernais.

Torna-se à barca dos danados e diz:

SAPATEIRO Houbarqueiro,queaguardais? Vamos,venhaapranchalogo elevai-meàquelefogo! Nãonosdetenhamosmais!

VICENTE,Gil.Auto da barca do inferno.SãoPaulo:Saraiva,2008.(ClássicosSaraiva).

14.MaisumavezGilVicentefazcomquerituaisreligiosospratica-dosdemodomecânicoeviciososejamcondenados.Retiredotexto4exemplosdessacondenação.FalaoSapateiro:“Comopoderáissoser,/confessadoecomungado?”,aoquerespondeoDiabo:“Tumorresteexcomungado”.Aseguir,maisumavezoSapateirosugeresuaspráticascomopassaporteparaoCéueescudocontraoInfernoefalaaoDiabo:“Quantasmissaseuouvi,/nãomehãoelasdeprestar?”.AoquerespondeoDiabo:“Ouvirmissa,entãoroubar,/écaminhoparaaqui.”InsisteoSapateiro:“Easofertas,quedarão?/Eashorasdosfinados?”.EoDiabo:“Eosdinheirosmallevados,/quefoidasatisfação?”.

15.EmquemomentooSapateiroéconvencidodequesuaalmanãotemsalvação?NaconversacomoAnjo,oSapateiropercebequenãoteráqualquerchancedeembarcarparaoParaíso.

16.AproximeporsemelhançaumaexpressãodoAnjoaumapassagemdopoemadeOridesFontelaecomentesuaresposta.Professor – o comentário deve ser livre. Garanta que os trechos se-lecionados registrem a mentalidade apresentada nos dois textos de que o destino da humanidade já está traçado. Talvez as melhores

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passagens para a comparação sejam: “As leis olham do alto:/[...]/Quadriculam o humano.” e ANJO: “Escrito estás no caderno/das ementas infernais”.

`III - jULGAMENTO E ABSOLVIÇÃO

Apesar de condenar a maior parte das almas que desfilamalegoricamentenoAuto da barca do inferno,GilVicente,emdoismomentos,ofereceráapossibilidadedasalvação.Oprimeirodeleséumcontrapontobastanteexpressivoequeconferebom-humoratodooespetáculo.

TEXTO 5AUTO DA BARCA DO INFERNO

Chega o Parvo ao batel do Anjo e diz:

JOANE Houdabarca!

ANJO Tuquequeres?

JOANE Quereis-mepassaralém?

ANJO Queméstu?

JOANE Nãosouninguém.

ANJO Tupassarás,sequiseres; porqueemtodosteusfazeres pormalícianãoerraste; tuasimplezatebaste paragozardosprazeres.

Espera,noentanto,aí: veremossevemalguém merecedordetalbem quedevadeentraraqui.

VICENTE,Gil.Auto da barca do inferno.SãoPaulo.Saraiva,2008.(ClássicosSaraiva).

18.JáqueoAuto da barca do infernoédescritocomotextoalegórico,comopodeserclassificadooParvo?

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AlegoricamenteoParvorepresentaumaclassesocialdesprovidaderiquezamaterialeintelectual.Éarepresentaçãodosinocentes,ex-ploradoseingênuosdostemposdeGilVicente.

19.OquedeterminouodestinodeJoane,oParvo?OAnjoconsiderouoParvodignodeentrarnoParaíso,poisemtudooquefeznavidaestáamarcadaingenuidade,comoficaregistradona fala: “por malícia não erraste”. Além disso, o Anjo consideraasimplicidadedeJoaneosuficienteparamantê-lomerecedordoReinodosCéus:“tuasimplezatebaste/paragozardosprazeres”.

Comovimos,asleispredominantesnosautossãoasleisdi-vinas,registradasnoslivrossagradosadotadospelocatolicismo.OpoetabarrocobrasileiroGregóriodeMatoselaboraotemadasalva-çãodaalmaemboapartedesuaobra.Vejamosumexemplo:

TEXTO 6PEqUEI, SENHOR...

Pequei,Senhor,masnãoporqueheipecado,DevossaaltaclemênciamedespidoPorquequantomaistenhodelinquido,Vostenhoaperdoarmaisempenhado.

Sebastaavosirartantopecado,Aabrandar-vossobejaumsógemido:Queamesmaculpa,quevosháofendido,Vostemparaoperdãolisonjeado.

Seumaovelhaperdidaejácobrada,GlóriataleprazertãorepentinoVosdeu,comoafirmaisnasacrahistória,Eusou,Senhor,aovelhadesgarrada,Cobrai-a;enãoqueirais,Pastordivino,Perdernavossaovelhaavossaglória.

MATOS,Gregóriode. Livro dos sonetos.PortoAlegre:L&PM,1996.

20.Qualéaposiçãodoeulíricoanteojulgamentodivino?Emnenhummomentooeulíriconegaserumpecador,assumindotalcondiçãologonaprimeirapalavraempregada:pequei.

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21.Aquemoeulíricoatribuiaresponsabilidadedesuasculpas?Oeulíricoconfessa-seculpado.Comoserhumano,éfracoe,natu-ralmente,umpecador.

22.Seoeulíriconãoquerservistocomoumaalmapura,oquebusca,então,emseusargumentos?Oeulíricoquerserperdoadoeabsolvidodeculpas.

23.ExpliquedemodoracionalaargumentaçãodoeulíricodeGre-góriodeMatos.Jáqueaglóriadivinasedápelopoderdoperdão,ter“delinquido”alimentaapossibilidadedoperdãoe,consequentemente,daglori-ficaçãodeDeus.

24.Elaboreumabrevecomparação,porsemelhançaediferença,entreessesonetodeGregóriodeMatoseopoemadeFernandoPessoa(texto2),Auto das bacantes.Professor – a comparação deve variar entre seus alunos, mas é importan-te garantir o reconhecimento dos seguintes temas: apequenezhumanaanteodivino e o conflito estabelecido nitidamente nos dois poemas: pra-zermundano versus absolviçãodivina.

LEITURA 2

LITERATURA E CONDUTA DE ORIENTAÇÃO RELIGIOSAI – “COM TODAS AS TUAS CRIATURAS” 1

Aficçãobrasileira contemporânea registra, comonãopoderiadeixardeser,nodiaadiadaspessoasdacidadeedocampo,nossacul-turapopular.Asmuitaspáginasdecontistas,poetasecronistasfixam,demodouniversal,momentos,pensamentosesabedoriapopular,emumespaçosociopolíticoespecífico.Assim,nadécadade1960,CarlosDrummonddeAndrade,umdosprincipaisautoresbrasileirosdeto-dosostempos,escreveuA cabra e Francisco,quenãoéexatamenteumauto,masumacrônica.Mesmoassimgaranteumasériedecaracte-rísticasdogêneroqueoraestudamos.Leiacomatençãoerespondaaoquestionamentoquesegueaotexto.

TEXTO 7A CABRA E FRANCISCO

MADRugADA. O hospital, como o Rio de Janeiro, dorme. O1Versoextraídodaoração“Cânticodosol”,atribuídaaSãoFranciscodeAssis.

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porteirovêdiantedesiumacabrinhamalhada,pensaqueestáso-nhando.

—Bompalpite.Veiomesmonahora.Andocomtantapresta-çãoatrasada,meuDeus.

Acabraolha-ofixamente.—Estábem,filhinha.Agorapodeirpassear.Depoisvocêvol-

ta,sim?Elanãosemexe,séria.—Vai,cabrinha,vai.Sejacamarada.Precisosonharoutrascoi-

sas.Éaúnicahoraemquesoudonodetudo,entende?Oanimalchega-semaispertodele,roça-lheobraço.Sentindo-lhe

ocheiro,ohomempercebequeédeverdade,erecua.—Essa,não!Queéquevocêveiofazeraqui,criatura?Dêo

fora,vamos.Repele-acomjeitomanso,porémacabranãosemexe,enca-

rando-osempre.—Aiaiai!Bonito.Desculpe,masasenhoratemdesaircom

urgência,istoaquiéumestabelecimentopúblico(Achandopoucosatisfatóriaarazão.)Bem,seépúblicodeviaserparatodos,masvocêcompreende...(Empurra-adocementeparafora,evoltaàca-deira.)

—Oquê?Voltou?Mas issoéhorademevisitar,filha?Estásemsono?Queéquehá?Gostomuitodecriação,masaquinohos-pital,antesdodiaclarear...(Acaricia-lheopescoço.)Queéisso!Vocêestámolhada.Essacoisapegajosa...Oque: sangue?!Porquenãomedisselogo,cabrinhadeDeus?Porqueficoumeolhandoassimfeitoboba?Temrazão:euéquenãoentendi,deviatermoradologo.Ecomovaiser?Osdoutoresdaquisãoumestouro,mascabraédi-ferente,nãoseiseelestopam.Sabedeumacoisa?Eumesmovouteoperar!

Correàsaladecirurgia,tomaumbisturi,umapinça;àfarmá-cia,pegamercúrio-cromo,sulfaegaze;enumcantodohospital,assistidopordois serventes, enquantoodia vainascendo, extraidopescoçodacabraumabaladecalibre22,alicravadaquandoobichinho,ignorandooscostumescariocasdanoite,passavapertodeunshomensqueconversavamàportadeumbar.

Oanimaldeixa-seoperar,comamaiorserenidade.Seusolhosenvolvemoporteironumacaríciaagradecida.

—Marcolina.Dou-lheestenomeemlembrançadeumacabraquetivequandogaroto,noIcó.Estásatisfeita,Marcolina?

—Muito,Francisco.Sem reparar que a cabra aceitara o diálogo, e sabia o seu

nome,Franciscocontinuou:—ComofoiquevocêteveideiadeviraoMiguelCouto?O

HospitalVeterinárioénaLapa.

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—Eusei,Francisco.MasvocênãotrabalhanaLapa,trabalhanoMiguelCouto.

—Edaí?—Daí,preferificarporaquimesmoemeentregar a seus

cuidados.—Vocêmeconhecia?—Nãopossoexplicarmaisdoqueisso,Francisco.Ascabras

nãosabemmuitosobreessascoisas.Seiqueestoubemaseulado,quevocêmesalvou.Obrigada,Francisco.

Elambendo-lheafetuosamenteamão,correuosolhosparadormir.Bemqueprecisava.

AíFranciscolevouumsusto,saltouparaolado:—Quenegócioéesse:cabrafalando?!Nuncavicoisaigualna

minhavida.Elogocomigo,meupaidocéu!Acabradescerrouumolhosonolento,eporcimadasbarbas

pareciaesboçarumsorriso:—PoisvocênãosechamaFrancisco,nãotemonomedosanto

quemaisgostavadeanimaisnestemundo?Quetemisso,trocarumaspalavrinhascomvocê?Olhe,amanhãvoupediraoArianoSuassunaqueescrevaumautodacabra,emquevocêvaiparaoCéu,ouviu?

EstramboteQue um dia Francis Jammes abralá no alto seu azul aprisco.Mande entrar Marcolina, a cabra,e seu bom amigo Francisco.

ANDRADE,CarlosDrummondde.AcabraeFrancisco. In:Carlos Drummond de Andrade – obra completa.RiodeJaneiro:Aguilar,1964.

1.Oqueoporteirodohospital,aoveracabrapelaprimeiravez,quisdizercom:“—Bompalpite.Veiomesmonahora.Andocomtantaprestaçãoatrasada,meuDeus”?Oporteirocrêqueaosonharcomumacabrarecebeuumpalpiteparaojogodobicho.Trata-sedeumelementodaculturapopular.

2.Apartirdequalmomentooporteirodecideparardeenxotaracabra?Apartirdomomentoemqueelepercebequeacabraestáferida.

3.Queexpressãopodeserdestacadadomomentoemqueoportei-ronotaosanguedoanimalequejustificariaaaproximaçãoentreestetextoeoautodeGilVicente?

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Oporteirochamaoanimalferidode“cabrinhadeDeus”.4.Oqueprovocouoferimentodacabra?Acabralevaraumtiro.Oporteiro-cirurgiãoretiradocorpodoani-malumabalacalibre22.

5.Porqueopróprioporteiroresolveoperaracabraseeleestavaemumhospital?Oporteiroconcluiuque,apesardeestarcercadodebonsmédicos,elesnãoconcordariamemoperarumacabra.

6.AproximeporsemelhançaoporteirodacrônicadeDrummonddeumadaspersonagensdoAuto da barca do inferno.Oporteiro,protagonistadeA cabra e Francisco,aproxima-seporse-melhançaaJoane,oParvo,doautodeGilVicente.Éoprofissionalmais simplesdohospital e apesardeparticiparda contravenção(jogodobicho)nãoofazpormalícia,masporcultura.Osdoutores,médicosdohospital,nãoseprestariamaumaaçãotãocristã,na-quelemomento,eporissoéelequemoperaacabraferida.

7.JustifiqueotítuloqueCarlosDrummonddeAndradeutilizou.Ogêneroliterárioauto,relacionadoaotextodeDrummond,justi-fica-seporcausadacena,quesópodeserexplicadaapartirdeele-mentosreligiosos.Aatitudedoporteironãoéracional,eapráticadobemnãopoderágarantirqualquerêxitosocial.Trata-sedeumatodeamoràvida.

8.Oporteiropoderiaservistocomopersonagemalegórica?Oporteiropodeservistocomopersonagemalegórica.Nãosetratadeumporteiroespecífico,masdoolharsimplesdaspessoasmaishumildesdasociedade.

9.NoautodeGilVicente,umoutroanimal,commenosprotago-nismo,tambémentraemcena.Compare-osporsemelhançaepordiferença.Trata-sedeumbodequeacompanhaoJudeu.NemmesmooDiabopermitesuaentradanabarca,eeleseguiráviagemcomseudono“àtoa”,comoseregistranotextooriginal.Desemelhanteelestêmofatodepertenceremàmesmaespécie.Obodeéomachodaca-bra.Naiconografiareligiosa,éoanimalquemaisseassociaàima-gemdodiabo.

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10.CasooporteirodeA cabra e FranciscofosseumapersonagemdoAuto da barca do inferno,qualseriaoseudestino?JustifiquesuarespostaapartirdeargumentaçãoextraídadotextodeGilVicente.OdestinodapersonagemdeDrummondseria,evidentemente,abarcadoAnjo.Ajustificativa,comalgunsajustes,estarianodebateentreoAnjoeoParvo.

II – ABAIXO DAS LEIS DIVINAS

Aorientaçãoreligiosaédadademodomaniqueísta,ouseja,apartirdeumadivisãoclaraentreocertoeoerrado,entreobemeomal,entreopecadoeaobediênciaàsleisdivinas.GilVicentecondenaàbarcadoinferno,sistematicamente,todosossegmentossociaisquecontrariamasleisdivinasaotomarcondutasimoraisduranteavida.

TEXTO 8AUTO DA BARCA DO INFERNO

Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno:

ONZENEIRO Oh,quebarcatãovalente! Paraondecaminhais?

DIABO Oh!quemá-horavenhais, onzeneiro,meuparente!

Comotardastesvóstanto?

ONZENEIRO Maisquiseraeulátardar... Nasafradoapanhar medeuSaturnoquebranto.

DIABO Ora,muitomeespanto nãovoslivrarodinheiro.ONZENEIRO Nemtãosóparaobarqueiro meficouumvintémnoentanto.

DIABO Ora,entrai,entraiaqui!

ONZENEIRO Nãoheieuaídeembarcar!

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DIABO Ohquegentilrecear, equecoisasparamim...

ONZENEIRO Aindaagorafaleci, deixai-mebuscarbatel.

DIABO PesardeSãoPimentel! Nuncatantapressavi.

ONZENEIRO Eparaondeéaviagem?

DIABO Paraondetuhásdeir.

ONZENEIRO Havemoslogodepartir?

DIABO Nãocuresdemaislinguagem.

ONZENEIRO Masparaondeéapassagem?

DIABO Paraainfernalcomarca.

ONZENEIRO Dix!Nãovoueuemtalbarca. Estaoutratemavantagem.

Vai-se à barca do Anjo e diz:

ONZENEIRO Houdabarca!Houlá!Hou! Haveislogodepartir?

ANJO Eaondequerestuir?

ONZENEIRO EuparaoParaísovou.

ANJO Poisquantoeumuiforaestou detelevarparalá: essaoutratelevará; vaiparaquemteenganou.ONZENEIRO Porquê?

ANJO Porqueessebolsão tomariatodoonavio.

ONZENEIRO JuroaDeusquevaivazio!

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ANJO Nãojánoteucoração.

ONZENEIRO Lámeficaderoldão, minhafazendaeaalheia.

ANJO Poisqueaonzenatantoabarca, Nãolhedeisembarcação

Torna o Onzeneiro à Barca do Inferno e diz:

ONZENEIRO Houlá!houdemobarqueiro, sabeisvósnoquemefundo? Querolátornaraomundo etrazeromeudinheiro, queaqueleoutromarinheiro porquemevêvirsemnada, dá-metantaborregada comoArraisládoBarreiro.

DIABO Entra,entraeremarás. Nãopercamosmaismaré!

ONZENEIRO Todavia...

DIABO Porforçaé: quetepese,cáentrarás! IrásservirSatanás, poisquesempreteajudou.

ONZENEIRO Ohtriste,quemmecegou?!

DIABO Cala-te,quecáchorarás.

VICENTE,Gil.Auto da barca do inferno.SãoPaulo:Saraiva,2008.(ClássicosSaraiva).

11.ODiabochamaoOnzeneirode“meuparente”.Qualéomotivodafamiliaridade?OOnzeneiroemprestadinheiroajuroseporessemotivoinfringetrêsdosdezmandamentosregistradonolivrodoÊxodo.Ébomlem-brarqueaBíbliacondenaolucroequalquerformadecobiça.Ésua“profissão”queoaproximadoDiabo.

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12.Écomumnasalegoriasumasériedesímbolosquealimentama imagem da personagem. Qual foi o acessório que Gil VicentedestinouaoOnzeneiro?OOnzeneirovemaoportodasbarcascomumabolsadedinheiro.

13.OOnzeneirodizaoAnjoqueabolsaestávazia.PorqueoAnjonãoaceitaoargumento?Abolsaéapenasumsímbolodossentimentosedamentalidadedapersonagemjulgada.LogoemseguidaàfaladoOnzeneiro,afirmaoAnjo:“Nãojánoteucoração”.

14.AqualconclusãochegaoOnzeneirosobreanegativadoAnjo?OOnzeneiroconfirmasuaculturanaTerraetemaimpressãodequesónãoentrounabarcadoAnjopornãoterdinheirosuficiente.

TEXTO 9A PELEjA DO DIABO COM O DONO DO CéU

ComtantodinheirogirandonomundoQuemtempedemuitoquemnãotempedemaisCobiçamaterraetodaariquezaDoreinodoshomensedosanimaisCobiçamatéaplaníciedossonhosLugareseternosparadescansarAterradoverdequefoiprometidoAtéquesecansedetantoesperarQueeunãovimdelongeparameenganarQueeunãovimdelongeparameenganarQueeunãovimdelongeparameenganar

Otempodohomem,amulher,ofilhoOgadonovilhourranocurralVaqueirosquetangemahumanidadeEmcadacidadeeemcadacapitalEmcadapessoadeprocedimentoEmcadalamentopalavrasdesalAnauqueflutuanoleitodorioConduzàvelhice,conduzàmoralAssimcomoDeus,parabénsaomalAssimcomoDeus,parabénsaomalAssimcomoDeus,parabénsaomalJáquetudodependedaboavontadeÉdecaridadequeeuquerofalar

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DaquelaesmoladacuiatremendoOumatooumerendoéleinaturalNummurodecalespirradodesangueDelama,demangue,derougeebatomOtomdaconversaqueouçomecrivaDesetasefacasefavosdemelÉapelejadoDiabocomodonodoCéuÉapelejadoDiabocomodonodoCéuÉapelejadoDiabocomodonodoCéu

RAMALHO,zé.Apelejadodiabocomodonodocéu.Epic/CBS,1979.

15.AmúsicapopularbrasileiradoparaibanozéRamalhodestaca-sepeloolharsocialepeladenúnciadecertasinjustiçaspromovidaspeladesigualdadeeconômica.Levandoemconsideraçãooambien-tedejulgamentomoraldaobradeGilVicente,qualseriaacaracte-rísticahumanacondenadanosversosdezéRamalho?Comprovesuarespostaapartirdeelementosdaletra.Trata-seda cobiça, comose lênos cincoprimeiros versos: “Comtantodinheirogirandonomundo/Quem tempedemuitoquemnãotempedemais/Cobiçamaterraetodaariqueza/Doreinodoshomensedosanimais/Cobiçamatéaplaníciedossonhos”.

16.Destaque,ainda,daprimeiraestrofeoutrotrechoqueconfirmaoambientereligiosodecondenaçãomoralista.“Aterradoverdequefoiprometido/Atéquesecansedetantoes-perar”éumareferênciaàterraPrometidaqueselênoPentateuco,emÊxodo.

III - “ENTRE O SIM E O NÃO EXISTE UM VÃO” 2

Mesmosendoclaroodiscursoreligioso,fala-semuitofrequen-tementenosacrifício,noslivrossagrados.Issoporqueoserhumanoteriadesenvolvidocaracterísticasquecontrariamosprincípiosmo-raisda condutaprevistaporDeus.Tais características seriamres-ponsáveispordesvirtuaroshomensedesenvolvernelesodesejoemvariadasformas.Osacrifíciogeralmenteestáemnegarosdesejosestimuladosportentações.ABíbliafixouessacomplexasituaçãonodiálogoentreumaserpente eosprimeiroshabitantesdoParaíso,noepisódioconhecidopor“Aorigemdomal”,noGênesis,umdoslivrosdoPentateuco.

AspersonagensdoAuto da barca do inferno sóapósosdeba-

2 Verso extraído de “Chavão abre porta grande”, do compositor paulista ItamarAssumpção.

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tescomoDiaboecomoAnjosedãocontadeseusatose,então,resignam-se.Quandoentramemcena,trazemacertezadeteremdesenvolvidoumavidaregular.Éojulgamentomoralqueasleva(eaosleitores/espectadores)aconcluirocontrário3.

NocontoA Igreja do Diabo,MachadodeAssisregistrouacon-tradiçãohumanaentreoolhareaação,naconhecidametáforadasfranjas.

Professor – após a leitura do conto em classe, estabeleça um breve debate sobre a conduta dos homens no conto e em nossos dias. Procure associar às características humanas lidas no conto fatos estampados nos jornais de hoje. O debate não deve ter por objetivo a orientação religiosa, mas o desenvolvimento de um olhar crítico para esse segmento da literatura.

TEXTO 10A IGREjA DO DIABO

CAPíTULO IDE UMA IDEIA MIRíFICA

ContaumvelhomanuscritobeneditinoqueoDiabo, emcerto dia, teve a ideia de fundar uma igreja. Embora os seuslucrosfossemcontínuosegrandes,sentia-sehumilhadocomopapelavulsoqueexerciadesdeséculos,semorganização,semregras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assimdizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquioshumanos.Nadafixo,nadaregular.Porquenão teriaeleasuaigreja?UmaigrejadoDiaboeraomeioeficazdecombaterasoutrasreligiões,edestruí-lasdeumavez.

—Vá,pois,umaigreja,concluiuele.EscrituracontraEscri-tura,breviário contrabreviário.Terei aminhamissa, comvinhoepãoàfarta,asminhasprédicas,bulas,novenasetodoodemaisaparelhoeclesiástico.Omeucredoseráonúcleouniversaldoses-píritos,aminhaigrejaumatendadeAbraão.Edepois,enquantoasoutrasreligiõessecombatemesedividem,aminhaigrejaseráúnica;nãoachareidiantedemimnemMaomé,nemLutero.Hámuitosmodosdeafirmar;hásóumdenegartudo.

Dizendoisto,oDiabosacudiuacabeçaeestendeuosbra-ços,comumgestomagníficoevaronil.Emseguida, lembrou-sede ir tercomDeusparacomunicar-lhea ideia,edesafiá-lo;levantouosolhos,acesosdeódio,ásperosdevingança,edisse3OpoetaepensadorKierkegaardcertavezatrelouaideiadepecadoàconsciência.Emumavida trivialnaqual seagepor imitaçãonãohaveriaconsciência, conse-quentemente,nãohaveriaapossibilidadedopecado.

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consigo:—Vamos,étempo.Erápido,batendoasasas,comtalestrondoqueabaloutodasasprovínciasdoabismo,arrancoudasombraparaoinfinitoazul.

CAPíTULO IIENTRE DEUS E O DIABO

Deusrecolhiaumancião,quandooDiabochegouaocéu.Osserafinsqueengrinaldavamorecém-chegadodetiveram-nologo,eoDiabodeixou-seestaràentradacomosolhosnoSenhor.

—Quemequerestu?perguntoueste.— Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo

rindo,masportodososFaustosdoséculoedosséculos.—Explica-te.—Senhor,aexplicaçãoéfácil;maspermitiquevosdiga:recolhei

primeiroessebomvelho;dai-lheomelhorlugar,mandaiqueasmaisafinadascítarasealaúdesorecebamcomosmaisdivinoscoros...

—Sabesoqueele fez?perguntouoSenhor, comosolhoscheiosdedoçura.

—Não,masprovavelmenteédosúltimosquevirãoterconvos-co.Nãotardamuitoqueocéufiquesemelhanteaumacasavazia,porcausadopreço,queéalto.Vouedificarumahospedariabarata;emduaspalavras,voufundarumaigreja.Estoucansadodaminhade-sorganização,domeureinadocasualeadventício.Étempodeobteravitóriafinalecompleta.Eentãovimdizer-vosisto,comlealdade,paraquemenãoacuseisdedissimulação...Boaideia,nãovosparece?

—Viestedizê-la,nãolegitimá-la,advertiuoSenhor.—Tendesrazão,acudiuoDiabo;masoamor-própriogostade

ouviroaplausodosmestres.Verdadeéquenestecasoseriaoaplausodeummestrevencido,eumatalexigência...Senhor,desçoàterra;voulançaraminhapedrafundamental.

—Vai.—Quereisquevenhaanunciar-vosorematedaobra?—Nãoépreciso;bastaquemedigasdesdejáporquemoti-

vo,cansadohátantodatuadesorganização,sóagorapensasteemfundarumaigreja.

ODiabosorriucomcertoardeescárnioetriunfo.Tinhaal-guma ideiacruelnoespírito,algumreparopicantenoalforjedamemória,qualquercousaque,nessebreveinstantedaeternidade,ofaziacrersuperioraopróprioDeus.Masrecolheuoriso,edisse:

—Sóagoraconcluíumaobservação,começadadesdealgunsséculos,eéqueasvirtudes,filhasdocéu,sãoemgrandenúmerocomparáveisarainhas,cujomantodeveludorematasseemfranjasdealgodão.Ora,euproponho-meapuxá-lasporessafranja,etra-zê-lastodasparaminhaigreja;atrásdelasvirãoasdesedapura...

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(...)Nistoosserafinsagitaramasasaspesadasdefastioesono.

MigueleGabrielfitaramnoSenhorumolhardesúplica.Deusin-terrompeuoDiabo.

—Tuésvulgar,queéopiorquepodeaconteceraumespíri-todatuaespécie,replicou-lheoSenhor.Tudooquedizesoudigasestáditoereditopelosmoralistasdomundo.Éassuntogasto;esenãotensforça,nemoriginalidadepararenovarumassuntogasto,melhoréquetecaleseteretires.Olha;todasasminhaslegiõesmos-tram no rosto os sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse mesmoanciãopareceenjoado;esabestuoqueelefez?

—Jávosdissequenão.—Depoisdeumavidahonesta,teveumamortesublime.Co-

lhidoemumnaufrágio,iasalvar-senumatábua;masviuumcasaldenoivos,naflordavida,quesedebatiamjácomamorte;deu-lhesatábuadesalvaçãoemergulhounaeternidade.Nenhumpúblico:aáguaeocéuporcima.Ondeachasaíafranjadealgodão?

—Senhor,eusou,comosabeis,oespíritoquenega.—Negasestamorte?—Negotudo.Amisantropiapodetomaraspectodecaridade;

deixaravidaaosoutros,paraummisantropo,érealmenteaborre-cê-los...

—Retóricoesutil!exclamouoSenhor.Vai,vai,fundaatuaigreja;chamatodasasvirtudes,recolhetodasasfranjas,convocatodososhomens...Mas,vai!vai!

DebaldeoDiabotentouproferiralgumacoisamais.Deusim-pusera-lhesilêncio;osserafins,aumsinaldivino,encheramocéucomasharmoniasdeseuscânticos.ODiabosentiu,derepente,queseachavanoar;dobrouasasas,e,comoumraio,caiunaterra.

CAPíTULO IIIA BOA NOVA AOS HOMENS

Umavezna terra,oDiabonãoperdeuumminuto.Deu-sepressaemenfiaracogulabeneditina,comohábitodeboafama,eentrouaespalharumadoutrinanovaeextraordinária,comumavozque reboavanasentranhasdoséculo.Eleprometiaaosseusdiscípulosefiéisasdelíciasda terra, todasasglórias,osdeleitesmaisíntimos.ConfessavaqueeraoDiabo;masconfessava-opararetificaranoçãoqueoshomenstinhamdeleedesmentirashistó-riasqueaseurespeitocontavamasvelhasbeatas.

—Sim,souoDiabo,repetiaele;nãooDiabodasnoitessul-fúreas,doscontossoníferos,terrordascrianças,masoDiabover-dadeiroeúnico,oprópriogêniodanatureza,aquesedeuaquelenomeparaarredá-lodocoraçãodoshomens.Vede-megentileai-

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roso.Souovossoverdadeiropai.Vamoslá:tomaidaquelenome,inventadoparameudesdouro,fazeideleumtroféueumlábaro,eeuvosdareitudo,tudo,tudo,tudo,tudo,tudo...

Eraassimquefalava,aprincípio,paraexcitaroentusiasmo,espertarosindiferentes,congregar,emsuma,asmultidõesaopédesi.Eelasvieram;elogoquevieram,oDiabopassouadefiniradoutrina.Adoutrinaeraaquepodiasernabocadeumespíritodenegação. Isso quanto à substância, porque, acerca da forma, eraumasvezessutil,outrascínicaedeslavada.

(...)Asturbascorriamatrásdeleentusiasmadas.ODiaboincutia-

lhes,agrandesgolpesdeeloquência,todaanovaordemdecousas,trocandoanoçãodelas,fazendoamarasperversasedetestarassãs.

(...)Edescia, e subia, examinava tudo, retificava tudo.Está claro

quecombateuoperdãodasinjúriaseoutrasmáximasdebranduraecordialidade.Nãoproibiuformalmenteacalúniagratuita,masindu-ziuaexercê-lamedianteretribuição,oupecuniária,oudeoutraespé-cie;noscasos,porém,emqueelafosseumaexpansãoimperiosadaforçaimaginativa,enadamais,proibiarecebernenhumsalário,poisequivaliaafazerpagaratranspiração.Todasasformasderespeitoforamcondenadasporele,comoelementospossíveisdeumcertodecorosocialepessoal;salva,todavia,aúnicaexceçãodointeresse.Masessamesmaexceçãofoilogoeliminada,pelaconsideraçãodeque o interesse, convertendo o respeito em simples adulação, eraesteosentimentoaplicadoenãoaquele.

Pararemataraobra,entendeuoDiaboquelhecumpriacortarportodaasolidariedadehumana.Comefeito,oamordopróximoeraumobstáculograveànovainstituição.Elemostrouqueessaregraeraumasimplesinvençãodeparasitasenegociantesinsolváveis;nãosedeviadaraopróximosenãoindiferença;emalgunscasos,ódiooudesprezo.Chegoumesmoàdemonstraçãodequeanoçãodepró-ximoeraerrada,ecitavaestafrasedeumpadredeNápoles,aquelefinoeletradoGaliani,queescreviaaumadasmarquesasdoantigoregímen:“Leveabrecaopróximo!Nãohápróximo!”Aúnicahipó-teseemqueelepermitiaamaraopróximoeraquandosetratassedeamarasdamasalheias,porqueessaespéciedeamortinhaaparticu-laridadedenãoseroutracousamaisdoqueoamordoindivíduoasimesmo.Ecomoalgunsdiscípulosachassemqueumatalexplicação,pormetafísica,escapavaàcompreensãodasturbas,oDiaborecorreuaumapólogo:—Cempessoastomamaçõesdeumbanco,paraasoperações comuns;mascadaacionistanãocuida realmente senãodosseusdividendos:éoqueaconteceaosadúlteros.Esteapólogofoiincluídonolivrodasabedoria.

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CAPíTULO IVFRANjAS E FRANjAS

AprevisãodoDiaboverificou-se.Todasasvirtudescujacapadeveludoacabavaemfranjadealgodão,umavezpuxadaspelafranja,deitavamacapaàsurtigasevinhamalistar-senaigrejanova.Atrásforamchegandoasoutras,eotempoabençoouainstituição.Aigre-ja fundara-se; adoutrinapropagava-se;nãohaviauma regiãodogloboquenãoaconhecesse,umalínguaquenãoatraduzisse,umaraçaquenãoaamasse.ODiaboalçoubradosdetriunfo.

Umdia,porém,longosanosdepoisnotouoDiaboquemui-tosdos seusfiéis, às escondidas,praticavamas antigas virtudes.Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, porpartes,e,comodigo,àsocultas.Certosglutõesrecolhiam-seaco-merfrugalmentetrêsouquatrovezesporano,justamenteemdiasdepreceitocatólico;muitosavarosdavamesmolas,ànoite,ounasruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhepequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez,comocoraçãonasmãos,mascomomesmorostodissimulado,parafazercrerqueestavamembaçandoosoutros.

AdescobertaassombrouoDiabo.Meteu-seaconhecermaisdiretamenteomal,eviuquelavravamuito.Algunscasoseramatéincompreensíveis, como o de um droguista do Levante, que en-venenara longamenteumageraçãointeira,e,comoprodutodasdrogas,socorriaosfilhosdasvítimas.NoCairoachouumperfeitoladrãodecamelos,quetapavaacaraparairàsmesquitas.ODiabodeucomeleàentradadeuma,lançou-lheemrostooprocedimen-to;elenegou,dizendoqueiaaliroubarocamelodeumdrogman;roubou-o, com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo de presente aum muezim, que rezou por ele a Alá. O manuscrito beneditinocitamuitasoutrasdescobertasextraordinárias,entreelasesta,quedesorientoucompletamenteoDiabo.Umdosseusmelhoresapós-toloseraumcalabrês,varãodecinquentaanos,insignefalsificadordedocumentos,quepossuíaumabelacasanacampanharomana,telas,estátuas,biblioteca,etc.Eraa fraudeempessoa;chegavaameter-senacamaparanãoconfessarqueestavasão.Poisesseho-mem não só não furtava ao jogo, como ainda dava gratificaçõesaoscriados.Tendoangariadoaamizadedeumcônego,iatodasassemanasconfessar-secomele,numacapelasolitária;e,conquantonãolhedesvendassenenhumadassuasaçõessecretas,benzia-seduasvezes,aoajoelhar-se,eaolevantar-se.ODiabomalpôdecrertamanhaaleivosia.Masnãohaviaduvidar;ocasoeraverdadeiro.

Nãosedeteveuminstante.Opasmonãolhedeutempoderefletir,comparareconcluirdoespetáculopresentealgumacousaanálogaaopassado.Vooudenovoaocéu,trêmuloderaiva,ansio-

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so de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deusouviu-ocominfinitacomplacência;nãoointerrompeu,nãoore-preendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs osolhosnele,edisse:

—Quequerestu,meupobreDiabo?Ascapasdealgodãotêmagorafranjasdeseda,comoasdeveludotiveramfranjasdealgodão.Quequerestu?Éaeternacontradiçãohumana.

ASSIS,Machadode.Contos.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,2004.

17.OcontodeMachadodeAssisestádivididoemquatropequenoscapítulos. Ao seu modo, conte mais uma vez a mesma história,valendo-sedeumúnicoparágrafoparacadacapítulo.Professor – promova a leitura das respostas em classe. É importante verificar se os alunos conseguiram reter o essencial de cada etapa. Basi-camente devem estar garantidos para o capítulo I: o Diabo decide fun-dar uma igreja para estar em igualdade de condições com Deus; para o capítulo II: o Diabo vai ao céu anunciar sua decisão a Deus; para o capítulo III: o Diabo anuncia sua igreja aos homens e obtém bastante sucesso após sua fundação; e para o capítulo IV: o Diabo será derrotado pela contradição humana.

18.PorqueoDiabodecidefundarsuaprópriaigreja?A intenção maior era a de destruir as demais igrejas e viver demodomais“fixoeregular”.

19.Expliqueaexpressão:“Hámuitosmodosdeafirmar;hásóumdenegartudo.”Aindano iníciodoconto,oDiabovêumagrandevantagememsuaigreja, jáque,diferentementedasigrejascelestiais,nãoteriaconcorrentes.

Professor – há aqui uma boa oportunidade de estabelecer um debate sobre o embate de muitas igrejas, em nossos tempos, quando até mesmo muitas guerras são deflagradas em nome de Deus.

20.Acontradiçãohumanafoiapresentadapormeiodeumaimagem,emdoismomentosdoconto.Trata-sedaimagemdasfranjas.Destaqueosdoismomentosaosqueaquestãoserefere.ÉoDiaboquemutilizaaimagemdasfranjaspelaprimeiravezquan-dofalaaDeus:“(...)asvirtudes,filhasdocéu,sãoemgrandenúmerocomparáveisarainhas,cujomantodeveludorematasseemfranjasdealgodão.Ora,euproponho-meapuxá-lasporessafranja,etrazê-

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lastodasparaminhaigreja;atrásdelasvirãoasdesedapura...”.OsegundomomentoestánodesfechoirônicodocontoquandoDeusdiz:“—Quequerestu,meupobreDiabo?Ascapasdealgodãotêmagorafranjasdeseda,comoasdeveludotiveramfranjasdealgodão.Quequerestu?Éaeternacontradiçãohumana”.

21.AqualpersonagemdoautodeGilVicenteaimagemdasfranjaspoderiaserassociadaparaexplicarsuaconduta?A qualquer personagem que tivesse entrado em contradição: aoOnzeneiro e seu dinheiro deixado, em parte, na terra; a BrígidaVaz,que,apesardeserviraoshomensdaigreja,exploravameninascomercialmente;aoParvo,que,apesardesevalerdeumalingua-gemdebaixocalão,imprópriaparaoambientecelestial,possuíaainocênciadascrianças,eassimpordiante.

22.Quem,nocontodeMachadodeAssis,écondenadoequeméabsolvido?Noconto,ahumanidadeéabsolvidaenquantooDiaboécondena-domaisumavez.

23.Épossível,nocontodeMachadodeAssis,verificaromesmomani-queísmoapresentadonoAuto da barca do inferno?Professor – questão aberta para debate e produção de texto.

LEITURA 3

ESTRUTURA PROCESSIONAL E A ALEGORIA VICENTINA

I – CIRANDA, CIRANDINHA...

Doisjogosinfantisnosremetemaumaestruturafixaquepodeser comparada à estrutura processional do teatro alegórico de GilVicente:ojogoestabelecidonascantigasderodaeojogodaamare-linha.Paraoprimeiro,utilizaremosumacantigapopularque,porsi,explicaacondiçãoritual.Paraojogodaamarelinha,umpequenotrechosobreaobrahomônimadoescritorargentinoJulioCortázarnosauxiliará.Leiacomatençãoerespondaàsquestõesseguintes.

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TEXTO 11CANTIGA DE RODA

Ciranda,cirandinhaVamostodoscirandarVamosdarameia-voltaVoltaemeiavamosdar

OanelquetumedesteEravidroesequebrouOamorquetumetinhasErapoucoeseacabou

Menina,minhameninaFazfavordeentrarnarodaCantaumversobembonitoDizeadeusevaiembora

Domíniopúblico

Professor – caso seja possível, faça com que alguns alunos representem a cantiga de roda do texto 11 e explore as possíveis variações da letra.

1.Existemváriascantigasparaabrincadeiradaciranda.Relacioneasquevocêconhece.Professor – a resposta é livre, mas seria bastante adequado solicitar aos alunos que cantassem as cantigas que lembraram.

2.Paraacantigaregistradanotexto11,abrincadeiraexigeque,en-quantocanta,umadaspessoasqueformamocírculocomogrupolibere-semomentaneamente e váparao centrodeclamar algunsversosqueconheça.Acantigaéretomadaemsinaldeaprovação.Vocêconhecealgumaoutracantigaemqueojogosejaparecido?Professor – a ideia desse aquecimento é fazer o aluno visualizar a es-tratégia do jogo para depois ver com maior clareza a estrutura da obra de Gil Vicente. Por isso, quanto maior a variedade de respostas, melhor para o grupo.

3.Asegundaestrofeiniciacomumametáforaquelogoseexplica.Destaque-aeapresenteseusignificado.“Oanelque tumedeste/Eravidro (...)”, emreferênciaaoamor,significaqueeleébelo,maslogoserompe.Écomoseacantigaanunciasseaefemeridadedascoisasnavida.

4.Vocêjáouviuaexpressão“cirandadavida”?Compareametáforaexploradanaquestão3aosmovimentosquefazemosnaprópriavida.

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Professor – evidentemente a resposta é livre, mas procure garantir uma re-flexão que obedeça ao jogo comparativo das ações.

5.Porqueépossívelafirmarqueaestruturadessabrincadeirasecom-paraàutilizadaporGilVicenteemseuAuto da barca do inferno?Aestruturapodesercomparadaporsemelhança,umavezque,as-simcomonabrincadeiraderoda,aspersonagensdeGilVicenteentramemcenae logoqueproferemsua fala saemdocentroeassumemumlugarnogrupo,abrindoespaçoparaopróximopar-ticipante.

TEXTO 12RAyUELA

[...]Larayuelasejuegaconunapiedritaquehayqueempujarconlapuntadelzapato.Ingredientes:unaacera,unapiedrita,unza-pato,yunbellodibujocontiza,preferentementedecolores.EnloaltoestáelCielo,abajoestálaTierra,esmuydifícilllegarconlapiedritaalCielo,casisiempresecalculamalylapiedrasaledeldibujo.Pocoapoco,sinembargo,sevaadquiriendolahabilidadnecesariaparasalvarlasdiferentescasillas(rayuelacaracol,rayuelarectangular,rayueladefantasía,pocousada)yundíaseaprendeasalirdelaTierrayremontarlapiedritahastaelCielo,hastaentrarenelCielo(...).Lomaloesquejustamenteaesaaltura,cuandocasinadiehaaprendidoaremontarlapiedritahastaelCielo,seacabadegolpelainfanciaysecaeenlasnovelas, en laangustiaaldivinocohete, en laespeculacióndeotroCieloalquetambiénhayqueaprenderallegar.Yporquesehasalidodelainfancia(...)seolvidaqueparallegaralCielosenecesitan,comoingredientes,unapiedritaylapuntadeunzapato.

CORTÁzAR,Julio.Rayuela. Madrid:Cátedra,2000.

Ojogodaamarelinha[...]Ojogodaamarelinhasejogacomumapedrinhaquedeve

serempurradacomapontadosapato.Ingredientes:umacalçada,umapedrinha,umsapatoeumbelodesenhoagiz,depreferência,colorido.NoaltoestáoCéu,embaixoestáaTerra,émuitodifícilchegarcomapedrinhaaoCéu,quasesempresecalculamal,eapedrasaidodesenho.Poucoapouco,contudo,sevaiadquirindoahabilidadenecessáriaparasalvarasdiferentescasinhas(jogodaamarelinha em forma de caracol, retangular, de fantasia, poucousada)eumdiaseaprendeasairdaTerraelevarapedrinhaatéoCéu,atéentrarnoCéu(...);oruiméque,justamentenessafase,quandoquaseninguémaprendeualevarapedrinhaatéoCéu,se

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acabaderepenteainfânciaesechegaaosromances,àangústiadodivinofoguete,àespeculaçãodeoutroCéuaoqualtambéménecessárioaprenderachegar.Eporquesesaiudainfância(...)seesquecequeparachegaraoCéuénecessário,comoingredientes,umapedrinhaeapontadeumsapato.

Tradução:DaviFazzolari

Professor – caso haja condições adequadas, peça a alguns alunos que demonstrem o jogo da amarelinha para a turma. O melhor seria fazer todos participarem.

6.ConformeotextodeJulioCortázar,qualéoobjetivodojogodaamarelinha?Ojogadordevealcançaracasaquerecebeuumapedrinhalançadaporelemesmo,sempredemodoprogressivo,atéestaremcondi-çõesdelançarapedrinhaàúltimacasa,chamadaCéu.

7.Quemetáforapodeestarcontidanojogodaamarelinha.Ojogodaamarelinhapodeserarepresentaçãodaprópriabuscahumana em vida. Todos iniciam um percurso na Terra, que é onomedadoàprimeiracasinhaondeosjogadorespisam,e,desen-volvendohabilidades,tentamatingiroCéu,nomedaúltimacasi-nhaeobjetivofinaldojogo.

8.Compareomovimentodojogadorpromovidopelojogodaamareli-nhacomodabrincadeiraexploradaanteriormente.Acomparaçãoépordiferença.Enquantoosparticipantesdacirandamovimentam-sedemodocircular,nojogodaamarelinha,mesmoem sua modalidade em forma de caracol, o jogador deve avançarcasasatéchegaràúltima,chamadaCéu.

9.Omovimentodojogador,nojogodaamarelinha,podesercom-paradoaqualmovimentodepersonagensdoAuto da barca do in-ferno?NoAuto da barca do inferno,assimcomonojogodaamarelinha,osparticipantestêmporobjetivoatingiroCéu.Nãodependemapenasdasorte,masdashabilidadesdesenvolvidasanteriormente,quenocasodaspersonagenspoderiamserlidascomovirtudes.

10.JulioCortázar,antesdeconcluirsuadescrição,acrescentaumobstáculoquepoderiasersuperadodemodosimples,dependendodojogador.Dequesetrata?Cortázaratribuiaocrescimentoeàconsequentemudançadefase,

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dainfantilparaaadulta,oobstáculoqueimpediráaconclusãosa-tisfatóriadojogo.É,estranhamente,umafaseemqueohomemseesquece,segundooautor,dosingredientesbásicosparaseatingiroobjetivo.

11.“Eporquesesaiudainfância(...)seesquecequeparachegaraoCéuénecessário,comoingredientes,umapedrinhaeapontadeumsapato.”.Emoutraspalavras,oCéuseatingecomsimplicida-de.QualpersonagemdeGilVicenteémaismerecedoradoCéu,selevarmosemconsideraçãoadescriçãodeJulioCortázar?Aspersonagensmaispróximasdascaracterísticasdascrianças.NoAuto da barca do inferno,Joane,oParvo,éomaisindicado,apesardemuitas falasdeoutraspersonagens tambémlembraremfalasinfantis.

II – PERSONAGENS ALEGÓRICAS

Apersonagemalegóricarepresenta,comovimos,todooseg-mentosocialaoqualpertence.Dessaforma,oautosemostradidáti-coeumagiota,porexemplo,estaránolugardetodoequalquerpro-fissionalqueemprestadinheiroajuros.Umlavradoremcenaestaránolugardetodohomemdocampoquetrabalhadiretamentecomaterra,naproduçãoagrícola;umbispo,todososhomensdaigreja;umprofessor,todososprofissionaisdaeducação.Ostextosaseguirservirãoaoquestionamentodesseaspecto.Otexto13foiextraídodoAuto da barca do infernoeotexto14pertenceàobradopoetabrasilei-roJoãoCabraldeMeloNeto,queviveuentre1920e1999.

TEXTO 13AUTO DA BARCA DO INFERNO

Tanto que o Frade foi embarcado, veio uma Alcoviteira, por nome Brí-gida Vaz, a qual, chegando à barca infernal, diz:

BRÍGIDA Houládabarca,houlá!

DIABO Quemchama?

BRÍGIDA BrígidaVaz.

DIABO Eia,aguarda-me,rapaz: Porquenãovemelajá?

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COMPA- DizquenãohádevircáNHEIRO semJoanadeValdez.

DIABO Entraivós,eremareis.

BRÍGIDA Nãoqueroeuentrarlá.

DIABO Quesaborosoarrecear!...

BRÍGIDA Nãoéessabarcaqueeucato.

DIABO Etrazeisvósmuitofato?

BRÍGIDA Oquemeconvémlevar.DIABO Queéoquehaveisdeembarcar?

BRÍGIDA Seiscentosvirgospostiços etrêsarcasdefeitiços quenãopodemmaislevar.

Trêsarmáriosdementir ecincocofresdeenleios, ealgunsfurtosalheios, assimemjoiasdevestir, guarda-roupadeencobrir, enfim–casamovediça; umestradodecortiça comdoiscoxinsdeembair. Amaiorcargaqueé: essasmoçasquevendia. Destamercadoria tragoeumuitas,poisé!

DIABO Orapondeaquiopé.

BRÍGIDA Hui!EeuvouparaoParaíso!

DIABO Equemtedisseatiisso?

BRÍGIDA Jáheideirdestamaré.

Eusouumamártirtal, açoitestenhoeulevado etormentossuportado

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queninguémmefoiigual. Seeufosseaofogoinfernal, láiriatodoomundo! Aestaoutrabarca,cáaofundo, mevoueu,queémaisreal.

E chegando à Barca da Glória, diz ao Anjo:

BRÍGIDA Barqueiro,mano,meusolhos, pranchaaBrígidaVaz!

ANJO Eunãoseiquemtecátraz...

BRÍGIDA Peço-vo-lodegiolhos! Cuidaisquetragopiolhos, anjodeDeus,minharosa? Eusouaquelapreciosa quedavaasmoçasaosmolhos, Aquecriavaasmeninas paraoscônegosdaSé... Passai-me,porvossafé, meuamor,minhasboninas, olhosdeperlinhasfinas! Eeusouapostolada, angeladaemartelada, efizcoisasmuitodivinas.

SantaÚrsulanãoconverteu tantascachopascomoeu: todassalvaspelomeu quenenhumaseperdeu. EprouveÀqueledoCéu quetodasacharamdono. Cuidaisquedormiaeusono? Nempontosemeperdeu!

ANJO Oravailáembarcar, nãomeestêsimportunando.

BRÍGIDA Poisestou-voseucontando oporquêmehaveisdelevar.

ANJO Nãocuresdeimportunar, quenãopodesiraqui.

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BRÍGIDA Equemá-horaeuservi, poisnãomehádeaproveitar!

Torna-se Brígida Vaz à Barca do Inferno, dizendo:

BRÍGIDA Houbarqueirosdamá-hora, pondeaprancha,queeismevou; hájámuitoqueaquiestou, epareçomalcáfora.

DIABO Oraentrai,minhasenhora, esereisbemrecebida... Sevivestessantavida, vósosentireisagora...

VICENTE,Gil.Auto da barca do inferno.SãoPaulo:Saraiva,2008.(ClássicosSaraiva).

12.AironiadoDiaboaofinaldoepisódiodeBrígidaVazfoicons-truídaaolongodafaladaprópriaalcoviteira.Oquejustificaafala“sevivestessantavida,/vósosentireisagora...”?Trata-sedeumaironiacriadaapartirdaconversaqueBrígidadesen-volveucomoAnjoequeoDiaboouviu.Brígidaafirmaque,emvida,serviu,comsuasmeninas,tambémaoscônegosdaSé.

13.DestaquedoepisódioexpressõesquedescrevemBrígidaVaz.“Eusouaquelapreciosa/quedavaasmoçasaosmolhos./Aquecriavaasmeninas/paraoscônegosdaSé.../(...)Eeusouapostolada,/angela-daemartelada,/efizcoisasmuitodivinas.”

14.DestaqueumargumentousadoporBrígidaVazparanãoviajarnabarcadoDiabo.“Seeufosseaofogoinfernal,/láiriatodoomundo!”

15.BrígidaVaz, emsuaopinião, tinhaconsciênciadeque levavaumavidadesviadadasleisdivinas?Justifiquesuarespostaapartirdeelementosdoprópriotexto.AsfalasdeBrígidaVazaoAnjoparecembemsinceras,e,assimsendo, ela não tinha consciência da vida promíscua que levava,umavezquetinhaaprovaçãodaprópriaSantaSé.

Professor – essa é uma excelente oportunidade para desenvolver debates. A temática é ampla: as últimas afirmações vindas do Vaticano acerca do uso de preservativos; os novos pecados; as fronteiras entre as leis divinas e as leis humanas; as possibilidades de se viver de modo religioso em tempos de limitação e consumismo etc.

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16.Os“pecados”cometidosporBrígidaVazsãodecorrênciadafal-tadeobservaçãoàsleisdivinasregistradasnaBíblia.Tratando-sedeumapersonagemalegórica,aquaissegmentossociaispodeserestendidasuarepresentação?Professor – muito provavelmente as respostas apresentarão os setores so-ciais que diretamente exploram comercialmente a prática sexual. Con-vém fazer com que os jovens estudantes evitem o discurso condenatório e de caráter segregacionista. Nessas ocasiões é muito importante reforçar a postura acadêmica para desenvolver a leitura crítica.

TEXTO 14MORTE E VIDA SEVERINA (AUTO DE NATAL PERNAMBUCANO)

O retirante explica ao leitor quem é e a que vai

–OmeunomeéSeverino,nãotenhooutrodepia.ComohámuitosSeverinos,queésantoderomaria,deramentãodemechamarSeverinodeMaria;comohámuitosSeverinoscommãeschamadasMaria,fiqueisendoodaMariadofinadozacarias.Masissoaindadizpouco:hámuitosnafreguesia,porcausadeumcoronelquesechamouzacariasequefoiomaisantigosenhordestasesmaria.ComoentãodizerquemfalaoraaVossasSenhorias?Vejamos:éoSeverinodaMariadozacarias,ládaserradaCostela,limitesdaParaíba.Masissoaindadizpouco:seaomenosmaiscincohaviacomnomedeSeverinofilhosdetantasMariasmulheresdeoutrostantos,jáfinados,zacarias,

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vivendonamesmaserramagraeossudaemqueeuvivia.SomosmuitosSeverinosiguaisemtudonavida:namesmacabeçagrandequeacustoéqueseequilibra,nomesmoventrecrescidosobreasmesmaspernasfinas,eiguaistambémporqueosanguequeusamostempoucatinta.EsesomosSeverinosiguaisemtudonavida,morremosdemorteigual,mesmamorteseverina:queéamortedequesemorredevelhiceantesdostrinta,deemboscadaantesdosvinte,defomeumpoucopordia(defraquezaededoençaéqueamorteseverinaatacaemqualqueridade,eatégentenãonascida).SomosmuitosSeverinosiguaisemtudoenasina:adeabrandarestaspedrassuando-semuitoemcima,adetentardespertarterrasempremaisextinta,adequererarrancaralgunsroçadodacinza.Mas,paraquemeconheçammelhorVossasSenhoriasemelhorpossamseguirahistóriademinhavida,passoaseroSeverinoqueemvossapresençaemigra.

NETO,JoãoCabraldeMelo.Morteevidaseverina.In:Serial e antes. RiodeJaneiro:NovaFronteira,1997.

17.Logono iníciodoauto,a intençãodoprotagonistaSeverinoéapresentar-seaoleitor/espectador,masesbarraemumproblemadeidentificação.Porqueissoacontece?

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Severinopossuiomesmonomedemuitosdesuaregiãodeori-gem.Porisso,nãoconsegueserespecífico.

18.Selevarmosemconsideraçãoaestratégiadaalegoriadosautos,quesegmentosocialSeverinorepresenta?Severino,comoseanuncianoiníciodacena,éumretirante,e,comoelemesmodiz,éumemigrante.Estánolugardetodoequalquerho-memdenossopaísqueéforçadoasairdesuaterraparaencontrarlugarmaisadequadoàsobrevivência.

19.Qualdosjogosapresentadosnostextos11e12explicamelhorasituaçãodeSeverino?AviagemdeSeverino,empresençadosleitores/espectadores,serámaisbemexplicadapelaestratégiadojogodaamarelinha,noqualojogadordevesuperarobstáculosaospoucosatéchegaraodestino.

20.EparaocasodeBrígidaVaz,qualdosjogosmelhorilustrasuaparticipaçãoemcena?ParatodasaspersonagensdoAuto da barca do inferno,acantigaderodaservedeboailustração,eBrígidaVaznãoéexceção.Assimcomoasoutras,entraemcena,apresentaseusdizeresevoltaparaogrupoformadopelasdemaispersonagens,emumestruturacir-cularqueserepeteatéofinaldoauto.

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