rossetti, eduardo. arquitetura em transe

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  • ARQUITETURA EM TRANSE Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Vilanova Artigas e Lina Bo Bardi:

    nexos da arquitetura brasileira ps-Braslia [1960-85]

    Arq. Eduardo Pierrotti Rossetti

    Tese de Doutorado

    Orientao: Profa. Dra. Fernanda Fernandes da Silva

    Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Universidade de So Paulo

    So Paulo | 2007

  • 2

    Rossetti, Eduardo Pierrotti R829a Arquitetura em transe. Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Lina Bo

    Bardi e Vilanova Artigas: nexos da arquitetura brasileira ps- Braslia [1960-85] / Eduardo Pierrotti Rossetti So Paulo, 2007.

    189 p. : il.

    Tese (Doutorado rea de Concentrao: Histria e Fundamentos da Arquitetura e Urbanismo) FAUUSP.

    Orientadora: Fernanda Fernandes da Silva

    1. Arquitetura Sculo XX Brasil 2. Histria da arquitetura Brasil 3. Costa, Lucio, 1902-1998 4. Niemeyer, Oscar, 1907- 5. Bardi, Lina Bo, 1914-1992 6. Artigas, Joo Batista Vilanova,

    1915-1985 I. Ttulo CDU 72.036(81)

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    para Tia Lucinha, minha Madrinha

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    ndice

    Agradecimentos _ 05 Resumo _ 06 Abstract _ 07

    Observao prvia _ 08

    captulo 1_ Futuro do pretrito: a arquitetura brasileira em transe o futuro do pretrito _ 11

    o transe arquitetnico _ 17 Roda-viva cultural _ 21

    captulo 2_ 4 vetores do campo arquitetnico:

    Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Vilanova Artigas e Lina Bo Bardi vozes, lugares, riscos e tempos _ 30

    Lucio Costa: Riposatevi _ 32 Oscar Niemeyer: Palcio do Itamaraty _ 42

    Vilanova Artigas: FAU _ 55 Lina Bo Bardi: SESC-Pompia _ 69

    captulo 3_ nexos entre Lucio, Niemeyer, Artigas e Lina

    vozes, lugares e riscos ao mesmo tempo _ 81 os nexos arquitetnicos da trama _ 84

    nexo 1_VARANDA _ 86 nexo 2_MATERIALIDADE _ 93

    nexo 3_EDIFCIO-CIDADE-LUGAR _ 102 traos biogrficos: Lucio x Oscar x Artigas x Lina _ 110

    Lucio Costa: intimismo produtivo _ 111 Oscar Niemeyer: entre parangols e bares _ 116

    Vilanova Artigas: entre riscos e projetos _ 121 Lina Bo Bardi: outsider, ma non troppo _ 127

    afinidades eletivas_ 133

    captulo 4_ Por uma arquitetura mais-que-perfeita introduo _ 138

    arquitetura, poltica e Ditadura Militar _ 140 continuidade, ruptura e manuteno _ 144 genrica ou genuna, mas brasileira _ 147

    Referncias bibliogrficas _ 150

    Crdito das imagens _ 157

    Anexos

    cronologia Lucio Costa _ 158

    cronologia Oscar Niemeyer _ 159

    cronologia Vilanova Artigas _ 161 cronologia Lina Bo Bardi _ 163

    cronologia geral: LucioOscarArtigasLina _ 000

    _ 0

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    _agradecimentos

    Meus pais, meus irmos e a famiglia

    Daniel Carnelossi, Alexandre Luiz Rocha, Jos Clewton do Nascimento, Ana Carolina Bierrenbach, Elosa Petti, Anna Beatriz A. Galvo,

    Bia Cappello e aos amigos de outros lugares e tempos

    Anlia Amorim

    Vera Santana Luz, Silvana Rubino, Sophia da Silva Telles, Margareth da Silva Pereira da Silva, Abilio Guerra, Marco do Valle e Pasqualino R. Magnavita

    Rosa C. Artigas e Marcelo Carvalho Ferraz

    Ciro Pirondi, lvaro Puntoni, Tereza Spyer Dulci, Cau Alves

    e aos muitos colegas da Escola da Cidade

    ...sou grato a todos vocs por motivos to diversos quanto nobres, to singelos quanto fortuitos, to generosos quanto fundamentais. Agradeo a vocs em

    reconhecimento confiana, ao carinho, amizade, ao respeito ou um pouco disso tudo, que sinceramente mereci de vocs durante este processo!

    Agradeo a Mnica Camargo Junqueira e Ruth Verde Zein

    pelos preciosos apontamentos da qualificao

    Agradeo especialmente a minha orientadora: Fernanda Fernandes da Silva, que desde o incio se comprometeu com esta empreitada, revelando-se a

    interlocutora fundamental do meu otimismo na elaborao desta Tese!

    Eduardo

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    _resumo A Tese aborda as questes da arquitetura brasileira ps-Braslia a partir de produo de Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Vilanova Artigas e Lina Bo Bardi. Atravs dos nexos arquitetnicos existentes entre os quatro arquitetos que vetorizam o campo arquitetnico brasileiro, torna-se possvel explorar as transformaes e complexidades deste campo do conhecimento. Suas arquiteturas contribuem para revelar as questes latentes e os valores emergentes de uma produo arquitetnica tambm situada entre mltiplas tenses culturais, sociais e polticas entre 1960 e 1985 constituindo-se como a chave fundamental de compreenso da produo arquitetnica brasileira ps-Braslia.

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    _abstract This thesis focuses on Brazilian post-Braslia architecture throughout Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Vilanova Artigas and Lina Bo Bardis architecture. They are the most important vectors at the architectural field, so their projects have an extraordinary possibility to reveal architectural nexus in a current transformations and complexities circumstance. So their architectural contributions also become a strategic key to realize emergent and pulsing questions at that in-between post-Braslia gap that Brazilian architectural field had come into.

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    _observao prvia Todo o repertrio imagtico utilizado nesta Tese est condensado em folhas sem numerao que permeiam a estrutura do texto dialogando com ele direta e indiretamente, sendo numeradas apenas para identificao de sua fonte na seo de crditos destas imagens. Em algumas folhas esta numerao no sequer marcada para no prejudicar a articulao entre as imagens, embora sua enumerao continue seguindo. Na seo de Anexos h uma cronologia referente a cada um dos arquitetos: Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Vilanova Artigas e Lina Bo Bardi, que tambm possui uma Cronologia Geral que articula os quatro arquitetos localizando seus projetos num contexto de eventos culturais, sociais e polticos.

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    ...gastas as energias que mantinham o equilbrio anterior, rompida a unidade, uma fase imprecisa e mais ou menos longa sucede, at que, sob a atuao de foras convergentes, a perdida coeso se restitui e novo equilbrio se estabelece. Lucio Costa

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    _________________________captulo 01__ Futuro do pretrito: arquitetura brasileira em transe

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    ___o futuro do pretrito

    Lutei toda a minha vida contra a tendncia ao devaneio (...) E, se lutando contra o devaneio, ganho no domnio da ao, perco interiormente uma coisa muito suave de se ser e que nada substitui. Clarice Lispector

    Como num artifcio metafrico, possvel aproximar-se das

    complexidades pertinentes produo arquitetnica brasileira especificamente 1960-85 atravs de um tempo verbal muito especial que consegue, simultaneamente, indicar foras de duplo sentido que apontam para o passado e para o futuro, no se reportando diretamente ao tempo presente de quem conjuga e opera o tempo verbal: trata-se do futuro do pretrito. Este tempo verbal propcio para indicar com preciso as situaes entre um tempo futuro e um momento determinado, ou especfico, situado no passado. Assim, alm de apontar tais conexes entre passado e futuro, o verbo no futuro do pretrito tambm indicado para assinalar, com idntica preciso, a condio daquilo que algo irrealizvel: iria, teria, queria, faria, seria... sugerindo uma possibilidade perdida, ou no conquistada, pelas razes mais diversas. com esta perspectiva latente entre passado e futuro, com esta tenso entre possibilidade e fato que este tempo verbal serve de metfora para assinalar o impasse do campo arquitetnico brasileiro a ser investigado. Eis a perspectiva de explorao que se situa entre o perodo herico 1936-1960, ou seja do Ministrio da Educao a Braslia e uma contemporaneidade, mas que precisa considerar os destinos irrealizveis da produo arquitetnica situada nesta fase intermediria, neste momento intermedirio entre da produo arquitetnica brasileira ps-Braslia. Menos que uma ambigidade, trata-se de um impasse. Trata-se de um impasse entre o que a arquitetura moderna brasileira que iria, faria, seria... e o que, dentro de sua produo ela, de fato, conquistou, props, produziu e projetou. Para resolver esta situao preciso enveredar pela produo arquitetnica situada neste mbito de dupla conexo para como quem luta contra os devaneios para ganhar no domnio da ao averiguar os discursos que para alm de sua emisso original continuam ecoando outras significaes1, e assim, assinalar as questes, os valores e as diferentes categorias que podem se manifestar na heterognea produo arquitetnica ps-Braslia.

    O feito de Braslia, a nova Capital Federal, consolida o campo de atuao da arquitetura brasileira e expande o seu potencial de atuao.2 Braslia torna-se o ponto da crise arquitetnica brasileira, cuja carga monumental e simblica, apesar da fala social de praxe, torna-se evidente.3 O seu prprio mentor, Lucio Costa, assinala a expectativa de transformao advinda desta conquista, sugerindo que Braslia era mesmo um marco entre uma fase e a inaugurao de novas especulaes do campo arquitetnico ao 1 FOUCAULT. A ordem do discurso. p.22 2 O conceito de campo ser tomado na acepo de Pierre Bourdieu. Vide BOURDIEU. Poder simblico. p.64 et seq. 3 ARANTES. Urbanismo em fim de linha. p.109-113

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    afirmar que: ...o fato de Braslia ter sido construda foi um alvio para todos os arquitetos que finalmente se livraram daquele pesadelo, daquela arquitetura moderna que vinha desde 36 at Braslia.4 Neste sentido, alm destas questes intrnsecas, a presena definitiva de Braslia tambm suscita outras correlaes das transformao do mbito arquitetnico brasileiro conforme Leonardo Benvolo afirma: ...o ciclo da arquitetura brasileira, que ainda em 1960 era considerada a experincia de vanguarda para o mundo latino-americano em vias de desenvolvimento, hoje pode ser deixado de lado como um captulo encerrado...5. Mais recentemente, Hugo Segawa afirma que Braslia est no bojo desse projeto desenvolvimentista e constituiu o marco final dessa vanguarda arquitetnica alimentada por uma poltica de conciliaes ideolgicas. O marco cronolgico final desta etapa est em 1964, com a implantao da ditadura militar, encerrando a utopia [arquitetnica] do segundo ps-guerra.6 Enquanto isso, ao afirmar que Braslia uma bela utopia.7, Mario Pedrosa ratifica o desafio j instaurado desde as artes at as tecnologias construtivas apontando para a crise eminente, pois se paradoxalmente a utopia foi construda e a cidade havia sido concretamente conquistada, ento o que fazer? A utopia materializada a ser paulatinamente consolidada, instaura uma condio ps-Braslia.

    Esta condio ps-Braslia se caracteriza pela a manuteno de certas questes e posturas modernas em dilogo com novas questes e outras posturas, que j no correspondem dogmaticamente s premissas modernistas, mas nem tampouco so, automaticamente, ps-modernas, ou retrogradas. Trata-se de uma dilatao do sentido da modernidade inerente arquitetura brasileira que, para alm de uma linguagem moderna j consolidada, mantm o debate local refratrio s crticas ao Movimento Moderno que sero formuladas mais sistematicamente a partir do final dos anos 50, coincidindo com este novo momento inaugural aventado por Lucio Costa advindo da nossa nova Capital Federal.8

    A condio ps-Braslia encerra, portanto, um sentido de ruptura que ser acentuado com a crise poltica que culmina com o Golpe Militar de 1964, cujos reflexos no campo cultural somente sero mais drsticos a partir de 1968. Assim, no mbito desta modernidade transformada, ou de uma outra condio scio-poltica para configurar nossa modernidade, a ps-modernidade ser uma categoria rarefeita sem uma incorporao terica suficientemente precisa e pertinente no campo arquitetnico brasileiro. Trata-se de um termo e de um repertrio terminolgico e conceitual que somente se apresentaria enquanto questo crtica, reflexiva ou comercial, posteriormente em meados dos anos 80, em meio aos processos culturais que demarcam o fim da Ditadura Militar. Assim, de acordo com Francisco Spadoni O difuso debate que engendrou o Ps-Modernismo no Brasil, como um catalisador das aspiraes de mudana, no mostrou, ao final, fora suficiente para a construo de alternativa segura ao antigo projeto.9 Neste novo momento ps-Braslia tambm ocorre o deslocamento da funo social e operacional do arquiteto, que deixa de atuar exclusivamente no

    4 Lucio Costa em entrevista. Revista Pampulha, n.01, nov/dez, 1979, p.16. 5 BENEVOLO. Histria da arquitetura Moderna. p.720. 6 SEGAWA. Arquiteturas no Brasil 1900-1999. p.114. Grifos adicionais. 7 PEDROSA in ARANTES. Acadmicos e modernos. p.394. 8 SPADONI. A transio do moderno. A arquitetura brasileira nos anos 70. p.88. O autor confirma que o campo brasileiro foi o mais resistente reviso crtica do Movimento Moderno. 9 Idem. p.22.

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    escritrio e passa a integrar os quadros das empresas e das construtoras.10 A implicao desta nova dinmica se traduz nas possibilidades de experimentar outras linguagens, trabalhar em novas dinmicas da indstria da construo civil e com novos programas: rodovirias, estaes de metr, hidreltricas, aeroportos, indstrias. Ou seja, este alargamento do campo profissional enfatiza a presena do arquiteto como um profissional mais integrado ao rol das demais profisses da sociedade, sem o glamour artstico que legitimava sua anterior excepcionalidade, situando-o definitivamente numa complexa prtica profissional que envolve interesses econmicos, deveres culturais e responsabilidades sociais, por vezes tambm enredados pelas demandas imobilirias intrnsecas ao crescimento urbano. O sentido de ruptura inerente condio ps-Braslia se revela ento como um momento oportuno para que sejam empreendidas operaes historiogrficas de vigor crtico, conforme aponta Manfredo Tafuri: Para no renunciar sua tarefa especfica, a crtica dever ento comear a orientar-se para a histria do movimento inovador, [o Movimento Moderno] descobrindo nele (...) carncias, contradies, objetivos trados, fracassos e, principalmente, demonstrando a sua complexidade e carter fragmentrio.11 Alm de destacar o carter fragmentrio do Movimento Moderno, para Manfredo Tafuri o processo histrico corresponde a ...uma sucesso de revolues, de mutaes radicais dos universos de significados: a necessidade dessas revolues o significado que cabe ao historiador fazer emergir.12 Deste modo os argumentos de Tafuri se coadunam com o mesmo sentido de ruptura e descontinuidade j manifestos por Lucio Costa quando assinala que ...os fatos relacionados com a arquitetura no Brasil (...) no se apresentam concatenados num processo lgico de sentido evolutivo; assinalam apenas uma sucesso desconexa de episdios contraditrios, justapostos e simultneos...13

    Assim, preciso reconhecer as potencialidades latentes da produo arquitetnica brasileira contida neste perodo to prximo, porm ainda to pouco explorada. Trata-se de uma lacuna historiogrfica que carece de maiores enfrentamentos a fim de circunscrever e localizar suas questes, situar as aes dos arquitetos, bem como as complexidades de suas arquiteturas, fortalecendo as perspectivas que vislumbrem a fomentao de novas referncias conceituais, tericas e historiogrficas para o campo arquitetnico brasileiro. Essa lacuna historiogrfica pode ser detectada atravs da averiguao dos recortes que situam grande parte das pesquisas e publicaes sobre a produo arquitetnica brasileira no sculo XX. Nestas circunstncias a temtica de Braslia no somente demarca um valor apotetico, constituindo-se mesmo como o apogeu de uma era exitosa que completa em 1960 o arco temporal do perodo herico iniciado em 1936. Braslia tambm define uma 10 SEGAWA. Op. cit., captulo 08. 11 TAFURI. Teorias e histria da arquitectura. p.21-22. Nota-se que Manfredo Tafuri se insere no mbito da reviso crtica do Movimento Moderno iniciada em diversas frentes no segundo ps-Guerra, desde sua participao na revista Casabella, contrapondo-se exatamente abordagem proposta por Nikolaus Pevsner, que consolidaria uma idia unitria de Movimento Moderno, minimizando ou escamoteando a diversidade de questes, procedimentos e aes vigentes no debate arquitetnico da primeira metade do sculo XX. A histria de arquitetura de Tafuri se diferencia das histrias de Bruno Zevi e Leonardo Benevolo nestes aspectos. Ou seja, Tafuri explora as diferenas e assim rev os sentidos de pluralidade e diferenciao deste Movimento Moderno construdo por aquela historiografia, bem como pelos CIAMs. 12 Idem. p.249. 13 COSTA. Registros de uma vivncia. p.160.

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    barreira cronolgica de antes e depois, a partir da onde esto pautadas as abordagens e o prprio debate arquitetnico. Esta diferenciao de antes e depois, reforada pelo conceito de vazio cultural elaborado por Zuenir Ventura quando trata da produo cultural da Ditadura Militar, onde afirma que: Alguns sintomas graves esto indicando que, ao contrrio da economia, a nossa cultura vai mal e pode piorar se no for socorrida a tempo. Quais so os fatores que estariam criando no Brasil o chamado vazio cultural? ...enquanto que ...no plano da arquitetura e de urbanismo, [no havia] nada que se assemelhasse em grandeza inventiva a Braslia...14

    Deste modo, esta lacuna historiogrfica tem uma origem mais precisa e delimitada, consensualmente j situada entre 1960, com Braslia e 1964, com o Golpe Militar. Neste sentido, Otlia Arantes taxativa quanto a definio de 1964 como o momento de inflexo do campo arquitetnico brasileiro: No h dvidas de que 1964 uma data-chave na compreenso da nossa histria local, inclusive no mbito da cultura, onde a produo arquitetnica foi seguramente das mais atingidas: sua relao com o Estado, j no mais to empenhado em fazer dela a sua face publicitria, mudou radicalmente.15 Contudo, o seu outro extremo ainda permanece relativamente mais em aberto e com uma flexibilidade maior para ser demarcado. Nas revistas de arquitetura16 detecta-se este achatamento temporal, fazendo com que a dinmica do campo arquitetnico estivesse dentro de uma mesma dimenso entre 1960 e 1985 antes e depois da qual as coisas eram, alis, seriam, diferentes. Assim, nelas ainda perdura um tom de nostalgia de um futuro grandioso para arquitetura que se perdeu, quase que nica e exclusivamente, por fora das transformaes das perspectivas polticas que sobrevieram com o Golpe de 64. contudo, a consolidao desta condio de transformao do campo pode ser aferida atravs de dois eventos que balizam um processo de transio: a representao brasileira na exposio do do CAYC (Centro de Arte y Comunicacin) de Buenos Aires, em 1983 e em 1985 ocorre o XII Congresso Brasileiro de Arquitetos em Belo Horizonte e Vilanova Artigas falece. Estes eventos balizam esta transio em que se constata a diversidade da produo nacional e se consolida com a retomada da discusso de arquitetura como disciplina,17 quando a temtica da ps-modernidade tambm emergia, pretendendo abarcar as complexidades deste recorte temporal que encerra a mesma condio ps-Braslia em que Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Vilanova Artigas e Lina Bo Bardi permaneceram atuantes, arquitetando.

    Assim, o recorte do campo arquitetnico tangencia tambm a atualizao dos estudos sobre a produo cultural durante a Ditadura Militar e tambm a atualizao crtica sobre as relaes entre cultura e poltica neste perodo. Em meio s abordagens especficas, o quadro da arquitetura brasileira do sculo XX precisa ser aprimorado sem o receio de perder valores conquistados por uma produo, cujos crditos de originalidade plstica e espacial, ou mesmo seu discurso social e as pesquisas tecnolgicas, podem se tornar questes mais significativas. Neste sentido, Sophia da Silva Telles ratifica o isolamento da dinmica brasileira em relao dinmica do campo

    14 VENTURA apud GASPARI et alii. 70|80 Cultura em trnsito: da represso abertura. p.40-41. Vazio Cultural foi originalmente publicado em Revista Viso, julho/1971. 15 ARANTES. Urbanismo em fim de linha. p.118. 16 Considera-se as revistas Acrpole, Habitat, Mdulo, Projeto e AU. 17 SEGAWA. Op. cit., p.191-194.

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    arquitetnico internacional. Ela considera que os projetos que formulariam as matrizes do debate da ps-modernidade no haviam sido veiculados, ou divulgados entre ns, oportunamente, comprometendo tambm o debate interno.18 Destaca-se que apesar de a produo bibliogrfica ter se ampliado recentemente, ser justamente por dentro das instncias dos meios acadmicos que as novas abordagens sobre a arquitetura brasileira sero desenvolvidas paulatinamente, a partir de mltiplas estratgias de enfrentamento. Trata-se de um processo que se desdobra desde a fomentao dos programas de ps-graduao em arquitetura e urbanismo a partir de meados dos anos 80 em que se destaca uma grande reviso historiogrfica como um esforo consciente de uma gerao visando a atualizao das perspectivas crticas acerca dos processos histricos e historiogrficos do prprio ofcio.19 Paradoxalmente, na condio ps-Braslia o campo da arquitetura agia como se as aes projetuais, o comportamento e os deslocamentos de Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Vilanova Artigas e Lina Bo Bardi j no expressassem novos problemas para si.

    Assim, em que pese tanto a produo acadmica, ou a contribuio crescente de novas publicaes, o enfrentamento das questes arquitetnicas localizadas neste recorte historiogrfico torna-se premente para que seja possvel suplantar a falta de importncia dos valores de uma produo arquitetnica relativamente recente.20 Atravs deste recorte 1960-85 possvel relativizar a ateno exclusiva produo da fase herica, bem como estabelecer as conexes entre produo arquitetnica contempornea com a produo ps-Braslia. Neste sentido, a abordagem de expoentes desta produo no deve no perder as conexes com as camadas histricas mais frescas que esto ainda em processo de sedimentao, reconstruindo os nexos e as correlaes geracionais da arquitetura brasileira, ao resgatar sua fortuna crtica. Neste sentido, Carlos Martins observa que ...uma historiografia que permanea na descrio positivista dos tempos hericos, estar apenas contribuindo para a formao acrtica das novas geraes... e tem como conseqncia a absoro igualmente acrtica dos ...ltimos modismos (...) e dos valores definidos pelas estratgias mercadolgicas da mdia internacional.21 Contra tais modismos, somente o conhecimento dos prprios processos histricos pode auxiliar numa construo crtica segura de referncias para embasar novas abordagens para o campo arquitetnico, reconhecendo a complexidade de que a obra arquitetnica no se origina isolada e idealmente num contexto scio-cultural, mas sobretudo, que a arquitetura existe e passa a existir dialogando plenamente com este contexto, quer seja concordando, quer seja negando, quer seja subvertendo, quer seja atacando ou acatando valores numa condio de tenso permanente, projetando contra, conforme aponta Guilio Carlo Argan.22 Assim, para retomar a metfora inicial cabe indagar qual o futuro do pretrito da condio ps-Braslia? Otilia Arantes afirma que no mbito das discusses do campo arquitetnico brasileiro as vanguardas 18 TELLES. Arquitetura moderna no Brasil: o desenho da superfcie. p.III. 19 Neste processo se destacam o trabalho de Carlos Martins, alm da atuao de Hugo Segawa e Ruth Verde Zein. 20 Destacam-se dentre as publicaes: BASTOS. Ps-Braslia: rumos da arquitetura brasileira: discurso, pensamento e prtica; SEGAWA. Arquiteturas no Brasil. 1900-1990; 21 MARTINS. Arquitetura e Estado no Brasil. Elementos para uma investigao sobre a constituio do discurso moderno no Brasil; a obra de Lucio Costa (1929-1952). p.187. 22 ARGAN. Projeto e destino. p.53

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    tambm se esgotaram. Neste vcuo decorrente, ela justifica a entrada de uma nova terminologia extra-arquitetnica alimentada por uma bibliografia que paulatinamente no tardou a inundar os suplementos [culturais] dos anos 8023 multiplicando a gama de citaes e referenciais tericas cruzadas, a despeito de suas especificidades e precises, apesar mesmo da prpria produo arquitetnica em si. Para Otlia Arantes neste suposto esgotamento que reside o descompasso entre ser e estar de fato na ps-modernidade, uma vez que se alardearia a insero em tal condio apesar da ausncia de uma situao econmica e de uma produo arquitetnica condizente para respald-la.24 Neste sentido Fredric Jameson alerta para o fato de que nem todas as manifestaes culturais e arquitetnicas sero ps-modernas, mesmo quando acontecem no mbito cronolgico da ps-modernidade.25 Assim, a produo arquitetnica brasileira ps-Braslia talvez j no seja mais modernista, mas nem tampouco ps-moderna, estando pois, numa outra situao, numa condio de transe arquitetnico a ser explorado.

    23 Vale assinalar que a temtica do ps-modernismo aparecer nas revistas de arquitetura atravs de diferentes artigos sistematicamente a partir de 1983, embora tenha sido objeto de artigo de Otilia Arantes em 1973. Vide Ps-moderno in Arte em Revista - 07, ago/1973. Destacam-se tambm os artigos Ps-Braslia, ps-milagre, ps-moderno, de Alberto Xavier, Mdulo 82, p.42-52 (1984); Arquitetura ps-moderna e hibernao tropical (1 e 2 partes) de Eduardo Mandolfo, Mdulo 82, p.32-41 (1984) e Mdulo 83 p.36-41 (1984); Ps-modernismo, arquitetura e tropiclia, Lus Espallargas Gimenez, Projeto 65, p.87-93 (1984). 24 ARANTES. Op. cit., p.38. Soma-se a este fato uma economia fechada e controlada pelo Estado, o que contradiz a dinmica econmica da ps-modernidade. Somente a partir da abertura econmica do governo Collor, em 1990 quando a economia escancarada elegendo-se como novo regulador o mercado que se atinge uma outra dinmica econmica que seria menos contraditria com as condies econmicas de ps-modernidade. Ainda assim, conforme a mesma Otilia, seramos ps em todos os sentidos. 25 JAMESON. Ps-Modernismo. A lgica cultural do capitalismo tardio. p.31.

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    ___ o transe arquitetnico

    ...me interessava o problema geral do transe latino-americano e no somente o [transe] brasileiro. Queria abrir o tema transe, ou seja, a instabilidade das conscincias. Glauber Rocha [1967]

    O temtica do transe assinalada por Glauber Rocha para as condies

    scio-polticas da produo cultural, tambm pode apontar, metaforicamente, para outras circunstncias em que, atravs de estmulos diversos, se configura um estado de alterao acentuado da conscincia da realidade, acarretando em mudanas de comportamento. Assim, a idia do transe se apresenta como sendo uma situao arriscada dentro da qual possvel experimentar um estado de liberdade que mesmo sendo provisrio ou artificial possibilita o aceso a novos contedos e outras percepes sobre uma mesma realidade ora transitiva, transitria, por assim dizer, em transe. Trata-se de uma circunstncia especial, de carter ambguo ou mltiplo, forjada entre instncias da realidade, simultaneamente, revelando-se como uma circunstncia de risco, uma vez que a realidade deixa de ser totalmente apreendida. Ao instaurar esta ambivalncia, este entre, o transe altera o sentido da realidade, suspende suas amarras, libera a manifestao de nuances, e a percepes de significados antes precisas tornam-se valores relativos. Ou seja, valores com simultnea correlao. numa condio de transe que a produo da arquitetura brasileira pode ser tomada, entre 1960 e 1985 situando-se entre entre a exitosa experincia do campo arquitetnico brasileiro que culmina em Braslia e as instncias da condio ps-Braslia, at atingir os limites de uma incerta e incipiente ps-modernidade em meados dos anos 80. A condio ps-Braslia uma condio em transe.

    nesta transitividade que a hiptese de investigao sobre a arquitetura brasileira deve ser formulada. Esta condio ps-Braslia e seu transe se configuram como uma circunstncia propcia para enveredar por novos caminhos e explorar esta produo arquitetnica como um objeto de pesquisa em estado latente. Para tanto, considera-se a hiptese de que os arquitetos Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Vilanova Artigas e Lina Bo Bardi trazem contribuies significativas para o campo arquitetnico brasileiro nesse contexto ps-Braslia. Neste sentido, seus projetos se constituem como uma chave de compreenso fundamental desta produo. Seus projetos estabelecem correlaes, relacionando-se tanto com as mltiplas tenses do campo arquitetnico remanescentes do perodo herico como tambm com valores emergentes. Ao mesmo tempo os quatro arquitetos se correlacionam, estabelecendo um dilogo prprio entre si. Assim, atravs das arquiteturas de Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Lina Bo Bardi e Vilanova Artigas, possvel estabelecer as correlaes entre nossa contemporaneidade e a produo da vanguarda modernista sem se perder no transe da condio ps-Braslia, dentro da qual suas arquiteturas sero tomadas.

    Esta condio do transe arquitetnico propcia para balizar a construo do recorte que norteia resoluo das questes contidas na

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    hiptese. Uma vez que, de acordo com Foucault, o recorte se constitui como uma operao deliberada, sua delimitao dever propor a relativizao das abordagens e das estratgias j consolidadas, relativizando suas validades para instaurar outras abordagens e estratgias.26 Neste sentido, Foucault assinala que: preciso por em questo, novamente, essas snteses, esses agrupamentos que (...) so aceitos antes de qualquer exame (...) preciso desalojar essas formas e essas foras obscuras pelas quais se tem o hbito de interligar os discursos dos homens; (...) preciso tambm que nos inquietemos diante de certos recortes ou agrupamentos que j nos so familiares.27 Neste sentido, preciso estranhar os recortes j consolidados pra vislumbrar outras questes, assinalando que o recorte deve ser estabelecido tacitamente a fim de no fragilizar os objetos, atentando-se para seus limites. Assim, ao mesmo tempo em que este recorte pode se manifestar assimetricamente entre 1960 e 1985 para buscar as conexes pertinentes ao campo arquitetnico, sua construo justificar as operaes historiogrficas empreendidas a partir dos quatro arquitetos que interessam: Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Vilanova Artigas e Lina Bo Bardi.

    Frequentemente as abordagens sobre os quatro arquitetos se vinculam a estratgias isoladas de enfrentamento, algo de carter fortemente monogrfico, separando-os e afastando-os completamente. Por vezes as conhecidas categorizaes Escola Carioca e Escola Paulista tambm os encerram em circunstncias absolutamente isoladas, numa separao geogrfica igualmente questionvel, deixando Lucio Costa e Niemeyer de um lado, Artigas e Lina Bo Bardi de outro. Ou ainda, quando so encerrados dentro dos grandes panoramas, Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Vilanova Artigas e Lina Bo Bardi tm suas latentes afinidades suprimidas a fim de assegurar o lugar correto de cada um deles numa trama historiogrfica previamente conhecida.28 Torna-se ento impretervel estabelecer uma operao historiogrfica que opere com os quatro arquitetos simultaneamente para revelar suas mltiplas inter-relaes. Atravs da ruptura do carter monogrfico exclusivo, possvel investigar a qualidades das questes emergentes no campo arquitetnico brasileiro ps-Braslia atravs da problematizao de projetos dos quatro arquitetos, ora tomados a partir de novas unidades discursivas, que suplantam os agrupamentos de unidades consideradas naturais, imediatas e universais. Assim, de acordo com Foucault, torna-se possvel articular novos conjuntos que at ento pareciam invisveis, ou seja, no detectadas. Consequentemente torna-se possvel analisar a coexistncia e a atuao concomitante dos quatro arquitetos, construindo efetivamente uma nova abordagem plena de novas perspectivas e possibilidades.29

    Deste modo, interessa explorar a movimentao desses arquitetos no campo arquitetnico neste momento de transe, pressupondo uma diversidade mais valiosa que a pressuposta coeso programtica de seus movimentos mais que modernos. Todos os quatro arquitetos atuam numa seara projetual 26 FOUCAULT. Arqueologia do saber. p.25. 27 Idem. p.24. Grifos adicionais. 28 Considera-se a formulao desta complexa trama historiogrfica a partir de BRUAND. Arquitetura contempornea no Brasil; GOODWIN. Brazil builds: architecture new and old. 1652-1942; LEMOS. Arquitetura brasileira; MINDLIN. Arquitetura moderna no Brasil. Sobre a repercusso da arquitetura brasileira nas revistas vide. TINEM. O alvo do olhar estrangeiro. O Brasil na historiografia da arquitetura moderna. 29 FOUCAULT (1997). Op. cit., p.33

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    diametralmente oposta situao da arquitetura brasileira ps-Braslia apontada por Spadoni, quando assinala a tnica da continuidade do que para ele corresponde a um Movimento Moderno sem discurso, reduzindo as questes de uma produo apenas a uma linguagem e um vocabulrio formal.30 Ainda assim, preciso apontar que neste trnsito entre temporalidades, dinmicas culturais e tenses polticas, os projetos de Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Vilanova Artigas e Lina Bo Bardi podem manifestar cruzamentos e procedimentos hbridos, entre a causa moderna, as abordagens crticas e propor as novas questes do prprio campo arquitetnico em que atuam.

    Braslia permanece nas pginas das revistas de arquitetura como um projeto exitoso, resultante do empenho de arquitetos conquistado atravs de suas articulaes sociais e polticas. A cidade retomada oportunamente e torna-se mais que uma experincia ou um assunto, consolidando-se sim, como um recurso para a auto-legitimao do prprio campo arquitetnico frequentemente. Assim, reportagens, edies especiais, entrevistas com seus mentores ou novos projetos, se aproveitam de datas redondas como a comemorao de seus dez anos em 1970 se aproveitam para mostrar Braslia como referncia viva e presente. Assim, a cidade aparece nas revistas como um ndice de relacionamento do campo arquitetnico com a sociedade civil, relembrando suas aspiraes iniciais para se configurar e tornar-se mais do que um cone de sucesso arquitetnico. Ou seja, procura-se conectar aquela contemporaneidade com o apogeu da inaugurao da cidade e da consolidao de uma produo arquitetnica. Perante o quadro de incertezas ou possibilidades do campo arquitetnico de meados dos anos 80, Braslia aparece como ponto de encontro entre o passado e o futuro, num movimento pendular sobre os extremos da lacuna historiogrfica, permanecendo como o ndice de ligao direta entre o passado supostamente pleno de xito com um futuro ainda promissor. 31

    Entre um extremo e outro no contexto da condio de o transe da condio ps-Braslia, se anuncia o interesse pela produo arquitetnica de Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Vilanova Artigas e Lina Bo Bardi. Para tanto, preciso apontar algumas das estratgias historiogrficas que sero implementadas reconhecendo que histria da arquitetura a instncia reflexiva que coloca os desafios de um projeto inscrito num campo pleno de relatividades, tenses, dvidas e potencialidades, ao que Tafuri afirma: A histria prepara bases para essas novas aventuras projetivas, redimensionando radicalmente os dados de um problema de projeto.32 E enfatizando o mesmo argumento, tambm assinala que: Faz-se histria da arquitetura porque se procura o significado da arquitetura atual: mas para resolver as angustias do presente, de nada vale projetar no passado as certezas a superar. Neste sentido, a arquitetura como tal que volta a apresentar-se como problema.33

    Em meio a este transe arquitetnico ps-Braslia podem ser detectados os fenmenos de ruptura definidos por Foucault, bem como os momentos de

    30 SPADONI. Este argumento embasa toda a Tese do autor. 31 Um indcio dessa fora a matria: Braslia: ano zero publicada na AU de 02/abril/1985, que coloca Braslia no comeo e no final do arco temporal 1960-1985, antes do qual e depois do qual tudo era ou deveria ser diferente. 32 TAFURI. Op. cit., p.261. 33 Idem. p.203

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    ruptura apontados por Tafuri. Neste sentido, Foucault considera que a concepo de uma histria estruturada a partir das grandes periodizaes insatisfatria, porque no revela as multiplicidades que permeiam os fatos, tornando-se restritiva, ao que alerta para o deslocamento desta viso de grandes momentos para o valor dos fenmenos de ruptura dos tecidos narrativos da histria.34 Portanto, tais fenmenos definem os eventos que incidem e interrompem as estruturas narrativas j sedimentadas num longo recorte historiogrfico, abrindo novas perspectivas para outras abordagens atravs de outros recortes. Tafuri, por sua vez, define a possibilidade de operar de modo fragmentrio com o projeto arquitetnico, sendo possvel tomar qualquer projeto, qualquer obra arquitetnica e operar seus valores e questes abrindo novas instncias para sua compreenso, uma vez que somente assim sero estabelecidos os seus novos nexos arquitetnicos latentes. Ambos valorizam as transformaes entre os valores e as categorias reflexivas que podem incidir sobre um objeto, advindos destas novas exploraes historiogrficas. a partir desta perspectiva que aqui interessa para enfrentar a arquitetura de Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Vilanova Artigas e Lina Bo Bardi.

    Manfredo Tafuri opera sua argumentao com os termos projeto ou arquitetura, equilibrando a valncia de ambas as categorias. Ou seja, Tafuri toma tanto o processo de consubstanciao das idias que geram o fato arquitetnico, como tambm se dedica ao fato arquitetnico pronto, estabelecido. Para ele, em qualquer uma destas categorias est o mesmo idealizador do fato arquitetnico, que justamente o arquiteto. Isto posto nos termos de Foucault significa que em qualquer que seja o momento em que a obra arquitetnica seja tomada, l estar o arquiteto, aquele que atravs da obra arquitetnica instaura seu discurso.35 Tafuri destaca o projeto como o desgnio mximo, ou como tarefa ideal, ou ainda, como misso, considerando a exclusividade da arquitetura de interferir nas realidades do mundo e estabelecer possibilidades para novas prticas sociais, novos valores culturais e novas dinmicas urbanas, fato que novamente na chave de Foucault significa instaurar um discurso. Eis os domnios de ao pertinentes aos projetos arquitetnicos, e por extenso aos quatro arquitetos especificamente. Finalmente, Tafuri argumenta que o embasamento conceitual deve extrapolar o campo arquitetnico a fim de relativizar seus valores, sendo necessrio o deslocamento do objeto arquitetnico para contextos mais globais, a fim de estabelecer suas correlaes com a dinmica cultural em que est inserido. Assim, para ampliar a compreenso dos projetos de Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Lina Bo Bardi e Vilanova Artigas, tambm preciso considerar o transe cultural da condio ps-Braslia. 34 FOUCAULT (1997). Op. cit., p.04 35 FOUCAULT (1996). Op. cit., p.10 e 22.

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    ___ Roda-viva cultural Seja marginal, seja heri

    Helio Oiticica preciso provocar o espectador, cham-lo de burro,recalcado, reacionrio. Z Celso Martinez Corra O erro viver a ideologia como verdade, histria e cincia. Ela pode ser o elemento ttico, mas no deve se confundir com a estratgia. Affonso Romano de SantAnna

    O primeiro desafio que se detecta numa abordagem acerca da dinmica cultural brasileira entre 1960 e 1985 a inexistncia de uma abordagem sistemtica que enfoque a dinmica do campo cultural brasileiro como um recorte exclusivo e que estabelea uma leitura desta produo com um mesmo instrumental terico. rigor, esta abordagem deveria tratar das muitas manifestaes artsticas e tambm de arquitetura em todas as nuances do recorte temporal dos anos 60 aos anos 80. Contudo, mesmo com o benefcio de novas publicaes de ttulos que abordam esta produo cultural que coincide com a vigncia da Ditadura Militar, numa temtica ampla que os enfoques tm suscitado, torna-se significativa a ausncia da arquitetura dentro de tais abordagens do campo cultural. Considera-se que a arquitetura, por vezes, no pertence ao campo desta produo cultural. Trata-se, mormente de msica, cinema, teatro, artes visuais, TV, e s vezes moda, poesia e literatura, mas a arquitetura um tema constantemente preterido. A cronologia apresentada por Marcelo Ridenti36 eloqente quanto a esta situao. Para cobrir o perodo entre 1958 e 1984, o autor elabora uma cronologia atravs dos seguintes temas: poltica, cinema, teatro, msica popular, literatura, artes plsticas e a categoria outras. Nesta seo que esto presentes as trs menes a questes de arquitetura, ou seja, na mesma seo em que constam notas sobre novela, a conquista do tri-campeonato no Mxico, ou o falecimento de Glauber Rocha. Neste arco temporal 1958-1984, apenas Braslia, o MASP e o Sambdromo foram destacados, fato que comprova as carncias que o campo da arquitetura enfrenta quando precisa ser minimamente tratada por abordagens correlacionadas com outros campos epistemolgicos.

    No mbito cultural brasileiro as prementes tenses entre os meios de expresso e os modos de produo artstica, o questionamento da funo social do intelectual e as posturas ideolgicas, as possibilidades e as funes dos meios de comunicao, so exibidas em escala cinematogrfica no filme Terra em transe, de Glauber Rocha, lanado em 1967. O cineasta expe sua abordagem crtica acerca das estruturas polticas, sociais, culturais e simblicas do Brasil atravs de um enredo fragmentado que metaforicamente questiona o complexo funcionamento das correlaes entre os vetores polticos

    36 Marcelo Ridenti um pesquisador com notrio interesse pela Ditadura Militar brasileira, vide RIDENTI. Em busca do povo brasileiro.Artistas da revoluo, do CPC era da TV.

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    e os vetores intelectuais de um pas ficcional Eldorado. Ao mesmo tempo em que questiona o lugar e a funo da cultura, bem como do intelectual na sociedade, a narrativa de Glauber Rocha funciona como um petardo que revela o limite da situao de todo o campo cultural brasileiro, apontando sua irresoluta situao aps o Golpe Militar de 1964. Neste sentido, as pesquisas recentes de Elio Gaspari sobre a dinmica poltica do Brasil durante a Ditadura Militar se tornam uma referncia pertinente para detectar colateralmente como podem ser aferidas as relaes entre o campo poltico com a dinmica cultural entre os anos 60 e 70, especialmente.37 Em sua abordagem, Gaspari avana nas observaes de Roberto Schwarz sobre a transformao cultural brasileira indicando a assimetria entre os momentos da dinmica cultural e da movimentao poltica. Ao tratar destas diferenciaes, Schwarz aponta para o Ato Institucional n.5 AI-5 como fator limite entre as fases do campo cultural, alm das quais, outras sobrevieram. Neste sentido ele afirma que: Se em 64 fora possvel a direita preservar a produo cultural, pois bastava liquidar o seu contato com a massa operria e camponesa, em 68, quando o estudante e o pblico dos melhores filmes, do melhor teatro, da melhor msica e dos melhores livros j constitui massa politicamente perigosa, ser necessrio trocar ou censurar os professores, os encenadores, os escritores, os msicos, os livros, os editores noutras palavras, ser necessrio liquidar a prpria cultura viva do momento.38

    Trata-se de um contraste ainda mais patente quando contraposto

    situao de relativa liberdade poltica assegurada desde o fim da Era Vargas e com a possibilidade de emancipao cultural evidenciada em 1958 pela revoluo sonora da Bossa Nova e pela inaugurao de Braslia que ratificava um sentimento coletivo e popular de superao e de autoconfiana que predominaria no mbito poltico, mesmo que socialmente o pas permanecesse repleto de arcasmos e contradies. Nesta perspectiva ps-64, o engajamento e uma estreita relao entre arte e poltica apontado por Aracy Amaral como sendo a questo candente, considerando o seu produtor o artista como um vetor autnomo neste processo de alterao das perspectivas sociais.39 Aracy Amaral tambm aponta a emergncia do valor da cultura popular para o meio intelectual e artstico nos anos 60, assim como destaca o carter participativo da ao entre intelectuais e artistas ora estritamente articulados com a massa popular40. Para tanto, ela retoma as experincias dos centros Populares de Cultura (CPC) e as demais experincias culturais vinculadas a Unio Nacional dos Estudantes (UNE) nos fins dos anos 50 e inicio dos anos 60 como sendo as foras expressivas da dinmica cultural, ora empreendida pelos universitrios. Para Schwarz essa movimentao dos estudantes representa: Em seu conjunto, o movimento cultural destes anos [1964-68] uma espcie de florao tardia, o fruto de decnios de democratizao, que veio amadurecer agora, em plena ditadura, quando as condies sociais j no existiam.41

    Sobre esta fora da participao universitria dos estudantes, Ridenti destaca sua ambivalncia ao considerar que os estudantes constituem o grupo 37 Estas relaes so destacadas ao longo dos quatro ttulos: A ditadura envergonhada, A ditadura escancarada, A ditadura derrotada e A ditadura encurralada. 38 SCHWARZ. Cultura e poltica, 1964-1969. in O pai de famlia e outros estudos. p.63. 39 AMARAL. Arte para qu? p.337. 40 Idem, p.315 41 SCHWARZ. Op. cit., p.89.

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    social que organizar passeatas, protestos e formar o grosso de diversos grupos guerrilheiros, ao mesmo tempo em que participam plenamente da movimentao cultural que se sucede ao Golpe, indo ao show Opinio, s peas do TUCA, ou do Teatro Oficina, aos festivais de cinema.42 Ou seja, os mesmos universitrios que participam dos festivais de msica realizados pelas emissoras de TV e financiados pelas gravadoras, catalisaro uma aspirao transformadora em suas aes cotidianas. Eles se configuram como um mesmo vetor atuando em frentes que, paulatinamente, no sero mais vistas como antagnicas, a partir do momento em que a fuso de comportamento, poltica e cultura se traduzem em atitudes menos rgidas e menos dogmticas.43 O incio dos anos 70 coincide com a ampliao das restries das liberdades de expresso e paradoxalmente encerram um momento de pujana econmica o chamado Milagre econmico ao que Ridenti afirma: ...[no] princpio dos anos 70, sob o governo Mdici, quando se consolidou o processo de modernizao conservadora da sociedade brasileira, a atuao dos artistas de esquerda foi marcada por certa ambigidade: por um lado, a presena das censura e a constante represso a quem ousava protestar (...); por outro lado, cresceu e consolidou-se uma indstria cultural que deu emprego e bons contratos aos artistas, inclusive aos de esquerda, com o prprio Estado atuando como financiador de produes artsticas e criador de leis protecionistas aos empreendimentos culturais nacionais.44

    Em meio a este processo econmico, o descolamento entre arte e

    poltica ser ampliado aps o AI-5 at um grau mximo tal de desvinculao em 1972, 73, distendendo-se a partir de meados dos anos 70, efetivamente ps-1976. Neste momento o vazio cultural definido por Zuenir Ventura j havia se consolidado, mas era decorrente mais das proibies e de todas as restries que impedem o aceso produo cultural do que inexistncia de uma produo cultural propriamente dita. Em tom provocativo, ele sugere que se fossem abertas as gavetas dos censores muitas msicas, filmes, peas, exposies, poesia, livros, poderiam ser tocadas, exibidos, montadas e apresentadas, lidas, publicadas e finalmente chegariam ao pblico! J no artigo A falta de ar,45 Zuenir Ventura anuncia e caracteriza as novas estratgias da manifestao do meio cultural, que se por um lado no suplantam o vazio cultural, ao menos clarificam suas nuances. Neste sentido, ele aponta a existncia de trs alternativas: uma cultura comercial, de massa; uma contracultura, designada pela expresso underground, cuja corruptela seria udigrudi; e ainda a cultura engajada. Ou seja, neste esquema, haveria uma cultura de massa, operando com o entretenimento; haveria uma segunda instncia cultural que atua nos interstcios do sistema scio-cultural a ser posteriormente absorvida pela terceira forma, que seria uma cultura marcada por uma postura crtica explcita.46

    Heloisa Buarque de Hollanda assinala que houve uma ruptura efetiva dos chamados alinhamentos ideolgicos automticos, a partir de quando o

    42 RIDENTI. Op. cit., p.39 43 Helosa Buarque de Hollanda apud DIAS. Anos 70: enquanto corria a barca. p.35-36. 44 RIDENTI. Op. cit., p.323 45 VENTURA in GASPARI et alii. Op. cit., p.52-85. A falta de ar, artigo originalmente publicado na Revista Viso, em agosto de 1973. 46 KONDER. A questo da ideologia. 60-66.

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    esquematismo binrio entre direita e esquerda,47 no se mostrava mais capaz de instrumentalizar a leitura da complexidade das perspectivas mais amplas e plurais que se consolidaram no campo cultural, poltico e social. Este momento de distenso das posturas artsticas se alimenta da reconquista da relativa liberdade de imprensa a partir de 1975, com o boom editorial da imprensa alternativa48, marcando a entrada paulatina de novas referncias filosficas, sociolgicas ou comportamentais que passariam a permear as conversas e a reflexo nos meios culturais. Trata-se de um novo contexto em que as simples prticas cotidianas da vida urbana podem manifestar valores ideolgicos transformadores da dinmica social do pas.49 O espao urbano para Zuenir Ventura o lugar para onde as aes culturais transformadores voltam seu discurso contra as prticas polticas ao mesmo tempo em que os jovens, os universitrios, os desbundados, convivem com os novos valores lanados na dinmica de uma incipiente cultura de massa. Assim, o valor que resiste nesses embates cotidianos podem se manifestar nos versos de uma cano de algum festival, na fala de um personagem do Teatro de Arena, ou da novela Beto Rockefeller; numa capa de revista, numa charge dO Pasquim, no cartaz de um filme ou num panfleto que promove uma passeata. Este contexto delineado por Zuenir Ventura indica que ainda havia resqucios daquele elemento utpico da transformao mediante a participao, que encontrara novos canais para se expressar e que se metamorfoseava para sobreviver nas mutantes conjecturas poltico-culturais.

    A despeito da morte de JK ou do golpe militar na Argentina, 1976 um ano sintomtico desta transformao urbana da sociedade brasileira, quando a casa noturna The Franetic Dancing Days Discotheque 50 que se converte em referncia para uma novela da Rede Globo e detona uma febre de consumo juvenil: desde sandlias de plstico, meias, cortes de cabelo, maquiagem, at a atitude e o modo de danar. Instaura-se um novo modismo, atravs do fenmeno de uma onda consumo, pertinente quele grau de urbanidade recm alcanado. No entanto, mais do que uma onda consumista, interessam seus indcios da mudana das perspectivas da cultura do pas com presena modernizante da crescente indstria cultural. Tanto para o Brasil, como na Amrica Latina, Nestor Canclini estabelece uma chave de compreenso dos processos culturais que valoriza as correlaes entre valores emergentes, arcaicos e residuais que so ativados nas manifestaes artsticas e nos processos culturais em que as trs instncias do campo cultural cultura erudita, cultura popular e cultura de massa se inter-relacionam.51 Ao abordar a produo cultural do sculo XX, Eric Hobsbawm reafirma que o fato mais decisivo do campo cultural foi o surgimento e a organizao de uma indstria da diverso popular voltada para um mercado de massa, denominada cultura de massa. De acordo com ele, esta cultura estaria estruturada pelo cinema, msica, rdio, TV, sendo que hoje, outras midia contribuiriam para a difuso desses valores culturais. Hobsbawm aponta ainda que o sucesso da 47 GORENDER. Combate nas trevas. p.11. Para o autor o termo esquerda o ...conceito referencial de movimentos e idias endereadas ao projeto de transformao social em benefcio das classes oprimidas e exploradas. Os diferentes graus, caminhos e formas dessa transformao social pluralizam a esquerda e fazem dela um espectro de cores e matizes. 48 Ridenti aponta um total de 24 novas publicaes. op. cit., p.404. 49 Sobre a entrada de valores ideolgicos no cotidiano vide KONDER. Op. cit., p.241. 50 MOTTA. Noites tropicais. p.293 51 CANCLINI. Culturas Hbridas: estratgias para entrar e sair da modernidade. p.198.

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    consolidao desta sociedade de consumo se estabelece e se afirma aps a 2 Guerra Mundial, especialmente aps 1960, com hegemonia da produo cultural norte-americana.52

    Ser justamente neste momento ps-60 que haver tambm no Brasil a paulatina estruturao desta indstria cultural. A instalao precoce de uma rede de televiso no Brasil ainda em 1950 foi um dos fatores fundamentais para catalisar esta nova dinmica cultural, ampliando seus domnios para alm das manifestaes tradicionais e instaurando outras linguagens de manifestaes culturais e de carter de massa. Pioneiramente, o Brasil havia despontado neste novo mercado com a quarta emissora de televiso do mundo, a TV Tupi, tornando-se tecnologicamente atualizado e inserido nesta perspectiva cultural, quando o magnata das comunicaes, Assis Chateaubriand, inaugurou esta nova fase miditica da cultura nacional.53 A partir de ento, a indstria cultural passaria a ser um dos vetores da dinmica cultural com igual potencial de definir as referncias culturais do pas. Trata-se de uma conjectura inversa ao arroubo modernizante porm emancipador contido em Braslia, na Bossa Nova e na Arte Concreta. Nestes casos, a modernidade era de tal ordem que suscitava quase que como efeito colateral um interesse sobre uma suposta perda de valores de uma identidade nacional pr-existente fosse ela rural ou arcaica para o novo estgio de desenvolvimento nacional. Contudo, as novas escalas de produo cultural podem ser tomadas com outras possibilidades. Assim, se tais valores culturais genunos j vinham sendo explorados dentro da literatura de carter regionalista, onde estaria Guimares Rosa com Grande serto, veredas ou Vidas secas de Graciliano Ramos, a partir ento tais valores poderiam ter sua fora latente transformada num filme e alcanar um nmero maior de pessoas. Mais do que a mera defesa da cultura nacional, a hbrida atualizao dos meios de manifestao artstica poderia contribuir com a construo da identidade nacional, para alm de esteretipos e estigmas, coadunando-se ento com a modernidade de Braslia, cuja inaugurao havia sido televisionada. Por outro lado as prticas culturais de massa demandam a reposio dos valores culturais atravs do valor de novidade que agregado aos novos produtos, num sistema de produo esttica integrado produo de mercadorias, numa dinmica tal que as novas sries de produtos impe a obsolescncia programada das coisas.54 No mbito da cultura de consumo esta dinmica gera a reposio constante do mesmo valor, quando a novidade tem valor em si mesma.55 Torna-se sintomtica a mudana semntica em que a relao artista/obra/ao passa a operar atravs das relaes produto/novidade/consumo. 1960-1985 um perodo histrico do campo cultural que oscila entre a quase inexistncia de expresses culturais de massa para o seu predomnio como prtica cultural. Ao tratar destas mudanas radicais, Ridenti afirma que elas foram beneficiadas pelo AI-5: O caminho ficou livre no campo artstico, a partir de 1969, para o avano irrestrito da indstria cultural...56 Enquanto Braslia, a Bossa Nova e a Arte Concreta so os vetores de tenso entre os valores arcaicos, residuais e emergentes a cultura

    52 HOBSBAWM. A era dos extremos. O brave sculo XX 1914-1991. p.491-495. 53 MORAIS. Chat: o rei do Brasil. p.496-504. 54 JAMESON. Op. cit., p.30. 55 Idem. p.125. 56 RIDENTI. O fantasma da revoluo brasileira. p.80

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    Brasileira, o movimento tropicalista capitaneado por Caetano Veloso e Gilberto Gil no somente amplia esta tenso, como tambm provocar um curto-circuito nos cdigos eruditos, populares e da cultura de massa.57 A msica Tropiclia de Caetano Veloso traduz esta vocao provocativa ao fazer uma celebrao alegrica das complexidades e contradies nacionais, justapondo sua modernidade e seu atraso, inspirado na fora monumental de Braslia: a cidade que nasce de um sonho, materializa uma experincia artstica modernssima para se tornar a sede do poder usurpado pelos militares, como num transe.58

    tambm no transe entre atraso e vanguardismo que se organiza a cena do rock brasileiro dos anos 80 como outra movimentao cultural de carter juvenil, que sob a gide da ironia, do desfrute da prpria juventude, cantou seu hedonismo, suas ambies e suas mazelas amorosas, em meio s transformaes polticas maiores, sobre as quais no tinham um domnio de ao direto. Aquilo que parecia ser apenas um novo modismo como Dancing Days adquiriu rapidamente uma legitimidade inovadora de ser, suplantando o atraso geracional atravs da msica. Considerados supostamente menos engajados, porm no menos atentos poltica, esta gerao ter sua manifestao-chave concentrada num grande festival de msica, o RocknRio. O festival catalisou este processo e legitimou essa outra movimentao da msica de carter popular alis pop que para alm da rebeldia juvenil massificada, transbordou irreverncia e inaugurou a nova fase poltica do Brasil ps-Tancredo. Diante de uma suposta indiferena e de um aparente desencantamento pela poltica da juventude que havia crescido sob a tutela de generais, possvel detectar correlaes entre arte e poltica, mas sob novos arranjos entre valores polticos com o fazer artstico. Sintomtico desta sintonia entre cultura juvenil e momento poltico foi a entrada da jovem vocalista Paula Toller, da banda Kid Abelha e os Abboras Selvagens (!) que no dia 15 de janeiro de 1985 sobe no palco do RocknRio, envolta numa bandeira nacional referindo-se diretamente eleio indireta de Tancredo Neves, realizada naquela manh em Braslia pelo Colgio Eleitoral saudando a Nova Repblica. Longe da postura iconoclasta e musicalmente radical da musa Nara Leo entoando Carcar, a jovem cantora bradava hits radiofnicos e sinalizava que tambm ali havia outra opinio, outra postura em estado latente naquela mesma gerao, que festivamente, anunciava e participava coadjuvantemente de outros tempos polticos, inicialmente definidos pelas tabelas, como a msica de Chico Buarque ironizava.

    Enquanto isso, nas pginas das revistas de arquitetura do Brasil, alm dos novos nomes e dos novos programas arquitetnicos, Oscar Niemeyer se fortalece como uma celebridade sendo, de longe, o arquiteto mais publicado. Alm de ser a figura central da Mdulo, ele est presente nas demais publicaes de todas as formas: fotos, maquetes, entrevistas, artigos que mostram suas obras no Brasil, mas tambm destacam sua carreira internacional, com projetos urbanos e arquitetnicos na Itlia, Frana, Arglia e Israel. Lucio Costa, o semeador da modernidade brasileira, aparece em pequenas notas na Acrpole, relativamente bem publicado pala Mdulo devido a Braslia e ser tomado como figura herica pela Projeto e AU aps 57 Para explorar a complexidade da Tropiclia vide: BASULADO. Tropiclia: a revolution in Brazilian culture; LIMA. Marginlia; VELOSO. Verdade Tropical; DIAS. Anos 70: enquanto corria a barca; MELLO. A era dos festivais; 58 VELOSO. Verdade Tropical. p.185-187.

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    1985. A irregularidade de sua presena, bem como do que se publica sobre ele, torna impossvel compreender suas aes projetuais e refora seus estigmas de isolamento e discrio. Vilanova Artigas aparece como o radical mentor da FAU, cujas grandes massas em concreto aparente so publicadas pontualmente na Acrpole e na Mdulo, tambm ter sua maestria ungida a uma categoria superior aps seu falecimento em 1985. Lina Bo Bardi, a mulher que estava com a vanguarda da Bahia atenta ao serto, enquanto todos se voltavam para o Planalto Central, a progettista do MASP, permanece impublicvel: ela no aparece. Alm de no ser publicada nem pela Mdulo, nem pela Acrpole, ser apenas nas pginas de sua antiga trincheira editorial, a revista Habitat, que o MASP seria devidamente divulgado. Lina reaparecer na AU e na Projeto em alguns artigos devido aos seus projetos para Salvador e ao SESC-Pompia. O SESC-Pompia somente foi publicado aps a concluso de sua segunda fase de obras quando o bloco esportivo foi concludo, ou seja, em 1986, permanecendo quase desconhecido at ento.

    Assim, causa surpresa a irregularidade com que estes quatro arquitetos podem ser entendidos caso sejam tomados exclusivamente a partir das revistas. Se por um lado a presena efetiva destes arquitetos nas pginas das revistas pouca, mesmo quando ainda permanecem projetando e atuando dentro do campo arquitetnico, por outro lado, a exposio deles em nmeros especiais promove um fenmeno que aumenta sua legitimidade, ao mesmo tempo em que consagra e mitifica aqueles que podem ser tomados como os agentes potencialmente transformadores do campo arquitetnico. A respeito de tais conjecturas, o arquiteto Rodrigo Lefvre se pronunciou em tom de frustrao ao refletir sobre o quadro da arquitetura brasileira, apontando tanto uma efetiva diferenciao do campo arquitetnico entre o Golpe de 64 e aquele momento de abertura sobretudo Anistia poltica como destacou tambm a impertinncia de compreend-lo somente a partir de alguns personagens Lucio Costa, Oscar Niemeyer e Vilanova Artigas quando de sua participao no debate Arquitetura e desenvolvimento nacional. Depoimento de arquitetos paulistas, realizado em 1979.59 As consideraes de Lefvre ratificam o transe do campo arquitetnico em que toda a produo ps-Braslia estava enredada, ao mesmo tempo em que sinaliza a necessria ampliao das perspectivas para a compreenso das complexidades de ento.

    Contudo, se por um lado, Lefvre aponta a necessidade de afastamento e distanciamento destes arquitetos, preciso considerar que justamente Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Vilanova Artigas e Lina Bo Bardi so os poucos arquitetos que conseguem atuar e produzir nos perodos anteriores e posteriores da condio do transe ps-Braslia que tambm pautava aquele debate, ou seja, so os arquitetos que atuaram no perodo herico, atravessaram o ps-Braslia 1960-85 e continuaram projetando posteriormente, sobrevivendo s tenses do campo arquitetnico da condio ps-Braslia. Numa outra circunstncia, Sophia da Silva Telles alinhava as questes de Lucio Costa com Oscar Niemeyer e Vilanova Artigas, sugerindo a presena de Lina Bo Bardi, como sendo os vetores das diferentes frentes de ao da arquitetura brasileira, atravs das questes por eles postuladas para no final da argumentao localizar Paulo Mendes da Rocha como um novo vetor do campo ao que afirma:

    59 Lefvre in Arquitetura e desenvolvimento nacional. Depoimento de arquitetos paulistas. p.62

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    Os projetos que se constituem sob a influncia de Lucio, exatamente porque se debruam sobre o pas, devero atingir a modernidade, mas em um outro sentido: de um lado, pela imaginao, que termina por depositar a cultura no desenho da natureza (Niemeyer), e por outro, pela poltica, que se desenha nas formas da racionalidade tcnica (Artigas). Mas a referncia aos projetos de Lucio se far identificar em muitos dos arquitetos seus contemporneos.60

    Para Lefvre, a chave de resoluo das questes do campo

    arquitetnico resultante deste processo que se iniciara no ps-Braslia e no ps-64 somente se consolidaria a partir da educao de novos arquitetos que estivessem cientes das novas circunstncias. Neste sentido e neste mesmo debate, Lina Bo Bardi revela uma percepo igualmente aguda daquele momento presente, ao que afirma: A obsolescncia da arquitetura, hoje, clara; a perda de sentido das grandes esperanas da arquitetura moderna, clarssima... e, ao mesmo tempo em que alerta os presentes para a diferena entre os tempos, entre as diferentes geraes, Lina se mostra preocupada com os desdobramentos do campo arquitetnico brasileiro, instigando a platia: Hoje estamos numa situao um pouquinho diferente. O que vocs [jovens arquitetos] vo fazer?61 Neste sentido, a abordagem de Ablio Guerra refora a necessria conexo entre os interesses da gerao atual com as geraes anteriores para estabelecer a continuidade de uma reflexo sobre o prprio campo arquitetnico, quando assinala que: Entre a negao psicanaltica radical do pai e a adorao religiosa da deidade, precisamos instaurar uma crtica que nos reconecte com a tradio, para com ela aprender e redimensionar o futuro levando em conta os desacertos do passado.62 Ao tratar desta conexo crtica entre passado e futuro, remete-se tambm a uma considerao de Otlia Arantes, para quem Intil lembrar que a condenao global do Movimento Moderno faz to pouco sentido quanto sua apologia rotineira. 63 Ou seja, ambos apontam para as complexidades do campo arquitetnico brasileiro situadas nas perspectivas ps-Braslia.

    Assim, situando-se distncia da adorao apologtica e igualmente distante da condenao integral de seus valores, sem insistir numa simplificada continuidade para salvar o a arquitetura brasileira por partes, preciso construir tais conexes entre passado e futuro, interessando-se em abordar as complexidades desses personagens do campo arquitetnico a fim de elucidar as questes, causas, indagaes, posturas e propriedades que seus projetos arquitetnicos encerram para, contribuir com o debate atual acerca da percepo do valor das aes destes arquitetos. Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Vilanova Artigas e Lina Bo Bardi que no somente personificam um campo do conhecimento, mas tambm participam ativamente de sua trama de nexos simultaneamente, nele projetando suas arquiteturas.

    60 TELLES. Lucio Costa: Monumentalidade e intimismo. p.85. Grifos adicionais dos termos em itlico originalmente. 61 Lina Bo Bardi in Arquitetura e desenvolvimento nacional. Depoimento de arquitetos paulistas. p. 21-22. 62 GUERRA. Lucio Costa: modernidade e tradio: montagem discursiva da arquitetura moderna brasileria. p.17. 63 ARANTES. O lugar da arquitetura depois dos modernos. p.53.

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    _________________________captulo 02__ 4 vetores do campo arquitetnico: Lucio Costa, Oscar

    Niemeyer, Lina Bo Bardi e Vilanova Artigas

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    ___ vozes, lugares, riscos e tempos

    Mas para meu desencanto, o que era doce acabou Tudo tomou seu lugar, depois que a banda passou E cada qual no seu canto, em cada canto uma dor Depois da banda passar, cantando coisas de amor Chico Buarque ...salvao pelo risco, sem o qual a vida no vale a pena! Clarice Lispector

    A abordagem das aes especficas de um arquiteto e seu conjunto

    prprio de preocupaes pode contribuir para a configurao de um quadro mais amplo e diversificado da arquitetura brasileira. Esta aproximao tambm pode revelar outros valores com os quais a produo moderna de arquitetura pode estar relacionada, tanto quanto puder revelar a complexa trama da arquitetura brasileira ps-Braslia. Ou seja, o campo em que Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Vilanova Artigas e Lina Bo Bardi atuam. Em meio aos impasses do campo arquitetnico ps-Braslia, os quatro arquitetos mantiveram-se projetando, cuidando e inventando arquiteturas. Mais do que a eventual salvao pelos riscos de suas arquiteturas, os quatro arquitetos radicalmente se afastavam tanto do tom lamentoso o que era doce acabou quanto tambm do que poderia sugerir a passividade de uma Carolina recostada no balco da janela.

    Sem a resignao de se manterem cada qual em seu canto, prancheta, trincheira ou balco, os quatro arquitetos Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Vilanova Artigas e Lina Bo Bardi permaneceram ativos no campo arquitetnico brasileiro. Ou seja, dentro de perspectivas que configuram um campo do conhecimento possvel elaborar as diferentes tramas internas em meio as quais estes quatro agentes que vetorizam o campo, atuam. As transformaes polticas, sociais e culturais do pas impeliram que cada um deles elaborasse diferentes estratgias para manter no somente sua independncia e sua sobrevivncia, mas tambm seus prprios discursos. Conquanto os vestgios dos traos biogrficos de cada um deles poder revelar o grau dos riscos vividos, ser preciso antes formular quatro abordagens especficas sobre cada um destes arquitetos, atravs de um projeto arquitetnico, inicialmente. A partir de uma operao concentrada em uma obra de cada um deles ser possvel problematizar suas arquiteturas a fim de explorar suas especificidades, e assim poder ento estabelecer as correlaes com o contexto do prprio arquiteto. Consequentemente esta operao de tomar um projeto de cada arquiteto definir uma circunstncia oportuna para estabelecer posteriormente as correlaes entre Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Lina Bo Bardi e Vilanova Artigas. Neste sentido, a estratgia partir da escolha de um projeto arquitetnico, para transform-lo posteriormente no fator de

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    conexo que auxiliar a construo das correlaes entre os quatro arquitetos em chave de simultaneidade no captulo seguinte.

    Para tanto, foram escolhidas quatro arquiteturas de propriedades reconhecidamente legitimadas, cujo valor excepcional e relevncia se desdobram no campo da produo brasileira e que tambm demarcam sua presena na produo da condio ps-Braslia. Ento, de Lucio Costa foi selecionado Riposatevi, o pavilho brasileiro na Trienal de Milo (1964); de Oscar Niemeyer foi selecionado o Palcio do Itamaraty, em Braslia (1965-67); de Vilanova Artigas foi selecionada a FAU, em So Paulo (1967-69) e finalmente de Lina Bo Bardi foi escolhido o SESC-Pompia, em So Paulo (1977-82/86) tornando-se possvel respaldar a problematizao almejada.

    Quanto ao enfrentamento do fato arquitetnico, a estratgia revelar os significados no manifestos do projeto, considerando tanto o seu processo de criao a fim de ...apreender a fragrncia histrica dos fenmenos, submet-los ao crivo de uma rigorosa avaliao, revelar suas manifestaes, valores, contradies e dialticas internas, fazer explodir toda sua carga de significados. de acordo com as perspectivas investigativas apontadas por Tafuri.64 Esta operao procura portanto revigorar as pulsaes da arquitetura como o fato que constitui os ndices do discurso do prprio arquiteto, assim como tambm ecoam e animam tenses de sua prpria atuao, no sendo neutras, quando possibilitam comportamentos, definem valores, instituem transformaes e provocam inovaes em diferentes mbitos de sua presena no contexto urbano, social, poltico e cultural, em que tanto a obra quanto o arquiteto se manifestam para alm de suas pranchetas. Assim, atravs de Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Vilanova Artigas e Lina Bo Bardi interessa percorrer, vivenciar e experimentar o Riposatevi, o Palcio do Itamaraty, a FAU e o SESC-Pompia incorrendo nas perspectivas abertas pela explorao dos sentidos de suas existncias.

    64 TAFURI. Op. cit., p.21.

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    ___ Lucio Costa Riposatevi: o Pavilho brasileiro na XIII Trienal de Milo 1 9 6 4

    Eu organizo o movimento eu oriento o carnaval eu inauguro um monumento no Planalto Central do pas. Viva a Bossa-sa-sa Viva a palhoa-a-a-a-a... Caetano Veloso

    Vendo aquelas casas, aquelas igrejas, de surpresa em surpresa (...) a gente se lembra de coisas esquecidas (...) mas que estavam l, dentro de ns.

    Lucio Costa A participao do Brasil na XIII Trienal de Milo, em 1964, assinala um

    momento importante nos desdobramentos da movimentao moderna da arquitetura brasileira e aponta tambm uma inflexo surpreendente na obra de seu mentor: Lucio Costa. O Brasil participa pela primeira vez desta Trienal num momento em que ela finalmente retomava o sentido de vitalidade condizente com o vanguardismo e com a contemporaneidade que se espera de uma exposio deste porte.65 Este fato se torna mais relevante, na medida em que se considera a participao da arquitetura brasileira ter se manifestado com qualidade e prestgio em outras situaes desta natureza feiras e exposies internacionais em que as qualidades da produo tcnica, artstica e intelectual de um pas se fizeram representar primeiramente pela arquitetura.

    Destacam-se os pavilhes do Brasil na feira de Nova York em 1939 de Lucio Costa e Oscar Niemeyer: projeto que reitera o domnio dos procedimentos modernos e anuncia as especificidades da modernidade brasileira: curvas, elementos vazados, integrao com paisagismo, rampas, alm da pluralidade de vedaes anunciando sua independncia estrutural e das grandes aberturas. Neste sentido quando afirma que Um pavilho de exposies deve apresentar caractersticas de construo provisria e no simular artificiosamente obra de carter permanente.66, Lucio j demonstra sua clareza quanto ao tipo de programa representativo, o que caracterizaria ento seu contraponto s orqudeas, cobras, aves, peixes e caf de outrora. Dentre as demais representaes nacionais tambm se destacam o pavilho brasileiro na exposio de 1958 em Bruxelas, de Sergio Bernardes: espaos contnuos implantados entre ligeiros desnveis sob uma cobertura curva, cujo grande atrativo era uma esfera inflvel que devido insolao afastava-se ou aproximava-se do prprio pavilho, sinalizando um dilogo com sua prpria efemeridade. Alm deste, em 1970, Paulo Mendes da Rocha leva para Osaka um projeto que valoriza a linguagem do concreto armado aparente, com as grandes estruturas sob quatro pontos de apoio, reitera a opacidade dos 65 ROGERS. in Mdulo n.38, p.01. 66 COSTA. Op. cit., p.192. Este trecho trata do Pavilho brasileiro em Nova York (1939), mas mais pertinente ao Riposatevi.

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    espaos internos, articula a interioridade dos convvios com a transformao do terreno, alm de fortalecer o prprio valor da estrutura como definidora da arquitetura. Assim, no deixa de ser curioso o fato de que entre um projeto e outro, entre uma participao e outra, exista este projeto de Lucio Costa para o pavilho brasileiro, que de to pouco discutido, torna-se mesmo quase uma experimentao desconhecida. Trata-se de um espao equacionado em poucos dias que enfrentou as considerveis dificuldades ...dos problemas burocrticos e polticos e do trfico de influncias...67 para ser finalmente executado. Contudo, ele pode ser revelador da ao projetual de Lucio Costa, pois mesmo sem figurar entre aqueles projetos mais citados nas abordagens de sua arquitetura, o pavilho contm os mesmos ndices de problematizao do Park Hotel So Clemente ou dos edifcios do Parque Guinle. Ou seja, compatibiliza valores das tradies culturais brasileira com possibilidades espaciais modernas e arrojadas; articula plasticidades tradicionais com novas materialidades num mesmo espao; transforma questes do debate arquitetnico mundial em problemas especficos da arquitetura brasileira.

    Some-se a esta postura de projetar, o fato de que naquele momento poltico to incerto 1964, o Brasil ps-golpe querer levar um pavilho nacional para fazer ver o pas ao mundo, pode tambm ser considerado ato de participao poltica. certo que se trata de participao muito cuidadosa e diplomtica, mas sobretudo, muito ativa e representativa de seu campo profissional. Em meio a uma onda de conservadorismos que somente se iniciara em 1964 e que se desdobraria no total fechamento das perspectivas culturais em 1968 Lucio Costa apresenta um espao de grande despojamento, com uma configurao quase imaterial para cumprir o desafio proposto pelo tema da Trienal: o tempo livre.68 Riposatevi: aproveitem o tempo livre...

    O tema da Trienal se pretendia ousado e extremamente vinculado quela sociedade industrializada, algo referente s questes econmicas e sociais, um problema da cultura inserido na perspectiva da indstria cultural de uma sociedade cujos modos de vida tornaram-se repetitivos, montonos e desgostosos. O tema procura alavancar um modo de pensar o cotidiano que se contraponha aos pressupostos das funes da cidade moderna concebida por Le Corbusier69, propondo, de sada, uma abordagem que desmonte os gestos e os hbitos cotidianos, que interrompa as prticas rotineiras. Tal rotina numa sociedade industrial o trabalho constante, sincronizado com o ritmo da mquina e inserido num contexto cultural massificado. Sair desta rotina, desvencilhar-se e romper com seus ritmos e alterar os hbitos implica em no fazer, em no trabalhar, em no operar... Ou seja, descansar, repousar,

    67 MAURCIO. in Mdulo n.38. p.40 68 A participao do Brasil considerada econmica; Jayme Maurcio aponta um gasto inferior a US$15.000, mas no especifica se este valor inclua passagens, transporte, montagem e o custo do projeto. Vide in Mdulo n.38. p.40. Helena Costa, a filha mais nova de Lucio quem coordenaria a implantao do Pavilho. 69 De acordo com Le Corbusier, as funes: circular, trabalhar, habitar e ter lazer, seriam suficientes para organizar todas as instncias da vida urbana. Vide Carta de Atenas.

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    desligar-se! E assim se apresenta a radicalidade da proposta e Lucio Costa: um convite subverso dos tempos da produo industrial, um convite para desfrutar o tempo livre nas redes do Brasil, contemplando suas imagens. Lucio subverte tambm a dinmica da prpria Trienal ao propor um espao de cio e de no continuar o caminhar incessante e contnuo que estas mostras imprimem sob visitantes/usurios, sendo ironicamente enftico ao utilizar o tempo verbal imperativo para sinalizar o funcionamento do espao brasileiro: Riposatevi, relaxem, descansem... O perfil deste usurio do pavilho se aproxima mais do que Lucio classifica de turista qualificado aquele que visita e aprecia Ouro Preto quando de seu tombamento, e no o novo integrante das hordas do turismo de massa.

    Todo o arranjo espacial do pavilho de Costa se manifesta como uma possibilidade de experimentar, provisoriamente, o modo de ser brasileiro. Eis o que, no limite, ele instiga o visitante, pois menos que uma formalizao, Lucio proporciona a experincia do modo de ser brasileiro: ...o modo de ser brasileiro depositado nas reminiscncias do vernculo mais popular, nos elementos annimos da colnia que [ele] desejou ver resguardado pelo projeto moderno.70 A expresso deste modo de ser se d atravs do fortalecimento do programa, ao o que Sophia da Silva Telles assinala: Em Lucio Costa, o que est alm do utilitrio essencialmente o programa, no a forma.71 Lucio Costa organiza um espao para representar o Brasil articulando ndices espaciais, imagens, cores e texturas, num procedimento eminentemente moderno, porque relacional, mas seguramente transgressor conforme ser visto. No parece ter sido fcil trabalhar a participao do pas de modo contundente e delicado para mostrar o Brasil ps-Bossa Nova, ps-Juscelino Kubitschek, ps-Braslia que o pas ps-64. O pavilho revela um pas que tambm havia sado da rotina do subdesenvolvimento industrial e que havia consolidado sua atualizao no mbito cultural mundial, superando sua dependncia cultural, exercitando sua antropofagia saudvel, cosmopolita e urbana. O pavilho do Brasil nesta Trienal parece apontar uma alternativa prpria s prticas de progresso tecnolgico e dinmica da sociedade industrial, mantendo sua heterogeneidade e sua singularidade, quando justape valores scio-culturais, procedimentos tcnicos, ritmos e modos de vida. Contrape-se o ritmo industrial, dinmico, urbano e premente que constri Braslia ao ritmo tranqilo, telrico, popular e singelo condensado no ato de deitar-se numa rede. As vicissitudes tcnicas, sociais e estticas do pas so colocadas com grande fora plstica e clareza de discurso: possvel construir Braslias, mas ainda se mantm conhecimentos culturais arcaicos, como os valores latentes das redes e jangadas, evidenciando o mesmo pas que no ps-64 tambm estava enredado em dvidas. No entanto, ali, no Pavilho brasileiro em Milo, Lucio Costa no hesita e diretamente aponta o que fazer: Riposatevi. Este tempo verbal imperativo soa como uma ordem que se sobrepe a um espao que de modo deliberado se contrape s possibilidades mltiplas de uso, livre apropriao dos usurios e assim, ao seu modo, quase s avessas, efetua um convite. De toda sorte, entre um convite e uma ordem, entre a inciso e a delicadeza, h um projeto, h um espao moderno para representar um pas. Nele se representa a 70 TELLES. Op. cit., (1989) p.79. 71 TELLES in NOBRE et alii. Um modo de ser moderno: Lucio Costa e a crtica contempornea. p.92.

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    espacializao de uma viso de mundo e, sobretudo, demarca-se um posicionamento crtico no campo arquitetnico. Lucio Costa tambm subverte assim a rotina da arquitetura brasileira com este projeto, porque aparentemente menor.72 ...intil paisagem?

    Se a construo de Braslia colocou Lucio Costa em atividades de projetao com grandes equipes, prazos e determinaes polticas diversas, aqui neste projeto, ele volta a trabalhar mais individualmente em que pese o empenho de Jayme Mauricio junto ao Ministrio das Relaes Exteriores, o Itamaraty, para viabilizar a participao brasileira, alm da colaborao imprescindvel de Maria Elisa Costa, Sergio Porto e das fotografias de Marcel Gautherot. De toda sorte, ao retomar as atividades de projeto numa perspectiva mais pessoal, torna-se possvel para o arquiteto retomar questes e interesses de aspectos projetuais que a escala de Braslia no lhe permitia. A cultura popular brasileira tomada pelo vis indgena, ampliando o arco de compreenso de seu discurso sobre cultura popular e seu dilogo com uma arquitetura moderna, ao que ele afirma ser preciso Assumir e respeitar o nosso lastro original luso, afro, nativo... valorizando diferentes matrizes culturais.73 Num contraponto surpreendente ao arroubo tecnolgico, logstico e esttico que foi a experincia de Braslia, Lucio Costa apresenta um espao leve, transparente, desmontvel e, no limite, descartvel. No pouco, quando o arquiteto em questo o homem que viu uma cidade-Capital nascer sob o desgnio de seu trao.

    Entre a Finlndia e a Iugoslvia, Lucio Costa implanta o espao do Brasil. Trata-se de uma arquitetura cujos ndices espaciais se definem a partir da materialidade das redes de dormir, dos cabos de ao, dos retngulos de tecido, do sisal e dos painis de madeira. O ambiente mobiliado com cerca de quatorze redes74 de algodo coloridas: roxa, amarela, azul, vermelha, laranja e alguns violes: eis toda a moblia do pas! Seu espao fluido organizado atravs de painis de madeira ordinria pintados de azul cobalto, verde oliva ou branco, que tambm so o suporte para as fotografias em preto e branco de Gautherot. Para complementar as dimenses deste espao, o arquiteto prope um cho de areia, que foi substitudo por um piso homogneo, ao que perece feito de sisal; e para arrematar o teto, ... guisa de dossel...75 Lucio Costa arma uma estrutura de cabos de ao multi-direcional para sustentar a armao das redes e acima desta trama, dispe outra que filtra a luz zenital com retngulos de tecidos brancos e amarelos pendurados e soltos 72 De acordo com sua autobiografia Riposatevi divisor de uma fase, localizando-se na sexta fase. A partir do projeto urbano para a Barra da Tijuca ele localiza a stima e ltima fase de sua obra, em 1982. Vide Registro de uma vivncia, p.333-335. 73 COSTA. Op. cit., in Opo, Recomendao e Recado. p.382. 74 A marca da rede Filomeno e foram adquiridas com auxlio do professor Liberal de Castro que comprou as redes no Mercado de Fortaleza para o Dr. Lucio. Vide COSTA. p.567. 75 COSTA. Op. cit., p.408. Vale lembrar que em terreiros de candombl tambm pode ser encontrado um dossel bastante semelhante plasticamente a este, que tambm podem aludir tanto as bandeirinhas de festas juninas, como as plaquinhas de alumnio que temperam a luz na calota do Senado Federal, formando uma trama de planos perpendiculares e intercalados.

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    junto com as letras verdes, em caixa alta, que anunciam a palavra de ordem que organiza/orienta todo o seu funcionamento: R I P O S A T E V I Lucio Costa desmonta as relaes de interioridade do edifcio que abriga o pavilho e revigora o lugar do Brasil como um ambiente de estar arejado e ventilado, transformando-o numa autntica varanda. Com seu espao de sociabilidade aberto instaurado na tenso entre o interior e o exterior, proporcionando interao direta com a paisagem do lugar, a varanda tomada como referncia por sua carga espacial de operar relaes dentro/fora, mas sobretudo por seu potencial gregrio de fomentar o convvio. Trata-se de uma convivncia de intimidade relativa que se desdobra em seus espaos, cujo despojamento detectado por seus prprios equipamentos: mesas, cadeiras, bancos, mesinhas e as redes ao que Lucio afirma: ...o fato que as varandas, quando bem orientadas, so o melhor lugar que as nossas casas tm para se ficar; o que a varanda, afinal, seno uma sala completamente aberta?76 No entanto, a varanda de Riposatevi se aproxima da ambincia da varanda da Casa Hungria Machado (1942) que se abre para dentro da prpria casa, voltando-se para um ptio, mantendo o resguardo de seu espao, mais do que abrindo-o para o exterior. Ou seja, Lucio Costa detona uma operao espacial de abrir-se para dentro, cujo resultado a obteno de uma espacialidade legvel. Riposatevi um projeto ldico, potico, bem implantado e de fcil execuo, cujo carter provisrio deve proporcionar uma experincia especfica a fim de traduzir o seu entendimento do tema tempo livre: aqui no Brasil, descansar indolentemente ou trabalhar freneticamente podem ser atividades equivalentes no cotidiano de qualquer um. O argumento parte diretamente do arquiteto: Imanente ou transcendente, h uma intrnseca grandeza no homem e na sua obra, ainda quando aparente a sua negao, como num smbolo de repouso a rede que propus (...) para a XIII Trienal de Milo.77 representando mesmo povo que descansa nas redes e constri Braslia. A lgica do cotidiano e a subverso de sua rotina atravs das aes fsicas e dos esforos do corpo, constituem o discurso de Lucio Costa, assim como tambm uma das questes pertinentes aos Situacionistas, para quem era preciso subverter as lgicas convencionais de percepo e ao cotidiana para pensar os espaos urbanos sob novas perspectivas.78

    O ambiente de informalidade de uma varanda em Riposatevi passa a ser associado tambm com a sociabilidade da praia e com o universo sonoro da Bossa Nova que parece ecoar pelos seus espaos, nem mesmo sendo necessrio dedilhar os violes ali tambm presentes. Trata-se de uma atmosfera que a um s tempo evoca as varandas das fazendas e dos engenhos do interior como a vida urbana beira-mar, numa profuso de estmulos sensoriais e temporais em que Lucio Costa funde Coluband79, Copacabana e Braslia. No entanto, trata-se de uma varanda sem paisagem natural a ser desfrutada, que se configura a partir de imagens fotogrficas. Lucio Costa opera tanto com a dinmica do espao relacional moderno quanto com a lgica da imagem da cultura de massas, revelando um procedimento 76 COSTA in XAVIER. Sbre arquitetura. p.92. 77 COSTA. Op. cit., p.19. 78 Sobre os Situacionistas, suas teorias e pauta de questes vide JACQUES. Apologia da deriva. Escritos Situacionistas sobre a cidade. 79 A fazenda de Coluband um antigo engenho de acar no Estado do Rio de Janeiro, com uma Casa Grande circundada de varanda e uma igreja prxima aos domnios da intimidade domstica. Vide COSTA. Op. cit., p.503-507.

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    surpreendente e sofisticado. O Brasil , por ora, sintetizado atravs das fotografias das jangadas, das praias do Cear e das Super-Quadras, do Eixo Residencial, do Congresso, da Praa dos Trs Poderes e da Plataforma Rodoviria de Braslia. Assim, atravs da fora destas imagens tomadas para organizar um espao intimista, Lucio Costa evidencia o seu trnsito entre as escalas elaboradas por Sophia da Silva Telles para quem Lucio parece substituir essa relao [entre pblico e o privado] pelas noes de espaos ntimos e monumentais...80 Para tanto, o arquiteto no precisa recorrer aos raciocnios ou estratgias tipolgicas sobre a varanda, o que o aproximaria das questes de Aldo Rossi, embora ele opere com outro dos valores que so objetos de problematizao de Rossi: a memria.81

    Assim, vale destacar que Lucio Costa trabalha com tanto rigor para propor uma ao aparentemente desprendida: Riposatevi, descansem! Assim como vale apontar que o arquiteto opera o pavilho com tanto ajuste para fazer uma proposta: percebam a complexidade do Brasil! Ao ser to cuidadoso com a textura do piso, com a cor dos tecidos, Lucio Costa estabelece um espao organizado por redes e imagens, a fim de configurar uma situao82, como se ele quase quisesse estabelecer uma equao provisria para facilitar a compreenso do pas: Brasil = rede + imagens ou seja, o pas sintetizado pela adio do artefato mais ancestral com as imagens