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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA ROMPENDO CERCAS, CONSTRUINDO SABERES: TRABALHO AGROECOLÓGICO, VIVÊNCIAS E (RE)SIGINIFICAÇÕES NAS RELAÇÕES COM O LUGAR Leonardo Victor de Sá Pinheiro NATAL - RN 2019

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

    CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

    PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

    ROMPENDO CERCAS, CONSTRUINDO SABERES:

    TRABALHO AGROECOLÓGICO, VIVÊNCIAS E (RE)SIGINIFICAÇÕES

    NAS RELAÇÕES COM O LUGAR

    Leonardo Victor de Sá Pinheiro

    NATAL - RN

    2019

  • i

    Leonardo Victor de Sá Pinheiro

    ROMPENDO CERCAS, CONSTRUINDO SABERES:

    TRABALHO AGROECOLÓGICO, VIVÊNCIAS E (RE)SIGINIFICAÇÕES

    NAS RELAÇÕES COM O LUGAR

    Tese de doutorado apresentada ao Programa de

    Pós-Graduação em Psicologia da Universidade

    Federal do Rio Grande do Norte, como

    requisito parcial à obtenção do título de Doutor

    em Psicologia.

    Orientador: Prof. Dr. José Queiroz Pinheiro

    Coorientadora: Profa. Dra. Fernanda Fernandes Gurgel

    NATAL - RN

    2019

  • Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

    Sistema de Bibliotecas - SISBI

    Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes -

    CCHLA

    Pinheiro, Leonardo Victor de sá. Rompendo cercas, construindo saberes: trabalho agroecológico,

    vivência e (re)significações nas relações com o lugar / Leonardo

    Victor de Sá Pinheiro. - 2019.

    231f.: il.

    Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande do

    Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de

    Pós-graduação em Psicologia. Natal, RN, 2019.

    Orientador: Prof. Dr. José Queiroz Pinheiro.

    Coorientadora: Prof.ª Dr.ª Fernanda Fernandes Gurgel.

    1. Agroecologia - Tese. 2. Contexto Rural - Tese. 3. Relação

    com o Lugar - Tese. 4. Psicologia Ambiental - Tese. 5. Relação

    Pessoa-Ambiente - Tese. I. Pinheiro, José de Queiroz. II. Título.

    RN/UF/BS-CCHLA CDU 661.15

  • ii

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

    CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

    PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

    A tese intitulada “Rompendo cercas, construindo saberes: trabalho agroecológico, vivências e

    (re)siginificações nas relações com o lugar”, elaborada por Leonardo Victor de Sá Pinheiro,

    foi considerada APROVADA por todos os membros da Banca Examinadora e aceita pelo

    Programa de Pós-Graduação em Psicologia, como requisito parcial à obtenção do título de

    DOUTOR EM PSICOLOGIA.

    BANCA EXAMINADORA

    Prof. Dr. José de Queiroz Pinheiro

    (Orientador/Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN)

    Profa. Dra. Fernanda Fernandes Gurgel

    (Coorientadora/Faculdade de Ciências da Saúde do Trairi – FACISA/UFRN)

    Prof. Dr. Washington José de Sousa

    (Membro/Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN)

    Prof. Dr. Gustavo Martineli Massola

    (Membro/Universidade de São Paulo - USP)

    Profª. Dra. Ana Paula Soares da Silva

    (Membro/Universidade de São Paulo – USP/RP)

    Prof. Dr. Tadeu Mattos Farias

    (Membro/Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN)

  • iii

    “Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de

    hábito como coisa natural, pois em tempos de desordem

    sangrenta, de confusão inconsciente, de humanidade

    desumanizada, nada deve parecer natural, nada deve

    parecer impossível de mudar”

    Bertolt Brecht

  • iv

    Ao meu filho, Miguel, e minha

    esposa, Thyciane, pelo carinho e

    compreensão das horas roubadas do

    convívio de vocês.

  • v

    AGRADECIMENTOS

    Sempre achei os agradecimentos uma das partes mais difíceis de se escrever, especialmente

    nesta tese. Talvez porque, ao longo desses quatro anos de doutorado, tantas pessoas

    maravilhosas fizeram parte dessa trajetória, que corro o sério risco de esquecer alguém. Durante

    esse tempo, apesar de saber que não seria fácil, poder contar com elas tornou tudo incrivelmente

    mais leve e acolhedor.

    Assim, não poderia iniciar meus agradecimentos de outra maneira que não fosse agradecendo

    à Deus pela sua importância em toda minha vida. Nos momentos em que conversávamos

    baixinho, sabia que, de maneira sublime, sempre estava presente ao meu lado para inspirar e

    iluminar meus (des)caminhos. À Ele, meu muito obrigado!

    Ao meu filho, Miguel, que no meio do período de doutorado chegou na minha vida para

    preenchê-la de descobertas e emoções. Obrigado, filho, por me ensinar tanto e me levar com

    você nessa jornada de descobrir o mundo. Essa caminhada ganhou muito mais sentido com

    você ao meu lado. Vamos juntos. Sempre!

    À minha esposa, Thyciane, por fazer do meu mundo uma vida linda de se viver. Diante de todas

    as dificuldades que foram surgindo ao longo desses anos de doutorado, especialmente em

    relação aos momentos de cansaço, trocas de fraldas e noites mal dormidas é impossível

    descrever o quanto você me dava forças, energia e ajudava a seguir sempre em frente. Te amo!

    Ao meu pai, Ernani (in memoriam), e minha mãe, Maria José, pelo amor e incentivo à

    curiosidade. Obrigado pelos conselhos, dedicação e por estarem sempre ao meu lado. Por saber

    que sempre posso contar e serem os exemplos a quem me inspirar. Com vocês aprendi o que

    nenhuma universidade poderia me ensinar.

  • vi

    As minhas irmãs, Eveline (in memoriam), Ana Paula e Cibelli, pelos bons momentos divididos,

    pela demonstração de carinho e orgulho de minhas conquistas. Vocês são as melhores amigas

    que um irmão poderia ter. Obrigado pela torcida e por se fazerem tão presentes em minha vida.

    O amor recebido nos mais simples gestos expressos em sorrisos e abraços me davam impulso

    para continuar.

    As minhas sobrinhas, Ana Clara e Isabela, pela alegria e carinho com que sempre me recebiam

    nas idas à Fortaleza. Estar com vocês era fundamental para “recarregar as baterias”. A gratidão

    também se estende ao meu cunhado, Ricardo, pela tranquilidade e paciência de escutar meus

    desabafos nas horas de dificuldades.

    Além da minha família, agradeço ao Zé, pela serenidade e a forma acolhedora com que me

    recebeu como “forasteiro” a desbravar esse novo mundo. Resumi-lo como orientador é pouco,

    ainda mais diante de tantas palavras amigas e o imenso carinho com que ouviu e aconselhou

    meus momentos de ansiedade e aflição. Obrigado pelo incentivo, confiança e pelo privilégio de

    ter recebido sua orientação. Exemplo de sabedoria, pessoa e pesquisador, sua paciência e

    compreensão foram fundamentais durante todo esse processo.

    Por também fazer parte desta construção, agradeço à Fê, pela amizade, incentivo e apoio com

    que acompanhou o desenvolvimento deste trabalho. Obrigado por ser essa pessoa incrível, por

    mostrar caminhos e me ajudar a construir “pontes”. Sua disponibilidade e sensibilidade diante

    dos desafios que surgiram foram essenciais. A atenção e dedicação ao ler o texto e discutir as

    ideias de forma tão apaixonante trouxeram novos rumos e valiosas contribuições.

    Também tenho muito a agradecer à Ana Paula, Gustavo, Washington e Tadeu, que aceitaram

    fazer parte da banca desta tese. Obrigado pela disposição em ler, comentar e trazer

    considerações tão valiosas ao desenvolvimento deste trabalho.

  • vii

    Expresso também meus agradecimentos aos amigos(as) do GEPA (Grupo de Estudos Inter-

    Relação Pessoa-Ambiente) - Gleice, Hellen, Claudinha, Dandara, Lorena, Cíntia, Alexandra,

    Marina, Luana, Natálya, Luciana, Juliana’s, Larissa, Giselli, Pedro, Daniel, Cecília e July -

    pelas reflexões enriquecedoras, pelas risadas descomprometidas e por fazerem parte de forma

    tão especial da minha história em Natal. Sem a ajuda de vocês certamente não teria dado conta.

    E por falar em amigos, tenho muito a agradecer a cada um dos amigos(as) do GEMI (Grupo de

    Estudos Melancia Insurgente) - Raquel, Fernanda, Tadeu, Guilherme e Emerson - por me ajudar

    no processo de (des)construção e amadurecimento como pesquisador e ser humano. Obrigado

    pelos churrascos repletos de discussões calorosas que poderiam mudar o mundo, caso

    lembrássemos delas no dia seguinte. É muito bom poder construir minha história com vocês.

    Aos amigos(as) de Fortaleza, Natal e Piauí que, direta ou indiretamente, acompanharam o

    processo de construção deste trabalho. Obrigado por estarem presentes nos bons momentos e

    por emprestarem os ombros naqueles mais difíceis. A torcida de vocês foi fundamental!

    Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPgPsi), que com seus

    conhecimentos transmitidos durante as disciplinas contribuíram de forma relevante para a

    elaboração deste estudo. Às coordenadoras do PPgPsi, Izabel e Ilana, por fazerem deste

    programa um lugar acolhedor, de afeto e muito orgulho. Também não posso deixar de agradecer

    à Lizianne e ao Bruno, que sempre estavam disponíveis na secretaria para as mais variadas

    dúvidas e por terem sido tão importantes durante esses anos.

    Aos moradores do Assentamento Canto da Ilha de Cima, que gentilmente abriram as portas das

    suas casas e me acolheram tão bem. Obrigado pelos ensinamentos, por compartilharem suas

    histórias de vida e por terem colaborado de maneira única com a construção dessa tese. A todos

    vocês, meu muito obrigado!

  • viii

    Às organizações governamentais e não governamentais que também contribuíram por meio das

    informações a respeito das ações Agroecológicas desenvolvidas no estado no Rio Grande do

    Norte, em especial na cidade de São Miguel do Gostoso. Obrigado!

    Por fim, agradeço à Universidade Federal do Piauí (UFPI) pelo apoio concedido com o

    afastamento para qualificação e realização do doutorado. Espero poder retribuir aos alunos e à

    instituição os conhecimentos adquiridos durante esses anos.

    E foi assim. Das músicas que faziam viajar aos cheiros que permitiam lembrar. Do medo que

    fazia chorar à ansiedade que impulsionava o caminhar. Foi cercado de momentos e pessoas tão

    especiais que esta tese ganha importância que vai muito além das páginas escritas a seguir.

    Foi bom! Foi bom do jeito que foi e do jeito que deveria ser.

    Pelo amor e carinho recebido em um dos momentos mais incríveis da minha vida,

    À todos(as) vocês, o meu muito, muito obrigado!

  • ix

    Sumário

    Resumo ............................................................................................................................... xii

    Abstract ............................................................................................................................. xiii

    Resumen ............................................................................................................................ xiv

    Apresentação ...................................................................................................................... 15

    Introdução .......................................................................................................................... 19

    1. O que alimentamos quando nos alimentamos? ............................................................. 28

    1.1. O veneno nosso de cada dia: a polêmica dos agrotóxicos ........................................................28

    1.1.1. Precedentes históricos ..........................................................................................................28

    1.1.2. O veneno do campo à mesa: onde vamos parar? ...................................................................36

    1.2. A crise agroalimentar e a dinâmica capitalista .........................................................................40

    1.3. Agroecologia: uma alternativa em expansão ...........................................................................45

    2. A psicologia ambiental e o (vi)ver rural ........................................................................ 51

    2.1. Da cidade ao campo: um olhar para as ruralidades ..................................................................51

    2.2. A psicologia e o contexto rural ...............................................................................................62

    2.3. Psicologia ambiental e ruralidades: uma aproximação em andamento ....................................69

    3. As relações das pessoas com os ambientes..................................................................... 72

    3.1. A relação com o lugar na Psicologia Ambiental ......................................................................73

    3.2. A relação com o lugar em contextos rurais e áreas agrícolas ....................................................82

    3.3. O vínculo ao lugar e a relação com a natureza: quem cuida, ama? ...........................................86

    4. (Re)colhendo saberes e preparando a bagagem ............................................................ 91

    4.1. Descobrindo caminhos: a aproximação do campo ...................................................................92

    4.2. São Miguel do Gostoso: “onde o vento faz a curva” ................................................................94

    4.3. Caminhando pelo assentamento Canto da Ilha de Cima: um lugar no mundo .........................100

    4.4. Objetivos da investigação .....................................................................................................107

    5. O caminho ao caminhar ............................................................................................... 111

  • x

    5.1. O olhar de partida .................................................................................................................112

    5.2. O processo de construção dos dados .....................................................................................115

    5.2.1. Colocando as mãos na terra ...............................................................................................116

    5.2.2. A conversa na varanda .......................................................................................................117

    5.2.2.1 Com quem o “dedo de prosa” acontece ............................................................................118

    5.2.2.2 O rumo da conversa .........................................................................................................119

    5.3. Analisando as informações ...................................................................................................120

    6. Raízes e trajetórias: descortinando as relações pessoa - ambiente ............................. 123

    6.1. Rompendo cercas: por um lugar para chamar de “meu” ........................................................123

    6.2. Vivendo na/da terra ..............................................................................................................129

    6.3. “Somos todos uma família só” ..............................................................................................135

    6.4. O Assentamento e suas distintas territorialidades ..................................................................140

    6.5. Natureza como alimento para o corpo e alma ........................................................................145

    6.6. Olhares do cotidiano: sociabilidades no lugar .......................................................................149

    6.7. Da invisibilidade ao protagonismo feminino no lugar ...........................................................159

    6.8. Transformações socioespaciais e a desapropriação do lugar ..................................................166

    7. Considerações: caminhos e possibilidades .................................................................. 177

    Referências ....................................................................................................................... 186

    Apêndice A ....................................................................................................................... 203

    Apêndice B ....................................................................................................................... 204

    Apêndice C ....................................................................................................................... 206

    Apêndice D ....................................................................................................................... 211

    Apêndice E ....................................................................................................................... 230

    Anexo A ............................................................................................................................ 231

  • xi

    LISTA DE FIGURAS

    Figura 1. Sede das 10 maiores empresas de agrotóxicos do mundo. ...................................... 34

    Figura 2. Evolução do consumo de fertilizantes no Brasil, 1950 - 2016. ............................... 35

    Figura 3. Modelo tripolar de apego ao lugar. ........................................................................ 83

    Figura 4. Localização do município de São Miguel do Gostoso/RN. .................................... 95

    Figura 5. Prática esportiva de natureza náutica. .................................................................... 96

    Figura 6. Parques eólicos no litoral de São Miguel do Gostoso ............................................. 97

    Figura 7. Feira livre de São Miguel do Gostoso. ................................................................... 99

    Figura 8. Localização do assentamento Canto da Ilha de Cima/RN. ................................... 100

    Figura 9. Produtores agroecológicos do assentamento. ....................................................... 103

    Figura 10. Sede da associação de mulheres da ‘Vest Gostoso’. ........................................... 105

    Figura 11. Mulheres da Associação Vest Gostoso .............................................................. 105

    Figura 12. Parques eólicos ao redor do assentamento. ........................................................ 106

    Figura 13. Área de plantação convencional. ....................................................................... 141

    Figura 14. Área para prática esportiva e festa ..................................................................... 151

    Figura 15. Réplica do Marco do Descobrimento. ................................................................ 155

    Figura 16. Parque eólico ao redor do Assentamento Canto da Ilha. ..................................... 167

    Figura 17. Incêndio no aerogerador da comunidade de Baixinho dos Franças. .................... 170

  • xii

    Resumo

    Nas últimas décadas, a utilização indiscriminada de agrotóxicos na produção de alimentos vem

    causando crescente preocupação em diversas partes do mundo. Contrapondo-se ao

    desenvolvimento hegemônico baseado na monocultura químico-dependente, a agroecologia

    estimula o cultivo sem a utilização de substâncias químicas e com base nos princípios da

    sustentabilidade, visando uma produção ambientalmente correta, socialmente justa e

    economicamente viável. Assim, o padrão produtivo pode definir modificações expressivas no

    contexto ambiental, podendo influenciar na relação do agricultor com a terra, tanto em termos

    da elaboração de sua história, como na construção de laços identitários e na produção de

    subjetividades. Nessa perspectiva, a relação com o lugar pode desempenhar um importante

    papel na forma como o produtor rural pode ser emocionalmente ligado à sua terra e à

    comunidade à qual pertence, servindo como relevante meio de compreensão das práticas de

    cuidado e preservação da natureza. Diante disso, esta pesquisa tem como objetivo geral

    investigar a natureza da relação com o lugar, a partir das vivências de produtores agroecológicos

    de uma comunidade rural localizada na zoa rural do estado do Rio Grande do Norte. Para isso,

    foi adotada uma abordagem qualitativa, de inspiração etnográfica, cujos dados foram

    construídos por meio da realização de observação participante e entrevistas semiestruturadas.

    O corpus construído foi analisado com base na análise de conteúdo temática, de lógica

    interpretativista, utilizando-se o auxílio do software ATLAS.ti. Os resultados do estudo

    demonstram diferentes aspectos da relação dos agricultores com o lugar, revelando um vínculo

    multidimensional formado por variadas formas de relações dos participantes investigados.

    Estes, por sua vez, passaram a ser caracterizados por tipos particulares de apropriações (social,

    física, territorial, do trabalho e da natureza), que dependiam das trajetórias de vida, das

    alterações no ambiente e das relações socioeconômicas e ambientais estabelecidas. Também

    foram observados diferentes posicionamentos nas formas de ser, trabalhar e viver,

    impulsionando novas formas de relação e (re)significação do lugar, materializadas no gostar de

    morar e no desejo de permanecer morando no lugar. A pesquisa trata o tema além das fronteiras

    disciplinares, apresentando a contribuição da Psicologia Ambiental para que novos olhares

    sejam lançados na discussão sobre o contexto rural e novas reflexões sejam afloradas para um

    desenvolvimento agrícola mais sustentável.

    Palavras-chave: Agroecologia; Contexto Rural; Relação com o Lugar; Psicologia Ambiental;

    Relação Pessoa-Ambiente.

  • xiii

    Abstract

    In recent decades, the indiscriminate use of pesticides in food production has been causing

    growing concern in many parts of the world. In opposition to hegemonic development based

    on chemical-dependent monoculture, agroecology stimulates the cultivation without the use of

    chemical substances and based on the principles of sustainability, aiming at an environmentally

    correct, socially just and economically viable production. Thus, the productive pattern can

    define significant changes in the environmental context, and may influence the farmer's

    relationship with the land, both in terms of the elaboration of its history, as well as in the

    construction of identity ties and the production of subjectivities. In this perspective, the

    relationship with the place can play an important role in the way the rural producer can be

    emotionally connected to his land and the community to which he belongs, serving as a relevant

    means of understanding the practices of care and preservation of nature. In view of this, this

    research has a general objective to investigate the nature of the relationship with the place, from

    the experiences of agroecological producers of a rural community located in the rural zone of

    the state of Rio Grande do Norte. For this, a qualitative, ethnographic-inspired approach was

    adopted, whose data were constructed through participant observation and semi-structured

    interviews. The constructed corpus was analyzed based on the analysis of thematic content, of

    interpretative logic, using the aid of the software ATLAS.ti. The results of the study

    demonstrate different aspects of the farmers' relationship with the place, revealing a

    multidimensional link formed by various forms of relations of the investigated participants.

    These, in turn, came to be characterized by particular types of appropriations (social, physical,

    territorial, labor and nature), which depended on the life trajectories, changes in the

    environment and established socioeconomic and environmental relations. Different positions

    were also observed in the ways of being, working and living, impelling new forms of relation

    and (re) signification of the place, materialized in liking to live and in the desire to remain living

    in the place. The research deals with the theme beyond the disciplinary boundaries, presenting

    the contribution of Environmental Psychology so that new perspectives are thrown into the

    discussion about the rural context and new reflections are raised towards a more sustainable

    agricultural development.

    Keywords: Agroecology; Rural Context; Relationship with the Place; Environmental

    Psychology; Relationship between Person and Environment.

  • xiv

    Resumen

    En las últimas décadas, la utilización indiscriminada de agrotóxicos en la producción de

    alimentos viene causando creciente preocupación en diversas partes del mundo. La

    agroecología estimula el cultivo sin la utilización de sustancias químicas y con base en los

    principios de la sostenibilidad, buscando una producción ambientalmente correcta, socialmente

    justa y económicamente viable, contraponiéndose al desarrollo hegemónico basado en el

    monocultivo químico dependiente. Así, el patrón productivo puede definir modificaciones

    expresivas en el contexto ambiental, pudiendo influenciar en la relación del agricultor con la

    tierra, tanto en términos de la elaboración de su historia, como en la construcción de lazos

    identitarios y en la producción de subjetividades. En esta perspectiva, la relación con el lugar

    puede desempeñar un importante papel en la forma como el productor rural puede ser

    emocionalmente ligado a su tierra y a la comunidad a la que pertenece, sirviendo como relevante

    medio de comprensión de las prácticas de cuidado y preservación de la naturaleza. En este

    sentido, esta investigación tiene como objetivo general investigar la naturaleza de la relación

    con el lugar, a partir de las vivencias de productores agroecológicos de una comunidad rural

    ubicada en la zoa rural del estado del Rio Grande do Norte. Para ello, se adoptó un enfoque

    cualitativo, de inspiración etnográfica, cuyos datos fueron construidos por medio de la

    realización de observación participante y entrevistas semiestructuradas. El corpus construido

    fue analizado con base en el análisis de contenido temático, de lógica interpretativista,

    utilizando la ayuda del software ATLAS.ti. Los resultados del estudio demuestran diferentes

    aspectos de la relación de los agricultores con el lugar, revelando un vínculo multidimensional

    formado por variadas formas de relaciones de los participantes investigados. Estos, a su vez,

    pasaron a ser caracterizados por tipos particulares de apropiaciones (social, física, territorial,

    del trabajo y de la naturaleza), que dependían de las trayectorias de vida, de las alteraciones en

    el ambiente y de las relaciones socioeconómicas y ambientales establecidas. También se

    observaron diferentes posicionamientos en las formas de ser, trabajar y vivir, impulsando

    nuevas formas de relación y (re)significación del lugar, materializadas en el gusto de vivir y en

    el deseo de permanecer viviendo en el lugar. La investigación trata el tema más allá de las

    fronteras disciplinarias, presentando la contribución de la Psicología Ambiental para que

    nuevas miradas sean lanzadas en la discusión sobre el contexto rural y nuevas reflexiones sean

    afloradas para un desarrollo agrícola más sostenible.

    Palabras clave: Agroecología; Contexto rural; Relación con el lugar; Psicología Ambiental;

    Relación Persona-Ambiente.

  • 15

    Apresentação

    Potencialmente, a elaboração desta apresentação me faz pensar o quão se faz importante

    uma reflexão das ações que motivaram a trajetória deste trabalho, além de guiar os desafios que

    ainda estão por vir após o doutorado. Esta tese nasce e se desenvolve diante de um contínuo

    processo de (des)construção, nascendo também, durante o seu desdobramento, um novo aluno,

    professor, pesquisador, marido, pai e, porque não, um novo ser humano. Em meio a tantas

    mudanças ocorridas nesses quatro anos, poder falar sobre os caminhos, contratempos, tropeços

    e erguidas que fazem parte desta caminhada é, sem dúvida, uma oportunidade fascinante.

    Recordar o passado não é algo simples, mesmo que não esteja lá tão distante. Ao trazer

    de volta algumas lembranças, me dou conta que a curiosidade pelas questões ambientais entrou

    na minha vida ainda durante a graduação em Administração, como bolsista de iniciação

    científica, ao investigar as práticas socioambientais das indústrias do estado do Ceará. Além

    disso, durante esse período, também tive a oportunidade de trabalhar em uma multinacional,

    sendo um dos responsáveis pelo processo de treinamento e certificação ambiental ISO 14.001.

    Ao relembrar tais fatos que ficaram guardados, percebo que foi através dessas experiências

    vividas que a curiosidade e o interesse pelas relações humano-ambientais começaram a surgir.

    Apesar disso, foi somente durante o mestrado em Administração que a Psicologia

    Ambiental (PA) entrou na minha vida. Dentre as publicações utilizadas como referência para a

    construção da dissertação, os artigos do, até então distante, professor Dr. José Pinheiro (Zé),

    constituía boa parte delas. Na ocasião, investiguei o comportamento ecológico de futuros

    gestores e a forma como a educação ambiental era inserida (quando era) nos cursos de

    Administração. Para isso, adotei uma perspectiva essencialmente positivista, visando

    contemplar o que, naquela época, me parecia o bastante.

  • 16

    Com o término do mestrado, a maturidade e experiência como professor despertou o

    desejo em aprender novas formas de viver e experienciar a pesquisa científica, me fazendo

    romper algumas barreiras pessoais e institucionais à procura de novos conhecimentos. Resolver

    desbravar novos caminhos ao cursar o doutorado na área de Psicologia, e aprofundar os

    conhecimentos em PA, seria um dos meus grandes desafios.

    Para isso, navegar por territórios movediços foi preciso, mas não foi fácil, confesso! Por

    vezes me encontrei/encontro permeado por questionamentos e conflitos paradigmáticos, crises

    onto-epistemológicas e indecisões teóricas que ainda não sei ao certo quando (ou se um dia)

    vou conseguir superar. Mas, afinal, também não é para isso que se objetiva uma formação de

    doutorado? Poder entender que as certezas que nos acompanharam durante anos podem ser

    revistas, atualizadas, transformadas e, quem sabe, rejeitadas. Por que não?

    Os caminhos dessas reflexões levam, portanto, ao contexto de desenvolvimento deste

    trabalho, que assume uma imensa diversidade de configurações na medida em que diferentes

    saberes vão sendo descortinados. Ao ser provocado e instigado a analisar à questão alimentar

    pelas lentes da PA, resolvo iniciar esse estudo com o direcionamento voltado para as empresas

    e os consumidores de alimentos orgânicos. Por ser consumidor desse tipo de alimento,

    acreditava, até então, que entender esse mercado promissor poderia ser a minha contribuição.

    Nada mais natural, afinal, para um administrador formado pelos princípios de que o lucro é a

    mola propulsora que movimenta e alimenta (nas suas mais variadas concepções) o mundo.

    Por sorte, após as primeiras investidas teóricas e de campo, percebo que continuava a

    olhar meu universo de pesquisa com as mesmas “lentes” de antes, tendo trocado somente a

    “armação”. Por mais que eu mudasse de área e quisesse sair da tão conhecida “zona de

    conforto”, ela, de alguma forma, ainda continuava lá. Assim, enquanto procurava motivos que

  • 17

    justificassem as razões da minha escolha, algumas inquietações se faziam cada vez mais

    presentes, aumentando à medida em que aprofundava as leituras sobre o tema.

    Em meio aos desconfortos encontrados, a forma “romantizada” e superficial de como

    alguns estudos abordam os agricultores que transitam do cultivo convencional para o

    agroecológico conduz para o entendimento de uma, quase que automática, consciência

    ambiental. Somado a isso, o processo de “gourmetização” desse tipo de alimento acaba

    priorizando a perspectiva do consumidor em detrimento do produtor, que perde cada vez mais

    espaço nessas discussões.

    Outro aspecto relevante que motivou a escrever esta tese é a “onda” de obras,

    principalmente internacionais, sobre a relação das pessoas com os lugares. Quase sempre

    abordada com moradores de áreas urbanas e através de perspectivas positivistas, a literatura da

    área pouco tem investigado as populações rurais, suas particularidades e as implicações que o

    trabalho pode acarretar na vinculação com o ambiente. Nesse sentido, tais provocações me

    instigavam novas reflexões, que foram disparadoras e determinantes para a realização deste

    estudo.

    Ao permanecer por um período de alguns meses explorando a literatura que abordava,

    mesmo que tangencialmente, essas questões, pude observar uma riqueza muito grande de

    práticas em torno da agroecologia e da relação pessoa-ambiente que não poderiam ser deixadas

    de lado. Assim, com o objetivo de “dar voz” a esses agricultores, protagonistas das suas próprias

    histórias, resolvi investigar em maior profundidade como a transição para o cultivo

    agroecológico pode se relacionar com o processo de (re)significação do lugar, influenciando a

    forma como esses produtores realmente percebem e vivem no (e com o) ambiente.

    Ao me deparar com uma realidade completamente nova, procuro “costurar” os

    elementos que fazem sentido na construção desse tecido social, em que a relação, ou mais

  • 18

    precisamente a interação com o lugar se faz de fundamental relevância. Nesse contexto, a

    análise das interações pessoa-ambiente aparece como uma espécie de “agulha” que costura o

    “tecido” composto pelas relações voltadas ao trabalho agroecológico e o lugar. Sendo assim,

    esta pesquisa vai se desenvolvendo e criando novos direcionamentos, cheiros, formas, cores e

    sabores à medida que as conexões são costuradas em uma nova perspectiva de compreensão e

    entendimento.

    Diante do exposto, é nesse percurso de contínua transformação que acredito que a

    realização deste estudo ocupa um importante lugar na contribuição dos estudos da Psicologia

    Ambiental. Para isso, nos próximos capítulos, apresento uma análise das teorias e das narrativas

    que coleto durante minha inserção no campo.

    Neste momento, minha procura no percurso dessa trajetória, reconhecendo mundos que

    nasciam a cada fase vivida, fazem entender os variados desafios vividos e, claro, os que ainda

    estão por vir.

    Boa Leitura!

  • 19

    Introdução

    Há tempos que a forma de cultivo dos alimentos deixou de ser vista como processo de

    interesse apenas do agricultor. Ao contrário, sua importância tem se mostrado cada vez mais

    em evidência, sendo refletida no aumento da abordagem sobre os problemas associados à

    produção, consumo, saúde e meio ambiente. Considerada uma das formas mais antigas de

    intervenção do ser humano na natureza, os problemas relacionados à agricultura estão cada vez

    mais em destaque nas discussões políticas, acadêmicas e corporativas, deixando de ser do

    interesse apenas de agrônomos e ecologistas e ganhando espaço de discussão entre governos,

    organizações e sociedade.

    Nas últimas décadas, a utilização indiscriminada de agrotóxicos na produção de

    alimentos vem causando crescente preocupação em diversas partes do mundo. A crítica ao

    desenvolvimento hegemônico baseado na agricultura químico-dependente aumenta à medida

    que pesquisas e informações demonstram efeitos nocivos da utilização de agrotóxicos à saúde

    humana e ao ambiente, tratando, portanto, esses problemas como temas importantes a serem

    investigados.

    Contrapondo-se ao modelo de produção agrícola dominante e na tentativa de resgatar

    um tempo em que ainda era possível ter à mesa alimentos naturais e de boa qualidade, um novo

    mercado é impulsionado pela crescente demanda de consumidores que procuram alternativas

    para uma alimentação mais saudável, sem agredir a natureza. Mostrando-se cada vez mais

    estratégico e promissor, o cultivo agroecológico estimula a plantação sem a utilização de

    agrotóxicos e com base nos princípios da sustentabilidade, visando uma produção

    ambientalmente correta, socialmente justa e economicamente viável. Observa-se assim,

    conforme Leff (2009), “uma forma de sobrevivência do passado no presente, a construção de

  • 20

    novas identidades e a construção de novas utopias que reorientam o mundo para alternativas

    futuras” (p. 343).

    É indiscutível que a sobrevivência humana está diretamente relacionada com meio

    ambiente natural, fazendo-se necessário um equilíbrio entre a produção de alimentos, o

    consumo e a capacidade de renovação da natureza. Esse equilíbrio, aparentemente óbvio, nem

    sempre parece ser compreendido e traduzido em ações voltadas à conservação dos recursos

    naturais, sendo ainda um desafio para os que estudam e/ou almejam uma agricultura mais

    sustentável.

    Atualmente, o Brasil ocupa a indesejável posição de maior consumidor de agrotóxicos

    do mundo, ultrapassando a marca de 1 milhão de toneladas por ano, o que equivale a um

    consumo médio de mais de 5 kg de veneno agrícola por habitante (INCA, 2015).

    Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que é o país que mais utiliza agrotóxicos em sua

    plantação (Carneiro, Augusto, Rigotto, Friedrich, & Búrigo, 2015), revela-se como o país mais

    promissor do mundo no cultivo agroecológico, tendo em vista a diversidade geográfica,

    ambiental e climática das suas regiões. Essa dicotomia propõe uma reflexão sobre o conflito de

    interesses existente entre as organizações produtoras e fornecedoras de substâncias químicas e

    os impactos provocados à sociedade que, ao produzir e consumir alimentos contaminados,

    caminham para um futuro incerto e nebuloso. Nessa perspectiva, Carson (1962/2010) enfatiza

    que “pela primeira vez na história do mundo, agora todo ser humano está sujeito ao contato

    com substâncias químicas perigosas, desde o instante em que é concebido até sua morte” (p.

    29).

    Ao buscar romper com bloqueios impostos pelo regime de cultivo hegemônico, a

    agroecologia surge, portanto, como uma proposta alternativa para minimizar os problemas

    ocasionados pela modernização da agricultura, buscando, dentre outras coisas, denunciar os

  • 21

    efeitos do agronegócio e conquistar uma maior autonomia dos agricultores. Para Zamberlam e

    Froncheti (2012) “a questão agroecológica nos coloca novos desafios na relação, na inter-

    relação e na dialogação não só entre o homem e a natureza, mas com todas as coisas existentes”

    (p. 7). Ainda de acordo com os autores, é notório que o sistema sócio-econômico-político ligado

    ao modo de produção capitalista da atualidade, ao predominar o modelo industrial de produção

    agrícola e de desenvolvimento sustentável, é um dos principais responsáveis pela crise

    socioambiental da agricultura, estendendo seus efeitos tanto para o campo como para as

    cidades.

    Desse modo, Castro Neto, Denusi, Rinaldi e Staduto (2010) acreditam que “as mudanças

    exigidas para a preservação do meio ambiente relacionadas à produção agrícola deverão

    privilegiar as relações do homem com o campo e o meio ambiente, trazendo benefícios à

    comunidade rural” (p. 75). Diante da crescente necessidade de produção de alimentos, a

    agricultura tem se mostrado um fator importante na modificação desses espaços naturais, tendo

    o trabalhador rural um papel fundamental nessa transformação.

    Nessa perspectiva, Fluck e Brandenburg (2016) e Fonini (2012) investigaram como a

    introdução de um sistema agroecológico de cultivo influenciou na transformação das relações

    com o ambiente e entre os habitantes de uma comunidade quilombola, destacando a relação

    com a natureza, as práticas de conservação e preservação ambiental, bem como a contribuição

    para um processo de ressignificação do rural. Os autores identificaram que os agricultores

    passaram a ocupar papel central na constituição de um rural socioambiental, destacando uma

    maior autonomia no papel das mulheres e uma ligação mais profunda nas relações humano-

    ambientais.

    Segundo Leite e Dimenstein (2013), esses atores sociais apresentam importante relação

    com a terra, tanto em termos da elaboração de sua história - vivendo e trabalhando - como na

  • 22

    construção de laços identitários e na produção de subjetividades. Através do modelo

    hegemônico de produção, a agricultura moderna passa a ser diretamente ligada aos problemas

    ambientais, sendo seus agricultores conhecidos por serem poluidores significativos do ambiente

    (Michel-Guillou & Moser, 2006). Tendo em vista a particular relação com a natureza e o papel

    social da profissão, esses agricultores são alvos de múltiplas pressões internas e externas, o que

    leva alguns a adotarem práticas de comportamentos pró-ecológicos na produção (Jollivet,

    2001). Observa-se, assim, que o padrão produtivo pode definir modificações expressivas no

    lugar de cultivo, influenciando na relação do agricultor com o ambiente.

    De forma específica, o contexto rural pode apresentar particularidades ainda maiores no

    entendimento dessa relação. Saforcada (2015, p. 45) afirma que “os seres humanos do ambiente

    rural e do ambiente urbano percebem o tempo de forma diferente, possuem uma cosmovisão

    diferente, possuem uma relação com a natureza diferente”. Assim, ao ser considerado como um

    espaço plural, constituído por um processo dinâmico de constante reestruturação, o ambiente

    rural passa a absorver diferentes modos de identificação e de afiliação com o território. Destaca-

    se, segundo Wanderley (2001), a necessidade de se investigar os valores e as práticas sociais

    da população rural, uma vez que estes podem intensificar ainda mais o sentimento de

    pertencimento a um lugar e de identidade territorial.

    O vínculo do agricultor com o campo foi abordado por Kunert (2012) ao enfatizar que

    a relação com o lugar pode ser ainda mais forte em áreas agrícolas, já que estas funcionam como

    um componente econômico e social integral para uma comunidade local, sendo, desse modo,

    importante o laço e a fixação do homem à terra. Para o autor, tal relação é abordada como uma

    espécie de apego ao lugar, que, por sua vez, pode “desempenhar um importante papel na forma

    como o agricultor pode ser emocionalmente ligado à sua terra e à comunidade a que pertence”

    (Kunert, 2012, p. 22). Nesse aspecto, Burholt e Naylor (2005) acreditam que a taxonomia do

  • 23

    apego ao lugar proporciona uma estrutura flexível para a diferenciação pela comunidade,

    desempenhando, portanto, um papel relevante na auto-identidade e servindo como fonte vital

    de significado emocional e experiencial do indivíduo.

    Apesar do crescente interesse de pesquisas que investigam o vínculo ao lugar, ainda são

    poucos os estudos que analisam essa ligação em contextos rurais (Raymond, Brown, & Weber,

    2010; Takashi & Selfa, 2015; Walker & Ryan, 2008) e procuram compreender sua influência

    no cuidado de conservação e prática agrícola (Gosling & Williams, 2010; Lokocz, Ryan, &

    Sadler, 2011; Morgan et al., 2015; Mullendore, Ulrich-Schad, & Prokopy, 2015; Vaske &

    Kobrin, 2001), não apresentando, portanto, esta associação de forma nítida e bem definida

    (Lincoln & Ardoin, 2015; Scannell & Gifford, 2010b).

    Embora haja poucas pesquisas que investiguem especificamente a perspectiva de

    agricultores agroecológicos e sua relação com o lugar, estudos empíricos sugerem que os

    vínculos relacionados ao lugar como, por exemplo, identidade, sentido e apego ao lugar, estão

    envolvidos de alguma forma com práticas agrícolas sustentáveis, preservação e cuidado

    ambiental (Anderson, Williams, & Ford, 2013; Lincoln & Ardoin, 2015). De acordo com

    Lincoln e Ardoin (2015), as investigações existentes abordaram apenas tangencialmente as

    práticas ambientais e socialmente benéficas realizadas pelos agricultores e a relação com o

    lugar. Nesse sentido, a agricultura pode, portanto, “envolver uma complexa interface entre as

    influências particulares, sociais, financeiras e ambientais” (Morgan, Hine, Bhullar, & Loi,

    2015, p. 36), resultando em um conjunto único de desafios.

    As pesquisas que investigam a relação das pessoas com os lugares adotam muitas vezes

    um caráter estrutural, “negligenciando a natureza dinâmica dessas relações ao longo do tempo”

    (Bailey, Devine-Wright & Batel, 2016, p.200). Assim, ao considerar que a forma de inserção

    na relação com a terra pode ser diversificada (Leite, 2015), conhecer essas relações pode

  • 24

    proporcionar subsídios para entender as cognições e afetos dos produtores agroecológicos com

    o campo e a natureza, que, direta e indiretamente, orientam suas práticas cotidianas, além de

    poder contribuir para a elaboração de propostas para um desenvolvimento rural e agrícola mais

    sustentável.

    O presente estudo contribui para uma literatura emergente dentro da Psicologia

    Ambiental (PA), investigando as múltiplas relações estabelecidas com o lugar, o contexto rural,

    as formas de cultivo agrícola e os significados atribuídos ao uso da terra (Anderson, Williams,

    & Ford, 2013; Lincoln & Ardoin, 2015). Somado a isso, diante da sua tradição de ciência e

    profissão eminentemente urbana, procura-se também pluralizar o debate em torno de uma

    Psicologia voltada para o contexto rural, uma vez que a área se volta quase que exclusivamente

    para as grandes cidades (Landini, 2015). Da mesma forma, a Psicologia Ambiental (PA)

    também se apresenta de maneira tímida nas reflexões e debates em relação ao meio rural, sendo

    esse contexto ainda pouco explorado em seus estudos (Méndez, 2015).

    No intuito de não reforçar o privilégio dado a temas do urbano em detrimento do rural,

    faz-se necessária a realização de mais pesquisas e informações que comtemplem as

    particularidades da agricultora familiar rural e sua relação com o ambiente, principalmente

    diante das problemáticas da atualidade como, por exemplo, segurança alimentar, crise hídrica,

    mudanças climáticas, transgenia, dentre outras. Ademais, a PA também pode contribuir para a

    investigação das formas como esses trabalhadores compreendem, sentem e vivenciam as

    questões ambientais (Itelson, Proshansky, Rivlin, & Winkel, 1974), introduzindo abordagens

    que permitam direcionar para uma melhor compreensão da relação pessoa-ambiente.

    Ao entender que as relações sociais e as subjetividades deixam de ser consideradas como

    externalidades na construção de um novo contexto rural (Cruz-Souza, 2011), a PA procura se

    aproximar, cada vez mais, desse campo de investigação, que apresenta particularidades e

  • 25

    saberes diferenciados do contexto urbano. No intuito de promover novos debates sobre as

    relações pessoa-ambiente e as questões relacionadas à multidisciplinaridade da Agroecologia,

    Bassani, Silveira e Ferraz (2006) propõem introduzir alguns temas da área nessas discussões,

    tais como: percepção ambiental e apropriação do espaço. Segundo os autores, ao se sugerir

    intervenções nas propriedades rurais, é importante analisar a estrutura familiar, a história de

    ações/transformações nesta propriedade, as relações com os próximos

    (vizinhança/comunidade), o apego ao lugar e a identidade construída pelos agricultores e suas

    famílias.

    Diante das transformações ocorridas no ambiente rural nas últimas décadas, cabe

    questionar, como faz Brandemburg (2010, p.424), “qual a sociabilidade do rural reconstruído e

    que relações emergem entre agricultores-natureza”? Ainda nesse direcionamento, diante da

    proposição de alternativas produtivas para um novo rural, Silva e Tassara (2014) também

    argumentam, de forma mais específica, que a PA passa a ser provocada a responder, dentre

    outras questões, como agricultores “se implicam na contestação (ou na submissão) ao modelo

    hegemônico global da relação ser humano – ambiente natural?” (p. 329). Tais questionamentos

    originaram, em parte, o direcionamento desta pesquisa, que objetiva investigar a natureza da

    relação com o lugar, a partir das vivências de produtores agroecológicos de uma comunidade

    rural.

    Com base na revisão da literatura, constatou-se que os estudos envolvendo os diferentes

    modelos de produção agrícola e PA ainda são escassos, sendo reduzida a quantidade de

    publicações sobre o tema. Grande parte das pesquisas nessa área estão concentradas em países

    da América do Norte, Europa e Oceania, o que leva a crer que este é um campo vasto de

    conhecimento no Brasil, considerando toda a diversidade cultural, social e geográfica do país.

    Além disso, também são poucas as pesquisas que investigam a relação com o lugar dos

  • 26

    produtores rurais de alimentos agroecológicos, denotando, mais uma vez, a existência de

    lacunas e a falta de um maior aprofundamento de estudos na área. A realização do presente

    estudo possibilitará tratar esse tema além das fronteiras disciplinares, apresentando a

    contribuição da PA para que novos olhares sejam lançados na discussão sobre a problemática

    investigada.

    Além desta seção introdutória, este trabalho está dividido em 7 capítulos, conforme

    discriminado no sumário. No capítulo 1, realizo uma contextualização geral sobre o processo

    histórico-político-cultural de modernização da agricultura, abordando, internacional e

    nacionalmente, o estímulo à monocultura e a utilização de sementes transgênicas, bem como os

    impactos sociais, econômicos e ambientais provocados. Em seguida, abordo como o

    capitalismo e o imperialismo ecológico exercido pelas multinacionais estão presentes nas

    diversas faces da crise agroalimentar, suas influências e consequências para a população do

    campo e da cidade. Adicionalmente, é apresentado o processo de cultivo agroecológico, seus

    desafios e perspectivas como uma das alternativas contra - hegemônicas ao modelo de produção

    até então vigente.

    No capítulo 2, abordo sobre o contexto rural brasileiro, a dicotomia campo-cidade, suas

    particularidades e as distintas perspectivas de ruralidades. Posteriormente, contextualizo sobre

    o caráter elitista, urbano e capitalista presente no nascimento e desenvolvimento da Psicologia,

    abordando as principais razões que levaram ao distanciamento da área com o contexto rural. De

    forma mais específica, também trato como a Psicologia Ambiental têm contribuído para os

    estudos do meio rural, apresentando algumas contribuições já realizadas pela área. Quanto ao

    capítulo 3, o foco é a discussão acerca do arcabouço teórico sobre a relação das pessoas com os

    lugares, momento em que apresento as diferentes abordagens dos estudos sobre o tema, suas

    definições e características. Em seguida, comento os estudos que fazem referência ao vínculo

  • 27

    com o lugar, seus impactos e consequências no comportamento em relação à natureza, assim

    como a relação com o lugar em contextos rurais e áreas agrícolas.

    No capítulo 4, trato do processo de escolha e aproximação do campo de pesquisa,

    considerando as características histórico-geográficas, os aspectos econômicos, sociais e

    ambientais do contexto analisado. Os objetivos (geral e específicos) também são apresentados

    neste capítulo, bem como as questões de pesquisa que nortearam o desenvolvimento do estudo.

    Quanto ao capítulo 5, este se refere à perspectiva epistemológica que serviu como fonte

    inspiradora para a escolha dos procedimentos metodológicos, construção e análise dos dados,

    que também são descritos nessa parte.

    O capítulo 6 é composto pela apresentação e discussão dos principais achados da

    pesquisa. Por fim, o capítulo 7 apresenta as considerações finais, contendo as contribuições que

    foram encontradas no estudo, limitações e sugestões para pesquisas futuras.

  • 28

    1. O que alimentamos quando nos alimentamos?

    O pensamento que criou a crise não

    pode ser o mesmo que nos vai tirar

    da crise, tem que ser outro.

    (Albert Einstein)

    Pensar em agricultura é pensar, em primeiro lugar, em sobrevivência. A necessidade vital

    do alimento faz com que diversas características multidimensionais estejam associadas à sua

    relação de produção e consumo, podendo ser compreendida, inclusive, como uma parte do

    ambiente que durante a sua ingestão é incorporado ao corpo. Diante da sua relevância, compete,

    então, no presente capítulo abordar o atual sistema agrícola dominante baseado na agricultura

    químico-dependente, destacando o estímulo histórico à utilização de agrotóxicos e os impactos

    sociais, econômicos e ambientais provocados à saúde humana e à natureza. Em seguida, será

    tratado como o capitalismo e o imperialismo ecológico exercido pelas multinacionais estão

    presentes nas diversas faces da crise agroalimentar, provocando impactos tanto no campo como

    nas cidades. Por fim, será apresentado o processo de cultivo agroecológico, seus desafios e

    perspectivas como uma das alternativas contra-hegemônica ao modelo de produção até então

    vigente.

    1.1. O veneno nosso de cada dia: a polêmica dos agrotóxicos

    1.1.1. Precedentes históricos

    A busca do ser humano por diferentes formas de cultivo agrícola vem sendo abordada

    em diferentes momentos da história da humanidade. Considerada como um elemento de ruptura

    para o surgimento de novas civilizações, o desenvolvimento da agricultura está fortemente

  • 29

    atrelado às diferentes formas de relacionamento do indivíduo com a natureza, exercendo grande

    influência nas organizações sociais, políticas, econômicas e religiosas.

    Ao estar intimamente ligada ao crescimento e desenvolvimento da humanidade desde

    os primórdios da civilização humana, as formas de agricultura passaram a ter que se adaptar,

    cada vez mais, às demandas da sociedade, o que impulsionou o surgimento das mais variadas

    técnicas de cultivo. Nesse percurso, a agricultura passa a ser apropriada não somente para

    subsistência, mas também como atividade produtiva do ser humano ao longo da construção da

    sua história. Com isso, ainda que as civilizações maias, astecas e incas desenvolvessem suas

    próprias técnicas agrícolas, já consideradas avançadas para a época, influenciando o surgimento

    de diversas outras, foi por meio da utilização de agrotóxicos que o atual modelo de produção

    dominante seguiu seu caminho.

    Implantado pela indústria bélica e disseminado globalmente após a Segunda Guerra

    Mundial, o uso de substâncias químicas nas lavouras é acompanhado pelo processo de

    modernização da agricultura em diversas partes do mundo. Tendo seu ápice conhecido como

    “Revolução Verde”, modelo caracterizado pelo uso intensivo de agrotóxicos e fertilizantes

    sintéticos (herbicidas, fungicidas e inseticidas), a disseminação dos conhecimentos da química

    agrícola passou a considerar desnecessário seguir o ritmo da natureza em prol dos interesses do

    capital.

    Após o fim da Segunda Guerra Mundial, indústrias químicas que abasteciam a indústria

    bélica e empresas privadas ligadas ao ramo de petróleo e carros, como a Rockfeller e a Ford,

    viram na agricultura uma boa oportunidade de reprodução do capital, diversificando seus

    produtos ao investirem em técnicas de melhoramento genético de sementes e na construção e

    adoção de maquinário pesado (tratores e colheitadeiras), que deveriam ser utilizados nas mais

    diversas etapas da produção agrícola. Além desses fatores técnicos, intencionalmente

  • 30

    interligadas ao processo histórico mundial, variáveis sociais, políticas e econômicas também

    estão relacionadas ao desenvolvimento e crescimento da Revolução Verde no mundo (Andrades

    & Ganimi, 2007).

    Para que se tenha uma ideia aproximada, no pós-guerra, o mundo se viu em um período

    de tensões marcado pela bipolaridade da então conhecida Guerra Fria, na qual duas

    superpotências - União Soviética e Estados Unidos - disputavam, ideológica e economicamente,

    a soberania mundial. Diante deste cenário geopolítico conflituoso, a implantação da Revolução

    Verde ganha ainda mais força, sendo estabelecida com o discurso ideológico de solucionar a

    fome no mundo e sob o forte argumento de atender às demandas alimentares da sociedade

    urbana, cada vez mais crescente (Albergoni & Pelaez, 2007; Andrades & Ganimi, 2007). Nesse

    aspecto, Rosa (1998) destaca que nesse período “o problema da fome tornava-se cada vez mais

    sério em diversas partes do mundo, e o governo americano e os grandes capitalistas temiam que

    se tornasse elemento decisivo nas tensões sociais existentes em muitos países” (p. 19).

    Desta maneira, tal “revolução” ganhava ainda mais espaço na discussão mundial,

    estimulando fortemente o modo de produção baseado na monocultura, que preconiza o uso

    intensivo de substâncias químicas, além de maximizar a produtividade e o lucro. Também

    considerado como uma forma de penetração do capitalismo no campo, a Revolução Verde ficou

    caracterizada pela geração e avanço da tecnologia na agricultura, sistematizado por meio dos

    conhecidos pacotes tecnológicos, que criava uma relação de maior dependência para o

    agricultor, obrigado a adquirir tais pacotes por intermédio das empresas transnacionais.

    De fato, verificou-se um aumento considerável na produção de alimentos (Assis &

    Romeiro, 2002; Nodari & Guerra, 2015). Entretanto, com o passar dos anos, foi observado que

    tais medidas adotadas não conseguiram superar a fome no mundo, que se agravava

    simultaneamente ao aumento da produtividade dos cultivos (Zamberlam & Fronchet, 2012).

  • 31

    Nessa perspectiva, Porto-Gonçalves (2015) argumenta que o problema da fome não é uma

    consequência da escassez de alimentos no mundo, mas do modo como esses alimentos são

    produzidos no sistema criado, uma vez que a monocultura pode ser considerada uma forma de

    negação de todo o legado histórico da humanidade na medida em que não visa alimentar quem

    produz, e sim à mercantilização do que é produzido. Tal disparidade de interesses também é

    apontada por Andrades e Ganimi (2007) ao acreditarem que “existe oferta de alimentos nas

    prateleiras dos supermercados, mas as pessoas não têm recursos para adquirirem” (p. 47).

    No Brasil, a modernização da agricultura por meio da Revolução Verde ocorreu

    principalmente durante as décadas de 1950 e 1960, predominando a discussão de duas visões

    distintas para o aumento da produção de alimentos no país: uma que defendia o crescimento da

    produtividade por meio da Reforma Agrária, pois, assim mais agricultores teriam terras para

    produzir, evitando-se o êxodo rural e a concentração de terras nas mãos de grandes empresários;

    e outra visão que acreditava que, para o aumento da produtividade, era necessário a compra dos

    pacotes tecnológicos pelos agricultores, deixando, neste caso, de lado o problema fundiário

    (Zamberlam & Fronchet, 2012). Sem nenhuma surpresa, foi mantida a visão de manter a

    estrutura latifundiária no país, tendo sido, para tanto, adotada uma série de estratégias que

    visava implantar os pacotes tecnológicos da Revolução Verde no meio rural brasileiro,

    conforme apontam Zamberlam e Fronchet (2012, p. 40-41):

    Envio de professores, técnicos e pesquisadores para o exterior a fim de serem treinados, e vinda de técnicos de centros internacionais para efetuarem treinamentos

    no Brasil;

    Estruturação da pesquisa agropecuária pública, onde eram testadas as inovações e novos produtos do pacote tecnológico da indústria multinacional;

    Atração de empresas transnacionais para o Brasil a fim de produzirem insumos (químicos), máquinas e equipamentos, e de indústrias processadoras de matérias-

    primas agrícolas. Neste período chegaram a Ford, Shell, Ciba-Geigy, ICI, Unilever,

    DuPont, Bayer, Basf, Stauffer, Dow Química, Pfizer, Union Carbide, Hoeschst,

    Monsanto, Rhodia, entre outras;

    Estímulo ao surgimento do cooperativismo empresarial, com o apoio de recursos públicos para reunir os agricultores e motivá-los às novas práticas do pacote

  • 32

    tecnológico da Revolução Verde no uso de sementes híbridas, fertilizantes

    sintéticos e os agrotóxicos;

    Condicionamento de crédito destinado à monocultura, para aquisição de máquinas, adubos sintéticos e agrotóxicos;

    Direcionamento dos currículos universitários e das escolas agrícolas na formação de agrônomos, veterinários, zootecnistas, engenheiros florestais, técnicos agrícolas

    e extensionistas com o enfoque da Revolução Verde.

    Tais atitudes acarretaram profundas mudanças no território nacional, que, ao contar com

    o apoio do Estado, contribuíram para a união da indústria e agricultura na formação de novas

    fronteiras agrícolas no país. Não obstante, a partir das décadas de 1970 e 1980, esse modelo

    produtivo passou a apresentar sinais de esgotamento, especialmente diante dos limites de

    crescimento da indústria de insumos químicos e os impactos ambientais provenientes do uso

    dessas substâncias, em especial os agrotóxicos. Assim, começaram a surgir as primeiras

    manifestações de cunho ecológico, contestando-se o padrão estabelecido pela lógica da

    Revolução Verde e os subsídios das políticas governamentais promovidas pelo Estado

    (Albergoni & Pelaez, 2007).

    Tal modelo hegemônico de produção agrícola é considerado como uma das atividades

    mais impactantes sobre o meio ambiente, provocando profundas consequências no espaço

    geográfico mundial e brasileiro. Como decorrências desse processo de modernização da

    agricultura, algumas implicações sociais e ambientais foram percebidas, iniciando-se uma série

    de questionamentos que colocaram em destaque a fragilidade do modelo agrícola convencional,

    enfatizando seu caráter incerto e nebuloso.

    Dentre as principais consequências da implementação da Revolução Verde, pode-se

    destacar: a mecanização do trabalho e a ampliação da exclusão e das desigualdades sociais; o

    alto impacto sobre o meio ambiente por meio da contaminação do solo, ar e água; os efeitos

    nocivos à saúde da população por contaminação e envenenamento; a extinção de espécies tanto

    animais quanto vegetais; a diminuição das exportações para os países desenvolvidos em razão

  • 33

    das barreiras ambientais impostas ao uso de pesticidas; impactos socioculturais associados a

    deterioração das relações sociais e de trabalho por meio do êxodo rural; intoxicações;

    intensificação da exploração da mão-de-obra no campo, dentre outras (Andrades & Ganimi,

    2007; Nodari & Guerra, 2015; Zamberlam & Fronchet, 2012). Diante de tais transformações,

    Bauer e Mesquita (2008) acreditam que:

    É possível afirmar que a “Revolução Verde” foi uma revolução silenciosa que

    introduziu, no universo da agricultura familiar, uma nova realidade social, com a

    substituição de parte do conhecimento tradicional por um científico e instrumental,

    que até então não se legitimara, por falta de condições objetivas. De um lado, havia

    convergência de interesses por parte dos agentes. De outro, instrumentos adequados

    para a sua instituição (tecnologia, crédito e assistência técnica). Os agricultores, no

    entanto, pareciam não perceber os impactos sociais e culturais que essa revolução

    trazia. (p. 29)

    Por mais silenciosa que essa revolução possa ter sido, não deixou de ser intensa,

    especialmente para os produtores da agricultura familiar. A despeito dos impactos acarretados,

    as empresas do ramo químico-farmacêutico viram na exploração comercial da biotecnologia,

    baseada na utilização da engenharia genética, a oportunidade de superar os limites impostos

    pela Revolução Verde.

    O desenvolvimento de organismos geneticamente modificados (OGM) possibilitou a

    expansão do capital das empresas do ramo agroquímico, que passaram a desenvolver sementes

    ainda mais resistentes aos pesticidas já utilizados. As principais empresas de agrotóxicos do

    mundo (Figura 1) representam, aproximadamente, 90% do mercado mundial e possuem como

    uma das suas atividades, por “coincidência”, a produção de sementes.

  • 34

    Figura 1. Sede das 10 maiores empresas de agrotóxicos do mundo.

    Fonte: Atlas do agronegócio (2018).

    Por outro lado, mesmo sendo estabelecida com um discurso baseado em promessas de

    redução do uso intensivo de agrotóxicos, o melhoramento genético de tais sementes, na

    realidade, passou a demandar uma quantidade de veneno químico ainda maior para o controle

    das pragas, o que fortalecia e aumentava novamente a dependência para as grandes

    organizações produtoras desses insumos (Albergoni & Pelaez, 2007). Para se ter uma ideia

    aproximada, na figura 2, a seguir, é possível observar o consumo de fertilizantes químicos nas

    últimas décadas:

  • 35

    Figura 2. Evolução do consumo de fertilizantes no Brasil, 1950 - 2016.

    Fonte: Atlas do agronegócio (2018).

    Conhecida também pelo eufemismo de “defensivos agrícolas”, a utilização

    indiscriminada dessas substâncias surge no Brasil e no mundo como uma espécie de “fórmula

    mágica”, resolvendo não só os problemas ligados à agricultura, como também atendendo aos

    interesses de grandes empresas da área. As indústrias de agrotóxicos concebem um mercado

    que fatura bilhões por ano, estimulando o surgimento e o uso de novas substâncias químicas,

    cada vez mais letais, com base no argumento do aumento da produtividade, produção e

    competitividade agrícola. Soluções rápidas e práticas são promovidas por essas empresas,

    deixando de lado, no entanto, suas consequências para a população e a natureza.

    Apesar do ser humano ser o principal responsável pelos impactos que o uso de venenos

    químicos pode acarretar, ele “também sofre as consequências dessas ações, tanto como ser

    biológico, quanto como ser social” (Andrades & Ganimi, 2007, p. 52). É preciso reenfatizar

    que a produção de alimentos com o uso indiscriminado de agrotóxicos reflete hoje diversas

    consequências socioambientais, gerando intensas repercussões diante da má qualidade de vida

    tanto para a sociedade como para os demais seres da natureza, conforme veremos a seguir.

  • 36

    1.1.2. O veneno do campo à mesa: onde vamos parar?

    Considerada um dos principais setores da economia brasileira, a agricultura

    convencional, conforme visto na seção anterior, passa a ser caracterizada pela exploração

    intensiva da terra por meio da utilização frequente de fertilizantes químicos e agrotóxicos.

    Resultado da relação complexa de interdependência entre o campo e a cidade (Silva & Tassara,

    2014), os debates sobre a soberania da monocultura e a crise alimentar colocam em destaque as

    formas como a agricultura se desenvolve no Brasil e no mundo, como apontam Fonini e Lima

    (2013):

    De um lado está a agricultura hegemônica, baseada em grandes áreas de terra,

    produtora de commodities e dependente de insumos químicos. Do outro lado está a

    agricultura não hegemônica, da qual faz parte a agricultura camponesa, de

    agricultores familiares, quilombolas, caiçaras e outros grupos (p. 197).

    O uso intensivo de substâncias químicas vem provocando impactos significativos na

    produção agrícola, evidenciando problemas como, por exemplo, a perda da fertilidade do solo,

    erosão, perda da biodiversidade, contaminação dos alimentos, intoxicações crônicas e agudas

    dos trabalhadores rurais, além do aparecimento de novas pragas resistentes às substâncias

    utilizadas (Santos & Melo, 2011; Severo & Pedrozo, 2008). Em relação a este último, o

    desmatamento de grandes áreas destinadas ao cultivo de monoculturas acarretou no aumento

    de pragas que, como explicam Andrades e Ganimi (2007), favorece ainda mais a utilização

    intensiva de agrotóxicos para combater os problemas encontrados nas plantações.

    Os efeitos deletérios dessas substâncias são muitas vezes mascarados pelos seus

    principais interessados com a intensão de dissimular sua natureza prejudicial para a saúde do

    ser humano e do meio ambiente. Discussões calorosas são realizadas por interessados de

  • 37

    diversas áreas que demonstram determinado ceticismo em relação à viabilidade de se deixar de

    utilizar agrotóxicos nas plantações, alegando, veementemente, a impossibilidade de se produzir

    alimentos em quantidades suficientes e de baixo custo para suprir as necessidades da população.

    Sob o argumento de que “o agrotóxico é um mal necessário” é irônico pensar que para

    algumas pessoas a única tentativa de solução para tais problemas seja bombardear a superfície

    da Terra de inseticidas, desencadeando uma série de desastres e consequências para toda a vida.

    O debate sobre a utilização dessas substâncias químicas é polarizado, tendo de um lado as

    indústrias e comerciantes a favor desses “defensivos agrícolas” e do outro as pessoas engajadas

    na posição de combate a esses venenos químicos.

    O alerta em relação aos impactos do uso de agrotóxicos ganhou destaque no ano de

    1962, quando Rachel Carson denunciou em seu livro, Primavera Silenciosa, os efeitos nocivos

    dessas substâncias químicas no solo, ar, água, plantas, animais e seres humanos. Apresentando

    uma riqueza de informações, a autora relata as principais consequências da utilização desses

    produtos, ressaltando sua preocupação para que atitudes urgentes fossem adotadas. Mesmo

    escrita há mais de 50 anos, a obra de Carson ainda permanece presente nas discussões atuais,

    representando, portanto, um marco no despertar do ecologismo político mundial, além de

    estimular e inspirar a criação de novas leis e órgãos de fiscalização para um maior controle

    dessas substâncias.

    Atualmente, ao ressaltar os riscos à saúde, em especial nas causas do câncer, o Instituto

    Nacional de Câncer (INCA) destacou no ano de 2015 a relevância para o combate ao uso de

    agrotóxicos, visando fortalecer as iniciativas de controle e regulação das substâncias químicas

    e estimular alternativas agroecológicas de produção. De acordo com a investigação realizada

    pelo Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxico (PARA) da Anvisa, diversos alimentos

    pesquisados apresentavam quantidades significativas de substâncias químicas acima do limite

  • 38

    máximo permitido, além de resíduos de utilização de agrotóxicos não autorizados, em processo

    de banimento ou até mesmo que nunca tiveram registro no Brasil (INCA, 2015). Diante da

    grande quantidade de substâncias químicas presentes nos alimentos que, na maioria das vezes,

    é desconhecida pelos consumidores, Beharrell e MacFie (1991) destacam que é cada vez mais

    crescente a quantidade de pessoas que apresentam reações adversas devido à utilização de

    produtos químicos artificiais utilizados na agricultura.

    A liberação do uso de sementes transgênicas também foi um dos principais fatores que

    levou a colocar o Brasil no primeiro lugar do ranking de consumo de agrotóxicos no mundo,

    tendo em vista o uso de grandes quantidades destes produtos para o cultivo das sementes

    geneticamente modificadas. Ademais, o país ainda concede isenção de impostos à indústria

    produtora de agrotóxicos, que continua realizando pulverizações aéreas, ocasionando a

    dispersão destas substâncias pelo ambiente e utilizando substâncias químicas já proibidas em

    outros países (INCA, 2015; Kugler, 2012). Os países em desenvolvimento plantam mais

    transgênicos do que os países industrializados, sendo, em sua maioria, cultivados por pequenos

    agricultores que aumentam a sua dependência em relação às grandes corporações (Almeida,

    Massarani, & Moreira, 2015), e fazem uso desses venenos sem o devido conhecimento e

    utilização dos equipamentos de proteção necessários (Alencar, Mendonça, Oliveira, Jucksch,

    & Cecon, 2013).

    Bombardi (2011) afirma, com base nos dados do Sistema Nacional de Informações

    Tóxico-Farmacológicas (Sinitox), que durante o período de onze anos, compreendidos entre

    1999 a 2009, ocorreram cerca de 62 mil intoxicações por agrotóxicos de uso agrícola no Brasil.

    Isso significa que tivemos aproximadamente 5.600 intoxicações por ano no país, representando

    uma média de 15,5 casos de envenenamento por agrotóxicos por dia ou um caso a cada 90

    minutos. Por mais expressivos que os números pareçam ser, a autora ainda destaca que eles

  • 39

    estão muito aquém de representar o número real das intoxicações, tendo em vista a

    indisponibilidade dos dados ou sua intermitência em alguns estados brasileiros.

    Realizando um recorte regional com os mesmos dados do Sinitox, Teixeira, Ferraz,

    Couto Filho, Nery e Casotti (2014) analisaram as intoxicações por agrotóxicos de uso agrícola

    nos estados do Nordeste brasileiro. Os autores identificaram que Pernambuco foi o estado com

    o maior número de registros de intoxicação (39,5%), sendo a tentativa de suicídio a principal

    circunstância envolvida (69,8%). A maior parte dos casos evoluiu para a cura (69,8%), porém

    7,1% tiveram como desfecho o óbito. Ainda segundo os autores, “o Brasil vivencia uma

    potencial situação de risco em todo seu território, o que coloca o país em uma posição de

    vulnerabilidade diante dos interesses da indústria de agrotóxicos” (p. 504).

    Diante do exposto, percebe-se que a predominância da agricultura contemporânea se

    posiciona num duplo papel de algoz e vítima da crise ecológica mundial, sendo uma das

    principais atividades geradoras da degradação ambiental e, ao mesmo tempo, vulnerável aos

    efeitos das mudanças climáticas e uso indiscriminado dos recursos naturais. Como decorrência

    da utilização massiva de agrotóxicos nas lavouras, Pessoa e Alchieri (2013) enfatizam que nos

    últimos anos o modelo predominante do desenvolvimento rural brasileiro está apresentando

    sinais de esgotamento socioambiental, pois, além do desgaste dos recursos naturais, destaca-se

    especificamente a degradação da fauna e flora e as consequências deletérias à saúde do

    agricultor.

    A racionalidade conservadora e instrumental presente nesse modo de produção agrícola

    dominante contribui para a intensificação da mecanização e da agroquímica. Nessa perspectiva,

    a utilização indiscriminada dos agrotóxicos acarreta também o enfraquecimento dos pequenos

    agricultores com a desvalorização das suas práticas, a favelização da população rural nos

  • 40

    centros urbanos e a construção de uma relação pessoa–natureza voltada para a degradação dos

    recursos naturais (Silva & Tassara, 2014).

    Resultado da internalização massiva do capitalismo no campo, a insustentabilidade do

    agronegócio passa, portanto, a ser cada vez mais questionada. Nesse sentido, além dos efeitos

    nocivos evidentes descritos na literatura científica nacional e internacional, as ações para o

    enfrentamento do uso dessas substâncias instigam novas reflexões que fazem repensar o sistema

    agroalimentar adotado mundialmente, seus desafios e perspectivas.

    1.2. A crise agroalimentar e a dinâmica capitalista

    É crescente a discussão em torno dos sistemas agroalimentares nos mais variados campos

    disciplinares. Enfatizados principalmente após as crises financeiras e alimentares internacionais

    de 2008, que trouxeram à tona a relevância da agricultura para a segurança alimentar (Fontoura

    & Naves, 2016), tais discussões passaram a ocupar um relevante papel para o despertar de uma

    visão mais crítica acerca dos fatores envolvidos no seu surgimento. Nesse sentido, a discussão

    sobre a dinâmica capitalista se faz de fundamental importância para uma melhor compreensão

    do contexto investigado neste estudo, contribuindo para entender e desvendar os reais objetivos

    da modernização agrícola e os aspectos que desencadearam a crise agroalimentar em diversas

    partes do mundo.

    A história do capital e o desenvolvimento do regime agroalimentar podem ser

    compreendidos como mutuamente condicionantes (McMichael, 2016). Os efeitos do

    capitalismo na modernização agrícola e na sociedade foram destacados por Marx (1867/1998),

    ao enfatizar que todo o avanço da agricultura capitalista pode significar, ao mesmo tempo, o

    progresso na arte de despojar o solo e também o trabalhador. Nesse aspecto, Foster e Clark

  • 41

    (2004) retomam o conceito de fissura metabólica, defendido por Marx, para ressaltar o

    antagonismo existente entre a reprodução capitalista e a terra. Tal conceito foi desenvolvido em

    um cenário de crescente alarme feito pelos químicos agrários e os agrônomos da Alemanha,

    Grã-Bretanha, França e Estados Unidos, que sinalizaram a perda de certos nutrientes

    (nitrogênio, fósforo e potássio) da terra, tendo em vista a exportação de comida e fibras do

    campo para as cidades. Esses nutrientes, em vez de serem devolvidos à terra, como geralmente

    acontece na produção agrícola tradicional, eram transportados por longas distâncias, o que

    culminava como dejetos contaminadores nas grandes cidades.

    Consequentemente, para Marx (1867/1998), “todo aumento da fertilidade da terra num

    tempo dado significa esgotamento mais rápido das fontes duradouras dessa fertilidade” (p. 571).

    Como problema fundamental decorrente do capitalismo e, consequentemente, da alienação da

    terra e da natureza, Foster e Clark (2004) destacam que Marx acreditava que dentro do

    capitalismo, o “crescimento da indústria agrícola em grande escala e do comércio de longa

    distância tendia (e ainda tende) a intensificar e estender tal fissura metabólica” (p. 228). Ao

    analisarem argumentos relacionados ao imperialismo ecológico – entendido como a exploração

    dos recursos naturais de certos países por outros - os referidos autores também abordam outras

    consequências como, por exemplo, os movimentos massivos de trabalho e população voltados

    à extração e transferência de recursos, a transformação dos ecossistemas e a exploração das

    vulnerabilidades ecológicas de certas sociedades.

    “Deter a destruição causada pelo imperialismo ecológico é a única solução para este

    problema global” (Foster & Clark, 2004, p. 237), fazendo-se necessário, portanto, transformar

    as relações sócio-ecológicas de produção. Para isso, ainda de acordo com Foster e Clark (2004),

    a compreensão de tal imperialismo se faz de fundamental relevância no processo de análise das

    interações entre a sociedade e a natureza, conforme destacam:

  • 42

    As forças imperialistas impõem regimes de produção sócio-ecológicos no

    mundo, aprofundando assim a divisão antagônica entre o campo e a cidade, por

    um lado, e entre o Norte e o Sul, por outro. Os ecossistemas agrários (de trabalho

    e natureza) se reestruturam e reformam sistemática e racionalmente a fim de

    intensificar não apenas a produção de comida e fibra, mas também de riqueza da

    burguesia compradora e do capital monopolista (Foster & Clark, 2004, p. 235).

    Nesse aspecto, Andrades e Ganimi (2007) realizaram uma análise de como o capitalismo

    utilizou o espaço agrário para ampliar sua dominação, destacando os impactos ambientais e

    sociais provocados pela Revolução Verde. Os autores apontam que as reais intenções das

    grandes empresas durante o processo de modernização da agricultura estavam ligadas,

    principalmente, à maximização do lucro, por meio da monopolização de fatias cada vez maiores

    do mercado; e à aquisição de royalties, tendo em vista os pacotes tecnológicos adquiridos pelo

    produtor. Logo, o agricultor tornava-se cada vez mais dependente e ligado às transnacionais,

    uma vez que só conseguiria comprar tais pacotes por meio dessas empresas, fortalecendo uma

    reprodução ainda mais ampliada do capital por meio da sua monopolização e territorialização,

    além da sujeição do campo à sua lógica.

    À vista disso, a indústria moderna, para Marx (1867/1998), atua de forma mais

    revolucionária na agricultura do que em qualquer outro setor, destruindo o camponês ao

    substituí-lo pelo trabalhador assalariado. Segundo o autor, quanto mais um país apoia o seu

    desenvolvimento nessas indústrias, mais rápida é a destruição, uma vez que o emprego da

    maquinaria na agricultura age de maneira intensa e sem oposição, tornando supérfluos esses

    trabalhadores. Desse jeito, a produção capitalista “só desenvolve a técnica e a combinação do

    processo social de produção, exaurindo as fontes originais de toda a riqueza: a terra e o

    trabalhador” (Marx, 1894/1998, p. 571). Nas últimas décadas, a agricultura passa, portanto, a

    se transformar com o processo de mundialização do capitalismo monopolista e,

    consequentemente, do neoliberalismo, conforme aponta Oliveira (2015):

  • 43

    A lógica neoliberal atua no sentido de tentar converter todo alimento produzido

    em mercadoria, não para ser consumido pelos que o produziram, mas para ser

    adquirido por quem tenha dinheiro, onde quer que esteja no mundo. (p. 240)

    Assim sendo, a agricultura globalizada estrutura-se, conforme Oliveira (2015), por meio

    de uma tríade relacionada a: 1) produção de commodities; 2) bolsas de mercadorias e de futuro;

    e 3) formação das empresas monopolistas mundiais. O primeiro termo visa à transformação de

    toda a produção do campo para a produção de commodities, fundamentalmente voltada ao

    mercado mundial. O segundo termo, bolsas de mercadorias e futuro, funcionam como centro

    regulador dos preços mundiais das commodities, sendo a Bolsa de Chicago uma das principais

    responsáveis pela comercialização dos alimentos. O terceiro termo é composto pela formação

    das empresas monopolistas mundiais, cuja composição se dá a partir das empresas estrangeiras

    e nacionais com o objetivo de reter o controle da produção das commodities do campo. Dessa

    maneira, segundo o autor, é por meio da territorialização dos monopólios e da monopolização

    do território que essas empresas se articulam através do comando da produção agrícola.

    Caracterizada pelo controle do processo produtivo no campo e da propriedade privada da

    terra, a territorialização dos monopólios na agricultura capitalista mundializada está relacionada

    ao fato de que o proprietário da terra, o proprietário do capital agrícola e o proprietário do

    capital industrial podem ser a mesma pessoa física ou jurídica. Assim, aparece no processo

    econômico como duas classes sociais distintas, tanto como proprietária de terra, como burguesia

    capitalista, além de duas categorias sociais: uma agrícola e outra industrial. Por sua vez, a

    monopolização do território se dá através de empresas que estabelecem alianças com aqueles

    que efetivamente são responsáveis pela produção no campo. Ao exercer o controle através de

    mecanismos de subordinação, as empresas monopolistas mundiais (multinacionais ou

    nacionais) monitoram a circulação de mercadorias sem ter a necessid