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Biblioteca Nacional de Portugal

– Catalogação na Publicação

TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALISTA E REGIME POLÍTICO

NO PORTUGAL CONTEMPORÂNEO

Trabalho, acumulação capitalista e regime político no Portugal

contemporâneo : estudos em homenagem a António Monteiro Cardoso

e Dalila Cabrita Mateus / coord. António Simões do Paço… [et al.]. –

1ª ed. – (Extra-colecção)

ISBN 978-989-689-639-3

I – PAÇO, António Simões do, 1957-

CDU 94(469)”18/20”

Este trabalho é financiado por Fundos FEDER através do Programa Operacional

Factores de Competitividade – COMPETE e por Fundos Nacionais através da

FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projeto UID/HIS/04209/2013

Título: Trabalho, acumulação capitalista e regime político no Portugal

contemporâneo. Estudos em homenagem a António Monteiro

Cardoso e Dalila Cabrita Mateus

Coordenadores: António Simões do Paço, Maria Augusta Tavares,

Raquel Varela, Diogo Cancela

Editor: Fernando Mão de Ferro

Capa: Raquel Ferreira

Depósito legal n.º 420 437/17

Lisboa, Janeiro de 2017

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ÍNDICE

Introdução ..................................................................................................... 7

«Houve um genocídio na África portuguesa»

Entrevista com Dalila Mateus

Isabel Braga .............................................................................................. 13

«Em Portugal o século XIX foi um período extraordinário de

movimentações populares» Entrevista com António Monteiro Cardoso

Raquel Varela ............................................................................................ 23

Acumulação, regime e revolução: contributos para a história

do capitalismo português (séculos XIX-XX)

Raquel Varela, Felipe Abranches Demier, Luísa Barbosa Pereira ............ 41

Direito ao trabalho e segurança no emprego em Portugal: 1951-2013

Eduardo Petersen ...................................................................................... 61

Os dois andamentos do marcelismo

Fernando Rosas ......................................................................................... 81

Anos de brasa: uma visão do movimento operário português

na década de 70

Miguel Pérez ............................................................................................. 85

O movimento operário na Setenave

Jorge Fontes ............................................................................................ 101

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6 | TR ABAL HO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …

A lei geral da acumulação capitalista e as relações de trabalho

na atualidade

Marcelo Badaró Mattos ........................................................................... 113

Robôs e inteligência artificial: utopia ou distopia

Michael Roberts ...................................................................................... 135

Consciência operária e acumulação capitalista

Maria Augusta Tavares ........................................................................... 155

A esquerda marxista e as questões do regime político.

Marx e a ditadura do proletariado

António Simões do Paço ......................................................................... 171

História e literatura em As Vinhas da Ira

Camilo Domingues ................................................................................. 179

A chamada acumulação primitiva

Karl Marx ................................................................................................. 201

Biografias dos autores ............................................................................... 253

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INTRODUÇÃO

Trabalho, acumulação capitalista e regime político no Portugal con-

temporâneo é um livro colectivo que tem por objectivo homenagear

António Monteiro Cardoso e Dalila Cabrita Mateus, investigadores do

Instituto de História Contemporânea falecidos em 11 de janeiro de 2016 e

30 de outubro de 2014, respectivamente.

Nascida em Viana do Castelo em 1952, Dalila Cabrita Mateus era

mestra em História Social Contemporânea e doutora em História Moder-

na e Contemporânea, tendo focado a sua investigação na história das ex-

-colónias portuguesas e da guerra colonial. Sem deixar de ser professora

no ensino secundário, estava ligada ao Grupo de História Global do

Trabalho do Instituto de História Contemporânea da UNL.

A sua tese de doutoramento, de onde foi extraído o livro A PIDE/DGS

na guerra colonial 1961-1974 (Terramar, 2004), tornou-se uma referên-

cia para os interessados no papel da antiga polícia política nas ex-

-colónias.

Dalila escreveu vários livros com o marido, Álvaro Mateus, ex-

-militante do PCP (até 1987), professor, advogado, jornalista e professor,

falecido em 5 de agosto de 2013, como o conhecido e polémico Purga em

Angola (Texto Editores, 2009), sobre os acontecimentos do 27 de Maio

de 1977. Desta parceria resultaram ainda títulos como Angola 61. Guerra

colonial: causas e consequências (Texto Editora, 2011) e Nacionalistas

de Moçambique. Da luta armada à independência (Edições Asa, 2012).

Em livros como Memórias do Colonialismo e da Guerra (Edições

Asa, 2006) e A Luta pelas Independências (Inquérito, 2006) Dalila Ma-

teus estudou a resistência anticolonial, as memórias do colonialismo, o

trabalho forçado durante o Estado Novo e a luta pelo poder em Angola.

“A Dalila era uma historiadora corajosa”, escreveu Raquel Varela no

seu blogue por altura da morte da nossa colega e amiga, “e o seu acto

mais destemido foi ter escolhido estudar a PIDE nas ex-colónias, provan-

do que era uma polícia facínora, que cometia assassinatos, uma polícia

muito eficaz que operava em relação estreita com o Exército, e com um

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8 | TR ABAL HO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …

apoio massivo entre os colonos que, ao contrário do que acontecia no

‘continente’, os acolhiam respeitosamente nas cidades africanas quando

estes entravam num hotel ou restaurante (salvo honrosas excepções)”.

As entrevistas realizadas para a feitura de Purga em Angola, um mate-

rial precioso que era necessário proteger, estão depositadas na Torre do

Tombo. Também o seu arquivo foi entregue à guarda de Raquel Varela,

num almoço tristíssimo dois meses antes da sua morte – dois livros

estavam a caminho e muitos outros podem sair daquela imensidão de

notas, documentos e saber acumulado. Aguardam o interesse dos investi-

gadores, jovens e menos jovens, que queiram dar seguimento ao seu

valioso trabalho.

António Monteiro Cardoso nasceu em Freixo de Espada à Cinta em 8

de Setembro de 1950. Estudou em Lisboa, onde se licenciou na Faculda-

de de Direito em 1974. Em Direito, no início dos anos 70, inicia uma

actividade política organizada contra o regime que Caetano herdara de

Salazar e contra a guerra colonial. Participa nos CLAC – Comités de Luta

Anti-Colonial, e adere ao MRPP – de que viria a afastar-se em 1977.

Exerceu funções como jurista em diversas áreas, em especial no direito

da comunicação social, tendo publicado o livro Da Liberdade de Impren-

sa, com Alberto Arons de Carvalho e Nuno Godinho de Matos. Com

Arons de Carvalho e João Pedro de Figueiredo publicaria também Direito

da Comunicação Social.

A partir de finais dos anos 70, passou a dedicar-se também à pesquisa

histórica, de que resultou a obra A Guerrilha do Remexido, em co-autoria

com António do Canto Machado.

Desde então, orientou as suas investigações para os oratorianos de

Freixo de Espada à Cinta e para Trás-os-Montes na época das lutas libe-

rais, assuntos a que dedicou numerosos artigos, muitos deles publicados

na revista Brigantia.

Doutorou-se em História Moderna e Contemporânea, em 2005, no

ISCTE-IUL, Instituto Universitário de Lisboa, com a tese “A Revolução

Liberal em Trás-os-Montes (1820-1834) – O Povo e as Elites”. Interes-

sou-se também por Timor-Leste e publicou Timor na 2.ª Guerra Mundial

– O Diário do Tenente Pires, sobre a ocupação japonesa.

É autor, com António d’Oliveira Pinto da França, da obra Correspon-

dência Luso-Brasileira, vol. I Das Invasões Francesas à Corte no Rio de

Janeiro (1807-1821) e vol. II Cartas Baianas – O Liberalismo e a Inde-

pendência do Brasil (1821-1823).

Quando morreu, em 11 de janeiro de 2016, era membro desde há al-

gum tempo do Grupo de História Global do Trabalho do Instituto de

História Contemporânea da UNL. Transmontano, o António apaixonou-

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INTROD UÇÃO | 9

-se por compreender o século XIX na sua complexidade, demonstrando

que as revoltas “conservadoras” tinham pouco de nacionalismo ou ideo-

logia e muito de sobrevivência. Os seus protagonistas eram, como ele

afirma na entrevista que integra este volume – e que ele, já muito doente,

foi cuidadosamente corrigindo, com a seriedade, o cuidado, a atenção, a

clareza que punha em todos os seus trabalhos –, “camponeses pobres, que

aproveitam a resistência contra os franceses para hostilizar os proprietá-

rios locais, acusando-os de jacobinos e afrancesados. Foi uma vaga de

grande violência, que levou à pilhagem de casas e mesmo ao assassínio

de magistrados e outras autoridades. Uma espécie de rebelião popular,

que atingiu praticamente todo o País”.

Além das entrevistas com os dois homenageados, este volume integra

um estudo de Raquel Varela, Felipe Abranches Demier e Luísa Barbosa

Pereira sobre “Acumulação, regime político e revolução: contributos para

a história do capitalismo português (séculos XIX-XX)” que procura

demonstrar a tese de que “o projeto de desenvolvimento nacional que

assentava na ideia de que a elevação dos salários e do bem-estar era

compatível com o desenvolvimento capitalista e, portanto, poderia ser

encontrado um equilíbrio entre frações de classes sociais distintas, jamais

logrou êxito em Portugal”.

“Direito ao trabalho e segurança no emprego em Portugal (1951-

-2013)”, do jurista (e doutorando em História Contemporânea na FCSH)

Eduardo Petersen, sustenta que “o direito ao trabalho constitucionalmente

garantido e conceptualizado como um direito humano ao trabalho digno

nunca foi assistido de condições plenas de efectivação, condições estas

que hoje, no essencial, deixaram de existir”.

Em “Os dois andamentos do marcelismo”, Fernando Rosas fala-nos

“da falência do reformismo chegado ao poder, a crónica da impossibili-

dade política de resolver a questão da guerra e, com isso, de levar por

diante um processo de transição a partir do próprio regime. No primeiro

andamento, tentar liberalizar sem abandono do esforço militar nas coló-

nias; num segundo andamento, manter o esforço militar em África, sacri-

ficando a liberalização e, com ela, o próprio regime”.

Miguel Pérez, em “Anos de brasa: uma visão do movimento operário

português na década de 70”, conta-nos a história da reconstituição do

movimento operário organizado em Portugal no período final da ditadura

e na grande explosão social que se sucedeu ao 25 de Abril de 1974.

Jorge Fontes, em “O movimento operário na Setenave”, como que

complementa esta história centrando a sua análise nos estaleiros navais da

Setenave e na “sua importância na história das relações laborais em Portu-

gal: do controlo operário aos ‘pactos sociais’ e à reconversão industrial”.

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Em “A lei geral da acumulação capitalista e as relações de trabalho na

actualidade”, de Marcelo Badaró Mattos, professor titular (catedrático) de

História do Brasil na Universidade Federal Fluminense (Niterói, Brasil) e

também investigador associado/visitante no Instituto de História Contem-

porânea da UNL, discute o quadro atual de crescimento e predomínio de

um perfil “precário” da classe trabalhadora ao redor do mundo à luz da

formulação da “lei geral da acumulação capitalista” expressa por Marx

em O Capital.

O economista Michael Roberts, autor do muito recente e actual The

Long Depression (Haymarket, 2016), em “Robôs e inteligência artificial:

utopia ou distopia, o futuro do trabalho?” discute as implicações destas

novas tecnologias para o capitalismo. Mais concretamente, se “estão os

robôs e a inteligência artificial destinados a tomar de assalto o mundo do

trabalho, e, por conseguinte, a economia, nas próximas gerações, e o que

é que isso significa em termos de empregos e qualidade de vida para as

pessoas?”

Em “Consciência operária e acumulação capitalista”, Maria Augusta

Tavares, do Grupo de Pesquisas sobre o Trabalho da UFPB-Brasil e

também membro do Grupo de História Global do Trabalho e dos Confli-

tos Sociais do IHC/FCSH/UNL, tenta compreender porquê, “embora as

formas de existência na sociedade capitalista sejam tão desumanas para o

trabalhador”, “o discurso liberal advogado pelo Estado e materializado

nas relações capitalistas tem sido assumido pela maioria dos trabalhado-

res”.

António Simões do Paço, em “A esquerda marxista e as questões do

regime político”, investiga, a partir dos escritos de Karl Marx e dos seus

críticos coevos ou contemporâneos, o significado do conceito de ditadura

do proletariado, a sua génese e a sua relação com os acontecimentos

históricos do período em que foi formulado.

Em “História, Acumulação e Literatura em As Vinhas da Ira”, Camilo

Domingues, graduado em Artes Cénicas pela Universidade Federal da

Baía e mestre em História pela Universidade Federal Fluminense (Nite-

rói, Brasil), aborda o romance do grande escritor norte-americano John

Steinbeck e a discussão ao redor da obra, do seu escritor e a partir dos

factos históricos retratados, bem como a partir das suas abordagens

literárias.

Este volume é completado por um famoso texto de Karl Marx, do li-

vro I de O Capital, sobre “A chamada acumulação primitiva”, uma

acumulação “que não é”, nas palavras de Marx, “resultado do modo de

produção capitalista, mas seu ponto de partida”. “Essa acumulação primi-

tiva”, escreveu Marx, “desempenha na economia política um papel aná-

logo ao pecado original na teologia. Adão mordeu a maçã e deste modo o

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pecado desceu sobre o género humano. Explica-se a sua origem contan-

do-a como episódio ocorrido no passado. Em tempos muito remotos,

havia, por um lado, uma elite laboriosa, inteligente e sobretudo parcimo-

niosa, e, por outro lado, uma ralé preguiçosa que dissipava tudo o que

tinha e mais que houvesse.” Assim se explicava, e explica, “que os pri-

meiros acumularam riquezas e os últimos, finalmente, nada tinham para

vender a não ser a sua própria pele”. Ora Marx, aqui no papel de historia-

dor, trata de demonstrar como “na história real”, “a conquista, a subjuga-

ção, o assassínio para roubar, em suma, a violência, desempenham o

principal papel”, não a preguiça ou a diligência de uns e outros. O texto

em português que aqui incluímos é fixado por António Simões do Paço a

partir de duas traduções em português já existentes, a da edição brasileira

da Abril Cultural (São Paulo, 1984) e a de José Barata-Moura e Álvaro

Pina para a Editorial Avante! e a tradução inglesa de Samuel Moore e

Edward Aveling, editada por Friedrich Engels.

Não nos ocorre melhor forma de homenagear o António Monteiro

Cardoso e a Dalila Cabrita Mateus que prosseguindo aquilo a que eles

dedicaram boa parte das suas vidas: exercendo o trabalho de historiado-

res, que com eles tivemos o privilégio de partilhar.

Os coordenadores: António Simões do Paço,

Maria Augusta Tavares, Raquel Varela, Diogo Cancela

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“HOUVE UM GENOCÍDIO NA ÁFRICA PORTUGUESA ”

Entrevista com Dalila Mateus*

Isabel Braga

A historiadora Dalila Mateus apresentou no ISCTE, a 25 de Março [de

2004], um doutoramento sobre “A PIDE/DGS na Guerra Colonial”. Este

foi o resultado de quatro anos de investigação, que incluiu entrevistas a

dezenas de antigos presos políticos em Angola e Moçambique, para onde

a historiadora viajou várias vezes, com um subsídio do Instituto de Coo-

peração Científica e Tecnológica Internacional. Em Maio, a tese será

publicada num livro com o mesmo título pela editora Terramar.

Colonialismo português “não foi de brandos costumes”!

Dalila Mateus discorda da classificação do colonialismo português como

tendo sido mais brando que outros de outras nações europeias. “Não sou

eu que digo que não havia brandos costumes nenhuns, é a própria PIDE

que o afirma e que critica a violência dos colonos”, afirma Dalila Mateus.

A historiadora remete para vários documentos. Num deles, São José

Lopes afirma, em 1973, que, nas operações de repressão da PIDE/DGS às

“organizações clandestinas” em Angola, é “de evitar que os europeus

tomem parte activa nessa repressão”. Dalila Mateus explica: “É que,

quando vinham as camionetas carregadas de presos, havia colonos que se

entretinham a disparar contra as camionetas”. A tese cita também docu-

mentos em que a PIDE refere a falta de educação dos colonos. Um relató-

rio de 1965, da subdelegação em Carmona, alude à “falta de preparação

* Publicada na edição de 29 de abril de 2004 do jornal Público. Reproduzida com

autorização expressa da autora.

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14 | TRABA LHO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …

da população europeia”. Um outro relatório, de 1970, informa Luanda do

caso de um rapaz de 17 anos “barbaramente chicoteado na Fazenda Santa

Maria”. Noutro relatório, em Fevereiro de 1973, a PIDE assinala que

alguns trabalhadores da Fazenda S. Julião apresentavam sinais de espan-

camentos violentos. Em Tete, Moçambique, o inspector Sabino, conheci-

do como um torcionário da PIDE, escreve num relatório: “A maioria dos

administradores, eivados de mentalidade retrógrada como reis absolutos,

juntam e dispõem das massas africanas para contratos de trabalho ou para

a reparação de estradas”. Dalila Mateus conclui: “Se foi a própria PIDE,

de métodos brutais, a fazer esta avaliação, como é que se pode falar de

brandos costumes!”

Quando é que a PIDE [Polícia Internacional de Defesa do Estado] surge em África?

Em 1954, quando se dá uma reorganização desta polícia. De qualquer

forma, antes da guerra colonial, determinados personagens já eram lá

conhecidos, por exemplo, Roquete, um antigo jogador de futebol, que

atinge uma patente elevada na PIDE e que já vinha da PVDE [Polícia de

Vigilância e Defesa do Estado, que dá lugar à PIDE em 1945]. Havia a

percepção de um grande movimento entre a África do Sul e Moçambique

e Roquete foi investigar. Os moçambicanos, efectivamente, iam à África

do Sul e traziam informação e propaganda do Partido Comunista Sul-

-Africano.

Mas a PIDE, enquanto estrutura policial, surge só em 1954 nas colónias?

A legislação é de 1954, mas só em 1957 aparecem os primeiros funcioná-

rios. É criada uma sede em Lourenço Marques e uma em Luanda, ambas

ligadas à PSP. Quando se dá o ataque às cadeias em Luanda, no 4 de

Fevereiro de 1961, foi às cadeias que estavam adstritas à PSP, não a

cadeias da PIDE.

A PIDE não tinha cadeias próprias nas colónias?

No começo não, só vem a tê-las a partir de 1961, depois dos aconteci-

mentos que marcaram o início da guerra colonial, e que foram o assalto às

cadeias em Luanda, em 4 de Fevereiro, e o ataque da UPA na zona dos

Dembos, a 15 de Março. Nessa altura, é presa tanta gente que vai ser

preciso reabrir o campo do Tarrafal em Cabo Verde, para receber presos de

Angola. Em Angola, os presos políticos vão, primeiro, para a Cadeia de S.

Paulo, depois há o Forte de São Pedro da Barra onde a quantidade de

presos é tal que os que entram acabam por esmagar os que estão lá dentro.

O Campo de Péu Péu, também em Angola, que recebia presos comuns,

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ENTREVISTA CO M DALIL A MATEU S | 15

muda de nome para Campo do Missombo e começa a receber presos

políticos. Quando, mais tarde, o MPLA cria a frente leste de luta, a PIDE

teme a chegada dos guerrilheiros àquela zona e o Missombo desaparece e

todos os presos são enviados para S. Nicolau, a que chamaram “o Tarrafal

angolano”. Em Moçambique há a prisão de Sommerchild, a cadeia da

Machava, a Fortaleza do Ibo, o campo de trabalho de Mabalane…

É possível fazer um cálculo do número de presos que passaram por essas cadeias todas?

É muito difícil saber ao certo. Na cadeia da Machava, em 1974, estavam

largos milhares de presos, tal como no campo de Mabalane… O proble-

ma é que só havia registos dos dirigentes dos movimentos pró-indepen-

dência. Também só eles eram levados a tribunal, e isto apenas no início

da guerra. Sobre todos os outros, arrebanhados em rusgas às dezenas ou

centenas, não havia registos nenhuns. As rusgas da PIDE tinham muitas

vezes o carácter de massas, nos musseques. No Calemba, em 1966, foram

detidas duas mil pessoas. Em Dezembro de 1968, nos musseques Mora e

Rangel, são presas, respectivamente, 441 e 489 pessoas.

As medidas de segurança ou administrativas eram aplicadas em África como cá?

Sim, e muito pior do que cá.

A PIDE foi apanhada de surpresa pela revolta da população negra em 1961?

Não, a PIDE tinha a informação toda, começa logo em Janeiro de 1961 a

avisar os Ministérios do Interior e do Ultramar, e ninguém liga. Mas a

PIDE tinha redes de informadores muitíssimo bem colocadas, alguns

deles estavam mesmo dentro dos movimentos de libertação. Já no final de

1960, há um colaborador da PIDE em Leopoldville [antigo Congo belga]

que envia para Luanda uma carta a um hipotético amigo em que diz, e

vou citar: “Dentro em breve explodirá na nossa terra de Luanda uma

grave revolta, pois todos os naturais de Angola aqui residentes estão

preparados para o assalto. Informai todos de que dentro em breve se vai

espalhar uma grave onda de revoltas não só aí mas em todas as localida-

des de Angola. Acautelai-vos bem.” Em 13 de Março, uns dias antes dos

ataques nos Dembos, um informador do posto de Cuimba vem avisar um

servente de que vai haver graves ataques dos homens da UPA e que iam

ser mortos muitos brancos. Dias depois, chegam informações de Cabinda

de que a UPA se prepara para entrar em Angola. Na véspera do 15 de

Março, o posto da PIDE em São Salvador informa sobre o que vai acon-

tecer. A PIDE transmitiu tudo isto para Luanda e para Lisboa, e nada é

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protegido nem salvaguardado. Possivelmente não terão acreditado no que

um PIDE dizia.

Quem montou essas redes?

Gente de Lisboa. São José Lopes e António Vaz eram os responsáveis

pela PIDE em Angola e Moçambique, respectivamente, sendo o primeiro

o inspector superior do Ultramar.

São José Lopes é sempre referido como alguém muito próximo de Costa Gomes, quando este era o comandante em chefe das Forças Armadas portuguesas em Angola. Quem foi este personagem?

São José Lopes foi sempre uma grande figura em Angola, já era da PIDE

quando estudava aqui em Lisboa, no Instituto Superior de Economia e

Finanças, onde foi colega de Vasco Cabral, da Guiné. É de facto um

homem com uma grande capacidade de trabalho, os relatórios mais

perspicazes sobre a situação de guerra são dele, é de uma capacidade de

análise espectacular.

Como era a estrutura da PIDE colonial?

Em Angola, a PIDE chegou a ter nove subdelegações e cerca de 40 postos

em todo o território, num total de 801 funcionários. Em Moçambique

existiam 583 funcionários, em sete subdelegações e pelo menos uma

quinzena de postos. Na Guiné, havia 82 funcionários numa dúzia de

postos. Em Angola, por volta de 1966, também existiam brigadas móveis.

Estas, para o trabalho de informação e contra-subversão, apoiavam-se em

grupos de voluntários africanos. Terão sido os resultados animadores

desta experiência que levaram a PIDE a criar o Corpo de Auxiliares, mais

tarde estruturado nos Flechas.

Os informadores também eram numerosos nas colónias? Quem eram eles?

Eram bastantes. O inspector Pereira de Carvalho, que era o director do

Serviço de Informação da PIDE/DGS em 1974, dizia que um informador

era qualquer indivíduo com acesso a qualquer sector da vida política, que

tinha que ter um pseudónimo e ser pago. Podiam até ser os comerciantes,

muitas vezes eram. A partir do início da guerra colonial vai haver mesmo

o chamado espião, a PIDE monta redes de espionagem nos países limítro-

fes das colónias.

Quem controlava essas redes?

O controlo era feito na central da PIDE, em Lisboa, na Rua António

Maria Cardoso.

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ENTREVISTA CO M DALIL A MATEU S | 17

Pode dar exemplos de uma rede dessas?

Havia a rede da Zâmbia, dois sobas desse país que faz fronteira com

Angola, com o Zimbabwe, o Malawi e Moçambique. Através dessa rede

era possível apanhar informação de todos os movimentos dos guerrilhei-

ros, quer da UPA quer dos do MPLA, quer dos da Frelimo. No Congo,

havia a “Madame X”. Havia um agente provocador na Guiné, dizia que

era da ARA para ver se conseguia obter informações dos guerrilheiros do

PAIGC. Havia ainda informadores ocasionais, há um enfermeiro que não

sabia se havia de ir trabalhar para o MPLA ou para a UPA, é a PIDE que

lhe diz para ir para a UPA, que era melhor. A PIDE cativa pessoas a troco

de dinheiro, que podia ser muito ou pouco, podia até haver quem recebes-

se uma lata de marmelada ou uma garrafa de Casal Garcia ou uns suposi-

tórios de transbronquina e ficasse satisfeito.

Quem era a ‘Madame X’?

“Madame X” era uma informadora colocada no Congo pela PIDE, “uma

mulher com uma história muito complicada”. A mãe de “Madame X”,

casada com um espanhol, era uma comunista que se infiltra no Partido

Socialista Republicano espanhol, refugia-se em França, acaba por ir para

o Congo belga e casa por lá. A filha regressa a Espanha e vai viver com

umas tias ricas, que a vão educar num ódio feroz ao comunismo. Apaixo-

na-se por um primo que a engravida e recusa-se a casar com ela. Em

consequência disso, é expulsa da casa das tias. Já mãe, a trabalhar “num

negócio”, conhece uns portugueses e torna-se amante de um deles, com

quem vem para Lisboa, mas ele abandona-a. Em Lisboa, “Madame X”

começa a fazer traduções e monta um prostíbulo, frequentado por gente

vinda de África. Um porteiro de um hotel manda-lhe um cliente, Edmond

Nlandu, antigo ministro de Kasavubu, que oferece a “Madame X” um

lugar de secretária no Congo belga. A PIDE recruta-a como informadora,

paga o colégio da filha, em Portugal, e ela vai para o Congo, encarregada

de descobrir quais as ligações dos independentistas e por onde entravam

as armas dos guerrilheiros.

Nas colónias, a PIDE era uma instituição respeitada ou apenas temida?

A generalidade dos colonos respeitava a PIDE, porque considerava que

era esta que impedia a subversão de chegar às portas da capital. Encontrei

uma informação confidencial da própria PIDE, em 1966, em Luanda, que

diz: “Tanto nesta capital como por toda a parte existe um enorme respeito

e muita gratidão pela acção que a PIDE vem desenvolvendo em Angola,

ninguém regateando louvores à sua actuação”. Na minha tese, um entre-

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vistado conta-me que estava na fila para um notário e apareceu um ho-

mem com uns papéis na mão a gritar “eu sou da PIDE, eu sou da PIDE”,

e toda a gente o deixou passar à frente. Aqui em Portugal isso seria

impensável. Quando foi da descolonização, listas de pessoas, em Luanda,

foram queixar-se dos maus tratos que sofreram às mãos da PIDE, disse-

ram os nomes dos agentes e não aconteceu nada a nenhum deles, não foi

apanhado nem um. Em Moçambique foram presos pouquíssimos, no 7 de

Setembro fogem todos, as cadeias foram abertas pelos colonos. Mesmo

nos musseques de Luanda, muitos colonos que viviam no limite entre o

musseque e a chamada cidade do asfalto acabam por dar protecção aos

pides.

A PIDE apercebeu-se antes dos militares que a guerra colonial estava perdida?

Em Moçambique, em 1973, a PIDE dá informações de que as nossas

tropas estão a ser vencidas e Kaúlza de Arriaga vem dizer “não, não, isto

está ganho”. Em fins de 1973, começos de 1974, na Beira, Moçambique,

há grandes manifestações de colonos contra o Exército, por este estar a

perder a guerra. Nessa altura, São José Lopes manda informações a dizer

que está preocupado com a divisão entre civis e militares. A PIDE fazia

uma muito boa análise da situação. Quer Pereira de Carvalho quer Silva

Pais [o último director da PIDE/DGS] sabiam muito bem o que se passa-

va. António Vaz, chefe da delegação da PIDE em Lourenço Marques,

tem consciência de que vão perder o controlo sobre a guerra, que os

guerrilheiros estão a avançar, cada vez com mais armas e melhor equi-

pamento.

A guerra colonial estava perdida?

Em Moçambique sim, e também na Guiné, em Angola era diferente. Aí a

PIDE foi talvez mais eficaz em termos de repressão, tudo o que era grupo

que começasse a surgir no musseque era preso, as redes de apoio ao

MPLA eram apanhadas umas atrás das outras. Em Angola a PIDE soube

utilizar a calúnia; por exemplo, forjava panfletos do MPLA a dizer mal da

UPA, ou da UNITA, era a contra-informação muito bem desenvolvida e

trabalhada. A certa altura, o próprio São José Lopes tem medo das conse-

quências deste tipo de actuação.

Havia uma colaboração estreita entre a PIDE e os militares?

Havia. Em Angola, sem dúvida. Os militares não gostam muito de admi-

tir isso, Costa Gomes era uma excepção, ele assumiu mesmo essa colabo-

ração e dava todo o valor à informação estratégica que a PIDE dava.

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ENTREVISTA CO M DALIL A MATEU S | 19

Toda a gente sabia disso?

Sabiam as chefias.

Em que é que se traduzia a colaboração?

A PIDE participou em operações ao lado de militares, acompanhou as

tropas no massacre de Wiriamu, e há outros massacres do mesmo género

em que participou, massacres de populações civis, em que ninguém

ficava vivo. Há operações militares conduzidas pela própria PIDE, como

aquela que levou à desarticulação dos Comités de Acção Clandestina, do

MPLA, em Julho de 1970. São presas cerca de 100 pessoas.

Houve muitos massacres?

Antigos presos falam-me de variadíssimos massacres. Muitas vezes não

sobrevivia quase ninguém, ou sobreviviam só crianças, pequeníssimas,

não ficou ninguém para contar. Tive alguns presos de Moçambique que

me falaram de uma praia, Tohofinho, onde a PIDE ia descarregar presos

na maré para serem depois comidos pelos tubarões. Havia coisas destas,

mas é muito difícil gerir esta dor toda e pôr as pessoas a falar. Nos mas-

sacres ardia tudo, dizimavam tudo. A ONU pediu a Portugal que investi-

gasse. É Costa Gomes – estávamos já depois do 25 de Abril –, que vai

fazer que isso não seja tratado. Em Dezembro de 1973 a Assembleia

Geral da ONU criou uma comissão de inquérito encarregada de estudar

os massacres e as violações dos direitos humanos na África portuguesa. A

comissão confirma uma extensa e aterradora lista de crimes de guerra,

traduzindo, e vou citar, “uma prática comum frequente e generalizada de

acções traduzindo uma política de genocídio por parte do Governo portu-

guês”. Não tenho dúvidas em dizer que houve mesmo um genocídio.

Massacres com a participação da PIDE?

“Nos massacres de Wiryiamu, Juwau e Chaole, a matar estiveram por

toda a parte os comandos e os africanos dos Grupos Especiais ou os

Flechas”, afirma a historiadora na sua tese. E aponta como os “organiza-

dores do morticínio os comandantes da Zona Operacional de Tete com o

consentimento do governador” daquele distrito. “No massacre de Mu-

cumbura, em Maio de 1971, segundo os padres Valverde e Hernandez, os

comandantes eram um sargento e um agente da PIDE/DGS. Bateram,

torturaram e massacraram, da maneira mais cruel, inofensivos campone-

ses, cujo único crime era terem dado alimentos aos guerrilheiros. Em

Inhaminga, a PIDE/DGS queria desfazer-se dos presos que se amontoa-

vam nas cadeias. Segundo uma estimativa, 35 africanos foram metidos

num camião e transportados para o meio do mato, à beira de um caminho

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que passava por detrás do hospital, na direcção de Thombo la Mphale e

Massandza. Naquele sítio foi aberta uma vala, onde foram enterrados os

homens fuzilados. Mais tarde, foram transportados, fuzilados e enterrados

mais dois grupos de 30 a 48 pessoas. Agora na Zambézia, na zona com-

preendida entre as missões de Milange, de Mocuba e a serra de Morrum-

bala, funcionários administrativos, acompanhados de agentes da PI-

DE/DGS, fizeram uma busca, desconfiando da existência de guerrilhei-

ros. Os guerrilheiros não foram encontrados. Contudo foram mortos

centenas de homens e mulheres indefesos. Já depois do 25 de Abril, na

aldeia de Sena, em Moçambique, foi descoberta uma vala comum com as

ossadas de dezenas de africanos, que teriam sido torturados e assassina-

dos pela PIDE.”

As tropas utilizavam armas proibidas?

Na tese, falo no célebre “agente laranja”, que era um desfolhante e vai ser

utilizado pelos portugueses em Moçambique, há o carbúnculo, foi o

próprio Costa Gomes a contar que eram preparadas caldas bacteriológicas

no Hospital Egas Moniz e é ele que as manda destruir. Foi usado “na-

palm”. Há um guerrilheiro que fala da “rega” e as bombas incendiárias

eram constantes.

O que é isso da “rega”?

Entrevistei um guerrilheiro do MPLA que fala nisso, a “rega” era quando

os aviões vinham pela manhã, cinco, seis horas, deixar cair desfolhantes

químicos, se caíssem na pele queimavam. Penso que também aconteceu

em Moçambique. Depois, as lavras não davam nada e a população passa-

va fome. Este ex-guerrilheiro explicou-me o tipo de cicatrizes que os

desfolhantes deixavam e tenho reparado em africanos com esse tipo de

marcas, muito irregulares.

A actuação da PIDE endureceu com o avanço da guerra colonial?

A PIDE é de uma grande violência logo desde o começo da guerra.

Quantos mortos fez a PIDE em África?

Sei que devem ser milhares, os presos falam de muitos milhares, que

foram apanhados pelos massacres. Presos dentro das cadeias, morreram

umas centenas largas, muitas.

A PIDE em África também distinguia entre presos intelectuais e operários, entre brancos e negros?

Sim, fazia essa distinção, mas a distinção tinha também que ver com o

cargo que desempenhavam no movimento. São poucos os julgamentos,

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ENTREVISTA CO M DALIL A MATEU S | 21

em geral os dirigentes vão a tribunal e os brancos também. O António

Dias Cardoso, o Luandino Vieira e o António Jacinto vão a julgamento. E

são muito maltratados. Houve um indivíduo crucificado no Campo de

São Nicolau, para dar o exemplo aos outros de que não podiam fugir.

A PIDE não desapareceu em Angola com o 25 de Abril?

Mudou de nome, passou a chamar-se Polícia de Informação Militar

(PIM), e continuou a mandar informações para Lisboa. Só desapareceu

quando foi nomeado o primeiro governo provisório em Angola, depois da

independência.

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“EM PORTUGAL O SÉCULO XIX FOI UM PERÍODO

EXTRAORDINÁRIO DE MOVIMENTAÇÕES POPULARES”

Entrevista com António Monteiro Cardoso

Raquel Varela

António Monteiro Cardoso:

É curioso tomarmos como tema o século XIX, uma época muito esqueci-

da, não obstante ser imprescindível para compreendermos a época actual.

Esse esquecimento deve-se em grande parte ao facto de se tratar de um

período de revoluções, conforme lhe chamou Hobsbawm numa das suas

obras. De facto, também em Portugal o século XIX foi um período extra-

ordinário de movimentações populares, desde o princípio até ao fim.

Era isso que eu queria perguntar. Se fizesses um roteiro de todas as mobilizações populares do século XIX, quais seriam as mais impor-tantes?

Destacaria a resistência às invasões francesas como a principal movi-

mentação popular, tanto mais que foi aí que tudo começou. Há um antes e

um depois desse acontecimento.

Quem são os sujeitos sociais aí?

Os sujeitos sociais são essencialmente camponeses pobres, que aprovei-

tam a resistência contra os franceses para hostilizar os proprietários

locais, acusando-os de jacobinos e afrancesados. Foi uma vaga de grande

violência, que levou à pilhagem de casas e mesmo ao assassínio de ma-

gistrados e outras autoridades. Uma espécie de rebelião popular, que

atingiu praticamente todo o País.

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Apesar disso fala-se dos brandos costumes do povo português…

Isso é uma construção mítica feita a partir do apagamento dos factos que

desmentem essa ideia. Brandos costumes, nada! Mas não foi o Alexandre Herculano o primeiro a vir com essa ideia?

Pelo contrário, o Alexandre Herculano temia e odiava as movimentações

da plebe. Impressionado pela sua intervenção na revolução de Setembro

de 1836, de que já falaremos, exilou-se na Galiza, onde publicou um

escrito chamado A Voz do Profeta, uma feroz diatribe contra as classes

populares, a quem chama “antropófagos”, “sedentos de sangue”, “migue-

listas” e assim por diante. Enfim, foi uma posição tomada a quente, num

momento difícil para ele… Mas voltando às invasões francesas, o que é que a resistência popular trouxe de novo?

Muita coisa, e irreversível. Desde logo, o armamento popular com armas

de fogo e o treino no seu manejo. A partir de então, qualquer movimento

assume facilmente uma expressão armada, quer em Portugal, quer em

Espanha. Não te esqueças de que o termo “guerrilha” é um vocábulo

castelhano, designando uma táctica de combate, que se difundiu pelo

mundo inteiro. Outra consequência não menos importante é o doutrina-

mento prático causado pela guerra, a ideia embrionária de que é possível

e legítimo ao povo intervir nos acontecimentos políticos. Mas quais eram as ideias que os moviam?

A isso é mais difícil responder, porque esta mobilização surge quase

sempre sob bandeiras tradicionalistas de defesa do trono e do altar e de

combate ao jacobinismo. Isto, por força da acção do clero, que dessa

forma pretende dirigi-la. E em boa parte consegue-o. Só que, ao mesmo

tempo, atacam-se autoridades e proprietários ricos com a maior violência. E como explicas essa contradição?

Acho que o povo queria era acima de tudo ajustar contas com os podero-

sos locais de quem não gostava e ver-se livre das autoridades que os

oprimiam. A razão desde ódio terá a ver com ofensas à sua “economia

moral” e a uma desaprovação moral da desigualdade social desmesurada,

enfim aquilo que George Rudé e Raymond Huard chamaram política

popular. E o povo não quereria evitar a desapropriação ou expropriação? Ou seja a proletarização?

Naquela altura, em Portugal, era muito, muito cedo para se colocar o

problema.

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ENTREVISTA CO M ANTÓNIO MONTEIRO CAR DOSO | 25

Mas não existiam já algumas alterações que provocaram descontentamento?

Bem, desde meados do século XVIII, durante o pombalino e no reinado

seguinte, tiveram lugar as primeiras apropriações privadas de baldios, que

provocaram descontentamentos locais, sobretudo aos que se dedicavam

ao pastoreio nesses terrenos comuns. Foram tomadas medidas de rees-

truturação fundiária, que passaram pela abolição de caminhos públicos

em benefício dos donos das propriedades atravessadas e pela venda

compulsiva de prédios encravados e contíguos, em favor dos proprietá-

rios confinantes. Estas e outras medidas vão numa lógica de afirmação de

um novo tipo de propriedade murada.

E os proprietários mais ricos tentam apropriar-se…

Sem dúvida, mas trata-se ainda de um movimento pouco generalizado,

que se confinava a uma esfera local. O grande ataque aos baldios só se

verificou depois da vitória dos liberais, em 1834, e durará ainda muitos

anos.

Também é na altura de Pombal que se cria a Companhia da Agricul-tura das Vinhas do Alto Douro. Quer dizer, o Estado… já tem a ver com isso ou não?

A Companhia criou uma zona demarcada para a produção e comerciali-

zação do vinho, que controlava despoticamente, através de centenas e

depois milhares de empregados. Um avanço enorme do poder de Estado,

que assumia um peso enorme, se o compararmos com o escasso número

de magistrados e outros funcionários ao serviço da coroa.

Mas voltando de novo atrás, às invasões francesas, referiste há bocado que o povo atacara os poderosos, incluindo os magistrados.

É verdade. Embora os magistrados, corregedores e juízes de fora, fossem

poucos, eram todos letrados e vinham imbuídos de uma concepção jurídi-

ca, assente na lei escrita, contra o direito consuetudinário das populações,

o que os tornava pouco populares. O certo é que nestes levantamentos o

povo se lançou em perseguição dos magistrados e chegou a assassinar

alguns.

Mas queriam matar os juízes porquê?

Porque prendiam pessoas do povo, ou seja os que tinham de infringir a lei

para sobreviver. Além disso, havia um óptimo pretexto para ajustar

contas. Eles tinham cumprido as ordens dos franceses e era facílimo

apontá-los como “afrancesados” e jacobinos perigosos.

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Então era uma luta contra o Estado? Era o que eu queria dizer…

Existe uma oposição às autoridades do Estado, que põem em causa os

costumes locais e um certo autogoverno local, mas nesta altura o aparelho

administrativo e judicial a nível local é muito débil. À excepção das

circunscrições mais importantes, onde exercem funções juízes letrados de

carreira, na maioria das povoações são nomeados juízes leigos (juízes

pela lei ou pela ordenação), escolhidos entre os vizinhos, pelo que inte-

gram a comunidade local, ao contrário dos juízes letrados (corregedores e

juízes de fora), que facilmente são vistos como “despóticos”.

A crise do Estado leva as populações a avançar…

Claro que as invasões francesas e a ausência do rei no Brasil forneceram

pretextos para alguns povos se recusarem a pagar os tributos, invocando

que as ordens de cobrança não tinham sido subscritas pelo soberano e

outros argumentos semelhantes.

Quer dizer que se iniciou um processo de alguma desagregação do Estado.

Que foi rapidamente preenchido pela constituição, nas principais cidades

e vilas, de juntas governativas, chefiadas por bispos ou oficiais do Exérci-

to, mas que nalguns casos, como em Viseu e Arcos de Valdevez, incluí-

ram elementos que visavam mudanças, o que provocou grandes receios às

autoridades.

Mas tudo acabou por se restabelecer, através da acção da Igreja e da

nobreza das províncias, com o auxílio, a partir de 1809, dos ingleses, que

não permitiram qualquer mudança política.

Então os ingleses sustentaram o poder de Estado, mas armaram as populações.

Enquanto durou a guerra, apoiam-se nas ordenanças, que já estavam

armadas. Constituíam a terceira linha da força armada, que praticamente

incluía toda a população capaz de pegar em armas. Para este efeito, o País

estava dividido em capitanias-mores, comandadas pelos capitães-mores e

demais oficiais, que eram civis, membros das elites locais. Em tempo de

guerra, reuniam anualmente e tratavam do recrutamento para o exército

permanente, o que lhes dava grande influência local.

E qual foi a importância das ordenanças nesta guerra?

Foi muito importante, sobretudo depois das revoltas de 1808 contra os

franceses. Os invasores tinham dissolvido o Exército português e por isso

os oficiais que lideraram a sublevação tiveram que se valer das ordenanças.

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É no papel desempenhado pelas ordenanças, que de algum modo consti-

tuem o “povo armado”, que se estriba o mito do grande levantamento

nacional contra o invasor. E não é?

É um grande levantamento contra os ocupantes, mas não existia então a

ideia de nação. Esses mitos fundadores do passado histórico português,

com os seus heróis e façanhas heróicas, só se divulgaram entre o povo

muito depois, a partir de fins do século XIX, ao longo da República,

Estado Novo… Os camponeses não sentiam que estavam a defender a nação, mas sim o seu bocado de terra?

Sim. Estavam defender as casas e as famílias das atrocidades do Exército

francês, que pilhava, matava, incendiava, destruía tudo à sua passagem.

Chegaram ainda aos nossos dias expressões como “roupa de franceses”,

que significa coisas destruídas e “ir para o maneta”, aludindo ao general

Loison, célebre pelas suas devastações. Queria fazer-te uma pergunta. O Alentejo…

O Alentejo é um mundo à parte. Queria que me explicasses essa ideia, que referiste na conferência, de que o Alentejo era um bocado uma zona incontrolada.

Sempre foi. O Alentejo sempre foi… A ideia que eu tenho é que era uma zona de grande propriedade e que sempre foi assim.

Não. Nesta altura existiam algumas grandes propriedades em zonas com

bons solos, nas proximidades de Évora e Beja, e um número considerável

de pequenos cultivadores directos. O resto era um imenso matagal, que se

manteve até bem dentro do século XIX. Um território propício ao bandi-

tismo, que aí vai constituir um fenómeno endémico.

Mas como e quando é que isso se modificou e surgiram os latifúndios no Alentejo e no Ribatejo?

Sucedeu depois da vitória liberal de 1834.

Como?

Então, terminada a guerra civil, com a Convenção de Évora-Monte,

D. Miguel partiu para o exílio e os liberais assumiram o governo. É um

novo mundo que começa. Há um Portugal diferente entre o antes e o

depois de 34.

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Porquê?

Porque na sequência da extinção das ordens religiosas masculinas, deter-

minada em 30 de Maio de 1834, os bens dos conventos, juntamente com

os domínios da Casa do Infantado, da Casa da Rainha e da Patriarcal,

foram à praça, vendidos como “bens nacionais”. Ora, ao contrário da

promessa de os dividir em porções, para facilitar a compra pelas “classes

menos abastadas”, acabaram por ser adquiridos ao desbarato pelas princi-

pais figuras do partido vencedor, a par de usurários e especuladores

financeiros, que os arrebataram por baixo preço, grande parte do qual

pagaram com títulos da dívida pública e outros passados por serviços

prestados.

Foi um processo imenso de transferência de propriedade!

Foi a primeira grande privatização. Assim se formaram grandes domí-

nios, por exemplo, o duque de Palmela ficou com a serra da Arrábida,

confiscada à Casa do Infantado, enquanto ao duque da Terceira coube o

Sobralinho de Alverca. E não ficou por aqui. Ficou célebre pelo escân-

dalo que causou a venda directa das lezírias do Tejo e do Sado a uma

companhia de capitalistas formada à pressa, contra a lei que previa a

arrematação e sem dar tempo a que outras se constituíssem. Uma boa

parte do preço foi pago com títulos de dívida pública, que eram aceites

pelo seu valor nominal.

Claro! Isso representou a acumulação primitiva.

Os casos que te referi foram os de maior alcance, mas o mesmo se passou

em todo o País, onde havia bens nacionais que foram adquiridos por

indivíduos que os compraram graças aos títulos admissíveis na sua com-

pra. Tive um antepassado que arrematou todos os bens de um convento

que foi à praça. Ficou com todos!

Espantoso!

Passou a habitar no convento, depois de dessacralizada a igreja, tal como

o fizeram muitos outros compradores de conventos.

E para onde foram os frades expulsos desses conventos?

Foram para casa das famílias e lá se integraram. Os que eram sacerdotes

tinham mais facilidade, porque podiam ingressar no clero secular, tornan-

do-se párocos.

Mas ainda sobre os antigos conventos: muitos passaram, sobretudo nas

cidades, a ser utilizados como quartéis, hospitais e outros edifícios públi-

cos.

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Deixa-me agora voltar ao assunto com que iniciámos esta conversa, o roteiro das movimentações populares no século XIX. Quais são os momentos mais importantes?

Então, anos depois dos levantamentos populares de 1808-1809, vamos

entrar na época da revolução liberal, iniciada no Porto em 1820. Trata-se

de um pronunciamento militar, promovido pelo Sinédrio, sem participa-

ção popular. Aliás, foi feito para evitar a eclosão da “anarquia” da plebe,

que ocorrera no tempo dos franceses. Por isso, só organizaram a guarda

nacional à beira da abolição do regime constitucional, com a Vila-

-Francada, em 1823, à qual os liberais não ofereceram resistência. Então em 1823 não eclodiu um envolvimento popular?

Não. Mas o caso mudou de figura anos depois, quando da tomada do

poder por D. Miguel em 1828. Para fazer face à revolta militar liberal que

então eclodiu no Porto, os partidários de D. Miguel mobilizaram o povo,

formando guerrilhas por todo o País, sob o comando de magistrados,

eclesiásticos e membros da nobreza das províncias. Essa mobilização vai

manter-se e aprofundar-se ao longo da guerra civil de 1832-1834. E qual é a atitude popular nessa guerra?

Essa é uma grande questão. Os miguelistas, ou seja, os partidários do

“antigo regime”, mobilizaram um Exército de mais de 80 000 homens

para derrotar os liberais que tinham desembarcado no continente. Além

disso, contavam ainda com corpos de milícias, voluntários realistas e a

nível local com as ordenanças.

Então a população apoiou a causa de D. Miguel?

Essa é a ideia construída por muitos autores, que se torna dominante a

partir da publicação em 1881 do Portugal Contemporâneo, de Oliveira

Martins, segundo a qual o povo português…

… era todo reaccionário.

Ele diz que o povo fora tomado por uma adoração fanática por D. Miguel,

da “paixão miguelista do País inteiro”. Era a tese do unanimismo migue-

lista, que António Sérgio critica num artigo de 1955, mas não havia uma

investigação histórica sobre a atitude da população naquele conflito.

O número esmagador das forças mobilizadas na guerra civil pelos mi-

guelistas, as exuberantes manifestações de apoio a D. Miguel evidencia-

riam sem mais esse apoio de quase todo o País. Ora para começar, essas

descrições omitiam o facto de ser fácil a quem detém o poder e os apare-

lhos de coacção e propaganda mobilizar apoiantes. O Estado Novo, com

as suas “manifestações espontâneas”, mostrou-nos bem como isso se faz.

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E então qual achas que foi realmente a atitude popular?

Para responder a isso, fui estudar o comportamento do povo da província

de Trás-os-Montes durante a revolução liberal, talvez a província cuja

população tem mais fama de miguelista.

E porquê?

Porque saíram de lá alguns dirigentes contrarrevolucionários importantes,

especialmente o conde de Amarante, que se opôs à revolução de 1820, e o

filho, que será o marquês de Chaves, que se revolta contra o regime

constitucional em 1823 e contra a Carta Constitucional em 1826-1827,

altura em que invade o País vindo de Espanha, onde se exilara.

Mas nestas contas esquece-se sempre que o chefe militar da revolta de

1820 e o principal sustentáculo do novo regime foi precisamente o bra-

gançano Bernardo de Sepúlveda.

Mas isso foram as elites, quanto ao povo…

A investigação que levei a cabo deu origem à minha tese de doutora-

mento, que se chama precisamente “A Revolução Liberal em Trás-os-

-Montes (1820-1834). O Povo e as Elites”.

E que concluíste?

Depois de ter investigado as relações dos réus processados nas devassas

ordenadas por D. Miguel, que contei um por um e agrupei por naturalida-

des e profissões, e de ter lido os maços de correspondência entre as

autoridades locais e a Intendência-Geral da Polícia, concluí que, ao

contrário do estereótipo corrente, houve uma parte considerável da popu-

lação transmontana que apoiou a causa liberal. Só na comarca de Vila

Real foram processadas 903 pessoas, a maior parte pequenos viticultores

e trabalhadores rurais da zona mais oriental do Douro (o baixo Corgo).

Eram liberais porque se opunham à Companhia, que viam como um

poder despótico que os desfavorecia. Mas isso é uma longa história…

Mas outros sectores rurais apoiavam D. Miguel…

Obviamente. Além dos elementos do povo que projectaram em D. Miguel

as suas esperanças de ter uma vida melhor, ajudados decerto por ideias

difundidas por membros do clero, outros alinharam porque de contrário

iam presos e viam as casas arruinadas. Ademais prometiam-se vantagens

tentadoras aos partidários de D. Miguel. Estou a lembrar-me, por exem-

plo, da formação do batalhão de voluntários realistas de Serpa. O coman-

dante prometeu repartir os baldios de Aldeia Nova de S. Bento entre os

que se inscrevessem e o batalhão ficou rapidamente preenchido. Pudera!

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É delicioso!

Depois esta mobilização e o armamento de muita gente teve consequên-

cias semelhantes aos levantamentos de 1808. Uma vez de armas na mão,

muita gente aproveitou para ajustar contas: “Viva D. Miguel” e toca a

perseguir gente rica, que apanhavam a jeito ou até autoridades, acusando-

-os de “malhados” (alcunha dos liberais) para lhes assaltarem as casas. O

miguelismo no poder, entre 1828-1834, representou um período de tu-

multos e de ataques a pessoas e propriedades, um quotidiano de “exces-

sos” que as autoridades mal conseguem conter.

Espantoso!

Pois, sob a capa do miguelismo, muitas tensões sociais tiveram oportuni-

dade de se manifestar. Aliás, continuaram a manifestar-se nalgumas

zonas, mesmo após a derrota e exílio de D. Miguel.

Em que zonas?

Após a derrota apareceram guerrilhas miguelistas por quase todo o País,

constituídas quase sempre por foragidos, que em regra pouco se aguenta-

ram no terreno, à excepção de uma guerrilha que surgiu no Sul, tendo por

base a serra do Algarve e abrangendo o Alentejo e que chegou a operar

perto de Lisboa.

Essa guerrilha constitui um caso inédito em Portugal, pois foi a única que

se manteve em armas por um período longo (1836 até por volta de 1843).

É difícil datar o fim com exactidão.

Como se chamava a guerrilha?

Ficou conhecida como guerrilha do Remexido, nome pelo qual era co-

nhecido o seu chefe, José Joaquim de Sousa Reis, um lavrador residente

em S. Bartolomeu de Messines, que se tornou miguelista, tendo sido

encarregado, como oficial de ordenanças, do comando de grandes massas

da população pobre da serra do Algarve, quando esta em 1833 se lançou

ao assalto das povoações do litoral algarvio para as saquear e assassinar

os liberais, o que fizeram em Albufeira. Uma grande chacina.

Por causa destes actos de extrema violência, o Remexido teve de se

esconder na serra, que conhecia bem, e em 1836 reapareceu em armas,

com outros foragidos, criando uma nova guerrilha. Claro que com muito

menos gente.

Mas então a guerra civil foi muito violenta.

Dentro da guerra civil há como que duas guerras. A guerra civil do cerco

do Porto e depois de Lisboa foi uma guerra clássica de cerco e de algu-

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32 | TRABA LHO , ACUMU LAÇÃO CA PITAL IS TA E REG IME POLÍT ICO …

mas batalhas, travada por exércitos regulares, obedecendo às leis da

guerra. Quando a guerra se estendeu ao Sul foi diferente, porque os

miguelistas, em desespero, organizaram forças irregulares de guerrilhas e

a consequência foram assassinatos e massacres, como o do castelo de

Estremoz, em que os presos liberais foram chacinados, e o de Algalé,

perto de Alcácer do Sal.

Mas a guerrilha do Remexido, reaparecida em 1836, foi diferente, não?

O Remexido procurou dar uma forma regular à guerrilha, para evitar a

violência descontrolada. Todos usavam patentes militares conferidas por

ele e reconhecidas por D. Miguel a partir do exílio, o que lhe deu um

estatuto político que evitou que fossem considerados bandidos. Apesar de

serem poucos, intitulavam-se como Exército Realista do Sul, tudo reco-

nhecido por D. Miguel, que nomeou o Remexido brigadeiro e o condeco-

rou com a Ordem da Torre e Espada.

Então era uma força disciplinada?

Sim, aplicavam a disciplina militar com rigor, ou seja comportavam-se

como se se tratasse de um verdadeiro exército. O que não impedia o

Remexido de executar os espias e os liberais que encontrasse pelo cami-

nho. Em resposta, o Governo liberal decretou a lei marcial, que permitia o

fuzilamento célere dos guerrilheiros apanhados com armas na mão.

À parte esses casos, havia no Remexido alguma coisa do bom bandido, no sentido que lhe dá Hobsbawm?

Não creio. A guerrilha não tinha qualquer prática ou objectivo redistribu-

tivo, o que não a impediu de ter a duração que teve. O Remexido foi

fuzilado em 1838 e a guerrilha continuou com o filho dele, que durou um

ano, mas aquilo era de uma maneira que morria o chefe e avançava logo

outro. O objectivo da guerrilha era ajudar a restaurar o trono e o altar, e

todos seriam felizes.

Mas para se aguentarem tinham de contar com apoio popular…

E tinham. Os habitantes da serra do Algarve prestam-lhe um grande

apoio, em resultado do envolvimento que tinham tido com os miguelistas

no final da guerra. É claro que por trás da causa de D. Miguel há aspira-

ções à propriedade, patentes ainda hoje em lendas que dizem que deter-

minada terra foi dada ao povo por D. Miguel, que a demarcou montado a

cavalo. É claro que ele nunca esteve lá.

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ENTREVISTA CO M ANTÓNIO MONTEIRO CAR DOSO | 33

Há bocado disseste que a guerrilha se estendera ao Alentejo.

Na verdade, no Alentejo actuam guerrilhas miguelistas com chefes pró-

prios, que são os irmãos Baioa de Ervidel. Ficam subordinadas ao Reme-

xido, mas com grande autonomia. A guerrilha dos Baioas vai exercer uma

grande atracção sobre os jornaleiros alentejanos, que vêem nela uma

forma de subsistência, porque o Remexido pagava o pré aos guerrilheiros.

Grande número dos guerrilheiros presos e fuzilados são jornaleiros oriun-

dos dos arredores de Beja: Baleizão, Quintos, Salvada, Cabeça Gorda e

outras aldeias. Para eles a guerrilha era um recurso para quando não havia

trabalhos agrícolas e para preencherem necessidades essenciais, como por

exemplo, vestirem-se.

Curioso, esses sítios vão ser muito fortes na reforma agrária…

Nessa altura já eram aldeias de proletários. Não com a dimensão poste-

rior, mas que tinham bastantes assalariados agrícolas.

Mas como é que a guerrilha se financiava?

O dinheiro vinha de Roma, onde D. Miguel se exilara. Era enviado para

uma junta secreta em Lisboa, que o fazia chegar à guerrilha.

O dinheiro vinha do Vaticano?

Não, não. O Vaticano não se metia nisso. O dinheiro era dado por alguns

miguelistas ricos, que viviam em Roma, e nunca faltou, mas não era a

única fonte. Desde o início, o Remexido, no Algarve, e os irmãos Baioa,

no Alentejo, trataram de buscar dinheiro onde o havia. Sabes onde? Eles

só podiam entrar e, de fugida, em pequenas povoações, mas em todas elas

havia dinheiro no estanco do tabaco, de que eles tratavam de se apoderar.

A imposição de contribuições aos mais abonados fazia o resto.

Como conseguiste estudar em pormenor essas guerrilhas?

Para espanto meu e do meu colega António do Canto Machado, encon-

trámos o espólio da guerrilha, até então desconhecido, no Arquivo Histó-

rico Militar.

Bem, o melhor é retomarmos o nosso roteiro. O que se segue nos anos seguintes?

Temos de falar da revolução de Setembro de 1836. É uma revolução feita

por camadas intermédias, que representavam uma facção liberal mais

avançada. Para começar, foi feita pelas guardas nacionais de Lisboa, que

impuseram a queda do Governo à Rainha.

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Mas de onde vieram as guardas nacionais?

Ao contrário dos miguelistas, que não hesitaram em mobilizar o povo,

incluindo as suas camadas mais baixas, os liberais sempre se mostraram

relutantes a fazê-lo. No entanto, as dificuldades da guerra civil levaram-

-nos a criar guardas nacionais, que mantiveram depois da guerra, para

assegurar o seu poder. Segundo a lei que as criou, só faziam parte dessas

guardas cidadãos com um mínimo de rendimento, só que a necessidade

obrigou-os a admitir muita gente, a que podemos chamar da pequena

burguesia, lojistas, pequenos funcionários, homens de ofícios, etc. Mas o

problema maior surgiu quando os arsenalistas, operários dos arsenais da

Marinha e do Exército, formaram os seus batalhões…

Imagino!

Reuniam sem autorização, só obedeciam aos chefes por eles eleitos e

deliberavam sobre matérias políticas que procuravam impor ao Governo.

Uma facção dos governantes saídos da revolução de Setembro, os cha-

mados “ordeiros”, ordenou a dissolução dos batalhões dos arsenalistas, o

que estes recusaram. Em 13 de Março de 1838, numa ocasião em que

estavam reunidos no Rossio, foram espingardeados pelo Exército, o

“massacre do Rossio”, que causou cerca de uma centena de mortos. Após

estes acontecimentos, os governos foram-se tornando cada vez mais

repressivos até à chegada ao poder de Costa Cabral.

Quer dizer que o movimento popular foi esmagado?

Apenas por algum tempo, porque inesperadamente apareceu em Maio de

1846 um outro movimento, a revolta da Maria da Fonte, que ao contrário

dos outros é bem conhecido, logo pelo nome, indicativo do papel que

neles assumiram as mulheres.

Por que ficou tão conhecido?

Talvez pela sua amplitude e por ter sido genuinamente popular, sem

qualquer influência exterior. Terá sido a manifestação mais exemplar da

“política popular”, de que te falei atrás. Basicamente tratou-se de um

motim antifiscal contra o lançamento de novos tributos pelo Governo de

Costa Cabral, que levou à queima dos arquivos para destruir as matrizes

prediais, as “papeletas da roubalheira”, e à expulsão de autoridades.

Paralelamente, registam-se tumultos de mulheres contra o enterramento

fora das igrejas, as chamadas “leis da saúde”. Esta dupla face da rebelião

tem permitido interpretações contrárias, que vão do louvor, enquanto

resistência à tirania dos Cabrais, até à depreciação, enquanto movimento

obscurantista e reaccionário por se ter oposto a essas leis.

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ENTREVISTA CO M ANTÓNIO MONTEIRO CAR DOSO | 35

E o que é que tu achas?

Tratou-se, como disse, de uma manifestação de “política popular”, que

eclode de modo imediatista, sem planos, nem programa, por isso pode

combinar razões de descontentamento diversas e que podem parecer

contraditórias. Quanto à questão dos cemitérios, se aprofundarmos en-

contramos também aí razões antifiscais.

Como?

Além de se prever uma licença sanitária para os enterros, que custava

dinheiro, a lei punha a construção dos cemitérios a cargo das câmaras, as

quais, por escassez de rendimentos, lançavam derramas e muitos eram

construídos deficientemente.

O que são derramas?

Eram um imposto municipal a que as câmaras recorriam para fazer face a

despesas extraordinárias.

E qual foi o desfecho da Maria da Fonte?

Um sucesso. O movimento, que durou dois meses, estendeu-se a Trás-os-

-Montes e Costa Cabral teve que se demitir e exilar-se em Espanha para

acalmar os ânimos.

E ficou tudo por ali?

Não. Em Outubro de 1846, seguiu-se a Patuleia, que desembocou numa

nova guerra civil, que durou 8 meses.

Mas qual era a diferença entre esses movimentos?

Era muita. A Patuleia não foi um movimento popular espontâneo, mas

sim uma luta política armada entre o Governo cartista e os partidos da

oposição coligados, desde os setembristas até aos miguelistas, que se

situavam no extremo oposto. É uma guerra civil de partidos e de grandes

figuras políticas e militares, que mobilizam o Exército e na qual o povo

desempenha um papel subordinado.

Vamos então acabar a questão do roteiro…

O roteiro acaba brilhantemente com a Janeirinha, um movimento de

protesto assim chamado por ter ocorrido em Janeiro de 1868, iniciado no

Porto, Braga e Lisboa, desencadeado por uma lei de Fontes Pereira de

Melo, que aumentava brutalmente a carga fiscal, o que ocasionou tumul-

tos violentos, sobretudo no Porto.

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Como é que terminou a Janeirinha? Espalhou-se a todo o País?

E de que maneira! Até Maio de 1868, ocorreram mais de trinta motins.

No distrito de Bragança, um dos mais agitados, ocorreram tumultos nos

concelhos de Freixo de Espada à Cinta, Valpaços, Macedo, Moncorvo,

Alfândega da Fé, Mirandela, Vila Flor e Bragança. Em quase todos houve

choques com a tropa e incendiaram-se câmaras. Terminou do modo

habitual, o Governo demitiu-se, foi formado um novo Governo com

outras caras e os impostos de Fontes foram suspensos. Mas que foi um

grande susto, isso foi!

Mudando agora de assunto: quem era o “Zé Povinho” no meio disto tudo?

Surgiu em 1875 num jornal, como uma caricatura humorística de Rafael

Bordalo Pinheiro, que depois se popularizou, sob a forma de boneco,

fabricado pela Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha. Representa a

gente simples do povo esmagado pela corrupção e injustiça, sempre

desconfiado, aparentemente conformado, mas pronto a levantar-se à

primeira ocasião.

O que se opõe à ideia dos brandos costumes…

O roteiro que fizemos, que peca por defeito, mostra bem o contrário.

Este Zé Povinho foi buscar alguma coisa ao Zé do Telhado?

Não, não. O Zé do Telhado era uma figura real, que tem alguns aspectos

do bandido social, pelo menos na imagem que ficou dele. Aliás, os ban-

didos têm de ser sociais, se quiserem aguentar-se algum tempo no terreno.

E quantos mais bandidos havia?

É impossível contabilizar. Enxameavam o País de Norte a Sul, princi-

palmente no Minho e no Alentejo. Quase todas as terras tinham os seus

bandidos, que apenas são recordados localmente ou nem isso. De resto, a

memória só guarda aqueles que envolviam uma história mítica, constan-

temente repetida. Os papéis vendidos pelos cegos e a literatura de cordel

têm um papel importante nisso.

Mas há mais figuras conhecidas…

Decerto. Mas que, em rigor, não são bandidos. São homens que parti-

ciparam na guerra civil, uns do lado liberal, outros do lado miguelista, e

que depois se envolveram em actos de bandoleirismo. Alguns dos primei-

ros foram nomeados para a Guarda Nacional e tornaram-se autênticos

déspotas locais, que roubavam e assassinavam impunemente. É o caso

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dos Brandões, um grupo de irmãos, oriundo de Midões, hoje no concelho

de Tábua, protegidos por políticos de Lisboa. Só quando lhes faltou o

apoio é que o João Brandão foi julgado e degredado para Angola. Desse

ficou-nos uma canção, que ouvíamos na infância, “Lá vai o João Bran-

dão”. Deve estar na Net.

E mais?

Ainda do lado liberal, temos os Marçais de Vila Nova de Foz Côa, que

dominavam de armas na mão, de tal modo que em meados do século

XIX, uma parte da população estava refugiada no concelho fronteiro de

Moncorvo. Eram comandantes da Guarda Nacional e até há um daguer-

reótipo onde aparecem todos fardadinhos. Isto da Guarda Nacional, se

nas grandes cidades levou a revoltas progressistas, na província deu nisto.

Uma espécie de coronéis do Brasil, que por acaso eram da Guarda Nacio-

nal de lá.

E do lado miguelista?

Temos o Remexido e os irmãos Baioa, estes últimos quase desconheci-

dos, apesar da sua importância no Alentejo. Efectuavam assaltos e rou-

bos, não em proveito próprio, mas como dirigentes miguelistas, autoriza-

dos por D. Miguel a partir do exílio.

Já agora é de assinalar nesta época a acção na política de grupos de

irmãos, autênticas fratrias. Além dos que já referi, podemos acrescentar

os Cabrais e os irmãos Passos.

Tu és um homem muito total, no bom sentido marxista. Quais são para ti os melhores romances sobre isto, sobre tudo o que nos contaste?

Sobre isto, tem que ler, mas se não souberem história será difícil. Há um

autor que exprime a alma do povo português – passe o espiritualismo –

que terei até morrer à minha cabeceira: Camilo Castelo Branco. Na obra

de Camilo, há retratos da sociedade desta época que são notáveis, aliás na

senda de Balzac. Embora ele estivesse próximo dos realistas franceses,

isso não impedia Engels de dizer, numa carta para Marx, que havia mais

de economia e análise sociológica nos seus romances do que em muitos

livros volumosos.

Era melhor que o Zola?

Embora eu goste também imenso do Zola, a verdade é que quis fazer uma

literatura científica, de acordo com o naturalismo que perfilhava, com

todas aquelas ideias deterministas sobre a hereditariedade, em detrimento

da análise social.

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E eu digo que há mais em qualquer romance aparentemente delicodoce de

Camilo do que em muitos manuais de história. E alguns autores neorrea-

listas, uma corrente muito desprezada, também são bons.

E que livros do Camilo recomendas?

Há uns que são mais directamente sobre essa mudança social, em que ele

se centra muito nos “brasileiros”, isto é nos portugueses que regressam

enriquecidos do Brasil, que foram uma parte importante da nova burgue-

sia endinheirada.

Eu destacaria o Eusébio Macário (história natural e social de uma família no

tempo dos Cabrais) e sobretudo A Brasileira de Prazins, os livros que melhor

retratam o quotidiano do mundo rural, nos anos que se seguem à vitória

liberal de 1834. Está lá tudo, até aparece o Remexido e também um falso

D. Miguel, que existiu mesmo. Para mim, a leitura destes livros é uma boa

forma de conhecer esta época.

E tirando os do Camilo, há mais algum que recomendes?

O Eça é um grande escritor, que retrata muito bem a vida da alta socieda-

de nos meios urbanos, mas para entender o mundo rural, que é um mundo

desconhecido, é fundamental ler Camilo. Depois há outro aliciante, que é

a própria vida de Camilo, um homem que fez tudo, passou por tudo,

esteve duas vezes preso na cadeia da Relação. Um nunca acabar que foi

explorado por Aquilino Ribeiro na sua obra em três volumes O Romance

de Camilo. De certo modo, Aquilino é um continuador de Camilo na

atenção que dá ao mundo rural. Tem mesmo um livro que relata a luta de

uma povoação contra a apropriação dos baldios em pleno Estado Novo.

Qual é o melhor romance para perceber isso?

Quando os Lobos Uivam. Um romance que lhe valeu um processo judi-

cial de grande repercussão, do qual acabou por ser absolvido.

E quanto aos escritores neorrealistas?

Há várias correntes e autores, com o seu estilo próprio, bons escritores

como Soeiro Pereira Gomes, Manuel da Fonseca, Carlos de Oliveira e

outros. Ultimamente redescobri Alves Redol, um autor extraordinário que

me deixou surpreendido.

Mas porquê?

Para abreviar, que havia imenso para dizer, o seu livro Barranco de

Cegos é o único romance que se debruça de um modo desenvolvido e

sistemático sobre o gigantesco processo de acumulação de propriedade

resultante da venda dos bens nacionais. E vai mais longe ao mostrar como

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isso levou à formação do latifúndio do Sul do País, que data dessa altura e

não de tempos remotos, como por vezes se julga.

Esta acumulação de terra na mão dos latifundiários tem como contrapar-

tida um processo de proletarização generalizada dos camponeses do Sul,

que nem sequer têm trabalho todo o ano. Daí que, muitos anos mais tarde,

muitos deles se tenham fixado na margem sul do Tejo, para trabalhar nas

fábricas da CUF, na Siderurgia, na Lisnave, etc.

Mas havia massas imensas no Norte e no Centro que foi preciso proletarizar…

As indústrias que se foram criando nessas zonas do Norte e Centro em-

pregavam muitos semiproletários, ou seja camponeses pobres que se

tornavam operários, mas que mantinham um pedaço de terra para com-

plementar o rendimento.

Mas o fim dos baldios, os impostos sobre a propriedade, tudo isso eram formas de fabricar proletários, porque a terra deixava de poder sustentar a família toda.

Só que esse processo de ruína dos pequenos lavradores auto-subsistentes

do Norte vai avançar de modo muito lento e só ocorrerá com a emigração

dos anos 60, como se vê pela emigração maciça, sobretudo para França.

Mas a emigração dos anos anteriores, apesar de mais pequena, não revelava já uma proletarização?

Não era a mesma coisa. Desde há muito que as terras dos pequenos e

médios lavradores do Norte não davam para o sustento da família, so-

bretudo se fossem divididas por herança. Daí que seguissem a prática de

passar a casa (de habitação e as terras) para um único herdeiro, geral-

mente o filho mais velho, que ficava com os bens. Os restantes eram

obrigados a procurar sustento fora de casa, como sacerdotes, militares,

empregados do comércio ou a emigrar para o Brasil.

Mas depois há imensas massas. De onde vêm as massas dos anos 60? Vêm das Beiras, de todo o lado, para a França. Porque é que eles de repente largam as terras? Não me venham dizer que foi por vontade própria…

Foi um imenso êxodo que atingiu todo o país rural, porque essas massas

que partiram, mesmo que tivessem alguma terra, viviam na mais profun-

da miséria e não tinham qualquer esperança de melhorar de condição.

Perguntar-me-ás: mas sempre tinham vivido na miséria e não ocorreu

uma emigração daquela dimensão?

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Sim. Porquê nos anos 60?

Porque surgiu pela primeira vez uma oportunidade extraordinária, que foi

a emergência de grandes mercados de trabalho, carenciados de mão-de-

-obra de toda a ordem, como a França e em parte a Alemanha, situados

não muito longe do País. Ao contrário das emigrações anteriores, não era

preciso cruzar o Atlântico para o continente americano. Nem pagar as

elevadas quantias nas passagens marítimas, apenas ao alcance dos que

tinham alguns meios.

A partir dos anos 60 a emigração, que começou “a salto”, implicou enor-

mes sofrimentos, mas era bem mais fácil chegar aos Pirenéus do que

pagar e arrostar com uma viagem transatlântica.

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ACUMULAÇÃO, REGIME E REVOLUÇÃO:

CONTRIBUTOS PARA A HISTÓRIA DO

CAPITALISMO PORTUGUÊS (SÉCULOS XIX-XX)*

Raquel Varela, Felipe Abranches Demier,

Luísa Barbosa Pereira

Perguntei pra mim mesmo: que tipo de frieza baixou sobre

esses desgraçados? Quem os levou à torpeza? Quem os fez

baixar o nível? Vocês precisam ajudá-los, rápido, coitados.

Se não, vai acontecer algo que vocês acham impossível...

Bertold Brecht

As políticas de reação à crise em 2007-2008 foram uma espécie de he-

catombe de um projeto que começou a falhar em, vamos ser otimistas, na

1.ª República. O projeto de desenvolvimento nacional que assentava na

ideia de que a elevação dos salários e do bem-estar era compatível com o

desenvolvimento capitalista e, portanto, poderia ser encontrado um equi-

líbrio entre frações de classes sociais distintas, jamais logrou êxito em

Portugal. No fundo, sempre mostrou ser falsa a ideia de que o impulso de

criação de lucro era compatível com a criação de riqueza, ou seja, que a

remuneração da propriedade (renda, juro e lucro) poderia dar-se a par da

criação de bens de produção necessários, bens de uso, gestão equilibrada

e estável da produção, progresso e bem-estar, e evitar-se-ia a pau-

perização absoluta dos trabalhadores, na forma de baixos salários e

desemprego massivo – o prognóstico marxista da pauperização absoluta1

* Este texto foi originalmente publicado, com algumas alterações, em O Que é Uma

Revolução? (Lisboa, Colibri, 2015).

1 Karl Marx, “A Lei Geral da Acumulação Capitalista”, In O Capital, Livro I, São

Paulo, 2013, pp. 689-785.

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mostrou-se o modelo e a pauperização relativa a exceção, decorrente do

apocalipse de destruição de capitais ímpar na história que foi a II Guerra

Mundial. A tradução em termos de classes sociais e projetos políticos

desta fantasia, a do desenvolvimento nacional sem conflito, dá forma aos

sucessivos projetos de combinação entre classes sociais e frações de

classe ao longo de todo o século XX, que assentaria na ideia de que a

criação de uma burguesia industrial e do proletariado na República seria

possível sem o confronto com os artesãos expropriados, proletarização

dos camponeses e desemprego e miséria massiva. E terminará na quimera

dominante na viragem do século XX para o século XXI de “salvação da

economia nacional” recorrendo a injeções massivas de capitais europeus,

que, argumentamos ao longo deste artigo, proporcionaram, pela reconver-

são do mercado de trabalho, através do Fundo Social Europeu, desde o

final dos anos 80 do século XX, um modelo de desenvolvimento cuja

base é a regressão social, destruição de empresas, expulsão ou exaustão

da força de trabalho formada e produtiva e erosão de serviços públicos.

Um modelo de “progresso” assente no retrocesso2.

Entre 1910 e hoje foram muitas as faces deste projeto falhado, da ali-

ança entre o que seria uma burguesia progressista e honrada e o movi-

mento operário, como a proposta por Álvaro Cunhal no Rumo à Vitória3;

ou na aliança entre setores médios e a burguesia financeira/industrial, por

Mário Soares na “Europa Connosco”4. There is no alternative (TINA), o

slogan dos anos 80, surge agora nos últimos vinte anos oferecendo a

ideologia de que ideologia só há uma, a de que não há nada que os ho-

mens possam fazer para mudar a história. Esta ideologia não é liberal, é

geral. Porque à direita e à esquerda, em Portugal olha-se para o povo

como uma massa amorfa incapaz de ter um projeto político próprio e para

os setores dominantes, nas grandes empresas e no Estado, implorando

que “se portem bem” e assumam ser o que nunca foram – “torna-te aquilo

que tu [não] és!”, numa espécie de Píndaro às avessas. Parece adequar-se

aqui a grande parte da nossa esquerda, de linha conciliadora, a crítica

feita por Trotsky aos mencheviques em 1907, no V Congresso do Partido

Operário Social Democrata Russo (POSDR), quando o teórico da revolu-

2 Raquel Varela, Para onde vai Portugal?, Bertrand, 2015.

3 Álvaro Cunhal, Rumo à Vitória, As Tarefas do Partido na Revolução Democrática

e Nacional, Lisboa, Edições Avante, 2009.

4 Dina Sebastião, Mário Soares e a Europa: pensamento e acção. Dissertacao de

mestrado em História Contemporanea: economia, sociedade e relacões internacio-

nais, especialidade em Construcao Europeia e Relacões Internacionais, apresentada

a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, sob a orientacao do Professor

Doutor António Martins da Silva, 2010.

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ACUMUL AÇÃO , R EGIME E REVOLU ÇÃ O : CONT RIBUT OS PARA A H IST ÓRIA… | 43

ção permanente os acusou de quererem obrigar os estratos burgueses

russos a “desempenhar um papel constitutivo que não querem e não

podem desempenhar, nem desempenham, nem desempenharão nunca”.5

A morte das ideologias é a consagração pública, pela voz dos escassos

que têm acesso aos media, da asfixiante ideologia totalitária, finalista, de

que o homem não é ator da própria história. Para fazer vingar esta parali-

sante ideologia tem sido construída não uma análise cuidadosa da história

do País, mas um psicologismo de um povo “medroso” e “amorfo” que os

intelectuais decadentistas abraçam para justificar a sua adesão aos proje-

tos falhados de desenvolvimento nacional.

Projeto que já tinha falhado na República. Começou a falhar aí, quando

em 1910 a corajosa, ilustrada, “progressista” burguesia emergente, que fez

do século XIX uma batalha, chegando à guerra civil, para eliminar privilé-

gios e entraves ao desenvolvimento organizados pela Igreja e pela aristo-

cracia decadente, percebeu que não podia mais apoiar-se no movimento

operário para levar a bom porto o seu projeto de modernização capitalista

de um país que já era capitalista mas ainda não era moderno, e o decapitou.

Os riscos revelaram-se maiores do que os possíveis ganhos e a cobardia

genética da nossa burguesia não pôde ser disfarçada. Até hoje não pode.

Os países que, curiosamente, irão juntar-se nas forças do eixo na II

Guerra Mundial, entre 1939 e 1945, são aqueles que, por atraso no desen-

volvimento (menos meios tecnológicos, materiais, como o nosso), ou por

tardiamente unificados e modernizados (como Alemanha e Itália), quando

iniciam os projetos de democratização o fazem já com um movimento

operário com alguma força. Revoluções burguesas como as de 1848 na

primavera dos povos na Europa ou a de 1910, em Portugal, são já realiza-

das com um movimento operário que contém em si um projeto de revolu-

ção social, ou seja, apoia a luta contra a aristocracia mas exige direitos

sociais, 8 horas de trabalho, combate ao desemprego, proteção social. As

burguesias periféricas, filhas mais novas e temporãs do capital, não

lograram êxito em repetir a saga revolucionária das suas irmãs mais

velhas. A explicação reside, precisamente, no enorme atraso com que

surgiram historicamente. O já citado Trotsky assinalou que as burguesias

europeias que somente a partir de meados do século XIX levaram a cabo

a sua luta contra o domínio político das forças aristocráticas já se viram

impedidas de adotar uma postura autenticamente revolucionária. O temor

da repetição de uma experiência jacobina e, acima de tudo, a existência,

já significativa, de um novo sujeito social, o proletariado, fizeram que

essas burguesias buscassem, nos seus combates contra o antigo regime,

saídas cada vez mais negociadas com as forças do passado.

5 León Trotsky, A revolução permanente. 2ª edição. São Paulo: Kairós, 1985, p. 86.

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Lembrava Trotsky que até a clássica burguesia francesa – a qual já

havia realizado a sua revolução entre os últimos anos do século XVIII e

os primeiros do século XIX – evitou que, desde então, tanto os seus

conflitos políticos internos quanto os seus últimos ajustes de contas com

os remanescentes estratos feudais viessem a reeditar o terror robespier-

rista. Os desfechos políticos das revoluções de 1830 e de 1848 expressa-

ram, inelutavelmente, o enorme receio burguês de fazer uso novamente

de métodos democrático-radicais num momento em que as incontáveis

massas plebeias já eram constituídas por uma parcela não desprezível de

segmentos proletários organizados.6

Todavia, seriam as formas políticas relativas aos processos tardios de

modernização capitalista em países como Alemanha, Itália e Japão as

maiores expressões do encerramento da etapa histórica revolucionária da

burguesia. Carentes de um Estado nacional unificado e incapazes de

conduzir sob as suas bandeiras as classes dominadas, justamente em

função de o proletariado já existir enquanto sujeito social (mesmo que

ainda não politicamente independente), as burguesias tardias, como a

italiana, alemã e japonesa, viram-se compelidas a buscar compromissos

com as suas respetivas aristocracias a fim de evitar que o processo políti-

co necessário à emergência de um moderno capitalismo industrial pudes-

se colocar em risco, devido à participação das camadas populares, a

própria existência da propriedade privada dos meios de produção. Dessa

necessidade das burguesias alemã, italiana e japonesa de pactuar, respeti-

vamente, com os junkers prussianos, os latifundiários meridionais e os

antigos daimyos (senhores feudais) surgiram Estados nacionais estrutura-

dos pelo compromisso burguês-aristocrático aos quais esteve destinada a

tarefa de conduzir, “no lugar” das suas próprias burguesias, o processo de

desenvolvimento do capitalismo. O atraso cobrava o seu preço. No caso

português, claro, o atraso foi ainda maior, e as consequências um tanto ou

quanto similares.7

No período entre guerras, esses Estados, sujeitos de modernizações

retardatárias, tenderam a assumir formas ditatoriais em função do temor

da ameaça (real ou potencial) do proletariado que rapidamente se desen-

volvia na cena histórica. Nas sociedades de massas, nas quais o proleta-

riado já se apresenta politicamente como uma força independente, a crise

6 León Trotsky, Resultados y perspectivas. Tres concepciones de la revolución russa.

Buenos Aires: el Yunque editora, 1975.

7 León Trotsky, La teoría de la revolución permanente. Compilación. Buenos Aires:

Centro de Estudios, Investigaciones y Publicaciones León Trotsky [CEIP León

Trotsky], 2000; e Felipe Demier, O longo bonapartismo brasileiro (1930-1964):

autonomização relativa do Estado, populismo, historiografia e movimento operá-

rio (tese de doutoramento). Niterói: PPGH/UFF, 2012.

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do regime democrático-burguês ou mesmo a impossibilidade da sua cons-

trução pode, em certo estágio da luta de classes, acarretar o surgimento de

formas de dominação política não hegemónicas, as quais, recorrendo muito

mais à coerção do que ao consenso, aparecem como uma solução temporá-

ria e excecional para a incapacidade hegemónica que acomete os próprios

grupos dominantes. Nesses casos de acirramento da luta de classes e “crise

de hegemonia”, costuma ser a burguesia impelida a romper com a demo-

cracia liberal, estabelecendo formas abertas de ditadura por intermédio das

quais garanta a manutenção da dominação social.

Segundo Trotsky, o fascismo e o bonapartismo seriam as formas clás-

sicas desses regimes ditatoriais que se afirmam em oposição à democra-

cia parlamentar. Para o revolucionário russo, a opção, por parte das

classes dominantes, por um ou outro desses dois regimes de crise depen-

deria, fundamentalmente, de quão próximo se encontra o rebentar amea-

çador da revolução proletária – momento esse que é sempre condiciona-

do, entre outros fatores, pela capacidade de organização, de iniciativa e

de direção de cada uma das classes envolvidas na luta. Conquanto fossem

ambos regimes políticos burgueses situados na etapa decadente do capi-

talismo, bonapartismo e fascismo difeririam quanto às suas estruturas

constitutivas em função de terem origem em conjunturas diferentes da

luta de classes. Arregimentando ao serviço do grande capital massas

pequeno-burguesas iradas e desesperadas, o fascismo expressaria a guer-

ra civil declarada e total contra o proletariado, visando o esmagamento de

todo e qualquer tipo de organização operária. De direção pequeno-

-burguesa, o projeto fascista, por implicar um turbulento e incerto proces-

so político-social, apareceria no cardápio de opções políticas do grande

capital apenas como a última destas, a última cartada a ser lançada

somente quando não há mais nenhum outro recurso que possa impedir a

vitória da classe trabalhadora:

A burguesia em declínio é incapaz de se manter no poder pelos meios

e métodos do Estado parlamentar que criou. Recorre ao fascismo co-

mo arma de autodefesa, pelo menos nos momentos mais críticos. A

burguesia, entretanto, não gosta da maneira “plebeia” de resolver os

seus problemas. Manteve-se sempre em posição hostil em relação ao

jacobinismo, que lavou com sangue o caminho para o desenvolvi-

mento da sociedade burguesa. Os fascistas estão imensamente mais

próximos da burguesia em decadência do que os jacobinos da burgue-

sia ascendente. Entretanto, a burguesia, prudentemente, não vê com

bons olhos a maneira fascista de resolver os seus problemas, pois os

abalos, embora provocados no interesse da sociedade burguesa, são ao

mesmo tempo perigosos. Daí a contradição entre o fascismo e os par-

tidos burgueses tradicionais.

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A grande burguesia gosta tanto do fascismo quanto um homem com o

maxilar dolorido pode gostar de arrancar um dente (...). E é quando a

crise começa a adquirir uma intensidade insuportável que entra em ce-

na um partido especial, cujo objetivo é trazer a pequena burguesia a

um ponto candente e dirigir o seu ódio e o seu desespero contra o pro-

letariado. Esta função histórica desempenha-a hoje na Alemanha o na-

cional-socialismo, uma ampla corrente, cuja ideologia se compõe de

todas as exalações pútridas da sociedade burguesa em decomposição

(Trotsky, L. “O único caminho” (Burguesia, pequena-burguesia e pro-

letariado)8.

Antes, contudo, de recorrer ao “partido do desespero contrarrevolu-

cionário”, de fazer uso do mal necessário fascista, restaria ainda à bur-

guesia a possibilidade de capitular e submeter-se aos ditames de uma

máquina policial-burocrática que, investida de uma significativa autono-

mia política, assumisse as funções de manutenção da ordem e de “pacifi-

cação” da nação polarizada. Nesse caso, engendrar-se-ia um regime de

tipo bonapartista, definido abaixo por Trotsky numa linguagem recheada

de metáforas:

Logo que a luta entre dois campos sociais – os possuidores e os pro-

letários, os exploradores e os explorados – atinge a mais alta tensão,

estabelecem-se as condições para a dominação da burocracia, da polí-

cia e dos militares. O governo torna-se “independente” da sociedade.

Lembremos mais uma vez o seguinte: se espetarmos, simetricamente,

dois garfos numa rolha, esta pode ficar de pé, mesmo sobre uma cabe-

ça de alfinete. É precisamente o esquema do bonapartismo. Natural-

mente, um tal governo não deixa de ser, por isso, o caixeiro dos pos-

suidores. Mas o caixeiro está sentado sobre as costas do patrão,

magoa-lhe a nuca e não faz cerimónia para esfregar-lhe, se for neces-

sário, a bota na cara9.

Distintamente do fascismo, um “regime de guerra civil aberta contra o

proletariado”, o bonapartismo seria essencialmente um “regime da ‘paz

civil’” assente “numa ditadura policial-militar”. Tendo como missão

última salvaguardar a propriedade capitalista diante da ameaça proletária

– e nesse aspeto mais genérico equivale tanto ao fascismo como à demo-

cracia burguesa –, o seu procedimento político seria o de, por intermédio

de um aparelho de Estado encorpado e relativamente autónomo, impedir

justamente a eclosão dessa cruenta guerra civil apregoada pelo fascismo,

8 Leon Trotsky, Revolução e contrarrevolução na Alemanha, pp. 290-293.

9 Leon Trotsky, Revolução e contrarrevolução na Alemanha, p. 282.

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poupando a sociedade burguesa a fortes e perigosas convulsões internas.

Em poucas palavras, pode dizer-se que a ascensão de um proletariado

diante de burguesias temerosas e retardatárias se encontra entre as razões

centrais que explicam o porquê de países como Alemanha, Itália, Japão,

Espanha e Portugal terem tido regimes bonapartistas ou fascistas no

século XX.

Este incómodo novo sujeito histórico – o proletário, ou seja, aquele

que nada tem para vender a não ser a sua força de trabalho, que pode ser

um sapateiro no século XIX ou um médico no século XXI – cresce em

número (hoje, aqueles que vivem do trabalho representam 90% da popu-

lação empregada). Isso fez que, ao contrário de Inglaterra e França, onde

as revoluções burguesas foram feitas com um operariado ainda muito

incipiente, os mesmos processos em países como Alemanha, Itália, Japão,

Espanha e Portugal tenham terminado de facto em movimentos de ditadura.

Por outras palavras, a transformação das economias inglesa e francesa

em economias de monopólio, imperiais, recorrendo à massiva proletari-

zação dos seus camponeses, foi realizada em democracia, e no Sul da

Europa, na Itália e na Alemanha foi feita sob as botas de ditaduras porque

o movimento de modernização burguês não se fez apoiando-se no movi-

mento operário, mas sim contra ele. Embora, naturalmente, a ditadura

alemã tenha sido feita para derrotar o seu movimento operário e a ditadu-

ra portuguesa para criar, em Portugal e nas colónias, a sua massa de

trabalhadores, sem a resistência das suas vanguardas mais organizadas e

dos seus artesãos, decapitados mal a República se torna vitoriosa e ao

longo de 16 anos.

A República decapitou a sua tropa, os artesãos da carbonária, os ope-

rários de Alcântara10, para finalmente parte das suas frações se reorgani-

zarem em torno do Estado Novo e, aí sim, criarem uma coisa e o seu

contrário – os monopólios e o proletariado, que saiu das Beiras para a

Lisnave, da aldeia nativa para a plantações da Cotonang em Angola.

Em 1910 a agricultura ocupava 61% dos ativos e só 17% da população

vivia em centros urbanos com mais de 5000 habitantes. Isto não obstante

um salto qualitativo assinalável a partir de 1852 – o operariado fabril

entre 1852 e 1910 aumentou 400%. Devido à expropriação de bens

públicos, ao aumento dos impostos sobre terras e propriedade, à gradual

privatização das propriedades comunais, ao fim de leis como a do morga-

dio (que transmitia a herança exclusivamente ao primogénito), foi sendo

criado um contingente de trabalhadores assalariados e um processo típico

de acumulação primitiva estava assim em marcha – em marcha literal-

mente, porque estes processos foram acompanhados de milícias e exérci-

10 António Simões do Paço, Entrevista com a República, Lisboa, Guerra e Paz, 2010.

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tos na frente do título de propriedade, de baioneta e pique na mão. O

século XIX decorre entre guerras civis, revoltas e mesmo guerrilhas –

invasões francesas, a guerra civil entre liberais e miguelistas, a Maria da

Fonte, a Patuleia, o Remexido, até à Janeirinha em 1868 – que, com

direções distintas e complexas alianças, num processo que está longe de

ser linear, ora dirigido por franceses e liberais, ora por ingleses, ora pela

Igreja, ora pela Igreja com setembristas, frações de liberais e muitas mais

fórmulas (e menos puras do que se chegou a pensar), consoante o equilí-

brio de forças sociais, tinham sempre como eixo, por um lado, a concen-

tração da propriedade e, por outro, a proletarização de setores significati-

vos da população. A par destes movimentos cria-se, é sabido, a nação, o

ser português, e a sua instituição-mor, o Estado, um administrador co-

mum que procura estender o seu poder militar e fiscal a todo o território,

gerir as diversas frações da classe dominante e disciplinar a força de

trabalho, evitando um conflito social generalizado, isto é, assegurando a

estabilidade política para a consolidação do novo modo de acumulação,

cujo desenvolvimento será extremamente desigual.

Os mecanismos de contenção postos em marcha para driblar a crise de

finais de século XIX, como a emigração massiva, algumas obras públicas

e início de uma incipiente exploração colonial, não vão evitar nem o

confronto essencial entre frações distintas da burguesia e ainda da velha

aristocracia (que aparece como um confronto de regime entre republica-

nos e monárquicos) e depois destes setores, ou parte deles, com o movi-

mento operário. A revolução republicana burguesa apoia-se no movi-

mento operário, mas logo nas primeiras semanas começa a ajustar contas

com ele, reprimindo duramente as greves.

Um novo conflito, já não só entre burguesia ascendente e aristocracia

decadente, mas entre estes e o movimento operário emerge numa longa

situação pré-revolucionária de intermitente guerra civil – que terminará

com um golpe a 28 de maio de 1926. A não resolução deste imbróglio,

isto é, a incapacidade de estabilizar o País para a acumulação – a moder-

nização capitalista – vai levar um setor importante da burguesia portu-

guesa a jogar a sua mais forte “cartada”, a partir de 1926: abdicar do

poder executivo para manter o poder económico, ensaiando um clássico

regime bonapartista – uma ditadura – para disciplinar a força de trabalho,

arbitrar a concentração de propriedade em poucos grupos económicos,

limitando a concorrência (protegidos das lutas faccionais entre si e de si

com o movimento operário) pelo Estado, e encetar um processo agora

intensivo de exploração colonial, com traços típicos de acumulação

primitiva, recorrendo, por exemplo, de forma maciça ao trabalho forçado.

Não vai haver força política do movimento operário para resistir ao

golpe de 28 de maio de 1926 que institui a ditadura militar, começando

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em 1933 o Estado Novo de Salazar por fatores que outra vez combinam

consenso e coerção, cedências e repressão. Este movimento operário

estava exaurido por anos e anos de repressão na I República e consegue

tornar a República ingovernável, mas não consegue governar. Por outro

lado, para além da repressão ao movimento operário, a rutura deste com a

República é lenta porque os setores mais audazes e formados das classes

trabalhadoras estavam protegidos, sobretudo por associações mutualistas.

Há, como em todas as bases sociais dos regimes, políticas de consenso e

coerção – uma parte dos artesãos/setores médios estavam protegidos por

um sistema corporativo.

A disciplinação da força de trabalho, a concentração de riqueza prote-

gida da concorrência e a exploração colonial baseada no trabalho forçado

são a fórmula de sucesso e durabilidade do Estado Novo11, onde verda-

deiramente se moderniza o capitalismo português. Já existia antes Portu-

gal, já existia antes capitalismo, mas não modernização. Ela é filha direta

do regime bonapartista, a ditadura, engenheiro político do processo de

modernização, que combina isso com um arranjo político das forças

sociais em que o Estado se coloca como árbitro nesse momento de giro

económico.

Os sucessivos regimes vão organizar, em resumo, a dissociação entre

trabalhadores e meios de produção (transformar camponeses em proletá-

rios), mas nenhum foi tão eficaz nisso como o salazarismo, sobretudo a

partir da mecanização agrícola da década de 60 do século XX.

O Estado Novo realiza a incorporação controlada do proletariado na

vida pública, dando-lhe lentamente acesso à escola, saúde, etc. O proleta-

riado cede por isso (consenso) mas também pela coerção (ditadura); o

núcleo duro do movimento sindical, os melhores e mais aguerridos diri-

gentes, tinha sido eliminado ou cooptado pela República. Este proletaria-

do que se submete e “aceita” o Estado Novo está politicamente decapita-

do e do outro lado há todo um mundo camponês com crença no Estado,

sem organizações próprias. Assim se explica a incorporação do proleta-

riado na ordem que vai garantir a sustentação social da modernidade da

ordem capitalista. Junte-se a isto um processo de êxodo – e expulsão –

rural e urbanização, a partir dos anos 50 e sobretudo 60, em que essa

massa camponesa chega à cidade. Boa parte dela é miserável, por isso há

aqui também uma combinação de mobilidade social, emprego e consumo,

atuando como um elevador social, nesta passagem da cidade para o

campo.

11 Raquel Varela, “A Eugenização da Força de Trabalho. Trabalho, Estado e Segu-

rança Social em Portugal”, in Raquel Varela (org.), A Segurança Social é Susten-

tável. Trabalho, Estado e Segurança Social em Portugal, Lisboa, Bertrand, 2013.

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Portugal foi o império que mais usou de forma sistemática e por mais

tempo várias formas de trabalho forçado. Amplamente denunciado nos

jornais e agências internacionais, o trabalho forçado trazia todo um rol a

ele agregado: pobreza, inexistência de mobilidade social, afastamento da

família e da agricultura de subsistência, extrema desigualdade salarial e

uma polícia política racista, mas eficaz, porque com uma base social de

apoio mais ampla nas colónias do que na metrópole. A característica

fundamental do império português, escreveu o historiador Perry Ander-

son, é o trabalho forçado. Por isso, o historiador britânico batizou-o de

“ultracolonialismo”, este império onde os mais pessimistas falam em 2

milhões de trabalhadores forçados, lembrando que 60% do salário dos

mineiros moçambicanos na África do Sul, por exemplo, muitos em regi-

me forçado, era entregue em ouro ao Estado Português, sendo que os

mesmos trabalhadores eram pagos em escudos locais. Esta polarização

contribuiu para transformar a população, maioritariamente camponesa,

em apoiante destemida dos movimentos de libertação, facto que vai estar

na origem da força destes e na fraqueza do Exército Português, levando

em última instância ao golpe de 25 de Abril de 1974. Foi das colónias e

não do centro, foi da periferia para a metrópole que chegou a liberdade.

A combinação rara de alguns fatores levou à ocorrência da maior crise

num Estado europeu desde a II Guerra Mundial: a derrota na guerra

colonial, a crise económica de 1973, uma sociedade desorganizada em

que as classes trabalhadoras e populares não tinham um único veículo de

diálogo com o Estado (sindicatos ou partidos fortes), uma população

operária, jovem, fortemente concentrada em dois lugares chave do País:

as margens do estuário do Tejo e o Porto.

Aquilo que começou a 25 de Abril como um golpe de Estado foi a

semente de uma revolução social (que imprime mudanças nas relações de

produção), encetada como uma revolução política democrática (que muda

o regime político). Esta revolução democrática não esperou sequer pelas

eleições para a Constituinte: em poucos dias ou semanas, foi quase total-

mente desmantelado o regime político da ditadura e substituído por um

regime democrático. Foi a última revolução europeia a colocar em causa

a propriedade privada dos meios de produção. Isso resultou na transferên-

cia, segundo dados oficiais, de 18% do rendimento do capital para o

trabalho, o que permitiu o direito ao trabalho, salários acima da reprodu-

ção biológica (acima do “trabalhar para sobreviver”), acesso igualitário e

universal à educação, à saúde e à Segurança Social.

A tese de que a democracia começou a 25 de Abril de 1975, com as

eleições para a Constituinte, ou pior ainda, com o golpe de 25 de novem-

bro, não tem confirmação empírica. A democracia começou no dia 25 de

Abril de 1974 e não no dia 25 de Abril de 1975. Começou com horas

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infinitas de reuniões onde as pessoas comuns se inteiravam das questões

de trabalho, produção, habitação e gestão e votavam de braço no ar, em

comissões, com representantes, revogáveis a qualquer momento caso

desrespeitassem os resultados dos plenários massivamente participados.

Nunca tanta gente decidiu tanto na história de Portugal como em 1974 e

1975. As tentativas de controlo do aparelho de Estado por parte do PCP

(IV Governo) e por parte do PS (VI Governo), que existiram efetiva-

mente, não têm nenhuma ligação com a democracia que vigorava nas

empresas e nas fábricas e que foi cada vez maior ao longo de 1975,

colocando sucessivamente em causa medidas de governos não eleitos.

Estado e revolução não andaram de mãos dadas. A revolução e as suas

conquistas não dependiam do controlo do aparelho de Estado por parte do

PCP ou do PS, mas da criação de um poder alternativo na base da socie-

dade: trabalho, bairros de habitação e quartéis.

A maior prova da existência de uma revolução em Portugal em

1974/75 está curiosamente no que fez a contrarrevolução12. Teve de

aceitar aumentos salariais, saneamentos, férias e subsídios de férias,

licenças de maternidade, saúde e educação universais. Teve de haver um

acordo sólido entre o Partido Socialista, a Igreja, o MFA e toda a direita.

Foram precisas transferências maciças de dinheiro da Comunidade Eco-

nómica Europeia; foi precisa a ameaça de intervenção militar dos EUA;

foi preciso a URSS e o PCP estarem de acordo que Portugal era da NA-

TO, da Europa, do lado que nos acordos de Ialta tinha ficado sob a alçada

de Washington. Foi indispensável a divisão de tarefas de controlar revo-

luções levada a cabo pela URSS e pelos EUA. Foi preciso o PCP ter

aceitado estar em todos os órgãos que reconstruíam o Estado em crise,

canalizar a força das massas para os governos provisórios e o MFA. A

famosa aliança Povo-MFA nunca foi mais do que dizer às massas: con-

fiem na reconstrução do Estado burguês através da parte que está em

crise, o MFA. Mesmo assim, foram precisos 19 meses para derrotar a

revolução portuguesa.

Hoje esse passado revolucionário – quando os mais pobres, mais frá-

geis, quantas vezes analfabetos, ousaram agarrar a vida nas mãos – é uma

espécie de pesadelo histórico das atuais classes dirigentes portuguesas.

Tanto é assim que mantém-se a insistência de, nos 40 anos da revolução,

celebrar-se apenas o 25 de Abril, esquecendo que esse dia foi o primeiro

dos 19 meses historicamente mais surpreendentes da história de Portugal.

E que Portugal foi, ao lado do Vietname, o país mais acompanhado pela

imprensa internacional de então, porque as imagens das pessoas dos

12 Valério Arcary, “25 de abril, a revolução portuguesa faz trinta anos. Quando o

futuro era agora, Revista Outubro, Edição 11, 02/2004, pp. 71-92.

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bairros de barracas sorrindo de braços abertos ao lado de jovens militares

barbudos e alegres encheu de esperança os povos de Espanha, Grécia,

Brasil... E de júbilo a maioria dos que aqui viviam. Uma das característi-

cas das fotos da revolução portuguesa é que nelas as pessoas estão quase

sempre a sorrir. Não por acaso, Chico Buarque cantou: “Sei que estás em

festa, pá.”

Ela foi a última revolução do século XX, mas de certa forma a primei-

ra revolução do século XXI na Europa porque deu-se já num processo de

enfraquecimento do estalinismo, por um lado, e isso ver-se-á na força do

controlo operário nas grandes metalomecânicas, não foi uma revolução

camponesa, mas uma revolução numa metrópole, numa sociedade euro-

peia, urbana, complexa.

O que mais impressiona do ponto de vista dos movimentos sociais na

revolução portuguesa não é o seu número, relevante, claro, mas também a

sua dinâmica, esta dinâmica de subitamente questionar os alicerces da

hierarquia da fábrica, ir além da aparência de liberdade na esfera de

circulação do capital e arrastar os mecanismos produtivos do modo de

produção capitalista. As greves que se registam são maioritariamente

“selvagens”, decididas em assembleias democráticas de trabalhadores e

dirigidas, na maior parte dos casos, pelas comissões de trabalhadores, que

surgem de forma espontânea no vazio criado ao longo de 48 anos em que

as organizações de trabalhadores foram proibidas. São convocadas à

margem do Partido Comunista e do Partido Socialista – ambos faziam

parte do Governo – e dos sindicatos, que estavam agora a formar-se na

maioria dos casos.

Paradoxalmente, o calvário do operariado português, que foi durante

48 anos a impossibilidade de se organizar livremente, veio a ser a sua

força nos anos da revolução. Ao impedir os trabalhadores de se organiza-

rem para permitir a modernização capitalista do País, sem a ameaça de

revolução social que fez da República um regime essencialmente instá-

vel, a burguesia portuguesa construiu o seu património mas também o seu

próprio martírio em 1974. O golpe encontra uma situação de vazio orga-

nizativo que vai dar um espaço enorme e raro na história à imediata

constituição de organismos de base que surgem como cogumelos por

todo o País, nas primeiras semanas a seguir ao golpe. Na primeira semana

de maio os jornais têm páginas inteiras dedicadas a tomadas de posição

de coletivos. Uma coisa e o seu contrário. A desorganização da classe

trabalhadora, proibidos que estavam pela ditadura os organismos em que

esta poderia confiar, foi um fator de enfraquecimento do Estado em 1974

e 1975 e de fortalecimento, concomitante, da dualidade de poderes. O

vazio organizativo foi um fator disruptivo do Estado porque abriu espaço

às CT. Por comparação com Espanha, onde as comisiones obreras

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(CCOO) estavam já bastante implantadas quando se abre o processo de

transição, Portugal tinha um pequeno embrião sindical, o que deixará

espaço às comissões de trabalhadores. Mas a incapacidade destas para se

organizarem com força numa estrutura de âmbito nacional, um “soviete”

unificador, dificultou a resistência organizada por parte dos únicos que

podiam fazê-lo ao golpe contrarrevolucionário de 25 de novembro de

1975.

Alguns historiadores, e certamente a maioria da população, conside-

ram que o regime democrático-representativo tem origem na revolução

portuguesa de 1974-1975. É o caso do historiador Fernando Rosas13. Esta

visão confunde, cremos, dois momentos distintos de um mesmo processo

histórico. Esta visão omite que existe um período de regime distinto entre

o fim da ditadura – a 25 de Abril de 1974 – e o início do regime demo-

crático representativo, cuja construção se inicia a 25 de Abril de 1975

(eleições para a Constituinte) e se consolida com o golpe militar de 25 de

novembro de 1975. Trata-se de um período marcado por aquilo que se

designa historicamente como formas de democracia direta ou como a

existência de uma dualidade de poderes14, um poder paralelo ao Estado

marcado pelo protagonismo dos trabalhadores, diversos setores/frações

desta classe social15. Confesso que acho o equívoco, não para o senso

comum, mas entre historiadores, pesado. Porque ele confunde formas de

Estado, regime e governo.

Durante a revolução, o Estado foi sempre, mesmo em crise, um Estado

capitalista (nunca houve um Estado socialista em Portugal, mas um

Estado em crise marcado pela existência de poderes paralelos, em 1974-

-1975). Mas houve vários regimes: ditadura, os regimes que perduraram

durante a revolução, o regime democrático-representativo.

Reduzir a revolução de 1974-1975 a nada mais do que um grande mo-

vimento democrático responsável pela condução do País ao chamado

“Estado democrático de direito” é uma visão indisfarçadamente liberal e

teleológica. Esse viés interpretativo concebe a complexa revolução portu-

guesa apenas em função do seu resultado final ao nível político-

-institucional, a democracia representativa, tratada laudatoriamente como

a forma suprema de organização política da espécie humana. É necessário

nadar contra a corrente. Ao fim e ao cabo, as buliçosas e dramáticas fases

13 Fernando Rosas, Pensamento e Acção Política. Portugal Século XX (1890-1976),

Editorial Notícias 2010.

14 Patriarca, Fátima. Controle Operário em Portugal (I). Análise Social, Vol. XII

(3.º), 1976 (n.º 47), pp. 765-816.

15 Raquel Varela, História do Povo na Revolução Portuguesa, Lisboa, Bertrand,

2014.

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da revolução desembocaram, é verdade, na consolidação de um insípido

regime democrático-parlamentar, formatação preservada até aos dias de

hoje pelo Estado burguês. Entretanto, não se pode esquecer que o proces-

so revolucionário de 1974-1975 foi mais rico e amplo do que uma mera e

inexorável transição do autoritarismo salazarista para a democracia

liberal, como querem os historiadores da ordem. Em Portugal, em

1974/75, disputou-se muito mais do que a consolidação de um regime

democrático por oposição a uma ditadura fascista. A revolução – como,

aliás, toda a verdadeira revolução – trazia outras potencialidades e, por-

tanto, outras possibilidades de desfecho. Entre estas estava a da revolução

social, a da emancipação dos trabalhadores do jugo do capital. Em função

de uma série de fatores, contudo, a revolução portuguesa, que se iniciara

com o derrube da ditadura bonapartista de Salazar e Caetano, teve como

resultado final não mais do que a instituição de uma democracia repre-

sentativa nos marcos de uma formação social capitalista. Não foi além.

Todavia, um olhar atento sobre o processo permite-nos cogitar que o seu

desfecho terá sido muito mais resultado de uma revolução social derrota-

da do que propriamente de uma vitória da democracia liberal sobre o

“autoritarismo”. A nossa interpretação histórica assemelha-se, assim, às

antigas reflexões de Trotsky sobre a Itália de Mussolini, quando o revolu-

cionário russo considerou que a eventual implantação de um regime

democrático pós-fascista no país não poderia ser obra de uma revolução

“democrático-burguesa” vitoriosa encabeçada pela classe dominante, mas

sim de uma revolução proletária “insuficientemente madura e prematura”

que, abortada, permitiria à burguesia, após uma “profunda crise revolu-

cionária”, restabelecer o seu domínio sobre bases “democráticas”.16

Historicamente existem várias formas de revoluções e várias de con-

trarrevolução. Da mesma forma que uma revolução é um processo histó-

rico que não se resume a um golpe militar, uma quartelada, a contrarre-

volução não é um processo histórico que possa ser resumido a um golpe

violento que instaura uma ditadura. Na verdade nasce a contrario do

exemplo português e, seguindo o sucesso de Espanha desse ponto de

vista, um laboratório de processos contrarrevolucionários que nada têm a

ver com o modelo chileno (um golpe contrarrevolucionário feito sob as

botas de uma ditadura militar). Este modelo “pacífico” de contrarrevolu-

ção (hoje enquadrado pelo conceito teleológico de “transições para a

democracia”) será adotado pelos EUA para a sua política externa, a cha-

mada doutrina Carter, e aplicado depois às ditaduras latino-americanas.

16 León Trotsky, “Problemas de la revolución italiana” in ____. La teoría de la

revolución permanente. Compilación. Buenos Aires: Centro de Estudios, Investi-

gaciones y Publicaciones León Trotsky [CEIP León Trotsky], 2000, pp. 552-553.

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Um modelo que se centra na ideia de pôr fim às revoluções ou evitá-las

criando uma base social eleitoral, no quadro do regime democrático-

-representativo, isto é, uma transição para uma democracia liberal que

evite a rutura revolucionária.

Em 25 de novembro de 1975 não começou um país mítico de sonho,

de igualdade e justiça, alicerçado num pacto social duradouro. Começou

o fim de um sonho, de gentes pobres, quantas analfabetas, estudantes,

intelectuais, trabalhadores de diversos setores que não acreditavam só

utopicamente numa sociedade mais igual, acreditavam, e essa é a história

da Revolução de Abril, que podiam ser eles a fazê-la, a construí-la, em

vez de delegar nos outros esse poder.

O fim desse sonho levou cerca de duas décadas para começar a tornar-

-se pesadelo. O pacto social termina na segunda metade de década de 80,

com o nascimento da concertação social – muitos chamam à concertação

social o pacto social, porque esse é o seu nome formal, mas nome e coisa

não são a mesma coisa. A concertação social foi criada para pôr fim ao

pacto social, foi no seio desta que se negociou, com um papel central do

Fundo Social Europeu, a grande precarização da força de trabalho em

Portugal, numa fórmula que sintetizei numa metáfora dura: “os pais de

abril venderam os filhos”. Mantiveram os seus direitos a troco da preca-

riedade das gerações vindouras, pagando o preço de uma infantilização

histórica desta geração, em que o conflito se transferiu do seio da empre-

sa para a família, que sustenta a parte do salário não paga pelo patrão.

Mas nestes 40 anos um movimento complexo de reconversão do mercado

de trabalho manteve conquistas de abril até 2008 para uma parte da

população, sendo que uma grande parte dela foi afastada desse equilíbrio

de direitos sociais logo no final dos anos 80.

Entre 1975 e 1986, vigora um pacto social no País, na forma da Cons-

tituição de 1976, sedimentado em ganhos significativos para o trabalho

conquistados em 1974-1975, em troca da desistência, por parte das orga-

nizações sindicais e políticas representantes dos trabalhadores, da luta

estratégica pelo poder, alterando a forma de propriedade.

Os pactos sociais surgem normalmente em épocas de conjunturas eco-

nómicas de crise, embora a crise não seja variável suficiente para deter-

minar um pacto social. Devem existir outras, entre elas, cremos, a real

capacidade de cedência, neste caso, do elo mais forte, os empresá-

rios/patrões, ou seja, a capacidade de reformas dentro do sistema capita-

lista que signifiquem algum tipo de ganhos para o elo economicamente

mais fraco desta relação, o trabalho. Muitas das “conquistas de abril” só

foram legalizadas nos anos vindouros, como referimos. É certo que

depois do golpe de 25 de novembro de 1975, que põe fim à dualidade de

poderes nas forças armadas, introduzem-se paulatinamente leis que são

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um recuo face à situação de facto do biénio 1974-1975, mas, traumatiza-

das por uma explosão social sem precedentes, um movimento operário

forte, extremamente organizado, as classes dirigentes vão de facto criar as

condições legais para a institucionalização de muitos daqueles direitos.

Não há, a contrario do veiculado pelo senso comum, um decréscimo

linear dos conflitos sociais com a institucionalização e estabilização do

regime democrático representativo, mas estes vão adquirir, gradualmente,

um caráter diferente, sobretudo no que toca às reivindicações, organiza-

ção e suas direções. O número de greves, segundo dados oficiais, por

exemplo, mantém-se muito elevado. A situação social estava longe de

estar estabilizada política e socialmente. Entre 1976 e 1983 o País vai ter

nada mais, nada menos do que dez governos, dois dos quais interinos e

três de iniciativa presidencial. Era o resultado institucional de um País

fortemente radicalizado (recordemos os quase 800 mil votos em Otelo

Saraiva de Carvalho em 1976!), saído de uma revolução parcialmente

vitoriosa que fazia entrar agora no vocabulário as “conquistas de abril”,

“os direitos adquiridos”, em referência aos direitos conquistados. De tal

forma que a tentativa de impor a concertação social em 1977 – cujos

princípios estavam contra o pacto social porque estabeleceu por decreto-

-lei o limite de 15% para os aumentos salariais e a fixação de um cabaz

de compras, entre outras medidas – é um desaire e o I Governo Constitu-

cional cai.

O pacto social nascido em 1975 e consagrado na Constituição de 1976

tinha-se mantido por causa desta intensa conflituosidade herdada da

revolução e não por causa de um pacto ou por ausência de conflitos. O

pacto social só se manteve, num aparente paradoxo, quando não existiu

pacto, isto é durante a revolução e a instabilidade dos dez anos seguintes,

e a existência jurídica do pacto – plasmada na concertação social – foi

significando o fim desse mesmo pacto social. Ou seja, pactos sociais não

dependem de acordos, mas da inexistência deles: mantêm-se enquanto há

conflitualidade social. As reformas nascem elas mesmas de conflitos

agudos e não de negociações. E o pacto vai terminar entre 1984 e 1986

justamente pela ausência de conflitos em resposta à grande crise econó-

mica de 1982 e 1984 a que os trabalhadores não contrapõem uma situa-

ção semelhante à de 1974 e 1975, mas escassa resistência à erosão dos

salários comidos pela inflação, dos despedimentos coletivos e dos salá-

rios em atraso.

O pacto terminou aí, nos anos 80, porque: 1) Foi derrotado o setor mais importante do movimento operário orga-

nizado como exemplo para todos os outros setores das classes tra-

balhadoras e setores médios – três anos de salários em atraso na

Lisnave levaram à derrota destes trabalhadores que assinaram o

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primeiro compromisso de empresa alguma vez feito em Portugal

naqueles termos (de “paz social”), e que teve um efeito de arrasta-

mento simbólico sobre os outros setores, à semelhança do que acon-

tece com a derrota dos mineiros com Margaret Thatcher, em Ingla-

terra, dos controladores aéreos nos EUA, dos operários da Fiat em

Turim, e, mais tarde, dos trabalhadores do petróleo no Brasil17. 2) Ligação estreita entre um sindicalismo fortemente apoiado na nego-

ciação e não no confronto – embora mais ou menos pactuante con-

soante seja protagonizado pela UGT ou pela CGTP – e tendo este

sindicalismo fortes ligações ao regime democrático, feitas a partir

do elemento Estado, visto não como um opositor, mas como um ár-

bitro para o qual as propostas eram direcionadas, em vez de para as

empresas, como foi característico do período da revolução. Os prin-

cipais sindicatos de então, aceitando a necessidade de sair da crise

mantendo o mesmo modelo de acumulação, aceitaram que a “saída

da crise” fosse feita por ajudas diretas maciças às empresas, por um

lado, e por outro, por ajudas indiretas pela via da transferência para

o Estado de parte dos custos da força de trabalho (casos das refor-

mas antecipadas ou das isenções de contribuições para a Segurança

Social). O papel do Estado, como moderador, em sede de concerta-

ção social, foi visto como uma forma de corporativismo, rejeitado

pela CGTP, mas só durante um ano, findo o qual esta aderiu tam-

bém ao Conselho, embora não tenha assinado todos os acordos. 3) Melhoria de vida e dos níveis de consumo das classes médias e tra-

balhadoras. Esta melhoria deu-se e foi efetivamente como tal senti-

da, embora consideremos que não se dá por aumentos reais de salá-

rios mas, entre outras razões, pelo aumento do crédito a juros

baixos para compra de habitação (que hoje é um pesadelo e um gar-

rote sobre os salários, que entretanto desceram vertiginosamente) e

pelo embaratecimento de produtos básicos, com a entrada maciça

da China e da Índia na produção para o mercado global. Este facto

foi associado então à entrada na CEE e à promessa de mobilidade e

prosperidade social. 4) Mudanças no sistema internacional de Estados, na sequência da

queda do Muro de Berlim e do fim da URSS. Não é, cremos, o fim

da URSS que determina a erosão dos direitos sociais – argumento

usado frequentemente – porque essa erosão passou por difíceis ne-

gociações sindicais a montante. Mas parece ser um argumento com

17 Bo Strath, The Politics of De-Industrialization (London-NY-Sydney, Croom

Helm, 1987).

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rigor que o fim da URSS foi visto com desesperança por quem, so-

bretudo em países como Portugal onde havia fortes partidos comu-

nistas, acreditava que havia “algures a leste” uma sociedade mais

igualitária. Não era, como sabemos, uma sociedade igualitária e,

num aparente paradoxo, porque se prende com a política de coe-

xistência pacífica, a gestão da precariedade foi negociada também

com os mesmos sindicatos – de inspiração comunista – que tinham

na URSS um exemplo e que advogaram, numa construção de me-

mória que não tem sido alvo de uma visão crítica, que o fim da

URSS tinha significado o fim das “conquistas adquiridas” no Oci-

dente. 5) A utilização do fundo da Segurança Social para gerir a precariedade

e o desemprego18, criando um colchão social, seguindo as orienta-

ções do Banco Mundial19, que evite disrupções sociais fruto da ex-

trema pobreza, desigualdade ou regressão social. Essa utilização foi

negociada caso a caso e na maioria dos casos aceite pelos sindi-

catos, sob a forma de reformas antecipadas – banca, grandes empre-

sas metalomecânicas (só na Lisnave quase 5000 trabalhadores vão

até dez anos para a reforma antecipada com a totalidade dos salá-

rios), estivadores e trabalhadores portuários (o número é reduzido

de 7000 para os atuais 700 em todo o País), setor das empresas de

telecomunicações, para citar alguns exemplos. Em troca conser-

vam-se os “direitos adquiridos” para os que já os tinham e ou não

entram novos trabalhadores, ou os que entram ficam já sob um re-

gime de precariedade, o que implica uma redução substancial das

contribuições para a Segurança Social. O que se verifica é uma es-

treita ligação entre gestão da força de trabalho empregada, os fun-

dos da Segurança Social e a criação crescente de medidas assis-

tencialistas para atenuar os efeitos da conflitualidade social decor-

rentes de uma situação de desemprego que se afirma cíclica mas

crescente (subsídios de desemprego, apoio a lay-offs, formação pro-

fissional, rendimento mínimo, rendimento social de inserção, subsí-

dio social de desemprego, subsídio parcial de desemprego).

A geração de homens e mulheres que mantiveram os “direitos adqui-

18 Raquel Varela, “A Eugenização da Força de Trabalho. Trabalho, Estado e Segu-

rança Social em Portugal”, in Raquel Varela (org.), A Segurança Social é Susten-

tável. Trabalho, Estado e Segurança Social em Portugal, Lisboa, Bertrand, 2013.

19 Elsa Pereira Reis, Simon Schwartzman, Pobreza e exclusao social: aspectos socio

politicos. Trabalho preparado por solicitacao do Banco Mundial, como contri-

buicao para um estudo sobre a exclusao social no Brasil, 2000.

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ridos” de Abril no setor público, nas camadas mais formadas dos traba-

lhadores e nas pequenas empresas familiares foram plenamente proletari-

zadas com a crise de 2008, não tendo hoje mais dinheiro para sustentar ou

evitar a regressão social dos filhos precários, expulsos para a imigração

ou a vegetar em casa. Ao mesmo tempo, setores desqualificados dos

trabalhadores, como a população com menos do 6.º ano e mais de 45

anos, ou a construção civil, por exemplo, são expulsos, sem bilhete de

retorno, do mercado de trabalho. Há 47% de pobres em Portugal. As

exportações crescem na medida exata em que os salários baixam e o

consumo interno está paralisado. Vendem-se dedos e anéis, todas as

empresas estratégicas. A dívida pública é uma bola de neve a descer de

uma montanha, quanto mais desce mais cresce, aproximando-se do

momento em que nos esmagaria. Só nos anos de 2013 e 2014 Portugal

criou 28% dos seus milionários, segundo o Crédit Suisse. Os 10% mais

ricos são detentores de 58,3% da riqueza do País. Existem atualmente 75

903 milionários em Portugal, mais 10 777 do que no ano anterior. Em

seis casos o seu património está avaliado entre 500 milhões e mil milhões

de dólares e três portugueses, três, têm mais de mil milhões de dólares de

património líquido. As medidas de recuperação dos capitais falidos de

2007 deixaram este cenário apocalíptico no País. Esta erosão dos setores

médios criou um alerta máximo no seio dos partidos do rotativismo

parlamentar, profundamente clientelares – são agências de “emprego” –

que é a face cobarde e histérica de uma questão de fundo, a crise do

próprio regime democrático-representativo, avisando que estamos numa

encruzilhada histórica.

O paralelo com a crise de 1929 é inevitável. Tom Joad, a personagem

central do magnífico As Vinhas da Ira, chega a um cruzamento quando

sai da prisão e decide para onde ir. É um jovem camponês que a despos-

sessão de terras transforma em proletário (subempregado ou desemprega-

do). Ao longo da viagem pela mítica estrada 66 nos EUA, em plena crise

de 1929, ele transforma-se de okie – nome depreciativo para os campone-

ses do Oklahoma – em imigrante na Califórnia, de criminoso comum em

preso político, de camponês em assalariado, as crenças desaparecem, as

dúvidas acordam.

Expropriação, desemprego, desumanização. Cada dia a família Joad

vive a marcha capitalista e dela toma consciência, devagarinho. Uma das

peças fundamentais deste caminho rumo à consciência de classe é o papel

do Estado ao longo desta viagem. A família Joad, no limiar da miséria,

expropriada por banqueiros, enganada por angariadores, explorada por

patrões, humilhada, encontra o Estado, exclusivamente, na figura da

polícia: a fiscalizar a migração da mão de obra, a infiltrar acampamentos

de trabalhadores, a prender “agitadores”, a provocar motins para depois

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ter direito a intervir “sem mandato” e finalmente a tentar prender Joad

porque ele matou um polícia que tinha, à sua frente, acabado de matar um

ex-pastor sindicalista que dirigia uma greve. No final do livro abandona o

campo keynesiano do welfare sate, uma ilha de um mundo miserável, e

diz: “Andarei por aí no escuro. Estarei em toda a parte. Para onde quer

que olhem. Onde houver uma luta para que os famintos possam comer,

estarei lá. Onde houver um polícia a espancar uma pessoa, estarei lá.

Estarei nos gritos das pessoas que enlouquecem. Estarei nos risos das

crianças quando têm fome e as chamam para jantar. E quando as pessoas

comerem aquilo que cultivam e viverem nas casas que constroem, tam-

bém lá estarei.”

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DIREITO AO TRABALHO E SEGURANÇA

NO EMPREGO EM PORTUGAL: 1951-2013

O DIREITO AO TRABALHO CONSTITUCIONALMENTE GARANTIDO

E CONCEPTUALIZADO COMO UM DIREITO HUMANO AO TRABALHO

DIGNO NUNCA FOI ASSISTIDO DE CONDIÇÕES PLENAS DE EFECTIVAÇÃO,

CONDIÇÕES ESTAS QUE HOJE, NO ESSENCIAL, DEIXARAM DE EXISTIR.

Eduardo Petersen

I. Nos termos do artigo 58.º da Constituição da República Portuguesa,

todos têm direito ao trabalho. Para assegurar este direito, incumbe

ao Estado promover:

a) A execução de políticas de pleno emprego;

b) A igualdade de oportunidades na escolha da profissão ou género de

trabalho e condições para que não seja vedado ou limitado, em fun-

ção do sexo, o acesso a quaisquer cargos, trabalho ou categorias

profissionais;

c) A formação cultural e técnica e a valorização profissional dos tra-

balhadores.

A disposição inicia o Capítulo I – Direitos e Deveres Económicos – do

Título III da Parte I da Constituição: Direitos e Deveres Económicos,

Sociais e Culturais. Na parte final do título anterior – Direitos, Liber-

dades e Garantias – encontra-se o artigo 53.º, subordinado à epígrafe Di-

reitos, Liberdades e Garantias dos Trabalhadores, segundo o qual “É ga-

rantida aos trabalhadores a segurança no emprego, sendo proibidos os

despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos”.

Hoje textualmente apresentados como diversos1, o direito ao trabalho

1 A versão original da Constituição de 1976 estabelecia o direito ao trabalho no seu

artigo 51.º, e no artigo 52.º, sob a epígrafe “Obrigações do Estado quanto ao direito

ao trabalho”, elencava também a segurança no emprego, ao lado da promoção do

pleno emprego e da assistência material aos desempregados, e da igualdade de

oportunidades e da formação cultural, técnica e profissional dos trabalhadores.

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e a garantia de segurança no emprego são interligáveis por via da respec-

tiva fonte: a dignidade da pessoa humana enquanto fundamento essencial

da República (artigo 1.º) com a inerente protecção da vida, e no respeito

pelo tempo de evolução desta (artigos 24.º e 36.º), e a inserção do cidadão

numa organização económica assente no direito de livre escolha de

profissão ou género de trabalho (artigo 47.º), na iniciativa privada (artigo

61.º) e na propriedade privada (artigo 62.º), direitos que operam no qua-

dro duma economia de mercado.

A conclusão é a de que, seja por via da propriedade privada, seja pela

via do trabalho, o cidadão há-de poder adquirir no sistema os recursos

necessários à manutenção da sua vida e à satisfação das necessidades de

evolução desta em condições dignas. O tempo e ritmo da vida a exigirem

estabilidade justificam a garantia de segurança no emprego, aplicando-se

ao emprego existente, que não deixa de ser uma espécie de direito ao

trabalho bem-sucedido, efectivo ou realizado, e obriga do mesmo modo à

concepção do direito ao trabalho como um direito realizável de forma

duradoura.

O artigo 23.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de

1948, consagra o direito de toda a pessoa ao trabalho, à livre escolha

deste, a condições justas e satisfatórias de trabalho e à protecção contra o

desemprego, assim como a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe

permita a si e à sua família uma existência conforme com a dignidade

humana, prevendo ainda a possibilidade de outros meios de protecção

social.

O enquadramento desta Declaração assenta na afirmação da dignidade

e igualdade enquanto garantia de liberdade, visando a afirmação duma

nova ordem de paz e bem-estar, e procede, quanto ao direito ao trabalho,

da constatação da fertilidade do terreno do desemprego e da miséria para

o surgimento das forças políticas que haviam levado à guerra.

Em Portugal, embora o artigo 21.º do Estatuto do Trabalho Nacional

de 1933 se referisse ao direito ao trabalho e ao salário humanamente

suficiente e à garantia destes sem prejuízo da ordem económica, jurídica

e moral da sociedade, o mesmo preceito começava por estabelecer que o

trabalho era um dever de solidariedade social. Assim, em última análise,

o direito ao trabalho era o direito a cumprir um dever.

A Constituição de 1933 foi revista em 1951 pela Lei 2048, de 11 de

Junho, e consagrou no artigo 8.º, n.º 1-A, “o direito ao trabalho nos

termos que a lei prescrever”. Acolheu-se pois a consagração de 1948 do

direito ao trabalho, mas com uma fórmula sucinta e que remetia o con-

teúdo do direito constitucional para a esfera da lei ordinária.

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D IRE ITO AO TRABALHO E SEGU R ANÇ A NO EMP RE GO EM PORT UGAL : 1951-2013 | 63

Direito ao trabalho – uma mudança de paradigma

A dificuldade na aceitação dos direitos económicos e sociais por parte

dos Estados-membros da ONU explica que só em Dezembro de 1966

tenha sido aprovado o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos,

Sociais e Culturais e que o mesmo só tenha entrado em vigor na ordem

internacional em Janeiro de 1976.

Neste Pacto, e depois de cada Estado se comprometer, no máximo dos

seus recursos disponíveis, de modo a assegurar progressivamente o pleno

exercício dos direitos reconhecidos, prevê-se (artigo 6.º) “o direito ao

trabalho, que compreende o direito que têm todas as pessoas de assegurar

a possibilidade de ganhar a vida por meio de um trabalho livremente

escolhido ou aceite”, para o qual os Estados tomarão as medidas apro-

priadas, que devem incluir “programas de orientação técnica e profissio-

nal, a elaboração de políticas e técnicas capazes de garantir um desenvol-

vimento económico, social e cultural constante e um pleno emprego

produtivo em condições que garantam o gozo das liberdades políticas e

económicas fundamentais de cada indivíduo”. No artigo 7.º, os Estados-

-partes no Pacto reconhecem o direito de gozar de condições de trabalho

justas e favoráveis, que assegurem, em especial, uma remuneração que

proporcione a todos os trabalhadores, no mínimo, uma existência decente

para eles próprios e suas famílias.

Embora pareça encontrar-se apoio na versão do artigo 6.º citado para

uma defesa do direito a trabalhar ou, noutra perspectiva, do direito à

empregabilidade, o referido artigo não permite esta interpretação restriti-

va, pois o direito ao trabalho tem de ser mais do que o direito nele com-

preendido e à empregabilidade corresponderá o pleno emprego, por via

das medidas apropriadas de desenvolvimento económico, social e cultural

constante, donde a empregabilidade acabará por se resolver em empre-

go/trabalho efectivo e não meramente potencial.

A versão constitucional portuguesa também o salienta: a primeira in-

cumbência do Estado para cumprir o direito ao trabalho é a execução de

políticas de pleno emprego.

No mesmo sentido, a Carta Social Europeia adoptada em 1961 e en-

trada em vigor em 1965, revista em 1996, estabelece que toda a pessoa

deve ter a possibilidade de ganhar a sua vida por um trabalho livremente

empreendido, e que, com vista a assegurar o direito ao trabalho, as partes

se comprometem a reconhecer como um dos seus principais objectivos e

responsabilidades a realização e a manutenção do nível mais elevado e

mais estável possível de emprego, com vista à realização do pleno em-

prego (artigo 1.º, Parte II).

Assiste-se, porém, a uma inversão de paradigma, porventura facilitada

pela persistente concepção do direito ao trabalho como um direito mera-

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mente programático, ou seja, como uma afirmação de princípio realizá-

vel, se e na medida possível, que consiste na assunção de responsabilida-

de essencialmente no sentido da plena empregabilidade e apenas residu-

almente no sentido da criação de emprego.

Assim, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, de 2000

(identicamente na versão de 2007), acolhendo as Cartas Sociais mas

apenas segundo o princípio da subsidiariedade, ao epigrafar e consignar

no artigo 15.º o direito de trabalhar, assistindo-o do direito de acesso

gratuito a serviços de emprego – artigo 29.º.

Não há, porém, que questionar se o direito ao trabalho na versão da

Constituição Portuguesa permanece em vigor face ao direito a trabalhar,

provindo da União Europeia, na medida em que apesar do primado deste,

a norma daquele sempre seria garantida pela compatibilidade essencial ao

nível de direitos fundamentais.

Direito ao trabalho, direito à vida

II. O direito ao trabalho, enquanto direito fundamental, não deixa de

se integrar numa arquitectura de direitos fundamentais assente no pilar

basilar do reconhecimento da dignidade da pessoa humana, podendo por

isso conceber-se o direito ao trabalho como instrumental à consecução do

direito à vida e à dignidade da pessoa humana e em consequência como

coberto pelo maior valor destes – ao menos enquanto se mantiver a

estrutura económica e social que assenta sobre o trabalho.

Independentemente de se ver no emprego o direito ao trabalho efecti-

vado, a durabilidade tendencial do emprego é uma exigência conceptual:

de que serve um direito ao trabalho, mesmo enquanto simples afirmação

de princípio, se o trabalho que por via dele se consegue alcançar não tem

nenhuma garantia de se manter?

A defesa de que a este trabalho se sucedem infinitamente outros, em

situação de pleno emprego, e que por isso para o cumprimento do direito

ao trabalho não se exige que o seu titular tenha direito à manutenção do

seu emprego, ignora a condição humana, a condição de vida, sobre a qual

e apenas sobre a qual se pode assentar o conceito de dignidade.

As normas sobre segurança no emprego, em sentido amplo, integram a

política de emprego e por esta via relevam também para a análise do

cumprimento do direito ao trabalho.

Não desconhecendo a relevância duma análise da política macroeco-

nómica para o apuramento do grau de regulação volitiva teleologicamente

dirigida ao cumprimento do direito ao trabalho, nem ignorando a relevân-

cia da análise das políticas activas e passivas de emprego, o presente

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D IRE ITO AO TRABALHO E SEGU R ANÇ A NO EMP RE GO EM PORT UGAL : 1951-2013 | 65

texto centrar-se-á sobretudo na análise da evolução jurídica dos modos de

contratação e de cessação laborais enquanto determinantes da estabilida-

de do emprego.

O direito ao trabalho segundo a Constituição de 1933

III. No período em que foi consagrado na Constituição de 1933 o di-

reito ao trabalho, estava em vigor – e era esta, portanto, a lei ordinária a

que o artigo 8.º, n.º 1 – A se referia – a Lei 1952, aprovada em 1937,

segundo a qual o contrato de trabalho era aquele pelo qual alguém se

obriga a prestar a sua actividade profissional a outrem, sob a autoridade e

direcção ou fiscalização deste, mediante remuneração. Porém, as normas

previstas na referida lei não se aplicavam apenas aos que tivessem cele-

brado contrato de trabalho, mas também, directamente, ao trabalho à peça

ou à tarefa, no domicílio ou em estabelecimento próprio do prestador, e

na transformação de matérias-primas fornecidas pelo comprador do

produto transformado, ou seja, tipos subsumíveis ao contrato de prestação

de serviço.

Em matéria de contratação, o contrato podia ser celebrado a prazo, por

qualquer prazo, sem quaisquer limites ou requisitos. Como a consequên-

cia jurídica do esgotamento do prazo é a caducidade do contrato, a lei

permitia, pois, a criação livre de trabalho não duradouro.

Mesmo para os contratos de trabalho celebrados sem prazo, a lei previa

a possibilidade de denúncia unilateral pelo empregador, a qualquer altura,

desde que observado um prazo de pré-aviso calculado em função da anti-

guidade, numa proporção fixa que no máximo determinava um pré-aviso

de seis meses para trabalhadores com quinze ou mais anos de antiguidade.

Finalmente, a definição de justa causa de despedimento como qualquer

facto de tal modo grave que comprometesse de imediato a possibilidade da

relação de trabalho, não a ligando à culpa do trabalhador, e exemplificando

como constitutivas situações relacionadas com vícios e mau procedimento,

ou inaptidão, entre outras, e sendo a justa causa apreciada segundo a subor-

dinação ao princípio da mútua colaboração e pelo espírito do tempo, permi-

tiam grande facilidade de despedimento, quer por justa causa subjectiva,

quer objectiva, e sem garantias procedimentais.

Nenhuma garantia praticamente, do ponto de vista jurídico, de durabi-

lidade do trabalho.

No período de 1966 (DL 47 032) a 1969 (DL 49 408), o legislador

empreende um enorme esforço de regulamentação unitária da generalida-

de das questões levantadas pelas relações de trabalho, em resultado, além

do mais, da influência da experiência e evolução em matéria social de

legislações estrangeiras – naturalmente também em tributo à consagração

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dos direitos económicos e sociais a nível internacional, como resulta das

menções à garantia duma “existência e subsistência digna do trabalhador”

e à valia da política social no desenvolvimento económico, como “factor

de elevação do nível de vida da população” e à acção da política social

sobre as estruturas produtivas, “levando-as a um constante esforço de

adaptação e progresso em ordem à satisfação das mais legítimas aspira-

ções sociais” (preâmbulo do DL 49 408).

Mas desde logo se inicia a exclusão da aplicação directa da lei laboral

a qualquer tipo de prestação de serviço, e a matéria da contratação laboral

apenas determina uma equiparação do regime de cessação dos contratos a

prazo de longa duração (4 anos) aos contratos sem prazo, mantendo-se,

porém, a não previsão de qualquer requisito de necessidade temporária

como condição de validade da celebração de contratos a prazo.

Manteve-se a possibilidade de denúncia unilateral pelo empregador

dos contratos de longo prazo e sem prazo, agora contra o pagamento de

indemnização correspondente a metade do pré-aviso, e o cálculo deste

passou a obedecer a uma proporção directa à antiguidade, à razão de um

mês por cada ano, no que representou um agravamento muito considerá-

vel do custo de uma denúncia unilateral do contrato pelo empregador.

Em matéria de despedimentos manteve-se a formulação da justa cau-

sa, continuaram a ser exemplificados comportamentos constituintes de

justa causa que melhor quadravam ao controlo político, ideológico e

reivindicativo dos trabalhadores, mas reforçou-se a protecção dos traba-

lhadores através da obrigatoriedade de procedimento disciplinar com

direito de defesa.

O volume de direitos que então se reconheciam aos trabalhadores,

combinado com o agravamento da dificuldade do empregador pôr termo

unilateralmente ao contrato, suscitou no legislador a apreensão do fenó-

meno de incumprimento da lei mediante fuga aos seus pressupostos de

aplicação, o que levou a que o artigo 10.º n.º 3 do DL 47 302 estabeleces-

se a regra, de vigência renovada até hoje, de que a estipulação do prazo

num contrato de trabalho é nula, se tiver por fim iludir as disposições que

regulam o contrato sem prazo.

Por outro lado, se conjugarmos estas normas com a proibição da gre-

ve, com a dominação e instrumentalização dos sindicatos pelo Estado e

com o baixo nível salarial que explica também o fenómeno da emigração

neste período, pode bem afirmar-se que o direito ao trabalho consagrado

constitucionalmente em 1951 não corresponde ao direito humano ao

trabalho digno que resulta da Declaração Universal dos Direitos do

Homem de 1948.

O único ponto de conexão ao direito ao trabalho previsto na Carta So-

cial de 1961 encontra-se na criação, em 1962 (DL 44 506, de 10-8), do

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Fundo de Desenvolvimento da Mão de Obra, visando combater o desem-

prego resultante da reorganização industrial e da inovação tecnológica,

adaptando e formando mão-de-obra qualificada correspondentemente

necessária, e em 1966, na criação do Serviço Nacional de Emprego (Dec.

42 731, de 9-12), com missão de estudo e organização do funcionamento

do mercado de emprego, colocação e orientação profissional e agencia-

mento da procura e da oferta, agilizando o reencaminhamento dos de-

sempregados. Porém, como se viu, sempre em direcção a um emprego

potencialmente não estável e relativamente ao qual, e às condições remu-

neratórias do qual, o trabalhador não tinha qualquer poder reivindicativo.

O direito humano ao trabalho digno e a revolução de 1974

Novo marco, do ponto de vista da consecução de um direito humano

ao trabalho digno, constitui a Revolução de 1974.

Do ponto de vista jurídico, o período que se segue à Revolução vai

atacar, desde logo, os despedimentos, blindando a porta de saída dos

trabalhadores do mercado de trabalho e assegurando-lhes esta via de

estabilização do trabalho.

Ainda em 1974, o DL 660/74, de 25-11, regulou a intervenção do Es-

tado nas empresas, entre outros, nos casos em que se previssem despe-

dimentos totais ou dos trabalhadores de várias secções, e em 31-12, o DL

783/74 veio regular a matéria do despedimento colectivo, instituindo

mecanismos de fiscalização extremamente apertados e prevendo nova-

mente a possibilidade de intervenção do Estado nas empresas, numa

verdadeira necessidade de autorização estatal do despedimento, subordi-

nado não aos interesses da empresa, mas aos interesses da economia

nacional.

Em 16 de Julho de 1975 foi publicado o DL 372-A/75, que regulou de

modo imperativo a matéria da cessação do contrato de trabalho, revogan-

do a disciplina da LCT e estabelecendo desde logo como critério para a

sua própria interpretação o de que visava proteger o direito ao trabalho e

o de que “O despedimento de um trabalhador numa sociedade a caminho

do socialismo só pode concretizar-se se aquele, pela sua conduta culposa,

mostrar não estar em condições de poder permanecer no seu posto de

trabalho, ou se, por circunstâncias objectivas, a manutenção da relação de

trabalho for incompatível com os interesses globais da economia”2.

Foram proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos po-

líticos ou ideológicos, e o conceito de justa causa foi extirpado de quais-

quer circunstâncias objectivas e limitado à possibilidade de imputação ao

2 Artigo 2.º do DL 372-A/75, revogado pelo artigo 3.º do DL 84/76, de 28-1.

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trabalhador, a título de culpa, de um comportamento violador de deveres

laborais. O DL 84/76, de 28-1, veio revogar a matéria do despedimento

por motivo atendível prevista inicialmente nos artigos 13.º a 23.º do DL

372-A/75, excluindo a possibilidade de extinção do posto de trabalho

individual, a inaptidão do trabalhador e impossibilidade de adaptação às

alterações tecnológicas como fundamentos da cessação contratual3.

Foi revogada a possibilidade de denúncia unilateral do contrato de tra-

balho pelo empregador, mediante aviso prévio e pagamento de indemni-

zação.

A partir de Janeiro de 1976 era, pois, proibido qualquer despedimento

individual que não tivesse por fundamento um comportamento culposo

com requisitos de gravidade bastante, aliás sujeito a um procedimento

disciplinar, com garantia de intervenção da comissão de trabalhadores

com parecer não vinculativo, e prevendo-se ainda uma providência cau-

telar de suspensão do despedimento4 e a impugnação judicial perante um

tribunal independente, o qual apreciaria a justa causa de acordo com o

espírito do tempo e tendo em conta o grau de lesão dos interesses da

economia nacional ou da empresa5, ou seja, com uma razoável margem

de impossibilidade, para um empregador, de conseguir despedir um

trabalhador por esta via de invocação de justa causa. De resto, passou a

prever-se a reintegração como consequência da insubsistência de justa

causa e também a aplicação de multas à entidade patronal, cujo produto

reverteria para o Fundo de Desemprego.

Quanto ao despedimento colectivo, mantendo-se o regime altamente

restritivo do DL 783/74, por via do DL 84/76, um trabalhador indivi-

dualmente considerado nunca podia ser despedido pelos motivos que

legitimariam o despedimento colectivo.

Da conjugação destes dispositivos resultou que, no período de 1975

até ao chamado primeiro pacote laboral de 1989, durante quase quinze

anos, a lei determinava uma quase impossibilidade de despedimento

individual de trabalhadores com contrato de trabalho sem prazo.

Porém, a legislação sobre contrato a prazo que o DL 372-A/75 anun-

ciava vir a ser publicada no prazo de três meses só veio a sê-lo após o

período revolucionário, através da chamada Lei do Contrato a Prazo (DL

781/76, de 28 de Outubro), sendo pois que o regime anterior sobre a

contratação a prazo se manteve durante o período revolucionário.

3 Artigo 14.º, n.º 1 e n.º 3.

4 O DL 372-A/75, de 16-7, veio a sofrer as alterações introduzidas pelo DL 84/76, de

28-1, pelo DL 841-C/76, de 7-12, pela Lei 48/77, de 11-7, e Lei 68/79, de 4-10.

5 Artigo 12.º n.º 5 do DL 372-A/75.

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D IRE ITO AO TRABALHO E SEGU R ANÇ A NO EMP RE GO EM PORT UGAL : 1951-2013 | 69

Os requisitos que a Lei do Contrato a Prazo introduziu à validade des-

te limitaram-se à duração certa do prazo, no máximo de três anos, inclu-

indo renovações, estipulada por escrito, sem correlação com uma neces-

sidade temporária de trabalho, salvo no caso de contratos celebrados por

prazo inferior a seis meses.

Conforme resulta do respectivo preâmbulo, a justificação do novo re-

gime dos contratos a prazo é precisamente a perspectiva de aumento, a

curto prazo, do emprego. Uma medida de política de emprego, portanto.

Nos termos legais, os contratos cessavam por caducidade no fim do

prazo, sem qualquer direito a compensação ou indemnização.

Na prática, e de facto como política de emprego, o que se fez foi auto-

rizar a utilização do contrato a prazo como forma de contornar a quase

impossibilidade de despedimento dos trabalhadores com contratos sem

prazo, assim flexibilizando e controlando a força de trabalho e a gestão

dos custos com o trabalho. Criação de emprego desejada, mas com possi-

bilidade de destruição de emprego a curto prazo.

Colocamos a hipótese de que, com este instrumento jurídico, se verifi-

cou efectivamente um aumento exponencial da contratação a prazo. Não

tendo tido acesso a dados anteriores a 1983, os dados dos restantes anos

da década6 evidenciam sensivelmente, na comparação com os contratos

permanentes, entre 1/6 e 1/5 da força de trabalho contratada a prazo, o

que dificilmente se compagina com a efectiva necessidade temporária de

força de trabalho por parte das empresas e sem que reflicta essa mesma

percentagem de criação de emprego, sendo aliás que a taxa de desempre-

go se apresentou em crescendo nas décadas de 70 e 80.

Antes de prosseguir, uma referência ao enquadramento constitucional.

A Constituição da República Portuguesa de 1976, na sua versão origi-

nal, declarava, nos artigos 1.º e 2.º, que “Portugal é uma República sobe-

rana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e

empenhada na sua transformação numa sociedade sem classes” e que “A

República Portuguesa é um Estado democrático, baseado na soberania

popular, no respeito e na garantia dos direitos e liberdades fundamentais e

no pluralismo de expressão e organização política democrática, que tem

por objectivo assegurar a transição para o socialismo mediante a criação

de condições para o exercício democrático do poder pelas classes traba-

lhadoras”. O artigo 9.º definia como tarefa fundamental do Estado “c)

Socializar os meios de produção e a riqueza, através de formas adequadas

às características do presente período histórico, criar as condições que

permitam promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo, especial-

mente das classes trabalhadoras, e abolir a exploração e a opressão do

6 INE – Inquérito ao Emprego, PORDATA, Última actualização: 2016-02-11.

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homem pelo homem” e o artigo 10.º determinava que “2. O desenvolvi-

mento do processo revolucionário impõe, no plano económico, a apro-

priação colectiva dos principais meios de produção”.

A Constituição previu a liberdade sindical e o direito à greve, entre os

direitos fundamentais, e definia as regras de organização económica cujo

fundamento “assenta no desenvolvimento das relações de produção

socialistas, mediante a apropriação colectiva dos principais meios de

produção e solos, bem como dos recursos naturais, e o exercício do poder

democrático das classes trabalhadoras” (artigo 80.º), declarando generi-

camente conquistas irreversíveis das classes trabalhadoras todas as nacio-

nalizações ocorridas desde 25 de Abril de 1974, e remetendo a iniciativa

privada ao quadro da sua conformidade com os limites estabelecidos pela

Constituição, pela lei e pelo Plano, relegando à lei ordinária a definição

dos sectores em que a mesma é proibida.

Nestes termos, e ao menos enquanto necessidade jurídica transitória, o

direito humano ao trabalho digno cumprir-se-ia, além do mais, no con-

texto económico gerado a partir duma determinação económica que,

socializando os meios de produção e a riqueza, apropriando colectiva-

mente os principais meios de produção, solos e recursos naturais, produ-

ziria uma redistribuição da riqueza e do rendimento, ou seja, o direito ao

trabalho não resultaria essencialmente duma operação de valorização

profissional dos trabalhadores em vista das necessidades da procura

determinadas pelos agentes económicos, detentores da capacidade de

criar emprego, em mercado livre, sem quase nenhuma responsabilização

destes, não sobrecarregaria os titulares do direito, não resultaria duma

afectação de recursos do Estado baseada em impostos com grande inci-

dência sobre os rendimentos do trabalho, mas duma afectação ao colecti-

vo da essencialidade dos meios de produção e da gestão do desenvolvi-

mento económico, em detrimento claro da propriedade privada e da

iniciativa privada.

A “integração europeia” e a regressão do direito ao trabalho

Este quadro declarativo da Constituição nunca chegou a realizar-se:

não só, como vimos, o legislador laboral ordinário forneceu aos agentes

económicos uma válvula de escape dos rigores da estabilidade de empre-

go, como em termos gerais as opções políticas iniciadas pelos governos

constitucionais que se lhe seguiram, e mais especificamente a candidatura

de adesão às Comunidades Europeias iniciaram um percurso em direcção

completamente oposta à declarada, cujo progresso levou à primeira

revisão constitucional de 1982. Esta desde logo expurgou a maior carga

ideológica, substituindo a expressão “criação de condições para o exercí-

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cio democrático do poder pelas classes trabalhadoras”, constante do

artigo 2.º, pela expressão “realização da democracia económica, social e

cultural e o aprofundamento da democracia participativa”, e reorganizou

os direitos e deveres económicos e sociais, autorizando a iniciativa priva-

da enquanto condição de progresso, no quadro da Constituição e da Lei.

A consolidação do percurso revela-se em 1989 na 2.ª revisão constitucio-

nal, que completa a expurga ideológica, mesmo ao nível dos conceitos, e

abole a garantia geral de irreversibilidade das nacionalizações e abre o

caminho das privatizações. Apesar da previsão da subordinação do poder

económico ao político, da previsão da incumbência prioritária do Estado

em corrigir desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento,

abriu-se o caminho do restabelecimento das condições, desde logo ao

nível da propriedade, para a geral e preferencial condução económica

privada e para a dependência do direito ao trabalho da dependência do

Estado em relação a tal condução.

Entre 1989 e 1991 ocorre o período a que se chamou primeiro pacote

laboral.

Em 1989 é publicado o DL 64-A/89, de 27 de Fevereiro, sobre despe-

dimentos e contratos a prazo, revogando o DL 372-A/75 e o DL 781/76,

referindo-se expressamente no seu preâmbulo a necessidade de alteração

de estruturas rígidas incompatíveis com o desafio de uma expansão para

um mercado europeu.

A contratação a prazo passou a designar-se “a termo” e obteve o reco-

nhecimento de que o anterior regime frustrava a segurança de emprego (o

preâmbulo refere-se expressamente à precariedade) e pretendeu-se agora

permitir o contrato a termo apenas nos casos em que a necessidade de

trabalho fosse realmente temporária ou residualmente, como regime

excepcional de possibilitação de criação de empresas ou de renovação da

sua actividade e finalmente como instrumento de política de emprego,

mas com enumeração taxativa destes fundamentos.

Em termos formais, o contrato tinha de ser celebrado por escrito, além

do mais, com a menção do motivo justificativo do termo, sendo que a

ausência desta menção implicava que o contrato se considerasse celebra-

do sem termo.

Mantendo-se o limite máximo de duração do contrato, incluídas as

duas renovações possíveis, inovou-se ao prever que a cessação do con-

trato por caducidade, no fim do prazo, gerava o direito do trabalhador a

ser compensado – pela frustração do seu emprego ou da sua expectativa

de vir a ser contratado sem prazo – com dois dias de retribuição por cada

mês completo de duração do contrato, factor que veio a ser aumentado

para três dias (por via da Lei 18/2001). Por outro lado, previu-se que se o

trabalhador tivesse estado contratado a termo por mais de doze meses e

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tivesse visto o seu contrato cessar por caducidade, não podia ser readmi-

tido a termo para o mesmo posto de trabalho antes de três meses (au-

mentado para seis, por via da Lei 18/2001). Determinou-se a contagem da

antiguidade do trabalhador desde o início da contratação, no caso de

conversão em contrato por tempo indeterminado por ultrapassagem do

prazo máximo de duração do contrato a termo.

Verificou-se, pois, por via de acção legislativa, uma restrição substan-

cial da possibilidade de utilização do contrato a termo fora dos casos em

que se justificasse e um combate a práticas fraudulentas, como era o caso

das contratações sucessivas.

A restrição foi-se endurecendo pelas medidas adicionais da Lei 38/96,

de 31 de Agosto (menção concreta no contrato dos factos que justifica-

vam a celebração do prazo; mesmos requisitos de celebração inicial para

as renovações do contrato em que o prazo fosse diferente), e da Lei

18/2001, de 3 de Julho (da menção dos factos concretos justificativos do

termo tem de poder objectivamente estabelecer-se a relação entre o

motivo e o termo; celebração sucessiva ou intervalada de contratos a

termo, entre as mesmas partes, para o exercício das mesmas funções ou

satisfação das mesmas necessidades do empregador, determina a conver-

são automática do contrato em sem termo; nulo e de nenhum efeito o

contrato a termo que viesse a ser celebrado entre as mesmas partes com

trabalhador que já tivesse adquirido a qualidade de trabalhador perma-

nente).

No período 1989-1991, legalizaram-se as empresas de trabalho tempo-

rário7 e regulamentou-se o contrato de trabalho temporário – DL 358/89

de 17 de Outubro – e em 1991, o DL 404/91, de 16 de Outubro, veio

regulamentar o exercício de determinados cargos de confiança (adminis-

tração, direcção e secretariado pessoal destes) em regime de comissão de

serviço, com previsão da possibilidade de contratação inicial de trabalha-

dores externos à empresa, relativamente aos quais a perda de confiança

determinava a cessação imediata do contrato, embora contra o pagamento

de uma indemnização.

Entre outras alterações, o DL 64-A/89 criou uma nova forma de des-

pedimento, a extinção do posto de trabalho, pelos motivos que permitiam

o despedimento colectivo, agora dirigidos a um trabalhador/posto indivi-

dualmente considerado.

Apesar de o preâmbulo do decreto-lei ressalvar as garantias do traba-

lhador nesta nova forma de despedimento, a verdade é que, em matéria de

7 A actividade das empresas de trabalho temporário consiste na cedência temporária a

terceiros, utilizadores, da utilização de trabalhadores que a empresa de trabalho

temporário contrata para esse efeito e que ela mesma remunera.

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procedimento, a intervenção estatal, a cargo da Inspecção Geral do Tra-

balho, só ocorreria se fosse solicitada pela estrutura representativa dos

trabalhadores. Por outro lado, ficava aberta a possibilidade de despedir

colectivamente através de despedimentos por extinção de posto de traba-

lho individual, desde que entre os despedimentos dos trabalhadores

abrangidos mediassem mais do que três meses. Finalmente, não só a

capacidade de resistência de um trabalhador individual à invocação de

motivos económicos por parte da empresa é menor que a de um colectivo

de trabalhadores, como nada impedia nem impede que iniciado o proce-

dimento de extinção do posto de trabalho, o empregador não chegue a

acordo com o trabalhador visado quanto à revogação do contrato de

trabalho, o que permite um processo negocial com possibilidade de

pressão – até na forma de assédio moral.

Em 1991, regulou-se nova forma de despedimento – DL 400/91, de 16

de Outubro, com fundamento primeiro na inadaptação do trabalhador,

após concessão de formação, às alterações resultantes de novos processos

de fabrico, novas tecnologias ou equipamentos, inadaptação que se resol-

ve em redução reiterada da produtividade ou qualidade, mas prevendo-se

também a sua utilização no caso de trabalhadores em cargos de comple-

xidade técnica ou direcção, que acordem formalmente com o empregador

o cumprimento de objectivos e não o alcancem. Porém, do despedimento

por inadaptação não pode resultar diminuição do volume de emprego

permanente, num cuidado legislativo de prevenção da utilização desta

nova forma de despedimento como modo de substituição de trabalhadores

efectivos por contratados a termo.

Finalmente, o DL 403/91, de 16 de Outubro, aumentou o período ex-

perimental, no decurso do qual a cessação do contrato é livre e imotivada,

para ambas as partes.

Embora os dados disponíveis não permitam uma interpretação fiável,

e sem prejuízo da existência de verdadeiros prestadores de serviço, for-

mulamos a hipótese de que, face ao agravamento das restrições legais na

contratação a termo, iniciada em 1989 e completada até 2001, se banali-

zou alternativamente o recurso a falsos contratos de prestação de servi-

ços, quer na vertente individual, quer numa vertente de externalização da

empresa8.

8 Os dados disponíveis na estatística do INE (PORDATA, 12-2-2016) revelam

percentagens anuais de trabalhadores por conta própria individuais, nos quais estão

abrangidos, por definição jurídica, os falsos prestadores de serviços, que se situam,

na década de 90, no valor mais baixo, em 17,6, e na década seguinte no valor mais

baixo de 17,5.

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O Código do Trabalho de 2003 e a dependência do direito em relação

à economia

O Código do Trabalho de 2003, aprovado pela Lei 99/2003, de 27 de

Agosto, em coerência com o pensamento da excessiva rigidez das leis

laborais e do prejuízo que causam ao desenvolvimento económico, afirma

pela primeira vez a dependência do direito em relação à economia, esta-

belecendo a si mesmo um prazo de revisão.

No seu artigo 12.º, estabeleceu uma presunção de laboralidade, facili-

tando teoricamente ao trabalhador a prova da existência de um contrato

de trabalho, mas exigindo a prova cumulativa de cinco características ou

indícios do contrato de trabalho, o que levou na prática a uma enorme

dificuldade de combate à prática fraudulenta de celebração com trabalha-

dores de contratos de prestação de serviços, assim se excluindo os mes-

mos de qualquer protecção laboral.

Em matéria de contratação a termo permitiu-se a não observância de

intervalo na celebração de contratos quando o motivo fosse o acréscimo

excepcional da actividade da empresa, motivo que, de resto, é um dos

mais invocados. Por outro lado, foi aumentado o prazo máximo de dura-

ção do contrato, por via de mais uma renovação, o que permitiu que a

duração máxima se situasse em seis anos9.

Em matéria de despedimentos, admitiu-se a oposição à reintegração

no caso de despedimento ilícito por micro-empregadores ou em caso de

trabalhadores com cargos de direcção. Quanto ao despedimento colectivo

e por extinção do posto de trabalho, a simples restruturação da organiza-

ção produtiva, mesmo sem dependência duma necessidade de saneamento

económico-financeiro da empresa, passou a ser admitida como motivo

fundamentador da licitude do despedimento, sendo que os tribunais

entendem não ter legitimidade e competência para sindicar decisões de

gestão empresarial.

A revisão do Código do Trabalho – conhecida por Código do Traba-

lho de 2009 (Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro) –, na sequência da identifi-

cação e discussão dos problemas das relações laborais na perspectiva da

economia e do direito que logrou compilação nos Livros Verde (2006) e

Branco (2007) sobre as relações laborais, reformulou a presunção de

laboralidade, em sentido verdadeiramente favorável aos trabalhadores,

pois que lhes permitiu a prova de alguns – no limite, apenas dois – dos

factos integrantes da presunção de que existe um contrato de trabalho.

Porém, tratando-se duma presunção ilidível, o beneficiário da prestação

9 Artigo 139.º n.º 2.

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D IRE ITO AO TRABALHO E SEGU R ANÇ A NO EMP RE GO EM PORT UGAL : 1951-2013 | 75

de trabalho por regra tentará provar o contrário e o manancial adquirido

de jurisprudência e doutrina sobre a distinção entre o contrato de trabalho

e o contrato de prestação de serviço, em cuja base se reafirma o princípio

da igualdade formal das partes e por isso da sua liberdade para celebra-

rem os contratos que quiserem, em grande parte anula a nova visão do

legislador. Consciente, aliás, de que o mercado recorria abusivamente à

celebração de contratos de prestação de serviço como forma de contornar

a lei laboral, o Código de 2009 criou ainda um tipo contra-ordenacional,

muito grave, para combater essa prática, cuja eficácia depende natural-

mente da capacidade de trabalho da Autoridade para as Condições do

Trabalho. De resto, na mesma senda de combate, o Código de 2009

estabeleceu a regra de que na contagem da duração total da contratação a

termo se incluem os contratos de trabalho temporário e os contratos de

prestação de serviços que tiverem sido cumpridos no mesmo posto de

trabalho.

A insuficiência das medidas adoptadas em 2009 demonstra-se pela

aprovação, em 2013, do texto de substituição da proposta legislativa

cidadã contra a precariedade, que virá a constituir a Lei 63/2013, de 27 de

Agosto, que instituiu uma acção especial de reconhecimento da existência

de contrato de trabalho, reforçando as funções da ACT ao nível da fisca-

lização e cometendo-lhe a primeira fase de instrução dum procedimento

voluntário de regularização e, na falta dela, duma nova forma de processo

judicial, urgente, independente da vontade e do sentido de oportunidade

do trabalhador, sob o patrocínio do Ministério Público junto dos Tribu-

nais do Trabalho, e que pretende, por um processo simplificado, até ao

nível da prova, obter do tribunal o julgamento complexo cujo resultado

supostamente será a declaração de que o trabalhador está a trabalhar ao

abrigo dum contrato de trabalho e desde quando. As deficiências estrutu-

rais desta lei comprometem fortemente a sua eficácia no combate a esta

prática fraudulenta.

Em matéria de contratação a termo, o legislador de 2009 retomou a

duração máxima de três anos, suprimindo o regime de renovação adicio-

nal, o qual, porém, veio a ser reposto com o limite de 18 meses pela Lei

3/2012 e, com o limite de 12 meses e em todo o caso com termo final, em

Dezembro de 2016, pela Lei 76/2013. Foi previsto o contrato de trabalho

a termo de muito curta duração.

Por outro lado, regularam-se as modalidades de contrato de trabalho: a

termo, a tempo parcial, intermitente, comissão de serviço, teletrabalho e

trabalho temporário.

Em matéria de cessação, as alterações de 2009 saldaram-se na dimi-

nuição do prazo de impugnação do despedimento escrito (justa causa,

extinção do posto de trabalho e despedimento por inadaptação) de um ano

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para 60 dias e na criação de uma acção judicial urgente, cuja não resolução,

em primeira instância, no prazo de um ano, determina que seja a Segurança

Social a pagar, a partir desse ano, as retribuições intercalares anteriormente

a cargo do empregador que procedera a um despedimento ilícito.

Mais relevantemente, em matéria de despedimento objectivo, foi esta-

belecido que a compensação que é paga ao trabalhador contemporanea-

mente à comunicação da decisão de despedimento, enquanto condição de

licitude deste, tem de ser devolvida imediatamente (leia-se, no próprio dia

ou no primeiro dia seguinte em que seja possível fazê-lo), sob pena de se

presumir que o trabalhador aceita o despedimento e de lhe ser impossível

impugná-lo em juízo. O preceito inviabiliza grandemente, na prática, não

só por ignorância como por necessidade económica, que os trabalhadores

despedidos por razões objectivas impugnem judicialmente os seus despe-

dimentos. Uma consequência possível é o aligeiramento dos motivos

invocados para o despedimento ou mesmo a simples invocação de moti-

vos falsos, na previsão de que o despedimento não será impugnado em

tribunal.

Situação equiparável à contratação por falsa prestação de serviço pode

ter ocorrido no recurso a estágios privados. A Lei 66/2011 veio regular os

contratos de estágio, de financiamento exclusivo das empresas que os

concedem, instituindo mecanismos de garantia de que o recurso a tais

contratos visa efectiva aprendizagem e não constitui uma forma de fraude

à lei laboral.

No período presente, iniciado na sequência dos Memorandos de En-

tendimento de 17-5-2011, sobre as Condicionalidades de Política Econó-

mica e sobre Políticas Económica e Financeira, a nota mais essencial,

quanto a trabalho estável, resulta das alterações realizadas pelas Leis

53/2011, 23/2012 e 69/2013, na medida da flexibilização que gradual-

mente provocaram das compensações devidas aos trabalhadores por

cessação do contrato e despedimento objectivo10, tendo-se eliminado a

compensação mínima de três anos, mesmo em caso de antiguidade infe-

rior, e sendo a compensação correspondente, em regra, a 12 dias de

salário base e diuturnidades por cada ano ou fracção (contada proporcio-

nalmente) de antiguidade, sem relevar a antiguidade superior a 12 anos.

10 Cessação de contrato de trabalho em regime de comissão de serviço (art.º 164.º

n.º 1 als. b) e c), resolução do contrato pelo trabalhador com justa causa em caso

de transferência definitiva do local de trabalho que lhe cause prejuízo sério (art.º

194.º n.º 5), cessação por caducidade do contrato de trabalho a termo certo ou in-

certo (artigos 344.º n.º 3 e 345.º n.º 4), cessação por caducidade do contrato de

trabalho em caso de morte do empregador, extinção da pessoa colectiva ou encer-

ramento de empresa (art.º 346.º n.º 6), despedimento por extinção do posto de

trabalho (art.º 372.º) e despedimento por inadaptação (art.º 379.º).

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D IRE ITO AO TRABALHO E SEGU R ANÇ A NO EMP RE GO EM PORT UGAL : 1951-2013 | 77

Aboliu-se assim o método de cálculo que vigorava desde o DL 372-

-A/75 e alinharam-se as compensações por valores inferiores aos devidos

no caso de denúncia unilateral na legislação de 1969.

Pela primeira vez, em 2014, o relatório da OCDE deixou de fazer reco-

mendação no sentido do abaixamento do custo do despedimento e passou a

incidir sobre a segmentação do mercado de trabalho. Ficou, portanto, claro

que a rigidez dos direitos laborais em Portugal, a rigidez máxima que era

constituída pela segurança no emprego e que determinava a aplicação de

toda a demais protecção laboral que pudesse ser considerada rígida, tinha

deixado de ser um problema para o funcionamento liberal do mercado e

consequentemente para o desenvolvimento da economia.

Uma lógica invertida do direito

IV. A conclusão de todo este percurso é a de que sempre foi possível

recorrer a formas de contratação de trabalhadores que produzem vínculos

instáveis e não duradouros, deliberadamente assim criadas como forma

de potenciar o emprego – lei do contrato a prazo de 1976, operando

justamente no período 1976-1989 em que a segurança no emprego foi

mais garantida ao nível da dificuldade de despedimento – e que a restri-

ção destas formas ou o combate à fraude foi contemporaneamente con-

trabalançado por outras vias de liberalização: novas modalidades de

contrato com menor segurança, aumento das possibilidades de despedi-

mento objectivo. Finalmente, com o período iniciado em 2011, pode

afirmar-se a legalidade e a facilidade da destruição de emprego seguro

ou, dito de outro modo, a legalidade dum trabalho que é insusceptível de

estabilizar um modo de vida digno por parte daquele que o tem e daquele

que o pretende alcançar.

Neste último aspecto se evidencia, a nosso ver, a ineficácia presente e

futura de quaisquer políticas activas de emprego para realizarem o direito

ao trabalho. Um direito ao trabalho que pode acabar dum momento para o

outro é, no máximo e em situação de pleno emprego, um direito a uma

rotação rápida entre empregos, um direito a trabalhar, o direito a trabalhar

que é a versão reformulada do direito ao trabalho acolhida pela Carta dos

Direitos Fundamentais da União Europeia no seu artigo 15.º, integrando-

-se a essencialidade das políticas activas de emprego no quadro do direito

de acesso gratuito a serviços de emprego previsto no artigo 29.º da mes-

ma Carta.

No presente, a lógica do direito ao trabalho assenta na aceitação in-

contestada da eficácia do mercado livre – aliás patentemente desmentida

desde a crise de 2008 –, competindo ao Estado o fornecimento de instru-

mentos de adequação da força de trabalho por aquele reputada como

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necessária, instrumentos parcialmente financiados pelos impostos sobre o

trabalho, pagos também por aqueles trabalhadores que passaram à condi-

ção de desempregados.

Trata-se, pois, maioritariamente de potenciar a empregabilidade, actu-

ando sobre o lado do trabalho, co-responsabilizando individualmente o

titular do direito ao trabalho, numa lógica invertida do direito, e não de

potenciar o emprego, actuando sobre o lado dos detentores da capacidade

de criação de emprego, limitando a plenitude dos direitos destes.

Porém, as políticas activas de emprego com maior sucesso imediato e

aliás menor custo11 nem sequer são as que incidem sobre a formação,

valorização e adequação do desempregado às exigências do mercado de

trabalho, sobre o fomento da empregabilidade do titular do direito ao

trabalho, mas os apoios directos à criação de emprego, seja próprio, seja

na versão do empreendedorismo (o que não deixa de ser um encaminha-

mento do titular do direito à responsabilidade pela própria manutenção do

direito no contexto duma economia de capital fortemente concentrado, ou

seja, com grande possibilidade de insucesso), seja na subsidiação da

contratação pelas empresas.

A lógica da empregabilidade não tem qualquer potencial de satisfação

de uma vida digna. Ela representa, salvo melhor opinião, a imposição de

um padrão de comportamento que diminui a liberdade individual, ao

forçar todos à competição segundo os ritmos, mais ou menos acelerados,

determinados pelos operadores económicos. A dimensão humana do

trabalhador é postergada.

A conclusão final, entre nós, sobretudo centrada na análise da legisla-

ção laboral, é a de que o direito ao trabalho constitucionalmente garantido

e conceptualizado como um direito humano ao trabalho digno, nunca foi

assistido de condições plenas de efectivação, condições estas que hoje, de

modo essencial, deixaram de existir.

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OS DOIS ANDAMENTOS DO MARCELISMO*

Fernando Rosas

Quando é chamado (e se faz chamar) à Presidência do Conselho para

substituir Salazar, Marcelo Caetano enfrenta uma situação política e

social de alto risco, marcada pela centralidade incontornável da questão

colonial e da guerra que se prolongava há oito anos.

Os dois andamentos do marcelismo são a história da falência do re-

formismo chegado ao poder, a crónica da impossibilidade política de

resolver a questão da guerra e, com isso, de levar por diante um processo

de transição a partir do próprio regime. No primeiro andamento, tentar

liberalizar sem abandono do esforço militar nas colónias; num segundo

andamento, manter o esforço militar em África, sacrificando a liberaliza-

ção e, com ela, o próprio regime.

Marcelo Caetano nada tinha de democrata ou até, no rigor do termo,

de liberal – as suas antigas convicções antipartidárias e autoritárias conti-

nuavam basicamente incólumes. Defendia, sim, um maior respeito por

parte das autoridades administrativas pelas leis, pelos direitos de cada

um, e advogava um programa de descompressão política, de “liberdade

possível”, que devolvesse alguma vida real ao sistema corporativo e um

outro dinamismo à participação, que se queria ordeira e ponderada, dos

cidadãos na coisa pública.

Num primeiro momento de “primavera política”, como se lhe chamou,

sensivelmente até 1970, o marcelismo tentou passar da teoria à prática,

procurou executar o seu plano reformador: uma nova política económica

desenvolvimentista, assente numa nova malha de industrialização, pró-

-europeia, aberta ao investimento estrangeiro, que procurou liquidar o

condicionalismo industrial, fez o acordo com a CEE em 1972, lançou, a

* Este artigo foi publicado originalmente em António Simões do Paço (coord.), Os

Anos de Salazar, vol. 28, 1972. Conversa acabada, pp. 203-207. Ed. Planeta DeA-

gostini, Lisboa, 2008.

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pensar no petróleo angolano, o projecto de Sines, estimulou as cooperati-

vas agrícolas e a grande empresa capitalista rural e gizou o projecto do

Alqueva. Corolário dela foram as medidas de melhoria da assistência

social (extensão da previdência aos rurais e criação da ADSE para os

funcionários públicos) e a ousada reforma de democratização do acesso

ao ensino e dos seus conteúdos lançada por Veiga Simão já em 1972.

No plano colonial, vai onde nunca se ousara ir dentro do regime: em

Setembro de 1970, perante as comissões distritais da Acção Nacional

Popular, Caetano procede a uma verdadeira desmontagem do paradigma

colonial salazarista, do ideário até aí legitimador da defesa das colónias e

da guerra. Nem a “missão histórica”, nem a “defesa do Ocidente”, nem a

“independência nacional”, nem os interesses económicos justificavam, só

por si, a continuação do esforço militar no ultramar. O que impunha que

se continuasse a lutar era a defesa dos interesses das populações brancas

há muito aí instaladas: o Estado não as podia abandonar à sua sorte

através da descolonização. A esse título Caetano entendia que era preciso

prosseguir a guerra para ganhar tempo e espaço, de forma a ir-se prepa-

rando uma evolução gradual para um futuro que se veria onde poderia

chegar. É este princípio de “autonomia progressiva” que se consagra na

revisão constitucional de 1971, seguida, em 1972, da nova Lei Orgânica

do Ultramar e dos estatutos territoriais. Ainda que, na prática, com im-

portantes limitações de carácter centralizador, Angola e Moçambique – a

quem era concedido o “título honorífico” de estados – recebiam gover-

nos, assembleias legislativas e tribunais próprios, sendo que a lógica

básica de funcionamento de tais instituições tenderia, naturalmente, a

privilegiar e perpetuar o sistema de domínio da população branca, quiçá

de uma futura autonomia ou independência branca.

O essencial, todavia, é que a política de “autonomia progressiva” exi-

gia a continuação da guerra. E esse era o nó górdio da questão: Caetano,

não só sob pressão dos integristas, mas por profunda convicção pessoal,

entendia não ter outra saída que não fosse a de prosseguir o empenha-

mento militar. O que, fatalmente, iria comprometer tudo o mais do seu

programa de reformas.

E seria o marcelismo a tirar as consequências práticas dessa realidade,

quando, face à manutenção e agravamento da agitação política e social,

procede, progressiva mas seguramente, a uma inversão da sua linha de

actuação a partir de 1970. Constatada a inviabilidade de liberalizar man-

tendo a guerra, e partindo da impossibilidade de lhe pôr termo, o regime

vai manter a guerra, acabando com a liberalização.

Em Outubro de 1970, publica-se nova legislação sindical permitindo a

destituição pelo ministro das Corporações das direcções sindicais “sub-

versivas”. Em resposta à crescente radicalização do movimento estudantil

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OS DOIS ANDAM ENTOS DO MA RC ELISMO | 83

– fulcro de um intenso activismo contra a guerra colonial, contra a repres-

são policial e, particularmente em Lisboa, contra o conteúdo e o signifi-

cado da “reforma do ensino” anunciada pelo marcelismo –, serão encer-

radas pela polícia política, uma a uma, praticamente todas as associações

de estudantes do País, sucedem-se as invasões policiais das instalações

universitárias, dezenas de estudantes são presos ou incorporados coerci-

vamente no Exército. A polícia política reganha o seu papel após um

período inicial de alguma contenção: a curva das prisões volta a aumentar

a partir de 1970-71, não só tendo como alvo o PCP, mas também os

grupos maoístas e marxistas-leninistas, católicos progressistas e persona-

lidades socialistas. Todos os projectos apresentados pela «ala liberal» na

Assembleia Nacional – revisão constitucional, amnistia, liberdade de

associação, lei de imprensa – são derrotados pela maioria afecta ao Go-

verno e aos ultradireitistas. E finalmente, a eleição presidencial: ao de-

sautorizar todas as tentativas de avançar com um candidato alternativo a

Américo Tomás (Spínola chega a ser abordado nesse sentido), Caetano dá

um inequívoco e definitivo sinal de que, para manter a guerra, estava

disposto a sacrificar a liberalização.

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ANOS DE BRASA: UMA VISÃO DO MOVIMENTO

OPERÁRIO PORTUGUÊS NA DÉCADA DE 70

Miguel Ángel Pérez Suárez

Em 1933, dentro do processo de institucionalização do Estado Novo,

foi promulgado o Estatuto do Trabalho Nacional, que impunha a criação

de “sindicatos nacionais” organizados por distritos e ofícios, sob o con-

trolo do Estado. A corporativização foi contestada pelas organizações

sindicais de classe com uma greve insurrecional em janeiro de 1934. A

derrota desse movimento pôs fim ao pujante movimento operário desen-

volvido durante a I República (1910-1926), hegemonizado pela ideologia

anarquista1. O próprio Partido Socialista, fundado em 1875, e que tivera

um papel de relevo no nascimento do movimento sindical, dissolveu-se

oficialmente em 1933.

Os sindicatos nacionais serão um objetivo e um terreno fundamentais

para a ação clandestina do PCP, que desde meados da década de 40 se

tornara na principal (se não única) força realmente organizada contra a

ditadura. O PCP aplicava uma linha de entrismo nas organizações de

massas do regime, inspirada nas teses do VII Congresso da Internacional

Comunista, de 1935. Os militantes e simpatizantes comunistas participa-

ram nos processos eleitorais sindicais conseguindo alguns sucessos ao

longo do tempo, apesar da repressão e da flagrante ilegalidade praticada

pelo poder. Se bem que este seja um capítulo que ainda carece de investi-

gações rigorosas, podemos afirmar que os esforços de uma oposição

sindical alcançaram os seus frutos nos anos finais da década de 60.

1 Existe uma bibliografia variada sobre a história do movimento sindical. Referimos

apenas os trabalhos pioneiros de César Oliveira, como O Operariado e a República

Democrática, Lisboa, Seara Nova, 1975, e o mais recente de João Freire, Anarquis-

tas e Operários. Ideologia, Ofício e Práticas sociais: o Anarquismo e o Operariado

em Portugal, 1900-1940, Porto, Afrontamento, 1992.

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Efetivamente, é na fase final do regime que a oposição democrática

(comunistas, católicos e uma nova esquerda, da qual uma parte acabará

integrando o PS) conquista vitórias eleitorais num conjunto significativo

de sindicatos, no calor da contestação social de 1968-69 e de uma fugaz e

relativa abertura legal2. Em outubro de 1970 quatro desses sindicatos

organizaram uma reunião intersindical tolerada pela ditadura, e que teve

continuidade nos meses e anos seguintes com a participação de um núme-

ro variável de sindicatos. Porém, desde 1971 a repressão endureceu, com

a prisão de vários dirigentes sindicais (como Daniel Cabrita, do Sindicato

dos Bancários de Lisboa) e suspensões de direções sindicais, como a dos

Metalúrgicos de Lisboa.

Os anos do consulado de Caetano3 aparecem, aos olhos do historiador,

como a acalmia que precede a tormenta, pois aquele possui o privilégio

da sabedoria posterior ao acontecimento. Desde 1960 o país assiste a um

crescimento económico notável, à multiplicação do investimento externo

e ao surgimento ex novo de setores industriais completos. Ao mesmo

tempo, e de forma simultânea, vive-se um enorme êxodo de nacionais

para os países europeus mais desenvolvidos, as áreas metropolitanas de

Lisboa e Porto viam crescer a sua população e nascer novos aglomerados

e bairros, onde residiam novas camadas de trabalhadores industriais e de

serviços. Entre 1950 e 1970 os ativos na indústria e serviços aumentaram

em mais de meio milhão, enquanto o País sofreu aquela emigração maci-

ça. São transformações que apenas podemos delinear neste texto, mas que

mudam o aspeto de Portugal, aproximando-o dos modelos sociais do

Ocidente.

Por outro lado, as guerras de libertação nacional nas colónias africa-

nas, que consumiam em três frentes o Exército português e os recursos

financeiros do Estado, tiveram um efeito político formidável na sociedade

portuguesa, em particular nos seus setores mais jovens. A convicção da

injustiça do conflito e da impossibilidade de uma vitória militar radicali-

zou uma geração inteira e esteve de facto no centro dos acontecimentos

que puseram fim à ditadura estado-novista. O último ano da ditadura viu

2 Sobre a conflituosidade laboral no final da ditadura ver Fátima Patriarca “Estado

Social: a caixa de Pandora”, in Rosas, Fernando e Oliveira, Pedro Aires, A transi-

ção falhada – O Marcelismo e o fim do Estado Novo (1968-1974) Lisboa, Notícias,

2004, pp. 171-212.

3 Em agosto de 1968 Oliveira Salazar sofreu um acidente doméstico que lhe provo-

cou a invalidez, vindo a falecer em 1970. Foi substituído como primeiro-ministro

por Marcelo Caetano, que despertou bastantes expectativas na opinião pública.

Sobre o período marcelista, ver Fernando Rosas e Pedro Aires de Oliveira, A tran-

sição falhada – O Marcelismo e o fim do Estado Novo (1968-1974) Lisboa, Notí-

cias, 2004.

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ANOS DE BRASA : UMA V ISÃO DO MOVIMENT O OPERÁRIO PORTUGU ÊS NA DÉ CADA… | 87

uma extensão da conflituosidade social, com greves em numerosas em-

presas (como a empresa de transportes aéreos, TAP, em julho de 1973) e

uma movimentação generalizada da juventude estudantil.

São abundantemente conhecidas as motivações de ordem corporativa

que estão associadas ao nascimento do que irá ser o Movimento das

Forças Armadas (MFA). O que pode resultar mais surpreendente é a

rápida transformação desses objetivos profissionais numa crítica de

conjunto do regime e da sua política africana, assim como a unidade que

consegue dentro dos quadros do Exército. Quando no 25 de abril de 1974

os tanques saíram para a rua, a ditadura caiu como um fruto podre, abrin-

do espaço a uma vasta e multifacetada explosão social surgida dessa nova

classe trabalhadora que referimos acima.

Nas semanas seguintes ao golpe militar desenvolveu-se uma onda de

greves que atingiu todo o Portugal industrial: das grandes fábricas da

margem sul do Tejo e Lisboa, numa situação de greve generalizada na

região da capital no final de maio, e que até ao final de junho chegou às

grandes unidades fabris do Porto e a todos os núcleos industriais de

relevo. Os trabalhadores reivindicavam geralmente melhorias salariais,

quase sempre num sentido igualitário, a diminuição do tempo de trabalho,

com as 40 horas e férias pagas, e, de forma muito significativa, o sanea-

mento de empresários e quadros das empresas relacionados com a repres-

são da ditadura4. Os trabalhadores identificavam as práticas patronais

repressivas com o fascismo deposto no 25 de abril, enquadrando a sua

luta com os princípios definidos pelo MFA (como assinala R. Durán

Muñoz no seu trabalho pioneiro, referido na bibliografia). “Fascista é

objetivamente qualquer capitalista que vive à nossa custa e todos os seus

lacaios imundos que recebem as migalhas maiores”, lemos num boletim

dos trabalhadores de uma empresa em luta.5

As empresas foram o palco dessa luta, e as Comissões de Trabalhado-

res (CT) o instrumento que encontrou um movimento operário radical e

combativo. Na generalidade dos casos, os trabalhadores em luta elegiam,

em assembleias muito dinâmicas, comissões representativas responsáveis

perante o coletivo, revogáveis e autónomas, que adotaram a denominação

4 Sobre o movimento grevista de maio e junho de 1974 ver: Maria de Lurdes Lima

Santos, Marinús Pires de Lima e Vítor Matias Ferreira, O 25 de Abril e as lutas soci-

ais nas empresas. Porto, Afrontamento, 1977; e a minha tese de mestrado: Miguel

Ángel Pérez Suárez, Contra a exploração capitalista: Comissões de Trabalhadores e

luta operária na Revolução Portuguesa (1974-1975), dissertação de mestrado, FCSH-

-UNL, Lisboa, 2008. Disponível na internet em: http://www.cd25a.uc.pt/media/

pdf/Textos%20jornalisticos/contraaexploracaocapitalista.pdf (18-11-2014).

5 “Jornal da Greve (suspensa) da Efacec/Inel Sul”. Citado em Revolução, n.º 16, 12-

-10-1974.

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de CT. A formação de comissões representativas não era, de facto, uma

novidade, mas fazia parte da tradição histórica do movimento operário, e

contava com antecedentes de importância no País: as chamadas “comis-

sões de unidade” nas empresas e as “comissões de praça” ou “de jorna”

na região do latifúndio eram formas através das quais os trabalhadores

defendiam as suas reivindicações.

Com a queda da ditadura e a proclamação dos objetivos democráticos

do novo regime a Intersindical manifestou-se como a representante de um

movimento sindical democrático e de classe, proclamando-se a central

sindical única dos trabalhadores portugueses. A Intersindical organizou as

grandiosas manifestações do 1.º de maio de 1974, que foram um autênti-

co plebiscito popular ao MFA, e reuniu nas semanas seguintes dezenas de

sindicatos que expulsaram as antigas direções corporativistas. No seio das

estruturas que irão surgindo (plenários de sindicatos, uniões regionais,

secretariado) a posição dirigente do PCP torna-se de imediato evidente.

No quadro da onda grevista de maio e junho, a Intersindical assumiu

plenamente o discurso de moderação difundido pelo PCP6. A 1 de junho

de 1974 organiza uma manifestação em que participam alguns milhares

contra as greves selvagens e sem sentido. Esta linha de atuação abriu um

espaço político para as organizações da extrema esquerda e outras cor-

rentes críticas. O caso dos estaleiros navais de Lisboa, a Lisnave, é exem-

plar nesse sentido. Nesta grande empresa, os trabalhadores iniciaram uma

luta em maio e, depois de uma paralisação com ocupação, conseguiram a

satisfação de quase todas as suas reivindicações, como as salariais. Ficou

por resolver o problema do saneamento de engenheiros e quadros envol-

vidos no despedimento de dezenas de grevistas em 1969. Foi esse o

motivo para que a CT organizasse uma manifestação em setembro de

1974, que unia essa exigência de saneamento à rejeição da muito restriti-

va Lei da Greve que fora promulgada em agosto. A manifestação foi

proibida pelo Governo e condenada pela direção do PCP, mas os traba-

lhadores do estaleiro revalidaram maciçamente a sua decisão numa

assembleia grandiosa que aprovou um manifesto de dimensão histórica7.

Sem violência, os operários da Lisnave romperam o cordão militar for-

mado para impedir a sua manifestação e marcharam de forma organizada

e pacífica pelas ruas de Lisboa.

A mobilização dos operários da Lisnave representou uma derrota polí-

tica sem paliativos para o PCP, que se viu desautorizado numa das maio-

res unidades fabris do País. A CT da empresa estava hegemonizada por

6 Sobre a linha política do PCP ver Raquel Varela, A história do PCP na Revolução

dos Cravos. Lisboa, Bertrand, 2011.

7 Sobre o processo na Lisnave ver os artigos de Fátima Patriarca citados na bibliografia.

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várias organizações da extrema esquerda, como o PRP (Partido Revolu-

cionário do Proletariado) e vários grupos marxistas-leninistas que, em

dezembro de 1974, criaram a UDP (União Democrática Popular). Este

último partido também influenciava outros coletivos de trabalhadores

significativos. Ao lado destes grupos destacava-se o MRPP (Movimento

Reorganizativo do Partido do Proletariado), quiçá o movimento maoísta

mais numeroso e hiperativo, que contava com uma influência operária

relativamente importante8 e considerava o PCP como o inimigo principal

da revolução.

Da CT de Lisnave e de outras CT surgiu, no final de 1974, uma “Co-

missão Interempresas” que agrupava várias dezenas de comissões de

Lisboa e que organizou, em fevereiro de 1975, uma grande manifestação

contra o desemprego e a presença de tropas da NATO em território

português que contou com a participação de dezenas de milhares de

trabalhadores, apesar das fortes críticas formuladas pelo PCP. Dias depois

realizou-se no Porto uma iniciativa semelhante. Porém, estes projetos de

coordenação e centralização não tiveram continuidade nos meses seguin-

tes9.

Este momento charneira do processo revolucionário – os meses finais

de 1974 e o início de 1975 – está marcado por dois temas centrais do

movimento operário: o debate unidade/unicidade sindical e a multiplica-

ção de empresas em situação de autogestão.

A Lei Sindical de 1975, chamada da “unicidade sindical”, estabelecia

a existência de estruturas sindicais únicas e nomeadamente uma única

central sindical: a Intersindical. O projeto foi apoiado pelo PCP e outros

grupos da esquerda e vivamente rejeitado pelos socialistas. O PS organi-

zou em janeiro de 1975 um importante comício com a participação de

Mário Soares e Salgado Zenha, e nesses mesmos dias largos milhares de

pessoas manifestaram-se em Lisboa pela unicidade e contra o divisionis-

mo sindical. O texto legal foi finalmente aprovado em abril de 1975.

A situação do movimento sindical foi sofrendo importantes modifica-

ções a partir de maio de 1975, quando as chamadas “listas unitárias” de

filiação comunista foram sucessivamente derrotadas em importantes

sindicatos de serviços por “listas B” promovidas por socialistas em alian-

ças muito heterogéneas (com os maoístas do MRPP, com os centristas do

PPD-PSD). No final do verão desse ano o PCP não controlava os sindi-

catos de seguros, escritórios e comércio de Lisboa (qualquer dos três com

largos milhares de sócios), nem nenhum dos três da banca a nível nacio-

8 Demonstrada na organização de um “congresso nacional das CT” em outubro de

1975 em que participaram mais de uma centena de comissões.

9 Sobre a Interempresas ver a minha tese de mestrado citada em 4.

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nal (o de Lisboa era um dos fundadores da Intersindical, em 1970). Estes

resultados podem ser vistos como uma mobilização de camadas sociais

médias e urbanas que manifestavam o seu receio pela influência comu-

nista na vida social e política. A sangria sindical do PCP só parou em

outubro com uma cómoda vitória “unitária” no Sindicato dos Metalúrgi-

cos de Lisboa. Em agosto de 1975 a Intersindical realizou o seu primeiro

congresso, em que foram aprovadas moções alinhadas com as análises do

PCP. O primeiro-ministro general Vasco Gonçalves pronunciou o discur-

so de encerramento (o ministro do Trabalho, capitão Costa Martins,

dirigira-se aos congressistas na sessão de abertura). O congresso aprovou

uma linha de rumo colada aos setores mais à esquerda do MFA e apoiou

as medidas de nacionalização e a reforma agrária decididas pelo Governo

de Gonçalves. O evento foi um ponto alto da estratégia do PCP para

ocupar espaços de influência num suposto caminho para a tomada do

poder e foi muito criticado pela falta de representatividade e democratici-

dade.

Desde o início de 1975 as ocupações de empresas generalizaram-se

numa transgressão geral do direito de propriedade privada que caracteriza

o processo revolucionário. No meio urbano casas e locais foram ocupados

para dar satisfação às necessidades das populações (coletivas ou de

habitação) e nos campos do Sul os trabalhadores agrícolas foram prota-

gonistas de uma vasta revolução agrária que voltaremos a referir mais

adiante.

No que se refere às empresas, a ameaça da crise e do desemprego e as

acusações de sabotagem económica e má gestão dos patrões conduziram

a um importante movimento de ocupações que parece ter o seu momento

mais forte no primeiro trimestre de 1975. Calculamos que no total terá

havido, somando casos de intervenção do Estado e autogestão, não menos

de 1200 casos.

Uma norma legal – o Decreto 660//74, de 25 de novembro – permitia

a intervenção do Estado nas empresas privadas que “não funcionem de

acordo com o interesse da economia nacional” e estava orientado para

determinados casos de gestão ruinosa de importantes companhias, mas

nos meses seguintes serviu para dar cobertura oficial a muitas dezenas de

ocupações e empresas em autogestão. As empresas que eram intervencio-

nadas viam reconhecida a sua administração (nalguns casos a própria CT

ou alguns membros representantes) e podiam agir legalmente, gerindo o

património e recebendo, por vezes, apoio financeiro do Estado. Entre

estas empresas, que pertenciam a todos os setores de atividade de Norte a

Sul, podemos destacar importantes companhias industriais, grandes

empresas de construção civil e imobiliárias, ou ainda a maior cadeia de

supermercados do País.

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Segundo dados do Ministério do Trabalho, entre 25-4-1974 e 31-12-

-1975 foram intervencionadas 261 empresas, com 154 000 trabalhadores,

e nacionalizadas 227 com 157 000 trabalhadores10

. Paralelamente verifi-

cou-se um processo diferente de nacionalizações de setores estratégicos

da economia nacional, muito ligado ao clima político e sob pressão dos

trabalhadores. Depois do insucesso do golpe de 11-3-1975 os trabalhado-

res da banca assumiram o controlo de toda a atividade do sector, por

indicação da organização sindical. No dia 14 era decretada a nacionaliza-

ção do setor, a que se seguiram dias mais tarde os seguros, e nas semanas

e meses seguintes os setores fundamentais da indústria – siderurgia,

petróleos, celulose, química – e todos os transportes.

Na maioria destas empresas nacionalizadas assistiu-se a uma dinâmica

de participação dos trabalhadores, com processos de controlo da produ-

ção que tentavam democratizar a tomada de decisões dentro da empresa.

Foram fenómenos não exclusivos das empresas na altura públicas, mas

que existiram na generalidade da vida económica e social como um

reflexo mais da crise social revolucionária que se abrira desde o 25 de

abril. Em setembro de 1975 o I Congresso Têxtil, promovido pelo movi-

mento sindical, discutiu a reestruturação e o controlo operário da produ-

ção nesse setor fundamental da indústria portuguesa, que continuava nas

mãos de privados.

Para além das empresas nacionalizadas e intervencionadas existem

inúmeros casos de pequenos locais de trabalho em que os trabalhadores

entram em autogestão. Referimo-nos a situações em que, por determina-

das circunstâncias (encerramento, fuga do patrão) um coletivo de traba-

lhadores opta por ocupar a respetiva empresa com a intenção de pô-la a

funcionar para garantir a continuidade da empresa e dos postos de traba-

lho. O exemplo pioneiro é o da Sogantal (Montijo), pela sua repercussão

mediática, mas a grande maioria das empresas intervencionadas citadas

no início deste ponto entrariam nesta categoria. Na Sogantal as trabalha-

doras entram em greve em maio de 1974 por melhores salários e condi-

ções de trabalho. A entidade patronal não aceita o valor do salário míni-

mo de 3300$00 e encerra a empresa. As trabalhadoras tomam conta da

fábrica e continuam a produzir e vender durante cerca de dois anos, com

a tentativa de retoma da empresa pelo proprietário em agosto de 1974,

que é impedida pelas trabalhadoras e um forte movimento de solidarieda-

de que mantém viva a esperança destas operárias de trabalhar sem pa-

trões.

As entidades estatais avaliam o número de empresas nesta situação en-

tre 800 e 900. Vários ministérios e outras entidades credenciam as CT

10 Textos do MT, n.º 1, Intervenções do estado em empresas, MT, Lisboa, 1976.

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dessas empresas para o funcionamento corrente e uma boa parte delas

acabou por se transformar em cooperativas de produção nos anos se-

guintes a 1975. Terão contado com cerca de duas a três dezenas de milha-

res de trabalhadores.

No decurso de 1975 a situação política portuguesa extremou-se à volta

de dois projetos políticos que se definiram durante o próprio processo

político, ambos com uma implantação social e geográfica bastante clara.

Existia um campo revolucionário amplo, possivelmente maioritário na

metade sul do País, que de forma confusa defendia um programa de tipo

conselhista ou basista. Agrupava genericamente o PCP e os partidos à

esquerda deste, a classe operária industrial e o proletariado rural alenteja-

no. E havia um campo que chamaremos de democrático (não era contrar-

revolucionário) que dominava claramente o Centro e Norte, agrupando as

camadas médias da sociedade, as tradicionais e as novas, urbanas e rurais,

o que poderíamos chamar o Portugal profundo. Defendia um modelo

democrático-liberal ocidental. Os seus suportes políticos eram o PS e os

partidos à sua direita, o PPD e o CDS, ainda que a extrema direita terro-

rista do MDLP e do ELP e os maoístas do MRPP se situassem neste

campo. E contava com a bênção da hierarquia da Igreja Católica, um

poder com enorme influência e capacidade de mobilização no Centro e

Norte e no âmbito rural.

Os resultados das eleições de abril de 1975 deram a medida do apoio

social de cada projeto. Os comunistas obtiveram uns magros 12,5% dos

votos, muito concentrados no Sul, a que se juntavam os 4% do MDP. O

PS teve uma enorme vitória. Com 38% dos votos era o único partido

verdadeiramente nacional e ganhou em quase todos os núcleos urbanos

do País. O PPD, com 26%, era o primeiro partido em quase todo o Norte

(com exceção do distrito do Porto), mas no Sul era marginal. A participa-

ção foi elevadíssima: mais de 92% dos recenseados.

Com base no veredicto popular e com conflitos laborais como os do

jornal República e da Rádio Renascença, o PS e os seus aliados desen-

volveram uma campanha política tendo o primeiro-ministro Vasco Gon-

çalves como alvo. Em junho os ministros socialistas e os do PPD demiti-

ram-se e o primeiro-ministro formou um novo governo, o quinto

provisório, sem figuras partidárias e com um apoio frio do PCP. Em

meados de agosto as manifestações de rua, a favor e contra Vasco, quase

diárias e multitudinárias, deram o tom da crise do Verão Quente, junto

aos assaltos a sedes comunistas e de outras organizações no Centro e no

Norte.

Foi no meio desta crise política que se configurou o modelo de orga-

nização da classe trabalhadora que se irá desenvolver nos anos seguintes,

seguindo a estratégia política do PCP. Em junho apareceu publicamente

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uma estrutura de coordenação de CT da zona de Lisboa, o Secretariado

Provisório das CT da Cintura Industrial de Lisboa (que usará a sigla CIL),

a assunção plena por parte dos PCP do papel destas estruturas. No outo-

no, no clima prévio ao golpe de novembro, verificaram-se dois conflitos

laborais de dimensão nacional: as greves pelos contratos coletivos da

metalurgia e da construção civil, em outubro e novembro, respetivamente.

Ambos os conflitos, apesar do seu caráter setorial, adquirem uma di-

mensão política inegável. Os metalúrgicos pressionavam para obter um

contrato satisfatório e manifestaram-se maciçamente a 7 de outubro. Os

trabalhadores da construção civil pararam a 12 de novembro e, depois de

manifestações nas capitais de distrito, concentraram-se frente ao parla-

mento na tarde desse dia, impedindo a entrada e saída de pessoas até a

manhã de 14, quando o Governo atendeu às suas reivindicações. Ambas

as mobilizações tiveram uma enorme dimensão e assumiram formas de

luta radicais, que eram comuns no movimento operário à época.

O pronunciamento de 25 de novembro de 1975 restabeleceu a disci-

plina e a hierarquia militares, corroídas nesses últimos meses do processo

revolucionário pela proliferação da auto-organização dos soldados em

comissões e comités. Em pouco mais de 24 horas as tropas que apoiavam

o Governo provisório e os oficiais moderados do “Grupo dos Nove”

neutralizaram uma esquerda militar mais potente na capital, mas carente

de um mando unificado. Não se tratará de um golpe sangrento (de facto, a

ala mais radical do “novembrismo” rejeitará essa moderação). Lisboa foi

colocada em estado de sitio e, sintomaticamente, uma das medidas ime-

diatas do Governo foi o congelamento da contratação coletiva e a suspen-

são de alguns contratos já acordados (como o da construção civil, assina-

do a 14 de novembro, menos de duas semanas antes). A inflação será a

arma mais usual do processo de contrarrevolução que se abria então.

Os acontecimentos de 25 de novembro deixaram uma sensação de or-

fandade junto das camadas militantes, do PCP e da esquerda revolucionária,

e em geral do movimento operário e popular. Todos, o movimento social no

seu conjunto, perderam um braço armado que nos 19 meses do PREC fora

uma cartada determinante. Para o PCP, efectivamente, era o fim do avanço

revolucionário, mas não a certidão de óbito da revolução: a dinâmica entre

povo e forças armadas, teorizada pela cúpula do partido11, partia com o

desaparecimento da ala progressista do MFA derrotada em novembro.

No campo social, 1976 foi, em grande medida, um ano de aguardar

para ver, no qual lentamente se afastava o temor de uma involução pro-

funda e o movimento social, especificamente o sindical, pareceu “aguar-

11 Para uma formulação acabada ver Álvaro Cunhal, A Revolução Portuguesa: o

passado e o futuro Lisboa: Avante!, 1976, pp. 126-181.

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dar para ver” num quadro de conflituosidade muito limitada. Em janeiro

desse ano a Intersindical e a CIL organizaram uma grande concentração

em Lisboa, realizada um dia depois de uma outra convocada por um

Secretariado dos Órgãos da Vontade Popular de influência mais esquer-

dista e que comparativamente resultou numa clara vitória do campo

favorável ao PCP sobre os setores mais radicais. A jornada teve outra

importante dimensão, já que a tendência comunista do movimento operá-

rio conseguia fusionar, sem grandes dificuldades, o movimento sindical

herdado da ditadura com as comissões eleitas em fábricas, as CT. Estas,

que no início do PREC tinham sido criticadas pelos comunistas, assu-

miam agora um papel subsidiário do movimento sindical como canal de

representação paralelo.

Uma parte importante da atividade sindical passou-se neste período na

organização da central sindical e a realização de um congresso que desperta

as expectativas de amplos setores de sindicalistas. As condições de realiza-

ção do congresso sindical de 1975 e o seu resultado tinham sido objeto, já

na altura da sua realização, de fortes controvérsias, e a própria direção da

Intersindical manifestava em 1976 a necessidade de que fosse realizado um

congresso democrático e com a participação de todos os sindicatos.

Nesse quadro, em abril de 1976, uma reunião de direções sindicais,

algumas das quais tinham dado baixa da Intersindical, publicava a “Carta

Aberta”: um documento que manifestava abertura para o diálogo para

manter a unidade sindical e defendia um modelo sindical democrático

que permitisse a organização pública de tendências políticas nos sindica-

tos. A questão do direito de tendência e a paridade nos órgãos organiza-

dores do congresso foram os assuntos centrais de um grande debate

político na sociedade portuguesa12.

O movimento da Carta Aberta (CA) reunia sindicatos que tinham sido

conquistados por listas conotadas com o PS nos meses anteriores, basi-

camente os dos serviços como bancários, seguros, escritórios e comércio

(neste último, a direção “democrática” entrou em crise em 1976 e foi

substituída por uma partidária da Inter). Muitas destas vitórias basearam-

-se em alianças entre o PS e o MRPP. O único sindicato da indústria com

relevância presente era o dos metalúrgicos do distrito de Aveiro. Na CA

participavam outras tendências mais à esquerda (sindicalistas da UDP e

do MES) que, com a aproximação do “Congresso de todos os Sindicatos”

(realizado finalmente em janeiro de 1977), afastaram-se da CA na direção

da Intersindical.

12 Ficou popular uma canção do músico comunista José Barata Moura, O direito de

tendência, na qual ironizava sobre tal direito e a tendência para a direita dos seus

defensores.

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Ao longo de 1976 todo o movimento sindical se submeteu a um deba-

te sobre importantes aspetos da organização e da política sindicais em

todos os âmbitos. A segurança social, a assistência sanitária e a criação

do SNS, a educação, o papel dos trabalhadores nas empresas, a estrutura

sindical, o papel das CT foram discutidos em dezenas de encontros e

seminários preparatórios do congresso em vista. No que se refere à orga-

nização sindical dos trabalhadores destaca-se a opção pela dita “verticali-

zação”13 do movimento sindical: a organização dos trabalhadores por

setor de atividade e não por profissão, e a integração subordinada das CT

dentro do movimento sindical.

A tentativa de acordo entre a Intersindical e a CA para a organização

do congresso terminou numa rutura pela negativa da Intersindical em

aceitar a paridade na comissão organizadora. Na altura, em cerca de 360

sindicatos existentes no País aproximadamente 200 apoiavam a Inter

contra umas dezenas da CA. Na reunião mais concorrida da CA participa-

ram cerca de 60 sindicatos, mas normalmente não eram mais que uns

trinta, e com alguns sindicatos em posições oscilantes.

Finalmente, em janeiro de 1977 celebrou-se em Lisboa o “Congresso

de todos os Sindicatos”, que oficialmente representava 1,7 milhões de

trabalhadores. A unidade sindical mantinha-se, mas só momentaneamen-

te. O PCP aparecia como força muito maioritária nos novos órgãos diri-

gentes (Secretariado e Conselho Nacional), onde estavam presentes

alguns representantes de outras tendências sindicais (PS, MES, UDP,

grupos cristãos). A central passou a denominar-se Confederação Geral

dos Trabalhadores Portugueses – Intersindical Nacional (CGTP-IN),

tentando criar alguma ligação histórica com a tradição da CGT e do

movimento operário da I República.

Com este resultado no congresso dos sindicatos os socialistas lança-

ram-se num debate sobre a política sindical, polarizado pelo documento

“A questão sindical”, de Maldonado Gonelha14. Enquanto a esquerda do

PS continuou a defender a intervenção na CGTP com vista a conquistar a

maioria da central, a posição de Gonelha era criar uma “central sindical

democrática”, colaborando para isso com a tendência sindical do PSD

(antes PPD). No debate interno impôs-se a visão favorável a uma segunda

central, que será criada em 1978: a União Geral de Trabalhadores

(UGT)15.

13 No sentido de construir grandes sindicatos de indústria, uma aceção surpreendente

pois na vizinha Espanha o movimento sindical de classe era exatamente “horizon-

tal” contra o sindicato franquista, denominado “el vertical”.

14 Ministro de Trabalho nos primeiro e segundo governos de Mário Soares.

15 Sobre a criação e evolução da UGT ver José Maria Brandão de Brito e Cristina

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Em fevereiro de 1977 o Governo de Mário Soares lançava um pacote

de ajustamento face à crítica situação financeira do País. Desvalorizava-

-se o escudo, com imediatos efeitos inflacionários que provocaram o

aumento da conflitualidade social. Em novembro desse ano foi aprovado

o “Pacote 2”, a continuação da austeridade com um topo salarial de 15%,

muito inferior à taxa de inflação, próxima dos 30%. Outras medidas

legislativas acompanhavam o pacote: a lei dos despedimentos, a de

delimitação de setores, a de indemnizações pelas empresas nacionaliza-

das, entre outras, e sobretudo a Lei 77/77, a Lei Barreto ou Lei da (con-

tra) Reforma Agrária. Em novembro de 1977 a CGTP convocou uma

maciça jornada de protesto, que segundo os cálculos da Intersindical

reuniu meio milhão de pessoas nas ruas de Lisboa.

Durante 1975 toda a metade sul do País protagonizou uma profunda

transformação da propriedade agrária, com a ocupação de mais de um

milhão de hectares de terra e a criação de cerca de quinhentas unidades

coletivas de produção. Trata-se de um processo que apenas podemos

esboçar aqui. No verão de 1974 os trabalhadores conquistaram os seus

primeiros contratos coletivos, que foram renovados no outono e incluíam

a garantia de trabalho, com a fixação de contingentes obrigatórios nas

herdades. A falta de cumprimento dessas condições e outras situações

foram consideradas sabotagem económica da parte dos proprietários e

conduziram às primeiras ocupações, que depois recebem cobertura legal

em meados de 1975 com a promulgação da Lei da Reforma Agrária. Nos

campos do Alentejo e do Ribatejo surgiu uma realidade económica e

social nova: explorações agrícolas geridas democraticamente e uma

melhoria geral dos baixos níveis de vida e emprego. A reforma agrária

recebeu um apoio decidido do PCP, que garantiu ao partido uma mar-

cante implantação regional.

O processo contra a Reforma Agrária teve um lugar de destaque na

política de destruição das vitórias sociais da revolução, não tanto pelo seu

peso específico próprio, mas pelo valor simbólico: a conquista da terra

tinha uma dimensão que ia além do número de pessoas mobilizadas ou do

valor económico, a imagem dos tratores carregados de trabalhadores

entrando nas terras sem cultivar foi uma das gravuras mais memoráveis

da revolução. E o temor de um ataque geral à propriedade privada da

terra foi um elemento chave do discurso da direita durante e depois do

processo revolucionário.

Em junho de 1977 foi aprovada a lei 77/77, a nova lei da reforma

agrária, conhecida pelo nome do ministro António Barreto, que sucedera

Rodrigues, A UGT na história do movimento sindical português (1970-1990).

Lisboa, Tinta da China e UGT, 2013.

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ANOS DE BRASA : UMA V ISÃO DO MOVIMENT O OPERÁRIO PORTUGU ÊS NA DÉ CADA… | 97

ao Eng.º Lopes Cardoso no Ministério da Agricultura. A entrega de

reservas e outros bens, as dificuldades e os cortes no financiamento

estatal e uma vasta repressão conduziram em poucos anos à destruição de

boa parte das UCP e à entrega aos antigos proprietários das terras expro-

priadas, em processos cheios de ilegalidades e de violência. No final de

1980 tinham sido devolvidos aos proprietários cerca de 600 000 hectares

de terra, segundo números dos sindicatos.

Entre 1977 e 1980 realizaram-se não menos de cinco greves gerais em

defesa das UCP no Alentejo e uma jornada nacional de apoio à Reforma

Agrária. As intervenções policiais foram quase quotidianas e muito duras,

com uso de helicópteros, cães-polícia e armas de fogo contra manifes-

tantes e trabalhadores. Os acontecimentos em Évora no verão de 1977,

quando da aprovação da Lei Barreto – dois dias de confrontos generaliza-

dos entre população e forças policiais – e a morte de dois trabalhadores

em Montemor na entrega de uma reserva terão sido marcos relevantes

duma violência que se estendeu durante vários anos. Durante uma década

a região do Alentejo viveu um clima de repressão semelhante ao existente

antes do 25 de abril.

No mundo das empresas, do movimento sindical, aprofundou-se um

processo que continuaria nos anos seguintes, marcado pela defesa palmo

a palmo das conquistas alcançadas no processo revolucionário. Se 1976

aparece como um impasse de acalmia é assim pelo contraste com os anos

prévios e posteriores. Há uma tendência global que aponta para o predo-

mínio de conflitos de setor sobre os de empresa, o que nos parece normal

dada a fixação legal de tetos para os aumentos salariais significativa-

mente abaixo da inflação, em 1977, 1978 e 1979.

Em 1978 quase dois milhões de trabalhadores entraram em luta pela

renovação dos seus CCT, conseguindo por vezes romper os tetos. Nesse

ano uma greve de 78 dias na marinha mercante levou à requisição civil de

vários navios, enquanto se sucediam no Governo uma efémera coligação

PS-CDS e gabinetes de iniciativa presidencial até às eleições intercalares

de dezembro de 1979. Em 1978 foi assinado um protocolo de assistência

financeira com o FMI que impôs um endurecimento das medidas de

austeridade aplicadas desde 1977.

Entre junho e setembro de 1977, e segundo números da CGTP, foram

“desintervencionadas” 82 empresas (na sua grande maioria devoluções) –

quando anteriormente houvera apenas 10 desintervenções. Em muitas

dessas empresas desenvolveram-se conflitos muito duros e com recurso

frequente à intervenção policial. Algumas das empresas devolvidas eram

exemplos de verdadeira recuperação da saúde das empresas, caso de

várias corticeiras, como a Pablos e a Mundet. Contra o regresso dos

patrões a Copam está 5 meses paralisada, a L. P. Mendonça mais de dois.

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Na Duarte Ferreira, em importantes empresas da construção civil como a

J. Pimenta, os trabalhadores lutam pelo emprego. Uma nova vaga de

devoluções de empresas acontece em 1979, durante o Governo de Mota

Pinto. O gabinete mais à direita desde o 25 de abril despachou dezenas de

devoluções de terra e desintervenções, como a Corame, a Jacinto e nova-

mente a Duarte Ferreira. Nas empresas públicas, onde os conflitos foram

bastante limitados, os trabalhadores conduziram processos de luta dura e

prolongada, assim como em empresas privadas onde os dirigentes sindi-

cais e membros de CT e outros trabalhadores sofreram perseguições e

agressões físicas frequentes. Em 1978 foi aprovada legislação sobre as

empresas em autogestão, definindo-se vias que permitiam aos antigos

patrões reclamar o seu património ocupado (os processos judiciais multi-

plicar-se-ao…) e a criacao de um Instituto Nacional das Empresas em

Autogestão que, parece-nos, não terá saído nunca do texto legal.

Não podemos apresentar dados globais sobre a conflituosidade laboral,

mas a nossa leitura é a de um clima de combatividade sustentada do movi-

mento operário que chega às greves gerais de 1982. Este recurso tardio a

uma forma de luta elevada, mas recorrente nos países vizinhos condiciona

o seu sucesso, e é precedida por uma longa e dura luta de mais de três

meses no setor têxtil marcada pela divisão sindical entre CGTP e UGT. As

paralisações gerais serão momentos de elevada tensão entre a Intersindical

e uma UGT que é acusada de divisionista, nomeadamente a de 11 de maio,

que é convocada depois da morte de dois trabalhadores da CGTP pela

polícia na noite de 30 de abril para 1 de maio no Porto, quando militantes

das duas centrais disputavam o espaço para a realização do 1.º de Maio. De

qualquer forma, os resultados das duas datas não irão significar uma altera-

ção de forças na sociedade e no movimento sindical. A CGTP consegue

paralisar o aparelho produtivo e mobiliza uma base social limitada, que já

sofreu derrotas pesadas e determinantes nos anos anteriores.

A nova intervenção do FMI em 1983 e o cambiante quadro político

nacional e internacional nos anos seguintes serão elementos novos que

muito pesarão na evolução e na atividade do movimento sindical portu-

guês. Mas isso fica de fora deste breve texto.

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O MOVIMENTO OPERÁRIO NA SETENAVE

Jorge Fontes

Introdução

O texto que aqui se apresenta tem por objeto a movimentação operária

na empresa de construção e reparação naval Setenave, localizada na

Mitrena, em Setúbal. Neste breve resumo, tentar-se-á demonstrar a sua

importância na história das relações laborais em Portugal: do controlo

operário aos “pactos sociais” e à reconversão industrial.

A Setenave é fundada em 27 de Maio de 1971, tendo por principais

acionistas a CUF e a Lisnave, bem como instituições bancárias. O cenário

parecia promissor: existia forte procura de navios superpetroleiros, Portu-

gal não tinha assinado o acordo da OCDE de 1969 que estabelecia a

liberalização completa do setor, previa-se a entrada em funcionamento do

porto de Sines, com capacidade para receber navios até 350 000 t de porte

para abastecimento da refinaria, no chamado projeto dos “3 S” a armado-

ra Soponata transportaria o petróleo de Cabinda para ser refinado em

Sines, em navios construídos na Setenave.

Em 6 de Abril de 1972 iniciam-se as dragagens no rio Sado, dando

origem a uma ilha com a superfície de 1 000 000 m². As condições são

favoráveis: o estuário do Sado atinge 10 km de comprimento e 1,5 km no

seu ponto mais estreito. A península de Tróia e a serra da Arrábida são

proteções naturais, deixando o estaleiro ao abrigo de ventos e marés. A

profundidade média das águas varia entre 8 e 12 metros e as temperaturas

oscilam entre os 10°C no inverno e os 25°C no verão, excelentes condi-

ções para a atividade de construção e reparação naval1.

Contudo, a nova empresa dava os primeiros passos sob o signo da cri-

se mundial de 1973, que influenciará o seu destino: verificar-se-á um

acelerado retraimento nas encomendas de novos navios (especialmente

1 “O estuário do Sado,” Informação Setenave, abril 6, 1978.

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102 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …

petroleiros), a descolonização ajuda a contrair a marinha mercante, os

países do Sudoeste Asiático apostam na indústria naval como pilar do

take off económico (com gigantescos apoios estatais e baixos custos de

força de trabalho), a carteira de encomendas inicial é negociada numa

moeda (escudo) que se desvaloriza.

A inauguração oficial dá-se pouco tempo depois da Revolução dos

Cravos, a 6 de Agosto de 1974, mas só começará a laborar a 16 de Junho

de 1975 com a entrada nos estaleiros do navio Montemuro, da Soponata.

A Setenave na revolucão

O golpe de estado de 25 de Abril de 1974 encontra a Setenave em pe-

ríodo de instalação. Nesse dia, a Administração emite um comunicado em

que “apelava para o respeito às autoridades da nação”, não se referindo,

“prudentemente”, quem era a “autoridade”. Só após o 1.º de Maio “se

começou a sentir que algo estava a mudar”, aparecendo os primeiros

cartazes e panfletos de esquerda2.

Entre maio e junho, o País é atravessado por uma onda de greves. Nas

empresas surgem comissões de trabalhadores (CTs), calcula-se que cerca

de 4000 até outubro3, normalmente eleitas após plenários, abrangendo

todos os trabalhadores da unidade (independentemente da profissão), sob

o princípio da sua revogabilidade, mantendo-se sob forte controlo da

assembleia de onde emanam.

Na Mitrena, a primeira “confrontação” política com a Administração

tem lugar a 13 de maio. Os trabalhadores concentram-se “espontanea-

mente” em frente ao edifício da Escola de Formação, constituem uma

comissão negociadora ad-hoc e entram em greve de duração ilimitada,

com uma Assembleia Geral de Trabalhadores (AGT) a funcionar em

permanência.

Após confluírem as suas reivindicações com as dos trabalhadores da

Lisnave, conseguem que passem a vigorar novas condições, nomeada-

mente: tabela de vencimentos dos 6200$00 até 12 500$00 para pessoal

técnico e administrativo; sendo o salário de 7000$00 o correspondente à

categoria mais baixa para trabalhador adulto, nos contratos coletivos no

setor da produção, eliminação de trabalho ao sábado para horário diurno e

2 Alberto Conceição, António Barros, e José Sardinha, Setenave, História de um

estaleiro 1971-1989 (Lisboa: Colibri, 2016), 148.

3 Peter Robinson, “Workers’ Councils in Portugal, 1974-1975,” in Ours to Master

and to Own: Worker’s Control from the Commune to the present, coord., Immanuel

Ness e Dario Azzellini (Chicago: Haymarket Books, 2011), 264, tradução nossa.

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O MOVIMENTO OPERÁRIO N A S ETENAVE | 103

do 3.º turno, 1 mês de férias com 1 mês de subsídio, 13.º mês, participa-

ção nos resultados4.

A 27 de Maio elege-se o primeiro Conselho de Trabalhadores da Se-

tenave (CTS). Contudo, uma assembleia-geral realizada no Clube Naval

Setubalense destitui este organismo, acusado de “conluio” com a Admi-

nistração, e elege outro conselho, de cunho fortemente anticapitalista.

O segundo CTS (de Julho de 1974 a Maio de 1975) bem como o ter-

ceiro (de Maio a Dezembro de 1975) são dirigidos pela chamada “es-

querda revolucionária”. Portanto, só após o 25 de Novembro de 1975 irá

o PCP dirigir o CTS (bem como todos os restantes órgãos representativos

dos trabalhadores), o que ocorrerá sem descontinuidades até ao término

da empresa – ao contrário do sucedido na Lisnave, cuja CT é ganha pela

UGT em 1986.

Os CTS, durante a revolução portuguesa, centram as suas reivindica-

ções em temáticas anticapitalistas e igualitárias, como a luta pela aproxi-

mação das diversas categorias e redução do leque salarial, congelamento

dos salários mais elevados, inclusão dos subempreiteiros, abolição dos

contratos a prazo e do regime experimental, redução dos privilégios do

pessoal superior. Procuram inserir a mobilização dos trabalhadores da

Mitrena no contexto mais geral da dinâmica revolucionária, em articula-

ção com outras comissões de trabalhadores, moradores e soldados, numa

lógica de estabelecimento de um “poder popular” na projectada nova

sociedade socialista.

O PCP adquire cada vez mais força na Setenave durante o “Verão

Quente”. Ferozmente crítico do papel da “esquerda revolucionária”, esta

corrente afirma-se politicamente pela prioridade dada à exigência de

nacionalização da empresa, o que ocorrerá em 1 de Setembro de 1975

pelas mãos do V Governo Provisório de Vasco Gonçalves – ao contrário

do sucedido na Lisnave, isenta de intervenção estatal devido à sua eleva-

da componente de capital estrangeiro.

O controlo operário na empresa exprime-se em os trabalhadores pos-

suírem níveis muito elevados de informação (por exemplo, sobre os

salários), controle sem resistência de tarefas, reuniões, serviços, pessoal,

produção, setor financeiro, chegando ao controlo da função comercial,

vital na indústria de construção naval. Têm força para recusar as propos-

tas da Administração e impor muitas das suas5.

4 O Administrador-Delegado, Ordem de Serviço nº 21, (Almada, 23 maio 1974),

Centro de Documentação 25 de Abril.

5 Teresa Rosa et al, “Sistemas de Trabalho, Consciência e Ação Operária na Setena-

ve”, (Tese de Dissertação de Licenciatura, ISCTE, 1983), 490.

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A Administração é muito experimentada, tenta sempre comunicar di-

retamente com os trabalhadores, manter canais institucionais de diálogo

abertos, culpa o CTS pela “desorganização” do estaleiro e falta de enco-

mendas, “cola-se” às medidas dos governos provisórios, vistos com

simpatia por uma grande parte da força de trabalho, joga com as divisões

entre os trabalhadores (extrema-esquerda versus PCP), apela ao “patrio-

tismo” e à lógica “produtivista”.

Durante 1974 a Administração preocupa-se sempre em realçar que os

conflitos verificados acarretam “o grave inconveniente de poderem ser

interpretados como traduzindo um clima de relações sociais extrema-

mente deteriorado, o que efetivamente não acontece”6. Mas em abril de

1975, a Administração e o CTS encontram-se incompatibilizados e de-

missionários. E em outubro, no estaleiro já nacionalizado, diretores,

gestores, operativos e o delegado do Governo, demitiram-se ou apresenta-

ram a demissão7. Paira o espectro da militarização da empresa, e os

trabalhadores rejeitam uma proposta de “cogestão”.

No decorrer do golpe do 25 de Novembro, realiza-se uma assembleia

na Setenave e plenários por secções na Lisnave8. O Forte de Almada é

cercado por trabalhadores da Lisnave e Setenave, reclamando armas9.

Pela manhã de dia 27, num plenário na Lisnave com a presença de uma

delegação da Setenave e de soldados do Forte de Almada, o PCP argu-

menta contra qualquer demonstração de força dos trabalhadores. A “es-

querda revolucionária” apela a uma greve, posição rejeitada pela maio-

ria10.

A Setenave nacionalizada

Derrotada a “esquerda militar” com o golpe de 25 de Novembro de

1975, mas cristalizadas uma série de conquistas laborais, no quadro de

uma economia fortemente nacionalizada, as eleições para a nova CTS,

em Janeiro de 1976, oferecem a vitória à lista afecta ao PCP, à frente dos

6 O Administrador-Delegado adjunto, A Todos os Trabalhadores da Setenave,

(Almada, 12 novembro 1974), Centro de Documentação 25 de Abril.

7 O Administrador por parte do Estado. Moura Vicente, Carta aos trabalhadores da

Setenave, (s.l., 6 outubro 1975), Centro de Documentação 25 de Abril.

8 “Setúbal-25 de Novembro, Cronologia dos acontecimentos,” Revolução, dezembro

13, 1975, 6.

9 Rosado da Luz, entrevistado por Raquel Varela, julho 2012.

10 Phil Mailer, Portugal, The impossible revolution? (Londres: Solidarity, 1977),

338, tradução nossa.

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O MOVIMENTO OPERÁRIO N A S ETENAVE | 105

programas apoiados pela UDP e PS. Os comunistas detinham também a

maioria dos delegados sindicais e dirigiam o sindicato mais importante da

empresa, o dos metalúrgicos.

As prioridades da CTS passam a ser: a defesa da nacionalização da

empresa no contexto do sector empresarial do Estado (“irreversível” de

acordo com o artigo 83 da Constituição), os chamados “sectores não

capitalistas” que serviriam de barreira ao avanço da reacção e permiti-

riam, através de uma articulação racional do sector produtivo (nomeada-

mente em conjugação com a reforma agrária), a independência e o desen-

volvimento nacional; a elevação das condições de vida dos trabalhadores;

e a viabilização económica e financeira do estaleiro num mercado mun-

dial em contracção.

Em 1980 laboram 6757 trabalhadores no estaleiro, o que constitui o

pico máximo de ocupação da Mitrena. Os números tinham vindo sempre

a crescer (1974: 2414; 1975: 4007; 1977: 6162; 1979: 6253) mas a partir

desta data a descida será vertiginosa. Registam-se 6087 trabalhadores em

1982, 4841 em 1984, e 2650 em 1989.

A nova legislação das CTs (Lei 46/79), que introduz o método de

Hondt na eleição para este órgão, é contestada tanto pelo PCP como pela

UDP, sendo apoiada pelo PS. Os “unitários” ultrapassam os “imbróglios”

de articulação com as outras correntes, elegendo um secretariado da CT,

que passa a dirigir directamente as negociações com a administração.

Em Dezembro de 1980, a empresa é declarada em situação económica

difícil pelo Governo AD, e em Janeiro de 1981 a estação de desgaseifica-

ção (um dos sectores mais lucrativos) é entregue à Lisnave (privada, com

participação dos Mello). Para agravar os problemas, o presidente do

Conselho de Administração (tido como próximo do MDP/CDE) é afasta-

do, deteriorando-se as relações da CT com a gestão.

Com efeito, o ano de 1981 marca um ponto de inflexão nas relações

laborais no estaleiro. Apesar de as reivindicações terem progressivamente

passado de um carácter qualitativo durante o período revolucionário

(controlo operário, compressão do leque salarial, etc.) para uma dimensão

mais quantitativa (aumentos salariais, prémios, etc.) e de se ter assistido a

uma degradação das conquistas laborais, verificou-se alguma estabilidade

na empresa, possibilitada por um certo clima de optimismo acerca da sua

viabilidade e pelo estabelecimento de canais de comunicação com a

administração, considerados positivos pela CT, que dirigia as suas críticas

mais para a componente externa (Governo) que para a dimensão interna.

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O “Pacto Social” na Setenave

O contexto social é o mais “quente” desde o PREC. A revisão consti-

tucional de 1982 é percebida pela esquerda como um ataque às “con-

quistas de Abril”, a CGTP declara as primeiras duas greves gerais em

Portugal desde 1934 (12 de Fevereiro e 11 de Maio de 1982), começa a

registar-se o drama dos salários em atraso (e o seu cortejo sombrio de

fome e suicídios), e uma carta de José de Mello ao primeiro-ministro

propondo milhares de despedimentos na indústria naval e “a cessão de

exploração da Setenave” inflama ao rubro os ânimos dos trabalhadores11.

Na Setenave procura-se reagir à crise com a introdução de métodos

inovadores, como o jumboizing (alongamento do navio), mas foi o caso

do petroleiro Setebello (S-106) que iria marcar todo o período posterior.

Devido a atrasos na sua entrega, o armador Thyssen queria denunciar o

contrato. Em Janeiro de 1983, os trabalhadores encontravam-se à espera

de receber o salário de Dezembro e o subsídio de férias, pairando sobre o

estaleiro o espectro do encerramento, como chegou a ser noticiado na

comunicação social. No fim do mês, chega-se a um acordo histórico nas

relações de trabalho em Portugal. Pela primeira vez numa empresa públi-

ca, os trabalhadores aceitavam perder direitos a troco da viabilização

económica.

Com efeito, na sequência de plenários sectoriais, a 21 de janeiro reali-

za-se uma AGT na Setenave, com cerca de 5000 trabalhadores, na qual se

aprova um acordo entre o Governo, a administração e os Orgãos Repre-

sentativos dos Trabalhadores (ORTs). Segundo este, o Governo compro-

metia-se a assegurar o funcionamento do estaleiro até ao acabamento do

navio a 31 de agosto12.

Em contrapartida, os trabalhadores comprometem-se a acabar o navio

no prazo, sofrendo um corte de 6% no salário (valores devolvidos após

data de acabamento), abstêm-se de reivindicações de ordem interna e

greves (com exclusão das de âmbito nacional ou sectorial), abdicam de

férias, salvo “casos excecionais”, as escalas de serviço passam a ser

colocadas com uma semana de antecedência (em vez de um mês, embora

em termos práticos tal já acontecesse) e os prémios, subsídios de turno e

horas extras ficam subordinados ao completar de fases de trabalho, rece-

bendo os trabalhadores um bónus caso cumpram antes do prazo13.

11 “AD/Mello querem despedir milhares de trabalhadores,” Pórtico, setembro 17, 1982.

12 “Pacto Social viabiliza construção do «S-106»,” Expresso, janeiro 29, 1983, 14.

13 Compilação extraída de recortes de imprensa dos meses de janeiro e fevereiro de

1983.

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O MOVIMENTO OPERÁRIO N A S ETENAVE | 107

Uma resolução alternativa propõe o repúdio do acordo, pois como “o

Governo afirma haver dinheiro (para tal bastando aprovar o pacote) então

que paguem” e exige o pagamento de salários e desbloqueamento de

verbas para o S-106, sendo largamente rejeitada14.

Segundo a CTS, a “não inviabilização das medidas propostas” é “uma

forma de empenhamento responsável e patriótico dos trabalhadores da

Setenave”, bem como um “desafio consciente e decidido a viabilização

futura da empresa”15.

Para Baião Horta, ministro da Indústria, Energia e Exportação, trata-se

de “uma prova que o diálogo é possível para conseguir o objetivo de

dotar a indústria de capacidade de adaptação”16. Deve “ser tentado em

outras empresas por ser uma forma positiva de abordagem dos seus

problemas”17.

A notícia do acordo na Mitrena ganha destaque na imprensa, salien-

tando-se o ineditismo da solução, alimentando-se a ideia de um pacto

social. Por exemplo, segundo o Diário Popular “pela primeira vez numa

empresa pública, trabalhadores abdicam de direitos para viabilizar a

Setenave”18, o Correio da Manhã refere tratar-se da “primeira vez que em

Portugal se “estabelece um acordo entre Governo e trabalhadores com

vista à viabilização de uma empresa”19, o Expresso escreve que o “Pacto

Social viabiliza construção dos ‘S-106’”20, e para o Noticias da Tarde

“pode ser exemplo para outras empresas”21.

O S-106 é terminado antes do prazo previsto. Em conferência de im-

prensa, os ORTs da Setenave asseguram tal só ter sido possível graças ao

“esforço e dedicação dos trabalhadores”, que “pouparam ao país ‘alguns

milhões de contos’”. O Avante! interroga: “Os trabalhadores cumpriram –

e o Governo?”22.

14 “A proposta dos operários revolucionários,” Bandeira Vermelha, janeiro 27, 1983,

12.

15 “Governo e trabalhadores vão viabilizar Setenave,” Correio da Manhã, janeiro 28,

1983, 20.

16 “Pacto Social viabiliza construcao do ‘S-106’”, Ibid.

17 “Setenave pode ser exemplo para outras empresas”, Noticias da Tarde, fevereiro 3,

1983, 7.

18 “Trabalhadores abdicam de direitos para viabilizar Setenave,” Diário Popular,

janeiro 27, 1983, 36.

19 “Governo e trabalhadores vão viabilizar Setenave,” Ibid.

20 “Pacto Social viabiliza construcao do ‘S-106’”, Ibid.

21 “Setenave pode ser exemplo para outras empresas”, Ibid.

22 “Setenave, Os trabalhadores cumpriram – e o Governo?,” Avante!, agosto 18,

1983, 7.

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108 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …

A Administração da Setenave escreve uma carta aos trabalhadores da

empresa, a 29 de agosto, felicitando-os “pela vontade firme e pela sua

ação unida no interesse comum, que levaram à estabilização social, a uma

recuperação de confiança nas suas potencialidades, à melhoria da imagem

externa”. Segundo esta, o acordo de janeiro “garantiu a indispensável paz

laboral, permitiu à Empresa dispor dos recursos financeiros indispensá-

veis à sua laboração”23.

No dia seguinte à estipulada data limite de acabamento do navio, em

reunião de Conselho de Ministros a 1 de setembro, aprova-se uma “reso-

lução que aponta para a redução de boa parte do pessoal da Setenave”. O

Fundo de Desemprego deve garantir os “apoios previstos na lei para os

trabalhadores que venham a ser dispensados”. A empresa fica proibida de

“aceitar encomendas que impliquem esforços financeiros adicionais por

parte do Estado”. Elaborar-se-á um “esquema de dimensionamento da

empresa, que pode eventualmente conduzir à sua desativação progressi-

va”, garantindo-se “condições de operacionalidade” para “uma eventual

retomada do mercado de construção naval”24.

O Expresso faz um resumo: “a Setenave ainda não vai morrer, mas

muita gente, que vive do seu trabalho nos estaleiros, vai passar pela

suspensão forçada. Será certamente o primeiro exemplo de ‘despedi-

mentos’ massivos”25. Com efeito, a resolução de Conselho de Ministros

42/83 de 10 setembro decreta que, num prazo de seis meses, a Setenave

teria de reduzir em mil o número de efetivos, garantindo como indemni-

zação o valor de um mês por cada ano de trabalho mais quatro meses26.

A concertação “permanente”

Num contexto de aguda crise económica, e sob o espectro do regresso

do FMI, começa a discutir-se com cada vez mais insistência na sociedade

portuguesa a necessidade de um “diálogo social” capaz de institucionali-

zar e regular as relações laborais, o pacto social.

A palavra pacto tem origem no latim pactu, ou seja tratado, conven-

ção, ajuste, contrato, combinação, acordo entre duas ou mais pessoas27.

23 “Carta aos Trabalhadores,” Informação Setenave, agosto 29, 1983.

24 “Projeto de Mota Pinto de ‛Servico de Informacões’ aprovado pelo governo,

resolução sobre a Setenave vai reduzir pessoal,” Diário de Lisboa, setembro 2,

1983, 24.

25 “Setenave vai construir para a frota mercante nacional com menos 2 mil trabalha-

dores,” Expresso, setembro 3, 1983, 15.

26 Resolução Conselho Ministros nº 42/83, 10 setembro.

27 Grande Dicionário da Língua Portuguesa, António de Morais Silva, Vol. VII

(Lisboa: Editorial Confluência, 1954), “pacto”, 651.

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O MOVIMENTO OPERÁRIO N A S ETENAVE | 109

Na definição de Barreto, um pacto social é um “acordo à escala nacional,

negociado, periodicamente ou a título excecional, entre o movimento

sindical, as organizações patronais e, eventualmente, o Governo, com o

objetivo de assegurar, durante determinado espaço de tempo ou em

permanência, as condições de uma relativa paz social”, significando a

“aceitação pelas partes de determinada programação económica e social,

a cujos supostos benefícios se sacrificam certos interesses imediatos ou,

possivelmente, até estratégicos”28.

Para Sousa Franco, num “período de grande instabilidade política”

merece “menção uma importante medida inovadora no domínio social,

que foi o acordo de viabilização da Setenave: pela primeira vez se contou

com a participação dos trabalhadores, que se comprometiam aceitando

alguma redução dos seus benefícios sociais em contrapartida da viabiliza-

ção e da manutenção e valorização dos seus postos de trabalho”29, e

segundo Medeiros Ferreira, a “renúncia à greve de empresa pelos traba-

lhadores da Setenave será um símbolo das mutações ocorridas”30.

O Decreto-Lei 74/84 cria o Conselho Permanente de Concertação So-

cial, que toma posse a 20 de março, instituindo-se o primeiro órgão

específico de concertação tripartida, dez anos após o fim da ditadura.

Entre a UGT e os membros do Governo ficam simbolicamente vazias as

três cadeiras da CGTP. Segundo Soares, “os lugares não ocupados ficarão

em aberto” para o caso de a CGTP “se vir forçada a retificar o julgamento

de agora para não ficar isolada e à margem dos debates fundamentais e

das decisões que aqui terão lugar”. A UGT afirma “total disponibilidade

para dialogar e concertar”, e a CIP advoga uma nova revisão da Consti-

tuição, um calendário de desnacionalizações e a revisão das leis económi-

cas e laborais.”31.

28 José Barreto, “Modalidades, condições e perspectivas de um pacto social,” Análise

Social 53 (1978): 81.

29 Sousa Franco, “A Economia” in Portugal 20 anos de democracia, coord. António

Reis (Lisboa: Temas & Debates, 1996), 234.

30 José Medeiros Ferreira, História de Portugal, vol. VIII, Portugal em Transe (1974-

-1985) (Lisboa: Editorial Estampa, 1995), 125.

31 “CIP gostou de Ernâni Lopes e aplaudiu Torres Couto,” Diário de Lisboa, março

21, 1984, 20.

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110 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …

A reestruturação

A Setenave verá a sua gestão privatizada um ano depois, em 1989, três

anos após a entrada de Portugal na CEE (que implicava significativos

constrangimentos à indústria naval nacional) e durante a vigência da

maioria absoluta do PSD de Cavaco Silva. A Solisnor (um consórcio

entre a Lisnave, a Soponata e noruegueses da Barber International,

Wilhelmsen e Platou) passaria a explorar o estaleiro da Mitrena.

Em 1998, os Mello compram a Setenave ao Estado por 5 milhões de

contos32. No ano 2000 o estaleiro da Margueira é desativado, transferin-

do-se a Lisnave para a Mitrena, e o Grupo José de Mello vende-a pelo

valor simbólico de um dólar a dois quadros da empresa, operação com o

apoio do parceiro estratégico Thyssen Krupp33. A “nova Lisnave” subsis-

te com resultados financeiros positivos, sendo líder europeia na reparação

naval e uma das maiores do mundo, empregando cerca de 340 trabalha-

dores efetivos34, com um operário no topo de carreira a ganhar 965,10

euros mensais de salário-base bruto35 e um arquipélago de empresas

subsidiárias empregando cerca de dois mil trabalhadores em regime de

precariedade.

Conclusão

Em modo de conclusão, como esperamos ter deixado patente, o mo-

vimento operário da indústria naval, e na Setenave em concreto, constitui

um excelente exemplo para o estudo das relações laborais em Portugal.

Assim, passada uma primeira fase em que o movimento operário de-

monstra uma dinâmica ofensiva, com generalização do controlo operário,

mas os seus organismos não se conseguem coordenar e unificar, verifica-

-se uma situação de impasse saída do 25 de novembro e consagrada na

Constituição de 1976: nasce o Estado Social português, um pacto social

de facto.

A Setenave, empresa nacionalizada, numa economia dita planificada e

em “transição para o socialismo”, é testemunha exemplar dessa contradi-

ção. Encontrando-se a banca, as armadoras e a maioria dos estaleiros nas

mãos do Estado, apesar de sucessivamente anunciado, nunca se concreti-

32 “Mello compra Setenave,” Público, maio 14, 1998, 36.

33 Alberto Conceição, António Barros, e José Sardinha, 183.

34 Relatório de Gestão e Contas, Lisnave 2009, 29.

35 “Por dentro da Lisnave,” Correio da Manhã, acesso a setembro 2, 2015,

http://www.cmjornal.xl.pt/domingo/detalhe/por-dentro-da-lisnave.html

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O MOVIMENTO OPERÁRIO N A S ETENAVE | 111

zará nenhum plano, e o estaleiro viverá numa asfixia financeira perma-

nente; processo acompanhado por uma recuperação do poder dos Mello,

primeiro no Conselho de Administração da Lisnave, e depois na posse do

setor mais rentável da Mitrena, a Estação de Desgaseificação.

O acordo de viabilização da Setenave, em 1983, é a primeira peça da

montagem do puzzle da concertação social em Portugal, traduzido na

assinatura dos primeiros pactos sociais, que vingam após sérias derrotas

do movimento operário, nomeadamente na indústria naval, que começa a

ser desmantelada no contexto da adesão à CEE, da desnacionalização da

economia e entrega aos privados do setor industrial e produtivo. Se foi

central para a afirmação do neoliberalismo de Thatcher a derrota dos

mineiros, ou para Reagan a vitória sobre os controladores aéreos, talvez

possamos estabelecer a mesma hipótese para Portugal: os chamados

“pactos sociais”, na verdade, são derrotas estratégicas do movimento

operário que em Portugal conduzem ao estabelecimento de um novo

quadro de relações laborais precarizadas.

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A LEI GERAL DA ACUMULAÇÃO CAPITALISTA

E AS RELAÇÕES DE TRABALHO NA ATUALIDADE

Marcelo Badaró Mattos1

Este texto possui um duplo objetivo. Pretende-se discutir o quadro atual

de crescimento e predomínio de um perfil “precário” da classe trabalhadora

ao redor do mundo à luz da formulação da “lei geral da acumulação capita-

lista” expressa por Marx em O Capital. Assim, procura-se ultrapassar a

aparência superficial de um declínio da classe trabalhadora, frente ao

crescimento do desemprego e do trabalho precário (em suas várias mani-

festações), em direção a uma análise das especificidades do crescimento da

“superpolução relativa” no capitalismo contemporâneo, tendo por referên-

cia o texto de Marx e comentários nele inspirados por parte de autores mais

recentes. Por outro lado, a discussão do Capítulo XXIII d’O Capital2 nos

serve como uma excelente ilustração sobre o método de Marx.

Iniciaremos com a discussão sobre o texto de Marx, procurando desta-

car essa dupla dimensão dos objetivos do texto, ao que se seguirá uma

recuperação de algumas informações sobre o perfil atual do trabalho no

capitalismo contemporâneo. Ao fim, apresentaremos sumariamente algu-

mas interpretações sobre o quadro contemporâneo, para concluir sobre a

pertinência e atualidade da discussão apresentada por Marx em 1867.

1 Professor titular (catedrático) de História do Brasil da Universidade Federal Flumi-

nense. Membro do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Marx e o

Marxismo (NIEP-MARX) da UFF. Este texto, em uma versão menos desenvolvida,

foi apresentado durante o seminário “Marx e o Marxismo 2015”, promovido pelo

NIEP-MARX. 2 Esclarecemos que a numeração dos capítulos de O Capital variou conforme as

próprias edições em vida de Marx e Engels (responsável por duas reedições em

alemão, pela edição em inglês, além da publicação dos Livros II e III). Assim, o

Capítulo XXIII das edições brasileiras corresponde à discussão sobre a “Lei geral

da acumulação capitalista”.

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I. A “lei geral” e o método de Marx em sua crítica da economia

política

O vigésimo terceiro capítulo de O Capital, “A lei geral da acumulação

capitalista”, é um texto chave para a discussão levada adiante nas últimas

décadas sobre a classe trabalhadora diante das (re)configurações recentes

da economia capitalista. Mas é também um dos melhores momentos de O

Capital para que compreendamos o método de análise marxista. Para os

que conhecem bem o texto, peço desculpas pela recuperação de muitas

passagens, procedimento que julguei não apenas necessário para os que

não estão familiarizados com O Capital como também importante por

explicitar os aspectos mais valorizados na leitura que aqui proponho.

1. A lei geral

Podemos começar pela própria enunciação daquela que Marx chama

de “lei geral, absoluta, da acumulação capitalista”:

Quanto maiores forem a riqueza social, o capital em funcionamento, o

volume e o vigor de seu crescimento e, portanto, também a grandeza

absoluta do proletariado e a força produtiva de seu trabalho, tanto

maior será o exército industrial de reserva. A força de trabalho dispo-

nível se desenvolve pelas mesmas causas que a força expansiva do ca-

pital. A grandeza proporcional do exército industrial de reserva acom-

panha, pois, o aumento das potências da riqueza. Mas quanto maior

for esse exército de reserva em relação ao exército ativo de trabalha-

dores, tanto maior será a massa da superpopulação consolidada, cuja

miséria está na razão inversa do martírio de seu trabalho. Por fim,

quanto maiores forem as camadas lazarentas da classe trabalhadora e o

exército industrial de reserva, tanto maior será o pauperismo oficial.

Essa é a lei geral, absoluta, da acumulação capitalista. Como todas as

outras leis, ela é modificada, em sua aplicação, por múltiplas circuns-

tâncias, cuja análise não cabe realizar aqui.3

Para chegar a essa formulação, Marx segue um determinado percurso

expositivo. Na primeira parte do capítulo, demonstra a demanda crescente

de força de trabalho para a acumulação de capital, explicando a questão

da composição do capital:

3 Karl Marx, O capital: crítica da economia política, Livro I: o processo de produ-

ção do capital, São Paulo, Boitempo, 2013, pp. 719-720.

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A LE I GERAL DA ACUMU LA ÇÃO CA PITAL IST A E AS RELA ÇÕES DE T R ABALHO… | 115

A composição do capital deve ser considerada em dois sentidos. Sob o

aspecto do valor, ela se determina pela proporção em que o capital se

reparte em capital constante, ou valor dos meios de produção, e capital

variável, ou valor da força de trabalho, a soma total dos salários. Sob o

aspecto da matéria, isto é, do modo como esta funciona no processo de

produção, todo capital se divide em meios de produção e força viva de

trabalho; essa composição é determinada pela proporção entre a massa

dos meios de produção empregados e a quantidade de trabalho exigida

para seu emprego. Chamo a primeira de composição de valor e a se-

gunda, de composição técnica do capital. Entre ambas existe uma es-

treita correlação. Para expressá-la, chamo a composição de valor do

capital, porquanto é determinada pela composição técnica do capital e

reflete suas modificações, de composição orgânica do capital. Onde se

fala simplesmente de composição do capital, entenda-se sempre sua

composição orgânica.4

Porém, se a necessidade de força de trabalho é crescente no processo de

acumulação – “acumulação do capital é, portanto, multiplicação do proleta-

riado”5 –, essa tendência poderia levar a uma situação em que o crescimen-

to da demanda por força de trabalho geraria uma melhoria progressiva das

condições salariais dos trabalhadores e, portanto, de suas condições de

existência sob o capitalismo. Para a maior parte das explicações da econo-

mia política que critica, a regulação dessa tendência seria dada pela própria

dinâmica populacional e a resultante de largo prazo levaria a um equilíbrio

entre oferta e demanda de força de trabalho que garantiria os lucros do

capitalista e um padrão de vida digno para o proletariado. Marx, no entan-

to, explica que a demanda por força de trabalho é crescente quando a

acumulação se dá sob uma composição orgânica do capital constante,

condição que não corresponde à dinâmica real da acumulação capitalista.

Nesta última prevalece a lógica da extração de mais valor, em que

a forca de trabalho é comprada, […] nao para satisfazer, mediante seu

serviço ou produto, às necessidades pessoais do comprador. O objeti-

vo perseguido por este último é a valorização de seu capital, a produ-

ção de mercadorias que contenham mais trabalho do que o que ele pa-

ga, ou seja, que contenham uma parcela de valor que nada custa ao

comprador e que, ainda assim, realiza-se mediante a venda de merca-

dorias. A produção de mais-valor, ou criação de excedente, é a lei ab-

soluta desse modo de produção.6

4 Ibidem, Idem, p. 689.

5 Ibidem, p. 690.

6 Ibidem, p. 695.

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Por isso, a demanda crescente por força de trabalho é contrabalançada

pelo fato de que a acumulação capitalista leva à concentração e centraliza-

ção de capitais, como resultado de um processo de alteração da composição

orgânica do capital, tema da segunda parte do capítulo. Assim, o capítulo

XXIII é também o espaço privilegiado para a discussão dessa questão

central na explicação marxista do processo de acumulação capitalista. No

princípio da explicação de Marx está a discussão do aumento da produtivi-

dade do trabalho – expressa no “volume relativo dos meios de produção

que um trabalhador transforma em produto durante um tempo dado”7 –,

que está relacionada à crescente incorporação de tecnologia ao processo de

produção. Assim, “seja ele condição ou consequência, o volume crescente

dos meios de produção em comparação com a força de trabalho neles

incorporada expressa a produtividade crescente do trabalho”.8

Um reflexo desse processo é o aumento da fração de capital constante

em relação à de capital variável na composição do capital. Marx segue

sua exposição, explicando como, após o ponto de partida posto pelo

processo de “acumulação primitiva” (detalhado no capítulo seguinte), a

concorrência e o sistema de crédito impulsionam a concentração de

capitais em volumes cada vez maiores. Explica também o processo que

leva os detentores de capitais capazes de incrementar a produtividade do

trabalho e obter maiores taxas de mais-valor a seguirem incorporando

fatias de mercado ou propriedade de outras empresas, em um viés de

centralização do capital. Em um parágrafo de síntese, Marx explica:

Essa fragmentação do capital social total em muitos capitais indivi-

duais ou a repulsão mútua entre seus fragmentos é contraposta por sua

atração. Essa já não é a concentração simples, idêntica à acumulação,

de meios de produção e de comando sobre o trabalho. É concentração

de capitais já constituídos, supressão [Aufhebung] de sua independên-

cia individual, expropriação de capitalista por capitalista, conversão de

muitos capitais menores em poucos capitais maiores. Esse processo se

distingue do primeiro pelo fato de pressupor apenas a repartição alte-

rada dos capitais já existentes e em funcionamento, sem que, portanto,

seu terreno de ação esteja limitado pelo crescimento absoluto da ri-

queza social ou pelos limites absolutos da acumulação. Se aqui o capi-

tal cresce nas mãos de um homem até atingir grandes massas, é por-

que acolá ele se perde nas mãos de muitos outros homens. Trata-se da

centralização propriamente dita, que se distingue da acumulação e da

concentração.9

7 Ibidem, p. 698.

8 Ibidem, p. 699.

9 Ibidem, pp. 701-702.

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A LE I GERAL DA ACUMU LA ÇÃO CA PITAL IST A E AS RELA ÇÕES DE T R ABALHO… | 117

Tendo em vista que a elevação da produtividade do trabalho é requisi-

to e, cada vez mais, consequência desse processo, com a centralização

“uma massa menor de trabalho basta para pôr em movimento uma massa

maior de maquinaria e matérias-primas”.10 Uma decorrência necessária

da centralização é, portanto, o decréscimo absoluto da demanda por

trabalho. Esse é o contexto necessário para que Marx explore a seguir, na

terceira parte do capítulo, a questão da “superpopulação relativa” ou

“exército industrial de reserva”.

Após explicar como com “o avanço da acumulação modifica-se […] a

proporção entre as partes constante e variável do capital”, Marx chama a

atenção para o fato de que, “como a demanda de trabalho não é determi-

nada pelo volume do capital total, mas por seu componente variável, ela

decresce progressivamente”. Mas, o próprio processo de acumulação

capitalista acaba por produzir, expandindo-se por novos territórios –

físicos e sociais – uma população trabalhadora adicional, “relativamente

excedente”, “suplementar”, “supranumerária”.11

Essa “superpopulação relativa”, que é “produto necessário” da acumu-

lação, também se constitui em “alavanca” da acumulação capitalista, por

representar um “exército industrial de reserva”, disponível para ser explo-

rado pelo capital, independentemente do aumento populacional.12 A cada

novo setor desbravado pela expansão capitalista ela estará disponível para

produzir mais-valor, na mesma medida que sua abundância garante ao

capital a possibilidade de manter os salários dos efetivamente emprega-

dos em um nível suficientemente baixo para que os processos cíclicos de

variação da taxa de lucro não signifiquem um freio definitivo à acumula-

ção. Ao cabo desse percurso explicativo, Marx estará pronto para avan-

çar, demonstrando que “toda a forma de movimento da indústria moderna

deriva, portanto, da transformação constante de uma parte da população

trabalhadora em mão de obra desempregada ou semiempregada.”13

Nesse ponto do texto, Marx avança uma síntese, introduz o elemento

da conscientização dos trabalhadores sobre a lógica desse processo de

exploração intensificada a que se submetem, e apresenta mais uma crítica

aos economistas políticos em sua incapacidade intrínseca para explicar a

questão da superpopulação relativa. Dada a importância da sequência de

argumentos, vale a pena uma citação mais longa:

10

Ibidem, p. 704. 11

Ibidem, pp. 705-706. 12

Ibidem, p. 707. 13

Ibidem, p. 708.

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O capital age sobre os dois lados ao mesmo tempo. Se, por um lado,

sua acumulação aumenta a demanda de trabalho, por outro, sua “libe-

ração” aumenta a oferta de trabalhadores, ao mesmo tempo que a

pressão dos desocupados obriga os ocupados a pôr mais trabalho em

movimento, fazendo que, até certo ponto, a oferta de trabalho seja in-

dependente da oferta de trabalhadores. O movimento da lei da deman-

da e oferta de trabalho completa, sobre essa base, o despotismo do ca-

pital. Tão logo os trabalhadores desvendam, portanto, o mistério de

como é possível que, na mesma medida em que trabalham mais, pro-

duzem mais riqueza alheia, de como a força produtiva de seu trabalho

pode aumentar ao mesmo tempo que sua função como meio de valori-

zação do capital se torna cada vez mais precária para eles; tão logo

descobrem que o grau de intensidade da concorrência entre eles mes-

mos depende inteiramente da pressão exercida pela superpopulação

relativa; tão logo, portanto, procuram organizar, mediante trades

unions etc., uma cooperação planificada entre empregados e os de-

sempregados com o objetivo de eliminar ou amenizar as consequên-

cias ruinosas que aquela lei natural da produção capitalista acarreta

para sua classe, o capital e seu sicofanta, o economista político, cla-

mam contra a violação da “eterna” e, por assim dizer, “sagrada” lei da

oferta e demanda. Toda solidariedade entre os ocupados e os desocu-

pados perturba, com efeito, a ação “livre” daquela lei.14

A conclusão do parágrafo é particularmente relevante para a discussão

sobre a realidade dos países àquela altura coloniais ou recém-saídos da

situação colonial:

Por outro lado, assim que, nas colônias, por exemplo, surgem cir-

cunstâncias adversas que impedem a criação do exército industrial de

reserva e, com ele, a dependência absoluta da classe trabalhadora em

relação à classe capitalista, o capital, juntamente com seu Sancho Pança

dos lugares-comuns [o economista político], rebela-se contra a lei “sa-

grada” da oferta e demanda e tenta dominá-la por meios coercitivos.15

Ou seja, para o capital, se o suprimento de força de trabalho não pode

ser continuamente abastecido por novas levas de trabalhadores expropria-

dos e proletarizados, como aconteceu em diversas situações de expansão

colonial, então impõe-se a garantia da oferta de braços pela via da coer-

ção: escravidão; trabalho barato por longos anos garantido por contratos

coercitivos; trabalho de condenados criminais, etc.

14

Ibidem, pp. 715-716. 15

Ibidem, p. 716.

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A LE I GERAL DA ACUMU LA ÇÃO CA PITAL IST A E AS RELA ÇÕES DE T R ABALHO… | 119

Na quarta parte do capítulo, antes de enunciar a “lei geral” com a qual

iniciamos esta seção, Marx apresenta sua conhecida taxionomia das

“diferentes formas de existência” da “superpopulação relativa”. São

basicamente três formas: flutuante, latente e estagnada. A primeira forma

corresponderia ao fluxo contínuo de atração e repulsão dos trabalhadores

nos “centros da indústria moderna – fábricas, manufaturas, fundições e

minas, etc.”16 A segunda forma, latente, corresponde à constante disponi-

bilidade de trabalhadores do campo, “liberados” (proletarizados) pelo

avanço da agricultura propriamente capitalista, gerando tanto uma super-

população latente no próprio campo, cujo fluxo para os centros urbanos

acaba por ser – quando possível – uma compulsão fortíssima diante dos

baixíssimos salários e do pauperismo rurais. Por fim, a terceira categoria

– estagnada – é composta pelo setor ativo da classe trabalhadora que

ocupa as ocupações mais irregulares, como o trabalho domiciliar, por

jornada, etc.

Marx acrescenta a essas três formas um “sedimento mais baixo”, que

habita o “pauperismo”. Também o pauperismo é por ele dividido em três

categorias: aptos a trabalhar; órfãos e filhos de indigentes (candidatos ao

exército industrial de reserva); e, em terceiro lugar, os “degradados,

maltrapilhos, incapacitados para o trabalho”. Tais camadas de pauperis-

mo são, entretanto, distintas do lumpemproletariado (categoria que Marx

havia tratado politicamente em sua trilogia sobre a França pós-1848),

aqui apresentado de uma forma mais “ocupacional” como os “vagabun-

dos, delinquentes, prostitutas”.17

Os comentaristas em geral destacam essas taxionomias da “superpo-

pulação relativa” e de seus sedimentos paupers e procuram relacioná-las

a situações concretas do mercado de trabalho capitalista, o que é interes-

sante (e de certa forma também o faremos na sequência deste texto).

Cabe, entretanto, chamar a atenção que Marx não apresenta uma classifi-

cação nem de extratos distintos da classe trabalhadora, nem tampouco de

parcelas homogêneas e estáveis dessa classe. Pelo contrário, destaca que

tais formas (ou experiências, poderíamos dizer) são parte constitutiva da

“existência” – como ressalta no título da seção – da classe, uma existên-

cia dinâmica, em que os trabalhadores individualmente podem viver

várias dessas experiências ao longo de uma vida. Assim, mesmo a forma

estagnada da superpopulação relativa vende a sua força de trabalho (Marx

usa o exemplo do trabalho a domicílio), ainda que irregularmente e por

remunerações muito baixas, e constitui “ao mesmo tempo, um elemento

da classe trabalhadora que se reproduz e se perpetua a si mesmo e partici-

16

Ibidem, p. 716. 17

Ibidem, p. 719.

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120 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …

pa no crescimento total dessa classe numa proporção maior que os demais

elementos”.18

É nesse ponto do capítulo que Marx expõe a “lei geral, absoluta, da

acumulação” já citada e a explica também por uma outra formulação,

plena da linguagem dialética que impregna a forma de exposição em

O Capital:

A lei segundo a qual uma massa cada vez maior de meios de produ-

ção, graças ao progresso da produtividade do trabalho social, pode ser

posta em movimento com um dispêndio progressivamente decrescente

de força humana, é expressa no terreno capitalista – onde não é o tra-

balhador quem emprega os meios de trabalho, mas estes o trabalhador

– da seguinte maneira: quanto maior a força produtiva do trabalho,

tanto maior a pressão dos trabalhadores sobre seus meios de ocupação,

e tanto mais precária, portanto, a condição de existência do assalaria-

do, que consiste na venda da própria força com vistas ao aumento da

riqueza alheia ou à autovalorização do capital. Em sentido capitalista,

portanto, o crescimento dos meios de produção e da produtividade do

trabalho num ritmo mais acelerado do que o da população produtiva

se expressa invertidamente no fato de que a população trabalhadora

sempre cresce mais rapidamente do que a necessidade de valorização

do capital.19

Em todo o texto, e particularmente nesse momento em que discute a

fundo a superpopulação relativa, Marx afirma que os ajustes que o capital

promove para adequar a força de trabalho a suas necessidades resultam na

“miséria de camadas cada vez maiores do exército ativo de trabalhado-

res”.20 E se a “miséria” ali discutida é, indiscutivelmente, uma miséria

absoluta, ela não se anula nas situações em que os salários eventualmente

se elevam, pois sua manifestação como miséria relativa (relacionada aqui

diretamente ao mecanismo da alienação/fetichismo explicado no primeiro

capítulo do livro e às formas de extração da mais valia desenvolvidas nos

capítulos seguintes) é insuperável no interior da lógica da acumulação

capitalista. Assim:

no interior do sistema capitalista, todos os métodos para aumentar a

força produtiva social do trabalho aplicam-se à custa do trabalhador

individual; todos os meios para o desenvolvimento da produção se

convertem em meios de dominação e exploração do produtor, mutilam

18

Ibidem, p. 718. 19

Ibidem, p. 720. 20

Ibidem, p. 720.

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A LE I GERAL DA ACUMU LA ÇÃO CA PITAL IST A E AS RELA ÇÕES DE T R ABALHO… | 121

o trabalhador, fazendo dele um ser parcial, degradam-no à condição de

um apêndice da máquina, aniquilam o conteúdo de seu trabalho ao

transformá-lo num suplício, alienam ao trabalhador as potências espi-

rituais do processo de trabalho na mesma medida em que a tal proces-

so se incorpora a ciência como potência autônoma, desfiguram as

condições nas quais ele trabalha, submetem-no, durante o processo de

trabalho, ao despotismo mais mesquinho e odioso, transformam seu

tempo de vida em tempo de trabalho […]. Mas todos os métodos de

produção do mais-valor são, ao mesmo tempo, métodos de acumula-

ção, e toda expansão da acumulação se torna, em contrapartida, um

meio para o desenvolvimento desses métodos. Segue-se, portanto, que

à medida que o capital é acumulado, a situação do trabalhador, seja

sua remuneração alta ou baixa, tem de piorar.21

A última e mais longa seção do capítulo é dedicada a apresentar “ilus-

trações” da lei geral, a partir da recuperação de um conjunto enorme de

informações sobre a história (especialmente a mais recente, relativamente

ao momento da escrita do livro) das relações de trabalho capitalistas na

Grã-Bretanha. Abordando a Inglaterra, Marx mergulha fundo em relató-

rios de comissões sanitárias, livros de contas do Estado e muitas outras

fontes para demonstrar como os setores mais pauperizados (a superpopu-

lação estagnada, se assim quisermos) da classe trabalhadora vivem em

condições sub-humanas. Mas demonstra também como os setores mais

bem remunerados da classe, em momentos de crise, como a vivida nos

anos imediatamente anteriores à publicação de O Capital, podem também

– perdendo seus empregos (como superpopulação flutuante) – cair na

mais absoluta pobreza. Pobreza que é ainda mais dura entre os trabalha-

dores agrícolas (sempre prontos a ocupar os postos mais mal remunera-

dos do trabalho assalariado, como superpopulação latente).

O ápice das “ilustrações” vem com a recuperação feita por Marx da

situação irlandesa, após a grande fome, em meio aos constantes fluxos de

imigração (especialmente para a Inglaterra e cada vez mais para os EUA)

e diante de um pauperismo extremo da maioria da população. Um quadro

criado e agravado pelo papel da Irlanda como área de expansão da agri-

cultura capitalista sob o influxo dos interesses ingleses. Conforme Marx:

com a queda da massa populacional, subiram continuamente a renda

da terra e os lucros dos arrendatários, embora estes não de maneira tão

constante quanto aquela. A razão é facilmente compreensível. Por um

lado, com a fusão dos arrendamentos e a transformação de lavouras

em pastagens, uma parte maior do produto total se converteu em mais-

21

Ibidem, pp. 720-721.

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-produto. O mais-produto cresceu, embora o produto total, do qual ele

é uma fração, tenha diminuído. Por outro lado, o valor monetário des-

se mais-produto cresceu ainda mais rapidamente do que sua massa,

por causa do aumento que nos últimos vinte anos, e principalmente na

última década, sofreram no mercado inglês os preços da carne, da lã,

etc. […] Ainda que com a massa populacional também tenha diminuí-

do a massa dos meios de produção empregados na agricultura, a massa

de capital nela empregada aumentou, já que uma parte dos meios de

produção antes dispersos foi transformada em capital.22

Como se vê, uma situação que desafia de forma definitiva qualquer

tentativa de explicação/solução da questão irlandesa baseada em cálculos

de crescimento/decréscimo da população, nos moldes dos economistas

políticos. Afinal a Irlanda perdeu, desde os anos 1840, milhões de habi-

tantes, pela fome e pela imigração, que aumentou daí em diante. Trata-se,

nas palavras de Marx, de um “processo como a economia ortodoxa não o

poderia desejar mais formoso para manter em pé seu dogma, segundo o

qual a miséria deriva da superpopulação absoluta e o equilíbrio é restabe-

lecido mediante o despovoamento”. Porém, a imigração, que sempre fez

da Irlanda um acampamento avançado do exército industrial de reserva

para o capitalismo britânico e que agora crescia exponencialmente em

direção aos Estados Unidos, reduzindo significativamente a população

residente no território irlandês, não representou nem prejuízo para o

capital – demandando cada vez menos trabalhadores agrícolas –, nem

para a riqueza do país de uma forma geral. Esteve longe, porém, de

significar uma melhoria das condições de vida dos trabalhadores que lá

permaneceram, estimulando continuamente a migração em massa. A

explicação desenvolvida por Marx combina vários fatores:

Em 1846, a fome liquidou, na Irlanda, mais de um milhão de pessoas,

mas só pobres-diabos. Não acarretou o menor prejuízo à riqueza do

país. O êxodo ocorrido nas duas décadas seguintes, e que ainda conti-

nua a aumentar, não dizimou, como foi o caso na Guerra dos Trinta

Anos, junto com os homens, seus meios de produção. O gênio irlandês

inventou um método totalmente novo para transportar, como por obra

de encantamento, um povo pobre a uma distância de milhares de mi-

lhas do cenário de sua miséria. A cada ano, os emigrantes assentados

nos Estados Unidos enviam dinheiro para casa, meios que possibilitam

a viagem dos que ficaram para trás. Cada tropa que emigra este ano

atrai outra tropa, que emigrará no ano seguinte. Em vez de custar algo

à Irlanda, a emigração constitui, assim, um dos ramos mais rentáveis

22

Ibidem, p. 775.

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de seus negócios de exportação. Ela é, por fim, um processo sis-

temático, que não se limita a furar um buraco transitório na massa po-

pulacional, mas que dela extrai anualmente um número maior de pes-

soas do que aquele reposto pelos nascimentos, de modo que o nível

populacional absoluto cai a cada ano.23

Marx concentrou a maior parte de seu esforço de análise empírica, ao

longo de todo O Capital, sobre o caso inglês, escolhido justamente por

ser o primeiro e, naquela época, mais avançado pólo da expansão capita-

lista em seus moldes industriais. Ao abordar a Irlanda no Capítulo XXIII,

entretanto, acaba por avançar algumas considerações fundamentais para o

entendimento do caráter desigual do avanço do capitalismo em escala

internacional. Uma temática que deveria ter sido objeto mais detido da

escrita de Marx em escritos posteriores, como se observa em seus planos

para escrever, entre outros, os volumes sobre o comércio internacional e

sobre o mercado mundial e as crises.

2. O método de Marx

Cabe agora tomar o capítulo XXIII por outro ângulo e observar o

quanto ele é rico para ilustrar o método de pesquisa e redação de Marx.24

Nele está contida exemplarmente a dinâmica de Marx ao construir sua

análise em contraposição à economia política clássica, da qual partiu e a

qual superou. Seu ponto de partida é o da crítica radical ao capitalismo,

indissociavelmente combinada à crítica e superação da ciência econômica

de sua época. Os economistas anteriores são citados para mostrar até

onde avançaram (vide o tributo prestado a Bernard de Mandeville, “ho-

mem honesto e cérebro lúcido”,25 quando analisa a relação entre a acumu-

lação de capital e a multiplicação do proletariado). Mas também são

constante alvo da ferina mordacidade de Marx, que não se cansa de

apontar os limites de suas análises, neste capítulo particularmente no que

tange à sua tentativa de aplicar uma “lei universal” da população, relacio-

nando o crescimento/controle demográfico à produção e trabalho. Ao

tentarem proceder dessa forma, são incapazes de perceber que não há

“leis universais”, elas são históricas, e o capitalismo possui uma forma

23

Ibidem, pp. 775 e 776. 24

Para análises mais amplas do “método” de Marx, ver José Paulo Netto, Introdução

ao estudo do método de Marx, São Paulo, Expressão Popular, 2011, e Eurelino

Coelho, A dialética na oficina do historiador: ideias arriscadas sobre algumas

questões de método, História e Luta de Classes, n.º 9, Junho de 2010. 25

Ibidem, p. 692.

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própria de responder às oscilações demográficas, sempre em favor da

acumulação e em detrimento dos trabalhadores. Os limites da economia

política para perceber a historicidade do capitalismo seriam decorrentes

especialmente, como Marx demonstra mais de uma vez nesse capítulo, de

seu papel como “Sancho Pança dos lugares comuns” e “sicofanta” do

capital.

No prefácio à segunda edição alemã de O Capital, ao demonstrar a di-

ferença entre seu método dialético e o de Hegel (apesar de assumir o uso

proposital de uma linguagem hegeliana em partes do livro), Marx distin-

gue “o modo de exposição segundo sua forma, do modo de investigação”.

Segundo ele, “a investigação tem que se apropriar da matéria em seus

detalhes, analisar suas diferentes formas de desenvolvimento e rastrear

seu nexo interno. Somente depois de consumado tal trabalho é que se

pode expor adequadamente o movimento real.”26

No capítulo XXIII isso fica muito evidente. A parte final é apresenta-

da como “ilustração” da “lei geral, absoluta, da acumulação”, que como

vimos não é em absoluto a-histórica e, como todas as demais leis apresen-

tadas em O Capital, é uma lei de tendência (podendo, portanto, ser obsta-

da por diversas contratendências). No entanto, o que na exposição apare-

ce ao fim como ilustração por certo foi um ponto importante do percurso

investigativo, que permitiu a Marx chegar a algumas de suas conclusões.

Por isso, o capítulo revela que Marx não teria chegado a suas elabora-

ções mais sofisticadas sem ter passado tantos anos na British Library,

consultando compulsivamente não apenas a bibliografia econômica, mas

também toda e qualquer fonte primária que lhe caísse nas mãos. Em carta

a S. Meyer, datada de 30 de abril de 1867, quando havia acabado de

entregar os originais do Livro I ao seu editor, Marx afirma (em implícita

referência ao capítulo XXIII) que, “ao lado da exposição científica geral,

eu descrevo em grande detalhe, a partir de fontes até agora não utilizadas,

a condição do proletariado agrícola e industrial britânico durante os

últimos 20 anos, do mesmo modo para as condições irlandesas.”27

Revela também porque foi tão importante para Marx postergar ainda

mais a finalização de sua obra para observar melhor a dinâmica da crise

capitalista iniciada em 1866 e mencionada no texto, especialmente por

permitir-lhe desenvolver uma arguta análise (acompanhada de genuína

indignação) a respeito dos efeitos da crise sobre os trabalhadores, inclusi-

ve os de salários relativamente maiores.

26

Ibidem, p. 90. 27

Karl Marx & Frederick Engels, Selected Correspondence, Moscow, Progress,

1965, p. 185.

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O capítulo ajuda na compreensão do “método” de Marx também por

outra razão. Vimos o quanto é importante a crítica de Marx à “lei univer-

sal da população” típica da economia política. A população foi justamen-

te o exemplo que Marx escolheu, alguns anos antes (1857-58), para

introduzir a explicação sobre o método que acreditava ser necessário para

entender a lógica do capital, na famosa Introdução dos manuscritos que

viriam a ser conhecidos como Grundrisse. Na famosa passagem, ressalta:

Parece ser correto começarmos pelo real e pelo concreto, pelo pressu-

posto efetivo e, portanto, no caso da economia, por exemplo, come-

çarmos pela população, que é o fundamento e o sujeito do ato social

de produção como um todo. Considerado de maneira mais rigorosa,

entretanto, isso se mostra falso. A população é uma abstração quando

deixo de fora, por exemplo, as classes das quais é constituída. Essas

classes, por sua vez, são uma palavra vazia se desconheço os elemen-

tos nos quais se baseiam. P. ex., trabalho assalariado, capital, etc. Es-

tes supõem troca, divisão do trabalho, preço, etc. O capital, p. ex., não

é nada sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem o

preço, etc. Por isso se eu começasse pela população, esta seria uma

representação caótica do todo e, por meio de uma determinação mais

precisa, chegaria analiticamente a conceitos cada vez mais simples; do

concreto representado [chegaria] a conceitos abstratos cada vez mais

finos, até que tivesse chegado às determinações mais simples. Daí te-

ria de dar início à viagem de retorno até que finalmente chegasse de

novo à população, mas desta vez não como a representação caótica de

um todo, mas como uma rica totalidade de muitas determinações e re-

lações.28

Mais do que a coincidência do exemplo da população, que nos Grun-

drisse também é utilizado para estabelecer a crítica ao método tradicional

da economia política, o capítulo XXIII ilustra o método de Marx justa-

mente por chegar (após a sua “viagem de retorno”) a uma síntese da

realidade histórica concreta – nesse caso a situação da classe trabalhadora

frente ao processo de acumulação capitalista. No caminho, Marx desen-

volveu um conjunto de abstrações teórico-conceituais – os processos de

concentração e centralização do capital, a lei geral da acumulação, as

formas da superpopulação relativa, etc. – que permitiu-lhe explicar a

dinâmica relacional de tal realidade material. A síntese intelectual, entre-

tanto, não é o ponto de partida, mas a forma de representação intelectual

da “rica totalidade de muitas determinações” que constitui a realidade

28

Karl Marx, Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços de crítica

da economia política, São Paulo, Boitempo/EdUFRJ, 2011, p. 54.

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material. Assim, continuando a citação clássica: “O concreto é concreto

porque é a síntese de múltiplas determinações, portanto, unidade na

diversidade. Por essa razão, o concreto aparece no pensamento como pro-

cesso da síntese, como resultado, não como ponto de partida, não obstan-

te seja o ponto de partida efetivo.”29

II. Trabalho e trabalhadores do mundo hoje, à luz de Marx

Em 1950, apenas 30% da população mundial habitava as cidades. Em

2014, 54% do total de habitantes do mundo vivia nos centros urbanos.30

Tal mudança, aceleradíssima para os padrões históricos da vida humana

na Terra, indica uma intensificação absurda do processo de proletarização

nos últimos anos. Afinal, embora a conversão ao assalariamento cresça

também no campo, a principal razão da migração campo-cidade é a

expropriação completa daqueles que ainda encontravam meios de sobre-

viver principalmente do seu (e de sua família) trabalho agrícola, graças à

propriedade ou posse de pequenos lotes de terra.

A urbanização, como se sabe, é mais antiga e consolidada nos países

que viveram mais cedo o processo de industrialização, no hemisfério

norte, considerados mais “desenvolvidos”, e mais recente e “agressiva”

nos países do hemisfério sul, em que a industrialização é relativamente

tardia e a produção interna de riquezas é menor. Tal diferenciação é fun-

damental para explicar determinados padrões demográficos que se refle-

tem na composição da força de trabalho. No mundo como um todo, o per-

centual da força de trabalho (entendida como os empregados, desempre-

gados à procura de emprego e aqueles que procuram emprego pela pri-

meira vez; e excluídos os trabalhadores não pagos, o trabalho familiar e

os estudantes) no total da população, declinou de 52,1% em 1990 para

50,2% em 2011. Nos países que o Banco Mundial define como de “baixo

rendimento”, entretanto, o percentual da força de trabalho na população é

bem maior e houve um crescimento no mesmo período de 68,5% para

68,7%.31

Dados do Banco Mundial indicam que o número de pessoas emprega-

das no mundo cresceu no período recente. Eram 2.290.000.000 os postos

de trabalho ocupados em 2000 e 3.114.000.000 em 2013.32 Tal cresci-

29

Ibidem, p. 54. 30

Dados consultados em http://esa.un.org/unpd/wup/Highlights/WUP2014-

Highlights. pdf. Último acesso, julho de 2015. 31

Informações disponíveis em http://datatopics.worldbank.org/jobs/topic/

employment. Último acesso, julho de 2015. 32

Ver http://datatopics.worldbank.org/jobs/, consultado em julho de 2015.

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mento, porém, é insuficiente para absorver todos os trabalhadores que

chegam anualmente ao mercado de trabalho em busca do primeiro em-

prego, 40 milhões por ano, segundo a Organização Internacional do Tra-

balho (OIT),33 além daqueles que estão desempregados.

Segundo o Banco Mundial, em 2013, como vimos, mais de 3 bilhões34

de pessoas eram empregadas, “mas a natureza de seus empregos varia

fortemente.” Dessas, 1,65 bilhões recebiam salários regulares, outros 1,5

bilhões trabalhavam na agricultura e em pequenas empresas familiares.

“A maioria dos trabalhadores nos países mais pobres estava vinculada a

esses tipos de trabalho”. Além de cerca de 200 milhões de desemprega-

dos, o relatório também aponta para o fato de que aproximadamente 2

bilhões de pessoas (uma parte desproporcional delas composta por jo-

vens) não estão mais procurando emprego.35

De acordo com um relatório da Organização Internacional do Traba-

lho, o total de desempregados no mundo, estimado em 201 milhões de

pessoas em 2014,36 era superior em 30 milhões ao total no início da nova

fase da crise capitalista em 2008. Mais revelador é o dado de que cerca de

50% do emprego no mundo é assalariado, mas em regiões como a África

Sub-Sahariana e o Sul Asiático, esse percentual cai para 20%. Além

disso, estimava-se em menos de 45% o total de assalariados regulares,

sendo quase 60% contratados em empregos temporários ou de tempo

parcial. Nem sempre são apresentadas muitas informações sobre a desi-

gualdade de gênero, que existe atravessando todas as dimensões do

mercado de trabalho, mas cabe ressaltar que entre esses trabalhadores

“precários” localizados pela OIT, as mulheres são maioria significativa.37

Por um lado, o relatório afirma que: “em resumo, o modelo do empre-

go padrão [estável e de tempo integral] é cada vez menos representativo

do mundo do trabalho atual, pois menos de um em cada quatro trabalha-

dores está empregado em condições correspondentes a esse modelo”. Por

outro lado, no que concerne à “produtividade” do trabalho, o mesmo

33

OIT, World employment and social outlook 2015: The changing nature of jobs,

Geneva: ILO, 2015, p. 13.

34 Bilhões = mil milhões segundo a norma portuguesa (bilião é um milhão de mi-

lhões segundo a mesma norma). Nota do revisor. 35

http://data.worldbank.org/topic/labor-and-social-protection, consultado em julho

de 2015. 36

Ver OIT, World employment and social outlook 2015: The changing nature of

jobs, Geneva: ILO, 2015, p. 13. Segundo o Banco Mundial, a taxa de desemprego

global em 2013 era de 6%. Ver http://data.worldbank.org/topic/labor-and-social-

protection, consultado em julho de 2015. 37

OIT, World employment, p. 13.

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documento constata uma “crescente divergência entre os ganhos do traba-

lho e a produtividade, com a última crescendo mais rápido que os salários

na maior parte do mundo”.38

Essa rápida e um tanto caótica recuperação de informações sobre o

trabalho no mundo hoje pode ganhar maior riqueza de análise se sobre ela

refletirmos à luz de algumas abstrações teóricas apresentadas por Marx,

quem sabe apreendendo algumas das múltiplas determinações que com-

põem a realidade concreta do mundo do trabalho atual. Algumas refle-

xões desenvolvidas por outros autores a partir de Marx, podem também

nos ser úteis.

Em 2007 a população urbana do mundo ultrapassou a população rural

e o ritmo de urbanização continua em aceleração vertiginosa. Isso se

explica pelo contínuo processo de expropriações de trabalhadores agríco-

las, transformados em superpopulação relativa “latente”. Refletindo sobre

a configuração atual da lógica do capital – por ela tratada como “capital-

-imperialismo” – Virgínia Fontes destacou a especificidade do peso das

expropriações nessa configuração:

Menos, portanto, que um retorno a formas arcaicas, as novas expro-

priações (somadas à permanência das expropriações primárias) de-

monstram que, para a existência do capital e sua reprodução, é neces-

sário lançar permanentemente a população em condições críticas, de

intensa e exasperada disponibilidade ao mercado.39

Embora fazendo referência mais direta ao capítulo XXIV – sobre a

“assim chamada acumulação primitiva” –, a análise de Fontes é coerente

com todo a análise de O Capital, especialmente naqueles aspectos aqui

destacados a partir do capítulo sobre a “lei geral da acumulação”, como a

análise desenvolvida por Marx sobre a relação necessária entre acumula-

ção capitalista e ampliação do processo de proletarização. A chave de

leitura por ela apresentada, percebendo as novas massas de trabalhadoras

e trabalhadores expropriados como resultado da própria reprodução am-

pliada do capital, é distinta de outras perspectivas, que entendem como

uma novidade recente a realidade de ampliação das expropriações e de

generalização das modalidades de exploração do trabalho associadas à

ideia de precarização.

Diante de constatações, como a já citada da OIT, de que “o modelo do

emprego padrão [estável e de tempo integral] é cada vez menos represen-

tativo do mundo do trabalho atual”, diversas teses de larga circulação

38

Ibidem, p. 13 39

Virgínia Fontes, O Brasil e o capital imperialismo: teoria e história, Rio de

Janeiro, EdUFRJ/EPSJV, 2010, p. 47.

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foram formuladas, nas últimas décadas, em direção a uma reinterpretação

do conceito e do papel da classe trabalhadora. Face às mudanças do

“padrão” de emprego, a partir do final dos anos 1970 surgiram diferentes

interpretações sobre um suposto declínio (ou mesmo fim) do trabalho

assalariado “típico” e da própria classe trabalhadora. Não cabe aqui uma

recuperação detalhada dessas teses, mas basta lembrar formulações como

as de André Gorz que, diante dos processos de automação em larga esca-

la, com declínio acentuado do emprego industrial em vários países de

desenvolvimento capitalista avançado, anunciaram o “adeus ao proletari-

ado”. Segundo Gorz, as novas tecnologias abririam a possibilidade de

uma redução do tempo de trabalho e da construção de uma sociabilidade

plena de significados fora do ambiente do trabalho. Os protagonistas de

uma mudança deste tipo, no entanto, não seriam os trabalhadores, mas

sim “a não classe dos não trabalhadores”.40

Com o passar do tempo foi ficando mais difícil sustentar expectativas

positivas no alcance e nas consequências do processo de reestruturação da

produção capitalista, de tal forma que perspectivas que associavam auto-

mação à redução da jornada do trabalho, fim da centralidade do trabalho

alienado na vida social e semelhantes caíram em descrédito. No entanto, a

ideia de que o capitalismo contemporâneo superava econômico-social-

mente a classe trabalhadora “tradicional” e soterrava qualquer expectativa

em seu papel como sujeito político manteve-se viva em novas formulações.

Como a que afirmou a centralidade de uma nova classe e/ou sujeito políti-

co-social na contemporaneidade, definida como o “precariado”.

Apesar de diferentes matrizes de uso do termo, um de seus mais influ-

entes difusores é Guy Standing, cujo livro mais importante nessa direção

é O precariado: a nova classe perigosa, publicado em 2011.41 Em sua

análise, Standing caracteriza o precariado a partir de um conjunto de inse-

guranças – em relação ao mercado de trabalho, emprego, carreira, condi-

ções de trabalho, rendimentos, aprimoramento profissional e representa-

ção coletiva – que o constituiriam como uma “classe em formação”, ainda

40

André Gorz, Adeus ao proletariado: para além do socialismo, Rio de Janeiro,

Forense Universitária, 1987, pp. 25-26. Apresentei de forma menos apressada e

debati com autores como Gorz e outros que caminharam em direção semelhante

(Robert Kurz e Clauss Offe, por exemplo) em diferentes textos. Destaco Marcelo

Badaró Mattos, E. P. Thompson e a tradição de crítica ativa do materialismo his-

tórico, Rio de Janeiro, Edufrj, 2012 (especialmente no segundo capítulo) e o capí-

tulo “Trabalho, classe trabalhadora e o debate sobre o sujeito histórico ontem e

hoje”, in Renake Neves (org.), Trabalho e emancipação, Rio de Janeiro, Conse-

quência, 2015. (Coleção Niep-Marx, volume I). 41

Guy Standing, The precariat: the new dangerous class, London, Bloomsbury,

2011.

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carente de uma consciência coletiva que a permitisse atuar como “classe

para si”.42

O precariado é, por outro lado, definido fundamentalmente por uma

perspectiva contrastiva, ou seja, pela diferenciação com o que Standing

considera ser o proletariado/classe trabalhadora e com outras categorias

de estratificação social empregadas pelo autor, como a de “salariado”,

entendido como o setor mais estável e protegido por benefícios sociais

entre os assalariados (apresentados por ele como privilégios). Em suas

palavras:

O precariado tem características de classe. É constituído por pessoas

que têm relações de confiança mínimas com o capital ou o Estado,

tornando-o bastante diferente do salariado. E não tem nenhuma das

relações de contrato social do proletariado, em que seguranças traba-

lhistas foram fornecidos em troca de subordinação e lealdade contin-

gente, o acordo não-escrito subjacente aos Estados de bem-estar. Sem

um pacto de confiança ou segurança, em troca de subordinação, o pre-

cariado é distinto em termos de classe. Ele também tem uma posição

de status peculiar, ao não se encaixar perfeitamente nem nas posições

de status mais elevado dos quadros profissionais, nem tampouco na-

quelas das ocupações de classe média qualificada. Uma forma de ex-

pressá-lo é dizer que o precariado tem um “status truncado”. E, como

veremos, a sua estrutura de “rendimento social” não o aproxima per-

feitamente das velhas noções de classe ou ocupação.43

Para além de eventuais críticas à forma como combina matrizes distin-

tas de entendimento do conceito de classe social para apresentar sua

“nova classe”, o problema maior com essa forma de apreensão do quadro

atual me parece residir nas bases da comparação que permitem a Standing

dizer que o precariado é uma “classe distinta” do proletariado.44 Ou seja,

em sua análise, a definição de proletariado – ou classe trabalhadora – está

diretamente associada à “relação de emprego padrão”: contrato estável,

situação próxima ao pleno emprego e garantias de direitos sociais. Acon-

tece que, embora Standing pareça reconhecer em algumas passagens que

42

Ibidem, idem, pp. 7 e 10. 43

Ibidem, idem, p. 8. 44

Para uma análise que faz uso da categoria “precariado”, mas não sustenta a ideia

de que seja uma “classe distinta”, ver Ruy Braga, A política do precariado: do

populismo à hegemonia lulista, São Paulo, Boitempo, 2012. Para Braga, o precari-

ado é “a fração mais mal paga e explorada do proletariado urbano e dos trabalha-

dores agrícolas”, que se diferencia tanto dos “setores profissionais”, mais qualifi-

cados e melhor remunerados da classe trabalhadora, quanto da população

pauperizada e do lumpemproletariado. (p. 96)

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esse modelo vigorou apenas na Europa do pós-guerra, sua análise tende a

ignorar que a “relação de emprego padrão” sob condições capitalistas foi

uma “anomalia histórica”, como define com propriedade Marcel van der

Linden em uma análise que coloca o quadro atual em perspectiva históri-

ca de longa duração e numa mirada não eurocêntrica.45 Uma “anomalia”

restrita no tempo ao período das três décadas que se seguiram ao fim da

2.ª Guerra, confinada no espaço a um grupo de países que viveu o desen-

volvimento capitalista avançado no Norte do Globo e, mesmo nessas

áreas, restrita aos trabalhadores do sexo masculino.46

Vimos que, no século XIX, vivido e estudado por Marx, o emprego

precário representava o padrão. A situação excepcional de alguns países

de desenvolvimento capitalista avançado no pós-guerra decorreu de

condições historicamente específicas da luta de classes, no período que se

seguiu à revolução socialista de 1917 na Rússia. Não se generalizou

jamais pelo mundo todo. Em alguma medida, aliás, só foi possível por

conta das “trocas desiguais” características da dinâmica imperialista. E

tão logo uma nova dinâmica de crise capitalista se instaurou nos anos

1970, tal excepcionalidade começou a ser erodida, processo que se acele-

rou após a derrubada dos regimes do “socialismo realmente existente” do

Leste europeu, a partir de 1989. Uma derrocada precedida, também é

importante destacar, por derrotas importantes de movimentos de resistên-

cia dos trabalhadores organizados do Norte ao ataque às suas conquistas

no plano do “bem estar social” (como o ilustram as derrotas de várias

greves paradigmáticas como as dos controladores aéreos nos EUA, em

1981, e dos mineiros de carvão na Grã-Bretanha, em 1984-1985).

Em um ensaio crítico em relação ao trabalho de Standing e de outras

análises do precariado como “nova classe”, Brian Palmer apresenta uma

caracterização do proletariado que valoriza a expropriação/despossessão.

Em diapasão semelhante ao de Fontes, Palmer apresenta a expropriação –

mais que a condição no mercado de trabalho, a formalização e o setor

econômico do emprego, a renda, ou mesmo a relação salarial – como o

45

Marcel van der Linden, “San Precario: a new inspiration for labor historians”,

Labor: Studies in Working-Class History of the Americas, Volume 11, Issue 1,

2014, p. 19. 46

O predomínio da precariedade em relação à força de trabalho feminino, mesmo

européia nos “anos gloriosos” do pós-guerra, é mencionado por Van der Linden no

artigo citado, e é objeto do estudo de caso sobre as trabalhadoras italianas desen-

volvido por Eloisa Betti, Gender and Precarious Labor in a Historical Perspective.

Italian Women and Precarious Work Between Fordism and Post Fordism, in S.

Mosoetsa, C. Tilly, J. Stillermann (eds.), Precarious Labor in Global Perspective,

Special Issue, International Labor and Working Class History, 89, Spring 2016,

pp. 64-83.

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elemento constante de uma classe que foi desde sempre caracterizada

pela heterogeneidade e precariedade. Segundo ele:

Classe sempre incorporou diferenciação, insegurança e precariedade.

Assim como a precariedade é historicamente inseparável da formação

da classe, existem, invariavelmente, diferenciações que aparentemente

separam aqueles com acesso a empregos estáveis e pagamentos segu-

ros daqueles que precisam se virar para conseguir trabalho e acesso ao

salário. Expropriação, então, é uma experiência altamente heterogê-

nea, já que nenhum indivíduo pode se tornar despossuído precisamen-

te da mesma forma que outro, ou viver esse processo de alienação ma-

terial exatamente como outro o faria. Ainda assim, a despossessão em

geral define a proletarização. É a metafórica marca de Caim estampa-

da em todos os trabalhadores, independentemente do nível de empre-

go, frequência de pagamento, status, condição de assalariado ou grau

de ausência de assalariamento47

.

Palmer cita diretamente análises e passagens do capítulo XXIII para

afirmar que a “despossessão, então, é a base de toda proletarização, a qual

ordena a acumulação”.48 Uma outra análise recente sobre o capitalismo

contemporâneo que procura explicar a dinâmica de precarização das

relações laborais em escala planetária à luz das elaborações do mesmo

capítulo, combinada a uma reflexão sobre o imperialismo, é a de John

Foster e Robert McChesney. Em seu estudo sobre a crise capitalista, mais

especificamente em um capítulo sobre “o exército global de reserva e o

novo imperialismo”, procuram analisar a dinâmica atual da relação entre

expansão do capital multinacional e a “grande mudança global do empre-

go”, com a expansão do trabalho para o mercado no Sul do Globo, em

comparação com a percepção de seu relativo encolhimento ao Norte.49

Segundo esses dois autores, a expansão da força de trabalho global

disponível para o capital nas últimas décadas é resultado, principalmente,

de dois processos:

(1) a descampezinação de uma larga porção da periferia global através

do agronegócio – removendo camponeses da terra, com a consequente

expansão da população das favelas urbanas; e (2) a integração da força

47

Bryan Palmer, “Reconsiderations of class: precariousness as proletarianization”, in

Leo Panitch, Greg Albo & Vivek Chibber (eds) Socialist Register 2014: register-

ing class. London, Merlin Press, 2013, p. 49. 48

Ibidem, idem, p. 47. 49

John Foster & Robert McChesney, The endless crisis: how monopoly-finance

capital produces stagnation and upheaval from the USA to China, New York,

Monthly Review Press, 2012.

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de trabalho dos países do antigo “socialismo realmente existente” à

economia mundial capitalista.50

Apresentando dados que mostram como a participação do Sul global

no total do emprego industrial cresceu dramaticamente de 51% em 1980

para 73% em 2008, os autores tentam explicar a correlação entre a con-

centração do controle corporativo do mercado e dos lucros pelo grande

capital com os “salários abissalmente baixos e a crônica insuficiência de

emprego produtivo” na base do sistema. Seu argumento central, que de-

senvolvem através do arsenal conceitual disponibilizado por Marx – cha-

mando atenção para as indicações de Marx de que sua análise ali desen-

volvida para a Grã-Bretanha poderia ser expandida a um nível mundial,

combinada à preocupação marxista com as trocas desiguais –, é o seguinte:

a chave para o entendimento dessas mudanças no sistema imperialista

(para além da análise das corporacões multinacionais em si (…) é en-

contrada no crescimento do exército global de reserva (…). Nao ape-

nas o crescimento da força de trabalho capitalista global (incluindo o

exército de reserva disponível) alterou radicalmente a posição do tra-

balho do terceiro mundo, mas ele também teve um efeito no trabalho

das economias mais ricas, onde os níveis salariais estão estagnados ou

declinantes por essa e outras razões. Em todo lugar as corporações

multinacionais foram capazes de aplicar uma política de dividir-e-

-dominar, alterando as posições relativas do trabalho e do capital

mundialmente.51

III. Considerações finais

Por certo que a análise de Foster e McChesney, tomando por base a

chamada “lei geral da acumulação”, é um outro ponto de apoio excelente

para avaliarmos os dados antes apresentados sobre a dinâmica global do

emprego e desemprego. O recurso às observações de Marx no capítulo do

capital aqui privilegiado também nos permite explicar de forma mais

satisfatória o aparente descompasso apontado pela OIT através da consta-

tação de uma “crescente divergência entre os ganhos do trabalho e a

produtividade, com a última crescendo mais rápido que os salários na

maior parte do mundo”. Mais que um descompasso, essa é a própria

lógica sistêmica da acumulação capitalista que Marx explica naquele

momento de sua obra.

50

Ibidem, p. 127. 51

Ibidem, p. 129.

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Afinal, conforme destacamos anteriormente, a análise de Marx no ca-

pítulo XXIII permite discernir melhor a contraditória dinâmica através da

qual a acumulação capitalista depende sempre de um processo de inces-

sante transformação de grupos humanos em massas proletarizadas, embo-

ra tenda a gerar uma superpolução relativa também crescente, assim

como um pauperismo (absoluto e/ou relativo) que agrava a chamada

“questão social”.

Porém, a partir de uma perspectiva eurocêntrica, muitas análises to-

mam como regra na definição da classe trabalhadora aquilo que foi a

exceção: as “relações de emprego padrão” vigentes para uma minoria de

países e de trabalhadores (homens) no período dos trinta “anos gloriosos”

do pós-guerra. Com base em definição tão restritiva, decretaram sua

morte e planejaram sua substituição por outros sujeitos. Mais interessan-

te, e este é um dos pontos centrais que estamos defendendo neste texto, é

perceber que aquela “anomalia histórica” em sociedades capitalistas

(retomando a expressão de Van der Linden) só foi possível pela ação das

lutas sociais de altíssimo impacto da classe trabalhadora, operando como

“contratendências” – “múltiplas circunstâncias” – político-sociais à “lei

geral da acumulação”, para resgatar a expressão de Marx ao esclarecer o

sentido histórico e o caráter contraditório dessa, como das demais, “lei”

do capital. A rica demonstração de Marx para o fato de que as formas da

superpopulação relativa não são exteriores à classe trabalhadora, mas sim

parte constitutiva da sua própria “existência” como classe, não foi supera-

da pelos caçadores de “novos sujeitos”.

Poderíamos recorrer à análise da “lei geral” de Marx também para dis-

cutir outros problemas da atual configuração das relações entre trabalho e

capital, como por exemplo o das condições de vida dos trabalhadores. Por

certo, os dados sobre pobreza, fome e favelização, entre tantos outros

sobre as condições de existência do proletariado no mundo atual, desper-

tam tanta revolta quanto despertaram em Marx os registros da sua época e

podem ser, ainda hoje, iluminados pelas análises e “ilustrações” que ele

apresentou a respeito da classe trabalhadora britânica nos anos 1840 a

1860. Tal exercício, entretanto, fugiria aos limites deste texto. Fica aqui

como registro e, quem sabe, projeto.

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ROBÔS E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL:

UTOPIA OU DISTOPIA

Michael Roberts*

1.ª parte

Recentemente escrevi um texto1 sobre o novo livro de Paul Mason, Pós-

-Capitalismo2, em que se defende que a Internet, a automação, os robôs e a

inteligência artificial estão a criar uma nova economia, impossível de

controlar pelos meandros do capitalismo. Segundo Mason, estão em campo

novas forças, que, paulatinamente, substituem a velha luta de classes entre

o capital e o proletariado, tal como Marx a descreveu, por um sistema de

comunidades em rede. Em conjunto, tecnologia e rede conduzir-nos-ão a

uma sociedade pós-capitalista (socialista?), sem freio à vista.

Discordei da premissa de que as novas tecnologias acabariam por

substituir as “velhas formas” de luta de classes. Mas também, já agora, da

ideia de que as crises económicas regulares e recorrentes no capitalismo

acabarão por dissipar-se num cenário de alta produtividade e horários de

trabalho reduzidos, num contexto de “definhamento” do capitalismo.

Mas o debate incentivou-me a olhar para algo que já há algum tempo

queria abordar. Nomeadamente, quais as implicações de facto destas

* Michael Roberts é economista, autor de The Next Recession. Marxism and the

Global Crisis of Capitalism (Haymarket books, 2016), autor do blogue https://

thenextrecession.wordpress.com/. Tradução: Mariana Avelãs para Projecto “Histó-

ria, Saúde e Organização Política e Sindical do Trabalho Portuário em Portugal na

época contemporânea” (Coord: Raquel Varela), FCSH/UNL – Observatório para as

Condições de Vida/Sindicato dos Estivadores, Trabalhadores do Tráfego e Confe-

rentes Marítimos do Centro e Sul de Portugal. http://www.fcsh.unl.pt/ocv/. 1 https://thenextrecession.wordpress.com/2015/07/21/paul-mason-and-postcapitalism-

utopian-or-scientific/ 2 Foi traduzido: https://www.wook.pt/livro/pos-capitalismo-paul-mason/17436032.

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novas tecnologias para o capitalismo. Mais concretamente, estão os robôs

e a inteligência artificial destinados a tomar de assalto o mundo do traba-

lho, e, por conseguinte, a economia, nas próximas gerações, e o que é que

isso significa em termos de empregos e qualidade de vida para as pes-

soas? Será uma utopia socialista (o fim da labuta humana e uma socieda-

de harmoniosa e superabundante) ou uma distopia capitalista (crises mais

intensas e mais conflitos de classe)?

É uma questão importante. Comecemos por apresentar algumas defi-

nições. Por robôs, entendo máquinas que possam substituir a mão-de-obra

humana através de programas informáticos que dirigem o movimento de

partes da máquina de forma a executar tarefas, das mais simples às mais

complexas.

A Federação Internacional de Robótica (FIR) considera robô industrial

qualquer máquina que possa ser programada para executar tarefas físicas

relacionadas com a produção sem necessidade de um controlador huma-

no. Os robôs industriais aumentam drasticamente o campo em que é

possível substituir o trabalho humano, em comparação com as máquinas

mais antigas, uma vez que reduzem a necessidade da intervenção humana

nos processos automatizados. As aplicações mais típicas de robôs indus-

triais incluem a montagem, dosagem, processamento (por exemplo,

cortes) e soldadura – todos predominantes na indústria transformadora –,

para além das colheitas (na agricultura) e da inspeção de equipamento e

estruturas (habitual em centrais elétricas).

A robótica industrial tem o potencial de mudar a transformação, pelo

aumento da precisão e da produtividade, sem assumir custos mais eleva-

dos. A impressão em 3D pode dar origem a um novo ecossistema de

empresas de objetos que possam ser impressos, tornando os produtos do

quotidiano infinitamente personalizáveis. A chamada “Internet das Coi-

sas” oferece a possibilidade de ligar máquinas e equipamento entre e a

várias redes, permitindo que as instâncias de transformação sejam plena-

mente monitorizadas e accionadas remotamente. Nos cuidados de saúde e

ciências da vida, as decisões baseadas em dados – que permitem a anga-

riação e análise de grandes conjuntos de dados – já estão a produzir

alterações em termos de I&D, cuidados clínicos, prognósticos e marke-

ting. A utilização de grandes volumes de dados na saúde tornou possíveis

novos tratamentos e medicamentos altamente personalizados. O ramo das

infraestruturas, que não registou qualquer avanço ao nível da produtivi-

dade laboral nos últimos vinte anos, poderia conhecer francos progressos,

graças, por exemplo, à criação de Sistemas de Transporte Inteligentes3,

3 https://bankunderground.co.uk/2015/06/19/driverless-cars-insurers-cannot-be-

-asleep-atthe-wheel/

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ROBÔS E INTEL I GÊNCIA ART IF IC I A L : UTOPIA OU D ISTOPIA | 137

que aumentariam substancialmente a utilização dos recursos; à introdução

de redes inteligentes, úteis para ajudar a poupar nos custos associados às

infraestruturas elétricas e reduzir a incidência de interrupções de forneci-

mento, sempre tão dispendiosas; e a uma gestão eficiente da procura, que

poderia reduzir drasticamente a utilização energética per capita.

Entre as tecnologias emergentes, onde é que é expectável que se regis-

tem os maiores avanços em termos de contribuição para o aumento de

produtividade? Para o McKinsey Global Institute (MGI) (2013)4, as

“tecnologias que importam” são as que têm maior potencial para produ-

zir impacto e rupturas económicas na próxima década. Fazem parte desta

lista as que progridem mais rapidamente (por exemplo, as ligadas à

sequenciação dos genes); as que têm um amplo alcance (por exemplo, a

Internet móvel); as que têm o potencial para gerar impacto económico

(por exemplo, a robótica avançada) e produzir alterações ao nível do

status quo (por exemplo, a tecnologia de armazenamento de energia). O

MGI calcula que o impacto económico destas tecnologias – causado por

quedas nos preços, difusão generalizada e uma maior eficácia – rondará

um valor entre os 14 e os 33 triliões de dólares por ano em 2025. No topo

da lista estão a Internet móvel, a automação do trabalho intelectual, a

Internet das Coisas e a tecnologia cloud.

Num ensaio brilhante5, John Lanchester resumiu assim a questão:

os computadores tornaram-se incrivelmente mais poderosos, e tão ba-

ratos que, na prática, são ubíquos, e o mesmo pode dizer-se dos sen-

sores que utilizam para monitorizar o mundo físico. O software que

correm também conheceu desenvolvimentos espantosos. Brynjolfsson

e McAfee sustentam que estamos à beira de uma nova revolução in-

dustrial, cujo impacto no mundo igualará o da primeira. Categorias de

trabalho inteiras serão transformadas pelo poder da computação, e, em

particular, pelo impacto dos robôs.

Quando falamos de inteligência artificial (IA), referimo-nos a máqui-

nas que não se limitam a executar instruções pré-programadas, mas que

aprendem novos programas e instruções pela experiência e exposição a

novas situações. Na prática, a IA implica que os robôs que aprendem

aumentam a sua própria inteligência – ao ponto de poderem ser os pró-

prios robôs a produzir mais robôs, cada vez mais inteligentes. Aliás, há

quem diga que, não tarda, a IA vai suplantar a inteligência dos seres

humanos. A isto chama-se “singularidade” – o momento em que os seres

4 http://www.mckinsey.com/business-functions/business-technology/our-insights/

disruptive-technologies 5 http://www.lrb.co.uk/v37/n05/john-lanchester/the-robôs-are-coming

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humanos deixam de ser os entes mais inteligentes no planeta. Além do

mais, é possível que os robôs acabem por desenvolver a forma e os senti-

dos dos seres humanos, tornando-se, desse modo, “sencientes”.

Mas antes de entrar na ciência (ou será ficção científica?), vamos co-

meçar pelo princípio. Se os robôs e a IA vão longe, e depressa, significará

isso uma imensa destruição de empregos ou, em alternativa, novos seto-

res de empregabilidade e a necessidade de trabalhar menos horas?

Num trabalho recente, Graetz e Michaels6 analisaram 14 indústrias

(sobretudo transformadoras, mas também nos ramos da agricultura e dos

serviços públicos) em 17 países desenvolvidos (incluindo países euro-

peus, a Austrália, a Coreia do Sul e os EUA). Concluíram que os robôs

industriais aumentam a produtividade laboral, a produtividade total dos

fatores e os salários; no entanto, embora não tenham registado qualquer

efeito significativo no total de horas trabalhadas, existem provas de que o

emprego dos trabalhadores com qualificações mais baixas seria negativa-

mente afetado, assim como, ainda que em menor escala, os dos trabalha-

dores com qualificações médias. O artigo está disponível para leitura na

íntegra7.

Em suma, os robôs não reduziram a labuta (as horas de trabalho) de

quem tinha trabalho – antes pelo contrário. Mas levaram, de facto, a uma

redução de empregos entre os menos qualificados, afetando até mesmo

quem tinha algumas qualificações. Ou seja: mais horas de trabalho, em

vez de menos horas de trabalho, e mais desemprego.

Dois economistas de Oxford, Carl Benedikt e Michael Osborne8, olha-

ram para o impacto expectável das alterações tecnológicas numa gama

abrangente de 702 atividades profissionais, desde podólogos a guias

turísticos, passando por treinadores de animais, conselheiros económicos

individuais e envernizadores. Chegaram a conclusões assustadoras:

Segundo as nossas previsões, cerca de 47 por cento do emprego nos

EUA está em risco. Apresentaremos provas de como os salários e os

graus de instrução estabelecem uma forte relação negativa com a pro-

babilidade de informatizacao de uma dada profissao… Em vez de re-

duzir a procura de ocupações de média remuneração – que tem sido o

padrão das últimas décadas –, o nosso modelo estima que, num futuro

próximo, a informatização tenderá a substituir principalmente em-

pregos que requerem poucas qualificações e pagam salários baixos.

6 http://voxeu.org/article/robôs-productivity-and-jobs

7 http://cepr.org/active/publications/discussion_papers/dp.php?dpno=10477

8 http://www.oxfordmartin.ox.ac.uk/downloads/academic/The_Future_of_

Employment.pdf

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ROBÔS E INTEL I GÊNCIA ART IF IC I A L : UTOPIA OU D ISTOPIA | 139

Em contraste, as profissões que exigem mais qualificações e oferecem

melhores salários são as menos vulneráveis ao capital informático.

Lanchester resume assim as conclusões a que chegaram: “ou seja, os

pobres serão afetados, os do meio terão uma vida ligeiramente melhor,

em comparação com a presente, e os ricos – surpresa! – continuam fe-

lizes da vida”.

No mesmo ensaio, Lanchester chama a atenção para o facto de o

mundo robótico poder dar origem, não a uma utopia “pós-capitalista”,

mas antes a um “mundo de Piketty”, “em que o capital acentua cada vez

mais o triunfo sobre o trabalho”. E cita, a propósito, os lucros tremendos

obtidos pelas grandes empresas tecnológicas:

Em 1960, a empresa mais rentável na maior economia do mundo era a

General Motors. Em valores atuais, a GM ganhou 7,6 biliões de dóla-

res nesse ano. Além disso, empregava 600 mil pessoas. Hoje, a em-

presa mais rentável emprega 92 600. Ou seja: outrora, 600 mil traba-

lhadores geravam 7,6 biliões de dólares, ao passo que, hoje em dia,

92,600 trabalhadores geram 89,9 biliões. Estamos a falar de um au-

mento de produtividade na casa de 76,65 vezes mais por cada tra-

balhador. Convém não esquecer que tudo isto é lucro puro para os do-

nos da empresa, já depois de os pagamentos aos trabalhadores terem

sido processados. Não se trata apenas de o capital estar a ganhar ao

trabalho: a questão é que já não há sequer disputa. Se fosse um com-

bate de boxe, o árbitro já tinha mandado parar a luta.

Porém, olhar para o lucro das empresas que se apoderam do valor cri-

ado pelo trabalho nos novos setores não é necessariamente um indicador

para a saúde integral do capital. Estará o capitalismo, no seu todo, a ter

um novo sopro de vida? Ao fim e ao cabo, o aumento global do investi-

mento é muito baixo no atual cenário de depressão de longa duração,

assim como o concomitante aumento da produtividade. A propósito,

podem ler os meus artigos sobre produtividade e investimento9.

Os robôs não resolvem as contradições inerentes à acumulação capita-

lista, cuja essência se resume assim: para aumentar os lucros e acumular

mais capital, os capitalistas desejam introduzir máquinas que possam au-

mentar a produtividade de cada trabalhador e reduzir os custos em compara-

ção com a competição. É este o grande papel revolucionário do capitalismo

no desenvolvimento das forças de produção ativas na sociedade.

Mas existe aqui uma contradição. Ao tentar aumentar a produtividade

laboral através da introdução de tecnologia, gera-se um processo de

9 https://thenextrecession.wordpress.com/2015/08/08/the-great-productivity-

slowdown/

Page 140: ROTEIRO - thenextrecession.files.wordpress.com · afirma na entrevista que integra este volume – e que ele, já muito doente, foi cuidadosamente corrigindo, com a seriedade, o cuidado,

140 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …

redução de postos de trabalho, ou seja, as novas tecnologias substituem o

trabalho. E mais produtividade pode gerar mais produção e abrir novos

setores de empregabilidade, o que poderia compensar essa diminuição.

Mas ao longo do tempo, a perspetiva capitalista da redução de postos de

trabalho é que se cria menos valor novo (já que o trabalho é a única forma

de valor) em relação ao custo do capital investido. Existe, portanto, uma

tendência para que a rentabilidade decaia com o aumento da produtivida-

de. Por outro lado, essa situação poderá mesmo levar a uma crise de

produção suficientemente grande para neutralizar – ou mesmo inverter –

os ganhos de produção gerados pelas novas tecnologias. E isto simples-

mente porque, no nosso modo moderno de produção, o investimento e a

produção dependem da rentabilidade do capital.

Portanto, uma economia capitalista cada vez mais dominada pela In-

ternet das Coisas e por robôs implicará crises mais intensas e mais desi-

gualdades, e não qualquer tipo de superabundância ou prosperidade. No

meu próximo artigo, discutirei se um mundo em que robôs constroem

robôs cada vez mais inteligentes – talvez sem qualquer intervenção

laboral humana – significa o fim da lei do valor e das crises recorrentes

do capitalismo.

2.ª parte

No meu primeiro artigo10 sobre robôs e IA abordei o impacto destas

novas tecnologias no futuro do emprego e da produtividade. Chamei a

atenção para a contradição que se gera no seio do modo de produção

capitalista entre o aumento da produtividade alcançado graças às novas

tecnologias e a diminuição da rentabilidade.

Nesta segunda parte proponho olhar para o impacto dos robôs e da IA

pelo prisma da lei do valor no capitalismo, enunciada por Marx. Marx

assume duas premissas-chave para explicar as leis de movimento no

âmbito do capitalismo: 1) que apenas o trabalho humano gera valor e 2)

que, ao longo do tempo, o investimento dos capitalistas em tecnologia e

meios de produção suplantará o investimento em força de trabalho huma-

na. Recorrendo à terminologia de Marx, registar-se-á um aumento na

composição orgânica do capital ao longo dos tempos.

Não temos aqui espaço para apresentar as provas empíricas da última

afirmação, mas podem encontrá-las no livro Crises and Marx Law, de G.

Carchedi11. Em O Capital, Marx explica detalhadamente que a crescente

10

https://thenextrecession.wordpress.com/2015/08/23/robôs-and-ai-utopia-or-

dystopia-part-one/ 11

(crisis and the law for BOOK1-1)

Page 141: ROTEIRO - thenextrecession.files.wordpress.com · afirma na entrevista que integra este volume – e que ele, já muito doente, foi cuidadosamente corrigindo, com a seriedade, o cuidado,

ROBÔS E INTEL I GÊNCIA ART IF IC I A L : UTOPIA OU D ISTOPIA | 141

composição orgânica do capital é uma das principais caraterísticas da

acumulação capitalista. No sistema capitalista, o investimento tem como

único propósito o lucro, e não propriamente aumentar a produção ou a

produtividade. Se não for possível obter lucro suficiente através de mais

horas de trabalho (i.e., mais trabalhadores a trabalhar mais tempo) ou

pelas tentativas de intensificação (velocidade e eficiência – tempo e

movimento), então a produtividade do trabalho (mais valor por hora de

trabalho) só pode ser alcançada através de melhor tecnologia. Por outras

palavras, na terminologia marxista, a composição orgânica do capital (a

quantidade de máquinas e fábricas relativamente ao número de trabalha-

dores) vai aumentar secularmente. Os trabalhadores podem lutar por ficar

com a maior parcela possível do novo valor que criaram, como parte da

sua “compensação”, mas o capitalismo só vai investir no crescimento se

essa componente salarial não crescer ao ponto de causar um declínio na

rentabilidade. Ou seja, a acumulação capitalista implica uma quebra da

parcela laboral ao longo do tempo, ou o que Marx denominaria de uma

taxa crescente de exploração (ou mais-valia).

O “pendor capitalista” da tecnologia é algo continuamente ignorado

pela economia tradicional. Mas, como Branco Milanovic12 assinalou, até

a teoria económica mais ortodoxa incluiria este processo secular na

acumulação capitalista. Nas suas próprias palavras:

Em Marx, a premissa é a de que os processos com mais capital inten-

sivo são sempre mais produtivos. Por isso, os capitalistas tendem,

simplesmente, a acumular mais e mais capital e a substituir o trabalho

(…) o que, num quadro marxista, significa que existem cada vez me-

nos trabalhadores que, obviamente, produzem cada vez menos mais-

-valia (absoluta) e este menor valor acrescentado sobre uma massa

maior de capital significa que a taxa de lucro cai. (…)

O resultado é idêntico se colocarmos este processo marxista num con-

texto neoclássico e assumirmos que a elasticidade da substituição é

inferior a 1. O que acontece é, simplesmente, que r cai a pique a cada

ronda sucessiva de investimento em capital intensivo, até chegar prati-

camente a zero. Como escreve Marx, todos os capitalistas individuais

têm interesse em investir em mais processos de capital intensivo, de

modo a conseguir preços inferiores aos dos outros capitalistas; porém,

quando todos fazem a mesma coisa, a taxa de lucro também desce

universalmente. Ou seja, em última análise, todos se dedicam a invia-

bilizar a sua própria atividade (mais rigorosamente, dedicam-se a

prosseguir uma taxa de lucro nula)

12

http://glineq.blogspot.pt/2015/04/the-rule-of-robôs-in-stiglitz-and-marx.html

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142 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …

Em seguida, Milanovic aborda a tecnologia da robótica:

A receita líquida, no equilíbrio marxista, será baixa, porque apenas o

trabalho gera “novo valor” e, uma vez que serão empregues muito

poucos trabalhadores, esse “novo valor” será baixo (independente-

mente de quão intensos os esforços dos capitalistas para acrescentar

mais-valias). Para visualizar o equilíbrio marxista, imaginem milhares

de robôs a trabalhar numa grande fábrica, com apenas um trabalhador

a controlá-los; assumamos um ano como duração da vida útil dos

robôs, o que faz que seja preciso substituí-los continuamente, incor-

rendo em enormes custos anuais de depreciação e reinvestimento. A

composição do PIB seria deveras interessante: se o total do PIB fosse

100, teríamos consumo = 5, investimento líquido = 5, e depreciação =

90. Seria possível viver num país com um PIB per capita de 500 mil

dólares, dos quais 450 mil corresponderiam a uma depreciação.

É esta a principal contradição inerente à produção capitalista: aumen-

tos de produtividade causam quedas na rentabilidade, que, periodicamen-

te, interrompem o crescimento da produção e da produtividade. Mas o

que é que isso implica, se pensarmos num futuro extremo (ficção científi-

ca?), em que, graças à tecnologia robótica e à IA, são os robôs a fazer

robôs? E a extrair matérias-primas e a fazer tudo e mais alguma coisa? E

a executar todos os serviços, públicos e pessoais, de modo a que o traba-

lho humano deixe de ser necessário em qualquer tipo de produção?

Imaginemos um processo completamente automatizado, em cuja pro-

dução não existem humanos. Foi acrescentado valor, uma vez que as

matérias-primas foram convertidas em mercadorias sem envolvimento

humano, certo? E isso refuta a tese de Marx de que apenas o trabalho

humano pode criar valor, certo?

Há aqui uma grande confusão em torno da dupla natureza do valor no

capitalismo, ou seja, o valor de uso e o valor de troca. Existe valor de uso

(coisas e serviços de que as pessoas necessitam) e valor de troca (o valor

medido em tempo de trabalho humano, apropriado pelos detentores do

capital e concretizado através da venda nos mercados). No modo de produ-

ção capitalista, qualquer mercadoria contém um valor de uso e um valor de

troca, e é impossível ter um sem o outro. Mas é o último que regula os

processos de investimento e produção capitalistas, não o primeiro.

O valor (tal como já foi definido) é específico do capitalismo. Claro

está, o trabalho vivo pode criar coisas e prestar serviços (valores de uso);

mas o valor é a essência do modo capitalista de produção. O capital (ou

os donos dele) controla os meios de produção criados pelo trabalho e só

os colocará a uso para apropriar-se do valor criado por mais trabalho. O

capital, em si mesmo, não produz valor.

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ROBÔS E INTEL I GÊNCIA ART IF IC I A L : UTOPIA OU D ISTOPIA | 143

Porém, no nosso hipotético e abrangente mundo de robôs e IA, a pro-

dutividade (de valores de uso) tenderia para o infinito e a rentabilidade

(valor acrescentado ao valor do capital) para zero. O trabalho humano já

não seria utilizado e explorado pelo capital (os seus donos). Em vez

disso, seriam os robôs a fazer tudo. Já não estamos a falar de capitalismo.

Acho que a analogia mais próxima seria com a economia esclavagista da

Roma antiga.

Na Roma antiga, ao longo de centenas de anos, a economia anterior-

mente dominada pelo pequeno campesinato foi sendo substituída por

escravos na extração mineira, na agricultura, e em todo o tipo de tarefas.

Tal só foi possível porque os espólios das guerras vitoriosas conduzidas

pela república e pelo império romano incluíam um fornecimento maciço de

mão-de-obra escrava. O custo desses escravos para os donos era incrivel-

mente baixo (para começar), quando comparado com os associados a

contratar trabalho livre. Os donos de escravos forçavam os agricultores a

abandonar as suas terras, através de um misto de exigências relacionadas

com dívidas, requisições para a guerra e violência pura. Os antigos campo-

neses, e as respetivas famílias, viam-se obrigados a tornar-se, eles mesmos,

escravos, ou a emigrar para as cidades, onde mal conseguiam sobreviver à

custa de trabalhos e tarefas menores ou da mendicidade. A luta de classes

não acabou – passou a ser entre os aristocratas donos de escravos e os

escravos e entre os aristocratas e a plebe atomizada nas cidades.

Há um filme recente que aborda esta ficção científica moderna – o

Elysium. No filme, os donos dos robôs e da tecnologia moderna construí-

ram para si todo um planeta no espaço, separado da Terra, onde vivem

uma vida de luxo à custa das coisas e serviços disponibilizados pelos

robôs, e defendem esta vida segregada através de exércitos de robôs. O

resto da raça humana continua a viver na Terra, numa pobreza extrema,

rodeados por doença e abjecção – a redução à miséria da classe operária,

que já não trabalha para subsistir.

No mundo do Elysium, a questão mantém-se: quem detém os meios de

produção? Num planeta completamente automatizado, como seriam os

bens e serviços produzidos pelos robôs distribuídos para serem consumi-

dos? Tal dependeria de quem fosse o dono dos robôs – os meios de produ-

ção. Imaginem que, no tal planeta mantido pelos robôs, há 100 sortudos, e

um deles é dono dos melhores robôs e consegue apropriar-se de toda a

produção. Porque haveria de partilhá-la com os outros 99? Esses acabarão

por ser recambiados para a Terra. Ou podem não estar pelos ajustes e lutar

pela apropriação de alguns dos robôs. E assim, como chegou a dizer Marx,

é a mesma merda toda de novo, mas com uma diferença.

Ao fim e ao cabo, tudo dependeria do modo como a humanidade pas-

sasse a ser uma sociedade completamente automatizada. No contexto de

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144 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …

uma revolução socialista e propriedade comum, a distribuição do resulta-

do da produção dos robôs pode ser controlada – a cada um/a, de acordo

com as suas necessidades. Mas se a sociedade funcionar na base da

continuação da propriedade privada dos robôs, nesse caso, a luta de

classes pelo controlo das mais-valias mantém-se.

A questão que muita vez se levanta nesta altura é: a quem é que os do-

nos dos robôs vão vender os seus produtos e serviços para obter lucro? Se

os trabalhadores não trabalham nem recebem qualquer rendimento, então

é garantido que existirá sobreprodução e subconsumo a grande escala,

certo? Ou seja, em última análise, será o subconsumo das massas a derru-

bar o capitalismo?

Mais uma vez, acho que se trata de um mal-entendido. Uma sociedade

robótica deste tipo já não é capitalista; é mais como uma economia escla-

vagista. Os donos dos meios de produção (os robôs) detêm agora uma

economia superabundante em coisas e serviços a custo zero (robôs que

fazem robôs que fazem robôs). E podem limitar-se a consumir. Não

precisam de “fazer lucro”, tal como os aristocratas donos de escravos de

Roma se limitavam a consumir, e não orientavam os seus negócios para o

lucro. Não estaríamos perante uma crise de sobreprodução no sentido

capitalista (relacionado com os lucros), nem de “subconsumo” (falta de

poder de compra ou de procura efetiva de bens nos mercados), exceto no

sentido físico da pobreza.

A economia tradicional continua a olhar para o crescimento dos robôs

no sistema capitalista como a génese de uma crise de subconsumo. Jeffrey

Sachs13 enquadra assim a questão: “Onde é que eu vejo o problema

genérico para toda a sociedade se os seres humanos forem despedidos a

uma escala industrial (fala-se de 47 por cento nos EUA)? Aqui: onde é

que está o mercado para os bens?” Por seu lado, Martin Ford14 afirma que

“não há maneira de prever como poderá o setor privado resolver este

problema. Pura e simplesmente, não há alternativa exceto o Governo

garantir algum mecanismo que garanta rendimento aos consumidores.”

Ford não propõe o socialismo, claro está, mas apenas um mecanismo para

redirecionar os salários perdidos de volta para os “consumidores”; só que

tal esquema acabaria por ameaçar a propriedade e a rentabilidade privadas.

Uma economia robótica poderia significar um mundo de superabun-

dância para todos (é o que Paul Mason sugere em Pós-Capitalismo15). Ou

13

http://prospect.org/article/how-live-happily-robôs 14

http://www.npr.org/sections/alltechconsidered/2015/05/18/407648886/attention-

white-collar-workers-the-robôs-are-coming-for-your-jobs. 15

https://thenextrecession.wordpress.com/2015/07/21/paul-mason-and-postcapitalism-

utopian-or-scientific/

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ROBÔS E INTEL I GÊNCIA ART IF IC I A L : UTOPIA OU D ISTOPIA | 145

apenas um Elysium. O colunista do Financial Times Martin Wolf16 colo-

cou a coisa nestes termos:

A ascensão das máquinas inteligentes é um momento histórico. Impli-

cará muitas mudanças, incluindo ao nível económico. Mas o potencial

é claro: tornarão possível aos seres humanos viver vidas muito melho-

res. Se acabará por ser assim ou não depende do modo como os ga-

nhos são produzidos e distribuídos. É possível que o resultado final

seja uma pequena minoria de grandes vencedores e uma grande quan-

tidade de perdedores. Mas tal desfecho seria uma escolha, não um fa-

do. Não é necessária uma forma de tecnofeudalismo; bem vistas as

coisas, a tecnologia em si não dita destino algum – ao contrário das

instituições económicas e políticas. Se as que temos não produzem os

resultados que desejamos, temos de mudá-las.

É uma “escolha” social, ou, para sermos mais rigorosos, depende do

resultado da luta de classes no capitalismo.

John Lanchester17 vai muito mais direto ao assunto:

Também vale a pena referir o que não está a ser dito acerca deste futu-

ro robotizado. O cenário que estão a descrever-nos – aquele que é su-

posto aceitarmos como inevitável – é o de uma distopia hipercapita-

lista. Há o capital, a sair-se melhor do que nunca; os robôs, a fazer o

trabalho todo; e a grande massa da humanidade, que não faz grande

coisa, mas diverte-se a brincar com as geringoncas… Existe uma al-

ternativa plausível, em que a posse e o controlo dos robôs estão desli-

gados do capital, na sua forma atual. Os robôs libertam a maioria da

humanidade do trabalho, e toda a gente beneficia com o resultado: não

temos de trabalhar em fábricas ou descer às minas ou limpar casas de

banho ou conduzir camiões de longa distância, mas podemos fazer co-

reografias, dedicar-nos à costura ou à jardinagem e contar histórias e

inventar coisas e pensar em como criar um novo universo de desejos.

Este seria o mundo de desejos ilimitados descrito pela economia, mas

distinguindo os desejos satisfeitos pelos humanos do trabalho feito pe-

las nossas máquinas. Parece-me que a única maneira de esse mundo

funcionar é com formas alternativas de propriedade. O motivo, o úni-

co motivo para pensar que este mundo melhor é possível é que o futu-

16

http://www.ft.com/cms/s/e1046e2e-8aae-11e3-9465-00144feab7de,Authorised=

false.html?siteedition=intl&_i_location=http%3A%2F%2Fwww.ft.com%2Fcms%

2Fs%2F0%2Fe1046e2e-8aae-11e3-9465-00144feab7de.html%3Fsiteedition%3

Dintl&_i_referer=&classification=conditional_standard&iab=barrier-

-app#axzz4J20Hpzsd 17

http://www.lrb.co.uk/v37/n05/john-lanchester/the-robôs-are-coming

Page 146: ROTEIRO - thenextrecession.files.wordpress.com · afirma na entrevista que integra este volume – e que ele, já muito doente, foi cuidadosamente corrigindo, com a seriedade, o cuidado,

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ro distópico do capitalismo-mais-robôs pode acabar por revelar-se

demasiado sinistro para ser politicamente viável. Este futuro alternati-

vo seria o tipo de mundo sonhado por William Morris, cheio de seres

humanos empenhados em trabalhos com significado e com remunera-

ções sãs. Só que com robôs. Não deixa de ser significativo em relação

ao atual momento que, quando estamos perante um futuro que tanto

pode vir a assemelhar-se a uma distopia hipercapitalista ou a um para-

íso socialista, a segunda opção não seja sequer mencionada.

Mas regressemos ao aqui e agora. Se o mundo inteiro da tecnologia,

produtos de consumo e serviços pudesse reproduzir-se sem a força de

trabalho viva ter de trabalhar e pudesse fazê-lo através de robôs, então as

coisas e os serviços continuariam a ser produzidos, mas sem criação de

valor (nomeadamente, o lucro ou mais-valias). Segundo Martin Ford,

“quanto mais as máquinas se gerirem a elas mesmas, mais entra em

declínio o valor que o trabalhador médio acrescenta”. Assim sendo, a

acumulação capitalista deixaria de existir muito antes de os robôs toma-

rem conta de tudo, porque a rentabilidade desapareceria sob o peso do

“pendor capitalista”.

A mais importante lei do movimento no capitalismo, como Marx lhe

chamou, entraria em ação: a tendência para a queda da taxa de lucro.

Com o aumento da tecnologia “de pendor capitalista”, a composição

orgânica do capital também aumenta, pelo que o trabalho acaba, por fim,

por gerar um valor insuficiente para garantir a rentabilidade (ie., as mais-

-valias relativas aos custos do capital). Jamais chegaríamos a uma socie-

dade robótica; jamais chegaríamos a uma sociedade sem trabalho, pelo

menos no capitalismo. Haveria crises e explosões sociais muito antes.

E esse é que é o ponto fulcral. Vamos lá ter calma com a economia

dos robôs. No próximo (e último) artigo sobre o assunto, abordarei a

realidade do futuro dos robôs e da IA sob a égide do capitalismo.

3.ª parte

Este é o terceiro e último texto sobre a questão dos robôs e da inteli-

gência artificial (IA). No primeiro texto18 argumentei que, embora os

robôs e a IA sejam, de facto, um passo em frente em termos de mecani-

zação e automatização, não vão resolver a contradição básica inerente ao

modo de produção capitalista, nomeadamente a que existe entre os impul-

sos para aumentar, por um lado, a produção e, por outro, a rentabilidade

do trabalho. Tal como afirmei,

18

https://thenextrecession.wordpress.com/2015/08/23/robôs-and-ai-utopia-or-

dystopia-part-one/

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ROBÔS E INTEL I GÊNCIA ART IF IC I A L : UTOPIA OU D ISTOPIA | 147

ao longo do tempo, a perspetiva capitalista da redução de postos de

trabalho é que se cria menos valor novo (já que o trabalho é a única

forma de valor) em relação ao custo do capital investido. Existe, por-

tanto, uma tendência para que a rentabilidade decaia com o aumento

da produtividade. Por outro lado, essa situação poderá mesmo levar a

uma crise de produção suficientemente grande para neutralizar – ou

mesmo inverter – os ganhos de produção gerados pelas novas tecnolo-

gias. E isto simplesmente porque, no nosso modo moderno de produ-

ção, o investimento e a produção dependem da rentabilidade do capital.

No segundo texto19 olhei com mais atenção para o modo como a lei do

valor, que domina o modo de produção capitalista – orientado para o

lucro – seria afetada pela possibilidade hipotética (ou real) de uma econo-

mia totalmente automatizada, sem qualquer recurso a força de trabalho

humana.

No nosso hipotético e abrangente mundo de robôs e IA, a produtivida-

de (de valores de uso) tenderia para o infinito e a rentabilidade (valor

acrescentado ao valor do capital) para zero. O trabalho humano já não

seria utilizado e explorado pelo capital (os seus donos). Em vez disso,

seriam os robôs a fazer tudo. Já não estamos a falar de capitalismo.

Mas acrescentei que, antes de este estado de exceção (como é denomi-

nado) ser atingido, o capitalismo, enquanto sistema, já teria ruído.

Jamais chegaríamos a uma sociedade robótica; jamais chegaríamos a

uma sociedade sem trabalho – pelo menos no capitalismo. Haveria

crises e explosões sociais muito antes (…) a acumulacao capitalista

deixaria de existir muito antes de os robôs tomarem conta de tudo,

porque a rentabilidade desapareceria sob o peso do “pendor capitalista”.

Nesta terceira parte quero abordar a questão da plausibilidade de um

mundo laboral (e talvez o mundo em si) dominado por robôs altamente

inteligentes, num futuro próximo. Sou da opinião de que, malgrado todo

o otimismo dos impulsionadores dos robôs e da IA, tal não vai acontecer

tão cedo.

Mas não deixa de ser verdade, ainda assim, que o mundo dos robôs

está a crescer, e muito depressa. Na última década, o nível de utilização

da robótica praticamente duplicou nas economias capitalistas de topo. O

Japão e a Coreia são quem tem mais robôs por operário – mais de trezen-

tos para 10 mil trabalhadores. Segue-se a Alemanha, com mais de 250

19

https://thenextrecession.wordpress.com/2015/08/29/robôs-and-ai-utopia-or-

dystopia-part-two/

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por cada dez mil trabalhadores. Os Estados Unidos dispõem de metade

dos robôs por dez mil trabalhadores em comparação com o Japão e a

República da Coreia. Neste período, a taxa de adoção de robôs aumentou

40% no Brasil, 210% na China, 11% na Alemanha, 57% na República da

Coreia, e 41% nos EUA.

Tamanha evolução até já foi descrita como uma “segunda vaga de au-

tomação” – centrada na cognição artificial, sensores baratos, aprendiza-

gem de máquinas, inteligência distribuída. Esta automação profunda irá

atingir todos os setores, desde o trabalho manual ao do conhecimento. E

já está a afetar negativamente o emprego, tal como a mecanização nas

revoluções industriais anteriores.

Andrew McAfee, co-autor, com o seu colega do MIT Erik Brynjolfsson,

de The Second Machine Age, foi uma das personalidades mais destacadas

a descrever a possibilidade de uma “economia de ficção científica”, em

que a proliferação de máquinas inteligentes elimina a necessidade de

muitos postos de trabalho (ver a “Carta Aberta sobre a Economia Digi-

tal”20, na qual McAfee, Brynjolfsson e outros propõem uma nova aborda-

gem para a adaptação às mudanças tecnológicas). Tal transformação

traria imensos benefícios sociais e económicos, afirma, mas também

poderia implicar uma economia de “trabalho ligeiro”.

Por sua vez, Hod Lipson21 afirma que “Há cada vez mais automação

guiada por computador a infiltrar-se em tudo e mais alguma coisa, desde

a produção à tomada de decisões”. O destacado economista da Universi-

dade de Columbia Jeffrey Sachs previu recentemente que a Starbucks

seria em breve tomada por robôs e pela automação.22 Mas existem bons

motivos para acreditar que Sachs e os outros possam estar enganados. O

sucesso da Starbucks nunca teve a ver com servir café de forma mais

barata ou eficiente; e, geralmente, os consumidores preferem as pessoas e

os serviços prestados por humanos. Olhemos para as tão populares lojas

da Apple, sugere Tim O’Reilly, fundador da O’Reilly Media: recheadas

de inúmeros funcionários munidos de Ipads e iPhones, são uma alternati-

va credível a um futuro de retalho robotizado. Afinal, talvez os serviços

automatizados não sejam, necessariamente, o fim do caminho para a

tecnologia dos nossos dias. “É verdade que a tecnologia acabará por

destruir alguns tipos de emprego”, reconhece O’Reilly. “Mas podemos

sempre fazer escolhas em relação ao modo como a usamos.”

E quão próximos estamos, na verdade, de uma situação em que são

robôs dotados de inteligência artificial a fazer o trabalho humano? Os

20

https://www.technologyreview.com/s/538091/open-letter-on-the-digital-economy/ 21

http://www.hodlipson.com 22

https://www.youtube.com/watch?v=w8pEgvzJ7p4

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ROBÔS E INTEL I GÊNCIA ART IF IC I A L : UTOPIA OU D ISTOPIA | 149

investigadores da área salientam que as tarefas mais simples para os

humanos, tais como meter a mão no bolso para tirar uma moeda, são as

mais difíceis para as máquinas. Por exemplo, o robô Roomba23

, da iRobot,

é autónomo, mas a tarefa de aspiração que efetua enquanto se desloca

entre divisões é extraordinariamente simples. Pelo contrário, o Packbot24,

da mesma empresa, é mais caro, foi concebido para desativar bombas,

mas tem de ser teleoperado, ou controlado através de sistemas wireless,

por seres humanos.

A Defense Advanced Research Projects Agency25 [Agência para Pro-

jetos de Investigação Avançada na Defesa], um instituto de investigação

do Pentágono, organizou a competição Robotics Challenge, em Pomona,

na Califórnia, com um prémio de dois milhões de dólares em dinheiro

para o robô que se saísse melhor numa série de tarefas ligadas ao salva-

mento em menos de uma hora. No concurso anterior26, realizado na

Florida em dezembro de 2013, os robôs, que só se aguentavam em pé

graças a correntes, foram insuportavelmente lentos a terminar tarefas

como abrir portas e entrar em divisões, limpar lixo, subir escadas e con-

duzir em pistas de obstáculos (e tiveram de ser instalados nos veículos

por supervisores humanos). Os jornalistas que cobriram o evento recorre-

ram a analogias como “ver a tinta a secar” ou “assistir à erva a crescer”.

Desta vez, os robôs tinham uma hora para completar um conjunto de

oito tarefas, que provavelmente levariam a um humano menos de dez

minutos. E, mesmo assim, falharam em muitas delas. Alguns eram bípe-

des, outros tinham quatro pernas, rodas, ou ambos, mas nenhum era

autónomo. Controlados por operadores humanos, através de redes sem

fios, demonstraram ser completamente incapazes sem a ajuda dos super-

visores humanos. Na verdade, poucos foram os avanços na área da “cog-

nição”, os processos mais “humanos” de alto nível necessários para que

um robô consiga planificar e ter verdadeira autonomia. Por conseguinte,

muitos investigadores começaram a pensar numa alternativa: criar con-

juntos formados por humanos e robôs, numa abordagem que descrevem

como de co-robôs ou “robótica em nuvem27“.

23

http://www.nytimes.com/video/technology/personaltech/100000002663490/

roomba-880-a-clean-sweep.html 24

http://www.nytimes.com/2015/05/07/technology/robotica-navy-tests-limits-

autonomy.html?_r=0 25

http://www.darpa.mil/default.aspx 26

http://www.nytimes.com/2013/12/23/science/japanese-team-dominates-

competition-to-create-rescue-robôs.html?ref=topics 27

http://bits.blogs.nytimes.com/2014/10/25/the-robot-in-the-cloud-a-conversation-

with-ken-goldberg/

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150 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …

Portanto, ainda há muito caminho pela frente. David Graeber enumerou

outros obstáculos à adoção célere de robôs dotados de inteligência artifici-

al, autónomos e completamente automatizados, nomeadamente o próprio

sistema capitalista.28 O financiamento de novas tecnologias não tem o

propósito de suprir as necessidades das pessoas ou reduzir o trabalho árduo

dos seres humanos: limita-se a incidir no que aumenta a rentabilidade. “Há

muito, muito tempo”, afirmou, “quando as pessoas imaginavam o futuro,

pensavam em carros voadores, dispositivos de teletransporte e robôs que as

libertassem da necessidade de trabalhar. Porém, por estranho que pareça,

nenhuma destas coisas se tornou realidade.”

O que aconteceu, de facto, foi que os industriais não aplicaram os fun-

dos de investigação na criação das fábricas robotizadas que toda a gente

antecipava nos anos 60, mas na deslocalização das fábricas para instala-

ções de trabalho intensivo de baixa tecnologia, na China ou no mundo

globalizado. E os governos desviaram fundos para a investigação militar,

projetos de armamento, investigação nas tecnologias de comunicação e

vigilância, ou outras questões do mesmo tipo, sempre relacionadas com a

segurança.

Um dos motivos para ainda não termos fábricas de robôs é o facto de

95% dos fundos de investigação em robótica terem sido canalizados

através do Pentágono, que está mais interessado em desenvolver dro-

nes não tripulados do que em automatizar fábricas de papel.

William Nordhaus, do Departamento de Economia da Universidade de

Yale, tentou calcular o futuro impacto económico da inteligência artificial

e dos robôs (SSRN-id265825929). E considera que o “estado de exceção”

e o respetivo impacto ainda estão muito longe. Os consumidores podem

adorar os seus iPhones, mais não conseguem comer um produto electróni-

co. Do mesmo modo, pelo menos com as tecnologias de hoje em dia, a

produção requer matéria-prima (“coisas”) escassa, na forma de trabalho,

energia e recursos naturais (assim como informação para a maioria dos

bens e serviços). Nordhaus afirma que, de acordo com projeções baseadas

nas tendências da última década, ou mais, levaria cerca de um século até

que as variáveis de crescimento atingissem os níveis associados a um

estado de excepção causado pelo crescimento.

Nordhaus aborda ainda a questão dos robôs fora de controlo – isto é,

controlando o mundo inteiro, incluindo nós.

28

http://thebaffler.com/salvos/of-flying-cars-and-the-declining-rate-of-profit 29

https://thenextrecession.files.wordpress.com/2015/09/ssrn-id2658259.pdf

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ROBÔS E INTEL I GÊNCIA ART IF IC I A L : UTOPIA OU D ISTOPIA | 151

O desenvolvimento da superinteligência levanta uma nova preocupa-

ção, nunca antes contemplada quando do desenvolvimento da espio-

nagem e armamento militares. Deveremos preocupar-nos porque à lista

de adversários serão acrescentadas as próprias máquinas superinteli-

gentes (…) e as superinteligências vão fazer-nos o que os meninos

travessos fazem às moscas?

Ou seja, há uma categoria laboral de humanos que não será facilmente

eliminada: a que se ocupa da defesa dos nossos interesses perante o poder

global da IA:

Gastamos, sistematicamente, cinco por cento da nossa produção na

defesa, e este número pode aumentar em grande escala se formos con-

frontados com inimigos mais potentes, como máquinas superinteli-

gentes. Portanto, há pelo menos uma profissão que sobrevirá na Era da

Exceção.

Tentemos não atirar o bebé pela janela com a água do banho. O que

queremos são avanços tecnológicos que vão ao encontro das necessidades

das pessoas, para ajudar a combater a pobreza e criar uma sociedade de

superabundância sem prejudicar o ambiente e a ecologia do planeta. Se a

IA e a tecnologia robótica nos deixarem mais próximos desse objetivo,

ótimo.

Mas o principal obstáculo a uma sociedade de superabundância e har-

monia, assente em robôs que reduzem o trabalho humano ao mínimo, é o

capital. No relatório Future of Work30 [O Futuro do Trabalho] do ano

passado, a UKCES propôs uma série de cenários, que incluíam tanto a

possibilidade de um longo período de estagnação como um salto produti-

vo impulsionado pela tecnologia. Porém, todos os cenários tinham algo

em comum: para aqueles que não têm altas qualificações, conhecimentos

bem colocados ou riqueza herdada, o futuro prevê-se extremamente

sombrio. O Economist conclui, no final de uma peça de grandes dimen-

sões31 sobre tecnologia e trabalho, publicada no ano passado:

A sociedade pode dar por si a enfrentar um duro teste, se, como parece

plausível, o conhecimento e a inovação trouxerem imensos benefícios

para os mais qualificados, restando aos outros apenas a hipótese de

agarrar as oportunidades, cada vez mais escassas, de emprego a troco

de salários estagnados.

30

https://www.gov.uk/government/publications/jobs-and-skills-in-2030 31

http://www.economist.com/news/briefing/21594264-previous-technological-

innovation-has-always-delivered-more-long-run-employment-not-less?fsrc=

scn/tw/te/pe/ed/

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Ou, na formulação de John Naughton32, “uma economia de conveniên-

cia, [com] legiões de servos coordenados em rede”.

Enquanto os meios de produção (que incluirão robôs) estiverem na

posse de uns quantos, os benefícios de uma sociedade de robôs estarão

confinados a esses poucos. Quem quer que sejam os donos do capital,

serão eles os beneficiados, quando os robôs e a IA, inevitavelmente,

substituírem muitos empregos. E se se mantiver a tendência das últimas

décadas, e as vantagens das novas tecnologias só forem sentidas pelos

mais ricos, então as visões mais distópicas tornar-se-ão realidade. Volto a

citar John Lanchester33:

Parece-me que a única maneira de esse mundo funcionar é com for-

mas alternativas de propriedade. O motivo, o único motivo para pen-

sar que este mundo melhor é possível é que o futuro distópico do capi-

talismo-mais-robôs pode acabar por revelar-se demasiado sinistro para

ser politicamente viável. Este futuro alternativo seria o tipo de mundo

sonhado por William Morris, cheio de seres humanos empenhados em

trabalhos com significado e com remunerações sãs. Só que com robôs.

Não deixa de ser significativo em relação ao atual momento que,

quando estamos perante um futuro que tanto pode vir a assemelhar-se

a uma distopia hipercapitalista ou a um paraíso socialista, a segunda

opção não seja sequer mencionada.

Resta-me, então, resumir as conclusões dos meus artigos sobre robôs e

IA.

• As novas tecnologias dos robôs e da IA aproximam-se a passos lar-

gos. Como toda a tecnologia no capitalismo, tem um “pendor capita-

lista”, e substituirá trabalho humano. Mas, sob o capitalismo, esse

pendor capitalista é aplicado para reduzir custos e aumentar a renta-

bilidade, e não para suprir as necessidades das pessoas.

• Os robôs e a IA intensificarão a contradição no seio do capitalismo

entre o impulso dos capitalistas para aumentar a produtividade do

trabalho através da “mecanização” (robôs) e a tendência subsequen-

te para que a rentabilidade deste investimento para donos do capital

diminua. Esta é a mais importante lei de Marx na economia política

– e torna-se ainda mais relevante no mundo dos robôs. De facto, o

maior obstáculo à existência de um mundo de superabundância é o

próprio capital. Muito antes de chegarmos à “exceção” (se é que al-

32

https://www.theguardian.com/commentisfree/2014/dec/28/uber-amazon-tech-

concierge-economy 33

http://www.lrb.co.uk/v37/n05/john-lanchester/the-robôs-are-coming

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guma vez lá chegaremos) e o trabalho humano ser completamente

substituído, o capitalismo atravessará uma série de crises económi-

cas causadas por mão humana, cada vez mais profundas.

• A tecnologia robótica irá reduzir muitos dos empregos existentes (e

criar alguns novos). É o que já está a acontecer. Mas o estado de ex-

ceção e o mundo dos robôs ainda estão muito, muito longe. E isto

porque a tecnologia da IA não está a ser direcionada pelo capital pa-

ra as áreas mais produtivas, mas para as mais rentáveis (são coisas

diferentes). E os custos associados a “controlar” robôs dotados de

IA aumentarão.

• Uma sociedade superabundante, em que o trabalho humano esteja

reduzido ao mínimo e a pobreza eliminada, não acontecerá a menos

que a posse dos meios de produção deixe de estar sob controlo pri-

vado (oligarquia capitalista) e passe a ser comum (socialismo demo-

crático). É, no fundo, a escolha entre a utopia e a distopia.

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CONSCIÊNCIA OPERÁRIA

E ACUMULAÇÃO CAPITALISTA

Maria Augusta Tavares*

Este artigo tem como objeto o aburguesamento do proletariado. Podia

ter sido publicado há pelo menos duas décadas, quando as transformações

decorrentes da última reestruturação produtiva do capital, ao invés de

fomentar a luta dos trabalhadores por direitos, deixaram-nos impactados,

defensivos e amedrontados em face do poder da microeletrônica, cuja

aplicação aos processos produtivos e à gestão do trabalho não deixavam

dúvidas sobre o desemprego.

Do desemprego à generalização do trabalho precário – manual ou inte-

lectual –, a sociedade caminhou a passos largos. Seria plausível que os

trabalhadores estivessem a lutar, no mínimo, pela manutenção dos direi-

tos conquistados. Contudo, o discurso liberal advogado pelo Estado e

materializado nas relações capitalistas tem sido assumido pela maioria

dos trabalhadores1. Não fosse assim, a legitimidade do capitalismo estaria

em risco. Mas não é o que a realidade demonstra.

Neste trabalho, tentaremos compreender por que, embora as formas de

existência na sociedade capitalista sejam tão desumanas para o trabalha-

dor, este, em vez de agir de forma proletária, assume – não raro – o

método de luta burguês.

A crise do taylorismo-fordismo acentuou de forma perversa a existên-

cia e a oposição entre as classes sociais. O mundo do trabalho é vítima

* Professora reformada da Universidade Federal da Paraíba, investigadora integrada

ao Instituto de História Contemporânea da FCSH da Universidade Nova de Lisboa.

1 Todos os indivíduos que, conforme o pensamento marxista, são trabalhadores

produtivos, trabalhadores improdutivos e também aqueles cujo trabalho não está

diretamente vinculado à dinâmica da acumulação, mas são subordinados às deter-

minações do mercado.

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em todos os aspectos: na intensificação do trabalho, na redução dos

salários diretos e indiretos, na diminuição do emprego, nos trabalhos de

tempo parcial e temporários, nas jornadas de trabalho desregulamentadas,

nos trabalhos sem vínculo empregatício que se traduzem em novos mo-

dos de informalidade, no desemprego e nas diferentes formas de trabalho

precarizado.

Entretanto, por um lado, os defensores do capital preferem interpretar

esse quadro caótico como o fim da sociedade do trabalho e o consequente

desaparecimento das classes sociais, e, por outro, os neo-social-democra-

tas encorajam o proletariado a apoiar a realização de um projeto que

configura um compromisso entre capital e trabalho, minimamente capaz

de obter alguns objetivos parciais e imediatos, mas que põe em risco o

movimento operário, porquanto retarda ainda mais a revolução. Para ser

breve, sugerem alternativas à ordem burguesa dentro dos seus próprios

limites.

A esse respeito, a análise de Marx permanece válida:

O caráter peculiar da social-democracia consiste em exigir instituições

democrático-republicanas, não como meio para abolir ao mesmo tem-

po os dois extremos, capital e trabalho assalariado, mas para atenuar o

seu antagonismo e convertê-lo em harmonia (Marx, 1984, p. 55).

É preocupante que os partidos social-democratas, para onde conver-

gem tantas representações dos trabalhadores, estejam há décadas iludindo

a si próprios e aos seus eleitores no sentido de fazer crer que são capazes

de “no devido tempo” instituir uma reforma estrutural do capital, através

de legislação parlamentar.

Ora, não é difícil perceber que as mudanças tecnológicas não apenas

intensificam a oposição capital/trabalho, como também a competição

intraclasse, uma vez que a luta por emprego contribui para um individua-

lismo exacerbado – perfeitamente compreensível se observado como

decorrente da imediata necessidade de sobrevivência do trabalhador.

Entretanto, os problemas aos quais o trabalhador é submetido obscurecem

a totalidade e o conduzem a negar parte do sistema, sem, no entanto,

conseguir ultrapassá-lo.

As objetivações das suas relações sociais afetam a tal ponto a sua sub-

jetividade, que ele não consegue vislumbrar a verdadeira saída para além

do que lhe parece ser conhecido. A experiência tende a constatar que as

“mudanças” vivenciadas só têm penalizado cada vez mais o trabalhador,

contribuindo para que o desconhecido seja amedrontador. Logo, em lugar

de agir de forma proletária, ele é conduzido a lutar para se manter en-

quanto mercadoria. Em outras palavras, luta para não ser excluído da

sociabilidade capitalista, realizada tão somente através da troca. Não lhe

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CONSCIÊN CIA OPERÁRIA E A CUM ULAÇ Ã O CAPITAL ISTA | 157

ocorre que as estruturas econômicas capitalistas, embora modificadas,

não modificam seu conteúdo, sua essência, seu objetivo.

O sistema de capital é um modo de controle sociometabólico incon-

trolavelmente voltado para a expansão. Dada a determinação mais in-

terna de sua natureza, as funções políticas e reprodutivas devem estar

radicalmente separadas (gerando assim o Estado moderno como a es-

trutura de alienação por excelência), exatamente como a produção e o

controle devem estar radicalmente isolados (Mészáros, 2002, p. 131).

Dada essa natureza, de nada adiantam as reformas. O capitalismo só

pode ser substituído por uma alternativa social metabólica igualmente

universalizante, segundo o mesmo autor.

No que nos interessa, aqui e agora, importa perceber essa permanente

tensão entre o interesse imediato e o objetivo final, entre o momento

isolado e a totalidade, a dificuldade que tem o sujeito de situar-se na sua

classe social, de fazer a passagem da classe-em-si até a classe-para-si.

“Proletários de todos os países, uni-vos!”

É indiscutível a atualidade deste chamamento marxista. Trazê-lo para

o século XXI implica mediações que revelem os reais significados dos

novos contextos econômicos e políticos da sociedade burguesa. Antes

disso, porém, vale explicar por que fazer essa discussão à luz do Mani-

festo Comunista. Afinal, não seria falso dizer que se trata apenas de um

programa político e é comum que tais documentos expressem um conteú-

do utópico, sem possibilidade de realização. Mas esse não é o caso. No

Manifesto “há três níveis constitutivos, distintos ainda que imbricados: a

perspectiva de classe, a análise teórica e a proposta política” (Netto,

1998, p. XLVI). As medidas políticas propostas por Marx e Engels deri-

varam de uma análise teórico-social que continha a possibilidade de

realização. Embora não fossem operários, sua perspectiva sócio-histórica

expressa o ponto de vista da classe operária. O Manifesto “apresenta pela

primeira vez, um projeto sócio-político explícita e organicamente inte-

grado a uma perspectiva de classe e nela embasado” (Idem, p. XX). Tal

perspectiva promove uma ruptura:

A ruptura marx-engelsiana se opera porque, para além daquela adesão,

a sua elaboração teórica reproduzia idealmente os processos constitu-

tivos e constituintes da situação de classe do proletariado: a teoria cu-

jos fundamentos estavam lançando era a expressão ideal do movi-

mento social real – a posição de classe do proletariado que refigurava

teoricamente apenas condensava as tendências estruturais da dinâmica

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social. A adesão de Marx e Engels ao movimento operário, assim, era

mais que uma opção política: era um imperativo da sua concepção

teórica (Marx; Engels, 1998, pp. XXVII-XXVIII).

Claro que a elaboração da perspectiva de classe não resulta simples-

mente da sua existência histórico-concreta, mas de uma correta com-

preensão das condições da produção material e da posição consciente

do proletário enquanto sujeito revolucionário. Netto (1998) atenta para

propostas socialistas utópicas que antecederam o Manifesto, das quais

não se podia inferir o protagonismo da classe proletária. Com isso,

demonstra que possibilidades não implicam necessariamente realiza-

ção, que é preciso vontade política para dirigir as tendências que estão

no movimento histórico. Nas suas palavras, “a passagem de uma pos-

sibilidade à efetividade demanda a complexa intervenção da atividade

organizada dos homens” (Idem, ibidem, p. XXXVI).

O Manifesto, ainda segundo Netto (Idem), é responsável pela elabora-

ção e explicitação dessa autoconsciência e dessa consciente perspectiva

de classe, constituindo-se no documento fundador do projeto comunista.

Nesse sentido, sem a pretensão de que “ele responda às nossas questões,

tais como a nossa contemporaneidade as formula” (Idem, ibidem,

p. LXVI), cabe, inicialmente, verificar como se constitui o proletariado

da atualidade, tendo em vista as profundas mudanças em curso no mundo

do trabalho.

O sujeito revolucionário contemporâneo não se restringe mais ao ope-

rariado industrial – em permanente redução. Tal sujeito, hoje, é tão diver-

sificado e complexificado, que se torna quase impossível defini-lo numa

palavra ou numa única expressão. São empregados, terceirizados, subem-

pregados, precarizados, desempregados, conjunto disforme constitutivo

do proletariado pós-fordista, que levou Antunes (1998) a identificá-los

como classe-dos-que-vivem-do-trabalho.

As estratégias flexibilizadoras – alternativa burguesa à rigidez fordista –

, além de promoverem o desemprego em massa, provocam o surgimento

de diferentes modalidades de exploração do trabalho. Entre essas, chama

atenção uma tendência à informalidade com características novas2, cujas

2 A informalidade, sob o regime de acumulação flexível, assume formas que tornam

analiticamente insuficientes as teorias existentes: a) não tem mais o caráter de

clandestinidade; b) não se restringe às atividades que são desdenhadas pelo capital

por não serem bastante lucrativas; c) não ocupa apenas interstícios. Na verdade, o

que antes era permitido agora é incentivado, estimulado, liberando, assim, empresá-

rios da relação de assalariamento e, consequentemente, dos custos sociais decorren-

tes do vínculo empregatício; d) tais atividades são cada vez mais integradas, mais

subordinadas e mais funcionais ao capital; e) certamente, contribuem – não sabe-

mos em que medida – para a expansão e a acumulação do capital (Tavares, 2004).

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CONSCIÊN CIA OPERÁRIA E A CUM ULAÇ Ã O CAPITAL ISTA | 159

formas tentam obscurecer os nexos da produção com o processo de

acumulação capitalista, movimento que é central à nossa produção aca-

dêmica.

Não podemos perder de vista que esse momento particular – antecedi-

do pelo fordismo – é parte de uma totalidade. “Ser e continuidade são

indissociáveis, nada é sem que exiba dimensões mais ou menos comple-

xas de continuidade” (Lessa, 1995, p. 37). O compromisso fordista já

havia transformado profundamente a condição proletária, mediante a

cisão da antiga classe operária. De um lado, ficaram os operários qualifi-

cados, devidamente representados e defendidos pelas organizações sindi-

cais; do outro, os operários desqualificados, cuja competência foi reduzi-

da a gestos elementares, que lhes permitissem sustentar o trabalho rotinei-

ro das fábricas. Estes não contaram com a mesma integração que tiveram

os herdeiros dos operários de ofício, beneficiando-se muito pouco das

vantagens do compromisso fordista. Tal divisão foi ainda mais agravada

quando combinou diferenças de sexo, idade, nacionalidade e raça.

Nesse contexto em que o operário profissional só subsistiu marginal-

mente, os métodos capitalistas de trabalho (parcelização e mecanização)

foram introduzidos também no setor serviços e, assim, as fronteiras do

proletariado foram ampliadas.

Segundo Bihr,

O conjunto desse processo levou a um enfraquecimento da função so-

cioeconômica do proletariado, uma vez que sua força social de agente

imediato do processo de trabalho, até então baseada em sua função

produtiva, foi recolocada em questão. Ainda mais que esse mesmo

processo tendia a dissolver as antigas identidades profissionais: os

ofícios, constitutivos de redes de socialização e de solidariedade em

que se apoiavam a organização e a combatividade do conjunto da

classe durante a fase anterior (Bihr, 1999, p. 52).

Porém, ainda conforme o mesmo autor, mais que pelas mudanças no

processo de trabalho, a condição proletária foi afetada pela integração

total do processo de consumo do proletariado à relação salarial. Com isso,

“a afirmação do proletariado como produtor coletivo foi progressiva-

mente eliminada pelo aumento em seu seio de uma consciência de con-

sumidor individual” (Idem, ibidem, p. 52). Bihr (1999) mostra como as

transformações decorrentes do fordismo promoveram uma atomização do

proletariado e como essa relativa privatização do seu modo de vida, mais

familiar que individual, influenciou negativamente em sua luta e em sua

consciência de classe. Esse recuo para a vida privada “cria um relaxa-

mento da solidariedade de classe inteiramente prejudicial à sua organiza-

ção e à sua luta de classe” (Idem, ibidem, p. 53).

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Outro aspecto levantado por Bihr (idem), no contexto do período for-

dista, diz respeito à ausência de precisão das classes, ficando cada vez

mais problemático o pertencimento a uma classe em geral. Isso se deve

tanto à ampliação das fronteiras do proletariado como à integração de

novos agentes à classe dominante, os quais personificam o comando do

capital, embora não sejam proprietários. Estes últimos constituem o que

Marx definiu como “uma classe de transição, na qual os interesses das

duas classes se embotam uns contra os outros, julga-se estar acima da

oposição das classes em geral” (Marx, 1984, p. 58).

Finalmente, o sociólogo francês destaca o aumento da dependência,

tanto prática quanto ideológica, em relação ao Estado, que o período

fordista significou para o proletariado, graças à forma do Estado de bem-

-estar. A seu ver, todas essas transformações fizeram emergir uma nova

figura hegemônica: a do operário-massa3, que substituiria a antiga figura

do operário de ofício.

Aparentemente, a perda de identidade de profissão e de lugar que uni-

formiza esse operário-massa lhe é totalmente desfavorável, mas, na visão

de Bihr, “A massificação lança assim as bases de uma nova identidade,

de uma subjetividade mais radical, baseada na recusa da expropriação

generalizada, pelo fordismo, em relação ao domínio de suas condições de

existência” (Bihr, 1999, p. 57). Em outras palavras, reafirma que,

(...) se o operário-massa se encontra privado, pelo fordismo, de suas

antigas redes de solidariedade e de suas antigas referências ideológi-

cas, isso lhe permite inversamente reconstituir-se de novo, melhor

adaptado à compreensão crítica e à luta contra o novo universo capi-

talista (Bihr, 1999, p. 59).

Essa compreensão teria feito que a segunda geração do operário-

-massa já não se prestasse “a trocar um trabalho e uma existência despro-

vidos de sentido pelo simples crescimento do seu ‘poder de compra’, a

privação de ser por um excedente de ter” (Bihr, 1999, p. 60). A partir

dessa recusa, para o mesmo autor, entre outras motivações, nasce, em

meados da década de 1960, a chamada crise do trabalho, que entendemos

como resultante da crise do capital.

Contrapondo-se à ofensiva proletária, as direções capitalistas promo-

vem a reestruturação produtiva do capital, garantindo a este um poder

quase absoluto sobre o trabalho e, com isso, compelindo o movimento

operário a renunciar – ainda que momentaneamente – aos seus objetivos

revolucionários.

3 O autor assinala que o termo é de A. Negri e M. Tronti.

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CONSCIÊN CIA OPERÁRIA E A CUM ULAÇ Ã O CAPITAL ISTA | 161

Para Antunes (1998), o brutal resultado das transformações do mundo

do trabalho no capitalismo contemporâneo pode ser sintetizado como

(...) uma processualidade contraditória que, de um lado, reduz o opera-

riado industrial e fabril; de outro, aumenta o subproletariado, o traba-

lho precário e o assalariamento no setor de serviços. Incorpora o tra-

balho feminino e exclui os mais jovens e os mais velhos. Há, portanto,

um processo de maior heterogeneização, fragmentação e complexifi-

cação da classe trabalhadora (Antunes, 1998, pp. 41-42).

Se a cada modelo de desenvolvimento do capitalismo corresponde um

tipo de proletariado, que desempenha um papel central na luta de classes, o

que uniformizaria essa classe heterogênea, fragmentada e complexificada?

Conforme Netto (1998), na sociedade burguesa contemporânea “o su-

jeito revolucionário, tal como posto no Manifesto, requer novas apro-

ximações e determinações amplas” (Netto, 1998, p. LXVI). Ele sugere

um sujeito revolucionário plural.

Nas suas palavras:

(...) sujeitos revolucionários, num processo real de coletivização que

demandará a elaboração de novos parâmetros teóricos e analíticos, ca-

pazes de sugerir as suas formas de articulação em blocos históricos

onde se possa afirmar a hegemonia de um segmento apto a, nos con-

frontos de classes, representar sempre o interesse do trabalho na sua

totalidade (Netto, 1998, p. LXVI).

A nós parece que a favor da classe trabalhadora há a certeza de que a

diminuição do trabalho vivo acabará por ser insuportável ao próprio

capital. Pois, mesmo que o capital prescinda do trabalhador enquanto

produtor, continuará precisando dele enquanto consumidor. Sobre isso, a

atualidade do pensamento marxista assim se expressa no Manifesto:

(...) para oprimir uma classe, é necessário assegurar-lhe ao menos as

condições mínimas em que possa ir arrastando a sua existência servil.

O servo da gleba, sem deixar de ser servo, chegou a membro da co-

muna, da mesma forma que o pequeno-burguês, sob o absolutismo

feudal, chegou a grande burguês. O operário moderno, ao contrário,

longe de elevar-se com o desenvolvimento da indústria, afunda-se ca-

da vez mais, indo abaixo das condições de sua própria classe (Marx;

Engels, 1998, p. 19).

É evidente que, hoje, grande parte da classe trabalhadora se encontra

debilitada, politicamente derrotada, o que, sem dúvida, fragiliza o movi-

mento operário e favorece o utopismo. Mas isso não significa que desapa-

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receram as possibilidades de emancipação para o trabalho e, por conse-

guinte, a simultânea libertação do conjunto da humanidade. Historica-

mente as condições existem. E é a partir dessa possibilidade histórica que

Marx e Engels afirmam a necessidade política de se pôr fim à proprie-

dade privada, abolindo também o modo de apropriação a ela correspon-

dente.

Contraditoriamente, as próprias condições materiais e sociais engen-

dradas pelo capitalismo criam as possibilidades para que o movimento

proletário possa se desenvolver dentro, mas também contra esse perverso

modo de produção, embora seja inquestionável o poder que o capital

ainda tem para extrair trabalho excedente, ao mesmo tempo que atua no

deslocamento das contradições, o que dificulta uma elaboração fidedigna

da realidade por parte do proletariado.

Suas condições de existência revelam a nocividade do sistema, mas

não lhe permitem avançar no sentido de globalizar a luta de classe. Suas

ideias, paradoxalmente, são as ideias dominantes. “Os mesmos homens

que estabeleceram as relações sociais de acordo com a sua produtividade

material produzem também os princípios, as idéias, as categorias de

acordo com as suas relações sociais” (Marx, 1985, p. 106). Assim, os

movimentos para onde converge a classe trabalhadora tendem, quando

muito, a perpetuar o modelo social-democrata, no sentido do retarda-

mento da revolução. Mas, como se pode verificar, o pensamento marxista

é seminal para pensarmos o mundo contemporâneo:

As idéias dominantes não são mais que a expressão ideal das relações

materiais dominantes, as relações materiais dominantes concebidas

como idéias; portanto, das relações que precisamente tornam domi-

nante uma classe, portanto as idéias do seu domínio (Marx; Engels,

1984, p. 56).

A classe que dispõe dos meios para a produção material também regu-

la a produção e a distribuição de suas ideias. Nesse sentido, é palpável

a firme dominação da ideologia capitalista, tendo em vista transformar

o trabalhador num militante da ordem do capital. No mundo contem-

porâneo, onde o poder capitalista aprofundou a práxis social inteira-

mente, seus defensores tentam obscurecer o real através dos mais di-

versos mecanismos, até mesmo suprimindo da ciência social termos

como “burguesia”, “capitalismo”, “proletariado”, etc., considerados

“obsoletos” e “ideologicamente tendenciosos” (Mészáros, 1993,

p. 89). Em contrapartida, são cunhados novos termos, que traduzem

flexibilidade e espontaneidade – como “parceria” e “cooperação”, por

exemplo –, para nominar velhas relações. Assim, tem-se a pretensão

de eliminar semanticamente a divisão da sociedade em classes. Se-

gundo Mészáros: “Neste mundo de convergência semântica (...) o úni-

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CONSCIÊN CIA OPERÁRIA E A CUM ULAÇ Ã O CAPITAL ISTA | 163

co uso legítimo para os supostos ‘conceitos do século XIX’ consistiu

na produção de um número infinito de livros e ‘projetos de pesquisa

científica’ sobre o ‘aburguesamento’ do ‘proletariado’” (Mészáros,

1993, p. 89).

Portanto, a subordinação estrutural do trabalho ao capital não deixa

dúvida quanto à contradição entre o “ser” e a “existência” do proletaria-

do, cuja tarefa em direção à consciência de classe, mesmo sendo uma

tendência objetiva do desenvolvimento histórico, jamais será “direta” e

“espontânea”. É imperativo que os trabalhadores transponham o senso

comum. Mas, para isso, precisam compreender e vislumbrar a possibili-

dade de superar as determinações econômico-corporativas imputadas pelo

capital.

A partir dessa problematização, pretende-se entender por que é tão di-

fícil o proletariado transcender o limite da imediatidade que lhe é imposto

pelas ideias dominantes, para situar-se como sujeito revolucionário capaz

de uma consciência global de seu ser social.

O difícil trânsito da imediatidade à genericidade para-si

O trânsito entre as formas dadas pela imediatidade do ser-social-que-

-vive-do trabalho e aquelas mais identificadas com a genericidade para si

é uma mediação bastante complexa. Segundo Antunes, “é central partir

do universo da vida cotidiana quando se quer avançar do âmbito e das

ações próprias da consciência espontânea, imediata, contingente, para as

formas de consciência emancipada, autêntica, livre e universal” (1996,

Idem, p. 100). Para ele, “sem a percepção e a apreensão da dimensão

(ampliada) do trabalho e da vida cotidiana, o entendimento da temática da

consciência de classe ‘é um verdadeiro milagre idealista’ ou o resultado

de alguma forma de ‘messianismo partidário’” (Idem, p. 101).

Como se pode constatar, não é possível contemplar a abrangência de

tantas categorias neste artigo, que tem espaço limitado. Entretanto, para

não incorrer nos equívocos acima mencionados, serão tecidas algumas

considerações sobre a categoria da reprodução, dada a sua peculiaridade

de, mediante experiências acumuladas, reproduzir continuamente o novo

– continuidade somente possível pela mediação da consciência.

A categoria da reprodução, segundo Lessa, “é concernente às formas

concretas historicamente determinadas, através das quais as categorias

ontológicas universais do ser social, postas a existir pelo trabalho, têm

existência real a cada momento e em cada lugar” (1995, p. 8). O trabalho,

ao mesmo tempo que é a ineliminável base de ser da processualidade

reprodutiva, apenas nesta tem existência efetiva. Há, pois, entre essas

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duas categorias “uma nítida diferença e uma insuperável conexão” (Les-

sa, 1999, p. 7).

Respeitada a função metodológica da mediação, cabe registrar a dis-

tinção feita por Lukács (apud Lessa, 1999, p. 22) – embora em traços

bastante esquemáticos –, segundo a qual o ser possui três graus, que

correspondem a substancialidades ontologicamente distintas: a esfera

inorgânica, a natureza biológica e o mundo dos homens. Tudo que existe

está agrupado nesses três níveis. Mas essa distinção não suprime a sua

unidade. O ser social não deixa de ser animal e, enquanto tal, produz e se

reproduz numa constante troca com os seres inorgânicos. Em síntese,

trata-se de um ser cuja unidade é a unidade de diferenças. Para conhecer

esses níveis, deve-se levar em conta que o grau individual de complexi-

dade exige tratamento específico para cada um.

Esta abordagem remete especificamente ao ser social, mas não se po-

de esquecer que ele só é pensável nessa relação com a natureza. Sua

produção e sua reprodução dependem do ser orgânico e do ser inorgâni-

co. Portanto, as estruturas orgânica e inorgânica são imprescindíveis à

sociedade. Entretanto, a relação do ser social com a natureza não é uma

relação direta, é uma relação mediatizada, que começa pelo trabalho

enquanto atividade teleológica. Este ser que se realiza na vida social, sem

eliminar sua base natural, vai se afastando das barreiras naturais e depen-

dendo cada vez menos da natureza.

Embasado em Lukács, Lessa assim se expressa sobre o desenvolvi-

mento do ser social:

(...) a reprodução do ser social é o processo de elevação do mundo dos

homens a patamares superiores de sociabilidade, de modo que o seu

desdobramento concreto é cada vez menos influenciado por categorias

oriundas das esferas ontologicamente inferiores, e cada vez mais in-

tensamente determinado por categorias puramente sociais (Lessa,

1995, p. 21).

Esse processo se opera em dois níveis: o momento da individualidade

e o momento da universalidade. A inter-relação e a determinação recípro-

ca entre esses dois polos configuram um único complexo: o mundo dos

homens. Nesse contexto, a conexão da singularidade com a universalida-

de liga o presente ao passado, permitindo a generalização de tudo que foi

produzido, ou seja, a continuidade social – somente possível pela media-

ção da consciência. Concebida como “produto e expressão realizada da

reprodução social”, a consciência é um produto histórico, plasmado no

dinamismo dos fatores histórico-sociais.

A consciência de uma classe, por sua vez, é, para Antunes (1998),

uma complexa articulação que comporta identidades e heterogeneidades

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CONSCIÊN CIA OPERÁRIA E A CUM ULAÇ Ã O CAPITAL ISTA | 165

entre singularidades que vivem uma situação particular. É algo em mo-

vimento, com avanços e recuos.

Nas suas palavras,

Neste longo, complexo, tortuoso percurso, com idas e vindas, encon-

tra-se ora mais próximo da imediatidade, do seu ser-em-si-mesmo, da

consciência contingente, ora mais próximo da consciência auto-

-emancipadora, do seu ser-para-si-mesmo que vive como gênero, que

busca a omnilateralidade, momento por certo mais difícil, mais com-

plexo, da universalidade autoconstituinte (Antunes, 1998, p. 117).

Essa dimensão do ser social é fundamental para a apreensão do objeto

deste artigo, na medida em que explicita o papel ativo da consciência na

processualidade social, contendo, pois, a possibilidade de elevar o indiví-

duo singular e o gênero humano do em-si ao para-si. Mas, como não há

desenvolvimento genérico sem o desenvolvimento do indivíduo, é proce-

dente retomar aquela recomendação de Antunes (1998), segundo a qual é

central partir da vida cotidiana para entender a temática da consciência de

classe. Pois é na vida cotidiana, na qual inúmeras questões são postas,

que a consciência se origina.

Uma perspectiva crítica à vida cotidiana nada tem a ver com as abor-

dagens que se esgotam na faticidade. O tratamento consequente da vida

cotidiana só pode ser feito a partir da perspectiva crítico-dialética, inau-

gurada por Marx, cujo método não é alienável da teoria, nem indepen-

dente do objeto pesquisado. Essa perspectiva de totalidade – e somente

ela – permite apreender as complexas relações entre objetividade e subje-

tividade, entre materialidade e consciência de classe. Tal postura teórico-

-metodológica

(...) implica a construção de uma imagem rigorosa do homem como

ser prático e social, produzindo-se a si mesmo através de suas objeti-

vações (a práxis, de que o processo de trabalho é o método privilegia-

do) e organizando suas relações com os outros homens e com a natu-

reza conforme o nível de desenvolvimento pelos quais se mantém e se

reproduz enquanto homem (Netto, 1994, p. 75).

Na ordem capitalista, ao contrário do mundo antigo, onde homem e

sociedade eram inseparáveis e as relações apareciam como naturais, a

bipolaridade da reprodução social adquire uma nítida explicitação. Medi-

ante relações sociais puras, torna-se consciente a distinção indiví-

duo/sociedade. Nessa organização social, as relações deixam de ser

naturais para serem contratuais; deixam de ser coercitivas para serem

interativas. Sem dúvida, no capitalismo as relações sociais põem o ser

social no patamar mais alto da sua história.

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Todavia – postula Lessa –, a forma fenomênica, historicamente con-

creta, que assumiu essa primeira explicitação da bipolaridade da re-

produção social se refletiu “na nova estrutura de consciência dos ho-

mens”, como “dualismo entre citoyen e homme (bourgeois) presente

em cada membro da nova sociedade” (...) num fracionamento do ser-

-indivíduo-humano entre uma existência pública e uma existência pri-

vada (1995, p. 76).

Por um lado, foi conferida uma grande importância à individualidade,

e, por outro, ela foi suprimida, mediante as condições econômicas oriun-

das da própria natureza da mercadoria. A burguesia é a forma social que

fez aparecer pela primeira vez a luta de classes em seu estado puro. A

constituição de uma sociedade articulada economicamente faz a cons-

ciência de classe aceder a um estado em que pode tornar-se consciente.

Em face dessa possibilidade, a mesma burguesia é constrangida a tudo

tentar teórica e praticamente para fazer desaparecer da consciência social

o movimento do real. Estabelece-se, então, uma luta ideológica pela

dissimulação do caráter de classe. Por conseguinte, embora os homens

tenham a possibilidade de elevar a consciência e superar a cisão burgue-

sa, são, ao contrário, movidos por interesses privados. Suas ações são

orientadas pelos imperativos de expansão e acumulação que regem a

propriedade privada. Sobretudo no mundo do trabalho, verifica-se uma

desidentidade entre indivíduo e gênero humano. A produção generalizada

de mercadorias, que por um lado oferece as possibilidades para a mul-

tilateralidade humana, por outro, provoca o estranhamento do homem em

relação ao gênero humano.

Embora o constante crescimento das forças produtivas evidencie a

possibilidade de satisfação das necessidades humanas, o caráter irracional

da propriedade privada aponta na direção oposta. No marco da alienação

capitalista, o trabalho que deveria ser uma propriedade interna e ativa do

homem torna-se a ele exterior; o que deveria ser uma atividade espontâ-

nea transforma-se em trabalho forçado.

Para Mészáros,

A objetivação em condições nas quais o trabalho se torna exterior ao

homem assume a forma de um poder estranho que enfrenta o homem

de uma maneira hostil. Esse poder exterior, a propriedade privada, é o

produto, o resultado, a conseqüência necessária, do trabalho alienado,

da relação exterior entre o trabalhador e a natureza, entre o trabalhador

e ele próprio. Assim, se o resultado desse tipo de objetivação é a pro-

dução de um poder hostil, então o homem não pode realmente “con-

templar-se num mundo por ele criado”, mas, sujeitado a um poder ex-

terior e privado do sentido de sua própria atividade, ele inventa um

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CONSCIÊN CIA OPERÁRIA E A CUM ULAÇ Ã O CAPITAL ISTA | 167

mundo irreal, submete-se a ele, e com isso restringe ainda mais a sua

própria liberdade (Mészáros, 1981, p. 141).

Segundo Lessa, “Lukács distingue, no plano ontológico, entre ser e

valor e, assim fazendo, encontra a gênese do valor na processualidade

específica de um grau do ser: o ser social” (1995, p. 24). Essa dimensão

do valor supõe que o ser social tem alternativas, que tem a possibilidade

de escolha – só existente nele. Mas o fenômeno da escolha evidencia uma

outra categoria também importante: a liberdade. Esta, entretanto, ante o

poder hostil da propriedade privada é extremamente restringida. O acesso

às objetivações existentes – resultado do trabalho – é determinado pela

condição de classe. Se a subjetividade humana depende do acesso a tais

objetivações, como se reflete na consciência do proletariado a conexão

dos seus atos singulares com a reprodução global? Será possível, mesmo

sob os imperativos da propriedade privada, distinguir entre as necessida-

des humano-genéricas e os interesses particulares? Pressupondo que essa

distinção desencadeia conflitos, estes tornariam mais visíveis as necessi-

dades genéricas, ao ponto de elas serem conscientemente priorizadas? Por

que é tão difícil a passagem do singular ao genérico? Por que embora a

história ponha possibilidades, a escolha não expressa a perspectiva do

proletariado?

Não temos a pretensão de responder a todas essas questões. Nem

mesmo sabemos se somos capazes. A única certeza é que qualquer res-

posta só têm legitimidade se calcada no movimento do real. Está claro

que, nessa sociedade marcada pela divisão social do trabalho e pelo

trabalho assalariado, o que deveria ser a criação do homem, na verdade o

escraviza. O trabalhador, na sociedade capitalista, não tem a decisão de

produzir nem pode apropriar-se do produto de seu trabalho. Disso decorre

que o trabalho, ao invés de permitir ao homem que, em se objetivando,

construa uma rica subjetividade, mutila-o, aliena-o. Por conseguinte, são

os mecanismos de alienação que vão responder pela não realização do

sentido revolucionário da classe operária.

Na ordem burguesa, todas as formas de objetividade e as suas corres-

pondentes subjetividades explicitam-se na relação mercantil. A partir

dessa premissa, “o operário só pode tomar consciência do seu ser social

se tomar consciência de si próprio como mercadoria” (Lukács, 1989,

p. 188). Para isso, é preciso ir além da realidade imediata e dada; é neces-

sário compreender que o seu trabalho não produz apenas objetos, produz

sobretudo capital; produz o valor que continua comandando o seu traba-

lho, enquanto perdurar a ordem capitalista.

Mas, dado o fetiche teórico e prático, em que fatos isolados e cristali-

zados são tratados como verdades absolutas, os antagonismos de classe

são enfaticamente simplificados, impedindo o posicionamento consciente

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do proletário como sujeito revolucionário. Certamente não é uma tarefa

fácil superar a subalternidade na ordem burguesa, embora não haja dúvi-

da quanto à possibilidade histórica. “A atualidade do projeto comunista

resulta (...) de sua concordância com certas tendências e potencialidades

objetivas que o capitalismo desenvolve contraditoriamente a si mesmo”

(Bihr, 1999, p. 280). Todavia, essas possibilidades desenvolvidas pelo

próprio capitalismo não implicam necessariamente realização. Para Netto,

“A liberdade de escolha na indicação de objetivos políticos está na razão

direta do conhecimento dos processos em curso; quanto mais conhece os

processos em que está inserido, mais livre é o sujeito para circunscrever

os fins a que visa” (Netto, 1998, p. XLVIII). Mas,

(...) nem a sociedade nem o seu processo de evolução se apresentam

como unidade à consciência do homem, nomeadamente à consciência

do homem nascido no seio da reificação capitalista das relações como

num meio natural; são-lhe dados, pelo contrário, como uma multipli-

cidade de coisas e de forças independentes umas das outras (Lukács,

1989, p. 85-86).

Isso não acontece por acaso. As consequências práticas de uma elabo-

ração teórica equivocada estão inscritas nos interesses capitalistas de

classe. Para Lukács, “a ‘falsa consciência’ da burguesia, através da qual

ela se engana a si própria [e tenta enganar aos outros] está, pelo menos,

de acordo com a sua situação de classe, apesar de todas as contradições

dialécticas e da sua falsidade objectiva” (Lukács, 1989, p. 84). Desse

modo, ela vai tentando se manter enquanto classe dominante pelo maior

tempo possível. O proletariado, por sua vez, tem a sua situação agravada,

porque além de uma consciência contaminada pelas contradições burgue-

sas, a situação econômica o impele a necessidades de ações também

contraditórias. Sob tais condições, o caminho correto não é percebido, e a

luta de classes – quando ocorre – tende a perpetuar a hegemonia do

modelo social-democrata. A esse respeito, o Manifesto é atualíssimo: “O

executivo do Estado moderno não é mais do que um comitê para admi-

nistrar os negócios coletivos de toda a classe burguesa” (Marx; Engels,

1998, p. 7).

Convém lembrar que O Manifesto não garante a vitória do proletaria-

do. Ao invés da emancipação pode ocorrer a barbárie. Todavia, as condi-

ções objetivas demonstram que “a existência da burguesia já não é mais

compatível com a sociedade” (Marx; Engels, 1998, p. 19). E a vitória

revolucionária do proletariado será diferente de outras conquistas ocorri-

das no passado: será a vitória da imensa maioria no interesse da imensa

maioria.

Marx e Engels formulam assim essa diferença:

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CONSCIÊN CIA OPERÁRIA E A CUM ULAÇ Ã O CAPITAL ISTA | 169

Todas as classes que, no passado, conquistaram o poder procuraram

conservar a situação alcançada submetendo toda a sociedade às suas

condições de apropriação. Os proletários só podem apoderar-se das

forças produtivas sociais abolindo o modo de apropriação a elas cor-

respondente e, com ele, todo modo de apropriação até hoje existente

(1998, p. 18).

Essa diferença expressa a superioridade do proletariado sobre a bur-

guesia: para a sua consciência de classe, teoria e práxis são coincidentes.

A perspectiva do proletariado não compartimenta a sociedade, não separa

a luta econômica da luta política. Ao contrário, considera a sociedade

como um todo coerente e, a partir daí, age de forma central, modificando

a realidade de forma totalizante. Para Lukács, “como a História coloca o

proletariado perante a tarefa de uma transformação consciente da socie-

dade na sua consciência de classe, teria de surgir a contradição dialéctica

entre o interesse imediato e o objectivo final, entre o momento isolado e a

totalidade” (Lukács, 1998, p. 86). Isso implica integrar-se na visão de

conjunto do processo, priorizando o objetivo final, única forma de cami-

nhar concreta e conscientemente para além do capital.

Lukács já se perguntava sobre a possibilidade objetiva de a consciên-

cia de classe realizar-se efetivamente. Para ele, a questão real e atual para

toda a classe é “a transformação interna do proletariado, do seu movi-

mento para se elevar ao nível objectivo da sua própria missão histórica,

crise ideológica cuja solução tornará enfim possível a solução prática da

crise econômica mundial” (Idem, ibidem, p. 95).

Para finalizar, saímos do âmbito das perguntas e esboçamos uma con-

vicção: a crise econômica mundial só terá solução quando o proletariado,

suprimindo-se, instaurar a sociedade sem classes.

Referências

Antunes, R. Adeus ao trabalho? São Paulo, Cortez, Campinas, SP, Editora da

Universidade Estadual de Campinas, 1998.

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São Paulo, Boitempo, 1996.

Bihr, A. Da grande noite à alternativa. São Paulo, Boitempo, 1999.

Lessa, S. Sociabilidade e individuação. Maceió, Edufal, 1995.

Lukács, G. História e consciência de classe. Rio de Janeiro: Elfos; Porto, Portu-

gal: publicações Escorpião, 1989.

Marx, K. O dezoito de brumário de Louis Bonaparte. Edições Avante! Lisboa,

1984.

—— A miséria da filosofia. São Paulo, Global, 1985.

Marx, K. & Engels, F. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo, Cortez,

1998.

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—— A ideologia alemã. São Paulo, Ed. Moraes, 1984.

Mészáros, I. Para alem do capital. São Paulo, Boitempo, 2002.

—— Filosofia, Ideologia e Ciência Social. São Paulo, Ensaio, 1993.

—— Marx: teoria da alienação. Rio de Janeiro, Zahar, 1981.

Netto, J. P. Prólogo: Elementos para uma leitura crítica do Manifesto Comunista.

In: Marx & Engels. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo, Cortez,

1998.

——, J. P. Para a crítica da vida cotidiana. In: Carvalho, M. C. Brant de e Netto,

J. P. Cotidiano: conhecimento e crítica. São Paulo, Cortez, 1994.

Tavares, M. A. Os fios (in)visíveis da produção capitalista; informalidade e

precarização do trabalho. São Paulo, Cortez, 2004.

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A ESQUERDA MARXISTA E AS QUESTÕES

DO REGIME POLÍTICO.

MARX E A DITADURA DO PROLETARIADO*

António Simões do Paço**

O conceito de ditadura do proletariado, após a experiência dos regi-

mes alegadamente nele fundados ao longo do século XX, como a URSS

ou a China pós 1949, é como um fantasma que assombra a herança teóri-

ca de Marx. Neste texto investigamos, a partir dos escritos do próprio

Karl Marx e dos seus críticos coevos ou contemporâneos, o significado

deste conceito, a sua génese e a sua relação com os acontecimentos

históricos do período em que foi formulado.

A partir do momento em que a Rússia saída da revolução de 1917 se

declarou como uma “ditadura do proletariado”, o conceito passou a ser

discutido por todos os sectores que se reclamavam do socialismo ou do

comunismo, de Bernstein a Kautsky, de Martov a Lenine, de Trotsky a

Rosa Luxemburgo.

As questões essenciais em discussão incidiam sobre o conteúdo desta

“ditadura do proletariado”: teria um significado apenas sociológico, em

que ditadura era sinónimo de exercício do poder por uma classe sobre as

outras (a ditadura da burguesia era a dominação da burguesia, indepen-

dentemente das formas políticas que assumisse), ou um conteúdo mais

específico, designando a forma de exercer o poder político: pelo conjunto

da classe ou por um directório determinado (como em Blanqui), uma

vanguarda cuja legitimidade derivava do triunfo na acção?

* Texto fixado com base numa comunicação oral ao II Congresso Internacional Karl

Marx (24, 25 e 26 de Outubro de 2013), Faculdade de Ciências Sociais e Humanas,

Universidade Nova de Lisboa.

** Investigador do Instituto de História Contemporânea da FCSH da UNL.

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172 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …

Num artigo de 1906, de polémica com Plekhanov, que acusava a frac-

ção bolchevique do Partido Operário Social-Democrata da Rússia de

‘blanquismo’1, Rosa Luxemburgo aborda estas questões. Dizia Rosa que

“se os camaradas bolcheviques falam hoje de ditadura do proletariado,

eles nunca lhe deram o velho significado blanquista (…). Pelo contrá-

rio, afirmaram que a presente revolução triunfará quando o proletaria-

do – toda a classe revolucionária – se apoderar da máquina do Estado.

O proletariado, como elemento mais revolucionário, talvez assuma o

papel de liquidador do antigo regime ‘tomando o poder para si mes-

mo’ a fim de derrotar a contra-revolução e impedir que a revolução

seja desviada por uma burguesia que é reaccionária na sua própria na-

tureza. Nenhuma revolução pode ter sucesso senão pela ditadura de

uma classe, e todos os sinais indicam que o proletariado pode tornar-

-se este liquidador no momento presente”.

Porém, Rosa prossegue dizendo que “nenhum social-democrata tem a

ilusão de que o proletariado se poderia manter no poder”. Isto porque

continuava a ser uma minoria no Império Russo. E “a conquista do socia-

lismo por uma minoria está absolutamente excluída, já que a própria ideia

de socialismo exclui a dominação de uma minoria”. Assim, o proleta-

riado, uma vez assegurado o triunfo da revolução contra a reacção cza-

rista, acabaria por entregar o poder a uma Constituinte, isto é “aos parti-

dos democráticos camponeses e pequeno-burgueses”, que nela teriam a

maioria. “Podemos lamentar este facto, mas não podemos alterá-lo”,

conclui Rosa.

Mais tarde, no livro A Revolução Russa, escrito em 19182, retomará estas

questões de forma muito crítica para os bolcheviques no poder:

“A liberdade apenas para os partidários do governo, só para os mem-

bros de um partido – por mais numerosos que sejam – não é liberdade.

Liberdade é sempre e exclusivamente liberdade para quem pensa de

forma diferente (…).

E prossegue:

“A vida pública dos países com liberdade limitada é tão pobre, tão mi-

serável, tão rígida, tão infrutífera, precisamente porque, através da ex-

clusão da democracia, corta as fontes vivas de toda a riqueza espiritual

1 Rosa Luxemburgo, ‘Blanquismo e social-democracia’, in Czerwony Sztandar,

N.º 86, Junho de 1906. In Marxists’ Internet Archive.

2 Rosa Luxemburgo, The Russian Revolution, Workers Age Publishers (New York),

© 1940. In Marxists’ Internet Archive.

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A ESQUERDA MA RXISTA E AS QU ESTÕE S DO REGIME POLÍT ICO | 173

e progresso. (…) Sem eleicões gerais, sem liberdade ilimitada de im-

prensa e de reunião, sem liberdade de opinião, a vida morre em todas

as instituições públicas, torna-se uma mera aparência de vida, em que

só a burocracia permanece como o elemento activo. A vida pública

adormece gradualmente, algumas dezenas de líderes partidários de

energia inesgotável e experiência ilimitada dirigem e governam. Entre

eles, na realidade, apenas uma dúzia de cabeças mais destacadas diri-

gem e uma elite da classe trabalhadora é convidada de vez em quando

a reuniões onde irão aplaudir os discursos dos líderes e aprovar por

unanimidade resoluções propostas – no fundo, uma questão de cliques

– uma ditadura, certamente, não a ditadura do proletariado, mas ape-

nas a ditadura de um punhado de políticos, ou seja uma ditadura no

sentido burguês, no sentido do regime dos jacobinos (…).”

Palavras proféticas.

Porém, Rosa não condena os bolcheviques por terem feito o que po-

diam e sabiam. Adverte-os, no entanto, contra transformarem aquilo que

era produto da necessidade em receita programática:

“Pela sua determinação revolucionária, a sua força exemplar na acção

e a sua fidelidade inquebrantável ao socialismo internacional, contri-

buíram o que poderiam ter contribuído em condições tão diabolica-

mente difíceis. O perigo só começa quando fazem da necessidade vir-

tude e pretendem congelar num sistema teórico completo todas as

tácticas que lhes foram impostas por essas circunstâncias fatais, e que-

rem recomendá-las ao proletariado internacional como um modelo de

táctica socialista. Quando se apresentam desta forma e escondem o

seu verdadeiro e inquestionável serviço histórico sob os passos em fal-

so forçados pela necessidade, prestam um mau serviço ao socialismo

internacional, a causa por que lutaram e sofreram, já que pretendem

colocar no seu património como novas descobertas todas as distorções

forçadas na Rússia por necessidade e compulsão – em última análise,

apenas subprodutos da falência do socialismo internacional na presen-

te guerra mundial.”

Estas advertências não resolviam a questão essencial: conquistado o

poder, defendido à custa de tantas vidas, de tanto sangue vertido, deve-

riam os revolucionários cedê-lo aos seus inimigos se essa fosse a vontade

temporária de um povo exausto? E se o não fizessem, não tenderia um

regime de excepção, um estado de sítio prolongado, a tornar-se a regra,

excluindo a democracia, soviética ou de qualquer outro tipo?

Isso são perguntas para muitos artigos e muitos congressos. Mas para

já obriga-nos a ir às origens do conceito de ditadura do proletariado, para

avaliar se há nele, e nos que dele assumiram a paternidade, Marx e En-

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gels, uma teorização que permita concluir que os regimes que surgiram

na URSS e depois na Europa de Leste e na China nos anos 30 e 40 do

século passado se filiam de alguma forma nesse conceito.

Marx, Engels e a ditadura do proletariado

A expressão “ditadura de classe do proletariado” apareceu pela pri-

meira vez durante a revolução de 1848. Anteriormente, Marx e Engels só

falavam de “proletariado organizado como classe dominante”. No Mani-

festo Comunista (1848), Marx e Engels referem-se à “conquista do poder

político pelo proletariado”, mas não à ditadura do proletariado. Marx e

Engels falam aí de “erguer o proletariado à posição de classe dominante”.

E para quê? “Para vencer a batalha da democracia.”

Em 1 de Janeiro de 1852, Joseph Weydemeyer publicou um artigo in-

titulado “Ditadura do Proletariado” no jornal Turn-Zeitung, de Nova

Iorque, dirigido à emigração alemã. Nesse mesmo ano, Karl Marx escre-

veu-lhe dizendo:

“Quanto a mim, não reclamo o crédito pela descoberta da existência

de classes na sociedade moderna, nem a luta entre elas. Antes de mim,

historiadores burgueses já tinham exposto a evolução histórica dessa

luta de classes e economistas burgueses tinham descrito a sua anato-

mia económica. O meu próprio contributo foi: 1) demonstrar que a

existência de classes está ligada a determinadas fases históricas do de-

senvolvimento da produção; 2) que a luta de classes conduz neces-

sariamente à ditadura do proletariado; 3) que esta ditadura em si re-

presenta apenas uma transição para a abolição de todas as classes e

para uma sociedade sem classes.”

O artigo de Weydemayer “é provavelmente o único artigo com um tí-

tulo destes até pelo menos 1918”, escreveu Hal Draper3. Nos vinte anos

seguintes, o termo “ditadura do proletariado” não aparece em nenhum

texto, público ou privado, de Marx ou Engels. Nem de mais ninguém4.

Depois de 1848, Marx e Engels tiveram a sorte de presenciar e reflec-

tir sobre uma outra revolução: a da Comuna de Paris de 1871. Se quiser-

mos saber que conteúdo davam Marx e Engels ao conceito de ditadura do

proletariado, talvez possamos confiar nas palavras deste último em 1891:

3 Draper, Hal, Marx and the Dictatorship of the Proletariat. From New Politics,

Vol. 1, No. 4, Summer 1962, pp. 93 ff. Marxists’ Internet Archive (MIA).

4 Draper, ibidem.

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A ESQUERDA MA RXISTA E AS QU ESTÕE S DO REGIME POLÍT ICO | 175

“Querem saber o que é a ditadura do proletariado? Olhem para a Comuna

de Paris. Aí tendes a ditadura do proletariado.”5

Como viram então Marx e Engels a Comuna de Paris, ou seja, a dita-

dura do proletariado? Para Marx, era “essencialmente um governo da

classe trabalhadora, o produto da luta da classe produtora contra a classe

apropriadora, a forma política, finalmente descoberta, sob a qual trabalhar

para a emancipação económica do trabalho”6. Em A Guerra Civil em

França, Marx acentua o carácter profundamente democrático da Comu-

na, o sufrágio universal, o facto de todos os funcionários e juízes serem

eleitos e revogáveis, a supressão do exército permanente, o fim de todas

as ‘investiduras hierárquicas’, a retirada de funções políticas à polícia, a

democracia municipal a partir de baixo substituindo o Estado centraliza-

do, etc. Marx resumiu-o dizendo que a Comuna “deu à República a base

de instituições verdadeiramente democráticas (...) as medidas especiais só

podiam indicar a tendência para um governo do povo pelo povo”.

Em 1872, em A Questão da Habitação, em polémica com o proudho-

niano Mülberger, Engels refere-se também à questão da ditadura do

proletariado:

“O amigo Mülberger, portanto, defende os seguintes pontos:

‘Nós’ não prosseguimos nenhuma ‘política de classe’ e não lutamos

pela ‘dominação de classe’. Mas o Partido Social-Democrata Alemão,

precisamente porque é um partido da classe operária, segue inevita-

velmente uma ‘política de classe’, a política da classe trabalhadora.

Uma vez que cada partido político procura ganhar o domínio do Esta-

do, também o Partido Social-Democrata Alemão luta necessariamente

pelo seu domínio, o da classe trabalhadora, portanto, uma ‘dominação

de classe’. Além disso, todos os verdadeiros partidos proletários, dos

cartistas ingleses em diante, defenderam uma política de classe, a or-

ganização do proletariado como um partido político independente,

como condição primária da sua luta, e a ditadura do proletariado como

o objectivo imediato da luta. Ao declarar que isto é ‘um absurdo’,

Mülberger coloca-se de fora do movimento proletário e no campo do

socialismo pequeno-burguês”7.

5 Friedrich Engels, Introdução à edição inglesa de 1891 de A Guerra Civil em Fran-

ça, de Karl Marx.

6 Karl Marx, The Civil War in France, English Edition of 1871, Zodiac & Brian

Baggins, MIA.

7 Engels, Frederick, The Housing Question. Published (and re-published) as a pam-

phlet. Reprinted by the Co-operative Publishing Society of Foreign Workers. MIA.

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Como bem assinala Hal Draper8, o que se nota aqui é que a ‘ditadura

do proletariado’ “não tem nenhum significado especial a não ser a tomada

do poder do Estado pelo movimento dos trabalhadores socialistas. Apare-

ce aqui como um de três ou quatro termos usados indiscriminadamente:

‘dominação de classe’, ‘domínio da classe trabalhadora’, etc”. Também

nos é dito que cada partido verdadeiramente proletário o defende, in-

cluindo até os cartistas – algo que não pode fazer sentido para quem

acredite que há alguma teoria especial da ditadura do proletariado além

da ideia básica da necessidade e do objectivo de conquistar o poder

político pela classe trabalhadora.

Ao mesmo tempo que não há uma teoria da ditadura do proletariado,

que é identificada com o governo da classe trabalhadora, sendo que o

exemplo apontado da forma de exercer esse poder é o da Comuna de

Paris, onde são realçados os aspectos democráticos, de uma democracia

pela base, tão pouco é descurado o carácter conflitual que assume a luta

da classe trabalhadora pelo poder. Apenas um ano mais tarde, num artigo

sobre a autoridade publicado no Almanacco republicano, em Dezembro

de 1873, defende Engels:

Uma revolução é certamente a coisa mais autoritária que existe, é o

acto pelo qual uma parte da população impõe a sua vontade à outra

por meio de espingardas, baionetas e canhões, meios autoritários por

excelência; e o partido vitorioso, se não quer ter lutado em vão, deve

continuar a dominar pelo terror que as suas armas inspiram aos reac-

cionários. Poderia a Comuna de Paris ter-se mantido um único dia, se

não tivesse usado a autoridade do povo em armas contra a burguesia?

Não deveríamos, pelo contrário, criticá-la por ter feito demasiado

pouco uso da sua autoridade?9

Termino com a última referência de Marx à ditadura do proletariado.

É feita no opúsculo “Glosas marginais ao Programa do Partido Operário

Alemão” (mais conhecido como Crítica dos Programas Socialistas de

Gotha e de Erfurt). Data de 1875, oito anos antes da sua morte:

Entre a sociedade capitalista e a comunista, situa-se o período de

transformação revolucionária daquela nesta. Ao que corresponde um

período de transição política em que o Estado não pode ser outra coisa

que não a ditadura revolucionária do proletariado10.

8 Draper, ob. cit.

9 Engels, Friedrich, “Sobre a autoridade”, in Almanacco republicano, Dezembro de

1873. MIA.

10 Marx, Karl; Engels, Friedrich, Crítica dos Programas Socialistas de Gotha e de

Erfurt, Textos Exemplares, Porto, 1974, p. 30.

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A ESQUERDA MA RXISTA E AS QU ESTÕE S DO REGIME POLÍT ICO | 177

Existem mais algumas citações de Marx e de Engels sobre a ditadura

do proletariado. Nenhuma delas acrescenta algo mais de substancial às

aqui evocadas. O conceito surgiu associado a duas importantes revolu-

ções: as de 1848 e de 1871. Voltará ao centro dos debates nas próximas

grandes revoluções, as russas de 1905 e 1917. Mas aí os protagonistas

serão já outros.

Parafraseando o título de um livro de Garcia Márquez, a história da ‘di-

tadura do proletariado’ no século XX foi uma incrível e por vezes muito

triste história. Mas Marx não foi certamente “a sua avó desalmada”.

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HISTÓRIA E LITERATURA EM AS VINHAS DA IRA

Camilo Domingues*

Este trabalho compreende uma revisão bibliográfica sobre o romance

As Vinhas da Ira, do escritor norte-americano John Steinbeck, e a discus-

são ao redor da obra, de seu escritor e a partir dos fatos históricos retrata-

dos, bem como a partir de suas abordagens literárias. Partindo da história

e da literatura, pretende-se analisar não apenas os âmbitos específicos

dessas duas áreas como, principalmente, a relação entre elas na concep-

ção e elaboração do romance.

A crise de 1929, a seca dos anos 1930, o Dust Bowl e a “Era das mi-

grações de massa”

O clima da região centro-sul das Grandes Planícies norte-americanas é

caracterizado historicamente por grandes flutuações de temperatura num

mesmo dia e, entre o verão e o inverno, por chuvas esparsas e irregulares,

e por ocorrência de ventos de velocidade até duas vezes superior àqueles

mais a leste (Stephens, 1937). Tais flutuações e alterações no regime de

chuvas e na ocorrência dos ventos não seguem um padrão cíclico ou

claramente observável meteorologicamente, podendo ocorrer longos

períodos de seca (até mais de uma década) dentro dos quais ocorre um

ano com chuvas acima da média, assim como o contrário.

Normalmente, as secas na região são formadas pela combinação de

três fenômenos climáticos, concomitantes ou não: a fase La Niña da

Oscilação Sul-El Niño (Osen), responsável por diminuir a temperatura

do Pacífico Norte, na Costa Oeste dos Estados Unidos; o aumento da

temperatura da superfície oceânica no Atlântico subtropical; a perda de

* Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal

Fluminense, sob orientação do Prof. Dr. Daniel Aarão Reis Filho.

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180 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …

força de uma corrente de jato oriunda do golfo do México que, em condi-

ções normais, penetra o continente e produz chuvas nas Grandes Planícies

(Cordova; Porter, 2015; Cook; Miller; Seager, 2009). Estima-se que tal

padrão climático de “produção natural de seca” na região Centro-Sul das

Grandes Planícies exista ao menos desde o século XVI. De fato, os perío-

dos longos de seca na região são observáveis quando o fenômeno La

Niña é mais intenso e prolongado, deixando as águas do Pacífico mais

frias. Especialmente na grande seca dos anos 1930, somou-se a isso o

enfraquecimento e mudança de direção da corrente de jato oriunda do

golfo do México, produzindo chuva apenas na região mais ao sul das

Grandes Planícies.

No entanto, os climatologistas Benjamin Cook, Ron Miller e Richard

Seager (2009) concluíram que os fenômenos ambientais por si só, quais-

quer que fossem as alterações nas temperaturas oceânicas do período, não

eram suficientes para produzir uma seca da mesma dimensão da que

atingiu as Grandes Planícies naquela década. Apenas incluindo duas

outras variáveis antropogênicas em suas projeções, os pesquisadores

conseguiram reprojetar a extensão e a severidade da seca tal qual a que

ocorreu: a devastação da cobertura vegetal e o lançamento de aerossóis de

poeira na atmosfera. Para eles, o povoamento acelerado de regiões áridas

e a posterior exploração agrícola contribuíram como elementos amplifi-

cadores da grande seca da década de 1930.

A severidade da seca dos anos 1930 ainda traria consigo gigantescas

tempestades de poeira. A seca prolongada e a exposição do solo despro-

tegido à ação dos fortes ventos da região mobilizava grandes quantidades

de sedimentos, criando nuvens de poeira, que viriam a se tornar grandes

tempestades (Cordova; Porter, 2015). O fenômeno também não era

desconhecido pelos agricultores locais, tendo sido registrado desde a

segunda metade do século XIX (Cunfer, 2008); no entanto, a gravidade

daquele era uma novidade. As regiões mais atingidas pelas tempestades

de poeira, o epicentro da chamada Dust Bowl (Bacia de Poeira), seriam a

panhandle (frigideira) de Oklahoma1, a região Noroeste do Texas, Nor-

deste do Novo México, Sudeste do Colorado e Sudoeste do Kansas. A

região total cobria mais de 40 milhões de hectares, numa faixa de 800 km

norte-sul e 480 km leste-oeste, de acordo com o Soil Conservation Service.

Os períodos mais severos foram os anos de 1935 (com 40 tempestades) e

1938 (com 61).2

1 Estreita faixa territorial no extremo-oeste de Oklahoma, que compreende três distritos:

Cimarron, Texas e Beaver. A região é a mais árida do estado e foi a que mais sofreu

com a seca da década de 1930, estando localizada no epicentro do Dust Bowl.

2 Exceto menção em contrário, os dados deste parágrafo foram extraídos de Donald

Worster, Dust Bowl: the southern plains in the thirties, 2004.

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H ISTÓRIA E L ITE RATURA EM AS V INHAS DA I RA | 181

Mas quais teriam sido as formas e os motivos através dos quais se de-

senvolveu aquele padrão de povoamento e de exploração agrícola na

região das Grandes Planícies que comprometeu sobremaneira a cobertura

vegetal original do solo?

O período conhecido como “Era das migrações de massa”, da segunda

metade do século XIX ao início do século XX (1850-1913, do fim da

Guerra Civil norte-americana à Primeira Guerra Mundial), está entre

aqueles de maior influxo migratório para os Estados Unidos. Durante o

período, estima-se que 30 milhões de imigrantes desembarcaram no país

(Abramitzky et al., 2012), o que, em 1910, representava 38% da mão de

obra não escrava nos Estados Unidos (Parker, 2014). Se, no início do

século XIX, os imigrantes provinham especialmente do Norte e Centro-

-Oeste da Europa, com destaque para alemães, ingleses e irlandeses, nas

migrações de massa da virada do século, além desses, grandes con-

tingentes de imigrantes do Sul e do Leste europeu, como italianos, polo-

neses e eslavos, chegariam ao país.

As causas históricas, econômicas e sociais da migração europeia para

os Estados Unidos na “Era de migrações de massa” podem ser divididas

em dois grandes grupos principais: os fatores norte-americanos de “atra-

ção” e os fatores europeus de “expulsão”. Entre os fatores de atração,

destacavam-se o barateamento dos meios de transporte intercontinental

tanto na Europa, como nos Estados Unidos, com a implementação de

novas ferrovias e do transporte transoceânico a vapor. Além desses, o

baixo custo da terra nos Estados Unidos e a crescente necessidade de mão

de obra de sua indústria alavancaram a nova onda de imigração. Do outro

lado, os fatores de expulsão dos imigrantes da Europa abrangeram um

amplo espectro, desde a superpopulação, escassez de terras, as grandes

fomes, pobreza e catástofres ambientais até às perseguições políticas e

religiosas (Glynn, 2011).

No Estado de Oklahoma, a “Era das migrações de massa” coincidiu

com o processo de abertura legal (e ilegal) de terras do Território Indíge-

na a partir de 1889 (com a ocupação das Unassigned Lands).3 Ao lado

dos imigrantes históricos, britânicos e alemães, grandes contingentes dos

“novos migrantes”, como judeus e eslavos, ingressaram no estado. Entre

os imigrantes em Oklahoma, a maioria era de origem alemã, seguidos por

3 Em 8 de fevereiro de 1887, o Ato de Loteamento Geral (Dawes Act) alterou o

sistema de propriedade comum de terras do Território Indígena em Oklahoma,

dividindo-as em pequenas propriedades individuais. Feita a divisão e repartição das

terras, o Governo contou com um excedente não atribuído, as Unassigned Lands,

que foram abertas para ocupação por populações brancas e afro-americanas recém-

-libertas através de corridas, sorteios e leilões.

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russos e irlandeses, além de austríacos, ingleses, canadenses, italianos,

mexicanos e escoceses.

Algumas décadas após o início da “Era das migrações de massa”, os

novos agricultores, americanos e estrangeiros, passaram a influenciar a

pauta das discussões políticas e econômicas dos Estados Unidos. No

início do século XX, muitos agricultores ressentiam-se da escassez de

crédito agrícola, especialmente para a região das Grandes Planícies, o que

travava a expansão do setor, e passaram a reclamar reformas no sistema

financeiro norte-americano que garantissem o financiamento do campo.

O Congresso dos EUA passaria, então, a ceder a pressões políticas de

grandes e pequenos agricultores no intuito de também reformar, centrali-

zar e estimular os mecanismos de crédito agrícola.

Em apenas um ano, através do Federal Farm Loan Act (1916), o Go-

verno norte-americano injetou 30 milhões de dólares na agricultura e

agroindústria do país. A expansão sem precedentes da acreagem cultivada

e a consolidação do corn belt no Centro-Oeste norte-americano durante a

década de 1910 passariam a ser conhecidas como The Great Plow-up (em

tradução literal, “A Grande Lavra”). Diversas regiões semiáridas e áridas

das Grandes Planícies rapidamente foram aradas, devastando a cobertura

vegetal original, e tornaram-se áreas de plantio de grãos.

Ao lado da imigração estrangeira e da ampliação do mercado de crédi-

to agrícola nos Estados Unidos durante as duas primeiras décadas do

século XX, destaca-se uma terceira e importante variável que concorreu

para a Great Plow-up: o período excepcionalmente chuvoso entre os anos

de 1905 e 1928 em regiões das Grandes Planícies, o Early Twentieth

Century Pluvial. O fenômeno teria sido responsável pelo período de

maior umidade nos Estados Unidos nos últimos 500 anos, particular-

mente no Norte e no Centro-Oeste. O período excepcionalmente chuvoso,

interrompido apenas por breves períodos de seca em 1910 e 1914, asseve-

raram aos agricultores a possibilidade de contraírem e renovarem em-

préstimos, aumentarem as áreas de cultivo e adquirirem equipamentos,

uma vez que tanto os céus quanto os bancos e o Governo federal pare-

ciam fornecer-lhes segurança e os insumos básicos para a lavoura: terra,

chuva e financiamento.

Por fim, entre e por sobre as condições climáticas, políticas e

econômicas favoráveis naquele período, havia importantes propulsores

filosóficos e religiosos que formavam o arcabouço moral da sociedade

norte-americana de então e impulsionavam a ocupação e a exploração

agrícola da fronteira oeste do território norte-americano: o ideal agrário e

democrático jeffersoniano, o transcendentalismo místico do ex-pastor e

filósofo Ralph Waldo Emerson (1803-1882), a democracia de massas do

poeta Walt Whitman (1819-1892) e o instrumentalismo pragmático do

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H ISTÓRIA E L ITE RATURA EM AS V INHAS DA I RA | 183

filósofo e psicólogo William James (1842-1910) e do pedagogo John

Dewey (1859-1952).

Thomas Jefferson, um dos pais fundadores da nação americana e prin-

cipal elaborador da Declaração da Independência de 1776, foi o seu

terceiro presidente, entre 1801 e 1809. Apesar de filho de um grande

proprietário de terras da Virgínia, Jefferson defendia que a pequena

propriedade rural e o pequeno agricultor, o yeoman farmer, deveriam

formar o cerne do Estado republicano e democrático. Ao yeoman farmer

deveria ser garantida a inviolabilidade dos direitos individuais, pois

apenas o livre domínio e exploração da sua propriedade permitiriam a sua

autossuficiência, o autogoverno e a responsabilidade individual, caracte-

rísticas fundamentais na constituição de um Estado democrático.

A apologia do homem comum, das suas individualidade e liberdade,

da sua relação “ontológica” com a natureza e da constituição da unidade

humana apenas nessa relação também estavam na base do pensamento de

Emerson e Whitman. A alma transcendental de Emerson era a sublimação

do seu humanismo individualista, assim como a democracia de massa de

Whitman era o agregado dos homens individuais (o “povo” indiferencia-

do). A ação humana privada, voltada a satisfazer as necessidades indivi-

duais sem – em tese – obliterar a satisfação alheia, constituía por seu lado

o fundamento do pragmatismo filosófico de James, o elo bastante para

justificar a vida humana em sociedade. Mais explicitamente em Emerson,

ex-pastor evangélico, a ética religiosa protestante forneceria os elementos

fundadores de seu pensamento filosófico. A fé guiaria o homem contra as

injustiças e o autoritarismo, através da crença nos instintos do homem

comum, na inevitabilidade do progresso social e na democracia (Carpen-

ter, 1941, p. 318).

Tem-se, portanto, as quatro variáveis socioambientais que estariam pre-

sentes no processo de ocupação e exploração agrícola da fronteira oeste

norte-americana na virada do século XIX ao XX: ambientalmente, um

período excepcional de chuvas; demograficamente, a “Era das migrações

de massa” e a forte campanha de migração interna no próprio país; política

e economicamente, os incentivos financeiros oferecidos pelo Governo

federal e a vaga no mercado europeu surgida com a Primeira Guerra Mun-

dial; ética e moralmente, um arcabouço filosófico que chancelava e, até

mesmo, naturalizava a ocupação e exploração da região, como “direito

manifesto” do indivíduo livre norte-americano, do “povo escolhido”.

Ao final do período entre a segunda metade do século XIX e as duas

primeiras décadas do século XX, os Estados Unidos tinham recebido

cerca de 30 milhões de imigrantes, que, somados às centenas de milhares

de migrantes internos, ocuparam as regiões Norte e Centro-Oeste do país

(sem contar a Costa Oeste). No final do período, os Estados Unidos já

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não contavam com tamanho excedente de terras que pudesse absorver a

população e a mão de obra excedente de seu próprio país, nem mesmo da

Europa. Concomitantemente, boa parte dos novos agricultores, com a

ajuda do Governo federal, contraíram dívidas e hipotecaram suas pro-

priedades, numa escalada que levaria o endividamento agrícola a saltar de

US$3,3 bilhões para US$7,9 bilhões entre 1910 e 1920 (Gregg, 2015). A

intensificação da atividade agrícola gerou enormes excedentes que só

poderiam ser absorvidos por uma Europa com o setor primário paralisado

por conta da Primeira Guerra Mundial. A mesma intensificação da ativi-

dade agrícola em regiões de ecossistema frágil, como as regiões áridas e

semiáridas do Centro-Oeste do país, expôs não apenas o solo, mas popu-

lações inteiras a intempéries climáticas que poderiam se tornar verdadei-

ras catástrofes socioambientais.

Os anos 1930 surpreenderiam o relativo entusiasmo social e econômi-

co norte-americano do período anterior, especialmente dos agricultores

das Grandes Planícies. A primeira grande novidade, ou primeiro grande

choque econômico sobre a região, cairia ainda no final da década de

1910, com o fim da Primeira Guerra Mundial. O grande aumento da área

de plantio dos Estados Unidos entre 1910 e 1920, de quase 20%, levou à

produção de um excedente agrícola que não encontrou mais a Europa em

guerra para ser escoado (Gregg, 2015, p. 153).

Como se não bastasse, o período de chuvas acima da média até 1928

foi sucedido pela maior seca da história dos Estados Unidos, que durou

praticamente toda a década de 1930 e atingiu todo o Norte e Centro-Oeste

do país. A intensificação do fenômeno La Niña e o aquecimento das

temperaturas oceânicas do Atlântico concorreram para a ocorrência da

seca, que foi intensificada devido à superexploração agrícola do período

anterior. Logo, a região Centro-Sul das Grandes Planícies passaria a ser

palco de imensas tempestades de poeira, o Dust Bowl, que trouxe ainda

mais prejuízos e devastações à região. A reversão das condições climáti-

cas antes favoráveis ao plantio fez que milhares de agricultores perdes-

sem suas plantações e sua principal fonte de renda e subsistência.

Por último, o crack da Bolsa de Nova York, em 1929, inaugurou uma

experiência de crise econômica nunca antes vivida em tal dimensão pela

sociedade norte-americana. A maior crise histórica mundial de superpro-

dução, que teria o seu epicentro na economia daquele país e atingiria todo

o planeta, estancou mercados, causou desemprego, fome e miséria.4 Os

4 De acordo com Roger Hudson (2015), devido à crise de 1929, havia 34 milhões de

norte-americanos sem renda alguma em 1932 e, apenas naquele ano, 273 000 famí-

lias foram expulsas de suas terras por execução de dívidas e hipotecas. Entre 1928 e

1932, o PIB dos Estados Unidos passaria de US$104 bilhões para US$41 bilhões

(Hudson, 2015).

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H ISTÓRIA E L ITE RATURA EM AS V INHAS DA I RA | 185

agricultores das Grandes Planícies, devastados duplamente pela crise

econômica e socioambiental, encontraram-se endividados, desprovidos de

recursos e da própria terra,5 muitos deles optando por migrar para centros

urbanos, para outros estados norte-americanos ou simplesmente por

esperar por auxílio governamental.

Expulsos pela crise econômica e pela seca, entre 300 000 e 440 000

habitantes de Oklahoma deixaram o estado nos anos 1930, a maioria em

direção à Costa Oeste. Os migrantes vinham das mais diversas regiões do

estado, não apenas do Oeste árido. Além de agricultores provenientes do

Centro-Oeste e das regiões mais afetadas pelo Dust Bowl, partiam de

Oklahoma trabalhadores do setor industrial e de serviços, particularmente

do leste do estado, fugindo da crise econômica e atraídos pela propaganda

e promessas de grandes oportunidades na Califórnia.

Normalmente, os migrantes de Oklahoma reuniam todos os seus últi-

mos pertences em uma velha caminhonete, as jalopies, e rumavam em

direção ao Oeste através da Highway 66. Cerca de 38% dos migrantes de

Oklahoma partiam para as cidades californianas para buscarem empregos

na indústria ou no setor de serviços. Uma parte do restante, principalmente

agricultores, partiam para os promissores vales férteis, especialmente o San

Joaquin Valley, na região central da Califórnia (Gregory, 2004).

Com os salários extremamente baixos, e tendo que se mover frequen-

temente de uma lavoura a outra em busca de novos períodos de colheitas,

os migrantes estabeleciam-se em acampamentos improvisados à beira de

estradas e nos arredores das grandes propriedades. Estes estabelecimentos

eram chamados pelos californianos de squatter camps, “acampamentos

precários” ou “acampamentos ilegais”, ou shanty towns, “favelas”, e

caracterizavam-se pela superpopulação, pela precariedade das instalações

e pela falta de esgotamento sanitário. Entre os norte-americanos em geral

também seriam conhecidos como Hoovervilles. E os seus habitantes

seriam conhecidos como Okies, numa menção ao estado de origem de

uma parcela deles, Oklahoma.

As precárias condições de trabalho e de vida dos trabalhadores rurais

nos vales da Califórnia levaram à realização de greves, como a greve nos

campos de algodão, em 1933, organizada pela CAIWU – Cannery and

Agricultural Workers Industrial Union, e à organização de sindicatos

rurais, como a UCAPAWA – United Cannery, Agricultural, Packing, and

5 Na verdade, grande parte dos pequenos agricultores do estado de Oklahoma,

especialmente da margem leste do estado, eram arrendatários e não possuíam terras

próprias. Tendo em vista a inalienabilidade das terras do antigo Território Indígena,

grande parte dos imigrantes brancos e afro-americanos recém-libertos trabalhariam

em regime de arrendamento. De acordo com Encyclopedia of Oklahoma History

and Culture, 2016.

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Allied Workers of America, formada em 1937 (ambos os sindicatos eram

ligados ao Partido Comunista dos Estados Unidos). A reação dos grandes

agricultores seria imediata. Em 1934, seria formada a Associated Farmers,

associação de grandes proprietários de terra com o objetivo de conter o

processo de sindicalização dos trabalhadores rurais, fosse através da

repressão direta no campo e do controle da imprensa, fosse através de

lobby político.

Por outro lado, a crise socioambiental dos anos 1930 nos Estados Uni-

dos, principalmente a partir da eleição do presidente Franklin Roosevelt,

em 1932, levou a uma ainda maior intervenção federal na economia em

geral, e na agricultura em particular: o New Deal. As medidas visavam

oferecer apoio técnico e financeiro direto, além de subsídios diversos aos

agricultores das regiões mais afetadas pela seca e pelo Dust Bowl. Para os

trabalhadores empobrecidos, as agências federais ofereciam empregos em

obras públicas, assistência médica e financeira, além de moradia.

Dessa maneira, a crise econômica de 1929 aproximaria as histórias dos

estados de Oklahoma e da Califórnia, mas cada um desempenhando papéis

diferentes, talvez opostos. A severidade da crise econômica associada à

seca e ao Dust Bowl acentuou a vulnerabilidade econômica de Oklahoma e

fez a toda a região Centro-Sul das Grandes Planícies padecer duplamente

nos anos 1930. Centenas de milhares de trabalhadores – agrícolas ou

urbanos – migraram do campo para a cidade ou para outros estados, espe-

cialmente aqueles da Costa Leste, de onde chegavam notícias alvissareiras.

A Califórnia seria o destino predileto daqueles que deixaram o estado,

assim como de mais de um milhão de migrantes de outros estados norte-

-americanos. No entanto, ao chegarem ao Golden State, os migrantes

deparavam-se com condições frustrantes de vida e trabalho.

Antes da chegada dos Okies aos vales férteis da Califórnia, eram me-

xicanos e filipinos que ali trabalhavam, em condições semelhantes ou

ainda mais degradantes, sendo muitas vezes obrigados a retornar ao seu

país de origem após o período de colheita. Mas havia elementos novos

que concorreriam para que os norte-americanos em geral se sensibilizas-

sem massivamente e diferenciadamente com a situação dos Okies. Em

primeiro lugar, a Grande Depressão atingiu toda a sociedade norte-

-americana, em especial a classe média e as camadas proletarizadas, que

se descobriram severamente empobrecidas, tanto no campo, como nas

cidades. Em segundo lugar, aquela seria a primeira grande crise econômi-

ca em escala mundial que teria ampla cobertura da imprensa (diferente da

crise de 1870, por exemplo), o que favoreceria a difusão de relatos e

imagens que poderiam não apenas sensibilizar, mas identificar o público

com as mais diversas e difíceis situações enfrentadas por trabalhadores no

país e no mundo (Cunfer, 2008). Ao lado da imprensa, havia a nascente

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cultura de massa, que já era responsável por disseminar um grande espec-

tro de obras literárias, da literatura romântica mais prosaica, aos novos e

temidos romances proletários.

Em terceiro e último lugar, estava em risco a moral norte-americana.

Desta vez, não eram índios, latinos ou asiáticos que estavam sendo dizi-

mados ou superexplorados e obrigados a conviver com condições degra-

dantes de vida. Ao contrário, eram americanos brancos, “o povo escolhi-

do”, em busca de nada mais do que o prometido sonho promovido pelo

ideal jeffersoniano: the pursuit of happiness, a “busca da felicidade”, na

forma da pequena propriedade privada. O perigo que corria o yeoman

farmer simbolizou, por derivação, o perigo que corria a autonomia e a

liberdade do indivíduo norte-americano, a democracia e a própria repú-

blica nele fundamentadas. A tradição e os princípios éticos, filosóficos e

religiosos daquela nação estavam postos em cheque, o que fez grande

parte da sociedade levantar-se na defesa de seus alicerces.

Uma parcela da classe média e operária terminaria por se aproximar

de uma compreensão ainda mais radical das contradições da sociedade

norte-americana, chegando inclusive a se aproximar de correntes ideoló-

gicas e políticas socialistas, como o Partido Comunista. Os anos 1930,

desse modo, também seriam marcados por uma onda contestatória no

movimento operário e na cultura norte-americana, vindo à tona não

apenas greves e novas organizações sindicais, como intelectuais, escrito-

res, compositores, cantores, pintores, fotógrafos e cineastas6 que expres-

sariam das mais diversas maneiras e a partir dos mais variados e enreda-

dos pontos de vista, entre a tradição e a contestação, as contradições

daquele momento histórico.

John Steinbeck7

John Steinbeck (1902-1968) nasceu em Salinas, distrito de Monterey,

nos arredores de um dos vales férteis da região central da Califórnia

(Salinas Valley). Steinbeck passou a infância e a juventude naquela

pequena cidade, além de ter vivido grande parte da vida no estado da

6 Merecem destaque os trabalhos acadêmicos do advogado Carey McWilliams e do

economista Paul Taylor, assim como trabalhos artísticos da fotógrafa Dorothea

Lange, do pintor Alexandre Hogue, do cineasta Parel Lorentz, do cantor e composi-

tor Woody Guthrie, além do escritor John Steinbeck.

7 Exceto menção em contrário, as informações biográficas sobre John Steinbeck

estão de acordo com Cyrus Ernesto Zirakzadeh, John Steinbeck on the Political

Capacities of Everyday Folk: Moms, Reds, and Ma Joad’s Revolt, 2004; e Susan

Shillinglaw, John Steinbeck, American Writer, 2016.

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Califórnia. Não seria um aluno destacado durante o colegial e, em 1919,

seguindo o seu desejo precoce de tornar-se escritor, entrou para a Univer-

sidade de Stanford para estudar Literatura Inglesa, de onde saiu em 1925,

sem se formar (Demott, 2006). Durante o período de colégio e faculdade,

Steinbeck costumava passar as férias trabalhando nas fazendas da com-

panhia de produção de açúcar Spreckles, junto aos trabalhadores migran-

tes mexicanos, filipinos, japoneses e chineses, o que lhe forneceu um

primeiro contato com as condições de vida e trabalho daqueles que seri-

am retratados em seus futuros romances.

Após a saída de Stanford, meio a alguns trabalhos temporários e em-

preendimentos fracassados, Steinbeck iniciaria a sua carreira literária,

contando inicialmente com o suporte financeiro de sua família e, em

seguida, de sua primeira esposa, Carol Henning. Os dois encontraram-se

em 1928, casaram-se em 1930, ficando juntos até 1943 (Laws, 2013).

Henning encarnava uma atitude vigorosa e rebelde, sendo mais próxima

de movimentos esquerdistas e mesmo socialistas, além de defensora das

causas feminista e sindicalista. Teria sido ela quem apresentou Steinbeck

a simpatizantes e militantes socialistas, bem como o teria levado a fre-

quentar grupos de estudo e círculos de discussão política nos quais ele

“alternadamente se enfadava ou se esgueirava pelos cantos” (Zirakzadeh,

2004, p. 603).

Na Califórnia, em 1930, Steinbeck também conheceria o biólogo ma-

rinho, ecologista e filósofo Edward Flanders Ricketts (1897-1948), de

quem seria grande amigo e que sobre ele exerceria grande influência. De

acordo com Shillinglaw (2016), Ricketts – em importância só comparada

à sua primeira esposa, Carol Henning – seria o mentor, alterego e “alma

gêmea” intelectual de Steinbeck (Shillinglaw, 2016). Seria Ricketts quem

reforçaria e sedimentaria o humanismo ecológico de Steinbeck. E este de

tal maneira assimilaria o pensamento de seu amigo biólogo que lhe

dedicaria personagens em diversas de suas obras, como Jim Casy, em As Vinhas da Ira.

Nos Pacific Biological Laboratories, fundados por Ricketts, em Mon-

terey, reunia-se um grupo de intelectuais, artistas e cientistas para discutir

os mais diversos assuntos e teorias. Nos registros que deixou dessas

reuniões em suas correspondências, Steinbeck revelaria que, graças a

elas, pôde refletir e desenvolver as suas teorias sociais do “homem-grupo”,

group-man theory, assim como a sua “teoria da falange”, phalanx theory,

baseadas em suas discussões sobre a relação entre a biologia e o com-

portamento humano (numa compreensão particular do darwinismo apli-

cado à sociedade), sobre a psicologia moderna (principalmente a psica-

nálise de Carl Jung) e sobre a nova “antropologia cultural”, a partir da

qual elaboraria o seu pensamento sobre a diversidade normativa e sobre a

moral não-teleológica.

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A partir de 1935, Steinbeck, sob a iniciativa de Carol Henning, pas-

saria a frequentar os encontros do John Reed Club, órgão do Partido

Comunista, na cidade costeira de Carmel (Shillinglaw, 2016). Lá,

Steinbeck conheceria e ficaria amigo de Francis Whitaker (1906-1999),

artista ferreiro e líder do clube local, organizador do Cannery and Agri-

cultural Workers’ Industrial Union (CAIWU), que o apresentaria a

diversos outros ativistas e militantes envolvidos na organização sindical

(Benson; Loftis, 1980, p. 47). Steinbeck passaria, portanto, a escrever

artigos e aproximar-se de revistas e associações simpáticas ao Partido

Comunista, na medida em que fazia parte daquele círculo local de

ativistas sociais, sindicalistas e militantes políticos identificados com

ideias socialistas.

Em 1936, Steinbeck iniciaria a sua “trilogia do trabalhador”, com a

publicação do romance Batalha Incerta. O romance trataria de uma greve

de trabalhadores numa plantação de maçãs, na qual o autor apresentou os

trabalhadores enredados e mesmo manipulados tanto pelos grandes

produtores, quanto pelo sindicato e militantes. Em sequência, Steinbeck

publicaria Ratos e Homens (1937), um romance sobre a amizade entre

dois trabalhadores migrantes, assim como sobre as suas dificuldades e

desventuras na Califórnia. Por último, publicaria As Vinhas da Ira (1939),

a história de uma família de migrantes de Oklahoma que parte à procura

de trabalho e melhores condições de vida na Califórnia.

As Vinhas da Ira seria lançado em 14 de abril de 1939. A obra seria

um best-seller instantâneo, vendendo 428 900 exemplares apenas no ano

de seu lançamento e permanecendo o livro mais vendido durante todo o

ano de 1940. Naquele ano, Steinbeck receberia o Prêmio Pulitzer de

Literatura e o romance seria filmado por John Ford (1894-1973), tornan-

do-se também um sucesso de bilheteria.

Apesar de ter se aproximado e assimilado fragmentos do pensamento po-

lítico tanto dos socialistas quantos dos reformistas do New Deal, Steinbeck

registrava também em sua obra fragmentos de outras correntes do pensa-

mento, como a psicologia moderna, a antropologia cultural, o humanismo

biológico de Ricketts, além de certa nostalgia do pioneirismo norte-ame-

ricano. Ele tentava, na verdade, reunir as suas diversas referências soci-

ais, culturais e políticas no que vislumbrava ser o “novo mundo”, que se

infiltraria silenciosamente sob o mundo contemporâneo através da arte de

seus poetas, num jogo de “ordem e desordem”.

Em 1950, após o divórcio de Carol Henning (1943) e breve casamento

com a cantora Gwyndolyn Conger (1917-1975), casou-se novamente com

a atriz Elaine Scott (1914-2003), com quem permaneceria até o fim de

sua vida. Em 1952, lançou o seu romance autobiográfico, East of Eden,

no qual retrataria não apenas a sua vida e a história de Salinas Valley,

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como a traição e a conturbada relação com a sua segunda esposa, Gwyn-

dolyn Conger. Para Steinbeck, esta seria a sua grande obra literária e,

para os críticos, dividiria com As Vinhas da Ira o maior êxito da carreira

do escritor. Em 1961, publicou a sua última obra de ficção, The Winter of

Our Discontent, na qual já estavam patentes a sua desilusão com o “povo

americano”, para ele, uma sociedade cada vez mais gananciosa e moral-

mente doente. Ironicamente, após ter recebido o Prêmio Nobel de Litera-

tura, em 1962, Steinbeck não mais se dedicaria ao romance de ficção. A

notícia de sua premiação veio acompanhada por severas críticas de norte-

-americanos e mesmo de membros da academia sueca à fragilidade e

inconsistência do conjunto de sua obra, o que teria desiludido ainda mais

o já descontente John Steinbeck.8

Não obstante a sua combinação bastante original de elementos filosó-

ficos, morais e políticos contraditórios em sua obra, Steinbeck preservaria

uma sensibilidade e uma sagacidade crítica capaz de identificar a maneira

como a transformação econômica da sociedade norte-americana envolvia

também, e dialeticamente, a sua transformação social e moral. De modo

que, com a diversidade de experiências e influências às quais se expôs – e

foi exposto –, John Steinbeck revela não apenas aparentes contradições,

mas uma rica e complexa dinâmica entre o escritor e o seu tempo. Os

acontecimentos históricos passados e contemporâneos, bem como as

diversas formulações teóricas sobre aqueles, interagiram com a sua indi-

vidualidade de uma maneira que o olhar retrospectivo pode – e deve –

apenas indicar possibilidades de articulação e influência, uma vez que o

oceano dialético da relação entre o indivíduo e a história é tal que não

permite asseverar a necessidade de ocorrência de um elemento ou fator

em consequência direta de outro.

Na trilha para As Vinhas da Ira: The Harvest Gypsies e a enchente

de Visalia

Segundo Robert DeMott (1990), entre os anos de 1936, quando tomou

conhecimento dos “refugiados do Dust Bowl”, e 1939, quando publicou o

seu romance As Vinhas da Ira, John Steinbeck estaria envolvido no

“problema dos migrantes” (Demott, 1990, p. 3). Para DeMott, naquele

período, o escritor viveria três etapas literárias que precederiam a redação

do romance: a elaboração de uma série de artigos publicados em outubro

de 1936 no jornal San Francisco News sobre a situação dos migrantes nos

vales agrícolas da Califórnia; um romance inacabado, The Oklahomans,

8 Em 1966, ainda publicaria o seu “livro de estrada”, Travel with Charley in Search

of America, e o seu último livro de artigos e resenhas, America and Americans.

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escrito entre 1937 e 1938; e uma sátira contra os grandes proprietários de

terra de Salinas, L’Affaire Lettuceberg, escrita entre fevereiro e maio de

1938 e destruída poucos dias após a sua finalização.

Em agosto de 1936, sob convite de George West, Steinbeck começou

a trabalhar numa série de artigos sobre os trabalhadores migrantes

(Schultz; Li, 2005). Ele realizou diversas viagens pelos campos de mi-

grantes nos vales centrais da Califórnia e foi apresentado a Thomas

Collins (1897-1961), que trabalhava para a Resettlement Administration.

Thomas Collins foi o primeiro administrador do Arvin Camp, posterior-

mente Weedpatch Camp, um dos dois primeiros acampamentos federais

do New Deal construídos na Califórnia, que seria retratado por Steinbeck

em As Vinhas da Ira (Nealand, 2008). Steinbeck viajaria outras vezes

com Collins para os acampamentos e teve acesso às suas anotações e

relatórios, que forneceriam informações para os seus artigos e os ele-

mentos não ficcionais de seu futuro romance.9 Collins seria retratado em

As Vinhas da Ira como o personagem Jim Rawley, administrador do

Weedpatch Camp e, ao lado de Carol Henning, o romance também seria

dedicado para ele, who lived it, “que o viveu”.

Entre 5 e 12 de outubro de 1936, dois meses depois de sua primeira

viagem aos campos de migrantes e do seu primeiro encontro com Collins,

Steinbeck publicaria sete artigos no San Francisco News, sob o título de

The Harvest Gypsies, sobre a situação dos agricultores migrantes. Em

The Harvest Gypsies, estão expostos os elementos históricos, políticos,

filosóficos e morais que John Steinbeck de seguida trataria em seu mais

conhecido romance, de modo que a sua série de artigos para o San Fran-

cisco News pode ser compreendida como o principal ponto de partida

para a concepção e elaboração de As Vinhas da Ira. Todo o conteúdo

histórico e teórico de The Harvest Gypsies estaria presente, na forma de

ficção ou na forma de comentários críticos, em seu romance: o contexto

social, histórico e econômico dos migrantes; a diferenciação entre a

condição social – e racial – dos imigrantes estrangeiros e a dos migrantes

americanos; a defesa dos valores democráticos e populares do “antigo

modo de vida americano”, baseado na pequena propriedade e no pequeno

agricultor; a descrição e comparação entre os campos de migrantes im-

provisados (Hoovervilles), aqueles mantidos pelos grandes proprietários e

aqueles construídos pelo Governo federal através da Resettlement Admi-

9 Através dos relatórios de Collins, Steinbeck teria acesso a documentações e fontes

sobre os Okies e conheceria os seus costumes e até mesmo a sua maneira de falar

(Starr, 1996, p. 253). Outra importante fonte de informação para Steinbeck seriam

os registros de Sanora Babb (1907-2005), funcionária da Farm Security Administra-

tion, que trabalhava com Collins. Babb também publicaria um romance ambientado

nos campos de migrantes, Whose names are unknown (2004).

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nistration; e, por último, a dependência histórica da grande produção

agrícola da Califórnia do trabalho sazonal e migrante, e os métodos de

controle e coerção da mão de obra desenvolvidos pelos grandes proprietá-

rios.

Obviamente, não apenas as contribuições históricas e críticas de The

Harvest Gypsies, como também as suas limitações, seriam transplantadas

para o romance. Ao contextualizar a situação dos Okies, tratando-os

como “refugiados do Dust Bowl e da seca” e como um grupo de america-

nos distinto socialmente dos imigrantes estrangeiros e anteriormente

habituados à pequena produção agrícola e à democracia popular, Steinbeck

realiza um “recorte literário” que deixa de lado diversos antecedentes his-

tóricos e políticos importantes para a compreensão da onda migratória

para a Califórnia nos anos 1930.

Em primeiro lugar, é importante lembrar que aqueles agricultores do

Centro-Oeste norte-americano não eram pequenos proprietários de terra

alguma, vivendo na sua maioria como arrendatários ou meeiros que se

deslocavam continuamente de propriedade em propriedade sempre que

venciam os seus curtos contratos de arrendamento. Em segundo lugar, os

agricultores perfaziam apenas uma parcela dos trabalhadores oriundos do

Centro-Oeste no período, de um terço a metade dos migrantes, sendo a

outra parte deles trabalhadores industriais e do setor de serviços que se

dirigiam às cidades e não ao campo.

Em terceiro lugar, os agricultores migrantes do Centro-Oeste convi-

viam com as intempéries climáticas da região há muito tempo, incluindo

longos períodos de seca e tempestades de poeira. Apesar destas terem

sido mais prolongadas e intensas nos anos 1930, não poderiam ser trata-

das como principais causadoras daquela onda migratória, especialmente

porque a região mais afetada pelo Dust Bowl, a panhandle de Oklahoma,

era pouco povoada e contribuiu pouco para a migração. Além disso, a

maioria dos migrantes viriam do Leste de Oklahoma, região menos

afetada por aqueles fenômenos. O principal deflagrador da nova onda

migratória era a grave crise econômica, que atingia severamente tanto o

campo quanto a cidade. Caso fosse um acontecimento ligado apenas ao

campo, como a seca e as tempestades de poeira, a maioria maciça dos

migrantes seria proveniente da população rural, o que não ocorreu.

Em quarto lugar, o idealizado “antigo – e peculiar – modo de vida

americano” baseado na pequena propriedade privada foi, ele mesmo, um

dos principais elementos econômicos e políticos deflagradores tanto da

crise econômica, quanto socioambiental na década de 1930. A democra-

cia popular e agrária de Thomas Jefferson, sedimentada na Declaração da

Independência dos Estados Unidos, seria a grande propulsora e legitima-

dora da expansão territorial, populacional e econômica do país rumo ao

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oeste. A compra da Louisiana em 1803, a Guerra Mexicano-Americana

de 1846, o povoamento acelerado e desordenado daquelas regiões e a

exploração mineral e agrícola intensiva, apesar de ter tido resultados

diferentes em Oklahoma e na Califórnia, seriam alguns dos motivos

históricos para as crises acumuladas nos anos 1930 e até mesmo para a

amplificação da seca e do Dust Bowl. Steinbeck compreendia, a partir de

um olhar nostálgico idealizado, a pequena propriedade privada apenas

como solução, não como causa.

Em quinto lugar, a diferenciação social entre os imigrantes estrangei-

ros e os migrantes americanos não encontra respaldo histórico que não

seja o preconceito fortemente enraizado na sociedade norte-americana e,

em especial, na californiana. Quando Steinbeck chegou aos campos de

migrantes nos vales centrais da Califórnia, havia tanto estrangeiros quan-

to nativos e, de modo algum, já se havia dado a substituição dos primei-

ros pelos últimos (Cunningham, 2002). Os imigrantes estrangeiros ruma-

vam à Califórnia em busca de trabalho e melhores condições de vida,

assim como os Okies.

Apesar das questões abordadas acima, o fato foi que, desde que publi-

cara The Harvest Gypsies, Steinbeck havia pensado em dar continuidade

àquele trabalho. Inicialmente, pretendeu expandir a série de artigos e dar-

-lhe o formato de um livro documentário. Após nova e longa viagem aos

campos de migrantes em outubro de 1937, o escritor definiu que escreve-

ria não um documentário, mas uma ficção a partir de The Harvest Gypsies,

e que ela se intitularia The Oklahomans (Starr, 1996). Steinbeck dedicar-

-se-ia ao romance do outono de 1937 até a primavera de 1938. Nesse

período, segundo David Peeler (2008), reuniu material para o seu roman-

ce sobre os agricultores migrantes e, embora nunca tivesse acompanhado

os Okies na viagem rumo à Califórnia, ele havia trabalhado com alguns

deles nos campos e realizado entrevistas, além de dispor dos registros de

Thomas Collins (Peeler, 2008, p. 161-162).

Em meados de fevereiro de 1938, Steinbeck partiria para uma nova

viagem de dez dias, novamente com Collins, para a cidade de Visalia,

região de San Joaquin Valley (Schultz; Li, 2005). Além dos problemas

recorrentes dos trabalhadores migrantes, Visalia estava devastada por

fortes temporais, e Steinbeck visitaria as áreas inundadas, onde “quatro

mil famílias alagadas em suas barracas estavam morrendo de fome”

(Steinbeck apud Bloom, 2007, p. 151). Segundo Shillinglaw (2014), a

visita a Visalia e a visão ainda mais catastrófica que teve da situação dos

migrantes determinariam uma nova virada de rumo nos planos de seu

romance. Deixou de lado The Oklahomans ainda em fevereiro de 1938 e,

até maio daquele ano, escreveria uma sátira ácida, feroz e burlesca sobre

a greve nas plantações de alface em Salinas, sua cidade natal, que contou

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com dura repressão por parte dos agentes dos fazendeiros, lançando mão

de táticas antigreve, como perseguição a lideranças e vigilância (Shillin-

glaw, 2014). O livro intitular-se-ia L’Affaire Lettuceberg. No entanto,

Carol Henning seria uma das únicas pessoas a ler o seu manuscrito, achan-

do-o difícil, vulgar e tedioso (Starr, 1996). Assim, Steinbeck o destruiria

poucos dias depois de concluído.

A profunda impressão que as enchentes de Visalia lhe deixou faria

Steinbeck abdicar da concepção original de The Oklahomans e, infeliz

com o resultado do L’Affaire Lettuceberg, passaria a dedicar-se a um

novo romance. Entre 15 e 25 de maio de 1938, seria concebido As Vinhas

da Ira (Demott, 1990). Tendo em vista as tentativas anteriores de retratar

a saga e a dura condição de vida dos trabalhadores migrantes, Steinbeck

já tinha à sua disposição bastante material para o futuro romance. Em

apenas cem dias de trabalho, entre o final de maio e o final de outubro de

1938, Steinbeck escreveria o volumoso livro.

Aspectos literários de As Vinhas da Ira

As Vinhas da Ira retrata a história de uma família de Oklahoma que

parte para o oeste dos Estados Unidos em busca de melhores condições

de vida e de trabalho. A trama passa-se durante os anos 1930 e o seu

autor apresenta ao leitor as possíveis relações entre a história daquela

família (os Joads) e as conjunturas social, histórica, econômica e am-

biental daquele momento, focando principalmente nas grandes secas dos

anos 1930 dos EUA e no Dust Bowl, no processo de mecanização tecno-

lógica da agricultura no país, na avançada financeirização da economia

agrícola na Costa Oeste e nos efeitos da grande crise econômica do final

da década de 1920.

A trama histórica apresenta as mais diversas situações – individuais,

familiares, coletivas, conjunturais, econômicas, governamentais, am-

bientais –, que se entrelaçam diante dos olhos do leitor, ora formando, ora

desatando nós complexos, dos quais não se pode entrar ou sair de maneira

apenas superficial. Estruturalmente, As Vinhas da Ira é contado em trinta

capítulos, nem todos eles narrativos. Por vezes, o autor vale-se de alguns

capítulos para fazer digressões, apresentar situações que ainda estão por

vir, esboçar cenários históricos para a familiarização do leitor, ou tecer

comentários sobre as situações que narra, deixando à mostra alguns traços

de seu perfil político e ideológico.

Os capítulos não ficcionais são denominados “intercapítulos”. Como a

própria designação sugere, há no romance uma alternância entre interca-

pítulos não narrativos (discursivos) e capítulos narrativos. De acordo com

Cyrus Zirakzadeh (2004), num total de trinta, os capítulos narrativos são

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os de número par, exceto o 12 e o 14, e incluindo o 13, e os intercapítulos

são os de número ímpar, exceto o 13, e incluindo o 12 e o 14 (Zirakzadeh,

2004, p. 19). Os intercapítulos precedem os capítulos narrativos e, nor-

malmente, oferecem uma dimensão geral, sinóptica, do que será narrado

a seguir. Apesar de compartilharem o mesmo tema, os dois tipos de

capítulos são independentes entre si, podendo ser lidos individualmente

sem prejuízo para a compreensão tanto do texto dissertativo, quanto do

narrativo. No entanto, Steinbeck deixa “referências cruzadas”, ou “ves-

tígios” temáticos semelhantes em ambos, de maneira a promover sua

integração estética, o encontro entre os dois estilos em uma obra única

(Lisca, 1957).

A sucessão entre intercapítulos e capítulos também proporciona uma

estrutura rítmica para o romance baseada na alternância entre os tempos

distintos da dissertação e da narração/descrição. Tal forma contrapontual

atribuiria a As Vinhas da Ira a característica de um romance sinfônico. De

fato, durante o período de concepção e redação do romance, Steinbeck

dividia o tempo da escrita ouvindo sinfonias e sonatas de Beethoven,

Tchaikóvski e Stravínski (Demott, 1990). Numa carta a Merle Armitage

em 17 de fevereiro de 1939, enquanto ainda concebia o romance, Stein-

beck revelaria o seu método de composição: “Eu tenho trabalhado em

uma técnica musical (…) e tenho tentado usar as formas e a matemática

da música ao invés daquelas da prosa (…). Em sua composição, movi-

mento, tom e abrangência, [o romance] é sinfônico” (Steinbeck apud

Demott, 1990, p. 14. Tradução nossa).

Paralelamente, a estrutura contrapontual do romance também teria su-

as fontes na própria literatura. Segundo Peter Lisca (1957), a concepção e

os materiais que dispunha para elaboração de As Vinhas da Ira coloca-

vam Steinbeck diante da mesma questão estrutural posta a Liev Tolstói

(1828-1910) ao escrever Guerra e Paz (1869), tendo como material

factual as guerras napoleônicas. Tolstói teria resolvido o seu desafio

literário dispondo narrativas ficcionais de dramas familiares ao lado de

“intercapítulos” filosóficos. Do mesmo modo, o escritor norte-americano

John dos Passos (1896-1970), ao conceber e elaborar a sua “trilogia

americana” (1930-1936), teria lançado mão de expedientes literários

semelhantes, alternando a narração ficcional até mesmo com notícias de

jornal.

Numa dimensão mais abrangente de composição, As Vinhas da Ira

também pode ser dividida em três grandes blocos de ação baseados em

seus três sucessivos movimentos ficcionais: a seca, a viagem e a Califór-

nia. Segundo Peter Lisca (1957), a seção da “seca” iria do início do

romance até o capítulo 10, seguida pela “viagem”, até o capítulo 18 e, daí

até o final, a última seção, “Califórnia”. Para Lisca, estes três grandes

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movimentos atuariam como verdadeiros personagens na trama, tendo em

vista as suas ações e repercussões na jornada da família Joad: a crueldade

da seca e a força das tempestades de poeira, a extensão interminável e

angustiante da Highway 66 e as falsas promessas da Califórnia (Lisca,

1957, pp. 301-302). Para o autor, a composição ternária do romance teria

raízes na estrutura do Antigo Testamento (o próprio Steinbeck teria dito à

época que estava trabalhando em três romances interrelacionados), de

modo que à “seca” corresponderia a opressão do povo hebreu no Egito, à

“viagem”, o êxodo, e à Califórnia corresponderia a terra prometida, Canaã.

Lisca (1957) ainda sustenta que a estrutura bíblica de As Vinhas da Ira

se estende para além da sua forma, possuindo o romance diversas passa-

gens simbólicas e alusivas ao texto bíblico. Por exemplo, o próprio título

do romance seria extraído da canção The Battle Hymn of the Republic

que, por sua vez, fazia referência ao Apocalipse e à justiça divina; assim

como o povo hebreu, a Mãe Joad (Ma Joad) referia-se aos seus como

“Nós somos o povo” (Steinbeck, 2012, p. 339); o personagem de Rosa-

sharn – o seu próprio nome remete a Cristo, a rosa de Sharon, o lírio dos

vales (Cântico dos Cânticos, 2:1), que oferece o seu próprio corpo, assim

como Rosasharn oferece o seu seio – dá a luz a um bebê morto que,

colocado num caixote de maçãs por Tio John (Uncle John), é deixado no

leito de um riacho para que pudesse “dizer para eles o que aconteceu”

(Steinbeck, 2012, 548), assim como Moisés foi deixado no Nilo para que

pudesse sobreviver e salvar os seus.

Finalmente, o maior símbolo cristão em As Vinhas da Ira seria o per-

sonagem Jim Casy, que, além de trazer as mesmas iniciais de Jesus

Cristo, possuía na família Joad doze discípulos (Trodd, 2008), havia

estado “nas colinas, cismando, tal qual Jesus devia ter cismado quando se

meteu deserto adentro para encontrar uma solução para as suas aflições”

(Steinbeck, 2012, p. 95-96) e, tornando-se sindicalista e emboscado por

capangas, diria “Vocês não sabem o que estão fazendo” (Steinbeck, 2012,

p. 420), as mesmas últimas palavras de Jesus Cristo crucificado (Lucas,

23:34).

No entanto, como diz Zoe Trodd (2008), Steinbeck valia-se do simbo-

lismo bíblico e cristão não apenas por sua eficácia comunicativa, uma vez

que permitira uma familiaridade maior com o leitor, como também se

valia do seu reverso (Trodd, 2008). A aproximação do leitor através do

simbolismo bíblico era posta ao lado da ironia e da crítica religiosa. Para

Trodd, tal movimento dava forma a algo além do simbolismo, o que

denominou de “ação simbólica”, pois propulsionaria o leitor à reflexão

através do pareamento entre as analogias bíblicas e a sua contestação

(Trodd, 2008, p. 25). Assim, Jim Casy, antigo pastor e encarnação do

próprio Jesus Cristo, era acometido por pensamentos pecaminosos e

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entregava-se ao prazer com as beatas de sua igreja, e ainda blasfemava,

questionando a Sua existência.

Ao colocar em questão a existência divina, negá-la e descobrir a di-

vindidade na humanidade, Casy não apenas se afastava dos princípios

bíblicos elementares que também trazia consigo, como apresentava –

também simbolicamente – os princípios seculares da sociedade norte-

-americana. Para Frederic Carpenter (1941), Jim Casy “traduz a filosofia

americana em palavras” (Carpenter, 1941, p. 316). Se Jim Casy encarna

Jesus Cristo, ele também encarna Ralph Waldo Emerson, que, assim

como ele, largou o ministério religioso em nome de ideias não ortodoxas.

Para Emerson, o homem e a natureza deviam formar uma unidade, o Ser

Superior (The Oversoul), que abrigava a divindade, baseava-se no amor

entre os seres humanos e era o cerne de seu misticismo transcendental.

Assim, Casy larga o ministério religioso para exercer um amor terreno, e

o Espírito Santo tomaria forma no próprio espírito humano. Na passagem

do amor à humanidade em geral, ao amor ao “povo” em particular, Casy

também passaria de Emerson a Walt Whitman. O personagem gosta do

povo “a ponto de rebentar”. O povo, enquanto grupo social geral, era um

agregado natural para Whitman, praticante de uma democracia instintiva

e distinta do socialismo abstrato e “imposto de cima para baixo” (Carpen-

ter, 1941, p. 319). Seria este comunitarismo instintivo, baseado no agre-

gado natural – e místico – de indivíduos, que também estaria presente nas

últimas palavras de Tom Joad, ao despedir-se de sua mãe, decidido a

deixar definitivamente a família e a unir-se espiritualmente à humanidade

em geral.

Os diversos elementos literários articulados por Steinbeck em As Vi-

nhas da Ira constituiriam em seu conjunto uma resposta para a histórica e

polêmica dicotomia no campo da estética entre o “conteúdo” e a “forma”

da obra de arte. Segundo Zoe Trodd (2008), As Vinhas da Ira era um

exemplar característico da literatura de protesto e, como tal, solucionava

aquela dicotomia através de uma “política da forma”, que reunia e entre-

laçava os elementos do conteúdo e da forma, fazendo que a existência de

um não significasse o ofuscamento da outra (Trodd, 2008).

Dessa maneira, as variáveis estéticas do romance de Steinbeck esta-

riam plenamente integradas ao seu conteúdo, fosse ele de ordem subjeti-

va, social, política ou filosófica. Para Trodd (2008), a política da forma

fazia-se presente no romance através da empatia (a promoção da identifi-

cação ativa do leitor com a trama e seus personagens, capaz de gerar não

simplesmente a simpatia, como também o compromisso); o poder de

choque (a capacidade de “acordar” o leitor para as situações representa-

das e de levá-lo à ação); a ação simbólica (a passagem do simbolismo

imediato à abertura do romance à interpretação do leitor, através da

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dualidade, da sucessão entre aproximação e distanciamento); e da evoca-

ção da memória popular (a comunicação do romance com a tradição

literária e histórica).

Considerações finais

Este trabalho pretendeu abordar a interação entre os fatos históricos ao

redor de John Steinbeck e a sua atividade artístico-literária. O indíviduo,

a arte e a história articularam-se de tal forma em sua vida, que a separa-

ção dessas dimensões só pode ser feita correndo-se o risco de compro-

meter o entendimento da complexidade e simultaneidade daquela relação.

Nesta análise específica do escritor, percebe-se como a sua obra em

questão, As Vinhas da Ira, oferece um privilegiado portal para compreen-

são do homem e do seu tempo. Tanto o conteúdo quanto a forma de seu

romance têm raízes mais profundas do que se pode imaginar à primeira

vista: através de um, temos acesso à história norte-americana, de sua

independência até à primeira metade do século XX, e também descobri-

mos como a constituição dos Estados Unidos esteve atrelada às histórias

de tantos outros povos e sociedades, e até mesmo como a dinâmica

(física) do clima interagiu com a sua economia, com a sua geografia e

com a sua população (humanas); através da outra, percorremos os mais

variados estilos literários, desde as escrituras bíblicas até a literatura

moderna, passando por Tolstói e John dos Passos, e incluindo a música

sinfônica. E, ao final, através do encontro promovido pela obra de arte

entre o conteúdo e a forma, percebemos o quanto entrelaçam-se história e

literatura, uma dispondo materiais, outra forjando-os à sua maneira,

filtrando e remodelando aqueles através das mãos e mentes dos artistas.

A miríade de acontecimentos históricos e de estilos artísticos disponí-

veis concorreu para a formação do homem e do artista Steinbeck na

medida que se expunha – conscientemente ou não, propositadamente ou

não – aos fatos e pensamentos contemporâneos, e na medida em que agia

dialeticamente em relação àqueles, escolhendo, opinando e produzindo.

Sem dúvida, Steinbeck, posto em relação com a história e com a arte,

revela diversas contribuições e limitações, algumas das quais demonstra-

das ao longo deste trabalho. Vimos que, tanto da filosofia quanto da

política, Steinbeck assimilou ensinamentos sem, no entanto, se compro-

meter definitivamente com nenhum deles. O seu elo mais intenso de

relação com as diversas teorias, com os demais seres humanos e aconte-

cimentos, era a sua intensa e imediata sensibilidade, que poderia tanto o

animar em direção à denúncia social da dura situação dos migrantes

americanos nos anos 1930, quanto o animar em direção a sua própria

subjetividade, como o faria no último período de sua carreira.

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Estando, como ele próprio colocara, disponível para sorver tudo o que

dele se aproximasse e transformá-lo em seguida em literatura, não se

pode queixar que assim não o tenha feito. Paradoxalmente, se o seu

ecletismo político e literário é o que dificulta tomá-lo por inteiro, ao

mesmo tempo, é o que garante a riqueza e a complexidade de sua vida e

obra.

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O CAPITAL, CAPÍTULO XXIV, LIVRO I

A CHAMADA ACUMULAÇÃO PRIMITIVA*

Karl Marx

1. O segredo da acumulação primitiva

Viu-se como o dinheiro é transformado em capital, como por meio do

capital é produzida mais-valia e da mais-valia mais capital. A acumulação

do capital, porém, pressupõe a mais-valia, a mais-valia, a produção

capitalista, e esta, por sua vez, a existência de massas relativamente

grandes de capital e de força de trabalho nas mãos de produtores de

mercadorias. Todo esse movimento parece, portanto, girar num círculo

vicioso, do qual só podemos sair supondo [unterstellen] uma “acumula-

ção primitiva” [previous accumulation, em Adam Smith], precedente à

acumulação capitalista, uma acumulação que não é resultado do modo de

produção capitalista, mas seu ponto de partida.

Essa acumulação primitiva desempenha na economia política um pa-

pel análogo ao pecado original na teologia. Adão mordeu a maçã e deste

modo o pecado desceu sobre o género humano. Explica-se a sua origem

contando-a como episódio ocorrido no passado. Em tempos muito remo-

* Texto fixado por António Simões do Paço (Janeiro de 2017), tomando por base a

edição brasileira da Abril Cultural (São Paulo, 1984) de O Capital, de Karl Marx,

Livro I, Tomo 2, capítulo XXIV, compulsada com a tradução (do alemão) de José

Barata-Moura e Álvaro Pina (publicada segundo o texto da 4.ª edição alemã de

1890) para a Editorial Avante! (in www.marxists.org/portugues/marx/1867/capital

/cap24/#tr1) e com a tradução inglesa de Samuel Moore e Edward Aveling, editada

por Friedrich Engels, Karl Marx. Capital Volume One, Part VIII: Primitive Accu-

mulation. Versão online: Marx/Engels Internet Archive (marxists.org) 1995, 1999.

In www.marxists.org/archive/marx/works/1867-c1/index.htm. Consultada em 6 de

janeiro de 2017.

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tos, havia, por um lado, uma elite laboriosa, inteligente e sobretudo

parcimoniosa, e, por outro lado, uma ralé preguiçosa que dissipava tudo o

que tinha e mais que houvesse. A lenda do pecado original teológico

conta-nos, certamente, como o homem foi condenado a ganhar o seu pão

com o suor do seu rosto; no entanto, a história do pecado original econó-

mico revela-nos por que há gente que não tem necessidade disso. Tanto

faz. Assim se explica que os primeiros acumularam riquezas e os últimos,

finalmente, nada tinham para vender a não ser a sua própria pele. E desse

pecado original data a pobreza da grande massa que até agora, apesar de

todo seu trabalho, nada possui para vender senão a si mesma, e a riqueza

dos poucos, que cresce continuamente, embora há muito tenham deixado

de trabalhar. Esta trivial história para crianças conta-a ainda, por exem-

plo, o senhor Thiers, com o ar sério das solenidades de Estado, aos Fran-

ceses outrora de espírito tão vivo, em defesa da propriété.1 Mas assim

que a questão da propriedade está em jogo, torna-se dever sagrado manter

o ponto de vista da cartilha infantil como o único justo para todas as

classes etárias e etapas de desenvolvimento. Na história real, como se

sabe, a conquista, a subjugação, o assassínio para roubar, em suma, a

violência, desempenham o principal papel. Na suave economia política

reinou desde sempre o idílio. Desde sempre, o direito e o “trabalho” têm

sido os únicos meios de enriquecimento, exceptuando-se de cada vez,

naturalmente, “este ano”. Na realidade, os métodos da acumulação pri-

mitiva são tudo menos idílicos.

Dinheiro e mercadoria, desde o princípio, são tão pouco capital quanto

os meios de produção e de subsistência. Eles requerem a sua transforma-

ção em capital. Mas essa transformação só pode realizar-se em determi-

nadas circunstâncias, que se resumem ao seguinte: duas espécies bem

diferentes de possuidores de mercadorias têm de defrontar-se e entrar em

contacto; de um lado, possuidores de dinheiro, meios de produção e

meios de subsistência, que se propõem valorizar a soma de valor que

possuem por meio da compra de força de trabalho alheia; do outro, tra-

balhadores livres, vendedores da própria força de trabalho e, portanto,

vendedores de trabalho. Trabalhadores livres num duplo sentido, porque

não pertencem directamente aos meios de produção, como os escravos, os

servos, etc., nem os meios de produção lhes pertencem, como, por exem-

plo, o camponês economicamente autónomo, etc., antes estão livres deles,

livres e sem responsabilidades. Com essa polarização do mercado estão

dadas as condições fundamentais da produção capitalista. A relação de

capital pressupõe a separação entre os trabalhadores e a propriedade das

condições da realização do trabalho. Assim que a produção capitalista se

1 Propriedade. Em francês no texto.

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apoia nos seus próprios pés, não só conserva aquela separação, como a

reproduz em escala sempre crescente. Portanto, o processo que cria a

relação de capital não pode ser outra coisa que o processo de separação

do trabalhador da propriedade das condições do seu trabalho, um proces-

so que transforma, por um lado, os meios de subsistência e de produção

em capital, e por outro, os produtores directos em trabalhadores assala-

riados. A chamada acumulação primitiva não é mais, portanto, que o

processo histórico de separação entre produtor e meio de produção. Ele

aparece como “primitivo” porque constitui a pré-história do capital e do

modo de produção que lhe corresponde.

A estrutura económica da sociedade capitalista proveio da estrutura

económica da sociedade feudal. A decomposição desta libertou os ele-

mentos daquela.

O produtor imediato, o trabalhador, somente pôde dispor da sua pes-

soa depois de deixar de estar vinculado à gleba e de ser servo ou depen-

dente de outra pessoa. Para tornar-se vendedor livre de força de trabalho,

que leva a sua mercadoria a qualquer lugar onde houver mercado para

ela, ele precisava ainda de ter escapado ao domínio das corporações, dos

seus regulamentos para aprendizes e oficiais e das prescrições restritivas

do trabalho. Assim, o movimento histórico que transforma os produtores

em trabalhadores assalariados aparece, por um lado, como a sua liberta-

ção da servidão e da coacção corporativa; e esse aspecto é o único que

existe para os nossos escribas burgueses da história. Por outro lado,

porém, esses recém-libertos só se tornam vendedores de si mesmos

depois de todos os seus meios de produção e todas as garantias da sua

existência oferecidas pelas velhas instituições feudais lhes terem sido

roubados. E a história dessa sua expropriação está inscrita nos anais da

humanidade com traços de sangue e fogo.

Os capitalistas industriais, estes novos potentados, tiveram de desalo-

jar, por sua vez, não apenas os mestres-artesãos corporativos, mas tam-

bém os senhores feudais, possuidores das fontes de riquezas. Sob este

aspecto, a sua ascensão apresenta-se como fruto de uma luta vitoriosa

contra o poder feudal e os seus privilégios revoltantes, assim como contra

as corporações e os entraves que estas opunham ao livre desenvolvimento

da produção e à livre exploração do homem pelo homem. Mas os cavalei-

ros da indústria só conseguiram desalojar os cavaleiros da espada explo-

rando acontecimentos em que não tiveram a menor culpa. Eles elevaram-

-se por meios tão vis como aqueles por meio dos quais o liberto romano

se fez outrora senhor do seu patronus.2

2 Senhor, amo, patrão (por extensão). Em latim no texto.

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204 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …

O ponto de partida do desenvolvimento que produziu tanto o trabalha-

dor assalariado como o capitalista foi a servidão do trabalhador. A conti-

nuação consistiu numa mudança de forma dessa sujeição, na transforma-

ção da exploração feudal em capitalista. Para compreender o seu curso

não precisamos de recuar muito. Ainda que os primórdios da produção

capitalista já se nos apresentem esporadicamente nalgumas cidades

mediterrânicas nos séculos XIV e XV, a era capitalista só data do século

XVI. Onde ela surge, a servidão já está abolida há muito tempo e o ponto

mais brilhante da Idade Média, a existência de cidades soberanas, há

muito começou a empalidecer.

O que faz época na história da acumulação primitiva são todos os re-

volucionamentos que servem de alavanca à classe capitalista em forma-

ção, sobretudo, porém, todos os momentos em que grandes massas hu-

manas são arrancadas súbita e violentamente aos seus meios de

subsistência e lançadas no mercado de trabalho como proletários livres

como passarinhos.3 A expropriação da base fundiária do produtor rural,

do camponês, forma a base de todo o processo. A sua história assume

coloração diferente nos diversos países e percorre as várias fases em

sequência diversa e em diferentes épocas históricas. Apenas na Inglaterra,

que, por isso, tomamos como exemplo, assume a sua forma clássica.4

3 Vogelfrei, no original alemão.

4 Na Itália, onde a produção capitalista se desenvolveu mais cedo, ocorre também

mais cedo a dissolução das relações de servidão. O servo é emancipado aqui antes

de ter assegurado, por prescrição, qualquer direito à base fundiária. A sua emanci-

pação transforma-o, pois, imediatamente num proletário livre como os pássaros,

que, porém, já encontra os novos senhores nas cidades, na sua maioria originárias

da época de Roma. Quando a revolução do mercado mundial,ª no final do século

XV, destruiu a supremacia comercial do Norte da Itália, surgiu um movimento em

sentido contrário. Os trabalhadores das cidades foram expulsos em massa para o

campo e lá deram à pequena agricultura, exercida sob a forma de jardinagem, um

impulso nunca visto.

ª Marx fala aqui das consequências económicas dos grandes descobrimentos

geográficos do final do século XV. Devido ao descobrimento do caminho marítimo

para a Índia, ao descobrimento das ilhas das Índias Ocidentais e ao do continente

americano chegou-se a um extenso deslocamento das rotas do tráfego comercial. As

cidades comerciais do Norte de Itália (Génova e Veneza, entre outras) perderam a

sua predominância. Em contrapartida, Portugal, Países Baixos, Espanha e Inglaterra

começaram a desempenhar o papel principal no comércio mundial, favorecidos pela

sua posição em relação ao oceano Atlântico (nota da edição alemã).

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2. Expropriação do povo do campo da sua base fundiária

Em Inglaterra, a servidão tinha de facto desaparecido na parte final do

século XIV. A grande maioria da população5 consistia naquela época, e

mais ainda no século XV, de camponeses livres, economicamente autó-

nomos, fosse qual fosse o título feudal atrás do qual se escondia a sua

propriedade. Nos domínios senhoriais maiores, o bailiff [bailio, feitor],

outrora ele mesmo servo, foi desalojado pelo arrendatário livre. Os tra-

balhadores assalariados da agricultura consistiam, em parte, em campo-

neses, que aproveitavam o seu tempo livre trabalhando para os grandes

proprietários, em parte numa classe independente, relativa e absoluta-

mente pouco numerosa, de trabalhadores assalariados propriamente ditos.

Também estes eram, ao mesmo tempo, de facto camponeses economica-

mente autónomos, pois recebiam, além do seu salário, um terreno arável

de 4 ou mais acres além das cottages.6 Além disso, junto com os campo-

neses propriamente ditos, gozavam o usufruto das terras comunais, em

que pastava o seu gado e que lhes forneciam ao mesmo tempo com-

bustíveis, como lenha, turfa, etc.7 Em todos os países da Europa, a produ-

ção feudal é caracterizada pela partilha do solo entre o maior número

possível de súbditos. O poder de um senhor feudal, como o de qualquer

5 “Os pequenos proprietários fundiários, que cultivavam as suas terras com as pró-

prias mãos e usufruíam de um modesto bem-estar (...) constituíam então uma parte

muito importante da nação em relação aos tempos actuais. (...) Nada menos que 160

mil proprietários, que com as suas famílias deviam ter representado mais de 1/7 da

população total, viviam da exploração das suas pequenas parcelas freehold”

[freehold é propriedade plenamente livre]. “O rendimento médio desses pequenos

proprietários fundiários (...) é avaliado como sendo de 60 a 70 libras esterlinas.

Calculou-se que o número daqueles que cultivavam a sua própria terra era maior

que o dos rendeiros que lavravam terra alheia” (Macaulay. Hist. Of England, 10ª

ed., Londres, 1854, I pp. 333-334). Ainda no último terço do século XVII, 4/5 da

massa popular inglesa eram agricultores (Op.cit. p. 413) – Cito Macaulay porque,

como falsário sistemático da história, ele “poda” tanto quanto possível tais factos

(nota de Marx).

6 Em inglês no texto: pequenas casas rurais, cabanas.

7 Não se deve esquecer jamais que o próprio servo não era apenas proprietário, ainda

que proprietário sujeito a tributos, da parcela de terra pertencente à sua casa, mas

também co-proprietário das terras comunais. “O camponês é lá” (na Silésia) “ser-

vo”. Nao obstante, possuem esses serfs bens comunais. “Nao se conseguiu até agora

induzir os silesianos à partilha das terras comunais, enquanto na Neumark não

existe quase nenhuma aldeia em que essa partilha não tenha sido efetuada com

grande sucesso.” (Mirabeau. De la Monarchie Prussienne. Londres, 1788. T.II,

p. 125-126). (Nota de Marx).

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soberano, não se baseava no montante da sua renda, mas no número dos

seus súbditos, e este dependia do número de camponeses economica-

mente autónomos.8 Embora o solo inglês, depois da conquista normanda,

tenha sido dividido em baronias gigantescas, das quais uma única muitas

vezes abrangia a extensão de 900 antigos senhorios anglo-saxónicos, ele

estava salpicado de pequenas explorações camponesas, interrompidas

apenas aqui e ali por domínios senhoriais maiores. Tais condições, com o

florescimento simultâneo das cidades, característico do século XV, per-

mitiam aquela riqueza do povo de que o chanceler Fortescue tanto fala

em seus Laudibus Legum Angiliae, mas excluíam a riqueza de capital.

O prelúdio do revolucionamento que criou a base do modo de produ-

ção capitalista ocorreu no último terço do século XV e nas primeiras

décadas do século XVI. Uma massa de proletários livres como passari-

nhos foi lançada no mercado de trabalho pela dissolução dos séquitos

feudais, que, como observa acertadamente Sir James Steuart, “por toda a

parte enchiam inutilmente casa e castelo”.9 Embora o poder real, ele

próprio um produto do desenvolvimento burguês, na sua luta pela sobera-

nia absoluta tenha acelerado violentamente a dissolução desses séquitos,

não foi, de modo algum, a sua única causa. Foi muito mais, em oposição

mais teimosa à realeza e ao Parlamento, o grande senhor feudal quem

criou um proletariado incomparavelmente maior mediante a expulsão

violenta do campesinato da base fundiária, sobre a qual possuía o mesmo

título jurídico feudal que ele, e usurpação da sua terra comunal. O impul-

so imediato para isso foi dado, na Inglaterra, nomeadamente pelo flores-

cimento da manufactura flamenga de lã e o correspondente aumento dos

preços da lã. As grandes guerras feudais tinham devorado a velha nobreza

feudal, e a nova era filha do seu tempo, sendo para ela o dinheiro o poder

de todos os poderes. Por isso, a transformação de terras de lavoura em

pastagens para ovelhas tornou-se a sua divisa. Harrison, na sua Description

of England. Prefixed to Holinshed’s Chronicles, descreve como a expro-

priação dos pequenos camponeses arruína o pais. What care our great

incroachers! (Mas o que importa isso aos nossos grandes usurpadores!)

As habitações dos camponeses e as cottages dos trabalhadores foram

violentamente demolidas ou entregues à ruína.

8 O Japão, com o seu sistema puramente feudal de propriedade fundiária e a sua

economia desenvolvida de pequena agricultura, oferece um quadro muito mais fiel

da Idade Média europeia que todos os nossos livros de história, ditados na sua

maioria por preconceitos burgueses. É fácil demais ser “liberal” a custa da Idade

Média (Nota de Marx.)

9 Steuart, James. An Inquiry into the Principles of Political Economy. Dublin, 1770,

v. I, p. 52. (N. da Ed. Alemã.)

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“Consultando”, diz Harrison, “os inventários mais antigos de cada

domínio senhorial, ver-se-á que desapareceram inúmeras casas e pe-

quenas explorações camponesas, que o campo alimenta muito menos

gente, que muitas cidades decaíram, ainda que algumas novas flores-

çam. (...) De cidades e aldeias, que foram destruídas para dar lugar a

pastagens de ovelhas e onde ficaram apenas as casas senhoriais, eu

poderia dizer algo.”

As queixas daquelas antigas crónicas são sempre exageradas, mas

ilustram exactamente como a revolução nas condições de produção

impressionou os próprios contemporâneos. Uma comparação dos escritos

do chanceler Fortescue e de Thomas Morus torna visível o abismo entre

os séculos XV e XVI. Da sua idade de ouro, a classe trabalhadora inglesa

caiu sem transição, como Thornt diz acertadamente, à idade de ferro.

A legislação aterrorizou-se com esse revolucionamento. Não tinha

chegado àquele ápice da civilização em que wealth of the nation, isto é, a

formação do capital e a exploração inescrupulosa e o empobrecimento da

massa do povo é considerada o píncaro de toda a sabedoria de Estado. Na

sua história de Henrique VII, diz Bacon:

“Naquele tempo” (1489) “aumentaram as queixas sobre a transforma-

ção de terras de lavoura em pastagens” (para criação de ovelhas, etc.)

“fáceis de cuidar por poucos pastores; e arrendamentos por tempo de-

terminado, vitalícios ou anualmente revogáveis (dos quais vivia grande

parte dos yeomen10 foram transformados em domínios senhoriais. Isso

provocou uma decadência das cidades, igrejas, dízimos. (...) Na cura

desse mal, a sabedoria do rei e do Parlamento naquela época foi admi-

rável. (...) Tomaram medidas contra essa usurpação despovoadora das

terras comunais (depopulating inclosures) e a exploração pastoril des-

povoadora (depopulating pasture) que lhe seguia as pegadas”.

Um decreto de Henrique VII, 1489, c. 19, proibiu a destruição de to-

das as casas camponesas às quais pertencessem pelo menos 20 acres de

terra. Num decreto, 25, de Henrique VIII,11 a mesma lei é renovada. Diz-

-se ali, entre outras coisas, que

“muitos arrendamentos e grandes rebanhos de gado, especialmente de

ovelhas, acumulam-se em poucas mãos, por meio do que as rendas da

terra tinham crescido muito, decaindo, ao mesmo tempo, a lavoura

(tillage), sendo demolidas igrejas e casas e massas populares maravi-

lhosas incapacitadas de sustentar a si mesmas e às suas famílias”.

10 Pequenos proprietários rurais.

11 Ou seja, um decreto emitido no 25.º ano do reinado de Henrique VIII.

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A lei ordena, por isso, a reconstrução das propriedades camponesas

decaídas, determina a proporção entre campos de cereais e pastagens, etc.

Um decreto de 1533 lamenta que alguns proprietários possuíam 24 mil

ovelhas e limita o seu número a duas mil.12 As queixas do povo e a legis-

lação que, a partir de Henrique VII, continuamente, por 150 anos, se

voltava contra a expropriação dos pequenos rendeiros e camponeses,

foram igualmente infrutíferas. O segredo do seu fracasso é-nos revelado

por Bacon, sem o saber.

“O decreto de Henrique VII” diz ele nos seus Essays, Civil and Moral,

seção 29, “era profundo e digno de admiração ao criar explorações

camponesas e casas rurais de determinado padrão, isto é, ao manter

para os lavradores uma proporção de terra que os capacitava a trazer

ao mundo súbditos com riqueza suficiente e sem posição servil, man-

tendo o arado na mão de proprietários e não de trabalhadores alugados

(to keep the plough in the hand of the owners and not hirelings).”13

Mas o que o sistema capitalista requeria era, pelo contrário, uma posi-

ção servil da massa do povo, a sua transformação em trabalhadores para

aluguer e a dos seus meios de trabalho em capital. Durante esse período

de transição, a legislação procurou também conservar os 4 acres de terra

junto à cottage do assalariado agrícola e proibiu-o de ter inquilinos na sua

cottage. Ainda em 1627, no reinado de Carlos I, Roger Crocker de

12 Na sua Utopia, Thomas Morus fala de uns pais singular onde “os carneiros devo-

ram os homens”. (Utopia. Tradução de Robinson. Ed. Arber, Londres, 1869,

p. 41). (Nota de Marx.)

13 Bacon mostra a relação entre um campesinato abastado e livre e uma boa infantaria.

“Era admiravelmente importante para o poder e manutencao do reino ter arrenda-

mentos de áreas suficientes para sustentar homens capazes sem penúria e assegurar

que grande parte do solo do reino ficasse na posse da yeomanry ou de pessoas em

condições médias entre os nobres e os caseiros (cottagers) e servos camponeses. (...)

Pois é a opinião geral dos mais competentes conhecedores da guerra (...) que a força

principal de um exército consiste na infantaria ou nos combatentes a pé. Mas para

constituir uma boa infantaria necessita-se de pessoas que se criaram não de modo

servil ou na indigência, mas em liberdade e com certo bem-estar. Quando um Estado

excede em pessoas nobres e senhores finos, enquanto os aldeões e lavradores não

passam de meros trabalhadores ou servos agrícolas, ou ainda caseiros, isto é, mendi-

gos alojados, pode-se ter uma boa cavalaria, mas nunca se terá uma infantaria boa e

firme. (...) Isso é o que se vê na França e Itália e em algumas outras regiões estran-

geiras, onde de facto todos são ou nobres ou camponeses miseráveis (...) até ao ponto

em que são obrigados a empregar bandos mercenários de suíços ou semelhantes para

os seus batalhões de infantaria: o que também faz que essas nações tenham muito

povo e poucos soldados.”(The reign of Henry VII etc. Verbatim Reprint from Ken-

net’s England, ed. 1719. Londres, 1870, p. 308.) (Nota de Marx.)

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Fontmill foi condenado pela construção no domínio de Fontmill de uma

cottage sem 4 acres de terra como anexo permanente; ainda em 1638, no

reinado de Carlos I, foi nomeada uma comissão real para impor a execu-

ção das velhas leis, nomeadamente sobre os 4 acres de terra; Cromwell

também proibiu a construção de uma casa num raio de 4 milhas ao redor

de Londres se não estivesse dotada de 4 acres de terra. Ainda na primeira

metade do século XVIII fazem-se queixas quando a cottage do trabalha-

dor agrícola não tem como complemento 1 ou 2 acres. Hoje ele fica feliz

quando ela é dotada de um jardinzinho ou quando pode arrendar longe

dela umas poucas varas de terra.

“Senhores da terra e rendeiros”, diz o Dr. Hunter, “agem, neste caso,

de mãos dadas. Alguns acres junto com a cottage tornariam o traba-

lhador demasiado independente.”14

O processo de expropriação violenta da massa do povo recebeu novo e

terrível impulso no século XVI pela Reforma e, em consequência dela,

pelo roubo colossal dos bens da Igreja. A Igreja católica era, ao tempo da

Reforma, proprietária feudal de uma grande parte da terra inglesa. A

supressão dos conventos, etc., lançou os seus moradores na proletariza-

ção. Os próprios bens da Igreja foram, em grande parte, entregues a

favoritos reais rapaces ou vendidos por um preço irrisório a rendeiros ou

a citadinos especuladores, que expulsaram em massa os antigos súbditos

hereditários, juntando as suas explorações. A propriedade legalmente

garantida a camponeses empobrecidos de uma parte dos dízimos da Igreja

foi facilmente confiscada.15 Pauper ubique jacet,16 exclamou a rainha

Isabel após uma viagem pela Inglaterra. No 43.º ano de seu reinado, foi

forçado finalmente o reconhecimento oficial do pauperismo, mediante a

introdução do imposto para os pobres.

“Os autores dessa lei envergonhavam-se de enunciar as suas razões e

por isso, contra toda a tradição, trouxeram-na ao mundo sem nenhum

preâmbulo (exposição de motivos).17

14 Dr. Hunter. Op. cit., p. 134. – “A quantidade de terra que” (nas velhas leis) “era

atribuída seria hoje considerada grande demais para trabalhadores e mais apropria-

da para transformá-los em pequenos rendeiros.” (Roberts, George. The Social His-

tory of the People of the Southern Counties of England in Post Centuries. Londres,

1856, p. 184.) (Nota de Marx.)

15 “O direito dos pobres a participar nos dízimos da Igreja é fixado por velhos

estatutos.”(Tucket. Op cit., v. II, p. 804-805.)

16 “Em toda a parte os pobres sao infortunados.” – Da obra de Ovídio Fasti. Livro

Primeiro, verso 218. (N. da Ed. Alemã.)

17 Cobbet, William. A History of the Protestant Reformation. § 471. (Nota de Marx.)

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Essa lei foi declarada perpétua pela [lei] 4, do 16.° [ano do reinado] de

Carlos I e de facto só em 1834 é que recebeu uma nova forma, mais dura.18

Esses efeitos imediatos da Reforma não foram os mais persistentes. A

propriedade da Igreja constituía o baluarte religioso das antigas relações de

propriedade. Ao cair aquela, estas não poderiam ser mantidas.19

18 Reconhece-se o «espírito» protestante, entre outras coisas, no seguinte. No Sul de

Inglaterra vários proprietários fundiários e rendeiros abastados juntaram-se e redi-giram 10 questões sobre a correcta interpretação da lei dos pobres da [rainha] Isa-bel, questões essas que submeteram ao parecer de um jurista de nomeada daquele tempo, Sergeant Snigge (mais tarde juiz no reinado de Jaime I). “Questao 9 – Al-guns dos mais ricos rendeiros da paróquia inventaram um modo habilidoso pelo qual podia ser evitado todo o embaraço de executar esta Lei (no 43.° [ano do rei-nado] de Isabel). Propuseram que construamos uma prisão na paróquia e demos depois notícia à vizinhança de que se quaisquer pessoas estiverem dispostas a ar-rendar os pobres desta paróquia elas que entreguem propostas seladas, num certo dia, do preço mais baixo pelo qual no-los tirarão das mãos; e que estarão autoriza-dos a recusar assistência a qualquer pobre a menos que ele esteja encerrado na prisão acima dita. Os proponentes deste plano concebem que se encontrarão nos condados vizinhos pessoas que, não tendo vontade de trabalhar e não possuindo substância ou crédito para tomar uma quinta ou um navio, de modo a viverem sem trabalhar, poderão ser induzidas a fazer à paróquia uma oferta muito vantajosa. Se qualquer dos pobres perecer sob a protecção do contratante, a culpa ficar-lhe-á em casa uma vez que a paróquia terá feito o seu dever por eles. Estamos, no entanto, apreensivos pelo facto de a presente Lei (no 43.° [ano do reinado] de Isabel) não garantir uma medida prudencial deste tipo; mas, fica a saber que o resto dos pro-prietários livres do condado e do condado confinante de B muito prontamente se juntarão a dar instruções aos seus membros para que proponham uma lei que habi-lite a paróquia a contratar uma pessoa para prender os pobres e fazê-los trabalhar; e a declarar que se qualquer pessoa se recusar a ser deste modo presa e a trabalhar, não terá direito a qualquer assistência. Isto, espera-se, impedirá as pessoas em aflição de quererem assistência...» (R. Blakey, The History of Political Literature from the Earliest Times [A História da Literatura Política desde os Primeiros Tem-pos], Lond., 1855, vol. II, pp. 84-85.) – Na Escócia, a abolição da servidão teve lugar séculos mais tarde do que na Inglaterra. Ainda em 1698, Fletcher, de Sal-toun, declarava no Parlamento escocês: “O número de pedintes na Escócia está calculado em não menos de 200 000. O único remédio que eu, republicano por princípio, posso sugerir é que se restaure o antigo estado de servidão, para tornar escravos todos aqueles que são incapazes de prover à sua própria subsistência.”

Deste modo, Eden, The State of the Poor [A Situação dos Pobres], London, 1797, Livro I, c. 1, pp. 60-61, diz: “O decréscimo da vilanagem parece necessariamente ter sido a era da origem dos pobres. As manufacturas e o comércio são os dois pais dos nossos pobres nacionais.” Eden, tal como aquele republicano escocês por princípio, erra apenas em que não é a supressão da servidão, mas a supressão da propriedade do agricultor sobre a terra que faz dele proletário, isto é, pobre. As leis dos pobres em Inglaterra correspondem, em França, em que a expropriação se executou de outra maneira, às ordenanças de Moulins de 1566 e ao Édito de 1656. (Nota de Marx.)

19 O Sr. Rogers, apesar de ser então professor de Economia Política na Universidade

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Ainda nas últimas décadas do século XVII, a yeomanry, uma classe de

camponeses independentes, era mais numerosa que a classe dos rendei-

ros. Ela constituíra a força principal de Crowell e, conforme confessa o

próprio Macaulay, contrastava vantajosamente com os fidalgos porca-

lhões e beberrões e seus lacaios, os padres rurais, que tinham de conse-

guir casamento para a “criada preferida” do senhor. Os assalariados rurais

ainda participavam da propriedade comunal. Cerca de 1750, a yeomanry

tinha desaparecido20 e, nas últimas décadas do século XVII, também o

último vestígio de propriedade comunal dos lavradores. Abstraímos as

forças motrizes puramente económicas da revolução agrícola. O que

procuramos são as alavancas com que foi violentamente realizada.

Sob a restauração dos Stuarts, os proprietários fundiários impuseram

legalmente uma usurpação, que em todo o continente se fez sem rodeios

legais. Aboliram a organização feudal da terra, quer dizer: desembaraça-

ram-se das suas obrigações para com o Estado, “indemnizaram” o Estado

por meio de impostos sobre o campesinato e o resto da massa do povo,

reivindicaram uma propriedade privada moderna sobre patrimónios de

que apenas possuíam um título feudal e, finalmente, outorgaram aquelas

leis de domiciliação (laws of settlement) que tiveram, mutatis mutandis,

sobre os lavradores ingleses os mesmos efeitos que o édito do tártaro

Boris Godunov sobre o campesinato russo.21

A Glorious Revolution (Revolução Gloriosa)22 trouxe, com Guilherme III

de Oxford, sede da ortodoxia protestante, acentua em seu prefácio à History of

Agriculture a pauperização da massa do povo pela Reforma. (Nota de Marx.)

20 A Letter to Sir T. C. Bunbury, Brt.: On the High Price of Provisions. By a Sulfolk

Gentleman, Ipswich, 1795. p. 4. Mesmo o fanático defensor do sistema de grandes

arrendamentos, o autor [J. Arbuthnot] da Inquiry into the Connection of Large

Farms etc. (Londres, 1773. p. 139) diz: “O que deploro mais é a perda da nossa

yeomanry, aquele conjunto de homens que, na realidade, sustentou a independên-

cia desta nação; e lamento ver as suas terras, agora nas mãos de lordes monopoli-

zadores, serem arrendadas a pequenos rendeiros, que obtêm os seus arrendamentos

sob tais condições que são pouco mais que vassalos que em todas as ocasiões ad-

versas têm de atender a chamamentos”.

21 Sob o reinado de Fiodor Ivanovitch (1584-1598), quando o soberano de facto da

Rússia era Boris Gudonov, foi decretado um édito, em 1597, segundo o qual os

camponeses que tinham fugido do jugo insuportável e das chicanas dos proprietá-

rios fundiários seriam procurados durante cinco anos e devolvidos à força aos seus

antigos senhores. (N. da Ed. Alemã.)

22 Designação habitual, na historiografia burguesa da Inglaterra, para o golpe de

Estado de 1688. O golpe de Estado consolidou a monarquia constitucional na In-

glaterra, que se baseava num compromisso entre os nobres proprietários fundiários

e a burguesia. (N. da Ed. Alemã.)

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de Orange,23 extractores de mais-valia fundiários e capitalistas ao poder.

Inauguraram a nova era praticando o roubo dos domínios do Estado, até

então realizado em proporções apenas modestas, em escala colossal.

Essas terras foram presenteadas, vendidas a preços irrisórios ou, mediante

usurpação directa, anexadas a propriedades privadas.24 Tudo isso ocorreu

sem nenhuma observância da etiqueta legal. O património do Estado

apropriado tão fraudulentamente, junto com o roubo da Igreja, na medida

em que não desapareceram durante a revolução republicana, formam a

base dos actuais domínios principescos da oligarquia inglesa.25 Os capita-

listas burgueses favoreceram a operação visando, entre outros motivos,

transformar a base fundiária em puro artigo de comércio, expandir a área

da grande exploração agrícola, multiplicar a sua oferta de proletários

livres como passarinhos provenientes do campo, etc. Além disso, a nova

aristocracia fundiária era aliada natural da bancocracia, da alta finança

que acabava de sair da casca do ovo e dos grandes manufactureiros, que

então se apoiavam sobre tarifas proteccionistas. A burguesia inglesa agiu

assim, em defesa dos seus interesses, tão acertadamente como os burgue-

ses suecos que, inversamente, junto com o seu baluarte económico, o

campesinato, apoiaram os reis na recuperação violenta das terras da

Coroa em mãos da oligarquia (desde 1604, mais tarde sob Carlos X e

Carlos XI).

A propriedade comunal – inteiramente diferente da propriedade do Es-

tado considerada acima – era uma antiga instituição germânica, que

continuou a viver sob a cobertura do feudalismo. Viu-se como a violenta

usurpação da mesma, em geral acompanhada pela transformação da terra

de lavoura em pastagem, começa no final do século XV e prossegue no

23 Sobre a moral privada desse herói burguês lê-se, entre outras coisas: “As grandes

concessões de terras a Lady Orkney na Irlanda, no ano de 1695, são uma demons-

tração pública da afeição do rei e da influência da lady. (...) Consta que os precio-

sos serviços de Lady Orkney consistiram em (...) foeda labiorum ministeria” [su-

jos serviços de lábios] (Na Sloane Manuscript Collection, no Museu Britânico, n.º

4224. O manuscrito é intitulado: “The charakter and behaviour of King William,

Sunderland etc. as represented in Original Letters to the Duke of Shewsbury from

Somers, Halifax, Oxford, Secretary Vernon etc.” Está cheio de coisas curiosas.)

(Nota de Marx.)

24 “A alienacao legal dos bens da Coroa, em parte por venda e em parte por doacao,

constitui um capítulo escandaloso na história inglesa (...) uma fraude gigantesca

contra a nação (gigantic fraud on the nation)”. (Newman, F. W. Lectures on Poli-

tical Econ. Londres, 1851, p. 129-130) – {Como os atuais latifundiários ingleses

chegaram às suas terras, pode-se ver em pormenores em [Evans, N. H.] Our Old

Noblesse Oblige. Londres, 1879. Nota de Engels.}

25 Leia-se, por exemplo, o panfleto de E. Bures sobre a casa ducal de Bedford, cujo

fruto, Lord Russell é the tomtit of liberalism [O passarinho do liberalismo].

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século XVI. Mas então o processo efectivava-se como acto individual de

violência contra o qual a legislação lutou, em vão, durante 150 anos. O

progresso do século XVIII consiste em a própria lei se tornar agora

veículo do roubo das terras do povo, embora os grandes rendeiros empre-

guem também os seus pequenos métodos independentes privados.26 A

forma parlamentar do roubo é a da Bills for Inclosures of Commons (leis

para a vedação de terrenos comunais), por outras palavras, decretos pelos

quais os senhores da terra oferecem a si próprios terra do povo como

propriedade privada, decretos da expropriação do povo. Sir F. M. Eden

refuta o seu pleitear manhoso de advogado em que procura apresentar a

propriedade comunal como propriedade privada dos grandes proprietários

fundiários que tomaram o lugar dos feudais, uma vez que ele próprio

reclama uma “lei geral do Parlamento para a vedação de terrenos comu-

nais” e, portanto, admite que é preciso um golpe de Estado parlamentar

para a sua transformação em propriedade privada, mas, por outro lado,

reclama da legislatura uma “indemnização” para os pobres expropria-

dos.27

Enquanto o lugar dos yeomen independentes foi tomado por tenants-

-at-will, pequenos rendeiros sujeitos a renovação anual, um bando servil e

dependente dos caprichos do senhor da terra, o roubo sistematicamente

cometido, designadamente da propriedade comunal, juntamente com o

roubo dos domínios do Estado, ajudou a engrossar aquelas grandes her-

dades a que, no século XVIII, se chamava herdades de capital28 ou herda-

des de mercador,29 e a “libertar” o povo rural como proletariado para a

indústria.

O século XVIII, entretanto, não chegou a compreender, na mesma

medida que o século XIX, a identidade entre riqueza nacional e pobreza

do povo. Daí, portanto, a mais violenta polémica na literatura económica

26 “Os rendeiros [farmers] proibiram os cottagers de manter quaisquer criaturas

vivas, além deles próprios e dos filhos, sob o pretexto de que se eles mantivessem

animais ou aves de capoeira roubariam os celeiros dos rendeiros para o sustento

deles. Eles diziam também: mantenham os cottagers pobres e mantê-los-ão indus-

triosos’ A realidade dos factos, porém, é que os rendeiros usurpam, assim, todos os

direitos sobre as terras comunais.” (A political Enquiry into the Consequences of

enclosing Waste Lands. Londres, 1785, p. 75.) (Nota de Marx.)

27 Eden. Op. cit. Preface [p. XVII, XIX]. (Nota de Marx.)

28 “Capital Farms.” (Two Letters on the Flour and the Deamess of Com. By a Person

in Business. Londres, 1767, p. 19-20.)

29 “Merchant-Farms.” (An Inquiry into the Present High Prices of Provisions.

Londres, 1767, p. 111, nota.) Esse bom escrito, que apareceu anonimamente, é de

autoria do Rev. Nathanael Forster.

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dessa época sobre a inclosure of commons30. Cito do volumoso material

que tenho perante mim algumas passagens porque assim as circunstâncias

serão visualizadas de modo mais vivo.

“Em muitas paróquias do Hertfordshire”, escreve uma pena indignada,

“24 quintas com 50-150 acres em média foram fundidas em 3 quin-

tas.” “Em Northamptonshire e Leicestershire a vedação de terras co-

munais teve lugar numa escala muito grande, e a maior parte dos no-

vos senhorios [lordships] resultantes da vedação foi transformada em

pastagens; em consequência do que muitos senhorios em que ante-

riormente eram lavrados 1500 acres não têm agora 50 acres lavrados

anualmente. (...) Ruínas de antigas habitações, celeiros, estábulos,

etc.” são os únicos vestígios dos antigos habitantes. “Cem casas e fa-

mílias, em alguns lugares foram reduzidas (...) a 8 ou 10 (...) Os pro-

prietários fundiários, na maioria das paróquias, onde a vedação se rea-

lizou há apenas 15 ou 20 anos são muito poucos em comparação com

o número dos que lavravam a terra quando na condição de campo

aberto. Não é nada incomum ver 4 ou 5 ricos criadores de gado usur-

parem senhorios recentemente cercados, que antes se encontravam nas

mãos de 20 a 30 rendeiros e outros tantos pequenos proprietários e

moradores. Todos eles e as suas famílias foram expulsos das suas pos-

ses juntamente com muitas outras famílias que eram principalmente

empregues e sustentadas por eles.”31

Não apenas terra em pousio, mas frequentemente terra cultivada, me-

diante certo pagamento à comunidade ou em comum, sob o pretexto da

vedação era anexada pelo senhor vizinho.

“Refiro-me aqui à vedação de campos abertos e terras que já são culti-

vados. Mesmos os escritores que defendem os inclosures admitem que

estes últimos aumentam o monopólio das grandes quintas, elevam os

preços dos meios de subsistência e produzem despovoamento (...) e

mesmo a vedação de terras desertas, como fazem agora, rouba aos po-

bres parte dos seus meios de subsistência e apenas engrossa quintas

que agora já são grandes demais.32 “Se”, diz o Dr. Price, “esta terra for

parar às mãos de poucos grandes rendeiros, a consequência será que

os pequenos rendeiros” (antes designados por ele como “uma multi-

30 Vedação de terrenos comunais. N.T.

31 Rev. Addington. Enquiry into the Reasons for Against Enclosing open Fields.

Londres, 1772, pp. 37-43 passim.

32 Price, Dr. R. Op. cit., v. II, p. 155-156. Leia-se Forster, Addington, Kent, Price e

James Anderson e compare-se com a miserável tagarelice sicofanta de MacCul-

loch no seu catálogo The Literature of Political Economy, Londres, 1845.

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dão de pequenos proprietários e rendeiros [tenants] que se mantêm a

si próprios e às famílias com o produto da terra que ocupam, com car-

neiros criados em comum, com aves de capoeira, porcos, etc., e que,

por conseguinte, têm pouca ocasião de comprar qualquer dos meios de

subsistência”) “serão convertidos num corpo de homens que ganham a

sua subsistência trabalhando para outros e que estarão na necessidade

de ir ao mercado para tudo o que quiserem. (...) Haverá, talvez, mais

trabalho, porque há mais compulsão para isso. (...) Cidades e manu-

facturas crescerão, pois mais pessoas que buscam emprego serão im-

pelidas para elas. Essa é a forma como a concentração das quintas

opera naturalmente e como, neste reino, há muitos anos tem realmente

operado.”33

Ele resume assim o efeito global das enclosures:

“Em geral a situação das classes inferiores do povo tem piorado em

quase todos os sentidos; os pequenos proprietários fundiários e rendei-

ros são rebaixados à condição de jornaleiros e trabalhadores de alu-

guer; e, ao mesmo tempo, tornou-se mais difícil ganhar a vida nessa

condição.”34

33 Op. cit., p. 147-148.

34 Op. cit., p. 159-160. Recorda-se de Roma Antiga. “Os ricos tinham-se apoderado

da maior parte das terras não partilhadas. Eles confiavam, nas circunstâncias da

época, que elas não lhes seriam tomadas, e adquiriam por isso os lotes dos pobres

situados nas proximidades, em parte com o consentimento destes, em parte com

violência, de modo que lavravam exclusivamente vastos domínios em vez de cam-

pos isolados. Empregavam, por isso, escravos para a agricultura e para a pecuária,

pois as pessoas haviam sido retiradas do trabalho para prestar serviço militar. A

posse de escravos trouxe-lhes, além disso, grandes lucros, pois estes, devido à sua

libertação do serviço militar, podiam multiplicar-se sem perigo e tinham uma por-

ção de crianças. Assim, os poderosos apoderaram-se de toda a riqueza e toda a

região formigava de escravos. Os ítalos, pelo contrário, tornavam-se cada vez me-

nos, dizimados pela pobreza, tributos e serviço militar. Mesmo em épocas de paz,

porém, estavam condenados à completa inactividade, porque os ricos estavam de

posse do solo e usavam escravos, em lugar de pessoas livres, para a lavoura.”

(Apiano. Guerras Civis Romanas. 1, 7.) Esta passagem refere-se à época anterior à

lei licínia.ª O serviço militar que tanto acelerou a ruína dos plebeus romanos, foi

também o principal meio com o qual Carlos Magno promoveu artificialmente a

conversão de camponeses alemães livres em dependentes e servos.

ª Esta lei foi aprovada no ano de 367 a. C., na Roma Antiga, e determinava certa

limitação de posse de terras comunais para uso pessoal, assim como uma série de

medidas a favor dos devedores. Dirigia-se com isso contra o contínuo crescimento

dos latifúndios e contra os privilégios dos patrícios, e demonstra certo fortaleci-

mento das posições políticas e económicas dos plebeus. Segundo a tradição atri-

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Na realidade, a usurpação da terra comunal e a revolução da agricultu-

ra que a acompanhou tiveram efeitos tão agudos sobre o trabalhador

agrícola que, segundo o próprio Eden, entre 1765 e 1780, o seu salário

começou a cair abaixo do mínimo e a ser complementado pela assistência

oficial aos pobres. O seu salário, diz ele, “bastava apenas para as necessi-

dades vitais absolutas”.

Ouçamos, por um momento ainda, um defensor das enclosures e ad-

versário do Dr. Price.

“Não é correcto concluir que haja despovoamento porque não se vê

mais gente desperdiçando o seu trabalho em campo aberto. (...) Quan-

do, depois da transformação dos pequenos camponeses em pessoas

que têm de trabalhar para outros, é produzido mais trabalho, isso é

uma vantagem que a nação” (à qual os transformados naturalmente

não pertencem) “deve desejar. (...) porque sendo maior o produto

quando os seus trabalhos conjuntos são empregues numa quinta, have-

rá um excedente [surplus] para as manufacturas e, por este meio, as

manufacturas, uma das minas da nação, aumentarão na proporção da

quantidade de cereal produzido.”35

A estóica serenidade com que o economista político encara as viola-

ções mais desavergonhadas do “sagrado direito de propriedade” e os

actos de violência mais grosseiros contra as pessoas, na medida em que

sejam necessários para estabelecer a base do modo de produção capita-

lista, é-nos mostrada, entre outros, por Sir F. M. Eden, que, além do mais,

apresenta um matiz tory e é “filantropo”. Toda a série de pilhagens,

horrores e tormentos que acompanham a violenta expropriação do povo,

do último terço do século XV até ao final do século XVIII, levam-no

apenas à “confortável” reflexão final:

“A proporção correta (due) entre terras para lavoura e para criação de

gado tinha de ser estabelecida. Ainda no decorrer do século XIV e na

maior parte do século XV, havia 1 acre de pastagem para 2, 3 e mes-

mo 4 acres de terra para lavoura. Em meados do século XVI, a pro-

porção transformou-se em 2 acres de pastagem para 2 acres de lavou-

ra, mais tarde 2 acres de pastagem para 1 acre de lavoura, até que

bui-se essa lei aos tribunos do povo C. Licínio Stolo e L. Sextio Laterando (N. da

Ed. Alemã).

35 [Arbuthnot, J.] An inquiry into the Connection between the Present Prices of

Provisions etc. p. 124, 129. Semelhante, mas de tendência oposta: “Os trabalhado-

res são expulsos das suas cottages e obrigados a procurar trabalho nas cidades; –

mas obtém-se entao um excedente maior, e assim o capital é aumentado”. ([See-

ley, R. B.] The Perils of the Nation. 2ª ed., Londres, 1843, p. XIV.)

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finalmente se estabeleceu a proporção correta de 3 acres de pastagem

para 1 acre de lavoura.”

No século XIX perdeu-se, naturalmente, mesmo a lembrança da cone-

xão entre cultivador e propriedade comunal. Para já não falar de tempos

mais tardios, que farthing36 de indemnização recebeu o povo do campo

alguma vez pelos 3 511 770 acres de terra comunal que entre 1810 e 1881

lhe foram roubados e presenteados pelo parlamento aos landlords pelos

landlords?

O último grande processo de expropriação do cultivador da terra é fi-

nalmente a chamada Clearing of Estates (limpeza de propriedades, de

facto, limpá-las de seres humanos). Como se viu, pela descrição da situa-

ção moderna, na parte anterior, trata-se agora, que já não há camponeses

independentes para serem varridos, de “limpar” as cottages, de modo que

os trabalhadores agrícolas já não encontram o espaço necessário para lá

morar, nem mesmo sobre o solo que lavram. Porém, o verdadeiro signifi-

cado do Clearing of Estates só o aprendemos na terra prometida da

literatura romanesca moderna, nas Highlands [Terras Altas] da Escócia.

Lá o processo distingue-se pelo seu carácter sistemático, pela grandeza da

escala em que de um golpe ele é executado (na Irlanda, os senhores da

terra levaram as coisas ao ponto de, ao mesmo tempo, varrerem do mapa

várias aldeias; na Alta Escócia, trata-se de superfícies do tamanho de

ducados alemães) e, finalmente, pela forma particular da propriedade

fundiária subtraída.

Os celtas das Terras Altas da Escócia organizavam-se em clãs, cada

um deles proprietário do solo por ele ocupado. O representante do clã, o

seu chefe ou “grande homem”, era apenas o proprietário titular dessa

terra, tal como a rainha da Inglaterra é a proprietária titular de todo o solo

nacional. Quando o Governo inglês conseguiu reprimir as guerras intesti-

nas desses “grandes homens” e as suas contínuas incursões pelas planí-

cies da Baixa Escócia, os chefes dos clãs não renunciaram, de modo

algum, ao seu velho ofício de assaltantes; mudaram apenas a forma. Por

conta própria, transformaram o seu direito de propriedade titular em

direito de propriedade privada e como encontraram resistência por parte

dos membros dos clãs, resolveram enxotá-los à força. “Um rei de Ingla-

terra poderia, pelo mesmo direito, atirar os seus súbditos ao mar”, diz o

Prof. Newman.37 Essa revolução, que começou na Escócia depois da

36 Em inglês no texto: moeda inglesa de cobre, no valor de 1/4 de dinheiro. (Nota da

edição portuguesa da Editorial Avante!)

37 A king of England might as well claim to drive his subjects into the sea (Newman,

F. W. Op. cit., p. 132.)

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última revolta do pretendente,38 pode ser seguida nas suas primeiras fases

em Sir James Steuart39 e James Anderson.40 No século XVIII, foi simulta-

neamente proibida a emigração dos gaélicos expulsos da terra com o fim

de impeli-los à força para Glasgow e outras cidades fabris.41 Como exem-

plo do método dominante no século XIX,42 bastam aqui as “limpezas”

38 Os partidários dos Stuart esperavam, com a sua revolta de 1745-46, forçar a subida

ao trono do chamado jovem pretendente, Charles Edward, como rei da Inglaterra.

Ao mesmo tempo, a revolta reflectia o protesto da massa do povo da Escócia e da

Inglaterra contra a sua exploração pelos senhores da terra e contra a expulsão em

massa dos pequenos lavradores. A derrota da revolta teve por consequência a

completa destruição do sistema de clãs na Escócia. A expulsão dos camponeses

das suas terras prosseguiu ainda mais intensamente que antes (N. da Ed. Alemã.)

39 Steuart diz: “A renda destas terras” (ele transfere erroneamente essa categoria

económica para o tributo dos taksmenª ao chefe do cla) “é de todo modo insignifi-

cante em comparação com a sua extensão. Mas se se comparar com o número [de

pessoas] alimentadas pela quinta, verificar-se-á que uma propriedade nas Hi-

ghlands sustenta, talvez, dez vezes mais pessoas do que outra do mesmo valor

numa província boa e fértil.” (An Inquiry into the Principies of Political Economy

[Uma Investigação sobre os Princípios da Economia Política], London, 1767, vol.

I, c. XVI, p. 104.) (Nota de Marx.)

ª Taksmen foram denominados, no tempo do sistema de clãs, na Escócia, os mais

velhos ou os vassalos que estavam diretamente subordinados ao chefe do clã ou

laird (“grande homem”). O laird repartia as terras (tak), que permaneciam propri-

edade de todo o clã, pelos taksmen. Um pequeno tributo era pago ao laird e com

isso ficava reconhecida a sua soberania. Aos taksmen estavam subordinados funci-

onários mais baixos que se colocavam à frente de cada uma das aldeias, e a estes

estavam subordinados os camponeses. Com a desintegração do sistema de clãs, o

laird transformou-se em senhor fundiário e os taksmen tornaram-se, de acordo

com a sua essência, rendeiros capitalistas; em lugar do antigo tributo passou-se a

pagar a renda da terra. Marx informa sobre a função dos taksmen dentro do siste-

ma de clas no seu artigo “Wahlen – Truebe Finanzlage – Die Herzog Von Suther-

land und die Sklaverei”. (N. da Ed. Alemã.)

40 Anderson, James. Observations on the Means of Exciting a Spirit of National

Industry etc. Edimburgo, 1777.

41 Em 1860, pessoas expropriadas violentamente foram exportadas para o Canadá

com falsas promessas. Algumas fugiram para a montanha ou para as ilhas vizi-

nhas. Foram perseguidas por polícias, entraram em choque com eles e escaparam.

42 “Nas Terras Altas”, diz Buchanan, o comentarista de Adam Smith, em 1814, “a

antiga condição de propriedade é diariamente subvertida pela força. (...) O land-

lord, sem consideracao pelos rendeiros hereditários” (esta é também uma categoria

empregada erroneamente), “oferece a terra ao melhor licitador, e se este é um ino-

vador (improver), introduzirá imediatamente um novo sistema de cultura. O solo,

antes coberto de pequenos camponeses, estava povoado em proporção ao seu pro-

duto, mas com o novo sistema de cultura melhorada e rendas multiplicadas, ob-

tém-se a maior produção possível ao menor custo possível, e para esse fim os bra-

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levadas a cabo pela duquesa de Sutherland. Esta pessoa, economicamente

instruída, decidiu, logo ao assumir o governo, empreender uma cura

económica radical e transformar todo o condado – cuja população já

anteriormente, por processos semelhantes, se tinha reduzido para 15 000

– em pastagens para ovelhas. De 1814 até 1820, esses 15 mil habitantes,

cerca de 3 mil famílias, foram sistematicamente expulsos e exterminados.

Todas as suas aldeias foram destruídas e arrasadas pelo fogo, todos os

seus campos transformados em pastagens. Soldados britânicos foram

encarregados da execução e entraram em choque com os nativos. Uma

mulher de idade foi queimada nas chamas da cabana que se recusava a

abandonar. Desta forma, esta madame apropriou-se de 794 mil acres de

terras, que desde tempos imemoriais pertenciam ao clã. Aos nativos

expulsos ela destinou aproximadamente 6 mil acres de terras, 2 acres por

família, na orla marítima. Os 6 mil acres tinham até então estado desertos

e não haviam proporcionado nenhuma renda aos proprietários. A duque-

sa, no seu nobre sentimento, foi ao ponto de arrendar o acre, em média,

por 2 xelins e 6 dinheiros de renda às gentes do clã que, desde há séculos,

haviam vertido o seu sangue pela família. Repartiu toda a terra roubada

ao clã por 29 grandes quintas para a criação de ovelhas, cada uma habita-

da por uma única família, na maioria criados de quinta ingleses. No ano

de 1825, os 15 mil gaélicos já tinham sido substituídos por 131 mil ove-

lhas. Aquela parte dos aborígenes que foi atirada para a orla marítima

procurou viver da pesca. Tornaram-se anfíbios e viviam, como um escri-

tor inglês disse, metade na terra e metade na água e, com isso tudo, só

viviam metade de ambas.43

ços tornados inúteis são afastados. (...) Os expulsos das suas terras buscam subsis-

tência nas cidades fabris, etc.” (Buchanan, David. Observations on etc. A. Smith’s

Wealth of Nations. Edimburgo, 1814, v. IV, p. 144.) “Os grandes da Escócia ex-

propriaram famílias como se estivessem a exterminar ervas daninhas, trataram

aldeias e suas populações como os índios à procura de vingança tratam as bestas

selvagens nas suas covas. (...) O ser humano é trocado por uma pele de ovelha ou

uma perna de carneiro, ou menos ainda. (...) Quando da invasão das províncias do

Norte da China, foi proposto no Conselho dos Mongóis exterminar os habitantes e

converter as suas terras em pastagens. Essa proposta foi posta em prática por mui-

tos landlords escoceses no seu próprio país, contra os seus conterraneos.” (Ensor,

George. An Inquiry Concerning the Population of Nations. Londres, 1818,

pp. 215-216.)

43 Quando a actual duquesa de Sutherland recebeu, com grande pompa, em Londres,

a autora de A Cabana do Pai Tomás, Harriet Beecher Stowe, a fim de exibir a sua

simpatia pelos escravos negros da República Americana – o que ela, ao lado dos

demais aristocratas, sabiamente se absteve de fazer durante a guerra civil, quando

cada “nobre” coracao inglês pulsava a favor dos esclavagistas – expus, no New

York Tribune, as condições dos escravos de Sutherland. (Em algumas passagens

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Mas os bravos gaélicos iriam expiar ainda mais amargamente a sua

idolatria romântica montanhesa dos “grandes homens” do clã. O cheiro a

peixe subiu ao nariz dos grandes homens. Farejaram algo lucrativo e

arrendaram a orla marítima aos grandes comerciantes de peixe de Lon-

dres. Os gaélicos foram expulsos pela segunda vez.44

Finalmente, porém, uma parte das pastagens para ovelhas foram re-

transformadas em reserva de caça. Sabe-se que na Inglaterra não há

florestas propriamente ditas. A caça nos parques dos grandes é constitu-

cionalmente gado doméstico, gordo como aldemen [vereadores] londri-

nos. A Escócia é, portanto, o último asilo da “nobre paixão”.

“Nas Terras Altas”, diz Somers em 1848, “estão a surgir novas florestas

como cogumelos. Aqui, de um dos lados de Gaick, temos a nova flo-

resta de Glenfeshie; e ali, do outro, temos a nova floresta de Ardverikie.

Na mesma linha temos o Black Mount, uma imensa terra inculta, tam-

bém lá posta recentemente. De leste para oeste – dos arredores de

Aberdeen até aos penhascos de Oban –, temos agora uma linha contí-

nua de florestas; enquanto noutras regiões das Terras Altas há as no-

vas florestas de Loch Archaig, Glengarry, Glenmoriston, etc. Foram

introduzidos carneiros em vales que tinham sido domicílio de comu-

nidades de pequenos rendeiros; e estes últimos foram levados a procu-

rar a subsistência em solos mais rudes e estéreis. Os veados estão ago-

ra a suplantar as ovelhas; e estas estão, uma vez mais, a desalojar os

pequenos rendeiros que, necessariamente, serão empurrados para terra

ainda mais rude e para uma penúria mais tormentosa. As florestas de

veados45 e as pessoas não podem coexistir. Umas ou outras têm de ce-

der. Deixem as florestas aumentar em número e extensão durante o

aproveitado por Carey. The Slave Trade. Filadélfia, 1853, pp. 202-203.) O meu

artigo foi reproduzido num jornal escocês e provocou uma bela polémica entre este

último e os sicofantas dos Sutherland.

44 Encontram-se coisas interessantes sobre este comércio de peixe em Portfolio, New

Series, do Sr. David Urquhart. Nassau W. Sénior, no seu escrito póstumo já atrás

citado, caracteriza “o processo no Sutherlandshire [como] uma das mais benéficas

limpezas de que há memória”. (Journals, Conversations and Essays relating to

Ireland [Diários, Conversas e Ensaios Referentes à Irlanda], Londres, 1868.) (Nota

de Marx.)

31ª As deer forests (florestas de veados) da Escócia não contêm uma única árvore.

Impelem-se as ovelhas para fora e os servos para dentro das montanhas desnudas e

denomina-se a isso uma deer Forest. Nem mesmo, portanto, silvicultura!

45 As deer-forests (florestas de veados) da Escócia não contêm uma única árvore.

Empurram-se os carneiros para fora e os veados para dentro de montanhas nuas e

chama-se a isso uma deer-forest. Portanto, nem sequer silvicultura! (Nota de

Marx.)

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A CHAMADA A CU MULAÇ ÃO P RIMIT IVA | 221

próximo quarto de século como aumentaram no último e os Gaélicos

perecerão no seu solo nativo... Este movimento entre os proprietários

das Terras Altas é, para alguns, uma questão de ambição – para al-

guns, amor ao desporto –, enquanto outros, de disposição mais prática,

seguem o comércio dos veados com os olhos postos apenas no lucro.

Porque é um facto que uma cadeia de montanhas arranjada como flo-

resta é, em muitos casos, mais lucrativa para o proprietário do que

quando deixada para pasto de carneiros... O caçador que quer uma flo-

resta de veados não limita as suas ofertas por nenhum outro cálculo

que não seja a extensão da sua bolsa... Foram infligidos sofrimentos às

Terras Altas pouco menos severos do que os ocasionados pela política

dos reis normandos. Os veados receberam extensas cordilheiras, en-

quanto os homens foram caçados no interior de um círculo cada vez

mais estreito... Uma após outra, as liberdades do povo foram despeda-

çadas... E as opressões estão a crescer diariamente... A limpeza e dis-

persão do povo é seguida pelos proprietários como um princípio esta-

belecido, como uma necessidade agrícola, exactamente como as

árvores e o mato são limpos das terras incultas da América ou Austrá-

lia; e a operação prossegue de uma maneira silenciosa, à maneira dos

negócios, etc.”46

O roubo dos bens da Igreja, a alienação fraudulenta dos domínios do

Estado, o furto da propriedade comunal, a transformação usurpadora e

executada com terrorismo inescrupuloso da propriedade feudal e clânica

em propriedade privada moderna, foram outros tantos métodos idílicos da

acumulação primitiva. Eles conquistaram o campo para a agricultura

capitalista, incorporaram a base fundiária ao capital e criaram para a

indústria urbana a oferta necessária de um proletariado livre como os

passarinhos.

46 Somers, Robert. Letters from the Highlands; or, the Famine of 1847. Londres,

1848, p. 12-28 passim. Essas cartas apareceram originalmente no Times. Os eco-

nomistas ingleses, naturalmente, atribuíram a epidemia da fome dos gaélicos, em

1847, a sua superpopulacao. Em todo o caso, eles “exerciam pressao” sobre a dis-

ponibilidade de alimentos. A Clearing of Estates ou, como se chamou na Alema-

nha, Bauernlegen ocorreu aqui especialmente depois da Guerra dos Trinta Anos e

provocou ainda em 1790 levantamentos camponeses em Kursachsen. Prevaleceu

principalmente na Alemanha Oriental. Na maior parte das províncias da Prússia,

apenas Frederico II assegurou aos camponeses o direito de propriedade. Depois da

conquista da Silésia, ele obrigou os senhores da terra a reconstruir as choupanas,

celeiros, etc., e a promover as explorações camponesas de gado e instrumentos.

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3. Legislação sanguinária contra os expropriados desde o final

do século XV. Leis para o abaixamento dos salários

Os expulsos pela dissolução dos séquitos feudais e pela intermitente e

violenta expropriação da base fundiária, esse proletariado livre como os

pássaros não podia ser absorvido pela manufactura nascente com a mes-

ma velocidade com que foi posto no mundo. Por outro lado, os que foram

bruscamente arrancados ao seu modo de vida habitual não conseguiam

enquadrar-se de maneira igualmente súbita na disciplina da nova condi-

ção. Converteram massivamente em mendigos, ladrões, vagabundos, em

Ele precisava de soldados para o seu exército e de contribuintes de impostos para o

tesouro do Estado. Que vida agradável, de resto, levou o camponês sob as desor-

dens financeiras e a mistura governamental de despotismo, burocracia e feudalis-

mo de Frederico, podemos ver pelos trechos seguintes do seu admirador Mirabeau:

“o linho representa pois uma das maiores riquezas do camponês do Norte da Ale-

manha. Para infelicidade da espécie humana, isso é apenas um meio auxiliar contra

a miséria e não um caminho para o bem-estar. Os impostos directos, as corveias e

os serviços forçados de todos os tipos arruínam o camponês alemão, que ainda tem

de pagar impostos indirectos sobre tudo o que compra (...) e para tornar completa a

sua ruína, ele não ousa vender os seus produtos onde e como quer, e não ousa tam-

bém comprar o que precisa a comerciantes que lho poderiam fornecer por preços

mais baratos. Todas estas causas arruínam-no lenta mas seguramente; porém, e

sem a fiação, ele não estaria em condições de pagar os impostos directos no dia do

vencimento; esta oferece-lhes uma fonte auxiliar, que ocupa utilmente a sua mu-

lher, os seus filhos, as suas criadas, os seus criados e ele mesmo. Entretanto, ape-

sar desta fonte auxiliar, que vida penosa! No verão, trabalha como um condenado

na lavra e na colheita; às 9 horas deita-se para dormir e levanta-se às 2 horas da

manhã, para dar conta do seu trabalho; no inverno, ele precisaria de restaurar as

forças mediante um descanso mais longo; mas faltar-lhe-iam cereais para o pão e

para a semeadura, caso se desfizesse dos frutos da terra, que teria de vender para

pagar os impostos. Para tapar esse buraco, precisa, portanto, de fiar (...) e com a

maior persistência. Assim, o camponês, no inverno, vai descansar à meia-noite ou

à 1 hora e levanta-se às 5 ou 6 horas; ou deita-se às 9 e levanta-se às 2, e assim

todos os dias da sua vida, com excepção do domingo. Esse excesso de vigília e

trabalho desgasta as pessoas, o que faz que no campo homens e mulheres envelhe-

çam muito mais cedo que na cidade”. (Mirabeau. Op. cit., t. III, p. 212 e segs.)

Adenda à 2.ª edição: Em março de 1866, 18 anos depois da publicação do escrito

de Robert Somers, acima citado, o Prof. Leone Levi fez uma conferência na So-

ciety of Artsª3 sobre a transformação das pastagens de ovelhas em florestas de

caça, em que descreve o progresso da devastação nas Terras Altas da Escócia. Ele

diz, entre outras coisas: “Despovoamento e transformacao em simples pastagem de

ovelhas ofereciam o meio mais cómodo para uma renda sem despesas. (...) Uma

deer forest em lugar da pastagem de ovelhas tornou-se uma mudança comum nas

Terras Altas. As ovelhas são expulsas por animais selvagens, assim como antes se

expulsaram os seres humanos para dar lugar às ovelhas. (...) Pode-se marchar das

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parte por predisposição e na maioria dos casos por força das circunstân-

cias. Daí ter surgido em toda a Europa Ocidental, no final do século XV e

durante todo o século XVI, uma legislação sanguinária contra a vagabun-

dagem. Os antepassados da actual classe trabalhadora foram imediata-

mente punidos pela transformação que lhes foi imposta em vagabundos e

paupers. A legislação tratava-os como criminosos “voluntários” e assu-

mia que dependia da sua boa vontade continuarem a trabalhar nas antigas

condições que já não existiam.

Na Inglaterra, essa legislação começou com Henrique VII.

Henrique VIII, em 1530: os mendigos velhos e incapazes de trabalhar

recebem uma licença de mendigo. Em contrapartida, chicoteamento e

encarceramento para os vagabundos robustos. Devem ser atados à parte

de trás de uma carroça e fustigados até que o sangue corra do seu corpo,

fazem depois um juramento de regressar ao seu lugar de nascimento ou

onde moraram nos últimos três anos e de “se porem ao trabalho” (to put

himself to labour). Que ironia cruel! No 27.° [ano do reinado] de Henri-

que VIII o estatuto precedente é repetido, mas reforçado com novos

propriedades do Conde de Dalhouise em Forfarshire até John o’Groats sem sair

das terras de florestas. Em muitas” (dessas florestas) “a raposa, o gato selvagem, a

marta, a fuinha, a doninha e a lebre alpina estão instalados; enquanto o coelho, o

esquilo e o rato encontraram há pouco tempo o caminho para lá. Enormes áreas de

terra, que na estatística da Escócia figuravam como pastagens de excepcional ferti-

lidade e extensão, estão agora excluídas de toda a cultura e melhoramento, sendo

dedicadas exclusivamente ao prazer da caça para algumas pessoas – e isso dura

apenas um curto período do ano”.

O Economist de Londres, de 2 de junho de 1866, diz: “Um jornal escocês infor-

mou, na semana passada, entre outras novidades: ‘Uma das melhores pastagens

para ovelhas em Sutherlandshire, pela qual ao final do actual contrato de arrenda-

mento se ofereceu recentemente uma renda anual de 1200 libras esterlinas, será

transformada em deer forest!” Os instintos feudais manifestam-se (...) como na

época em que o conquistador normando (...) destruiu 36 aldeias para criar a New

Forest. (...) Dois milhões de acres, os quais incluíam algumas das terras mais fér-

teis da Escócia, estão completamente devastados. A relva natural de Glen Tilt con-

ta-se entre as mais nutritivas do condado de Perth; a deer forest de Ben Aulder era

a melhor pastagem do amplo distrito de Badenoch; uma parte da Black Mount

Forest era a melhor pastagem para ovelhas de focinho preto. Da ampliação da base

fundiária devastada para a paixão da caça pode-se formar uma ideia a partir do

facto de que ela abrange uma área muito maior que todo o condado de Perth. A

perda da terra em fontes de produção, em consequência dessa desolação forçada,

pode-se avaliar pelo facto de que o solo da forest de Ben Aulder podia alimentar

15 mil ovelhas e representa apenas 1/30 do conjunto das reservas de caça da Escó-

cia. (...) Toda essa área de caça é totalmente improdutiva (...) poderia, do mesmo

modo, estar submersa nas águas do mar do Norte. A mão forte da legislação deve-

ria acabar com tais ermos ou desertos improvisados”. ª3 Ver Marx. O Capital, v. I, t. 1, p. 285, nota a. (N. do Ed.)

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aditamentos. Ao ser apanhado pela segunda [vez] em vagabundagem, o

chicoteamento deve ser repetido e metade da orelha cortada; à terceira

vez, porém, o visado é executado como grande criminoso e inimigo da

comunidade.

Eduardo VI: um estatuto do primeiro ano do seu reinado, 1547, ordena

que, se alguém se recusar a trabalhar, deve ser sentenciado como escravo

da pessoa que o denunciou como desocupado. O dono deve alimentar o

seu escravo com pão e água, bebida fraca e os restos de carne que achar

convenientes. Tem o direito de obrigá-lo a qualquer trabalho ainda que

repugnante por meio de chicoteamento e de agrilhoamento. Se o escravo

se ausentar por 14 dias, é condenado à escravatura por toda a vida e deve

ser marcado a fogo com a letra S [de slave, escravo] na fronte ou nas

faces; se fugir pela terceira vez, é executado como traidor público. O

dono pode vendê-lo, legá-lo, alugá-lo como escravo, inteiramente como

outro bem móvel ou gado. Se os escravos empreenderem algo contra os

donos, devem igualmente ser executados. Por informação os juízes de paz

devem perseguir o malandro. Se se verificar que um vadio não fez nada

durante três dias, deve ser levado para o seu lugar de nascimento, marca-

do a fogo com um ferro ao rubro, no peito, com o sinal V [de vagabundo]

e aí, com cadeias, deve ser utilizado nas ruas ou em qualquer outro servi-

ço. Se o vagabundo der um lugar de nascimento falso, como castigo deve

ficar escravo por toda a vida desse lugar, dos moradores ou da corporação

e ser marcado a fogo com um S. Todas as pessoas têm o direito de tirar os

filhos aos vagabundos e de os manter como aprendizes – os rapazes até

aos 24 anos, as raparigas até aos 20. Se fugirem, deverão ficar escravos

do dono até essa idade, o qual, consoante quiser, os poderá prender com

cadeias, chicotear, etc. Cada dono pode pôr um anel de ferro à volta do

pescoço, do braço ou da perna do seu escravo, para o conhecer melhor e

estar seguro de que é seu.47 A última parte deste estatuto prevê que certos

pobres devem ser empregados pelo lugar ou pelos indivíduos que lhes

queiram dar de comer e de beber e encontrar trabalho para eles. Esta

espécie de escravos paroquiais conservou-se, em Inglaterra, até bem

dentro do século XIX, sob o nome de roundsmen (rondadores).

Isabel, em 1572: mendigos sem licença e acima dos 14 anos de idade

devem ser fortemente chicoteados e marcados a fogo na orelha esquerda,

no caso de ninguém os querer tomar ao seu serviço por dois anos; em

47 O autor do Essay on Trade etc., 1770, observa: “sob o reinado de Eduardo VI, os

ingleses parecem, de facto, terem-se proposto, com toda a seriedade, o encoraja-

mento das manufacturas e a ocupação dos pobres. Isso apreendemos de um notável

estatuto no qual se diz que todos os vagabundos devem ser marcados a ferro”, etc.

(Op. cit., p. 5.)

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caso de reincidência, se estão acima dos 18 anos de idade, devem ser

executados, no caso de ninguém os querer tomar ao seu serviço por dois

anos; à terceira reincidência, porém, são executados sem piedade como

traidores públicos. Estatutos semelhantes: no 18.° [ano do reinado] de

Isabel, c. 13, e em 1597.48

Jaime I: uma pessoa vadia e mendiga é declarada malandro e vaga-

bundo. Os juízes de paz nas petty sessions49 têm o poder de os mandar

chicotear em público e de os encarcerar, na primeira vez que forem

48 Thomas Morus diz na sua Utopia [tradução inglesa de Ralph Robinson, London,

1869, pp. 41, 42]: “Pelo facto de um glutao cobicoso e insaciável – e verdadeira

praga para a sua terra natal – poder circundar e vedar juntamente muitos milhares

de acres de terra dentro de uma paliçada ou cerca, os lavradores podem ser empur-

rados para fora do que é deles ou, seja por vigarice e fraude, seja por opressão

violenta, podem ser postos fora dele ou podem ser tão atormentados por males e

injúrias que sejam compelidos a vender tudo: por conseguinte, por um meio ou por

outro, assim ou assado, forçosamente, têm de ir-se embora – pobres, inocentes,

miseráveis almas, homens, mulheres, maridos, esposas, crianças sem pais, viúvas,

mães aflitas com os seus bebés, e todos os seus haveres domésticos pequenos em

substância, e muitos em número, uma vez que a lavoura requer muitos braços.

Arrastam-se para longe, digo eu, para fora das casas conhecidas a que estavam

acostumados, não encontrando qualquer lugar para descansar. Todos os seus have-

res domésticos, que valem muito pouco, ainda poderiam suportar a venda: no en-

tanto, sendo postos fora de repente, são constrangidos a vendê-los por quase nada.

E quando eles vaguearem até isso ter sido gasto, que mais podem fazer então se-

não roubar e serem, então, por deus!, justamente enforcados, ou então andar por aí

a mendigar? E, então, contudo, são também postos na prisão como vagabundos,

porque vagueiam e não trabalham: eles, a quem ninguém quer dar trabalho, apesar

de nunca de tão boa vontade se disporem a isso.” Destes pobres fugitivos de quem

Thomas Morus diz que eram compelidos ao roubo “72 000 grandes e pequenos

ladrões foram executados» no reinado de Henrique VIII. (Holinshed, Description

of England [Descrição da Inglaterra], vol. I, p. 186.) No tempo de Isabel, “os ma-

landros eram enforcados apressadamente e, geralmente, não havia um ano em que

trezentos ou quatrocentos nao fossem devorados e comidos pelo patíbulo”.

(Strype, Annals of the Reformation and Establishment of Religion, and other Vari-

ous Occurrences in lhe Church of England during Queen Elisabeth’s Happy Reign

[Anais da Reforma e Estabelecimento da Religião, e Outras Várias Ocorrências na

Igreja de Inglaterra durante o Feliz Reinado da Rainha Isabel], 2nd ed., 1725, vol.

II.) Segundo o mesmo Strype, no Somersetshire, num único ano, foram executadas

40 pessoas, 35 foram marcadas a fogo, 37 chicoteadas e 183 postas em liberdade

como incorrigíveis vagabundos”. Todavia, diz ele, “este grande número de prisio-

neiros não compreende sequer um quinto dos efectivos criminosos, graças à negli-

gência dos juízes e a tola compaixao do povo”. E acrescenta: “Os outros condados

da Inglaterra, a este respeito, não eram melhores do que o Somersetshire, enquanto

alguns eram mesmo piores.” (Nota de Marx.)

49 Petty sessions (sessões pequenas): reuniões de juízes de paz, em Inglaterra, onde

são examinados pequenos casos para simplificar o processo judicial.

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apanhados, por 6 meses, na segunda, por 2 anos. Durante a prisão devem

ser chicoteados tanto e tão frequentemente quanto os juízes de paz acha-

rem por bem... Os vagabundos incorrigíveis e perigosos devem ser mar-

cados a fogo com um R [de rogue, vagabundo, malandro, vadio] no

ombro esquerdo e postos a trabalhos forçados e, se forem de novo apa-

nhados a mendigar, devem ser executados sem piedade. Estas ordena-

ções, legalmente vinculativas até aos primeiros tempos do século XVIII,

só foram revogadas por Ana no 12.° [ano do seu reinado], c. 23.

Leis semelhantes vigoraram em França, onde em meados do século

XVII se estabeleceu um reino de vagabundos (royaume des truands) em

Paris. Ainda nos primeiros anos de reinado de Luís XVI (ordenança de 13

de julho de 1777) todo o homem de boa saúde dos 16 aos 60 anos, sem

meios de existência e sem exercer uma profissão, devia ser mandado para

as galés. Semelhantes são o estatuto de Carlos V para os Países Baixos,

de outubro de 1537, o primeiro édito dos Estados e Cidades da Holanda,

de 19 de março de 1614, e o das Províncias Unidas de 25 de julho de

1649, etc.

Assim, o povo do campo, expropriado à força da terra, expulso e feito

vagabundo, foi enquadrado por leis grotescas e terroristas numa discipli-

na necessária ao sistema de trabalho assalariado, por meio do açoite, do

ferro em brasa e da tortura.

Não basta que as condições de trabalho se coloquem, num pólo, como

capital, e, no outro pólo, como homens que não têm nada que vender a

não ser a sua força de trabalho. Também não basta forçá-los a venderem-

-se de livre vontade. No decurso da produção capitalista, desenvolve-se

uma classe trabalhadora que, por educação, tradição, hábito, admite as

exigências daquele modo de produção como evidentes leis da natureza. A

organização do modo de produção capitalista, quando plenamente desen-

volvido, quebra qualquer resistência; a constante criação de uma sobre-

população relativa mantém a lei da oferta e da procura de trabalho e,

portanto, o trabalho assalariado numa via que corresponde às necessida-

des de utilização do capital; a compulsão das relações económicas com-

pleta a sujeição do trabalhador ao capitalista. O uso directo da força, as

condições económicas exteriores, continuam, com efeito, a ser usadas,

mas apenas excepcionalmente. No dia a dia, os trabalhadores podem ser

abandonados às “leis naturais da produção”, isto é, à sua dependência do

capital, decorrente das próprias condições da produção, por eles garantida

e eternizada. Durante a génese histórica da produção capitalista foi de

outra maneira. A burguesia ascendente precisa e emprega o poder do

Estado para “regular” o trabalho assalariado, isto é, para comprimir os

salários dentro dos limites que convêm à obtenção de mais-valia [Plus-

macherei], para prolongar o dia de trabalho e para conservar o próprio

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trabalhador num grau normal de dependência. Este é um elemento essen-

cial da chamada acumulação primitiva.

A classe dos trabalhadores assalariados, que surgiu na última metade

do século XIV, constituía então e no século seguinte apenas uma parte

mínima da população, bem protegida na sua posição pelo camponês

autónomo no campo e pela organização corporativa na cidade. No campo

e na cidade, mestres e trabalhadores estavam socialmente próximos. A

subordinação do trabalho ao capital era apenas formal, isto é, o próprio

modo de produção não possuía ainda um carácter especificamente capita-

lista. O elemento variável do capital predominava fortemente sobre o

constante. A procura de trabalho assalariado crescia, portanto, rapida-

mente com toda a acumulação do capital, enquanto a oferta de trabalho

assalariado a seguia, mas lentamente. Grande parte do produto nacional,

convertida mais tarde em fundo de acumulação do capital, ainda entrava

no fundo de consumo do trabalhador.

A legislação sobre o trabalho assalariado, desde o início cunhada para

a exploração do trabalhador e de seguida sempre hostil a ele,50 foi ini-

ciada na Inglaterra pelo Statute of Labourers [Estatuto dos Trabalhado-

res] de Eduardo III, em 1349. Correspondeu-lhe em França a Ordenança

de 1350, promulgada em nome do rei João. A legislação inglesa e a

francesa seguem paralelas, e quanto ao conteúdo são idênticas. Na medi-

da em que os estatutos dos trabalhadores buscam forçar o prolongamento

da jornada de trabalho, não voltarei a eles, pois esse ponto já foi tratado

anteriormente (Capítulo VIII, 5).ª

O Statute of Labourers foi promulgado em virtude das queixas insis-

tentes da Câmara dos Comuns.

“Outrora”, diz ingenuamente um tory, “os pobres exigiam salários tão

altos que ameaçavam a indústria e a riqueza. Agora, o seu salário está

tão baixo que ameaça igualmente a indústria e a riqueza, mas de modo

diferente e talvez mais perigoso que então.”51

Foi legalmente fixada uma tarifa de salários para a cidade e para o

campo, para trabalho à peça e à jorna. Os trabalhadores rurais devem

50 “Sempre que a legislacao procura regular as diferencas entre empresários e traba-

lhadores, os seus conselheiros sao sempre os empresários” diz A. Smith.ª “O espí-

rito das leis é a propriedade”, diz Linguet.ª1

a Smith, A. Wealth of Nations. Edimburgo, 1814, p. 142 (N. da Ed. Alemã.)

a1 Linguet, S. N. H. Op. cit., v. 1, p. 236. (N. da Ed. Alemã.)

51 Byles, J. B. Sophisms of Free Trade. By a Barrister. Londres, 1850, p. 206. Este

acrescentava maliciosamente: “Estivemos sempre a disposicao para intervir pelo

empregador. Nada se pode fazer pelo empregado?”

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alugar-se ao ano, os citadinos no “mercado aberto”. Foi proibido, sob

pena de prisão, pagar salários mais altos do que os estatutários, mas o

recebimento de salário mais alto era mais fortemente castigado do que o

seu pagamento. Assim, nas secções 18 e 19 do Estatuto do Aprendiz de

Isabel, inflige-se uma pena de prisão de dez dias àquele que pagar um

salário mais alto e, em contrapartida, uma pena de prisão de vinte e um

dias àquele que o receber. Um Estatuto de 1360 agudiza as penas e dá

mesmo aos mestres poder para, por compulsão corporal, extorquir traba-

lho à tarifa de salário legal. Todas as combinações, contratos, juramentos,

etc., pelos quais pedreiros e carpinteiros se ligaram reciprocamente foram

declarados nulos e de nenhum efeito. A coalizão de trabalhadores foi

tratada como crime grave, do século XIV até 1825, ano da abolição das

leis anticoalizão.52 O espírito do Estatuto dos Trabalhadores de 1349 e

dos que se lhe sucederam manifesta-se claramente em que, com efeito, foi

ditado pelo Estado um máximo para o salário, mas de modo nenhum um

mínimo. No século XVI, como se sabe, piorou muito a situação dos

trabalhadores. O salário monetário subiu, mas não em proporção à depre-

ciação do dinheiro e à correspondente elevação dos preços das mercado-

rias. O salário, portanto, caiu de facto. Contudo, continuavam em vigor as

leis destinadas ao seu abaixamento simultaneamente com os cortes de

orelhas e a marcação a ferro daqueles “que ninguém tomar a seu serviço”.

Pelo Estatuto dos Aprendizes do 5.° [ano do reinado] de Isabel, c. 3, os

juízes de paz foram autorizados a fixar certos salários e a modificá-los

segundo as épocas do ano e os preços das mercadorias. Jaime I estendeu

essa regulação do trabalho também aos tecelões, fiandeiros e a todas as

categorias possíveis de trabalhadores;53 Jorge II estendeu a lei anticoali-

zão a todas as manufacturas.

52 As leis contra as coalizões, proibindo a criação e actividade de qualquer organiza-

ção operária, foram adoptadas pelo Parlamento britânico em 1799 e 1800. Em

1824, o Parlamento revogou estas leis, tendo confirmado a sua revogação em

1825. No entanto, mesmo depois disto, a actividade das organizações operárias

continuou consideravelmente restringida. Mesmo a simples propaganda a favor a

adesão dos operários a um sindicato e a favor da participação em greves era consi-

derada como “coacção” e “violência” e punida como um delito de direito comum.

53 A partir de uma cláusula do Estatuto do 2.° [ano do reinado] de Jaime I, c. 6, vê-se

que certos fabricantes de panos se permitiram, quais juízes de paz, ditar a tarifa de

salários oficial nas suas próprias oficinas. Na Alemanha, nomeadamente depois da

Guerra dos Trinta Anos, eram frequentes estatutos para manter os salários baixos.

“A falta de criados e operários no campo despovoado era muito incómoda para os

senhores da terra. Todos os aldeãos estavam proibidos de alugar quartos a homens

e mulheres sós; todos estes deviam ser indicados às autoridades e postos na prisão,

no caso de se não quererem tornar criados, mesmo que eles se mantivessem com

uma outra actividade, semeassem à jorna para os camponeses ou mesmo comercias-

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No período da manufactura propriamente dito, o modo de produção

capitalista tinha-se fortalecido suficientemente para tornar a regulamenta-

ção legal do salário tão inexequível como supérflua, mas, em caso de

necessidade, não se queria ficar privado das armas do velho arsenal. Jorge

II, no 8.° [ano do seu reinado], ainda proibiu um salário diário superior a

2 xelins e 7,5 dinheiros para os oficiais alfaiates, em Londres e arredores,

excepto nos casos de luto geral; Jorge III, no 13.° [ano do seu reinado], c.

68, ainda remeteu a regulamentação do salário dos tecelões de seda para

os juízes de paz; em 1796, ainda eram precisas duas sentenças dos tribu-

nais superiores para decidir se as ordens dos juízes de paz sobre o salário

também eram válidas para operários não agrícolas; em 1799, uma lei do

Parlamento ainda sancionava que o salário dos trabalhadores das minas

da Escócia devia ser regulamentado por um Estatuto de Isabel e por duas

leis escocesas de 1661 e 1671. Entretanto, o muito que as relações se

revolucionaram prova-o uma ocorrência inaudita na Câmara Baixa. Aí,

onde há mais de 400 anos se tinham fabricado leis sobre o máximo que o

salário não podia absolutamente ultrapassar, Whitbread, em 1796, propôs

um salário mínimo legal para as jornas na agricultura. Pitt opôs-se, mas

acrescentou que a “condição dos pobres era cruel”. Finalmente, em 1813,

as leis sobre a regulamentação dos salários foram abolidas. Eram uma

anomalia ridícula, uma vez que o capitalista regia a fábrica por uma legis-

lação privada sua e, pelo imposto dos pobres, podia completar o salário

do trabalhador do campo até ao mínimo indispensável. As determinações

dos Estatutos dos Trabalhadores54 acerca de contratos entre mestre e

operário assalariado, acerca de notificações de prazos e coisas parecidas,

que só permitiam uma acção civil contra o mestre que quebrasse o con-

trato, mas [permitiam] uma acção criminal contra o trabalhador que

quebrasse o contrato, estão, até à hora actual, em pleno vigor.

sem com dinheiro e em cereais.” (Kaiserliche Privilegien und Sanctiones fiir

Schlesien [Privilégios e Sanções Imperiais para a Silésia], I, 125.) “Durante todo um século, nas ordenações dos soberanos figura sempre de novo uma queixa amarga acerca da canalha má e petulante, que não se acomoda às condições duras, que não se quer satisfazer com o salário legal; é proibido ao senhor da terra dar mais do que [aquilo] que a região fixou numa taxa. E, todavia, as condições do serviço, depois da guerra, são por vezes ainda melhores do que seriam 100 anos mais tarde; o criado, em 1652, na Silésia, ainda tinha carne duas vezes por sema-na; já no nosso século, nesse mesmo lugar, há distritos em que ele só a tem três vezes por ano. A jorna, depois da guerra, também era mais elevada do que nos séculos seguintes.” (G. Freytag [Neue Bilder aus dem Leben des deutschen Volkes (Novos Quadros da Vida do Povo Alemão), Leipzig, 1862, S. 35, 36].) (Nota de Marx.)

54 Nas 3.ª e 4.ª edições: Estatuto do Trabalho.

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As leis cruéis contra as coalizões caíram, em 1825, ante a atitude ame-

açadora do proletariado. Apesar disso, só caíram em parte. Alguns lindos

restos dos velhos estatutos só desapareceram em 1859. Finalmente, um

decreto do Parlamento de 29 de Junho de 1871 reclamou a eliminação

dos últimos vestígios desta legislação de classe pelo reconhecimento legal

das trades’ unions.55 Mas um decreto do Parlamento da mesma data (An

act to amend the criminal law relating to violence, threats and molestation

restabelecia, de facto, o estado anterior sob uma nova forma. Através

deste escamoteamento parlamentar, os meios de que os operários se

podiam servir por ocasião de uma greve ou lock-out (greve dos fabrican-

tes coligados, mediante o encerramento simultâneo das suas fábricas)

foram retirados do direito comum e postos sob uma legislação penal de

excepção, cuja interpretação cabia aos próprios fabricantes, na sua quali-

dade de juízes de paz. Dois anos antes, a mesma Câmara Baixa e o mes-

mo senhor Gladstone, da maneira honesta conhecida, haviam apresentado

um projecto de lei para a abolição de todas as leis penais de excepção

contra a classe operária. Mas nunca se deixou que isso fosse mais longe

do que a segunda leitura e arrastou-se, assim, a coisa para as calendas, até

que, finalmente, o “grande partido liberal”, mediante uma aliança com os

Tories, ganhou a coragem de se decidir a voltar-se contra o mesmo prole-

tariado que o havia levado ao poder. Não contente com esta traição, o

“grande partido liberal” autorizou os juízes ingleses, em todos os tempos

uns bajuladores ao serviço das classes dominantes, a desenterrar de novo

as leis prescritas sobre “conspirações” e a aplicá-las a coalizões de operá-

rios. Vê-se que, só contra vontade e sob a pressão das massas, é que o

Parlamento inglês renunciou às leis contra as greves e as trades’ unions,

depois de ele próprio, durante cinco séculos, com desavergonhado egoís-

mo, ter apoiado a posição de uma trades’ union permanente dos capitalis-

tas contra os operários.

Logo no início da tormenta revolucionária, a burguesia francesa ousou

abolir de novo o direito de associação que os trabalhadores tinham acaba-

do de conquistar. Pelo decreto de 14 de junho de 1791 ela declarou qual-

quer coalizão de trabalhadores como um “atentado à liberdade e à decla-

ração dos direitos humanos”, punível com a multa de 500 libras além da

privação, por um ano, dos direitos de cidadão activo.56 Esta lei, que

55 Formulação que antecedeu a generalização da expressão trade union (sindicato).

Versões da época noutras línguas: em francês sociétés ouvrières (sociedades ope-

rárias), em alemão Gewerksgenossenschaften (associações de ofícios). (Nota da

edição portuguesa da Editorial Avante!)

56 O artigo I dessa lei declara: “Visto que uma das bases fundamentais da Constitui-

ção francesa consiste na supressão de todas as espécies de união de cidadãos da

mesma condição e profissão, é proibido restabelecê-las sob qualquer pretexto ou

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comprime a luta de concorrência entre o capital e o trabalho por meio da

polícia do Estado nos limites convenientes ao capital, sobreviveu a revo-

luções e mudanças dinásticas. Mesmo o Governo do Terror57 deixou-a

intocada. Só recentemente foi ela riscada totalmente do Code Penal

[Código Penal]. Nada é mais característico do que o pretexto deste golpe

de estado burguês. “Ainda que”, diz Le Chapelier, o relator, “o salário do

dia de trabalho devesse ser um pouco mais considerável do que é presen-

temente... pois, numa nação livre, os salários devem ser suficientemente

consideráveis para que aquele que os recebe esteja fora daquela depen-

dência absoluta que a privação das carências de primeira necessidade

produz, e que é quase a da escravatura”; todavia, os operários não podem

entender-se sobre os seus interesses, agir em conjunto e, por esse facto,

afrouxar a sua “dependência absoluta, que é quase escravatura”, porque,

precisamente por isso, ofendem “a liberdade dos actuais empresários, dos

ci-devant maîtres” (a liberdade de manter os operários na escravatura!) e

porque uma coalizão contra o despotismo dos antigos mestres das corpo-

rações – adivinhe-se! – é um restabelecimento das corporações, abolidas

pela Constituição francesa.58

4. Génese dos rendeiros capitalistas

Depois de termos considerado a criação pela força do proletariado li-

vre como os pássaros, a disciplina sanguinária que os transformou em

trabalhadores assalariados, a sórdida acção do soberano e do Estado que

usou a polícia para acelerar a acumulação do capital aumentando o grau

de exploração do trabalho, pergunta-se: de onde vêm originalmente os

capitalistas? Pois a expropriação do povo do campo cria, directamente,

apenas grandes proprietários fundiários. No que concerne à génese do

rendeiro, podemos, por assim dizer, tocá-la com as mãos, porque ela é um

processo lento, que se arrasta por muitos séculos. Os próprios servos, ao

em qualquer forma”. O artigo IV declara que, se “cidadaos que pertencem a mes-

ma profissão, arte ou ofício se consultarem mutuamente e conjuntamente tomarem

deliberações que tenham por objectivo recusar o fornecimento dos serviços da sua

arte ou do seu trabalho, ou concedê-los apenas a determinado preço, as ditas con-

sultas e acordos deverão ser declarados como anticonstitucionais e como atentados

contra a liberdade e os direitos humanos, etc.”, portanto como crimes contra o

Estado, exactamente como nos velhos estatutos de trabalhadores. (Révolutions de

Paris. Paris, 1791, t. III, p. 523.)

57 O governo da ditadura jacobina em França de Junho de 1793 a Junho de 1794 (N.

da Ed. Alemã.).

58 Buchez e Roux. Histoire Parlamentaire, t. X, p. 193-195 passim.

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lado dos quais houve também pequenos proprietários livres, encontra-

vam-se em relações de propriedade bastante diferentes e foram, por isso,

emancipados também sob condições económicas muito diferentes.

Na Inglaterra, a primeira forma de arrendatário, é o bailiff, ele mesmo

um servo. A sua posição é idêntica a do villicus da Roma Antiga, só que

numa esfera de acção mais estreita. Durante a segunda metade do século

XIV, ele é substituído por um rendeiro a quem o landlord fornece se-

mentes, gado e instrumentos agrícolas. A sua situação não é muito dife-

rente da do camponês. Apenas explora mais trabalho assalariado. Em

breve, ele irá tornar-se metayer [meeiro], meio rendeiro. Ele avança uma

parte do capital agrícola, o landlord a outra. Ambos dividem o produto

global numa proporção contratualmente determinada. Esta forma desapa-

rece rapidamente na Inglaterra, para dar lugar ao rendeiro propriamente

dito, que valoriza o seu próprio capital pelo emprego de trabalhadores

assalariados e paga uma parte do sobreproduto, em dinheiro ou in natura,

ao landlord como renda da terra.

Enquanto, durante o século XV, o camponês independente e o servo

agrícola, que trabalha como assalariado e, ao mesmo tempo, para si

mesmo, enriquecem mediante o seu trabalho, a situação do rendeiro e do

seu campo de produção permaneciam igualmente medíocres. A revolução

agrícola, no último terço do século XV, que prossegue por quase todo o

século XVI (à excepção das suas últimas décadas) enriqueceu o rendeiro

com a mesma rapidez com que empobreceu o povo do campo.59 A usur-

pação das pastagens comunais, etc., permitiu-lhe um grande aumento do

seu efectivo pecuário quase sem custos, enquanto o gado lhe fornecia

maior quantidade de adubo para o cultivo do solo.

No século XVI acresce ainda um momento decisivamente importante.

Naquela época, os contratos de arrendamento eram longos, frequente-

mente por 99 anos. A contínua queda em valor dos metais nobres, e,

portanto, do dinheiro, foi para os rendeiros uma mina de ouro. Ele redu-

ziu, abstraindo as demais circunstâncias anteriormente mencionadas, o

salário. Uma fracção do mesmo foi acrescentada ao lucro do rendeiro. O

constante aumento dos preços dos cereais, da lã, da carne, enfim de todos

os produtos agrícolas, dilatou o capital monetário do rendeiro sem ele ter

feito nada por isso, enquanto a renda da terra que ele tinha de pagar,

sendo calculada em valores monetários ultrapassados, minguou.60 Assim,

59 “Rendeiros”, diz Harrison na sua Description of England, “para os quais antes era

difícil pagar uma renda de 4 libras esterlinas, pagam agora 40, 50, 100 libras ester-

linas e acreditam haver feito um mau negócio, se depois de terminar o seu contrato

de arrendamento nao puseram de parte 6 a 7 anos de rendas.”

60 Acerca da influência da depreciação da moeda no século XVI sobre as diversas

classes da sociedade, veja-se: A Compendious or Briefe Examination of Certayne

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ele enriquecia, ao mesmo tempo, à custa de seus trabalhadores assalaria-

dos e de seu landlord. Não é de admirar, portanto, que a Inglaterra, nos

fins do século XVI, possuísse uma classe de “rendeiros de capital” bas-

tante ricos para a época.61

Ordinary Complaints of Divers of our Countrymen in these our Days. By W. S.,

Gentleman [Um Exame Compendioso ou Breve de Certas Queixas Correntes de

Diversos Compatriotas Nossos Nestes Nossos Dias. Por W. S., fidalgo], (London,

1581.) A forma de diálogo deste escrito levou a que durante muito tempo fosse

atribuído a Shakespeare e, ainda em 1751, ele foi novamente publicado com o seu

nome. O seu autor é William Stafford. Numa passagem, o cavaleiro (knight) racio-

cina como segue:

“Knight: V., meu vizinho, lavrador. V., mestre negociante de tecidos, e V.,

compadre tanoeiro, juntamente com outros artífices, podeis salvar-vos bastante

bem. Pois, por muito que todas as coisas estejam mais caras do que estavam, vós

aumentais outro tanto o preço das vossas mercadorias e ocupações, que vendeis de

novo. Mas nós não temos nada para vender cujo preço possamos subir, para con-

trabalancar aquelas coisas que temos de comprar de novo.” Numa outra passagem,

o knight pergunta ao doutor: “Rogo-vos que [me digais] quais são essas espécies

[de pessoas] a que vos referis. E, em primeiro lugar, aquelas que pensais que, por

esse facto, não terão qualquer perda? – Doutor: Refiro-me a todos aqueles que

vivem comprando e vendendo, pois, como compram caro, vendem em conformi-

dade. – Knight: Qual é a espécie seguinte que dizeis que ganharia com isso? –

Doutor: Deveras, todos aqueles que têm tomadas quintas, amanhadas por eles, com

a renda antiga, pois quando pagam pela taxa antiga vendem pela nova – isto é,

pagam muito barato pela sua terra e vendem todas as coisas que nela crescem caro.

– Knight: Qual é aquela espécie que haveis dito que teria, consequentemente, uma

perda maior do que estes homens têm de lucro? – Doutor: São todos os nobres,

fidalgos e todos os outros que ou vivem de uma renda fixa ou estipêndio, ou não

amanham o solo ou nao se ocupam a comprar e a vender.” (Nota de Marx.)

61 Em França, o régisseur, o intendente e recebedor de rendimentos para os senhores

feudais, na Baixa Idade Média, torna-se rapidamente um homme d’affaires [ho-

mem de negócios]que, por extorsão, intrujice, etc, trepa para capitalista. Estes ré-

gisseurs eram, muitas vezes, eles próprios senhores nobres. Por exemplo: “É a

conta que o senhor Jacques de Thoraine, cavaleiro castelão de Besançon, dá ao

senhor que, em Dijon, tem as contas do senhor duque e conde de Borgonha das

rendas pertencentes à dita castelania desde o XXV dia de Dezembro de MCCCLIX

até ao XXVIII dia de Dezembro de MCCCLX, etc.” (Alexis Monteil, Traité des

matériaux manuscrits, etc. [Tratado dos Materiais Manuscritos, etc], pp. 234, 235.)

Verifica-se já aqui como em todas as esferas da vida social que a parte de leão

cabe ao intermediário. No campo económico, por exemplo, financeiros, homens da

bolsa, comerciantes, pequenos merceeiros, absorvem a nata do negócio; no direito

civil, o advogado tosquia as partes; na política, o representante significa mais do

que os eleitores, o ministro mais do que o soberano; na religião, deus é afastado

para segundo plano pelo “mediador” e este é de novo repelido pelos padres que,

novamente, são mediadores indispensáveis entre o bom pastor e as suas ovelhas.

Tal como em Inglaterra, também em França os grandes territórios feudais estavam

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5. Repercussão da revolução agrícola sobre a indústria.

Criação do mercado interno para o capital industrial

A intermitente e sempre renovada expropriação e expulsão do povo do

campo, como foi visto, forneceu à indústria urbana mais e mais massas de

proletários, situados totalmente fora das relações corporativas, uma sábia

circunstância que faz o velho A. Anderson (que não se deve confundir

com James Anderson), na sua história do comércio, acreditar numa

intervenção directa da Providência. Temos de nos deter ainda um mo-

mento neste elemento da acumulação primitiva. À rarefacção do povo

independente, economicamente autónomo, do campo correspondeu o

adensamento do proletariado industrial, do mesmo modo que, segundo

Geoffroy Saint-Hilaire, o adensamento da matéria do universo aqui se

explica pela sua rarefacção ali.62 Apesar do número reduzido dos seus

cultivadores, o solo proporcionava, depois como antes, tanta ou mais

produção, porque a revolução nas relações de propriedade fundiária foi

acompanhada por métodos melhorados de cultura, maior cooperação,

concentração dos meios de produção, etc., e porque os assalariados

agrícolas não apenas foram obrigados a trabalhar mais intensamente,63

mas também o campo de produção sobre o qual trabalhavam para si

mesmos se contraía mais e mais. Com a libertação de parte do povo do

campo, os alimentos que este consumia anteriormente também são liber-

tados. Transformam-se agora em elemento material do capital variável. O

camponês despojado tem de adquirir o valor deles ao seu novo senhor, o

capitalista industrial, sob a forma de salário. Tal como os meios de sub-

sistência, foram afectadas também as matérias-primas agrícolas nacionais

da indústria. Transformaram-se em elemento do capital constante.

repartidos em infinitas pequenas explorações, mas em condições incomparavel-

mente mais desfavoráveis para o povo do campo. Durante o século XIV, nasceram

as quintas, fermes ou terriers. O seu número cresceu constantemente, muito acima

de 100 000. Pagavam uma renda fundiária variável de 1/12 a 1/5 do produto, em

dinheiro ou in natura. Os terriers eram feudos, subfeudos, etc. (fiefs, arrière-fiefs),

segundo o valor e extensão dos domínios, em que muitos só contavam poucos

arpents. Todos estes terriers possuíam jurisdição num grau qualquer sobre os ocu-

pantes do solo; havia quatro graus. Conceber-se-á a opressão do povo do campo

sob todos estes pequenos tiranos. Monteil diz que havia então, em França, 160 000

juízos, onde hoje 4000 tribunais (incluindo juízos de paz) bastam. (Nota de Marx.)

62 Nas suas Notions de Philosofie Naturelle, Paris, 1838.

63 Um ponto que Sir James Steuart ressalta.ª

ª Steuart, James. An Inquiry into the Principles of Political Economy. Dublin,

1770, v. I. Livro Primeiro. Cap. 16 (N. da Ed. Alemã.)

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Suponha-se, por exemplo, que parte dos camponeses da Vestefália,

que no tempo de Frederico II fiavam todos linho, ainda que não seda,

fosse expropriada à força e expulsa da terra, sendo a outra restante, po-

rém, transformada em jornaleiros de grandes rendeiros. Ao mesmo tem-

po, erguem-se grandes fiações e tecelagens de linho, nas quais os “liber-

tos” trabalham agora por salários. O linho tem exactamente o mesmo

aspecto que antes. Nenhuma das suas fibras foi mudada; mas uma nova

alma social penetrou-lhe no corpo. Ele constitui agora parte do capital

constante dos senhores da manufactura. Antes, repartido entre inumerá-

veis pequenos produtores, que o cultivavam e fiavam em pequenas por-

ções com as suas famílias, está agora concentrado nas mãos de um capita-

lista, que faz outros fiar e tecer para ele. O trabalho extra despendido na

fiação do linho realizava-se antes como receita extra de inumeráveis

famílias camponesas ou, ao tempo de Frederico II, também em impostos

pour le roi de Prousse.64 Ele realiza-se agora no lucro de alguns pouco

capitalistas. Os fusos e teares, antes disseminados pelo interior, estão

agora concentrados nalgumas grandes casernas de trabalho, tal como os

trabalhadores e como a matéria-prima. E os fusos, os teares e a matéria-

-prima, de meios de existência independente para fiandeiros e tecelões,

transformam-se de ora em diante, em meios de comandá-los65 e de extrair

deles trabalho não-pago. Nas grandes manufacturas, bem como nas

grandes quintas, não se nota que se originam da reunião de muitos peque-

nos centros de produção e que são formados pela expropriação de muitos

pequenos produtores independentes. Entretanto, a observação imparcial

não se deixa enganar. Ao tempo de Mirabeau, o leão da revolução, as

grandes manufacturas chamavam-se ainda manufactures réunies, manu-

facturas reunidas, tal como falamos de campos reunidos.

“Vê-se apenas”, diz Mirabeau, “as grandes manufacturas, onde cente-

nas de pessoas trabalham sob as ordens de um diretor e a que costu-

meiramente se chama manufacturas reunidas (manufactures réunies).

Aquelas em que trabalha um número muito grande de trabalhadores

dispersos e cada um por conta própria, quase não são consideradas

dignas de um olhar. São postas a uma distância infinita das outras. É

um erro muito grande, pois só elas constituem um componente real-

mente importante da riqueza do povo. (...) A fábrica reunida (fabrique

réunie) enriquecerá maravilhosamente um ou dois empresários, os

64 Para o rei da Prússia. Em francês no texto.

65 “Eu concederei”, diz o capitalista, “que vós tenhais a honra de servir-me, sob a

condição de que vós me deis o pouco que vos resta pelo incómodo que tenho de

vos comandar.” (Rousseau, J. J. Discours sur l’Economie Politique [Genève, 1760,

p. 70].)

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trabalhadores, porém, são apenas jornaleiros e em nada participam do

bem-estar do empresário. Na fábrica separada (fabrique séparée), pelo

contrário, ninguém se torna rico, mas muitos trabalhadores viverão

desafogados. (...) os poupados e industriosos poderão reunir um pe-

queno capital, arranjar algum recurso para o nascimento de um filho,

para uma doença, para eles próprios ou para algum dos seus. O núme-

ro dos operários poupados e industriosos aumentará, porque verão no

bom comportamento, na actividade, um meio de melhorarem essen-

cialmente a sua situação e não de obterem uma pequena elevação de

soldo, que nunca pode ser um objecto importante para o futuro, e cujo

único produto é pôr os homens em estado de viver um pouco melhor,

mas só no dia-a-dia...”66“As manufacturas reunidas, as empresas de

alguns particulares que pagam a operários dia a dia para trabalharem

por sua conta, podem dar desafogo a esses particulares; mas nunca

constituirão um objecto digno da atenção dos governos. As manufac-

turas separadas individuais, na maioria dos casos, ligadas a um peque-

no cultivo da terra, são as [únicas] livres.”

A expropriação e expulsão de uma parte do povo do campo não deixa

apenas livres para o capital industrial, juntamente com os operários, os

seus meios de vida e o seu material de trabalho; cria o mercado interno.

De facto, os acontecimentos que transformam os pequenos campone-

ses em operários assalariados e os seus meios de vida e de trabalho em

elementos materiais [sachliche] do capital criam ao mesmo tempo para

este último o seu mercado interno. Anteriormente, a família de campone-

ses produzia e preparava os meios de vida e matérias-primas que, depois,

ela própria consumia na maior parte. Estas matérias-primas e meios de

vida tornaram-se agora mercadorias; o grande rendeiro vende-os, eles

encontram o seu mercado nas manufacturas. Fio, tela, tecidos grosseiros

de lã – coisas cujas matérias-primas se encontravam ao alcance de toda a

família de camponeses e por ela eram fiadas e tecidas para o seu uso

próprio – transformam-se agora em artigos de manufactura, para os quais,

precisamente, os distritos rurais formam o mercado de escoamento. A

numerosa clientela dispersa, até agora condicionada por um conjunto de

pequenos produtores trabalhando por conta própria, concentra-se agora

num grande mercado proporcionado pelo capital industrial.67 Deste modo,

66 Mirabeau, Op. cit., t. III, p. 20-109 passim. Se Mirabeau considera as oficinas

dispersas mais económicas e produtivas que as “reunidas” e vê nestas últimas ape-

nas plantas artificiais de estufa sob os cuidados do governo do Estado, isso expli-

ca-se pela situação em que então se encontrava grande parte das manufacturas

continentais.

67 “Vinte libras de la convertidas discretamente no vestuário anual de uma família de

camponeses por sua própria indústria, nos intervalos de outros trabalhos – isso não

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de braço dado com a expropriação de camponeses que anteriormente

trabalhavam para si próprios e com a separação deles dos seus meios de

produção, vai o aniquilamento da indústria rural adjacente, o processo de

separação da manufactura e da agricultura. E só o aniquilamento da

indústria caseira rural pode dar ao mercado interno de um país a extensão

e a consistência firme de que o modo de produção capitalista precisa.

Entretanto, o período manufactureiro propriamente dito não leva a ne-

nhuma reestruturação radical. Recordemos que a manufactura só se

apodera da produção nacional de forma fragmentária e repousa sempre

sobre a oficina da cidade e sobre a indústria caseira-rural adjacente, como

amplo pano de fundo. Se ela aniquila as últimas sob uma forma, em

ramos de negócio particulares, em certos pontos, apela de novo para elas

em outros, porque precisa delas até um determinado grau para a prepara-

ção da matéria-prima. Ela produz, portanto, uma nova classe de pequenos

rurais que prosseguem o amanho do solo como ramo adjacente e o traba-

lho industrial para venda do produto à manufactura – directamente, ou

por intermédio do comerciante – como ocupação principal. Esta é uma

causa, embora não a principal, de um fenómeno que confunde, inicial-

mente, o investigador da história inglesa. A partir do último terço do

século XV, ele encontra queixas contínuas, somente interrompidas em

certos intervalos, sobre a crescente economia capitalista no campo e a

destruição progressiva do campesinato. Por outro lado, ele encontra

sempre de novo este campesinato, ainda que em número mais reduzido e

sempre numa forma pior.68 A causa principal é: a Inglaterra é predomi-

nantemente ora cultivadora de trigo, ora criadora de gado, em períodos

alternados, e com eles flutua o volume da exploração camponesa. Somen-

te a grande indústria fornece, com as máquinas, a base constante da

agricultura capitalista, expropria radicalmente a imensa maioria do povo

do campo e completa a separação entre a agricultura e a indústria rural

doméstica, cujas raízes – fiação e tecelagem – ela arranca.69 Ela conquis-

faz sensação; mas leve-se isso para o mercado, envie-se para a fábrica, dali para o

revendedor, e ter-se-ão grandes operações comerciais e envolvido um capital no-

minal no montante de vinte vezes o seu valor... A classe operária é assim afundada

para sustentar uma população fabril miserável, uma classe lojista parasita e um

sistema comercial, monetário e financeiro fictício.» (David Urquhart, Familiar

Words as Afecting England and the English [Palavras Informais Relativas à Ingla-

terra e aos Ingleses], London, 1855, p. 120.) (Nota de Marx.)

68 O tempo de Cromwell constitui aqui uma excepção. Enquanto a República durou,

a massa do povo inglês de todas as camadas ergueu-se da degradação em que se

havia afundado com os Tudors. (Nota de Marx.)

69 Tuckett sabe que a grande indústria da lã surge das próprias manufacturas e da

destruição da manufactura caseira ou rural, com a introdução da maquinaria. (Tuc-

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ta, portanto, também pela primeira vez, todo o mercado interno para o

capital industrial.70

6. Génese do capitalista industrial

A génese do capitalista industrial71 não decorreu da mesma maneira

gradual do que a do rendeiro. Sem dúvida, muitos pequenos mestres de

corporação e ainda mais pequenos artesãos autónomos ou também operá-

rios assalariados transformaram-se em pequenos capitalistas e, pela

exploração gradualmente estendida de trabalho assalariado e correspon-

dente acumulação, em capitalistas sanas phrase.72 No período de infância

da produção capitalista aconteceu muitas vezes como no período de

infância da cidade medieval onde a questão [de saber] quem, de entre os

servos evadidos, devia ser mestre e quem [devia ser] criado, em grande

parte, foi resolvida pela data mais antiga ou mais tardia da sua fuga. No

entanto, o passo de tartaruga deste método não correspondia de maneira

nenhuma às necessidades comerciais do novo mercado mundial, que as

grandes descobertas do fim do século XV tinham criado. A Idade Média,

kett, l. c., vol. I, pp. 139-144.) “A charrua, o jugo, foram ‘invencao dos deuses e

ocupacao de heróis’; o tear, o fuso, a roca, serao de ascendência menos nobre?

Separais a roca e a charrua, o fuso e o jugo, e obtendes fábricas e asilos para po-

bres, crédito e panicos, duas nacões hostis: a agrícola e a comercial.” (David Ur-

quhart, /. c., p. 122.) Mas vem agora Carey e acusa a Inglaterra, seguramente não

sem razão, por se esforçar por transformar todos os outros países num povo sim-

plesmente de agricultura, de que a Inglaterra seria o fabricante. Ele pretende que a

Turquia foi arruinada desta maneira, porque “aos donos e ocupantes da terra nunca

foi permitido pela Inglaterra fortalecerem-se pela formação daquela aliança natural

entre a charrua e o tear, o martelo e o ancinho”. (The Slave Trade [O Comércio de

Escravos], p. 125.) Segundo ele, o próprio Urquhart é um dos principais agentes da

ruína da Turquia, por ter feito propaganda do comércio livre no interesse inglês. O

melhor é que Carey – a propósito: grande lacaio dos russos – quer impedir aquele

processo de separação pelo sistema de proteccionismo que o acelera. (Nota de

Marx.)

70 Economistas filantrópicos ingleses, como Mill, Rogers, Goldwin Smith, Fawcett,

etc, e fabricantes liberais, como John Bright e consortes, perguntam aos aristocra-

tas fundiários ingleses – tal como deus a Caim pelo seu irmão Abel – para onde

foram os nossos milhares de freeholders? Mas então de onde é que vós vindes? Do

aniquilamento daqueles freeholders. Por que é que não lhes perguntam, além dis-

so, para onde foram os tecelões, fiandeiros, artesãos, independentes? (Nota de

Marx.)

71 Industrial está aqui em oposicao a agrícola. Em sentido “categórico”, o rendeiro é

um capitalista industrial, tal como o fabricante.

72 Sem disfarce.

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porém, havia transmitido duas formas diversas de capital, que amadurece-

ram nas mais diversas formações económicas da sociedade e que, antes

da era do modo de produção capitalista, quand même, valiam como

capital – o capital usurário e o capital comercial.

“Actualmente, toda a riqueza da sociedade vai para as mãos do capi-

talista (...) ele paga ao proprietário da terra a renda, ao trabalhador o

salário, ao colector de imposto e dízimo os seus direitos e guarda

grande parte, na realidade a maior parte, que aumenta cada dia, do

produto anual do trabalho para si mesmo. O capitalista pode agora ser

considerado o proprietário de toda a riqueza social em primeira mão,

apesar de nenhuma lei lhe ter concedido o direito a essa propriedade.

(...) essa mudança na propriedade foi efectivada pela cobrança de ju-

ros sobre o capital (...) e não é menos notável que os legisladores de

toda a Europa quisessem impedir isso mediante leis contra a usura.

(...) O poder do capitalista sobre toda a riqueza do país é uma revolu-

ção completa no direito de propriedade; e por que lei ou série de leis

foi ela efectivada?”73

O autor deveria observar que as revoluções não são feitas por meio de

leis.

O capital monetário formado pela usura e pelo comércio foi impedido

pela constituição feudal no campo e pela constituição corporativa nas

cidades de se converter em capital industrial.74 Essas barreiras caíram

com a dissolução dos séquitos feudais, com a expropriação e a expulsão

parcial do povo do campo. A nova manufactura foi instalada nos portos

marítimos de exportação ou em pontos no campo, fora do controle do

velho sistema urbano e da sua constituição corporativa. Na Inglaterra

verificou-se, por isso, amarga luta das corporate towns75 contra esses

novos viveiros industriais.

A descoberta das terras do ouro e da prata, na América, o extermínio,

a escravização e o enterramento da população nativa nas minas, o começo

da conquista e pilhagem das Índias Orientais, a transformação da África

numa coutada para a caça comercial de peles-negras marcam a aurora da

era de produção capitalista. Esses processos idílicos são momentos fun-

damentais da acumulação primitiva. Segue-se-lhes de perto a guerra

73 The Natural and Artifical Rights of Property Contrasted. Londres, 1832, p. 98-99.

Autor do escrito anónimo: Th. Hodgskin. (Nota de Marx.)

74 Ainda em 1794, os pequenos confeccionadores de pano de Leeds enviaram uma

deputação ao Parlamento com uma petição para que fosse elaborada uma lei que

proibisse a todo comerciante tornar-se fabricante (Dr. Aikin. Op. cit.).

75 Cidades com organização corporativa.

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240 | TRA BAL HO , ACUM UL AÇÃO C APITAL IS TA E RE GIME POLÍT ICO …

comercial das nações europeias, tendo o mundo por palco. Ela é aberta

pela sublevação dos Países Baixos contra a Espanha, assume proporção

gigantesca na Guerra Antijacobina da Inglaterra e prossegue ainda nas

Guerras do Ópio contra a China, etc.

Os diferentes momentos da acumulação primitiva repartem-se então,

mais ou menos por ordem cronológica, a saber pela Espanha, Portugal,

Holanda, França e Inglaterra. Na Inglaterra, em finais do século XVII,

são resumidos sistematicamente no sistema colonial, no sistema da dívida

pública, no moderno sistema tributário e no sistema proteccionista. Estes

métodos baseiam-se, em parte, na mais brutal violência, por exemplo, o

sistema colonial. Todos, porém, utilizaram o poder do Estado, a violência

concentrada e organizada da sociedade, para activar artificialmente o

processo de transformação do modo feudal de produção em capitalista e

para abreviar a transição. A violência é a parteira de toda a velha socie-

dade que está prenhe de uma nova. Ela própria é uma potência económica.

Sobre o sistema colonial cristão, um homem que faz da cristandade

uma especialidade, W. Howitt, diz:

“As barbaridades e as atrozes crueldades das assim chamadas raças

cristãs, em todas as regiões do mundo e contra todos os povos que pu-

deram subjugar, não encontram paralelo em nenhuma era da história

universal, em nenhuma raça, por mais selvagem e ignorante, por mais

despida de piedade e de vergonha que fosse”.76

A história da economia colonial holandesa – e a Holanda era a nação

capitalista modelar do século XVII – “desenrola um insuperável quadro

de traição, suborno, massacre e baixeza”.77 Nada é mais característico que

o seu sistema de roubo de pessoas nas Celebes, a fim de obter escravos

para Java. Os ladrões de pessoas eram adestrados para esse fim. O ladrão,

o intérprete e o vendedor eram os agentes principais nesse comércio; os

príncipes nativos, os principais vendedores. Os jovens sequestrados eram

escondidos nas prisões secretas das Celebes até que estivessem maduros

para o envio aos navios de escravos. Um relatório oficial diz:

76 Howitt, William. Colonization and Christianity. A Popular History of the Treat-

ment of the Natives by the Euro peans in all their Colonies. Londres, 1838, p. 9.

Sobre o tratamento dado aos escravos, encontra-se uma boa compilação em Com-

te, Charles. Traité de Législation. 3ª Ed., Bruxelas, 1837. Deve-se estudar este

assunto em detalhe, para ver o que o burguês faz de si mesmo e do trabalhador

onde pode à vontade modelar o mundo à sua imagem.

77 Raffles, Thomas Stamford. Late lieut. Gov. of that island. The History of Java.

Londres, 1817. [v. II, p. CXC-CXCI.]

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“Esta cidade de Macassar, por exemplo, está cheia de prisões secretas,

uma mais horrenda que a outra, entulhadas de miseráveis, vítimas da

avidez e da tirania, presos a correntes, arrancados violentamente às

suas famílias”.

Para se apoderarem de Malaca, os holandeses subornaram o governa-

dor português. Em 1641, ele deixou-os entrar na cidade. Dirigiram-se

imediatamente a sua casa e assassinaram-no a fim de se “absterem” do

pagamento da soma do suborno de 21 875 libras esterlinas. Onde punham

o pé seguia-se devastação e despovoamento. Banjuwangi, uma província

de Java, contava em 1750 com mais de 80 mil habitantes, em 1811,

apenas 8 mil. Eis o doux commerce!78

A Companhia Inglesa das Índias Orientais obteve, como é sabido, para

além da dominação política nas Índias Orientais, o monopólio exclusivo

do comércio do chá, assim como do comércio chinês, em geral, e do

transporte de bens de e para a Europa. Mas a navegação costeira da Índia

e entre as ilhas, assim como o comércio no interior da Índia, tornaram-se

monopólio dos funcionários superiores da companhia. Os monopólios do

sal, ópio, bétel e outras mercadorias eram minas inesgotáveis de riqueza.

Os próprios funcionários fixavam os preços e esfolavam à vontade o

infeliz hindu. O governador-geral tomava parte neste comércio privado.

Os seus favoritos obtinham contratos em condições em que, mais espertos

do que os alquimistas, conseguiam ouro a partir de nada. Num dia, brota-

vam como cogumelos grandes fortunas; a acumulação primitiva avançava

sem o dispêndio de um xelim. A demanda judicial de Warren Hastings

regurgita de exemplos desses. Eis aqui um caso. Um contrato de ópio foi

atribuído a um certo Sullivan, no momento da sua partida – em missão

oficial – para uma parte da Índia totalmente afastada dos distritos do ópio.

Sullivan vendeu o seu contrato por 40 mil libras esterlinas a um certo

Binn, Binn vendeu-o no mesmo dia por 60 mil libras esterlinas e o último

comprador e cumpridor do contrato declarou que, depois disso, ainda

obteve um ganho enorme. Segundo uma das listas apresentadas ao Parla-

mento, a Companhia e os seus funcionários, de 1757 até 1766, fizeram

que os índios os presenteassem com 6 milhões de libras esterlinas! Entre

1769 e 1770, os ingleses fabricaram uma fome pela compra de todo o

arroz e pela recusa da sua revenda a não ser por preços fabulosos.79

78 Doce comércio.

79 No ano de 1866, somente na província de Orissa, mais 1 milhão de indianos

morreu de fome. Não obstante, procurou-se enriquecer o Tesouro estatal indiano

com os preços pelos quais se cediam os alimentos aos famintos.

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O tratamento dos nativos era naturalmente o mais terrível nas planta-

ções destinadas apenas à exportação, como nas Índias Ocidentais, e nos

países ricos e densamente povoados, entregues às matanças e à pilhagem,

como o México e as Índias Orientais. No entanto, mesmo nas colónias

propriamente ditas não se desmentia o carácter cristão da acumulação

primitiva. Aqueles protestantes austeros e virtuosos, os puritanos da Nova

Inglaterra, estabeleceram, em 1703, por resolução de sua assembly, um

prémio de 40 libras esterlinas para cada escalpe indígena e para cada

pele-vermelha aprisionado; em 1720, um prémio de 100 libras esterlinas

para cada escalpe; em 1744, depois de Massachussetts-Bay ter declarado

certa tribo como rebelde, os seguintes preços: para o escalpe masculino,

de 12 anos para cima, 100 libras esterlinas da nova emissão; para prisio-

neiros masculinos, 105 libras esterlinas, para mulheres e crianças aprisio-

nadas, 50 libras esterlinas; para escalpes de mulheres e crianças, 50 libras

esterlinas! Algumas décadas mais tarde, o sistema colonial vingou-se nos

descendentes rebeldes dos piedosos pilgrim fathers.80 Com incentivo e

pagamento inglês, eles foram tomahawked.81 O Parlamento britânico

declarou que massacrar e escalpelar eram “meios que Deus e a Natureza

tinham posto nas suas mãos”.

O sistema colonial fez amadurecer como plantas de estufa o comércio

e a navegação. As “sociedades monopolia” (Lutero) foram alavancas

poderosas da concentração de capital. Às manufacturas em expansão, as

colónias asseguravam mercado de escoamento e uma acumulação poten-

ciada por meio do monopólio de mercado. O tesouro apresado fora da

Europa directamente por pilhagem, escravização e assassínio refluía à

metrópole e transformava-se em capital. A Holanda, que primeiro desen-

volveu plenamente o sistema colonial, atingira já em 1648 o apogeu da

sua grandeza comercial. Estava

“na posse quase exclusiva do comércio das Índias Orientais e do trá-

fego entre o Sudoeste e o Nordeste europeu. A sua pesca, a marinha e

as manufacturas sobrepujavam as de qualquer outro pais. Os capitais

da República eram talvez mais importantes que os do resto da Europa

em conjunto”.82

80 Pais ou patriarcas peregrinos. O primeiro grupo de puritanos que se estabeleceu

em Plymouth (Massachusetts), em 1620.

81 Mortos à machadada por índios.

82 Guelich, G. Von. Geschichtliche Darstellung des Handels, der Gewerbe und des

Ackerbaus der bedeutendsten handeltreibenden Stacten unserer Zeit [Exposição

Histórica do Comércio, da Indústria e da Agricultura dos Estados Comerciantes

mais Significativos do Nosso Tempo], Jena, 1830. v. 1, p. 371.

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Guelich esquece-se de acrescentar: o povo holandês era já em 1648

mais sobrecarregado de trabalho, mais empobrecido e mais brutalmente

oprimido que os povos do resto da Europa em conjunto.

Hoje em dia, a supremacia industrial traz consigo a supremacia co-

mercial. No período manufactureiro propriamente dito, é, pelo contrário,

a supremacia comercial que dá o predomínio industrial. Daí o papel

preponderante que o sistema colonial desempenhava então. Era o “deus

estranho” que se colocava sobre o altar ao lado dos velhos ídolos da

Europa e que, um belo dia, com um empurrão e um pontapé, os atirou

conjuntamente pela borda fora. Proclamou a extracção de mais-valia

como objectivo último e único da humanidade.

O sistema de crédito público, isto é, da dívida do Estado, cujas origens

encontramos em Génova e Veneza já na Idade Média, apoderou-se de

toda a Europa durante o período manufactureiro. O sistema colonial, com

o seu comércio marítimo e as suas guerras comerciais, serviu-lhe de

estufa. Assim, ele consolidou-se primeiramente na Holanda. A dívida

pública, isto é, a alienação [Veräusserung] do Estado – tanto despótico

como constitucional ou republicano – marcou com o seu selo a era capi-

talista. A única parte da chamada riqueza nacional que realmente entra na

posse colectiva dos povos modernos é a sua dívida de Estado.83 Daí ser

totalmente consequente a doutrina moderna de que um povo torna-se

tanto mais rico quanto mais se endivida. O crédito público torna-se o

credo do capital. E, com o surgir do endividamento do Estado, vai para o

lugar dos pecados contra o Espírito Santo – para os quais não há qualquer

perdão – blasfemar contra a dívida do Estado.

A dívida pública torna-se uma das mais enérgicas alavancas da acu-

mulação primitiva. Como com o toque da varinha mágica, reveste o dinhei-

ro improdutivo de poder procriador e transforma-o assim em capital, sem

que, para tal, tivesse precisão de se expor às canseiras e riscos inseparáveis

da sua aplicação industrial e mesmo usurária. Os credores do Estado, na

realidade, não dão nada, pois a soma emprestada é convertida em títulos da

dívida, facilmente transferíveis, que continuam a funcionar nas suas mãos

como se fossem dinheiro sonante. Porém, abstraindo da classe de rentistas

ociosos assim criada e da riqueza improvisada dos financeiros que actuam

como intermediários entre o governo e a nação – como também da dos

arrendatários de impostos, mercadores, fabricantes privados, aos quais uma

boa porção de cada empréstimo do Estado realiza o serviço de um capital

caído do céu – a dívida do Estado fez prosperar as sociedades por acções, o

83 William Cobbett observa que na Inglaterra todas as instituições públicas são

denominadas “reais”, mas em compensacao existe a dívida “nacional” (national

debt). (Nota de Marx.)

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comércio com títulos negociáveis de toda a espécie, a agiotagem, numa

palavra: o jogo da bolsa e a moderna bancocracia.

Desde o seu nascimento, os grandes bancos, adornados com títulos

nacionais, eram apenas sociedades de especuladores privados que se

colocavam ao lado dos governos e, graças aos privilégios recebidos,

estavam em condições de adiantar-lhes dinheiro. Por isso, a acumulação

da dívida do Estado não tem medidor mais infalível que a subida sucessi-

va das acções desses bancos, cujo completo desenvolvimento data da

fundação do Banco de Inglaterra (1694). O Banco de Inglaterra começou

a emprestar o seu dinheiro ao governo a 8%; ao mesmo tempo, foi autori-

zado pelo Parlamento a cunhar dinheiro do mesmo capital, emprestando-

-o ao público outra vez sob a forma de notas bancárias. Com essas notas,

podia descontar letras de câmbio, fazer adiantamentos sobre mercadorias

e comprar metais preciosos. Não tardou muito para que esse dinheiro de

crédito, por ele mesmo fabricado, se tornasse a moeda com a qual o

Banco de Inglaterra fazia empréstimos ao Estado e, por conta do Estado,

pagava os juros da dívida pública. Não bastava que ele desse com uma

mão, para com a outra receber de volta mais; ficou também, apesar de

receber, eterno credor da nação até ao último centavo dado. Gradual-

mente, tornou-se o inevitável depositário dos tesouros metálicos do país e

o centro de gravitação de todo o crédito comercial. Pela mesma altura em

que, em Inglaterra, se deixava de queimar bruxas, começava-se aí a

enforcar falsificadores de notas de banco. Que efeito produziu sobre os

contemporâneos o súbito emergir desta ninhada de bancocratas, financei-

ros, rentiers,84corretores, stockjobbers85 e lobos da bolsa, mostram-no os

escritos daquele tempo, por exemplo, de Bolingbroke.86

Com as dívidas do Estado surgiu um sistema internacional de crédito,

que frequentemente oculta uma das fontes da acumulação primitiva neste

ou naquele povo. Assim, as vilezas do sistema veneziano de rapina cons-

tituem uma das tais bases ocultas da riqueza de capital da Holanda, à qual

a decadente Veneza emprestou grandes somas em dinheiro. O mesmo se

passou entre a Holanda e a Inglaterra. Já no início do século XVIII, as

manufacturas da Holanda estavam bastante ultrapassadas e esta havia

cessado de ser a nação dominante do comércio e da indústria. Um dos

seus principais negócios de 1701 a 1776 torna-se, por isso, emprestar

enormes capitais, especialmente ao seu poderoso concorrente, a Inglater-

84 Os que vivem de rendimentos.

85 Especuladores com acções.

86 Se os tártaros inundassem hoje a Europa, seria muito difícil fazê-los entender o

que é entre nós um financeiro.” (Montesquieu. Esprit des Lois. Ed. Londres, 1769.

t. IV, p. 33.)

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ra. Uma relação análoga existe hoje entre a Inglaterra e os Estados Uni-

dos. Muito capital que aparece hoje nos Estados Unidos, sem certidão de

nascimento, é sangue infantil ainda ontem capitalizado na Inglaterra.

Como a dívida do Estado assenta nas receitas do Estado, que têm de

cobrir os pagamentos anuais por juros, etc, o moderno sistema tributário

tornou-se um complemento necessário do sistema de empréstimos nacio-

nais. Os empréstimos capacitam o governo a enfrentar despesas extraor-

dinárias, sem que o contribuinte o sinta imediatamente, mas exigem,

como consequência, a subida dos impostos. Por outro lado, o aumento de

impostos causado pela acumulação de dívidas contraídas sucessivamente

força o governo a contrair sempre novos empréstimos para fazer face a

novos gastos extraordinários. O regime fiscal moderno, cujo eixo é cons-

tituído pelos impostos sobre os meios de subsistência mais necessários

(portanto, encarecendo-os), traz em si mesmo o germe da progressão

automática. A sobretaxação não é um incidente, mas antes um princípio.

Na Holanda, onde esse sistema foi primeiramente inaugurado, o grande

patriota De Witt celebrou-o por isso nas suas máximas como o melhor

sistema para manter o trabalhador assalariado submisso, frugal, diligente

e (...) sobrecarregado de trabalho. A influência destruidora que exerce

sobre a situação dos trabalhadores assalariados interessa-nos aqui, entre-

tanto, menos que a violenta expropriação do camponês, do artesão, enfim,

de todos os componentes da pequena classe média, que ele condiciona.

Sobre isso não há opiniões divergentes, nem mesmo entre os economistas

burgueses. A sua eficácia expropriadora é fortalecida ainda pelo sistema

proteccionista, que constitui uma das suas partes integrantes.

A grande parte que cabe à dívida pública e ao sistema fiscal que lhe cor-

responde na capitalização da riqueza e na expropriação das massas levou

um conjunto de escritores – como Cobbett, Doubleday e outros – a procu-

rar aí, sem razão, a causa fundamental da miséria dos povos modernos.

O sistema proteccionista foi um meio artificial de fabricar fabricantes,

de expropriar trabalhadores independentes, de capitalizar os meios nacio-

nais de produção e de subsistência, de encurtar violentamente a transição

do antigo modo de produção para o moderno. Os Estados europeus dis-

putaram entre si a patente desta invenção e, uma vez entrados ao serviço

do realizador de mais-valia [Plusmacher], extorquiram para esse efeito,

não só o próprio povo, indirectamente através de direitos proteccionistas,

directamente através de prémios de exportação, etc. Nos países secundá-

rios dependentes, toda a indústria foi violentamente extirpada, como, por

exemplo, a manufactura de lã irlandesa, pela Inglaterra. No continente

europeu, segundo o modelo de Colbert, o processo foi ainda mais simpli-

ficado. O capital original do industrial flui aqui, em parte, directamente

do tesouro do Estado.

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“Porquê”, exclama Mirabeau, “ir tão longe buscar a causa do esplen-

dor da manufactura da Saxónia antes da Guerra dos Sete Anos? Cento

e oitenta milhões de dívidas contraídas pelos soberanos!87

Sistema colonial, dívidas do Estado, peso dos impostos, protecção,

guerras comerciais, etc., esses rebentos do período manufactureiro pro-

priamente dito agigantam-se durante a infância da grande indústria. O

nascimento desta última é celebrado pelo grande rapto herodiano de

crianças. Tal como a marinha real, as fábricas [também] faziam recruta-

mento forçado. Por muito blasé que Sir F. M. Eden seja frente aos horro-

res da expropriação do povo do campo da sua base fundiária, desde o

último terço do século XV até à sua época, o fim do século XVIII, por

muito que ele se congratule, satisfeito consigo, com este processo “neces-

sário” para “estabelecer” a agricultura capitalista e a “devida proporção

entre a terra arável e a terra para pastagem”, ele não demonstra, em

contrapartida, a mesma compreensão económica da necessidade do roubo

de crianças e da escravatura infantil para a transformação da empresa

manufactureira na empresa fabril e para o estabelecimento da verdadeira

relação entre capital e força de trabalho. Diz ele:

“Talvez mereça a consideração do público considerar se alguma ma-

nufactura – que, para ser conduzida com sucesso, requer que cottages

e workhouses tenham de ser saqueadas para [arranjar] crianças pobres;

que elas tenham de ser empregues por turnos durante a maior parte da

noite e roubadas daquele descanso que, apesar de indispensável a to-

dos, é mais requerido pelos jovens; e que um grande número de [cri-

anças] de ambos os sexos, de diferentes idades e aptidões, tenha de ser

reunido de uma maneira tal que o contágio do exemplo não pode levar

senão à depravação e ao deboche – contribuirá [com alguma coisa]

para a soma da felicidade individual ou nacional?88 “Nos condados do

Derbyshire, Nottinghamshire e, mais particularmente, no Lancashire”,

diz Fielden, “a maquinaria recentemente inventada foi usada em

grandes fábricas construídas nas margens de rios capazes de fazerem

girar a roda hidráulica. Milhares de braços foram subitamente requeri-

dos nesses lugares, remotos das cidades; e, sendo, em particular o

Lancashire, até então, comparativamente, escassamente povoado e es-

téril, do que agora precisava era de uma população. Sendo os dedos

pequenos e ágeis das criancinhas, de muito longe, o que mais era pe-

87 “Pourquoi aller chercher si loin la cause de l’éclat manufacturier de la Saxe avant

la guerre? Cent quatre-vingt millions de dettes faîtes par les souverains!” (Mira-

beau. Op. cit., t. VI, p. 101.)

88 Eden. Op. cit., Livro Segundo. Cap. I, p. 421.

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dido, surgiu instantaneamente o costume de arranjar aprendizes nas

diferentes workhouses paroquiais de Londres, de Birmingham e de

outros lados. Muitos, muitos milhares dessas pequenas, infelizes, cria-

turas foram mandadas para o Norte, tendo desde a idade de 7 até à

idade de 13 ou 14 anos. O costume era de que o mestre” (isto é, o la-

drão de crianças) “vestisse os seus aprendizes e os alimentasse e alo-

jasse numa ‘casa de aprendizes’ perto da fábrica; foram contratados

supervisores para vigiarem as obras e o interesse deles era fazer tra-

balhar as crianças ao máximo, porque a paga deles era em proporção à

quantidade de trabalho que conseguissem extorquir. Claro que a con-

sequência era a crueldade... Em muitos dos distritos manufactureiros,

mas particularmente, receio, no condado cheio de culpas a que perten-

ço [Lancashire], foram praticadas as crueldades mais de cortar o cora-

ção sobre as criaturas inofensivas e desvalidas que estavam, assim,

consignadas ao cuidado de mestres manufactureiros; eram fatigadas

até à beira da morte por excesso de trabalho... eram açoitadas, agrilho-

adas e torturadas com o requinte de crueldade mais apurado; ... em

muitos casos, eram reduzidas pela fome até ao osso e açoitadas no seu

trabalho e... mesmo nalgumas ocasiões... foram levadas a suicidarem-

-se... Os vales belos e românticos do Derbyshire, Nottinghamshire e

Lancashire, retirados do olhar público, tornaram-se as solidões som-

brias da tortura e de muitos assassínios. Os lucros dos manufactureiros

eram enormes; mas isso só aguçava o apetite que tinha de ser satisfeito

e, por conseguinte, os manufactureiros recorreram a um expediente

que parecia assegurar-lhes esses lucros sem qualquer possibilidade de

limite; começaram com a prática daquilo que é denominado ‘trabalho

nocturno’, isto é, tendo cansado um grupo de braços fazendo-os tra-

balhar durante todo o dia, tinham outro grupo pronto para continuar a

trabalhar durante toda a noite; indo o grupo diurno para as camas que

o grupo nocturno tinha acabado de deixar e, por sua vez, de novo, indo

o grupo nocturno, de manhã, para as camas que o grupo diurno deixa-

ra. É tradição corrente, no Lancashire, que as camas nunca arrefe-

çam.”89

89 Fielden, John. Op. cit., p. 5-6. Sobre as infâmias originárias do sistema fabril,

comparar Dr. Aikin (1795). Op. cit., p. 219; e Gisborne. Enquiry into the Duties of

Men. 1795. v. II. Visto que a máquina a vapor transplantou as fábricas das quedas

d’água rurais para o centro das cidades, o extractor de mais-valia, sempre “pronto

a renúncia”, encontrou a mao o material infantil, sem a oferta forcada de escravos

das workhouses. – Quando Sir Peel (pai do “ministro da plausibilidade”) apresen-

tou a sua bill em protecção das crianças, em 1815, F. Horner (luminária do Bulion-

Committee e amigo íntimo de Ricardo) declarou na Camara dos Comuns: “É notó-

rio que junto com a massa falida, um bando, se me permitem essa expressão, de

crianças de fábrica foi anunciado e arrematado, em leilão público, como parte da

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Com o desenvolvimento da produção capitalista durante o período

manufactureiro, a opinião pública da Europa perdeu o que lhe restava de

sentimentos de vergonha e consciência. As nações jactavam-se cinica-

mente de cada infâmia que fosse um meio para acumular capital. Leiam-

-se, por exemplo, os ingénuos anais do comércio do probo A. Anderson.

Aí é trombeteado como triunfo da sabedoria política inglesa que a Ingla-

terra, na paz de Utrecht, pelo tratado de Asiento,90 tenha extorquido aos

espanhóis o privilégio de explorar o tráfico de negros, que até então

explorava apenas entre a África e a América espanhola. A Inglaterra

obteve o direito de fornecer à América espanhola, até 1743, 4800 negros

por ano. Isso proporcionava, ao mesmo tempo, um manto oficial para o

contrabando britânico. Liverpool engordou à base do comércio de escra-

vos. Ele constituía o seu método de acumulação primitiva. E, até aos dias

de hoje, a “honorabilidade” de Liverpool permanece o Píndaro do comér-

cio de escravos, o qual – compare-se com o escrito citado do Dr. Aikin de

1795 – “coincidiu com aquele espírito de corajosa aventura que caracteri-

zou o comércio de Liverpool e que rapidamente a levou ao seu presente

estado de prosperidade; ocasionou um vasto emprego para embarcadiços

e marinheiros, e aumentou grandemente a procura das manufacturas do

país” [p. 339]. Em 1730, Liverpool empregava no comércio de escravos

15 navios; em 1751, 53; em 1760, 74; em 1770, 96; e em 1792, 132.

Enquanto introduzia a escravatura de crianças em Inglaterra, a indús-

tria do algodão dava, ao mesmo tempo, o impulso para a transformação

da anterior economia esclavagista mais ou menos patriarcal dos Estados

Unidos num sistema de exploração comercial. Em geral, a escravatura

velada de operários assalariados na Europa precisava, como pedestal, da

escravatura sans phrase no Novo Mundo.91

propriedade. Há dois anos” (em 1813) “chegou perante a King’s Benchª um caso

horroroso. Tratava-se de certo número de garotos. Uma paróquia de Londres tinha-

os consignado a um fabricante, que os transferiu de novo a outro. Eles foram fi-

nalmente descobertos por alguns filantropos, num estado de completa inanição

(absolute famine). Outro caso, ainda mais horroroso, chegou ao meu conhecimento

como membro da comissão parlamentar de inquérito. Há não muitos anos, uma

paróquia londrina e um fabricante de Lancashire concluíram um contrato pelo qual

foi estipulado que este, para cada 20 criancas sadias teria de aceitar uma idiota”.

90 Denominação dos acordos pelos quais a Espanha concedia a Estados estrangeiros e

pessoas privadas o direito de fornecer escravos negros para as suas colónias ameri-

canas, do século XVI até ao século XVIII. (N. da Ed. Alemã.)

91 Em 1790, nas Índias Ocidentais inglesas havia 10 escravos para 1 homem livre,

nas francesas, 14 para 1, nas holandesas, 23 para 1. (Brougham, Henry. An Inquiry

into the Colonial Policy of the European Powers, Edimburgo, 1803. v. II, p. 74.)

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Tantae molis erat92 destacar as “leis naturais eternas” do modo de pro-

dução capitalista, completar o processo de separação entre operários e

condições de trabalho, transformar, num pólo, os meios de vida e de

produção sociais em capital e, no pólo oposto, a massa do povo em

operários assalariados, em “pobres trabalhadores” livres, esse produto

artificial da história moderna.93 Se o dinheiro, segundo Augier, “vem ao

mundo com manchas naturais de sangue sobre uma de suas faces”,94

então o capital nasce escorrendo por todos os poros sangue e porcaria da

cabeça aos pés.95

92 Tantae molis erat “Tanto esforco fazia-se necessário.” Marx utilisa aqui uma

expressão de Virgílio. Eneida. Livro Primeiro, verso 33. Lê-se aí: Tantae molis

erat Romanum condere gentem (Tanto esforço fazia-se necessário para fundamen-

tar a estirpe romana). (N. da Ed. Alemã.)

93 A expressão labouring poorª encontra-se nas leis inglesas desde o momento em

que a classe dos trabalhadores assalariados se torna digna de atenção. Os labou-

ring poor estão em contraposição, por um lado, aos idle poor,ª1 mendigos etc., por

outro, aos trabalhadores que ainda não se tornaram galinhas depenadas, mas conti-

nuam proprietários dos seus meios de trabalho. Da lei, a expressão labouring poor

transferiu-se para a economia política, de Culpeper, J. Child, etc. até A. Smith e

Eden. Consequentemente, julgue-se a boa fé do execrable political cantmonger

[execrável vendedor de hipocrisia política] Edmund Burke, quando qualifica a

expressão labouring poor como execrable political cant [execrável hipocrisia polí-

tica]. Esse sicofanta, que a soldo da oligarquia inglesa fez de romântico frente à

Revolução Francesa, do mesmo modo que, a soldo das colónias norte-americanas,

fez de liberal no início dos motins americanos frente à oligarquia inglesa, era sob

todos os aspectos um burguês ordinário: “As leis do comércio sao as leis da Natu-

reza e consequentemente as leis de Deus”. (Burke, E. Op. cit., p. 31-32.) Não é de

admirar que ele, fiel às leis de Deus e da Natureza, se vendesse sempre a si mesmo

no melhor mercado! Encontra-se nos escritos do Rev. Tucker – Tucker era padre e

tory, mas de resto um homem correto e competente economista político – uma boa

caracterização desse Edmund Burke, durante a sua época liberal. Em face da infa-

me falta de carácter, que predomina hoje, e da crenca mais devota nas “leis do

comércio”, é dever estigmatizar, sempre de novo, os Burkes, que se diferenciam

dos seus sucessores apenas por uma coisa: Talento!

94 Augier, Marie. Du Crêdit Public. [Paris, 1842, p. 265.]

95 “O capital”, diz o Quarterly Reviewer, “foge da turbulência e da briga, e é tímido,

o que é muito verdade; mas isto é tratar a questão muito incompletamente. O capi-

tal tem horror à ausência de lucro ou a um lucro muito pequeno, do mesmo modo

que anteriormente se dizia que a Natureza aborrecia o vácuo. Com o adequado

lucro, o capital é muito audaz. Uns 10 por cento certos assegurarão a sua aplicação

em qualquer parte; 20 por cento certos produzirão avidez; 50 por cento, positiva-

mente, audácia; 100 por cento, pô-lo-ão pronto a espezinhar todas as leis humanas;

300 por cento, e não haverá crime perante o qual tenha escrúpulos, nem um risco

que ele não corra, mesmo com a possibilidade de o seu dono ser enforcado. Se

turbulência e briga proporcionarem lucro, encorajará francamente ambas. O con-

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7. Tendência histórica da acumulação capitalista

Em que vem a dar a acumulação primitiva do capital, isto é, a sua gé-

nese histórica? Enquanto não é transformação imediata de escravos e

servos em operários assalariados e, portanto, uma simples mudança de

forma, apenas significa a expropriação dos produtores imediatos, isto é, a

dissolução da propriedade privada assente no trabalho próprio.

A propriedade privada, como antítese da propriedade social, colectiva,

existe apenas onde os meios de trabalho e as suas condições externas

pertencem a pessoas privadas. Porém, consoante estas pessoas privadas

sejam trabalhadores ou não-trabalhadores, a propriedade privada assume

também carácter diferente. Os infindáveis matizes que a propriedade

privada exibe à primeira vista reflectem apenas as situações intermédias

existentes entre estes dois extremos.

A propriedade privada do trabalhador sobre seus meios de produção é

a base da pequena empresa, a pequena empresa uma condição necessária

para o desenvolvimento da produção social e da livre individualidade do

próprio trabalhador. Na verdade, esse modo de produção existe também

durante a escravidão, a servidão e outras relações de dependência. Mas

ela só floresce, só liberta toda a sua energia, só conquista a forma clássica

adequada, onde o trabalhador é livre proprietário privado das condições

de trabalho manipuladas por ele mesmo, o camponês da terra que cultiva,

o artesão dos instrumentos que maneja como um virtuoso.

Este modo de produção pressupõe o parcelamento do solo e dos de-

mais meios de produção. Assim como a concentração destes últimos,

exclui também a cooperação, divisão do trabalho dentro dos próprios

processos de produção, dominação social e regulação da Natureza, livre

desenvolvimento das forças sociais produtivas. Só é compatível com

limites naturais estreitos da produção e da sociedade. Pretender eternizá-

-lo significaria, como diz Pecqueur com razão, “decretar a mediocridade

geral”.96 Em certo nível de desenvolvimento, produz os meios materiais

da sua própria destruição. A partir desse momento agitam-se forças e

trabando e o comércio de escravos provaram amplamente tudo o que aqui é afir-

mado.” (T. J. Dunning, Trades Unions and Strikes, London, 1860 pp. 35-36) (Nota

de Marx.) 38 * “Tanto esforco fazia-se necessário.”Marx utilisa aqui uma expressao de

Virgílio. Eneida. Livro Primeiro, verso 33. Lê-se aí: Tantae molis erat Romanum

condere gentem (Tanto esforço fazia-se necessário para fundamentar a estirpe

romana). (N. da Ed. Alemã.)

96 Pecqueur, C. Théorie Nouvelle d’Economie Sociale et Politique. Paris, 1842,

p. 435.

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paixões no seio da sociedade, que se sentem manietadas por ele. Tem de

ser destruído e é destruído. A sua destruição, a transformação dos meios

de produção individuais e parcelados em socialmente concentrados,

portanto da propriedade minúscula de muitos em propriedade gigantesca

de poucos, portanto a expropriação da grande massa da população da sua

terra, dos seus meios de subsistência e instrumentos de trabalho, essa

terrível e difícil expropriação da massa do povo constitui a pré-história do

capital. Ela abrange uma série de métodos violentos, dos quais nós só

passámos em revista como métodos da acumulação primitiva do capital

os que fizeram época. A expropriação dos produtores directos é realizada

com o mais implacável vandalismo e sob o impulso das paixões mais

sujas, mais infames, mesquinhas e odiosas. A propriedade privada obtida

com trabalho próprio, baseada, por assim dizer, na fusão do trabalhador

individual isolado e independente com as suas condições de trabalho, é

suplantada pela propriedade privada capitalista, a qual se baseia na explo-

ração do trabalho alheio, mas formalmente livre.97

Logo que esse processo de transformação tenha decomposto suficien-

temente, em profundidade e extensão, a antiga sociedade, logo que os

trabalhadores tenham sido convertidos em proletários e as suas condições

de trabalho em capital, logo que o modo de produção capitalista se sus-

tente sobre os seus próprios pés, a socialização ulterior do trabalho e a

transformação ulterior da terra e de outros meios de produção em meios

de produção socialmente explorados, portanto, colectivos, a consequente

expropriação ulterior dos proprietários privados ganha nova forma. O que

está agora para ser expropriado já não é o trabalhador economicamente

autónomo, mas o capitalista que explora muitos trabalhadores.

Essa expropriação faz-se por meio do jogo das leis imanentes da pró-

pria produção capitalista, por meio da centralização dos capitais. Cada

capitalista mata muitos outros. Paralelamente a essa centralização ou à

expropriação de muitos outros capitalistas por poucos desenvolve-se a

forma cooperativa do processo de trabalho em escala sempre crescente, a

aplicação técnica consciente da ciência, a exploração planeada da terra, a

transformação dos meios de trabalho em meios de trabalho utilizáveis

apenas colectivamente, a economia de todos os meios de produção me-

diante uso como meios de produção de um trabalho social combinado, o

entrelaçamento de todos os povos na rede do mercado mundial e, com

isso, o carácter internacional do regime capitalista. Com a diminuição

constante do número dos magnatas do capital, os quais usurpam e mono-

97 “Nós encontramo-nos numa situação que é completamente nova para a sociedade

(...) nós procuramos separar toda a espécie de propriedade de toda a espécie de

trabalho.” (Sismondi. Nouveaux Principes de l’Écon. Polit. v. II, p. 434.)

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polizam todas as vantagens desse processo de transformação, aumenta a

extensão da miséria, da opressão, da servidão, da degeneração, da explo-

ração, mas também a revolta da classe trabalhadora, sempre numerosa,

educada, unida e organizada pelo próprio mecanismo do processo de

produção capitalista. O monopólio do capital torna-se um entrave para o

modo de produção que floresceu com ele e sob ele. A centralização dos

meios de produção e a socialização do trabalho atingem um ponto em que

se tornam incompatíveis com o seu invólucro capitalista. Os expropriado-

res são expropriados.

O modo de apropriação capitalista surgido do modo de produção capi-

talista, ou seja, a propriedade privada capitalista, é a primeira negação da

propriedade privada individual, baseada no trabalho próprio. Mas a

produção capitalista produz, com a inexorabilidade de um processo

natural, a sua própria negação. É a negação da negação. Esta não resta-

belece a propriedade privada, mas a propriedade individual sobre o

fundamento do conquistado na era capitalista: a cooperação e a proprie-

dade comum da terra e dos meios de produção produzidos pelo próprio

trabalho.

A transformação da propriedade privada fragmentada, baseada no tra-

balho próprio dos indivíduos, em propriedade capitalista é, naturalmente,

um processo incomparavelmente mais longo, duro e difícil do que a

transformação da propriedade capitalista, realmente já fundada numa

organização social da produção, em propriedade social. Lá, tratou-se da

expropriação da massa do povo por poucos usurpadores, aqui trata-se da

expropriação de poucos usurpadores pela massa do povo.98

98 “O progresso da indústria, cujo portador involuntário e nao-resistente é a burgue-

sia, coloca no lugar do isolamento dos trabalhadores, pela concorrência, a sua uni-

ão revolucionária, pela associação. Com o desenvolvimento da grande indústria, a

burguesia vê, pois, desaparecer sob os seus pés o fundamento sobre o qual ela

produz e se apropria dos produtos. Ela produz, pois, antes de mais nada, os seus

próprios coveiros. A sua queda e a vitória do proletariado são igualmente inevitá-

veis. (...) De todas as classes que hoje se defrontam com a burguesia, apenas o

proletariado é uma classe realmente revolucionária. As demais classes degeneram

e desaparecem com a grande indústria, o proletariado é o seu produto mais genuí-

no. As camadas médias, o pequeno industrial, o pequeno comerciante, o artesão, o

camponês, todos eles combatem a burguesia para evitar que a sua existência como

camadas médias se extinga (...) eles são reaccionários, pois procuram fazer andar

para trás a roda da história.” (Marx, Karl e Engels, F. Manifest der Kommunis-

tischen Partei. Londres, 1848. p. 11, 9.)

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BIOGRAFIAS DOS AUTORES

António Simões do Paço

Investigador do Instituto de História Contemporânea

da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Uni-

versidade Nova de Lisboa. Tem diversos artigos e

livros publicados sobre a história da I República, do

Estado Novo, do Partido Socialista e do Partido Comu-

nista Português e o processo de integração de Portugal

e Espanha nas Comunidades Europeias. Foi editor,

coordenador e co-autor de Os Anos de Salazar, uma

história do Estado Novo em 30 volumes. É editor executivo da revista acadé-

mica Workers of the World.

Camilo Domingues

Graduado em Artes Cénicas pela Universidade Federal

da Baía e mestre em História pelo Programa de Pós-

-Graduação em História da Universidade Federal Flu-

minense em Niterói, Rio de Janeiro. Realiza, no mes-

mo programa, pesquisa de doutoramento intitulada

“As relações estéticas da arte com a realidade: a inte-

ração entre a história, a filosofia e a literatura na obra

de N. G. Tchernychévski”, sob a orientação do Prof.

Dr. Daniel Aarão Reis.

Eduardo Petersen

Licenciado pela Faculdade de Direito da Universidade

Clássica de Lisboa (1984), ingressou no Centro de

Estudos Judiciários (1985) e seguiu a carreira de

magistrado judicial, na qual, desde 1996 e até 2016, se

especializou na jurisdição laboral. Doutorando em

História Contemporânea na FCSH sobre a evolução

legal do trabalho em Portugal.

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Felipe A. Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Flumi-

nense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço

Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

(UERJ). Editor do blogue Junho e membro da secreta-

ria de redação da revista Outubro, é autor, entre outros

artigos, livros e publicações, de O longo bonapartismo

brasileiro (1930-1964): um ensaio de interpretação

histórica (Rio de Janeiro: Mauad, 2013) e, ao lado de

Raquel Varela e Valério Arcary, de O que é uma Revolução? Teoria, Histó-

ria e Historiografia (Lisboa: Colibri, 2015). Recentemente, coordenou, em

parceria com Rejane Hoeveler, o livro A Onda Conservadora: ensaios sobre

os atuais tempos sombrios no Brasil (Rio de Janeiro: Mauad, 2016).

Fernando Rosas

Nasceu em 1946, em Lisboa, tendo-se doutorado em

História Económica e Social Contemporânea pela

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Uni-

versidade Nova de Lisboa. Foi, desde 1996, professor

agregado de História Portuguesa Contemporânea na

mesma universidade, tendo-se jubilado em 2016. O seu

interesse enquanto investigador voltou-se para a história

do Estado Novo. É um dos maiores especialistas portu-

gueses neste período, sendo consultor da Fundação Mário Soares e de várias

estações de televisão e rádio. Da sua vasta produção podem destacar-se o

volume 7 da conhecida História de Portugal dirigida por José Mattoso para o

Círculo de Leitores (1993), O Estado Novo (1926-1974) (coord. e autoria),

Portugal Entre a Paz e a Guerra 1939-1945 (Estampa, 1995), Pensamento e

Acção Política. Portugal Século XX (1890-1976) (Editorial Notícias, 2004),

História da Primeira República Portuguesa (Tinta da China, 2009) com Maria

Fernanda Rollo, Salazar e o Poder – A Arte de Saber Durar (Tinta da China,

2013) ou História e Memória. Última Lição (Tinta da China, 2016).

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B IOGRAFIAS DOS AUTORE S | 255

Isabel Braga

Nasceu em Coimbra em 1950, licenciou-se em Filoso-

fia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Deu aulas no ensino secundário e foi tradutora antes

de começar a trabalhar como jornalista. Fez parte dos

quadros da agência ANOP, da Lusa e do Diário de

Lisboa antes de integrar a equipa fundadora do Públi-

co, em 1989. É autora de um livro de contos para crianças (Verbo) e co-

-autora de um roteiro de Lisboa, baseado nas várias ocupações históricas da

cidade (Assírio & Alvim).

Jorge Fontes

É historiador com doutoramento pela FCSH/Univer-

sidade Nova de Lisboa. Investigador do Instituto de

História Contemporânea, participa no Grupo de Histó-

ria Global do Trabalho e dos Conflitos Sociais.

Luísa Barbosa Pereira

Doutora em Sociologia pelo PPGSA da UFRJ-Brasil.

Pesquisadora doutorada integrada vinculada ao Grupo

de Estudos do Trabalho e dos Conflitos Sociais do

IHC-UNL-Portugal e IISH-Holanda. Docente de Filo-

sofia e Sociologia no CEJOB e CM Paulo Freire-

-Armação dos Búzios-Brasil. Autora de Justa causa

pro patrão (Multifoco, 2012) e Navegar é preciso

(Multifoco, 2015).

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Marcelo Badaró Mattos

Professor titular (catedrático) de História do Brasil na

Universidade Federal Fluminense (Niterói, Brasil).

Atualmente é investigador associado/visitante no

Instituto de História Contemporânea da Universidade

Nova de Lisboa. É bolsista de produtividade de pes-

quisa do CNPq e cientista do Nosso Estado-Faperj.

Investigador na área de História Social do Trabalho, é

autor de diversos livros nesse campo, assim como de

estudos sobre Teoria e Metodologia da História e

Materialismo Histórico, como Escravizados e livres:

experiências comuns na formação da classe trabalhadora carioca (2008) e

E. P. Thompson e a tradição de crítica ativa do materialismo históri-

co (2012).

Maria Augusta Tavares

Doutora em Serviço Social e pós-doutora em Eco-

nomia e História Contemporânea. Líder do Grupo de

Pesquisas sobre o Trabalho, UFPB-Brasil e membro

integrado do Grupo de História Global do Trabalho e

dos Conflitos Sociais IHC/FCSH/UNL-Portugal.

Autora de Os fios (in)visíveis da produção capitalista

(SP. Cortez, 2004) e de diversos artigos sobre o traba-

lho nas suas formas contemporâneas.

Michael Roberts

Economista, tem trabalhado na City de Londres em

várias instituições ao longo de mais de três décadas.

Publicou numerosos artigos em várias revistas econó-

micas. É autor de The Great Recession (Lulu, 2009) e

The Long Depression (Haymarket, 2016). Publica no

blogue thenextrecession.wordpress.com/

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B IOGRAFIAS DOS AUTORE S | 257

Miguel Pérez

Miguel Ángel Pérez Suárez é investigador do IHC –

Instituto de História Contemporânea, mestre e douto-

rando em História Contemporânea na FCSH-UNL.

Especialista na história do movimento operário portu-

guês, tem publicado vários artigos em livros e revistas.

Raquel Varela

Historiadora e investigadora do Instituto de História

Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa,

onde coordena o Grupo de História Global do Tra-

balho e dos Conflitos Sociais, e do Instituto Internaci-

onal de História Social, onde coordena o projecto

internacional In the Same Boat? Shipbuilding and ship

repair workers around the World (1950-2010). É coor-

denadora do projecto História das Relações Laborais

no Mundo Lusófono. É doutora em História Política e Institucional (ISCTE –

Instituto Universitário de Lisboa). É neste momento presidente da Internatio-

nal Association Strikes and Social Conflicts.

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OBRAS (AGUARDA)

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