romilson santos

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE EDUCAÇÃO MESTRADO EM EDUCAÇÃO OS SENTIDOS E SIGNIFICADOS DO LAZER NA FORMAÇÃO ESCOLAR NA REGIÃO DE XINGÓ. Autor Romilson Augusto dos Santos Orientador Roberto Sidnei de Macedo SALVADOR - BA 2001

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Dissertação de mestrado

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

    FACULDADE DE EDUCAO

    MESTRADO EM EDUCAO

    OS SENTIDOS E SIGNIFICADOS DO LAZER NA FORMAO ESCOLAR NA REGIO DE

    XING.

    Autor

    Romilson Augusto dos Santos

    Orientador

    Roberto Sidnei de Macedo

    SALVADOR - BA

    2001

  • 2

    UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

    FACULDADE DE EDUCAO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

    OS SENTIDOS E SIGNIFICADOS DO LAZER NA FORMAO ESCOLAR

    NA REGIO DE XING

    ROMILSON AUGUSTO DOS SANTOS

    SALVADOR-BAHIA

    2001

  • 3

    UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

    FACULDADE DE EDUCAO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

    CURSOS DE MESTRADO E DOUTORADO

    OS SENTIDOS E SIGNIFICADOS DO LAZER NA FORMAO ESCOLAR

    NA REGIO DE XING

    DISSERTAO DE MESTRADO

    ROMILSON AUGUSTO DOS SANTOS

    SALVADOR BAHIA

    2001

  • 4

    ROMILSON AUGUSTO DOS SANTOS

    OS SENTIDOS E SIGNIFICADOS DO LAZER NA FORMAO ESCOLAR

    NA REGIO DE XING

    ORIENTADOR: PROF Dr. ROBERTO SIDNEI DE MACEDO

    Dissertao submetida ao Colegiado do Programa de Ps

    Graduao em Educao da Faculdade de Educao da

    Universidade Federal da Bahia, em cumprimento parcial dos

    requisitos para obteno do grau de Mestre em Educao.

    Banca Examinadora:

    Prof. Dr. Roberto Sidnei de Macedo (UFBA)

    Prof. Dra. Celi Nelza Zulke Taffarel (UFBA)

    Prof. Dr. Vitor Melo (UFRJ)

    SALVADOR BAHIA

    2001

  • 5

    Biblioteca Ansio Teixeira - Faculdade de Educao/ UFBA S237 Santos, Romilson Augusto dos. Os sentidos e significados do lazer na formao escolar na regio de Xing / Romilson Augusto dos Santos. 2001. 204 f. Dissertao (mestrado) Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Educao, 2001. Orientador: Prof. Dr. Roberto Sidnei de Macedo. 1. Lazer e educao Xing (mesoregio). 2. Lazer Trabalho. 3. Lazer Currculo. I. Macedo, Roberto Sidnei. II. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educao. III. Ttulo. CDD 370.119 - 22. ed.

  • 6

    TITULO

    OS SENTIDOS E SIGNIFICADOS DO LAZER NA FORMAO ESCOLAR

    NA REGIO DE XING

    ROMILSON AUGUSTO DOS SANTOS

    BANCA EXAMINADORA:

    ____________________________________

    Prof. Dr. Roberto Sidnei Macedo

    __________________________________

    Prof. Dra. Celi Nelza Zulke Taffarel

    _________________________________

    Prof. Dr. Vitor Andrade Melo

    Salvador.

    2001

  • 7

    DEDICATRIA

    Dedico este trabalho aos sujeitos polticos desta pesquisa que

    contriburam para o meu crescimento, dando me oportunidade de perceber

    como importante a cooperao, solidariedade, e como necessrio lutar por

    melhores dias em uma sociedade to injusta como a nossa, onde os valores do

    ter predominam em relao ao ser, onde o capital dita a ordem causando uma

    grande desordem quele que no o detm, ficando este merc da explorao

    e excludo do mundo do trabalho e sem direito ao prprio lazer, apesar de ter

    tempo livre.

    Dedico tambm ao nosso Nordeste que, mesmo cantado em

    verso e prosa, sofre as discriminaes e excluses de um pas que no

    conseguiu ainda enxergar que, mesmo com todas as diferenas, somos iguais.

    Gostaria tambm de dedicar este trabalho a todos os estudiosos

    do campo do lazer, e, em especial, pessoa que durante a minha formao

    acadmica sempre me motivou a trilhar os caminhos que me levaram a ousar

    em produzir conhecimento, mesmo com as limitaes que considero ter. Ao

    meu grande professor e amigo Joaquim Maurcio Cedraz Nery.

  • 8

    AGRADECIMENTOS

    ... e aprendi que se depende sempre, de tanta muita,

    diferente gente.

    Todas as pessoas sempre so as marcas das lies dirias

    de outras tantas pessoas. E to bonito quando a gente

    entende que a gente tanta gente, onde quer que a gente v.

    E to bonito quando a gente sente que nunca est sozinho

    por mais que pense estar.

    Gonzaguinha

    Percebi em minha caminhada que, mesmo nos momentos mais

    difceis da elaborao deste trabalho, nunca estive sozinho. Nesse sentido,

    que agradeo a todas as pessoas que me ajudaram a ter as marcas dirias de

    tantas outras pessoas. Marcas estas que me fizeram perceber o quanto

    importante caminhar coletivamente, na construo de uma sociedade justa e

    humana.

    Neste momento torna-se difcil fazer agradecimentos, pois posso

    incorrer no deslize de esquecer algum, no entanto tentarei no cometer este

    equvoco. Diante disso, agradeo inicialmente a todos os sujeitos polticos que

    participaram direta ou indiretamente desse processo de construo rdua e

    difcil para um marinheiro de primeira viagem.

  • 9

    Mesmo fazendo essa forma de agradecimento, no poderei deixar

    de citar algumas pessoas que viveram de perto toda minha dificuldade em

    querer contribuir na construo do conhecimento de forma sistematizada.

    Meu agradecimento muito especial pessoa que foi muito mais

    que um orientador, foi amigo, conselheiro, paciente. Cobrando no momento

    certo e apoiando sempre que necessrio, exigindo disciplina. Quero agradecer

    de corao o apoio e orientao dados pelo professor Roberto Sidnei Macedo.

    Ao professor Srgio Coelho Borges Farias pela sua grande

    contribuio no s na minha dissertao de mestrado como meu primeiro

    orientador, mas tambm na minha prpria vida. Minha eterna gratido.

    minha nova amiga Celi Taffarel pelo apoio, crtica e contribuio

    efetiva dada na elaborao desta dissertao de Mestrado.

    equipe da REDPECH. Aos amigos Lvia, Alan, Patrcia, Paul, e

    sempre acolhedora, professora Terezinha Fres Burnham.

    equipe da rea Temtica Gesto Ambiental, Educao e

    Trabalho do Projeto Xing Mayave, Llis, Daguia, Carla, Luciana, Cristiane,

    Guto, Dlson, pela acolhida, hospitalidade e grande colaborao para a minha

    pesquisa.

  • 10

    Aos professores Robrio R. Matos e Denise Scheyrl, por terem se

    prontificado a fazer a traduo do resumo deste trabalho para o ingls e o

    alemo.

    Aos meus pais Joo Augusto e Maria de Lourdes pela sua

    rdua luta para que hoje eu pudesse estar aqui.

    Aline, minha companheira, sempre pondo meus ps no cho

    quando necessrio.

    s amigas Isaura e Zoraya, que colaboraram comigo nos

    momentos mais difceis da pesquisa e da minha vida.

    Aos meus colegas do Departamento de Educao Fsica, pelo

    estmulo.

    A Meire Conceio Ges, Orlando Hage, Cristina Bassalo.

    A lvaro Cardoso, pela sua colaborao na correo gramatical.

    Rozane Suzart, minha monitora do Projeto Lazer Cidado: uma

    ao comunitria.

    Aos amigos Wilson Brito Lima Filho, Marco Bahia e Humberto

    Santos, Anax do Lago e Rodrigo Poegere, pela grande fora.

  • 11

    Ao professor Menandro Ramos, pelo grande auxlio e paciente

    colaborao, sempre que necessitei.

    comunidade de Xing, por colaborar nesta nova etapa da minha

    vida,

    A Deus,

    o meu muitssimo obrigado!

  • 12

    SUMRIO

    Pagina

    RESUMO 15

    ABSTRACT 17

    ZUSAMMENFASSUNG 18

    1. INTRODUO Delimitando a problemtica e as

    possibilidades investigativas.

    1.1 A necessidade do estudo: a relevncia social.

    1.2 A problematicidade: o problema investigativo.

    1.2.1 O lazer: tentativa de um contrato social amplo.

    1.2.2 Objetivos e questes

    1.3 O mtodo como caminho e itinerncia de pesquisa.

    19

    19

    20

    25

    29

    31

    CAPITULO I DILOGO E INSPIRACES TERICAS 45

    I Um olhar conceitual sobre o lazer 45

    II Lazer em uma sociedade capitalista: recuperando

    elementos da crtica

    62

    III O significado das praticas corporais e sua relao

    com o lazer: uma anlise crtica das propostas no campo

    da educao fsica.

    83

    IV A festa e o jogo enquanto espao de aprendizagem. 95

  • 13

    CAPITULO II

    2. O DILOGO INTERPRETATIVO COM A REALIDADE

    PESQUISADA Sentidos e significados dos processos de

    narrativas dos atores educativos sobre o lazer.

    a) A escola UNEX

    b) A hermenutica do estudo

    115

    120

    121

    3. CONCLUSES

    144

    4. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    151

    5. ANEXOS Anexo I

    Anexo II Anexo III

    195 196 199 201

  • 14

    ...Que a leitura seja um brinquedo...

    Que a alma voe, descolando-se do texto para fazer suas prprias

    aventuras...

    Que haja coragem para pensar o inslito...

    Que o pensamento seja capaz de contemplar os fundamentos.

    Roland Barthes

  • 15

    RESUMO

    O presente estudo insere-se entre os que investigam as

    problemticas da formao e do currculo. Tem como objeto os sentidos e

    significados atribudos pelos futuros trabalhadores ao lazer nos processos

    educativos. Foi desenvolvido no mbito de uma proposta interinstitucional de

    articulao em rede para o desenvolvimento de uma regio semi-rida do

    Nordeste, na rea de abrangncia do Programa Xing. Objetivou identificar

    relaes existentes entre o lazer e processos educativos, a partir dos sentidos

    e significados atribudos pelos futuros trabalhadores aos contedos culturais do

    lazer, enquanto elementos do ensino - aprendizagem na comunidade, em

    busca de subsdios para uma educao para e pelo lazer1 onde o jogo do

    saber 2 se torne veculo de construo de cidadania3 .

    Dos procedimentos investigativos, contaram o dilogo crtico com

    os autores que tratou da relao Lazer Trabalho Educao e anlise das

    falas e produes dos futuros trabalhadores vinculados aos processos

    educativos do projeto Xing. Os dados foram sistematizados a partir das falas,

    identificando-se categorias impregnadas de contedos significativos que

    permitem reconhecer os sentidos atribudos pelo coletivo de aluno da UNEX 1

    (Unidade Escolar de Xing 1), ao Lazer e seus contedos culturais. Inferimos

    da, que os elementos de mais ricas possibilidades educativas relacionadas ao

    1 Podemos encontrar mais sobre o assunto em Renato Requixa, 1974. As Dimenses do lazer. P-13 2 Abordagem utilizada por Nelson Carvalho Marcelino, em seu livro Pedagogia da Animao 1996. 3 Seria interessante ler mais sobre a temtica em Ester Buffa, Educao e Cidadania: quem educa o cidado?-5a. Ed So Paulo: Cortez, 1995.

  • 16

    lazer e a formao do futuro trabalhador so as festas, os meios de

    comunicao rdio, TV, e as linguagens diversificadas mmica, dana, jogo.

    Durante a pesquisa, utilizei elementos das metodologias

    qualitativas, que foram organizados e desenvolvidos em torno do dilogo ora

    com a literatura, ora com as vivncias prticas e ora com os futuros

    trabalhadores para desvelar os sentidos e significados atribudos ao lazer na

    formao do trabalhador.

    Busquei elementos na etnografia das prticas educativas

    pautadas na socio-fenomenologia crtica para que pudesse obter descries

    detalhadas de situaes, eventos, pessoas, interaes e comportamentos

    observados; citaes literais do que as pessoas falam sobre suas experincias,

    atitudes, crenas e pensamentos; trechos ou ntegras de documentos,

    correspondncias, atas ou relatrios de casos, fato esse possvel devido ao

    grau de liberdade e agilidade para a reflexo que esse tipo de investigao

    permite (Patton,1986 apud Alves 1991:22).

  • 17

    ABSTRACT

    This paper is an interinstitutional proposal of net articulation for the

    development of the northeastern desert of Brazil in the area of Projeto Xing.

    Its aim is identifying the relationships between leisure and the educational

    process, as well as discussing perspectives of the meanings of cultural contents

    of leisure as components of the teaching/learning process in the community in

    search of an education for leisure and through leisure.

    Different conceptions are presented trying to check the various

    ways of understanding leisure, the formation of the future worker, the way

    leisure is regarded by the school and its community and the role it plays in the

    well-being of the population.

  • 18

    ZUSAMMENFASSUNG

    Die vorliegende Arbeit Konstituiert auf dem inter-institutionellen

    Vorschlag, zur Entwicklung des Trockengebietes im Nordosten, im Rahmen des

    Xing Programms, beizutragen.

    Die Ziele der Forschung sind zum einen, die bestehenden

    Zusammenhng zwischen Freizeit und Bildungsprozess zu erkennen, zum

    anderen, die Perspektiven der Bedeutung Kultureller Inhalte von Freizeit, als

    Teil des Lehr-Lernprozesses in der Gemeinschaft, zu diskutieren, um

    letztendlich eine auf freizeitorientiente Bildung zu finden.

  • 19

    1. INTRODUO

    DELIMITANDO A PROBLEMTICA E AS POSSIBILIDADES

    INVESTIGATIVAS

    1.1. A necessidade do estudo: a relevncia social

    As inspiraes e inquietaes primeiras deste trabalho foram

    constitudas por vivncias concretas no ensino da disciplina Recreao do

    Curso de Licenciatura em Educao Fsica, da Universidade Federal da Bahia,

    e tambm como professor da rede pblica de ensino bsico. Inquietava-me o

    menosprezo da escola pela festa, o ldico, o jogo, ainda considerado profano

    e inspirou-me lanar elementos que trouxessem para o centro da discusso do

    Currculo de formao de trabalhadores o que lhe de grande sentido e

    significado - os contedos do lazer: as festas, a mmica, o potico, o jogo, a

    dana.

    Tivemos tambm como antecedente uma pesquisa de Educao

    Fsica Escolar, realizada por ns em Curso de Ps - Graduao em

    Metodologia da Educao Fsica Infantil, onde constatamos que o significado

    das prticas corporais na educao fsica analisada de forma acrtica e que

    as questes pertinentes relao entre lazer e educao so pouco discutidas.

    Nega-se s crianas o que lhes de grande significado para construir sentidos

    de vida, o prazer do jogo, da brincadeira, da festa, da dana.

  • 20

    1. 2 . A problemtica: o problema investigativo

    Ao longo deste trabalho, apresentamos diferentes concepes

    sobre o lazer a partir do dialogo com autores que discutem a temtica,

    destacando quais so as abordagens reconhecidas nas categorias tericas

    privilegiadas, procurando identificar as vrias formas de entendimento do lazer.

    Dialogamos tambm com os trabalhadores, participantes do Projeto Xing,

    analisando sentidos e significados atribudos pelos mesmos em relao aos

    contedos educativos do lazer. Desse profcuo dilogo foi possvel delimitar o

    problema, apontar dados e discutir a centralidade da questo, no estaramos

    excluindo dos processos educativos na formao do futuro trabalhador os mais

    ricos elementos culturais para estimular aprendizagens significativas para o

    lazer, com o lazer?

    Durante a realizao da pesquisa vrias formulaes foram

    tomando corpo, na busca de respostas para as nossas questes bsicas. A

    partir da leitura das obras citadas em nosso trabalho, bem como da anlise dos

    dados de campo de nossa pesquisa, elegemos e delimitamos problemas

    investigativos e identificamos categorias de anlise que vieram a nortear a

    temtica central.

    Em nosso trabalho consideramos as questes relacionadas aos

    sentidos e significados do lazer para a populao de Xing, o significado nas

    prticas corporais e sua relao com lazer, para questionar a relao do lazer

  • 21

    com a prtica pedaggica e a relao do lazer com a construo da cultura

    pedaggica da escola.

    Das narrativas dos atores participantes desta pesquisa e das

    minhas leituras tericas, surgiram categorias empricas, aqui entendidas como

    grau de desenvolvimento do conhecimento da pratica social especfica do

    lazer.

    Ao longo dos anos, vimos percebendo a acriticidade na prtica e

    utilizao dos contedos culturais do lazer, como tambm uma fragilidade nas

    discusses sobre as relaes entre o lazer e a educao, o que nos provocava

    algumas inquietaes. Estaramos negando a construo de sentidos e

    significados a serem construdos a partir da escola, aos contedos culturais do

    lazer?

    O que dizem os autores sobre isto? O que pensam e dizem os

    futuros trabalhadores em processo de escolarizao?

    O que podemos concluir enquanto construo para

    redimensionar/reconceptualizar o currculo nos aspectos relativos aos

    contedos culturais do lazer?

    Para estabelecer esta interlocuo investigativa entre a base

    concreta da existncia humana - com seus pensamentos, suas percepes,

  • 22

    seus sentidos e significados socialmente construdo elegemos o contexto do

    Programa Xing.

    O Programa Xing; um programa de cunho multidisciplinar,

    sendo uma iniciativa do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento

    Cientfico e Tecnolgico), em parceria com a CHESF (Companhia Hidroeltrica

    do So Francisco).

    O programa Xing originou-se a partir do entendimento de que a

    prosperidade dos povos se d em decorrncia da educao, associada

    explorao das potencialidades e vocaes, abrangendo todos os aspectos do

    ensino, da profissionalizao e da produo. Abrange os municpios e

    povoados de Alagoas, Bahia, Pernambuco e Sergipe, atendendo em seu

    programa as seguintes cidades: Alagoas - Delmiro Gouveia, Olho D gua do

    Casado, Piranhas, gua Branca, Po de Acar e Parinconha; Bahia - Abar,

    Chorroch, Rodelas, Glria, Paulo Afonso, Macurur e Cura; Pernambuco

    Belm do So Francisco, Floresta, Itacuruba, Petrolndia, Tacaratu, Santa

    Maria da boa Vista, Terra Nova, Cabrob, Jatob e Oroc; Sergipe Canind

    do So Francisco, Monte Alegre, Nossa Senhora da Glria, Poo Redondo,

    Porto da Folha e Gararu. Seu objetivo aproveitar a infra-estrutura usada na

    construo da usina de Xing, no rio So Francisco, com a inteno de

    constituir um Instituto voltado para a promoo do desenvolvimento sustentvel

    da regio, denominado Instituto Xing.

  • 23

    Alm dos parceiros citados, o Programa Xing conta tambm com

    as seguintes Instituies: SUDENE (Superintendncia do Desenvolvimento do

    Nordeste), Comunidade Solidria, COEP (Comit de Entidades Pblicas no

    Combate Fome e pela Vida), CEPEL (Centro de Pesquisas de Energia

    Eltrica), EMBRAPA (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria), ETFAL

    (Escola Tcnica Federal de Alagoas), INPE (Instituto de Pesquisas Especiais),

    UFAL (Universidade Federal de Alagoas), UFBA (Universidade Federal da

    Bahia), UNEB (Universidade do Estado da Bahia), UEFS (Universidade

    Estadual de Feira de Santana), UFPE (Universidade Federal de Pernambuco),

    UFRPE (Universidade Federal Rural de Pernambuco), UFS (Universidade

    Federal de Sergipe). O programa tem seu desenvolvimento a partir das

    seguintes reas temticas: Aqicultura, Atividades Agropastoris, Arqueologia e

    Patrimnio Histrico, Biodiversidade, Educao, Fontes Alternativas de

    Energia, Gesto Ambiental e Trabalho, Recursos Hdricos e Turismo.

    A construo da hidroeltrica de Xing teve incio na dcada de

    80; operrios de diversas regies do Brasil se deslocaram para Xing, trazendo

    consigo valores sociais e culturais, que se incorporaram cultura local. Foram

    aproximadamente nove mil trabalhadores.

    Nesse perodo se configurou uma nova arquitetura. A vegetao

    tpica da regio, a Caatinga, comeou a ser substituda pelo concreto.

    Ergueram no local uma vila operria para abrigar os trabalhadores, dotados de

    clubes, bancos, centro comercial, escolas, fazendo com que Xing viesse a

    sofrer impactos ambientais, econmicos, sociais e culturais. Na dcada de 90, moradores da regio de Xing comearam a

  • 24

    desenvolver novas atividades. As transformaes causadas nas estruturas

    produtivas, mercantis, fundirias e tecnolgicas da regio de Xing, implicaram

    em mudanas que afetaram a sustentabilidade das famlias, resultando em

    transfigurao e num certo modo decadente de suas fontes de renda, de sua

    relao com ambiente, com o tempo, com o ldico e com o lazer.

    nesse contexto desenvolvemse contedos culturais

    relacionados ao lazer, e que nos interessa enquanto realidade formativa.

    Ressaltamos a importncia de discutir as questes pertinentes ao lazer, pois,

    seja como necessidade, seja como direito assegurado pela Constituio, essa

    manifestao cultural constituda historicamente e est impregnada de

    sentidos e significados atribudos aos trabalhadores.

  • 25

    1.2.1 O LAZER: TENTATIVA DE UM CONTRATO SOCIAL

    AMPLO.

    Desde a Revoluo Industrial, at os dias atuais vrias

    formulaes tericas sobre o lazer vm tomando corpo. Algumas na

    perspectiva de construo de uma sociedade justa com possibilidade de

    acesso para todos, outras, na lgica capitalista de excluso social. Dentre os

    documentos que tm sido divulgados sobre o tema, vale destacar a importncia

    da Carta do Lazer, documento este que vem dando referncia formulao de

    polticas pblicas setoriais de lazer. Esta carta representa um significado

    atribudo ao lazer, nem sempre presente, nem compartilhada no ambiente

    cultural dos trabalhadores.

    Abaixo, apresentamos a Carta do Lazer, desenvolvida em

    Bruxelas, para explicitar e com isto reconhecer subsdios para uma melhor

    compreenso dos sentidos e significados atribudos ao lazer e ao tempo livre,

    como direito a ser garantido a todo cidado, bem como, referencial significativo

    para a formao dos trabalhadores.

    Nesse documento esto traadas diretrizes para o usufruto dos

    contedos culturais centrados no lazer. Defende-se o direito e acesso ao lazer

    a todo cidado. No entanto, sendo o lazer um bem com caractersticas

    subjetivas e de escolha pessoal, gerado em relaes de produo de vida

  • 26

    capitalista, em uma sociedade de classes sociais, na prtica, nem todos tm

    direito ou acesso ao lazer.

    Carta do Lazer

    Artigo 1o -Todo homem tem direito ao lazer. Como criador autor e

    animador de relaes sociais, tem, sobretudo, direito s atividades de lazer de

    sua prpria escolha, no importando sua idade, sexo, nvel de educao ou

    condio social.

    Artigo 2 -O tempo livre no o tempo desocupado, e as atividades

    de lazer so precisamente caracterizadas pelo tempo durante o qual o homem

    capaz de realizar-se de acordo com suas aspiraes pessoais, e expressar

    sua identidade de maneira criativa.

    Artigo 3o -O uso do tempo livre varia de acordo com os padres

    sociais. Como objetivo comum, devem existir, contudo, a salvaguarda e a

    promoo do desenvolvimento fsico e mental, mantendo e estimulando o

    contato com a natureza e a cultura, intensificando a vida social e comunitria,

    encorajando o comprometimento, a participao voluntria, o esprito esportivo,

    a apreciao do turismo como componente da autorealizao e a compreenso

    entre pases.

    Artigo 40 - A famlia, a escola e todos os educadores tm papel

    determinante a desempenhar quando da iniciao da criana numa atividade

    ldica e ativa de lazer, na qual a freqente contradio entre o ensino e a

    realidade necessita ser eliminada.

  • 27

    Artigo 50- _ O tempo livre, em decorrncia de doena, idade,

    desemprego, emprego ocasional, pode ser transformado em significativa

    atividade de lazer, desde que esteja garantida a seguridade social. Todo ser

    humano que seja compelido a uma situao de inatividade, total ou parcial, tem

    direito a exercer suas aptides criadoras para participar da vida social. A

    sociedade deve organizar-se para possibilitar esta oportunidade aos indivduos.

    Artigo 60 -As autoridades devem garantir a realizao das atividades

    de lazer, efetivamente baseadas nas possibilidades pessoais de escolha.

    Podem contribuir para isso atravs de legislao, oramento, investimento,

    criao de equipamentos adequados, estimulo animao e formao de

    pessoal. Devem evitar, ainda, a explorao das atividades de lazer que

    conduzam a falsas necessidades e formas de recreao incompatvel com a

    liberdade criadora e a dignidade humana.

    Artigo 70 - Mesmo sendo dever do Estado e de todos os organismos

    pblicos garantir condies jurdicas e materiais para atividades de lazer, no

    devem deter o monoplio da organizao. Os grupos polticos, sociais, culturais

    e religiosos e, sobretudo, os cidados, tm o direito de assumir sua

    responsabilidade especfica dentro de uma democracia participativa.

    Artigo 8 0 _ Os meios de comunicao devem ser parte de todas as

    polticas de lazer e devem ser utilizados para concretizar os princpios

    constantes desta carta

    (Seminrio Mundial de Lazer, promovido pela Fundao Van Cl-

    Bruxelas, abril, 1976).

  • 28

    Na era dos Direitos segundo Bobbio (1992), nunca se

    sistematizaram tantos direitos, em cartas, sejam elas manifestos de

    reivindicaes ou Cartas Magnas Constituies, no entanto, nem sempre so

    atendidas, cumpridas ou consideradas como sentidos e significados

    socialmente construdos e historicamente acumulados.

    Bobbio (1992) afirma que o nosso problema fundamental,

    atualmente em relao aos direitos dos homens, extrapola a esfera filosfica,

    alcanando a dimenso poltica, ou seja, no basta apenas justific-los,

    devemos, alm disso, proteg-los. Torna-se relevante ressaltar o que diz

    Bobbio, com qual concordo plenamente.

    Com efeito, o problema que temos diante de ns no

    filosfico, mas jurdico, num sentido mais amplo, poltico.

    No se trata de saber quais e quantos so esses direitos,

    qual a sua natureza e seu fundamento, se so direitos

    naturais ou histricos, absolutos ou relativos, mas sim

    qual o modo mais seguro para garant-los, para impedir

    que, apesar das solenes declaraes, eles sejam

    continuamente violados Bobbio (1992:25).

    Essa afirmao nos faz lutar pela garantia desses direitos juntos

    aos setores competentes, para que todo cidado venha ter acesso e usufruto

  • 29

    aos bens culturais do lazer de forma igualitria, onde a escolha no fique

    subordinada aos condicionantes da sociedade capitalista, predominando muito

    mais o consumo de produtos e servios relacionados ao lazer, do que

    propriamente o lazer, ou seja, o desenvolvimento do lazer com liberdade.

    1.2.2 OBJETIVOS E QUESTES

    O processo reflexivo dessa investigao nos levou a delimitar

    como objeto do presente estudo os sentidos e significados atribudos pelos

    futuros trabalhadores ao lazer e seus contedos culturais, enquanto elementos

    educativos.

    Identificar as relaes existentes entre o lazer e o processo

    educativo, bem como, discutir questes sobre os sentidos e significados dos

    contedos culturais do lazer, enquanto elemento educativo na

    escola/comunidade, nos permite dialogar no campo educacional em busca de

    uma educao para e pelo lazer4 ; uma educao que redimensiona o prprio

    sentido da pedagogia, transcendendo os muros da escola rumo a uma

    sociedade pedaggica, onde trabalho, educao e lazer no apaream como

    insularidades alienadas e alienantes. De forma ampliada, aqui que se

    configura o objetivo maior desse estudo.

    4 Renato Requixa, 1974. As Dimenses do Lazer. P-13. O autor aponta para a necessidade de se aprender a usar o tempo livre, percebendo o aspecto educativo existente no lazer, ou seja, educar atravs do lazer e educar para o lazer. Suas argumentaes partem do princpio de que existe duplo aspecto educativo apresentado pelo lazer; em primeira instncia como veculo de educao, isto , a educao, atravs das atividades de lazer; e em segunda instncia, como objeto da educao, isto , a educao para o lazer.

  • 30

    A partir desse delineamento, delimitamos as seguintes questes

    investigativas do estudo:

    Quais os contedos culturais do lazer vivenciados por professores e alunos

    comunidade/escola investigada?

    Que sentidos e significados tais contedos culturais do lazer assumem na

    prtica educativa da Escola Pblica UNEX 1 e seus entornos comunitrios?

  • 31

    1.3 O MTODO COMO CAMINHO E ITINERNCIA DE PESQUISA

    Aps a formulao das questes bsicas, estabelecemos

    procedimentos investigativos na perspectiva de delinear o mtodo que norteou

    a investigao. Percorremos diversos caminhos. Os caminhos percorridos

    foram cheios de dificuldades, prprios a um estudo que exige:

    a) O dilogo com os autores da rea anlise de contedo dos

    textos de livros, peridicos e outros;

    b) Observao e registro de prticas educativas;

    c) Opinio e anlise das falas dos futuros trabalhadores para

    reconhecer os sentidos e significados atribudos ao lazer e

    seus contedos culturais.

    Vale ressaltar que, nesta trajetria busquei elementos na

    etnografia das prticas educativas pautadas na sociofenomenologia5 crtica.

    Portanto, caminhar na trilha etnogrfica tentar ler um manuscrito estranho,

    desbotado, cheio de elipses, incoerncias, emendas suspeitas e comentrios

    tendenciosos, escritos no com sinais convencionais do som, mas com

    exemplos transitrios de comportamento modelado (Geertz, 1978, pp. 321 e

    20 apud Magnani 1984).

    5 Podemos encontrar mais sobre o assunto em Cirigliano. Fenomenologia da Educao, 1974.

  • 32

    Uma outra compreenso da natureza etnogrfica a qual tenho

    concordncia apresentada por Macedo (1998), quando o mesmo analisa as

    opes metodolgicas de cunho qualitativo, principalmente a etnopesquisa:

    A opo da etnopesquisa se evidencia pela etnografia

    semiolgica como recurso metodolgico bsico e suas

    especificidades clnicas ou qualitativas. Tais

    especificidades do mtodo etnogrfico nos remeteu, de

    alguma forma, noo de pesquisa qualitativa, podendo

    assumir esta noo conotaes diferentes, dependendo

    da orientao terica de quem utiliza. Tomando de

    emprstimo as elaboraes de Ldke e Andr(1986)

    sobre as pesquisas que priorizam os mbitos qualitativos

    da Educao, podemos dizer que as etnopesquisas

    apresentam as seguintes caractersticas metodolgicas:

    Tem o contexto como sua fonte direta de dados e o pesquisador

    como seus principais instrumentos; supe o contato direto do

    pesquisador com o ambiente e a situao que est sendo

    investigada; os dados da realidade so predominantemente

    descritivos, e aspectos supostamente banais em termos de status de

    dados significativamente valorizados.

    Nestes aspectos, valoriza-se intensamente a perspectiva

    qualitativa-fenomenolgica, que orienta ser impossvel

    entender o comportamento humano sem tentar estudar o

    quadro referencial e o universo simblico dentro dos quais

  • 33

    os sujeitos interpretam seus pensamentos, sentimentos e

    aes. (1998:144).

    Nessa caminhada ter a compreenso mais alargada da

    metodologia exercitada, de fundamental importncia para fundamentar

    orientar o processo de investigao, para a tomada de decises, na seleo

    dos conceitos, das percepes sensibilizadoras, tcnicas e dados. A propsito,

    Thiollent nos indica um caminho reflexivo a ser percorrido na busca do mtodo.

    ... Consiste em analisar as caractersticas dos vrios

    mtodos disponveis, avaliar suas capacidades,

    potencialidades, limitaes ou distores e criticar os

    pressupostos ou as implicaes de sua utilizao. Ao

    nvel mais aplicado, a metodologia lida com a avaliao

    de tcnicas de pesquisa e com a gerao ou a

    experimentao de novos mtodos que remetem aos

    modos efetivos de captar e processar informaes e

    resolver diversas categorias de problemas tericos e

    prticas da investigao. Alm de ser uma disciplina que

    estuda os mtodos, a metodologia tambm considerada

    como modo de conduzir a pesquisa (1992:25).

  • 34

    Utilizei recursos qualitativos e quantitativos, baseados nos

    pressupostos filosficos da sociofenomenologia6, assumindo trabalhar a partir

    da complexidade7 da situao concreta da rea, evitando estudos e aes

    estanques e pontuais, partindo da construo da metodologia de trabalho

    dentro de uma abordagem multirreferencial8, sempre que possvel, buscando a

    pluralidade metodolgica a partir de sistemas de referncia diversificados,

    entretanto pertinentes, visando enriquecer o olhar sobre o objeto.

    Segundo Cirigliano (1974), na realidade no existe o um

    mtodo e sim uma atitude, onde nos colocamos e nos apoiamos.

    Cabe, ento, apresentar os elementos argumentativos que

    Cirigliano (1974:35) utiliza e nos quais me inspirei:

    6 Encontraremos mais sobre o assunto em Jacques Ardoino. Editorial: De uma Ambigidade prpria pesquisa ao. As confuses mantidas pelas Prticas de Interveno. R. bras. Est. Pedag. Braslia, v74, n. 178, p.701.712, set. /dez. 1993. 7 Ver E. Morin, Terra Ptria, p. 147-152. Seria interessante tambm ver as argumentaes sobre complexidade apresentadas por Burnham, Terezinha Fres. Complexidade, Multirreferencialidade, Subjetividade: trs referencias polemicas para a compreenso do currculo escolar. Revista em Aberto, Braslia, Ano 12 nmero 58, Abril/Junho 1993, p-3 13. 8 Ver Multirreferencial. Considerando a concepo ampliada dada pelo grupo da AT Gesto Ambiental, a Multirreferencialidade, adotamos o mesmo conceito utilizado pela AT, junto ao Programa Xing, cujo objetivo de manter uma relao de constante troca no s quanto ao saber acadmico, mas tambm aos demais saberes das populaes locais, visando apreenso da realidade atravs da observao, da investigao, da escuta, do entendimento, da descrio por ticas e sistemas de referencia diferentes, aceitos como definitivamente irredutveis uns aos outros e traduzidos por linguagens distintas, supondo como exigncia a capacidade do pesquisador de ser poliglota, dispor-se a realizar leituras polissmicas e ter uma postura aberta para um processo de permanente construo . Esta perspectiva encaminha a si mesma (como implicao), uma viso de mundo propriamente cultural e requer uma compreenso hermenutica da situao em que sujeito ai implicado interage, intersubjetivamente (Cf> ARDOINO, J. Complexit. Paris: Universit de Paris VIII, juin, 1992(mimeo) e De la clinique. Paris: Universit de Paris VIII, avril, 1989 (mimeo) e BARBIER, R. L Approche Tranversalle: Sensibilization a lcoute mytho - potique en education. Paris. Universit de Paris VIII, 1992 (Note de Synthse en vue de lhabilitation a diriger des recherches) e LEcoute sensible en education. Texto original da conferencia apresentada na 15a Reunio Anual da ANPED. Caxambu, MG, 1992.

  • 35

    Embora no julguemos poder contar com todos os

    elementos e capacidade para atingir uma real

    fenomenologia, precisando dispor de um mtodo,

    preferimos, antes de utilizar algum, apoiarmos nos

    numa corrente que essencialmente metdica. Pois,

    conforme esta interpretao, estudar fenomenologia no

    utilizar um mtodo previamente considerado desta, porm

    simplesmente cingir se a regras formais dirigidas

    especialmente ao fenmeno. No existe ou

    mtodo fenomenolgico, mas uma atitude. Nesta atitude

    nos colocamos; nessa atitude nos apoiamos....

    Para realizar as observaes, optei em participar do processo9

    atravs de leitura e interpretao critica da realidade que envolvia os processos

    culturais caractersticos da regio, com os contornos de especificidade que lhe

    confere a populao local.

    Do nosso ponto de vista, um grande fator importante em uma

    pesquisa quantitativa a possibilidade de desenvolv-la dentro de uma

    abordagem crtica. O estudo de caso possibilita essa abordagem. Nesse

    sentido, quanto ao modo de investigao, optei em utilizar o estudo de caso

    contextualizado e relacional.

    9 Seria interessante a leitura da a abordagem de pesquisa participante que Teresa Maria Frota Haguete apresenta em seu livro Metodologias Qualitativas na Sociologia, p. 66 78, 1987.

  • 36

    Macedo (1998) apresenta uma abordagem mais detalhada sobre

    estudo de caso. O autor aponta em seu livro A Etnopesquisa Critica e

    Multirreferencial nas Cincias Humanas e na Educao, a possibilidade da

    busca de uma densidade significativa, apresentando caractersticas

    importantes para que o pesquisador venha fazer sua opo metodolgica.

    Ao mesmo tempo, Macedo (1998) justifica a importncia em

    trabalhar a partir do estudo de caso, chegando a afirmar que a preocupao

    principal dessa opo metodolgica compreender uma instancia singular,

    especial. Macedo (1998) chega a firmar que os estudos de caso visam

    descoberta, partindo do entendimento de que o conhecimento algo sempre

    em construo e se re-significa a todo o momento. (1998:150).

    Assim, o estudo de caso tem por preocupao principal

    compreender uma instancia singular, especial. O objeto

    estudado tratado como nico, ideogrfico (especial,

    singular) mesmo compreendendo-o enquanto

    emergncia molar e relacional, isto , consubstancia-se

    numa totalidade composta de e que compe outros

    mbitos ou realidades. Desse modo, a questo sobre o

    caso ser ou no tpico, isto , empiricamente

    representativo de uma populao determinada torna-se

    inadequado; o objeto no recortado por uma

    amostragem com preocupaes nomotticas, j que cada

    caso tratado como tendo um valor prprio. Alm disso,

  • 37

    em face da inerente flexibilidade dos estudos pontuais, da

    abertura que cultiva face ao inusitado, os casos

    estudados vo constituir teorias em ato, impregnadas

    dos aspectos inerentes temporalidade da emergncia

    complexa das realidades vivas ( Macedo 1998:150).

    Como tcnicas de coleta de dados, utilizei recursos metodolgicos

    tais como a entrevista semi-estruturada, a observao participante, a fotografia,

    grupo focal ou entrevista coletiva;

    Durante a realizao da pesquisa, utilizei como forma de registro,

    formulrios, fotografias, gravaes, conversas informais com membros da

    comunidade, bem como o dirio de campo com descrio densa da minha

    itinerncia de pesquisa.

    Macedo (1998) diz:

    O pesquisador etno uma pessoa que chega totalizado e

    totalizando-se para realizar seu fieldwork; no deixa em

    seu bureau suas convices, sua itinerncia, como

    estudioso de fenmenos humanos, bem como defronta-se

    arduamente enquanto sujeito/pessoa com suas prprias

    observaes, pondo em evidencia suas implicaes,

    consubstanciadas nas suas motivaes, perspectivas e

  • 38

    finalidades.Compreende que para suspender preconceitos

    necessrio t-los explcitos (1998:145).

    No que concerne pertinncia e relevncia dos recursos

    metodolgicos utilizados, temos que uma pesquisa qualitativa aquela que nos

    permite reconhecer a partir da descrio, anlise e interpretao dos dados

    adquiridos durante o processo investigativo, os sentidos e significados dos

    atores sociais e torn-los contextualizados aos nossos achados, sem uma

    preocupao em generalizar.

    Conforme diz Airton Negrine (1999):

    ... Os modelos metodolgicos adotados nesse tipo de

    pesquisa apresentam, no momento, uma franja

    interessante e, de certo modo, ampla. Variam desde os

    estudos hermenuticos e fenomenolgicos, utilizados com

    freqncia no campo da filosofia, at estudos etnogrficos

    que esto muito presentes nas investigaes

    antropolgicas (1999:61).

    Segundo Magnani (1984), a fala dos sujeitos permite reconhecer

    o nosso objeto de estudo com maior detalhe, podendo, a partir da, re-signific-

    lo, percebendo cada atitude, cada detalhe que possibilite sentidos e

  • 39

    significados que venham aparecer durante a pesquisa, ou seja, ir alm das

    aparncias que normalmente esto presentes nas pesquisas de cunho nica e

    exclusivamente quantitativo.

    Magnani nos diz:

    ... preciso estar atento a cada gesto, palavra ou hbito

    por mais insignificante que possam aparecer. Para

    compreender seu significado e poder relacion-los com

    outros aspectos do sistema cultural imprescindvel, alm

    das explicaes dos nativos, observ-los no contexto da

    vida tribal. Faz-se necessrio inclusive manter, de alguma

    forma, esta situao de estranhamento, pois medida

    que o desconhecido vai se tornando familiar, corre-se o

    risco de prestar ateno apenas a questes

    supostamente mais importantes. (Magnani, 1984:10).

    O lcus da pesquisa foi basicamente a Regio do Programa

    Xing, permetro do Irrigado do So Francisco, especificamente na Unidade

    Escolar de Xing e a comunidade do seu entorno.

    A seleo dos sujeitos se deu da seguinte maneira: Foram

    escolhidos dois alunos de cada srie do Ensino Fundamental da Escola UNEX

    I (Unidade Escolar de Xing), do Projeto Canind para fazer parte da nossa

  • 40

    pesquisa, podendo ser lderes de classes ou no, perfazendo um total de 32

    alunos que voluntariamente se apresentaram querendo participar do estudo. O

    critrio, portanto, foi da motivao em narrar suas experincias a respeito da

    temtica.

    Em relao ao corpo docente, foram realizadas entrevistas com

    professores de Educao Fsica e Educao Artstica, devido ao fato de ambas

    as disciplinas tratarem dos contedos culturais do lazer na escola. Foram

    ouvidos, tambm, professores de outras disciplinas que costumavam organizar

    eventos culturais na escola.

    Alm dos sujeitos envolvidos diretamente com o processo de

    escolarizao, foram entrevistados sujeitos da comunidade que tinham ou no

    passado por um processo de escolarizao, mas que estabeleceram vivncias

    com a escola, influenciando no currculo, principalmente o oculto.

    Moreira diz:

    De particular importncia para a anlise e a maior

    compreenso da prtica curricular tem sido o conceito de

    currculo oculto, difundido pelos autores da teoria crtica

    de currculo. Entendido como normas e valores que so

    implcitas, porm efetivamente transmitidos pelas escolas

    e que habitualmente no so mencionados na

  • 41

    apresentao feita pelos professores dos fins ou

    objetivos (Apple 1982, p.127), o conceito de currculo

    oculto aponta para o fato de que o aprendizado

    incidental durante o curso pode contribuir mais para a

    socializao do estudante que o conceito ensinado em

    curso. Ainda que acentuando, em suas primeiras

    teorizaes, o papel reprodutor da escola e do currculo, a

    idia de currculo oculto vem a ampliar-se e passa a

    significar no s o terreno por excelncia de controle

    social, mas tambm o espao no qual se travam lutas

    ideolgicas e polticas, passvel, portanto, de abrigar

    intervenes que visem mudanas sociais(Whitty1985).

    Em outras palavras a viso reducionista da escola e do

    currculo como instrumentos utilizados para manuteno

    dos privilgios de classes e grupos dominantes acaba por

    ser substituda por uma perspectiva mais complexa, na

    qual contradies, conflitos e resistncias vm a

    desempenhar papel de relevo (Moreira, 1997:14).

    As narrativas apresentadas no desenvolvimento da nossa

    pesquisa permitiram identificar informaes significativas, que deram

    representatividade ao contexto pesquisado. Dessa forma, as interpretaes

    referentes aos atores sociais puderam ser codificadas e categorizadas de

    forma relevante e significativa, tomando o contexto estudado e sua produo.

  • 42

    Nossa opo metodolgica, buscou articular os contedos e

    mtodos da sociofenomenologia com o marxismo libertrio encontrada no

    interior das elaboraes e estudos da nova sociologia da educao.

    A preocupao em articular etnopesquisa, mtodo dialtico e a

    nova sociologia da educao nasceu do vazio deixado pela fenomenologia que

    fundamenta a etnopesquisa, quando parte para anlise das particularidades de

    uma determinada estrutura social no atentando para as contradies de um

    mundo desenhado no insupervel conflito entre capital e trabalho.

    Macedo (1998) apresenta possibilidades de articulao entre a

    etnopesquisa e o marxismo libertrio. Suas argumentaes apontam para a

    necessidade um marxismo sensvel existncia, que possibilite uma

    etnopesquisa implicada e engajada com as transformaes das prticas

    inquas, e uma prxis solidria, vinculada a uma tica comunitria:

    (...) As questes ideolgicas e a problemtica da falsa

    conscincia constituem-se num n de difcil resoluo

    para o fenomenlogo. Alm disso, a scio-fenomenologia

    tem pouco a dizer sobre o conflito estrutural numa

    sociedade e quase nada argumenta sobre o entendimento

    dialtico da mudana histrica e as condies materiais

    de existncia que embora socialmente produzidas,

  • 43

    tornam-se objetificadas, portanto, no podem

    simplesmente ser racionalizadas. Priorizando a

    intersubjetividade ao desreificar os sistemas de

    pensamento e as aes que lhes configuram, a

    abordagem scio-fenomenolgica carece de articulaes,

    onde a desreificao prtica deve fazer-se mais potente

    pelas vias das relaes sociais, para ser mais preciso,

    pela via da prxis (Sarup, 1986). (...) Se a scio-

    fenomenologia resgata compreensivamente na histria

    um sujeito interessado, o mtodo dialtico o v a partir

    dos coletivos sociais, forjando, aqui, uma dialtica que

    aponta inexoravelmente para a humanizao concreta e

    transformadora do ser social pela suas condies

    concretas. (...). Via mtodo dialtico, o fenmeno

    estudado dever apresentar ao leitor de tal forma que ele

    o apreenda em sua totalidade. Para tanto, necessrias se

    fazem aproximaes sucessivas e cada vez mais

    abrangentes. No se trata, aqui, de uma totalidade que

    vai abarcar tudo estaticamente, mas uma totalizao em

    curso, como quer Sartre, que se configura a cada relao

    estabelecida (Macedo, 1998:131-132).

    Nesse sentido, acreditamos existir a possibilidade de um convvio

    harmnico entre a sociofenomenologia e o marxismo libertrio, pois, a partir

  • 44

    dessa confluncia que poderemos problematizar noes de racionalidade,

    mtodo, infncia, educao, trabalho, lazer e, principalmente, currculo.

    Para expor os frutos da investigao, estruturamos os captulos

    da seguinte maneira:

    No primeiro capitulo, apresentamos o dilogo com os principais

    autores que tratam da relao educao trabalho lazer para desvelar

    sentidos e significados atribudos que podem ser captados no discurso.

    No segundo capitulo, descrevemos as vivncias desenvolvidas e

    o dilogo mantido com os futuros trabalhadores para desvelar sentidos e

    significados. Discutiremos tambm as relaes e contradies reconhecidas

    em sentidos e significados atribudas pelos tericos, assumidas nas vivncias e

    explicitadas pelos trabalhadores.

    Com estes elementos nos possvel discutir o currculo de

    formao do futuro trabalhador e a construo de sentidos e significados de

    uma relevante dimenso humana: O lazer e seus contedos culturais.

  • 45

    CAPITULO I

    DILOGOS E INSPIRAES TERICAS

    1. UM OLHAR CONCEITUAL SOBRE O LAZER

    Traar um olhar conceitual sobre o lazer ser nosso objetivo neste

    momento, sem perder a dimenso de que, ao conceitu-lo no pretendemos

    limitar a possibilidade de avanar nas discusses, seguindo caminhos lineares

    e sim conceituar na perspectiva de buscar novas referncias tericas, no

    sentido de transpor os horizontes j traados tentando estabelecer relaes

    entre autores clssicos como Jofre Dumazedier e autores contemporneos,

    como Nelson Carvalho Marcelino, Camargo, na inteno de constatarmos ou

    no, as indagaes levantadas por ns.

    Quais os contedos culturais do lazer vivenciados por professores

    e alunos comunidade/escola em Xing?

    Que sentidos e significados os contedos culturais do lazer

    assumem na prtica educativa no contexto escolar e seus entornos

    comunitrios, em Xing?

  • 46

    Entre os autores que se dedicam ao estudo sobre o lazer, no

    existe um consenso sobre o seu conceito, podendo-se, entretanto, identificar

    duas grandes linhas. Numa delas, aparece com predominncia o aspecto

    atitude, considerando o lazer como um estilo de vida, portanto independente

    de um tempo determinado; a outra linha privilegia o aspecto tempo, situando-o

    como tempo liberado do trabalho, ou como tempo livre, no s do trabalho,

    mas de outras obrigaes sejam elas familiares, sociais ou religiosas,

    considerando tambm a qualidade das ocupaes desenvolvidas.

    Marcelino diz que:

    (...) O lazer considerado como atitude ser caracterizado

    pelo tipo de relao verificada entre o sujeito e a

    experincia vivida, basicamente a satisfao provocada

    pela atividade. Assim, qualquer situao poder se

    constituir em oportunidade para a prtica de lazer - at

    mesmo o trabalho. (...) J o conceito que restringe o lazer

    a um tempo determinado tambm engloba aspectos

    nebulosos, uma vez que, uma mesma pessoa pode num

    certo perodo de tempo, desenvolver mais de uma

    atividade; por exemplo, ouvir msica enquanto trabalha.

    Alm disso, tempo algum pode ser considerado livre de

    coaes ou mesmo conduta social. Talvez, fosse mais

  • 47

    correto falar em tempo disponvel, ao invs de tempo livre

    (Marcelino, 1987:29).

    No Brasil, muito embora sejam observadas tendncias, ainda que

    no muito bem definidas, relacionadas s duas orientaes referidas acima, a

    grande maioria dos estudos sobre o lazer, seja qual for o enfoque ou rea de

    atuao, tem como referncia o conceito defendido pelo socilogo Dumazedier.

    (1974). Ele defende que o lazer o:

    ... conjunto de ocupaes s quais o indivduo pode

    entregar-se de livre vontade seja para repousar, seja para

    divertir-se, recrear-se e entreter-se ou ainda para

    desenvolver sua formao desinteressada, sua

    participao social voluntria, ou sua livre capacidade

    criadora, aps livrar-se ou desembaraar-se das

    obrigaes profissionais, familiares e sociais.

    J Requixa (1980) define lazer como:

    ... ocupao no obrigatria, de livre escolha do indivduo

    que a vive, e cujos valores propiciam condies de

    recuperao psicossomtica e de desenvolvimento

    pessoal e social.

  • 48

    Para Medeiros (1980), o lazer :

    ... o espao de tempo no comprometido, ao qual

    podemos dispor livremente, porque j cumprimos nossas

    obrigaes de trabalho e da vida.

    Do ponto de vista de Cavalcanti (1984), o lazer deveria ser um

    espao para o real desenvolvimento do indivduo; no entanto, devido a uma

    laicizao10 do tempo livre, causado pura e exclusivamente pelo processo de

    industrializao, o que se tem percebido na realidade da atual sociedade, no

    seria o lazer e sim o antilazer, isto , as exigncias causadas e impostas pela

    nossa sociedade. Cavalcanti (1984-67) nos leva a compreender melhor este

    fenmeno, quando diz:

    Nesse contexto, o lazer surge como uma construo

    ideolgica, sob a qual o antilazer aproveita-se para

    penetrar mais eficazmente no modo de vida das pessoas

    com objetivo de mant-las perfeitamente integradas na

    sociedade industrial e urbana.

    O lazer entendido por Marcelino (1987), como cultura

    compreendida no seu sentido mais amplo, vivenciada (praticada ou fruda) no

    tempo disponvel.

    10 Expresso utilizada por Cavalcanti (1984), em seu livro Esporte para todos: um discurso ideolgico. So Paulo: IBRASA, que significa regulamentao do tempo, uma doutrinao, um controle regido pelas instituies sociopolticas e culturais, tirando a autonomia diante da escolha do lazer.

  • 49

    Marcelino afirma ainda que:

    O importante, como trao definidor, o carter

    desinteressado dessa vivncia. No se busca, pelo

    menos fundamentalmente, outra recompensa alm da

    satisfao provocada pela situao. A disponibilidade de

    tempo significa possibilidade de opo pela atividade

    prtica ou contemplativa. Marcelino (1987- 31).

    A diversidade verificada quanto ao conceito permanece, quando

    se examina a questo da ocorrncia do lazer na vida social, do ponto de vista

    histrico. Alguns autores consideram que os homens sempre trabalharam, mas

    tambm sempre paravam de trabalhar, existindo, assim, um tempo de no-

    trabalho, e que esse tempo seria ocupado por atividades de lazer, mesmo nas

    sociedades tradicionais. Para outros, o lazer fruto da sociedade moderno-

    urbano-industrial.

    Na realidade, no h, a rigor, um antagonismo entre os autores

    que defendem as duas correntes; mas sim, enfoques diferentes. Alguns

    abordam a necessidade de lazer, sempre presente, e outros se detm nas

    caractersticas que essa necessidade assume na sociedade. Afirmando que o

    lazer sempre existiu, variando apenas os conceitos sobre o que era e quais os

    seus significados.

  • 50

    Marcelino (1993) afirma que, em algumas formas de organizao

    social, o que se verifica o no - isolamento entre as atividades obrigatrias e

    as ldicas, o que de modo algum significaria a no - existncia do ldico. E

    mais ainda o que no nos permite prever se essa diviso trabalho/lazer,

    verificada atualmente na sociedade moderno - urbano - industrial, permanecer

    efetivamente ou no.

    Entretanto, so exatamente as produes tericas dos estudiosos

    contemporneos brasileiros do lazer que nos vm trazendo motivao para

    pesquisar sobre o tema em questo, possibilitando-nos, na medida do possvel,

    re-significar os conceitos construdos historicamente, tentando superar as

    vises funcionalistas, compensatrias e romnticas do lazer e apontar

    caminhos para o usufruto dos bens culturais do lazer dentro e fora da escola

    como forma de promoo social e difuso cultural, na superao do

    conformismo e apontando para a criticidade.

    Ao admitirmos a atividade de lazer como veculo de educao11,

    considerando suas potencialidades para o desenvolvimento social e pessoal

    dos indivduos, cumpre-nos refletir sobre o modelo de trabalho predominante

    em uma sociedade como a nossa, industrial capitalista, a qual, ao gerar novas

    condies de vida, necessitou de novas prticas sociais que auxiliassem na

    adaptao dos indivduos a esse modelo.

    11 Termo utilizado por Nelson Carvalho Marcelino no livro Lazer e Educao Campinas, SP: Papirus, 1987. As argumentaes apresentadas pelo autor partem do principio de que o lazer tem um alto potencial educativo, ou seja, pelo lazer pode-se educar. P-60.

  • 51

    Esta sociedade, moldada pelos valores polticos de obedincia e

    disciplina e pelos valores econmicos de racionalidade tcnica e eficincia,

    trata o lazer como do produto prefixado que deve ser consumido

    indiscriminadamente, levando o indivduo perda da autonomia pessoal,

    estabelecendo um elo de ligao entre o que produzido e o que consumido

    pela sociedade, fazendo prevalecer o ter em contraposio do ser, onde estaria

    disposio de um raro prazer ou o sucesso casual estabelecido pela

    propaganda ideolgica da chamada cultura do lazer12.

    Vale dizer que o lazer compreendido como fenmeno scio-

    cultural-histrico do mundo ocidental e oriental moderno, motor de

    reivindicaes sociais a partir da Revoluo Industrial e oriundo das

    necessidades de um tempo legal de folga, devido existncia de jornadas

    excessivas de trabalho. Com os movimentos trabalhistas europeus, surgem as

    primeiras leis nesse sentido, as quais geraram a reduo da jornada de

    trabalho, o descanso remunerado durante os fins-de-semana, as frias e os

    feriados.

    Ao mesmo tempo em que o lazer representa conquista pelo direito

    a espaos de tempo, que pudessem se contrapor s obrigaes cotidianas do

    trabalho, representa, tambm, demanda por um tempo disponvel e privilegiado

    12 Termo utilizado por Edgar Morin no livro Terra Ptria Porto Alegre: Sulina, 1995. Cultura do lazer para Morin significa cultura forjada a partir da industrializao onde tem como predominncia o consumo de produtos e servios relacionados s atividades de lazer e no o prprio desenvolvimento do lazer.O autor enfatiza o desenvolvimento de atitudes relacionadas ao ter em relao ao ser, presentes hoje na nossa sociedade de consumo.

  • 52

    para a concretizao de experincias ldicas, por momentos de jogar a vida e

    por qualidade no viver.

    Compreendendo o lazer no seu sentido mais amplo como

    cultura vivenciada no tempo disponvel das pessoas, Nelson Carvalho

    Marcelino enfatiza que a disponibilidade de tempo implica a possibilidade de

    opo pelo lazer, entretanto, o que realmente tem acontecido a recuperao

    psicossomtica do indivduo, mantendo-o mais perfeitamente adequado para o

    seu lazer, criando a chamada cultura do lazer.

    No entanto, por fora do prprio estilo de vida que,

    historicamente, o gera como tempo de no-trabalho, o lazer vem sendo em

    nossa sociedade, valorizado como meio de recuperao no campo

    psicofisiolgico ou para reciclar as foras de trabalho, atravs do alvio das

    tenses provocadas pela rotina do trabalho e da moralizao, que requer o

    modo de produo dominante.

    No entanto, surgem discursos contraditrios, pois, ao mesmo

    tempo em que o lazer depreciado por alguns como tempo no srio, intil, de

    "vagabundagem", por ocupar o seu tempo de no-trabalho, ele valorizado

    por outros como tempo no srio de atividades recreativas, ampliando, por

    isso, seu valor de mercado.

  • 53

    Recorrendo a Bourdieu e Passeron (1992), em sua obra a

    Reproduo, nos possvel compreender como no mercado se colocam os

    contedos culturais vivenciados no lazer como produto de consumo. As

    atividades recreativas, como bens simblicos, receberam valores diferenciados

    entre si e em relao a outros contedos culturais.

    Nesse mercado capitalista, entendido como o conjunto das

    condies sociais de produo e de reproduo dos produtores e

    consumidores, onde o lazer est inserido, o xito de uma atividade est em

    funo do capital cultural, isto , em funo dos bens culturais transmitidos

    pelas diferentes atividades de lazer inclusive as aes pedaggicas cujos

    valores, enquanto capital cultural, esto em funo da distncia entre o

    arbitrrio cultural, inculcado, pela ao pedaggica familiar, os diferentes

    grupos e classes.

    importante considerar que vivemos em uma sociedade onde

    convivem grupos diferenciados, com condies materiais de existncia e

    caractersticas culturais prprias sem, contudo, viverem isoladamente. Apesar

    desses grupos se relacionarem uns com os outros em certos lugares e

    momentos, os padres culturais dos grupos dominantes vm sendo

    considerados como superiores em relao aos demais, influenciando a

    valorizao da vivncia de certos contedos culturais do lazer13.

    13 O que estou considerando Contedos Culturais do Lazer so as atividades denominadas por Jofre Dumazedier, de interesses culturais do lazer tendo o mesmo significado. Os interesses culturais do lazer esto divididos em Interesses fsico-esportivos, manuais, intelectuais, artsticos, sociais e tursticos.

  • 54

    Jofre Dumazedier (1976) classifica as atividades de lazer de

    acordo com os interesses culturais, o mesmo as denomina da seguinte

    maneira:

    Interesses Fsico-Esportivos - Atividades essas relacionadas s prticas

    corporais que o indivduo desenvolve. Por exemplo: Jogar futebol, caminhar,

    pedalar;

    Interesses Manuais - Todas as atividades de lazer relacionadas com as

    prticas de jardinagem, lavar um carro, bricolagem, artesanato;

    Interesses Intelectuais - Todas as atividades que tenham em sua

    realizao, relaes com o lgico-racional. Exemplo: a leitura de um livro, um

    jogo de xadrez;

    Interesses Artsticos - Todas as atividades relacionadas com obras de arte,

    como a ida ao cinema, ao teatro;

    Interesses Sociais - O desenvolver de atividades ao qual estabelea a

    participao de grupos, reunies, festejos;

    Aps a denominao dada por Jofre Dumazedier, criado por um

    dos seus seguidores um outro interesse. Interesse Turstico Este, na

    realidade, foi desenvolvido por Lus Octvio de Camargo, em seu livro O que

    lazer, tendo relao com passeios, viagens, excurses.

    Cabe ressaltar que essa classificao meramente didtica, pois,

    podem-se desenvolver diversos interesses em uma s atividade de lazer,

  • 55

    havendo em alguns momentos predominncia de um interesse em relao a

    outro.

    Vale salientar que o desenvolvimento do lazer se d em trs

    formas de ao, podendo estabelecer conexes entre si, seja no praticar,

    assistir e estudar; portanto, o desenvolvimento do lazer deveria se dar,

    resgatando a etimologia da palavra no latim, buscando a compreenso desse

    fenmeno na sua dinmica cultural; portanto, lazer significa licere14 em latim e

    em sua traduo ser permitido, ser lcito.

    importante ressaltar que a forma primitiva da palavra lazer era

    lezer, se configurando em outras palavras como lezeira, lezo. Um exemplo

    prtico dessa configurao a expresso: Eu hoje estou com lezeira,

    remetendo ao significado de preguia, pouca vontade de trabalhar.

    Segundo Bramante (1997) as variveis que compem o lazer so:

    tempo, atitude, espao e experincias ldicas. Sendo que trs eixos bsicos se

    interligam em nvel conceitual, ou seja, tempo de no-trabalho, espao de sua

    vivncia e atitude do indivduo em relao ao seu interesse cultural pelo lazer,

    resultando em uma experincia denominada por Bramante (1997), de

    experincia ldica e que acrescentaramos de experincia prazerosa. .

    14 Termo utilizado por Inezil Penna Marinho no livro Razes Etimolgica, Histrica e Jurdica do Lazer. Braslia, 1979.

  • 56

    Um outro fator importante dentro do entendimento do lazer

    a sua propriedade; ela d o trao definidor do lazer. Lazer resulta de livre

    escolha, ou seja, a liberao de certo gnero de obrigaes; portanto tem o

    carter liberatrio presente; lazer resulta de seu carter desinteressado15, lazer

    detm o carter hedonstico. Dumazedier (1974:95) define esta ltima

    propriedade da seguinte maneira:

    De incio definido negativamente com respeito s

    obrigaes institucionais e s finalidades impostas pelos

    organismos de base da sociedade, o lazer se define

    positivamente no tocante s necessidades da pessoa,

    mesmo quando esta as realiza dentro de um grupo de sua

    escolha. Na quase totalidade das pesquisas empricas, o

    lazer marcado pela busca de um estado de satisfao,

    tomando como fim em si. Esta busca de natureza

    hedonstica. Certamente, a felicidade no se reduz ao

    lazer, ela pode acompanhar o exerccio das obrigaes

    sociais de base. A alegria no o resultado automtico

    deste artifcio social que deveria servir para gerar a

    alegria: o jogo. Mas a procura do prazer, da felicidade ou

    da alegria, um dos traos fundamentais do lazer da

    sociedade moderna. (Dumazedier: 96- 1974).

    15 Sobre o carter desinteressado, ver as argumentaes de Jofre Dumazedier, em seu livro Sociologia Emprica do Lazer: Perspectivas, p. 94, 1974.

  • 57

    Uma outra propriedade apresentada pelo lazer o de escolha

    pessoal, podendo o indivduo utilizar o lazer seja para repousar, seja para

    divertir-se ou ainda para o seu desenvolvimento pessoal e social. Digo que

    isso na realidade no vem acontecendo, devido ao fato da perda de autonomia

    pessoal causada pelas exigncias sociais voltadas para o consumo de

    produtos e servios ligados ao mundo do lazer.

    Verifica-se que as valorizaes do consumo de certos contedos

    culturais do lazer vm cada vez mais requerendo a oferta especfica e

    sistemtica de bens e servios, assim como interveno de profissionais

    variados para atender a uma grande demanda.

    Muitos desses profissionais so considerados como

    socializadores de saberes, cujas aes pedaggicas centram-se no fazer pelo

    fazer, ressaltando os contornos do fazer mecnico, fundado em normas e

    tcnicas pr - estabelecidas, e cada vez mais distante de realizaes ldicas.

    Isso indica que o lazer, em nosso contexto social , muitas vezes, usado como

    instrumento de manobras, sobretudo, de controle do corpo e do elemento

    ldico.

    Segundo Riesman (1961) surgiram e se firmaram os

    especialistas do lazer que os denominava de Consultores de lazer:

  • 58

    Para levar o indivduo a estabelecer um contato que no

    o amedronte em face da nova srie de oportunidades de

    consumo, necessrio alguns guias e sinalizaes. Em

    nossa sociedade urbana, especialista, isto poder exigir

    consultores de lazer .

    A consultoria de lazer poder parecer um termo um tanto

    clnico para descrever as atividades empreendidas por um

    nmero de profisses em crescimento relativamente

    rpido nos Estados Unidos, incluindo agentes de viagem

    e turismo, tcnicas em hotelaria, treinadores e

    professores de esportes, diretores de estncias de frias,

    professores de artes, professores de dana e assim por

    diante.(1961 p 370 371).

    A satisfao ldica requer a participao dos sujeitos na

    construo de atitudes, no espao e no tempo brincante. Torna-se, portanto,

    pice de projeto de quem implica a arquitetura de sonhos e aventuras com

    gosto e empenho, correndo riscos, sem constrangimento, e levando a srio,

    sem sisudez, todos os momentos jogados, desde os mais singelos aos mais

    significativos, reconstruindo novas formas de viver e reviver emoes, sob a

    tica da sensibilidade, da esttica, do jogo, do brinquedo e do ldico.

    Viver o lazer e o ldico significa a recriao de novas formas de

    sentir, pensar e agir, em tempo e espao estabelecidos na relao entre quem

  • 59

    joga e jogado, sem perder de vista os sonhos que fazem o nosso imaginrio

    transcender o mundo real.

    O que nos faz concordar com Leila Mirtes (1995), quando ela

    afirma que:

    Viver o lazer como esforo por concretizar o ldico ,

    sobretudo, renovar relaes interpessoais, experincias

    corporais, ambiente, temporalidade e energia;

    reencontrar consigo mesmo, com o que gosta e deseja;

    compreender como nossos sonhos se constituem no

    contexto em que vivemos, transbordar a crtica e a

    criatividade; e saborear o momento presente como

    possibilidade de vivncias de utopias, ou seja, com

    alegria, buscar interferir nos horizontes que se enunciam

    no presente.

    Enfim, viver o lazer buscar, a partir das multirreferncias que a

    sociedade nos coloca, as possibilidades de transpor o mundo do imaginrio

    social e reinventar os rumos da nossa histria, valorizando a criana na escola

    e fora dela, o jogo, no sentido de favorecer a construo de uma sociedade

    justa e humana.

  • 60

    Para Roberto Sidnei Macedo, em seu artigo intitulado Por uma

    epistemologia multirreferencial e complexas nos meios educacionais. Revista

    da FAEEBA, nmero7, 1997 p. 33-52, multirreferncias supe a capacidade

    de falar vrias lnguas (inteligibilidades) sem as confundir Suas

    argumentaes esto baseadas nos pensamentos de Jacques Ardoino e Edgar

    Morin.

    Macedo (1997) enfatiza a necessidade de uma articulao critica

    de diversas inteligibilidades dentro da multirreferncialidade; chega a sugerir a

    reflexo da prpria interdisciplinaridade, levando em considerao as

    limitaes e possibilidades histricas da mesma. Chega ainda a alertar que a

    especificidade da inspirao complexa da multirreferncialidade no est na

    prtica complementar, aditiva, ou do domnio absoluto do conhecimento, mas

    na afirmao dos diversos campos do saber, da tomada de conscincia da

    necessidade do rigor fecundante, da nossa ignorncia enquanto inquietao

    (1997:62).

    Quanto construo de uma sociedade justa e humana,

    acreditamos que ela deva est pautada na felicidade, na alegria, na

    possibilidade de sonhar por um mundo, onde a escola, a criana, o ldico

    tenham novas configuraes, em busca da educao para e pelo lazer. Sem

    negao da utopia, nem pregao do infantilismo, to pouco romntica, mas

    com possveis realizaes onde o prazer e a dor sejam saborosamente

    saborosos, onde a dialtica determine esse convvio, dando possibilidade de

  • 61

    criar, recriar e recrear esse espao de difuso e produo cultural que o

    lazer.

    Concluindo a anlise dos conceitos, podemos admitir que na

    realidade o lazer vem perdendo o seu significado real, devido s impregnaes

    causadas pela sociedade do consumo, ou seja, seu sentido tem se re-

    significado.

    Apesar do lazer, ter sido forjado a partir das reivindicaes

    trabalhistas, o mesmo adquiriu sentidos no qual desencadeou em sua perda de

    autonomia pessoal, deixando de ser uma atividade nica e exclusivamente de

    escolha pessoal, com liberdade. No entanto, acreditamos que, mesmo com

    todas as mudanas que o capitalismo causou nas prticas de lazer, torna-se

    possvel termos uma atitude crtica com relao a essa atividade, aonde a

    democratizao venha existir, dando condio e possibilidade a todos do

    acesso e direito ao lazer com um maior significado.

  • 62

    II. LAZER EM UMA SOCIEDADE CAPITALISTA:

    RECUPERANDO ELEMENTOS DA CRTICA

    Economizar tempo de trabalho aumentar o tempo livre,

    isto , o tempo que serve ao desenvolvimento completo

    do individuo. O tempo livre para distrao, assim como

    para as atividades superiores, transformar naturalmente

    quem dele tira proveito num individuo diferente... K. Marx,

    1957.

    No presente capitulo estarei apresentando os principais

    argumentos de estudiosos de diferentes reas que permitem reconhecer e

    sistematizar contribuies acerca do Lazer nas relaes capitalistas de

    produo e reproduo da vida, buscando tambm elementos na trajetria

    histrica do processo civilizatrio.

    Dito isso, recuperamos da histria da humanidade que desde o

    inicio do seu nascimento, o ser humano busca novos horizontes, seja no ato

    inaugural da criao do fogo, da roda, no descobrimento da plvora, seja na

    inveno da mquina; este ser vive uma ciranda de ousadias e riscos

    descortinando as fronteiras do at ento desconhecido.

    Autores como Norbert Elias (1994) nos apresentam dados

    significativos com relao ao processo civilizatrio. Elias (1994), ao justificar

  • 63

    sua abordagem, leva em considerao inicialmente o conceito de civilizao,

    afirmando existir uma grande variedade de fatos responsveis pela sua

    conceituao. Fatores como nvel de tecnologia, tipos de maneiras,

    desenvolvimento dos conhecimentos cientficos, s idias religiosas e aos

    costumes, determinam o sentido de civilizao.

    Um outro fator importante abordado por Elias (1994), em relao

    funo geral do conceito de civilizao a conscincia que o mundo

    ocidental atribui a si mesmo.

    Elias (1994) diz:

    Mas se examinarmos o que realmente constitui a funo

    geral do conceito de civilizao, e que qualidade comum

    leva todas essas vrias atitudes e atividades humanas a

    serem descritas como civilizadas, partimos de uma

    descoberta muito simples: este conceito expressa a

    conscincia que o Ocidente tem de si mesmo.

    Poderamos at dizer: a conscincia nacional. Ele resume

    tudo em que a sociedade ocidental dos ltimos dois ou

    trs sculos se julga superior a sociedades mais antigas

    ou a sociedades contemporneas mais primitivas . Com

    essa palavra, a sociedade ocidental procura descrever o

    que lhe constitui o carter especial e aquilo de que se

  • 64

    orgulha: o nvel de sua tecnologia, a natureza de suas

    maneiras, o desenvolvimento de cultura cientifica ou viso

    do mundo , e muito mais(p-23).

    No af de dominar a si prpria e sua exterioridade, a humanidade

    torna-se cada vez mais desafiadora de seus prprios limites, vivenciando,

    ento, desequilbrios internos e externos, numa implicao tal que, muitas

    vezes, a humanidade torna-se escrava de sua prpria criao.

    Se, por um lado, h uma contribuio significativa no sentido da

    (re) construo da sociedade pela civilizao, criando novas possibilidades e

    facilidades vida humana; por outro lado, criaes humanas a exemplo do

    capital e das tecnologias, so elementos importantes nas transformaes das

    percepes. Criador, criao e criatura se confundem assumindo formas de

    olhar muitas vezes capitalizadas, automatizadas, liberalizadas (Beck 1994),

    naturalizando, assim, as suas prprias invenes, conceitos e valores, que,

    muitas vezes, anestesiam a sensibilidade em relao s discrepncias sociais,

    to bem caracterizadas na voz de Renato Russo16, "a humanidade

    desumana.

    A existncia humana tem sido marcada por ciclos de

    desequilbrios. Durante sua transio do mundo rural para o mundo urbano

    industrial, a forma de organizao social sofreu uma transformao que

    16 Msico e compositor brasileiro Cd Legio Urbana: as quatro estaes. Faixa 4, Quando o sol bater na janela do teu quarto.Emi Odeon Fonogrfico Indstria e Eletrnica Ltda. Sp, 1995.

  • 65

    implicou em fortes alteraes nas relaes culturais e cognitivas de seus atores

    sociais. Atividades como a caa, a pesca, a agricultura e o prprio sentido do

    trabalho estavam entendidos como produo da humanidade, no sentido de

    existncia humana.

    Havia uma relao direta entre vida e trabalho, pois, ao mesmo

    tempo em que o homem produzia para a sua sobrevivncia, ele festejava e

    relacionava-se com essa produo, de uma forma coletiva. Os festejos, as

    danas no se separavam da vida do trabalho, criando uma relao humana

    entre os sujeitos sociais.

    A partir da revoluo industrial, essas relaes tomaram novas

    configuraes. A Revoluo Industrial perodo de transio da economia

    agrria para a industrial, que marcou o incio de um novo perodo da histria.

    Seus impactos foram limitados mesmo na Europa, at 1820 e em muitos

    pases, at meados do sculo XIX. No mundo todo, as conseqncias s foram

    sentidas bem mais tarde.

    O processo teve incio na Gr Bretanha que no perodo de

    1730, j ostentava uma economia prspera.

    Na Segunda metade do sculo XVIII cresce a produo de bens

    de capital e de consumo em virtude das inovaes e invenes. Entre elas, as

    novas mquinas de fiao e os teares, a fundio do coque e a introduo do

    ao fundido.

  • 66

    Um outro fator importante da poca foi mquina a vapor que

    proporcionou indstria nova fonte de energia e permitiu que pequenas

    oficinas fossem substitudas por grandes fbricas. Mas este processo ocorreu

    aos poucos e a fbrica s se tornou uma unidade caracterstica de organizao

    industrial, aps 1830.

    A questo da temporalidade, por exemplo, passou a ter

    predominncia aos ciclos da vida. O homem passou a organizar-se com

    tempos especficos para o trabalho, tempo para o festejo, tempo para o

    descanso, tempo para o lazer, acentuando a diviso social do trabalho, que se

    tornou cada vez mais especializado e fragmentado, obedecendo ao ritmo da

    mquina e a um tempo mecnico, afastando os indivduos da convivncia nos

    grupos primrios e despersonalizando as relaes, perdendo assim a

    referncia de identidade. Vale pena considerar o que diz Marcelino:

    "As pessoas passam a fazer parte de grupos variados,

    sem ligaes uns com os outros. Caracteriza-se o binmio

    trabalho /lazer e as aes se desenvolvem como na

    gravao de um filme, onde os atores participam de

    cenas estanques, sem conhecer a histria de seus

    personagens, cenas essas freqentemente interrompidas

    para serem retomadas em seqncias totalmente

    diferenciadas". (Marcelino, 1983: p 21).

  • 67

    A existncia da segmentao das atividades, especialmente entre

    as chamadas atividades produtivas e as chamadas atividades ldicas, isto ,

    do tempo do trabalho e do no-trabalho, implicou na criao dos mundos

    separados do saber e do sabor, compreendendo o saber segundo Rubem

    Alves - como o mundo da utilidade e da eficincia. Acrescentaramos:

    (o mundo da informao); e o mundo do sabor - como o mundo do prazer, da

    felicidade, da alegria, da possibilidade de reencontrar com o prprio Homem re

    - humanizando-o, ao que ns acrescentaramos: um mundo de signos que

    exerce, atravs de impresses um sentido relacional nas formas humanas e

    (des)-humanas de ser e estar no mundo.

    No momento histrico, em que fica caracterizada a dicotomia

    trabalho e no trabalho, o modo de produo capitalista se impe, a mquina

    ganha status e o saber ganha um poder extraordinrio. Aceleram-se um

    processo de automao e consumo, predominando, ento, valores vinculados

    ao ter, e acumulao num modelo social extremamente exploratrio.

    Vale pena citar as cenas do filme Os Tempos Modernos 17 ,

    que retratam esse modo de produo de forma satrica, criando um modelo de

    produo alienante, advinda da Revoluo Industrial, assim como o filme " A

    Classe Operria Vai ao Paraso", que caracteriza esse mundo do saber.

    17Charlie Chaplin O Filme.

  • 68

    Esses so documentos que nos permitem acompanhar alguns

    aspectos do processo de transformao de valores atravs do qual se

    reconfigurou a sociedade e seus grupamentos educativos.

    O ento chamado modelo de sociedade burguesa predomina e

    com ele a dominao, a expropriao, o individualismo, a acumulao ganham

    espao surgindo, ento, os desnecessrios, termo cunhado por Rifkin (1997),

    que para Gentili (1996), corresponde a sociedade da excluso.

    Registram-se, ento, leituras desse quadro, como a de Althusser

    (1970), que caracteriza os aparelhos ideolgicos do estado", enquanto

    mantenedores da ordem vigente. Percebemos quanto o mundo do saber pode

    estar vinculado tese "ordem e progresso", ao mesmo tempo em que se

    apontam algumas instituies, como a escola, localizada no ponto de

    interseo da infra-estrutura e dos aparelhos repressivos e ideolgicos do

    Estado, tendo como funo bsica a reproduo das relaes materiais e

    sociais de produo.

    Vale dizer que a escola aparece, tambm, como responsvel pelo

    escamoteamento das relaes de expropriao e de desigualdade a que se

    sujeitam os atores sociais, assegurando a reproduo da fora de trabalho,

    transmitindo qualificaes necessrias para o mundo do trabalho, fazendo com

    que os indivduos se sujeitem estrutura de classes.

  • 69

    "A reproduo da fora de trabalho exige no somente

    uma reproduo da sua qualificao, mas ao mesmo

    tempo uma reproduo de sua submisso s regras da

    ordem estabelecida, i. e., uma reproduo da sua

    submisso ideologia dominante para os operrios e uma

    reproduo de sua capacidade de bem manejar a

    ideologia dominante para os agentes da explorao e da

    represso, a fim de assegurar, tambm pela palavra a

    dominao da classe dominante.(Althusser 1970:p 6)

    Hoje, somos filiados a leituras que consideram a possibilidade da

    aventura humana tornar-se autodestruio, assim como se torna

    autoregenerao, em virtude do seu inerente dinamismo, aonde a sociedade

    moderna vem determinando sua formao de classes, camada, ocupao,

    papis, famlia nuclear, setores de negcio.

    As formas sociais (industriais) desencrustam-se, desossificam-se

    (Beck 1994), ao tempo em que formas configuram-se, delineiam-se, atravs

    das mltiplas referncias e at mesmo das determinaes globais e locais,

    assim como dos mltiplos projetos de autoria via as idiossincrasias e

    transfigurando para uma modernizao reflexiva, (Beck 1994).

    Essas formas sociais apontam para a crtica da sociedade, na

    qual a escola transmuta-se para o modelo do sabor, atravs de prticas e

  • 70

    reflexes que sempre coexistiram no seio desta instituio e que durante a

    crise paradigmtica que vive ganham fora e espao.

    Como fica um currculo onde a produo de conhecimento se d

    sem uma concepo de conscincia; um currculo nascido de forma

    fragmentada e linear, onde escola, famlia, comunidade, natureza, o prprio

    mundo no se inter-relacionam?

    Currculo esse formulado exclusivamente enquanto instrumento

    estabelecido atravs de objetivos, mtodos, contedos, avaliaes, sem levar

    em conta a "prpria vida do indivduo numa situao de mundo", a partir do

    experienciado, isto , do "mundo vivido pelo sujeito, considerado como ser

    transformador? (Martins, 1992).

    Nos contrapomos, ento, a leituras que se aproximam da lgica

    linear e que informam, por exemplo, que sob o slogan educar, cabe formar

    cidados para servir sociedade, de forma disciplinar e obediente.

    Portanto, seja na perspectiva sob a qual formam-se mais

    excludos ou na perspectiva da construo ou (re) construo de cidados e do

    saber com mais sabores - a autoria, enquanto construo e/ou afirmao de

    identidade, se perde, pois j que nesta lgica de cidadania, o cidado ,

    meramente, o fruto de um super poder, muitas vezes oculto e quase sempre

    perverso.

  • 71

    Ressaltamos, porm, a validade das contribuies de Foucault

    (1987), que nos oferece elementos para a percepo do poder, vivenciado nas

    aes e relaes do cotidiano escolar, tais como os sistemas de avaliao e

    sanes escolares.

    A disciplina fabrica assim corpos submissos e

    exercitados corpos dceis. A disciplina aumenta as foras

    do corpo (em termos econmicos de utilidade) e diminui

    essas foras (em termos econmicos de obedincia). Em

    uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por

    um lado uma aptido, uma capacidade que ela procura

    aumentar; e inverte por outro lado energia, a potncia

    que poderia resultar disso, e faz dela uma relao de

    sujeio estrita. Se a explorao econmica separa a

    fora e o produto do trabalho, digamos que a coero

    disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma

    aptido aumentada e uma dominao acentuada".

    FOUCAULT, (1987: p127).

    Com essas consideraes, ns inferimos que, tanto o corpo

    mercador, como o corpo mercadoria regido por sanes normativas nas

    quais; o til e o inteligvel esto presentes, criando a docilizao desses

    corpos (FOULCAULT, 1987).

  • 72

    Poderamos concluir, explicitando uma compreenso da

    humanidade, a partir desse quadro social capitalista e dos olhares at aqui

    sistematizados? Ser que neste momento de transio ou transformao

    humanas, e de utilizao de novas descobertas cientficas tecnolgicas, a

    humanidade se humaniza? E se humaniza, por que precisa docilizar e explorar

    sujeitos?

    Neste sentido, concordamos com Morin (1995), quando diz que:

    Aprender a ser aprender a viver, a partilhar, a comunicar, a comungar

    enquanto humanos do planeta Terra"; e da premncia dessa aprendizagem.

    E se pensarmos nos grupamentos educativos enquanto lcus do

    saber, que, por muitas vezes, se apresentam sem sabor, e sob a gide de que

    ela reforou e refora valores de submisso e expropriao. Podemos ter a

    impresso de que nos tornaremos mais individualistas, mais egostas e que

    usaremos exclusivamente, o mundo do saber em funo da prpria

    sobrevivncia, causando-nos desequilbrios de ordem interna e externa.

    Mas, em meio desenfreada busca do ter mais, e dos rgidos

    valores do mundo do trabalho, onde predomina a construo da mais valia, que

    implica na ampliao e aprofundamento das desigualdades sociais, emergem

    demandas, de resistncias s tendncias institudas, em configuraes sociais

    alternativas, processo individuao, torna-se impossvel debrear esses e outros

    movimentos que acontecem concomitantemente ao quadro antes descrito.

  • 73

    Se a Revoluo Industrial no satisfaz aquele homem que veio da

    pedra lascada at chegar aos nveis de automao atuais, j que hoje ele

    necessita transpor o mundo das mquinas e viajar por uma nova tecnologia

    que lhe possibilite uma comunicao de velocidade inimaginvel, superando

    barreiras que a ele mesmo surpreende, essas novas necessidades incitam-no

    a uma nova transcendncia que implicar em novas configuraes, impossveis

    de serem precisamente delineadas de formas apriorsticas.

    Tomando-se os estudos de Rifkin, em sua apoc