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TRABALHO E VALOR: A ANÁLISE CLÁSSICA E SUA CRÍTICA

Daniel Romero1

Apresentação

Este texto faz uma breve análise comparativa das teorias do valor de Adam

Smith (1974), David Ricardo (1974) e Karl Marx (1988). Em relação aos dois

primeiros, procuramos ressaltar como a concepção de ordem natural subjacente à obra

de ambos e sua influência na formulação das respectivas teorias do valor-trabalho. Em

relação a Marx, nosso objetivo foi mostrar que o mesmo não procura responder de

modo mais adequado as mesmas preocupações dos autores da Economia Política

Clássica, mas muda radicalmente o seu foco de análise em função do método original

que formula, o que acaba resultando, como sugere Belluzzo (1998), na constituição de

uma teoria da valorização.

Os valores de Smith

Ao que parece, Adam Smith não tinha completa noção do alcance de suas

próprias descobertas. Ao mesmo tempo que permite identificar o trabalho como a

única fonte do valor, o economista defende que o trabalho na agricultura é mais

produtivo do que o dos demais setores em função de uma suposta “produtividade

natural da terra” (cf. Napoleoni, 1983: 73), e ainda afirma que o trabalho precisa

dividir com o capital e a terra o caráter de produtivos, uma vez que estes seriam os

três fatores de produção responsáveis pela criação de toda renda ou riqueza (Belluzzo,

1998: 32).

Ainda assim, estas “incoerências” na obra de Smith não a tornaram um

objeto apenas de curiosidade intelectual; ao contrário, são ainda hoje objeto de séria

reflexão. A que se deve isso, passados quase 250 anos? Talvez uma resposta possível

seja o fato de A Riqueza das Nações, em sua época, não ter se prestado a uma função

mistificadora, apologeta da sociedade burguesa nascente (como ocorreu com vários de

seus seguidores e que ficaram conhecidos pela alcunha marxiana de “economistas

vulgares”). Inversamente, Adam Smith apreendeu traços objetivos da dinâmica da

1 Mestre em Sociologia pela Unicamp, professor do CEFET-BA, autor do livro Marx e a Técnica da Editora Expressão Popular e membro do Ilaese (Instituto Latino-americano de Estudos Sócio-econômicos).

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produção capitalista, mesmo quando não teve sucesso com o que se propôs explicar,

como foi o caso da teoria do valor, que discutiremos agora.

Como é ressaltado por vários comentadores, Smith formula duas teorias do

valor-trabalho, a do trabalho comandado e a do trabalho contido, sendo que a última

acaba sendo preterida em relação à primeira.

Para Smith, o valor das mercadorias é equivalente à quantidade de trabalho

que estas mercadorias podem comandar ou demandar. O autor procura dar a esta

definição uma validade não apenas para a sociedade capitalista, mas um tratamento

universal. Deste modo, além de considerar a própria noção de valor como algo

ahistórico, o autor também identifica na categoria trabalho a medida precedente e

natural da troca: “Não foi com ouro ou prata, mas sim com trabalho, que

primeiramente foi comerciada toda a riqueza do mundo; e o seu valor para aqueles

que a possuem e que pretendem trocá-la por quaisquer produtos é precisamente igual

à quantidade de trabalho que lhes permite adquirir poder de compra” (Smith, 1974:

33).

Quando esta definição de valor é utilizada para interpretar a troca nas

sociedades pré-capitalistas, ou seja, numa sociedade de produtores privados

independentes, o autor percebe que existe uma relação de igualdade entre o valor do

trabalho e o valor dos produtos do trabalho; em resumo: o trabalho vale aquilo que

ele produz. Deste modo, “(...) a quantidade de trabalho posta em movimento por uma

determinada mercadoria identificava-se com a quantidade de trabalho contido nessa

mercadoria; daí que a relação de troca entre duas mercadorias chegava a identificar-se

com a relação entre as quantidades de trabalho contido nas próprias mercadorias”

(Napoleoni, 1983: 97).

Ou seja, se x mercadorias A podem ser trocadas por y mercadorias B, é

porque ambas contém quantidades iguais de trabalho. Mas, além disso, x mercadorias

A também poderiam ser trocadas, por exemplo, por uma hora de trabalho. Isto,

porque, em uma hora deste trabalho, se produziria o equivalente a x mercadorias A.

Deste modo, na sociedade mercantil simples, a quantidade de trabalho que

uma mercadoria demandaria seria igual à quantidade de trabalho que ela contém e é

esta relação de equivalência que tanto permitiria quanto tornaria inteligível a troca:

“Nestas condições [pré-capitalistas], o produto total do trabalho

pertence ao trabalhador, e a quantidade de trabalho normalmente

empregue para adquirir ou produzir qualquer mercadoria é a única

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circunstância passível de regular a quantidade de trabalho que ela

pode comprar ou pela qual pode ser trocada” (Smith, 1974: 47).

Considerando ainda esta sociedade, na qual o indivíduo é ao mesmo tempo

trabalhador e proprietário dos meios de produção, o ato da troca possibilitaria ao

produtor/proprietário adquirir integralmente o valor do seu trabalho. Sendo assim,

nesta sociedade, um homem seria considerado rico de acordo com a sua capacidade de

satisfazer suas necessidades por meio do seu próprio trabalho: uma vez que o

“padrão” das trocas seria M-D-M (ou mesmo M-M), o indivíduo não teria condições

de adquirir um valor superior aquele que ele pessoalmente incorporasse à mercadoria.

Caso um indivíduo quisesse aumentar o preço de sua mercadoria para conquistar uma

renda extra por meio da troca, ação semelhante seria tomada pelos demais agentes, o

que anularia os ganhos extras do primeiro.

Contudo, Smith percebe que, uma vez superado este estado “rude e

primitivo”, como denomina o autor, e ter se desenvolvido a apropriação privada dos

meios de produção, a troca entre mercadoria-mercadoria não se assemelha à troca

entre capital e trabalho e que, neste caso, a quantidade de trabalho comandada é

sempre superior à quantidade de trabalho contida na mercadoria.

Em relação à troca de capital por trabalho assalariado, Smith faz o seguinte

raciocínio: uma mercadoria equivalente a 10 horas de trabalho contido é usada para

comprar igualmente 10 horas de trabalho assalariado. Mas, estas 10 horas de trabalho

produzem uma quantidade de mercadorias, por exemplo, uma vez e meia superior às

mercadorias recebidas para sua subsistência. Deste modo, a quantidade de trabalho

contido na mercadoria é de 10 horas (ou seja, o valor dos meios de subsistência do

trabalho ou o valor da força de trabalho, em Marx); mas, a quantidade de trabalho

comandado é de 15 horas. Para Smith, o valor da mercadoria se explica pelo segundo

caso, como trabalho comandado. Como não vê modo de resolver este impasse se não

rompendo com a lei da equivalência, decide abandonar a noção de trabalho contido e

se propõe a trabalhar apenas com a idéia de trabalho comandado.

O mérito de Smith consiste em ter percebido que a troca fundamental na

sociedade capitalista é aquela realizada entre capital e trabalho assalariado, o que

determina que os trabalhadores não recebam o equivalente aos produtos do seu

trabalho. Se a igualação entre valor do trabalho e valor dos produtos do trabalho podia

ser válida para uma sociedade de produtores privados independentes, não o é para a

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sociedade capitalista. Contudo, Smith não faz esta conclusão. O autor continua

raciocinando como se os trabalhadores vendessem trabalho e não força de trabalho.

Mesmo assim, Smith percebe que a explicação do excedente ainda não está

resolvida pela teoria que desenvolveu. Inclusive, ele mesmo se dá conta da origem do

lucro ao associá-lo a uma parte de trabalho que não é revertida aos trabalhadores, mas

apropriada sem remuneração pelo capitalista:

“Ao trocar o objeto manufaturado por dinheiro, trabalho ou outras

mercadorias, por um preço superior ao que é necessário pagar

pelos materiais usados e pelos salários dos trabalhadores, algo

deve ficar para aquele que arriscou a sua reserva de mercadorias

nesta aventura. O valor que os trabalhadores acrescentam aos

materiais, portanto, divide-se neste caso em duas partes, uma das

quais paga os seus salários e a outra constitui os lucros, daquele

que os empregou, sobre a reserva de materiais e salários

adiantados” (Smith, 1974: 47).

Mas, como lembra Belluzzo, o surpreendente é o fato do autor, depois de ter

explicitado de modo tão claro a natureza do lucro, ter “recuado” nesta via de

explicação e ter optado por afirmar que também terra e capital são produtivos, uma

vez que a renda total é repartida entre salário, lucro e renda. Deste modo, a origem do

excedente, que desde os Fisiocratas é um problema sem solução, não recebe uma

resposta satisfatória com Smith

Ao começar pela análise da divisão do trabalho em A Riqueza das Nações,

Smith sugere de antemão que a explicação fisiocrática para a origem do excedente

não prodece: seria absurdo considerar o trabalho manufatureiro improdutivo. Logo em

seguida, também percebe que o desenvolvimento das forças produtivas recebe um

grande impulso com a apropriação privada dos meios de produção, o que exige uma

demanda constante de mais trabalho. Contudo, quando se trata de explicar a origem

desse excedente, o autor não rompe com a visão de equilíbrio e de troca de

equivalentes, mesmo tendo identificado o lucro como uma “dedução do trabalho”.

Não obstante, como lembra Napoleoni, o conceito de trabalho comandado,

apesar de ser radicalmente insuficiente na explicação das trocas, oferece uma sugestão

para a compreensão do regime do capital, que talvez se perca em Ricardo pelo fato

deste ter orientado suas preocupações principalmente para o processo de distribuição.

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A primeira coisa a destacar é que Smith percebe uma certa desigualdade na

relação capital-trabalho. Contudo, como está convicto no equilíbrio e harmonia do

capitalismo, não transforma esta noção em princípio da contradição. Antes, parece

preferir interpretar a incoerência de sua explicação apenas como uma dificuldade

epistemológica, não como natureza contraditória do próprio real.

É também com a idéia de trabalho comandado que Smith sugere (e talvez

nem mesmo perceba) que a produção capitalista não está voltada para o consumo, mas

para a valorização do valor. O conceito de trabalho comandado informa que, quando o

dinheiro transforma-se em capital, ele exige continuamente uma escala de produção

sempre superior ao seu início, portanto, uma acumulação ampliada de capitais

independente do nível de consumo e que, portanto, não são as necessidades que

determinam a escala de produção, mas é esta que define a massa de produtos: não se

trata de produzir valores de uso – diria Marx –, mas valores de troca, ainda que se

produza valores de uso.

A conclusão de Marx sobre esta inversão é que o capital tornou-se o sujeito

da produção e, com a conseqüente expansão e desenvolvimento da divisão do

trabalho, o capital torna o processo social de produção independente dos produtores

privados e a “(...) independência recíproca das pessoas se complementa num sistema

de dependência reificada universal” (Marx, 1988, v. 01: 95).

A conclusão de Smith é bem diversa. Na verdade, não percebe esta situação

como um processo de reificação social. Ao contrário, concebe a economia capitalista

como a realização máxima das vontades naturais do indivíduo, vontades estas que

ainda determinariam a lógica da produção de mercadorias.

O valor do silêncio em Ricardo

Os Princípios de Economia Política e Tributação de David Ricardo (1974),

visivelmente de leitura menos envolvente que a obra de seu predecessor, tem uma

obstinação clara: conferir um estatuto científico ao estudo econômico. Isto implica,

principalmente, descobrir as leis naturais que regem ou influenciam o comportamento

humano no plano da produção material, para poder controlar esta produção por meio

da previsão.

Neste sentido, pode-se destacar a empreitada do autor em descobrir como

que fenômenos exógenos ao capitalismo (lei da população e fertilidade da terra)

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regulariam e limitariam a sua produção, procurando prever o sentido do

desenvolvimento capitalista (a queda da taxa de lucro pelo uso de terras menos

férteis) com o objetivo de minorar os seus efeitos negativos (por meio do fim do

monopólio da terra e da Lei do Trigo).

Assim como O Capital de Marx contribuiu para a luta do movimento

operário, de alguma maneira a obra de Ricardo sistematiza uma visão já bastante

madura da burguesia industrial e a prepara, estrategicamente, para os já antigos

enfrentamentos com a aristocracia rural inglesa.

Um outro momento claro deste “projeto científico ricardiano” é o emprenho

do autor em definir uma medida invariável para as trocas. Para Ricardo, a teoria do

valor-trabalho de Smith não obteve êxito porque caía num evidente círculo vicioso:

identificava a proporção em que se trocam trabalho e capital como critério para a

determinação do valor-troca, quando, justamente, é esta proporção que precisa ser

explicada.

A maior preocupação de Ricardo era compreender os “mecanismos de

cresimento” da economia capitalista; para tal, era necesário determinar a evolução na

taxa de lucro. Inicialmente, Ricardo procura fazer isso se utilizando de um produto

cujo preço sofria poucas oscilações: o trigo. Acreditava que a evolução da taxa de

lucro pudesse ser fisicamente medida por meio da quantidade de trigo produzida em

relação à quantidade de trigo consumida pelos trabalhadores.

A inovação que o autor faz nos Princípios foi a de substituir o trigo pelo

trabalho, acreditando ter melhorado seus instrumentos de aferição: Ricardo retoma a

idéia smithiana de trabalho contido para considerá-lo como medida-padrão do valor, e

abandona a idéia de trabalho comandado:

“(...) a quantidade comparativa de mercadorias que o trabalho pode

produzir é que determina seu valor relativo presente ou passado, e não

as quantidades comparativas de mercadorias que são dadas ao

trabalhador em troca de seu trabalho” (Ricardo, 1974: 258).

O autor ainda procura demonstrar que o trabalho contido usado como medida

do valor permite avaliar a troca de mercadorias independente da proporção em que

cada uma contém de trabalho vivo ou morto.

Segundo Belluzzo, Ricardo trabalha com uma idéia reducionista do valor,

pois o trabalho assume uma figura meramente instrumental em sua teoria: “(...)

‘valor’ para Ricardo se reduz ao problema da medida do valor” (1998: 46).

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Ricardo se propõe a responder de modo mais adequado algumas das

preocupações que já estavam em Smith e que se mostraram insatisfatórias. Sem

dúvida, o autor oferece uma explicação mais coerente do que a de Smith para a

determinação das trocas entre mercadorias. Mas não entre capital e trabalho. Como

lembra Napoleoni (1981), não é possível determinar o valor do trabalho no horizonte

da teoria de Ricardo, uma vez que seríamos obrigados a afirmar que “o valor do

trabalho é o trabalho contido no trabalho” (1981: 17). E quando se trata de analisar a

natureza do lucro, o limite do autor também é o mesmo do economista escocês: a

origem do excedente não é explicada.

Só que, no caso de Ricardo, a situação é mais estranha. Segundo Belluzzo, o

autor “(...) admite, implicitamente, que há um momento, no processo de troca, em que

a lei do valor é burlada, isto é, não há troca de equivalentes” (1998: 48). Mas o que

se segue depois disso é um profundo silêncio: o autor “registra o fato, mas abandona

a discussão nesse ponto” (idem).

De fato, após Ricardo ter percebido a inequivalência na troca entre capital e

trabalho2, em seguida encaminha a discussão para a determinação de valores relativos,

talvez concebendo a inequivalência referida como resultado de fatores distintos que

interferiram na oscilação dos valores do trabalho e das mercadorias também de modo

distinto. De qualquer modo, não vai muito além disso.

Mesmo que Ricardo não avance na explicação da origem do lucro e não se

questione em relação ao fato do trabalho assumir a forma-valor apenas em condições

históricas específicas, o autor tem seu ponto alto um pouco mais à frente: mais

precisamente, no capítulo XXXI dos Princípios.

Sabemos que antes, na teoria dos salários, Ricardo procura mostrar que não

deveria existir oposição entre trabalhadores e patrões na determinação dos salários,

uma vez que estes, além de estarem dependentes de um fundo previmante fixado,

também estariam condicionados ao crescimento da população trabalhadora em função

da lei da oferta e da procura. Portanto, a longo prazo, não há como o salário fugir do

seu “preço natural”, independente da ação das classes sociais.

O afã de oferecer um alto grau de cientificidade à regulação dos elementos

da economia capitalista, fez com que Ricardo desmerecesse as interessantíssimas

2 “Se isto fosse verdadeiro – se a recompensa do trabalhador fosse sempre proporcional ao que ele produz –, a quantidade de trabalho empregada num bem e a quantidade de trabalho que este bem compraria seriam iguais, e qualquer delas poderia medir com precisão a variação de outras coisas. Mas não são iguais” (Ricardo. 1974: 256).

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passagens de Smith sobre a questão dos salários. Smith, mesmo admitindo a “tese

demográfica”, lucidamente aponta, no capítulo VIII de A Riqueza das Nações,

também para a luta de classes entre patrões e empregados na determinação dos

salários:

“Os salários normais do trabalho dependem em cada caso do contrato

normalmente feito entre ambas as partes, os seus interesses não são de

forma alguma os mesmos. Os trabalhadores desejam ganhar o máximo

e os patrões pagar-lhes o mínimo possível. Tanto uns como os outros

tentam agrupar-se entre si com o fim de obterem, respectivamente,

aumentos ou baixas de salários” (Smith, 1974: 62).

Mas Ricardo parece não admitir esta oposição. Não obstante, em relação à

introdução de máquinas, a situação é bem diferente. Ela não altera a fixação dos

salários, mas pode representar uma diminuição absoluta de emprego de trabalho, ou

seja, trabalhadores e patrões fatalmente se oporiam, na medida em que a introdução

de máquinas resulta num aumento do desemprego.

O interessante deste ponto é que Ricardo rompeu com a “teoria da

compensação”, à qual, ao que parece, houvera manifestado apoio verbalmente.

Segundo esta teoria, o capital que a maquinaria libera, que antes estava sendo usado

na contratação de trabalhadores, acaba migrando para outros setores, empregando

tantos trabalhadores quanto antes e, portanto, a maquinaria não causaria diminuição

do emprego de trabalhadores.

O afastamento de Ricardo deste ponto de vista e sua conseqüente divulgação

foi, para Marx, digna de nota, literalmente: Marx aponta a honestidade intelectual do

autor em uma das notas do capítulo XIII de O Capital.

Marx e o “princípio da contradição”

Diferente de Ricardo, que ainda está ligado ao paradigma fisiocrático-

smithiano, Marx – destaca Belluzzo – “não se limitou a responder de maneira mais

coerente às mesmas perguntas, mas formulou, ele próprio um outro conjunto de

questões” (1998: 37).

Marx se propõe, explicitamente, a romper com a problemática clássica.

Como ele mesmo afirma no volume 03 de O Capital, seu objetivo não é o de explicar

como se produz na sociedade, mas como se produz a sociedade. Se podemos falar que

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Smith estava preocupado com as causas da produção da riqueza e Ricardo com os

mecanismo de crescimento econômico e a distribuição da renda total entre as classes,

Marx também vai abordar estas questões, mas acredita que só é possível fazê-la se se

explicar como se produzem as condições de produção capitalistas.

Neste sentido, a última coisa que o autor faz é conceber o valor como algo já

dado. Ao contrário, já no capítulo 01 de O Capital, Marx demostra uma de suas

preocupação centrais, explicar em que condições o trabalho assume a forma-valor.

Não por acaso este mesmo capítulo termina com o item do fetichismo da mercadoria,

procurando fazer a crítica das robinsonadas da Economia Política Clássica.

Deste modo, já de início, Marx mostra que, além dos objetivos da

investigação não serem os mesmos, também o ponto de partida não o é. O autor

começa sua análise não do valor (como fez Ricardo), nem da divisão do trabalho

(como Simth), mas da mercadoria. A primeira não existe por si, é a forma do trabalho

numa sociedade produtora de mercadorias. A segunda pressupõe a explicação de

categorias anteriores, como o capital, o dinheiro e a própria mercadoria. Apenas a

terceira é a forma mais elementar da sociedade burguesa, não supõe nada logicamente

“anterior” a ela.

Mesmo sem estar preocupado em descobrir uma “medida invariável do

valor”, ainda assim Marx flerta com Ricardo na elaboração da teoria do valor. Mas

para Marx é errôneo considerar, como fez Ricardo, que o valor de troca das

mercadorias equivale à quantidade de trabalho incorporada nelas. Afirmar isso é

insuficiente porque ainda está obscurecida a principal questão: por que os produtos do

trabalho humano precisam se transformar em mercadorias? A definição precedente, se

fosse igual a de Marx, também poderia nos conduzir ao erro de acreditar que a teoria

do valor de Marx está baseada e preocupada em identificar a proporção material das

trocas.

Isaak Rubin, de modo bastante adequado, localiza o sentido histórico da

teoria do valor-trabalho de Marx:

“A habitualmente breve formulação dessa teoria sustenta que o valor da mercadoria depende da quantidade de trabalho socialmente necessário para sua produção (...). É mais exato expressar inversamente a teoria do valor: na economia mercantil-capitalista, as relações de produção entre os homens em seu trabalho necessariamente adquirem a forma de valor das coisas, e só podem aparecer nesta forma material; o trabalho social só pode expressar-se no valor. Aqui, o ponto de partida para a investigação não é o valor, mas o trabalho, não as transações de troca no mercado enquanto tais, mas a estrutura de produção da sociedade

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mercantil, a totalidade das relações de produção entre as pessoas (...). A teoria do valor-trabalho não está baseada numa análise das transações de troca enquanto tais em sua forma material, mas na análise das relações sociais de produção que se expressam nas transações” (1980: 77).

Ou seja, segundo Rubin, a teoria do valor-trabalho de Marx não está baseada

na proporção quantitativa, contábil, da troca, mas nas relações sociais de produção

que se expressam na troca. Os trabalhos não adquirem naturalmente uma forma

social, só o fazem na medida em que são trabalhos abstratos. É esta forma do trabalho

que possibilita a conversão dos trabalhos privados em coletivos, em trabalho social

total, indiferente ao produtor em particular.

Uma vez consolidado e generalizado o mercado, por meio da expropriação

dos meios de produção dos trabalhadores, a produção material não visa o consumo de

valores de uso, mas o consumo de trabalho. É como se erigisse, no capitalismo, uma

“segunda natureza”, que se sobrepõe à relação natural de intercâmbio entre homem e

natureza, e esta “atividade natural e eterna” – explica Belluzzo – “torna-se mero

instrumento do trabalho social, cuja sociabilidade não é dada de antemão, mas resulta

da troca e, por isso, seu produto, a mercadoria, exprime-se como valor” (1998: 99).

O que explica a proporção em que as mercadorias são trocadas na sociedade

capitalista, não é quantidade de trabalho que o indivíduo A incorporou à sua

mercadoria (e que o possibilitaria trocar pela mesma quantidade de trabalho

incoporada na mercadoria do indivíduo B). A resposta está em como e quanto do

trabalho particular de A e B se transformam numa fração do trabalho social total.

Esta determinação não pode ser verificada previamente, no ato da produção,

mas apenas no processo de troca, e submetida às oscilações do mesmo, bem como às

mudanças na produtividade do trabalho. “O trabalho não confere, por si mesmo, valor

aos produtos: somente o trabalho organizado numa determinada forma social”

(Rubin, 1980: 84). O indivíduo A pode descobrir, inclusive, a despeito de seu grande

esforço pessoal, que o produto que ele levou ao mercado não possui valor algum,

“simplesmente” pelo fato de não ter sido trocado por dinheiro.

Como Marx não retoma a idéia smith-ricardiana de trabalho contido, mas

identifica que o valor da mercadoria está determinado pelo trabalho socialmente

necessário para a produção desta mercadoria, é porque está subordinando a magnitude

do trabalho à sua forma social.

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E o que confere o caráter socialmente necessário ao trabalho não são os

agentes produtivos nem as necessidade dos sujeitos, mas é a maneira pela qual se

organizam os elementos materias da produção: terra, trabalho e capital. O que o

mercado confere como socialmente necessário não impede que isto seja inferior ao

naturalmente necessário para uma grande parcela da classe trabalhadora.

Por fim, como já dissemos, a produção capitalista não está subordinada ao

consumo e tão pouco a distribuição do trabalho social está subordinada às

necessidades dos indivíduos. Contudo, a crítica de Marx ao modo de produção

capitalista não pode ser apreendida como se a luta de classes se reduzisse a uma luta

distributivista. Trata-se de superar o processo de reificação social necessário às

relações mercantis. Trata-se de abolir o valor de troca. No capitalismo, só por meio

das coisas (terra, trabalho e capital) é que se torna possível a relação entre as pessoas

(proprietário de terras, trabalhador assalariado e capitalista).

Nesse sentido, o capital torna-se o sujeito da produção social: as condições

de produção aparecem como alheias e hostis aos trabalhadores e o próprio

desenvolvimento tecnológico, uma vez adequado à extração de mais-valia relativa e

subordinado à acumulação ampliada, permite ao capital emancipar-se dos

trabalhadores no âmbito do processo de produção: a teoria do valor, deste modo,

transforma-se, em Marx, em uma teoria da valorização (cf. Belluzzo, 1998). Inclusive,

apenas por meio desta nova formulação é que se torna compreensível (ao menos, um

pouco mais) a ação do capital em negar o valor com o desenvolvimento das forças

produtivas.

É como se o capital se alimentasse de uma “dialética do tempo livre”: quanto

mais se torna possível a sociedade do tempo livre sob a lógica do capital, maior é a

sociedade do trabalho ou, como diria Tosel (1995), a sociedade do não-trabalho no

trabalho.

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Bibliografia

BELLUZZO, Luiz Gonzaga de Mello (1998). Valor e Capitalismo. Um ensaio sobre a

Economia Política. Campinas, Ed. Unicamp,

MARX, Karl (1988). O Capital. São Paulo, Abril.

NAPOLEONI, Claudio (1978). Smith, Ricardo, Marx. Rio de Janeiro, Graal.

______ (1981). Lições sobre o Capítulo VI (Inédito) de O Capital. São Paulo, Ciências

Humanas.

RICARDO, David. (1975). “Princípios de Economia Política e Tributação” in: Os Pensadores.

São Paulo, Abril Cultural, vol. XXVIII.

RUBIN, Isaak. (1980). A Teoria Marxista do Valor. São Paulo, Brasiliense.

SMITH, Adam. (1975). “A Riqueza das Nações” in: Os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural,

vol. XXVIII.

TOSEL, André. (1995). “Centralidade e Não-centralidade do Trabalho ou a Paixão dos

Homens Supérfluos” (mimeo do artigo publicado em: BIDET, J. & TEXIER, J. La Crise

du Travail. Paris, PUF).