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Biblioteca Nacional de Portugal
– Catalogação na Publicação
TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALISTA E REGIME POLÍTICO
NO PORTUGAL CONTEMPORÂNEO
Trabalho, acumulação capitalista e regime político no Portugal
contemporâneo : estudos em homenagem a António Monteiro Cardoso
e Dalila Cabrita Mateus / coord. António Simões do Paço… [et al.]. –
1ª ed. – (Extra-colecção)
ISBN 978-989-689-639-3
I – PAÇO, António Simões do, 1957-
CDU 94(469)”18/20”
Este trabalho é financiado por Fundos FEDER através do Programa Operacional
Factores de Competitividade – COMPETE e por Fundos Nacionais através da
FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projeto UID/HIS/04209/2013
Título: Trabalho, acumulação capitalista e regime político no Portugal
contemporâneo. Estudos em homenagem a António Monteiro
Cardoso e Dalila Cabrita Mateus
Coordenadores: António Simões do Paço, Maria Augusta Tavares,
Raquel Varela, Diogo Cancela
Editor: Fernando Mão de Ferro
Capa: Raquel Ferreira
Depósito legal n.º 420 437/17
Lisboa, Janeiro de 2017
ÍNDICE
Introdução ..................................................................................................... 7
«Houve um genocídio na África portuguesa»
Entrevista com Dalila Mateus
Isabel Braga .............................................................................................. 13
«Em Portugal o século XIX foi um período extraordinário de
movimentações populares» Entrevista com António Monteiro Cardoso
Raquel Varela ............................................................................................ 23
Acumulação, regime e revolução: contributos para a história
do capitalismo português (séculos XIX-XX)
Raquel Varela, Felipe Abranches Demier, Luísa Barbosa Pereira ............ 41
Direito ao trabalho e segurança no emprego em Portugal: 1951-2013
Eduardo Petersen ...................................................................................... 61
Os dois andamentos do marcelismo
Fernando Rosas ......................................................................................... 81
Anos de brasa: uma visão do movimento operário português
na década de 70
Miguel Pérez ............................................................................................. 85
O movimento operário na Setenave
Jorge Fontes ............................................................................................ 101
6 | TR ABAL HO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …
A lei geral da acumulação capitalista e as relações de trabalho
na atualidade
Marcelo Badaró Mattos ........................................................................... 113
Robôs e inteligência artificial: utopia ou distopia
Michael Roberts ...................................................................................... 135
Consciência operária e acumulação capitalista
Maria Augusta Tavares ........................................................................... 155
A esquerda marxista e as questões do regime político.
Marx e a ditadura do proletariado
António Simões do Paço ......................................................................... 171
História e literatura em As Vinhas da Ira
Camilo Domingues ................................................................................. 179
A chamada acumulação primitiva
Karl Marx ................................................................................................. 201
Biografias dos autores ............................................................................... 253
INTRODUÇÃO
Trabalho, acumulação capitalista e regime político no Portugal con-
temporâneo é um livro colectivo que tem por objectivo homenagear
António Monteiro Cardoso e Dalila Cabrita Mateus, investigadores do
Instituto de História Contemporânea falecidos em 11 de janeiro de 2016 e
30 de outubro de 2014, respectivamente.
Nascida em Viana do Castelo em 1952, Dalila Cabrita Mateus era
mestra em História Social Contemporânea e doutora em História Moder-
na e Contemporânea, tendo focado a sua investigação na história das ex-
-colónias portuguesas e da guerra colonial. Sem deixar de ser professora
no ensino secundário, estava ligada ao Grupo de História Global do
Trabalho do Instituto de História Contemporânea da UNL.
A sua tese de doutoramento, de onde foi extraído o livro A PIDE/DGS
na guerra colonial 1961-1974 (Terramar, 2004), tornou-se uma referên-
cia para os interessados no papel da antiga polícia política nas ex-
-colónias.
Dalila escreveu vários livros com o marido, Álvaro Mateus, ex-
-militante do PCP (até 1987), professor, advogado, jornalista e professor,
falecido em 5 de agosto de 2013, como o conhecido e polémico Purga em
Angola (Texto Editores, 2009), sobre os acontecimentos do 27 de Maio
de 1977. Desta parceria resultaram ainda títulos como Angola 61. Guerra
colonial: causas e consequências (Texto Editora, 2011) e Nacionalistas
de Moçambique. Da luta armada à independência (Edições Asa, 2012).
Em livros como Memórias do Colonialismo e da Guerra (Edições
Asa, 2006) e A Luta pelas Independências (Inquérito, 2006) Dalila Ma-
teus estudou a resistência anticolonial, as memórias do colonialismo, o
trabalho forçado durante o Estado Novo e a luta pelo poder em Angola.
“A Dalila era uma historiadora corajosa”, escreveu Raquel Varela no
seu blogue por altura da morte da nossa colega e amiga, “e o seu acto
mais destemido foi ter escolhido estudar a PIDE nas ex-colónias, provan-
do que era uma polícia facínora, que cometia assassinatos, uma polícia
muito eficaz que operava em relação estreita com o Exército, e com um
8 | TR ABAL HO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …
apoio massivo entre os colonos que, ao contrário do que acontecia no
‘continente’, os acolhiam respeitosamente nas cidades africanas quando
estes entravam num hotel ou restaurante (salvo honrosas excepções)”.
As entrevistas realizadas para a feitura de Purga em Angola, um mate-
rial precioso que era necessário proteger, estão depositadas na Torre do
Tombo. Também o seu arquivo foi entregue à guarda de Raquel Varela,
num almoço tristíssimo dois meses antes da sua morte – dois livros
estavam a caminho e muitos outros podem sair daquela imensidão de
notas, documentos e saber acumulado. Aguardam o interesse dos investi-
gadores, jovens e menos jovens, que queiram dar seguimento ao seu
valioso trabalho.
António Monteiro Cardoso nasceu em Freixo de Espada à Cinta em 8
de Setembro de 1950. Estudou em Lisboa, onde se licenciou na Faculda-
de de Direito em 1974. Em Direito, no início dos anos 70, inicia uma
actividade política organizada contra o regime que Caetano herdara de
Salazar e contra a guerra colonial. Participa nos CLAC – Comités de Luta
Anti-Colonial, e adere ao MRPP – de que viria a afastar-se em 1977.
Exerceu funções como jurista em diversas áreas, em especial no direito
da comunicação social, tendo publicado o livro Da Liberdade de Impren-
sa, com Alberto Arons de Carvalho e Nuno Godinho de Matos. Com
Arons de Carvalho e João Pedro de Figueiredo publicaria também Direito
da Comunicação Social.
A partir de finais dos anos 70, passou a dedicar-se também à pesquisa
histórica, de que resultou a obra A Guerrilha do Remexido, em co-autoria
com António do Canto Machado.
Desde então, orientou as suas investigações para os oratorianos de
Freixo de Espada à Cinta e para Trás-os-Montes na época das lutas libe-
rais, assuntos a que dedicou numerosos artigos, muitos deles publicados
na revista Brigantia.
Doutorou-se em História Moderna e Contemporânea, em 2005, no
ISCTE-IUL, Instituto Universitário de Lisboa, com a tese “A Revolução
Liberal em Trás-os-Montes (1820-1834) – O Povo e as Elites”. Interes-
sou-se também por Timor-Leste e publicou Timor na 2.ª Guerra Mundial
– O Diário do Tenente Pires, sobre a ocupação japonesa.
É autor, com António d’Oliveira Pinto da França, da obra Correspon-
dência Luso-Brasileira, vol. I Das Invasões Francesas à Corte no Rio de
Janeiro (1807-1821) e vol. II Cartas Baianas – O Liberalismo e a Inde-
pendência do Brasil (1821-1823).
Quando morreu, em 11 de janeiro de 2016, era membro desde há al-
gum tempo do Grupo de História Global do Trabalho do Instituto de
História Contemporânea da UNL. Transmontano, o António apaixonou-
INTROD UÇÃO | 9
-se por compreender o século XIX na sua complexidade, demonstrando
que as revoltas “conservadoras” tinham pouco de nacionalismo ou ideo-
logia e muito de sobrevivência. Os seus protagonistas eram, como ele
afirma na entrevista que integra este volume – e que ele, já muito doente,
foi cuidadosamente corrigindo, com a seriedade, o cuidado, a atenção, a
clareza que punha em todos os seus trabalhos –, “camponeses pobres, que
aproveitam a resistência contra os franceses para hostilizar os proprietá-
rios locais, acusando-os de jacobinos e afrancesados. Foi uma vaga de
grande violência, que levou à pilhagem de casas e mesmo ao assassínio
de magistrados e outras autoridades. Uma espécie de rebelião popular,
que atingiu praticamente todo o País”.
Além das entrevistas com os dois homenageados, este volume integra
um estudo de Raquel Varela, Felipe Abranches Demier e Luísa Barbosa
Pereira sobre “Acumulação, regime político e revolução: contributos para
a história do capitalismo português (séculos XIX-XX)” que procura
demonstrar a tese de que “o projeto de desenvolvimento nacional que
assentava na ideia de que a elevação dos salários e do bem-estar era
compatível com o desenvolvimento capitalista e, portanto, poderia ser
encontrado um equilíbrio entre frações de classes sociais distintas, jamais
logrou êxito em Portugal”.
“Direito ao trabalho e segurança no emprego em Portugal (1951-
-2013)”, do jurista (e doutorando em História Contemporânea na FCSH)
Eduardo Petersen, sustenta que “o direito ao trabalho constitucionalmente
garantido e conceptualizado como um direito humano ao trabalho digno
nunca foi assistido de condições plenas de efectivação, condições estas
que hoje, no essencial, deixaram de existir”.
Em “Os dois andamentos do marcelismo”, Fernando Rosas fala-nos
“da falência do reformismo chegado ao poder, a crónica da impossibili-
dade política de resolver a questão da guerra e, com isso, de levar por
diante um processo de transição a partir do próprio regime. No primeiro
andamento, tentar liberalizar sem abandono do esforço militar nas coló-
nias; num segundo andamento, manter o esforço militar em África, sacri-
ficando a liberalização e, com ela, o próprio regime”.
Miguel Pérez, em “Anos de brasa: uma visão do movimento operário
português na década de 70”, conta-nos a história da reconstituição do
movimento operário organizado em Portugal no período final da ditadura
e na grande explosão social que se sucedeu ao 25 de Abril de 1974.
Jorge Fontes, em “O movimento operário na Setenave”, como que
complementa esta história centrando a sua análise nos estaleiros navais da
Setenave e na “sua importância na história das relações laborais em Portu-
gal: do controlo operário aos ‘pactos sociais’ e à reconversão industrial”.
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Em “A lei geral da acumulação capitalista e as relações de trabalho na
actualidade”, de Marcelo Badaró Mattos, professor titular (catedrático) de
História do Brasil na Universidade Federal Fluminense (Niterói, Brasil) e
também investigador associado/visitante no Instituto de História Contem-
porânea da UNL, discute o quadro atual de crescimento e predomínio de
um perfil “precário” da classe trabalhadora ao redor do mundo à luz da
formulação da “lei geral da acumulação capitalista” expressa por Marx
em O Capital.
O economista Michael Roberts, autor do muito recente e actual The
Long Depression (Haymarket, 2016), em “Robôs e inteligência artificial:
utopia ou distopia, o futuro do trabalho?” discute as implicações destas
novas tecnologias para o capitalismo. Mais concretamente, se “estão os
robôs e a inteligência artificial destinados a tomar de assalto o mundo do
trabalho, e, por conseguinte, a economia, nas próximas gerações, e o que
é que isso significa em termos de empregos e qualidade de vida para as
pessoas?”
Em “Consciência operária e acumulação capitalista”, Maria Augusta
Tavares, do Grupo de Pesquisas sobre o Trabalho da UFPB-Brasil e
também membro do Grupo de História Global do Trabalho e dos Confli-
tos Sociais do IHC/FCSH/UNL, tenta compreender porquê, “embora as
formas de existência na sociedade capitalista sejam tão desumanas para o
trabalhador”, “o discurso liberal advogado pelo Estado e materializado
nas relações capitalistas tem sido assumido pela maioria dos trabalhado-
res”.
António Simões do Paço, em “A esquerda marxista e as questões do
regime político”, investiga, a partir dos escritos de Karl Marx e dos seus
críticos coevos ou contemporâneos, o significado do conceito de ditadura
do proletariado, a sua génese e a sua relação com os acontecimentos
históricos do período em que foi formulado.
Em “História, Acumulação e Literatura em As Vinhas da Ira”, Camilo
Domingues, graduado em Artes Cénicas pela Universidade Federal da
Baía e mestre em História pela Universidade Federal Fluminense (Nite-
rói, Brasil), aborda o romance do grande escritor norte-americano John
Steinbeck e a discussão ao redor da obra, do seu escritor e a partir dos
factos históricos retratados, bem como a partir das suas abordagens
literárias.
Este volume é completado por um famoso texto de Karl Marx, do li-
vro I de O Capital, sobre “A chamada acumulação primitiva”, uma
acumulação “que não é”, nas palavras de Marx, “resultado do modo de
produção capitalista, mas seu ponto de partida”. “Essa acumulação primi-
tiva”, escreveu Marx, “desempenha na economia política um papel aná-
logo ao pecado original na teologia. Adão mordeu a maçã e deste modo o
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pecado desceu sobre o género humano. Explica-se a sua origem contan-
do-a como episódio ocorrido no passado. Em tempos muito remotos,
havia, por um lado, uma elite laboriosa, inteligente e sobretudo parcimo-
niosa, e, por outro lado, uma ralé preguiçosa que dissipava tudo o que
tinha e mais que houvesse.” Assim se explicava, e explica, “que os pri-
meiros acumularam riquezas e os últimos, finalmente, nada tinham para
vender a não ser a sua própria pele”. Ora Marx, aqui no papel de historia-
dor, trata de demonstrar como “na história real”, “a conquista, a subjuga-
ção, o assassínio para roubar, em suma, a violência, desempenham o
principal papel”, não a preguiça ou a diligência de uns e outros. O texto
em português que aqui incluímos é fixado por António Simões do Paço a
partir de duas traduções em português já existentes, a da edição brasileira
da Abril Cultural (São Paulo, 1984) e a de José Barata-Moura e Álvaro
Pina para a Editorial Avante! e a tradução inglesa de Samuel Moore e
Edward Aveling, editada por Friedrich Engels.
Não nos ocorre melhor forma de homenagear o António Monteiro
Cardoso e a Dalila Cabrita Mateus que prosseguindo aquilo a que eles
dedicaram boa parte das suas vidas: exercendo o trabalho de historiado-
res, que com eles tivemos o privilégio de partilhar.
Os coordenadores: António Simões do Paço,
Maria Augusta Tavares, Raquel Varela, Diogo Cancela
“HOUVE UM GENOCÍDIO NA ÁFRICA PORTUGUESA ”
Entrevista com Dalila Mateus*
Isabel Braga
A historiadora Dalila Mateus apresentou no ISCTE, a 25 de Março [de
2004], um doutoramento sobre “A PIDE/DGS na Guerra Colonial”. Este
foi o resultado de quatro anos de investigação, que incluiu entrevistas a
dezenas de antigos presos políticos em Angola e Moçambique, para onde
a historiadora viajou várias vezes, com um subsídio do Instituto de Coo-
peração Científica e Tecnológica Internacional. Em Maio, a tese será
publicada num livro com o mesmo título pela editora Terramar.
Colonialismo português “não foi de brandos costumes”!
Dalila Mateus discorda da classificação do colonialismo português como
tendo sido mais brando que outros de outras nações europeias. “Não sou
eu que digo que não havia brandos costumes nenhuns, é a própria PIDE
que o afirma e que critica a violência dos colonos”, afirma Dalila Mateus.
A historiadora remete para vários documentos. Num deles, São José
Lopes afirma, em 1973, que, nas operações de repressão da PIDE/DGS às
“organizações clandestinas” em Angola, é “de evitar que os europeus
tomem parte activa nessa repressão”. Dalila Mateus explica: “É que,
quando vinham as camionetas carregadas de presos, havia colonos que se
entretinham a disparar contra as camionetas”. A tese cita também docu-
mentos em que a PIDE refere a falta de educação dos colonos. Um relató-
rio de 1965, da subdelegação em Carmona, alude à “falta de preparação
* Publicada na edição de 29 de abril de 2004 do jornal Público. Reproduzida com
autorização expressa da autora.
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da população europeia”. Um outro relatório, de 1970, informa Luanda do
caso de um rapaz de 17 anos “barbaramente chicoteado na Fazenda Santa
Maria”. Noutro relatório, em Fevereiro de 1973, a PIDE assinala que
alguns trabalhadores da Fazenda S. Julião apresentavam sinais de espan-
camentos violentos. Em Tete, Moçambique, o inspector Sabino, conheci-
do como um torcionário da PIDE, escreve num relatório: “A maioria dos
administradores, eivados de mentalidade retrógrada como reis absolutos,
juntam e dispõem das massas africanas para contratos de trabalho ou para
a reparação de estradas”. Dalila Mateus conclui: “Se foi a própria PIDE,
de métodos brutais, a fazer esta avaliação, como é que se pode falar de
brandos costumes!”
Quando é que a PIDE [Polícia Internacional de Defesa do Estado] surge em África?
Em 1954, quando se dá uma reorganização desta polícia. De qualquer
forma, antes da guerra colonial, determinados personagens já eram lá
conhecidos, por exemplo, Roquete, um antigo jogador de futebol, que
atinge uma patente elevada na PIDE e que já vinha da PVDE [Polícia de
Vigilância e Defesa do Estado, que dá lugar à PIDE em 1945]. Havia a
percepção de um grande movimento entre a África do Sul e Moçambique
e Roquete foi investigar. Os moçambicanos, efectivamente, iam à África
do Sul e traziam informação e propaganda do Partido Comunista Sul-
-Africano.
Mas a PIDE, enquanto estrutura policial, surge só em 1954 nas colónias?
A legislação é de 1954, mas só em 1957 aparecem os primeiros funcioná-
rios. É criada uma sede em Lourenço Marques e uma em Luanda, ambas
ligadas à PSP. Quando se dá o ataque às cadeias em Luanda, no 4 de
Fevereiro de 1961, foi às cadeias que estavam adstritas à PSP, não a
cadeias da PIDE.
A PIDE não tinha cadeias próprias nas colónias?
No começo não, só vem a tê-las a partir de 1961, depois dos aconteci-
mentos que marcaram o início da guerra colonial, e que foram o assalto às
cadeias em Luanda, em 4 de Fevereiro, e o ataque da UPA na zona dos
Dembos, a 15 de Março. Nessa altura, é presa tanta gente que vai ser
preciso reabrir o campo do Tarrafal em Cabo Verde, para receber presos de
Angola. Em Angola, os presos políticos vão, primeiro, para a Cadeia de S.
Paulo, depois há o Forte de São Pedro da Barra onde a quantidade de
presos é tal que os que entram acabam por esmagar os que estão lá dentro.
O Campo de Péu Péu, também em Angola, que recebia presos comuns,
ENTREVISTA CO M DALIL A MATEU S | 15
muda de nome para Campo do Missombo e começa a receber presos
políticos. Quando, mais tarde, o MPLA cria a frente leste de luta, a PIDE
teme a chegada dos guerrilheiros àquela zona e o Missombo desaparece e
todos os presos são enviados para S. Nicolau, a que chamaram “o Tarrafal
angolano”. Em Moçambique há a prisão de Sommerchild, a cadeia da
Machava, a Fortaleza do Ibo, o campo de trabalho de Mabalane…
É possível fazer um cálculo do número de presos que passaram por essas cadeias todas?
É muito difícil saber ao certo. Na cadeia da Machava, em 1974, estavam
largos milhares de presos, tal como no campo de Mabalane… O proble-
ma é que só havia registos dos dirigentes dos movimentos pró-indepen-
dência. Também só eles eram levados a tribunal, e isto apenas no início
da guerra. Sobre todos os outros, arrebanhados em rusgas às dezenas ou
centenas, não havia registos nenhuns. As rusgas da PIDE tinham muitas
vezes o carácter de massas, nos musseques. No Calemba, em 1966, foram
detidas duas mil pessoas. Em Dezembro de 1968, nos musseques Mora e
Rangel, são presas, respectivamente, 441 e 489 pessoas.
As medidas de segurança ou administrativas eram aplicadas em África como cá?
Sim, e muito pior do que cá.
A PIDE foi apanhada de surpresa pela revolta da população negra em 1961?
Não, a PIDE tinha a informação toda, começa logo em Janeiro de 1961 a
avisar os Ministérios do Interior e do Ultramar, e ninguém liga. Mas a
PIDE tinha redes de informadores muitíssimo bem colocadas, alguns
deles estavam mesmo dentro dos movimentos de libertação. Já no final de
1960, há um colaborador da PIDE em Leopoldville [antigo Congo belga]
que envia para Luanda uma carta a um hipotético amigo em que diz, e
vou citar: “Dentro em breve explodirá na nossa terra de Luanda uma
grave revolta, pois todos os naturais de Angola aqui residentes estão
preparados para o assalto. Informai todos de que dentro em breve se vai
espalhar uma grave onda de revoltas não só aí mas em todas as localida-
des de Angola. Acautelai-vos bem.” Em 13 de Março, uns dias antes dos
ataques nos Dembos, um informador do posto de Cuimba vem avisar um
servente de que vai haver graves ataques dos homens da UPA e que iam
ser mortos muitos brancos. Dias depois, chegam informações de Cabinda
de que a UPA se prepara para entrar em Angola. Na véspera do 15 de
Março, o posto da PIDE em São Salvador informa sobre o que vai acon-
tecer. A PIDE transmitiu tudo isto para Luanda e para Lisboa, e nada é
16 | TRABA LHO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …
protegido nem salvaguardado. Possivelmente não terão acreditado no que
um PIDE dizia.
Quem montou essas redes?
Gente de Lisboa. São José Lopes e António Vaz eram os responsáveis
pela PIDE em Angola e Moçambique, respectivamente, sendo o primeiro
o inspector superior do Ultramar.
São José Lopes é sempre referido como alguém muito próximo de Costa Gomes, quando este era o comandante em chefe das Forças Armadas portuguesas em Angola. Quem foi este personagem?
São José Lopes foi sempre uma grande figura em Angola, já era da PIDE
quando estudava aqui em Lisboa, no Instituto Superior de Economia e
Finanças, onde foi colega de Vasco Cabral, da Guiné. É de facto um
homem com uma grande capacidade de trabalho, os relatórios mais
perspicazes sobre a situação de guerra são dele, é de uma capacidade de
análise espectacular.
Como era a estrutura da PIDE colonial?
Em Angola, a PIDE chegou a ter nove subdelegações e cerca de 40 postos
em todo o território, num total de 801 funcionários. Em Moçambique
existiam 583 funcionários, em sete subdelegações e pelo menos uma
quinzena de postos. Na Guiné, havia 82 funcionários numa dúzia de
postos. Em Angola, por volta de 1966, também existiam brigadas móveis.
Estas, para o trabalho de informação e contra-subversão, apoiavam-se em
grupos de voluntários africanos. Terão sido os resultados animadores
desta experiência que levaram a PIDE a criar o Corpo de Auxiliares, mais
tarde estruturado nos Flechas.
Os informadores também eram numerosos nas colónias? Quem eram eles?
Eram bastantes. O inspector Pereira de Carvalho, que era o director do
Serviço de Informação da PIDE/DGS em 1974, dizia que um informador
era qualquer indivíduo com acesso a qualquer sector da vida política, que
tinha que ter um pseudónimo e ser pago. Podiam até ser os comerciantes,
muitas vezes eram. A partir do início da guerra colonial vai haver mesmo
o chamado espião, a PIDE monta redes de espionagem nos países limítro-
fes das colónias.
Quem controlava essas redes?
O controlo era feito na central da PIDE, em Lisboa, na Rua António
Maria Cardoso.
ENTREVISTA CO M DALIL A MATEU S | 17
Pode dar exemplos de uma rede dessas?
Havia a rede da Zâmbia, dois sobas desse país que faz fronteira com
Angola, com o Zimbabwe, o Malawi e Moçambique. Através dessa rede
era possível apanhar informação de todos os movimentos dos guerrilhei-
ros, quer da UPA quer dos do MPLA, quer dos da Frelimo. No Congo,
havia a “Madame X”. Havia um agente provocador na Guiné, dizia que
era da ARA para ver se conseguia obter informações dos guerrilheiros do
PAIGC. Havia ainda informadores ocasionais, há um enfermeiro que não
sabia se havia de ir trabalhar para o MPLA ou para a UPA, é a PIDE que
lhe diz para ir para a UPA, que era melhor. A PIDE cativa pessoas a troco
de dinheiro, que podia ser muito ou pouco, podia até haver quem recebes-
se uma lata de marmelada ou uma garrafa de Casal Garcia ou uns suposi-
tórios de transbronquina e ficasse satisfeito.
Quem era a ‘Madame X’?
“Madame X” era uma informadora colocada no Congo pela PIDE, “uma
mulher com uma história muito complicada”. A mãe de “Madame X”,
casada com um espanhol, era uma comunista que se infiltra no Partido
Socialista Republicano espanhol, refugia-se em França, acaba por ir para
o Congo belga e casa por lá. A filha regressa a Espanha e vai viver com
umas tias ricas, que a vão educar num ódio feroz ao comunismo. Apaixo-
na-se por um primo que a engravida e recusa-se a casar com ela. Em
consequência disso, é expulsa da casa das tias. Já mãe, a trabalhar “num
negócio”, conhece uns portugueses e torna-se amante de um deles, com
quem vem para Lisboa, mas ele abandona-a. Em Lisboa, “Madame X”
começa a fazer traduções e monta um prostíbulo, frequentado por gente
vinda de África. Um porteiro de um hotel manda-lhe um cliente, Edmond
Nlandu, antigo ministro de Kasavubu, que oferece a “Madame X” um
lugar de secretária no Congo belga. A PIDE recruta-a como informadora,
paga o colégio da filha, em Portugal, e ela vai para o Congo, encarregada
de descobrir quais as ligações dos independentistas e por onde entravam
as armas dos guerrilheiros.
Nas colónias, a PIDE era uma instituição respeitada ou apenas temida?
A generalidade dos colonos respeitava a PIDE, porque considerava que
era esta que impedia a subversão de chegar às portas da capital. Encontrei
uma informação confidencial da própria PIDE, em 1966, em Luanda, que
diz: “Tanto nesta capital como por toda a parte existe um enorme respeito
e muita gratidão pela acção que a PIDE vem desenvolvendo em Angola,
ninguém regateando louvores à sua actuação”. Na minha tese, um entre-
18 | TRABA LHO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …
vistado conta-me que estava na fila para um notário e apareceu um ho-
mem com uns papéis na mão a gritar “eu sou da PIDE, eu sou da PIDE”,
e toda a gente o deixou passar à frente. Aqui em Portugal isso seria
impensável. Quando foi da descolonização, listas de pessoas, em Luanda,
foram queixar-se dos maus tratos que sofreram às mãos da PIDE, disse-
ram os nomes dos agentes e não aconteceu nada a nenhum deles, não foi
apanhado nem um. Em Moçambique foram presos pouquíssimos, no 7 de
Setembro fogem todos, as cadeias foram abertas pelos colonos. Mesmo
nos musseques de Luanda, muitos colonos que viviam no limite entre o
musseque e a chamada cidade do asfalto acabam por dar protecção aos
pides.
A PIDE apercebeu-se antes dos militares que a guerra colonial estava perdida?
Em Moçambique, em 1973, a PIDE dá informações de que as nossas
tropas estão a ser vencidas e Kaúlza de Arriaga vem dizer “não, não, isto
está ganho”. Em fins de 1973, começos de 1974, na Beira, Moçambique,
há grandes manifestações de colonos contra o Exército, por este estar a
perder a guerra. Nessa altura, São José Lopes manda informações a dizer
que está preocupado com a divisão entre civis e militares. A PIDE fazia
uma muito boa análise da situação. Quer Pereira de Carvalho quer Silva
Pais [o último director da PIDE/DGS] sabiam muito bem o que se passa-
va. António Vaz, chefe da delegação da PIDE em Lourenço Marques,
tem consciência de que vão perder o controlo sobre a guerra, que os
guerrilheiros estão a avançar, cada vez com mais armas e melhor equi-
pamento.
A guerra colonial estava perdida?
Em Moçambique sim, e também na Guiné, em Angola era diferente. Aí a
PIDE foi talvez mais eficaz em termos de repressão, tudo o que era grupo
que começasse a surgir no musseque era preso, as redes de apoio ao
MPLA eram apanhadas umas atrás das outras. Em Angola a PIDE soube
utilizar a calúnia; por exemplo, forjava panfletos do MPLA a dizer mal da
UPA, ou da UNITA, era a contra-informação muito bem desenvolvida e
trabalhada. A certa altura, o próprio São José Lopes tem medo das conse-
quências deste tipo de actuação.
Havia uma colaboração estreita entre a PIDE e os militares?
Havia. Em Angola, sem dúvida. Os militares não gostam muito de admi-
tir isso, Costa Gomes era uma excepção, ele assumiu mesmo essa colabo-
ração e dava todo o valor à informação estratégica que a PIDE dava.
ENTREVISTA CO M DALIL A MATEU S | 19
Toda a gente sabia disso?
Sabiam as chefias.
Em que é que se traduzia a colaboração?
A PIDE participou em operações ao lado de militares, acompanhou as
tropas no massacre de Wiriamu, e há outros massacres do mesmo género
em que participou, massacres de populações civis, em que ninguém
ficava vivo. Há operações militares conduzidas pela própria PIDE, como
aquela que levou à desarticulação dos Comités de Acção Clandestina, do
MPLA, em Julho de 1970. São presas cerca de 100 pessoas.
Houve muitos massacres?
Antigos presos falam-me de variadíssimos massacres. Muitas vezes não
sobrevivia quase ninguém, ou sobreviviam só crianças, pequeníssimas,
não ficou ninguém para contar. Tive alguns presos de Moçambique que
me falaram de uma praia, Tohofinho, onde a PIDE ia descarregar presos
na maré para serem depois comidos pelos tubarões. Havia coisas destas,
mas é muito difícil gerir esta dor toda e pôr as pessoas a falar. Nos mas-
sacres ardia tudo, dizimavam tudo. A ONU pediu a Portugal que investi-
gasse. É Costa Gomes – estávamos já depois do 25 de Abril –, que vai
fazer que isso não seja tratado. Em Dezembro de 1973 a Assembleia
Geral da ONU criou uma comissão de inquérito encarregada de estudar
os massacres e as violações dos direitos humanos na África portuguesa. A
comissão confirma uma extensa e aterradora lista de crimes de guerra,
traduzindo, e vou citar, “uma prática comum frequente e generalizada de
acções traduzindo uma política de genocídio por parte do Governo portu-
guês”. Não tenho dúvidas em dizer que houve mesmo um genocídio.
Massacres com a participação da PIDE?
“Nos massacres de Wiryiamu, Juwau e Chaole, a matar estiveram por
toda a parte os comandos e os africanos dos Grupos Especiais ou os
Flechas”, afirma a historiadora na sua tese. E aponta como os “organiza-
dores do morticínio os comandantes da Zona Operacional de Tete com o
consentimento do governador” daquele distrito. “No massacre de Mu-
cumbura, em Maio de 1971, segundo os padres Valverde e Hernandez, os
comandantes eram um sargento e um agente da PIDE/DGS. Bateram,
torturaram e massacraram, da maneira mais cruel, inofensivos campone-
ses, cujo único crime era terem dado alimentos aos guerrilheiros. Em
Inhaminga, a PIDE/DGS queria desfazer-se dos presos que se amontoa-
vam nas cadeias. Segundo uma estimativa, 35 africanos foram metidos
num camião e transportados para o meio do mato, à beira de um caminho
20 | TRABA LHO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …
que passava por detrás do hospital, na direcção de Thombo la Mphale e
Massandza. Naquele sítio foi aberta uma vala, onde foram enterrados os
homens fuzilados. Mais tarde, foram transportados, fuzilados e enterrados
mais dois grupos de 30 a 48 pessoas. Agora na Zambézia, na zona com-
preendida entre as missões de Milange, de Mocuba e a serra de Morrum-
bala, funcionários administrativos, acompanhados de agentes da PI-
DE/DGS, fizeram uma busca, desconfiando da existência de guerrilhei-
ros. Os guerrilheiros não foram encontrados. Contudo foram mortos
centenas de homens e mulheres indefesos. Já depois do 25 de Abril, na
aldeia de Sena, em Moçambique, foi descoberta uma vala comum com as
ossadas de dezenas de africanos, que teriam sido torturados e assassina-
dos pela PIDE.”
As tropas utilizavam armas proibidas?
Na tese, falo no célebre “agente laranja”, que era um desfolhante e vai ser
utilizado pelos portugueses em Moçambique, há o carbúnculo, foi o
próprio Costa Gomes a contar que eram preparadas caldas bacteriológicas
no Hospital Egas Moniz e é ele que as manda destruir. Foi usado “na-
palm”. Há um guerrilheiro que fala da “rega” e as bombas incendiárias
eram constantes.
O que é isso da “rega”?
Entrevistei um guerrilheiro do MPLA que fala nisso, a “rega” era quando
os aviões vinham pela manhã, cinco, seis horas, deixar cair desfolhantes
químicos, se caíssem na pele queimavam. Penso que também aconteceu
em Moçambique. Depois, as lavras não davam nada e a população passa-
va fome. Este ex-guerrilheiro explicou-me o tipo de cicatrizes que os
desfolhantes deixavam e tenho reparado em africanos com esse tipo de
marcas, muito irregulares.
A actuação da PIDE endureceu com o avanço da guerra colonial?
A PIDE é de uma grande violência logo desde o começo da guerra.
Quantos mortos fez a PIDE em África?
Sei que devem ser milhares, os presos falam de muitos milhares, que
foram apanhados pelos massacres. Presos dentro das cadeias, morreram
umas centenas largas, muitas.
A PIDE em África também distinguia entre presos intelectuais e operários, entre brancos e negros?
Sim, fazia essa distinção, mas a distinção tinha também que ver com o
cargo que desempenhavam no movimento. São poucos os julgamentos,
ENTREVISTA CO M DALIL A MATEU S | 21
em geral os dirigentes vão a tribunal e os brancos também. O António
Dias Cardoso, o Luandino Vieira e o António Jacinto vão a julgamento. E
são muito maltratados. Houve um indivíduo crucificado no Campo de
São Nicolau, para dar o exemplo aos outros de que não podiam fugir.
A PIDE não desapareceu em Angola com o 25 de Abril?
Mudou de nome, passou a chamar-se Polícia de Informação Militar
(PIM), e continuou a mandar informações para Lisboa. Só desapareceu
quando foi nomeado o primeiro governo provisório em Angola, depois da
independência.
“EM PORTUGAL O SÉCULO XIX FOI UM PERÍODO
EXTRAORDINÁRIO DE MOVIMENTAÇÕES POPULARES”
Entrevista com António Monteiro Cardoso
Raquel Varela
António Monteiro Cardoso:
É curioso tomarmos como tema o século XIX, uma época muito esqueci-
da, não obstante ser imprescindível para compreendermos a época actual.
Esse esquecimento deve-se em grande parte ao facto de se tratar de um
período de revoluções, conforme lhe chamou Hobsbawm numa das suas
obras. De facto, também em Portugal o século XIX foi um período extra-
ordinário de movimentações populares, desde o princípio até ao fim.
Era isso que eu queria perguntar. Se fizesses um roteiro de todas as mobilizações populares do século XIX, quais seriam as mais impor-tantes?
Destacaria a resistência às invasões francesas como a principal movi-
mentação popular, tanto mais que foi aí que tudo começou. Há um antes e
um depois desse acontecimento.
Quem são os sujeitos sociais aí?
Os sujeitos sociais são essencialmente camponeses pobres, que aprovei-
tam a resistência contra os franceses para hostilizar os proprietários
locais, acusando-os de jacobinos e afrancesados. Foi uma vaga de grande
violência, que levou à pilhagem de casas e mesmo ao assassínio de ma-
gistrados e outras autoridades. Uma espécie de rebelião popular, que
atingiu praticamente todo o País.
24 | TRABA LHO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …
Apesar disso fala-se dos brandos costumes do povo português…
Isso é uma construção mítica feita a partir do apagamento dos factos que
desmentem essa ideia. Brandos costumes, nada! Mas não foi o Alexandre Herculano o primeiro a vir com essa ideia?
Pelo contrário, o Alexandre Herculano temia e odiava as movimentações
da plebe. Impressionado pela sua intervenção na revolução de Setembro
de 1836, de que já falaremos, exilou-se na Galiza, onde publicou um
escrito chamado A Voz do Profeta, uma feroz diatribe contra as classes
populares, a quem chama “antropófagos”, “sedentos de sangue”, “migue-
listas” e assim por diante. Enfim, foi uma posição tomada a quente, num
momento difícil para ele… Mas voltando às invasões francesas, o que é que a resistência popular trouxe de novo?
Muita coisa, e irreversível. Desde logo, o armamento popular com armas
de fogo e o treino no seu manejo. A partir de então, qualquer movimento
assume facilmente uma expressão armada, quer em Portugal, quer em
Espanha. Não te esqueças de que o termo “guerrilha” é um vocábulo
castelhano, designando uma táctica de combate, que se difundiu pelo
mundo inteiro. Outra consequência não menos importante é o doutrina-
mento prático causado pela guerra, a ideia embrionária de que é possível
e legítimo ao povo intervir nos acontecimentos políticos. Mas quais eram as ideias que os moviam?
A isso é mais difícil responder, porque esta mobilização surge quase
sempre sob bandeiras tradicionalistas de defesa do trono e do altar e de
combate ao jacobinismo. Isto, por força da acção do clero, que dessa
forma pretende dirigi-la. E em boa parte consegue-o. Só que, ao mesmo
tempo, atacam-se autoridades e proprietários ricos com a maior violência. E como explicas essa contradição?
Acho que o povo queria era acima de tudo ajustar contas com os podero-
sos locais de quem não gostava e ver-se livre das autoridades que os
oprimiam. A razão desde ódio terá a ver com ofensas à sua “economia
moral” e a uma desaprovação moral da desigualdade social desmesurada,
enfim aquilo que George Rudé e Raymond Huard chamaram política
popular. E o povo não quereria evitar a desapropriação ou expropriação? Ou seja a proletarização?
Naquela altura, em Portugal, era muito, muito cedo para se colocar o
problema.
ENTREVISTA CO M ANTÓNIO MONTEIRO CAR DOSO | 25
Mas não existiam já algumas alterações que provocaram descontentamento?
Bem, desde meados do século XVIII, durante o pombalino e no reinado
seguinte, tiveram lugar as primeiras apropriações privadas de baldios, que
provocaram descontentamentos locais, sobretudo aos que se dedicavam
ao pastoreio nesses terrenos comuns. Foram tomadas medidas de rees-
truturação fundiária, que passaram pela abolição de caminhos públicos
em benefício dos donos das propriedades atravessadas e pela venda
compulsiva de prédios encravados e contíguos, em favor dos proprietá-
rios confinantes. Estas e outras medidas vão numa lógica de afirmação de
um novo tipo de propriedade murada.
E os proprietários mais ricos tentam apropriar-se…
Sem dúvida, mas trata-se ainda de um movimento pouco generalizado,
que se confinava a uma esfera local. O grande ataque aos baldios só se
verificou depois da vitória dos liberais, em 1834, e durará ainda muitos
anos.
Também é na altura de Pombal que se cria a Companhia da Agricul-tura das Vinhas do Alto Douro. Quer dizer, o Estado… já tem a ver com isso ou não?
A Companhia criou uma zona demarcada para a produção e comerciali-
zação do vinho, que controlava despoticamente, através de centenas e
depois milhares de empregados. Um avanço enorme do poder de Estado,
que assumia um peso enorme, se o compararmos com o escasso número
de magistrados e outros funcionários ao serviço da coroa.
Mas voltando de novo atrás, às invasões francesas, referiste há bocado que o povo atacara os poderosos, incluindo os magistrados.
É verdade. Embora os magistrados, corregedores e juízes de fora, fossem
poucos, eram todos letrados e vinham imbuídos de uma concepção jurídi-
ca, assente na lei escrita, contra o direito consuetudinário das populações,
o que os tornava pouco populares. O certo é que nestes levantamentos o
povo se lançou em perseguição dos magistrados e chegou a assassinar
alguns.
Mas queriam matar os juízes porquê?
Porque prendiam pessoas do povo, ou seja os que tinham de infringir a lei
para sobreviver. Além disso, havia um óptimo pretexto para ajustar
contas. Eles tinham cumprido as ordens dos franceses e era facílimo
apontá-los como “afrancesados” e jacobinos perigosos.
26 | TRABA LHO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …
Então era uma luta contra o Estado? Era o que eu queria dizer…
Existe uma oposição às autoridades do Estado, que põem em causa os
costumes locais e um certo autogoverno local, mas nesta altura o aparelho
administrativo e judicial a nível local é muito débil. À excepção das
circunscrições mais importantes, onde exercem funções juízes letrados de
carreira, na maioria das povoações são nomeados juízes leigos (juízes
pela lei ou pela ordenação), escolhidos entre os vizinhos, pelo que inte-
gram a comunidade local, ao contrário dos juízes letrados (corregedores e
juízes de fora), que facilmente são vistos como “despóticos”.
A crise do Estado leva as populações a avançar…
Claro que as invasões francesas e a ausência do rei no Brasil forneceram
pretextos para alguns povos se recusarem a pagar os tributos, invocando
que as ordens de cobrança não tinham sido subscritas pelo soberano e
outros argumentos semelhantes.
Quer dizer que se iniciou um processo de alguma desagregação do Estado.
Que foi rapidamente preenchido pela constituição, nas principais cidades
e vilas, de juntas governativas, chefiadas por bispos ou oficiais do Exérci-
to, mas que nalguns casos, como em Viseu e Arcos de Valdevez, incluí-
ram elementos que visavam mudanças, o que provocou grandes receios às
autoridades.
Mas tudo acabou por se restabelecer, através da acção da Igreja e da
nobreza das províncias, com o auxílio, a partir de 1809, dos ingleses, que
não permitiram qualquer mudança política.
Então os ingleses sustentaram o poder de Estado, mas armaram as populações.
Enquanto durou a guerra, apoiam-se nas ordenanças, que já estavam
armadas. Constituíam a terceira linha da força armada, que praticamente
incluía toda a população capaz de pegar em armas. Para este efeito, o País
estava dividido em capitanias-mores, comandadas pelos capitães-mores e
demais oficiais, que eram civis, membros das elites locais. Em tempo de
guerra, reuniam anualmente e tratavam do recrutamento para o exército
permanente, o que lhes dava grande influência local.
E qual foi a importância das ordenanças nesta guerra?
Foi muito importante, sobretudo depois das revoltas de 1808 contra os
franceses. Os invasores tinham dissolvido o Exército português e por isso
os oficiais que lideraram a sublevação tiveram que se valer das ordenanças.
ENTREVISTA CO M ANTÓNIO MONTEIRO CAR DOSO | 27
É no papel desempenhado pelas ordenanças, que de algum modo consti-
tuem o “povo armado”, que se estriba o mito do grande levantamento
nacional contra o invasor. E não é?
É um grande levantamento contra os ocupantes, mas não existia então a
ideia de nação. Esses mitos fundadores do passado histórico português,
com os seus heróis e façanhas heróicas, só se divulgaram entre o povo
muito depois, a partir de fins do século XIX, ao longo da República,
Estado Novo… Os camponeses não sentiam que estavam a defender a nação, mas sim o seu bocado de terra?
Sim. Estavam defender as casas e as famílias das atrocidades do Exército
francês, que pilhava, matava, incendiava, destruía tudo à sua passagem.
Chegaram ainda aos nossos dias expressões como “roupa de franceses”,
que significa coisas destruídas e “ir para o maneta”, aludindo ao general
Loison, célebre pelas suas devastações. Queria fazer-te uma pergunta. O Alentejo…
O Alentejo é um mundo à parte. Queria que me explicasses essa ideia, que referiste na conferência, de que o Alentejo era um bocado uma zona incontrolada.
Sempre foi. O Alentejo sempre foi… A ideia que eu tenho é que era uma zona de grande propriedade e que sempre foi assim.
Não. Nesta altura existiam algumas grandes propriedades em zonas com
bons solos, nas proximidades de Évora e Beja, e um número considerável
de pequenos cultivadores directos. O resto era um imenso matagal, que se
manteve até bem dentro do século XIX. Um território propício ao bandi-
tismo, que aí vai constituir um fenómeno endémico.
Mas como e quando é que isso se modificou e surgiram os latifúndios no Alentejo e no Ribatejo?
Sucedeu depois da vitória liberal de 1834.
Como?
Então, terminada a guerra civil, com a Convenção de Évora-Monte,
D. Miguel partiu para o exílio e os liberais assumiram o governo. É um
novo mundo que começa. Há um Portugal diferente entre o antes e o
depois de 34.
28 | TRABA LHO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …
Porquê?
Porque na sequência da extinção das ordens religiosas masculinas, deter-
minada em 30 de Maio de 1834, os bens dos conventos, juntamente com
os domínios da Casa do Infantado, da Casa da Rainha e da Patriarcal,
foram à praça, vendidos como “bens nacionais”. Ora, ao contrário da
promessa de os dividir em porções, para facilitar a compra pelas “classes
menos abastadas”, acabaram por ser adquiridos ao desbarato pelas princi-
pais figuras do partido vencedor, a par de usurários e especuladores
financeiros, que os arrebataram por baixo preço, grande parte do qual
pagaram com títulos da dívida pública e outros passados por serviços
prestados.
Foi um processo imenso de transferência de propriedade!
Foi a primeira grande privatização. Assim se formaram grandes domí-
nios, por exemplo, o duque de Palmela ficou com a serra da Arrábida,
confiscada à Casa do Infantado, enquanto ao duque da Terceira coube o
Sobralinho de Alverca. E não ficou por aqui. Ficou célebre pelo escân-
dalo que causou a venda directa das lezírias do Tejo e do Sado a uma
companhia de capitalistas formada à pressa, contra a lei que previa a
arrematação e sem dar tempo a que outras se constituíssem. Uma boa
parte do preço foi pago com títulos de dívida pública, que eram aceites
pelo seu valor nominal.
Claro! Isso representou a acumulação primitiva.
Os casos que te referi foram os de maior alcance, mas o mesmo se passou
em todo o País, onde havia bens nacionais que foram adquiridos por
indivíduos que os compraram graças aos títulos admissíveis na sua com-
pra. Tive um antepassado que arrematou todos os bens de um convento
que foi à praça. Ficou com todos!
Espantoso!
Passou a habitar no convento, depois de dessacralizada a igreja, tal como
o fizeram muitos outros compradores de conventos.
E para onde foram os frades expulsos desses conventos?
Foram para casa das famílias e lá se integraram. Os que eram sacerdotes
tinham mais facilidade, porque podiam ingressar no clero secular, tornan-
do-se párocos.
Mas ainda sobre os antigos conventos: muitos passaram, sobretudo nas
cidades, a ser utilizados como quartéis, hospitais e outros edifícios públi-
cos.
ENTREVISTA CO M ANTÓNIO MONTEIRO CAR DOSO | 29
Deixa-me agora voltar ao assunto com que iniciámos esta conversa, o roteiro das movimentações populares no século XIX. Quais são os momentos mais importantes?
Então, anos depois dos levantamentos populares de 1808-1809, vamos
entrar na época da revolução liberal, iniciada no Porto em 1820. Trata-se
de um pronunciamento militar, promovido pelo Sinédrio, sem participa-
ção popular. Aliás, foi feito para evitar a eclosão da “anarquia” da plebe,
que ocorrera no tempo dos franceses. Por isso, só organizaram a guarda
nacional à beira da abolição do regime constitucional, com a Vila-
-Francada, em 1823, à qual os liberais não ofereceram resistência. Então em 1823 não eclodiu um envolvimento popular?
Não. Mas o caso mudou de figura anos depois, quando da tomada do
poder por D. Miguel em 1828. Para fazer face à revolta militar liberal que
então eclodiu no Porto, os partidários de D. Miguel mobilizaram o povo,
formando guerrilhas por todo o País, sob o comando de magistrados,
eclesiásticos e membros da nobreza das províncias. Essa mobilização vai
manter-se e aprofundar-se ao longo da guerra civil de 1832-1834. E qual é a atitude popular nessa guerra?
Essa é uma grande questão. Os miguelistas, ou seja, os partidários do
“antigo regime”, mobilizaram um Exército de mais de 80 000 homens
para derrotar os liberais que tinham desembarcado no continente. Além
disso, contavam ainda com corpos de milícias, voluntários realistas e a
nível local com as ordenanças.
Então a população apoiou a causa de D. Miguel?
Essa é a ideia construída por muitos autores, que se torna dominante a
partir da publicação em 1881 do Portugal Contemporâneo, de Oliveira
Martins, segundo a qual o povo português…
… era todo reaccionário.
Ele diz que o povo fora tomado por uma adoração fanática por D. Miguel,
da “paixão miguelista do País inteiro”. Era a tese do unanimismo migue-
lista, que António Sérgio critica num artigo de 1955, mas não havia uma
investigação histórica sobre a atitude da população naquele conflito.
O número esmagador das forças mobilizadas na guerra civil pelos mi-
guelistas, as exuberantes manifestações de apoio a D. Miguel evidencia-
riam sem mais esse apoio de quase todo o País. Ora para começar, essas
descrições omitiam o facto de ser fácil a quem detém o poder e os apare-
lhos de coacção e propaganda mobilizar apoiantes. O Estado Novo, com
as suas “manifestações espontâneas”, mostrou-nos bem como isso se faz.
30 | TRABA LHO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …
E então qual achas que foi realmente a atitude popular?
Para responder a isso, fui estudar o comportamento do povo da província
de Trás-os-Montes durante a revolução liberal, talvez a província cuja
população tem mais fama de miguelista.
E porquê?
Porque saíram de lá alguns dirigentes contrarrevolucionários importantes,
especialmente o conde de Amarante, que se opôs à revolução de 1820, e o
filho, que será o marquês de Chaves, que se revolta contra o regime
constitucional em 1823 e contra a Carta Constitucional em 1826-1827,
altura em que invade o País vindo de Espanha, onde se exilara.
Mas nestas contas esquece-se sempre que o chefe militar da revolta de
1820 e o principal sustentáculo do novo regime foi precisamente o bra-
gançano Bernardo de Sepúlveda.
Mas isso foram as elites, quanto ao povo…
A investigação que levei a cabo deu origem à minha tese de doutora-
mento, que se chama precisamente “A Revolução Liberal em Trás-os-
-Montes (1820-1834). O Povo e as Elites”.
E que concluíste?
Depois de ter investigado as relações dos réus processados nas devassas
ordenadas por D. Miguel, que contei um por um e agrupei por naturalida-
des e profissões, e de ter lido os maços de correspondência entre as
autoridades locais e a Intendência-Geral da Polícia, concluí que, ao
contrário do estereótipo corrente, houve uma parte considerável da popu-
lação transmontana que apoiou a causa liberal. Só na comarca de Vila
Real foram processadas 903 pessoas, a maior parte pequenos viticultores
e trabalhadores rurais da zona mais oriental do Douro (o baixo Corgo).
Eram liberais porque se opunham à Companhia, que viam como um
poder despótico que os desfavorecia. Mas isso é uma longa história…
Mas outros sectores rurais apoiavam D. Miguel…
Obviamente. Além dos elementos do povo que projectaram em D. Miguel
as suas esperanças de ter uma vida melhor, ajudados decerto por ideias
difundidas por membros do clero, outros alinharam porque de contrário
iam presos e viam as casas arruinadas. Ademais prometiam-se vantagens
tentadoras aos partidários de D. Miguel. Estou a lembrar-me, por exem-
plo, da formação do batalhão de voluntários realistas de Serpa. O coman-
dante prometeu repartir os baldios de Aldeia Nova de S. Bento entre os
que se inscrevessem e o batalhão ficou rapidamente preenchido. Pudera!
ENTREVISTA CO M ANTÓNIO MONTEIRO CAR DOSO | 31
É delicioso!
Depois esta mobilização e o armamento de muita gente teve consequên-
cias semelhantes aos levantamentos de 1808. Uma vez de armas na mão,
muita gente aproveitou para ajustar contas: “Viva D. Miguel” e toca a
perseguir gente rica, que apanhavam a jeito ou até autoridades, acusando-
-os de “malhados” (alcunha dos liberais) para lhes assaltarem as casas. O
miguelismo no poder, entre 1828-1834, representou um período de tu-
multos e de ataques a pessoas e propriedades, um quotidiano de “exces-
sos” que as autoridades mal conseguem conter.
Espantoso!
Pois, sob a capa do miguelismo, muitas tensões sociais tiveram oportuni-
dade de se manifestar. Aliás, continuaram a manifestar-se nalgumas
zonas, mesmo após a derrota e exílio de D. Miguel.
Em que zonas?
Após a derrota apareceram guerrilhas miguelistas por quase todo o País,
constituídas quase sempre por foragidos, que em regra pouco se aguenta-
ram no terreno, à excepção de uma guerrilha que surgiu no Sul, tendo por
base a serra do Algarve e abrangendo o Alentejo e que chegou a operar
perto de Lisboa.
Essa guerrilha constitui um caso inédito em Portugal, pois foi a única que
se manteve em armas por um período longo (1836 até por volta de 1843).
É difícil datar o fim com exactidão.
Como se chamava a guerrilha?
Ficou conhecida como guerrilha do Remexido, nome pelo qual era co-
nhecido o seu chefe, José Joaquim de Sousa Reis, um lavrador residente
em S. Bartolomeu de Messines, que se tornou miguelista, tendo sido
encarregado, como oficial de ordenanças, do comando de grandes massas
da população pobre da serra do Algarve, quando esta em 1833 se lançou
ao assalto das povoações do litoral algarvio para as saquear e assassinar
os liberais, o que fizeram em Albufeira. Uma grande chacina.
Por causa destes actos de extrema violência, o Remexido teve de se
esconder na serra, que conhecia bem, e em 1836 reapareceu em armas,
com outros foragidos, criando uma nova guerrilha. Claro que com muito
menos gente.
Mas então a guerra civil foi muito violenta.
Dentro da guerra civil há como que duas guerras. A guerra civil do cerco
do Porto e depois de Lisboa foi uma guerra clássica de cerco e de algu-
32 | TRABA LHO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …
mas batalhas, travada por exércitos regulares, obedecendo às leis da
guerra. Quando a guerra se estendeu ao Sul foi diferente, porque os
miguelistas, em desespero, organizaram forças irregulares de guerrilhas e
a consequência foram assassinatos e massacres, como o do castelo de
Estremoz, em que os presos liberais foram chacinados, e o de Algalé,
perto de Alcácer do Sal.
Mas a guerrilha do Remexido, reaparecida em 1836, foi diferente, não?
O Remexido procurou dar uma forma regular à guerrilha, para evitar a
violência descontrolada. Todos usavam patentes militares conferidas por
ele e reconhecidas por D. Miguel a partir do exílio, o que lhe deu um
estatuto político que evitou que fossem considerados bandidos. Apesar de
serem poucos, intitulavam-se como Exército Realista do Sul, tudo reco-
nhecido por D. Miguel, que nomeou o Remexido brigadeiro e o condeco-
rou com a Ordem da Torre e Espada.
Então era uma força disciplinada?
Sim, aplicavam a disciplina militar com rigor, ou seja comportavam-se
como se se tratasse de um verdadeiro exército. O que não impedia o
Remexido de executar os espias e os liberais que encontrasse pelo cami-
nho. Em resposta, o Governo liberal decretou a lei marcial, que permitia o
fuzilamento célere dos guerrilheiros apanhados com armas na mão.
À parte esses casos, havia no Remexido alguma coisa do bom bandido, no sentido que lhe dá Hobsbawm?
Não creio. A guerrilha não tinha qualquer prática ou objectivo redistribu-
tivo, o que não a impediu de ter a duração que teve. O Remexido foi
fuzilado em 1838 e a guerrilha continuou com o filho dele, que durou um
ano, mas aquilo era de uma maneira que morria o chefe e avançava logo
outro. O objectivo da guerrilha era ajudar a restaurar o trono e o altar, e
todos seriam felizes.
Mas para se aguentarem tinham de contar com apoio popular…
E tinham. Os habitantes da serra do Algarve prestam-lhe um grande
apoio, em resultado do envolvimento que tinham tido com os miguelistas
no final da guerra. É claro que por trás da causa de D. Miguel há aspira-
ções à propriedade, patentes ainda hoje em lendas que dizem que deter-
minada terra foi dada ao povo por D. Miguel, que a demarcou montado a
cavalo. É claro que ele nunca esteve lá.
ENTREVISTA CO M ANTÓNIO MONTEIRO CAR DOSO | 33
Há bocado disseste que a guerrilha se estendera ao Alentejo.
Na verdade, no Alentejo actuam guerrilhas miguelistas com chefes pró-
prios, que são os irmãos Baioa de Ervidel. Ficam subordinadas ao Reme-
xido, mas com grande autonomia. A guerrilha dos Baioas vai exercer uma
grande atracção sobre os jornaleiros alentejanos, que vêem nela uma
forma de subsistência, porque o Remexido pagava o pré aos guerrilheiros.
Grande número dos guerrilheiros presos e fuzilados são jornaleiros oriun-
dos dos arredores de Beja: Baleizão, Quintos, Salvada, Cabeça Gorda e
outras aldeias. Para eles a guerrilha era um recurso para quando não havia
trabalhos agrícolas e para preencherem necessidades essenciais, como por
exemplo, vestirem-se.
Curioso, esses sítios vão ser muito fortes na reforma agrária…
Nessa altura já eram aldeias de proletários. Não com a dimensão poste-
rior, mas que tinham bastantes assalariados agrícolas.
Mas como é que a guerrilha se financiava?
O dinheiro vinha de Roma, onde D. Miguel se exilara. Era enviado para
uma junta secreta em Lisboa, que o fazia chegar à guerrilha.
O dinheiro vinha do Vaticano?
Não, não. O Vaticano não se metia nisso. O dinheiro era dado por alguns
miguelistas ricos, que viviam em Roma, e nunca faltou, mas não era a
única fonte. Desde o início, o Remexido, no Algarve, e os irmãos Baioa,
no Alentejo, trataram de buscar dinheiro onde o havia. Sabes onde? Eles
só podiam entrar e, de fugida, em pequenas povoações, mas em todas elas
havia dinheiro no estanco do tabaco, de que eles tratavam de se apoderar.
A imposição de contribuições aos mais abonados fazia o resto.
Como conseguiste estudar em pormenor essas guerrilhas?
Para espanto meu e do meu colega António do Canto Machado, encon-
trámos o espólio da guerrilha, até então desconhecido, no Arquivo Histó-
rico Militar.
Bem, o melhor é retomarmos o nosso roteiro. O que se segue nos anos seguintes?
Temos de falar da revolução de Setembro de 1836. É uma revolução feita
por camadas intermédias, que representavam uma facção liberal mais
avançada. Para começar, foi feita pelas guardas nacionais de Lisboa, que
impuseram a queda do Governo à Rainha.
34 | TRABA LHO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …
Mas de onde vieram as guardas nacionais?
Ao contrário dos miguelistas, que não hesitaram em mobilizar o povo,
incluindo as suas camadas mais baixas, os liberais sempre se mostraram
relutantes a fazê-lo. No entanto, as dificuldades da guerra civil levaram-
-nos a criar guardas nacionais, que mantiveram depois da guerra, para
assegurar o seu poder. Segundo a lei que as criou, só faziam parte dessas
guardas cidadãos com um mínimo de rendimento, só que a necessidade
obrigou-os a admitir muita gente, a que podemos chamar da pequena
burguesia, lojistas, pequenos funcionários, homens de ofícios, etc. Mas o
problema maior surgiu quando os arsenalistas, operários dos arsenais da
Marinha e do Exército, formaram os seus batalhões…
Imagino!
Reuniam sem autorização, só obedeciam aos chefes por eles eleitos e
deliberavam sobre matérias políticas que procuravam impor ao Governo.
Uma facção dos governantes saídos da revolução de Setembro, os cha-
mados “ordeiros”, ordenou a dissolução dos batalhões dos arsenalistas, o
que estes recusaram. Em 13 de Março de 1838, numa ocasião em que
estavam reunidos no Rossio, foram espingardeados pelo Exército, o
“massacre do Rossio”, que causou cerca de uma centena de mortos. Após
estes acontecimentos, os governos foram-se tornando cada vez mais
repressivos até à chegada ao poder de Costa Cabral.
Quer dizer que o movimento popular foi esmagado?
Apenas por algum tempo, porque inesperadamente apareceu em Maio de
1846 um outro movimento, a revolta da Maria da Fonte, que ao contrário
dos outros é bem conhecido, logo pelo nome, indicativo do papel que
neles assumiram as mulheres.
Por que ficou tão conhecido?
Talvez pela sua amplitude e por ter sido genuinamente popular, sem
qualquer influência exterior. Terá sido a manifestação mais exemplar da
“política popular”, de que te falei atrás. Basicamente tratou-se de um
motim antifiscal contra o lançamento de novos tributos pelo Governo de
Costa Cabral, que levou à queima dos arquivos para destruir as matrizes
prediais, as “papeletas da roubalheira”, e à expulsão de autoridades.
Paralelamente, registam-se tumultos de mulheres contra o enterramento
fora das igrejas, as chamadas “leis da saúde”. Esta dupla face da rebelião
tem permitido interpretações contrárias, que vão do louvor, enquanto
resistência à tirania dos Cabrais, até à depreciação, enquanto movimento
obscurantista e reaccionário por se ter oposto a essas leis.
ENTREVISTA CO M ANTÓNIO MONTEIRO CAR DOSO | 35
E o que é que tu achas?
Tratou-se, como disse, de uma manifestação de “política popular”, que
eclode de modo imediatista, sem planos, nem programa, por isso pode
combinar razões de descontentamento diversas e que podem parecer
contraditórias. Quanto à questão dos cemitérios, se aprofundarmos en-
contramos também aí razões antifiscais.
Como?
Além de se prever uma licença sanitária para os enterros, que custava
dinheiro, a lei punha a construção dos cemitérios a cargo das câmaras, as
quais, por escassez de rendimentos, lançavam derramas e muitos eram
construídos deficientemente.
O que são derramas?
Eram um imposto municipal a que as câmaras recorriam para fazer face a
despesas extraordinárias.
E qual foi o desfecho da Maria da Fonte?
Um sucesso. O movimento, que durou dois meses, estendeu-se a Trás-os-
-Montes e Costa Cabral teve que se demitir e exilar-se em Espanha para
acalmar os ânimos.
E ficou tudo por ali?
Não. Em Outubro de 1846, seguiu-se a Patuleia, que desembocou numa
nova guerra civil, que durou 8 meses.
Mas qual era a diferença entre esses movimentos?
Era muita. A Patuleia não foi um movimento popular espontâneo, mas
sim uma luta política armada entre o Governo cartista e os partidos da
oposição coligados, desde os setembristas até aos miguelistas, que se
situavam no extremo oposto. É uma guerra civil de partidos e de grandes
figuras políticas e militares, que mobilizam o Exército e na qual o povo
desempenha um papel subordinado.
Vamos então acabar a questão do roteiro…
O roteiro acaba brilhantemente com a Janeirinha, um movimento de
protesto assim chamado por ter ocorrido em Janeiro de 1868, iniciado no
Porto, Braga e Lisboa, desencadeado por uma lei de Fontes Pereira de
Melo, que aumentava brutalmente a carga fiscal, o que ocasionou tumul-
tos violentos, sobretudo no Porto.
36 | TRABA LHO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …
Como é que terminou a Janeirinha? Espalhou-se a todo o País?
E de que maneira! Até Maio de 1868, ocorreram mais de trinta motins.
No distrito de Bragança, um dos mais agitados, ocorreram tumultos nos
concelhos de Freixo de Espada à Cinta, Valpaços, Macedo, Moncorvo,
Alfândega da Fé, Mirandela, Vila Flor e Bragança. Em quase todos houve
choques com a tropa e incendiaram-se câmaras. Terminou do modo
habitual, o Governo demitiu-se, foi formado um novo Governo com
outras caras e os impostos de Fontes foram suspensos. Mas que foi um
grande susto, isso foi!
Mudando agora de assunto: quem era o “Zé Povinho” no meio disto tudo?
Surgiu em 1875 num jornal, como uma caricatura humorística de Rafael
Bordalo Pinheiro, que depois se popularizou, sob a forma de boneco,
fabricado pela Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha. Representa a
gente simples do povo esmagado pela corrupção e injustiça, sempre
desconfiado, aparentemente conformado, mas pronto a levantar-se à
primeira ocasião.
O que se opõe à ideia dos brandos costumes…
O roteiro que fizemos, que peca por defeito, mostra bem o contrário.
Este Zé Povinho foi buscar alguma coisa ao Zé do Telhado?
Não, não. O Zé do Telhado era uma figura real, que tem alguns aspectos
do bandido social, pelo menos na imagem que ficou dele. Aliás, os ban-
didos têm de ser sociais, se quiserem aguentar-se algum tempo no terreno.
E quantos mais bandidos havia?
É impossível contabilizar. Enxameavam o País de Norte a Sul, princi-
palmente no Minho e no Alentejo. Quase todas as terras tinham os seus
bandidos, que apenas são recordados localmente ou nem isso. De resto, a
memória só guarda aqueles que envolviam uma história mítica, constan-
temente repetida. Os papéis vendidos pelos cegos e a literatura de cordel
têm um papel importante nisso.
Mas há mais figuras conhecidas…
Decerto. Mas que, em rigor, não são bandidos. São homens que parti-
ciparam na guerra civil, uns do lado liberal, outros do lado miguelista, e
que depois se envolveram em actos de bandoleirismo. Alguns dos primei-
ros foram nomeados para a Guarda Nacional e tornaram-se autênticos
déspotas locais, que roubavam e assassinavam impunemente. É o caso
ENTREVISTA CO M ANTÓNIO MONTEIRO CAR DOSO | 37
dos Brandões, um grupo de irmãos, oriundo de Midões, hoje no concelho
de Tábua, protegidos por políticos de Lisboa. Só quando lhes faltou o
apoio é que o João Brandão foi julgado e degredado para Angola. Desse
ficou-nos uma canção, que ouvíamos na infância, “Lá vai o João Bran-
dão”. Deve estar na Net.
E mais?
Ainda do lado liberal, temos os Marçais de Vila Nova de Foz Côa, que
dominavam de armas na mão, de tal modo que em meados do século
XIX, uma parte da população estava refugiada no concelho fronteiro de
Moncorvo. Eram comandantes da Guarda Nacional e até há um daguer-
reótipo onde aparecem todos fardadinhos. Isto da Guarda Nacional, se
nas grandes cidades levou a revoltas progressistas, na província deu nisto.
Uma espécie de coronéis do Brasil, que por acaso eram da Guarda Nacio-
nal de lá.
E do lado miguelista?
Temos o Remexido e os irmãos Baioa, estes últimos quase desconheci-
dos, apesar da sua importância no Alentejo. Efectuavam assaltos e rou-
bos, não em proveito próprio, mas como dirigentes miguelistas, autoriza-
dos por D. Miguel a partir do exílio.
Já agora é de assinalar nesta época a acção na política de grupos de
irmãos, autênticas fratrias. Além dos que já referi, podemos acrescentar
os Cabrais e os irmãos Passos.
Tu és um homem muito total, no bom sentido marxista. Quais são para ti os melhores romances sobre isto, sobre tudo o que nos contaste?
Sobre isto, tem que ler, mas se não souberem história será difícil. Há um
autor que exprime a alma do povo português – passe o espiritualismo –
que terei até morrer à minha cabeceira: Camilo Castelo Branco. Na obra
de Camilo, há retratos da sociedade desta época que são notáveis, aliás na
senda de Balzac. Embora ele estivesse próximo dos realistas franceses,
isso não impedia Engels de dizer, numa carta para Marx, que havia mais
de economia e análise sociológica nos seus romances do que em muitos
livros volumosos.
Era melhor que o Zola?
Embora eu goste também imenso do Zola, a verdade é que quis fazer uma
literatura científica, de acordo com o naturalismo que perfilhava, com
todas aquelas ideias deterministas sobre a hereditariedade, em detrimento
da análise social.
38 | TRABA LHO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …
E eu digo que há mais em qualquer romance aparentemente delicodoce de
Camilo do que em muitos manuais de história. E alguns autores neorrea-
listas, uma corrente muito desprezada, também são bons.
E que livros do Camilo recomendas?
Há uns que são mais directamente sobre essa mudança social, em que ele
se centra muito nos “brasileiros”, isto é nos portugueses que regressam
enriquecidos do Brasil, que foram uma parte importante da nova burgue-
sia endinheirada.
Eu destacaria o Eusébio Macário (história natural e social de uma família no
tempo dos Cabrais) e sobretudo A Brasileira de Prazins, os livros que melhor
retratam o quotidiano do mundo rural, nos anos que se seguem à vitória
liberal de 1834. Está lá tudo, até aparece o Remexido e também um falso
D. Miguel, que existiu mesmo. Para mim, a leitura destes livros é uma boa
forma de conhecer esta época.
E tirando os do Camilo, há mais algum que recomendes?
O Eça é um grande escritor, que retrata muito bem a vida da alta socieda-
de nos meios urbanos, mas para entender o mundo rural, que é um mundo
desconhecido, é fundamental ler Camilo. Depois há outro aliciante, que é
a própria vida de Camilo, um homem que fez tudo, passou por tudo,
esteve duas vezes preso na cadeia da Relação. Um nunca acabar que foi
explorado por Aquilino Ribeiro na sua obra em três volumes O Romance
de Camilo. De certo modo, Aquilino é um continuador de Camilo na
atenção que dá ao mundo rural. Tem mesmo um livro que relata a luta de
uma povoação contra a apropriação dos baldios em pleno Estado Novo.
Qual é o melhor romance para perceber isso?
Quando os Lobos Uivam. Um romance que lhe valeu um processo judi-
cial de grande repercussão, do qual acabou por ser absolvido.
E quanto aos escritores neorrealistas?
Há várias correntes e autores, com o seu estilo próprio, bons escritores
como Soeiro Pereira Gomes, Manuel da Fonseca, Carlos de Oliveira e
outros. Ultimamente redescobri Alves Redol, um autor extraordinário que
me deixou surpreendido.
Mas porquê?
Para abreviar, que havia imenso para dizer, o seu livro Barranco de
Cegos é o único romance que se debruça de um modo desenvolvido e
sistemático sobre o gigantesco processo de acumulação de propriedade
resultante da venda dos bens nacionais. E vai mais longe ao mostrar como
ENTREVISTA CO M ANTÓNIO MONTEIRO CAR DOSO | 39
isso levou à formação do latifúndio do Sul do País, que data dessa altura e
não de tempos remotos, como por vezes se julga.
Esta acumulação de terra na mão dos latifundiários tem como contrapar-
tida um processo de proletarização generalizada dos camponeses do Sul,
que nem sequer têm trabalho todo o ano. Daí que, muitos anos mais tarde,
muitos deles se tenham fixado na margem sul do Tejo, para trabalhar nas
fábricas da CUF, na Siderurgia, na Lisnave, etc.
Mas havia massas imensas no Norte e no Centro que foi preciso proletarizar…
As indústrias que se foram criando nessas zonas do Norte e Centro em-
pregavam muitos semiproletários, ou seja camponeses pobres que se
tornavam operários, mas que mantinham um pedaço de terra para com-
plementar o rendimento.
Mas o fim dos baldios, os impostos sobre a propriedade, tudo isso eram formas de fabricar proletários, porque a terra deixava de poder sustentar a família toda.
Só que esse processo de ruína dos pequenos lavradores auto-subsistentes
do Norte vai avançar de modo muito lento e só ocorrerá com a emigração
dos anos 60, como se vê pela emigração maciça, sobretudo para França.
Mas a emigração dos anos anteriores, apesar de mais pequena, não revelava já uma proletarização?
Não era a mesma coisa. Desde há muito que as terras dos pequenos e
médios lavradores do Norte não davam para o sustento da família, so-
bretudo se fossem divididas por herança. Daí que seguissem a prática de
passar a casa (de habitação e as terras) para um único herdeiro, geral-
mente o filho mais velho, que ficava com os bens. Os restantes eram
obrigados a procurar sustento fora de casa, como sacerdotes, militares,
empregados do comércio ou a emigrar para o Brasil.
Mas depois há imensas massas. De onde vêm as massas dos anos 60? Vêm das Beiras, de todo o lado, para a França. Porque é que eles de repente largam as terras? Não me venham dizer que foi por vontade própria…
Foi um imenso êxodo que atingiu todo o país rural, porque essas massas
que partiram, mesmo que tivessem alguma terra, viviam na mais profun-
da miséria e não tinham qualquer esperança de melhorar de condição.
Perguntar-me-ás: mas sempre tinham vivido na miséria e não ocorreu
uma emigração daquela dimensão?
40 | TRABA LHO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …
Sim. Porquê nos anos 60?
Porque surgiu pela primeira vez uma oportunidade extraordinária, que foi
a emergência de grandes mercados de trabalho, carenciados de mão-de-
-obra de toda a ordem, como a França e em parte a Alemanha, situados
não muito longe do País. Ao contrário das emigrações anteriores, não era
preciso cruzar o Atlântico para o continente americano. Nem pagar as
elevadas quantias nas passagens marítimas, apenas ao alcance dos que
tinham alguns meios.
A partir dos anos 60 a emigração, que começou “a salto”, implicou enor-
mes sofrimentos, mas era bem mais fácil chegar aos Pirenéus do que
pagar e arrostar com uma viagem transatlântica.
ACUMULAÇÃO, REGIME E REVOLUÇÃO:
CONTRIBUTOS PARA A HISTÓRIA DO
CAPITALISMO PORTUGUÊS (SÉCULOS XIX-XX)*
Raquel Varela, Felipe Abranches Demier,
Luísa Barbosa Pereira
Perguntei pra mim mesmo: que tipo de frieza baixou sobre
esses desgraçados? Quem os levou à torpeza? Quem os fez
baixar o nível? Vocês precisam ajudá-los, rápido, coitados.
Se não, vai acontecer algo que vocês acham impossível...
Bertold Brecht
As políticas de reação à crise em 2007-2008 foram uma espécie de he-
catombe de um projeto que começou a falhar em, vamos ser otimistas, na
1.ª República. O projeto de desenvolvimento nacional que assentava na
ideia de que a elevação dos salários e do bem-estar era compatível com o
desenvolvimento capitalista e, portanto, poderia ser encontrado um equi-
líbrio entre frações de classes sociais distintas, jamais logrou êxito em
Portugal. No fundo, sempre mostrou ser falsa a ideia de que o impulso de
criação de lucro era compatível com a criação de riqueza, ou seja, que a
remuneração da propriedade (renda, juro e lucro) poderia dar-se a par da
criação de bens de produção necessários, bens de uso, gestão equilibrada
e estável da produção, progresso e bem-estar, e evitar-se-ia a pau-
perização absoluta dos trabalhadores, na forma de baixos salários e
desemprego massivo – o prognóstico marxista da pauperização absoluta1
* Este texto foi originalmente publicado, com algumas alterações, em O Que é Uma
Revolução? (Lisboa, Colibri, 2015).
1 Karl Marx, “A Lei Geral da Acumulação Capitalista”, In O Capital, Livro I, São
Paulo, 2013, pp. 689-785.
42 | TRABA LHO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …
mostrou-se o modelo e a pauperização relativa a exceção, decorrente do
apocalipse de destruição de capitais ímpar na história que foi a II Guerra
Mundial. A tradução em termos de classes sociais e projetos políticos
desta fantasia, a do desenvolvimento nacional sem conflito, dá forma aos
sucessivos projetos de combinação entre classes sociais e frações de
classe ao longo de todo o século XX, que assentaria na ideia de que a
criação de uma burguesia industrial e do proletariado na República seria
possível sem o confronto com os artesãos expropriados, proletarização
dos camponeses e desemprego e miséria massiva. E terminará na quimera
dominante na viragem do século XX para o século XXI de “salvação da
economia nacional” recorrendo a injeções massivas de capitais europeus,
que, argumentamos ao longo deste artigo, proporcionaram, pela reconver-
são do mercado de trabalho, através do Fundo Social Europeu, desde o
final dos anos 80 do século XX, um modelo de desenvolvimento cuja
base é a regressão social, destruição de empresas, expulsão ou exaustão
da força de trabalho formada e produtiva e erosão de serviços públicos.
Um modelo de “progresso” assente no retrocesso2.
Entre 1910 e hoje foram muitas as faces deste projeto falhado, da ali-
ança entre o que seria uma burguesia progressista e honrada e o movi-
mento operário, como a proposta por Álvaro Cunhal no Rumo à Vitória3;
ou na aliança entre setores médios e a burguesia financeira/industrial, por
Mário Soares na “Europa Connosco”4. There is no alternative (TINA), o
slogan dos anos 80, surge agora nos últimos vinte anos oferecendo a
ideologia de que ideologia só há uma, a de que não há nada que os ho-
mens possam fazer para mudar a história. Esta ideologia não é liberal, é
geral. Porque à direita e à esquerda, em Portugal olha-se para o povo
como uma massa amorfa incapaz de ter um projeto político próprio e para
os setores dominantes, nas grandes empresas e no Estado, implorando
que “se portem bem” e assumam ser o que nunca foram – “torna-te aquilo
que tu [não] és!”, numa espécie de Píndaro às avessas. Parece adequar-se
aqui a grande parte da nossa esquerda, de linha conciliadora, a crítica
feita por Trotsky aos mencheviques em 1907, no V Congresso do Partido
Operário Social Democrata Russo (POSDR), quando o teórico da revolu-
2 Raquel Varela, Para onde vai Portugal?, Bertrand, 2015.
3 Álvaro Cunhal, Rumo à Vitória, As Tarefas do Partido na Revolução Democrática
e Nacional, Lisboa, Edições Avante, 2009.
4 Dina Sebastião, Mário Soares e a Europa: pensamento e acção. Dissertacao de
mestrado em História Contemporanea: economia, sociedade e relacões internacio-
nais, especialidade em Construcao Europeia e Relacões Internacionais, apresentada
a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, sob a orientacao do Professor
Doutor António Martins da Silva, 2010.
ACUMUL AÇÃO , R EGIME E REVOLU ÇÃ O : CONT RIBUT OS PARA A H IST ÓRIA… | 43
ção permanente os acusou de quererem obrigar os estratos burgueses
russos a “desempenhar um papel constitutivo que não querem e não
podem desempenhar, nem desempenham, nem desempenharão nunca”.5
A morte das ideologias é a consagração pública, pela voz dos escassos
que têm acesso aos media, da asfixiante ideologia totalitária, finalista, de
que o homem não é ator da própria história. Para fazer vingar esta parali-
sante ideologia tem sido construída não uma análise cuidadosa da história
do País, mas um psicologismo de um povo “medroso” e “amorfo” que os
intelectuais decadentistas abraçam para justificar a sua adesão aos proje-
tos falhados de desenvolvimento nacional.
Projeto que já tinha falhado na República. Começou a falhar aí, quando
em 1910 a corajosa, ilustrada, “progressista” burguesia emergente, que fez
do século XIX uma batalha, chegando à guerra civil, para eliminar privilé-
gios e entraves ao desenvolvimento organizados pela Igreja e pela aristo-
cracia decadente, percebeu que não podia mais apoiar-se no movimento
operário para levar a bom porto o seu projeto de modernização capitalista
de um país que já era capitalista mas ainda não era moderno, e o decapitou.
Os riscos revelaram-se maiores do que os possíveis ganhos e a cobardia
genética da nossa burguesia não pôde ser disfarçada. Até hoje não pode.
Os países que, curiosamente, irão juntar-se nas forças do eixo na II
Guerra Mundial, entre 1939 e 1945, são aqueles que, por atraso no desen-
volvimento (menos meios tecnológicos, materiais, como o nosso), ou por
tardiamente unificados e modernizados (como Alemanha e Itália), quando
iniciam os projetos de democratização o fazem já com um movimento
operário com alguma força. Revoluções burguesas como as de 1848 na
primavera dos povos na Europa ou a de 1910, em Portugal, são já realiza-
das com um movimento operário que contém em si um projeto de revolu-
ção social, ou seja, apoia a luta contra a aristocracia mas exige direitos
sociais, 8 horas de trabalho, combate ao desemprego, proteção social. As
burguesias periféricas, filhas mais novas e temporãs do capital, não
lograram êxito em repetir a saga revolucionária das suas irmãs mais
velhas. A explicação reside, precisamente, no enorme atraso com que
surgiram historicamente. O já citado Trotsky assinalou que as burguesias
europeias que somente a partir de meados do século XIX levaram a cabo
a sua luta contra o domínio político das forças aristocráticas já se viram
impedidas de adotar uma postura autenticamente revolucionária. O temor
da repetição de uma experiência jacobina e, acima de tudo, a existência,
já significativa, de um novo sujeito social, o proletariado, fizeram que
essas burguesias buscassem, nos seus combates contra o antigo regime,
saídas cada vez mais negociadas com as forças do passado.
5 León Trotsky, A revolução permanente. 2ª edição. São Paulo: Kairós, 1985, p. 86.
44 | TRABA LHO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …
Lembrava Trotsky que até a clássica burguesia francesa – a qual já
havia realizado a sua revolução entre os últimos anos do século XVIII e
os primeiros do século XIX – evitou que, desde então, tanto os seus
conflitos políticos internos quanto os seus últimos ajustes de contas com
os remanescentes estratos feudais viessem a reeditar o terror robespier-
rista. Os desfechos políticos das revoluções de 1830 e de 1848 expressa-
ram, inelutavelmente, o enorme receio burguês de fazer uso novamente
de métodos democrático-radicais num momento em que as incontáveis
massas plebeias já eram constituídas por uma parcela não desprezível de
segmentos proletários organizados.6
Todavia, seriam as formas políticas relativas aos processos tardios de
modernização capitalista em países como Alemanha, Itália e Japão as
maiores expressões do encerramento da etapa histórica revolucionária da
burguesia. Carentes de um Estado nacional unificado e incapazes de
conduzir sob as suas bandeiras as classes dominadas, justamente em
função de o proletariado já existir enquanto sujeito social (mesmo que
ainda não politicamente independente), as burguesias tardias, como a
italiana, alemã e japonesa, viram-se compelidas a buscar compromissos
com as suas respetivas aristocracias a fim de evitar que o processo políti-
co necessário à emergência de um moderno capitalismo industrial pudes-
se colocar em risco, devido à participação das camadas populares, a
própria existência da propriedade privada dos meios de produção. Dessa
necessidade das burguesias alemã, italiana e japonesa de pactuar, respeti-
vamente, com os junkers prussianos, os latifundiários meridionais e os
antigos daimyos (senhores feudais) surgiram Estados nacionais estrutura-
dos pelo compromisso burguês-aristocrático aos quais esteve destinada a
tarefa de conduzir, “no lugar” das suas próprias burguesias, o processo de
desenvolvimento do capitalismo. O atraso cobrava o seu preço. No caso
português, claro, o atraso foi ainda maior, e as consequências um tanto ou
quanto similares.7
No período entre guerras, esses Estados, sujeitos de modernizações
retardatárias, tenderam a assumir formas ditatoriais em função do temor
da ameaça (real ou potencial) do proletariado que rapidamente se desen-
volvia na cena histórica. Nas sociedades de massas, nas quais o proleta-
riado já se apresenta politicamente como uma força independente, a crise
6 León Trotsky, Resultados y perspectivas. Tres concepciones de la revolución russa.
Buenos Aires: el Yunque editora, 1975.
7 León Trotsky, La teoría de la revolución permanente. Compilación. Buenos Aires:
Centro de Estudios, Investigaciones y Publicaciones León Trotsky [CEIP León
Trotsky], 2000; e Felipe Demier, O longo bonapartismo brasileiro (1930-1964):
autonomização relativa do Estado, populismo, historiografia e movimento operá-
rio (tese de doutoramento). Niterói: PPGH/UFF, 2012.
ACUMUL AÇÃO , R EGIME E REVOLU ÇÃ O : CONT RIBUT OS PARA A H IST ÓRIA… | 45
do regime democrático-burguês ou mesmo a impossibilidade da sua cons-
trução pode, em certo estágio da luta de classes, acarretar o surgimento de
formas de dominação política não hegemónicas, as quais, recorrendo muito
mais à coerção do que ao consenso, aparecem como uma solução temporá-
ria e excecional para a incapacidade hegemónica que acomete os próprios
grupos dominantes. Nesses casos de acirramento da luta de classes e “crise
de hegemonia”, costuma ser a burguesia impelida a romper com a demo-
cracia liberal, estabelecendo formas abertas de ditadura por intermédio das
quais garanta a manutenção da dominação social.
Segundo Trotsky, o fascismo e o bonapartismo seriam as formas clás-
sicas desses regimes ditatoriais que se afirmam em oposição à democra-
cia parlamentar. Para o revolucionário russo, a opção, por parte das
classes dominantes, por um ou outro desses dois regimes de crise depen-
deria, fundamentalmente, de quão próximo se encontra o rebentar amea-
çador da revolução proletária – momento esse que é sempre condiciona-
do, entre outros fatores, pela capacidade de organização, de iniciativa e
de direção de cada uma das classes envolvidas na luta. Conquanto fossem
ambos regimes políticos burgueses situados na etapa decadente do capi-
talismo, bonapartismo e fascismo difeririam quanto às suas estruturas
constitutivas em função de terem origem em conjunturas diferentes da
luta de classes. Arregimentando ao serviço do grande capital massas
pequeno-burguesas iradas e desesperadas, o fascismo expressaria a guer-
ra civil declarada e total contra o proletariado, visando o esmagamento de
todo e qualquer tipo de organização operária. De direção pequeno-
-burguesa, o projeto fascista, por implicar um turbulento e incerto proces-
so político-social, apareceria no cardápio de opções políticas do grande
capital apenas como a última destas, a última cartada a ser lançada
somente quando não há mais nenhum outro recurso que possa impedir a
vitória da classe trabalhadora:
A burguesia em declínio é incapaz de se manter no poder pelos meios
e métodos do Estado parlamentar que criou. Recorre ao fascismo co-
mo arma de autodefesa, pelo menos nos momentos mais críticos. A
burguesia, entretanto, não gosta da maneira “plebeia” de resolver os
seus problemas. Manteve-se sempre em posição hostil em relação ao
jacobinismo, que lavou com sangue o caminho para o desenvolvi-
mento da sociedade burguesa. Os fascistas estão imensamente mais
próximos da burguesia em decadência do que os jacobinos da burgue-
sia ascendente. Entretanto, a burguesia, prudentemente, não vê com
bons olhos a maneira fascista de resolver os seus problemas, pois os
abalos, embora provocados no interesse da sociedade burguesa, são ao
mesmo tempo perigosos. Daí a contradição entre o fascismo e os par-
tidos burgueses tradicionais.
46 | TRABA LHO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …
A grande burguesia gosta tanto do fascismo quanto um homem com o
maxilar dolorido pode gostar de arrancar um dente (...). E é quando a
crise começa a adquirir uma intensidade insuportável que entra em ce-
na um partido especial, cujo objetivo é trazer a pequena burguesia a
um ponto candente e dirigir o seu ódio e o seu desespero contra o pro-
letariado. Esta função histórica desempenha-a hoje na Alemanha o na-
cional-socialismo, uma ampla corrente, cuja ideologia se compõe de
todas as exalações pútridas da sociedade burguesa em decomposição
(Trotsky, L. “O único caminho” (Burguesia, pequena-burguesia e pro-
letariado)8.
Antes, contudo, de recorrer ao “partido do desespero contrarrevolu-
cionário”, de fazer uso do mal necessário fascista, restaria ainda à bur-
guesia a possibilidade de capitular e submeter-se aos ditames de uma
máquina policial-burocrática que, investida de uma significativa autono-
mia política, assumisse as funções de manutenção da ordem e de “pacifi-
cação” da nação polarizada. Nesse caso, engendrar-se-ia um regime de
tipo bonapartista, definido abaixo por Trotsky numa linguagem recheada
de metáforas:
Logo que a luta entre dois campos sociais – os possuidores e os pro-
letários, os exploradores e os explorados – atinge a mais alta tensão,
estabelecem-se as condições para a dominação da burocracia, da polí-
cia e dos militares. O governo torna-se “independente” da sociedade.
Lembremos mais uma vez o seguinte: se espetarmos, simetricamente,
dois garfos numa rolha, esta pode ficar de pé, mesmo sobre uma cabe-
ça de alfinete. É precisamente o esquema do bonapartismo. Natural-
mente, um tal governo não deixa de ser, por isso, o caixeiro dos pos-
suidores. Mas o caixeiro está sentado sobre as costas do patrão,
magoa-lhe a nuca e não faz cerimónia para esfregar-lhe, se for neces-
sário, a bota na cara9.
Distintamente do fascismo, um “regime de guerra civil aberta contra o
proletariado”, o bonapartismo seria essencialmente um “regime da ‘paz
civil’” assente “numa ditadura policial-militar”. Tendo como missão
última salvaguardar a propriedade capitalista diante da ameaça proletária
– e nesse aspeto mais genérico equivale tanto ao fascismo como à demo-
cracia burguesa –, o seu procedimento político seria o de, por intermédio
de um aparelho de Estado encorpado e relativamente autónomo, impedir
justamente a eclosão dessa cruenta guerra civil apregoada pelo fascismo,
8 Leon Trotsky, Revolução e contrarrevolução na Alemanha, pp. 290-293.
9 Leon Trotsky, Revolução e contrarrevolução na Alemanha, p. 282.
ACUMUL AÇÃO , R EGIME E REVOLU ÇÃ O : CONT RIBUT OS PARA A H IST ÓRIA… | 47
poupando a sociedade burguesa a fortes e perigosas convulsões internas.
Em poucas palavras, pode dizer-se que a ascensão de um proletariado
diante de burguesias temerosas e retardatárias se encontra entre as razões
centrais que explicam o porquê de países como Alemanha, Itália, Japão,
Espanha e Portugal terem tido regimes bonapartistas ou fascistas no
século XX.
Este incómodo novo sujeito histórico – o proletário, ou seja, aquele
que nada tem para vender a não ser a sua força de trabalho, que pode ser
um sapateiro no século XIX ou um médico no século XXI – cresce em
número (hoje, aqueles que vivem do trabalho representam 90% da popu-
lação empregada). Isso fez que, ao contrário de Inglaterra e França, onde
as revoluções burguesas foram feitas com um operariado ainda muito
incipiente, os mesmos processos em países como Alemanha, Itália, Japão,
Espanha e Portugal tenham terminado de facto em movimentos de ditadura.
Por outras palavras, a transformação das economias inglesa e francesa
em economias de monopólio, imperiais, recorrendo à massiva proletari-
zação dos seus camponeses, foi realizada em democracia, e no Sul da
Europa, na Itália e na Alemanha foi feita sob as botas de ditaduras porque
o movimento de modernização burguês não se fez apoiando-se no movi-
mento operário, mas sim contra ele. Embora, naturalmente, a ditadura
alemã tenha sido feita para derrotar o seu movimento operário e a ditadu-
ra portuguesa para criar, em Portugal e nas colónias, a sua massa de
trabalhadores, sem a resistência das suas vanguardas mais organizadas e
dos seus artesãos, decapitados mal a República se torna vitoriosa e ao
longo de 16 anos.
A República decapitou a sua tropa, os artesãos da carbonária, os ope-
rários de Alcântara10, para finalmente parte das suas frações se reorgani-
zarem em torno do Estado Novo e, aí sim, criarem uma coisa e o seu
contrário – os monopólios e o proletariado, que saiu das Beiras para a
Lisnave, da aldeia nativa para a plantações da Cotonang em Angola.
Em 1910 a agricultura ocupava 61% dos ativos e só 17% da população
vivia em centros urbanos com mais de 5000 habitantes. Isto não obstante
um salto qualitativo assinalável a partir de 1852 – o operariado fabril
entre 1852 e 1910 aumentou 400%. Devido à expropriação de bens
públicos, ao aumento dos impostos sobre terras e propriedade, à gradual
privatização das propriedades comunais, ao fim de leis como a do morga-
dio (que transmitia a herança exclusivamente ao primogénito), foi sendo
criado um contingente de trabalhadores assalariados e um processo típico
de acumulação primitiva estava assim em marcha – em marcha literal-
mente, porque estes processos foram acompanhados de milícias e exérci-
10 António Simões do Paço, Entrevista com a República, Lisboa, Guerra e Paz, 2010.
48 | TRABA LHO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …
tos na frente do título de propriedade, de baioneta e pique na mão. O
século XIX decorre entre guerras civis, revoltas e mesmo guerrilhas –
invasões francesas, a guerra civil entre liberais e miguelistas, a Maria da
Fonte, a Patuleia, o Remexido, até à Janeirinha em 1868 – que, com
direções distintas e complexas alianças, num processo que está longe de
ser linear, ora dirigido por franceses e liberais, ora por ingleses, ora pela
Igreja, ora pela Igreja com setembristas, frações de liberais e muitas mais
fórmulas (e menos puras do que se chegou a pensar), consoante o equilí-
brio de forças sociais, tinham sempre como eixo, por um lado, a concen-
tração da propriedade e, por outro, a proletarização de setores significati-
vos da população. A par destes movimentos cria-se, é sabido, a nação, o
ser português, e a sua instituição-mor, o Estado, um administrador co-
mum que procura estender o seu poder militar e fiscal a todo o território,
gerir as diversas frações da classe dominante e disciplinar a força de
trabalho, evitando um conflito social generalizado, isto é, assegurando a
estabilidade política para a consolidação do novo modo de acumulação,
cujo desenvolvimento será extremamente desigual.
Os mecanismos de contenção postos em marcha para driblar a crise de
finais de século XIX, como a emigração massiva, algumas obras públicas
e início de uma incipiente exploração colonial, não vão evitar nem o
confronto essencial entre frações distintas da burguesia e ainda da velha
aristocracia (que aparece como um confronto de regime entre republica-
nos e monárquicos) e depois destes setores, ou parte deles, com o movi-
mento operário. A revolução republicana burguesa apoia-se no movi-
mento operário, mas logo nas primeiras semanas começa a ajustar contas
com ele, reprimindo duramente as greves.
Um novo conflito, já não só entre burguesia ascendente e aristocracia
decadente, mas entre estes e o movimento operário emerge numa longa
situação pré-revolucionária de intermitente guerra civil – que terminará
com um golpe a 28 de maio de 1926. A não resolução deste imbróglio,
isto é, a incapacidade de estabilizar o País para a acumulação – a moder-
nização capitalista – vai levar um setor importante da burguesia portu-
guesa a jogar a sua mais forte “cartada”, a partir de 1926: abdicar do
poder executivo para manter o poder económico, ensaiando um clássico
regime bonapartista – uma ditadura – para disciplinar a força de trabalho,
arbitrar a concentração de propriedade em poucos grupos económicos,
limitando a concorrência (protegidos das lutas faccionais entre si e de si
com o movimento operário) pelo Estado, e encetar um processo agora
intensivo de exploração colonial, com traços típicos de acumulação
primitiva, recorrendo, por exemplo, de forma maciça ao trabalho forçado.
Não vai haver força política do movimento operário para resistir ao
golpe de 28 de maio de 1926 que institui a ditadura militar, começando
ACUMUL AÇÃO , R EGIME E REVOLU ÇÃ O : CONT RIBUT OS PARA A H IST ÓRIA… | 49
em 1933 o Estado Novo de Salazar por fatores que outra vez combinam
consenso e coerção, cedências e repressão. Este movimento operário
estava exaurido por anos e anos de repressão na I República e consegue
tornar a República ingovernável, mas não consegue governar. Por outro
lado, para além da repressão ao movimento operário, a rutura deste com a
República é lenta porque os setores mais audazes e formados das classes
trabalhadoras estavam protegidos, sobretudo por associações mutualistas.
Há, como em todas as bases sociais dos regimes, políticas de consenso e
coerção – uma parte dos artesãos/setores médios estavam protegidos por
um sistema corporativo.
A disciplinação da força de trabalho, a concentração de riqueza prote-
gida da concorrência e a exploração colonial baseada no trabalho forçado
são a fórmula de sucesso e durabilidade do Estado Novo11, onde verda-
deiramente se moderniza o capitalismo português. Já existia antes Portu-
gal, já existia antes capitalismo, mas não modernização. Ela é filha direta
do regime bonapartista, a ditadura, engenheiro político do processo de
modernização, que combina isso com um arranjo político das forças
sociais em que o Estado se coloca como árbitro nesse momento de giro
económico.
Os sucessivos regimes vão organizar, em resumo, a dissociação entre
trabalhadores e meios de produção (transformar camponeses em proletá-
rios), mas nenhum foi tão eficaz nisso como o salazarismo, sobretudo a
partir da mecanização agrícola da década de 60 do século XX.
O Estado Novo realiza a incorporação controlada do proletariado na
vida pública, dando-lhe lentamente acesso à escola, saúde, etc. O proleta-
riado cede por isso (consenso) mas também pela coerção (ditadura); o
núcleo duro do movimento sindical, os melhores e mais aguerridos diri-
gentes, tinha sido eliminado ou cooptado pela República. Este proletaria-
do que se submete e “aceita” o Estado Novo está politicamente decapita-
do e do outro lado há todo um mundo camponês com crença no Estado,
sem organizações próprias. Assim se explica a incorporação do proleta-
riado na ordem que vai garantir a sustentação social da modernidade da
ordem capitalista. Junte-se a isto um processo de êxodo – e expulsão –
rural e urbanização, a partir dos anos 50 e sobretudo 60, em que essa
massa camponesa chega à cidade. Boa parte dela é miserável, por isso há
aqui também uma combinação de mobilidade social, emprego e consumo,
atuando como um elevador social, nesta passagem da cidade para o
campo.
11 Raquel Varela, “A Eugenização da Força de Trabalho. Trabalho, Estado e Segu-
rança Social em Portugal”, in Raquel Varela (org.), A Segurança Social é Susten-
tável. Trabalho, Estado e Segurança Social em Portugal, Lisboa, Bertrand, 2013.
50 | TRABA LHO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …
Portugal foi o império que mais usou de forma sistemática e por mais
tempo várias formas de trabalho forçado. Amplamente denunciado nos
jornais e agências internacionais, o trabalho forçado trazia todo um rol a
ele agregado: pobreza, inexistência de mobilidade social, afastamento da
família e da agricultura de subsistência, extrema desigualdade salarial e
uma polícia política racista, mas eficaz, porque com uma base social de
apoio mais ampla nas colónias do que na metrópole. A característica
fundamental do império português, escreveu o historiador Perry Ander-
son, é o trabalho forçado. Por isso, o historiador britânico batizou-o de
“ultracolonialismo”, este império onde os mais pessimistas falam em 2
milhões de trabalhadores forçados, lembrando que 60% do salário dos
mineiros moçambicanos na África do Sul, por exemplo, muitos em regi-
me forçado, era entregue em ouro ao Estado Português, sendo que os
mesmos trabalhadores eram pagos em escudos locais. Esta polarização
contribuiu para transformar a população, maioritariamente camponesa,
em apoiante destemida dos movimentos de libertação, facto que vai estar
na origem da força destes e na fraqueza do Exército Português, levando
em última instância ao golpe de 25 de Abril de 1974. Foi das colónias e
não do centro, foi da periferia para a metrópole que chegou a liberdade.
A combinação rara de alguns fatores levou à ocorrência da maior crise
num Estado europeu desde a II Guerra Mundial: a derrota na guerra
colonial, a crise económica de 1973, uma sociedade desorganizada em
que as classes trabalhadoras e populares não tinham um único veículo de
diálogo com o Estado (sindicatos ou partidos fortes), uma população
operária, jovem, fortemente concentrada em dois lugares chave do País:
as margens do estuário do Tejo e o Porto.
Aquilo que começou a 25 de Abril como um golpe de Estado foi a
semente de uma revolução social (que imprime mudanças nas relações de
produção), encetada como uma revolução política democrática (que muda
o regime político). Esta revolução democrática não esperou sequer pelas
eleições para a Constituinte: em poucos dias ou semanas, foi quase total-
mente desmantelado o regime político da ditadura e substituído por um
regime democrático. Foi a última revolução europeia a colocar em causa
a propriedade privada dos meios de produção. Isso resultou na transferên-
cia, segundo dados oficiais, de 18% do rendimento do capital para o
trabalho, o que permitiu o direito ao trabalho, salários acima da reprodu-
ção biológica (acima do “trabalhar para sobreviver”), acesso igualitário e
universal à educação, à saúde e à Segurança Social.
A tese de que a democracia começou a 25 de Abril de 1975, com as
eleições para a Constituinte, ou pior ainda, com o golpe de 25 de novem-
bro, não tem confirmação empírica. A democracia começou no dia 25 de
Abril de 1974 e não no dia 25 de Abril de 1975. Começou com horas
ACUMUL AÇÃO , R EGIME E REVOLU ÇÃ O : CONT RIBUT OS PARA A H IST ÓRIA… | 51
infinitas de reuniões onde as pessoas comuns se inteiravam das questões
de trabalho, produção, habitação e gestão e votavam de braço no ar, em
comissões, com representantes, revogáveis a qualquer momento caso
desrespeitassem os resultados dos plenários massivamente participados.
Nunca tanta gente decidiu tanto na história de Portugal como em 1974 e
1975. As tentativas de controlo do aparelho de Estado por parte do PCP
(IV Governo) e por parte do PS (VI Governo), que existiram efetiva-
mente, não têm nenhuma ligação com a democracia que vigorava nas
empresas e nas fábricas e que foi cada vez maior ao longo de 1975,
colocando sucessivamente em causa medidas de governos não eleitos.
Estado e revolução não andaram de mãos dadas. A revolução e as suas
conquistas não dependiam do controlo do aparelho de Estado por parte do
PCP ou do PS, mas da criação de um poder alternativo na base da socie-
dade: trabalho, bairros de habitação e quartéis.
A maior prova da existência de uma revolução em Portugal em
1974/75 está curiosamente no que fez a contrarrevolução12. Teve de
aceitar aumentos salariais, saneamentos, férias e subsídios de férias,
licenças de maternidade, saúde e educação universais. Teve de haver um
acordo sólido entre o Partido Socialista, a Igreja, o MFA e toda a direita.
Foram precisas transferências maciças de dinheiro da Comunidade Eco-
nómica Europeia; foi precisa a ameaça de intervenção militar dos EUA;
foi preciso a URSS e o PCP estarem de acordo que Portugal era da NA-
TO, da Europa, do lado que nos acordos de Ialta tinha ficado sob a alçada
de Washington. Foi indispensável a divisão de tarefas de controlar revo-
luções levada a cabo pela URSS e pelos EUA. Foi preciso o PCP ter
aceitado estar em todos os órgãos que reconstruíam o Estado em crise,
canalizar a força das massas para os governos provisórios e o MFA. A
famosa aliança Povo-MFA nunca foi mais do que dizer às massas: con-
fiem na reconstrução do Estado burguês através da parte que está em
crise, o MFA. Mesmo assim, foram precisos 19 meses para derrotar a
revolução portuguesa.
Hoje esse passado revolucionário – quando os mais pobres, mais frá-
geis, quantas vezes analfabetos, ousaram agarrar a vida nas mãos – é uma
espécie de pesadelo histórico das atuais classes dirigentes portuguesas.
Tanto é assim que mantém-se a insistência de, nos 40 anos da revolução,
celebrar-se apenas o 25 de Abril, esquecendo que esse dia foi o primeiro
dos 19 meses historicamente mais surpreendentes da história de Portugal.
E que Portugal foi, ao lado do Vietname, o país mais acompanhado pela
imprensa internacional de então, porque as imagens das pessoas dos
12 Valério Arcary, “25 de abril, a revolução portuguesa faz trinta anos. Quando o
futuro era agora, Revista Outubro, Edição 11, 02/2004, pp. 71-92.
52 | TRABA LHO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …
bairros de barracas sorrindo de braços abertos ao lado de jovens militares
barbudos e alegres encheu de esperança os povos de Espanha, Grécia,
Brasil... E de júbilo a maioria dos que aqui viviam. Uma das característi-
cas das fotos da revolução portuguesa é que nelas as pessoas estão quase
sempre a sorrir. Não por acaso, Chico Buarque cantou: “Sei que estás em
festa, pá.”
Ela foi a última revolução do século XX, mas de certa forma a primei-
ra revolução do século XXI na Europa porque deu-se já num processo de
enfraquecimento do estalinismo, por um lado, e isso ver-se-á na força do
controlo operário nas grandes metalomecânicas, não foi uma revolução
camponesa, mas uma revolução numa metrópole, numa sociedade euro-
peia, urbana, complexa.
O que mais impressiona do ponto de vista dos movimentos sociais na
revolução portuguesa não é o seu número, relevante, claro, mas também a
sua dinâmica, esta dinâmica de subitamente questionar os alicerces da
hierarquia da fábrica, ir além da aparência de liberdade na esfera de
circulação do capital e arrastar os mecanismos produtivos do modo de
produção capitalista. As greves que se registam são maioritariamente
“selvagens”, decididas em assembleias democráticas de trabalhadores e
dirigidas, na maior parte dos casos, pelas comissões de trabalhadores, que
surgem de forma espontânea no vazio criado ao longo de 48 anos em que
as organizações de trabalhadores foram proibidas. São convocadas à
margem do Partido Comunista e do Partido Socialista – ambos faziam
parte do Governo – e dos sindicatos, que estavam agora a formar-se na
maioria dos casos.
Paradoxalmente, o calvário do operariado português, que foi durante
48 anos a impossibilidade de se organizar livremente, veio a ser a sua
força nos anos da revolução. Ao impedir os trabalhadores de se organiza-
rem para permitir a modernização capitalista do País, sem a ameaça de
revolução social que fez da República um regime essencialmente instá-
vel, a burguesia portuguesa construiu o seu património mas também o seu
próprio martírio em 1974. O golpe encontra uma situação de vazio orga-
nizativo que vai dar um espaço enorme e raro na história à imediata
constituição de organismos de base que surgem como cogumelos por
todo o País, nas primeiras semanas a seguir ao golpe. Na primeira semana
de maio os jornais têm páginas inteiras dedicadas a tomadas de posição
de coletivos. Uma coisa e o seu contrário. A desorganização da classe
trabalhadora, proibidos que estavam pela ditadura os organismos em que
esta poderia confiar, foi um fator de enfraquecimento do Estado em 1974
e 1975 e de fortalecimento, concomitante, da dualidade de poderes. O
vazio organizativo foi um fator disruptivo do Estado porque abriu espaço
às CT. Por comparação com Espanha, onde as comisiones obreras
ACUMUL AÇÃO , R EGIME E REVOLU ÇÃ O : CONT RIBUT OS PARA A H IST ÓRIA… | 53
(CCOO) estavam já bastante implantadas quando se abre o processo de
transição, Portugal tinha um pequeno embrião sindical, o que deixará
espaço às comissões de trabalhadores. Mas a incapacidade destas para se
organizarem com força numa estrutura de âmbito nacional, um “soviete”
unificador, dificultou a resistência organizada por parte dos únicos que
podiam fazê-lo ao golpe contrarrevolucionário de 25 de novembro de
1975.
Alguns historiadores, e certamente a maioria da população, conside-
ram que o regime democrático-representativo tem origem na revolução
portuguesa de 1974-1975. É o caso do historiador Fernando Rosas13. Esta
visão confunde, cremos, dois momentos distintos de um mesmo processo
histórico. Esta visão omite que existe um período de regime distinto entre
o fim da ditadura – a 25 de Abril de 1974 – e o início do regime demo-
crático representativo, cuja construção se inicia a 25 de Abril de 1975
(eleições para a Constituinte) e se consolida com o golpe militar de 25 de
novembro de 1975. Trata-se de um período marcado por aquilo que se
designa historicamente como formas de democracia direta ou como a
existência de uma dualidade de poderes14, um poder paralelo ao Estado
marcado pelo protagonismo dos trabalhadores, diversos setores/frações
desta classe social15. Confesso que acho o equívoco, não para o senso
comum, mas entre historiadores, pesado. Porque ele confunde formas de
Estado, regime e governo.
Durante a revolução, o Estado foi sempre, mesmo em crise, um Estado
capitalista (nunca houve um Estado socialista em Portugal, mas um
Estado em crise marcado pela existência de poderes paralelos, em 1974-
-1975). Mas houve vários regimes: ditadura, os regimes que perduraram
durante a revolução, o regime democrático-representativo.
Reduzir a revolução de 1974-1975 a nada mais do que um grande mo-
vimento democrático responsável pela condução do País ao chamado
“Estado democrático de direito” é uma visão indisfarçadamente liberal e
teleológica. Esse viés interpretativo concebe a complexa revolução portu-
guesa apenas em função do seu resultado final ao nível político-
-institucional, a democracia representativa, tratada laudatoriamente como
a forma suprema de organização política da espécie humana. É necessário
nadar contra a corrente. Ao fim e ao cabo, as buliçosas e dramáticas fases
13 Fernando Rosas, Pensamento e Acção Política. Portugal Século XX (1890-1976),
Editorial Notícias 2010.
14 Patriarca, Fátima. Controle Operário em Portugal (I). Análise Social, Vol. XII
(3.º), 1976 (n.º 47), pp. 765-816.
15 Raquel Varela, História do Povo na Revolução Portuguesa, Lisboa, Bertrand,
2014.
54 | TRABA LHO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …
da revolução desembocaram, é verdade, na consolidação de um insípido
regime democrático-parlamentar, formatação preservada até aos dias de
hoje pelo Estado burguês. Entretanto, não se pode esquecer que o proces-
so revolucionário de 1974-1975 foi mais rico e amplo do que uma mera e
inexorável transição do autoritarismo salazarista para a democracia
liberal, como querem os historiadores da ordem. Em Portugal, em
1974/75, disputou-se muito mais do que a consolidação de um regime
democrático por oposição a uma ditadura fascista. A revolução – como,
aliás, toda a verdadeira revolução – trazia outras potencialidades e, por-
tanto, outras possibilidades de desfecho. Entre estas estava a da revolução
social, a da emancipação dos trabalhadores do jugo do capital. Em função
de uma série de fatores, contudo, a revolução portuguesa, que se iniciara
com o derrube da ditadura bonapartista de Salazar e Caetano, teve como
resultado final não mais do que a instituição de uma democracia repre-
sentativa nos marcos de uma formação social capitalista. Não foi além.
Todavia, um olhar atento sobre o processo permite-nos cogitar que o seu
desfecho terá sido muito mais resultado de uma revolução social derrota-
da do que propriamente de uma vitória da democracia liberal sobre o
“autoritarismo”. A nossa interpretação histórica assemelha-se, assim, às
antigas reflexões de Trotsky sobre a Itália de Mussolini, quando o revolu-
cionário russo considerou que a eventual implantação de um regime
democrático pós-fascista no país não poderia ser obra de uma revolução
“democrático-burguesa” vitoriosa encabeçada pela classe dominante, mas
sim de uma revolução proletária “insuficientemente madura e prematura”
que, abortada, permitiria à burguesia, após uma “profunda crise revolu-
cionária”, restabelecer o seu domínio sobre bases “democráticas”.16
Historicamente existem várias formas de revoluções e várias de con-
trarrevolução. Da mesma forma que uma revolução é um processo histó-
rico que não se resume a um golpe militar, uma quartelada, a contrarre-
volução não é um processo histórico que possa ser resumido a um golpe
violento que instaura uma ditadura. Na verdade nasce a contrario do
exemplo português e, seguindo o sucesso de Espanha desse ponto de
vista, um laboratório de processos contrarrevolucionários que nada têm a
ver com o modelo chileno (um golpe contrarrevolucionário feito sob as
botas de uma ditadura militar). Este modelo “pacífico” de contrarrevolu-
ção (hoje enquadrado pelo conceito teleológico de “transições para a
democracia”) será adotado pelos EUA para a sua política externa, a cha-
mada doutrina Carter, e aplicado depois às ditaduras latino-americanas.
16 León Trotsky, “Problemas de la revolución italiana” in ____. La teoría de la
revolución permanente. Compilación. Buenos Aires: Centro de Estudios, Investi-
gaciones y Publicaciones León Trotsky [CEIP León Trotsky], 2000, pp. 552-553.
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Um modelo que se centra na ideia de pôr fim às revoluções ou evitá-las
criando uma base social eleitoral, no quadro do regime democrático-
-representativo, isto é, uma transição para uma democracia liberal que
evite a rutura revolucionária.
Em 25 de novembro de 1975 não começou um país mítico de sonho,
de igualdade e justiça, alicerçado num pacto social duradouro. Começou
o fim de um sonho, de gentes pobres, quantas analfabetas, estudantes,
intelectuais, trabalhadores de diversos setores que não acreditavam só
utopicamente numa sociedade mais igual, acreditavam, e essa é a história
da Revolução de Abril, que podiam ser eles a fazê-la, a construí-la, em
vez de delegar nos outros esse poder.
O fim desse sonho levou cerca de duas décadas para começar a tornar-
-se pesadelo. O pacto social termina na segunda metade de década de 80,
com o nascimento da concertação social – muitos chamam à concertação
social o pacto social, porque esse é o seu nome formal, mas nome e coisa
não são a mesma coisa. A concertação social foi criada para pôr fim ao
pacto social, foi no seio desta que se negociou, com um papel central do
Fundo Social Europeu, a grande precarização da força de trabalho em
Portugal, numa fórmula que sintetizei numa metáfora dura: “os pais de
abril venderam os filhos”. Mantiveram os seus direitos a troco da preca-
riedade das gerações vindouras, pagando o preço de uma infantilização
histórica desta geração, em que o conflito se transferiu do seio da empre-
sa para a família, que sustenta a parte do salário não paga pelo patrão.
Mas nestes 40 anos um movimento complexo de reconversão do mercado
de trabalho manteve conquistas de abril até 2008 para uma parte da
população, sendo que uma grande parte dela foi afastada desse equilíbrio
de direitos sociais logo no final dos anos 80.
Entre 1975 e 1986, vigora um pacto social no País, na forma da Cons-
tituição de 1976, sedimentado em ganhos significativos para o trabalho
conquistados em 1974-1975, em troca da desistência, por parte das orga-
nizações sindicais e políticas representantes dos trabalhadores, da luta
estratégica pelo poder, alterando a forma de propriedade.
Os pactos sociais surgem normalmente em épocas de conjunturas eco-
nómicas de crise, embora a crise não seja variável suficiente para deter-
minar um pacto social. Devem existir outras, entre elas, cremos, a real
capacidade de cedência, neste caso, do elo mais forte, os empresá-
rios/patrões, ou seja, a capacidade de reformas dentro do sistema capita-
lista que signifiquem algum tipo de ganhos para o elo economicamente
mais fraco desta relação, o trabalho. Muitas das “conquistas de abril” só
foram legalizadas nos anos vindouros, como referimos. É certo que
depois do golpe de 25 de novembro de 1975, que põe fim à dualidade de
poderes nas forças armadas, introduzem-se paulatinamente leis que são
56 | TRABA LHO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …
um recuo face à situação de facto do biénio 1974-1975, mas, traumatiza-
das por uma explosão social sem precedentes, um movimento operário
forte, extremamente organizado, as classes dirigentes vão de facto criar as
condições legais para a institucionalização de muitos daqueles direitos.
Não há, a contrario do veiculado pelo senso comum, um decréscimo
linear dos conflitos sociais com a institucionalização e estabilização do
regime democrático representativo, mas estes vão adquirir, gradualmente,
um caráter diferente, sobretudo no que toca às reivindicações, organiza-
ção e suas direções. O número de greves, segundo dados oficiais, por
exemplo, mantém-se muito elevado. A situação social estava longe de
estar estabilizada política e socialmente. Entre 1976 e 1983 o País vai ter
nada mais, nada menos do que dez governos, dois dos quais interinos e
três de iniciativa presidencial. Era o resultado institucional de um País
fortemente radicalizado (recordemos os quase 800 mil votos em Otelo
Saraiva de Carvalho em 1976!), saído de uma revolução parcialmente
vitoriosa que fazia entrar agora no vocabulário as “conquistas de abril”,
“os direitos adquiridos”, em referência aos direitos conquistados. De tal
forma que a tentativa de impor a concertação social em 1977 – cujos
princípios estavam contra o pacto social porque estabeleceu por decreto-
-lei o limite de 15% para os aumentos salariais e a fixação de um cabaz
de compras, entre outras medidas – é um desaire e o I Governo Constitu-
cional cai.
O pacto social nascido em 1975 e consagrado na Constituição de 1976
tinha-se mantido por causa desta intensa conflituosidade herdada da
revolução e não por causa de um pacto ou por ausência de conflitos. O
pacto social só se manteve, num aparente paradoxo, quando não existiu
pacto, isto é durante a revolução e a instabilidade dos dez anos seguintes,
e a existência jurídica do pacto – plasmada na concertação social – foi
significando o fim desse mesmo pacto social. Ou seja, pactos sociais não
dependem de acordos, mas da inexistência deles: mantêm-se enquanto há
conflitualidade social. As reformas nascem elas mesmas de conflitos
agudos e não de negociações. E o pacto vai terminar entre 1984 e 1986
justamente pela ausência de conflitos em resposta à grande crise econó-
mica de 1982 e 1984 a que os trabalhadores não contrapõem uma situa-
ção semelhante à de 1974 e 1975, mas escassa resistência à erosão dos
salários comidos pela inflação, dos despedimentos coletivos e dos salá-
rios em atraso.
O pacto terminou aí, nos anos 80, porque: 1) Foi derrotado o setor mais importante do movimento operário orga-
nizado como exemplo para todos os outros setores das classes tra-
balhadoras e setores médios – três anos de salários em atraso na
Lisnave levaram à derrota destes trabalhadores que assinaram o
ACUMUL AÇÃO , R EGIME E REVOLU ÇÃ O : CONT RIBUT OS PARA A H IST ÓRIA… | 57
primeiro compromisso de empresa alguma vez feito em Portugal
naqueles termos (de “paz social”), e que teve um efeito de arrasta-
mento simbólico sobre os outros setores, à semelhança do que acon-
tece com a derrota dos mineiros com Margaret Thatcher, em Ingla-
terra, dos controladores aéreos nos EUA, dos operários da Fiat em
Turim, e, mais tarde, dos trabalhadores do petróleo no Brasil17. 2) Ligação estreita entre um sindicalismo fortemente apoiado na nego-
ciação e não no confronto – embora mais ou menos pactuante con-
soante seja protagonizado pela UGT ou pela CGTP – e tendo este
sindicalismo fortes ligações ao regime democrático, feitas a partir
do elemento Estado, visto não como um opositor, mas como um ár-
bitro para o qual as propostas eram direcionadas, em vez de para as
empresas, como foi característico do período da revolução. Os prin-
cipais sindicatos de então, aceitando a necessidade de sair da crise
mantendo o mesmo modelo de acumulação, aceitaram que a “saída
da crise” fosse feita por ajudas diretas maciças às empresas, por um
lado, e por outro, por ajudas indiretas pela via da transferência para
o Estado de parte dos custos da força de trabalho (casos das refor-
mas antecipadas ou das isenções de contribuições para a Segurança
Social). O papel do Estado, como moderador, em sede de concerta-
ção social, foi visto como uma forma de corporativismo, rejeitado
pela CGTP, mas só durante um ano, findo o qual esta aderiu tam-
bém ao Conselho, embora não tenha assinado todos os acordos. 3) Melhoria de vida e dos níveis de consumo das classes médias e tra-
balhadoras. Esta melhoria deu-se e foi efetivamente como tal senti-
da, embora consideremos que não se dá por aumentos reais de salá-
rios mas, entre outras razões, pelo aumento do crédito a juros
baixos para compra de habitação (que hoje é um pesadelo e um gar-
rote sobre os salários, que entretanto desceram vertiginosamente) e
pelo embaratecimento de produtos básicos, com a entrada maciça
da China e da Índia na produção para o mercado global. Este facto
foi associado então à entrada na CEE e à promessa de mobilidade e
prosperidade social. 4) Mudanças no sistema internacional de Estados, na sequência da
queda do Muro de Berlim e do fim da URSS. Não é, cremos, o fim
da URSS que determina a erosão dos direitos sociais – argumento
usado frequentemente – porque essa erosão passou por difíceis ne-
gociações sindicais a montante. Mas parece ser um argumento com
17 Bo Strath, The Politics of De-Industrialization (London-NY-Sydney, Croom
Helm, 1987).
58 | TRABA LHO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …
rigor que o fim da URSS foi visto com desesperança por quem, so-
bretudo em países como Portugal onde havia fortes partidos comu-
nistas, acreditava que havia “algures a leste” uma sociedade mais
igualitária. Não era, como sabemos, uma sociedade igualitária e,
num aparente paradoxo, porque se prende com a política de coe-
xistência pacífica, a gestão da precariedade foi negociada também
com os mesmos sindicatos – de inspiração comunista – que tinham
na URSS um exemplo e que advogaram, numa construção de me-
mória que não tem sido alvo de uma visão crítica, que o fim da
URSS tinha significado o fim das “conquistas adquiridas” no Oci-
dente. 5) A utilização do fundo da Segurança Social para gerir a precariedade
e o desemprego18, criando um colchão social, seguindo as orienta-
ções do Banco Mundial19, que evite disrupções sociais fruto da ex-
trema pobreza, desigualdade ou regressão social. Essa utilização foi
negociada caso a caso e na maioria dos casos aceite pelos sindi-
catos, sob a forma de reformas antecipadas – banca, grandes empre-
sas metalomecânicas (só na Lisnave quase 5000 trabalhadores vão
até dez anos para a reforma antecipada com a totalidade dos salá-
rios), estivadores e trabalhadores portuários (o número é reduzido
de 7000 para os atuais 700 em todo o País), setor das empresas de
telecomunicações, para citar alguns exemplos. Em troca conser-
vam-se os “direitos adquiridos” para os que já os tinham e ou não
entram novos trabalhadores, ou os que entram ficam já sob um re-
gime de precariedade, o que implica uma redução substancial das
contribuições para a Segurança Social. O que se verifica é uma es-
treita ligação entre gestão da força de trabalho empregada, os fun-
dos da Segurança Social e a criação crescente de medidas assis-
tencialistas para atenuar os efeitos da conflitualidade social decor-
rentes de uma situação de desemprego que se afirma cíclica mas
crescente (subsídios de desemprego, apoio a lay-offs, formação pro-
fissional, rendimento mínimo, rendimento social de inserção, subsí-
dio social de desemprego, subsídio parcial de desemprego).
A geração de homens e mulheres que mantiveram os “direitos adqui-
18 Raquel Varela, “A Eugenização da Força de Trabalho. Trabalho, Estado e Segu-
rança Social em Portugal”, in Raquel Varela (org.), A Segurança Social é Susten-
tável. Trabalho, Estado e Segurança Social em Portugal, Lisboa, Bertrand, 2013.
19 Elsa Pereira Reis, Simon Schwartzman, Pobreza e exclusao social: aspectos socio
politicos. Trabalho preparado por solicitacao do Banco Mundial, como contri-
buicao para um estudo sobre a exclusao social no Brasil, 2000.
ACUMUL AÇÃO , R EGIME E REVOLU ÇÃ O : CONT RIBUT OS PARA A H IST ÓRIA… | 59
ridos” de Abril no setor público, nas camadas mais formadas dos traba-
lhadores e nas pequenas empresas familiares foram plenamente proletari-
zadas com a crise de 2008, não tendo hoje mais dinheiro para sustentar ou
evitar a regressão social dos filhos precários, expulsos para a imigração
ou a vegetar em casa. Ao mesmo tempo, setores desqualificados dos
trabalhadores, como a população com menos do 6.º ano e mais de 45
anos, ou a construção civil, por exemplo, são expulsos, sem bilhete de
retorno, do mercado de trabalho. Há 47% de pobres em Portugal. As
exportações crescem na medida exata em que os salários baixam e o
consumo interno está paralisado. Vendem-se dedos e anéis, todas as
empresas estratégicas. A dívida pública é uma bola de neve a descer de
uma montanha, quanto mais desce mais cresce, aproximando-se do
momento em que nos esmagaria. Só nos anos de 2013 e 2014 Portugal
criou 28% dos seus milionários, segundo o Crédit Suisse. Os 10% mais
ricos são detentores de 58,3% da riqueza do País. Existem atualmente 75
903 milionários em Portugal, mais 10 777 do que no ano anterior. Em
seis casos o seu património está avaliado entre 500 milhões e mil milhões
de dólares e três portugueses, três, têm mais de mil milhões de dólares de
património líquido. As medidas de recuperação dos capitais falidos de
2007 deixaram este cenário apocalíptico no País. Esta erosão dos setores
médios criou um alerta máximo no seio dos partidos do rotativismo
parlamentar, profundamente clientelares – são agências de “emprego” –
que é a face cobarde e histérica de uma questão de fundo, a crise do
próprio regime democrático-representativo, avisando que estamos numa
encruzilhada histórica.
O paralelo com a crise de 1929 é inevitável. Tom Joad, a personagem
central do magnífico As Vinhas da Ira, chega a um cruzamento quando
sai da prisão e decide para onde ir. É um jovem camponês que a despos-
sessão de terras transforma em proletário (subempregado ou desemprega-
do). Ao longo da viagem pela mítica estrada 66 nos EUA, em plena crise
de 1929, ele transforma-se de okie – nome depreciativo para os campone-
ses do Oklahoma – em imigrante na Califórnia, de criminoso comum em
preso político, de camponês em assalariado, as crenças desaparecem, as
dúvidas acordam.
Expropriação, desemprego, desumanização. Cada dia a família Joad
vive a marcha capitalista e dela toma consciência, devagarinho. Uma das
peças fundamentais deste caminho rumo à consciência de classe é o papel
do Estado ao longo desta viagem. A família Joad, no limiar da miséria,
expropriada por banqueiros, enganada por angariadores, explorada por
patrões, humilhada, encontra o Estado, exclusivamente, na figura da
polícia: a fiscalizar a migração da mão de obra, a infiltrar acampamentos
de trabalhadores, a prender “agitadores”, a provocar motins para depois
60 | TRABA LHO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …
ter direito a intervir “sem mandato” e finalmente a tentar prender Joad
porque ele matou um polícia que tinha, à sua frente, acabado de matar um
ex-pastor sindicalista que dirigia uma greve. No final do livro abandona o
campo keynesiano do welfare sate, uma ilha de um mundo miserável, e
diz: “Andarei por aí no escuro. Estarei em toda a parte. Para onde quer
que olhem. Onde houver uma luta para que os famintos possam comer,
estarei lá. Onde houver um polícia a espancar uma pessoa, estarei lá.
Estarei nos gritos das pessoas que enlouquecem. Estarei nos risos das
crianças quando têm fome e as chamam para jantar. E quando as pessoas
comerem aquilo que cultivam e viverem nas casas que constroem, tam-
bém lá estarei.”
DIREITO AO TRABALHO E SEGURANÇA
NO EMPREGO EM PORTUGAL: 1951-2013
O DIREITO AO TRABALHO CONSTITUCIONALMENTE GARANTIDO
E CONCEPTUALIZADO COMO UM DIREITO HUMANO AO TRABALHO
DIGNO NUNCA FOI ASSISTIDO DE CONDIÇÕES PLENAS DE EFECTIVAÇÃO,
CONDIÇÕES ESTAS QUE HOJE, NO ESSENCIAL, DEIXARAM DE EXISTIR.
Eduardo Petersen
I. Nos termos do artigo 58.º da Constituição da República Portuguesa,
todos têm direito ao trabalho. Para assegurar este direito, incumbe
ao Estado promover:
a) A execução de políticas de pleno emprego;
b) A igualdade de oportunidades na escolha da profissão ou género de
trabalho e condições para que não seja vedado ou limitado, em fun-
ção do sexo, o acesso a quaisquer cargos, trabalho ou categorias
profissionais;
c) A formação cultural e técnica e a valorização profissional dos tra-
balhadores.
A disposição inicia o Capítulo I – Direitos e Deveres Económicos – do
Título III da Parte I da Constituição: Direitos e Deveres Económicos,
Sociais e Culturais. Na parte final do título anterior – Direitos, Liber-
dades e Garantias – encontra-se o artigo 53.º, subordinado à epígrafe Di-
reitos, Liberdades e Garantias dos Trabalhadores, segundo o qual “É ga-
rantida aos trabalhadores a segurança no emprego, sendo proibidos os
despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos”.
Hoje textualmente apresentados como diversos1, o direito ao trabalho
1 A versão original da Constituição de 1976 estabelecia o direito ao trabalho no seu
artigo 51.º, e no artigo 52.º, sob a epígrafe “Obrigações do Estado quanto ao direito
ao trabalho”, elencava também a segurança no emprego, ao lado da promoção do
pleno emprego e da assistência material aos desempregados, e da igualdade de
oportunidades e da formação cultural, técnica e profissional dos trabalhadores.
62 | TRABA LHO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …
e a garantia de segurança no emprego são interligáveis por via da respec-
tiva fonte: a dignidade da pessoa humana enquanto fundamento essencial
da República (artigo 1.º) com a inerente protecção da vida, e no respeito
pelo tempo de evolução desta (artigos 24.º e 36.º), e a inserção do cidadão
numa organização económica assente no direito de livre escolha de
profissão ou género de trabalho (artigo 47.º), na iniciativa privada (artigo
61.º) e na propriedade privada (artigo 62.º), direitos que operam no qua-
dro duma economia de mercado.
A conclusão é a de que, seja por via da propriedade privada, seja pela
via do trabalho, o cidadão há-de poder adquirir no sistema os recursos
necessários à manutenção da sua vida e à satisfação das necessidades de
evolução desta em condições dignas. O tempo e ritmo da vida a exigirem
estabilidade justificam a garantia de segurança no emprego, aplicando-se
ao emprego existente, que não deixa de ser uma espécie de direito ao
trabalho bem-sucedido, efectivo ou realizado, e obriga do mesmo modo à
concepção do direito ao trabalho como um direito realizável de forma
duradoura.
O artigo 23.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de
1948, consagra o direito de toda a pessoa ao trabalho, à livre escolha
deste, a condições justas e satisfatórias de trabalho e à protecção contra o
desemprego, assim como a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe
permita a si e à sua família uma existência conforme com a dignidade
humana, prevendo ainda a possibilidade de outros meios de protecção
social.
O enquadramento desta Declaração assenta na afirmação da dignidade
e igualdade enquanto garantia de liberdade, visando a afirmação duma
nova ordem de paz e bem-estar, e procede, quanto ao direito ao trabalho,
da constatação da fertilidade do terreno do desemprego e da miséria para
o surgimento das forças políticas que haviam levado à guerra.
Em Portugal, embora o artigo 21.º do Estatuto do Trabalho Nacional
de 1933 se referisse ao direito ao trabalho e ao salário humanamente
suficiente e à garantia destes sem prejuízo da ordem económica, jurídica
e moral da sociedade, o mesmo preceito começava por estabelecer que o
trabalho era um dever de solidariedade social. Assim, em última análise,
o direito ao trabalho era o direito a cumprir um dever.
A Constituição de 1933 foi revista em 1951 pela Lei 2048, de 11 de
Junho, e consagrou no artigo 8.º, n.º 1-A, “o direito ao trabalho nos
termos que a lei prescrever”. Acolheu-se pois a consagração de 1948 do
direito ao trabalho, mas com uma fórmula sucinta e que remetia o con-
teúdo do direito constitucional para a esfera da lei ordinária.
D IRE ITO AO TRABALHO E SEGU R ANÇ A NO EMP RE GO EM PORT UGAL : 1951-2013 | 63
Direito ao trabalho – uma mudança de paradigma
A dificuldade na aceitação dos direitos económicos e sociais por parte
dos Estados-membros da ONU explica que só em Dezembro de 1966
tenha sido aprovado o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos,
Sociais e Culturais e que o mesmo só tenha entrado em vigor na ordem
internacional em Janeiro de 1976.
Neste Pacto, e depois de cada Estado se comprometer, no máximo dos
seus recursos disponíveis, de modo a assegurar progressivamente o pleno
exercício dos direitos reconhecidos, prevê-se (artigo 6.º) “o direito ao
trabalho, que compreende o direito que têm todas as pessoas de assegurar
a possibilidade de ganhar a vida por meio de um trabalho livremente
escolhido ou aceite”, para o qual os Estados tomarão as medidas apro-
priadas, que devem incluir “programas de orientação técnica e profissio-
nal, a elaboração de políticas e técnicas capazes de garantir um desenvol-
vimento económico, social e cultural constante e um pleno emprego
produtivo em condições que garantam o gozo das liberdades políticas e
económicas fundamentais de cada indivíduo”. No artigo 7.º, os Estados-
-partes no Pacto reconhecem o direito de gozar de condições de trabalho
justas e favoráveis, que assegurem, em especial, uma remuneração que
proporcione a todos os trabalhadores, no mínimo, uma existência decente
para eles próprios e suas famílias.
Embora pareça encontrar-se apoio na versão do artigo 6.º citado para
uma defesa do direito a trabalhar ou, noutra perspectiva, do direito à
empregabilidade, o referido artigo não permite esta interpretação restriti-
va, pois o direito ao trabalho tem de ser mais do que o direito nele com-
preendido e à empregabilidade corresponderá o pleno emprego, por via
das medidas apropriadas de desenvolvimento económico, social e cultural
constante, donde a empregabilidade acabará por se resolver em empre-
go/trabalho efectivo e não meramente potencial.
A versão constitucional portuguesa também o salienta: a primeira in-
cumbência do Estado para cumprir o direito ao trabalho é a execução de
políticas de pleno emprego.
No mesmo sentido, a Carta Social Europeia adoptada em 1961 e en-
trada em vigor em 1965, revista em 1996, estabelece que toda a pessoa
deve ter a possibilidade de ganhar a sua vida por um trabalho livremente
empreendido, e que, com vista a assegurar o direito ao trabalho, as partes
se comprometem a reconhecer como um dos seus principais objectivos e
responsabilidades a realização e a manutenção do nível mais elevado e
mais estável possível de emprego, com vista à realização do pleno em-
prego (artigo 1.º, Parte II).
Assiste-se, porém, a uma inversão de paradigma, porventura facilitada
pela persistente concepção do direito ao trabalho como um direito mera-
64 | TRABA LHO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …
mente programático, ou seja, como uma afirmação de princípio realizá-
vel, se e na medida possível, que consiste na assunção de responsabilida-
de essencialmente no sentido da plena empregabilidade e apenas residu-
almente no sentido da criação de emprego.
Assim, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, de 2000
(identicamente na versão de 2007), acolhendo as Cartas Sociais mas
apenas segundo o princípio da subsidiariedade, ao epigrafar e consignar
no artigo 15.º o direito de trabalhar, assistindo-o do direito de acesso
gratuito a serviços de emprego – artigo 29.º.
Não há, porém, que questionar se o direito ao trabalho na versão da
Constituição Portuguesa permanece em vigor face ao direito a trabalhar,
provindo da União Europeia, na medida em que apesar do primado deste,
a norma daquele sempre seria garantida pela compatibilidade essencial ao
nível de direitos fundamentais.
Direito ao trabalho, direito à vida
II. O direito ao trabalho, enquanto direito fundamental, não deixa de
se integrar numa arquitectura de direitos fundamentais assente no pilar
basilar do reconhecimento da dignidade da pessoa humana, podendo por
isso conceber-se o direito ao trabalho como instrumental à consecução do
direito à vida e à dignidade da pessoa humana e em consequência como
coberto pelo maior valor destes – ao menos enquanto se mantiver a
estrutura económica e social que assenta sobre o trabalho.
Independentemente de se ver no emprego o direito ao trabalho efecti-
vado, a durabilidade tendencial do emprego é uma exigência conceptual:
de que serve um direito ao trabalho, mesmo enquanto simples afirmação
de princípio, se o trabalho que por via dele se consegue alcançar não tem
nenhuma garantia de se manter?
A defesa de que a este trabalho se sucedem infinitamente outros, em
situação de pleno emprego, e que por isso para o cumprimento do direito
ao trabalho não se exige que o seu titular tenha direito à manutenção do
seu emprego, ignora a condição humana, a condição de vida, sobre a qual
e apenas sobre a qual se pode assentar o conceito de dignidade.
As normas sobre segurança no emprego, em sentido amplo, integram a
política de emprego e por esta via relevam também para a análise do
cumprimento do direito ao trabalho.
Não desconhecendo a relevância duma análise da política macroeco-
nómica para o apuramento do grau de regulação volitiva teleologicamente
dirigida ao cumprimento do direito ao trabalho, nem ignorando a relevân-
cia da análise das políticas activas e passivas de emprego, o presente
D IRE ITO AO TRABALHO E SEGU R ANÇ A NO EMP RE GO EM PORT UGAL : 1951-2013 | 65
texto centrar-se-á sobretudo na análise da evolução jurídica dos modos de
contratação e de cessação laborais enquanto determinantes da estabilida-
de do emprego.
O direito ao trabalho segundo a Constituição de 1933
III. No período em que foi consagrado na Constituição de 1933 o di-
reito ao trabalho, estava em vigor – e era esta, portanto, a lei ordinária a
que o artigo 8.º, n.º 1 – A se referia – a Lei 1952, aprovada em 1937,
segundo a qual o contrato de trabalho era aquele pelo qual alguém se
obriga a prestar a sua actividade profissional a outrem, sob a autoridade e
direcção ou fiscalização deste, mediante remuneração. Porém, as normas
previstas na referida lei não se aplicavam apenas aos que tivessem cele-
brado contrato de trabalho, mas também, directamente, ao trabalho à peça
ou à tarefa, no domicílio ou em estabelecimento próprio do prestador, e
na transformação de matérias-primas fornecidas pelo comprador do
produto transformado, ou seja, tipos subsumíveis ao contrato de prestação
de serviço.
Em matéria de contratação, o contrato podia ser celebrado a prazo, por
qualquer prazo, sem quaisquer limites ou requisitos. Como a consequên-
cia jurídica do esgotamento do prazo é a caducidade do contrato, a lei
permitia, pois, a criação livre de trabalho não duradouro.
Mesmo para os contratos de trabalho celebrados sem prazo, a lei previa
a possibilidade de denúncia unilateral pelo empregador, a qualquer altura,
desde que observado um prazo de pré-aviso calculado em função da anti-
guidade, numa proporção fixa que no máximo determinava um pré-aviso
de seis meses para trabalhadores com quinze ou mais anos de antiguidade.
Finalmente, a definição de justa causa de despedimento como qualquer
facto de tal modo grave que comprometesse de imediato a possibilidade da
relação de trabalho, não a ligando à culpa do trabalhador, e exemplificando
como constitutivas situações relacionadas com vícios e mau procedimento,
ou inaptidão, entre outras, e sendo a justa causa apreciada segundo a subor-
dinação ao princípio da mútua colaboração e pelo espírito do tempo, permi-
tiam grande facilidade de despedimento, quer por justa causa subjectiva,
quer objectiva, e sem garantias procedimentais.
Nenhuma garantia praticamente, do ponto de vista jurídico, de durabi-
lidade do trabalho.
No período de 1966 (DL 47 032) a 1969 (DL 49 408), o legislador
empreende um enorme esforço de regulamentação unitária da generalida-
de das questões levantadas pelas relações de trabalho, em resultado, além
do mais, da influência da experiência e evolução em matéria social de
legislações estrangeiras – naturalmente também em tributo à consagração
66 | TRABA LHO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …
dos direitos económicos e sociais a nível internacional, como resulta das
menções à garantia duma “existência e subsistência digna do trabalhador”
e à valia da política social no desenvolvimento económico, como “factor
de elevação do nível de vida da população” e à acção da política social
sobre as estruturas produtivas, “levando-as a um constante esforço de
adaptação e progresso em ordem à satisfação das mais legítimas aspira-
ções sociais” (preâmbulo do DL 49 408).
Mas desde logo se inicia a exclusão da aplicação directa da lei laboral
a qualquer tipo de prestação de serviço, e a matéria da contratação laboral
apenas determina uma equiparação do regime de cessação dos contratos a
prazo de longa duração (4 anos) aos contratos sem prazo, mantendo-se,
porém, a não previsão de qualquer requisito de necessidade temporária
como condição de validade da celebração de contratos a prazo.
Manteve-se a possibilidade de denúncia unilateral pelo empregador
dos contratos de longo prazo e sem prazo, agora contra o pagamento de
indemnização correspondente a metade do pré-aviso, e o cálculo deste
passou a obedecer a uma proporção directa à antiguidade, à razão de um
mês por cada ano, no que representou um agravamento muito considerá-
vel do custo de uma denúncia unilateral do contrato pelo empregador.
Em matéria de despedimentos manteve-se a formulação da justa cau-
sa, continuaram a ser exemplificados comportamentos constituintes de
justa causa que melhor quadravam ao controlo político, ideológico e
reivindicativo dos trabalhadores, mas reforçou-se a protecção dos traba-
lhadores através da obrigatoriedade de procedimento disciplinar com
direito de defesa.
O volume de direitos que então se reconheciam aos trabalhadores,
combinado com o agravamento da dificuldade do empregador pôr termo
unilateralmente ao contrato, suscitou no legislador a apreensão do fenó-
meno de incumprimento da lei mediante fuga aos seus pressupostos de
aplicação, o que levou a que o artigo 10.º n.º 3 do DL 47 302 estabeleces-
se a regra, de vigência renovada até hoje, de que a estipulação do prazo
num contrato de trabalho é nula, se tiver por fim iludir as disposições que
regulam o contrato sem prazo.
Por outro lado, se conjugarmos estas normas com a proibição da gre-
ve, com a dominação e instrumentalização dos sindicatos pelo Estado e
com o baixo nível salarial que explica também o fenómeno da emigração
neste período, pode bem afirmar-se que o direito ao trabalho consagrado
constitucionalmente em 1951 não corresponde ao direito humano ao
trabalho digno que resulta da Declaração Universal dos Direitos do
Homem de 1948.
O único ponto de conexão ao direito ao trabalho previsto na Carta So-
cial de 1961 encontra-se na criação, em 1962 (DL 44 506, de 10-8), do
D IRE ITO AO TRABALHO E SEGU R ANÇ A NO EMP RE GO EM PORT UGAL : 1951-2013 | 67
Fundo de Desenvolvimento da Mão de Obra, visando combater o desem-
prego resultante da reorganização industrial e da inovação tecnológica,
adaptando e formando mão-de-obra qualificada correspondentemente
necessária, e em 1966, na criação do Serviço Nacional de Emprego (Dec.
42 731, de 9-12), com missão de estudo e organização do funcionamento
do mercado de emprego, colocação e orientação profissional e agencia-
mento da procura e da oferta, agilizando o reencaminhamento dos de-
sempregados. Porém, como se viu, sempre em direcção a um emprego
potencialmente não estável e relativamente ao qual, e às condições remu-
neratórias do qual, o trabalhador não tinha qualquer poder reivindicativo.
O direito humano ao trabalho digno e a revolução de 1974
Novo marco, do ponto de vista da consecução de um direito humano
ao trabalho digno, constitui a Revolução de 1974.
Do ponto de vista jurídico, o período que se segue à Revolução vai
atacar, desde logo, os despedimentos, blindando a porta de saída dos
trabalhadores do mercado de trabalho e assegurando-lhes esta via de
estabilização do trabalho.
Ainda em 1974, o DL 660/74, de 25-11, regulou a intervenção do Es-
tado nas empresas, entre outros, nos casos em que se previssem despe-
dimentos totais ou dos trabalhadores de várias secções, e em 31-12, o DL
783/74 veio regular a matéria do despedimento colectivo, instituindo
mecanismos de fiscalização extremamente apertados e prevendo nova-
mente a possibilidade de intervenção do Estado nas empresas, numa
verdadeira necessidade de autorização estatal do despedimento, subordi-
nado não aos interesses da empresa, mas aos interesses da economia
nacional.
Em 16 de Julho de 1975 foi publicado o DL 372-A/75, que regulou de
modo imperativo a matéria da cessação do contrato de trabalho, revogan-
do a disciplina da LCT e estabelecendo desde logo como critério para a
sua própria interpretação o de que visava proteger o direito ao trabalho e
o de que “O despedimento de um trabalhador numa sociedade a caminho
do socialismo só pode concretizar-se se aquele, pela sua conduta culposa,
mostrar não estar em condições de poder permanecer no seu posto de
trabalho, ou se, por circunstâncias objectivas, a manutenção da relação de
trabalho for incompatível com os interesses globais da economia”2.
Foram proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos po-
líticos ou ideológicos, e o conceito de justa causa foi extirpado de quais-
quer circunstâncias objectivas e limitado à possibilidade de imputação ao
2 Artigo 2.º do DL 372-A/75, revogado pelo artigo 3.º do DL 84/76, de 28-1.
68 | TRABA LHO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …
trabalhador, a título de culpa, de um comportamento violador de deveres
laborais. O DL 84/76, de 28-1, veio revogar a matéria do despedimento
por motivo atendível prevista inicialmente nos artigos 13.º a 23.º do DL
372-A/75, excluindo a possibilidade de extinção do posto de trabalho
individual, a inaptidão do trabalhador e impossibilidade de adaptação às
alterações tecnológicas como fundamentos da cessação contratual3.
Foi revogada a possibilidade de denúncia unilateral do contrato de tra-
balho pelo empregador, mediante aviso prévio e pagamento de indemni-
zação.
A partir de Janeiro de 1976 era, pois, proibido qualquer despedimento
individual que não tivesse por fundamento um comportamento culposo
com requisitos de gravidade bastante, aliás sujeito a um procedimento
disciplinar, com garantia de intervenção da comissão de trabalhadores
com parecer não vinculativo, e prevendo-se ainda uma providência cau-
telar de suspensão do despedimento4 e a impugnação judicial perante um
tribunal independente, o qual apreciaria a justa causa de acordo com o
espírito do tempo e tendo em conta o grau de lesão dos interesses da
economia nacional ou da empresa5, ou seja, com uma razoável margem
de impossibilidade, para um empregador, de conseguir despedir um
trabalhador por esta via de invocação de justa causa. De resto, passou a
prever-se a reintegração como consequência da insubsistência de justa
causa e também a aplicação de multas à entidade patronal, cujo produto
reverteria para o Fundo de Desemprego.
Quanto ao despedimento colectivo, mantendo-se o regime altamente
restritivo do DL 783/74, por via do DL 84/76, um trabalhador indivi-
dualmente considerado nunca podia ser despedido pelos motivos que
legitimariam o despedimento colectivo.
Da conjugação destes dispositivos resultou que, no período de 1975
até ao chamado primeiro pacote laboral de 1989, durante quase quinze
anos, a lei determinava uma quase impossibilidade de despedimento
individual de trabalhadores com contrato de trabalho sem prazo.
Porém, a legislação sobre contrato a prazo que o DL 372-A/75 anun-
ciava vir a ser publicada no prazo de três meses só veio a sê-lo após o
período revolucionário, através da chamada Lei do Contrato a Prazo (DL
781/76, de 28 de Outubro), sendo pois que o regime anterior sobre a
contratação a prazo se manteve durante o período revolucionário.
3 Artigo 14.º, n.º 1 e n.º 3.
4 O DL 372-A/75, de 16-7, veio a sofrer as alterações introduzidas pelo DL 84/76, de
28-1, pelo DL 841-C/76, de 7-12, pela Lei 48/77, de 11-7, e Lei 68/79, de 4-10.
5 Artigo 12.º n.º 5 do DL 372-A/75.
D IRE ITO AO TRABALHO E SEGU R ANÇ A NO EMP RE GO EM PORT UGAL : 1951-2013 | 69
Os requisitos que a Lei do Contrato a Prazo introduziu à validade des-
te limitaram-se à duração certa do prazo, no máximo de três anos, inclu-
indo renovações, estipulada por escrito, sem correlação com uma neces-
sidade temporária de trabalho, salvo no caso de contratos celebrados por
prazo inferior a seis meses.
Conforme resulta do respectivo preâmbulo, a justificação do novo re-
gime dos contratos a prazo é precisamente a perspectiva de aumento, a
curto prazo, do emprego. Uma medida de política de emprego, portanto.
Nos termos legais, os contratos cessavam por caducidade no fim do
prazo, sem qualquer direito a compensação ou indemnização.
Na prática, e de facto como política de emprego, o que se fez foi auto-
rizar a utilização do contrato a prazo como forma de contornar a quase
impossibilidade de despedimento dos trabalhadores com contratos sem
prazo, assim flexibilizando e controlando a força de trabalho e a gestão
dos custos com o trabalho. Criação de emprego desejada, mas com possi-
bilidade de destruição de emprego a curto prazo.
Colocamos a hipótese de que, com este instrumento jurídico, se verifi-
cou efectivamente um aumento exponencial da contratação a prazo. Não
tendo tido acesso a dados anteriores a 1983, os dados dos restantes anos
da década6 evidenciam sensivelmente, na comparação com os contratos
permanentes, entre 1/6 e 1/5 da força de trabalho contratada a prazo, o
que dificilmente se compagina com a efectiva necessidade temporária de
força de trabalho por parte das empresas e sem que reflicta essa mesma
percentagem de criação de emprego, sendo aliás que a taxa de desempre-
go se apresentou em crescendo nas décadas de 70 e 80.
Antes de prosseguir, uma referência ao enquadramento constitucional.
A Constituição da República Portuguesa de 1976, na sua versão origi-
nal, declarava, nos artigos 1.º e 2.º, que “Portugal é uma República sobe-
rana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e
empenhada na sua transformação numa sociedade sem classes” e que “A
República Portuguesa é um Estado democrático, baseado na soberania
popular, no respeito e na garantia dos direitos e liberdades fundamentais e
no pluralismo de expressão e organização política democrática, que tem
por objectivo assegurar a transição para o socialismo mediante a criação
de condições para o exercício democrático do poder pelas classes traba-
lhadoras”. O artigo 9.º definia como tarefa fundamental do Estado “c)
Socializar os meios de produção e a riqueza, através de formas adequadas
às características do presente período histórico, criar as condições que
permitam promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo, especial-
mente das classes trabalhadoras, e abolir a exploração e a opressão do
6 INE – Inquérito ao Emprego, PORDATA, Última actualização: 2016-02-11.
70 | TRABA LHO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …
homem pelo homem” e o artigo 10.º determinava que “2. O desenvolvi-
mento do processo revolucionário impõe, no plano económico, a apro-
priação colectiva dos principais meios de produção”.
A Constituição previu a liberdade sindical e o direito à greve, entre os
direitos fundamentais, e definia as regras de organização económica cujo
fundamento “assenta no desenvolvimento das relações de produção
socialistas, mediante a apropriação colectiva dos principais meios de
produção e solos, bem como dos recursos naturais, e o exercício do poder
democrático das classes trabalhadoras” (artigo 80.º), declarando generi-
camente conquistas irreversíveis das classes trabalhadoras todas as nacio-
nalizações ocorridas desde 25 de Abril de 1974, e remetendo a iniciativa
privada ao quadro da sua conformidade com os limites estabelecidos pela
Constituição, pela lei e pelo Plano, relegando à lei ordinária a definição
dos sectores em que a mesma é proibida.
Nestes termos, e ao menos enquanto necessidade jurídica transitória, o
direito humano ao trabalho digno cumprir-se-ia, além do mais, no con-
texto económico gerado a partir duma determinação económica que,
socializando os meios de produção e a riqueza, apropriando colectiva-
mente os principais meios de produção, solos e recursos naturais, produ-
ziria uma redistribuição da riqueza e do rendimento, ou seja, o direito ao
trabalho não resultaria essencialmente duma operação de valorização
profissional dos trabalhadores em vista das necessidades da procura
determinadas pelos agentes económicos, detentores da capacidade de
criar emprego, em mercado livre, sem quase nenhuma responsabilização
destes, não sobrecarregaria os titulares do direito, não resultaria duma
afectação de recursos do Estado baseada em impostos com grande inci-
dência sobre os rendimentos do trabalho, mas duma afectação ao colecti-
vo da essencialidade dos meios de produção e da gestão do desenvolvi-
mento económico, em detrimento claro da propriedade privada e da
iniciativa privada.
A “integração europeia” e a regressão do direito ao trabalho
Este quadro declarativo da Constituição nunca chegou a realizar-se:
não só, como vimos, o legislador laboral ordinário forneceu aos agentes
económicos uma válvula de escape dos rigores da estabilidade de empre-
go, como em termos gerais as opções políticas iniciadas pelos governos
constitucionais que se lhe seguiram, e mais especificamente a candidatura
de adesão às Comunidades Europeias iniciaram um percurso em direcção
completamente oposta à declarada, cujo progresso levou à primeira
revisão constitucional de 1982. Esta desde logo expurgou a maior carga
ideológica, substituindo a expressão “criação de condições para o exercí-
D IRE ITO AO TRABALHO E SEGU R ANÇ A NO EMP RE GO EM PORT UGAL : 1951-2013 | 71
cio democrático do poder pelas classes trabalhadoras”, constante do
artigo 2.º, pela expressão “realização da democracia económica, social e
cultural e o aprofundamento da democracia participativa”, e reorganizou
os direitos e deveres económicos e sociais, autorizando a iniciativa priva-
da enquanto condição de progresso, no quadro da Constituição e da Lei.
A consolidação do percurso revela-se em 1989 na 2.ª revisão constitucio-
nal, que completa a expurga ideológica, mesmo ao nível dos conceitos, e
abole a garantia geral de irreversibilidade das nacionalizações e abre o
caminho das privatizações. Apesar da previsão da subordinação do poder
económico ao político, da previsão da incumbência prioritária do Estado
em corrigir desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento,
abriu-se o caminho do restabelecimento das condições, desde logo ao
nível da propriedade, para a geral e preferencial condução económica
privada e para a dependência do direito ao trabalho da dependência do
Estado em relação a tal condução.
Entre 1989 e 1991 ocorre o período a que se chamou primeiro pacote
laboral.
Em 1989 é publicado o DL 64-A/89, de 27 de Fevereiro, sobre despe-
dimentos e contratos a prazo, revogando o DL 372-A/75 e o DL 781/76,
referindo-se expressamente no seu preâmbulo a necessidade de alteração
de estruturas rígidas incompatíveis com o desafio de uma expansão para
um mercado europeu.
A contratação a prazo passou a designar-se “a termo” e obteve o reco-
nhecimento de que o anterior regime frustrava a segurança de emprego (o
preâmbulo refere-se expressamente à precariedade) e pretendeu-se agora
permitir o contrato a termo apenas nos casos em que a necessidade de
trabalho fosse realmente temporária ou residualmente, como regime
excepcional de possibilitação de criação de empresas ou de renovação da
sua actividade e finalmente como instrumento de política de emprego,
mas com enumeração taxativa destes fundamentos.
Em termos formais, o contrato tinha de ser celebrado por escrito, além
do mais, com a menção do motivo justificativo do termo, sendo que a
ausência desta menção implicava que o contrato se considerasse celebra-
do sem termo.
Mantendo-se o limite máximo de duração do contrato, incluídas as
duas renovações possíveis, inovou-se ao prever que a cessação do con-
trato por caducidade, no fim do prazo, gerava o direito do trabalhador a
ser compensado – pela frustração do seu emprego ou da sua expectativa
de vir a ser contratado sem prazo – com dois dias de retribuição por cada
mês completo de duração do contrato, factor que veio a ser aumentado
para três dias (por via da Lei 18/2001). Por outro lado, previu-se que se o
trabalhador tivesse estado contratado a termo por mais de doze meses e
72 | TRABA LHO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …
tivesse visto o seu contrato cessar por caducidade, não podia ser readmi-
tido a termo para o mesmo posto de trabalho antes de três meses (au-
mentado para seis, por via da Lei 18/2001). Determinou-se a contagem da
antiguidade do trabalhador desde o início da contratação, no caso de
conversão em contrato por tempo indeterminado por ultrapassagem do
prazo máximo de duração do contrato a termo.
Verificou-se, pois, por via de acção legislativa, uma restrição substan-
cial da possibilidade de utilização do contrato a termo fora dos casos em
que se justificasse e um combate a práticas fraudulentas, como era o caso
das contratações sucessivas.
A restrição foi-se endurecendo pelas medidas adicionais da Lei 38/96,
de 31 de Agosto (menção concreta no contrato dos factos que justifica-
vam a celebração do prazo; mesmos requisitos de celebração inicial para
as renovações do contrato em que o prazo fosse diferente), e da Lei
18/2001, de 3 de Julho (da menção dos factos concretos justificativos do
termo tem de poder objectivamente estabelecer-se a relação entre o
motivo e o termo; celebração sucessiva ou intervalada de contratos a
termo, entre as mesmas partes, para o exercício das mesmas funções ou
satisfação das mesmas necessidades do empregador, determina a conver-
são automática do contrato em sem termo; nulo e de nenhum efeito o
contrato a termo que viesse a ser celebrado entre as mesmas partes com
trabalhador que já tivesse adquirido a qualidade de trabalhador perma-
nente).
No período 1989-1991, legalizaram-se as empresas de trabalho tempo-
rário7 e regulamentou-se o contrato de trabalho temporário – DL 358/89
de 17 de Outubro – e em 1991, o DL 404/91, de 16 de Outubro, veio
regulamentar o exercício de determinados cargos de confiança (adminis-
tração, direcção e secretariado pessoal destes) em regime de comissão de
serviço, com previsão da possibilidade de contratação inicial de trabalha-
dores externos à empresa, relativamente aos quais a perda de confiança
determinava a cessação imediata do contrato, embora contra o pagamento
de uma indemnização.
Entre outras alterações, o DL 64-A/89 criou uma nova forma de des-
pedimento, a extinção do posto de trabalho, pelos motivos que permitiam
o despedimento colectivo, agora dirigidos a um trabalhador/posto indivi-
dualmente considerado.
Apesar de o preâmbulo do decreto-lei ressalvar as garantias do traba-
lhador nesta nova forma de despedimento, a verdade é que, em matéria de
7 A actividade das empresas de trabalho temporário consiste na cedência temporária a
terceiros, utilizadores, da utilização de trabalhadores que a empresa de trabalho
temporário contrata para esse efeito e que ela mesma remunera.
D IRE ITO AO TRABALHO E SEGU R ANÇ A NO EMP RE GO EM PORT UGAL : 1951-2013 | 73
procedimento, a intervenção estatal, a cargo da Inspecção Geral do Tra-
balho, só ocorreria se fosse solicitada pela estrutura representativa dos
trabalhadores. Por outro lado, ficava aberta a possibilidade de despedir
colectivamente através de despedimentos por extinção de posto de traba-
lho individual, desde que entre os despedimentos dos trabalhadores
abrangidos mediassem mais do que três meses. Finalmente, não só a
capacidade de resistência de um trabalhador individual à invocação de
motivos económicos por parte da empresa é menor que a de um colectivo
de trabalhadores, como nada impedia nem impede que iniciado o proce-
dimento de extinção do posto de trabalho, o empregador não chegue a
acordo com o trabalhador visado quanto à revogação do contrato de
trabalho, o que permite um processo negocial com possibilidade de
pressão – até na forma de assédio moral.
Em 1991, regulou-se nova forma de despedimento – DL 400/91, de 16
de Outubro, com fundamento primeiro na inadaptação do trabalhador,
após concessão de formação, às alterações resultantes de novos processos
de fabrico, novas tecnologias ou equipamentos, inadaptação que se resol-
ve em redução reiterada da produtividade ou qualidade, mas prevendo-se
também a sua utilização no caso de trabalhadores em cargos de comple-
xidade técnica ou direcção, que acordem formalmente com o empregador
o cumprimento de objectivos e não o alcancem. Porém, do despedimento
por inadaptação não pode resultar diminuição do volume de emprego
permanente, num cuidado legislativo de prevenção da utilização desta
nova forma de despedimento como modo de substituição de trabalhadores
efectivos por contratados a termo.
Finalmente, o DL 403/91, de 16 de Outubro, aumentou o período ex-
perimental, no decurso do qual a cessação do contrato é livre e imotivada,
para ambas as partes.
Embora os dados disponíveis não permitam uma interpretação fiável,
e sem prejuízo da existência de verdadeiros prestadores de serviço, for-
mulamos a hipótese de que, face ao agravamento das restrições legais na
contratação a termo, iniciada em 1989 e completada até 2001, se banali-
zou alternativamente o recurso a falsos contratos de prestação de servi-
ços, quer na vertente individual, quer numa vertente de externalização da
empresa8.
8 Os dados disponíveis na estatística do INE (PORDATA, 12-2-2016) revelam
percentagens anuais de trabalhadores por conta própria individuais, nos quais estão
abrangidos, por definição jurídica, os falsos prestadores de serviços, que se situam,
na década de 90, no valor mais baixo, em 17,6, e na década seguinte no valor mais
baixo de 17,5.
74 | TRABA LHO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …
O Código do Trabalho de 2003 e a dependência do direito em relação
à economia
O Código do Trabalho de 2003, aprovado pela Lei 99/2003, de 27 de
Agosto, em coerência com o pensamento da excessiva rigidez das leis
laborais e do prejuízo que causam ao desenvolvimento económico, afirma
pela primeira vez a dependência do direito em relação à economia, esta-
belecendo a si mesmo um prazo de revisão.
No seu artigo 12.º, estabeleceu uma presunção de laboralidade, facili-
tando teoricamente ao trabalhador a prova da existência de um contrato
de trabalho, mas exigindo a prova cumulativa de cinco características ou
indícios do contrato de trabalho, o que levou na prática a uma enorme
dificuldade de combate à prática fraudulenta de celebração com trabalha-
dores de contratos de prestação de serviços, assim se excluindo os mes-
mos de qualquer protecção laboral.
Em matéria de contratação a termo permitiu-se a não observância de
intervalo na celebração de contratos quando o motivo fosse o acréscimo
excepcional da actividade da empresa, motivo que, de resto, é um dos
mais invocados. Por outro lado, foi aumentado o prazo máximo de dura-
ção do contrato, por via de mais uma renovação, o que permitiu que a
duração máxima se situasse em seis anos9.
Em matéria de despedimentos, admitiu-se a oposição à reintegração
no caso de despedimento ilícito por micro-empregadores ou em caso de
trabalhadores com cargos de direcção. Quanto ao despedimento colectivo
e por extinção do posto de trabalho, a simples restruturação da organiza-
ção produtiva, mesmo sem dependência duma necessidade de saneamento
económico-financeiro da empresa, passou a ser admitida como motivo
fundamentador da licitude do despedimento, sendo que os tribunais
entendem não ter legitimidade e competência para sindicar decisões de
gestão empresarial.
A revisão do Código do Trabalho – conhecida por Código do Traba-
lho de 2009 (Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro) –, na sequência da identifi-
cação e discussão dos problemas das relações laborais na perspectiva da
economia e do direito que logrou compilação nos Livros Verde (2006) e
Branco (2007) sobre as relações laborais, reformulou a presunção de
laboralidade, em sentido verdadeiramente favorável aos trabalhadores,
pois que lhes permitiu a prova de alguns – no limite, apenas dois – dos
factos integrantes da presunção de que existe um contrato de trabalho.
Porém, tratando-se duma presunção ilidível, o beneficiário da prestação
9 Artigo 139.º n.º 2.
D IRE ITO AO TRABALHO E SEGU R ANÇ A NO EMP RE GO EM PORT UGAL : 1951-2013 | 75
de trabalho por regra tentará provar o contrário e o manancial adquirido
de jurisprudência e doutrina sobre a distinção entre o contrato de trabalho
e o contrato de prestação de serviço, em cuja base se reafirma o princípio
da igualdade formal das partes e por isso da sua liberdade para celebra-
rem os contratos que quiserem, em grande parte anula a nova visão do
legislador. Consciente, aliás, de que o mercado recorria abusivamente à
celebração de contratos de prestação de serviço como forma de contornar
a lei laboral, o Código de 2009 criou ainda um tipo contra-ordenacional,
muito grave, para combater essa prática, cuja eficácia depende natural-
mente da capacidade de trabalho da Autoridade para as Condições do
Trabalho. De resto, na mesma senda de combate, o Código de 2009
estabeleceu a regra de que na contagem da duração total da contratação a
termo se incluem os contratos de trabalho temporário e os contratos de
prestação de serviços que tiverem sido cumpridos no mesmo posto de
trabalho.
A insuficiência das medidas adoptadas em 2009 demonstra-se pela
aprovação, em 2013, do texto de substituição da proposta legislativa
cidadã contra a precariedade, que virá a constituir a Lei 63/2013, de 27 de
Agosto, que instituiu uma acção especial de reconhecimento da existência
de contrato de trabalho, reforçando as funções da ACT ao nível da fisca-
lização e cometendo-lhe a primeira fase de instrução dum procedimento
voluntário de regularização e, na falta dela, duma nova forma de processo
judicial, urgente, independente da vontade e do sentido de oportunidade
do trabalhador, sob o patrocínio do Ministério Público junto dos Tribu-
nais do Trabalho, e que pretende, por um processo simplificado, até ao
nível da prova, obter do tribunal o julgamento complexo cujo resultado
supostamente será a declaração de que o trabalhador está a trabalhar ao
abrigo dum contrato de trabalho e desde quando. As deficiências estrutu-
rais desta lei comprometem fortemente a sua eficácia no combate a esta
prática fraudulenta.
Em matéria de contratação a termo, o legislador de 2009 retomou a
duração máxima de três anos, suprimindo o regime de renovação adicio-
nal, o qual, porém, veio a ser reposto com o limite de 18 meses pela Lei
3/2012 e, com o limite de 12 meses e em todo o caso com termo final, em
Dezembro de 2016, pela Lei 76/2013. Foi previsto o contrato de trabalho
a termo de muito curta duração.
Por outro lado, regularam-se as modalidades de contrato de trabalho: a
termo, a tempo parcial, intermitente, comissão de serviço, teletrabalho e
trabalho temporário.
Em matéria de cessação, as alterações de 2009 saldaram-se na dimi-
nuição do prazo de impugnação do despedimento escrito (justa causa,
extinção do posto de trabalho e despedimento por inadaptação) de um ano
76 | TRABA LHO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …
para 60 dias e na criação de uma acção judicial urgente, cuja não resolução,
em primeira instância, no prazo de um ano, determina que seja a Segurança
Social a pagar, a partir desse ano, as retribuições intercalares anteriormente
a cargo do empregador que procedera a um despedimento ilícito.
Mais relevantemente, em matéria de despedimento objectivo, foi esta-
belecido que a compensação que é paga ao trabalhador contemporanea-
mente à comunicação da decisão de despedimento, enquanto condição de
licitude deste, tem de ser devolvida imediatamente (leia-se, no próprio dia
ou no primeiro dia seguinte em que seja possível fazê-lo), sob pena de se
presumir que o trabalhador aceita o despedimento e de lhe ser impossível
impugná-lo em juízo. O preceito inviabiliza grandemente, na prática, não
só por ignorância como por necessidade económica, que os trabalhadores
despedidos por razões objectivas impugnem judicialmente os seus despe-
dimentos. Uma consequência possível é o aligeiramento dos motivos
invocados para o despedimento ou mesmo a simples invocação de moti-
vos falsos, na previsão de que o despedimento não será impugnado em
tribunal.
Situação equiparável à contratação por falsa prestação de serviço pode
ter ocorrido no recurso a estágios privados. A Lei 66/2011 veio regular os
contratos de estágio, de financiamento exclusivo das empresas que os
concedem, instituindo mecanismos de garantia de que o recurso a tais
contratos visa efectiva aprendizagem e não constitui uma forma de fraude
à lei laboral.
No período presente, iniciado na sequência dos Memorandos de En-
tendimento de 17-5-2011, sobre as Condicionalidades de Política Econó-
mica e sobre Políticas Económica e Financeira, a nota mais essencial,
quanto a trabalho estável, resulta das alterações realizadas pelas Leis
53/2011, 23/2012 e 69/2013, na medida da flexibilização que gradual-
mente provocaram das compensações devidas aos trabalhadores por
cessação do contrato e despedimento objectivo10, tendo-se eliminado a
compensação mínima de três anos, mesmo em caso de antiguidade infe-
rior, e sendo a compensação correspondente, em regra, a 12 dias de
salário base e diuturnidades por cada ano ou fracção (contada proporcio-
nalmente) de antiguidade, sem relevar a antiguidade superior a 12 anos.
10 Cessação de contrato de trabalho em regime de comissão de serviço (art.º 164.º
n.º 1 als. b) e c), resolução do contrato pelo trabalhador com justa causa em caso
de transferência definitiva do local de trabalho que lhe cause prejuízo sério (art.º
194.º n.º 5), cessação por caducidade do contrato de trabalho a termo certo ou in-
certo (artigos 344.º n.º 3 e 345.º n.º 4), cessação por caducidade do contrato de
trabalho em caso de morte do empregador, extinção da pessoa colectiva ou encer-
ramento de empresa (art.º 346.º n.º 6), despedimento por extinção do posto de
trabalho (art.º 372.º) e despedimento por inadaptação (art.º 379.º).
D IRE ITO AO TRABALHO E SEGU R ANÇ A NO EMP RE GO EM PORT UGAL : 1951-2013 | 77
Aboliu-se assim o método de cálculo que vigorava desde o DL 372-
-A/75 e alinharam-se as compensações por valores inferiores aos devidos
no caso de denúncia unilateral na legislação de 1969.
Pela primeira vez, em 2014, o relatório da OCDE deixou de fazer reco-
mendação no sentido do abaixamento do custo do despedimento e passou a
incidir sobre a segmentação do mercado de trabalho. Ficou, portanto, claro
que a rigidez dos direitos laborais em Portugal, a rigidez máxima que era
constituída pela segurança no emprego e que determinava a aplicação de
toda a demais protecção laboral que pudesse ser considerada rígida, tinha
deixado de ser um problema para o funcionamento liberal do mercado e
consequentemente para o desenvolvimento da economia.
Uma lógica invertida do direito
IV. A conclusão de todo este percurso é a de que sempre foi possível
recorrer a formas de contratação de trabalhadores que produzem vínculos
instáveis e não duradouros, deliberadamente assim criadas como forma
de potenciar o emprego – lei do contrato a prazo de 1976, operando
justamente no período 1976-1989 em que a segurança no emprego foi
mais garantida ao nível da dificuldade de despedimento – e que a restri-
ção destas formas ou o combate à fraude foi contemporaneamente con-
trabalançado por outras vias de liberalização: novas modalidades de
contrato com menor segurança, aumento das possibilidades de despedi-
mento objectivo. Finalmente, com o período iniciado em 2011, pode
afirmar-se a legalidade e a facilidade da destruição de emprego seguro
ou, dito de outro modo, a legalidade dum trabalho que é insusceptível de
estabilizar um modo de vida digno por parte daquele que o tem e daquele
que o pretende alcançar.
Neste último aspecto se evidencia, a nosso ver, a ineficácia presente e
futura de quaisquer políticas activas de emprego para realizarem o direito
ao trabalho. Um direito ao trabalho que pode acabar dum momento para o
outro é, no máximo e em situação de pleno emprego, um direito a uma
rotação rápida entre empregos, um direito a trabalhar, o direito a trabalhar
que é a versão reformulada do direito ao trabalho acolhida pela Carta dos
Direitos Fundamentais da União Europeia no seu artigo 15.º, integrando-
-se a essencialidade das políticas activas de emprego no quadro do direito
de acesso gratuito a serviços de emprego previsto no artigo 29.º da mes-
ma Carta.
No presente, a lógica do direito ao trabalho assenta na aceitação in-
contestada da eficácia do mercado livre – aliás patentemente desmentida
desde a crise de 2008 –, competindo ao Estado o fornecimento de instru-
mentos de adequação da força de trabalho por aquele reputada como
78 | TRABA LHO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …
necessária, instrumentos parcialmente financiados pelos impostos sobre o
trabalho, pagos também por aqueles trabalhadores que passaram à condi-
ção de desempregados.
Trata-se, pois, maioritariamente de potenciar a empregabilidade, actu-
ando sobre o lado do trabalho, co-responsabilizando individualmente o
titular do direito ao trabalho, numa lógica invertida do direito, e não de
potenciar o emprego, actuando sobre o lado dos detentores da capacidade
de criação de emprego, limitando a plenitude dos direitos destes.
Porém, as políticas activas de emprego com maior sucesso imediato e
aliás menor custo11 nem sequer são as que incidem sobre a formação,
valorização e adequação do desempregado às exigências do mercado de
trabalho, sobre o fomento da empregabilidade do titular do direito ao
trabalho, mas os apoios directos à criação de emprego, seja próprio, seja
na versão do empreendedorismo (o que não deixa de ser um encaminha-
mento do titular do direito à responsabilidade pela própria manutenção do
direito no contexto duma economia de capital fortemente concentrado, ou
seja, com grande possibilidade de insucesso), seja na subsidiação da
contratação pelas empresas.
A lógica da empregabilidade não tem qualquer potencial de satisfação
de uma vida digna. Ela representa, salvo melhor opinião, a imposição de
um padrão de comportamento que diminui a liberdade individual, ao
forçar todos à competição segundo os ritmos, mais ou menos acelerados,
determinados pelos operadores económicos. A dimensão humana do
trabalhador é postergada.
A conclusão final, entre nós, sobretudo centrada na análise da legisla-
ção laboral, é a de que o direito ao trabalho constitucionalmente garantido
e conceptualizado como um direito humano ao trabalho digno, nunca foi
assistido de condições plenas de efectivação, condições estas que hoje, de
modo essencial, deixaram de existir.
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OS DOIS ANDAMENTOS DO MARCELISMO*
Fernando Rosas
Quando é chamado (e se faz chamar) à Presidência do Conselho para
substituir Salazar, Marcelo Caetano enfrenta uma situação política e
social de alto risco, marcada pela centralidade incontornável da questão
colonial e da guerra que se prolongava há oito anos.
Os dois andamentos do marcelismo são a história da falência do re-
formismo chegado ao poder, a crónica da impossibilidade política de
resolver a questão da guerra e, com isso, de levar por diante um processo
de transição a partir do próprio regime. No primeiro andamento, tentar
liberalizar sem abandono do esforço militar nas colónias; num segundo
andamento, manter o esforço militar em África, sacrificando a liberaliza-
ção e, com ela, o próprio regime.
Marcelo Caetano nada tinha de democrata ou até, no rigor do termo,
de liberal – as suas antigas convicções antipartidárias e autoritárias conti-
nuavam basicamente incólumes. Defendia, sim, um maior respeito por
parte das autoridades administrativas pelas leis, pelos direitos de cada
um, e advogava um programa de descompressão política, de “liberdade
possível”, que devolvesse alguma vida real ao sistema corporativo e um
outro dinamismo à participação, que se queria ordeira e ponderada, dos
cidadãos na coisa pública.
Num primeiro momento de “primavera política”, como se lhe chamou,
sensivelmente até 1970, o marcelismo tentou passar da teoria à prática,
procurou executar o seu plano reformador: uma nova política económica
desenvolvimentista, assente numa nova malha de industrialização, pró-
-europeia, aberta ao investimento estrangeiro, que procurou liquidar o
condicionalismo industrial, fez o acordo com a CEE em 1972, lançou, a
* Este artigo foi publicado originalmente em António Simões do Paço (coord.), Os
Anos de Salazar, vol. 28, 1972. Conversa acabada, pp. 203-207. Ed. Planeta DeA-
gostini, Lisboa, 2008.
82 | TRABA LHO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …
pensar no petróleo angolano, o projecto de Sines, estimulou as cooperati-
vas agrícolas e a grande empresa capitalista rural e gizou o projecto do
Alqueva. Corolário dela foram as medidas de melhoria da assistência
social (extensão da previdência aos rurais e criação da ADSE para os
funcionários públicos) e a ousada reforma de democratização do acesso
ao ensino e dos seus conteúdos lançada por Veiga Simão já em 1972.
No plano colonial, vai onde nunca se ousara ir dentro do regime: em
Setembro de 1970, perante as comissões distritais da Acção Nacional
Popular, Caetano procede a uma verdadeira desmontagem do paradigma
colonial salazarista, do ideário até aí legitimador da defesa das colónias e
da guerra. Nem a “missão histórica”, nem a “defesa do Ocidente”, nem a
“independência nacional”, nem os interesses económicos justificavam, só
por si, a continuação do esforço militar no ultramar. O que impunha que
se continuasse a lutar era a defesa dos interesses das populações brancas
há muito aí instaladas: o Estado não as podia abandonar à sua sorte
através da descolonização. A esse título Caetano entendia que era preciso
prosseguir a guerra para ganhar tempo e espaço, de forma a ir-se prepa-
rando uma evolução gradual para um futuro que se veria onde poderia
chegar. É este princípio de “autonomia progressiva” que se consagra na
revisão constitucional de 1971, seguida, em 1972, da nova Lei Orgânica
do Ultramar e dos estatutos territoriais. Ainda que, na prática, com im-
portantes limitações de carácter centralizador, Angola e Moçambique – a
quem era concedido o “título honorífico” de estados – recebiam gover-
nos, assembleias legislativas e tribunais próprios, sendo que a lógica
básica de funcionamento de tais instituições tenderia, naturalmente, a
privilegiar e perpetuar o sistema de domínio da população branca, quiçá
de uma futura autonomia ou independência branca.
O essencial, todavia, é que a política de “autonomia progressiva” exi-
gia a continuação da guerra. E esse era o nó górdio da questão: Caetano,
não só sob pressão dos integristas, mas por profunda convicção pessoal,
entendia não ter outra saída que não fosse a de prosseguir o empenha-
mento militar. O que, fatalmente, iria comprometer tudo o mais do seu
programa de reformas.
E seria o marcelismo a tirar as consequências práticas dessa realidade,
quando, face à manutenção e agravamento da agitação política e social,
procede, progressiva mas seguramente, a uma inversão da sua linha de
actuação a partir de 1970. Constatada a inviabilidade de liberalizar man-
tendo a guerra, e partindo da impossibilidade de lhe pôr termo, o regime
vai manter a guerra, acabando com a liberalização.
Em Outubro de 1970, publica-se nova legislação sindical permitindo a
destituição pelo ministro das Corporações das direcções sindicais “sub-
versivas”. Em resposta à crescente radicalização do movimento estudantil
OS DOIS ANDAM ENTOS DO MA RC ELISMO | 83
– fulcro de um intenso activismo contra a guerra colonial, contra a repres-
são policial e, particularmente em Lisboa, contra o conteúdo e o signifi-
cado da “reforma do ensino” anunciada pelo marcelismo –, serão encer-
radas pela polícia política, uma a uma, praticamente todas as associações
de estudantes do País, sucedem-se as invasões policiais das instalações
universitárias, dezenas de estudantes são presos ou incorporados coerci-
vamente no Exército. A polícia política reganha o seu papel após um
período inicial de alguma contenção: a curva das prisões volta a aumentar
a partir de 1970-71, não só tendo como alvo o PCP, mas também os
grupos maoístas e marxistas-leninistas, católicos progressistas e persona-
lidades socialistas. Todos os projectos apresentados pela «ala liberal» na
Assembleia Nacional – revisão constitucional, amnistia, liberdade de
associação, lei de imprensa – são derrotados pela maioria afecta ao Go-
verno e aos ultradireitistas. E finalmente, a eleição presidencial: ao de-
sautorizar todas as tentativas de avançar com um candidato alternativo a
Américo Tomás (Spínola chega a ser abordado nesse sentido), Caetano dá
um inequívoco e definitivo sinal de que, para manter a guerra, estava
disposto a sacrificar a liberalização.
ANOS DE BRASA: UMA VISÃO DO MOVIMENTO
OPERÁRIO PORTUGUÊS NA DÉCADA DE 70
Miguel Ángel Pérez Suárez
Em 1933, dentro do processo de institucionalização do Estado Novo,
foi promulgado o Estatuto do Trabalho Nacional, que impunha a criação
de “sindicatos nacionais” organizados por distritos e ofícios, sob o con-
trolo do Estado. A corporativização foi contestada pelas organizações
sindicais de classe com uma greve insurrecional em janeiro de 1934. A
derrota desse movimento pôs fim ao pujante movimento operário desen-
volvido durante a I República (1910-1926), hegemonizado pela ideologia
anarquista1. O próprio Partido Socialista, fundado em 1875, e que tivera
um papel de relevo no nascimento do movimento sindical, dissolveu-se
oficialmente em 1933.
Os sindicatos nacionais serão um objetivo e um terreno fundamentais
para a ação clandestina do PCP, que desde meados da década de 40 se
tornara na principal (se não única) força realmente organizada contra a
ditadura. O PCP aplicava uma linha de entrismo nas organizações de
massas do regime, inspirada nas teses do VII Congresso da Internacional
Comunista, de 1935. Os militantes e simpatizantes comunistas participa-
ram nos processos eleitorais sindicais conseguindo alguns sucessos ao
longo do tempo, apesar da repressão e da flagrante ilegalidade praticada
pelo poder. Se bem que este seja um capítulo que ainda carece de investi-
gações rigorosas, podemos afirmar que os esforços de uma oposição
sindical alcançaram os seus frutos nos anos finais da década de 60.
1 Existe uma bibliografia variada sobre a história do movimento sindical. Referimos
apenas os trabalhos pioneiros de César Oliveira, como O Operariado e a República
Democrática, Lisboa, Seara Nova, 1975, e o mais recente de João Freire, Anarquis-
tas e Operários. Ideologia, Ofício e Práticas sociais: o Anarquismo e o Operariado
em Portugal, 1900-1940, Porto, Afrontamento, 1992.
86 | TRABA LHO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …
Efetivamente, é na fase final do regime que a oposição democrática
(comunistas, católicos e uma nova esquerda, da qual uma parte acabará
integrando o PS) conquista vitórias eleitorais num conjunto significativo
de sindicatos, no calor da contestação social de 1968-69 e de uma fugaz e
relativa abertura legal2. Em outubro de 1970 quatro desses sindicatos
organizaram uma reunião intersindical tolerada pela ditadura, e que teve
continuidade nos meses e anos seguintes com a participação de um núme-
ro variável de sindicatos. Porém, desde 1971 a repressão endureceu, com
a prisão de vários dirigentes sindicais (como Daniel Cabrita, do Sindicato
dos Bancários de Lisboa) e suspensões de direções sindicais, como a dos
Metalúrgicos de Lisboa.
Os anos do consulado de Caetano3 aparecem, aos olhos do historiador,
como a acalmia que precede a tormenta, pois aquele possui o privilégio
da sabedoria posterior ao acontecimento. Desde 1960 o país assiste a um
crescimento económico notável, à multiplicação do investimento externo
e ao surgimento ex novo de setores industriais completos. Ao mesmo
tempo, e de forma simultânea, vive-se um enorme êxodo de nacionais
para os países europeus mais desenvolvidos, as áreas metropolitanas de
Lisboa e Porto viam crescer a sua população e nascer novos aglomerados
e bairros, onde residiam novas camadas de trabalhadores industriais e de
serviços. Entre 1950 e 1970 os ativos na indústria e serviços aumentaram
em mais de meio milhão, enquanto o País sofreu aquela emigração maci-
ça. São transformações que apenas podemos delinear neste texto, mas que
mudam o aspeto de Portugal, aproximando-o dos modelos sociais do
Ocidente.
Por outro lado, as guerras de libertação nacional nas colónias africa-
nas, que consumiam em três frentes o Exército português e os recursos
financeiros do Estado, tiveram um efeito político formidável na sociedade
portuguesa, em particular nos seus setores mais jovens. A convicção da
injustiça do conflito e da impossibilidade de uma vitória militar radicali-
zou uma geração inteira e esteve de facto no centro dos acontecimentos
que puseram fim à ditadura estado-novista. O último ano da ditadura viu
2 Sobre a conflituosidade laboral no final da ditadura ver Fátima Patriarca “Estado
Social: a caixa de Pandora”, in Rosas, Fernando e Oliveira, Pedro Aires, A transi-
ção falhada – O Marcelismo e o fim do Estado Novo (1968-1974) Lisboa, Notícias,
2004, pp. 171-212.
3 Em agosto de 1968 Oliveira Salazar sofreu um acidente doméstico que lhe provo-
cou a invalidez, vindo a falecer em 1970. Foi substituído como primeiro-ministro
por Marcelo Caetano, que despertou bastantes expectativas na opinião pública.
Sobre o período marcelista, ver Fernando Rosas e Pedro Aires de Oliveira, A tran-
sição falhada – O Marcelismo e o fim do Estado Novo (1968-1974) Lisboa, Notí-
cias, 2004.
ANOS DE BRASA : UMA V ISÃO DO MOVIMENT O OPERÁRIO PORTUGU ÊS NA DÉ CADA… | 87
uma extensão da conflituosidade social, com greves em numerosas em-
presas (como a empresa de transportes aéreos, TAP, em julho de 1973) e
uma movimentação generalizada da juventude estudantil.
São abundantemente conhecidas as motivações de ordem corporativa
que estão associadas ao nascimento do que irá ser o Movimento das
Forças Armadas (MFA). O que pode resultar mais surpreendente é a
rápida transformação desses objetivos profissionais numa crítica de
conjunto do regime e da sua política africana, assim como a unidade que
consegue dentro dos quadros do Exército. Quando no 25 de abril de 1974
os tanques saíram para a rua, a ditadura caiu como um fruto podre, abrin-
do espaço a uma vasta e multifacetada explosão social surgida dessa nova
classe trabalhadora que referimos acima.
Nas semanas seguintes ao golpe militar desenvolveu-se uma onda de
greves que atingiu todo o Portugal industrial: das grandes fábricas da
margem sul do Tejo e Lisboa, numa situação de greve generalizada na
região da capital no final de maio, e que até ao final de junho chegou às
grandes unidades fabris do Porto e a todos os núcleos industriais de
relevo. Os trabalhadores reivindicavam geralmente melhorias salariais,
quase sempre num sentido igualitário, a diminuição do tempo de trabalho,
com as 40 horas e férias pagas, e, de forma muito significativa, o sanea-
mento de empresários e quadros das empresas relacionados com a repres-
são da ditadura4. Os trabalhadores identificavam as práticas patronais
repressivas com o fascismo deposto no 25 de abril, enquadrando a sua
luta com os princípios definidos pelo MFA (como assinala R. Durán
Muñoz no seu trabalho pioneiro, referido na bibliografia). “Fascista é
objetivamente qualquer capitalista que vive à nossa custa e todos os seus
lacaios imundos que recebem as migalhas maiores”, lemos num boletim
dos trabalhadores de uma empresa em luta.5
As empresas foram o palco dessa luta, e as Comissões de Trabalhado-
res (CT) o instrumento que encontrou um movimento operário radical e
combativo. Na generalidade dos casos, os trabalhadores em luta elegiam,
em assembleias muito dinâmicas, comissões representativas responsáveis
perante o coletivo, revogáveis e autónomas, que adotaram a denominação
4 Sobre o movimento grevista de maio e junho de 1974 ver: Maria de Lurdes Lima
Santos, Marinús Pires de Lima e Vítor Matias Ferreira, O 25 de Abril e as lutas soci-
ais nas empresas. Porto, Afrontamento, 1977; e a minha tese de mestrado: Miguel
Ángel Pérez Suárez, Contra a exploração capitalista: Comissões de Trabalhadores e
luta operária na Revolução Portuguesa (1974-1975), dissertação de mestrado, FCSH-
-UNL, Lisboa, 2008. Disponível na internet em: http://www.cd25a.uc.pt/media/
pdf/Textos%20jornalisticos/contraaexploracaocapitalista.pdf (18-11-2014).
5 “Jornal da Greve (suspensa) da Efacec/Inel Sul”. Citado em Revolução, n.º 16, 12-
-10-1974.
88 | TRABA LHO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …
de CT. A formação de comissões representativas não era, de facto, uma
novidade, mas fazia parte da tradição histórica do movimento operário, e
contava com antecedentes de importância no País: as chamadas “comis-
sões de unidade” nas empresas e as “comissões de praça” ou “de jorna”
na região do latifúndio eram formas através das quais os trabalhadores
defendiam as suas reivindicações.
Com a queda da ditadura e a proclamação dos objetivos democráticos
do novo regime a Intersindical manifestou-se como a representante de um
movimento sindical democrático e de classe, proclamando-se a central
sindical única dos trabalhadores portugueses. A Intersindical organizou as
grandiosas manifestações do 1.º de maio de 1974, que foram um autênti-
co plebiscito popular ao MFA, e reuniu nas semanas seguintes dezenas de
sindicatos que expulsaram as antigas direções corporativistas. No seio das
estruturas que irão surgindo (plenários de sindicatos, uniões regionais,
secretariado) a posição dirigente do PCP torna-se de imediato evidente.
No quadro da onda grevista de maio e junho, a Intersindical assumiu
plenamente o discurso de moderação difundido pelo PCP6. A 1 de junho
de 1974 organiza uma manifestação em que participam alguns milhares
contra as greves selvagens e sem sentido. Esta linha de atuação abriu um
espaço político para as organizações da extrema esquerda e outras cor-
rentes críticas. O caso dos estaleiros navais de Lisboa, a Lisnave, é exem-
plar nesse sentido. Nesta grande empresa, os trabalhadores iniciaram uma
luta em maio e, depois de uma paralisação com ocupação, conseguiram a
satisfação de quase todas as suas reivindicações, como as salariais. Ficou
por resolver o problema do saneamento de engenheiros e quadros envol-
vidos no despedimento de dezenas de grevistas em 1969. Foi esse o
motivo para que a CT organizasse uma manifestação em setembro de
1974, que unia essa exigência de saneamento à rejeição da muito restriti-
va Lei da Greve que fora promulgada em agosto. A manifestação foi
proibida pelo Governo e condenada pela direção do PCP, mas os traba-
lhadores do estaleiro revalidaram maciçamente a sua decisão numa
assembleia grandiosa que aprovou um manifesto de dimensão histórica7.
Sem violência, os operários da Lisnave romperam o cordão militar for-
mado para impedir a sua manifestação e marcharam de forma organizada
e pacífica pelas ruas de Lisboa.
A mobilização dos operários da Lisnave representou uma derrota polí-
tica sem paliativos para o PCP, que se viu desautorizado numa das maio-
res unidades fabris do País. A CT da empresa estava hegemonizada por
6 Sobre a linha política do PCP ver Raquel Varela, A história do PCP na Revolução
dos Cravos. Lisboa, Bertrand, 2011.
7 Sobre o processo na Lisnave ver os artigos de Fátima Patriarca citados na bibliografia.
ANOS DE BRASA : UMA V ISÃO DO MOVIMENT O OPERÁRIO PORTUGU ÊS NA DÉ CADA… | 89
várias organizações da extrema esquerda, como o PRP (Partido Revolu-
cionário do Proletariado) e vários grupos marxistas-leninistas que, em
dezembro de 1974, criaram a UDP (União Democrática Popular). Este
último partido também influenciava outros coletivos de trabalhadores
significativos. Ao lado destes grupos destacava-se o MRPP (Movimento
Reorganizativo do Partido do Proletariado), quiçá o movimento maoísta
mais numeroso e hiperativo, que contava com uma influência operária
relativamente importante8 e considerava o PCP como o inimigo principal
da revolução.
Da CT de Lisnave e de outras CT surgiu, no final de 1974, uma “Co-
missão Interempresas” que agrupava várias dezenas de comissões de
Lisboa e que organizou, em fevereiro de 1975, uma grande manifestação
contra o desemprego e a presença de tropas da NATO em território
português que contou com a participação de dezenas de milhares de
trabalhadores, apesar das fortes críticas formuladas pelo PCP. Dias depois
realizou-se no Porto uma iniciativa semelhante. Porém, estes projetos de
coordenação e centralização não tiveram continuidade nos meses seguin-
tes9.
Este momento charneira do processo revolucionário – os meses finais
de 1974 e o início de 1975 – está marcado por dois temas centrais do
movimento operário: o debate unidade/unicidade sindical e a multiplica-
ção de empresas em situação de autogestão.
A Lei Sindical de 1975, chamada da “unicidade sindical”, estabelecia
a existência de estruturas sindicais únicas e nomeadamente uma única
central sindical: a Intersindical. O projeto foi apoiado pelo PCP e outros
grupos da esquerda e vivamente rejeitado pelos socialistas. O PS organi-
zou em janeiro de 1975 um importante comício com a participação de
Mário Soares e Salgado Zenha, e nesses mesmos dias largos milhares de
pessoas manifestaram-se em Lisboa pela unicidade e contra o divisionis-
mo sindical. O texto legal foi finalmente aprovado em abril de 1975.
A situação do movimento sindical foi sofrendo importantes modifica-
ções a partir de maio de 1975, quando as chamadas “listas unitárias” de
filiação comunista foram sucessivamente derrotadas em importantes
sindicatos de serviços por “listas B” promovidas por socialistas em alian-
ças muito heterogéneas (com os maoístas do MRPP, com os centristas do
PPD-PSD). No final do verão desse ano o PCP não controlava os sindi-
catos de seguros, escritórios e comércio de Lisboa (qualquer dos três com
largos milhares de sócios), nem nenhum dos três da banca a nível nacio-
8 Demonstrada na organização de um “congresso nacional das CT” em outubro de
1975 em que participaram mais de uma centena de comissões.
9 Sobre a Interempresas ver a minha tese de mestrado citada em 4.
90 | TRABA LHO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …
nal (o de Lisboa era um dos fundadores da Intersindical, em 1970). Estes
resultados podem ser vistos como uma mobilização de camadas sociais
médias e urbanas que manifestavam o seu receio pela influência comu-
nista na vida social e política. A sangria sindical do PCP só parou em
outubro com uma cómoda vitória “unitária” no Sindicato dos Metalúrgi-
cos de Lisboa. Em agosto de 1975 a Intersindical realizou o seu primeiro
congresso, em que foram aprovadas moções alinhadas com as análises do
PCP. O primeiro-ministro general Vasco Gonçalves pronunciou o discur-
so de encerramento (o ministro do Trabalho, capitão Costa Martins,
dirigira-se aos congressistas na sessão de abertura). O congresso aprovou
uma linha de rumo colada aos setores mais à esquerda do MFA e apoiou
as medidas de nacionalização e a reforma agrária decididas pelo Governo
de Gonçalves. O evento foi um ponto alto da estratégia do PCP para
ocupar espaços de influência num suposto caminho para a tomada do
poder e foi muito criticado pela falta de representatividade e democratici-
dade.
Desde o início de 1975 as ocupações de empresas generalizaram-se
numa transgressão geral do direito de propriedade privada que caracteriza
o processo revolucionário. No meio urbano casas e locais foram ocupados
para dar satisfação às necessidades das populações (coletivas ou de
habitação) e nos campos do Sul os trabalhadores agrícolas foram prota-
gonistas de uma vasta revolução agrária que voltaremos a referir mais
adiante.
No que se refere às empresas, a ameaça da crise e do desemprego e as
acusações de sabotagem económica e má gestão dos patrões conduziram
a um importante movimento de ocupações que parece ter o seu momento
mais forte no primeiro trimestre de 1975. Calculamos que no total terá
havido, somando casos de intervenção do Estado e autogestão, não menos
de 1200 casos.
Uma norma legal – o Decreto 660//74, de 25 de novembro – permitia
a intervenção do Estado nas empresas privadas que “não funcionem de
acordo com o interesse da economia nacional” e estava orientado para
determinados casos de gestão ruinosa de importantes companhias, mas
nos meses seguintes serviu para dar cobertura oficial a muitas dezenas de
ocupações e empresas em autogestão. As empresas que eram intervencio-
nadas viam reconhecida a sua administração (nalguns casos a própria CT
ou alguns membros representantes) e podiam agir legalmente, gerindo o
património e recebendo, por vezes, apoio financeiro do Estado. Entre
estas empresas, que pertenciam a todos os setores de atividade de Norte a
Sul, podemos destacar importantes companhias industriais, grandes
empresas de construção civil e imobiliárias, ou ainda a maior cadeia de
supermercados do País.
ANOS DE BRASA : UMA V ISÃO DO MOVIMENT O OPERÁRIO PORTUGU ÊS NA DÉ CADA… | 91
Segundo dados do Ministério do Trabalho, entre 25-4-1974 e 31-12-
-1975 foram intervencionadas 261 empresas, com 154 000 trabalhadores,
e nacionalizadas 227 com 157 000 trabalhadores10
. Paralelamente verifi-
cou-se um processo diferente de nacionalizações de setores estratégicos
da economia nacional, muito ligado ao clima político e sob pressão dos
trabalhadores. Depois do insucesso do golpe de 11-3-1975 os trabalhado-
res da banca assumiram o controlo de toda a atividade do sector, por
indicação da organização sindical. No dia 14 era decretada a nacionaliza-
ção do setor, a que se seguiram dias mais tarde os seguros, e nas semanas
e meses seguintes os setores fundamentais da indústria – siderurgia,
petróleos, celulose, química – e todos os transportes.
Na maioria destas empresas nacionalizadas assistiu-se a uma dinâmica
de participação dos trabalhadores, com processos de controlo da produ-
ção que tentavam democratizar a tomada de decisões dentro da empresa.
Foram fenómenos não exclusivos das empresas na altura públicas, mas
que existiram na generalidade da vida económica e social como um
reflexo mais da crise social revolucionária que se abrira desde o 25 de
abril. Em setembro de 1975 o I Congresso Têxtil, promovido pelo movi-
mento sindical, discutiu a reestruturação e o controlo operário da produ-
ção nesse setor fundamental da indústria portuguesa, que continuava nas
mãos de privados.
Para além das empresas nacionalizadas e intervencionadas existem
inúmeros casos de pequenos locais de trabalho em que os trabalhadores
entram em autogestão. Referimo-nos a situações em que, por determina-
das circunstâncias (encerramento, fuga do patrão) um coletivo de traba-
lhadores opta por ocupar a respetiva empresa com a intenção de pô-la a
funcionar para garantir a continuidade da empresa e dos postos de traba-
lho. O exemplo pioneiro é o da Sogantal (Montijo), pela sua repercussão
mediática, mas a grande maioria das empresas intervencionadas citadas
no início deste ponto entrariam nesta categoria. Na Sogantal as trabalha-
doras entram em greve em maio de 1974 por melhores salários e condi-
ções de trabalho. A entidade patronal não aceita o valor do salário míni-
mo de 3300$00 e encerra a empresa. As trabalhadoras tomam conta da
fábrica e continuam a produzir e vender durante cerca de dois anos, com
a tentativa de retoma da empresa pelo proprietário em agosto de 1974,
que é impedida pelas trabalhadoras e um forte movimento de solidarieda-
de que mantém viva a esperança destas operárias de trabalhar sem pa-
trões.
As entidades estatais avaliam o número de empresas nesta situação en-
tre 800 e 900. Vários ministérios e outras entidades credenciam as CT
10 Textos do MT, n.º 1, Intervenções do estado em empresas, MT, Lisboa, 1976.
92 | TRABA LHO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …
dessas empresas para o funcionamento corrente e uma boa parte delas
acabou por se transformar em cooperativas de produção nos anos se-
guintes a 1975. Terão contado com cerca de duas a três dezenas de milha-
res de trabalhadores.
No decurso de 1975 a situação política portuguesa extremou-se à volta
de dois projetos políticos que se definiram durante o próprio processo
político, ambos com uma implantação social e geográfica bastante clara.
Existia um campo revolucionário amplo, possivelmente maioritário na
metade sul do País, que de forma confusa defendia um programa de tipo
conselhista ou basista. Agrupava genericamente o PCP e os partidos à
esquerda deste, a classe operária industrial e o proletariado rural alenteja-
no. E havia um campo que chamaremos de democrático (não era contrar-
revolucionário) que dominava claramente o Centro e Norte, agrupando as
camadas médias da sociedade, as tradicionais e as novas, urbanas e rurais,
o que poderíamos chamar o Portugal profundo. Defendia um modelo
democrático-liberal ocidental. Os seus suportes políticos eram o PS e os
partidos à sua direita, o PPD e o CDS, ainda que a extrema direita terro-
rista do MDLP e do ELP e os maoístas do MRPP se situassem neste
campo. E contava com a bênção da hierarquia da Igreja Católica, um
poder com enorme influência e capacidade de mobilização no Centro e
Norte e no âmbito rural.
Os resultados das eleições de abril de 1975 deram a medida do apoio
social de cada projeto. Os comunistas obtiveram uns magros 12,5% dos
votos, muito concentrados no Sul, a que se juntavam os 4% do MDP. O
PS teve uma enorme vitória. Com 38% dos votos era o único partido
verdadeiramente nacional e ganhou em quase todos os núcleos urbanos
do País. O PPD, com 26%, era o primeiro partido em quase todo o Norte
(com exceção do distrito do Porto), mas no Sul era marginal. A participa-
ção foi elevadíssima: mais de 92% dos recenseados.
Com base no veredicto popular e com conflitos laborais como os do
jornal República e da Rádio Renascença, o PS e os seus aliados desen-
volveram uma campanha política tendo o primeiro-ministro Vasco Gon-
çalves como alvo. Em junho os ministros socialistas e os do PPD demiti-
ram-se e o primeiro-ministro formou um novo governo, o quinto
provisório, sem figuras partidárias e com um apoio frio do PCP. Em
meados de agosto as manifestações de rua, a favor e contra Vasco, quase
diárias e multitudinárias, deram o tom da crise do Verão Quente, junto
aos assaltos a sedes comunistas e de outras organizações no Centro e no
Norte.
Foi no meio desta crise política que se configurou o modelo de orga-
nização da classe trabalhadora que se irá desenvolver nos anos seguintes,
seguindo a estratégia política do PCP. Em junho apareceu publicamente
ANOS DE BRASA : UMA V ISÃO DO MOVIMENT O OPERÁRIO PORTUGU ÊS NA DÉ CADA… | 93
uma estrutura de coordenação de CT da zona de Lisboa, o Secretariado
Provisório das CT da Cintura Industrial de Lisboa (que usará a sigla CIL),
a assunção plena por parte dos PCP do papel destas estruturas. No outo-
no, no clima prévio ao golpe de novembro, verificaram-se dois conflitos
laborais de dimensão nacional: as greves pelos contratos coletivos da
metalurgia e da construção civil, em outubro e novembro, respetivamente.
Ambos os conflitos, apesar do seu caráter setorial, adquirem uma di-
mensão política inegável. Os metalúrgicos pressionavam para obter um
contrato satisfatório e manifestaram-se maciçamente a 7 de outubro. Os
trabalhadores da construção civil pararam a 12 de novembro e, depois de
manifestações nas capitais de distrito, concentraram-se frente ao parla-
mento na tarde desse dia, impedindo a entrada e saída de pessoas até a
manhã de 14, quando o Governo atendeu às suas reivindicações. Ambas
as mobilizações tiveram uma enorme dimensão e assumiram formas de
luta radicais, que eram comuns no movimento operário à época.
O pronunciamento de 25 de novembro de 1975 restabeleceu a disci-
plina e a hierarquia militares, corroídas nesses últimos meses do processo
revolucionário pela proliferação da auto-organização dos soldados em
comissões e comités. Em pouco mais de 24 horas as tropas que apoiavam
o Governo provisório e os oficiais moderados do “Grupo dos Nove”
neutralizaram uma esquerda militar mais potente na capital, mas carente
de um mando unificado. Não se tratará de um golpe sangrento (de facto, a
ala mais radical do “novembrismo” rejeitará essa moderação). Lisboa foi
colocada em estado de sitio e, sintomaticamente, uma das medidas ime-
diatas do Governo foi o congelamento da contratação coletiva e a suspen-
são de alguns contratos já acordados (como o da construção civil, assina-
do a 14 de novembro, menos de duas semanas antes). A inflação será a
arma mais usual do processo de contrarrevolução que se abria então.
Os acontecimentos de 25 de novembro deixaram uma sensação de or-
fandade junto das camadas militantes, do PCP e da esquerda revolucionária,
e em geral do movimento operário e popular. Todos, o movimento social no
seu conjunto, perderam um braço armado que nos 19 meses do PREC fora
uma cartada determinante. Para o PCP, efectivamente, era o fim do avanço
revolucionário, mas não a certidão de óbito da revolução: a dinâmica entre
povo e forças armadas, teorizada pela cúpula do partido11, partia com o
desaparecimento da ala progressista do MFA derrotada em novembro.
No campo social, 1976 foi, em grande medida, um ano de aguardar
para ver, no qual lentamente se afastava o temor de uma involução pro-
funda e o movimento social, especificamente o sindical, pareceu “aguar-
11 Para uma formulação acabada ver Álvaro Cunhal, A Revolução Portuguesa: o
passado e o futuro Lisboa: Avante!, 1976, pp. 126-181.
94 | TRABA LHO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …
dar para ver” num quadro de conflituosidade muito limitada. Em janeiro
desse ano a Intersindical e a CIL organizaram uma grande concentração
em Lisboa, realizada um dia depois de uma outra convocada por um
Secretariado dos Órgãos da Vontade Popular de influência mais esquer-
dista e que comparativamente resultou numa clara vitória do campo
favorável ao PCP sobre os setores mais radicais. A jornada teve outra
importante dimensão, já que a tendência comunista do movimento operá-
rio conseguia fusionar, sem grandes dificuldades, o movimento sindical
herdado da ditadura com as comissões eleitas em fábricas, as CT. Estas,
que no início do PREC tinham sido criticadas pelos comunistas, assu-
miam agora um papel subsidiário do movimento sindical como canal de
representação paralelo.
Uma parte importante da atividade sindical passou-se neste período na
organização da central sindical e a realização de um congresso que desperta
as expectativas de amplos setores de sindicalistas. As condições de realiza-
ção do congresso sindical de 1975 e o seu resultado tinham sido objeto, já
na altura da sua realização, de fortes controvérsias, e a própria direção da
Intersindical manifestava em 1976 a necessidade de que fosse realizado um
congresso democrático e com a participação de todos os sindicatos.
Nesse quadro, em abril de 1976, uma reunião de direções sindicais,
algumas das quais tinham dado baixa da Intersindical, publicava a “Carta
Aberta”: um documento que manifestava abertura para o diálogo para
manter a unidade sindical e defendia um modelo sindical democrático
que permitisse a organização pública de tendências políticas nos sindica-
tos. A questão do direito de tendência e a paridade nos órgãos organiza-
dores do congresso foram os assuntos centrais de um grande debate
político na sociedade portuguesa12.
O movimento da Carta Aberta (CA) reunia sindicatos que tinham sido
conquistados por listas conotadas com o PS nos meses anteriores, basi-
camente os dos serviços como bancários, seguros, escritórios e comércio
(neste último, a direção “democrática” entrou em crise em 1976 e foi
substituída por uma partidária da Inter). Muitas destas vitórias basearam-
-se em alianças entre o PS e o MRPP. O único sindicato da indústria com
relevância presente era o dos metalúrgicos do distrito de Aveiro. Na CA
participavam outras tendências mais à esquerda (sindicalistas da UDP e
do MES) que, com a aproximação do “Congresso de todos os Sindicatos”
(realizado finalmente em janeiro de 1977), afastaram-se da CA na direção
da Intersindical.
12 Ficou popular uma canção do músico comunista José Barata Moura, O direito de
tendência, na qual ironizava sobre tal direito e a tendência para a direita dos seus
defensores.
ANOS DE BRASA : UMA V ISÃO DO MOVIMENT O OPERÁRIO PORTUGU ÊS NA DÉ CADA… | 95
Ao longo de 1976 todo o movimento sindical se submeteu a um deba-
te sobre importantes aspetos da organização e da política sindicais em
todos os âmbitos. A segurança social, a assistência sanitária e a criação
do SNS, a educação, o papel dos trabalhadores nas empresas, a estrutura
sindical, o papel das CT foram discutidos em dezenas de encontros e
seminários preparatórios do congresso em vista. No que se refere à orga-
nização sindical dos trabalhadores destaca-se a opção pela dita “verticali-
zação”13 do movimento sindical: a organização dos trabalhadores por
setor de atividade e não por profissão, e a integração subordinada das CT
dentro do movimento sindical.
A tentativa de acordo entre a Intersindical e a CA para a organização
do congresso terminou numa rutura pela negativa da Intersindical em
aceitar a paridade na comissão organizadora. Na altura, em cerca de 360
sindicatos existentes no País aproximadamente 200 apoiavam a Inter
contra umas dezenas da CA. Na reunião mais concorrida da CA participa-
ram cerca de 60 sindicatos, mas normalmente não eram mais que uns
trinta, e com alguns sindicatos em posições oscilantes.
Finalmente, em janeiro de 1977 celebrou-se em Lisboa o “Congresso
de todos os Sindicatos”, que oficialmente representava 1,7 milhões de
trabalhadores. A unidade sindical mantinha-se, mas só momentaneamen-
te. O PCP aparecia como força muito maioritária nos novos órgãos diri-
gentes (Secretariado e Conselho Nacional), onde estavam presentes
alguns representantes de outras tendências sindicais (PS, MES, UDP,
grupos cristãos). A central passou a denominar-se Confederação Geral
dos Trabalhadores Portugueses – Intersindical Nacional (CGTP-IN),
tentando criar alguma ligação histórica com a tradição da CGT e do
movimento operário da I República.
Com este resultado no congresso dos sindicatos os socialistas lança-
ram-se num debate sobre a política sindical, polarizado pelo documento
“A questão sindical”, de Maldonado Gonelha14. Enquanto a esquerda do
PS continuou a defender a intervenção na CGTP com vista a conquistar a
maioria da central, a posição de Gonelha era criar uma “central sindical
democrática”, colaborando para isso com a tendência sindical do PSD
(antes PPD). No debate interno impôs-se a visão favorável a uma segunda
central, que será criada em 1978: a União Geral de Trabalhadores
(UGT)15.
13 No sentido de construir grandes sindicatos de indústria, uma aceção surpreendente
pois na vizinha Espanha o movimento sindical de classe era exatamente “horizon-
tal” contra o sindicato franquista, denominado “el vertical”.
14 Ministro de Trabalho nos primeiro e segundo governos de Mário Soares.
15 Sobre a criação e evolução da UGT ver José Maria Brandão de Brito e Cristina
96 | TRABA LHO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …
Em fevereiro de 1977 o Governo de Mário Soares lançava um pacote
de ajustamento face à crítica situação financeira do País. Desvalorizava-
-se o escudo, com imediatos efeitos inflacionários que provocaram o
aumento da conflitualidade social. Em novembro desse ano foi aprovado
o “Pacote 2”, a continuação da austeridade com um topo salarial de 15%,
muito inferior à taxa de inflação, próxima dos 30%. Outras medidas
legislativas acompanhavam o pacote: a lei dos despedimentos, a de
delimitação de setores, a de indemnizações pelas empresas nacionaliza-
das, entre outras, e sobretudo a Lei 77/77, a Lei Barreto ou Lei da (con-
tra) Reforma Agrária. Em novembro de 1977 a CGTP convocou uma
maciça jornada de protesto, que segundo os cálculos da Intersindical
reuniu meio milhão de pessoas nas ruas de Lisboa.
Durante 1975 toda a metade sul do País protagonizou uma profunda
transformação da propriedade agrária, com a ocupação de mais de um
milhão de hectares de terra e a criação de cerca de quinhentas unidades
coletivas de produção. Trata-se de um processo que apenas podemos
esboçar aqui. No verão de 1974 os trabalhadores conquistaram os seus
primeiros contratos coletivos, que foram renovados no outono e incluíam
a garantia de trabalho, com a fixação de contingentes obrigatórios nas
herdades. A falta de cumprimento dessas condições e outras situações
foram consideradas sabotagem económica da parte dos proprietários e
conduziram às primeiras ocupações, que depois recebem cobertura legal
em meados de 1975 com a promulgação da Lei da Reforma Agrária. Nos
campos do Alentejo e do Ribatejo surgiu uma realidade económica e
social nova: explorações agrícolas geridas democraticamente e uma
melhoria geral dos baixos níveis de vida e emprego. A reforma agrária
recebeu um apoio decidido do PCP, que garantiu ao partido uma mar-
cante implantação regional.
O processo contra a Reforma Agrária teve um lugar de destaque na
política de destruição das vitórias sociais da revolução, não tanto pelo seu
peso específico próprio, mas pelo valor simbólico: a conquista da terra
tinha uma dimensão que ia além do número de pessoas mobilizadas ou do
valor económico, a imagem dos tratores carregados de trabalhadores
entrando nas terras sem cultivar foi uma das gravuras mais memoráveis
da revolução. E o temor de um ataque geral à propriedade privada da
terra foi um elemento chave do discurso da direita durante e depois do
processo revolucionário.
Em junho de 1977 foi aprovada a lei 77/77, a nova lei da reforma
agrária, conhecida pelo nome do ministro António Barreto, que sucedera
Rodrigues, A UGT na história do movimento sindical português (1970-1990).
Lisboa, Tinta da China e UGT, 2013.
ANOS DE BRASA : UMA V ISÃO DO MOVIMENT O OPERÁRIO PORTUGU ÊS NA DÉ CADA… | 97
ao Eng.º Lopes Cardoso no Ministério da Agricultura. A entrega de
reservas e outros bens, as dificuldades e os cortes no financiamento
estatal e uma vasta repressão conduziram em poucos anos à destruição de
boa parte das UCP e à entrega aos antigos proprietários das terras expro-
priadas, em processos cheios de ilegalidades e de violência. No final de
1980 tinham sido devolvidos aos proprietários cerca de 600 000 hectares
de terra, segundo números dos sindicatos.
Entre 1977 e 1980 realizaram-se não menos de cinco greves gerais em
defesa das UCP no Alentejo e uma jornada nacional de apoio à Reforma
Agrária. As intervenções policiais foram quase quotidianas e muito duras,
com uso de helicópteros, cães-polícia e armas de fogo contra manifes-
tantes e trabalhadores. Os acontecimentos em Évora no verão de 1977,
quando da aprovação da Lei Barreto – dois dias de confrontos generaliza-
dos entre população e forças policiais – e a morte de dois trabalhadores
em Montemor na entrega de uma reserva terão sido marcos relevantes
duma violência que se estendeu durante vários anos. Durante uma década
a região do Alentejo viveu um clima de repressão semelhante ao existente
antes do 25 de abril.
No mundo das empresas, do movimento sindical, aprofundou-se um
processo que continuaria nos anos seguintes, marcado pela defesa palmo
a palmo das conquistas alcançadas no processo revolucionário. Se 1976
aparece como um impasse de acalmia é assim pelo contraste com os anos
prévios e posteriores. Há uma tendência global que aponta para o predo-
mínio de conflitos de setor sobre os de empresa, o que nos parece normal
dada a fixação legal de tetos para os aumentos salariais significativa-
mente abaixo da inflação, em 1977, 1978 e 1979.
Em 1978 quase dois milhões de trabalhadores entraram em luta pela
renovação dos seus CCT, conseguindo por vezes romper os tetos. Nesse
ano uma greve de 78 dias na marinha mercante levou à requisição civil de
vários navios, enquanto se sucediam no Governo uma efémera coligação
PS-CDS e gabinetes de iniciativa presidencial até às eleições intercalares
de dezembro de 1979. Em 1978 foi assinado um protocolo de assistência
financeira com o FMI que impôs um endurecimento das medidas de
austeridade aplicadas desde 1977.
Entre junho e setembro de 1977, e segundo números da CGTP, foram
“desintervencionadas” 82 empresas (na sua grande maioria devoluções) –
quando anteriormente houvera apenas 10 desintervenções. Em muitas
dessas empresas desenvolveram-se conflitos muito duros e com recurso
frequente à intervenção policial. Algumas das empresas devolvidas eram
exemplos de verdadeira recuperação da saúde das empresas, caso de
várias corticeiras, como a Pablos e a Mundet. Contra o regresso dos
patrões a Copam está 5 meses paralisada, a L. P. Mendonça mais de dois.
98 | TRABA LHO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …
Na Duarte Ferreira, em importantes empresas da construção civil como a
J. Pimenta, os trabalhadores lutam pelo emprego. Uma nova vaga de
devoluções de empresas acontece em 1979, durante o Governo de Mota
Pinto. O gabinete mais à direita desde o 25 de abril despachou dezenas de
devoluções de terra e desintervenções, como a Corame, a Jacinto e nova-
mente a Duarte Ferreira. Nas empresas públicas, onde os conflitos foram
bastante limitados, os trabalhadores conduziram processos de luta dura e
prolongada, assim como em empresas privadas onde os dirigentes sindi-
cais e membros de CT e outros trabalhadores sofreram perseguições e
agressões físicas frequentes. Em 1978 foi aprovada legislação sobre as
empresas em autogestão, definindo-se vias que permitiam aos antigos
patrões reclamar o seu património ocupado (os processos judiciais multi-
plicar-se-ao…) e a criacao de um Instituto Nacional das Empresas em
Autogestão que, parece-nos, não terá saído nunca do texto legal.
Não podemos apresentar dados globais sobre a conflituosidade laboral,
mas a nossa leitura é a de um clima de combatividade sustentada do movi-
mento operário que chega às greves gerais de 1982. Este recurso tardio a
uma forma de luta elevada, mas recorrente nos países vizinhos condiciona
o seu sucesso, e é precedida por uma longa e dura luta de mais de três
meses no setor têxtil marcada pela divisão sindical entre CGTP e UGT. As
paralisações gerais serão momentos de elevada tensão entre a Intersindical
e uma UGT que é acusada de divisionista, nomeadamente a de 11 de maio,
que é convocada depois da morte de dois trabalhadores da CGTP pela
polícia na noite de 30 de abril para 1 de maio no Porto, quando militantes
das duas centrais disputavam o espaço para a realização do 1.º de Maio. De
qualquer forma, os resultados das duas datas não irão significar uma altera-
ção de forças na sociedade e no movimento sindical. A CGTP consegue
paralisar o aparelho produtivo e mobiliza uma base social limitada, que já
sofreu derrotas pesadas e determinantes nos anos anteriores.
A nova intervenção do FMI em 1983 e o cambiante quadro político
nacional e internacional nos anos seguintes serão elementos novos que
muito pesarão na evolução e na atividade do movimento sindical portu-
guês. Mas isso fica de fora deste breve texto.
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O MOVIMENTO OPERÁRIO NA SETENAVE
Jorge Fontes
Introdução
O texto que aqui se apresenta tem por objeto a movimentação operária
na empresa de construção e reparação naval Setenave, localizada na
Mitrena, em Setúbal. Neste breve resumo, tentar-se-á demonstrar a sua
importância na história das relações laborais em Portugal: do controlo
operário aos “pactos sociais” e à reconversão industrial.
A Setenave é fundada em 27 de Maio de 1971, tendo por principais
acionistas a CUF e a Lisnave, bem como instituições bancárias. O cenário
parecia promissor: existia forte procura de navios superpetroleiros, Portu-
gal não tinha assinado o acordo da OCDE de 1969 que estabelecia a
liberalização completa do setor, previa-se a entrada em funcionamento do
porto de Sines, com capacidade para receber navios até 350 000 t de porte
para abastecimento da refinaria, no chamado projeto dos “3 S” a armado-
ra Soponata transportaria o petróleo de Cabinda para ser refinado em
Sines, em navios construídos na Setenave.
Em 6 de Abril de 1972 iniciam-se as dragagens no rio Sado, dando
origem a uma ilha com a superfície de 1 000 000 m². As condições são
favoráveis: o estuário do Sado atinge 10 km de comprimento e 1,5 km no
seu ponto mais estreito. A península de Tróia e a serra da Arrábida são
proteções naturais, deixando o estaleiro ao abrigo de ventos e marés. A
profundidade média das águas varia entre 8 e 12 metros e as temperaturas
oscilam entre os 10°C no inverno e os 25°C no verão, excelentes condi-
ções para a atividade de construção e reparação naval1.
Contudo, a nova empresa dava os primeiros passos sob o signo da cri-
se mundial de 1973, que influenciará o seu destino: verificar-se-á um
acelerado retraimento nas encomendas de novos navios (especialmente
1 “O estuário do Sado,” Informação Setenave, abril 6, 1978.
102 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
petroleiros), a descolonização ajuda a contrair a marinha mercante, os
países do Sudoeste Asiático apostam na indústria naval como pilar do
take off económico (com gigantescos apoios estatais e baixos custos de
força de trabalho), a carteira de encomendas inicial é negociada numa
moeda (escudo) que se desvaloriza.
A inauguração oficial dá-se pouco tempo depois da Revolução dos
Cravos, a 6 de Agosto de 1974, mas só começará a laborar a 16 de Junho
de 1975 com a entrada nos estaleiros do navio Montemuro, da Soponata.
A Setenave na revolucão
O golpe de estado de 25 de Abril de 1974 encontra a Setenave em pe-
ríodo de instalação. Nesse dia, a Administração emite um comunicado em
que “apelava para o respeito às autoridades da nação”, não se referindo,
“prudentemente”, quem era a “autoridade”. Só após o 1.º de Maio “se
começou a sentir que algo estava a mudar”, aparecendo os primeiros
cartazes e panfletos de esquerda2.
Entre maio e junho, o País é atravessado por uma onda de greves. Nas
empresas surgem comissões de trabalhadores (CTs), calcula-se que cerca
de 4000 até outubro3, normalmente eleitas após plenários, abrangendo
todos os trabalhadores da unidade (independentemente da profissão), sob
o princípio da sua revogabilidade, mantendo-se sob forte controlo da
assembleia de onde emanam.
Na Mitrena, a primeira “confrontação” política com a Administração
tem lugar a 13 de maio. Os trabalhadores concentram-se “espontanea-
mente” em frente ao edifício da Escola de Formação, constituem uma
comissão negociadora ad-hoc e entram em greve de duração ilimitada,
com uma Assembleia Geral de Trabalhadores (AGT) a funcionar em
permanência.
Após confluírem as suas reivindicações com as dos trabalhadores da
Lisnave, conseguem que passem a vigorar novas condições, nomeada-
mente: tabela de vencimentos dos 6200$00 até 12 500$00 para pessoal
técnico e administrativo; sendo o salário de 7000$00 o correspondente à
categoria mais baixa para trabalhador adulto, nos contratos coletivos no
setor da produção, eliminação de trabalho ao sábado para horário diurno e
2 Alberto Conceição, António Barros, e José Sardinha, Setenave, História de um
estaleiro 1971-1989 (Lisboa: Colibri, 2016), 148.
3 Peter Robinson, “Workers’ Councils in Portugal, 1974-1975,” in Ours to Master
and to Own: Worker’s Control from the Commune to the present, coord., Immanuel
Ness e Dario Azzellini (Chicago: Haymarket Books, 2011), 264, tradução nossa.
O MOVIMENTO OPERÁRIO N A S ETENAVE | 103
do 3.º turno, 1 mês de férias com 1 mês de subsídio, 13.º mês, participa-
ção nos resultados4.
A 27 de Maio elege-se o primeiro Conselho de Trabalhadores da Se-
tenave (CTS). Contudo, uma assembleia-geral realizada no Clube Naval
Setubalense destitui este organismo, acusado de “conluio” com a Admi-
nistração, e elege outro conselho, de cunho fortemente anticapitalista.
O segundo CTS (de Julho de 1974 a Maio de 1975) bem como o ter-
ceiro (de Maio a Dezembro de 1975) são dirigidos pela chamada “es-
querda revolucionária”. Portanto, só após o 25 de Novembro de 1975 irá
o PCP dirigir o CTS (bem como todos os restantes órgãos representativos
dos trabalhadores), o que ocorrerá sem descontinuidades até ao término
da empresa – ao contrário do sucedido na Lisnave, cuja CT é ganha pela
UGT em 1986.
Os CTS, durante a revolução portuguesa, centram as suas reivindica-
ções em temáticas anticapitalistas e igualitárias, como a luta pela aproxi-
mação das diversas categorias e redução do leque salarial, congelamento
dos salários mais elevados, inclusão dos subempreiteiros, abolição dos
contratos a prazo e do regime experimental, redução dos privilégios do
pessoal superior. Procuram inserir a mobilização dos trabalhadores da
Mitrena no contexto mais geral da dinâmica revolucionária, em articula-
ção com outras comissões de trabalhadores, moradores e soldados, numa
lógica de estabelecimento de um “poder popular” na projectada nova
sociedade socialista.
O PCP adquire cada vez mais força na Setenave durante o “Verão
Quente”. Ferozmente crítico do papel da “esquerda revolucionária”, esta
corrente afirma-se politicamente pela prioridade dada à exigência de
nacionalização da empresa, o que ocorrerá em 1 de Setembro de 1975
pelas mãos do V Governo Provisório de Vasco Gonçalves – ao contrário
do sucedido na Lisnave, isenta de intervenção estatal devido à sua eleva-
da componente de capital estrangeiro.
O controlo operário na empresa exprime-se em os trabalhadores pos-
suírem níveis muito elevados de informação (por exemplo, sobre os
salários), controle sem resistência de tarefas, reuniões, serviços, pessoal,
produção, setor financeiro, chegando ao controlo da função comercial,
vital na indústria de construção naval. Têm força para recusar as propos-
tas da Administração e impor muitas das suas5.
4 O Administrador-Delegado, Ordem de Serviço nº 21, (Almada, 23 maio 1974),
Centro de Documentação 25 de Abril.
5 Teresa Rosa et al, “Sistemas de Trabalho, Consciência e Ação Operária na Setena-
ve”, (Tese de Dissertação de Licenciatura, ISCTE, 1983), 490.
104 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
A Administração é muito experimentada, tenta sempre comunicar di-
retamente com os trabalhadores, manter canais institucionais de diálogo
abertos, culpa o CTS pela “desorganização” do estaleiro e falta de enco-
mendas, “cola-se” às medidas dos governos provisórios, vistos com
simpatia por uma grande parte da força de trabalho, joga com as divisões
entre os trabalhadores (extrema-esquerda versus PCP), apela ao “patrio-
tismo” e à lógica “produtivista”.
Durante 1974 a Administração preocupa-se sempre em realçar que os
conflitos verificados acarretam “o grave inconveniente de poderem ser
interpretados como traduzindo um clima de relações sociais extrema-
mente deteriorado, o que efetivamente não acontece”6. Mas em abril de
1975, a Administração e o CTS encontram-se incompatibilizados e de-
missionários. E em outubro, no estaleiro já nacionalizado, diretores,
gestores, operativos e o delegado do Governo, demitiram-se ou apresenta-
ram a demissão7. Paira o espectro da militarização da empresa, e os
trabalhadores rejeitam uma proposta de “cogestão”.
No decorrer do golpe do 25 de Novembro, realiza-se uma assembleia
na Setenave e plenários por secções na Lisnave8. O Forte de Almada é
cercado por trabalhadores da Lisnave e Setenave, reclamando armas9.
Pela manhã de dia 27, num plenário na Lisnave com a presença de uma
delegação da Setenave e de soldados do Forte de Almada, o PCP argu-
menta contra qualquer demonstração de força dos trabalhadores. A “es-
querda revolucionária” apela a uma greve, posição rejeitada pela maio-
ria10.
A Setenave nacionalizada
Derrotada a “esquerda militar” com o golpe de 25 de Novembro de
1975, mas cristalizadas uma série de conquistas laborais, no quadro de
uma economia fortemente nacionalizada, as eleições para a nova CTS,
em Janeiro de 1976, oferecem a vitória à lista afecta ao PCP, à frente dos
6 O Administrador-Delegado adjunto, A Todos os Trabalhadores da Setenave,
(Almada, 12 novembro 1974), Centro de Documentação 25 de Abril.
7 O Administrador por parte do Estado. Moura Vicente, Carta aos trabalhadores da
Setenave, (s.l., 6 outubro 1975), Centro de Documentação 25 de Abril.
8 “Setúbal-25 de Novembro, Cronologia dos acontecimentos,” Revolução, dezembro
13, 1975, 6.
9 Rosado da Luz, entrevistado por Raquel Varela, julho 2012.
10 Phil Mailer, Portugal, The impossible revolution? (Londres: Solidarity, 1977),
338, tradução nossa.
O MOVIMENTO OPERÁRIO N A S ETENAVE | 105
programas apoiados pela UDP e PS. Os comunistas detinham também a
maioria dos delegados sindicais e dirigiam o sindicato mais importante da
empresa, o dos metalúrgicos.
As prioridades da CTS passam a ser: a defesa da nacionalização da
empresa no contexto do sector empresarial do Estado (“irreversível” de
acordo com o artigo 83 da Constituição), os chamados “sectores não
capitalistas” que serviriam de barreira ao avanço da reacção e permiti-
riam, através de uma articulação racional do sector produtivo (nomeada-
mente em conjugação com a reforma agrária), a independência e o desen-
volvimento nacional; a elevação das condições de vida dos trabalhadores;
e a viabilização económica e financeira do estaleiro num mercado mun-
dial em contracção.
Em 1980 laboram 6757 trabalhadores no estaleiro, o que constitui o
pico máximo de ocupação da Mitrena. Os números tinham vindo sempre
a crescer (1974: 2414; 1975: 4007; 1977: 6162; 1979: 6253) mas a partir
desta data a descida será vertiginosa. Registam-se 6087 trabalhadores em
1982, 4841 em 1984, e 2650 em 1989.
A nova legislação das CTs (Lei 46/79), que introduz o método de
Hondt na eleição para este órgão, é contestada tanto pelo PCP como pela
UDP, sendo apoiada pelo PS. Os “unitários” ultrapassam os “imbróglios”
de articulação com as outras correntes, elegendo um secretariado da CT,
que passa a dirigir directamente as negociações com a administração.
Em Dezembro de 1980, a empresa é declarada em situação económica
difícil pelo Governo AD, e em Janeiro de 1981 a estação de desgaseifica-
ção (um dos sectores mais lucrativos) é entregue à Lisnave (privada, com
participação dos Mello). Para agravar os problemas, o presidente do
Conselho de Administração (tido como próximo do MDP/CDE) é afasta-
do, deteriorando-se as relações da CT com a gestão.
Com efeito, o ano de 1981 marca um ponto de inflexão nas relações
laborais no estaleiro. Apesar de as reivindicações terem progressivamente
passado de um carácter qualitativo durante o período revolucionário
(controlo operário, compressão do leque salarial, etc.) para uma dimensão
mais quantitativa (aumentos salariais, prémios, etc.) e de se ter assistido a
uma degradação das conquistas laborais, verificou-se alguma estabilidade
na empresa, possibilitada por um certo clima de optimismo acerca da sua
viabilidade e pelo estabelecimento de canais de comunicação com a
administração, considerados positivos pela CT, que dirigia as suas críticas
mais para a componente externa (Governo) que para a dimensão interna.
106 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
O “Pacto Social” na Setenave
O contexto social é o mais “quente” desde o PREC. A revisão consti-
tucional de 1982 é percebida pela esquerda como um ataque às “con-
quistas de Abril”, a CGTP declara as primeiras duas greves gerais em
Portugal desde 1934 (12 de Fevereiro e 11 de Maio de 1982), começa a
registar-se o drama dos salários em atraso (e o seu cortejo sombrio de
fome e suicídios), e uma carta de José de Mello ao primeiro-ministro
propondo milhares de despedimentos na indústria naval e “a cessão de
exploração da Setenave” inflama ao rubro os ânimos dos trabalhadores11.
Na Setenave procura-se reagir à crise com a introdução de métodos
inovadores, como o jumboizing (alongamento do navio), mas foi o caso
do petroleiro Setebello (S-106) que iria marcar todo o período posterior.
Devido a atrasos na sua entrega, o armador Thyssen queria denunciar o
contrato. Em Janeiro de 1983, os trabalhadores encontravam-se à espera
de receber o salário de Dezembro e o subsídio de férias, pairando sobre o
estaleiro o espectro do encerramento, como chegou a ser noticiado na
comunicação social. No fim do mês, chega-se a um acordo histórico nas
relações de trabalho em Portugal. Pela primeira vez numa empresa públi-
ca, os trabalhadores aceitavam perder direitos a troco da viabilização
económica.
Com efeito, na sequência de plenários sectoriais, a 21 de janeiro reali-
za-se uma AGT na Setenave, com cerca de 5000 trabalhadores, na qual se
aprova um acordo entre o Governo, a administração e os Orgãos Repre-
sentativos dos Trabalhadores (ORTs). Segundo este, o Governo compro-
metia-se a assegurar o funcionamento do estaleiro até ao acabamento do
navio a 31 de agosto12.
Em contrapartida, os trabalhadores comprometem-se a acabar o navio
no prazo, sofrendo um corte de 6% no salário (valores devolvidos após
data de acabamento), abstêm-se de reivindicações de ordem interna e
greves (com exclusão das de âmbito nacional ou sectorial), abdicam de
férias, salvo “casos excecionais”, as escalas de serviço passam a ser
colocadas com uma semana de antecedência (em vez de um mês, embora
em termos práticos tal já acontecesse) e os prémios, subsídios de turno e
horas extras ficam subordinados ao completar de fases de trabalho, rece-
bendo os trabalhadores um bónus caso cumpram antes do prazo13.
11 “AD/Mello querem despedir milhares de trabalhadores,” Pórtico, setembro 17, 1982.
12 “Pacto Social viabiliza construção do «S-106»,” Expresso, janeiro 29, 1983, 14.
13 Compilação extraída de recortes de imprensa dos meses de janeiro e fevereiro de
1983.
O MOVIMENTO OPERÁRIO N A S ETENAVE | 107
Uma resolução alternativa propõe o repúdio do acordo, pois como “o
Governo afirma haver dinheiro (para tal bastando aprovar o pacote) então
que paguem” e exige o pagamento de salários e desbloqueamento de
verbas para o S-106, sendo largamente rejeitada14.
Segundo a CTS, a “não inviabilização das medidas propostas” é “uma
forma de empenhamento responsável e patriótico dos trabalhadores da
Setenave”, bem como um “desafio consciente e decidido a viabilização
futura da empresa”15.
Para Baião Horta, ministro da Indústria, Energia e Exportação, trata-se
de “uma prova que o diálogo é possível para conseguir o objetivo de
dotar a indústria de capacidade de adaptação”16. Deve “ser tentado em
outras empresas por ser uma forma positiva de abordagem dos seus
problemas”17.
A notícia do acordo na Mitrena ganha destaque na imprensa, salien-
tando-se o ineditismo da solução, alimentando-se a ideia de um pacto
social. Por exemplo, segundo o Diário Popular “pela primeira vez numa
empresa pública, trabalhadores abdicam de direitos para viabilizar a
Setenave”18, o Correio da Manhã refere tratar-se da “primeira vez que em
Portugal se “estabelece um acordo entre Governo e trabalhadores com
vista à viabilização de uma empresa”19, o Expresso escreve que o “Pacto
Social viabiliza construção dos ‘S-106’”20, e para o Noticias da Tarde
“pode ser exemplo para outras empresas”21.
O S-106 é terminado antes do prazo previsto. Em conferência de im-
prensa, os ORTs da Setenave asseguram tal só ter sido possível graças ao
“esforço e dedicação dos trabalhadores”, que “pouparam ao país ‘alguns
milhões de contos’”. O Avante! interroga: “Os trabalhadores cumpriram –
e o Governo?”22.
14 “A proposta dos operários revolucionários,” Bandeira Vermelha, janeiro 27, 1983,
12.
15 “Governo e trabalhadores vão viabilizar Setenave,” Correio da Manhã, janeiro 28,
1983, 20.
16 “Pacto Social viabiliza construcao do ‘S-106’”, Ibid.
17 “Setenave pode ser exemplo para outras empresas”, Noticias da Tarde, fevereiro 3,
1983, 7.
18 “Trabalhadores abdicam de direitos para viabilizar Setenave,” Diário Popular,
janeiro 27, 1983, 36.
19 “Governo e trabalhadores vão viabilizar Setenave,” Ibid.
20 “Pacto Social viabiliza construcao do ‘S-106’”, Ibid.
21 “Setenave pode ser exemplo para outras empresas”, Ibid.
22 “Setenave, Os trabalhadores cumpriram – e o Governo?,” Avante!, agosto 18,
1983, 7.
108 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
A Administração da Setenave escreve uma carta aos trabalhadores da
empresa, a 29 de agosto, felicitando-os “pela vontade firme e pela sua
ação unida no interesse comum, que levaram à estabilização social, a uma
recuperação de confiança nas suas potencialidades, à melhoria da imagem
externa”. Segundo esta, o acordo de janeiro “garantiu a indispensável paz
laboral, permitiu à Empresa dispor dos recursos financeiros indispensá-
veis à sua laboração”23.
No dia seguinte à estipulada data limite de acabamento do navio, em
reunião de Conselho de Ministros a 1 de setembro, aprova-se uma “reso-
lução que aponta para a redução de boa parte do pessoal da Setenave”. O
Fundo de Desemprego deve garantir os “apoios previstos na lei para os
trabalhadores que venham a ser dispensados”. A empresa fica proibida de
“aceitar encomendas que impliquem esforços financeiros adicionais por
parte do Estado”. Elaborar-se-á um “esquema de dimensionamento da
empresa, que pode eventualmente conduzir à sua desativação progressi-
va”, garantindo-se “condições de operacionalidade” para “uma eventual
retomada do mercado de construção naval”24.
O Expresso faz um resumo: “a Setenave ainda não vai morrer, mas
muita gente, que vive do seu trabalho nos estaleiros, vai passar pela
suspensão forçada. Será certamente o primeiro exemplo de ‘despedi-
mentos’ massivos”25. Com efeito, a resolução de Conselho de Ministros
42/83 de 10 setembro decreta que, num prazo de seis meses, a Setenave
teria de reduzir em mil o número de efetivos, garantindo como indemni-
zação o valor de um mês por cada ano de trabalho mais quatro meses26.
A concertação “permanente”
Num contexto de aguda crise económica, e sob o espectro do regresso
do FMI, começa a discutir-se com cada vez mais insistência na sociedade
portuguesa a necessidade de um “diálogo social” capaz de institucionali-
zar e regular as relações laborais, o pacto social.
A palavra pacto tem origem no latim pactu, ou seja tratado, conven-
ção, ajuste, contrato, combinação, acordo entre duas ou mais pessoas27.
23 “Carta aos Trabalhadores,” Informação Setenave, agosto 29, 1983.
24 “Projeto de Mota Pinto de ‛Servico de Informacões’ aprovado pelo governo,
resolução sobre a Setenave vai reduzir pessoal,” Diário de Lisboa, setembro 2,
1983, 24.
25 “Setenave vai construir para a frota mercante nacional com menos 2 mil trabalha-
dores,” Expresso, setembro 3, 1983, 15.
26 Resolução Conselho Ministros nº 42/83, 10 setembro.
27 Grande Dicionário da Língua Portuguesa, António de Morais Silva, Vol. VII
(Lisboa: Editorial Confluência, 1954), “pacto”, 651.
O MOVIMENTO OPERÁRIO N A S ETENAVE | 109
Na definição de Barreto, um pacto social é um “acordo à escala nacional,
negociado, periodicamente ou a título excecional, entre o movimento
sindical, as organizações patronais e, eventualmente, o Governo, com o
objetivo de assegurar, durante determinado espaço de tempo ou em
permanência, as condições de uma relativa paz social”, significando a
“aceitação pelas partes de determinada programação económica e social,
a cujos supostos benefícios se sacrificam certos interesses imediatos ou,
possivelmente, até estratégicos”28.
Para Sousa Franco, num “período de grande instabilidade política”
merece “menção uma importante medida inovadora no domínio social,
que foi o acordo de viabilização da Setenave: pela primeira vez se contou
com a participação dos trabalhadores, que se comprometiam aceitando
alguma redução dos seus benefícios sociais em contrapartida da viabiliza-
ção e da manutenção e valorização dos seus postos de trabalho”29, e
segundo Medeiros Ferreira, a “renúncia à greve de empresa pelos traba-
lhadores da Setenave será um símbolo das mutações ocorridas”30.
O Decreto-Lei 74/84 cria o Conselho Permanente de Concertação So-
cial, que toma posse a 20 de março, instituindo-se o primeiro órgão
específico de concertação tripartida, dez anos após o fim da ditadura.
Entre a UGT e os membros do Governo ficam simbolicamente vazias as
três cadeiras da CGTP. Segundo Soares, “os lugares não ocupados ficarão
em aberto” para o caso de a CGTP “se vir forçada a retificar o julgamento
de agora para não ficar isolada e à margem dos debates fundamentais e
das decisões que aqui terão lugar”. A UGT afirma “total disponibilidade
para dialogar e concertar”, e a CIP advoga uma nova revisão da Consti-
tuição, um calendário de desnacionalizações e a revisão das leis económi-
cas e laborais.”31.
28 José Barreto, “Modalidades, condições e perspectivas de um pacto social,” Análise
Social 53 (1978): 81.
29 Sousa Franco, “A Economia” in Portugal 20 anos de democracia, coord. António
Reis (Lisboa: Temas & Debates, 1996), 234.
30 José Medeiros Ferreira, História de Portugal, vol. VIII, Portugal em Transe (1974-
-1985) (Lisboa: Editorial Estampa, 1995), 125.
31 “CIP gostou de Ernâni Lopes e aplaudiu Torres Couto,” Diário de Lisboa, março
21, 1984, 20.
110 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
A reestruturação
A Setenave verá a sua gestão privatizada um ano depois, em 1989, três
anos após a entrada de Portugal na CEE (que implicava significativos
constrangimentos à indústria naval nacional) e durante a vigência da
maioria absoluta do PSD de Cavaco Silva. A Solisnor (um consórcio
entre a Lisnave, a Soponata e noruegueses da Barber International,
Wilhelmsen e Platou) passaria a explorar o estaleiro da Mitrena.
Em 1998, os Mello compram a Setenave ao Estado por 5 milhões de
contos32. No ano 2000 o estaleiro da Margueira é desativado, transferin-
do-se a Lisnave para a Mitrena, e o Grupo José de Mello vende-a pelo
valor simbólico de um dólar a dois quadros da empresa, operação com o
apoio do parceiro estratégico Thyssen Krupp33. A “nova Lisnave” subsis-
te com resultados financeiros positivos, sendo líder europeia na reparação
naval e uma das maiores do mundo, empregando cerca de 340 trabalha-
dores efetivos34, com um operário no topo de carreira a ganhar 965,10
euros mensais de salário-base bruto35 e um arquipélago de empresas
subsidiárias empregando cerca de dois mil trabalhadores em regime de
precariedade.
Conclusão
Em modo de conclusão, como esperamos ter deixado patente, o mo-
vimento operário da indústria naval, e na Setenave em concreto, constitui
um excelente exemplo para o estudo das relações laborais em Portugal.
Assim, passada uma primeira fase em que o movimento operário de-
monstra uma dinâmica ofensiva, com generalização do controlo operário,
mas os seus organismos não se conseguem coordenar e unificar, verifica-
-se uma situação de impasse saída do 25 de novembro e consagrada na
Constituição de 1976: nasce o Estado Social português, um pacto social
de facto.
A Setenave, empresa nacionalizada, numa economia dita planificada e
em “transição para o socialismo”, é testemunha exemplar dessa contradi-
ção. Encontrando-se a banca, as armadoras e a maioria dos estaleiros nas
mãos do Estado, apesar de sucessivamente anunciado, nunca se concreti-
32 “Mello compra Setenave,” Público, maio 14, 1998, 36.
33 Alberto Conceição, António Barros, e José Sardinha, 183.
34 Relatório de Gestão e Contas, Lisnave 2009, 29.
35 “Por dentro da Lisnave,” Correio da Manhã, acesso a setembro 2, 2015,
http://www.cmjornal.xl.pt/domingo/detalhe/por-dentro-da-lisnave.html
O MOVIMENTO OPERÁRIO N A S ETENAVE | 111
zará nenhum plano, e o estaleiro viverá numa asfixia financeira perma-
nente; processo acompanhado por uma recuperação do poder dos Mello,
primeiro no Conselho de Administração da Lisnave, e depois na posse do
setor mais rentável da Mitrena, a Estação de Desgaseificação.
O acordo de viabilização da Setenave, em 1983, é a primeira peça da
montagem do puzzle da concertação social em Portugal, traduzido na
assinatura dos primeiros pactos sociais, que vingam após sérias derrotas
do movimento operário, nomeadamente na indústria naval, que começa a
ser desmantelada no contexto da adesão à CEE, da desnacionalização da
economia e entrega aos privados do setor industrial e produtivo. Se foi
central para a afirmação do neoliberalismo de Thatcher a derrota dos
mineiros, ou para Reagan a vitória sobre os controladores aéreos, talvez
possamos estabelecer a mesma hipótese para Portugal: os chamados
“pactos sociais”, na verdade, são derrotas estratégicas do movimento
operário que em Portugal conduzem ao estabelecimento de um novo
quadro de relações laborais precarizadas.
A LEI GERAL DA ACUMULAÇÃO CAPITALISTA
E AS RELAÇÕES DE TRABALHO NA ATUALIDADE
Marcelo Badaró Mattos1
Este texto possui um duplo objetivo. Pretende-se discutir o quadro atual
de crescimento e predomínio de um perfil “precário” da classe trabalhadora
ao redor do mundo à luz da formulação da “lei geral da acumulação capita-
lista” expressa por Marx em O Capital. Assim, procura-se ultrapassar a
aparência superficial de um declínio da classe trabalhadora, frente ao
crescimento do desemprego e do trabalho precário (em suas várias mani-
festações), em direção a uma análise das especificidades do crescimento da
“superpolução relativa” no capitalismo contemporâneo, tendo por referên-
cia o texto de Marx e comentários nele inspirados por parte de autores mais
recentes. Por outro lado, a discussão do Capítulo XXIII d’O Capital2 nos
serve como uma excelente ilustração sobre o método de Marx.
Iniciaremos com a discussão sobre o texto de Marx, procurando desta-
car essa dupla dimensão dos objetivos do texto, ao que se seguirá uma
recuperação de algumas informações sobre o perfil atual do trabalho no
capitalismo contemporâneo. Ao fim, apresentaremos sumariamente algu-
mas interpretações sobre o quadro contemporâneo, para concluir sobre a
pertinência e atualidade da discussão apresentada por Marx em 1867.
1 Professor titular (catedrático) de História do Brasil da Universidade Federal Flumi-
nense. Membro do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Marx e o
Marxismo (NIEP-MARX) da UFF. Este texto, em uma versão menos desenvolvida,
foi apresentado durante o seminário “Marx e o Marxismo 2015”, promovido pelo
NIEP-MARX. 2 Esclarecemos que a numeração dos capítulos de O Capital variou conforme as
próprias edições em vida de Marx e Engels (responsável por duas reedições em
alemão, pela edição em inglês, além da publicação dos Livros II e III). Assim, o
Capítulo XXIII das edições brasileiras corresponde à discussão sobre a “Lei geral
da acumulação capitalista”.
114 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
I. A “lei geral” e o método de Marx em sua crítica da economia
política
O vigésimo terceiro capítulo de O Capital, “A lei geral da acumulação
capitalista”, é um texto chave para a discussão levada adiante nas últimas
décadas sobre a classe trabalhadora diante das (re)configurações recentes
da economia capitalista. Mas é também um dos melhores momentos de O
Capital para que compreendamos o método de análise marxista. Para os
que conhecem bem o texto, peço desculpas pela recuperação de muitas
passagens, procedimento que julguei não apenas necessário para os que
não estão familiarizados com O Capital como também importante por
explicitar os aspectos mais valorizados na leitura que aqui proponho.
1. A lei geral
Podemos começar pela própria enunciação daquela que Marx chama
de “lei geral, absoluta, da acumulação capitalista”:
Quanto maiores forem a riqueza social, o capital em funcionamento, o
volume e o vigor de seu crescimento e, portanto, também a grandeza
absoluta do proletariado e a força produtiva de seu trabalho, tanto
maior será o exército industrial de reserva. A força de trabalho dispo-
nível se desenvolve pelas mesmas causas que a força expansiva do ca-
pital. A grandeza proporcional do exército industrial de reserva acom-
panha, pois, o aumento das potências da riqueza. Mas quanto maior
for esse exército de reserva em relação ao exército ativo de trabalha-
dores, tanto maior será a massa da superpopulação consolidada, cuja
miséria está na razão inversa do martírio de seu trabalho. Por fim,
quanto maiores forem as camadas lazarentas da classe trabalhadora e o
exército industrial de reserva, tanto maior será o pauperismo oficial.
Essa é a lei geral, absoluta, da acumulação capitalista. Como todas as
outras leis, ela é modificada, em sua aplicação, por múltiplas circuns-
tâncias, cuja análise não cabe realizar aqui.3
Para chegar a essa formulação, Marx segue um determinado percurso
expositivo. Na primeira parte do capítulo, demonstra a demanda crescente
de força de trabalho para a acumulação de capital, explicando a questão
da composição do capital:
3 Karl Marx, O capital: crítica da economia política, Livro I: o processo de produ-
ção do capital, São Paulo, Boitempo, 2013, pp. 719-720.
A LE I GERAL DA ACUMU LA ÇÃO CA PITAL IST A E AS RELA ÇÕES DE T R ABALHO… | 115
A composição do capital deve ser considerada em dois sentidos. Sob o
aspecto do valor, ela se determina pela proporção em que o capital se
reparte em capital constante, ou valor dos meios de produção, e capital
variável, ou valor da força de trabalho, a soma total dos salários. Sob o
aspecto da matéria, isto é, do modo como esta funciona no processo de
produção, todo capital se divide em meios de produção e força viva de
trabalho; essa composição é determinada pela proporção entre a massa
dos meios de produção empregados e a quantidade de trabalho exigida
para seu emprego. Chamo a primeira de composição de valor e a se-
gunda, de composição técnica do capital. Entre ambas existe uma es-
treita correlação. Para expressá-la, chamo a composição de valor do
capital, porquanto é determinada pela composição técnica do capital e
reflete suas modificações, de composição orgânica do capital. Onde se
fala simplesmente de composição do capital, entenda-se sempre sua
composição orgânica.4
Porém, se a necessidade de força de trabalho é crescente no processo de
acumulação – “acumulação do capital é, portanto, multiplicação do proleta-
riado”5 –, essa tendência poderia levar a uma situação em que o crescimen-
to da demanda por força de trabalho geraria uma melhoria progressiva das
condições salariais dos trabalhadores e, portanto, de suas condições de
existência sob o capitalismo. Para a maior parte das explicações da econo-
mia política que critica, a regulação dessa tendência seria dada pela própria
dinâmica populacional e a resultante de largo prazo levaria a um equilíbrio
entre oferta e demanda de força de trabalho que garantiria os lucros do
capitalista e um padrão de vida digno para o proletariado. Marx, no entan-
to, explica que a demanda por força de trabalho é crescente quando a
acumulação se dá sob uma composição orgânica do capital constante,
condição que não corresponde à dinâmica real da acumulação capitalista.
Nesta última prevalece a lógica da extração de mais valor, em que
a forca de trabalho é comprada, […] nao para satisfazer, mediante seu
serviço ou produto, às necessidades pessoais do comprador. O objeti-
vo perseguido por este último é a valorização de seu capital, a produ-
ção de mercadorias que contenham mais trabalho do que o que ele pa-
ga, ou seja, que contenham uma parcela de valor que nada custa ao
comprador e que, ainda assim, realiza-se mediante a venda de merca-
dorias. A produção de mais-valor, ou criação de excedente, é a lei ab-
soluta desse modo de produção.6
4 Ibidem, Idem, p. 689.
5 Ibidem, p. 690.
6 Ibidem, p. 695.
116 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
Por isso, a demanda crescente por força de trabalho é contrabalançada
pelo fato de que a acumulação capitalista leva à concentração e centraliza-
ção de capitais, como resultado de um processo de alteração da composição
orgânica do capital, tema da segunda parte do capítulo. Assim, o capítulo
XXIII é também o espaço privilegiado para a discussão dessa questão
central na explicação marxista do processo de acumulação capitalista. No
princípio da explicação de Marx está a discussão do aumento da produtivi-
dade do trabalho – expressa no “volume relativo dos meios de produção
que um trabalhador transforma em produto durante um tempo dado”7 –,
que está relacionada à crescente incorporação de tecnologia ao processo de
produção. Assim, “seja ele condição ou consequência, o volume crescente
dos meios de produção em comparação com a força de trabalho neles
incorporada expressa a produtividade crescente do trabalho”.8
Um reflexo desse processo é o aumento da fração de capital constante
em relação à de capital variável na composição do capital. Marx segue
sua exposição, explicando como, após o ponto de partida posto pelo
processo de “acumulação primitiva” (detalhado no capítulo seguinte), a
concorrência e o sistema de crédito impulsionam a concentração de
capitais em volumes cada vez maiores. Explica também o processo que
leva os detentores de capitais capazes de incrementar a produtividade do
trabalho e obter maiores taxas de mais-valor a seguirem incorporando
fatias de mercado ou propriedade de outras empresas, em um viés de
centralização do capital. Em um parágrafo de síntese, Marx explica:
Essa fragmentação do capital social total em muitos capitais indivi-
duais ou a repulsão mútua entre seus fragmentos é contraposta por sua
atração. Essa já não é a concentração simples, idêntica à acumulação,
de meios de produção e de comando sobre o trabalho. É concentração
de capitais já constituídos, supressão [Aufhebung] de sua independên-
cia individual, expropriação de capitalista por capitalista, conversão de
muitos capitais menores em poucos capitais maiores. Esse processo se
distingue do primeiro pelo fato de pressupor apenas a repartição alte-
rada dos capitais já existentes e em funcionamento, sem que, portanto,
seu terreno de ação esteja limitado pelo crescimento absoluto da ri-
queza social ou pelos limites absolutos da acumulação. Se aqui o capi-
tal cresce nas mãos de um homem até atingir grandes massas, é por-
que acolá ele se perde nas mãos de muitos outros homens. Trata-se da
centralização propriamente dita, que se distingue da acumulação e da
concentração.9
7 Ibidem, p. 698.
8 Ibidem, p. 699.
9 Ibidem, pp. 701-702.
A LE I GERAL DA ACUMU LA ÇÃO CA PITAL IST A E AS RELA ÇÕES DE T R ABALHO… | 117
Tendo em vista que a elevação da produtividade do trabalho é requisi-
to e, cada vez mais, consequência desse processo, com a centralização
“uma massa menor de trabalho basta para pôr em movimento uma massa
maior de maquinaria e matérias-primas”.10 Uma decorrência necessária
da centralização é, portanto, o decréscimo absoluto da demanda por
trabalho. Esse é o contexto necessário para que Marx explore a seguir, na
terceira parte do capítulo, a questão da “superpopulação relativa” ou
“exército industrial de reserva”.
Após explicar como com “o avanço da acumulação modifica-se […] a
proporção entre as partes constante e variável do capital”, Marx chama a
atenção para o fato de que, “como a demanda de trabalho não é determi-
nada pelo volume do capital total, mas por seu componente variável, ela
decresce progressivamente”. Mas, o próprio processo de acumulação
capitalista acaba por produzir, expandindo-se por novos territórios –
físicos e sociais – uma população trabalhadora adicional, “relativamente
excedente”, “suplementar”, “supranumerária”.11
Essa “superpopulação relativa”, que é “produto necessário” da acumu-
lação, também se constitui em “alavanca” da acumulação capitalista, por
representar um “exército industrial de reserva”, disponível para ser explo-
rado pelo capital, independentemente do aumento populacional.12 A cada
novo setor desbravado pela expansão capitalista ela estará disponível para
produzir mais-valor, na mesma medida que sua abundância garante ao
capital a possibilidade de manter os salários dos efetivamente emprega-
dos em um nível suficientemente baixo para que os processos cíclicos de
variação da taxa de lucro não signifiquem um freio definitivo à acumula-
ção. Ao cabo desse percurso explicativo, Marx estará pronto para avan-
çar, demonstrando que “toda a forma de movimento da indústria moderna
deriva, portanto, da transformação constante de uma parte da população
trabalhadora em mão de obra desempregada ou semiempregada.”13
Nesse ponto do texto, Marx avança uma síntese, introduz o elemento
da conscientização dos trabalhadores sobre a lógica desse processo de
exploração intensificada a que se submetem, e apresenta mais uma crítica
aos economistas políticos em sua incapacidade intrínseca para explicar a
questão da superpopulação relativa. Dada a importância da sequência de
argumentos, vale a pena uma citação mais longa:
10
Ibidem, p. 704. 11
Ibidem, pp. 705-706. 12
Ibidem, p. 707. 13
Ibidem, p. 708.
118 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
O capital age sobre os dois lados ao mesmo tempo. Se, por um lado,
sua acumulação aumenta a demanda de trabalho, por outro, sua “libe-
ração” aumenta a oferta de trabalhadores, ao mesmo tempo que a
pressão dos desocupados obriga os ocupados a pôr mais trabalho em
movimento, fazendo que, até certo ponto, a oferta de trabalho seja in-
dependente da oferta de trabalhadores. O movimento da lei da deman-
da e oferta de trabalho completa, sobre essa base, o despotismo do ca-
pital. Tão logo os trabalhadores desvendam, portanto, o mistério de
como é possível que, na mesma medida em que trabalham mais, pro-
duzem mais riqueza alheia, de como a força produtiva de seu trabalho
pode aumentar ao mesmo tempo que sua função como meio de valori-
zação do capital se torna cada vez mais precária para eles; tão logo
descobrem que o grau de intensidade da concorrência entre eles mes-
mos depende inteiramente da pressão exercida pela superpopulação
relativa; tão logo, portanto, procuram organizar, mediante trades
unions etc., uma cooperação planificada entre empregados e os de-
sempregados com o objetivo de eliminar ou amenizar as consequên-
cias ruinosas que aquela lei natural da produção capitalista acarreta
para sua classe, o capital e seu sicofanta, o economista político, cla-
mam contra a violação da “eterna” e, por assim dizer, “sagrada” lei da
oferta e demanda. Toda solidariedade entre os ocupados e os desocu-
pados perturba, com efeito, a ação “livre” daquela lei.14
A conclusão do parágrafo é particularmente relevante para a discussão
sobre a realidade dos países àquela altura coloniais ou recém-saídos da
situação colonial:
Por outro lado, assim que, nas colônias, por exemplo, surgem cir-
cunstâncias adversas que impedem a criação do exército industrial de
reserva e, com ele, a dependência absoluta da classe trabalhadora em
relação à classe capitalista, o capital, juntamente com seu Sancho Pança
dos lugares-comuns [o economista político], rebela-se contra a lei “sa-
grada” da oferta e demanda e tenta dominá-la por meios coercitivos.15
Ou seja, para o capital, se o suprimento de força de trabalho não pode
ser continuamente abastecido por novas levas de trabalhadores expropria-
dos e proletarizados, como aconteceu em diversas situações de expansão
colonial, então impõe-se a garantia da oferta de braços pela via da coer-
ção: escravidão; trabalho barato por longos anos garantido por contratos
coercitivos; trabalho de condenados criminais, etc.
14
Ibidem, pp. 715-716. 15
Ibidem, p. 716.
A LE I GERAL DA ACUMU LA ÇÃO CA PITAL IST A E AS RELA ÇÕES DE T R ABALHO… | 119
Na quarta parte do capítulo, antes de enunciar a “lei geral” com a qual
iniciamos esta seção, Marx apresenta sua conhecida taxionomia das
“diferentes formas de existência” da “superpopulação relativa”. São
basicamente três formas: flutuante, latente e estagnada. A primeira forma
corresponderia ao fluxo contínuo de atração e repulsão dos trabalhadores
nos “centros da indústria moderna – fábricas, manufaturas, fundições e
minas, etc.”16 A segunda forma, latente, corresponde à constante disponi-
bilidade de trabalhadores do campo, “liberados” (proletarizados) pelo
avanço da agricultura propriamente capitalista, gerando tanto uma super-
população latente no próprio campo, cujo fluxo para os centros urbanos
acaba por ser – quando possível – uma compulsão fortíssima diante dos
baixíssimos salários e do pauperismo rurais. Por fim, a terceira categoria
– estagnada – é composta pelo setor ativo da classe trabalhadora que
ocupa as ocupações mais irregulares, como o trabalho domiciliar, por
jornada, etc.
Marx acrescenta a essas três formas um “sedimento mais baixo”, que
habita o “pauperismo”. Também o pauperismo é por ele dividido em três
categorias: aptos a trabalhar; órfãos e filhos de indigentes (candidatos ao
exército industrial de reserva); e, em terceiro lugar, os “degradados,
maltrapilhos, incapacitados para o trabalho”. Tais camadas de pauperis-
mo são, entretanto, distintas do lumpemproletariado (categoria que Marx
havia tratado politicamente em sua trilogia sobre a França pós-1848),
aqui apresentado de uma forma mais “ocupacional” como os “vagabun-
dos, delinquentes, prostitutas”.17
Os comentaristas em geral destacam essas taxionomias da “superpo-
pulação relativa” e de seus sedimentos paupers e procuram relacioná-las
a situações concretas do mercado de trabalho capitalista, o que é interes-
sante (e de certa forma também o faremos na sequência deste texto).
Cabe, entretanto, chamar a atenção que Marx não apresenta uma classifi-
cação nem de extratos distintos da classe trabalhadora, nem tampouco de
parcelas homogêneas e estáveis dessa classe. Pelo contrário, destaca que
tais formas (ou experiências, poderíamos dizer) são parte constitutiva da
“existência” – como ressalta no título da seção – da classe, uma existên-
cia dinâmica, em que os trabalhadores individualmente podem viver
várias dessas experiências ao longo de uma vida. Assim, mesmo a forma
estagnada da superpopulação relativa vende a sua força de trabalho (Marx
usa o exemplo do trabalho a domicílio), ainda que irregularmente e por
remunerações muito baixas, e constitui “ao mesmo tempo, um elemento
da classe trabalhadora que se reproduz e se perpetua a si mesmo e partici-
16
Ibidem, p. 716. 17
Ibidem, p. 719.
120 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
pa no crescimento total dessa classe numa proporção maior que os demais
elementos”.18
É nesse ponto do capítulo que Marx expõe a “lei geral, absoluta, da
acumulação” já citada e a explica também por uma outra formulação,
plena da linguagem dialética que impregna a forma de exposição em
O Capital:
A lei segundo a qual uma massa cada vez maior de meios de produ-
ção, graças ao progresso da produtividade do trabalho social, pode ser
posta em movimento com um dispêndio progressivamente decrescente
de força humana, é expressa no terreno capitalista – onde não é o tra-
balhador quem emprega os meios de trabalho, mas estes o trabalhador
– da seguinte maneira: quanto maior a força produtiva do trabalho,
tanto maior a pressão dos trabalhadores sobre seus meios de ocupação,
e tanto mais precária, portanto, a condição de existência do assalaria-
do, que consiste na venda da própria força com vistas ao aumento da
riqueza alheia ou à autovalorização do capital. Em sentido capitalista,
portanto, o crescimento dos meios de produção e da produtividade do
trabalho num ritmo mais acelerado do que o da população produtiva
se expressa invertidamente no fato de que a população trabalhadora
sempre cresce mais rapidamente do que a necessidade de valorização
do capital.19
Em todo o texto, e particularmente nesse momento em que discute a
fundo a superpopulação relativa, Marx afirma que os ajustes que o capital
promove para adequar a força de trabalho a suas necessidades resultam na
“miséria de camadas cada vez maiores do exército ativo de trabalhado-
res”.20 E se a “miséria” ali discutida é, indiscutivelmente, uma miséria
absoluta, ela não se anula nas situações em que os salários eventualmente
se elevam, pois sua manifestação como miséria relativa (relacionada aqui
diretamente ao mecanismo da alienação/fetichismo explicado no primeiro
capítulo do livro e às formas de extração da mais valia desenvolvidas nos
capítulos seguintes) é insuperável no interior da lógica da acumulação
capitalista. Assim:
no interior do sistema capitalista, todos os métodos para aumentar a
força produtiva social do trabalho aplicam-se à custa do trabalhador
individual; todos os meios para o desenvolvimento da produção se
convertem em meios de dominação e exploração do produtor, mutilam
18
Ibidem, p. 718. 19
Ibidem, p. 720. 20
Ibidem, p. 720.
A LE I GERAL DA ACUMU LA ÇÃO CA PITAL IST A E AS RELA ÇÕES DE T R ABALHO… | 121
o trabalhador, fazendo dele um ser parcial, degradam-no à condição de
um apêndice da máquina, aniquilam o conteúdo de seu trabalho ao
transformá-lo num suplício, alienam ao trabalhador as potências espi-
rituais do processo de trabalho na mesma medida em que a tal proces-
so se incorpora a ciência como potência autônoma, desfiguram as
condições nas quais ele trabalha, submetem-no, durante o processo de
trabalho, ao despotismo mais mesquinho e odioso, transformam seu
tempo de vida em tempo de trabalho […]. Mas todos os métodos de
produção do mais-valor são, ao mesmo tempo, métodos de acumula-
ção, e toda expansão da acumulação se torna, em contrapartida, um
meio para o desenvolvimento desses métodos. Segue-se, portanto, que
à medida que o capital é acumulado, a situação do trabalhador, seja
sua remuneração alta ou baixa, tem de piorar.21
A última e mais longa seção do capítulo é dedicada a apresentar “ilus-
trações” da lei geral, a partir da recuperação de um conjunto enorme de
informações sobre a história (especialmente a mais recente, relativamente
ao momento da escrita do livro) das relações de trabalho capitalistas na
Grã-Bretanha. Abordando a Inglaterra, Marx mergulha fundo em relató-
rios de comissões sanitárias, livros de contas do Estado e muitas outras
fontes para demonstrar como os setores mais pauperizados (a superpopu-
lação estagnada, se assim quisermos) da classe trabalhadora vivem em
condições sub-humanas. Mas demonstra também como os setores mais
bem remunerados da classe, em momentos de crise, como a vivida nos
anos imediatamente anteriores à publicação de O Capital, podem também
– perdendo seus empregos (como superpopulação flutuante) – cair na
mais absoluta pobreza. Pobreza que é ainda mais dura entre os trabalha-
dores agrícolas (sempre prontos a ocupar os postos mais mal remunera-
dos do trabalho assalariado, como superpopulação latente).
O ápice das “ilustrações” vem com a recuperação feita por Marx da
situação irlandesa, após a grande fome, em meio aos constantes fluxos de
imigração (especialmente para a Inglaterra e cada vez mais para os EUA)
e diante de um pauperismo extremo da maioria da população. Um quadro
criado e agravado pelo papel da Irlanda como área de expansão da agri-
cultura capitalista sob o influxo dos interesses ingleses. Conforme Marx:
com a queda da massa populacional, subiram continuamente a renda
da terra e os lucros dos arrendatários, embora estes não de maneira tão
constante quanto aquela. A razão é facilmente compreensível. Por um
lado, com a fusão dos arrendamentos e a transformação de lavouras
em pastagens, uma parte maior do produto total se converteu em mais-
21
Ibidem, pp. 720-721.
122 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
-produto. O mais-produto cresceu, embora o produto total, do qual ele
é uma fração, tenha diminuído. Por outro lado, o valor monetário des-
se mais-produto cresceu ainda mais rapidamente do que sua massa,
por causa do aumento que nos últimos vinte anos, e principalmente na
última década, sofreram no mercado inglês os preços da carne, da lã,
etc. […] Ainda que com a massa populacional também tenha diminuí-
do a massa dos meios de produção empregados na agricultura, a massa
de capital nela empregada aumentou, já que uma parte dos meios de
produção antes dispersos foi transformada em capital.22
Como se vê, uma situação que desafia de forma definitiva qualquer
tentativa de explicação/solução da questão irlandesa baseada em cálculos
de crescimento/decréscimo da população, nos moldes dos economistas
políticos. Afinal a Irlanda perdeu, desde os anos 1840, milhões de habi-
tantes, pela fome e pela imigração, que aumentou daí em diante. Trata-se,
nas palavras de Marx, de um “processo como a economia ortodoxa não o
poderia desejar mais formoso para manter em pé seu dogma, segundo o
qual a miséria deriva da superpopulação absoluta e o equilíbrio é restabe-
lecido mediante o despovoamento”. Porém, a imigração, que sempre fez
da Irlanda um acampamento avançado do exército industrial de reserva
para o capitalismo britânico e que agora crescia exponencialmente em
direção aos Estados Unidos, reduzindo significativamente a população
residente no território irlandês, não representou nem prejuízo para o
capital – demandando cada vez menos trabalhadores agrícolas –, nem
para a riqueza do país de uma forma geral. Esteve longe, porém, de
significar uma melhoria das condições de vida dos trabalhadores que lá
permaneceram, estimulando continuamente a migração em massa. A
explicação desenvolvida por Marx combina vários fatores:
Em 1846, a fome liquidou, na Irlanda, mais de um milhão de pessoas,
mas só pobres-diabos. Não acarretou o menor prejuízo à riqueza do
país. O êxodo ocorrido nas duas décadas seguintes, e que ainda conti-
nua a aumentar, não dizimou, como foi o caso na Guerra dos Trinta
Anos, junto com os homens, seus meios de produção. O gênio irlandês
inventou um método totalmente novo para transportar, como por obra
de encantamento, um povo pobre a uma distância de milhares de mi-
lhas do cenário de sua miséria. A cada ano, os emigrantes assentados
nos Estados Unidos enviam dinheiro para casa, meios que possibilitam
a viagem dos que ficaram para trás. Cada tropa que emigra este ano
atrai outra tropa, que emigrará no ano seguinte. Em vez de custar algo
à Irlanda, a emigração constitui, assim, um dos ramos mais rentáveis
22
Ibidem, p. 775.
A LE I GERAL DA ACUMU LA ÇÃO CA PITAL IST A E AS RELA ÇÕES DE T R ABALHO… | 123
de seus negócios de exportação. Ela é, por fim, um processo sis-
temático, que não se limita a furar um buraco transitório na massa po-
pulacional, mas que dela extrai anualmente um número maior de pes-
soas do que aquele reposto pelos nascimentos, de modo que o nível
populacional absoluto cai a cada ano.23
Marx concentrou a maior parte de seu esforço de análise empírica, ao
longo de todo O Capital, sobre o caso inglês, escolhido justamente por
ser o primeiro e, naquela época, mais avançado pólo da expansão capita-
lista em seus moldes industriais. Ao abordar a Irlanda no Capítulo XXIII,
entretanto, acaba por avançar algumas considerações fundamentais para o
entendimento do caráter desigual do avanço do capitalismo em escala
internacional. Uma temática que deveria ter sido objeto mais detido da
escrita de Marx em escritos posteriores, como se observa em seus planos
para escrever, entre outros, os volumes sobre o comércio internacional e
sobre o mercado mundial e as crises.
2. O método de Marx
Cabe agora tomar o capítulo XXIII por outro ângulo e observar o
quanto ele é rico para ilustrar o método de pesquisa e redação de Marx.24
Nele está contida exemplarmente a dinâmica de Marx ao construir sua
análise em contraposição à economia política clássica, da qual partiu e a
qual superou. Seu ponto de partida é o da crítica radical ao capitalismo,
indissociavelmente combinada à crítica e superação da ciência econômica
de sua época. Os economistas anteriores são citados para mostrar até
onde avançaram (vide o tributo prestado a Bernard de Mandeville, “ho-
mem honesto e cérebro lúcido”,25 quando analisa a relação entre a acumu-
lação de capital e a multiplicação do proletariado). Mas também são
constante alvo da ferina mordacidade de Marx, que não se cansa de
apontar os limites de suas análises, neste capítulo particularmente no que
tange à sua tentativa de aplicar uma “lei universal” da população, relacio-
nando o crescimento/controle demográfico à produção e trabalho. Ao
tentarem proceder dessa forma, são incapazes de perceber que não há
“leis universais”, elas são históricas, e o capitalismo possui uma forma
23
Ibidem, pp. 775 e 776. 24
Para análises mais amplas do “método” de Marx, ver José Paulo Netto, Introdução
ao estudo do método de Marx, São Paulo, Expressão Popular, 2011, e Eurelino
Coelho, A dialética na oficina do historiador: ideias arriscadas sobre algumas
questões de método, História e Luta de Classes, n.º 9, Junho de 2010. 25
Ibidem, p. 692.
124 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
própria de responder às oscilações demográficas, sempre em favor da
acumulação e em detrimento dos trabalhadores. Os limites da economia
política para perceber a historicidade do capitalismo seriam decorrentes
especialmente, como Marx demonstra mais de uma vez nesse capítulo, de
seu papel como “Sancho Pança dos lugares comuns” e “sicofanta” do
capital.
No prefácio à segunda edição alemã de O Capital, ao demonstrar a di-
ferença entre seu método dialético e o de Hegel (apesar de assumir o uso
proposital de uma linguagem hegeliana em partes do livro), Marx distin-
gue “o modo de exposição segundo sua forma, do modo de investigação”.
Segundo ele, “a investigação tem que se apropriar da matéria em seus
detalhes, analisar suas diferentes formas de desenvolvimento e rastrear
seu nexo interno. Somente depois de consumado tal trabalho é que se
pode expor adequadamente o movimento real.”26
No capítulo XXIII isso fica muito evidente. A parte final é apresenta-
da como “ilustração” da “lei geral, absoluta, da acumulação”, que como
vimos não é em absoluto a-histórica e, como todas as demais leis apresen-
tadas em O Capital, é uma lei de tendência (podendo, portanto, ser obsta-
da por diversas contratendências). No entanto, o que na exposição apare-
ce ao fim como ilustração por certo foi um ponto importante do percurso
investigativo, que permitiu a Marx chegar a algumas de suas conclusões.
Por isso, o capítulo revela que Marx não teria chegado a suas elabora-
ções mais sofisticadas sem ter passado tantos anos na British Library,
consultando compulsivamente não apenas a bibliografia econômica, mas
também toda e qualquer fonte primária que lhe caísse nas mãos. Em carta
a S. Meyer, datada de 30 de abril de 1867, quando havia acabado de
entregar os originais do Livro I ao seu editor, Marx afirma (em implícita
referência ao capítulo XXIII) que, “ao lado da exposição científica geral,
eu descrevo em grande detalhe, a partir de fontes até agora não utilizadas,
a condição do proletariado agrícola e industrial britânico durante os
últimos 20 anos, do mesmo modo para as condições irlandesas.”27
Revela também porque foi tão importante para Marx postergar ainda
mais a finalização de sua obra para observar melhor a dinâmica da crise
capitalista iniciada em 1866 e mencionada no texto, especialmente por
permitir-lhe desenvolver uma arguta análise (acompanhada de genuína
indignação) a respeito dos efeitos da crise sobre os trabalhadores, inclusi-
ve os de salários relativamente maiores.
26
Ibidem, p. 90. 27
Karl Marx & Frederick Engels, Selected Correspondence, Moscow, Progress,
1965, p. 185.
A LE I GERAL DA ACUMU LA ÇÃO CA PITAL IST A E AS RELA ÇÕES DE T R ABALHO… | 125
O capítulo ajuda na compreensão do “método” de Marx também por
outra razão. Vimos o quanto é importante a crítica de Marx à “lei univer-
sal da população” típica da economia política. A população foi justamen-
te o exemplo que Marx escolheu, alguns anos antes (1857-58), para
introduzir a explicação sobre o método que acreditava ser necessário para
entender a lógica do capital, na famosa Introdução dos manuscritos que
viriam a ser conhecidos como Grundrisse. Na famosa passagem, ressalta:
Parece ser correto começarmos pelo real e pelo concreto, pelo pressu-
posto efetivo e, portanto, no caso da economia, por exemplo, come-
çarmos pela população, que é o fundamento e o sujeito do ato social
de produção como um todo. Considerado de maneira mais rigorosa,
entretanto, isso se mostra falso. A população é uma abstração quando
deixo de fora, por exemplo, as classes das quais é constituída. Essas
classes, por sua vez, são uma palavra vazia se desconheço os elemen-
tos nos quais se baseiam. P. ex., trabalho assalariado, capital, etc. Es-
tes supõem troca, divisão do trabalho, preço, etc. O capital, p. ex., não
é nada sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem o
preço, etc. Por isso se eu começasse pela população, esta seria uma
representação caótica do todo e, por meio de uma determinação mais
precisa, chegaria analiticamente a conceitos cada vez mais simples; do
concreto representado [chegaria] a conceitos abstratos cada vez mais
finos, até que tivesse chegado às determinações mais simples. Daí te-
ria de dar início à viagem de retorno até que finalmente chegasse de
novo à população, mas desta vez não como a representação caótica de
um todo, mas como uma rica totalidade de muitas determinações e re-
lações.28
Mais do que a coincidência do exemplo da população, que nos Grun-
drisse também é utilizado para estabelecer a crítica ao método tradicional
da economia política, o capítulo XXIII ilustra o método de Marx justa-
mente por chegar (após a sua “viagem de retorno”) a uma síntese da
realidade histórica concreta – nesse caso a situação da classe trabalhadora
frente ao processo de acumulação capitalista. No caminho, Marx desen-
volveu um conjunto de abstrações teórico-conceituais – os processos de
concentração e centralização do capital, a lei geral da acumulação, as
formas da superpopulação relativa, etc. – que permitiu-lhe explicar a
dinâmica relacional de tal realidade material. A síntese intelectual, entre-
tanto, não é o ponto de partida, mas a forma de representação intelectual
da “rica totalidade de muitas determinações” que constitui a realidade
28
Karl Marx, Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços de crítica
da economia política, São Paulo, Boitempo/EdUFRJ, 2011, p. 54.
126 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
material. Assim, continuando a citação clássica: “O concreto é concreto
porque é a síntese de múltiplas determinações, portanto, unidade na
diversidade. Por essa razão, o concreto aparece no pensamento como pro-
cesso da síntese, como resultado, não como ponto de partida, não obstan-
te seja o ponto de partida efetivo.”29
II. Trabalho e trabalhadores do mundo hoje, à luz de Marx
Em 1950, apenas 30% da população mundial habitava as cidades. Em
2014, 54% do total de habitantes do mundo vivia nos centros urbanos.30
Tal mudança, aceleradíssima para os padrões históricos da vida humana
na Terra, indica uma intensificação absurda do processo de proletarização
nos últimos anos. Afinal, embora a conversão ao assalariamento cresça
também no campo, a principal razão da migração campo-cidade é a
expropriação completa daqueles que ainda encontravam meios de sobre-
viver principalmente do seu (e de sua família) trabalho agrícola, graças à
propriedade ou posse de pequenos lotes de terra.
A urbanização, como se sabe, é mais antiga e consolidada nos países
que viveram mais cedo o processo de industrialização, no hemisfério
norte, considerados mais “desenvolvidos”, e mais recente e “agressiva”
nos países do hemisfério sul, em que a industrialização é relativamente
tardia e a produção interna de riquezas é menor. Tal diferenciação é fun-
damental para explicar determinados padrões demográficos que se refle-
tem na composição da força de trabalho. No mundo como um todo, o per-
centual da força de trabalho (entendida como os empregados, desempre-
gados à procura de emprego e aqueles que procuram emprego pela pri-
meira vez; e excluídos os trabalhadores não pagos, o trabalho familiar e
os estudantes) no total da população, declinou de 52,1% em 1990 para
50,2% em 2011. Nos países que o Banco Mundial define como de “baixo
rendimento”, entretanto, o percentual da força de trabalho na população é
bem maior e houve um crescimento no mesmo período de 68,5% para
68,7%.31
Dados do Banco Mundial indicam que o número de pessoas emprega-
das no mundo cresceu no período recente. Eram 2.290.000.000 os postos
de trabalho ocupados em 2000 e 3.114.000.000 em 2013.32 Tal cresci-
29
Ibidem, p. 54. 30
Dados consultados em http://esa.un.org/unpd/wup/Highlights/WUP2014-
Highlights. pdf. Último acesso, julho de 2015. 31
Informações disponíveis em http://datatopics.worldbank.org/jobs/topic/
employment. Último acesso, julho de 2015. 32
Ver http://datatopics.worldbank.org/jobs/, consultado em julho de 2015.
A LE I GERAL DA ACUMU LA ÇÃO CA PITAL IST A E AS RELA ÇÕES DE T R ABALHO… | 127
mento, porém, é insuficiente para absorver todos os trabalhadores que
chegam anualmente ao mercado de trabalho em busca do primeiro em-
prego, 40 milhões por ano, segundo a Organização Internacional do Tra-
balho (OIT),33 além daqueles que estão desempregados.
Segundo o Banco Mundial, em 2013, como vimos, mais de 3 bilhões34
de pessoas eram empregadas, “mas a natureza de seus empregos varia
fortemente.” Dessas, 1,65 bilhões recebiam salários regulares, outros 1,5
bilhões trabalhavam na agricultura e em pequenas empresas familiares.
“A maioria dos trabalhadores nos países mais pobres estava vinculada a
esses tipos de trabalho”. Além de cerca de 200 milhões de desemprega-
dos, o relatório também aponta para o fato de que aproximadamente 2
bilhões de pessoas (uma parte desproporcional delas composta por jo-
vens) não estão mais procurando emprego.35
De acordo com um relatório da Organização Internacional do Traba-
lho, o total de desempregados no mundo, estimado em 201 milhões de
pessoas em 2014,36 era superior em 30 milhões ao total no início da nova
fase da crise capitalista em 2008. Mais revelador é o dado de que cerca de
50% do emprego no mundo é assalariado, mas em regiões como a África
Sub-Sahariana e o Sul Asiático, esse percentual cai para 20%. Além
disso, estimava-se em menos de 45% o total de assalariados regulares,
sendo quase 60% contratados em empregos temporários ou de tempo
parcial. Nem sempre são apresentadas muitas informações sobre a desi-
gualdade de gênero, que existe atravessando todas as dimensões do
mercado de trabalho, mas cabe ressaltar que entre esses trabalhadores
“precários” localizados pela OIT, as mulheres são maioria significativa.37
Por um lado, o relatório afirma que: “em resumo, o modelo do empre-
go padrão [estável e de tempo integral] é cada vez menos representativo
do mundo do trabalho atual, pois menos de um em cada quatro trabalha-
dores está empregado em condições correspondentes a esse modelo”. Por
outro lado, no que concerne à “produtividade” do trabalho, o mesmo
33
OIT, World employment and social outlook 2015: The changing nature of jobs,
Geneva: ILO, 2015, p. 13.
34 Bilhões = mil milhões segundo a norma portuguesa (bilião é um milhão de mi-
lhões segundo a mesma norma). Nota do revisor. 35
http://data.worldbank.org/topic/labor-and-social-protection, consultado em julho
de 2015. 36
Ver OIT, World employment and social outlook 2015: The changing nature of
jobs, Geneva: ILO, 2015, p. 13. Segundo o Banco Mundial, a taxa de desemprego
global em 2013 era de 6%. Ver http://data.worldbank.org/topic/labor-and-social-
protection, consultado em julho de 2015. 37
OIT, World employment, p. 13.
128 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
documento constata uma “crescente divergência entre os ganhos do traba-
lho e a produtividade, com a última crescendo mais rápido que os salários
na maior parte do mundo”.38
Essa rápida e um tanto caótica recuperação de informações sobre o
trabalho no mundo hoje pode ganhar maior riqueza de análise se sobre ela
refletirmos à luz de algumas abstrações teóricas apresentadas por Marx,
quem sabe apreendendo algumas das múltiplas determinações que com-
põem a realidade concreta do mundo do trabalho atual. Algumas refle-
xões desenvolvidas por outros autores a partir de Marx, podem também
nos ser úteis.
Em 2007 a população urbana do mundo ultrapassou a população rural
e o ritmo de urbanização continua em aceleração vertiginosa. Isso se
explica pelo contínuo processo de expropriações de trabalhadores agríco-
las, transformados em superpopulação relativa “latente”. Refletindo sobre
a configuração atual da lógica do capital – por ela tratada como “capital-
-imperialismo” – Virgínia Fontes destacou a especificidade do peso das
expropriações nessa configuração:
Menos, portanto, que um retorno a formas arcaicas, as novas expro-
priações (somadas à permanência das expropriações primárias) de-
monstram que, para a existência do capital e sua reprodução, é neces-
sário lançar permanentemente a população em condições críticas, de
intensa e exasperada disponibilidade ao mercado.39
Embora fazendo referência mais direta ao capítulo XXIV – sobre a
“assim chamada acumulação primitiva” –, a análise de Fontes é coerente
com todo a análise de O Capital, especialmente naqueles aspectos aqui
destacados a partir do capítulo sobre a “lei geral da acumulação”, como a
análise desenvolvida por Marx sobre a relação necessária entre acumula-
ção capitalista e ampliação do processo de proletarização. A chave de
leitura por ela apresentada, percebendo as novas massas de trabalhadoras
e trabalhadores expropriados como resultado da própria reprodução am-
pliada do capital, é distinta de outras perspectivas, que entendem como
uma novidade recente a realidade de ampliação das expropriações e de
generalização das modalidades de exploração do trabalho associadas à
ideia de precarização.
Diante de constatações, como a já citada da OIT, de que “o modelo do
emprego padrão [estável e de tempo integral] é cada vez menos represen-
tativo do mundo do trabalho atual”, diversas teses de larga circulação
38
Ibidem, p. 13 39
Virgínia Fontes, O Brasil e o capital imperialismo: teoria e história, Rio de
Janeiro, EdUFRJ/EPSJV, 2010, p. 47.
A LE I GERAL DA ACUMU LA ÇÃO CA PITAL IST A E AS RELA ÇÕES DE T R ABALHO… | 129
foram formuladas, nas últimas décadas, em direção a uma reinterpretação
do conceito e do papel da classe trabalhadora. Face às mudanças do
“padrão” de emprego, a partir do final dos anos 1970 surgiram diferentes
interpretações sobre um suposto declínio (ou mesmo fim) do trabalho
assalariado “típico” e da própria classe trabalhadora. Não cabe aqui uma
recuperação detalhada dessas teses, mas basta lembrar formulações como
as de André Gorz que, diante dos processos de automação em larga esca-
la, com declínio acentuado do emprego industrial em vários países de
desenvolvimento capitalista avançado, anunciaram o “adeus ao proletari-
ado”. Segundo Gorz, as novas tecnologias abririam a possibilidade de
uma redução do tempo de trabalho e da construção de uma sociabilidade
plena de significados fora do ambiente do trabalho. Os protagonistas de
uma mudança deste tipo, no entanto, não seriam os trabalhadores, mas
sim “a não classe dos não trabalhadores”.40
Com o passar do tempo foi ficando mais difícil sustentar expectativas
positivas no alcance e nas consequências do processo de reestruturação da
produção capitalista, de tal forma que perspectivas que associavam auto-
mação à redução da jornada do trabalho, fim da centralidade do trabalho
alienado na vida social e semelhantes caíram em descrédito. No entanto, a
ideia de que o capitalismo contemporâneo superava econômico-social-
mente a classe trabalhadora “tradicional” e soterrava qualquer expectativa
em seu papel como sujeito político manteve-se viva em novas formulações.
Como a que afirmou a centralidade de uma nova classe e/ou sujeito políti-
co-social na contemporaneidade, definida como o “precariado”.
Apesar de diferentes matrizes de uso do termo, um de seus mais influ-
entes difusores é Guy Standing, cujo livro mais importante nessa direção
é O precariado: a nova classe perigosa, publicado em 2011.41 Em sua
análise, Standing caracteriza o precariado a partir de um conjunto de inse-
guranças – em relação ao mercado de trabalho, emprego, carreira, condi-
ções de trabalho, rendimentos, aprimoramento profissional e representa-
ção coletiva – que o constituiriam como uma “classe em formação”, ainda
40
André Gorz, Adeus ao proletariado: para além do socialismo, Rio de Janeiro,
Forense Universitária, 1987, pp. 25-26. Apresentei de forma menos apressada e
debati com autores como Gorz e outros que caminharam em direção semelhante
(Robert Kurz e Clauss Offe, por exemplo) em diferentes textos. Destaco Marcelo
Badaró Mattos, E. P. Thompson e a tradição de crítica ativa do materialismo his-
tórico, Rio de Janeiro, Edufrj, 2012 (especialmente no segundo capítulo) e o capí-
tulo “Trabalho, classe trabalhadora e o debate sobre o sujeito histórico ontem e
hoje”, in Renake Neves (org.), Trabalho e emancipação, Rio de Janeiro, Conse-
quência, 2015. (Coleção Niep-Marx, volume I). 41
Guy Standing, The precariat: the new dangerous class, London, Bloomsbury,
2011.
130 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
carente de uma consciência coletiva que a permitisse atuar como “classe
para si”.42
O precariado é, por outro lado, definido fundamentalmente por uma
perspectiva contrastiva, ou seja, pela diferenciação com o que Standing
considera ser o proletariado/classe trabalhadora e com outras categorias
de estratificação social empregadas pelo autor, como a de “salariado”,
entendido como o setor mais estável e protegido por benefícios sociais
entre os assalariados (apresentados por ele como privilégios). Em suas
palavras:
O precariado tem características de classe. É constituído por pessoas
que têm relações de confiança mínimas com o capital ou o Estado,
tornando-o bastante diferente do salariado. E não tem nenhuma das
relações de contrato social do proletariado, em que seguranças traba-
lhistas foram fornecidos em troca de subordinação e lealdade contin-
gente, o acordo não-escrito subjacente aos Estados de bem-estar. Sem
um pacto de confiança ou segurança, em troca de subordinação, o pre-
cariado é distinto em termos de classe. Ele também tem uma posição
de status peculiar, ao não se encaixar perfeitamente nem nas posições
de status mais elevado dos quadros profissionais, nem tampouco na-
quelas das ocupações de classe média qualificada. Uma forma de ex-
pressá-lo é dizer que o precariado tem um “status truncado”. E, como
veremos, a sua estrutura de “rendimento social” não o aproxima per-
feitamente das velhas noções de classe ou ocupação.43
Para além de eventuais críticas à forma como combina matrizes distin-
tas de entendimento do conceito de classe social para apresentar sua
“nova classe”, o problema maior com essa forma de apreensão do quadro
atual me parece residir nas bases da comparação que permitem a Standing
dizer que o precariado é uma “classe distinta” do proletariado.44 Ou seja,
em sua análise, a definição de proletariado – ou classe trabalhadora – está
diretamente associada à “relação de emprego padrão”: contrato estável,
situação próxima ao pleno emprego e garantias de direitos sociais. Acon-
tece que, embora Standing pareça reconhecer em algumas passagens que
42
Ibidem, idem, pp. 7 e 10. 43
Ibidem, idem, p. 8. 44
Para uma análise que faz uso da categoria “precariado”, mas não sustenta a ideia
de que seja uma “classe distinta”, ver Ruy Braga, A política do precariado: do
populismo à hegemonia lulista, São Paulo, Boitempo, 2012. Para Braga, o precari-
ado é “a fração mais mal paga e explorada do proletariado urbano e dos trabalha-
dores agrícolas”, que se diferencia tanto dos “setores profissionais”, mais qualifi-
cados e melhor remunerados da classe trabalhadora, quanto da população
pauperizada e do lumpemproletariado. (p. 96)
A LE I GERAL DA ACUMU LA ÇÃO CA PITAL IST A E AS RELA ÇÕES DE T R ABALHO… | 131
esse modelo vigorou apenas na Europa do pós-guerra, sua análise tende a
ignorar que a “relação de emprego padrão” sob condições capitalistas foi
uma “anomalia histórica”, como define com propriedade Marcel van der
Linden em uma análise que coloca o quadro atual em perspectiva históri-
ca de longa duração e numa mirada não eurocêntrica.45 Uma “anomalia”
restrita no tempo ao período das três décadas que se seguiram ao fim da
2.ª Guerra, confinada no espaço a um grupo de países que viveu o desen-
volvimento capitalista avançado no Norte do Globo e, mesmo nessas
áreas, restrita aos trabalhadores do sexo masculino.46
Vimos que, no século XIX, vivido e estudado por Marx, o emprego
precário representava o padrão. A situação excepcional de alguns países
de desenvolvimento capitalista avançado no pós-guerra decorreu de
condições historicamente específicas da luta de classes, no período que se
seguiu à revolução socialista de 1917 na Rússia. Não se generalizou
jamais pelo mundo todo. Em alguma medida, aliás, só foi possível por
conta das “trocas desiguais” características da dinâmica imperialista. E
tão logo uma nova dinâmica de crise capitalista se instaurou nos anos
1970, tal excepcionalidade começou a ser erodida, processo que se acele-
rou após a derrubada dos regimes do “socialismo realmente existente” do
Leste europeu, a partir de 1989. Uma derrocada precedida, também é
importante destacar, por derrotas importantes de movimentos de resistên-
cia dos trabalhadores organizados do Norte ao ataque às suas conquistas
no plano do “bem estar social” (como o ilustram as derrotas de várias
greves paradigmáticas como as dos controladores aéreos nos EUA, em
1981, e dos mineiros de carvão na Grã-Bretanha, em 1984-1985).
Em um ensaio crítico em relação ao trabalho de Standing e de outras
análises do precariado como “nova classe”, Brian Palmer apresenta uma
caracterização do proletariado que valoriza a expropriação/despossessão.
Em diapasão semelhante ao de Fontes, Palmer apresenta a expropriação –
mais que a condição no mercado de trabalho, a formalização e o setor
econômico do emprego, a renda, ou mesmo a relação salarial – como o
45
Marcel van der Linden, “San Precario: a new inspiration for labor historians”,
Labor: Studies in Working-Class History of the Americas, Volume 11, Issue 1,
2014, p. 19. 46
O predomínio da precariedade em relação à força de trabalho feminino, mesmo
européia nos “anos gloriosos” do pós-guerra, é mencionado por Van der Linden no
artigo citado, e é objeto do estudo de caso sobre as trabalhadoras italianas desen-
volvido por Eloisa Betti, Gender and Precarious Labor in a Historical Perspective.
Italian Women and Precarious Work Between Fordism and Post Fordism, in S.
Mosoetsa, C. Tilly, J. Stillermann (eds.), Precarious Labor in Global Perspective,
Special Issue, International Labor and Working Class History, 89, Spring 2016,
pp. 64-83.
132 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
elemento constante de uma classe que foi desde sempre caracterizada
pela heterogeneidade e precariedade. Segundo ele:
Classe sempre incorporou diferenciação, insegurança e precariedade.
Assim como a precariedade é historicamente inseparável da formação
da classe, existem, invariavelmente, diferenciações que aparentemente
separam aqueles com acesso a empregos estáveis e pagamentos segu-
ros daqueles que precisam se virar para conseguir trabalho e acesso ao
salário. Expropriação, então, é uma experiência altamente heterogê-
nea, já que nenhum indivíduo pode se tornar despossuído precisamen-
te da mesma forma que outro, ou viver esse processo de alienação ma-
terial exatamente como outro o faria. Ainda assim, a despossessão em
geral define a proletarização. É a metafórica marca de Caim estampa-
da em todos os trabalhadores, independentemente do nível de empre-
go, frequência de pagamento, status, condição de assalariado ou grau
de ausência de assalariamento47
.
Palmer cita diretamente análises e passagens do capítulo XXIII para
afirmar que a “despossessão, então, é a base de toda proletarização, a qual
ordena a acumulação”.48 Uma outra análise recente sobre o capitalismo
contemporâneo que procura explicar a dinâmica de precarização das
relações laborais em escala planetária à luz das elaborações do mesmo
capítulo, combinada a uma reflexão sobre o imperialismo, é a de John
Foster e Robert McChesney. Em seu estudo sobre a crise capitalista, mais
especificamente em um capítulo sobre “o exército global de reserva e o
novo imperialismo”, procuram analisar a dinâmica atual da relação entre
expansão do capital multinacional e a “grande mudança global do empre-
go”, com a expansão do trabalho para o mercado no Sul do Globo, em
comparação com a percepção de seu relativo encolhimento ao Norte.49
Segundo esses dois autores, a expansão da força de trabalho global
disponível para o capital nas últimas décadas é resultado, principalmente,
de dois processos:
(1) a descampezinação de uma larga porção da periferia global através
do agronegócio – removendo camponeses da terra, com a consequente
expansão da população das favelas urbanas; e (2) a integração da força
47
Bryan Palmer, “Reconsiderations of class: precariousness as proletarianization”, in
Leo Panitch, Greg Albo & Vivek Chibber (eds) Socialist Register 2014: register-
ing class. London, Merlin Press, 2013, p. 49. 48
Ibidem, idem, p. 47. 49
John Foster & Robert McChesney, The endless crisis: how monopoly-finance
capital produces stagnation and upheaval from the USA to China, New York,
Monthly Review Press, 2012.
A LE I GERAL DA ACUMU LA ÇÃO CA PITAL IST A E AS RELA ÇÕES DE T R ABALHO… | 133
de trabalho dos países do antigo “socialismo realmente existente” à
economia mundial capitalista.50
Apresentando dados que mostram como a participação do Sul global
no total do emprego industrial cresceu dramaticamente de 51% em 1980
para 73% em 2008, os autores tentam explicar a correlação entre a con-
centração do controle corporativo do mercado e dos lucros pelo grande
capital com os “salários abissalmente baixos e a crônica insuficiência de
emprego produtivo” na base do sistema. Seu argumento central, que de-
senvolvem através do arsenal conceitual disponibilizado por Marx – cha-
mando atenção para as indicações de Marx de que sua análise ali desen-
volvida para a Grã-Bretanha poderia ser expandida a um nível mundial,
combinada à preocupação marxista com as trocas desiguais –, é o seguinte:
a chave para o entendimento dessas mudanças no sistema imperialista
(para além da análise das corporacões multinacionais em si (…) é en-
contrada no crescimento do exército global de reserva (…). Nao ape-
nas o crescimento da força de trabalho capitalista global (incluindo o
exército de reserva disponível) alterou radicalmente a posição do tra-
balho do terceiro mundo, mas ele também teve um efeito no trabalho
das economias mais ricas, onde os níveis salariais estão estagnados ou
declinantes por essa e outras razões. Em todo lugar as corporações
multinacionais foram capazes de aplicar uma política de dividir-e-
-dominar, alterando as posições relativas do trabalho e do capital
mundialmente.51
III. Considerações finais
Por certo que a análise de Foster e McChesney, tomando por base a
chamada “lei geral da acumulação”, é um outro ponto de apoio excelente
para avaliarmos os dados antes apresentados sobre a dinâmica global do
emprego e desemprego. O recurso às observações de Marx no capítulo do
capital aqui privilegiado também nos permite explicar de forma mais
satisfatória o aparente descompasso apontado pela OIT através da consta-
tação de uma “crescente divergência entre os ganhos do trabalho e a
produtividade, com a última crescendo mais rápido que os salários na
maior parte do mundo”. Mais que um descompasso, essa é a própria
lógica sistêmica da acumulação capitalista que Marx explica naquele
momento de sua obra.
50
Ibidem, p. 127. 51
Ibidem, p. 129.
134 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
Afinal, conforme destacamos anteriormente, a análise de Marx no ca-
pítulo XXIII permite discernir melhor a contraditória dinâmica através da
qual a acumulação capitalista depende sempre de um processo de inces-
sante transformação de grupos humanos em massas proletarizadas, embo-
ra tenda a gerar uma superpolução relativa também crescente, assim
como um pauperismo (absoluto e/ou relativo) que agrava a chamada
“questão social”.
Porém, a partir de uma perspectiva eurocêntrica, muitas análises to-
mam como regra na definição da classe trabalhadora aquilo que foi a
exceção: as “relações de emprego padrão” vigentes para uma minoria de
países e de trabalhadores (homens) no período dos trinta “anos gloriosos”
do pós-guerra. Com base em definição tão restritiva, decretaram sua
morte e planejaram sua substituição por outros sujeitos. Mais interessan-
te, e este é um dos pontos centrais que estamos defendendo neste texto, é
perceber que aquela “anomalia histórica” em sociedades capitalistas
(retomando a expressão de Van der Linden) só foi possível pela ação das
lutas sociais de altíssimo impacto da classe trabalhadora, operando como
“contratendências” – “múltiplas circunstâncias” – político-sociais à “lei
geral da acumulação”, para resgatar a expressão de Marx ao esclarecer o
sentido histórico e o caráter contraditório dessa, como das demais, “lei”
do capital. A rica demonstração de Marx para o fato de que as formas da
superpopulação relativa não são exteriores à classe trabalhadora, mas sim
parte constitutiva da sua própria “existência” como classe, não foi supera-
da pelos caçadores de “novos sujeitos”.
Poderíamos recorrer à análise da “lei geral” de Marx também para dis-
cutir outros problemas da atual configuração das relações entre trabalho e
capital, como por exemplo o das condições de vida dos trabalhadores. Por
certo, os dados sobre pobreza, fome e favelização, entre tantos outros
sobre as condições de existência do proletariado no mundo atual, desper-
tam tanta revolta quanto despertaram em Marx os registros da sua época e
podem ser, ainda hoje, iluminados pelas análises e “ilustrações” que ele
apresentou a respeito da classe trabalhadora britânica nos anos 1840 a
1860. Tal exercício, entretanto, fugiria aos limites deste texto. Fica aqui
como registro e, quem sabe, projeto.
ROBÔS E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL:
UTOPIA OU DISTOPIA
Michael Roberts*
1.ª parte
Recentemente escrevi um texto1 sobre o novo livro de Paul Mason, Pós-
-Capitalismo2, em que se defende que a Internet, a automação, os robôs e a
inteligência artificial estão a criar uma nova economia, impossível de
controlar pelos meandros do capitalismo. Segundo Mason, estão em campo
novas forças, que, paulatinamente, substituem a velha luta de classes entre
o capital e o proletariado, tal como Marx a descreveu, por um sistema de
comunidades em rede. Em conjunto, tecnologia e rede conduzir-nos-ão a
uma sociedade pós-capitalista (socialista?), sem freio à vista.
Discordei da premissa de que as novas tecnologias acabariam por
substituir as “velhas formas” de luta de classes. Mas também, já agora, da
ideia de que as crises económicas regulares e recorrentes no capitalismo
acabarão por dissipar-se num cenário de alta produtividade e horários de
trabalho reduzidos, num contexto de “definhamento” do capitalismo.
Mas o debate incentivou-me a olhar para algo que já há algum tempo
queria abordar. Nomeadamente, quais as implicações de facto destas
* Michael Roberts é economista, autor de The Next Recession. Marxism and the
Global Crisis of Capitalism (Haymarket books, 2016), autor do blogue https://
thenextrecession.wordpress.com/. Tradução: Mariana Avelãs para Projecto “Histó-
ria, Saúde e Organização Política e Sindical do Trabalho Portuário em Portugal na
época contemporânea” (Coord: Raquel Varela), FCSH/UNL – Observatório para as
Condições de Vida/Sindicato dos Estivadores, Trabalhadores do Tráfego e Confe-
rentes Marítimos do Centro e Sul de Portugal. http://www.fcsh.unl.pt/ocv/. 1 https://thenextrecession.wordpress.com/2015/07/21/paul-mason-and-postcapitalism-
utopian-or-scientific/ 2 Foi traduzido: https://www.wook.pt/livro/pos-capitalismo-paul-mason/17436032.
136 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
novas tecnologias para o capitalismo. Mais concretamente, estão os robôs
e a inteligência artificial destinados a tomar de assalto o mundo do traba-
lho, e, por conseguinte, a economia, nas próximas gerações, e o que é que
isso significa em termos de empregos e qualidade de vida para as pes-
soas? Será uma utopia socialista (o fim da labuta humana e uma socieda-
de harmoniosa e superabundante) ou uma distopia capitalista (crises mais
intensas e mais conflitos de classe)?
É uma questão importante. Comecemos por apresentar algumas defi-
nições. Por robôs, entendo máquinas que possam substituir a mão-de-obra
humana através de programas informáticos que dirigem o movimento de
partes da máquina de forma a executar tarefas, das mais simples às mais
complexas.
A Federação Internacional de Robótica (FIR) considera robô industrial
qualquer máquina que possa ser programada para executar tarefas físicas
relacionadas com a produção sem necessidade de um controlador huma-
no. Os robôs industriais aumentam drasticamente o campo em que é
possível substituir o trabalho humano, em comparação com as máquinas
mais antigas, uma vez que reduzem a necessidade da intervenção humana
nos processos automatizados. As aplicações mais típicas de robôs indus-
triais incluem a montagem, dosagem, processamento (por exemplo,
cortes) e soldadura – todos predominantes na indústria transformadora –,
para além das colheitas (na agricultura) e da inspeção de equipamento e
estruturas (habitual em centrais elétricas).
A robótica industrial tem o potencial de mudar a transformação, pelo
aumento da precisão e da produtividade, sem assumir custos mais eleva-
dos. A impressão em 3D pode dar origem a um novo ecossistema de
empresas de objetos que possam ser impressos, tornando os produtos do
quotidiano infinitamente personalizáveis. A chamada “Internet das Coi-
sas” oferece a possibilidade de ligar máquinas e equipamento entre e a
várias redes, permitindo que as instâncias de transformação sejam plena-
mente monitorizadas e accionadas remotamente. Nos cuidados de saúde e
ciências da vida, as decisões baseadas em dados – que permitem a anga-
riação e análise de grandes conjuntos de dados – já estão a produzir
alterações em termos de I&D, cuidados clínicos, prognósticos e marke-
ting. A utilização de grandes volumes de dados na saúde tornou possíveis
novos tratamentos e medicamentos altamente personalizados. O ramo das
infraestruturas, que não registou qualquer avanço ao nível da produtivi-
dade laboral nos últimos vinte anos, poderia conhecer francos progressos,
graças, por exemplo, à criação de Sistemas de Transporte Inteligentes3,
3 https://bankunderground.co.uk/2015/06/19/driverless-cars-insurers-cannot-be-
-asleep-atthe-wheel/
ROBÔS E INTEL I GÊNCIA ART IF IC I A L : UTOPIA OU D ISTOPIA | 137
que aumentariam substancialmente a utilização dos recursos; à introdução
de redes inteligentes, úteis para ajudar a poupar nos custos associados às
infraestruturas elétricas e reduzir a incidência de interrupções de forneci-
mento, sempre tão dispendiosas; e a uma gestão eficiente da procura, que
poderia reduzir drasticamente a utilização energética per capita.
Entre as tecnologias emergentes, onde é que é expectável que se regis-
tem os maiores avanços em termos de contribuição para o aumento de
produtividade? Para o McKinsey Global Institute (MGI) (2013)4, as
“tecnologias que importam” são as que têm maior potencial para produ-
zir impacto e rupturas económicas na próxima década. Fazem parte desta
lista as que progridem mais rapidamente (por exemplo, as ligadas à
sequenciação dos genes); as que têm um amplo alcance (por exemplo, a
Internet móvel); as que têm o potencial para gerar impacto económico
(por exemplo, a robótica avançada) e produzir alterações ao nível do
status quo (por exemplo, a tecnologia de armazenamento de energia). O
MGI calcula que o impacto económico destas tecnologias – causado por
quedas nos preços, difusão generalizada e uma maior eficácia – rondará
um valor entre os 14 e os 33 triliões de dólares por ano em 2025. No topo
da lista estão a Internet móvel, a automação do trabalho intelectual, a
Internet das Coisas e a tecnologia cloud.
Num ensaio brilhante5, John Lanchester resumiu assim a questão:
os computadores tornaram-se incrivelmente mais poderosos, e tão ba-
ratos que, na prática, são ubíquos, e o mesmo pode dizer-se dos sen-
sores que utilizam para monitorizar o mundo físico. O software que
correm também conheceu desenvolvimentos espantosos. Brynjolfsson
e McAfee sustentam que estamos à beira de uma nova revolução in-
dustrial, cujo impacto no mundo igualará o da primeira. Categorias de
trabalho inteiras serão transformadas pelo poder da computação, e, em
particular, pelo impacto dos robôs.
Quando falamos de inteligência artificial (IA), referimo-nos a máqui-
nas que não se limitam a executar instruções pré-programadas, mas que
aprendem novos programas e instruções pela experiência e exposição a
novas situações. Na prática, a IA implica que os robôs que aprendem
aumentam a sua própria inteligência – ao ponto de poderem ser os pró-
prios robôs a produzir mais robôs, cada vez mais inteligentes. Aliás, há
quem diga que, não tarda, a IA vai suplantar a inteligência dos seres
humanos. A isto chama-se “singularidade” – o momento em que os seres
4 http://www.mckinsey.com/business-functions/business-technology/our-insights/
disruptive-technologies 5 http://www.lrb.co.uk/v37/n05/john-lanchester/the-robôs-are-coming
138 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
humanos deixam de ser os entes mais inteligentes no planeta. Além do
mais, é possível que os robôs acabem por desenvolver a forma e os senti-
dos dos seres humanos, tornando-se, desse modo, “sencientes”.
Mas antes de entrar na ciência (ou será ficção científica?), vamos co-
meçar pelo princípio. Se os robôs e a IA vão longe, e depressa, significará
isso uma imensa destruição de empregos ou, em alternativa, novos seto-
res de empregabilidade e a necessidade de trabalhar menos horas?
Num trabalho recente, Graetz e Michaels6 analisaram 14 indústrias
(sobretudo transformadoras, mas também nos ramos da agricultura e dos
serviços públicos) em 17 países desenvolvidos (incluindo países euro-
peus, a Austrália, a Coreia do Sul e os EUA). Concluíram que os robôs
industriais aumentam a produtividade laboral, a produtividade total dos
fatores e os salários; no entanto, embora não tenham registado qualquer
efeito significativo no total de horas trabalhadas, existem provas de que o
emprego dos trabalhadores com qualificações mais baixas seria negativa-
mente afetado, assim como, ainda que em menor escala, os dos trabalha-
dores com qualificações médias. O artigo está disponível para leitura na
íntegra7.
Em suma, os robôs não reduziram a labuta (as horas de trabalho) de
quem tinha trabalho – antes pelo contrário. Mas levaram, de facto, a uma
redução de empregos entre os menos qualificados, afetando até mesmo
quem tinha algumas qualificações. Ou seja: mais horas de trabalho, em
vez de menos horas de trabalho, e mais desemprego.
Dois economistas de Oxford, Carl Benedikt e Michael Osborne8, olha-
ram para o impacto expectável das alterações tecnológicas numa gama
abrangente de 702 atividades profissionais, desde podólogos a guias
turísticos, passando por treinadores de animais, conselheiros económicos
individuais e envernizadores. Chegaram a conclusões assustadoras:
Segundo as nossas previsões, cerca de 47 por cento do emprego nos
EUA está em risco. Apresentaremos provas de como os salários e os
graus de instrução estabelecem uma forte relação negativa com a pro-
babilidade de informatizacao de uma dada profissao… Em vez de re-
duzir a procura de ocupações de média remuneração – que tem sido o
padrão das últimas décadas –, o nosso modelo estima que, num futuro
próximo, a informatização tenderá a substituir principalmente em-
pregos que requerem poucas qualificações e pagam salários baixos.
6 http://voxeu.org/article/robôs-productivity-and-jobs
7 http://cepr.org/active/publications/discussion_papers/dp.php?dpno=10477
8 http://www.oxfordmartin.ox.ac.uk/downloads/academic/The_Future_of_
Employment.pdf
ROBÔS E INTEL I GÊNCIA ART IF IC I A L : UTOPIA OU D ISTOPIA | 139
Em contraste, as profissões que exigem mais qualificações e oferecem
melhores salários são as menos vulneráveis ao capital informático.
Lanchester resume assim as conclusões a que chegaram: “ou seja, os
pobres serão afetados, os do meio terão uma vida ligeiramente melhor,
em comparação com a presente, e os ricos – surpresa! – continuam fe-
lizes da vida”.
No mesmo ensaio, Lanchester chama a atenção para o facto de o
mundo robótico poder dar origem, não a uma utopia “pós-capitalista”,
mas antes a um “mundo de Piketty”, “em que o capital acentua cada vez
mais o triunfo sobre o trabalho”. E cita, a propósito, os lucros tremendos
obtidos pelas grandes empresas tecnológicas:
Em 1960, a empresa mais rentável na maior economia do mundo era a
General Motors. Em valores atuais, a GM ganhou 7,6 biliões de dóla-
res nesse ano. Além disso, empregava 600 mil pessoas. Hoje, a em-
presa mais rentável emprega 92 600. Ou seja: outrora, 600 mil traba-
lhadores geravam 7,6 biliões de dólares, ao passo que, hoje em dia,
92,600 trabalhadores geram 89,9 biliões. Estamos a falar de um au-
mento de produtividade na casa de 76,65 vezes mais por cada tra-
balhador. Convém não esquecer que tudo isto é lucro puro para os do-
nos da empresa, já depois de os pagamentos aos trabalhadores terem
sido processados. Não se trata apenas de o capital estar a ganhar ao
trabalho: a questão é que já não há sequer disputa. Se fosse um com-
bate de boxe, o árbitro já tinha mandado parar a luta.
Porém, olhar para o lucro das empresas que se apoderam do valor cri-
ado pelo trabalho nos novos setores não é necessariamente um indicador
para a saúde integral do capital. Estará o capitalismo, no seu todo, a ter
um novo sopro de vida? Ao fim e ao cabo, o aumento global do investi-
mento é muito baixo no atual cenário de depressão de longa duração,
assim como o concomitante aumento da produtividade. A propósito,
podem ler os meus artigos sobre produtividade e investimento9.
Os robôs não resolvem as contradições inerentes à acumulação capita-
lista, cuja essência se resume assim: para aumentar os lucros e acumular
mais capital, os capitalistas desejam introduzir máquinas que possam au-
mentar a produtividade de cada trabalhador e reduzir os custos em compara-
ção com a competição. É este o grande papel revolucionário do capitalismo
no desenvolvimento das forças de produção ativas na sociedade.
Mas existe aqui uma contradição. Ao tentar aumentar a produtividade
laboral através da introdução de tecnologia, gera-se um processo de
9 https://thenextrecession.wordpress.com/2015/08/08/the-great-productivity-
slowdown/
140 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
redução de postos de trabalho, ou seja, as novas tecnologias substituem o
trabalho. E mais produtividade pode gerar mais produção e abrir novos
setores de empregabilidade, o que poderia compensar essa diminuição.
Mas ao longo do tempo, a perspetiva capitalista da redução de postos de
trabalho é que se cria menos valor novo (já que o trabalho é a única forma
de valor) em relação ao custo do capital investido. Existe, portanto, uma
tendência para que a rentabilidade decaia com o aumento da produtivida-
de. Por outro lado, essa situação poderá mesmo levar a uma crise de
produção suficientemente grande para neutralizar – ou mesmo inverter –
os ganhos de produção gerados pelas novas tecnologias. E isto simples-
mente porque, no nosso modo moderno de produção, o investimento e a
produção dependem da rentabilidade do capital.
Portanto, uma economia capitalista cada vez mais dominada pela In-
ternet das Coisas e por robôs implicará crises mais intensas e mais desi-
gualdades, e não qualquer tipo de superabundância ou prosperidade. No
meu próximo artigo, discutirei se um mundo em que robôs constroem
robôs cada vez mais inteligentes – talvez sem qualquer intervenção
laboral humana – significa o fim da lei do valor e das crises recorrentes
do capitalismo.
2.ª parte
No meu primeiro artigo10 sobre robôs e IA abordei o impacto destas
novas tecnologias no futuro do emprego e da produtividade. Chamei a
atenção para a contradição que se gera no seio do modo de produção
capitalista entre o aumento da produtividade alcançado graças às novas
tecnologias e a diminuição da rentabilidade.
Nesta segunda parte proponho olhar para o impacto dos robôs e da IA
pelo prisma da lei do valor no capitalismo, enunciada por Marx. Marx
assume duas premissas-chave para explicar as leis de movimento no
âmbito do capitalismo: 1) que apenas o trabalho humano gera valor e 2)
que, ao longo do tempo, o investimento dos capitalistas em tecnologia e
meios de produção suplantará o investimento em força de trabalho huma-
na. Recorrendo à terminologia de Marx, registar-se-á um aumento na
composição orgânica do capital ao longo dos tempos.
Não temos aqui espaço para apresentar as provas empíricas da última
afirmação, mas podem encontrá-las no livro Crises and Marx Law, de G.
Carchedi11. Em O Capital, Marx explica detalhadamente que a crescente
10
https://thenextrecession.wordpress.com/2015/08/23/robôs-and-ai-utopia-or-
dystopia-part-one/ 11
(crisis and the law for BOOK1-1)
ROBÔS E INTEL I GÊNCIA ART IF IC I A L : UTOPIA OU D ISTOPIA | 141
composição orgânica do capital é uma das principais caraterísticas da
acumulação capitalista. No sistema capitalista, o investimento tem como
único propósito o lucro, e não propriamente aumentar a produção ou a
produtividade. Se não for possível obter lucro suficiente através de mais
horas de trabalho (i.e., mais trabalhadores a trabalhar mais tempo) ou
pelas tentativas de intensificação (velocidade e eficiência – tempo e
movimento), então a produtividade do trabalho (mais valor por hora de
trabalho) só pode ser alcançada através de melhor tecnologia. Por outras
palavras, na terminologia marxista, a composição orgânica do capital (a
quantidade de máquinas e fábricas relativamente ao número de trabalha-
dores) vai aumentar secularmente. Os trabalhadores podem lutar por ficar
com a maior parcela possível do novo valor que criaram, como parte da
sua “compensação”, mas o capitalismo só vai investir no crescimento se
essa componente salarial não crescer ao ponto de causar um declínio na
rentabilidade. Ou seja, a acumulação capitalista implica uma quebra da
parcela laboral ao longo do tempo, ou o que Marx denominaria de uma
taxa crescente de exploração (ou mais-valia).
O “pendor capitalista” da tecnologia é algo continuamente ignorado
pela economia tradicional. Mas, como Branco Milanovic12 assinalou, até
a teoria económica mais ortodoxa incluiria este processo secular na
acumulação capitalista. Nas suas próprias palavras:
Em Marx, a premissa é a de que os processos com mais capital inten-
sivo são sempre mais produtivos. Por isso, os capitalistas tendem,
simplesmente, a acumular mais e mais capital e a substituir o trabalho
(…) o que, num quadro marxista, significa que existem cada vez me-
nos trabalhadores que, obviamente, produzem cada vez menos mais-
-valia (absoluta) e este menor valor acrescentado sobre uma massa
maior de capital significa que a taxa de lucro cai. (…)
O resultado é idêntico se colocarmos este processo marxista num con-
texto neoclássico e assumirmos que a elasticidade da substituição é
inferior a 1. O que acontece é, simplesmente, que r cai a pique a cada
ronda sucessiva de investimento em capital intensivo, até chegar prati-
camente a zero. Como escreve Marx, todos os capitalistas individuais
têm interesse em investir em mais processos de capital intensivo, de
modo a conseguir preços inferiores aos dos outros capitalistas; porém,
quando todos fazem a mesma coisa, a taxa de lucro também desce
universalmente. Ou seja, em última análise, todos se dedicam a invia-
bilizar a sua própria atividade (mais rigorosamente, dedicam-se a
prosseguir uma taxa de lucro nula)
12
http://glineq.blogspot.pt/2015/04/the-rule-of-robôs-in-stiglitz-and-marx.html
142 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
Em seguida, Milanovic aborda a tecnologia da robótica:
A receita líquida, no equilíbrio marxista, será baixa, porque apenas o
trabalho gera “novo valor” e, uma vez que serão empregues muito
poucos trabalhadores, esse “novo valor” será baixo (independente-
mente de quão intensos os esforços dos capitalistas para acrescentar
mais-valias). Para visualizar o equilíbrio marxista, imaginem milhares
de robôs a trabalhar numa grande fábrica, com apenas um trabalhador
a controlá-los; assumamos um ano como duração da vida útil dos
robôs, o que faz que seja preciso substituí-los continuamente, incor-
rendo em enormes custos anuais de depreciação e reinvestimento. A
composição do PIB seria deveras interessante: se o total do PIB fosse
100, teríamos consumo = 5, investimento líquido = 5, e depreciação =
90. Seria possível viver num país com um PIB per capita de 500 mil
dólares, dos quais 450 mil corresponderiam a uma depreciação.
É esta a principal contradição inerente à produção capitalista: aumen-
tos de produtividade causam quedas na rentabilidade, que, periodicamen-
te, interrompem o crescimento da produção e da produtividade. Mas o
que é que isso implica, se pensarmos num futuro extremo (ficção científi-
ca?), em que, graças à tecnologia robótica e à IA, são os robôs a fazer
robôs? E a extrair matérias-primas e a fazer tudo e mais alguma coisa? E
a executar todos os serviços, públicos e pessoais, de modo a que o traba-
lho humano deixe de ser necessário em qualquer tipo de produção?
Imaginemos um processo completamente automatizado, em cuja pro-
dução não existem humanos. Foi acrescentado valor, uma vez que as
matérias-primas foram convertidas em mercadorias sem envolvimento
humano, certo? E isso refuta a tese de Marx de que apenas o trabalho
humano pode criar valor, certo?
Há aqui uma grande confusão em torno da dupla natureza do valor no
capitalismo, ou seja, o valor de uso e o valor de troca. Existe valor de uso
(coisas e serviços de que as pessoas necessitam) e valor de troca (o valor
medido em tempo de trabalho humano, apropriado pelos detentores do
capital e concretizado através da venda nos mercados). No modo de produ-
ção capitalista, qualquer mercadoria contém um valor de uso e um valor de
troca, e é impossível ter um sem o outro. Mas é o último que regula os
processos de investimento e produção capitalistas, não o primeiro.
O valor (tal como já foi definido) é específico do capitalismo. Claro
está, o trabalho vivo pode criar coisas e prestar serviços (valores de uso);
mas o valor é a essência do modo capitalista de produção. O capital (ou
os donos dele) controla os meios de produção criados pelo trabalho e só
os colocará a uso para apropriar-se do valor criado por mais trabalho. O
capital, em si mesmo, não produz valor.
ROBÔS E INTEL I GÊNCIA ART IF IC I A L : UTOPIA OU D ISTOPIA | 143
Porém, no nosso hipotético e abrangente mundo de robôs e IA, a pro-
dutividade (de valores de uso) tenderia para o infinito e a rentabilidade
(valor acrescentado ao valor do capital) para zero. O trabalho humano já
não seria utilizado e explorado pelo capital (os seus donos). Em vez
disso, seriam os robôs a fazer tudo. Já não estamos a falar de capitalismo.
Acho que a analogia mais próxima seria com a economia esclavagista da
Roma antiga.
Na Roma antiga, ao longo de centenas de anos, a economia anterior-
mente dominada pelo pequeno campesinato foi sendo substituída por
escravos na extração mineira, na agricultura, e em todo o tipo de tarefas.
Tal só foi possível porque os espólios das guerras vitoriosas conduzidas
pela república e pelo império romano incluíam um fornecimento maciço de
mão-de-obra escrava. O custo desses escravos para os donos era incrivel-
mente baixo (para começar), quando comparado com os associados a
contratar trabalho livre. Os donos de escravos forçavam os agricultores a
abandonar as suas terras, através de um misto de exigências relacionadas
com dívidas, requisições para a guerra e violência pura. Os antigos campo-
neses, e as respetivas famílias, viam-se obrigados a tornar-se, eles mesmos,
escravos, ou a emigrar para as cidades, onde mal conseguiam sobreviver à
custa de trabalhos e tarefas menores ou da mendicidade. A luta de classes
não acabou – passou a ser entre os aristocratas donos de escravos e os
escravos e entre os aristocratas e a plebe atomizada nas cidades.
Há um filme recente que aborda esta ficção científica moderna – o
Elysium. No filme, os donos dos robôs e da tecnologia moderna construí-
ram para si todo um planeta no espaço, separado da Terra, onde vivem
uma vida de luxo à custa das coisas e serviços disponibilizados pelos
robôs, e defendem esta vida segregada através de exércitos de robôs. O
resto da raça humana continua a viver na Terra, numa pobreza extrema,
rodeados por doença e abjecção – a redução à miséria da classe operária,
que já não trabalha para subsistir.
No mundo do Elysium, a questão mantém-se: quem detém os meios de
produção? Num planeta completamente automatizado, como seriam os
bens e serviços produzidos pelos robôs distribuídos para serem consumi-
dos? Tal dependeria de quem fosse o dono dos robôs – os meios de produ-
ção. Imaginem que, no tal planeta mantido pelos robôs, há 100 sortudos, e
um deles é dono dos melhores robôs e consegue apropriar-se de toda a
produção. Porque haveria de partilhá-la com os outros 99? Esses acabarão
por ser recambiados para a Terra. Ou podem não estar pelos ajustes e lutar
pela apropriação de alguns dos robôs. E assim, como chegou a dizer Marx,
é a mesma merda toda de novo, mas com uma diferença.
Ao fim e ao cabo, tudo dependeria do modo como a humanidade pas-
sasse a ser uma sociedade completamente automatizada. No contexto de
144 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
uma revolução socialista e propriedade comum, a distribuição do resulta-
do da produção dos robôs pode ser controlada – a cada um/a, de acordo
com as suas necessidades. Mas se a sociedade funcionar na base da
continuação da propriedade privada dos robôs, nesse caso, a luta de
classes pelo controlo das mais-valias mantém-se.
A questão que muita vez se levanta nesta altura é: a quem é que os do-
nos dos robôs vão vender os seus produtos e serviços para obter lucro? Se
os trabalhadores não trabalham nem recebem qualquer rendimento, então
é garantido que existirá sobreprodução e subconsumo a grande escala,
certo? Ou seja, em última análise, será o subconsumo das massas a derru-
bar o capitalismo?
Mais uma vez, acho que se trata de um mal-entendido. Uma sociedade
robótica deste tipo já não é capitalista; é mais como uma economia escla-
vagista. Os donos dos meios de produção (os robôs) detêm agora uma
economia superabundante em coisas e serviços a custo zero (robôs que
fazem robôs que fazem robôs). E podem limitar-se a consumir. Não
precisam de “fazer lucro”, tal como os aristocratas donos de escravos de
Roma se limitavam a consumir, e não orientavam os seus negócios para o
lucro. Não estaríamos perante uma crise de sobreprodução no sentido
capitalista (relacionado com os lucros), nem de “subconsumo” (falta de
poder de compra ou de procura efetiva de bens nos mercados), exceto no
sentido físico da pobreza.
A economia tradicional continua a olhar para o crescimento dos robôs
no sistema capitalista como a génese de uma crise de subconsumo. Jeffrey
Sachs13 enquadra assim a questão: “Onde é que eu vejo o problema
genérico para toda a sociedade se os seres humanos forem despedidos a
uma escala industrial (fala-se de 47 por cento nos EUA)? Aqui: onde é
que está o mercado para os bens?” Por seu lado, Martin Ford14 afirma que
“não há maneira de prever como poderá o setor privado resolver este
problema. Pura e simplesmente, não há alternativa exceto o Governo
garantir algum mecanismo que garanta rendimento aos consumidores.”
Ford não propõe o socialismo, claro está, mas apenas um mecanismo para
redirecionar os salários perdidos de volta para os “consumidores”; só que
tal esquema acabaria por ameaçar a propriedade e a rentabilidade privadas.
Uma economia robótica poderia significar um mundo de superabun-
dância para todos (é o que Paul Mason sugere em Pós-Capitalismo15). Ou
13
http://prospect.org/article/how-live-happily-robôs 14
http://www.npr.org/sections/alltechconsidered/2015/05/18/407648886/attention-
white-collar-workers-the-robôs-are-coming-for-your-jobs. 15
https://thenextrecession.wordpress.com/2015/07/21/paul-mason-and-postcapitalism-
utopian-or-scientific/
ROBÔS E INTEL I GÊNCIA ART IF IC I A L : UTOPIA OU D ISTOPIA | 145
apenas um Elysium. O colunista do Financial Times Martin Wolf16 colo-
cou a coisa nestes termos:
A ascensão das máquinas inteligentes é um momento histórico. Impli-
cará muitas mudanças, incluindo ao nível económico. Mas o potencial
é claro: tornarão possível aos seres humanos viver vidas muito melho-
res. Se acabará por ser assim ou não depende do modo como os ga-
nhos são produzidos e distribuídos. É possível que o resultado final
seja uma pequena minoria de grandes vencedores e uma grande quan-
tidade de perdedores. Mas tal desfecho seria uma escolha, não um fa-
do. Não é necessária uma forma de tecnofeudalismo; bem vistas as
coisas, a tecnologia em si não dita destino algum – ao contrário das
instituições económicas e políticas. Se as que temos não produzem os
resultados que desejamos, temos de mudá-las.
É uma “escolha” social, ou, para sermos mais rigorosos, depende do
resultado da luta de classes no capitalismo.
John Lanchester17 vai muito mais direto ao assunto:
Também vale a pena referir o que não está a ser dito acerca deste futu-
ro robotizado. O cenário que estão a descrever-nos – aquele que é su-
posto aceitarmos como inevitável – é o de uma distopia hipercapita-
lista. Há o capital, a sair-se melhor do que nunca; os robôs, a fazer o
trabalho todo; e a grande massa da humanidade, que não faz grande
coisa, mas diverte-se a brincar com as geringoncas… Existe uma al-
ternativa plausível, em que a posse e o controlo dos robôs estão desli-
gados do capital, na sua forma atual. Os robôs libertam a maioria da
humanidade do trabalho, e toda a gente beneficia com o resultado: não
temos de trabalhar em fábricas ou descer às minas ou limpar casas de
banho ou conduzir camiões de longa distância, mas podemos fazer co-
reografias, dedicar-nos à costura ou à jardinagem e contar histórias e
inventar coisas e pensar em como criar um novo universo de desejos.
Este seria o mundo de desejos ilimitados descrito pela economia, mas
distinguindo os desejos satisfeitos pelos humanos do trabalho feito pe-
las nossas máquinas. Parece-me que a única maneira de esse mundo
funcionar é com formas alternativas de propriedade. O motivo, o úni-
co motivo para pensar que este mundo melhor é possível é que o futu-
16
http://www.ft.com/cms/s/e1046e2e-8aae-11e3-9465-00144feab7de,Authorised=
false.html?siteedition=intl&_i_location=http%3A%2F%2Fwww.ft.com%2Fcms%
2Fs%2F0%2Fe1046e2e-8aae-11e3-9465-00144feab7de.html%3Fsiteedition%3
Dintl&_i_referer=&classification=conditional_standard&iab=barrier-
-app#axzz4J20Hpzsd 17
http://www.lrb.co.uk/v37/n05/john-lanchester/the-robôs-are-coming
146 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
ro distópico do capitalismo-mais-robôs pode acabar por revelar-se
demasiado sinistro para ser politicamente viável. Este futuro alternati-
vo seria o tipo de mundo sonhado por William Morris, cheio de seres
humanos empenhados em trabalhos com significado e com remunera-
ções sãs. Só que com robôs. Não deixa de ser significativo em relação
ao atual momento que, quando estamos perante um futuro que tanto
pode vir a assemelhar-se a uma distopia hipercapitalista ou a um para-
íso socialista, a segunda opção não seja sequer mencionada.
Mas regressemos ao aqui e agora. Se o mundo inteiro da tecnologia,
produtos de consumo e serviços pudesse reproduzir-se sem a força de
trabalho viva ter de trabalhar e pudesse fazê-lo através de robôs, então as
coisas e os serviços continuariam a ser produzidos, mas sem criação de
valor (nomeadamente, o lucro ou mais-valias). Segundo Martin Ford,
“quanto mais as máquinas se gerirem a elas mesmas, mais entra em
declínio o valor que o trabalhador médio acrescenta”. Assim sendo, a
acumulação capitalista deixaria de existir muito antes de os robôs toma-
rem conta de tudo, porque a rentabilidade desapareceria sob o peso do
“pendor capitalista”.
A mais importante lei do movimento no capitalismo, como Marx lhe
chamou, entraria em ação: a tendência para a queda da taxa de lucro.
Com o aumento da tecnologia “de pendor capitalista”, a composição
orgânica do capital também aumenta, pelo que o trabalho acaba, por fim,
por gerar um valor insuficiente para garantir a rentabilidade (ie., as mais-
-valias relativas aos custos do capital). Jamais chegaríamos a uma socie-
dade robótica; jamais chegaríamos a uma sociedade sem trabalho, pelo
menos no capitalismo. Haveria crises e explosões sociais muito antes.
E esse é que é o ponto fulcral. Vamos lá ter calma com a economia
dos robôs. No próximo (e último) artigo sobre o assunto, abordarei a
realidade do futuro dos robôs e da IA sob a égide do capitalismo.
3.ª parte
Este é o terceiro e último texto sobre a questão dos robôs e da inteli-
gência artificial (IA). No primeiro texto18 argumentei que, embora os
robôs e a IA sejam, de facto, um passo em frente em termos de mecani-
zação e automatização, não vão resolver a contradição básica inerente ao
modo de produção capitalista, nomeadamente a que existe entre os impul-
sos para aumentar, por um lado, a produção e, por outro, a rentabilidade
do trabalho. Tal como afirmei,
18
https://thenextrecession.wordpress.com/2015/08/23/robôs-and-ai-utopia-or-
dystopia-part-one/
ROBÔS E INTEL I GÊNCIA ART IF IC I A L : UTOPIA OU D ISTOPIA | 147
ao longo do tempo, a perspetiva capitalista da redução de postos de
trabalho é que se cria menos valor novo (já que o trabalho é a única
forma de valor) em relação ao custo do capital investido. Existe, por-
tanto, uma tendência para que a rentabilidade decaia com o aumento
da produtividade. Por outro lado, essa situação poderá mesmo levar a
uma crise de produção suficientemente grande para neutralizar – ou
mesmo inverter – os ganhos de produção gerados pelas novas tecnolo-
gias. E isto simplesmente porque, no nosso modo moderno de produ-
ção, o investimento e a produção dependem da rentabilidade do capital.
No segundo texto19 olhei com mais atenção para o modo como a lei do
valor, que domina o modo de produção capitalista – orientado para o
lucro – seria afetada pela possibilidade hipotética (ou real) de uma econo-
mia totalmente automatizada, sem qualquer recurso a força de trabalho
humana.
No nosso hipotético e abrangente mundo de robôs e IA, a produtivida-
de (de valores de uso) tenderia para o infinito e a rentabilidade (valor
acrescentado ao valor do capital) para zero. O trabalho humano já não
seria utilizado e explorado pelo capital (os seus donos). Em vez disso,
seriam os robôs a fazer tudo. Já não estamos a falar de capitalismo.
Mas acrescentei que, antes de este estado de exceção (como é denomi-
nado) ser atingido, o capitalismo, enquanto sistema, já teria ruído.
Jamais chegaríamos a uma sociedade robótica; jamais chegaríamos a
uma sociedade sem trabalho – pelo menos no capitalismo. Haveria
crises e explosões sociais muito antes (…) a acumulacao capitalista
deixaria de existir muito antes de os robôs tomarem conta de tudo,
porque a rentabilidade desapareceria sob o peso do “pendor capitalista”.
Nesta terceira parte quero abordar a questão da plausibilidade de um
mundo laboral (e talvez o mundo em si) dominado por robôs altamente
inteligentes, num futuro próximo. Sou da opinião de que, malgrado todo
o otimismo dos impulsionadores dos robôs e da IA, tal não vai acontecer
tão cedo.
Mas não deixa de ser verdade, ainda assim, que o mundo dos robôs
está a crescer, e muito depressa. Na última década, o nível de utilização
da robótica praticamente duplicou nas economias capitalistas de topo. O
Japão e a Coreia são quem tem mais robôs por operário – mais de trezen-
tos para 10 mil trabalhadores. Segue-se a Alemanha, com mais de 250
19
https://thenextrecession.wordpress.com/2015/08/29/robôs-and-ai-utopia-or-
dystopia-part-two/
148 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
por cada dez mil trabalhadores. Os Estados Unidos dispõem de metade
dos robôs por dez mil trabalhadores em comparação com o Japão e a
República da Coreia. Neste período, a taxa de adoção de robôs aumentou
40% no Brasil, 210% na China, 11% na Alemanha, 57% na República da
Coreia, e 41% nos EUA.
Tamanha evolução até já foi descrita como uma “segunda vaga de au-
tomação” – centrada na cognição artificial, sensores baratos, aprendiza-
gem de máquinas, inteligência distribuída. Esta automação profunda irá
atingir todos os setores, desde o trabalho manual ao do conhecimento. E
já está a afetar negativamente o emprego, tal como a mecanização nas
revoluções industriais anteriores.
Andrew McAfee, co-autor, com o seu colega do MIT Erik Brynjolfsson,
de The Second Machine Age, foi uma das personalidades mais destacadas
a descrever a possibilidade de uma “economia de ficção científica”, em
que a proliferação de máquinas inteligentes elimina a necessidade de
muitos postos de trabalho (ver a “Carta Aberta sobre a Economia Digi-
tal”20, na qual McAfee, Brynjolfsson e outros propõem uma nova aborda-
gem para a adaptação às mudanças tecnológicas). Tal transformação
traria imensos benefícios sociais e económicos, afirma, mas também
poderia implicar uma economia de “trabalho ligeiro”.
Por sua vez, Hod Lipson21 afirma que “Há cada vez mais automação
guiada por computador a infiltrar-se em tudo e mais alguma coisa, desde
a produção à tomada de decisões”. O destacado economista da Universi-
dade de Columbia Jeffrey Sachs previu recentemente que a Starbucks
seria em breve tomada por robôs e pela automação.22 Mas existem bons
motivos para acreditar que Sachs e os outros possam estar enganados. O
sucesso da Starbucks nunca teve a ver com servir café de forma mais
barata ou eficiente; e, geralmente, os consumidores preferem as pessoas e
os serviços prestados por humanos. Olhemos para as tão populares lojas
da Apple, sugere Tim O’Reilly, fundador da O’Reilly Media: recheadas
de inúmeros funcionários munidos de Ipads e iPhones, são uma alternati-
va credível a um futuro de retalho robotizado. Afinal, talvez os serviços
automatizados não sejam, necessariamente, o fim do caminho para a
tecnologia dos nossos dias. “É verdade que a tecnologia acabará por
destruir alguns tipos de emprego”, reconhece O’Reilly. “Mas podemos
sempre fazer escolhas em relação ao modo como a usamos.”
E quão próximos estamos, na verdade, de uma situação em que são
robôs dotados de inteligência artificial a fazer o trabalho humano? Os
20
https://www.technologyreview.com/s/538091/open-letter-on-the-digital-economy/ 21
http://www.hodlipson.com 22
https://www.youtube.com/watch?v=w8pEgvzJ7p4
ROBÔS E INTEL I GÊNCIA ART IF IC I A L : UTOPIA OU D ISTOPIA | 149
investigadores da área salientam que as tarefas mais simples para os
humanos, tais como meter a mão no bolso para tirar uma moeda, são as
mais difíceis para as máquinas. Por exemplo, o robô Roomba23
, da iRobot,
é autónomo, mas a tarefa de aspiração que efetua enquanto se desloca
entre divisões é extraordinariamente simples. Pelo contrário, o Packbot24,
da mesma empresa, é mais caro, foi concebido para desativar bombas,
mas tem de ser teleoperado, ou controlado através de sistemas wireless,
por seres humanos.
A Defense Advanced Research Projects Agency25 [Agência para Pro-
jetos de Investigação Avançada na Defesa], um instituto de investigação
do Pentágono, organizou a competição Robotics Challenge, em Pomona,
na Califórnia, com um prémio de dois milhões de dólares em dinheiro
para o robô que se saísse melhor numa série de tarefas ligadas ao salva-
mento em menos de uma hora. No concurso anterior26, realizado na
Florida em dezembro de 2013, os robôs, que só se aguentavam em pé
graças a correntes, foram insuportavelmente lentos a terminar tarefas
como abrir portas e entrar em divisões, limpar lixo, subir escadas e con-
duzir em pistas de obstáculos (e tiveram de ser instalados nos veículos
por supervisores humanos). Os jornalistas que cobriram o evento recorre-
ram a analogias como “ver a tinta a secar” ou “assistir à erva a crescer”.
Desta vez, os robôs tinham uma hora para completar um conjunto de
oito tarefas, que provavelmente levariam a um humano menos de dez
minutos. E, mesmo assim, falharam em muitas delas. Alguns eram bípe-
des, outros tinham quatro pernas, rodas, ou ambos, mas nenhum era
autónomo. Controlados por operadores humanos, através de redes sem
fios, demonstraram ser completamente incapazes sem a ajuda dos super-
visores humanos. Na verdade, poucos foram os avanços na área da “cog-
nição”, os processos mais “humanos” de alto nível necessários para que
um robô consiga planificar e ter verdadeira autonomia. Por conseguinte,
muitos investigadores começaram a pensar numa alternativa: criar con-
juntos formados por humanos e robôs, numa abordagem que descrevem
como de co-robôs ou “robótica em nuvem27“.
23
http://www.nytimes.com/video/technology/personaltech/100000002663490/
roomba-880-a-clean-sweep.html 24
http://www.nytimes.com/2015/05/07/technology/robotica-navy-tests-limits-
autonomy.html?_r=0 25
http://www.darpa.mil/default.aspx 26
http://www.nytimes.com/2013/12/23/science/japanese-team-dominates-
competition-to-create-rescue-robôs.html?ref=topics 27
http://bits.blogs.nytimes.com/2014/10/25/the-robot-in-the-cloud-a-conversation-
with-ken-goldberg/
150 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
Portanto, ainda há muito caminho pela frente. David Graeber enumerou
outros obstáculos à adoção célere de robôs dotados de inteligência artifici-
al, autónomos e completamente automatizados, nomeadamente o próprio
sistema capitalista.28 O financiamento de novas tecnologias não tem o
propósito de suprir as necessidades das pessoas ou reduzir o trabalho árduo
dos seres humanos: limita-se a incidir no que aumenta a rentabilidade. “Há
muito, muito tempo”, afirmou, “quando as pessoas imaginavam o futuro,
pensavam em carros voadores, dispositivos de teletransporte e robôs que as
libertassem da necessidade de trabalhar. Porém, por estranho que pareça,
nenhuma destas coisas se tornou realidade.”
O que aconteceu, de facto, foi que os industriais não aplicaram os fun-
dos de investigação na criação das fábricas robotizadas que toda a gente
antecipava nos anos 60, mas na deslocalização das fábricas para instala-
ções de trabalho intensivo de baixa tecnologia, na China ou no mundo
globalizado. E os governos desviaram fundos para a investigação militar,
projetos de armamento, investigação nas tecnologias de comunicação e
vigilância, ou outras questões do mesmo tipo, sempre relacionadas com a
segurança.
Um dos motivos para ainda não termos fábricas de robôs é o facto de
95% dos fundos de investigação em robótica terem sido canalizados
através do Pentágono, que está mais interessado em desenvolver dro-
nes não tripulados do que em automatizar fábricas de papel.
William Nordhaus, do Departamento de Economia da Universidade de
Yale, tentou calcular o futuro impacto económico da inteligência artificial
e dos robôs (SSRN-id265825929). E considera que o “estado de exceção”
e o respetivo impacto ainda estão muito longe. Os consumidores podem
adorar os seus iPhones, mais não conseguem comer um produto electróni-
co. Do mesmo modo, pelo menos com as tecnologias de hoje em dia, a
produção requer matéria-prima (“coisas”) escassa, na forma de trabalho,
energia e recursos naturais (assim como informação para a maioria dos
bens e serviços). Nordhaus afirma que, de acordo com projeções baseadas
nas tendências da última década, ou mais, levaria cerca de um século até
que as variáveis de crescimento atingissem os níveis associados a um
estado de excepção causado pelo crescimento.
Nordhaus aborda ainda a questão dos robôs fora de controlo – isto é,
controlando o mundo inteiro, incluindo nós.
28
http://thebaffler.com/salvos/of-flying-cars-and-the-declining-rate-of-profit 29
https://thenextrecession.files.wordpress.com/2015/09/ssrn-id2658259.pdf
ROBÔS E INTEL I GÊNCIA ART IF IC I A L : UTOPIA OU D ISTOPIA | 151
O desenvolvimento da superinteligência levanta uma nova preocupa-
ção, nunca antes contemplada quando do desenvolvimento da espio-
nagem e armamento militares. Deveremos preocupar-nos porque à lista
de adversários serão acrescentadas as próprias máquinas superinteli-
gentes (…) e as superinteligências vão fazer-nos o que os meninos
travessos fazem às moscas?
Ou seja, há uma categoria laboral de humanos que não será facilmente
eliminada: a que se ocupa da defesa dos nossos interesses perante o poder
global da IA:
Gastamos, sistematicamente, cinco por cento da nossa produção na
defesa, e este número pode aumentar em grande escala se formos con-
frontados com inimigos mais potentes, como máquinas superinteli-
gentes. Portanto, há pelo menos uma profissão que sobrevirá na Era da
Exceção.
Tentemos não atirar o bebé pela janela com a água do banho. O que
queremos são avanços tecnológicos que vão ao encontro das necessidades
das pessoas, para ajudar a combater a pobreza e criar uma sociedade de
superabundância sem prejudicar o ambiente e a ecologia do planeta. Se a
IA e a tecnologia robótica nos deixarem mais próximos desse objetivo,
ótimo.
Mas o principal obstáculo a uma sociedade de superabundância e har-
monia, assente em robôs que reduzem o trabalho humano ao mínimo, é o
capital. No relatório Future of Work30 [O Futuro do Trabalho] do ano
passado, a UKCES propôs uma série de cenários, que incluíam tanto a
possibilidade de um longo período de estagnação como um salto produti-
vo impulsionado pela tecnologia. Porém, todos os cenários tinham algo
em comum: para aqueles que não têm altas qualificações, conhecimentos
bem colocados ou riqueza herdada, o futuro prevê-se extremamente
sombrio. O Economist conclui, no final de uma peça de grandes dimen-
sões31 sobre tecnologia e trabalho, publicada no ano passado:
A sociedade pode dar por si a enfrentar um duro teste, se, como parece
plausível, o conhecimento e a inovação trouxerem imensos benefícios
para os mais qualificados, restando aos outros apenas a hipótese de
agarrar as oportunidades, cada vez mais escassas, de emprego a troco
de salários estagnados.
30
https://www.gov.uk/government/publications/jobs-and-skills-in-2030 31
http://www.economist.com/news/briefing/21594264-previous-technological-
innovation-has-always-delivered-more-long-run-employment-not-less?fsrc=
scn/tw/te/pe/ed/
152 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
Ou, na formulação de John Naughton32, “uma economia de conveniên-
cia, [com] legiões de servos coordenados em rede”.
Enquanto os meios de produção (que incluirão robôs) estiverem na
posse de uns quantos, os benefícios de uma sociedade de robôs estarão
confinados a esses poucos. Quem quer que sejam os donos do capital,
serão eles os beneficiados, quando os robôs e a IA, inevitavelmente,
substituírem muitos empregos. E se se mantiver a tendência das últimas
décadas, e as vantagens das novas tecnologias só forem sentidas pelos
mais ricos, então as visões mais distópicas tornar-se-ão realidade. Volto a
citar John Lanchester33:
Parece-me que a única maneira de esse mundo funcionar é com for-
mas alternativas de propriedade. O motivo, o único motivo para pen-
sar que este mundo melhor é possível é que o futuro distópico do capi-
talismo-mais-robôs pode acabar por revelar-se demasiado sinistro para
ser politicamente viável. Este futuro alternativo seria o tipo de mundo
sonhado por William Morris, cheio de seres humanos empenhados em
trabalhos com significado e com remunerações sãs. Só que com robôs.
Não deixa de ser significativo em relação ao atual momento que,
quando estamos perante um futuro que tanto pode vir a assemelhar-se
a uma distopia hipercapitalista ou a um paraíso socialista, a segunda
opção não seja sequer mencionada.
Resta-me, então, resumir as conclusões dos meus artigos sobre robôs e
IA.
• As novas tecnologias dos robôs e da IA aproximam-se a passos lar-
gos. Como toda a tecnologia no capitalismo, tem um “pendor capita-
lista”, e substituirá trabalho humano. Mas, sob o capitalismo, esse
pendor capitalista é aplicado para reduzir custos e aumentar a renta-
bilidade, e não para suprir as necessidades das pessoas.
• Os robôs e a IA intensificarão a contradição no seio do capitalismo
entre o impulso dos capitalistas para aumentar a produtividade do
trabalho através da “mecanização” (robôs) e a tendência subsequen-
te para que a rentabilidade deste investimento para donos do capital
diminua. Esta é a mais importante lei de Marx na economia política
– e torna-se ainda mais relevante no mundo dos robôs. De facto, o
maior obstáculo à existência de um mundo de superabundância é o
próprio capital. Muito antes de chegarmos à “exceção” (se é que al-
32
https://www.theguardian.com/commentisfree/2014/dec/28/uber-amazon-tech-
concierge-economy 33
http://www.lrb.co.uk/v37/n05/john-lanchester/the-robôs-are-coming
ROBÔS E INTEL I GÊNCIA ART IF IC I A L : UTOPIA OU D ISTOPIA | 153
guma vez lá chegaremos) e o trabalho humano ser completamente
substituído, o capitalismo atravessará uma série de crises económi-
cas causadas por mão humana, cada vez mais profundas.
• A tecnologia robótica irá reduzir muitos dos empregos existentes (e
criar alguns novos). É o que já está a acontecer. Mas o estado de ex-
ceção e o mundo dos robôs ainda estão muito, muito longe. E isto
porque a tecnologia da IA não está a ser direcionada pelo capital pa-
ra as áreas mais produtivas, mas para as mais rentáveis (são coisas
diferentes). E os custos associados a “controlar” robôs dotados de
IA aumentarão.
• Uma sociedade superabundante, em que o trabalho humano esteja
reduzido ao mínimo e a pobreza eliminada, não acontecerá a menos
que a posse dos meios de produção deixe de estar sob controlo pri-
vado (oligarquia capitalista) e passe a ser comum (socialismo demo-
crático). É, no fundo, a escolha entre a utopia e a distopia.
CONSCIÊNCIA OPERÁRIA
E ACUMULAÇÃO CAPITALISTA
Maria Augusta Tavares*
Este artigo tem como objeto o aburguesamento do proletariado. Podia
ter sido publicado há pelo menos duas décadas, quando as transformações
decorrentes da última reestruturação produtiva do capital, ao invés de
fomentar a luta dos trabalhadores por direitos, deixaram-nos impactados,
defensivos e amedrontados em face do poder da microeletrônica, cuja
aplicação aos processos produtivos e à gestão do trabalho não deixavam
dúvidas sobre o desemprego.
Do desemprego à generalização do trabalho precário – manual ou inte-
lectual –, a sociedade caminhou a passos largos. Seria plausível que os
trabalhadores estivessem a lutar, no mínimo, pela manutenção dos direi-
tos conquistados. Contudo, o discurso liberal advogado pelo Estado e
materializado nas relações capitalistas tem sido assumido pela maioria
dos trabalhadores1. Não fosse assim, a legitimidade do capitalismo estaria
em risco. Mas não é o que a realidade demonstra.
Neste trabalho, tentaremos compreender por que, embora as formas de
existência na sociedade capitalista sejam tão desumanas para o trabalha-
dor, este, em vez de agir de forma proletária, assume – não raro – o
método de luta burguês.
A crise do taylorismo-fordismo acentuou de forma perversa a existên-
cia e a oposição entre as classes sociais. O mundo do trabalho é vítima
* Professora reformada da Universidade Federal da Paraíba, investigadora integrada
ao Instituto de História Contemporânea da FCSH da Universidade Nova de Lisboa.
1 Todos os indivíduos que, conforme o pensamento marxista, são trabalhadores
produtivos, trabalhadores improdutivos e também aqueles cujo trabalho não está
diretamente vinculado à dinâmica da acumulação, mas são subordinados às deter-
minações do mercado.
156 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
em todos os aspectos: na intensificação do trabalho, na redução dos
salários diretos e indiretos, na diminuição do emprego, nos trabalhos de
tempo parcial e temporários, nas jornadas de trabalho desregulamentadas,
nos trabalhos sem vínculo empregatício que se traduzem em novos mo-
dos de informalidade, no desemprego e nas diferentes formas de trabalho
precarizado.
Entretanto, por um lado, os defensores do capital preferem interpretar
esse quadro caótico como o fim da sociedade do trabalho e o consequente
desaparecimento das classes sociais, e, por outro, os neo-social-democra-
tas encorajam o proletariado a apoiar a realização de um projeto que
configura um compromisso entre capital e trabalho, minimamente capaz
de obter alguns objetivos parciais e imediatos, mas que põe em risco o
movimento operário, porquanto retarda ainda mais a revolução. Para ser
breve, sugerem alternativas à ordem burguesa dentro dos seus próprios
limites.
A esse respeito, a análise de Marx permanece válida:
O caráter peculiar da social-democracia consiste em exigir instituições
democrático-republicanas, não como meio para abolir ao mesmo tem-
po os dois extremos, capital e trabalho assalariado, mas para atenuar o
seu antagonismo e convertê-lo em harmonia (Marx, 1984, p. 55).
É preocupante que os partidos social-democratas, para onde conver-
gem tantas representações dos trabalhadores, estejam há décadas iludindo
a si próprios e aos seus eleitores no sentido de fazer crer que são capazes
de “no devido tempo” instituir uma reforma estrutural do capital, através
de legislação parlamentar.
Ora, não é difícil perceber que as mudanças tecnológicas não apenas
intensificam a oposição capital/trabalho, como também a competição
intraclasse, uma vez que a luta por emprego contribui para um individua-
lismo exacerbado – perfeitamente compreensível se observado como
decorrente da imediata necessidade de sobrevivência do trabalhador.
Entretanto, os problemas aos quais o trabalhador é submetido obscurecem
a totalidade e o conduzem a negar parte do sistema, sem, no entanto,
conseguir ultrapassá-lo.
As objetivações das suas relações sociais afetam a tal ponto a sua sub-
jetividade, que ele não consegue vislumbrar a verdadeira saída para além
do que lhe parece ser conhecido. A experiência tende a constatar que as
“mudanças” vivenciadas só têm penalizado cada vez mais o trabalhador,
contribuindo para que o desconhecido seja amedrontador. Logo, em lugar
de agir de forma proletária, ele é conduzido a lutar para se manter en-
quanto mercadoria. Em outras palavras, luta para não ser excluído da
sociabilidade capitalista, realizada tão somente através da troca. Não lhe
CONSCIÊN CIA OPERÁRIA E A CUM ULAÇ Ã O CAPITAL ISTA | 157
ocorre que as estruturas econômicas capitalistas, embora modificadas,
não modificam seu conteúdo, sua essência, seu objetivo.
O sistema de capital é um modo de controle sociometabólico incon-
trolavelmente voltado para a expansão. Dada a determinação mais in-
terna de sua natureza, as funções políticas e reprodutivas devem estar
radicalmente separadas (gerando assim o Estado moderno como a es-
trutura de alienação por excelência), exatamente como a produção e o
controle devem estar radicalmente isolados (Mészáros, 2002, p. 131).
Dada essa natureza, de nada adiantam as reformas. O capitalismo só
pode ser substituído por uma alternativa social metabólica igualmente
universalizante, segundo o mesmo autor.
No que nos interessa, aqui e agora, importa perceber essa permanente
tensão entre o interesse imediato e o objetivo final, entre o momento
isolado e a totalidade, a dificuldade que tem o sujeito de situar-se na sua
classe social, de fazer a passagem da classe-em-si até a classe-para-si.
“Proletários de todos os países, uni-vos!”
É indiscutível a atualidade deste chamamento marxista. Trazê-lo para
o século XXI implica mediações que revelem os reais significados dos
novos contextos econômicos e políticos da sociedade burguesa. Antes
disso, porém, vale explicar por que fazer essa discussão à luz do Mani-
festo Comunista. Afinal, não seria falso dizer que se trata apenas de um
programa político e é comum que tais documentos expressem um conteú-
do utópico, sem possibilidade de realização. Mas esse não é o caso. No
Manifesto “há três níveis constitutivos, distintos ainda que imbricados: a
perspectiva de classe, a análise teórica e a proposta política” (Netto,
1998, p. XLVI). As medidas políticas propostas por Marx e Engels deri-
varam de uma análise teórico-social que continha a possibilidade de
realização. Embora não fossem operários, sua perspectiva sócio-histórica
expressa o ponto de vista da classe operária. O Manifesto “apresenta pela
primeira vez, um projeto sócio-político explícita e organicamente inte-
grado a uma perspectiva de classe e nela embasado” (Idem, p. XX). Tal
perspectiva promove uma ruptura:
A ruptura marx-engelsiana se opera porque, para além daquela adesão,
a sua elaboração teórica reproduzia idealmente os processos constitu-
tivos e constituintes da situação de classe do proletariado: a teoria cu-
jos fundamentos estavam lançando era a expressão ideal do movi-
mento social real – a posição de classe do proletariado que refigurava
teoricamente apenas condensava as tendências estruturais da dinâmica
158 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
social. A adesão de Marx e Engels ao movimento operário, assim, era
mais que uma opção política: era um imperativo da sua concepção
teórica (Marx; Engels, 1998, pp. XXVII-XXVIII).
Claro que a elaboração da perspectiva de classe não resulta simples-
mente da sua existência histórico-concreta, mas de uma correta com-
preensão das condições da produção material e da posição consciente
do proletário enquanto sujeito revolucionário. Netto (1998) atenta para
propostas socialistas utópicas que antecederam o Manifesto, das quais
não se podia inferir o protagonismo da classe proletária. Com isso,
demonstra que possibilidades não implicam necessariamente realiza-
ção, que é preciso vontade política para dirigir as tendências que estão
no movimento histórico. Nas suas palavras, “a passagem de uma pos-
sibilidade à efetividade demanda a complexa intervenção da atividade
organizada dos homens” (Idem, ibidem, p. XXXVI).
O Manifesto, ainda segundo Netto (Idem), é responsável pela elabora-
ção e explicitação dessa autoconsciência e dessa consciente perspectiva
de classe, constituindo-se no documento fundador do projeto comunista.
Nesse sentido, sem a pretensão de que “ele responda às nossas questões,
tais como a nossa contemporaneidade as formula” (Idem, ibidem,
p. LXVI), cabe, inicialmente, verificar como se constitui o proletariado
da atualidade, tendo em vista as profundas mudanças em curso no mundo
do trabalho.
O sujeito revolucionário contemporâneo não se restringe mais ao ope-
rariado industrial – em permanente redução. Tal sujeito, hoje, é tão diver-
sificado e complexificado, que se torna quase impossível defini-lo numa
palavra ou numa única expressão. São empregados, terceirizados, subem-
pregados, precarizados, desempregados, conjunto disforme constitutivo
do proletariado pós-fordista, que levou Antunes (1998) a identificá-los
como classe-dos-que-vivem-do-trabalho.
As estratégias flexibilizadoras – alternativa burguesa à rigidez fordista –
, além de promoverem o desemprego em massa, provocam o surgimento
de diferentes modalidades de exploração do trabalho. Entre essas, chama
atenção uma tendência à informalidade com características novas2, cujas
2 A informalidade, sob o regime de acumulação flexível, assume formas que tornam
analiticamente insuficientes as teorias existentes: a) não tem mais o caráter de
clandestinidade; b) não se restringe às atividades que são desdenhadas pelo capital
por não serem bastante lucrativas; c) não ocupa apenas interstícios. Na verdade, o
que antes era permitido agora é incentivado, estimulado, liberando, assim, empresá-
rios da relação de assalariamento e, consequentemente, dos custos sociais decorren-
tes do vínculo empregatício; d) tais atividades são cada vez mais integradas, mais
subordinadas e mais funcionais ao capital; e) certamente, contribuem – não sabe-
mos em que medida – para a expansão e a acumulação do capital (Tavares, 2004).
CONSCIÊN CIA OPERÁRIA E A CUM ULAÇ Ã O CAPITAL ISTA | 159
formas tentam obscurecer os nexos da produção com o processo de
acumulação capitalista, movimento que é central à nossa produção aca-
dêmica.
Não podemos perder de vista que esse momento particular – antecedi-
do pelo fordismo – é parte de uma totalidade. “Ser e continuidade são
indissociáveis, nada é sem que exiba dimensões mais ou menos comple-
xas de continuidade” (Lessa, 1995, p. 37). O compromisso fordista já
havia transformado profundamente a condição proletária, mediante a
cisão da antiga classe operária. De um lado, ficaram os operários qualifi-
cados, devidamente representados e defendidos pelas organizações sindi-
cais; do outro, os operários desqualificados, cuja competência foi reduzi-
da a gestos elementares, que lhes permitissem sustentar o trabalho rotinei-
ro das fábricas. Estes não contaram com a mesma integração que tiveram
os herdeiros dos operários de ofício, beneficiando-se muito pouco das
vantagens do compromisso fordista. Tal divisão foi ainda mais agravada
quando combinou diferenças de sexo, idade, nacionalidade e raça.
Nesse contexto em que o operário profissional só subsistiu marginal-
mente, os métodos capitalistas de trabalho (parcelização e mecanização)
foram introduzidos também no setor serviços e, assim, as fronteiras do
proletariado foram ampliadas.
Segundo Bihr,
O conjunto desse processo levou a um enfraquecimento da função so-
cioeconômica do proletariado, uma vez que sua força social de agente
imediato do processo de trabalho, até então baseada em sua função
produtiva, foi recolocada em questão. Ainda mais que esse mesmo
processo tendia a dissolver as antigas identidades profissionais: os
ofícios, constitutivos de redes de socialização e de solidariedade em
que se apoiavam a organização e a combatividade do conjunto da
classe durante a fase anterior (Bihr, 1999, p. 52).
Porém, ainda conforme o mesmo autor, mais que pelas mudanças no
processo de trabalho, a condição proletária foi afetada pela integração
total do processo de consumo do proletariado à relação salarial. Com isso,
“a afirmação do proletariado como produtor coletivo foi progressiva-
mente eliminada pelo aumento em seu seio de uma consciência de con-
sumidor individual” (Idem, ibidem, p. 52). Bihr (1999) mostra como as
transformações decorrentes do fordismo promoveram uma atomização do
proletariado e como essa relativa privatização do seu modo de vida, mais
familiar que individual, influenciou negativamente em sua luta e em sua
consciência de classe. Esse recuo para a vida privada “cria um relaxa-
mento da solidariedade de classe inteiramente prejudicial à sua organiza-
ção e à sua luta de classe” (Idem, ibidem, p. 53).
160 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
Outro aspecto levantado por Bihr (idem), no contexto do período for-
dista, diz respeito à ausência de precisão das classes, ficando cada vez
mais problemático o pertencimento a uma classe em geral. Isso se deve
tanto à ampliação das fronteiras do proletariado como à integração de
novos agentes à classe dominante, os quais personificam o comando do
capital, embora não sejam proprietários. Estes últimos constituem o que
Marx definiu como “uma classe de transição, na qual os interesses das
duas classes se embotam uns contra os outros, julga-se estar acima da
oposição das classes em geral” (Marx, 1984, p. 58).
Finalmente, o sociólogo francês destaca o aumento da dependência,
tanto prática quanto ideológica, em relação ao Estado, que o período
fordista significou para o proletariado, graças à forma do Estado de bem-
-estar. A seu ver, todas essas transformações fizeram emergir uma nova
figura hegemônica: a do operário-massa3, que substituiria a antiga figura
do operário de ofício.
Aparentemente, a perda de identidade de profissão e de lugar que uni-
formiza esse operário-massa lhe é totalmente desfavorável, mas, na visão
de Bihr, “A massificação lança assim as bases de uma nova identidade,
de uma subjetividade mais radical, baseada na recusa da expropriação
generalizada, pelo fordismo, em relação ao domínio de suas condições de
existência” (Bihr, 1999, p. 57). Em outras palavras, reafirma que,
(...) se o operário-massa se encontra privado, pelo fordismo, de suas
antigas redes de solidariedade e de suas antigas referências ideológi-
cas, isso lhe permite inversamente reconstituir-se de novo, melhor
adaptado à compreensão crítica e à luta contra o novo universo capi-
talista (Bihr, 1999, p. 59).
Essa compreensão teria feito que a segunda geração do operário-
-massa já não se prestasse “a trocar um trabalho e uma existência despro-
vidos de sentido pelo simples crescimento do seu ‘poder de compra’, a
privação de ser por um excedente de ter” (Bihr, 1999, p. 60). A partir
dessa recusa, para o mesmo autor, entre outras motivações, nasce, em
meados da década de 1960, a chamada crise do trabalho, que entendemos
como resultante da crise do capital.
Contrapondo-se à ofensiva proletária, as direções capitalistas promo-
vem a reestruturação produtiva do capital, garantindo a este um poder
quase absoluto sobre o trabalho e, com isso, compelindo o movimento
operário a renunciar – ainda que momentaneamente – aos seus objetivos
revolucionários.
3 O autor assinala que o termo é de A. Negri e M. Tronti.
CONSCIÊN CIA OPERÁRIA E A CUM ULAÇ Ã O CAPITAL ISTA | 161
Para Antunes (1998), o brutal resultado das transformações do mundo
do trabalho no capitalismo contemporâneo pode ser sintetizado como
(...) uma processualidade contraditória que, de um lado, reduz o opera-
riado industrial e fabril; de outro, aumenta o subproletariado, o traba-
lho precário e o assalariamento no setor de serviços. Incorpora o tra-
balho feminino e exclui os mais jovens e os mais velhos. Há, portanto,
um processo de maior heterogeneização, fragmentação e complexifi-
cação da classe trabalhadora (Antunes, 1998, pp. 41-42).
Se a cada modelo de desenvolvimento do capitalismo corresponde um
tipo de proletariado, que desempenha um papel central na luta de classes, o
que uniformizaria essa classe heterogênea, fragmentada e complexificada?
Conforme Netto (1998), na sociedade burguesa contemporânea “o su-
jeito revolucionário, tal como posto no Manifesto, requer novas apro-
ximações e determinações amplas” (Netto, 1998, p. LXVI). Ele sugere
um sujeito revolucionário plural.
Nas suas palavras:
(...) sujeitos revolucionários, num processo real de coletivização que
demandará a elaboração de novos parâmetros teóricos e analíticos, ca-
pazes de sugerir as suas formas de articulação em blocos históricos
onde se possa afirmar a hegemonia de um segmento apto a, nos con-
frontos de classes, representar sempre o interesse do trabalho na sua
totalidade (Netto, 1998, p. LXVI).
A nós parece que a favor da classe trabalhadora há a certeza de que a
diminuição do trabalho vivo acabará por ser insuportável ao próprio
capital. Pois, mesmo que o capital prescinda do trabalhador enquanto
produtor, continuará precisando dele enquanto consumidor. Sobre isso, a
atualidade do pensamento marxista assim se expressa no Manifesto:
(...) para oprimir uma classe, é necessário assegurar-lhe ao menos as
condições mínimas em que possa ir arrastando a sua existência servil.
O servo da gleba, sem deixar de ser servo, chegou a membro da co-
muna, da mesma forma que o pequeno-burguês, sob o absolutismo
feudal, chegou a grande burguês. O operário moderno, ao contrário,
longe de elevar-se com o desenvolvimento da indústria, afunda-se ca-
da vez mais, indo abaixo das condições de sua própria classe (Marx;
Engels, 1998, p. 19).
É evidente que, hoje, grande parte da classe trabalhadora se encontra
debilitada, politicamente derrotada, o que, sem dúvida, fragiliza o movi-
mento operário e favorece o utopismo. Mas isso não significa que desapa-
162 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
receram as possibilidades de emancipação para o trabalho e, por conse-
guinte, a simultânea libertação do conjunto da humanidade. Historica-
mente as condições existem. E é a partir dessa possibilidade histórica que
Marx e Engels afirmam a necessidade política de se pôr fim à proprie-
dade privada, abolindo também o modo de apropriação a ela correspon-
dente.
Contraditoriamente, as próprias condições materiais e sociais engen-
dradas pelo capitalismo criam as possibilidades para que o movimento
proletário possa se desenvolver dentro, mas também contra esse perverso
modo de produção, embora seja inquestionável o poder que o capital
ainda tem para extrair trabalho excedente, ao mesmo tempo que atua no
deslocamento das contradições, o que dificulta uma elaboração fidedigna
da realidade por parte do proletariado.
Suas condições de existência revelam a nocividade do sistema, mas
não lhe permitem avançar no sentido de globalizar a luta de classe. Suas
ideias, paradoxalmente, são as ideias dominantes. “Os mesmos homens
que estabeleceram as relações sociais de acordo com a sua produtividade
material produzem também os princípios, as idéias, as categorias de
acordo com as suas relações sociais” (Marx, 1985, p. 106). Assim, os
movimentos para onde converge a classe trabalhadora tendem, quando
muito, a perpetuar o modelo social-democrata, no sentido do retarda-
mento da revolução. Mas, como se pode verificar, o pensamento marxista
é seminal para pensarmos o mundo contemporâneo:
As idéias dominantes não são mais que a expressão ideal das relações
materiais dominantes, as relações materiais dominantes concebidas
como idéias; portanto, das relações que precisamente tornam domi-
nante uma classe, portanto as idéias do seu domínio (Marx; Engels,
1984, p. 56).
A classe que dispõe dos meios para a produção material também regu-
la a produção e a distribuição de suas ideias. Nesse sentido, é palpável
a firme dominação da ideologia capitalista, tendo em vista transformar
o trabalhador num militante da ordem do capital. No mundo contem-
porâneo, onde o poder capitalista aprofundou a práxis social inteira-
mente, seus defensores tentam obscurecer o real através dos mais di-
versos mecanismos, até mesmo suprimindo da ciência social termos
como “burguesia”, “capitalismo”, “proletariado”, etc., considerados
“obsoletos” e “ideologicamente tendenciosos” (Mészáros, 1993,
p. 89). Em contrapartida, são cunhados novos termos, que traduzem
flexibilidade e espontaneidade – como “parceria” e “cooperação”, por
exemplo –, para nominar velhas relações. Assim, tem-se a pretensão
de eliminar semanticamente a divisão da sociedade em classes. Se-
gundo Mészáros: “Neste mundo de convergência semântica (...) o úni-
CONSCIÊN CIA OPERÁRIA E A CUM ULAÇ Ã O CAPITAL ISTA | 163
co uso legítimo para os supostos ‘conceitos do século XIX’ consistiu
na produção de um número infinito de livros e ‘projetos de pesquisa
científica’ sobre o ‘aburguesamento’ do ‘proletariado’” (Mészáros,
1993, p. 89).
Portanto, a subordinação estrutural do trabalho ao capital não deixa
dúvida quanto à contradição entre o “ser” e a “existência” do proletaria-
do, cuja tarefa em direção à consciência de classe, mesmo sendo uma
tendência objetiva do desenvolvimento histórico, jamais será “direta” e
“espontânea”. É imperativo que os trabalhadores transponham o senso
comum. Mas, para isso, precisam compreender e vislumbrar a possibili-
dade de superar as determinações econômico-corporativas imputadas pelo
capital.
A partir dessa problematização, pretende-se entender por que é tão di-
fícil o proletariado transcender o limite da imediatidade que lhe é imposto
pelas ideias dominantes, para situar-se como sujeito revolucionário capaz
de uma consciência global de seu ser social.
O difícil trânsito da imediatidade à genericidade para-si
O trânsito entre as formas dadas pela imediatidade do ser-social-que-
-vive-do trabalho e aquelas mais identificadas com a genericidade para si
é uma mediação bastante complexa. Segundo Antunes, “é central partir
do universo da vida cotidiana quando se quer avançar do âmbito e das
ações próprias da consciência espontânea, imediata, contingente, para as
formas de consciência emancipada, autêntica, livre e universal” (1996,
Idem, p. 100). Para ele, “sem a percepção e a apreensão da dimensão
(ampliada) do trabalho e da vida cotidiana, o entendimento da temática da
consciência de classe ‘é um verdadeiro milagre idealista’ ou o resultado
de alguma forma de ‘messianismo partidário’” (Idem, p. 101).
Como se pode constatar, não é possível contemplar a abrangência de
tantas categorias neste artigo, que tem espaço limitado. Entretanto, para
não incorrer nos equívocos acima mencionados, serão tecidas algumas
considerações sobre a categoria da reprodução, dada a sua peculiaridade
de, mediante experiências acumuladas, reproduzir continuamente o novo
– continuidade somente possível pela mediação da consciência.
A categoria da reprodução, segundo Lessa, “é concernente às formas
concretas historicamente determinadas, através das quais as categorias
ontológicas universais do ser social, postas a existir pelo trabalho, têm
existência real a cada momento e em cada lugar” (1995, p. 8). O trabalho,
ao mesmo tempo que é a ineliminável base de ser da processualidade
reprodutiva, apenas nesta tem existência efetiva. Há, pois, entre essas
164 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
duas categorias “uma nítida diferença e uma insuperável conexão” (Les-
sa, 1999, p. 7).
Respeitada a função metodológica da mediação, cabe registrar a dis-
tinção feita por Lukács (apud Lessa, 1999, p. 22) – embora em traços
bastante esquemáticos –, segundo a qual o ser possui três graus, que
correspondem a substancialidades ontologicamente distintas: a esfera
inorgânica, a natureza biológica e o mundo dos homens. Tudo que existe
está agrupado nesses três níveis. Mas essa distinção não suprime a sua
unidade. O ser social não deixa de ser animal e, enquanto tal, produz e se
reproduz numa constante troca com os seres inorgânicos. Em síntese,
trata-se de um ser cuja unidade é a unidade de diferenças. Para conhecer
esses níveis, deve-se levar em conta que o grau individual de complexi-
dade exige tratamento específico para cada um.
Esta abordagem remete especificamente ao ser social, mas não se po-
de esquecer que ele só é pensável nessa relação com a natureza. Sua
produção e sua reprodução dependem do ser orgânico e do ser inorgâni-
co. Portanto, as estruturas orgânica e inorgânica são imprescindíveis à
sociedade. Entretanto, a relação do ser social com a natureza não é uma
relação direta, é uma relação mediatizada, que começa pelo trabalho
enquanto atividade teleológica. Este ser que se realiza na vida social, sem
eliminar sua base natural, vai se afastando das barreiras naturais e depen-
dendo cada vez menos da natureza.
Embasado em Lukács, Lessa assim se expressa sobre o desenvolvi-
mento do ser social:
(...) a reprodução do ser social é o processo de elevação do mundo dos
homens a patamares superiores de sociabilidade, de modo que o seu
desdobramento concreto é cada vez menos influenciado por categorias
oriundas das esferas ontologicamente inferiores, e cada vez mais in-
tensamente determinado por categorias puramente sociais (Lessa,
1995, p. 21).
Esse processo se opera em dois níveis: o momento da individualidade
e o momento da universalidade. A inter-relação e a determinação recípro-
ca entre esses dois polos configuram um único complexo: o mundo dos
homens. Nesse contexto, a conexão da singularidade com a universalida-
de liga o presente ao passado, permitindo a generalização de tudo que foi
produzido, ou seja, a continuidade social – somente possível pela media-
ção da consciência. Concebida como “produto e expressão realizada da
reprodução social”, a consciência é um produto histórico, plasmado no
dinamismo dos fatores histórico-sociais.
A consciência de uma classe, por sua vez, é, para Antunes (1998),
uma complexa articulação que comporta identidades e heterogeneidades
CONSCIÊN CIA OPERÁRIA E A CUM ULAÇ Ã O CAPITAL ISTA | 165
entre singularidades que vivem uma situação particular. É algo em mo-
vimento, com avanços e recuos.
Nas suas palavras,
Neste longo, complexo, tortuoso percurso, com idas e vindas, encon-
tra-se ora mais próximo da imediatidade, do seu ser-em-si-mesmo, da
consciência contingente, ora mais próximo da consciência auto-
-emancipadora, do seu ser-para-si-mesmo que vive como gênero, que
busca a omnilateralidade, momento por certo mais difícil, mais com-
plexo, da universalidade autoconstituinte (Antunes, 1998, p. 117).
Essa dimensão do ser social é fundamental para a apreensão do objeto
deste artigo, na medida em que explicita o papel ativo da consciência na
processualidade social, contendo, pois, a possibilidade de elevar o indiví-
duo singular e o gênero humano do em-si ao para-si. Mas, como não há
desenvolvimento genérico sem o desenvolvimento do indivíduo, é proce-
dente retomar aquela recomendação de Antunes (1998), segundo a qual é
central partir da vida cotidiana para entender a temática da consciência de
classe. Pois é na vida cotidiana, na qual inúmeras questões são postas,
que a consciência se origina.
Uma perspectiva crítica à vida cotidiana nada tem a ver com as abor-
dagens que se esgotam na faticidade. O tratamento consequente da vida
cotidiana só pode ser feito a partir da perspectiva crítico-dialética, inau-
gurada por Marx, cujo método não é alienável da teoria, nem indepen-
dente do objeto pesquisado. Essa perspectiva de totalidade – e somente
ela – permite apreender as complexas relações entre objetividade e subje-
tividade, entre materialidade e consciência de classe. Tal postura teórico-
-metodológica
(...) implica a construção de uma imagem rigorosa do homem como
ser prático e social, produzindo-se a si mesmo através de suas objeti-
vações (a práxis, de que o processo de trabalho é o método privilegia-
do) e organizando suas relações com os outros homens e com a natu-
reza conforme o nível de desenvolvimento pelos quais se mantém e se
reproduz enquanto homem (Netto, 1994, p. 75).
Na ordem capitalista, ao contrário do mundo antigo, onde homem e
sociedade eram inseparáveis e as relações apareciam como naturais, a
bipolaridade da reprodução social adquire uma nítida explicitação. Medi-
ante relações sociais puras, torna-se consciente a distinção indiví-
duo/sociedade. Nessa organização social, as relações deixam de ser
naturais para serem contratuais; deixam de ser coercitivas para serem
interativas. Sem dúvida, no capitalismo as relações sociais põem o ser
social no patamar mais alto da sua história.
166 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
Todavia – postula Lessa –, a forma fenomênica, historicamente con-
creta, que assumiu essa primeira explicitação da bipolaridade da re-
produção social se refletiu “na nova estrutura de consciência dos ho-
mens”, como “dualismo entre citoyen e homme (bourgeois) presente
em cada membro da nova sociedade” (...) num fracionamento do ser-
-indivíduo-humano entre uma existência pública e uma existência pri-
vada (1995, p. 76).
Por um lado, foi conferida uma grande importância à individualidade,
e, por outro, ela foi suprimida, mediante as condições econômicas oriun-
das da própria natureza da mercadoria. A burguesia é a forma social que
fez aparecer pela primeira vez a luta de classes em seu estado puro. A
constituição de uma sociedade articulada economicamente faz a cons-
ciência de classe aceder a um estado em que pode tornar-se consciente.
Em face dessa possibilidade, a mesma burguesia é constrangida a tudo
tentar teórica e praticamente para fazer desaparecer da consciência social
o movimento do real. Estabelece-se, então, uma luta ideológica pela
dissimulação do caráter de classe. Por conseguinte, embora os homens
tenham a possibilidade de elevar a consciência e superar a cisão burgue-
sa, são, ao contrário, movidos por interesses privados. Suas ações são
orientadas pelos imperativos de expansão e acumulação que regem a
propriedade privada. Sobretudo no mundo do trabalho, verifica-se uma
desidentidade entre indivíduo e gênero humano. A produção generalizada
de mercadorias, que por um lado oferece as possibilidades para a mul-
tilateralidade humana, por outro, provoca o estranhamento do homem em
relação ao gênero humano.
Embora o constante crescimento das forças produtivas evidencie a
possibilidade de satisfação das necessidades humanas, o caráter irracional
da propriedade privada aponta na direção oposta. No marco da alienação
capitalista, o trabalho que deveria ser uma propriedade interna e ativa do
homem torna-se a ele exterior; o que deveria ser uma atividade espontâ-
nea transforma-se em trabalho forçado.
Para Mészáros,
A objetivação em condições nas quais o trabalho se torna exterior ao
homem assume a forma de um poder estranho que enfrenta o homem
de uma maneira hostil. Esse poder exterior, a propriedade privada, é o
produto, o resultado, a conseqüência necessária, do trabalho alienado,
da relação exterior entre o trabalhador e a natureza, entre o trabalhador
e ele próprio. Assim, se o resultado desse tipo de objetivação é a pro-
dução de um poder hostil, então o homem não pode realmente “con-
templar-se num mundo por ele criado”, mas, sujeitado a um poder ex-
terior e privado do sentido de sua própria atividade, ele inventa um
CONSCIÊN CIA OPERÁRIA E A CUM ULAÇ Ã O CAPITAL ISTA | 167
mundo irreal, submete-se a ele, e com isso restringe ainda mais a sua
própria liberdade (Mészáros, 1981, p. 141).
Segundo Lessa, “Lukács distingue, no plano ontológico, entre ser e
valor e, assim fazendo, encontra a gênese do valor na processualidade
específica de um grau do ser: o ser social” (1995, p. 24). Essa dimensão
do valor supõe que o ser social tem alternativas, que tem a possibilidade
de escolha – só existente nele. Mas o fenômeno da escolha evidencia uma
outra categoria também importante: a liberdade. Esta, entretanto, ante o
poder hostil da propriedade privada é extremamente restringida. O acesso
às objetivações existentes – resultado do trabalho – é determinado pela
condição de classe. Se a subjetividade humana depende do acesso a tais
objetivações, como se reflete na consciência do proletariado a conexão
dos seus atos singulares com a reprodução global? Será possível, mesmo
sob os imperativos da propriedade privada, distinguir entre as necessida-
des humano-genéricas e os interesses particulares? Pressupondo que essa
distinção desencadeia conflitos, estes tornariam mais visíveis as necessi-
dades genéricas, ao ponto de elas serem conscientemente priorizadas? Por
que é tão difícil a passagem do singular ao genérico? Por que embora a
história ponha possibilidades, a escolha não expressa a perspectiva do
proletariado?
Não temos a pretensão de responder a todas essas questões. Nem
mesmo sabemos se somos capazes. A única certeza é que qualquer res-
posta só têm legitimidade se calcada no movimento do real. Está claro
que, nessa sociedade marcada pela divisão social do trabalho e pelo
trabalho assalariado, o que deveria ser a criação do homem, na verdade o
escraviza. O trabalhador, na sociedade capitalista, não tem a decisão de
produzir nem pode apropriar-se do produto de seu trabalho. Disso decorre
que o trabalho, ao invés de permitir ao homem que, em se objetivando,
construa uma rica subjetividade, mutila-o, aliena-o. Por conseguinte, são
os mecanismos de alienação que vão responder pela não realização do
sentido revolucionário da classe operária.
Na ordem burguesa, todas as formas de objetividade e as suas corres-
pondentes subjetividades explicitam-se na relação mercantil. A partir
dessa premissa, “o operário só pode tomar consciência do seu ser social
se tomar consciência de si próprio como mercadoria” (Lukács, 1989,
p. 188). Para isso, é preciso ir além da realidade imediata e dada; é neces-
sário compreender que o seu trabalho não produz apenas objetos, produz
sobretudo capital; produz o valor que continua comandando o seu traba-
lho, enquanto perdurar a ordem capitalista.
Mas, dado o fetiche teórico e prático, em que fatos isolados e cristali-
zados são tratados como verdades absolutas, os antagonismos de classe
são enfaticamente simplificados, impedindo o posicionamento consciente
168 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
do proletário como sujeito revolucionário. Certamente não é uma tarefa
fácil superar a subalternidade na ordem burguesa, embora não haja dúvi-
da quanto à possibilidade histórica. “A atualidade do projeto comunista
resulta (...) de sua concordância com certas tendências e potencialidades
objetivas que o capitalismo desenvolve contraditoriamente a si mesmo”
(Bihr, 1999, p. 280). Todavia, essas possibilidades desenvolvidas pelo
próprio capitalismo não implicam necessariamente realização. Para Netto,
“A liberdade de escolha na indicação de objetivos políticos está na razão
direta do conhecimento dos processos em curso; quanto mais conhece os
processos em que está inserido, mais livre é o sujeito para circunscrever
os fins a que visa” (Netto, 1998, p. XLVIII). Mas,
(...) nem a sociedade nem o seu processo de evolução se apresentam
como unidade à consciência do homem, nomeadamente à consciência
do homem nascido no seio da reificação capitalista das relações como
num meio natural; são-lhe dados, pelo contrário, como uma multipli-
cidade de coisas e de forças independentes umas das outras (Lukács,
1989, p. 85-86).
Isso não acontece por acaso. As consequências práticas de uma elabo-
ração teórica equivocada estão inscritas nos interesses capitalistas de
classe. Para Lukács, “a ‘falsa consciência’ da burguesia, através da qual
ela se engana a si própria [e tenta enganar aos outros] está, pelo menos,
de acordo com a sua situação de classe, apesar de todas as contradições
dialécticas e da sua falsidade objectiva” (Lukács, 1989, p. 84). Desse
modo, ela vai tentando se manter enquanto classe dominante pelo maior
tempo possível. O proletariado, por sua vez, tem a sua situação agravada,
porque além de uma consciência contaminada pelas contradições burgue-
sas, a situação econômica o impele a necessidades de ações também
contraditórias. Sob tais condições, o caminho correto não é percebido, e a
luta de classes – quando ocorre – tende a perpetuar a hegemonia do
modelo social-democrata. A esse respeito, o Manifesto é atualíssimo: “O
executivo do Estado moderno não é mais do que um comitê para admi-
nistrar os negócios coletivos de toda a classe burguesa” (Marx; Engels,
1998, p. 7).
Convém lembrar que O Manifesto não garante a vitória do proletaria-
do. Ao invés da emancipação pode ocorrer a barbárie. Todavia, as condi-
ções objetivas demonstram que “a existência da burguesia já não é mais
compatível com a sociedade” (Marx; Engels, 1998, p. 19). E a vitória
revolucionária do proletariado será diferente de outras conquistas ocorri-
das no passado: será a vitória da imensa maioria no interesse da imensa
maioria.
Marx e Engels formulam assim essa diferença:
CONSCIÊN CIA OPERÁRIA E A CUM ULAÇ Ã O CAPITAL ISTA | 169
Todas as classes que, no passado, conquistaram o poder procuraram
conservar a situação alcançada submetendo toda a sociedade às suas
condições de apropriação. Os proletários só podem apoderar-se das
forças produtivas sociais abolindo o modo de apropriação a elas cor-
respondente e, com ele, todo modo de apropriação até hoje existente
(1998, p. 18).
Essa diferença expressa a superioridade do proletariado sobre a bur-
guesia: para a sua consciência de classe, teoria e práxis são coincidentes.
A perspectiva do proletariado não compartimenta a sociedade, não separa
a luta econômica da luta política. Ao contrário, considera a sociedade
como um todo coerente e, a partir daí, age de forma central, modificando
a realidade de forma totalizante. Para Lukács, “como a História coloca o
proletariado perante a tarefa de uma transformação consciente da socie-
dade na sua consciência de classe, teria de surgir a contradição dialéctica
entre o interesse imediato e o objectivo final, entre o momento isolado e a
totalidade” (Lukács, 1998, p. 86). Isso implica integrar-se na visão de
conjunto do processo, priorizando o objetivo final, única forma de cami-
nhar concreta e conscientemente para além do capital.
Lukács já se perguntava sobre a possibilidade objetiva de a consciên-
cia de classe realizar-se efetivamente. Para ele, a questão real e atual para
toda a classe é “a transformação interna do proletariado, do seu movi-
mento para se elevar ao nível objectivo da sua própria missão histórica,
crise ideológica cuja solução tornará enfim possível a solução prática da
crise econômica mundial” (Idem, ibidem, p. 95).
Para finalizar, saímos do âmbito das perguntas e esboçamos uma con-
vicção: a crise econômica mundial só terá solução quando o proletariado,
suprimindo-se, instaurar a sociedade sem classes.
Referências
Antunes, R. Adeus ao trabalho? São Paulo, Cortez, Campinas, SP, Editora da
Universidade Estadual de Campinas, 1998.
—— Notas sobre a consciência de classe. In: Lukács: um Galileu no século XX.
São Paulo, Boitempo, 1996.
Bihr, A. Da grande noite à alternativa. São Paulo, Boitempo, 1999.
Lessa, S. Sociabilidade e individuação. Maceió, Edufal, 1995.
Lukács, G. História e consciência de classe. Rio de Janeiro: Elfos; Porto, Portu-
gal: publicações Escorpião, 1989.
Marx, K. O dezoito de brumário de Louis Bonaparte. Edições Avante! Lisboa,
1984.
—— A miséria da filosofia. São Paulo, Global, 1985.
Marx, K. & Engels, F. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo, Cortez,
1998.
170 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
—— A ideologia alemã. São Paulo, Ed. Moraes, 1984.
Mészáros, I. Para alem do capital. São Paulo, Boitempo, 2002.
—— Filosofia, Ideologia e Ciência Social. São Paulo, Ensaio, 1993.
—— Marx: teoria da alienação. Rio de Janeiro, Zahar, 1981.
Netto, J. P. Prólogo: Elementos para uma leitura crítica do Manifesto Comunista.
In: Marx & Engels. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo, Cortez,
1998.
——, J. P. Para a crítica da vida cotidiana. In: Carvalho, M. C. Brant de e Netto,
J. P. Cotidiano: conhecimento e crítica. São Paulo, Cortez, 1994.
Tavares, M. A. Os fios (in)visíveis da produção capitalista; informalidade e
precarização do trabalho. São Paulo, Cortez, 2004.
A ESQUERDA MARXISTA E AS QUESTÕES
DO REGIME POLÍTICO.
MARX E A DITADURA DO PROLETARIADO*
António Simões do Paço**
O conceito de ditadura do proletariado, após a experiência dos regi-
mes alegadamente nele fundados ao longo do século XX, como a URSS
ou a China pós 1949, é como um fantasma que assombra a herança teóri-
ca de Marx. Neste texto investigamos, a partir dos escritos do próprio
Karl Marx e dos seus críticos coevos ou contemporâneos, o significado
deste conceito, a sua génese e a sua relação com os acontecimentos
históricos do período em que foi formulado.
A partir do momento em que a Rússia saída da revolução de 1917 se
declarou como uma “ditadura do proletariado”, o conceito passou a ser
discutido por todos os sectores que se reclamavam do socialismo ou do
comunismo, de Bernstein a Kautsky, de Martov a Lenine, de Trotsky a
Rosa Luxemburgo.
As questões essenciais em discussão incidiam sobre o conteúdo desta
“ditadura do proletariado”: teria um significado apenas sociológico, em
que ditadura era sinónimo de exercício do poder por uma classe sobre as
outras (a ditadura da burguesia era a dominação da burguesia, indepen-
dentemente das formas políticas que assumisse), ou um conteúdo mais
específico, designando a forma de exercer o poder político: pelo conjunto
da classe ou por um directório determinado (como em Blanqui), uma
vanguarda cuja legitimidade derivava do triunfo na acção?
* Texto fixado com base numa comunicação oral ao II Congresso Internacional Karl
Marx (24, 25 e 26 de Outubro de 2013), Faculdade de Ciências Sociais e Humanas,
Universidade Nova de Lisboa.
** Investigador do Instituto de História Contemporânea da FCSH da UNL.
172 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
Num artigo de 1906, de polémica com Plekhanov, que acusava a frac-
ção bolchevique do Partido Operário Social-Democrata da Rússia de
‘blanquismo’1, Rosa Luxemburgo aborda estas questões. Dizia Rosa que
“se os camaradas bolcheviques falam hoje de ditadura do proletariado,
eles nunca lhe deram o velho significado blanquista (…). Pelo contrá-
rio, afirmaram que a presente revolução triunfará quando o proletaria-
do – toda a classe revolucionária – se apoderar da máquina do Estado.
O proletariado, como elemento mais revolucionário, talvez assuma o
papel de liquidador do antigo regime ‘tomando o poder para si mes-
mo’ a fim de derrotar a contra-revolução e impedir que a revolução
seja desviada por uma burguesia que é reaccionária na sua própria na-
tureza. Nenhuma revolução pode ter sucesso senão pela ditadura de
uma classe, e todos os sinais indicam que o proletariado pode tornar-
-se este liquidador no momento presente”.
Porém, Rosa prossegue dizendo que “nenhum social-democrata tem a
ilusão de que o proletariado se poderia manter no poder”. Isto porque
continuava a ser uma minoria no Império Russo. E “a conquista do socia-
lismo por uma minoria está absolutamente excluída, já que a própria ideia
de socialismo exclui a dominação de uma minoria”. Assim, o proleta-
riado, uma vez assegurado o triunfo da revolução contra a reacção cza-
rista, acabaria por entregar o poder a uma Constituinte, isto é “aos parti-
dos democráticos camponeses e pequeno-burgueses”, que nela teriam a
maioria. “Podemos lamentar este facto, mas não podemos alterá-lo”,
conclui Rosa.
Mais tarde, no livro A Revolução Russa, escrito em 19182, retomará estas
questões de forma muito crítica para os bolcheviques no poder:
“A liberdade apenas para os partidários do governo, só para os mem-
bros de um partido – por mais numerosos que sejam – não é liberdade.
Liberdade é sempre e exclusivamente liberdade para quem pensa de
forma diferente (…).
E prossegue:
“A vida pública dos países com liberdade limitada é tão pobre, tão mi-
serável, tão rígida, tão infrutífera, precisamente porque, através da ex-
clusão da democracia, corta as fontes vivas de toda a riqueza espiritual
1 Rosa Luxemburgo, ‘Blanquismo e social-democracia’, in Czerwony Sztandar,
N.º 86, Junho de 1906. In Marxists’ Internet Archive.
2 Rosa Luxemburgo, The Russian Revolution, Workers Age Publishers (New York),
© 1940. In Marxists’ Internet Archive.
A ESQUERDA MA RXISTA E AS QU ESTÕE S DO REGIME POLÍT ICO | 173
e progresso. (…) Sem eleicões gerais, sem liberdade ilimitada de im-
prensa e de reunião, sem liberdade de opinião, a vida morre em todas
as instituições públicas, torna-se uma mera aparência de vida, em que
só a burocracia permanece como o elemento activo. A vida pública
adormece gradualmente, algumas dezenas de líderes partidários de
energia inesgotável e experiência ilimitada dirigem e governam. Entre
eles, na realidade, apenas uma dúzia de cabeças mais destacadas diri-
gem e uma elite da classe trabalhadora é convidada de vez em quando
a reuniões onde irão aplaudir os discursos dos líderes e aprovar por
unanimidade resoluções propostas – no fundo, uma questão de cliques
– uma ditadura, certamente, não a ditadura do proletariado, mas ape-
nas a ditadura de um punhado de políticos, ou seja uma ditadura no
sentido burguês, no sentido do regime dos jacobinos (…).”
Palavras proféticas.
Porém, Rosa não condena os bolcheviques por terem feito o que po-
diam e sabiam. Adverte-os, no entanto, contra transformarem aquilo que
era produto da necessidade em receita programática:
“Pela sua determinação revolucionária, a sua força exemplar na acção
e a sua fidelidade inquebrantável ao socialismo internacional, contri-
buíram o que poderiam ter contribuído em condições tão diabolica-
mente difíceis. O perigo só começa quando fazem da necessidade vir-
tude e pretendem congelar num sistema teórico completo todas as
tácticas que lhes foram impostas por essas circunstâncias fatais, e que-
rem recomendá-las ao proletariado internacional como um modelo de
táctica socialista. Quando se apresentam desta forma e escondem o
seu verdadeiro e inquestionável serviço histórico sob os passos em fal-
so forçados pela necessidade, prestam um mau serviço ao socialismo
internacional, a causa por que lutaram e sofreram, já que pretendem
colocar no seu património como novas descobertas todas as distorções
forçadas na Rússia por necessidade e compulsão – em última análise,
apenas subprodutos da falência do socialismo internacional na presen-
te guerra mundial.”
Estas advertências não resolviam a questão essencial: conquistado o
poder, defendido à custa de tantas vidas, de tanto sangue vertido, deve-
riam os revolucionários cedê-lo aos seus inimigos se essa fosse a vontade
temporária de um povo exausto? E se o não fizessem, não tenderia um
regime de excepção, um estado de sítio prolongado, a tornar-se a regra,
excluindo a democracia, soviética ou de qualquer outro tipo?
Isso são perguntas para muitos artigos e muitos congressos. Mas para
já obriga-nos a ir às origens do conceito de ditadura do proletariado, para
avaliar se há nele, e nos que dele assumiram a paternidade, Marx e En-
174 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
gels, uma teorização que permita concluir que os regimes que surgiram
na URSS e depois na Europa de Leste e na China nos anos 30 e 40 do
século passado se filiam de alguma forma nesse conceito.
Marx, Engels e a ditadura do proletariado
A expressão “ditadura de classe do proletariado” apareceu pela pri-
meira vez durante a revolução de 1848. Anteriormente, Marx e Engels só
falavam de “proletariado organizado como classe dominante”. No Mani-
festo Comunista (1848), Marx e Engels referem-se à “conquista do poder
político pelo proletariado”, mas não à ditadura do proletariado. Marx e
Engels falam aí de “erguer o proletariado à posição de classe dominante”.
E para quê? “Para vencer a batalha da democracia.”
Em 1 de Janeiro de 1852, Joseph Weydemeyer publicou um artigo in-
titulado “Ditadura do Proletariado” no jornal Turn-Zeitung, de Nova
Iorque, dirigido à emigração alemã. Nesse mesmo ano, Karl Marx escre-
veu-lhe dizendo:
“Quanto a mim, não reclamo o crédito pela descoberta da existência
de classes na sociedade moderna, nem a luta entre elas. Antes de mim,
historiadores burgueses já tinham exposto a evolução histórica dessa
luta de classes e economistas burgueses tinham descrito a sua anato-
mia económica. O meu próprio contributo foi: 1) demonstrar que a
existência de classes está ligada a determinadas fases históricas do de-
senvolvimento da produção; 2) que a luta de classes conduz neces-
sariamente à ditadura do proletariado; 3) que esta ditadura em si re-
presenta apenas uma transição para a abolição de todas as classes e
para uma sociedade sem classes.”
O artigo de Weydemayer “é provavelmente o único artigo com um tí-
tulo destes até pelo menos 1918”, escreveu Hal Draper3. Nos vinte anos
seguintes, o termo “ditadura do proletariado” não aparece em nenhum
texto, público ou privado, de Marx ou Engels. Nem de mais ninguém4.
Depois de 1848, Marx e Engels tiveram a sorte de presenciar e reflec-
tir sobre uma outra revolução: a da Comuna de Paris de 1871. Se quiser-
mos saber que conteúdo davam Marx e Engels ao conceito de ditadura do
proletariado, talvez possamos confiar nas palavras deste último em 1891:
3 Draper, Hal, Marx and the Dictatorship of the Proletariat. From New Politics,
Vol. 1, No. 4, Summer 1962, pp. 93 ff. Marxists’ Internet Archive (MIA).
4 Draper, ibidem.
A ESQUERDA MA RXISTA E AS QU ESTÕE S DO REGIME POLÍT ICO | 175
“Querem saber o que é a ditadura do proletariado? Olhem para a Comuna
de Paris. Aí tendes a ditadura do proletariado.”5
Como viram então Marx e Engels a Comuna de Paris, ou seja, a dita-
dura do proletariado? Para Marx, era “essencialmente um governo da
classe trabalhadora, o produto da luta da classe produtora contra a classe
apropriadora, a forma política, finalmente descoberta, sob a qual trabalhar
para a emancipação económica do trabalho”6. Em A Guerra Civil em
França, Marx acentua o carácter profundamente democrático da Comu-
na, o sufrágio universal, o facto de todos os funcionários e juízes serem
eleitos e revogáveis, a supressão do exército permanente, o fim de todas
as ‘investiduras hierárquicas’, a retirada de funções políticas à polícia, a
democracia municipal a partir de baixo substituindo o Estado centraliza-
do, etc. Marx resumiu-o dizendo que a Comuna “deu à República a base
de instituições verdadeiramente democráticas (...) as medidas especiais só
podiam indicar a tendência para um governo do povo pelo povo”.
Em 1872, em A Questão da Habitação, em polémica com o proudho-
niano Mülberger, Engels refere-se também à questão da ditadura do
proletariado:
“O amigo Mülberger, portanto, defende os seguintes pontos:
‘Nós’ não prosseguimos nenhuma ‘política de classe’ e não lutamos
pela ‘dominação de classe’. Mas o Partido Social-Democrata Alemão,
precisamente porque é um partido da classe operária, segue inevita-
velmente uma ‘política de classe’, a política da classe trabalhadora.
Uma vez que cada partido político procura ganhar o domínio do Esta-
do, também o Partido Social-Democrata Alemão luta necessariamente
pelo seu domínio, o da classe trabalhadora, portanto, uma ‘dominação
de classe’. Além disso, todos os verdadeiros partidos proletários, dos
cartistas ingleses em diante, defenderam uma política de classe, a or-
ganização do proletariado como um partido político independente,
como condição primária da sua luta, e a ditadura do proletariado como
o objectivo imediato da luta. Ao declarar que isto é ‘um absurdo’,
Mülberger coloca-se de fora do movimento proletário e no campo do
socialismo pequeno-burguês”7.
5 Friedrich Engels, Introdução à edição inglesa de 1891 de A Guerra Civil em Fran-
ça, de Karl Marx.
6 Karl Marx, The Civil War in France, English Edition of 1871, Zodiac & Brian
Baggins, MIA.
7 Engels, Frederick, The Housing Question. Published (and re-published) as a pam-
phlet. Reprinted by the Co-operative Publishing Society of Foreign Workers. MIA.
176 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
Como bem assinala Hal Draper8, o que se nota aqui é que a ‘ditadura
do proletariado’ “não tem nenhum significado especial a não ser a tomada
do poder do Estado pelo movimento dos trabalhadores socialistas. Apare-
ce aqui como um de três ou quatro termos usados indiscriminadamente:
‘dominação de classe’, ‘domínio da classe trabalhadora’, etc”. Também
nos é dito que cada partido verdadeiramente proletário o defende, in-
cluindo até os cartistas – algo que não pode fazer sentido para quem
acredite que há alguma teoria especial da ditadura do proletariado além
da ideia básica da necessidade e do objectivo de conquistar o poder
político pela classe trabalhadora.
Ao mesmo tempo que não há uma teoria da ditadura do proletariado,
que é identificada com o governo da classe trabalhadora, sendo que o
exemplo apontado da forma de exercer esse poder é o da Comuna de
Paris, onde são realçados os aspectos democráticos, de uma democracia
pela base, tão pouco é descurado o carácter conflitual que assume a luta
da classe trabalhadora pelo poder. Apenas um ano mais tarde, num artigo
sobre a autoridade publicado no Almanacco republicano, em Dezembro
de 1873, defende Engels:
Uma revolução é certamente a coisa mais autoritária que existe, é o
acto pelo qual uma parte da população impõe a sua vontade à outra
por meio de espingardas, baionetas e canhões, meios autoritários por
excelência; e o partido vitorioso, se não quer ter lutado em vão, deve
continuar a dominar pelo terror que as suas armas inspiram aos reac-
cionários. Poderia a Comuna de Paris ter-se mantido um único dia, se
não tivesse usado a autoridade do povo em armas contra a burguesia?
Não deveríamos, pelo contrário, criticá-la por ter feito demasiado
pouco uso da sua autoridade?9
Termino com a última referência de Marx à ditadura do proletariado.
É feita no opúsculo “Glosas marginais ao Programa do Partido Operário
Alemão” (mais conhecido como Crítica dos Programas Socialistas de
Gotha e de Erfurt). Data de 1875, oito anos antes da sua morte:
Entre a sociedade capitalista e a comunista, situa-se o período de
transformação revolucionária daquela nesta. Ao que corresponde um
período de transição política em que o Estado não pode ser outra coisa
que não a ditadura revolucionária do proletariado10.
8 Draper, ob. cit.
9 Engels, Friedrich, “Sobre a autoridade”, in Almanacco republicano, Dezembro de
1873. MIA.
10 Marx, Karl; Engels, Friedrich, Crítica dos Programas Socialistas de Gotha e de
Erfurt, Textos Exemplares, Porto, 1974, p. 30.
A ESQUERDA MA RXISTA E AS QU ESTÕE S DO REGIME POLÍT ICO | 177
Existem mais algumas citações de Marx e de Engels sobre a ditadura
do proletariado. Nenhuma delas acrescenta algo mais de substancial às
aqui evocadas. O conceito surgiu associado a duas importantes revolu-
ções: as de 1848 e de 1871. Voltará ao centro dos debates nas próximas
grandes revoluções, as russas de 1905 e 1917. Mas aí os protagonistas
serão já outros.
Parafraseando o título de um livro de Garcia Márquez, a história da ‘di-
tadura do proletariado’ no século XX foi uma incrível e por vezes muito
triste história. Mas Marx não foi certamente “a sua avó desalmada”.
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HISTÓRIA E LITERATURA EM AS VINHAS DA IRA
Camilo Domingues*
Este trabalho compreende uma revisão bibliográfica sobre o romance
As Vinhas da Ira, do escritor norte-americano John Steinbeck, e a discus-
são ao redor da obra, de seu escritor e a partir dos fatos históricos retrata-
dos, bem como a partir de suas abordagens literárias. Partindo da história
e da literatura, pretende-se analisar não apenas os âmbitos específicos
dessas duas áreas como, principalmente, a relação entre elas na concep-
ção e elaboração do romance.
A crise de 1929, a seca dos anos 1930, o Dust Bowl e a “Era das mi-
grações de massa”
O clima da região centro-sul das Grandes Planícies norte-americanas é
caracterizado historicamente por grandes flutuações de temperatura num
mesmo dia e, entre o verão e o inverno, por chuvas esparsas e irregulares,
e por ocorrência de ventos de velocidade até duas vezes superior àqueles
mais a leste (Stephens, 1937). Tais flutuações e alterações no regime de
chuvas e na ocorrência dos ventos não seguem um padrão cíclico ou
claramente observável meteorologicamente, podendo ocorrer longos
períodos de seca (até mais de uma década) dentro dos quais ocorre um
ano com chuvas acima da média, assim como o contrário.
Normalmente, as secas na região são formadas pela combinação de
três fenômenos climáticos, concomitantes ou não: a fase La Niña da
Oscilação Sul-El Niño (Osen), responsável por diminuir a temperatura
do Pacífico Norte, na Costa Oeste dos Estados Unidos; o aumento da
temperatura da superfície oceânica no Atlântico subtropical; a perda de
* Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal
Fluminense, sob orientação do Prof. Dr. Daniel Aarão Reis Filho.
180 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
força de uma corrente de jato oriunda do golfo do México que, em condi-
ções normais, penetra o continente e produz chuvas nas Grandes Planícies
(Cordova; Porter, 2015; Cook; Miller; Seager, 2009). Estima-se que tal
padrão climático de “produção natural de seca” na região Centro-Sul das
Grandes Planícies exista ao menos desde o século XVI. De fato, os perío-
dos longos de seca na região são observáveis quando o fenômeno La
Niña é mais intenso e prolongado, deixando as águas do Pacífico mais
frias. Especialmente na grande seca dos anos 1930, somou-se a isso o
enfraquecimento e mudança de direção da corrente de jato oriunda do
golfo do México, produzindo chuva apenas na região mais ao sul das
Grandes Planícies.
No entanto, os climatologistas Benjamin Cook, Ron Miller e Richard
Seager (2009) concluíram que os fenômenos ambientais por si só, quais-
quer que fossem as alterações nas temperaturas oceânicas do período, não
eram suficientes para produzir uma seca da mesma dimensão da que
atingiu as Grandes Planícies naquela década. Apenas incluindo duas
outras variáveis antropogênicas em suas projeções, os pesquisadores
conseguiram reprojetar a extensão e a severidade da seca tal qual a que
ocorreu: a devastação da cobertura vegetal e o lançamento de aerossóis de
poeira na atmosfera. Para eles, o povoamento acelerado de regiões áridas
e a posterior exploração agrícola contribuíram como elementos amplifi-
cadores da grande seca da década de 1930.
A severidade da seca dos anos 1930 ainda traria consigo gigantescas
tempestades de poeira. A seca prolongada e a exposição do solo despro-
tegido à ação dos fortes ventos da região mobilizava grandes quantidades
de sedimentos, criando nuvens de poeira, que viriam a se tornar grandes
tempestades (Cordova; Porter, 2015). O fenômeno também não era
desconhecido pelos agricultores locais, tendo sido registrado desde a
segunda metade do século XIX (Cunfer, 2008); no entanto, a gravidade
daquele era uma novidade. As regiões mais atingidas pelas tempestades
de poeira, o epicentro da chamada Dust Bowl (Bacia de Poeira), seriam a
panhandle (frigideira) de Oklahoma1, a região Noroeste do Texas, Nor-
deste do Novo México, Sudeste do Colorado e Sudoeste do Kansas. A
região total cobria mais de 40 milhões de hectares, numa faixa de 800 km
norte-sul e 480 km leste-oeste, de acordo com o Soil Conservation Service.
Os períodos mais severos foram os anos de 1935 (com 40 tempestades) e
1938 (com 61).2
1 Estreita faixa territorial no extremo-oeste de Oklahoma, que compreende três distritos:
Cimarron, Texas e Beaver. A região é a mais árida do estado e foi a que mais sofreu
com a seca da década de 1930, estando localizada no epicentro do Dust Bowl.
2 Exceto menção em contrário, os dados deste parágrafo foram extraídos de Donald
Worster, Dust Bowl: the southern plains in the thirties, 2004.
H ISTÓRIA E L ITE RATURA EM AS V INHAS DA I RA | 181
Mas quais teriam sido as formas e os motivos através dos quais se de-
senvolveu aquele padrão de povoamento e de exploração agrícola na
região das Grandes Planícies que comprometeu sobremaneira a cobertura
vegetal original do solo?
O período conhecido como “Era das migrações de massa”, da segunda
metade do século XIX ao início do século XX (1850-1913, do fim da
Guerra Civil norte-americana à Primeira Guerra Mundial), está entre
aqueles de maior influxo migratório para os Estados Unidos. Durante o
período, estima-se que 30 milhões de imigrantes desembarcaram no país
(Abramitzky et al., 2012), o que, em 1910, representava 38% da mão de
obra não escrava nos Estados Unidos (Parker, 2014). Se, no início do
século XIX, os imigrantes provinham especialmente do Norte e Centro-
-Oeste da Europa, com destaque para alemães, ingleses e irlandeses, nas
migrações de massa da virada do século, além desses, grandes con-
tingentes de imigrantes do Sul e do Leste europeu, como italianos, polo-
neses e eslavos, chegariam ao país.
As causas históricas, econômicas e sociais da migração europeia para
os Estados Unidos na “Era de migrações de massa” podem ser divididas
em dois grandes grupos principais: os fatores norte-americanos de “atra-
ção” e os fatores europeus de “expulsão”. Entre os fatores de atração,
destacavam-se o barateamento dos meios de transporte intercontinental
tanto na Europa, como nos Estados Unidos, com a implementação de
novas ferrovias e do transporte transoceânico a vapor. Além desses, o
baixo custo da terra nos Estados Unidos e a crescente necessidade de mão
de obra de sua indústria alavancaram a nova onda de imigração. Do outro
lado, os fatores de expulsão dos imigrantes da Europa abrangeram um
amplo espectro, desde a superpopulação, escassez de terras, as grandes
fomes, pobreza e catástofres ambientais até às perseguições políticas e
religiosas (Glynn, 2011).
No Estado de Oklahoma, a “Era das migrações de massa” coincidiu
com o processo de abertura legal (e ilegal) de terras do Território Indíge-
na a partir de 1889 (com a ocupação das Unassigned Lands).3 Ao lado
dos imigrantes históricos, britânicos e alemães, grandes contingentes dos
“novos migrantes”, como judeus e eslavos, ingressaram no estado. Entre
os imigrantes em Oklahoma, a maioria era de origem alemã, seguidos por
3 Em 8 de fevereiro de 1887, o Ato de Loteamento Geral (Dawes Act) alterou o
sistema de propriedade comum de terras do Território Indígena em Oklahoma,
dividindo-as em pequenas propriedades individuais. Feita a divisão e repartição das
terras, o Governo contou com um excedente não atribuído, as Unassigned Lands,
que foram abertas para ocupação por populações brancas e afro-americanas recém-
-libertas através de corridas, sorteios e leilões.
182 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
russos e irlandeses, além de austríacos, ingleses, canadenses, italianos,
mexicanos e escoceses.
Algumas décadas após o início da “Era das migrações de massa”, os
novos agricultores, americanos e estrangeiros, passaram a influenciar a
pauta das discussões políticas e econômicas dos Estados Unidos. No
início do século XX, muitos agricultores ressentiam-se da escassez de
crédito agrícola, especialmente para a região das Grandes Planícies, o que
travava a expansão do setor, e passaram a reclamar reformas no sistema
financeiro norte-americano que garantissem o financiamento do campo.
O Congresso dos EUA passaria, então, a ceder a pressões políticas de
grandes e pequenos agricultores no intuito de também reformar, centrali-
zar e estimular os mecanismos de crédito agrícola.
Em apenas um ano, através do Federal Farm Loan Act (1916), o Go-
verno norte-americano injetou 30 milhões de dólares na agricultura e
agroindústria do país. A expansão sem precedentes da acreagem cultivada
e a consolidação do corn belt no Centro-Oeste norte-americano durante a
década de 1910 passariam a ser conhecidas como The Great Plow-up (em
tradução literal, “A Grande Lavra”). Diversas regiões semiáridas e áridas
das Grandes Planícies rapidamente foram aradas, devastando a cobertura
vegetal original, e tornaram-se áreas de plantio de grãos.
Ao lado da imigração estrangeira e da ampliação do mercado de crédi-
to agrícola nos Estados Unidos durante as duas primeiras décadas do
século XX, destaca-se uma terceira e importante variável que concorreu
para a Great Plow-up: o período excepcionalmente chuvoso entre os anos
de 1905 e 1928 em regiões das Grandes Planícies, o Early Twentieth
Century Pluvial. O fenômeno teria sido responsável pelo período de
maior umidade nos Estados Unidos nos últimos 500 anos, particular-
mente no Norte e no Centro-Oeste. O período excepcionalmente chuvoso,
interrompido apenas por breves períodos de seca em 1910 e 1914, asseve-
raram aos agricultores a possibilidade de contraírem e renovarem em-
préstimos, aumentarem as áreas de cultivo e adquirirem equipamentos,
uma vez que tanto os céus quanto os bancos e o Governo federal pare-
ciam fornecer-lhes segurança e os insumos básicos para a lavoura: terra,
chuva e financiamento.
Por fim, entre e por sobre as condições climáticas, políticas e
econômicas favoráveis naquele período, havia importantes propulsores
filosóficos e religiosos que formavam o arcabouço moral da sociedade
norte-americana de então e impulsionavam a ocupação e a exploração
agrícola da fronteira oeste do território norte-americano: o ideal agrário e
democrático jeffersoniano, o transcendentalismo místico do ex-pastor e
filósofo Ralph Waldo Emerson (1803-1882), a democracia de massas do
poeta Walt Whitman (1819-1892) e o instrumentalismo pragmático do
H ISTÓRIA E L ITE RATURA EM AS V INHAS DA I RA | 183
filósofo e psicólogo William James (1842-1910) e do pedagogo John
Dewey (1859-1952).
Thomas Jefferson, um dos pais fundadores da nação americana e prin-
cipal elaborador da Declaração da Independência de 1776, foi o seu
terceiro presidente, entre 1801 e 1809. Apesar de filho de um grande
proprietário de terras da Virgínia, Jefferson defendia que a pequena
propriedade rural e o pequeno agricultor, o yeoman farmer, deveriam
formar o cerne do Estado republicano e democrático. Ao yeoman farmer
deveria ser garantida a inviolabilidade dos direitos individuais, pois
apenas o livre domínio e exploração da sua propriedade permitiriam a sua
autossuficiência, o autogoverno e a responsabilidade individual, caracte-
rísticas fundamentais na constituição de um Estado democrático.
A apologia do homem comum, das suas individualidade e liberdade,
da sua relação “ontológica” com a natureza e da constituição da unidade
humana apenas nessa relação também estavam na base do pensamento de
Emerson e Whitman. A alma transcendental de Emerson era a sublimação
do seu humanismo individualista, assim como a democracia de massa de
Whitman era o agregado dos homens individuais (o “povo” indiferencia-
do). A ação humana privada, voltada a satisfazer as necessidades indivi-
duais sem – em tese – obliterar a satisfação alheia, constituía por seu lado
o fundamento do pragmatismo filosófico de James, o elo bastante para
justificar a vida humana em sociedade. Mais explicitamente em Emerson,
ex-pastor evangélico, a ética religiosa protestante forneceria os elementos
fundadores de seu pensamento filosófico. A fé guiaria o homem contra as
injustiças e o autoritarismo, através da crença nos instintos do homem
comum, na inevitabilidade do progresso social e na democracia (Carpen-
ter, 1941, p. 318).
Tem-se, portanto, as quatro variáveis socioambientais que estariam pre-
sentes no processo de ocupação e exploração agrícola da fronteira oeste
norte-americana na virada do século XIX ao XX: ambientalmente, um
período excepcional de chuvas; demograficamente, a “Era das migrações
de massa” e a forte campanha de migração interna no próprio país; política
e economicamente, os incentivos financeiros oferecidos pelo Governo
federal e a vaga no mercado europeu surgida com a Primeira Guerra Mun-
dial; ética e moralmente, um arcabouço filosófico que chancelava e, até
mesmo, naturalizava a ocupação e exploração da região, como “direito
manifesto” do indivíduo livre norte-americano, do “povo escolhido”.
Ao final do período entre a segunda metade do século XIX e as duas
primeiras décadas do século XX, os Estados Unidos tinham recebido
cerca de 30 milhões de imigrantes, que, somados às centenas de milhares
de migrantes internos, ocuparam as regiões Norte e Centro-Oeste do país
(sem contar a Costa Oeste). No final do período, os Estados Unidos já
184 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
não contavam com tamanho excedente de terras que pudesse absorver a
população e a mão de obra excedente de seu próprio país, nem mesmo da
Europa. Concomitantemente, boa parte dos novos agricultores, com a
ajuda do Governo federal, contraíram dívidas e hipotecaram suas pro-
priedades, numa escalada que levaria o endividamento agrícola a saltar de
US$3,3 bilhões para US$7,9 bilhões entre 1910 e 1920 (Gregg, 2015). A
intensificação da atividade agrícola gerou enormes excedentes que só
poderiam ser absorvidos por uma Europa com o setor primário paralisado
por conta da Primeira Guerra Mundial. A mesma intensificação da ativi-
dade agrícola em regiões de ecossistema frágil, como as regiões áridas e
semiáridas do Centro-Oeste do país, expôs não apenas o solo, mas popu-
lações inteiras a intempéries climáticas que poderiam se tornar verdadei-
ras catástrofes socioambientais.
Os anos 1930 surpreenderiam o relativo entusiasmo social e econômi-
co norte-americano do período anterior, especialmente dos agricultores
das Grandes Planícies. A primeira grande novidade, ou primeiro grande
choque econômico sobre a região, cairia ainda no final da década de
1910, com o fim da Primeira Guerra Mundial. O grande aumento da área
de plantio dos Estados Unidos entre 1910 e 1920, de quase 20%, levou à
produção de um excedente agrícola que não encontrou mais a Europa em
guerra para ser escoado (Gregg, 2015, p. 153).
Como se não bastasse, o período de chuvas acima da média até 1928
foi sucedido pela maior seca da história dos Estados Unidos, que durou
praticamente toda a década de 1930 e atingiu todo o Norte e Centro-Oeste
do país. A intensificação do fenômeno La Niña e o aquecimento das
temperaturas oceânicas do Atlântico concorreram para a ocorrência da
seca, que foi intensificada devido à superexploração agrícola do período
anterior. Logo, a região Centro-Sul das Grandes Planícies passaria a ser
palco de imensas tempestades de poeira, o Dust Bowl, que trouxe ainda
mais prejuízos e devastações à região. A reversão das condições climáti-
cas antes favoráveis ao plantio fez que milhares de agricultores perdes-
sem suas plantações e sua principal fonte de renda e subsistência.
Por último, o crack da Bolsa de Nova York, em 1929, inaugurou uma
experiência de crise econômica nunca antes vivida em tal dimensão pela
sociedade norte-americana. A maior crise histórica mundial de superpro-
dução, que teria o seu epicentro na economia daquele país e atingiria todo
o planeta, estancou mercados, causou desemprego, fome e miséria.4 Os
4 De acordo com Roger Hudson (2015), devido à crise de 1929, havia 34 milhões de
norte-americanos sem renda alguma em 1932 e, apenas naquele ano, 273 000 famí-
lias foram expulsas de suas terras por execução de dívidas e hipotecas. Entre 1928 e
1932, o PIB dos Estados Unidos passaria de US$104 bilhões para US$41 bilhões
(Hudson, 2015).
H ISTÓRIA E L ITE RATURA EM AS V INHAS DA I RA | 185
agricultores das Grandes Planícies, devastados duplamente pela crise
econômica e socioambiental, encontraram-se endividados, desprovidos de
recursos e da própria terra,5 muitos deles optando por migrar para centros
urbanos, para outros estados norte-americanos ou simplesmente por
esperar por auxílio governamental.
Expulsos pela crise econômica e pela seca, entre 300 000 e 440 000
habitantes de Oklahoma deixaram o estado nos anos 1930, a maioria em
direção à Costa Oeste. Os migrantes vinham das mais diversas regiões do
estado, não apenas do Oeste árido. Além de agricultores provenientes do
Centro-Oeste e das regiões mais afetadas pelo Dust Bowl, partiam de
Oklahoma trabalhadores do setor industrial e de serviços, particularmente
do leste do estado, fugindo da crise econômica e atraídos pela propaganda
e promessas de grandes oportunidades na Califórnia.
Normalmente, os migrantes de Oklahoma reuniam todos os seus últi-
mos pertences em uma velha caminhonete, as jalopies, e rumavam em
direção ao Oeste através da Highway 66. Cerca de 38% dos migrantes de
Oklahoma partiam para as cidades californianas para buscarem empregos
na indústria ou no setor de serviços. Uma parte do restante, principalmente
agricultores, partiam para os promissores vales férteis, especialmente o San
Joaquin Valley, na região central da Califórnia (Gregory, 2004).
Com os salários extremamente baixos, e tendo que se mover frequen-
temente de uma lavoura a outra em busca de novos períodos de colheitas,
os migrantes estabeleciam-se em acampamentos improvisados à beira de
estradas e nos arredores das grandes propriedades. Estes estabelecimentos
eram chamados pelos californianos de squatter camps, “acampamentos
precários” ou “acampamentos ilegais”, ou shanty towns, “favelas”, e
caracterizavam-se pela superpopulação, pela precariedade das instalações
e pela falta de esgotamento sanitário. Entre os norte-americanos em geral
também seriam conhecidos como Hoovervilles. E os seus habitantes
seriam conhecidos como Okies, numa menção ao estado de origem de
uma parcela deles, Oklahoma.
As precárias condições de trabalho e de vida dos trabalhadores rurais
nos vales da Califórnia levaram à realização de greves, como a greve nos
campos de algodão, em 1933, organizada pela CAIWU – Cannery and
Agricultural Workers Industrial Union, e à organização de sindicatos
rurais, como a UCAPAWA – United Cannery, Agricultural, Packing, and
5 Na verdade, grande parte dos pequenos agricultores do estado de Oklahoma,
especialmente da margem leste do estado, eram arrendatários e não possuíam terras
próprias. Tendo em vista a inalienabilidade das terras do antigo Território Indígena,
grande parte dos imigrantes brancos e afro-americanos recém-libertos trabalhariam
em regime de arrendamento. De acordo com Encyclopedia of Oklahoma History
and Culture, 2016.
186 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
Allied Workers of America, formada em 1937 (ambos os sindicatos eram
ligados ao Partido Comunista dos Estados Unidos). A reação dos grandes
agricultores seria imediata. Em 1934, seria formada a Associated Farmers,
associação de grandes proprietários de terra com o objetivo de conter o
processo de sindicalização dos trabalhadores rurais, fosse através da
repressão direta no campo e do controle da imprensa, fosse através de
lobby político.
Por outro lado, a crise socioambiental dos anos 1930 nos Estados Uni-
dos, principalmente a partir da eleição do presidente Franklin Roosevelt,
em 1932, levou a uma ainda maior intervenção federal na economia em
geral, e na agricultura em particular: o New Deal. As medidas visavam
oferecer apoio técnico e financeiro direto, além de subsídios diversos aos
agricultores das regiões mais afetadas pela seca e pelo Dust Bowl. Para os
trabalhadores empobrecidos, as agências federais ofereciam empregos em
obras públicas, assistência médica e financeira, além de moradia.
Dessa maneira, a crise econômica de 1929 aproximaria as histórias dos
estados de Oklahoma e da Califórnia, mas cada um desempenhando papéis
diferentes, talvez opostos. A severidade da crise econômica associada à
seca e ao Dust Bowl acentuou a vulnerabilidade econômica de Oklahoma e
fez a toda a região Centro-Sul das Grandes Planícies padecer duplamente
nos anos 1930. Centenas de milhares de trabalhadores – agrícolas ou
urbanos – migraram do campo para a cidade ou para outros estados, espe-
cialmente aqueles da Costa Leste, de onde chegavam notícias alvissareiras.
A Califórnia seria o destino predileto daqueles que deixaram o estado,
assim como de mais de um milhão de migrantes de outros estados norte-
-americanos. No entanto, ao chegarem ao Golden State, os migrantes
deparavam-se com condições frustrantes de vida e trabalho.
Antes da chegada dos Okies aos vales férteis da Califórnia, eram me-
xicanos e filipinos que ali trabalhavam, em condições semelhantes ou
ainda mais degradantes, sendo muitas vezes obrigados a retornar ao seu
país de origem após o período de colheita. Mas havia elementos novos
que concorreriam para que os norte-americanos em geral se sensibilizas-
sem massivamente e diferenciadamente com a situação dos Okies. Em
primeiro lugar, a Grande Depressão atingiu toda a sociedade norte-
-americana, em especial a classe média e as camadas proletarizadas, que
se descobriram severamente empobrecidas, tanto no campo, como nas
cidades. Em segundo lugar, aquela seria a primeira grande crise econômi-
ca em escala mundial que teria ampla cobertura da imprensa (diferente da
crise de 1870, por exemplo), o que favoreceria a difusão de relatos e
imagens que poderiam não apenas sensibilizar, mas identificar o público
com as mais diversas e difíceis situações enfrentadas por trabalhadores no
país e no mundo (Cunfer, 2008). Ao lado da imprensa, havia a nascente
H ISTÓRIA E L ITE RATURA EM AS V INHAS DA I RA | 187
cultura de massa, que já era responsável por disseminar um grande espec-
tro de obras literárias, da literatura romântica mais prosaica, aos novos e
temidos romances proletários.
Em terceiro e último lugar, estava em risco a moral norte-americana.
Desta vez, não eram índios, latinos ou asiáticos que estavam sendo dizi-
mados ou superexplorados e obrigados a conviver com condições degra-
dantes de vida. Ao contrário, eram americanos brancos, “o povo escolhi-
do”, em busca de nada mais do que o prometido sonho promovido pelo
ideal jeffersoniano: the pursuit of happiness, a “busca da felicidade”, na
forma da pequena propriedade privada. O perigo que corria o yeoman
farmer simbolizou, por derivação, o perigo que corria a autonomia e a
liberdade do indivíduo norte-americano, a democracia e a própria repú-
blica nele fundamentadas. A tradição e os princípios éticos, filosóficos e
religiosos daquela nação estavam postos em cheque, o que fez grande
parte da sociedade levantar-se na defesa de seus alicerces.
Uma parcela da classe média e operária terminaria por se aproximar
de uma compreensão ainda mais radical das contradições da sociedade
norte-americana, chegando inclusive a se aproximar de correntes ideoló-
gicas e políticas socialistas, como o Partido Comunista. Os anos 1930,
desse modo, também seriam marcados por uma onda contestatória no
movimento operário e na cultura norte-americana, vindo à tona não
apenas greves e novas organizações sindicais, como intelectuais, escrito-
res, compositores, cantores, pintores, fotógrafos e cineastas6 que expres-
sariam das mais diversas maneiras e a partir dos mais variados e enreda-
dos pontos de vista, entre a tradição e a contestação, as contradições
daquele momento histórico.
John Steinbeck7
John Steinbeck (1902-1968) nasceu em Salinas, distrito de Monterey,
nos arredores de um dos vales férteis da região central da Califórnia
(Salinas Valley). Steinbeck passou a infância e a juventude naquela
pequena cidade, além de ter vivido grande parte da vida no estado da
6 Merecem destaque os trabalhos acadêmicos do advogado Carey McWilliams e do
economista Paul Taylor, assim como trabalhos artísticos da fotógrafa Dorothea
Lange, do pintor Alexandre Hogue, do cineasta Parel Lorentz, do cantor e composi-
tor Woody Guthrie, além do escritor John Steinbeck.
7 Exceto menção em contrário, as informações biográficas sobre John Steinbeck
estão de acordo com Cyrus Ernesto Zirakzadeh, John Steinbeck on the Political
Capacities of Everyday Folk: Moms, Reds, and Ma Joad’s Revolt, 2004; e Susan
Shillinglaw, John Steinbeck, American Writer, 2016.
188 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
Califórnia. Não seria um aluno destacado durante o colegial e, em 1919,
seguindo o seu desejo precoce de tornar-se escritor, entrou para a Univer-
sidade de Stanford para estudar Literatura Inglesa, de onde saiu em 1925,
sem se formar (Demott, 2006). Durante o período de colégio e faculdade,
Steinbeck costumava passar as férias trabalhando nas fazendas da com-
panhia de produção de açúcar Spreckles, junto aos trabalhadores migran-
tes mexicanos, filipinos, japoneses e chineses, o que lhe forneceu um
primeiro contato com as condições de vida e trabalho daqueles que seri-
am retratados em seus futuros romances.
Após a saída de Stanford, meio a alguns trabalhos temporários e em-
preendimentos fracassados, Steinbeck iniciaria a sua carreira literária,
contando inicialmente com o suporte financeiro de sua família e, em
seguida, de sua primeira esposa, Carol Henning. Os dois encontraram-se
em 1928, casaram-se em 1930, ficando juntos até 1943 (Laws, 2013).
Henning encarnava uma atitude vigorosa e rebelde, sendo mais próxima
de movimentos esquerdistas e mesmo socialistas, além de defensora das
causas feminista e sindicalista. Teria sido ela quem apresentou Steinbeck
a simpatizantes e militantes socialistas, bem como o teria levado a fre-
quentar grupos de estudo e círculos de discussão política nos quais ele
“alternadamente se enfadava ou se esgueirava pelos cantos” (Zirakzadeh,
2004, p. 603).
Na Califórnia, em 1930, Steinbeck também conheceria o biólogo ma-
rinho, ecologista e filósofo Edward Flanders Ricketts (1897-1948), de
quem seria grande amigo e que sobre ele exerceria grande influência. De
acordo com Shillinglaw (2016), Ricketts – em importância só comparada
à sua primeira esposa, Carol Henning – seria o mentor, alterego e “alma
gêmea” intelectual de Steinbeck (Shillinglaw, 2016). Seria Ricketts quem
reforçaria e sedimentaria o humanismo ecológico de Steinbeck. E este de
tal maneira assimilaria o pensamento de seu amigo biólogo que lhe
dedicaria personagens em diversas de suas obras, como Jim Casy, em As Vinhas da Ira.
Nos Pacific Biological Laboratories, fundados por Ricketts, em Mon-
terey, reunia-se um grupo de intelectuais, artistas e cientistas para discutir
os mais diversos assuntos e teorias. Nos registros que deixou dessas
reuniões em suas correspondências, Steinbeck revelaria que, graças a
elas, pôde refletir e desenvolver as suas teorias sociais do “homem-grupo”,
group-man theory, assim como a sua “teoria da falange”, phalanx theory,
baseadas em suas discussões sobre a relação entre a biologia e o com-
portamento humano (numa compreensão particular do darwinismo apli-
cado à sociedade), sobre a psicologia moderna (principalmente a psica-
nálise de Carl Jung) e sobre a nova “antropologia cultural”, a partir da
qual elaboraria o seu pensamento sobre a diversidade normativa e sobre a
moral não-teleológica.
H ISTÓRIA E L ITE RATURA EM AS V INHAS DA I RA | 189
A partir de 1935, Steinbeck, sob a iniciativa de Carol Henning, pas-
saria a frequentar os encontros do John Reed Club, órgão do Partido
Comunista, na cidade costeira de Carmel (Shillinglaw, 2016). Lá,
Steinbeck conheceria e ficaria amigo de Francis Whitaker (1906-1999),
artista ferreiro e líder do clube local, organizador do Cannery and Agri-
cultural Workers’ Industrial Union (CAIWU), que o apresentaria a
diversos outros ativistas e militantes envolvidos na organização sindical
(Benson; Loftis, 1980, p. 47). Steinbeck passaria, portanto, a escrever
artigos e aproximar-se de revistas e associações simpáticas ao Partido
Comunista, na medida em que fazia parte daquele círculo local de
ativistas sociais, sindicalistas e militantes políticos identificados com
ideias socialistas.
Em 1936, Steinbeck iniciaria a sua “trilogia do trabalhador”, com a
publicação do romance Batalha Incerta. O romance trataria de uma greve
de trabalhadores numa plantação de maçãs, na qual o autor apresentou os
trabalhadores enredados e mesmo manipulados tanto pelos grandes
produtores, quanto pelo sindicato e militantes. Em sequência, Steinbeck
publicaria Ratos e Homens (1937), um romance sobre a amizade entre
dois trabalhadores migrantes, assim como sobre as suas dificuldades e
desventuras na Califórnia. Por último, publicaria As Vinhas da Ira (1939),
a história de uma família de migrantes de Oklahoma que parte à procura
de trabalho e melhores condições de vida na Califórnia.
As Vinhas da Ira seria lançado em 14 de abril de 1939. A obra seria
um best-seller instantâneo, vendendo 428 900 exemplares apenas no ano
de seu lançamento e permanecendo o livro mais vendido durante todo o
ano de 1940. Naquele ano, Steinbeck receberia o Prêmio Pulitzer de
Literatura e o romance seria filmado por John Ford (1894-1973), tornan-
do-se também um sucesso de bilheteria.
Apesar de ter se aproximado e assimilado fragmentos do pensamento po-
lítico tanto dos socialistas quantos dos reformistas do New Deal, Steinbeck
registrava também em sua obra fragmentos de outras correntes do pensa-
mento, como a psicologia moderna, a antropologia cultural, o humanismo
biológico de Ricketts, além de certa nostalgia do pioneirismo norte-ame-
ricano. Ele tentava, na verdade, reunir as suas diversas referências soci-
ais, culturais e políticas no que vislumbrava ser o “novo mundo”, que se
infiltraria silenciosamente sob o mundo contemporâneo através da arte de
seus poetas, num jogo de “ordem e desordem”.
Em 1950, após o divórcio de Carol Henning (1943) e breve casamento
com a cantora Gwyndolyn Conger (1917-1975), casou-se novamente com
a atriz Elaine Scott (1914-2003), com quem permaneceria até o fim de
sua vida. Em 1952, lançou o seu romance autobiográfico, East of Eden,
no qual retrataria não apenas a sua vida e a história de Salinas Valley,
190 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
como a traição e a conturbada relação com a sua segunda esposa, Gwyn-
dolyn Conger. Para Steinbeck, esta seria a sua grande obra literária e,
para os críticos, dividiria com As Vinhas da Ira o maior êxito da carreira
do escritor. Em 1961, publicou a sua última obra de ficção, The Winter of
Our Discontent, na qual já estavam patentes a sua desilusão com o “povo
americano”, para ele, uma sociedade cada vez mais gananciosa e moral-
mente doente. Ironicamente, após ter recebido o Prêmio Nobel de Litera-
tura, em 1962, Steinbeck não mais se dedicaria ao romance de ficção. A
notícia de sua premiação veio acompanhada por severas críticas de norte-
-americanos e mesmo de membros da academia sueca à fragilidade e
inconsistência do conjunto de sua obra, o que teria desiludido ainda mais
o já descontente John Steinbeck.8
Não obstante a sua combinação bastante original de elementos filosó-
ficos, morais e políticos contraditórios em sua obra, Steinbeck preservaria
uma sensibilidade e uma sagacidade crítica capaz de identificar a maneira
como a transformação econômica da sociedade norte-americana envolvia
também, e dialeticamente, a sua transformação social e moral. De modo
que, com a diversidade de experiências e influências às quais se expôs – e
foi exposto –, John Steinbeck revela não apenas aparentes contradições,
mas uma rica e complexa dinâmica entre o escritor e o seu tempo. Os
acontecimentos históricos passados e contemporâneos, bem como as
diversas formulações teóricas sobre aqueles, interagiram com a sua indi-
vidualidade de uma maneira que o olhar retrospectivo pode – e deve –
apenas indicar possibilidades de articulação e influência, uma vez que o
oceano dialético da relação entre o indivíduo e a história é tal que não
permite asseverar a necessidade de ocorrência de um elemento ou fator
em consequência direta de outro.
Na trilha para As Vinhas da Ira: The Harvest Gypsies e a enchente
de Visalia
Segundo Robert DeMott (1990), entre os anos de 1936, quando tomou
conhecimento dos “refugiados do Dust Bowl”, e 1939, quando publicou o
seu romance As Vinhas da Ira, John Steinbeck estaria envolvido no
“problema dos migrantes” (Demott, 1990, p. 3). Para DeMott, naquele
período, o escritor viveria três etapas literárias que precederiam a redação
do romance: a elaboração de uma série de artigos publicados em outubro
de 1936 no jornal San Francisco News sobre a situação dos migrantes nos
vales agrícolas da Califórnia; um romance inacabado, The Oklahomans,
8 Em 1966, ainda publicaria o seu “livro de estrada”, Travel with Charley in Search
of America, e o seu último livro de artigos e resenhas, America and Americans.
H ISTÓRIA E L ITE RATURA EM AS V INHAS DA I RA | 191
escrito entre 1937 e 1938; e uma sátira contra os grandes proprietários de
terra de Salinas, L’Affaire Lettuceberg, escrita entre fevereiro e maio de
1938 e destruída poucos dias após a sua finalização.
Em agosto de 1936, sob convite de George West, Steinbeck começou
a trabalhar numa série de artigos sobre os trabalhadores migrantes
(Schultz; Li, 2005). Ele realizou diversas viagens pelos campos de mi-
grantes nos vales centrais da Califórnia e foi apresentado a Thomas
Collins (1897-1961), que trabalhava para a Resettlement Administration.
Thomas Collins foi o primeiro administrador do Arvin Camp, posterior-
mente Weedpatch Camp, um dos dois primeiros acampamentos federais
do New Deal construídos na Califórnia, que seria retratado por Steinbeck
em As Vinhas da Ira (Nealand, 2008). Steinbeck viajaria outras vezes
com Collins para os acampamentos e teve acesso às suas anotações e
relatórios, que forneceriam informações para os seus artigos e os ele-
mentos não ficcionais de seu futuro romance.9 Collins seria retratado em
As Vinhas da Ira como o personagem Jim Rawley, administrador do
Weedpatch Camp e, ao lado de Carol Henning, o romance também seria
dedicado para ele, who lived it, “que o viveu”.
Entre 5 e 12 de outubro de 1936, dois meses depois de sua primeira
viagem aos campos de migrantes e do seu primeiro encontro com Collins,
Steinbeck publicaria sete artigos no San Francisco News, sob o título de
The Harvest Gypsies, sobre a situação dos agricultores migrantes. Em
The Harvest Gypsies, estão expostos os elementos históricos, políticos,
filosóficos e morais que John Steinbeck de seguida trataria em seu mais
conhecido romance, de modo que a sua série de artigos para o San Fran-
cisco News pode ser compreendida como o principal ponto de partida
para a concepção e elaboração de As Vinhas da Ira. Todo o conteúdo
histórico e teórico de The Harvest Gypsies estaria presente, na forma de
ficção ou na forma de comentários críticos, em seu romance: o contexto
social, histórico e econômico dos migrantes; a diferenciação entre a
condição social – e racial – dos imigrantes estrangeiros e a dos migrantes
americanos; a defesa dos valores democráticos e populares do “antigo
modo de vida americano”, baseado na pequena propriedade e no pequeno
agricultor; a descrição e comparação entre os campos de migrantes im-
provisados (Hoovervilles), aqueles mantidos pelos grandes proprietários e
aqueles construídos pelo Governo federal através da Resettlement Admi-
9 Através dos relatórios de Collins, Steinbeck teria acesso a documentações e fontes
sobre os Okies e conheceria os seus costumes e até mesmo a sua maneira de falar
(Starr, 1996, p. 253). Outra importante fonte de informação para Steinbeck seriam
os registros de Sanora Babb (1907-2005), funcionária da Farm Security Administra-
tion, que trabalhava com Collins. Babb também publicaria um romance ambientado
nos campos de migrantes, Whose names are unknown (2004).
192 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
nistration; e, por último, a dependência histórica da grande produção
agrícola da Califórnia do trabalho sazonal e migrante, e os métodos de
controle e coerção da mão de obra desenvolvidos pelos grandes proprietá-
rios.
Obviamente, não apenas as contribuições históricas e críticas de The
Harvest Gypsies, como também as suas limitações, seriam transplantadas
para o romance. Ao contextualizar a situação dos Okies, tratando-os
como “refugiados do Dust Bowl e da seca” e como um grupo de america-
nos distinto socialmente dos imigrantes estrangeiros e anteriormente
habituados à pequena produção agrícola e à democracia popular, Steinbeck
realiza um “recorte literário” que deixa de lado diversos antecedentes his-
tóricos e políticos importantes para a compreensão da onda migratória
para a Califórnia nos anos 1930.
Em primeiro lugar, é importante lembrar que aqueles agricultores do
Centro-Oeste norte-americano não eram pequenos proprietários de terra
alguma, vivendo na sua maioria como arrendatários ou meeiros que se
deslocavam continuamente de propriedade em propriedade sempre que
venciam os seus curtos contratos de arrendamento. Em segundo lugar, os
agricultores perfaziam apenas uma parcela dos trabalhadores oriundos do
Centro-Oeste no período, de um terço a metade dos migrantes, sendo a
outra parte deles trabalhadores industriais e do setor de serviços que se
dirigiam às cidades e não ao campo.
Em terceiro lugar, os agricultores migrantes do Centro-Oeste convi-
viam com as intempéries climáticas da região há muito tempo, incluindo
longos períodos de seca e tempestades de poeira. Apesar destas terem
sido mais prolongadas e intensas nos anos 1930, não poderiam ser trata-
das como principais causadoras daquela onda migratória, especialmente
porque a região mais afetada pelo Dust Bowl, a panhandle de Oklahoma,
era pouco povoada e contribuiu pouco para a migração. Além disso, a
maioria dos migrantes viriam do Leste de Oklahoma, região menos
afetada por aqueles fenômenos. O principal deflagrador da nova onda
migratória era a grave crise econômica, que atingia severamente tanto o
campo quanto a cidade. Caso fosse um acontecimento ligado apenas ao
campo, como a seca e as tempestades de poeira, a maioria maciça dos
migrantes seria proveniente da população rural, o que não ocorreu.
Em quarto lugar, o idealizado “antigo – e peculiar – modo de vida
americano” baseado na pequena propriedade privada foi, ele mesmo, um
dos principais elementos econômicos e políticos deflagradores tanto da
crise econômica, quanto socioambiental na década de 1930. A democra-
cia popular e agrária de Thomas Jefferson, sedimentada na Declaração da
Independência dos Estados Unidos, seria a grande propulsora e legitima-
dora da expansão territorial, populacional e econômica do país rumo ao
H ISTÓRIA E L ITE RATURA EM AS V INHAS DA I RA | 193
oeste. A compra da Louisiana em 1803, a Guerra Mexicano-Americana
de 1846, o povoamento acelerado e desordenado daquelas regiões e a
exploração mineral e agrícola intensiva, apesar de ter tido resultados
diferentes em Oklahoma e na Califórnia, seriam alguns dos motivos
históricos para as crises acumuladas nos anos 1930 e até mesmo para a
amplificação da seca e do Dust Bowl. Steinbeck compreendia, a partir de
um olhar nostálgico idealizado, a pequena propriedade privada apenas
como solução, não como causa.
Em quinto lugar, a diferenciação social entre os imigrantes estrangei-
ros e os migrantes americanos não encontra respaldo histórico que não
seja o preconceito fortemente enraizado na sociedade norte-americana e,
em especial, na californiana. Quando Steinbeck chegou aos campos de
migrantes nos vales centrais da Califórnia, havia tanto estrangeiros quan-
to nativos e, de modo algum, já se havia dado a substituição dos primei-
ros pelos últimos (Cunningham, 2002). Os imigrantes estrangeiros ruma-
vam à Califórnia em busca de trabalho e melhores condições de vida,
assim como os Okies.
Apesar das questões abordadas acima, o fato foi que, desde que publi-
cara The Harvest Gypsies, Steinbeck havia pensado em dar continuidade
àquele trabalho. Inicialmente, pretendeu expandir a série de artigos e dar-
-lhe o formato de um livro documentário. Após nova e longa viagem aos
campos de migrantes em outubro de 1937, o escritor definiu que escreve-
ria não um documentário, mas uma ficção a partir de The Harvest Gypsies,
e que ela se intitularia The Oklahomans (Starr, 1996). Steinbeck dedicar-
-se-ia ao romance do outono de 1937 até a primavera de 1938. Nesse
período, segundo David Peeler (2008), reuniu material para o seu roman-
ce sobre os agricultores migrantes e, embora nunca tivesse acompanhado
os Okies na viagem rumo à Califórnia, ele havia trabalhado com alguns
deles nos campos e realizado entrevistas, além de dispor dos registros de
Thomas Collins (Peeler, 2008, p. 161-162).
Em meados de fevereiro de 1938, Steinbeck partiria para uma nova
viagem de dez dias, novamente com Collins, para a cidade de Visalia,
região de San Joaquin Valley (Schultz; Li, 2005). Além dos problemas
recorrentes dos trabalhadores migrantes, Visalia estava devastada por
fortes temporais, e Steinbeck visitaria as áreas inundadas, onde “quatro
mil famílias alagadas em suas barracas estavam morrendo de fome”
(Steinbeck apud Bloom, 2007, p. 151). Segundo Shillinglaw (2014), a
visita a Visalia e a visão ainda mais catastrófica que teve da situação dos
migrantes determinariam uma nova virada de rumo nos planos de seu
romance. Deixou de lado The Oklahomans ainda em fevereiro de 1938 e,
até maio daquele ano, escreveria uma sátira ácida, feroz e burlesca sobre
a greve nas plantações de alface em Salinas, sua cidade natal, que contou
194 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
com dura repressão por parte dos agentes dos fazendeiros, lançando mão
de táticas antigreve, como perseguição a lideranças e vigilância (Shillin-
glaw, 2014). O livro intitular-se-ia L’Affaire Lettuceberg. No entanto,
Carol Henning seria uma das únicas pessoas a ler o seu manuscrito, achan-
do-o difícil, vulgar e tedioso (Starr, 1996). Assim, Steinbeck o destruiria
poucos dias depois de concluído.
A profunda impressão que as enchentes de Visalia lhe deixou faria
Steinbeck abdicar da concepção original de The Oklahomans e, infeliz
com o resultado do L’Affaire Lettuceberg, passaria a dedicar-se a um
novo romance. Entre 15 e 25 de maio de 1938, seria concebido As Vinhas
da Ira (Demott, 1990). Tendo em vista as tentativas anteriores de retratar
a saga e a dura condição de vida dos trabalhadores migrantes, Steinbeck
já tinha à sua disposição bastante material para o futuro romance. Em
apenas cem dias de trabalho, entre o final de maio e o final de outubro de
1938, Steinbeck escreveria o volumoso livro.
Aspectos literários de As Vinhas da Ira
As Vinhas da Ira retrata a história de uma família de Oklahoma que
parte para o oeste dos Estados Unidos em busca de melhores condições
de vida e de trabalho. A trama passa-se durante os anos 1930 e o seu
autor apresenta ao leitor as possíveis relações entre a história daquela
família (os Joads) e as conjunturas social, histórica, econômica e am-
biental daquele momento, focando principalmente nas grandes secas dos
anos 1930 dos EUA e no Dust Bowl, no processo de mecanização tecno-
lógica da agricultura no país, na avançada financeirização da economia
agrícola na Costa Oeste e nos efeitos da grande crise econômica do final
da década de 1920.
A trama histórica apresenta as mais diversas situações – individuais,
familiares, coletivas, conjunturais, econômicas, governamentais, am-
bientais –, que se entrelaçam diante dos olhos do leitor, ora formando, ora
desatando nós complexos, dos quais não se pode entrar ou sair de maneira
apenas superficial. Estruturalmente, As Vinhas da Ira é contado em trinta
capítulos, nem todos eles narrativos. Por vezes, o autor vale-se de alguns
capítulos para fazer digressões, apresentar situações que ainda estão por
vir, esboçar cenários históricos para a familiarização do leitor, ou tecer
comentários sobre as situações que narra, deixando à mostra alguns traços
de seu perfil político e ideológico.
Os capítulos não ficcionais são denominados “intercapítulos”. Como a
própria designação sugere, há no romance uma alternância entre interca-
pítulos não narrativos (discursivos) e capítulos narrativos. De acordo com
Cyrus Zirakzadeh (2004), num total de trinta, os capítulos narrativos são
H ISTÓRIA E L ITE RATURA EM AS V INHAS DA I RA | 195
os de número par, exceto o 12 e o 14, e incluindo o 13, e os intercapítulos
são os de número ímpar, exceto o 13, e incluindo o 12 e o 14 (Zirakzadeh,
2004, p. 19). Os intercapítulos precedem os capítulos narrativos e, nor-
malmente, oferecem uma dimensão geral, sinóptica, do que será narrado
a seguir. Apesar de compartilharem o mesmo tema, os dois tipos de
capítulos são independentes entre si, podendo ser lidos individualmente
sem prejuízo para a compreensão tanto do texto dissertativo, quanto do
narrativo. No entanto, Steinbeck deixa “referências cruzadas”, ou “ves-
tígios” temáticos semelhantes em ambos, de maneira a promover sua
integração estética, o encontro entre os dois estilos em uma obra única
(Lisca, 1957).
A sucessão entre intercapítulos e capítulos também proporciona uma
estrutura rítmica para o romance baseada na alternância entre os tempos
distintos da dissertação e da narração/descrição. Tal forma contrapontual
atribuiria a As Vinhas da Ira a característica de um romance sinfônico. De
fato, durante o período de concepção e redação do romance, Steinbeck
dividia o tempo da escrita ouvindo sinfonias e sonatas de Beethoven,
Tchaikóvski e Stravínski (Demott, 1990). Numa carta a Merle Armitage
em 17 de fevereiro de 1939, enquanto ainda concebia o romance, Stein-
beck revelaria o seu método de composição: “Eu tenho trabalhado em
uma técnica musical (…) e tenho tentado usar as formas e a matemática
da música ao invés daquelas da prosa (…). Em sua composição, movi-
mento, tom e abrangência, [o romance] é sinfônico” (Steinbeck apud
Demott, 1990, p. 14. Tradução nossa).
Paralelamente, a estrutura contrapontual do romance também teria su-
as fontes na própria literatura. Segundo Peter Lisca (1957), a concepção e
os materiais que dispunha para elaboração de As Vinhas da Ira coloca-
vam Steinbeck diante da mesma questão estrutural posta a Liev Tolstói
(1828-1910) ao escrever Guerra e Paz (1869), tendo como material
factual as guerras napoleônicas. Tolstói teria resolvido o seu desafio
literário dispondo narrativas ficcionais de dramas familiares ao lado de
“intercapítulos” filosóficos. Do mesmo modo, o escritor norte-americano
John dos Passos (1896-1970), ao conceber e elaborar a sua “trilogia
americana” (1930-1936), teria lançado mão de expedientes literários
semelhantes, alternando a narração ficcional até mesmo com notícias de
jornal.
Numa dimensão mais abrangente de composição, As Vinhas da Ira
também pode ser dividida em três grandes blocos de ação baseados em
seus três sucessivos movimentos ficcionais: a seca, a viagem e a Califór-
nia. Segundo Peter Lisca (1957), a seção da “seca” iria do início do
romance até o capítulo 10, seguida pela “viagem”, até o capítulo 18 e, daí
até o final, a última seção, “Califórnia”. Para Lisca, estes três grandes
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movimentos atuariam como verdadeiros personagens na trama, tendo em
vista as suas ações e repercussões na jornada da família Joad: a crueldade
da seca e a força das tempestades de poeira, a extensão interminável e
angustiante da Highway 66 e as falsas promessas da Califórnia (Lisca,
1957, pp. 301-302). Para o autor, a composição ternária do romance teria
raízes na estrutura do Antigo Testamento (o próprio Steinbeck teria dito à
época que estava trabalhando em três romances interrelacionados), de
modo que à “seca” corresponderia a opressão do povo hebreu no Egito, à
“viagem”, o êxodo, e à Califórnia corresponderia a terra prometida, Canaã.
Lisca (1957) ainda sustenta que a estrutura bíblica de As Vinhas da Ira
se estende para além da sua forma, possuindo o romance diversas passa-
gens simbólicas e alusivas ao texto bíblico. Por exemplo, o próprio título
do romance seria extraído da canção The Battle Hymn of the Republic
que, por sua vez, fazia referência ao Apocalipse e à justiça divina; assim
como o povo hebreu, a Mãe Joad (Ma Joad) referia-se aos seus como
“Nós somos o povo” (Steinbeck, 2012, p. 339); o personagem de Rosa-
sharn – o seu próprio nome remete a Cristo, a rosa de Sharon, o lírio dos
vales (Cântico dos Cânticos, 2:1), que oferece o seu próprio corpo, assim
como Rosasharn oferece o seu seio – dá a luz a um bebê morto que,
colocado num caixote de maçãs por Tio John (Uncle John), é deixado no
leito de um riacho para que pudesse “dizer para eles o que aconteceu”
(Steinbeck, 2012, 548), assim como Moisés foi deixado no Nilo para que
pudesse sobreviver e salvar os seus.
Finalmente, o maior símbolo cristão em As Vinhas da Ira seria o per-
sonagem Jim Casy, que, além de trazer as mesmas iniciais de Jesus
Cristo, possuía na família Joad doze discípulos (Trodd, 2008), havia
estado “nas colinas, cismando, tal qual Jesus devia ter cismado quando se
meteu deserto adentro para encontrar uma solução para as suas aflições”
(Steinbeck, 2012, p. 95-96) e, tornando-se sindicalista e emboscado por
capangas, diria “Vocês não sabem o que estão fazendo” (Steinbeck, 2012,
p. 420), as mesmas últimas palavras de Jesus Cristo crucificado (Lucas,
23:34).
No entanto, como diz Zoe Trodd (2008), Steinbeck valia-se do simbo-
lismo bíblico e cristão não apenas por sua eficácia comunicativa, uma vez
que permitira uma familiaridade maior com o leitor, como também se
valia do seu reverso (Trodd, 2008). A aproximação do leitor através do
simbolismo bíblico era posta ao lado da ironia e da crítica religiosa. Para
Trodd, tal movimento dava forma a algo além do simbolismo, o que
denominou de “ação simbólica”, pois propulsionaria o leitor à reflexão
através do pareamento entre as analogias bíblicas e a sua contestação
(Trodd, 2008, p. 25). Assim, Jim Casy, antigo pastor e encarnação do
próprio Jesus Cristo, era acometido por pensamentos pecaminosos e
H ISTÓRIA E L ITE RATURA EM AS V INHAS DA I RA | 197
entregava-se ao prazer com as beatas de sua igreja, e ainda blasfemava,
questionando a Sua existência.
Ao colocar em questão a existência divina, negá-la e descobrir a di-
vindidade na humanidade, Casy não apenas se afastava dos princípios
bíblicos elementares que também trazia consigo, como apresentava –
também simbolicamente – os princípios seculares da sociedade norte-
-americana. Para Frederic Carpenter (1941), Jim Casy “traduz a filosofia
americana em palavras” (Carpenter, 1941, p. 316). Se Jim Casy encarna
Jesus Cristo, ele também encarna Ralph Waldo Emerson, que, assim
como ele, largou o ministério religioso em nome de ideias não ortodoxas.
Para Emerson, o homem e a natureza deviam formar uma unidade, o Ser
Superior (The Oversoul), que abrigava a divindade, baseava-se no amor
entre os seres humanos e era o cerne de seu misticismo transcendental.
Assim, Casy larga o ministério religioso para exercer um amor terreno, e
o Espírito Santo tomaria forma no próprio espírito humano. Na passagem
do amor à humanidade em geral, ao amor ao “povo” em particular, Casy
também passaria de Emerson a Walt Whitman. O personagem gosta do
povo “a ponto de rebentar”. O povo, enquanto grupo social geral, era um
agregado natural para Whitman, praticante de uma democracia instintiva
e distinta do socialismo abstrato e “imposto de cima para baixo” (Carpen-
ter, 1941, p. 319). Seria este comunitarismo instintivo, baseado no agre-
gado natural – e místico – de indivíduos, que também estaria presente nas
últimas palavras de Tom Joad, ao despedir-se de sua mãe, decidido a
deixar definitivamente a família e a unir-se espiritualmente à humanidade
em geral.
Os diversos elementos literários articulados por Steinbeck em As Vi-
nhas da Ira constituiriam em seu conjunto uma resposta para a histórica e
polêmica dicotomia no campo da estética entre o “conteúdo” e a “forma”
da obra de arte. Segundo Zoe Trodd (2008), As Vinhas da Ira era um
exemplar característico da literatura de protesto e, como tal, solucionava
aquela dicotomia através de uma “política da forma”, que reunia e entre-
laçava os elementos do conteúdo e da forma, fazendo que a existência de
um não significasse o ofuscamento da outra (Trodd, 2008).
Dessa maneira, as variáveis estéticas do romance de Steinbeck esta-
riam plenamente integradas ao seu conteúdo, fosse ele de ordem subjeti-
va, social, política ou filosófica. Para Trodd (2008), a política da forma
fazia-se presente no romance através da empatia (a promoção da identifi-
cação ativa do leitor com a trama e seus personagens, capaz de gerar não
simplesmente a simpatia, como também o compromisso); o poder de
choque (a capacidade de “acordar” o leitor para as situações representa-
das e de levá-lo à ação); a ação simbólica (a passagem do simbolismo
imediato à abertura do romance à interpretação do leitor, através da
198 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
dualidade, da sucessão entre aproximação e distanciamento); e da evoca-
ção da memória popular (a comunicação do romance com a tradição
literária e histórica).
Considerações finais
Este trabalho pretendeu abordar a interação entre os fatos históricos ao
redor de John Steinbeck e a sua atividade artístico-literária. O indíviduo,
a arte e a história articularam-se de tal forma em sua vida, que a separa-
ção dessas dimensões só pode ser feita correndo-se o risco de compro-
meter o entendimento da complexidade e simultaneidade daquela relação.
Nesta análise específica do escritor, percebe-se como a sua obra em
questão, As Vinhas da Ira, oferece um privilegiado portal para compreen-
são do homem e do seu tempo. Tanto o conteúdo quanto a forma de seu
romance têm raízes mais profundas do que se pode imaginar à primeira
vista: através de um, temos acesso à história norte-americana, de sua
independência até à primeira metade do século XX, e também descobri-
mos como a constituição dos Estados Unidos esteve atrelada às histórias
de tantos outros povos e sociedades, e até mesmo como a dinâmica
(física) do clima interagiu com a sua economia, com a sua geografia e
com a sua população (humanas); através da outra, percorremos os mais
variados estilos literários, desde as escrituras bíblicas até a literatura
moderna, passando por Tolstói e John dos Passos, e incluindo a música
sinfônica. E, ao final, através do encontro promovido pela obra de arte
entre o conteúdo e a forma, percebemos o quanto entrelaçam-se história e
literatura, uma dispondo materiais, outra forjando-os à sua maneira,
filtrando e remodelando aqueles através das mãos e mentes dos artistas.
A miríade de acontecimentos históricos e de estilos artísticos disponí-
veis concorreu para a formação do homem e do artista Steinbeck na
medida que se expunha – conscientemente ou não, propositadamente ou
não – aos fatos e pensamentos contemporâneos, e na medida em que agia
dialeticamente em relação àqueles, escolhendo, opinando e produzindo.
Sem dúvida, Steinbeck, posto em relação com a história e com a arte,
revela diversas contribuições e limitações, algumas das quais demonstra-
das ao longo deste trabalho. Vimos que, tanto da filosofia quanto da
política, Steinbeck assimilou ensinamentos sem, no entanto, se compro-
meter definitivamente com nenhum deles. O seu elo mais intenso de
relação com as diversas teorias, com os demais seres humanos e aconte-
cimentos, era a sua intensa e imediata sensibilidade, que poderia tanto o
animar em direção à denúncia social da dura situação dos migrantes
americanos nos anos 1930, quanto o animar em direção a sua própria
subjetividade, como o faria no último período de sua carreira.
H ISTÓRIA E L ITE RATURA EM AS V INHAS DA I RA | 199
Estando, como ele próprio colocara, disponível para sorver tudo o que
dele se aproximasse e transformá-lo em seguida em literatura, não se
pode queixar que assim não o tenha feito. Paradoxalmente, se o seu
ecletismo político e literário é o que dificulta tomá-lo por inteiro, ao
mesmo tempo, é o que garante a riqueza e a complexidade de sua vida e
obra.
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O CAPITAL, CAPÍTULO XXIV, LIVRO I
A CHAMADA ACUMULAÇÃO PRIMITIVA*
Karl Marx
1. O segredo da acumulação primitiva
Viu-se como o dinheiro é transformado em capital, como por meio do
capital é produzida mais-valia e da mais-valia mais capital. A acumulação
do capital, porém, pressupõe a mais-valia, a mais-valia, a produção
capitalista, e esta, por sua vez, a existência de massas relativamente
grandes de capital e de força de trabalho nas mãos de produtores de
mercadorias. Todo esse movimento parece, portanto, girar num círculo
vicioso, do qual só podemos sair supondo [unterstellen] uma “acumula-
ção primitiva” [previous accumulation, em Adam Smith], precedente à
acumulação capitalista, uma acumulação que não é resultado do modo de
produção capitalista, mas seu ponto de partida.
Essa acumulação primitiva desempenha na economia política um pa-
pel análogo ao pecado original na teologia. Adão mordeu a maçã e deste
modo o pecado desceu sobre o género humano. Explica-se a sua origem
contando-a como episódio ocorrido no passado. Em tempos muito remo-
* Texto fixado por António Simões do Paço (Janeiro de 2017), tomando por base a
edição brasileira da Abril Cultural (São Paulo, 1984) de O Capital, de Karl Marx,
Livro I, Tomo 2, capítulo XXIV, compulsada com a tradução (do alemão) de José
Barata-Moura e Álvaro Pina (publicada segundo o texto da 4.ª edição alemã de
1890) para a Editorial Avante! (in www.marxists.org/portugues/marx/1867/capital
/cap24/#tr1) e com a tradução inglesa de Samuel Moore e Edward Aveling, editada
por Friedrich Engels, Karl Marx. Capital Volume One, Part VIII: Primitive Accu-
mulation. Versão online: Marx/Engels Internet Archive (marxists.org) 1995, 1999.
In www.marxists.org/archive/marx/works/1867-c1/index.htm. Consultada em 6 de
janeiro de 2017.
202 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
tos, havia, por um lado, uma elite laboriosa, inteligente e sobretudo
parcimoniosa, e, por outro lado, uma ralé preguiçosa que dissipava tudo o
que tinha e mais que houvesse. A lenda do pecado original teológico
conta-nos, certamente, como o homem foi condenado a ganhar o seu pão
com o suor do seu rosto; no entanto, a história do pecado original econó-
mico revela-nos por que há gente que não tem necessidade disso. Tanto
faz. Assim se explica que os primeiros acumularam riquezas e os últimos,
finalmente, nada tinham para vender a não ser a sua própria pele. E desse
pecado original data a pobreza da grande massa que até agora, apesar de
todo seu trabalho, nada possui para vender senão a si mesma, e a riqueza
dos poucos, que cresce continuamente, embora há muito tenham deixado
de trabalhar. Esta trivial história para crianças conta-a ainda, por exem-
plo, o senhor Thiers, com o ar sério das solenidades de Estado, aos Fran-
ceses outrora de espírito tão vivo, em defesa da propriété.1 Mas assim
que a questão da propriedade está em jogo, torna-se dever sagrado manter
o ponto de vista da cartilha infantil como o único justo para todas as
classes etárias e etapas de desenvolvimento. Na história real, como se
sabe, a conquista, a subjugação, o assassínio para roubar, em suma, a
violência, desempenham o principal papel. Na suave economia política
reinou desde sempre o idílio. Desde sempre, o direito e o “trabalho” têm
sido os únicos meios de enriquecimento, exceptuando-se de cada vez,
naturalmente, “este ano”. Na realidade, os métodos da acumulação pri-
mitiva são tudo menos idílicos.
Dinheiro e mercadoria, desde o princípio, são tão pouco capital quanto
os meios de produção e de subsistência. Eles requerem a sua transforma-
ção em capital. Mas essa transformação só pode realizar-se em determi-
nadas circunstâncias, que se resumem ao seguinte: duas espécies bem
diferentes de possuidores de mercadorias têm de defrontar-se e entrar em
contacto; de um lado, possuidores de dinheiro, meios de produção e
meios de subsistência, que se propõem valorizar a soma de valor que
possuem por meio da compra de força de trabalho alheia; do outro, tra-
balhadores livres, vendedores da própria força de trabalho e, portanto,
vendedores de trabalho. Trabalhadores livres num duplo sentido, porque
não pertencem directamente aos meios de produção, como os escravos, os
servos, etc., nem os meios de produção lhes pertencem, como, por exem-
plo, o camponês economicamente autónomo, etc., antes estão livres deles,
livres e sem responsabilidades. Com essa polarização do mercado estão
dadas as condições fundamentais da produção capitalista. A relação de
capital pressupõe a separação entre os trabalhadores e a propriedade das
condições da realização do trabalho. Assim que a produção capitalista se
1 Propriedade. Em francês no texto.
A CHAMADA A CU MULAÇ ÃO P RIMIT IVA | 203
apoia nos seus próprios pés, não só conserva aquela separação, como a
reproduz em escala sempre crescente. Portanto, o processo que cria a
relação de capital não pode ser outra coisa que o processo de separação
do trabalhador da propriedade das condições do seu trabalho, um proces-
so que transforma, por um lado, os meios de subsistência e de produção
em capital, e por outro, os produtores directos em trabalhadores assala-
riados. A chamada acumulação primitiva não é mais, portanto, que o
processo histórico de separação entre produtor e meio de produção. Ele
aparece como “primitivo” porque constitui a pré-história do capital e do
modo de produção que lhe corresponde.
A estrutura económica da sociedade capitalista proveio da estrutura
económica da sociedade feudal. A decomposição desta libertou os ele-
mentos daquela.
O produtor imediato, o trabalhador, somente pôde dispor da sua pes-
soa depois de deixar de estar vinculado à gleba e de ser servo ou depen-
dente de outra pessoa. Para tornar-se vendedor livre de força de trabalho,
que leva a sua mercadoria a qualquer lugar onde houver mercado para
ela, ele precisava ainda de ter escapado ao domínio das corporações, dos
seus regulamentos para aprendizes e oficiais e das prescrições restritivas
do trabalho. Assim, o movimento histórico que transforma os produtores
em trabalhadores assalariados aparece, por um lado, como a sua liberta-
ção da servidão e da coacção corporativa; e esse aspecto é o único que
existe para os nossos escribas burgueses da história. Por outro lado,
porém, esses recém-libertos só se tornam vendedores de si mesmos
depois de todos os seus meios de produção e todas as garantias da sua
existência oferecidas pelas velhas instituições feudais lhes terem sido
roubados. E a história dessa sua expropriação está inscrita nos anais da
humanidade com traços de sangue e fogo.
Os capitalistas industriais, estes novos potentados, tiveram de desalo-
jar, por sua vez, não apenas os mestres-artesãos corporativos, mas tam-
bém os senhores feudais, possuidores das fontes de riquezas. Sob este
aspecto, a sua ascensão apresenta-se como fruto de uma luta vitoriosa
contra o poder feudal e os seus privilégios revoltantes, assim como contra
as corporações e os entraves que estas opunham ao livre desenvolvimento
da produção e à livre exploração do homem pelo homem. Mas os cavalei-
ros da indústria só conseguiram desalojar os cavaleiros da espada explo-
rando acontecimentos em que não tiveram a menor culpa. Eles elevaram-
-se por meios tão vis como aqueles por meio dos quais o liberto romano
se fez outrora senhor do seu patronus.2
2 Senhor, amo, patrão (por extensão). Em latim no texto.
204 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
O ponto de partida do desenvolvimento que produziu tanto o trabalha-
dor assalariado como o capitalista foi a servidão do trabalhador. A conti-
nuação consistiu numa mudança de forma dessa sujeição, na transforma-
ção da exploração feudal em capitalista. Para compreender o seu curso
não precisamos de recuar muito. Ainda que os primórdios da produção
capitalista já se nos apresentem esporadicamente nalgumas cidades
mediterrânicas nos séculos XIV e XV, a era capitalista só data do século
XVI. Onde ela surge, a servidão já está abolida há muito tempo e o ponto
mais brilhante da Idade Média, a existência de cidades soberanas, há
muito começou a empalidecer.
O que faz época na história da acumulação primitiva são todos os re-
volucionamentos que servem de alavanca à classe capitalista em forma-
ção, sobretudo, porém, todos os momentos em que grandes massas hu-
manas são arrancadas súbita e violentamente aos seus meios de
subsistência e lançadas no mercado de trabalho como proletários livres
como passarinhos.3 A expropriação da base fundiária do produtor rural,
do camponês, forma a base de todo o processo. A sua história assume
coloração diferente nos diversos países e percorre as várias fases em
sequência diversa e em diferentes épocas históricas. Apenas na Inglaterra,
que, por isso, tomamos como exemplo, assume a sua forma clássica.4
3 Vogelfrei, no original alemão.
4 Na Itália, onde a produção capitalista se desenvolveu mais cedo, ocorre também
mais cedo a dissolução das relações de servidão. O servo é emancipado aqui antes
de ter assegurado, por prescrição, qualquer direito à base fundiária. A sua emanci-
pação transforma-o, pois, imediatamente num proletário livre como os pássaros,
que, porém, já encontra os novos senhores nas cidades, na sua maioria originárias
da época de Roma. Quando a revolução do mercado mundial,ª no final do século
XV, destruiu a supremacia comercial do Norte da Itália, surgiu um movimento em
sentido contrário. Os trabalhadores das cidades foram expulsos em massa para o
campo e lá deram à pequena agricultura, exercida sob a forma de jardinagem, um
impulso nunca visto.
ª Marx fala aqui das consequências económicas dos grandes descobrimentos
geográficos do final do século XV. Devido ao descobrimento do caminho marítimo
para a Índia, ao descobrimento das ilhas das Índias Ocidentais e ao do continente
americano chegou-se a um extenso deslocamento das rotas do tráfego comercial. As
cidades comerciais do Norte de Itália (Génova e Veneza, entre outras) perderam a
sua predominância. Em contrapartida, Portugal, Países Baixos, Espanha e Inglaterra
começaram a desempenhar o papel principal no comércio mundial, favorecidos pela
sua posição em relação ao oceano Atlântico (nota da edição alemã).
A CHAMADA A CU MULAÇ ÃO P RIMIT IVA | 205
2. Expropriação do povo do campo da sua base fundiária
Em Inglaterra, a servidão tinha de facto desaparecido na parte final do
século XIV. A grande maioria da população5 consistia naquela época, e
mais ainda no século XV, de camponeses livres, economicamente autó-
nomos, fosse qual fosse o título feudal atrás do qual se escondia a sua
propriedade. Nos domínios senhoriais maiores, o bailiff [bailio, feitor],
outrora ele mesmo servo, foi desalojado pelo arrendatário livre. Os tra-
balhadores assalariados da agricultura consistiam, em parte, em campo-
neses, que aproveitavam o seu tempo livre trabalhando para os grandes
proprietários, em parte numa classe independente, relativa e absoluta-
mente pouco numerosa, de trabalhadores assalariados propriamente ditos.
Também estes eram, ao mesmo tempo, de facto camponeses economica-
mente autónomos, pois recebiam, além do seu salário, um terreno arável
de 4 ou mais acres além das cottages.6 Além disso, junto com os campo-
neses propriamente ditos, gozavam o usufruto das terras comunais, em
que pastava o seu gado e que lhes forneciam ao mesmo tempo com-
bustíveis, como lenha, turfa, etc.7 Em todos os países da Europa, a produ-
ção feudal é caracterizada pela partilha do solo entre o maior número
possível de súbditos. O poder de um senhor feudal, como o de qualquer
5 “Os pequenos proprietários fundiários, que cultivavam as suas terras com as pró-
prias mãos e usufruíam de um modesto bem-estar (...) constituíam então uma parte
muito importante da nação em relação aos tempos actuais. (...) Nada menos que 160
mil proprietários, que com as suas famílias deviam ter representado mais de 1/7 da
população total, viviam da exploração das suas pequenas parcelas freehold”
[freehold é propriedade plenamente livre]. “O rendimento médio desses pequenos
proprietários fundiários (...) é avaliado como sendo de 60 a 70 libras esterlinas.
Calculou-se que o número daqueles que cultivavam a sua própria terra era maior
que o dos rendeiros que lavravam terra alheia” (Macaulay. Hist. Of England, 10ª
ed., Londres, 1854, I pp. 333-334). Ainda no último terço do século XVII, 4/5 da
massa popular inglesa eram agricultores (Op.cit. p. 413) – Cito Macaulay porque,
como falsário sistemático da história, ele “poda” tanto quanto possível tais factos
(nota de Marx).
6 Em inglês no texto: pequenas casas rurais, cabanas.
7 Não se deve esquecer jamais que o próprio servo não era apenas proprietário, ainda
que proprietário sujeito a tributos, da parcela de terra pertencente à sua casa, mas
também co-proprietário das terras comunais. “O camponês é lá” (na Silésia) “ser-
vo”. Nao obstante, possuem esses serfs bens comunais. “Nao se conseguiu até agora
induzir os silesianos à partilha das terras comunais, enquanto na Neumark não
existe quase nenhuma aldeia em que essa partilha não tenha sido efetuada com
grande sucesso.” (Mirabeau. De la Monarchie Prussienne. Londres, 1788. T.II,
p. 125-126). (Nota de Marx).
206 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
soberano, não se baseava no montante da sua renda, mas no número dos
seus súbditos, e este dependia do número de camponeses economica-
mente autónomos.8 Embora o solo inglês, depois da conquista normanda,
tenha sido dividido em baronias gigantescas, das quais uma única muitas
vezes abrangia a extensão de 900 antigos senhorios anglo-saxónicos, ele
estava salpicado de pequenas explorações camponesas, interrompidas
apenas aqui e ali por domínios senhoriais maiores. Tais condições, com o
florescimento simultâneo das cidades, característico do século XV, per-
mitiam aquela riqueza do povo de que o chanceler Fortescue tanto fala
em seus Laudibus Legum Angiliae, mas excluíam a riqueza de capital.
O prelúdio do revolucionamento que criou a base do modo de produ-
ção capitalista ocorreu no último terço do século XV e nas primeiras
décadas do século XVI. Uma massa de proletários livres como passari-
nhos foi lançada no mercado de trabalho pela dissolução dos séquitos
feudais, que, como observa acertadamente Sir James Steuart, “por toda a
parte enchiam inutilmente casa e castelo”.9 Embora o poder real, ele
próprio um produto do desenvolvimento burguês, na sua luta pela sobera-
nia absoluta tenha acelerado violentamente a dissolução desses séquitos,
não foi, de modo algum, a sua única causa. Foi muito mais, em oposição
mais teimosa à realeza e ao Parlamento, o grande senhor feudal quem
criou um proletariado incomparavelmente maior mediante a expulsão
violenta do campesinato da base fundiária, sobre a qual possuía o mesmo
título jurídico feudal que ele, e usurpação da sua terra comunal. O impul-
so imediato para isso foi dado, na Inglaterra, nomeadamente pelo flores-
cimento da manufactura flamenga de lã e o correspondente aumento dos
preços da lã. As grandes guerras feudais tinham devorado a velha nobreza
feudal, e a nova era filha do seu tempo, sendo para ela o dinheiro o poder
de todos os poderes. Por isso, a transformação de terras de lavoura em
pastagens para ovelhas tornou-se a sua divisa. Harrison, na sua Description
of England. Prefixed to Holinshed’s Chronicles, descreve como a expro-
priação dos pequenos camponeses arruína o pais. What care our great
incroachers! (Mas o que importa isso aos nossos grandes usurpadores!)
As habitações dos camponeses e as cottages dos trabalhadores foram
violentamente demolidas ou entregues à ruína.
8 O Japão, com o seu sistema puramente feudal de propriedade fundiária e a sua
economia desenvolvida de pequena agricultura, oferece um quadro muito mais fiel
da Idade Média europeia que todos os nossos livros de história, ditados na sua
maioria por preconceitos burgueses. É fácil demais ser “liberal” a custa da Idade
Média (Nota de Marx.)
9 Steuart, James. An Inquiry into the Principles of Political Economy. Dublin, 1770,
v. I, p. 52. (N. da Ed. Alemã.)
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“Consultando”, diz Harrison, “os inventários mais antigos de cada
domínio senhorial, ver-se-á que desapareceram inúmeras casas e pe-
quenas explorações camponesas, que o campo alimenta muito menos
gente, que muitas cidades decaíram, ainda que algumas novas flores-
çam. (...) De cidades e aldeias, que foram destruídas para dar lugar a
pastagens de ovelhas e onde ficaram apenas as casas senhoriais, eu
poderia dizer algo.”
As queixas daquelas antigas crónicas são sempre exageradas, mas
ilustram exactamente como a revolução nas condições de produção
impressionou os próprios contemporâneos. Uma comparação dos escritos
do chanceler Fortescue e de Thomas Morus torna visível o abismo entre
os séculos XV e XVI. Da sua idade de ouro, a classe trabalhadora inglesa
caiu sem transição, como Thornt diz acertadamente, à idade de ferro.
A legislação aterrorizou-se com esse revolucionamento. Não tinha
chegado àquele ápice da civilização em que wealth of the nation, isto é, a
formação do capital e a exploração inescrupulosa e o empobrecimento da
massa do povo é considerada o píncaro de toda a sabedoria de Estado. Na
sua história de Henrique VII, diz Bacon:
“Naquele tempo” (1489) “aumentaram as queixas sobre a transforma-
ção de terras de lavoura em pastagens” (para criação de ovelhas, etc.)
“fáceis de cuidar por poucos pastores; e arrendamentos por tempo de-
terminado, vitalícios ou anualmente revogáveis (dos quais vivia grande
parte dos yeomen10 foram transformados em domínios senhoriais. Isso
provocou uma decadência das cidades, igrejas, dízimos. (...) Na cura
desse mal, a sabedoria do rei e do Parlamento naquela época foi admi-
rável. (...) Tomaram medidas contra essa usurpação despovoadora das
terras comunais (depopulating inclosures) e a exploração pastoril des-
povoadora (depopulating pasture) que lhe seguia as pegadas”.
Um decreto de Henrique VII, 1489, c. 19, proibiu a destruição de to-
das as casas camponesas às quais pertencessem pelo menos 20 acres de
terra. Num decreto, 25, de Henrique VIII,11 a mesma lei é renovada. Diz-
-se ali, entre outras coisas, que
“muitos arrendamentos e grandes rebanhos de gado, especialmente de
ovelhas, acumulam-se em poucas mãos, por meio do que as rendas da
terra tinham crescido muito, decaindo, ao mesmo tempo, a lavoura
(tillage), sendo demolidas igrejas e casas e massas populares maravi-
lhosas incapacitadas de sustentar a si mesmas e às suas famílias”.
10 Pequenos proprietários rurais.
11 Ou seja, um decreto emitido no 25.º ano do reinado de Henrique VIII.
208 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
A lei ordena, por isso, a reconstrução das propriedades camponesas
decaídas, determina a proporção entre campos de cereais e pastagens, etc.
Um decreto de 1533 lamenta que alguns proprietários possuíam 24 mil
ovelhas e limita o seu número a duas mil.12 As queixas do povo e a legis-
lação que, a partir de Henrique VII, continuamente, por 150 anos, se
voltava contra a expropriação dos pequenos rendeiros e camponeses,
foram igualmente infrutíferas. O segredo do seu fracasso é-nos revelado
por Bacon, sem o saber.
“O decreto de Henrique VII” diz ele nos seus Essays, Civil and Moral,
seção 29, “era profundo e digno de admiração ao criar explorações
camponesas e casas rurais de determinado padrão, isto é, ao manter
para os lavradores uma proporção de terra que os capacitava a trazer
ao mundo súbditos com riqueza suficiente e sem posição servil, man-
tendo o arado na mão de proprietários e não de trabalhadores alugados
(to keep the plough in the hand of the owners and not hirelings).”13
Mas o que o sistema capitalista requeria era, pelo contrário, uma posi-
ção servil da massa do povo, a sua transformação em trabalhadores para
aluguer e a dos seus meios de trabalho em capital. Durante esse período
de transição, a legislação procurou também conservar os 4 acres de terra
junto à cottage do assalariado agrícola e proibiu-o de ter inquilinos na sua
cottage. Ainda em 1627, no reinado de Carlos I, Roger Crocker de
12 Na sua Utopia, Thomas Morus fala de uns pais singular onde “os carneiros devo-
ram os homens”. (Utopia. Tradução de Robinson. Ed. Arber, Londres, 1869,
p. 41). (Nota de Marx.)
13 Bacon mostra a relação entre um campesinato abastado e livre e uma boa infantaria.
“Era admiravelmente importante para o poder e manutencao do reino ter arrenda-
mentos de áreas suficientes para sustentar homens capazes sem penúria e assegurar
que grande parte do solo do reino ficasse na posse da yeomanry ou de pessoas em
condições médias entre os nobres e os caseiros (cottagers) e servos camponeses. (...)
Pois é a opinião geral dos mais competentes conhecedores da guerra (...) que a força
principal de um exército consiste na infantaria ou nos combatentes a pé. Mas para
constituir uma boa infantaria necessita-se de pessoas que se criaram não de modo
servil ou na indigência, mas em liberdade e com certo bem-estar. Quando um Estado
excede em pessoas nobres e senhores finos, enquanto os aldeões e lavradores não
passam de meros trabalhadores ou servos agrícolas, ou ainda caseiros, isto é, mendi-
gos alojados, pode-se ter uma boa cavalaria, mas nunca se terá uma infantaria boa e
firme. (...) Isso é o que se vê na França e Itália e em algumas outras regiões estran-
geiras, onde de facto todos são ou nobres ou camponeses miseráveis (...) até ao ponto
em que são obrigados a empregar bandos mercenários de suíços ou semelhantes para
os seus batalhões de infantaria: o que também faz que essas nações tenham muito
povo e poucos soldados.”(The reign of Henry VII etc. Verbatim Reprint from Ken-
net’s England, ed. 1719. Londres, 1870, p. 308.) (Nota de Marx.)
A CHAMADA A CU MULAÇ ÃO P RIMIT IVA | 209
Fontmill foi condenado pela construção no domínio de Fontmill de uma
cottage sem 4 acres de terra como anexo permanente; ainda em 1638, no
reinado de Carlos I, foi nomeada uma comissão real para impor a execu-
ção das velhas leis, nomeadamente sobre os 4 acres de terra; Cromwell
também proibiu a construção de uma casa num raio de 4 milhas ao redor
de Londres se não estivesse dotada de 4 acres de terra. Ainda na primeira
metade do século XVIII fazem-se queixas quando a cottage do trabalha-
dor agrícola não tem como complemento 1 ou 2 acres. Hoje ele fica feliz
quando ela é dotada de um jardinzinho ou quando pode arrendar longe
dela umas poucas varas de terra.
“Senhores da terra e rendeiros”, diz o Dr. Hunter, “agem, neste caso,
de mãos dadas. Alguns acres junto com a cottage tornariam o traba-
lhador demasiado independente.”14
O processo de expropriação violenta da massa do povo recebeu novo e
terrível impulso no século XVI pela Reforma e, em consequência dela,
pelo roubo colossal dos bens da Igreja. A Igreja católica era, ao tempo da
Reforma, proprietária feudal de uma grande parte da terra inglesa. A
supressão dos conventos, etc., lançou os seus moradores na proletariza-
ção. Os próprios bens da Igreja foram, em grande parte, entregues a
favoritos reais rapaces ou vendidos por um preço irrisório a rendeiros ou
a citadinos especuladores, que expulsaram em massa os antigos súbditos
hereditários, juntando as suas explorações. A propriedade legalmente
garantida a camponeses empobrecidos de uma parte dos dízimos da Igreja
foi facilmente confiscada.15 Pauper ubique jacet,16 exclamou a rainha
Isabel após uma viagem pela Inglaterra. No 43.º ano de seu reinado, foi
forçado finalmente o reconhecimento oficial do pauperismo, mediante a
introdução do imposto para os pobres.
“Os autores dessa lei envergonhavam-se de enunciar as suas razões e
por isso, contra toda a tradição, trouxeram-na ao mundo sem nenhum
preâmbulo (exposição de motivos).17
14 Dr. Hunter. Op. cit., p. 134. – “A quantidade de terra que” (nas velhas leis) “era
atribuída seria hoje considerada grande demais para trabalhadores e mais apropria-
da para transformá-los em pequenos rendeiros.” (Roberts, George. The Social His-
tory of the People of the Southern Counties of England in Post Centuries. Londres,
1856, p. 184.) (Nota de Marx.)
15 “O direito dos pobres a participar nos dízimos da Igreja é fixado por velhos
estatutos.”(Tucket. Op cit., v. II, p. 804-805.)
16 “Em toda a parte os pobres sao infortunados.” – Da obra de Ovídio Fasti. Livro
Primeiro, verso 218. (N. da Ed. Alemã.)
17 Cobbet, William. A History of the Protestant Reformation. § 471. (Nota de Marx.)
210 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
Essa lei foi declarada perpétua pela [lei] 4, do 16.° [ano do reinado] de
Carlos I e de facto só em 1834 é que recebeu uma nova forma, mais dura.18
Esses efeitos imediatos da Reforma não foram os mais persistentes. A
propriedade da Igreja constituía o baluarte religioso das antigas relações de
propriedade. Ao cair aquela, estas não poderiam ser mantidas.19
18 Reconhece-se o «espírito» protestante, entre outras coisas, no seguinte. No Sul de
Inglaterra vários proprietários fundiários e rendeiros abastados juntaram-se e redi-giram 10 questões sobre a correcta interpretação da lei dos pobres da [rainha] Isa-bel, questões essas que submeteram ao parecer de um jurista de nomeada daquele tempo, Sergeant Snigge (mais tarde juiz no reinado de Jaime I). “Questao 9 – Al-guns dos mais ricos rendeiros da paróquia inventaram um modo habilidoso pelo qual podia ser evitado todo o embaraço de executar esta Lei (no 43.° [ano do rei-nado] de Isabel). Propuseram que construamos uma prisão na paróquia e demos depois notícia à vizinhança de que se quaisquer pessoas estiverem dispostas a ar-rendar os pobres desta paróquia elas que entreguem propostas seladas, num certo dia, do preço mais baixo pelo qual no-los tirarão das mãos; e que estarão autoriza-dos a recusar assistência a qualquer pobre a menos que ele esteja encerrado na prisão acima dita. Os proponentes deste plano concebem que se encontrarão nos condados vizinhos pessoas que, não tendo vontade de trabalhar e não possuindo substância ou crédito para tomar uma quinta ou um navio, de modo a viverem sem trabalhar, poderão ser induzidas a fazer à paróquia uma oferta muito vantajosa. Se qualquer dos pobres perecer sob a protecção do contratante, a culpa ficar-lhe-á em casa uma vez que a paróquia terá feito o seu dever por eles. Estamos, no entanto, apreensivos pelo facto de a presente Lei (no 43.° [ano do reinado] de Isabel) não garantir uma medida prudencial deste tipo; mas, fica a saber que o resto dos pro-prietários livres do condado e do condado confinante de B muito prontamente se juntarão a dar instruções aos seus membros para que proponham uma lei que habi-lite a paróquia a contratar uma pessoa para prender os pobres e fazê-los trabalhar; e a declarar que se qualquer pessoa se recusar a ser deste modo presa e a trabalhar, não terá direito a qualquer assistência. Isto, espera-se, impedirá as pessoas em aflição de quererem assistência...» (R. Blakey, The History of Political Literature from the Earliest Times [A História da Literatura Política desde os Primeiros Tem-pos], Lond., 1855, vol. II, pp. 84-85.) – Na Escócia, a abolição da servidão teve lugar séculos mais tarde do que na Inglaterra. Ainda em 1698, Fletcher, de Sal-toun, declarava no Parlamento escocês: “O número de pedintes na Escócia está calculado em não menos de 200 000. O único remédio que eu, republicano por princípio, posso sugerir é que se restaure o antigo estado de servidão, para tornar escravos todos aqueles que são incapazes de prover à sua própria subsistência.”
Deste modo, Eden, The State of the Poor [A Situação dos Pobres], London, 1797, Livro I, c. 1, pp. 60-61, diz: “O decréscimo da vilanagem parece necessariamente ter sido a era da origem dos pobres. As manufacturas e o comércio são os dois pais dos nossos pobres nacionais.” Eden, tal como aquele republicano escocês por princípio, erra apenas em que não é a supressão da servidão, mas a supressão da propriedade do agricultor sobre a terra que faz dele proletário, isto é, pobre. As leis dos pobres em Inglaterra correspondem, em França, em que a expropriação se executou de outra maneira, às ordenanças de Moulins de 1566 e ao Édito de 1656. (Nota de Marx.)
19 O Sr. Rogers, apesar de ser então professor de Economia Política na Universidade
A CHAMADA A CU MULAÇ ÃO P RIMIT IVA | 211
Ainda nas últimas décadas do século XVII, a yeomanry, uma classe de
camponeses independentes, era mais numerosa que a classe dos rendei-
ros. Ela constituíra a força principal de Crowell e, conforme confessa o
próprio Macaulay, contrastava vantajosamente com os fidalgos porca-
lhões e beberrões e seus lacaios, os padres rurais, que tinham de conse-
guir casamento para a “criada preferida” do senhor. Os assalariados rurais
ainda participavam da propriedade comunal. Cerca de 1750, a yeomanry
tinha desaparecido20 e, nas últimas décadas do século XVII, também o
último vestígio de propriedade comunal dos lavradores. Abstraímos as
forças motrizes puramente económicas da revolução agrícola. O que
procuramos são as alavancas com que foi violentamente realizada.
Sob a restauração dos Stuarts, os proprietários fundiários impuseram
legalmente uma usurpação, que em todo o continente se fez sem rodeios
legais. Aboliram a organização feudal da terra, quer dizer: desembaraça-
ram-se das suas obrigações para com o Estado, “indemnizaram” o Estado
por meio de impostos sobre o campesinato e o resto da massa do povo,
reivindicaram uma propriedade privada moderna sobre patrimónios de
que apenas possuíam um título feudal e, finalmente, outorgaram aquelas
leis de domiciliação (laws of settlement) que tiveram, mutatis mutandis,
sobre os lavradores ingleses os mesmos efeitos que o édito do tártaro
Boris Godunov sobre o campesinato russo.21
A Glorious Revolution (Revolução Gloriosa)22 trouxe, com Guilherme III
de Oxford, sede da ortodoxia protestante, acentua em seu prefácio à History of
Agriculture a pauperização da massa do povo pela Reforma. (Nota de Marx.)
20 A Letter to Sir T. C. Bunbury, Brt.: On the High Price of Provisions. By a Sulfolk
Gentleman, Ipswich, 1795. p. 4. Mesmo o fanático defensor do sistema de grandes
arrendamentos, o autor [J. Arbuthnot] da Inquiry into the Connection of Large
Farms etc. (Londres, 1773. p. 139) diz: “O que deploro mais é a perda da nossa
yeomanry, aquele conjunto de homens que, na realidade, sustentou a independên-
cia desta nação; e lamento ver as suas terras, agora nas mãos de lordes monopoli-
zadores, serem arrendadas a pequenos rendeiros, que obtêm os seus arrendamentos
sob tais condições que são pouco mais que vassalos que em todas as ocasiões ad-
versas têm de atender a chamamentos”.
21 Sob o reinado de Fiodor Ivanovitch (1584-1598), quando o soberano de facto da
Rússia era Boris Gudonov, foi decretado um édito, em 1597, segundo o qual os
camponeses que tinham fugido do jugo insuportável e das chicanas dos proprietá-
rios fundiários seriam procurados durante cinco anos e devolvidos à força aos seus
antigos senhores. (N. da Ed. Alemã.)
22 Designação habitual, na historiografia burguesa da Inglaterra, para o golpe de
Estado de 1688. O golpe de Estado consolidou a monarquia constitucional na In-
glaterra, que se baseava num compromisso entre os nobres proprietários fundiários
e a burguesia. (N. da Ed. Alemã.)
212 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
de Orange,23 extractores de mais-valia fundiários e capitalistas ao poder.
Inauguraram a nova era praticando o roubo dos domínios do Estado, até
então realizado em proporções apenas modestas, em escala colossal.
Essas terras foram presenteadas, vendidas a preços irrisórios ou, mediante
usurpação directa, anexadas a propriedades privadas.24 Tudo isso ocorreu
sem nenhuma observância da etiqueta legal. O património do Estado
apropriado tão fraudulentamente, junto com o roubo da Igreja, na medida
em que não desapareceram durante a revolução republicana, formam a
base dos actuais domínios principescos da oligarquia inglesa.25 Os capita-
listas burgueses favoreceram a operação visando, entre outros motivos,
transformar a base fundiária em puro artigo de comércio, expandir a área
da grande exploração agrícola, multiplicar a sua oferta de proletários
livres como passarinhos provenientes do campo, etc. Além disso, a nova
aristocracia fundiária era aliada natural da bancocracia, da alta finança
que acabava de sair da casca do ovo e dos grandes manufactureiros, que
então se apoiavam sobre tarifas proteccionistas. A burguesia inglesa agiu
assim, em defesa dos seus interesses, tão acertadamente como os burgue-
ses suecos que, inversamente, junto com o seu baluarte económico, o
campesinato, apoiaram os reis na recuperação violenta das terras da
Coroa em mãos da oligarquia (desde 1604, mais tarde sob Carlos X e
Carlos XI).
A propriedade comunal – inteiramente diferente da propriedade do Es-
tado considerada acima – era uma antiga instituição germânica, que
continuou a viver sob a cobertura do feudalismo. Viu-se como a violenta
usurpação da mesma, em geral acompanhada pela transformação da terra
de lavoura em pastagem, começa no final do século XV e prossegue no
23 Sobre a moral privada desse herói burguês lê-se, entre outras coisas: “As grandes
concessões de terras a Lady Orkney na Irlanda, no ano de 1695, são uma demons-
tração pública da afeição do rei e da influência da lady. (...) Consta que os precio-
sos serviços de Lady Orkney consistiram em (...) foeda labiorum ministeria” [su-
jos serviços de lábios] (Na Sloane Manuscript Collection, no Museu Britânico, n.º
4224. O manuscrito é intitulado: “The charakter and behaviour of King William,
Sunderland etc. as represented in Original Letters to the Duke of Shewsbury from
Somers, Halifax, Oxford, Secretary Vernon etc.” Está cheio de coisas curiosas.)
(Nota de Marx.)
24 “A alienacao legal dos bens da Coroa, em parte por venda e em parte por doacao,
constitui um capítulo escandaloso na história inglesa (...) uma fraude gigantesca
contra a nação (gigantic fraud on the nation)”. (Newman, F. W. Lectures on Poli-
tical Econ. Londres, 1851, p. 129-130) – {Como os atuais latifundiários ingleses
chegaram às suas terras, pode-se ver em pormenores em [Evans, N. H.] Our Old
Noblesse Oblige. Londres, 1879. Nota de Engels.}
25 Leia-se, por exemplo, o panfleto de E. Bures sobre a casa ducal de Bedford, cujo
fruto, Lord Russell é the tomtit of liberalism [O passarinho do liberalismo].
A CHAMADA A CU MULAÇ ÃO P RIMIT IVA | 213
século XVI. Mas então o processo efectivava-se como acto individual de
violência contra o qual a legislação lutou, em vão, durante 150 anos. O
progresso do século XVIII consiste em a própria lei se tornar agora
veículo do roubo das terras do povo, embora os grandes rendeiros empre-
guem também os seus pequenos métodos independentes privados.26 A
forma parlamentar do roubo é a da Bills for Inclosures of Commons (leis
para a vedação de terrenos comunais), por outras palavras, decretos pelos
quais os senhores da terra oferecem a si próprios terra do povo como
propriedade privada, decretos da expropriação do povo. Sir F. M. Eden
refuta o seu pleitear manhoso de advogado em que procura apresentar a
propriedade comunal como propriedade privada dos grandes proprietários
fundiários que tomaram o lugar dos feudais, uma vez que ele próprio
reclama uma “lei geral do Parlamento para a vedação de terrenos comu-
nais” e, portanto, admite que é preciso um golpe de Estado parlamentar
para a sua transformação em propriedade privada, mas, por outro lado,
reclama da legislatura uma “indemnização” para os pobres expropria-
dos.27
Enquanto o lugar dos yeomen independentes foi tomado por tenants-
-at-will, pequenos rendeiros sujeitos a renovação anual, um bando servil e
dependente dos caprichos do senhor da terra, o roubo sistematicamente
cometido, designadamente da propriedade comunal, juntamente com o
roubo dos domínios do Estado, ajudou a engrossar aquelas grandes her-
dades a que, no século XVIII, se chamava herdades de capital28 ou herda-
des de mercador,29 e a “libertar” o povo rural como proletariado para a
indústria.
O século XVIII, entretanto, não chegou a compreender, na mesma
medida que o século XIX, a identidade entre riqueza nacional e pobreza
do povo. Daí, portanto, a mais violenta polémica na literatura económica
26 “Os rendeiros [farmers] proibiram os cottagers de manter quaisquer criaturas
vivas, além deles próprios e dos filhos, sob o pretexto de que se eles mantivessem
animais ou aves de capoeira roubariam os celeiros dos rendeiros para o sustento
deles. Eles diziam também: mantenham os cottagers pobres e mantê-los-ão indus-
triosos’ A realidade dos factos, porém, é que os rendeiros usurpam, assim, todos os
direitos sobre as terras comunais.” (A political Enquiry into the Consequences of
enclosing Waste Lands. Londres, 1785, p. 75.) (Nota de Marx.)
27 Eden. Op. cit. Preface [p. XVII, XIX]. (Nota de Marx.)
28 “Capital Farms.” (Two Letters on the Flour and the Deamess of Com. By a Person
in Business. Londres, 1767, p. 19-20.)
29 “Merchant-Farms.” (An Inquiry into the Present High Prices of Provisions.
Londres, 1767, p. 111, nota.) Esse bom escrito, que apareceu anonimamente, é de
autoria do Rev. Nathanael Forster.
214 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
dessa época sobre a inclosure of commons30. Cito do volumoso material
que tenho perante mim algumas passagens porque assim as circunstâncias
serão visualizadas de modo mais vivo.
“Em muitas paróquias do Hertfordshire”, escreve uma pena indignada,
“24 quintas com 50-150 acres em média foram fundidas em 3 quin-
tas.” “Em Northamptonshire e Leicestershire a vedação de terras co-
munais teve lugar numa escala muito grande, e a maior parte dos no-
vos senhorios [lordships] resultantes da vedação foi transformada em
pastagens; em consequência do que muitos senhorios em que ante-
riormente eram lavrados 1500 acres não têm agora 50 acres lavrados
anualmente. (...) Ruínas de antigas habitações, celeiros, estábulos,
etc.” são os únicos vestígios dos antigos habitantes. “Cem casas e fa-
mílias, em alguns lugares foram reduzidas (...) a 8 ou 10 (...) Os pro-
prietários fundiários, na maioria das paróquias, onde a vedação se rea-
lizou há apenas 15 ou 20 anos são muito poucos em comparação com
o número dos que lavravam a terra quando na condição de campo
aberto. Não é nada incomum ver 4 ou 5 ricos criadores de gado usur-
parem senhorios recentemente cercados, que antes se encontravam nas
mãos de 20 a 30 rendeiros e outros tantos pequenos proprietários e
moradores. Todos eles e as suas famílias foram expulsos das suas pos-
ses juntamente com muitas outras famílias que eram principalmente
empregues e sustentadas por eles.”31
Não apenas terra em pousio, mas frequentemente terra cultivada, me-
diante certo pagamento à comunidade ou em comum, sob o pretexto da
vedação era anexada pelo senhor vizinho.
“Refiro-me aqui à vedação de campos abertos e terras que já são culti-
vados. Mesmos os escritores que defendem os inclosures admitem que
estes últimos aumentam o monopólio das grandes quintas, elevam os
preços dos meios de subsistência e produzem despovoamento (...) e
mesmo a vedação de terras desertas, como fazem agora, rouba aos po-
bres parte dos seus meios de subsistência e apenas engrossa quintas
que agora já são grandes demais.32 “Se”, diz o Dr. Price, “esta terra for
parar às mãos de poucos grandes rendeiros, a consequência será que
os pequenos rendeiros” (antes designados por ele como “uma multi-
30 Vedação de terrenos comunais. N.T.
31 Rev. Addington. Enquiry into the Reasons for Against Enclosing open Fields.
Londres, 1772, pp. 37-43 passim.
32 Price, Dr. R. Op. cit., v. II, p. 155-156. Leia-se Forster, Addington, Kent, Price e
James Anderson e compare-se com a miserável tagarelice sicofanta de MacCul-
loch no seu catálogo The Literature of Political Economy, Londres, 1845.
A CHAMADA A CU MULAÇ ÃO P RIMIT IVA | 215
dão de pequenos proprietários e rendeiros [tenants] que se mantêm a
si próprios e às famílias com o produto da terra que ocupam, com car-
neiros criados em comum, com aves de capoeira, porcos, etc., e que,
por conseguinte, têm pouca ocasião de comprar qualquer dos meios de
subsistência”) “serão convertidos num corpo de homens que ganham a
sua subsistência trabalhando para outros e que estarão na necessidade
de ir ao mercado para tudo o que quiserem. (...) Haverá, talvez, mais
trabalho, porque há mais compulsão para isso. (...) Cidades e manu-
facturas crescerão, pois mais pessoas que buscam emprego serão im-
pelidas para elas. Essa é a forma como a concentração das quintas
opera naturalmente e como, neste reino, há muitos anos tem realmente
operado.”33
Ele resume assim o efeito global das enclosures:
“Em geral a situação das classes inferiores do povo tem piorado em
quase todos os sentidos; os pequenos proprietários fundiários e rendei-
ros são rebaixados à condição de jornaleiros e trabalhadores de alu-
guer; e, ao mesmo tempo, tornou-se mais difícil ganhar a vida nessa
condição.”34
33 Op. cit., p. 147-148.
34 Op. cit., p. 159-160. Recorda-se de Roma Antiga. “Os ricos tinham-se apoderado
da maior parte das terras não partilhadas. Eles confiavam, nas circunstâncias da
época, que elas não lhes seriam tomadas, e adquiriam por isso os lotes dos pobres
situados nas proximidades, em parte com o consentimento destes, em parte com
violência, de modo que lavravam exclusivamente vastos domínios em vez de cam-
pos isolados. Empregavam, por isso, escravos para a agricultura e para a pecuária,
pois as pessoas haviam sido retiradas do trabalho para prestar serviço militar. A
posse de escravos trouxe-lhes, além disso, grandes lucros, pois estes, devido à sua
libertação do serviço militar, podiam multiplicar-se sem perigo e tinham uma por-
ção de crianças. Assim, os poderosos apoderaram-se de toda a riqueza e toda a
região formigava de escravos. Os ítalos, pelo contrário, tornavam-se cada vez me-
nos, dizimados pela pobreza, tributos e serviço militar. Mesmo em épocas de paz,
porém, estavam condenados à completa inactividade, porque os ricos estavam de
posse do solo e usavam escravos, em lugar de pessoas livres, para a lavoura.”
(Apiano. Guerras Civis Romanas. 1, 7.) Esta passagem refere-se à época anterior à
lei licínia.ª O serviço militar que tanto acelerou a ruína dos plebeus romanos, foi
também o principal meio com o qual Carlos Magno promoveu artificialmente a
conversão de camponeses alemães livres em dependentes e servos.
ª Esta lei foi aprovada no ano de 367 a. C., na Roma Antiga, e determinava certa
limitação de posse de terras comunais para uso pessoal, assim como uma série de
medidas a favor dos devedores. Dirigia-se com isso contra o contínuo crescimento
dos latifúndios e contra os privilégios dos patrícios, e demonstra certo fortaleci-
mento das posições políticas e económicas dos plebeus. Segundo a tradição atri-
216 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
Na realidade, a usurpação da terra comunal e a revolução da agricultu-
ra que a acompanhou tiveram efeitos tão agudos sobre o trabalhador
agrícola que, segundo o próprio Eden, entre 1765 e 1780, o seu salário
começou a cair abaixo do mínimo e a ser complementado pela assistência
oficial aos pobres. O seu salário, diz ele, “bastava apenas para as necessi-
dades vitais absolutas”.
Ouçamos, por um momento ainda, um defensor das enclosures e ad-
versário do Dr. Price.
“Não é correcto concluir que haja despovoamento porque não se vê
mais gente desperdiçando o seu trabalho em campo aberto. (...) Quan-
do, depois da transformação dos pequenos camponeses em pessoas
que têm de trabalhar para outros, é produzido mais trabalho, isso é
uma vantagem que a nação” (à qual os transformados naturalmente
não pertencem) “deve desejar. (...) porque sendo maior o produto
quando os seus trabalhos conjuntos são empregues numa quinta, have-
rá um excedente [surplus] para as manufacturas e, por este meio, as
manufacturas, uma das minas da nação, aumentarão na proporção da
quantidade de cereal produzido.”35
A estóica serenidade com que o economista político encara as viola-
ções mais desavergonhadas do “sagrado direito de propriedade” e os
actos de violência mais grosseiros contra as pessoas, na medida em que
sejam necessários para estabelecer a base do modo de produção capita-
lista, é-nos mostrada, entre outros, por Sir F. M. Eden, que, além do mais,
apresenta um matiz tory e é “filantropo”. Toda a série de pilhagens,
horrores e tormentos que acompanham a violenta expropriação do povo,
do último terço do século XV até ao final do século XVIII, levam-no
apenas à “confortável” reflexão final:
“A proporção correta (due) entre terras para lavoura e para criação de
gado tinha de ser estabelecida. Ainda no decorrer do século XIV e na
maior parte do século XV, havia 1 acre de pastagem para 2, 3 e mes-
mo 4 acres de terra para lavoura. Em meados do século XVI, a pro-
porção transformou-se em 2 acres de pastagem para 2 acres de lavou-
ra, mais tarde 2 acres de pastagem para 1 acre de lavoura, até que
bui-se essa lei aos tribunos do povo C. Licínio Stolo e L. Sextio Laterando (N. da
Ed. Alemã).
35 [Arbuthnot, J.] An inquiry into the Connection between the Present Prices of
Provisions etc. p. 124, 129. Semelhante, mas de tendência oposta: “Os trabalhado-
res são expulsos das suas cottages e obrigados a procurar trabalho nas cidades; –
mas obtém-se entao um excedente maior, e assim o capital é aumentado”. ([See-
ley, R. B.] The Perils of the Nation. 2ª ed., Londres, 1843, p. XIV.)
A CHAMADA A CU MULAÇ ÃO P RIMIT IVA | 217
finalmente se estabeleceu a proporção correta de 3 acres de pastagem
para 1 acre de lavoura.”
No século XIX perdeu-se, naturalmente, mesmo a lembrança da cone-
xão entre cultivador e propriedade comunal. Para já não falar de tempos
mais tardios, que farthing36 de indemnização recebeu o povo do campo
alguma vez pelos 3 511 770 acres de terra comunal que entre 1810 e 1881
lhe foram roubados e presenteados pelo parlamento aos landlords pelos
landlords?
O último grande processo de expropriação do cultivador da terra é fi-
nalmente a chamada Clearing of Estates (limpeza de propriedades, de
facto, limpá-las de seres humanos). Como se viu, pela descrição da situa-
ção moderna, na parte anterior, trata-se agora, que já não há camponeses
independentes para serem varridos, de “limpar” as cottages, de modo que
os trabalhadores agrícolas já não encontram o espaço necessário para lá
morar, nem mesmo sobre o solo que lavram. Porém, o verdadeiro signifi-
cado do Clearing of Estates só o aprendemos na terra prometida da
literatura romanesca moderna, nas Highlands [Terras Altas] da Escócia.
Lá o processo distingue-se pelo seu carácter sistemático, pela grandeza da
escala em que de um golpe ele é executado (na Irlanda, os senhores da
terra levaram as coisas ao ponto de, ao mesmo tempo, varrerem do mapa
várias aldeias; na Alta Escócia, trata-se de superfícies do tamanho de
ducados alemães) e, finalmente, pela forma particular da propriedade
fundiária subtraída.
Os celtas das Terras Altas da Escócia organizavam-se em clãs, cada
um deles proprietário do solo por ele ocupado. O representante do clã, o
seu chefe ou “grande homem”, era apenas o proprietário titular dessa
terra, tal como a rainha da Inglaterra é a proprietária titular de todo o solo
nacional. Quando o Governo inglês conseguiu reprimir as guerras intesti-
nas desses “grandes homens” e as suas contínuas incursões pelas planí-
cies da Baixa Escócia, os chefes dos clãs não renunciaram, de modo
algum, ao seu velho ofício de assaltantes; mudaram apenas a forma. Por
conta própria, transformaram o seu direito de propriedade titular em
direito de propriedade privada e como encontraram resistência por parte
dos membros dos clãs, resolveram enxotá-los à força. “Um rei de Ingla-
terra poderia, pelo mesmo direito, atirar os seus súbditos ao mar”, diz o
Prof. Newman.37 Essa revolução, que começou na Escócia depois da
36 Em inglês no texto: moeda inglesa de cobre, no valor de 1/4 de dinheiro. (Nota da
edição portuguesa da Editorial Avante!)
37 A king of England might as well claim to drive his subjects into the sea (Newman,
F. W. Op. cit., p. 132.)
218 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
última revolta do pretendente,38 pode ser seguida nas suas primeiras fases
em Sir James Steuart39 e James Anderson.40 No século XVIII, foi simulta-
neamente proibida a emigração dos gaélicos expulsos da terra com o fim
de impeli-los à força para Glasgow e outras cidades fabris.41 Como exem-
plo do método dominante no século XIX,42 bastam aqui as “limpezas”
38 Os partidários dos Stuart esperavam, com a sua revolta de 1745-46, forçar a subida
ao trono do chamado jovem pretendente, Charles Edward, como rei da Inglaterra.
Ao mesmo tempo, a revolta reflectia o protesto da massa do povo da Escócia e da
Inglaterra contra a sua exploração pelos senhores da terra e contra a expulsão em
massa dos pequenos lavradores. A derrota da revolta teve por consequência a
completa destruição do sistema de clãs na Escócia. A expulsão dos camponeses
das suas terras prosseguiu ainda mais intensamente que antes (N. da Ed. Alemã.)
39 Steuart diz: “A renda destas terras” (ele transfere erroneamente essa categoria
económica para o tributo dos taksmenª ao chefe do cla) “é de todo modo insignifi-
cante em comparação com a sua extensão. Mas se se comparar com o número [de
pessoas] alimentadas pela quinta, verificar-se-á que uma propriedade nas Hi-
ghlands sustenta, talvez, dez vezes mais pessoas do que outra do mesmo valor
numa província boa e fértil.” (An Inquiry into the Principies of Political Economy
[Uma Investigação sobre os Princípios da Economia Política], London, 1767, vol.
I, c. XVI, p. 104.) (Nota de Marx.)
ª Taksmen foram denominados, no tempo do sistema de clãs, na Escócia, os mais
velhos ou os vassalos que estavam diretamente subordinados ao chefe do clã ou
laird (“grande homem”). O laird repartia as terras (tak), que permaneciam propri-
edade de todo o clã, pelos taksmen. Um pequeno tributo era pago ao laird e com
isso ficava reconhecida a sua soberania. Aos taksmen estavam subordinados funci-
onários mais baixos que se colocavam à frente de cada uma das aldeias, e a estes
estavam subordinados os camponeses. Com a desintegração do sistema de clãs, o
laird transformou-se em senhor fundiário e os taksmen tornaram-se, de acordo
com a sua essência, rendeiros capitalistas; em lugar do antigo tributo passou-se a
pagar a renda da terra. Marx informa sobre a função dos taksmen dentro do siste-
ma de clas no seu artigo “Wahlen – Truebe Finanzlage – Die Herzog Von Suther-
land und die Sklaverei”. (N. da Ed. Alemã.)
40 Anderson, James. Observations on the Means of Exciting a Spirit of National
Industry etc. Edimburgo, 1777.
41 Em 1860, pessoas expropriadas violentamente foram exportadas para o Canadá
com falsas promessas. Algumas fugiram para a montanha ou para as ilhas vizi-
nhas. Foram perseguidas por polícias, entraram em choque com eles e escaparam.
42 “Nas Terras Altas”, diz Buchanan, o comentarista de Adam Smith, em 1814, “a
antiga condição de propriedade é diariamente subvertida pela força. (...) O land-
lord, sem consideracao pelos rendeiros hereditários” (esta é também uma categoria
empregada erroneamente), “oferece a terra ao melhor licitador, e se este é um ino-
vador (improver), introduzirá imediatamente um novo sistema de cultura. O solo,
antes coberto de pequenos camponeses, estava povoado em proporção ao seu pro-
duto, mas com o novo sistema de cultura melhorada e rendas multiplicadas, ob-
tém-se a maior produção possível ao menor custo possível, e para esse fim os bra-
A CHAMADA A CU MULAÇ ÃO P RIMIT IVA | 219
levadas a cabo pela duquesa de Sutherland. Esta pessoa, economicamente
instruída, decidiu, logo ao assumir o governo, empreender uma cura
económica radical e transformar todo o condado – cuja população já
anteriormente, por processos semelhantes, se tinha reduzido para 15 000
– em pastagens para ovelhas. De 1814 até 1820, esses 15 mil habitantes,
cerca de 3 mil famílias, foram sistematicamente expulsos e exterminados.
Todas as suas aldeias foram destruídas e arrasadas pelo fogo, todos os
seus campos transformados em pastagens. Soldados britânicos foram
encarregados da execução e entraram em choque com os nativos. Uma
mulher de idade foi queimada nas chamas da cabana que se recusava a
abandonar. Desta forma, esta madame apropriou-se de 794 mil acres de
terras, que desde tempos imemoriais pertenciam ao clã. Aos nativos
expulsos ela destinou aproximadamente 6 mil acres de terras, 2 acres por
família, na orla marítima. Os 6 mil acres tinham até então estado desertos
e não haviam proporcionado nenhuma renda aos proprietários. A duque-
sa, no seu nobre sentimento, foi ao ponto de arrendar o acre, em média,
por 2 xelins e 6 dinheiros de renda às gentes do clã que, desde há séculos,
haviam vertido o seu sangue pela família. Repartiu toda a terra roubada
ao clã por 29 grandes quintas para a criação de ovelhas, cada uma habita-
da por uma única família, na maioria criados de quinta ingleses. No ano
de 1825, os 15 mil gaélicos já tinham sido substituídos por 131 mil ove-
lhas. Aquela parte dos aborígenes que foi atirada para a orla marítima
procurou viver da pesca. Tornaram-se anfíbios e viviam, como um escri-
tor inglês disse, metade na terra e metade na água e, com isso tudo, só
viviam metade de ambas.43
ços tornados inúteis são afastados. (...) Os expulsos das suas terras buscam subsis-
tência nas cidades fabris, etc.” (Buchanan, David. Observations on etc. A. Smith’s
Wealth of Nations. Edimburgo, 1814, v. IV, p. 144.) “Os grandes da Escócia ex-
propriaram famílias como se estivessem a exterminar ervas daninhas, trataram
aldeias e suas populações como os índios à procura de vingança tratam as bestas
selvagens nas suas covas. (...) O ser humano é trocado por uma pele de ovelha ou
uma perna de carneiro, ou menos ainda. (...) Quando da invasão das províncias do
Norte da China, foi proposto no Conselho dos Mongóis exterminar os habitantes e
converter as suas terras em pastagens. Essa proposta foi posta em prática por mui-
tos landlords escoceses no seu próprio país, contra os seus conterraneos.” (Ensor,
George. An Inquiry Concerning the Population of Nations. Londres, 1818,
pp. 215-216.)
43 Quando a actual duquesa de Sutherland recebeu, com grande pompa, em Londres,
a autora de A Cabana do Pai Tomás, Harriet Beecher Stowe, a fim de exibir a sua
simpatia pelos escravos negros da República Americana – o que ela, ao lado dos
demais aristocratas, sabiamente se absteve de fazer durante a guerra civil, quando
cada “nobre” coracao inglês pulsava a favor dos esclavagistas – expus, no New
York Tribune, as condições dos escravos de Sutherland. (Em algumas passagens
220 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
Mas os bravos gaélicos iriam expiar ainda mais amargamente a sua
idolatria romântica montanhesa dos “grandes homens” do clã. O cheiro a
peixe subiu ao nariz dos grandes homens. Farejaram algo lucrativo e
arrendaram a orla marítima aos grandes comerciantes de peixe de Lon-
dres. Os gaélicos foram expulsos pela segunda vez.44
Finalmente, porém, uma parte das pastagens para ovelhas foram re-
transformadas em reserva de caça. Sabe-se que na Inglaterra não há
florestas propriamente ditas. A caça nos parques dos grandes é constitu-
cionalmente gado doméstico, gordo como aldemen [vereadores] londri-
nos. A Escócia é, portanto, o último asilo da “nobre paixão”.
“Nas Terras Altas”, diz Somers em 1848, “estão a surgir novas florestas
como cogumelos. Aqui, de um dos lados de Gaick, temos a nova flo-
resta de Glenfeshie; e ali, do outro, temos a nova floresta de Ardverikie.
Na mesma linha temos o Black Mount, uma imensa terra inculta, tam-
bém lá posta recentemente. De leste para oeste – dos arredores de
Aberdeen até aos penhascos de Oban –, temos agora uma linha contí-
nua de florestas; enquanto noutras regiões das Terras Altas há as no-
vas florestas de Loch Archaig, Glengarry, Glenmoriston, etc. Foram
introduzidos carneiros em vales que tinham sido domicílio de comu-
nidades de pequenos rendeiros; e estes últimos foram levados a procu-
rar a subsistência em solos mais rudes e estéreis. Os veados estão ago-
ra a suplantar as ovelhas; e estas estão, uma vez mais, a desalojar os
pequenos rendeiros que, necessariamente, serão empurrados para terra
ainda mais rude e para uma penúria mais tormentosa. As florestas de
veados45 e as pessoas não podem coexistir. Umas ou outras têm de ce-
der. Deixem as florestas aumentar em número e extensão durante o
aproveitado por Carey. The Slave Trade. Filadélfia, 1853, pp. 202-203.) O meu
artigo foi reproduzido num jornal escocês e provocou uma bela polémica entre este
último e os sicofantas dos Sutherland.
44 Encontram-se coisas interessantes sobre este comércio de peixe em Portfolio, New
Series, do Sr. David Urquhart. Nassau W. Sénior, no seu escrito póstumo já atrás
citado, caracteriza “o processo no Sutherlandshire [como] uma das mais benéficas
limpezas de que há memória”. (Journals, Conversations and Essays relating to
Ireland [Diários, Conversas e Ensaios Referentes à Irlanda], Londres, 1868.) (Nota
de Marx.)
31ª As deer forests (florestas de veados) da Escócia não contêm uma única árvore.
Impelem-se as ovelhas para fora e os servos para dentro das montanhas desnudas e
denomina-se a isso uma deer Forest. Nem mesmo, portanto, silvicultura!
45 As deer-forests (florestas de veados) da Escócia não contêm uma única árvore.
Empurram-se os carneiros para fora e os veados para dentro de montanhas nuas e
chama-se a isso uma deer-forest. Portanto, nem sequer silvicultura! (Nota de
Marx.)
A CHAMADA A CU MULAÇ ÃO P RIMIT IVA | 221
próximo quarto de século como aumentaram no último e os Gaélicos
perecerão no seu solo nativo... Este movimento entre os proprietários
das Terras Altas é, para alguns, uma questão de ambição – para al-
guns, amor ao desporto –, enquanto outros, de disposição mais prática,
seguem o comércio dos veados com os olhos postos apenas no lucro.
Porque é um facto que uma cadeia de montanhas arranjada como flo-
resta é, em muitos casos, mais lucrativa para o proprietário do que
quando deixada para pasto de carneiros... O caçador que quer uma flo-
resta de veados não limita as suas ofertas por nenhum outro cálculo
que não seja a extensão da sua bolsa... Foram infligidos sofrimentos às
Terras Altas pouco menos severos do que os ocasionados pela política
dos reis normandos. Os veados receberam extensas cordilheiras, en-
quanto os homens foram caçados no interior de um círculo cada vez
mais estreito... Uma após outra, as liberdades do povo foram despeda-
çadas... E as opressões estão a crescer diariamente... A limpeza e dis-
persão do povo é seguida pelos proprietários como um princípio esta-
belecido, como uma necessidade agrícola, exactamente como as
árvores e o mato são limpos das terras incultas da América ou Austrá-
lia; e a operação prossegue de uma maneira silenciosa, à maneira dos
negócios, etc.”46
O roubo dos bens da Igreja, a alienação fraudulenta dos domínios do
Estado, o furto da propriedade comunal, a transformação usurpadora e
executada com terrorismo inescrupuloso da propriedade feudal e clânica
em propriedade privada moderna, foram outros tantos métodos idílicos da
acumulação primitiva. Eles conquistaram o campo para a agricultura
capitalista, incorporaram a base fundiária ao capital e criaram para a
indústria urbana a oferta necessária de um proletariado livre como os
passarinhos.
46 Somers, Robert. Letters from the Highlands; or, the Famine of 1847. Londres,
1848, p. 12-28 passim. Essas cartas apareceram originalmente no Times. Os eco-
nomistas ingleses, naturalmente, atribuíram a epidemia da fome dos gaélicos, em
1847, a sua superpopulacao. Em todo o caso, eles “exerciam pressao” sobre a dis-
ponibilidade de alimentos. A Clearing of Estates ou, como se chamou na Alema-
nha, Bauernlegen ocorreu aqui especialmente depois da Guerra dos Trinta Anos e
provocou ainda em 1790 levantamentos camponeses em Kursachsen. Prevaleceu
principalmente na Alemanha Oriental. Na maior parte das províncias da Prússia,
apenas Frederico II assegurou aos camponeses o direito de propriedade. Depois da
conquista da Silésia, ele obrigou os senhores da terra a reconstruir as choupanas,
celeiros, etc., e a promover as explorações camponesas de gado e instrumentos.
222 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
3. Legislação sanguinária contra os expropriados desde o final
do século XV. Leis para o abaixamento dos salários
Os expulsos pela dissolução dos séquitos feudais e pela intermitente e
violenta expropriação da base fundiária, esse proletariado livre como os
pássaros não podia ser absorvido pela manufactura nascente com a mes-
ma velocidade com que foi posto no mundo. Por outro lado, os que foram
bruscamente arrancados ao seu modo de vida habitual não conseguiam
enquadrar-se de maneira igualmente súbita na disciplina da nova condi-
ção. Converteram massivamente em mendigos, ladrões, vagabundos, em
Ele precisava de soldados para o seu exército e de contribuintes de impostos para o
tesouro do Estado. Que vida agradável, de resto, levou o camponês sob as desor-
dens financeiras e a mistura governamental de despotismo, burocracia e feudalis-
mo de Frederico, podemos ver pelos trechos seguintes do seu admirador Mirabeau:
“o linho representa pois uma das maiores riquezas do camponês do Norte da Ale-
manha. Para infelicidade da espécie humana, isso é apenas um meio auxiliar contra
a miséria e não um caminho para o bem-estar. Os impostos directos, as corveias e
os serviços forçados de todos os tipos arruínam o camponês alemão, que ainda tem
de pagar impostos indirectos sobre tudo o que compra (...) e para tornar completa a
sua ruína, ele não ousa vender os seus produtos onde e como quer, e não ousa tam-
bém comprar o que precisa a comerciantes que lho poderiam fornecer por preços
mais baratos. Todas estas causas arruínam-no lenta mas seguramente; porém, e
sem a fiação, ele não estaria em condições de pagar os impostos directos no dia do
vencimento; esta oferece-lhes uma fonte auxiliar, que ocupa utilmente a sua mu-
lher, os seus filhos, as suas criadas, os seus criados e ele mesmo. Entretanto, ape-
sar desta fonte auxiliar, que vida penosa! No verão, trabalha como um condenado
na lavra e na colheita; às 9 horas deita-se para dormir e levanta-se às 2 horas da
manhã, para dar conta do seu trabalho; no inverno, ele precisaria de restaurar as
forças mediante um descanso mais longo; mas faltar-lhe-iam cereais para o pão e
para a semeadura, caso se desfizesse dos frutos da terra, que teria de vender para
pagar os impostos. Para tapar esse buraco, precisa, portanto, de fiar (...) e com a
maior persistência. Assim, o camponês, no inverno, vai descansar à meia-noite ou
à 1 hora e levanta-se às 5 ou 6 horas; ou deita-se às 9 e levanta-se às 2, e assim
todos os dias da sua vida, com excepção do domingo. Esse excesso de vigília e
trabalho desgasta as pessoas, o que faz que no campo homens e mulheres envelhe-
çam muito mais cedo que na cidade”. (Mirabeau. Op. cit., t. III, p. 212 e segs.)
Adenda à 2.ª edição: Em março de 1866, 18 anos depois da publicação do escrito
de Robert Somers, acima citado, o Prof. Leone Levi fez uma conferência na So-
ciety of Artsª3 sobre a transformação das pastagens de ovelhas em florestas de
caça, em que descreve o progresso da devastação nas Terras Altas da Escócia. Ele
diz, entre outras coisas: “Despovoamento e transformacao em simples pastagem de
ovelhas ofereciam o meio mais cómodo para uma renda sem despesas. (...) Uma
deer forest em lugar da pastagem de ovelhas tornou-se uma mudança comum nas
Terras Altas. As ovelhas são expulsas por animais selvagens, assim como antes se
expulsaram os seres humanos para dar lugar às ovelhas. (...) Pode-se marchar das
A CHAMADA A CU MULAÇ ÃO P RIMIT IVA | 223
parte por predisposição e na maioria dos casos por força das circunstân-
cias. Daí ter surgido em toda a Europa Ocidental, no final do século XV e
durante todo o século XVI, uma legislação sanguinária contra a vagabun-
dagem. Os antepassados da actual classe trabalhadora foram imediata-
mente punidos pela transformação que lhes foi imposta em vagabundos e
paupers. A legislação tratava-os como criminosos “voluntários” e assu-
mia que dependia da sua boa vontade continuarem a trabalhar nas antigas
condições que já não existiam.
Na Inglaterra, essa legislação começou com Henrique VII.
Henrique VIII, em 1530: os mendigos velhos e incapazes de trabalhar
recebem uma licença de mendigo. Em contrapartida, chicoteamento e
encarceramento para os vagabundos robustos. Devem ser atados à parte
de trás de uma carroça e fustigados até que o sangue corra do seu corpo,
fazem depois um juramento de regressar ao seu lugar de nascimento ou
onde moraram nos últimos três anos e de “se porem ao trabalho” (to put
himself to labour). Que ironia cruel! No 27.° [ano do reinado] de Henri-
que VIII o estatuto precedente é repetido, mas reforçado com novos
propriedades do Conde de Dalhouise em Forfarshire até John o’Groats sem sair
das terras de florestas. Em muitas” (dessas florestas) “a raposa, o gato selvagem, a
marta, a fuinha, a doninha e a lebre alpina estão instalados; enquanto o coelho, o
esquilo e o rato encontraram há pouco tempo o caminho para lá. Enormes áreas de
terra, que na estatística da Escócia figuravam como pastagens de excepcional ferti-
lidade e extensão, estão agora excluídas de toda a cultura e melhoramento, sendo
dedicadas exclusivamente ao prazer da caça para algumas pessoas – e isso dura
apenas um curto período do ano”.
O Economist de Londres, de 2 de junho de 1866, diz: “Um jornal escocês infor-
mou, na semana passada, entre outras novidades: ‘Uma das melhores pastagens
para ovelhas em Sutherlandshire, pela qual ao final do actual contrato de arrenda-
mento se ofereceu recentemente uma renda anual de 1200 libras esterlinas, será
transformada em deer forest!” Os instintos feudais manifestam-se (...) como na
época em que o conquistador normando (...) destruiu 36 aldeias para criar a New
Forest. (...) Dois milhões de acres, os quais incluíam algumas das terras mais fér-
teis da Escócia, estão completamente devastados. A relva natural de Glen Tilt con-
ta-se entre as mais nutritivas do condado de Perth; a deer forest de Ben Aulder era
a melhor pastagem do amplo distrito de Badenoch; uma parte da Black Mount
Forest era a melhor pastagem para ovelhas de focinho preto. Da ampliação da base
fundiária devastada para a paixão da caça pode-se formar uma ideia a partir do
facto de que ela abrange uma área muito maior que todo o condado de Perth. A
perda da terra em fontes de produção, em consequência dessa desolação forçada,
pode-se avaliar pelo facto de que o solo da forest de Ben Aulder podia alimentar
15 mil ovelhas e representa apenas 1/30 do conjunto das reservas de caça da Escó-
cia. (...) Toda essa área de caça é totalmente improdutiva (...) poderia, do mesmo
modo, estar submersa nas águas do mar do Norte. A mão forte da legislação deve-
ria acabar com tais ermos ou desertos improvisados”. ª3 Ver Marx. O Capital, v. I, t. 1, p. 285, nota a. (N. do Ed.)
224 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
aditamentos. Ao ser apanhado pela segunda [vez] em vagabundagem, o
chicoteamento deve ser repetido e metade da orelha cortada; à terceira
vez, porém, o visado é executado como grande criminoso e inimigo da
comunidade.
Eduardo VI: um estatuto do primeiro ano do seu reinado, 1547, ordena
que, se alguém se recusar a trabalhar, deve ser sentenciado como escravo
da pessoa que o denunciou como desocupado. O dono deve alimentar o
seu escravo com pão e água, bebida fraca e os restos de carne que achar
convenientes. Tem o direito de obrigá-lo a qualquer trabalho ainda que
repugnante por meio de chicoteamento e de agrilhoamento. Se o escravo
se ausentar por 14 dias, é condenado à escravatura por toda a vida e deve
ser marcado a fogo com a letra S [de slave, escravo] na fronte ou nas
faces; se fugir pela terceira vez, é executado como traidor público. O
dono pode vendê-lo, legá-lo, alugá-lo como escravo, inteiramente como
outro bem móvel ou gado. Se os escravos empreenderem algo contra os
donos, devem igualmente ser executados. Por informação os juízes de paz
devem perseguir o malandro. Se se verificar que um vadio não fez nada
durante três dias, deve ser levado para o seu lugar de nascimento, marca-
do a fogo com um ferro ao rubro, no peito, com o sinal V [de vagabundo]
e aí, com cadeias, deve ser utilizado nas ruas ou em qualquer outro servi-
ço. Se o vagabundo der um lugar de nascimento falso, como castigo deve
ficar escravo por toda a vida desse lugar, dos moradores ou da corporação
e ser marcado a fogo com um S. Todas as pessoas têm o direito de tirar os
filhos aos vagabundos e de os manter como aprendizes – os rapazes até
aos 24 anos, as raparigas até aos 20. Se fugirem, deverão ficar escravos
do dono até essa idade, o qual, consoante quiser, os poderá prender com
cadeias, chicotear, etc. Cada dono pode pôr um anel de ferro à volta do
pescoço, do braço ou da perna do seu escravo, para o conhecer melhor e
estar seguro de que é seu.47 A última parte deste estatuto prevê que certos
pobres devem ser empregados pelo lugar ou pelos indivíduos que lhes
queiram dar de comer e de beber e encontrar trabalho para eles. Esta
espécie de escravos paroquiais conservou-se, em Inglaterra, até bem
dentro do século XIX, sob o nome de roundsmen (rondadores).
Isabel, em 1572: mendigos sem licença e acima dos 14 anos de idade
devem ser fortemente chicoteados e marcados a fogo na orelha esquerda,
no caso de ninguém os querer tomar ao seu serviço por dois anos; em
47 O autor do Essay on Trade etc., 1770, observa: “sob o reinado de Eduardo VI, os
ingleses parecem, de facto, terem-se proposto, com toda a seriedade, o encoraja-
mento das manufacturas e a ocupação dos pobres. Isso apreendemos de um notável
estatuto no qual se diz que todos os vagabundos devem ser marcados a ferro”, etc.
(Op. cit., p. 5.)
A CHAMADA A CU MULAÇ ÃO P RIMIT IVA | 225
caso de reincidência, se estão acima dos 18 anos de idade, devem ser
executados, no caso de ninguém os querer tomar ao seu serviço por dois
anos; à terceira reincidência, porém, são executados sem piedade como
traidores públicos. Estatutos semelhantes: no 18.° [ano do reinado] de
Isabel, c. 13, e em 1597.48
Jaime I: uma pessoa vadia e mendiga é declarada malandro e vaga-
bundo. Os juízes de paz nas petty sessions49 têm o poder de os mandar
chicotear em público e de os encarcerar, na primeira vez que forem
48 Thomas Morus diz na sua Utopia [tradução inglesa de Ralph Robinson, London,
1869, pp. 41, 42]: “Pelo facto de um glutao cobicoso e insaciável – e verdadeira
praga para a sua terra natal – poder circundar e vedar juntamente muitos milhares
de acres de terra dentro de uma paliçada ou cerca, os lavradores podem ser empur-
rados para fora do que é deles ou, seja por vigarice e fraude, seja por opressão
violenta, podem ser postos fora dele ou podem ser tão atormentados por males e
injúrias que sejam compelidos a vender tudo: por conseguinte, por um meio ou por
outro, assim ou assado, forçosamente, têm de ir-se embora – pobres, inocentes,
miseráveis almas, homens, mulheres, maridos, esposas, crianças sem pais, viúvas,
mães aflitas com os seus bebés, e todos os seus haveres domésticos pequenos em
substância, e muitos em número, uma vez que a lavoura requer muitos braços.
Arrastam-se para longe, digo eu, para fora das casas conhecidas a que estavam
acostumados, não encontrando qualquer lugar para descansar. Todos os seus have-
res domésticos, que valem muito pouco, ainda poderiam suportar a venda: no en-
tanto, sendo postos fora de repente, são constrangidos a vendê-los por quase nada.
E quando eles vaguearem até isso ter sido gasto, que mais podem fazer então se-
não roubar e serem, então, por deus!, justamente enforcados, ou então andar por aí
a mendigar? E, então, contudo, são também postos na prisão como vagabundos,
porque vagueiam e não trabalham: eles, a quem ninguém quer dar trabalho, apesar
de nunca de tão boa vontade se disporem a isso.” Destes pobres fugitivos de quem
Thomas Morus diz que eram compelidos ao roubo “72 000 grandes e pequenos
ladrões foram executados» no reinado de Henrique VIII. (Holinshed, Description
of England [Descrição da Inglaterra], vol. I, p. 186.) No tempo de Isabel, “os ma-
landros eram enforcados apressadamente e, geralmente, não havia um ano em que
trezentos ou quatrocentos nao fossem devorados e comidos pelo patíbulo”.
(Strype, Annals of the Reformation and Establishment of Religion, and other Vari-
ous Occurrences in lhe Church of England during Queen Elisabeth’s Happy Reign
[Anais da Reforma e Estabelecimento da Religião, e Outras Várias Ocorrências na
Igreja de Inglaterra durante o Feliz Reinado da Rainha Isabel], 2nd ed., 1725, vol.
II.) Segundo o mesmo Strype, no Somersetshire, num único ano, foram executadas
40 pessoas, 35 foram marcadas a fogo, 37 chicoteadas e 183 postas em liberdade
como incorrigíveis vagabundos”. Todavia, diz ele, “este grande número de prisio-
neiros não compreende sequer um quinto dos efectivos criminosos, graças à negli-
gência dos juízes e a tola compaixao do povo”. E acrescenta: “Os outros condados
da Inglaterra, a este respeito, não eram melhores do que o Somersetshire, enquanto
alguns eram mesmo piores.” (Nota de Marx.)
49 Petty sessions (sessões pequenas): reuniões de juízes de paz, em Inglaterra, onde
são examinados pequenos casos para simplificar o processo judicial.
226 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
apanhados, por 6 meses, na segunda, por 2 anos. Durante a prisão devem
ser chicoteados tanto e tão frequentemente quanto os juízes de paz acha-
rem por bem... Os vagabundos incorrigíveis e perigosos devem ser mar-
cados a fogo com um R [de rogue, vagabundo, malandro, vadio] no
ombro esquerdo e postos a trabalhos forçados e, se forem de novo apa-
nhados a mendigar, devem ser executados sem piedade. Estas ordena-
ções, legalmente vinculativas até aos primeiros tempos do século XVIII,
só foram revogadas por Ana no 12.° [ano do seu reinado], c. 23.
Leis semelhantes vigoraram em França, onde em meados do século
XVII se estabeleceu um reino de vagabundos (royaume des truands) em
Paris. Ainda nos primeiros anos de reinado de Luís XVI (ordenança de 13
de julho de 1777) todo o homem de boa saúde dos 16 aos 60 anos, sem
meios de existência e sem exercer uma profissão, devia ser mandado para
as galés. Semelhantes são o estatuto de Carlos V para os Países Baixos,
de outubro de 1537, o primeiro édito dos Estados e Cidades da Holanda,
de 19 de março de 1614, e o das Províncias Unidas de 25 de julho de
1649, etc.
Assim, o povo do campo, expropriado à força da terra, expulso e feito
vagabundo, foi enquadrado por leis grotescas e terroristas numa discipli-
na necessária ao sistema de trabalho assalariado, por meio do açoite, do
ferro em brasa e da tortura.
Não basta que as condições de trabalho se coloquem, num pólo, como
capital, e, no outro pólo, como homens que não têm nada que vender a
não ser a sua força de trabalho. Também não basta forçá-los a venderem-
-se de livre vontade. No decurso da produção capitalista, desenvolve-se
uma classe trabalhadora que, por educação, tradição, hábito, admite as
exigências daquele modo de produção como evidentes leis da natureza. A
organização do modo de produção capitalista, quando plenamente desen-
volvido, quebra qualquer resistência; a constante criação de uma sobre-
população relativa mantém a lei da oferta e da procura de trabalho e,
portanto, o trabalho assalariado numa via que corresponde às necessida-
des de utilização do capital; a compulsão das relações económicas com-
pleta a sujeição do trabalhador ao capitalista. O uso directo da força, as
condições económicas exteriores, continuam, com efeito, a ser usadas,
mas apenas excepcionalmente. No dia a dia, os trabalhadores podem ser
abandonados às “leis naturais da produção”, isto é, à sua dependência do
capital, decorrente das próprias condições da produção, por eles garantida
e eternizada. Durante a génese histórica da produção capitalista foi de
outra maneira. A burguesia ascendente precisa e emprega o poder do
Estado para “regular” o trabalho assalariado, isto é, para comprimir os
salários dentro dos limites que convêm à obtenção de mais-valia [Plus-
macherei], para prolongar o dia de trabalho e para conservar o próprio
A CHAMADA A CU MULAÇ ÃO P RIMIT IVA | 227
trabalhador num grau normal de dependência. Este é um elemento essen-
cial da chamada acumulação primitiva.
A classe dos trabalhadores assalariados, que surgiu na última metade
do século XIV, constituía então e no século seguinte apenas uma parte
mínima da população, bem protegida na sua posição pelo camponês
autónomo no campo e pela organização corporativa na cidade. No campo
e na cidade, mestres e trabalhadores estavam socialmente próximos. A
subordinação do trabalho ao capital era apenas formal, isto é, o próprio
modo de produção não possuía ainda um carácter especificamente capita-
lista. O elemento variável do capital predominava fortemente sobre o
constante. A procura de trabalho assalariado crescia, portanto, rapida-
mente com toda a acumulação do capital, enquanto a oferta de trabalho
assalariado a seguia, mas lentamente. Grande parte do produto nacional,
convertida mais tarde em fundo de acumulação do capital, ainda entrava
no fundo de consumo do trabalhador.
A legislação sobre o trabalho assalariado, desde o início cunhada para
a exploração do trabalhador e de seguida sempre hostil a ele,50 foi ini-
ciada na Inglaterra pelo Statute of Labourers [Estatuto dos Trabalhado-
res] de Eduardo III, em 1349. Correspondeu-lhe em França a Ordenança
de 1350, promulgada em nome do rei João. A legislação inglesa e a
francesa seguem paralelas, e quanto ao conteúdo são idênticas. Na medi-
da em que os estatutos dos trabalhadores buscam forçar o prolongamento
da jornada de trabalho, não voltarei a eles, pois esse ponto já foi tratado
anteriormente (Capítulo VIII, 5).ª
O Statute of Labourers foi promulgado em virtude das queixas insis-
tentes da Câmara dos Comuns.
“Outrora”, diz ingenuamente um tory, “os pobres exigiam salários tão
altos que ameaçavam a indústria e a riqueza. Agora, o seu salário está
tão baixo que ameaça igualmente a indústria e a riqueza, mas de modo
diferente e talvez mais perigoso que então.”51
Foi legalmente fixada uma tarifa de salários para a cidade e para o
campo, para trabalho à peça e à jorna. Os trabalhadores rurais devem
50 “Sempre que a legislacao procura regular as diferencas entre empresários e traba-
lhadores, os seus conselheiros sao sempre os empresários” diz A. Smith.ª “O espí-
rito das leis é a propriedade”, diz Linguet.ª1
a Smith, A. Wealth of Nations. Edimburgo, 1814, p. 142 (N. da Ed. Alemã.)
a1 Linguet, S. N. H. Op. cit., v. 1, p. 236. (N. da Ed. Alemã.)
51 Byles, J. B. Sophisms of Free Trade. By a Barrister. Londres, 1850, p. 206. Este
acrescentava maliciosamente: “Estivemos sempre a disposicao para intervir pelo
empregador. Nada se pode fazer pelo empregado?”
228 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
alugar-se ao ano, os citadinos no “mercado aberto”. Foi proibido, sob
pena de prisão, pagar salários mais altos do que os estatutários, mas o
recebimento de salário mais alto era mais fortemente castigado do que o
seu pagamento. Assim, nas secções 18 e 19 do Estatuto do Aprendiz de
Isabel, inflige-se uma pena de prisão de dez dias àquele que pagar um
salário mais alto e, em contrapartida, uma pena de prisão de vinte e um
dias àquele que o receber. Um Estatuto de 1360 agudiza as penas e dá
mesmo aos mestres poder para, por compulsão corporal, extorquir traba-
lho à tarifa de salário legal. Todas as combinações, contratos, juramentos,
etc., pelos quais pedreiros e carpinteiros se ligaram reciprocamente foram
declarados nulos e de nenhum efeito. A coalizão de trabalhadores foi
tratada como crime grave, do século XIV até 1825, ano da abolição das
leis anticoalizão.52 O espírito do Estatuto dos Trabalhadores de 1349 e
dos que se lhe sucederam manifesta-se claramente em que, com efeito, foi
ditado pelo Estado um máximo para o salário, mas de modo nenhum um
mínimo. No século XVI, como se sabe, piorou muito a situação dos
trabalhadores. O salário monetário subiu, mas não em proporção à depre-
ciação do dinheiro e à correspondente elevação dos preços das mercado-
rias. O salário, portanto, caiu de facto. Contudo, continuavam em vigor as
leis destinadas ao seu abaixamento simultaneamente com os cortes de
orelhas e a marcação a ferro daqueles “que ninguém tomar a seu serviço”.
Pelo Estatuto dos Aprendizes do 5.° [ano do reinado] de Isabel, c. 3, os
juízes de paz foram autorizados a fixar certos salários e a modificá-los
segundo as épocas do ano e os preços das mercadorias. Jaime I estendeu
essa regulação do trabalho também aos tecelões, fiandeiros e a todas as
categorias possíveis de trabalhadores;53 Jorge II estendeu a lei anticoali-
zão a todas as manufacturas.
52 As leis contra as coalizões, proibindo a criação e actividade de qualquer organiza-
ção operária, foram adoptadas pelo Parlamento britânico em 1799 e 1800. Em
1824, o Parlamento revogou estas leis, tendo confirmado a sua revogação em
1825. No entanto, mesmo depois disto, a actividade das organizações operárias
continuou consideravelmente restringida. Mesmo a simples propaganda a favor a
adesão dos operários a um sindicato e a favor da participação em greves era consi-
derada como “coacção” e “violência” e punida como um delito de direito comum.
53 A partir de uma cláusula do Estatuto do 2.° [ano do reinado] de Jaime I, c. 6, vê-se
que certos fabricantes de panos se permitiram, quais juízes de paz, ditar a tarifa de
salários oficial nas suas próprias oficinas. Na Alemanha, nomeadamente depois da
Guerra dos Trinta Anos, eram frequentes estatutos para manter os salários baixos.
“A falta de criados e operários no campo despovoado era muito incómoda para os
senhores da terra. Todos os aldeãos estavam proibidos de alugar quartos a homens
e mulheres sós; todos estes deviam ser indicados às autoridades e postos na prisão,
no caso de se não quererem tornar criados, mesmo que eles se mantivessem com
uma outra actividade, semeassem à jorna para os camponeses ou mesmo comercias-
A CHAMADA A CU MULAÇ ÃO P RIMIT IVA | 229
No período da manufactura propriamente dito, o modo de produção
capitalista tinha-se fortalecido suficientemente para tornar a regulamenta-
ção legal do salário tão inexequível como supérflua, mas, em caso de
necessidade, não se queria ficar privado das armas do velho arsenal. Jorge
II, no 8.° [ano do seu reinado], ainda proibiu um salário diário superior a
2 xelins e 7,5 dinheiros para os oficiais alfaiates, em Londres e arredores,
excepto nos casos de luto geral; Jorge III, no 13.° [ano do seu reinado], c.
68, ainda remeteu a regulamentação do salário dos tecelões de seda para
os juízes de paz; em 1796, ainda eram precisas duas sentenças dos tribu-
nais superiores para decidir se as ordens dos juízes de paz sobre o salário
também eram válidas para operários não agrícolas; em 1799, uma lei do
Parlamento ainda sancionava que o salário dos trabalhadores das minas
da Escócia devia ser regulamentado por um Estatuto de Isabel e por duas
leis escocesas de 1661 e 1671. Entretanto, o muito que as relações se
revolucionaram prova-o uma ocorrência inaudita na Câmara Baixa. Aí,
onde há mais de 400 anos se tinham fabricado leis sobre o máximo que o
salário não podia absolutamente ultrapassar, Whitbread, em 1796, propôs
um salário mínimo legal para as jornas na agricultura. Pitt opôs-se, mas
acrescentou que a “condição dos pobres era cruel”. Finalmente, em 1813,
as leis sobre a regulamentação dos salários foram abolidas. Eram uma
anomalia ridícula, uma vez que o capitalista regia a fábrica por uma legis-
lação privada sua e, pelo imposto dos pobres, podia completar o salário
do trabalhador do campo até ao mínimo indispensável. As determinações
dos Estatutos dos Trabalhadores54 acerca de contratos entre mestre e
operário assalariado, acerca de notificações de prazos e coisas parecidas,
que só permitiam uma acção civil contra o mestre que quebrasse o con-
trato, mas [permitiam] uma acção criminal contra o trabalhador que
quebrasse o contrato, estão, até à hora actual, em pleno vigor.
sem com dinheiro e em cereais.” (Kaiserliche Privilegien und Sanctiones fiir
Schlesien [Privilégios e Sanções Imperiais para a Silésia], I, 125.) “Durante todo um século, nas ordenações dos soberanos figura sempre de novo uma queixa amarga acerca da canalha má e petulante, que não se acomoda às condições duras, que não se quer satisfazer com o salário legal; é proibido ao senhor da terra dar mais do que [aquilo] que a região fixou numa taxa. E, todavia, as condições do serviço, depois da guerra, são por vezes ainda melhores do que seriam 100 anos mais tarde; o criado, em 1652, na Silésia, ainda tinha carne duas vezes por sema-na; já no nosso século, nesse mesmo lugar, há distritos em que ele só a tem três vezes por ano. A jorna, depois da guerra, também era mais elevada do que nos séculos seguintes.” (G. Freytag [Neue Bilder aus dem Leben des deutschen Volkes (Novos Quadros da Vida do Povo Alemão), Leipzig, 1862, S. 35, 36].) (Nota de Marx.)
54 Nas 3.ª e 4.ª edições: Estatuto do Trabalho.
230 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
As leis cruéis contra as coalizões caíram, em 1825, ante a atitude ame-
açadora do proletariado. Apesar disso, só caíram em parte. Alguns lindos
restos dos velhos estatutos só desapareceram em 1859. Finalmente, um
decreto do Parlamento de 29 de Junho de 1871 reclamou a eliminação
dos últimos vestígios desta legislação de classe pelo reconhecimento legal
das trades’ unions.55 Mas um decreto do Parlamento da mesma data (An
act to amend the criminal law relating to violence, threats and molestation
restabelecia, de facto, o estado anterior sob uma nova forma. Através
deste escamoteamento parlamentar, os meios de que os operários se
podiam servir por ocasião de uma greve ou lock-out (greve dos fabrican-
tes coligados, mediante o encerramento simultâneo das suas fábricas)
foram retirados do direito comum e postos sob uma legislação penal de
excepção, cuja interpretação cabia aos próprios fabricantes, na sua quali-
dade de juízes de paz. Dois anos antes, a mesma Câmara Baixa e o mes-
mo senhor Gladstone, da maneira honesta conhecida, haviam apresentado
um projecto de lei para a abolição de todas as leis penais de excepção
contra a classe operária. Mas nunca se deixou que isso fosse mais longe
do que a segunda leitura e arrastou-se, assim, a coisa para as calendas, até
que, finalmente, o “grande partido liberal”, mediante uma aliança com os
Tories, ganhou a coragem de se decidir a voltar-se contra o mesmo prole-
tariado que o havia levado ao poder. Não contente com esta traição, o
“grande partido liberal” autorizou os juízes ingleses, em todos os tempos
uns bajuladores ao serviço das classes dominantes, a desenterrar de novo
as leis prescritas sobre “conspirações” e a aplicá-las a coalizões de operá-
rios. Vê-se que, só contra vontade e sob a pressão das massas, é que o
Parlamento inglês renunciou às leis contra as greves e as trades’ unions,
depois de ele próprio, durante cinco séculos, com desavergonhado egoís-
mo, ter apoiado a posição de uma trades’ union permanente dos capitalis-
tas contra os operários.
Logo no início da tormenta revolucionária, a burguesia francesa ousou
abolir de novo o direito de associação que os trabalhadores tinham acaba-
do de conquistar. Pelo decreto de 14 de junho de 1791 ela declarou qual-
quer coalizão de trabalhadores como um “atentado à liberdade e à decla-
ração dos direitos humanos”, punível com a multa de 500 libras além da
privação, por um ano, dos direitos de cidadão activo.56 Esta lei, que
55 Formulação que antecedeu a generalização da expressão trade union (sindicato).
Versões da época noutras línguas: em francês sociétés ouvrières (sociedades ope-
rárias), em alemão Gewerksgenossenschaften (associações de ofícios). (Nota da
edição portuguesa da Editorial Avante!)
56 O artigo I dessa lei declara: “Visto que uma das bases fundamentais da Constitui-
ção francesa consiste na supressão de todas as espécies de união de cidadãos da
mesma condição e profissão, é proibido restabelecê-las sob qualquer pretexto ou
A CHAMADA A CU MULAÇ ÃO P RIMIT IVA | 231
comprime a luta de concorrência entre o capital e o trabalho por meio da
polícia do Estado nos limites convenientes ao capital, sobreviveu a revo-
luções e mudanças dinásticas. Mesmo o Governo do Terror57 deixou-a
intocada. Só recentemente foi ela riscada totalmente do Code Penal
[Código Penal]. Nada é mais característico do que o pretexto deste golpe
de estado burguês. “Ainda que”, diz Le Chapelier, o relator, “o salário do
dia de trabalho devesse ser um pouco mais considerável do que é presen-
temente... pois, numa nação livre, os salários devem ser suficientemente
consideráveis para que aquele que os recebe esteja fora daquela depen-
dência absoluta que a privação das carências de primeira necessidade
produz, e que é quase a da escravatura”; todavia, os operários não podem
entender-se sobre os seus interesses, agir em conjunto e, por esse facto,
afrouxar a sua “dependência absoluta, que é quase escravatura”, porque,
precisamente por isso, ofendem “a liberdade dos actuais empresários, dos
ci-devant maîtres” (a liberdade de manter os operários na escravatura!) e
porque uma coalizão contra o despotismo dos antigos mestres das corpo-
rações – adivinhe-se! – é um restabelecimento das corporações, abolidas
pela Constituição francesa.58
4. Génese dos rendeiros capitalistas
Depois de termos considerado a criação pela força do proletariado li-
vre como os pássaros, a disciplina sanguinária que os transformou em
trabalhadores assalariados, a sórdida acção do soberano e do Estado que
usou a polícia para acelerar a acumulação do capital aumentando o grau
de exploração do trabalho, pergunta-se: de onde vêm originalmente os
capitalistas? Pois a expropriação do povo do campo cria, directamente,
apenas grandes proprietários fundiários. No que concerne à génese do
rendeiro, podemos, por assim dizer, tocá-la com as mãos, porque ela é um
processo lento, que se arrasta por muitos séculos. Os próprios servos, ao
em qualquer forma”. O artigo IV declara que, se “cidadaos que pertencem a mes-
ma profissão, arte ou ofício se consultarem mutuamente e conjuntamente tomarem
deliberações que tenham por objectivo recusar o fornecimento dos serviços da sua
arte ou do seu trabalho, ou concedê-los apenas a determinado preço, as ditas con-
sultas e acordos deverão ser declarados como anticonstitucionais e como atentados
contra a liberdade e os direitos humanos, etc.”, portanto como crimes contra o
Estado, exactamente como nos velhos estatutos de trabalhadores. (Révolutions de
Paris. Paris, 1791, t. III, p. 523.)
57 O governo da ditadura jacobina em França de Junho de 1793 a Junho de 1794 (N.
da Ed. Alemã.).
58 Buchez e Roux. Histoire Parlamentaire, t. X, p. 193-195 passim.
232 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
lado dos quais houve também pequenos proprietários livres, encontra-
vam-se em relações de propriedade bastante diferentes e foram, por isso,
emancipados também sob condições económicas muito diferentes.
Na Inglaterra, a primeira forma de arrendatário, é o bailiff, ele mesmo
um servo. A sua posição é idêntica a do villicus da Roma Antiga, só que
numa esfera de acção mais estreita. Durante a segunda metade do século
XIV, ele é substituído por um rendeiro a quem o landlord fornece se-
mentes, gado e instrumentos agrícolas. A sua situação não é muito dife-
rente da do camponês. Apenas explora mais trabalho assalariado. Em
breve, ele irá tornar-se metayer [meeiro], meio rendeiro. Ele avança uma
parte do capital agrícola, o landlord a outra. Ambos dividem o produto
global numa proporção contratualmente determinada. Esta forma desapa-
rece rapidamente na Inglaterra, para dar lugar ao rendeiro propriamente
dito, que valoriza o seu próprio capital pelo emprego de trabalhadores
assalariados e paga uma parte do sobreproduto, em dinheiro ou in natura,
ao landlord como renda da terra.
Enquanto, durante o século XV, o camponês independente e o servo
agrícola, que trabalha como assalariado e, ao mesmo tempo, para si
mesmo, enriquecem mediante o seu trabalho, a situação do rendeiro e do
seu campo de produção permaneciam igualmente medíocres. A revolução
agrícola, no último terço do século XV, que prossegue por quase todo o
século XVI (à excepção das suas últimas décadas) enriqueceu o rendeiro
com a mesma rapidez com que empobreceu o povo do campo.59 A usur-
pação das pastagens comunais, etc., permitiu-lhe um grande aumento do
seu efectivo pecuário quase sem custos, enquanto o gado lhe fornecia
maior quantidade de adubo para o cultivo do solo.
No século XVI acresce ainda um momento decisivamente importante.
Naquela época, os contratos de arrendamento eram longos, frequente-
mente por 99 anos. A contínua queda em valor dos metais nobres, e,
portanto, do dinheiro, foi para os rendeiros uma mina de ouro. Ele redu-
ziu, abstraindo as demais circunstâncias anteriormente mencionadas, o
salário. Uma fracção do mesmo foi acrescentada ao lucro do rendeiro. O
constante aumento dos preços dos cereais, da lã, da carne, enfim de todos
os produtos agrícolas, dilatou o capital monetário do rendeiro sem ele ter
feito nada por isso, enquanto a renda da terra que ele tinha de pagar,
sendo calculada em valores monetários ultrapassados, minguou.60 Assim,
59 “Rendeiros”, diz Harrison na sua Description of England, “para os quais antes era
difícil pagar uma renda de 4 libras esterlinas, pagam agora 40, 50, 100 libras ester-
linas e acreditam haver feito um mau negócio, se depois de terminar o seu contrato
de arrendamento nao puseram de parte 6 a 7 anos de rendas.”
60 Acerca da influência da depreciação da moeda no século XVI sobre as diversas
classes da sociedade, veja-se: A Compendious or Briefe Examination of Certayne
A CHAMADA A CU MULAÇ ÃO P RIMIT IVA | 233
ele enriquecia, ao mesmo tempo, à custa de seus trabalhadores assalaria-
dos e de seu landlord. Não é de admirar, portanto, que a Inglaterra, nos
fins do século XVI, possuísse uma classe de “rendeiros de capital” bas-
tante ricos para a época.61
Ordinary Complaints of Divers of our Countrymen in these our Days. By W. S.,
Gentleman [Um Exame Compendioso ou Breve de Certas Queixas Correntes de
Diversos Compatriotas Nossos Nestes Nossos Dias. Por W. S., fidalgo], (London,
1581.) A forma de diálogo deste escrito levou a que durante muito tempo fosse
atribuído a Shakespeare e, ainda em 1751, ele foi novamente publicado com o seu
nome. O seu autor é William Stafford. Numa passagem, o cavaleiro (knight) racio-
cina como segue:
“Knight: V., meu vizinho, lavrador. V., mestre negociante de tecidos, e V.,
compadre tanoeiro, juntamente com outros artífices, podeis salvar-vos bastante
bem. Pois, por muito que todas as coisas estejam mais caras do que estavam, vós
aumentais outro tanto o preço das vossas mercadorias e ocupações, que vendeis de
novo. Mas nós não temos nada para vender cujo preço possamos subir, para con-
trabalancar aquelas coisas que temos de comprar de novo.” Numa outra passagem,
o knight pergunta ao doutor: “Rogo-vos que [me digais] quais são essas espécies
[de pessoas] a que vos referis. E, em primeiro lugar, aquelas que pensais que, por
esse facto, não terão qualquer perda? – Doutor: Refiro-me a todos aqueles que
vivem comprando e vendendo, pois, como compram caro, vendem em conformi-
dade. – Knight: Qual é a espécie seguinte que dizeis que ganharia com isso? –
Doutor: Deveras, todos aqueles que têm tomadas quintas, amanhadas por eles, com
a renda antiga, pois quando pagam pela taxa antiga vendem pela nova – isto é,
pagam muito barato pela sua terra e vendem todas as coisas que nela crescem caro.
– Knight: Qual é aquela espécie que haveis dito que teria, consequentemente, uma
perda maior do que estes homens têm de lucro? – Doutor: São todos os nobres,
fidalgos e todos os outros que ou vivem de uma renda fixa ou estipêndio, ou não
amanham o solo ou nao se ocupam a comprar e a vender.” (Nota de Marx.)
61 Em França, o régisseur, o intendente e recebedor de rendimentos para os senhores
feudais, na Baixa Idade Média, torna-se rapidamente um homme d’affaires [ho-
mem de negócios]que, por extorsão, intrujice, etc, trepa para capitalista. Estes ré-
gisseurs eram, muitas vezes, eles próprios senhores nobres. Por exemplo: “É a
conta que o senhor Jacques de Thoraine, cavaleiro castelão de Besançon, dá ao
senhor que, em Dijon, tem as contas do senhor duque e conde de Borgonha das
rendas pertencentes à dita castelania desde o XXV dia de Dezembro de MCCCLIX
até ao XXVIII dia de Dezembro de MCCCLX, etc.” (Alexis Monteil, Traité des
matériaux manuscrits, etc. [Tratado dos Materiais Manuscritos, etc], pp. 234, 235.)
Verifica-se já aqui como em todas as esferas da vida social que a parte de leão
cabe ao intermediário. No campo económico, por exemplo, financeiros, homens da
bolsa, comerciantes, pequenos merceeiros, absorvem a nata do negócio; no direito
civil, o advogado tosquia as partes; na política, o representante significa mais do
que os eleitores, o ministro mais do que o soberano; na religião, deus é afastado
para segundo plano pelo “mediador” e este é de novo repelido pelos padres que,
novamente, são mediadores indispensáveis entre o bom pastor e as suas ovelhas.
Tal como em Inglaterra, também em França os grandes territórios feudais estavam
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5. Repercussão da revolução agrícola sobre a indústria.
Criação do mercado interno para o capital industrial
A intermitente e sempre renovada expropriação e expulsão do povo do
campo, como foi visto, forneceu à indústria urbana mais e mais massas de
proletários, situados totalmente fora das relações corporativas, uma sábia
circunstância que faz o velho A. Anderson (que não se deve confundir
com James Anderson), na sua história do comércio, acreditar numa
intervenção directa da Providência. Temos de nos deter ainda um mo-
mento neste elemento da acumulação primitiva. À rarefacção do povo
independente, economicamente autónomo, do campo correspondeu o
adensamento do proletariado industrial, do mesmo modo que, segundo
Geoffroy Saint-Hilaire, o adensamento da matéria do universo aqui se
explica pela sua rarefacção ali.62 Apesar do número reduzido dos seus
cultivadores, o solo proporcionava, depois como antes, tanta ou mais
produção, porque a revolução nas relações de propriedade fundiária foi
acompanhada por métodos melhorados de cultura, maior cooperação,
concentração dos meios de produção, etc., e porque os assalariados
agrícolas não apenas foram obrigados a trabalhar mais intensamente,63
mas também o campo de produção sobre o qual trabalhavam para si
mesmos se contraía mais e mais. Com a libertação de parte do povo do
campo, os alimentos que este consumia anteriormente também são liber-
tados. Transformam-se agora em elemento material do capital variável. O
camponês despojado tem de adquirir o valor deles ao seu novo senhor, o
capitalista industrial, sob a forma de salário. Tal como os meios de sub-
sistência, foram afectadas também as matérias-primas agrícolas nacionais
da indústria. Transformaram-se em elemento do capital constante.
repartidos em infinitas pequenas explorações, mas em condições incomparavel-
mente mais desfavoráveis para o povo do campo. Durante o século XIV, nasceram
as quintas, fermes ou terriers. O seu número cresceu constantemente, muito acima
de 100 000. Pagavam uma renda fundiária variável de 1/12 a 1/5 do produto, em
dinheiro ou in natura. Os terriers eram feudos, subfeudos, etc. (fiefs, arrière-fiefs),
segundo o valor e extensão dos domínios, em que muitos só contavam poucos
arpents. Todos estes terriers possuíam jurisdição num grau qualquer sobre os ocu-
pantes do solo; havia quatro graus. Conceber-se-á a opressão do povo do campo
sob todos estes pequenos tiranos. Monteil diz que havia então, em França, 160 000
juízos, onde hoje 4000 tribunais (incluindo juízos de paz) bastam. (Nota de Marx.)
62 Nas suas Notions de Philosofie Naturelle, Paris, 1838.
63 Um ponto que Sir James Steuart ressalta.ª
ª Steuart, James. An Inquiry into the Principles of Political Economy. Dublin,
1770, v. I. Livro Primeiro. Cap. 16 (N. da Ed. Alemã.)
A CHAMADA A CU MULAÇ ÃO P RIMIT IVA | 235
Suponha-se, por exemplo, que parte dos camponeses da Vestefália,
que no tempo de Frederico II fiavam todos linho, ainda que não seda,
fosse expropriada à força e expulsa da terra, sendo a outra restante, po-
rém, transformada em jornaleiros de grandes rendeiros. Ao mesmo tem-
po, erguem-se grandes fiações e tecelagens de linho, nas quais os “liber-
tos” trabalham agora por salários. O linho tem exactamente o mesmo
aspecto que antes. Nenhuma das suas fibras foi mudada; mas uma nova
alma social penetrou-lhe no corpo. Ele constitui agora parte do capital
constante dos senhores da manufactura. Antes, repartido entre inumerá-
veis pequenos produtores, que o cultivavam e fiavam em pequenas por-
ções com as suas famílias, está agora concentrado nas mãos de um capita-
lista, que faz outros fiar e tecer para ele. O trabalho extra despendido na
fiação do linho realizava-se antes como receita extra de inumeráveis
famílias camponesas ou, ao tempo de Frederico II, também em impostos
pour le roi de Prousse.64 Ele realiza-se agora no lucro de alguns pouco
capitalistas. Os fusos e teares, antes disseminados pelo interior, estão
agora concentrados nalgumas grandes casernas de trabalho, tal como os
trabalhadores e como a matéria-prima. E os fusos, os teares e a matéria-
-prima, de meios de existência independente para fiandeiros e tecelões,
transformam-se de ora em diante, em meios de comandá-los65 e de extrair
deles trabalho não-pago. Nas grandes manufacturas, bem como nas
grandes quintas, não se nota que se originam da reunião de muitos peque-
nos centros de produção e que são formados pela expropriação de muitos
pequenos produtores independentes. Entretanto, a observação imparcial
não se deixa enganar. Ao tempo de Mirabeau, o leão da revolução, as
grandes manufacturas chamavam-se ainda manufactures réunies, manu-
facturas reunidas, tal como falamos de campos reunidos.
“Vê-se apenas”, diz Mirabeau, “as grandes manufacturas, onde cente-
nas de pessoas trabalham sob as ordens de um diretor e a que costu-
meiramente se chama manufacturas reunidas (manufactures réunies).
Aquelas em que trabalha um número muito grande de trabalhadores
dispersos e cada um por conta própria, quase não são consideradas
dignas de um olhar. São postas a uma distância infinita das outras. É
um erro muito grande, pois só elas constituem um componente real-
mente importante da riqueza do povo. (...) A fábrica reunida (fabrique
réunie) enriquecerá maravilhosamente um ou dois empresários, os
64 Para o rei da Prússia. Em francês no texto.
65 “Eu concederei”, diz o capitalista, “que vós tenhais a honra de servir-me, sob a
condição de que vós me deis o pouco que vos resta pelo incómodo que tenho de
vos comandar.” (Rousseau, J. J. Discours sur l’Economie Politique [Genève, 1760,
p. 70].)
236 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
trabalhadores, porém, são apenas jornaleiros e em nada participam do
bem-estar do empresário. Na fábrica separada (fabrique séparée), pelo
contrário, ninguém se torna rico, mas muitos trabalhadores viverão
desafogados. (...) os poupados e industriosos poderão reunir um pe-
queno capital, arranjar algum recurso para o nascimento de um filho,
para uma doença, para eles próprios ou para algum dos seus. O núme-
ro dos operários poupados e industriosos aumentará, porque verão no
bom comportamento, na actividade, um meio de melhorarem essen-
cialmente a sua situação e não de obterem uma pequena elevação de
soldo, que nunca pode ser um objecto importante para o futuro, e cujo
único produto é pôr os homens em estado de viver um pouco melhor,
mas só no dia-a-dia...”66“As manufacturas reunidas, as empresas de
alguns particulares que pagam a operários dia a dia para trabalharem
por sua conta, podem dar desafogo a esses particulares; mas nunca
constituirão um objecto digno da atenção dos governos. As manufac-
turas separadas individuais, na maioria dos casos, ligadas a um peque-
no cultivo da terra, são as [únicas] livres.”
A expropriação e expulsão de uma parte do povo do campo não deixa
apenas livres para o capital industrial, juntamente com os operários, os
seus meios de vida e o seu material de trabalho; cria o mercado interno.
De facto, os acontecimentos que transformam os pequenos campone-
ses em operários assalariados e os seus meios de vida e de trabalho em
elementos materiais [sachliche] do capital criam ao mesmo tempo para
este último o seu mercado interno. Anteriormente, a família de campone-
ses produzia e preparava os meios de vida e matérias-primas que, depois,
ela própria consumia na maior parte. Estas matérias-primas e meios de
vida tornaram-se agora mercadorias; o grande rendeiro vende-os, eles
encontram o seu mercado nas manufacturas. Fio, tela, tecidos grosseiros
de lã – coisas cujas matérias-primas se encontravam ao alcance de toda a
família de camponeses e por ela eram fiadas e tecidas para o seu uso
próprio – transformam-se agora em artigos de manufactura, para os quais,
precisamente, os distritos rurais formam o mercado de escoamento. A
numerosa clientela dispersa, até agora condicionada por um conjunto de
pequenos produtores trabalhando por conta própria, concentra-se agora
num grande mercado proporcionado pelo capital industrial.67 Deste modo,
66 Mirabeau, Op. cit., t. III, p. 20-109 passim. Se Mirabeau considera as oficinas
dispersas mais económicas e produtivas que as “reunidas” e vê nestas últimas ape-
nas plantas artificiais de estufa sob os cuidados do governo do Estado, isso expli-
ca-se pela situação em que então se encontrava grande parte das manufacturas
continentais.
67 “Vinte libras de la convertidas discretamente no vestuário anual de uma família de
camponeses por sua própria indústria, nos intervalos de outros trabalhos – isso não
A CHAMADA A CU MULAÇ ÃO P RIMIT IVA | 237
de braço dado com a expropriação de camponeses que anteriormente
trabalhavam para si próprios e com a separação deles dos seus meios de
produção, vai o aniquilamento da indústria rural adjacente, o processo de
separação da manufactura e da agricultura. E só o aniquilamento da
indústria caseira rural pode dar ao mercado interno de um país a extensão
e a consistência firme de que o modo de produção capitalista precisa.
Entretanto, o período manufactureiro propriamente dito não leva a ne-
nhuma reestruturação radical. Recordemos que a manufactura só se
apodera da produção nacional de forma fragmentária e repousa sempre
sobre a oficina da cidade e sobre a indústria caseira-rural adjacente, como
amplo pano de fundo. Se ela aniquila as últimas sob uma forma, em
ramos de negócio particulares, em certos pontos, apela de novo para elas
em outros, porque precisa delas até um determinado grau para a prepara-
ção da matéria-prima. Ela produz, portanto, uma nova classe de pequenos
rurais que prosseguem o amanho do solo como ramo adjacente e o traba-
lho industrial para venda do produto à manufactura – directamente, ou
por intermédio do comerciante – como ocupação principal. Esta é uma
causa, embora não a principal, de um fenómeno que confunde, inicial-
mente, o investigador da história inglesa. A partir do último terço do
século XV, ele encontra queixas contínuas, somente interrompidas em
certos intervalos, sobre a crescente economia capitalista no campo e a
destruição progressiva do campesinato. Por outro lado, ele encontra
sempre de novo este campesinato, ainda que em número mais reduzido e
sempre numa forma pior.68 A causa principal é: a Inglaterra é predomi-
nantemente ora cultivadora de trigo, ora criadora de gado, em períodos
alternados, e com eles flutua o volume da exploração camponesa. Somen-
te a grande indústria fornece, com as máquinas, a base constante da
agricultura capitalista, expropria radicalmente a imensa maioria do povo
do campo e completa a separação entre a agricultura e a indústria rural
doméstica, cujas raízes – fiação e tecelagem – ela arranca.69 Ela conquis-
faz sensação; mas leve-se isso para o mercado, envie-se para a fábrica, dali para o
revendedor, e ter-se-ão grandes operações comerciais e envolvido um capital no-
minal no montante de vinte vezes o seu valor... A classe operária é assim afundada
para sustentar uma população fabril miserável, uma classe lojista parasita e um
sistema comercial, monetário e financeiro fictício.» (David Urquhart, Familiar
Words as Afecting England and the English [Palavras Informais Relativas à Ingla-
terra e aos Ingleses], London, 1855, p. 120.) (Nota de Marx.)
68 O tempo de Cromwell constitui aqui uma excepção. Enquanto a República durou,
a massa do povo inglês de todas as camadas ergueu-se da degradação em que se
havia afundado com os Tudors. (Nota de Marx.)
69 Tuckett sabe que a grande indústria da lã surge das próprias manufacturas e da
destruição da manufactura caseira ou rural, com a introdução da maquinaria. (Tuc-
238 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
ta, portanto, também pela primeira vez, todo o mercado interno para o
capital industrial.70
6. Génese do capitalista industrial
A génese do capitalista industrial71 não decorreu da mesma maneira
gradual do que a do rendeiro. Sem dúvida, muitos pequenos mestres de
corporação e ainda mais pequenos artesãos autónomos ou também operá-
rios assalariados transformaram-se em pequenos capitalistas e, pela
exploração gradualmente estendida de trabalho assalariado e correspon-
dente acumulação, em capitalistas sanas phrase.72 No período de infância
da produção capitalista aconteceu muitas vezes como no período de
infância da cidade medieval onde a questão [de saber] quem, de entre os
servos evadidos, devia ser mestre e quem [devia ser] criado, em grande
parte, foi resolvida pela data mais antiga ou mais tardia da sua fuga. No
entanto, o passo de tartaruga deste método não correspondia de maneira
nenhuma às necessidades comerciais do novo mercado mundial, que as
grandes descobertas do fim do século XV tinham criado. A Idade Média,
kett, l. c., vol. I, pp. 139-144.) “A charrua, o jugo, foram ‘invencao dos deuses e
ocupacao de heróis’; o tear, o fuso, a roca, serao de ascendência menos nobre?
Separais a roca e a charrua, o fuso e o jugo, e obtendes fábricas e asilos para po-
bres, crédito e panicos, duas nacões hostis: a agrícola e a comercial.” (David Ur-
quhart, /. c., p. 122.) Mas vem agora Carey e acusa a Inglaterra, seguramente não
sem razão, por se esforçar por transformar todos os outros países num povo sim-
plesmente de agricultura, de que a Inglaterra seria o fabricante. Ele pretende que a
Turquia foi arruinada desta maneira, porque “aos donos e ocupantes da terra nunca
foi permitido pela Inglaterra fortalecerem-se pela formação daquela aliança natural
entre a charrua e o tear, o martelo e o ancinho”. (The Slave Trade [O Comércio de
Escravos], p. 125.) Segundo ele, o próprio Urquhart é um dos principais agentes da
ruína da Turquia, por ter feito propaganda do comércio livre no interesse inglês. O
melhor é que Carey – a propósito: grande lacaio dos russos – quer impedir aquele
processo de separação pelo sistema de proteccionismo que o acelera. (Nota de
Marx.)
70 Economistas filantrópicos ingleses, como Mill, Rogers, Goldwin Smith, Fawcett,
etc, e fabricantes liberais, como John Bright e consortes, perguntam aos aristocra-
tas fundiários ingleses – tal como deus a Caim pelo seu irmão Abel – para onde
foram os nossos milhares de freeholders? Mas então de onde é que vós vindes? Do
aniquilamento daqueles freeholders. Por que é que não lhes perguntam, além dis-
so, para onde foram os tecelões, fiandeiros, artesãos, independentes? (Nota de
Marx.)
71 Industrial está aqui em oposicao a agrícola. Em sentido “categórico”, o rendeiro é
um capitalista industrial, tal como o fabricante.
72 Sem disfarce.
A CHAMADA A CU MULAÇ ÃO P RIMIT IVA | 239
porém, havia transmitido duas formas diversas de capital, que amadurece-
ram nas mais diversas formações económicas da sociedade e que, antes
da era do modo de produção capitalista, quand même, valiam como
capital – o capital usurário e o capital comercial.
“Actualmente, toda a riqueza da sociedade vai para as mãos do capi-
talista (...) ele paga ao proprietário da terra a renda, ao trabalhador o
salário, ao colector de imposto e dízimo os seus direitos e guarda
grande parte, na realidade a maior parte, que aumenta cada dia, do
produto anual do trabalho para si mesmo. O capitalista pode agora ser
considerado o proprietário de toda a riqueza social em primeira mão,
apesar de nenhuma lei lhe ter concedido o direito a essa propriedade.
(...) essa mudança na propriedade foi efectivada pela cobrança de ju-
ros sobre o capital (...) e não é menos notável que os legisladores de
toda a Europa quisessem impedir isso mediante leis contra a usura.
(...) O poder do capitalista sobre toda a riqueza do país é uma revolu-
ção completa no direito de propriedade; e por que lei ou série de leis
foi ela efectivada?”73
O autor deveria observar que as revoluções não são feitas por meio de
leis.
O capital monetário formado pela usura e pelo comércio foi impedido
pela constituição feudal no campo e pela constituição corporativa nas
cidades de se converter em capital industrial.74 Essas barreiras caíram
com a dissolução dos séquitos feudais, com a expropriação e a expulsão
parcial do povo do campo. A nova manufactura foi instalada nos portos
marítimos de exportação ou em pontos no campo, fora do controle do
velho sistema urbano e da sua constituição corporativa. Na Inglaterra
verificou-se, por isso, amarga luta das corporate towns75 contra esses
novos viveiros industriais.
A descoberta das terras do ouro e da prata, na América, o extermínio,
a escravização e o enterramento da população nativa nas minas, o começo
da conquista e pilhagem das Índias Orientais, a transformação da África
numa coutada para a caça comercial de peles-negras marcam a aurora da
era de produção capitalista. Esses processos idílicos são momentos fun-
damentais da acumulação primitiva. Segue-se-lhes de perto a guerra
73 The Natural and Artifical Rights of Property Contrasted. Londres, 1832, p. 98-99.
Autor do escrito anónimo: Th. Hodgskin. (Nota de Marx.)
74 Ainda em 1794, os pequenos confeccionadores de pano de Leeds enviaram uma
deputação ao Parlamento com uma petição para que fosse elaborada uma lei que
proibisse a todo comerciante tornar-se fabricante (Dr. Aikin. Op. cit.).
75 Cidades com organização corporativa.
240 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
comercial das nações europeias, tendo o mundo por palco. Ela é aberta
pela sublevação dos Países Baixos contra a Espanha, assume proporção
gigantesca na Guerra Antijacobina da Inglaterra e prossegue ainda nas
Guerras do Ópio contra a China, etc.
Os diferentes momentos da acumulação primitiva repartem-se então,
mais ou menos por ordem cronológica, a saber pela Espanha, Portugal,
Holanda, França e Inglaterra. Na Inglaterra, em finais do século XVII,
são resumidos sistematicamente no sistema colonial, no sistema da dívida
pública, no moderno sistema tributário e no sistema proteccionista. Estes
métodos baseiam-se, em parte, na mais brutal violência, por exemplo, o
sistema colonial. Todos, porém, utilizaram o poder do Estado, a violência
concentrada e organizada da sociedade, para activar artificialmente o
processo de transformação do modo feudal de produção em capitalista e
para abreviar a transição. A violência é a parteira de toda a velha socie-
dade que está prenhe de uma nova. Ela própria é uma potência económica.
Sobre o sistema colonial cristão, um homem que faz da cristandade
uma especialidade, W. Howitt, diz:
“As barbaridades e as atrozes crueldades das assim chamadas raças
cristãs, em todas as regiões do mundo e contra todos os povos que pu-
deram subjugar, não encontram paralelo em nenhuma era da história
universal, em nenhuma raça, por mais selvagem e ignorante, por mais
despida de piedade e de vergonha que fosse”.76
A história da economia colonial holandesa – e a Holanda era a nação
capitalista modelar do século XVII – “desenrola um insuperável quadro
de traição, suborno, massacre e baixeza”.77 Nada é mais característico que
o seu sistema de roubo de pessoas nas Celebes, a fim de obter escravos
para Java. Os ladrões de pessoas eram adestrados para esse fim. O ladrão,
o intérprete e o vendedor eram os agentes principais nesse comércio; os
príncipes nativos, os principais vendedores. Os jovens sequestrados eram
escondidos nas prisões secretas das Celebes até que estivessem maduros
para o envio aos navios de escravos. Um relatório oficial diz:
76 Howitt, William. Colonization and Christianity. A Popular History of the Treat-
ment of the Natives by the Euro peans in all their Colonies. Londres, 1838, p. 9.
Sobre o tratamento dado aos escravos, encontra-se uma boa compilação em Com-
te, Charles. Traité de Législation. 3ª Ed., Bruxelas, 1837. Deve-se estudar este
assunto em detalhe, para ver o que o burguês faz de si mesmo e do trabalhador
onde pode à vontade modelar o mundo à sua imagem.
77 Raffles, Thomas Stamford. Late lieut. Gov. of that island. The History of Java.
Londres, 1817. [v. II, p. CXC-CXCI.]
A CHAMADA A CU MULAÇ ÃO P RIMIT IVA | 241
“Esta cidade de Macassar, por exemplo, está cheia de prisões secretas,
uma mais horrenda que a outra, entulhadas de miseráveis, vítimas da
avidez e da tirania, presos a correntes, arrancados violentamente às
suas famílias”.
Para se apoderarem de Malaca, os holandeses subornaram o governa-
dor português. Em 1641, ele deixou-os entrar na cidade. Dirigiram-se
imediatamente a sua casa e assassinaram-no a fim de se “absterem” do
pagamento da soma do suborno de 21 875 libras esterlinas. Onde punham
o pé seguia-se devastação e despovoamento. Banjuwangi, uma província
de Java, contava em 1750 com mais de 80 mil habitantes, em 1811,
apenas 8 mil. Eis o doux commerce!78
A Companhia Inglesa das Índias Orientais obteve, como é sabido, para
além da dominação política nas Índias Orientais, o monopólio exclusivo
do comércio do chá, assim como do comércio chinês, em geral, e do
transporte de bens de e para a Europa. Mas a navegação costeira da Índia
e entre as ilhas, assim como o comércio no interior da Índia, tornaram-se
monopólio dos funcionários superiores da companhia. Os monopólios do
sal, ópio, bétel e outras mercadorias eram minas inesgotáveis de riqueza.
Os próprios funcionários fixavam os preços e esfolavam à vontade o
infeliz hindu. O governador-geral tomava parte neste comércio privado.
Os seus favoritos obtinham contratos em condições em que, mais espertos
do que os alquimistas, conseguiam ouro a partir de nada. Num dia, brota-
vam como cogumelos grandes fortunas; a acumulação primitiva avançava
sem o dispêndio de um xelim. A demanda judicial de Warren Hastings
regurgita de exemplos desses. Eis aqui um caso. Um contrato de ópio foi
atribuído a um certo Sullivan, no momento da sua partida – em missão
oficial – para uma parte da Índia totalmente afastada dos distritos do ópio.
Sullivan vendeu o seu contrato por 40 mil libras esterlinas a um certo
Binn, Binn vendeu-o no mesmo dia por 60 mil libras esterlinas e o último
comprador e cumpridor do contrato declarou que, depois disso, ainda
obteve um ganho enorme. Segundo uma das listas apresentadas ao Parla-
mento, a Companhia e os seus funcionários, de 1757 até 1766, fizeram
que os índios os presenteassem com 6 milhões de libras esterlinas! Entre
1769 e 1770, os ingleses fabricaram uma fome pela compra de todo o
arroz e pela recusa da sua revenda a não ser por preços fabulosos.79
78 Doce comércio.
79 No ano de 1866, somente na província de Orissa, mais 1 milhão de indianos
morreu de fome. Não obstante, procurou-se enriquecer o Tesouro estatal indiano
com os preços pelos quais se cediam os alimentos aos famintos.
242 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
O tratamento dos nativos era naturalmente o mais terrível nas planta-
ções destinadas apenas à exportação, como nas Índias Ocidentais, e nos
países ricos e densamente povoados, entregues às matanças e à pilhagem,
como o México e as Índias Orientais. No entanto, mesmo nas colónias
propriamente ditas não se desmentia o carácter cristão da acumulação
primitiva. Aqueles protestantes austeros e virtuosos, os puritanos da Nova
Inglaterra, estabeleceram, em 1703, por resolução de sua assembly, um
prémio de 40 libras esterlinas para cada escalpe indígena e para cada
pele-vermelha aprisionado; em 1720, um prémio de 100 libras esterlinas
para cada escalpe; em 1744, depois de Massachussetts-Bay ter declarado
certa tribo como rebelde, os seguintes preços: para o escalpe masculino,
de 12 anos para cima, 100 libras esterlinas da nova emissão; para prisio-
neiros masculinos, 105 libras esterlinas, para mulheres e crianças aprisio-
nadas, 50 libras esterlinas; para escalpes de mulheres e crianças, 50 libras
esterlinas! Algumas décadas mais tarde, o sistema colonial vingou-se nos
descendentes rebeldes dos piedosos pilgrim fathers.80 Com incentivo e
pagamento inglês, eles foram tomahawked.81 O Parlamento britânico
declarou que massacrar e escalpelar eram “meios que Deus e a Natureza
tinham posto nas suas mãos”.
O sistema colonial fez amadurecer como plantas de estufa o comércio
e a navegação. As “sociedades monopolia” (Lutero) foram alavancas
poderosas da concentração de capital. Às manufacturas em expansão, as
colónias asseguravam mercado de escoamento e uma acumulação poten-
ciada por meio do monopólio de mercado. O tesouro apresado fora da
Europa directamente por pilhagem, escravização e assassínio refluía à
metrópole e transformava-se em capital. A Holanda, que primeiro desen-
volveu plenamente o sistema colonial, atingira já em 1648 o apogeu da
sua grandeza comercial. Estava
“na posse quase exclusiva do comércio das Índias Orientais e do trá-
fego entre o Sudoeste e o Nordeste europeu. A sua pesca, a marinha e
as manufacturas sobrepujavam as de qualquer outro pais. Os capitais
da República eram talvez mais importantes que os do resto da Europa
em conjunto”.82
80 Pais ou patriarcas peregrinos. O primeiro grupo de puritanos que se estabeleceu
em Plymouth (Massachusetts), em 1620.
81 Mortos à machadada por índios.
82 Guelich, G. Von. Geschichtliche Darstellung des Handels, der Gewerbe und des
Ackerbaus der bedeutendsten handeltreibenden Stacten unserer Zeit [Exposição
Histórica do Comércio, da Indústria e da Agricultura dos Estados Comerciantes
mais Significativos do Nosso Tempo], Jena, 1830. v. 1, p. 371.
A CHAMADA A CU MULAÇ ÃO P RIMIT IVA | 243
Guelich esquece-se de acrescentar: o povo holandês era já em 1648
mais sobrecarregado de trabalho, mais empobrecido e mais brutalmente
oprimido que os povos do resto da Europa em conjunto.
Hoje em dia, a supremacia industrial traz consigo a supremacia co-
mercial. No período manufactureiro propriamente dito, é, pelo contrário,
a supremacia comercial que dá o predomínio industrial. Daí o papel
preponderante que o sistema colonial desempenhava então. Era o “deus
estranho” que se colocava sobre o altar ao lado dos velhos ídolos da
Europa e que, um belo dia, com um empurrão e um pontapé, os atirou
conjuntamente pela borda fora. Proclamou a extracção de mais-valia
como objectivo último e único da humanidade.
O sistema de crédito público, isto é, da dívida do Estado, cujas origens
encontramos em Génova e Veneza já na Idade Média, apoderou-se de
toda a Europa durante o período manufactureiro. O sistema colonial, com
o seu comércio marítimo e as suas guerras comerciais, serviu-lhe de
estufa. Assim, ele consolidou-se primeiramente na Holanda. A dívida
pública, isto é, a alienação [Veräusserung] do Estado – tanto despótico
como constitucional ou republicano – marcou com o seu selo a era capi-
talista. A única parte da chamada riqueza nacional que realmente entra na
posse colectiva dos povos modernos é a sua dívida de Estado.83 Daí ser
totalmente consequente a doutrina moderna de que um povo torna-se
tanto mais rico quanto mais se endivida. O crédito público torna-se o
credo do capital. E, com o surgir do endividamento do Estado, vai para o
lugar dos pecados contra o Espírito Santo – para os quais não há qualquer
perdão – blasfemar contra a dívida do Estado.
A dívida pública torna-se uma das mais enérgicas alavancas da acu-
mulação primitiva. Como com o toque da varinha mágica, reveste o dinhei-
ro improdutivo de poder procriador e transforma-o assim em capital, sem
que, para tal, tivesse precisão de se expor às canseiras e riscos inseparáveis
da sua aplicação industrial e mesmo usurária. Os credores do Estado, na
realidade, não dão nada, pois a soma emprestada é convertida em títulos da
dívida, facilmente transferíveis, que continuam a funcionar nas suas mãos
como se fossem dinheiro sonante. Porém, abstraindo da classe de rentistas
ociosos assim criada e da riqueza improvisada dos financeiros que actuam
como intermediários entre o governo e a nação – como também da dos
arrendatários de impostos, mercadores, fabricantes privados, aos quais uma
boa porção de cada empréstimo do Estado realiza o serviço de um capital
caído do céu – a dívida do Estado fez prosperar as sociedades por acções, o
83 William Cobbett observa que na Inglaterra todas as instituições públicas são
denominadas “reais”, mas em compensacao existe a dívida “nacional” (national
debt). (Nota de Marx.)
244 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
comércio com títulos negociáveis de toda a espécie, a agiotagem, numa
palavra: o jogo da bolsa e a moderna bancocracia.
Desde o seu nascimento, os grandes bancos, adornados com títulos
nacionais, eram apenas sociedades de especuladores privados que se
colocavam ao lado dos governos e, graças aos privilégios recebidos,
estavam em condições de adiantar-lhes dinheiro. Por isso, a acumulação
da dívida do Estado não tem medidor mais infalível que a subida sucessi-
va das acções desses bancos, cujo completo desenvolvimento data da
fundação do Banco de Inglaterra (1694). O Banco de Inglaterra começou
a emprestar o seu dinheiro ao governo a 8%; ao mesmo tempo, foi autori-
zado pelo Parlamento a cunhar dinheiro do mesmo capital, emprestando-
-o ao público outra vez sob a forma de notas bancárias. Com essas notas,
podia descontar letras de câmbio, fazer adiantamentos sobre mercadorias
e comprar metais preciosos. Não tardou muito para que esse dinheiro de
crédito, por ele mesmo fabricado, se tornasse a moeda com a qual o
Banco de Inglaterra fazia empréstimos ao Estado e, por conta do Estado,
pagava os juros da dívida pública. Não bastava que ele desse com uma
mão, para com a outra receber de volta mais; ficou também, apesar de
receber, eterno credor da nação até ao último centavo dado. Gradual-
mente, tornou-se o inevitável depositário dos tesouros metálicos do país e
o centro de gravitação de todo o crédito comercial. Pela mesma altura em
que, em Inglaterra, se deixava de queimar bruxas, começava-se aí a
enforcar falsificadores de notas de banco. Que efeito produziu sobre os
contemporâneos o súbito emergir desta ninhada de bancocratas, financei-
ros, rentiers,84corretores, stockjobbers85 e lobos da bolsa, mostram-no os
escritos daquele tempo, por exemplo, de Bolingbroke.86
Com as dívidas do Estado surgiu um sistema internacional de crédito,
que frequentemente oculta uma das fontes da acumulação primitiva neste
ou naquele povo. Assim, as vilezas do sistema veneziano de rapina cons-
tituem uma das tais bases ocultas da riqueza de capital da Holanda, à qual
a decadente Veneza emprestou grandes somas em dinheiro. O mesmo se
passou entre a Holanda e a Inglaterra. Já no início do século XVIII, as
manufacturas da Holanda estavam bastante ultrapassadas e esta havia
cessado de ser a nação dominante do comércio e da indústria. Um dos
seus principais negócios de 1701 a 1776 torna-se, por isso, emprestar
enormes capitais, especialmente ao seu poderoso concorrente, a Inglater-
84 Os que vivem de rendimentos.
85 Especuladores com acções.
86 Se os tártaros inundassem hoje a Europa, seria muito difícil fazê-los entender o
que é entre nós um financeiro.” (Montesquieu. Esprit des Lois. Ed. Londres, 1769.
t. IV, p. 33.)
A CHAMADA A CU MULAÇ ÃO P RIMIT IVA | 245
ra. Uma relação análoga existe hoje entre a Inglaterra e os Estados Uni-
dos. Muito capital que aparece hoje nos Estados Unidos, sem certidão de
nascimento, é sangue infantil ainda ontem capitalizado na Inglaterra.
Como a dívida do Estado assenta nas receitas do Estado, que têm de
cobrir os pagamentos anuais por juros, etc, o moderno sistema tributário
tornou-se um complemento necessário do sistema de empréstimos nacio-
nais. Os empréstimos capacitam o governo a enfrentar despesas extraor-
dinárias, sem que o contribuinte o sinta imediatamente, mas exigem,
como consequência, a subida dos impostos. Por outro lado, o aumento de
impostos causado pela acumulação de dívidas contraídas sucessivamente
força o governo a contrair sempre novos empréstimos para fazer face a
novos gastos extraordinários. O regime fiscal moderno, cujo eixo é cons-
tituído pelos impostos sobre os meios de subsistência mais necessários
(portanto, encarecendo-os), traz em si mesmo o germe da progressão
automática. A sobretaxação não é um incidente, mas antes um princípio.
Na Holanda, onde esse sistema foi primeiramente inaugurado, o grande
patriota De Witt celebrou-o por isso nas suas máximas como o melhor
sistema para manter o trabalhador assalariado submisso, frugal, diligente
e (...) sobrecarregado de trabalho. A influência destruidora que exerce
sobre a situação dos trabalhadores assalariados interessa-nos aqui, entre-
tanto, menos que a violenta expropriação do camponês, do artesão, enfim,
de todos os componentes da pequena classe média, que ele condiciona.
Sobre isso não há opiniões divergentes, nem mesmo entre os economistas
burgueses. A sua eficácia expropriadora é fortalecida ainda pelo sistema
proteccionista, que constitui uma das suas partes integrantes.
A grande parte que cabe à dívida pública e ao sistema fiscal que lhe cor-
responde na capitalização da riqueza e na expropriação das massas levou
um conjunto de escritores – como Cobbett, Doubleday e outros – a procu-
rar aí, sem razão, a causa fundamental da miséria dos povos modernos.
O sistema proteccionista foi um meio artificial de fabricar fabricantes,
de expropriar trabalhadores independentes, de capitalizar os meios nacio-
nais de produção e de subsistência, de encurtar violentamente a transição
do antigo modo de produção para o moderno. Os Estados europeus dis-
putaram entre si a patente desta invenção e, uma vez entrados ao serviço
do realizador de mais-valia [Plusmacher], extorquiram para esse efeito,
não só o próprio povo, indirectamente através de direitos proteccionistas,
directamente através de prémios de exportação, etc. Nos países secundá-
rios dependentes, toda a indústria foi violentamente extirpada, como, por
exemplo, a manufactura de lã irlandesa, pela Inglaterra. No continente
europeu, segundo o modelo de Colbert, o processo foi ainda mais simpli-
ficado. O capital original do industrial flui aqui, em parte, directamente
do tesouro do Estado.
246 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
“Porquê”, exclama Mirabeau, “ir tão longe buscar a causa do esplen-
dor da manufactura da Saxónia antes da Guerra dos Sete Anos? Cento
e oitenta milhões de dívidas contraídas pelos soberanos!87
Sistema colonial, dívidas do Estado, peso dos impostos, protecção,
guerras comerciais, etc., esses rebentos do período manufactureiro pro-
priamente dito agigantam-se durante a infância da grande indústria. O
nascimento desta última é celebrado pelo grande rapto herodiano de
crianças. Tal como a marinha real, as fábricas [também] faziam recruta-
mento forçado. Por muito blasé que Sir F. M. Eden seja frente aos horro-
res da expropriação do povo do campo da sua base fundiária, desde o
último terço do século XV até à sua época, o fim do século XVIII, por
muito que ele se congratule, satisfeito consigo, com este processo “neces-
sário” para “estabelecer” a agricultura capitalista e a “devida proporção
entre a terra arável e a terra para pastagem”, ele não demonstra, em
contrapartida, a mesma compreensão económica da necessidade do roubo
de crianças e da escravatura infantil para a transformação da empresa
manufactureira na empresa fabril e para o estabelecimento da verdadeira
relação entre capital e força de trabalho. Diz ele:
“Talvez mereça a consideração do público considerar se alguma ma-
nufactura – que, para ser conduzida com sucesso, requer que cottages
e workhouses tenham de ser saqueadas para [arranjar] crianças pobres;
que elas tenham de ser empregues por turnos durante a maior parte da
noite e roubadas daquele descanso que, apesar de indispensável a to-
dos, é mais requerido pelos jovens; e que um grande número de [cri-
anças] de ambos os sexos, de diferentes idades e aptidões, tenha de ser
reunido de uma maneira tal que o contágio do exemplo não pode levar
senão à depravação e ao deboche – contribuirá [com alguma coisa]
para a soma da felicidade individual ou nacional?88 “Nos condados do
Derbyshire, Nottinghamshire e, mais particularmente, no Lancashire”,
diz Fielden, “a maquinaria recentemente inventada foi usada em
grandes fábricas construídas nas margens de rios capazes de fazerem
girar a roda hidráulica. Milhares de braços foram subitamente requeri-
dos nesses lugares, remotos das cidades; e, sendo, em particular o
Lancashire, até então, comparativamente, escassamente povoado e es-
téril, do que agora precisava era de uma população. Sendo os dedos
pequenos e ágeis das criancinhas, de muito longe, o que mais era pe-
87 “Pourquoi aller chercher si loin la cause de l’éclat manufacturier de la Saxe avant
la guerre? Cent quatre-vingt millions de dettes faîtes par les souverains!” (Mira-
beau. Op. cit., t. VI, p. 101.)
88 Eden. Op. cit., Livro Segundo. Cap. I, p. 421.
A CHAMADA A CU MULAÇ ÃO P RIMIT IVA | 247
dido, surgiu instantaneamente o costume de arranjar aprendizes nas
diferentes workhouses paroquiais de Londres, de Birmingham e de
outros lados. Muitos, muitos milhares dessas pequenas, infelizes, cria-
turas foram mandadas para o Norte, tendo desde a idade de 7 até à
idade de 13 ou 14 anos. O costume era de que o mestre” (isto é, o la-
drão de crianças) “vestisse os seus aprendizes e os alimentasse e alo-
jasse numa ‘casa de aprendizes’ perto da fábrica; foram contratados
supervisores para vigiarem as obras e o interesse deles era fazer tra-
balhar as crianças ao máximo, porque a paga deles era em proporção à
quantidade de trabalho que conseguissem extorquir. Claro que a con-
sequência era a crueldade... Em muitos dos distritos manufactureiros,
mas particularmente, receio, no condado cheio de culpas a que perten-
ço [Lancashire], foram praticadas as crueldades mais de cortar o cora-
ção sobre as criaturas inofensivas e desvalidas que estavam, assim,
consignadas ao cuidado de mestres manufactureiros; eram fatigadas
até à beira da morte por excesso de trabalho... eram açoitadas, agrilho-
adas e torturadas com o requinte de crueldade mais apurado; ... em
muitos casos, eram reduzidas pela fome até ao osso e açoitadas no seu
trabalho e... mesmo nalgumas ocasiões... foram levadas a suicidarem-
-se... Os vales belos e românticos do Derbyshire, Nottinghamshire e
Lancashire, retirados do olhar público, tornaram-se as solidões som-
brias da tortura e de muitos assassínios. Os lucros dos manufactureiros
eram enormes; mas isso só aguçava o apetite que tinha de ser satisfeito
e, por conseguinte, os manufactureiros recorreram a um expediente
que parecia assegurar-lhes esses lucros sem qualquer possibilidade de
limite; começaram com a prática daquilo que é denominado ‘trabalho
nocturno’, isto é, tendo cansado um grupo de braços fazendo-os tra-
balhar durante todo o dia, tinham outro grupo pronto para continuar a
trabalhar durante toda a noite; indo o grupo diurno para as camas que
o grupo nocturno tinha acabado de deixar e, por sua vez, de novo, indo
o grupo nocturno, de manhã, para as camas que o grupo diurno deixa-
ra. É tradição corrente, no Lancashire, que as camas nunca arrefe-
çam.”89
89 Fielden, John. Op. cit., p. 5-6. Sobre as infâmias originárias do sistema fabril,
comparar Dr. Aikin (1795). Op. cit., p. 219; e Gisborne. Enquiry into the Duties of
Men. 1795. v. II. Visto que a máquina a vapor transplantou as fábricas das quedas
d’água rurais para o centro das cidades, o extractor de mais-valia, sempre “pronto
a renúncia”, encontrou a mao o material infantil, sem a oferta forcada de escravos
das workhouses. – Quando Sir Peel (pai do “ministro da plausibilidade”) apresen-
tou a sua bill em protecção das crianças, em 1815, F. Horner (luminária do Bulion-
Committee e amigo íntimo de Ricardo) declarou na Camara dos Comuns: “É notó-
rio que junto com a massa falida, um bando, se me permitem essa expressão, de
crianças de fábrica foi anunciado e arrematado, em leilão público, como parte da
248 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
Com o desenvolvimento da produção capitalista durante o período
manufactureiro, a opinião pública da Europa perdeu o que lhe restava de
sentimentos de vergonha e consciência. As nações jactavam-se cinica-
mente de cada infâmia que fosse um meio para acumular capital. Leiam-
-se, por exemplo, os ingénuos anais do comércio do probo A. Anderson.
Aí é trombeteado como triunfo da sabedoria política inglesa que a Ingla-
terra, na paz de Utrecht, pelo tratado de Asiento,90 tenha extorquido aos
espanhóis o privilégio de explorar o tráfico de negros, que até então
explorava apenas entre a África e a América espanhola. A Inglaterra
obteve o direito de fornecer à América espanhola, até 1743, 4800 negros
por ano. Isso proporcionava, ao mesmo tempo, um manto oficial para o
contrabando britânico. Liverpool engordou à base do comércio de escra-
vos. Ele constituía o seu método de acumulação primitiva. E, até aos dias
de hoje, a “honorabilidade” de Liverpool permanece o Píndaro do comér-
cio de escravos, o qual – compare-se com o escrito citado do Dr. Aikin de
1795 – “coincidiu com aquele espírito de corajosa aventura que caracteri-
zou o comércio de Liverpool e que rapidamente a levou ao seu presente
estado de prosperidade; ocasionou um vasto emprego para embarcadiços
e marinheiros, e aumentou grandemente a procura das manufacturas do
país” [p. 339]. Em 1730, Liverpool empregava no comércio de escravos
15 navios; em 1751, 53; em 1760, 74; em 1770, 96; e em 1792, 132.
Enquanto introduzia a escravatura de crianças em Inglaterra, a indús-
tria do algodão dava, ao mesmo tempo, o impulso para a transformação
da anterior economia esclavagista mais ou menos patriarcal dos Estados
Unidos num sistema de exploração comercial. Em geral, a escravatura
velada de operários assalariados na Europa precisava, como pedestal, da
escravatura sans phrase no Novo Mundo.91
propriedade. Há dois anos” (em 1813) “chegou perante a King’s Benchª um caso
horroroso. Tratava-se de certo número de garotos. Uma paróquia de Londres tinha-
os consignado a um fabricante, que os transferiu de novo a outro. Eles foram fi-
nalmente descobertos por alguns filantropos, num estado de completa inanição
(absolute famine). Outro caso, ainda mais horroroso, chegou ao meu conhecimento
como membro da comissão parlamentar de inquérito. Há não muitos anos, uma
paróquia londrina e um fabricante de Lancashire concluíram um contrato pelo qual
foi estipulado que este, para cada 20 criancas sadias teria de aceitar uma idiota”.
90 Denominação dos acordos pelos quais a Espanha concedia a Estados estrangeiros e
pessoas privadas o direito de fornecer escravos negros para as suas colónias ameri-
canas, do século XVI até ao século XVIII. (N. da Ed. Alemã.)
91 Em 1790, nas Índias Ocidentais inglesas havia 10 escravos para 1 homem livre,
nas francesas, 14 para 1, nas holandesas, 23 para 1. (Brougham, Henry. An Inquiry
into the Colonial Policy of the European Powers, Edimburgo, 1803. v. II, p. 74.)
A CHAMADA A CU MULAÇ ÃO P RIMIT IVA | 249
Tantae molis erat92 destacar as “leis naturais eternas” do modo de pro-
dução capitalista, completar o processo de separação entre operários e
condições de trabalho, transformar, num pólo, os meios de vida e de
produção sociais em capital e, no pólo oposto, a massa do povo em
operários assalariados, em “pobres trabalhadores” livres, esse produto
artificial da história moderna.93 Se o dinheiro, segundo Augier, “vem ao
mundo com manchas naturais de sangue sobre uma de suas faces”,94
então o capital nasce escorrendo por todos os poros sangue e porcaria da
cabeça aos pés.95
92 Tantae molis erat “Tanto esforco fazia-se necessário.” Marx utilisa aqui uma
expressão de Virgílio. Eneida. Livro Primeiro, verso 33. Lê-se aí: Tantae molis
erat Romanum condere gentem (Tanto esforço fazia-se necessário para fundamen-
tar a estirpe romana). (N. da Ed. Alemã.)
93 A expressão labouring poorª encontra-se nas leis inglesas desde o momento em
que a classe dos trabalhadores assalariados se torna digna de atenção. Os labou-
ring poor estão em contraposição, por um lado, aos idle poor,ª1 mendigos etc., por
outro, aos trabalhadores que ainda não se tornaram galinhas depenadas, mas conti-
nuam proprietários dos seus meios de trabalho. Da lei, a expressão labouring poor
transferiu-se para a economia política, de Culpeper, J. Child, etc. até A. Smith e
Eden. Consequentemente, julgue-se a boa fé do execrable political cantmonger
[execrável vendedor de hipocrisia política] Edmund Burke, quando qualifica a
expressão labouring poor como execrable political cant [execrável hipocrisia polí-
tica]. Esse sicofanta, que a soldo da oligarquia inglesa fez de romântico frente à
Revolução Francesa, do mesmo modo que, a soldo das colónias norte-americanas,
fez de liberal no início dos motins americanos frente à oligarquia inglesa, era sob
todos os aspectos um burguês ordinário: “As leis do comércio sao as leis da Natu-
reza e consequentemente as leis de Deus”. (Burke, E. Op. cit., p. 31-32.) Não é de
admirar que ele, fiel às leis de Deus e da Natureza, se vendesse sempre a si mesmo
no melhor mercado! Encontra-se nos escritos do Rev. Tucker – Tucker era padre e
tory, mas de resto um homem correto e competente economista político – uma boa
caracterização desse Edmund Burke, durante a sua época liberal. Em face da infa-
me falta de carácter, que predomina hoje, e da crenca mais devota nas “leis do
comércio”, é dever estigmatizar, sempre de novo, os Burkes, que se diferenciam
dos seus sucessores apenas por uma coisa: Talento!
94 Augier, Marie. Du Crêdit Public. [Paris, 1842, p. 265.]
95 “O capital”, diz o Quarterly Reviewer, “foge da turbulência e da briga, e é tímido,
o que é muito verdade; mas isto é tratar a questão muito incompletamente. O capi-
tal tem horror à ausência de lucro ou a um lucro muito pequeno, do mesmo modo
que anteriormente se dizia que a Natureza aborrecia o vácuo. Com o adequado
lucro, o capital é muito audaz. Uns 10 por cento certos assegurarão a sua aplicação
em qualquer parte; 20 por cento certos produzirão avidez; 50 por cento, positiva-
mente, audácia; 100 por cento, pô-lo-ão pronto a espezinhar todas as leis humanas;
300 por cento, e não haverá crime perante o qual tenha escrúpulos, nem um risco
que ele não corra, mesmo com a possibilidade de o seu dono ser enforcado. Se
turbulência e briga proporcionarem lucro, encorajará francamente ambas. O con-
250 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
7. Tendência histórica da acumulação capitalista
Em que vem a dar a acumulação primitiva do capital, isto é, a sua gé-
nese histórica? Enquanto não é transformação imediata de escravos e
servos em operários assalariados e, portanto, uma simples mudança de
forma, apenas significa a expropriação dos produtores imediatos, isto é, a
dissolução da propriedade privada assente no trabalho próprio.
A propriedade privada, como antítese da propriedade social, colectiva,
existe apenas onde os meios de trabalho e as suas condições externas
pertencem a pessoas privadas. Porém, consoante estas pessoas privadas
sejam trabalhadores ou não-trabalhadores, a propriedade privada assume
também carácter diferente. Os infindáveis matizes que a propriedade
privada exibe à primeira vista reflectem apenas as situações intermédias
existentes entre estes dois extremos.
A propriedade privada do trabalhador sobre seus meios de produção é
a base da pequena empresa, a pequena empresa uma condição necessária
para o desenvolvimento da produção social e da livre individualidade do
próprio trabalhador. Na verdade, esse modo de produção existe também
durante a escravidão, a servidão e outras relações de dependência. Mas
ela só floresce, só liberta toda a sua energia, só conquista a forma clássica
adequada, onde o trabalhador é livre proprietário privado das condições
de trabalho manipuladas por ele mesmo, o camponês da terra que cultiva,
o artesão dos instrumentos que maneja como um virtuoso.
Este modo de produção pressupõe o parcelamento do solo e dos de-
mais meios de produção. Assim como a concentração destes últimos,
exclui também a cooperação, divisão do trabalho dentro dos próprios
processos de produção, dominação social e regulação da Natureza, livre
desenvolvimento das forças sociais produtivas. Só é compatível com
limites naturais estreitos da produção e da sociedade. Pretender eternizá-
-lo significaria, como diz Pecqueur com razão, “decretar a mediocridade
geral”.96 Em certo nível de desenvolvimento, produz os meios materiais
da sua própria destruição. A partir desse momento agitam-se forças e
trabando e o comércio de escravos provaram amplamente tudo o que aqui é afir-
mado.” (T. J. Dunning, Trades Unions and Strikes, London, 1860 pp. 35-36) (Nota
de Marx.) 38 * “Tanto esforco fazia-se necessário.”Marx utilisa aqui uma expressao de
Virgílio. Eneida. Livro Primeiro, verso 33. Lê-se aí: Tantae molis erat Romanum
condere gentem (Tanto esforço fazia-se necessário para fundamentar a estirpe
romana). (N. da Ed. Alemã.)
96 Pecqueur, C. Théorie Nouvelle d’Economie Sociale et Politique. Paris, 1842,
p. 435.
A CHAMADA A CU MULAÇ ÃO P RIMIT IVA | 251
paixões no seio da sociedade, que se sentem manietadas por ele. Tem de
ser destruído e é destruído. A sua destruição, a transformação dos meios
de produção individuais e parcelados em socialmente concentrados,
portanto da propriedade minúscula de muitos em propriedade gigantesca
de poucos, portanto a expropriação da grande massa da população da sua
terra, dos seus meios de subsistência e instrumentos de trabalho, essa
terrível e difícil expropriação da massa do povo constitui a pré-história do
capital. Ela abrange uma série de métodos violentos, dos quais nós só
passámos em revista como métodos da acumulação primitiva do capital
os que fizeram época. A expropriação dos produtores directos é realizada
com o mais implacável vandalismo e sob o impulso das paixões mais
sujas, mais infames, mesquinhas e odiosas. A propriedade privada obtida
com trabalho próprio, baseada, por assim dizer, na fusão do trabalhador
individual isolado e independente com as suas condições de trabalho, é
suplantada pela propriedade privada capitalista, a qual se baseia na explo-
ração do trabalho alheio, mas formalmente livre.97
Logo que esse processo de transformação tenha decomposto suficien-
temente, em profundidade e extensão, a antiga sociedade, logo que os
trabalhadores tenham sido convertidos em proletários e as suas condições
de trabalho em capital, logo que o modo de produção capitalista se sus-
tente sobre os seus próprios pés, a socialização ulterior do trabalho e a
transformação ulterior da terra e de outros meios de produção em meios
de produção socialmente explorados, portanto, colectivos, a consequente
expropriação ulterior dos proprietários privados ganha nova forma. O que
está agora para ser expropriado já não é o trabalhador economicamente
autónomo, mas o capitalista que explora muitos trabalhadores.
Essa expropriação faz-se por meio do jogo das leis imanentes da pró-
pria produção capitalista, por meio da centralização dos capitais. Cada
capitalista mata muitos outros. Paralelamente a essa centralização ou à
expropriação de muitos outros capitalistas por poucos desenvolve-se a
forma cooperativa do processo de trabalho em escala sempre crescente, a
aplicação técnica consciente da ciência, a exploração planeada da terra, a
transformação dos meios de trabalho em meios de trabalho utilizáveis
apenas colectivamente, a economia de todos os meios de produção me-
diante uso como meios de produção de um trabalho social combinado, o
entrelaçamento de todos os povos na rede do mercado mundial e, com
isso, o carácter internacional do regime capitalista. Com a diminuição
constante do número dos magnatas do capital, os quais usurpam e mono-
97 “Nós encontramo-nos numa situação que é completamente nova para a sociedade
(...) nós procuramos separar toda a espécie de propriedade de toda a espécie de
trabalho.” (Sismondi. Nouveaux Principes de l’Écon. Polit. v. II, p. 434.)
252 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
polizam todas as vantagens desse processo de transformação, aumenta a
extensão da miséria, da opressão, da servidão, da degeneração, da explo-
ração, mas também a revolta da classe trabalhadora, sempre numerosa,
educada, unida e organizada pelo próprio mecanismo do processo de
produção capitalista. O monopólio do capital torna-se um entrave para o
modo de produção que floresceu com ele e sob ele. A centralização dos
meios de produção e a socialização do trabalho atingem um ponto em que
se tornam incompatíveis com o seu invólucro capitalista. Os expropriado-
res são expropriados.
O modo de apropriação capitalista surgido do modo de produção capi-
talista, ou seja, a propriedade privada capitalista, é a primeira negação da
propriedade privada individual, baseada no trabalho próprio. Mas a
produção capitalista produz, com a inexorabilidade de um processo
natural, a sua própria negação. É a negação da negação. Esta não resta-
belece a propriedade privada, mas a propriedade individual sobre o
fundamento do conquistado na era capitalista: a cooperação e a proprie-
dade comum da terra e dos meios de produção produzidos pelo próprio
trabalho.
A transformação da propriedade privada fragmentada, baseada no tra-
balho próprio dos indivíduos, em propriedade capitalista é, naturalmente,
um processo incomparavelmente mais longo, duro e difícil do que a
transformação da propriedade capitalista, realmente já fundada numa
organização social da produção, em propriedade social. Lá, tratou-se da
expropriação da massa do povo por poucos usurpadores, aqui trata-se da
expropriação de poucos usurpadores pela massa do povo.98
98 “O progresso da indústria, cujo portador involuntário e nao-resistente é a burgue-
sia, coloca no lugar do isolamento dos trabalhadores, pela concorrência, a sua uni-
ão revolucionária, pela associação. Com o desenvolvimento da grande indústria, a
burguesia vê, pois, desaparecer sob os seus pés o fundamento sobre o qual ela
produz e se apropria dos produtos. Ela produz, pois, antes de mais nada, os seus
próprios coveiros. A sua queda e a vitória do proletariado são igualmente inevitá-
veis. (...) De todas as classes que hoje se defrontam com a burguesia, apenas o
proletariado é uma classe realmente revolucionária. As demais classes degeneram
e desaparecem com a grande indústria, o proletariado é o seu produto mais genuí-
no. As camadas médias, o pequeno industrial, o pequeno comerciante, o artesão, o
camponês, todos eles combatem a burguesia para evitar que a sua existência como
camadas médias se extinga (...) eles são reaccionários, pois procuram fazer andar
para trás a roda da história.” (Marx, Karl e Engels, F. Manifest der Kommunis-
tischen Partei. Londres, 1848. p. 11, 9.)
BIOGRAFIAS DOS AUTORES
António Simões do Paço
Investigador do Instituto de História Contemporânea
da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Uni-
versidade Nova de Lisboa. Tem diversos artigos e
livros publicados sobre a história da I República, do
Estado Novo, do Partido Socialista e do Partido Comu-
nista Português e o processo de integração de Portugal
e Espanha nas Comunidades Europeias. Foi editor,
coordenador e co-autor de Os Anos de Salazar, uma
história do Estado Novo em 30 volumes. É editor executivo da revista acadé-
mica Workers of the World.
Camilo Domingues
Graduado em Artes Cénicas pela Universidade Federal
da Baía e mestre em História pelo Programa de Pós-
-Graduação em História da Universidade Federal Flu-
minense em Niterói, Rio de Janeiro. Realiza, no mes-
mo programa, pesquisa de doutoramento intitulada
“As relações estéticas da arte com a realidade: a inte-
ração entre a história, a filosofia e a literatura na obra
de N. G. Tchernychévski”, sob a orientação do Prof.
Dr. Daniel Aarão Reis.
Eduardo Petersen
Licenciado pela Faculdade de Direito da Universidade
Clássica de Lisboa (1984), ingressou no Centro de
Estudos Judiciários (1985) e seguiu a carreira de
magistrado judicial, na qual, desde 1996 e até 2016, se
especializou na jurisdição laboral. Doutorando em
História Contemporânea na FCSH sobre a evolução
legal do trabalho em Portugal.
254 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
Felipe A. Demier
Doutor em História pela Universidade Federal Flumi-
nense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço
Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). Editor do blogue Junho e membro da secreta-
ria de redação da revista Outubro, é autor, entre outros
artigos, livros e publicações, de O longo bonapartismo
brasileiro (1930-1964): um ensaio de interpretação
histórica (Rio de Janeiro: Mauad, 2013) e, ao lado de
Raquel Varela e Valério Arcary, de O que é uma Revolução? Teoria, Histó-
ria e Historiografia (Lisboa: Colibri, 2015). Recentemente, coordenou, em
parceria com Rejane Hoeveler, o livro A Onda Conservadora: ensaios sobre
os atuais tempos sombrios no Brasil (Rio de Janeiro: Mauad, 2016).
Fernando Rosas
Nasceu em 1946, em Lisboa, tendo-se doutorado em
História Económica e Social Contemporânea pela
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Uni-
versidade Nova de Lisboa. Foi, desde 1996, professor
agregado de História Portuguesa Contemporânea na
mesma universidade, tendo-se jubilado em 2016. O seu
interesse enquanto investigador voltou-se para a história
do Estado Novo. É um dos maiores especialistas portu-
gueses neste período, sendo consultor da Fundação Mário Soares e de várias
estações de televisão e rádio. Da sua vasta produção podem destacar-se o
volume 7 da conhecida História de Portugal dirigida por José Mattoso para o
Círculo de Leitores (1993), O Estado Novo (1926-1974) (coord. e autoria),
Portugal Entre a Paz e a Guerra 1939-1945 (Estampa, 1995), Pensamento e
Acção Política. Portugal Século XX (1890-1976) (Editorial Notícias, 2004),
História da Primeira República Portuguesa (Tinta da China, 2009) com Maria
Fernanda Rollo, Salazar e o Poder – A Arte de Saber Durar (Tinta da China,
2013) ou História e Memória. Última Lição (Tinta da China, 2016).
B IOGRAFIAS DOS AUTORE S | 255
Isabel Braga
Nasceu em Coimbra em 1950, licenciou-se em Filoso-
fia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Deu aulas no ensino secundário e foi tradutora antes
de começar a trabalhar como jornalista. Fez parte dos
quadros da agência ANOP, da Lusa e do Diário de
Lisboa antes de integrar a equipa fundadora do Públi-
co, em 1989. É autora de um livro de contos para crianças (Verbo) e co-
-autora de um roteiro de Lisboa, baseado nas várias ocupações históricas da
cidade (Assírio & Alvim).
Jorge Fontes
É historiador com doutoramento pela FCSH/Univer-
sidade Nova de Lisboa. Investigador do Instituto de
História Contemporânea, participa no Grupo de Histó-
ria Global do Trabalho e dos Conflitos Sociais.
Luísa Barbosa Pereira
Doutora em Sociologia pelo PPGSA da UFRJ-Brasil.
Pesquisadora doutorada integrada vinculada ao Grupo
de Estudos do Trabalho e dos Conflitos Sociais do
IHC-UNL-Portugal e IISH-Holanda. Docente de Filo-
sofia e Sociologia no CEJOB e CM Paulo Freire-
-Armação dos Búzios-Brasil. Autora de Justa causa
pro patrão (Multifoco, 2012) e Navegar é preciso
(Multifoco, 2015).
256 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …
Marcelo Badaró Mattos
Professor titular (catedrático) de História do Brasil na
Universidade Federal Fluminense (Niterói, Brasil).
Atualmente é investigador associado/visitante no
Instituto de História Contemporânea da Universidade
Nova de Lisboa. É bolsista de produtividade de pes-
quisa do CNPq e cientista do Nosso Estado-Faperj.
Investigador na área de História Social do Trabalho, é
autor de diversos livros nesse campo, assim como de
estudos sobre Teoria e Metodologia da História e
Materialismo Histórico, como Escravizados e livres:
experiências comuns na formação da classe trabalhadora carioca (2008) e
E. P. Thompson e a tradição de crítica ativa do materialismo históri-
co (2012).
Maria Augusta Tavares
Doutora em Serviço Social e pós-doutora em Eco-
nomia e História Contemporânea. Líder do Grupo de
Pesquisas sobre o Trabalho, UFPB-Brasil e membro
integrado do Grupo de História Global do Trabalho e
dos Conflitos Sociais IHC/FCSH/UNL-Portugal.
Autora de Os fios (in)visíveis da produção capitalista
(SP. Cortez, 2004) e de diversos artigos sobre o traba-
lho nas suas formas contemporâneas.
Michael Roberts
Economista, tem trabalhado na City de Londres em
várias instituições ao longo de mais de três décadas.
Publicou numerosos artigos em várias revistas econó-
micas. É autor de The Great Recession (Lulu, 2009) e
The Long Depression (Haymarket, 2016). Publica no
blogue thenextrecession.wordpress.com/
B IOGRAFIAS DOS AUTORE S | 257
Miguel Pérez
Miguel Ángel Pérez Suárez é investigador do IHC –
Instituto de História Contemporânea, mestre e douto-
rando em História Contemporânea na FCSH-UNL.
Especialista na história do movimento operário portu-
guês, tem publicado vários artigos em livros e revistas.
Raquel Varela
Historiadora e investigadora do Instituto de História
Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa,
onde coordena o Grupo de História Global do Tra-
balho e dos Conflitos Sociais, e do Instituto Internaci-
onal de História Social, onde coordena o projecto
internacional In the Same Boat? Shipbuilding and ship
repair workers around the World (1950-2010). É coor-
denadora do projecto História das Relações Laborais
no Mundo Lusófono. É doutora em História Política e Institucional (ISCTE –
Instituto Universitário de Lisboa). É neste momento presidente da Internatio-
nal Association Strikes and Social Conflicts.
OBRAS (AGUARDA)