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Torres Vedras Nova História Local . Edições Colibri . C. M. Torres Vedras . Inst. Alexandre Herculano, 2018, pp. 9-30 9 Romanos e Bárbaros na região de Torres Vedras Vasco Gil Mantas * Redigir uma síntese sobre a região de Torres Vedras durante o domínio romano e no confuso período em que os bárbaros se instalam tornou-se, apesar de muitas dificuldades subsistentes, mais fácil hoje do que poucas décadas atrás. As referidas dificuldades resultam em parte das características das fontes disponíveis, na maioria arqueológicas e epigráficas, e da falta de escavações científicas em quase todos os sítios arqueológicos identificados, aliás já muito numerosos nos anos oitenta do século passado 1 . Por essa altura, a bibliografia recente sobre a presença romana na região torriense era ainda muito limitada, destacando-se uma longa série de nótulas publicadas no jornal Badaladas por Aurélio Ricardo Belo e diversos trabalhos de Leonel Trindade, Octávio da Veiga Ferreira, Justino Mendes de Almeida e Fernando Bandeira Ferreira, sem esquecer o trabalho anterior de Júlio Vieira, embora de cariz mais geral. Possuindo uma ligação familiar ao concelho, interessámo-nos naturalmente pelo seu passado romano, publicando em 1983 e 1985 dois artigos sobre a epigrafia romana do termo torriense 2 , no que fomos incondicionalmente apoiados por Leonel Trindade, então diretor do museu local, e auxiliados no levantamento fotográfico pelo malogrado Delfim Ferreira. O início, em 1998, por iniciativa da Câmara Municipal de Torres Vedras e com a tutela científica da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, das Jornadas Turres Veteras abriu novas e fecundas perspetivas à investigação sobre a arqueologia e a história da região, apesar da temática selecionada nem sempre privilegiar a Antiguidade. A regularidade com que o evento se vem realizando, cumprindo-se agora a vigésima jornada, e a pontualidade com que a edição das atas se cumpre merecem incondicional aplauso, sobretudo numa época em que tantos municípios deixaram cair projetos culturais semelhantes, alguns deles com prestigiosa tradição. Fazemos votos para que assim não aconteça em Torres Vedras, independentemente das dificuldades pontuais que se possam verificar, seguramente menos importantes que a continuidade do evento. Antes de mais, é necessário identificar o que consideramos como região de Torres Vedras, uma denominação um tanto vaga, suscetível de várias interpretações. Embora centremos a análise preferencialmente no termo concelhio, sublinhamos que, em relação à Antiguidade, tal circunstância não tem grande sentido, tanto mais que na época romana e no dealbar da Idade Média a área em torno de Torres Vedras se integrava claramente na zona de influência de Lisboa. Esta dependência, sobretudo para o período romano, levar-nos-ia a desenvolver um estudo alargado do território olisiponense, desviando-nos da linha desejada, afinal a caracteri- * Universidade de Coimbra, Faculdade de Letras, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos. 1 ALARCÃO, Jorge de Roman Portugal. Warminster: Aris & Phillips, 1989. II:2, p. 116-118, mapa 5, a-b. 2 MANTAS, Vasco Inscrições romanas do Museu Municipal de Torres Vedras. Conimbriga. Coimbra. 21 (1989) 5-99; MANTAS, Vasco Três inscrições romanas do Concelho de Torres Vedras. Conimbriga. Coimbra. 24 (1985) 125-149.

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Page 1: Romanos e Bárbaros na região de Torres Vedras · Romanos e Bárbaros na região de Torres Vedras Vasco Gil Mantas* Redigir uma síntese sobre a região de Torres Vedras durante

Torres Vedras – Nova História Local . Edições Colibri

. C. M. Torres Vedras . Inst. Alexandre Herculano, 2018, pp. 9-30

9

Romanos e Bárbaros na região de Torres Vedras

Vasco Gil Mantas*

Redigir uma síntese sobre a região de Torres Vedras durante o domínio romano e no

confuso período em que os bárbaros se instalam tornou-se, apesar de muitas dificuldades

subsistentes, mais fácil hoje do que poucas décadas atrás. As referidas dificuldades

resultam em parte das características das fontes disponíveis, na maioria arqueológicas e

epigráficas, e da falta de escavações científicas em quase todos os sítios arqueológicos

identificados, aliás já muito numerosos nos anos oitenta do século passado1. Por essa

altura, a bibliografia recente sobre a presença romana na região torriense era ainda muito

limitada, destacando-se uma longa série de nótulas publicadas no jornal Badaladas por

Aurélio Ricardo Belo e diversos trabalhos de Leonel Trindade, Octávio da Veiga Ferreira,

Justino Mendes de Almeida e Fernando Bandeira Ferreira, sem esquecer o trabalho

anterior de Júlio Vieira, embora de cariz mais geral.

Possuindo uma ligação familiar ao concelho, interessámo-nos naturalmente pelo seu

passado romano, publicando em 1983 e 1985 dois artigos sobre a epigrafia romana do

termo torriense2, no que fomos incondicionalmente apoiados por Leonel Trindade, então

diretor do museu local, e auxiliados no levantamento fotográfico pelo malogrado Delfim

Ferreira. O início, em 1998, por iniciativa da Câmara Municipal de Torres Vedras e com

a tutela científica da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, das Jornadas Turres

Veteras abriu novas e fecundas perspetivas à investigação sobre a arqueologia e a história

da região, apesar da temática selecionada nem sempre privilegiar a Antiguidade. A

regularidade com que o evento se vem realizando, cumprindo-se agora a vigésima

jornada, e a pontualidade com que a edição das atas se cumpre merecem incondicional

aplauso, sobretudo numa época em que tantos municípios deixaram cair projetos culturais

semelhantes, alguns deles com prestigiosa tradição. Fazemos votos para que assim não

aconteça em Torres Vedras, independentemente das dificuldades pontuais que se possam

verificar, seguramente menos importantes que a continuidade do evento.

Antes de mais, é necessário identificar o que consideramos como região de Torres Vedras,

uma denominação um tanto vaga, suscetível de várias interpretações. Embora centremos a

análise preferencialmente no termo concelhio, sublinhamos que, em relação à Antiguidade, tal

circunstância não tem grande sentido, tanto mais que na época romana e no dealbar da Idade

Média a área em torno de Torres Vedras se integrava claramente na zona de influência de

Lisboa. Esta dependência, sobretudo para o período romano, levar-nos-ia a desenvolver um

estudo alargado do território olisiponense, desviando-nos da linha desejada, afinal a caracteri-

* Universidade de Coimbra, Faculdade de Letras, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos. 1 ALARCÃO, Jorge de – Roman Portugal. Warminster: Aris & Phillips, 1989. II:2, p. 116-118, mapa 5, a-b.

2 MANTAS, Vasco – Inscrições romanas do Museu Municipal de Torres Vedras. Conimbriga.

Coimbra. 21 (1989) 5-99; MANTAS, Vasco – Três inscrições romanas do Concelho de Torres Vedras.

Conimbriga. Coimbra. 24 (1985) 125-149.

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Vasco Gil Mantas

10 TORRES VEDRAS – NOVA HISTÓRIA LOCAL

zação da zona setentrional desse território durante um período de aproximadamente nove

séculos, considerando como limite superior a invasão muçulmana de 711.

Não quer isto dizer que respeitemos rigorosamente os limites concelhios atuais, pois

não o poderíamos fazer atendendo às circunstâncias históricas envolvidas, mais fáceis de

avaliar respeitando entidades, também não muito precisas, como Península de Lisboa,

neste caso englobando o espaço entre o Atlântico e o Tejo, ou ainda considerando a área

meridional da Região Oeste. Na verdade, deparamos com o habitual problema de acomo-

dar a uma realidade antiga, de limites nem sempre perfeitamente definidos, um estudo

tendo como referência central uma estrutura administrativa moderna. A ausência de gran-

des povoados do período romano na região torriense complica também a questão, tanto

mais que Mela situa na faixa atlântica a norte de Lisboa os Turdulorum oppida, entre os

quais provavelmente se incluía Torres Vedras, uma vez que não cremos que a referência

apenas se possa aplicar para norte do Cabo Carvoeiro, mas sim a partir do Cabo da Roca,

tal como o define Plínio3. Seja como for, a área considerada aparenta uma razoável identi-

dade, sobretudo definida pelas condições naturais, à margem da organização administra-

tiva antiga. Todavia, não deixa de ser interessante reparar que os limites do Distrito de

Lisboa se aproximam muito, com exceção do que falta a sul do Tejo, dos prováveis

confins do município de Olisipo, como veremos oportunamente, o que sugere persistentes

fenómenos de continuidade, pouco contrariados pela orografia e hidrografia desta

autêntica sub-região natural (Fig. 1).

Fig. 1 – A Região Oeste, o Concelho de Torres Vedras e os limites prováveis

do território de Felicitas Iulia Olisipo.

3 PLÍNIO-O-VELHO, NH, IV, 113.

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Romanos e Bárbaros na região de Torres Vedras

TORRES VEDRAS – NOVA HISTÓRIA LOCAL 11

Os contactos da região torriense com o Mediterrâneo desenvolveram-se cedo,

integrando-se perfeitamente no cenário orientalizante estimulado pela frequência da

navegação fenício-púnica, que tinha em Olisipo um dos seus principais portos da fachada

atlântica4. Esses contactos registaram-se arqueologicamente mesmo em Torres Vedras, e

no mar, não muito longe, nas Berlengas5, sendo desnecessário desenvolver aqui uma

análise mais alargada de uma atividade que marcou culturalmente quer o litoral ocidental

da Península Ibérica, quer também o interior através das possibilidades oferecidas pela

navegabilidade dos rios. A antiguidade destas relações pode explicar a migração túrdula

para a região litoral entre o Tejo e o Douro, o que terá sucedido aparentemente com duas

vagas, o que justifica a referência aos Turduli Veteres a norte do Mondego6. Topónimos

como Olisipo e Collipo refletem essa realidade, a situar no século III a.C., o que no caso

da primeira destas cidades obriga a considerar uma denominação anterior, que desconhe-

cemos. O texto de Mela é muito claro quanto ao povoamento regional do litoral a norte do

Tejo: In altero Ulysippo, et tagi ostium, amnis gemas aurumque generantis. Ab his

promontoriis in illam partem, quae recessit, ingens flexus aperitur; in eoque sunt Turduli

Veteres, Turdulorumque oppida7.

Esta referência permite situar Torres Vedras na área túrdula, e mesmo na área mais

urbanizada, como pode deduzir-se da referência aos oppida, à imagem da descrição que

Plínio faz do litoral lusitano, distinguindo populi a norte do Vouga, entre os quais os

Turduli Veteres, e oppida a sul deste rio8. Esta questão, todavia, não deixa de apresentar

algumas dificuldades, expostas a seu tempo por Amílcar Guerra9. A primeira delas refere-se

ao facto de se conhecerem, na mesma região, topónimos de natureza céltica, como

Londobris, se é que a ilha citada por Ptolomeu na sua Geographia corresponde à

Berlenga10, Eburobrittium (junto a Óbidos), ou Ierabriga (perto de Alenquer), para não nos

afastarmos demasiado do Oeste, uma vez que também poderíamos incluir Conimbriga e

Langobriga11. Como conjugar a diversidade toponímica existente com a atribuição da

região aos Túrdulos, por Mela, e aos Lusitanos, por Ptolomeu12, no que reside uma segunda

questão? Poderíamos invocar, como já aconteceu, que o étnico Lusitano resulte apenas da

existência de uma estrutura administrativa artificial imposta pelo poder romano, sem grande

4 CARDOSO, J. Luís – O Bronze Final e a Idade do Ferro na região de Lisboa: Um ensaio. Conimbriga.

Coimbra. 34 (1995) 33-74; ARRUDA, Ana – Fenícios e púnicos em Portugal: problemas e

perspectivas. In Nuevas perspectivas II: la arqueología fenicia y púnica en la Península Ibérica.

Barcelona: Bellaterra, 2008, p. 13-23.

5 TRINDADE, Leonel; FERREIRA, O. da Veiga Ferreira – Acerca do vaso “piriforme” tartéssico do

Museu de Torres Vedras. Boletim Cultural da Junta Distrital de Lisboa. Lisboa. 63-64 (1965) 165-183;

ARRUDA, Ana; Raquel Vilaça – O mar greco-romano antes de gregos e romanos: perspectivas a partir

do Ocidente peninsular. In OLIVEIRA, Francisco de; THIERY, Pascal; VILAÇA, Raquel (coords.) – O

mar greco-latino. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006. p. 39-40. 6 SILVA, A. Ferreira da – As tesseras hospitales do Castro da Senhora da Saúde ou Monte Murado

(Pedroso, Vila Nova de Gaia). Gaya. Vila Nova de Gaia. 1 (1983) 9-26.

7 MELA, III, 1, 8.

8 PLÍNIO-O-VELHO, NH, IV, 113.

9 GUERRA, Amílcar – A Península de Lisboa no I milénio a. C.: Uma breve síntese à luz das fontes e

dos dados arqueológicos. Turres Veteras I. Torres Vedras: Câmara Municipal, 2002. p. 123-124.

10 PTOLOMEU, II, 5, 7.

11 Esta última, Langobriga (Fiães da Feira), situava-se claramente na zona onde as fontes colocam os

Turduli Veteres.

12 PTOLOMEU, II, 5, 3.

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Vasco Gil Mantas

12 TORRES VEDRAS – NOVA HISTÓRIA LOCAL

ligação às realidades no terreno, o que nos parece uma espécie de projeção no passado de

situações coloniais bastante recentes e de complicadas consequências na história

contemporânea. É certo que a Lusitânia imperial é uma criação mais ou menos artificial da

administração romana13, através de várias fases, iniciadas como um conceito geoestratégico,

parcialmente determinado pela resistência lusitana, ou seja, um sector operacional da

Hispania Ulterior, mas não cremos ser esta a única explicação.

Na verdade, como justificar que na época imperial os autores citados se preocupem em

indicar que nesta ou naquela região viva uma das quatro nationes estabelecidas na

província? Esta circunstância, todavia, não deixa de concordar com o evidente cuidado

posto pela administração romana, e logo no período republicano, na definição do

território correspondente a cada povo, aspeto particularmente presente na época imperial

através dos termini augustales14, que de outra forma não teriam significado. Se a tudo isto

acrescentarmos a evidência de que a pertença uma civitas parece mais importante, pelo

menos na epigrafia luso-romana não oficial, que a pertença à província15, devemos ter

cautela em simplificar demasiadamente este aspeto da geografia histórica provincial.

Considerar geralmente como lusitanos todos os habitantes da província, sendo correto,

não permite eliminar as referências, étnico-geográficas, a Lusitanos, Celtas, Vetões e

Túrdulos, presentes ainda por meados do século II.

O problema não é de fácil solução, tanto mais que o registo arqueológico não permite,

a nível da cultura material, identificar diferenças entre Túrdulos e Lusitanos no ocidente

da Lusitânia, na verdade nulas. A análise da antroponímia regional também não concorre

com dados que permitam estabelecer a distinção entre Túrdulos e Celtas na região

torriense, atendendo ao predomínio absoluto de nomes célticos ou celtizantes entre o

fundo populacional indígena16. Talvez possamos considerar como hipótese aceitável para

explicar esta ausência física e linguística túrdula como resultado de um fenómeno de

aculturação gradual de alguns núcleos exóticos, vindos do sul da Hispânia e estabelecidos

em povoados, eventualmente com uma economia diferente da predominante no interior,

fenómeno um pouco semelhante, ressalvando tudo o que há a ressalvar nesta comparação,

com o da romanização, no que se refere aos aspetos onomásticos e às práticas do

quotidiano. Sublinhamos que, mesmo na Lusitânia meridional, onde a população

considerada celta concorria com outras, os testemunhos onomásticos destas são mínimos,

independentemente de alguns particularismos regionais17. Seja como for, a persistência da

referência aos Túrdulos nas fontes geográficas não pode ser ignorada.

A cronologia exata da chegada das forças romanas à região torriense não é fácil de

estabelecer, ainda que a presença de comerciantes possa ter antecedido18, no intervalo das

13 LE ROUX, Patrick – A criação romana da Lusitânia. In Lusitânia Romana. Origem de dois povos.

Lisboa: Museu Nacional de Arqueologia, 2016. p. 92-99.

14 CORTÉS BÁRCENA, Carolina – Epigrafía y territorio en la Hispania romana: Los Termini públicos.

Anas. Mérida. 15-16 (2002-2003) 107-125.

15 MANTAS, Vasco – A Lusitânia e o Mediterrâneo: identidade e diversidade numa província romana,

Conimbriga. Coimbra. 43 (2004) 63-83.

16 MANTAS, Vasco – A população da região de Torres Vedras na época romana. Turres Veteras IV.

Torres Vedras: Câmara Municipal, 2002. p. 129-141.

17 ENCARNAÇÃO, José dʼ – A singularidade cultural do SW da Lusitânia romana. In BERMEJO

BARRERA J.; GARCÍA SÁNCHEZ, M. (eds.) – Bonds of Friendship: Studies in Ancient History in

Honor of Francisco Javier Fernández Nieto. Barcelona: Universitat de Barcelona, 2017. p. 105-122.

18 SOUSA, Élvio de – Cerâmicas ditas campanienses e de imitação da região de Sintra conservadas no

Museu Regional de Sintra. Conimbriga. Coimbra. 35 (1996) 37-58.

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Romanos e Bárbaros na região de Torres Vedras

TORRES VEDRAS – NOVA HISTÓRIA LOCAL 13

duas primeiras guerras púnicas, a presença militar. Esta parece confirmar-se, na Península

de Lisboa, logo nos finais do século III a.C., considerando os testemunhos numismáticos

registados em Lisboa, Carnota (Alenquer) e na zona de Santarém19, provavelmente no

cenário resultante do tratado firmado com Gadir / Gades em 206 a.C, que possibilitou aos

romanos a liquidação do controlo púnico no vale do Tejo. Atendendo à influência de

Gades no litoral ocidental da Península Ibérica, não cremos que por aqui se tivesse

verificado grande oposição ao novo domínio. As fontes escritas permanecem silenciosas

praticamente até Estrabão referir a expedição de Décimo Júnio Bruto, na verdade um

grande reconhecimento armado que, em 137 a.C., partiu do vale do Tejo, seguindo

aproximadamente o traçado do futuro itinerário Olisipo-Bracara, provavelmente apoiado

por uma frota ao longo da costa, como farão depois César e Almançor.

Se da campanha do Galaico parece não haver testemunhos seguros na região torriense,

já o mesmo não se verifica com o episódio sertoriano peninsular das lutas entre Optimates

e Populares20. Com efeito, diversos tesouros monetários achados ao longo de um eixo

entre a zona de Alenquer e o Bombarral comprovam atividades militares na zona21, a

partir da linha do Tejo, onde o conhecimento da presença romana republicana se

desenvolveu significativamente nos últimos anos22. Um pouco mais a norte, Júlio César

conduziu uma campanha em 61 a.C., provavelmente a partir de Scallabis (Santarém),

significativamente apelidada de Praesidium Iulium, que terá terminado na costa, na então

ilha de Peniche, o que demonstra a insegurança que ainda permanecia numa zona não

muito afastada do termo torriense. Achados fortuitos e, sobretudo, o que se vai

conhecendo de alguns castros em torno de Torres Vedras e nesta cidade23, permite

reconhecer uma presença romana regular, em parte por razões militares, fazendo-se sentir

gradualmente na região a influência dos centros do vale do Tejo, sugerindo dois eixos de

penetração, um a partir da zona de Ierabriga e outro a partir de Olisipo, o último dos

quais acabará por se impor, apesar da fundação nos últimos tempos da República da

colónia escalabitana, nitidamente mais relacionada com o vale do Tejo24.

A integração da zona de Torres Vedras no espaço olisiponense não é clara até ao

início da época imperial, circunstância que também afeta o conhecimento da evolução

jurídica de Olisipo. Cidade dotada do melhor porto da fachada atlântica da Península

Ibérica, já com importantes relações marítimas com o mundo mediterrânico antes do

estabelecimento do domínio romano, ocupando uma posição excelente como escala e

19 RUIVO, José – Circulação monetária na Estremadura portuguesa até inícios do século III. Porto:

Faculdade de Letras, 1995. p. 23-29, 59-60, 67, 90-96. (dissertação de mestrado policopiada).

20 MANTAS, Vasco – Conflitos civis em Roma: dos Gracos a Sula. In BRANDÃO, José Luís;

OLIVEIRA, Francisco de (coords.) – História de Roma Antiga. Coimbra: Imprensa da Universidade

de Coimbra, 2015. Vol. 1, p. 313-361.

21 RUIVO, José – O conflito sertoriano no Ocidente hispânico: o testemunho dos tesouros monetários.

Archivo Español de Arqueología. Madrid. 70 (1997) 91-100.

22 FABIÃO, Carlos; PIMENTA, João (coords) – Congresso Conquista e Romanização do Vale do Tejo.

[Cira Arqueologia, 3]. Vila Franca de Xira, 2014.

23 CARDOSO, Guilherme; LUNA Isabel de – Últimos dados sobre a romanização de Torres Vedras. In

A presença romana na Região Oeste. Bombarral: Câmara Municipal, 2005, p. 65-83; CARDOSO,

Guilherme – Duas fortificações do final da Idade do Ferro / início da romanização: S. Salvador

(Cadaval) e Sítio do Castelo (Arruda dos Vinhos). In FABIÃO, Carlos; PIMENTA João (coords.) –

Congresso Conquista e Romanização do Vale do Tejo, [Cira Arqueologia, 3]. Vila Franca de Xira:

Câmara Municipal, 2014, p. 200-241.

24 ARRUDA, Ana – Eburobrittium / Scallabis: que proximidade entre duas civitates vizinhas?. In

A Presença Romana na Região Oeste. Bombarral: Câmara Municipal, 2005. p. 25-30.

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Vasco Gil Mantas

14 TORRES VEDRAS – NOVA HISTÓRIA LOCAL

porto de rutura de tráfico das rotas que frequentavam a costa ocidental, Olisipo

rapidamente se integrou na rede de interesses económicos sob a hegemonia de Roma. O

mesmo sucedeu com Gades, cidade distinguida por César com o estatuto municipal em

49 a.C., o que é por vezes invocado para apoiar a atribuição do mesmo estatuto a Olisipo

pelo ditador, embora não faltem argumentos válidos contra esta tese.

Com efeito, se o topónimo oficial Felicitas Iulia Olisipo pode ser anterior a 27 a.C.,

atendendo ao gentilício, a verdade é que se integra muito melhor na ideologia política de

Octaviano, tal como Pax Iulia ou Liberalitas Iulia Ebora. Alguma coisa aconteceu,

todavia, pois de outra forma não se explica a existência de cidadãos de Felicitas Iulia

inscritos na tribo Emília25. Sem que o possamos garantir, pode ter-se constituído na

cidade um núcleo de cidadãos romanos suficiente para justificar um Conventus civium

romanorum, como outros que se conhecem, nomeadamente na época de César26. Seja

como for, estamos convictos de ter sido obra de Octaviano a promoção a Municipium

civium Romanorum, o único da Lusitânia, província definitivamente organizada, depois

de destacada, cerca de 16 a.C., da Hispânia Ulterior, com os seus cidadãos inscritos

regularmente na tribo Galéria.

A importância inegável de Olisipo, que cremos ter sido a segunda cidade da província

e que, como centro portuário, ultrapassou a cidade de Salacia, como terá também

suplantado a colónia de Scallabis, justifica que lhe tenha sido atribuído um extenso ager

ocupado por populações com características bastante conservadoras a par de outras que

denotam com frequência um grau de romanização avançado, bem como elementos

exóticos, representantes da colonização. A um dia de marcha, a riqueza agrícola regional

podia, com alguma facilidade, ser conduzida por via terrestre a um centro de consumo

importante como era Olisipo, podendo fazê-lo também por via flúvio-marítima durante

parte do ano, recorrendo à pequena cabotagem na costa. Não esqueçamos, todavia, que a

produção da área torriense concorria com os produtos ribatejanos e da periferia

olisiponense, inconveniente que poderia ser atenuado através da ação de notáveis

olisiponenses com interesses na referida área, alguns deles ligados à gestão política local,

como veremos.

Como foi definido o território olisiponense? Na ausência de uma estrutura cadastral

suficientemente identificada, e que nunca cobriria todo o território, estamos limitados a

hipóteses sobre os limites olisiponenses e como nele se integrou a área de Torres Vedras.

Também não sabemos se em determinada altura houve anexação de pagi, nem

exatamente quando se atingiu o espaço que se propõe. Ainda que isso não interesse

diretamente para o nosso caso, o limite sul passava o Tejo, situando-se na Serra da

Arrábida, onde Ptolomeu coloca a fronteira entre Lusitani e Celtici, a qual correspondia

ao limite entre o convento escalabitano e o convento pacense. A oriente, a fronteira corria

grosso modo pela Ribeira da Ota, integrando Ierabriga, seguindo depois pela Serra de

Montejunto, para ganhar a norte a Ribeira de Alcabrichel até ao mar. Na ausência de

marcos demarcatórios, esta proposta, que considera igualmente as características físicas

da região torriense, apoia-se em especial nos testemunhos epigráficos, que apenas regista

25 MATOS, Armando de – Estradas romanas no concelho de Gaia. Brotéria. Lisboa. XXIV:6 (1937)

670-673; LE ROUX, Pascal – L’armée romaine et l’organisation des provinces ibériques d’Auguste

à l’invasion de 409. Paris: De Boccard, 1982. p. 119. Julgamos dever recuar a datação proposta por

Le Roux para este monumento.

26 WILSON, A. – Emigration from Italy in the Republican Age of Rome. Manchester: Manchester

University Pres, 1966. p. 13-26; REID, James – The Municipalities of the Roman Empire.

Cambridge: Cambridge University Press, 2014. p. 199-201.

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Romanos e Bárbaros na região de Torres Vedras

TORRES VEDRAS – NOVA HISTÓRIA LOCAL 15

indivíduos pertencentes à tribo Galéria, alguns deles representando a elite política

olisiponense (Fig. 2), o que nos parece muito significativo27. No conjunto, tratava-se de

um grande território, todavia não excecional na Lusitânia, de cariz fortemente rural, com

poucos estabelecimentos que se possam identificar como aglomerações secundárias,

constituindo a introdução das villae e de estradas praticáveis os grandes contributos

romanos nesta região de povoamento disperso.

Fig. 2 – Inscrição funerária do mausoléu do edil olisiponense C. Caecilius Caecilianus

proveniente da ermida da Serra de S. Julião (foto Delfim Ferreira).

Como dissemos, a epigrafia, embora totalmente de carácter funerário28, permite

vislumbrar a constituição da população da região torriense, ainda que de forma

generalista e sempre com a reserva redutora de que os testemunhos se concentram no

Alto Império e que, como é habitual, correspondem a uma amostra refletindo a fração dos

habitantes que podia encomendar monumentos ou tinha interesse social em fazê-lo. As

numerosas epígrafes que foi possível registar até ao presente, conservadas ou não, muitas

das quais se encontram expostas no Museu Municipal Leonel Trindade, desde há alguns

anos instalado no convento de Nossa Senhora da Graça, constituem um valioso corpus

suscetível de facultar informações que outras fontes, no todo ou em parte, omitem. Não

quer isto dizer, naturalmente, que tudo se possa resolver através da epigrafia, mas perante

a abundância deste tipo de monumentos na região, podemos esperar achados que

eventualmente esclareçam dúvidas ou, pelo contrário, apenas confirmem a imagem geral

que já possuímos.

Referimo-nos já ao problema do fundo étnico da população da zona setentrional do

município olisiponense, ao qual não voltaremos, passando de imediato a uma rápida

análise do que os documentos epigráficos permitem saber sobre os que aqui viveram no

tempo dos césares, documentos que, sem incluir alguns grafitos sobre materiais

27 MANTAS, Vasco – Os magistrados olisiponenses do período romano. In Turres Veteras VII:

História das figuras do poder. Torres Vedras: Câmara Municipal, 2005. p. 21-56.

28 GUERRA, Amílcar – Uma perspectiva sobre a epigrafia funerária latina de Torres Vedras. In Turres

Veteras VI: História da Morte. Torres Vedras: Câmara Municipal, 2004. p. 59-72.

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Vasco Gil Mantas

16 TORRES VEDRAS – NOVA HISTÓRIA LOCAL

cerâmicos, orçam pelas três dezenas29, quantitativo relevante tratando-se de uma região

com nítidas características rurais (Fig. 3). De realçar que, neste conjunto, cerca de metade

ostenta os tria nomina característicos da cidadania, mesmo quando não exprime a

referência à tribo, a qual ocorre em sete locais, reportando-se a um número bastante

superior de indivíduos (Torres Vedras, Quinta de S. Gião, Quinta da Macheia, Quinta do

Juncal, Serra de S. Julião, S. Pedro da Cadeira e Azueira). O facto de todos os cidadãos

pertencerem à tribo Galéria apoia indiscutivelmente a pertença da região ao município

olisiponense. Elemento a considerar também como indicador expressivo de uma forte

romanização, ainda que por vezes esquecido, é o elevado número de indivíduos femininos

portadores de gentilício e cognome, como era de norma entre as romanas.

Fig. 3 – Inscrições romanas do Concelho de Torres Vedras e áreas limítrofes.

O elemento indígena mais conservador, ou menos romanizado, o que por vezes

provoca problemas de datação para alguns monumentos, tem igualmente uma

representação vigorosa, talvez não tanto pelo número, mas pelas formas estéticas e

simbólicas utilizadas nos monumentos, em alguns casos nitidamente relacionada com

territórios hispânicos fortemente celtizados. Devemos recordar, todavia, que a chamada

decoração astral não pode ser considerada, como tantas vezes sucede, como uma carta de

identidade céltica, atendendo à forma como parte desta simbologia se difundiu na

Península Ibérica30, pelo que a devemos considerar sobretudo como um gosto de grupo. É

certo que a antroponímia presente nestes monumentos reflete um forte indigenismo, mas

ao mesmo tempo comprova que estava em marcha o processo de latinização da

antroponímia, como podemos facilmente verificar nos três monumentos conservados no

29 MANTAS, 2002, p. 136.

30 MARCO SIMÓN, Francisco; ABÁSOLO ÁLVAREZ, José António – Tipología y iconografía en las

estelas de la mitad septentrional de la Península Ibérica. In Nacimiento de la Cultura Epigráfica en

Occidente. Zaragoza: Institución "Fernando el Católico", 1995. p. 327-359.

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Romanos e Bárbaros na região de Torres Vedras

TORRES VEDRAS – NOVA HISTÓRIA LOCAL 17

Museu que mostram a referida decoração (Fig. 4), um dos quais lembra um indivíduo

com os tria nomina da cidadania, L. Licinius Temporanus31.

Fig. 4 – Estela ao gosto indígena achada na Portucheira

(foto Delfim Ferreira).

Quando falamos de gostos ou modos devemos recordar a grande variedade tipológica

de monumentos epigráficos registada no termo de Torres Vedras: cupas, placas, estelas,

cipos, pedestais e uma árula. Ninguém ousaria, naturalmente, atribuir uma característica

étnica identitária a cada um destes monumentos, escolhidos antes de mais por razões

sociais e económicas, de acordo com modas ou possibilidades. Aliás, esta diversidade,

nem sempre identificada em outras regiões rurais32, constitui um bom índice de uma área

aberta a várias influências, ao que não foi estranha a presença próxima de Olisipo, tal

como aconteceu na região de Sintra33. É de sublinhar, como mais um elemento típico do

mundo rural olisiponense34, a presença de cupae na área de Torres Vedras, limite

setentrional deste tipo específico de monumento arciforme (Fig. 5). Por outro lado, se

grande parte do material dos suportes é de origem local, alguns poderão ter vindo de

31 MANTAS, 1982, p. 54-60, 65-71, 79-83.

32 ENCARNAÇÃO, José dʼ – Inscrições romanas do Conventus Pacensis. Coimbra: Universidade de

Coimbra, Instituto de Arqueologia, 1984. p. 821-843.

33 RIBEIRO, J. Cardim – Estudos histórico-epigráficos em torno da figura de L. Iulius Maelo Caudicus.

Sintria. Sintra. 1-2 (1982-1983) 151-476.

34 CAMPOS, Ricardo – As cupae de Olisipo e do ager olisiponensis. In PINTADO, J. Andreu – Las

Cupae Hispanas. Tudela: UNED – Fundación Uncastillo, 2012. p. 449-474.

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Vasco Gil Mantas

18 TORRES VEDRAS – NOVA HISTÓRIA LOCAL

pedreiras da zona de Sintra, Montelavar ou Pero Pinheiro, caso dos pedestais de Torres

Vedras e da Quinta da Macheia35.

Fig. 5 – Cupa de Iulia Amoena, achada na Quinta de S. Gião (foto Delfim Ferreira).

Não é difícil identificar entre a população elementos oriundos de outras regiões do

Império, representativos da colonização da Lusitânia. É claro que deve considerar-se o

avanço da romanização e a latinização completa da antroponímia de muitas famílias

indígenas, dificultando essa identificação. É possível que o edil olisiponense Q. Caecilius

Caecilianus36, referido numa grande placa de mausoléu achada na ermida da Serra de

S. Julião (CIL II 261), tenha ascendência itálica, o mesmo acontecendo com Q. Coelius

Aquila, nomeado numa epígrafe perdida de Dois Portos, o qual era filho de outro

magistrado olisiponense, o duúnviro Q. Coelius Cassianus, activo na época de Cómodo,

familiar da poderosa família Cassia, cujo ramo lusitano terá um destacado representante

na Itália, L. Cassius Reburrus (CIL XIV 413), duúnviro em Óstia. Outras relações com a

Itália, através da Bética, são sugeridas pela presença, também na ermida da Serra de

S. Julião, de um indivíduo de nome Mascellius, muito invulgar na Hispânia, mas que se

encontra novamente na Quinta da Portucheira, numa epígrafe decorada com um motivo

arquitetónico37, o que sugere, talvez, algum tipo de relações com a Coelia Mascellina

identificada em Roma como negotiatrix olearia ex Baetica38. Da mesma forma, embora

35 MANTAS, 1982, p. 27-32, 42-49.

36 MANTAS, 1982, p. 71-78; 2005, p. 35-36.

37 MANTAS, 1982, p. 61-66.

38 RODRÍGUEZ ALMEIDA, Emilio – El emporio fluvial y el Testaccio: onomástica extra-anforica y

otros problemas. In Producción y comercio del aceite en la Antigüedad. Madrid: Universidad

Complutense, 1983. p. 149-156.

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Romanos e Bárbaros na região de Torres Vedras

TORRES VEDRAS – NOVA HISTÓRIA LOCAL 19

implicando união com elementos indígenas, parece de origem itálica, e dos primeiros

tempos do Império, a família Aufidia atestada numa inscrição de S. Pedro da Cadeira39.

A presença de habitantes relacionados com o Norte de África também se identifica na

região torriense. É o caso de C. Caecilius C. f. Gaetulicus, da Quinta de S. Gião e de

Saturnia e Africanus, numa estela de S. Pedro da Cadeira (Fig. 6), sendo o cognome e os

nomes referidos pouco vulgares na Hispânia40, apontando uma vez mais para a função de

nó de comunicações exercida pela cidade de Olisipo, ao serviço dos vários níveis da

Fig. 6 – Estela de Saturnia e Africanus,

da igreja de S. Pedro da Cadeira (foto Delfim Ferreira).

39 CARDOSO, Guilherme; ENCARNAÇÃO, José dʼ; LUNA, Isabel de – Uma nova inscrição romana

em São Pedro da Cadeira. Badaladas. Torres Vedras. 2828 (2010) 26-27.

40 MANTAS, 1982, p. 17-21; 1985, p. 131-137; ABASCAL, J. M. – Los nombres personales en las

inscripciones latinas de Hispania. Murcia: Universidad de Murcia, 1994. p. 213, 261, 377, 496;

GRUPO MÉRIDA – Atlas antroponímico de la Lusitania Romana. Mérida-Bordéus: Fundación de

Estudios Romanos, 2003. p. 76, 294.

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Vasco Gil Mantas

20 TORRES VEDRAS – NOVA HISTÓRIA LOCAL

economia romana41. A mesma influência da cidade da foz do Tejo se nota em relação aos

antropónimos gregos, ainda que só em parte pertençam a indivíduos de origem helénica,

pois é Olisipo que concentra o maior núcleo destes antropónimos no território português,

em parte, como é habitual, representantes de libertos ou seus descendentes e importantes

factores de aculturação42. Assim, em Torres Vedras temos, proveniente da escadaria de

acesso à igreja de Santa Maria, um Q. Bovius Atimetio Victor43, em S. Pedro da Cadeira

um M. Iulius Morphus e um Q. B. Calimorphus44, todos testemunhando a integração no

fundo populacional indígena de elementos introduzidos pela colonização, aliás patente

noutros monumentos epigráficos do aro torriense, tanto no belo pedestal da Quinta da

Macheia como na fruste epígrafe das Ferrarias45. Ainda em relação a antroponímia grega,

recordamos Terentia C. f. Stacte, presente numa epígrafe da Quinta da Rainha, cujo

cognome, vulgar na Itália, não tem paralelo na Hispânia46.

Embora algumas epígrafes possam dissimular a condição servil, como no caso de

ocorrer um nome em dativo sem indicação de filiação, temos uma, da Praia de Santa

Cruz, onde tal situação está claramente afirmada, abrangendo mãe e filho, Voluptas e

Pultarius, escravos de um tal Flavianus (CIL II 314), nomes cruamente característicos do

mundo servil. Podemos imaginar que os escravos terão sido numerosos na região, sem

esquecer que a abundância de homens livres pobres fornecia farta mão-de-obra quando

necessária, os mercenarii de que falam numerosos textos do mundo romano, entre os

quais o célebre regulamento das minas de Vipasca. Na verdade, grande parte da

população peregrina da região torriense pertencia a este grupo, embora a ausência de

traços de centuriação, pelo menos nesta zona do município olisiponense, autorize

considerar a existência de pequenas explorações agrícolas, à margem das villae. A

inscrição perdida da Quinta da Areia (Silveira), referindo uma Apana Apanonis f., antro-

ponímia característica da zona oriental da Lusitânia47, pode refletir, como outras, esse

grupo populacional, modesto e menos romanizado.

Entre as gentes representadas na região, Anicia, Antistia, Attia, Aufidia, Bovia,

Caecilia, Cornelia, Helvia, Iulia, Laberia, Licinia, Terentia e Valeria, as mais represen-

tadas são as Iulia, Caecilia, Licinia e Bovia, o que corresponde a uma situação próxima

da que se conhece na epigrafia urbana de Olisipo, com excepção da última, Bovia, genti-

lício que em alguns casos poderá refletir a latinização de um nome indígena, como

aconteceu nas Ferrarias (Fig. 7). Com razoável representação na Itália ocorre, na Lusitâ-

nia, sobretudo no ocidente da província48, parecendo ter ganhado alguma proeminência na

região torriense por volta do século II. Em resumo, até ao édito de Caracala, a população

41 Distinguimos três níveis na economia romana: local, regional, ou interprovincial, e imperial. As

cidades portuárias, como Olisipo, pontos de concentração e repartição de cargas, eram particular-

mente importantes no processo, o que se reflete na sua estrutura social.

42 SILVA, Augusto Vieira da – Epigrafia de Olisipo. Lisboa: Câmara Municipal, 1944. p. 276-283;

RIBEIRO, J. Cardim – Antroponímia e helenização cultural na Hispânia romana. In Homenagem a

Mário Gomes Marques. Sintra: Instituto de Sintra, 2000. p. 419-430.

43 MANTAS, 1982, p. 35-42. A epígrafe levanta alguns problemas de interpretação, que retomaremos

noutra oportunidade.

44 MANTAS, 1985, p. 137-145. A leitura Calimorphus foi confirmada por Cardim Ribeiro

45 MANTAS, 1982, p. 42-49; CARDOSO, Guilherme; ENCARNAÇÃO, José dʼ; LUNA, Isabel de –

Estela das Ferrarias (Torres Vedras). Coimbra: Ficheiro Epigráfico. 68 (2001) – 14, n.º 307.

46 MANTAS, 2002, p. 137; GUERRA, 2004, p. 67.

47 MANTAS, 1985, p. 128-131; GRUPO MÉRIDA, p. 93-94.

48 GRUPO MÉRIDA, p. 117.

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Romanos e Bárbaros na região de Torres Vedras

TORRES VEDRAS – NOVA HISTÓRIA LOCAL 21

consta de cidadãos, ingénuos ou libertos, peregrinos e escravos, tornando-se progres-

sivamente mais difícil acompanhar a sua evolução à medida que o hábito epigráfico

enfraquece, talvez em parte devido ao referido édito, em teoria colocando em pé de

igualdade todos os homens livres do Império.

Fig. 7 – Estela de Bovius, achada nas Ferrarias

(foto Guilherme Cardoso).

A zona setentrional do município olisiponense não demonstra tendência, no período

imperial, para a urbanização, embora na época republicana se tenham identificado

estabelecimentos de tipo castrejo, em alguns casos, como no Castro da Senhora do

Socorro, com vestígios de continuidade de ocupação posterior49. A introdução de um

padrão de povoamento em que as villae representavam o elemento fundamental, assim

como o desenvolvimento das vias de comunicação terrestres terão conduzido à alteração

do esquema de povoamento em detrimento dos habitats de tipo castrejo, sem conduzir ao

aparecimento de aglomerações secundárias significativas. A investigação mais recente

parece comprovar esta dinâmica, embora o número de sítios suficientemente escavados

seja muito reduzido.

Há muito que se provou a existência de uma povoação romana em Torres Vedras,

provável continuadora de um Hillfort muito anterior. A simples observação da colina

onde se levanta o castelo e a igreja de Santa Maria permite aferir das peculiares condições

do sítio (Fig. 8), o que não escapou a Fernão Lopes numa descrição que, sem grande

dificuldade, se poderia aplicar à povoação romana: Este lugar de Torres Vedras é uma

fortaleza assentada em cima de uma formosa mota, a qual natureza criou em tão

ordenada igualdade como se a mão fosse feita artificialmente […]. A vila tem sua cerca

49 CARDOSO, Guilherme; LUNA, Isabel de, 2005, p. 79.

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Vasco Gil Mantas

22 TORRES VEDRAS – NOVA HISTÓRIA LOCAL

arredor do monte e na maior alteza dele está o castelo; e entre a vila e o castelo

moravam tão poucos de que não é fazer conta; e toda a sua poboração era um grande

arravalde de muitas e boas casas de bem ordenadas ruas, ao pé do monte50. Na vertente

norte do monte há duas cisternas romanas, com 14x 2,5 metros, revestidas a opus

signinum, havendo notícia de outros achados junto à igreja de Santa Maria, o mesmo se

verificando na zona baixa da cidade, tudo suficiente para demonstrar a existência de uma

povoação na época romana logo no período republicano51.

Fig. 8 – O Monte do Castelo, com a igreja de Nossa Senhora, em Torres Vedras

(foto Vasco Mantas).

Todavia, se este facto está comprovado, tratando-se com toda a probabilidade de uma

aglomeração secundária, aparentemente constituída por um núcleo antigo no Monte do

Castelo e por um vicus no sopé do mesmo, como aconteceu vulgarmente em casos de

topografia idêntica, continuamos a enfrentar dificuldades quanto ao seu topónimo.

Embora a povoação ficasse próxima do traçado da estrada que de Olisipo seguia para

Eburobrittium e depois para Collipo (S. Sebastião do Freixo) e Conimbriga, como essa

estrada não consta dos roteiros viários romanos e apenas se lhe conhecem raríssimos

miliários, não podemos contar com essas fontes para tentar resolver o problema. É certo

que alguns investigadores defendem a possibilidade de o topónimo Torres Vedras derivar

diretamente de uma forma romana, Turres Veteras, o que, não sendo impossível52, não

50 LOPES, Fernão – Primeira parte da crónica de El-Rei D. João I de boa memória (ed. J. H. Saraiva).

Lisboa: Europa-América, 1977. p. 410.

51 CARDOSO, Guilherme; LUNA, Isabel de, 2005, p. 69-72, 79-80.

52 GUERRA, Amílcar – Algumas notas sobre o mundo rural do território olisiponense e as suas gentes.

In SANTOS, A. Ramos dos, et al. (coords.) – Mundo Antigo: Economia rural. Lisboa: Colibri, 2003,

p. 127-129.

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Romanos e Bárbaros na região de Torres Vedras

TORRES VEDRAS – NOVA HISTÓRIA LOCAL 23

conta com qualquer testemunho antigo e choca com a denominação medieval de Torres

Novas. Parece-nos, portanto, tratar-se de formas medievais latinizadas, provavelmente

ditadas pelas fortificações das duas povoações no período da Reconquista. É certo que,

considerando o caso alto-medieval de Portucale Castrum Antiquo e Portucale Castrum

Novum53, poderíamos aceitar uma solução semelhante, mas sublinhamos que, neste caso

sobreviveu o topónimo antigo, Portucale ou Cale, o que não sucede em Torres Vedras.

Defendemos anteriormente que em Torres Vedras podemos reconhecer a povoação

que Ptolomeu indica, seguramente na Península de Lisboa, como Chretina54. É conhecida

a resistência dos investigadores em geral quanto à possibilidade de recorrer aos dados da

Geografia ptolomaica para identificar ou localizar povoações, essencialmente devido às

dificuldades levantadas pelo sistema de coordenadas estabelecidas através da indicação

da longitude e da latitude, medida em graus, mas tal facto não impede uma utilização

cautelosa dos referidos dados, desde que se apoie na localização de povoações segura-

mente identificadas. Antes de mais, devemos ter em conta a forma como o mapa ptolo-

maico, infelizmente perdido, foi traçado, delineando alguns pontos para definir uma

determinada região, depois preenchida com as povoações que lhe competiam, a partir de

relatos de viagem, portulanos e, seguramente, itinerários viários, de acordo com a teoria

hodológica de Pietro Janni55.

O uso de roteiros viários está perfeitamente estabelecido pela concordância, com erros

mínimos, em linha reta, de distâncias itinerárias como as que é possível deduzir da

redução das coordenadas ptolomaicas, através de um exercício de trigonometria.

Ptolomeu, para esta região ocidental terá utilizado um grau equivalente a 63 milhas

romanas, com ligeiras diferenças entre longitude e latitude, o que coloca Seilium a 94

milhas de Olisipo, valor correto, e a 148 milhas de Bracara, menos duas que a distância

no Itinerário de Antonino, concordância que se verifica em muitos outros casos56.

Ptolomeu indica, nas cercanias de Olisipo, a norte do Tejo, Chretina, Ierabriga, ainda

que sob a forma Arabriga, e Scallabis (Fig. 9). Ora, considerando esta Arabriga como

corruptela de Ierabriga57, o cálculo das distâncias obtidas por triangulação das

coordenadas de Olisipo, Scallabis e Chretina sugere francamente que esta se possa situar

em Torres Vedras, não só porque Ptolomeu indicava igualmente povoações menores,

como neste caso, mas também porque a sua localização entre Olisipo e Eburobrittium, as

duas cidades que Plínio-o-Velho refere nesta região litoral, constitui um elemento

favorável à nossa hipótese. A 34 milhas de Olisipo e a 36 milhas de Scallabis,

respetivamente 50 e 53 quilómetros, a povoação de Chretina deve situar-se em Torres

Vedras, que assim fica, em linha reta, a uma distância de 22 quilómetros de Ierabriga,

valor também correto.

Nem todos estarão de acordo com esta identificação, tanto mais que existem outras

propostas, das quais a mais interessante parece ser a de Ukert, retomada recentemente por

Cardim Ribeiro, defendendo uma identificação com Sintra, onde aliás os vestígios

53 MANTAS, Vasco – As vias romanas da Lusitânia. Mérida: Museo Nacional de Arte Romano, 2012.

p. 198-199.

54 PTOLOMEU, II, 5, 4.

55 JANNI, Pietro – La mappa e il periplo. Roma: Giorgio Bretschneider, 1984.

56 MÜLLER, K. – Claudi Ptolemaei Geographicae Enarrationes. Paris, 1883, p. 162; MANTAS, 2012,

p. 86-88.

57 PTOLOMEU, II, 5, 5. Recordamos as formas corrompidas sob as quais o topónimo ocorre no

Anónimo de Ravena.

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Vasco Gil Mantas

24 TORRES VEDRAS – NOVA HISTÓRIA LOCAL

Fig. 9 – Reconstituição do mapa de Ptolomeu na parte referente à região

entre os rios Sado e Douro.

romanos são inexistentes na área urbana58. Cremos que esta identificação resulta, em

parte, da relativa importância da Shintara muçulmana, tanto como da riqueza arqueoló-

gica romana, particularmente epigráfica, do seu entorno rural. Por outro lado, a distância

entre Sintra e Lisboa corresponde a pouco mais de metade da que as coordenadas

atribuem ao espaço que medeia entre Chretina e Olisipo, dificultando sobremaneira esta

identificação com Sintra. Como a obra de Mário Saa sobre as vias romanas continua a ser

muito lida e citada, recordo aqui a sua estranha proposta de identificação de Chretina

como sendo um dos dois núcleos de Santarém, sendo o outro Ierabriga59, repetindo-se

também neste caso as fantasiosas e erráticas identificações de Saa, que aliás era um bom

investigador no terreno. A identificação com Arandis não tem, naturalmente, qualquer

viabilidade.

No estado presente da questão, continuamos a manter a nossa proposta de identifica-

ção de Chretina com Torres Vedras. O topónimo, que Hübner considerava uma possível

corruptela, não parece indígena, ocorrendo a terminação -ina na obra de Ptolomeu apenas

duas vezes na Lusitânia: Caecilia Metellina (Medellin) e Chretina. Não queremos deixar

de lado outra hipótese explicativa da origem do topónimo, pois poderá relacionar-se com

a palavra creta (argila). A abundância desse material na região de Torres Vedras, onde as

conhecidas explorações do Ramalhal e Outeiro da Cabeça são das mais importantes de

58 RIBEIRO, J. Cardim, 1982-1983, p. 161.

59 SAA, Mário – As grandes vias da Lusitânia: O Itinerário de Antonino Pio, I, Lisboa: Tip. Soc.

Astória, 1956. p. 224-231; IV, 1964, p. 14.

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Romanos e Bárbaros na região de Torres Vedras

TORRES VEDRAS – NOVA HISTÓRIA LOCAL 25

Portugal60, permite considerar esta possibilidade, enquanto aguardamos um achado

epigráfico que resolva o problema, pelo que não vale a pena procurar outras explicações

mais tortuosas.

Tratemos agora das vias de comunicação da região, suporte imprescindível da econo-

mia e das relações com outras áreas da província. Tentámos a reconstituição da rede

viária regional num artigo publicado nas atas do primeiro encontro Turres Veteras, não

havendo novidades substanciais desde então, a não ser pontualmente. A falta de miliários

constitui uma limitação grave, a que devemos acrescentar as rápidas modificações da

paisagem no último meio século. Algum desenvolvimento no que sabemos sobre a

repartição dos estabelecimentos romanos em torno de Torres Vedras ajuda a clarificar a

estrutura das vias de comunicação terrestres, sem esquecer que os caminhos secundários e

rurais são extremamente difíceis de traçar. A estrada principal que cruzava a região era a

que de Olisipo se dirigia a Conimbriga, pelo litoral, tocando Eburobrittium e Collipo.

Como a manutenção das estradas competia às cidades cujo território atravessavam, era de

Olisipo que dependiam as estradas da região torriense, cujas características fortemente

rurais não estimularam os magistrados olisiponenses, ainda que alguns tivessem

interesses na região, a investir em grandes trabalhos viários, episodicamente sustentados

pela administração imperial, como se deduz dos miliários achados junto a Alfeizerão61.

O primeiro troço da estrada, até à ribeira de Loures, era comum com o tramo inicial da

via que se dirigia a Scallabis, alternativa a outra que, de acordo com Francisco de

Holanda, seguia por Sacavém ao longo do Tejo. De Loures, onde existiu uma mutatio, a

estrada prosseguia para norte, passando junto ao Cabeço de Montachique, para atingir

Dois Portos, onde a presença romana deixou vestígios significativos. O topónimo deriva

da junção nesta área da estrada vinda de Olisipo com outra que comunicava com

Ierabriga, conhecida agora sob a designação de Via Galega, um hodónimo significativo.

O achado, relativamente recente, de um miliário na Quinta de Santa Teresa, perto de

Alenquer, que cremos pertencer ao troço final desta estrada, pois indicará a distância,

medida a partir de Olisipo, de 35 milhas62, obriga a rever a interpretação da estrada até

Dois Portos, conferindo-lhe uma maior importância.

Depois de Dois Portos a estrada continuava para o lugar de Penedo, sítio de uma grande

villa, onde se identificaram e recuperaram numerosos vestígios romanos, como um belo

capitel tardio conservado no Museu Municipal e fragmentos de mosaico bicromático.

Embora Torres Vedras pudesse ter sido local de uma mansio, parece-nos possível pros-

seguir o caminho para norte, ligando-se à povoação através de um ramal que atravessaria o

Sizandro entre Penedo e Runa, onde há notícia de uma calçada soterrada junto ao rio63. A

estrada dirigia-se para norte, por Ordasqueira e Matacães64, onde recebia um caminho

secundário vindo de Ierabriga por Merceana. O traçado é pouco nítido a partir desta zona,

60 LISBOA, J. Vieira – Argilas comuns em Portugal continental: ocorrência e características. In DINIS,

Pedro; GOMES, Alberto; Gomes; MONTEIRO-RODRIGUES, Sérgio (eds.) – Proveniência de

materiais geológicos: abordagem sobre o Quaternário em Portugal. Lisboa: APEQ, 2014. p. 138, 142.

61 MANTAS, Vasco – Notas sobre História Antiga e arqueologia romana na Região Oeste. In

BARBOSA, Pedro Gomes, (coord.) – A região de Alcobaça na época romana: A estação

arqueológica de Parreitas (Bárrio). Alcobaça: Câmara Municipal, 2008. p. 28-30.

62 MANTAS, Vasco – O miliário da Quinta de Santa Teresa (Alenquer) e outros problemas viários

associados. Cira Arqueologia. Vila Franca de Xira. 5 (2016), 76-85.

63 ANTT – Memórias Paroquiais de 1758. XXXII, fl.1079.

64 BARBOSA, Pedro Gomes – Povoamento e estrutura agrícola na Estremadura Central: Século XII-

-1325. Lisboa: INIC, 1988. p. 661.

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Vasco Gil Mantas

26 TORRES VEDRAS – NOVA HISTÓRIA LOCAL

continuando provavelmente por Maxial, seguindo a margem esquerda da ribeira de

Alcabrichel, em direção a S. Tomé de Lamas, já no território de Eburobrittium65.

Outra estrada, que embora secundária cumpria funções importantes na rede de

comunicações regional, pois comunicava a povoação que pensamos ser Chretina com a

faixa litoral, ao longo da margem direita do Sizandro, que atravessava em S. Pedro da

Cadeira, após tocar em S. Gião e na Coutada. Seguia depois em direcção às cercanias de

Mafra, passando o Lizandro em Cheleiros para atingir em seguida a zona das pedreiras de

Montelavar e Pero Pinheiro e depois Belas, ganhando Olisipo pela Estrada de Benfica. De

Montelavar partia outro caminho para a área de Sintra, onde se comunicava com o

complexo sistema viário do sudoeste do município olisiponense, de acordo com a

abundância de vestígios romano na região. Limitamo-nos a esboçar uma rede viária que

seria muito mais densa66, mas seguramente dependente dos grandes eixos definidos pelas

estradas Olisipo-Eburobrittium e Olisipo-Ierabriga (Fig. 10), elas próprias associadas a

itinerários que uniam a cidade do Tejo a Emerita e a Bracara. Com as alterações

induzidas pelas diferentes realidades medievais alguns caminhos poderão ter ganho

importância e outros decaído ou desaparecido. O Sizandro, navegável na época, constituía

um autêntico eixo de comunicações, permitindo o fácil acesso ao mar e à pequena

cabotagem, ideal para cargas difíceis de movimentar por terra em quantidade apreciável,

ou seja, rentável.

Fig. 10 – Principais estradas romanas na área da chamada Península de Lisboa.

65 ALARCÃO, Jorge de – O domínio romano em Portugal. Lisboa: Europa-América, 1989, p. 47.

Trata-se de um pequeno pedestal celebrando o imperador Marco Aurélio, de iniciativa dos

magistrados locais (EE VIII 301).

66 MANTAS, Vasco – A rede viária romana e medieval da região de Torres Vedras. Turres Veteras I:

História Medieval. Torres Vedras: Câmara Municipal, 2000. p. 11-25.

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Romanos e Bárbaros na região de Torres Vedras

TORRES VEDRAS – NOVA HISTÓRIA LOCAL 27

Que podemos dizer das atividades económicas da região na época romana? Como

terra de pães e vinhas e outros mantimentos caracterizou Fernão Lopes os arredores de

Torres Vedras, descrição que se poderia, provavelmente, aplicar à época romana, a crer

nos numerosos estabelecimentos rurais identificados de uma ou outra forma, no termo

concelhio. Parte destes estabelecimentos correspondem a villae de notável dimensão,

embora a ausência de escavações não permita conhecer muito mais. É sabido que as

grandes villae procuravam produzir excedentes para o mercado, que neste caso terá sido

prioritariamente a cidade de Olisipo. O ideal romano da autarcia, porém, terá sido o que

ditou o objetivo dos estabelecimentos menores, que não procurariam mais do que a

sustentabilidade, sem excluir uma reduzida economia de mercado a nível local.

A pecuária estaria presente, como é natural, bem como a produção de cereais e

produtos hortícolas. Nas villae principais produzir-se-iam artigos metalúrgicos, por vezes

em larga escala, como nas Ferrarias67, artigos destinados a consumo próprio e também

para venda. A exploração de pedreiras está confirmada, delas tendo saído o material para

grande parte dos monumentos epigráficos da região, ainda que no caso dos grandes

pedestais do século I a qualidade da gravação sugira origem mais perto de Olisipo, a

menos que os lapidarii se tenham deslocado até aqui. Oficinas cerâmicas ainda não foram

identificadas com segurança, não faltando, todavia, testemunhos de fabrico de cerâmica

comum local. Esta ausência levanta o problema das ânforas na região de Torres Vedras,

sobretudo considerando que a vinha era aqui cultivada em escala significativa.

Perguntamo-nos se o vinho produzido localmente, justificando a sua exportação, não seria

envasado, pelo menos no século I, através de ânforas produzidas noutro local,

eventualmente nos fornos da então ilha de Peniche. Não esqueçamos, porém, que a

utilização de barricas de madeira foi normal, inclusive na Lusitânia (Fig. 11), o que é

frequentemente esquecido e pode explicar algumas aparentes anomalias.

Fig. 11 – Placa funerária de Sentia, com representação de uma cupa

(Museo Nacional de Arte Romano, Mérida).

67 CARDOSO; LUNA, 2005, p. 66-67.

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Vasco Gil Mantas

28 TORRES VEDRAS – NOVA HISTÓRIA LOCAL

Para produzir vinho ou azeite eram necessários lagares, por ora pouco representados

na arqueologia romana torriense, e cuja distinção entre lagares de azeite e lagares de

vinho não é das mais fáceis quando nada resta das instalações a não ser pesos68, por vezes

obtidos com materiais reutilizados. Assim, cremos que os entalhes em cauda de

andorinha, no pedestal da Quinta da Macheia, denunciam uma reutilização como peso de

lagar, ainda na época romana. Temos informação da existência de um possível lagar na

Quinta de S. Gião, ou S. Gião de Entre as Vinhas, através do achado de dolia, muros de

cantaria e um pavimento lajeado69. Mas um lagar de quê? Dado que os solos torrienses

são indicados para o cultivo da oliveira tanto pode trata-se de azeite como de vinho,

ambos mais rentáveis que o cultivo de cereais. Será que podemos considerar a relativa

falta de ânforas Dressel 20 como indicativo do predomínio da oliveira nesta região? Seja

como for, a trilogia mediterrânica esteve presente e desempenhou ativo papel numa

economia que ainda conhecemos mal.

Os impérios mostram uma teimosa tendência para decaírem e sofrerem o resultado desse

fenómeno, o qual, no caso do Império Romano, tem mobilizado desde há séculos legiões de

historiadores, filósofos e politólogos70. Que sabemos atualmente desse processo, que foi

doloroso e arrastado e no qual se inserem acontecimentos decisivos como a adopção do

Cristianismo, com a rutura que tal facto implicou, e as grandes migrações dos chamados

bárbaros, na verdade uns mais que outros, na região que nos interessa? Devemos

reconhecer que a sua presença no termo torriense é vaga, ainda que os trabalhos

arqueológicos efetuados mostrem quebras no povoamento, por abandono ou destruição de

villae e outros sítios anteriormente habitados. Os tesouros monetários identificados

mostram que o século III é já um período de alguma instabilidade, que nesta zona perto do

mar se poderá atribuir ao perigo da pirataria, cada vez mais ativa na costa atlântica71. Mas

as guerras civis e as tensões sociais poderão ter constituído outra razão para a origem do

entesouramento na região, o que se aceita facilmente atendendo ao cenário que se foi

estabelecendo e que no final do século IV preludia o colapso romano no Ocidente. Por

exemplo, as moedas mais recentes das Ferrarias remontam ao imperador Honório72,

refletindo a invasão bárbara iniciada em 409 com a chegada de Vândalos, Alanos e Suevos

a que se seguiu em 415 a dos Visigodos, em teoria ao serviço do Império73.

Para além da anarquia geral que se instalou, provocada pelo desaparecimento

acelerado da administração romana, na prática substituída pela organização episcopal em

68 CARNEIRO, André – Lugares, tempos e pessoas: povoamento rural romano no Alto Alentejo, I,

Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2014. p. 204.

69 LEAL, Pinho – Portugal antigo e moderno. Lisboa: Liv. ed. Tavares Cardoso & Irmão, 1880. Vol.

IX, p. 662-663.

70 WARD-PERKINS, B. – A queda de Roma e o fim da civilização. Lisboa: Alêtheia, 2006; MANTAS,

Vasco – O legado histórico romano e a crise do Ocidente contemporâneo. Biblos. nova série.

Coimbra. 10 (2012) 47-73.

71 RUIVO, José – Circulação monetária na Lusitânia do século III, 2, Porto: Faculdade de Letras,

2008. p. 179; ÁLVAREZ JÍMÉNEZ, David – La otra ruptura del limes en el 406: la piratería en las

provincias occidentales del Imperio. In OLIVEIRA, Francisco de, et al. (coords.) – A Queda de

Roma e o Alvorecer da Europa. Coimbra: Imprensa da universidade de Coimbra, 2013. p. 83-102.

72 SIENNES HERNANDO, M.; RUIVO, José – Um lote de moedas do tesouro tardo-romano de

Ferrarias (Ramalhal, Torres Vedras). Numus. 2.ª série. Porto. 16-20 (1994-1997) 231-245.

73 SANZ SERRANO R. – Las migraciones bárbaras en la Península Ibérica en el siglo V d.C.. In

OLIVEIRA, Francisco de, et al. (coords.) – A Queda de Roma e o Alvorecer da Europa. Coimbra:

Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013. p. 209-228.

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Romanos e Bárbaros na região de Torres Vedras

TORRES VEDRAS – NOVA HISTÓRIA LOCAL 29

parte moldada sobre aquela, e pelas lutas entre os diversos chefes bárbaros, as invasões

alteraram profundamente o padrão de povoamento da Região Oeste, levando ao abandono

de cidades como Eburobrittium e Collipo e, pelo menos em alguns casos, à reocupação de

antigos sítios da Idade do Ferro. As modificações sociais também se fizeram sentir, em

parte herdadas das grandes transformações verificadas durante o final do século III e

início do IV, levando a população rural a procurar a proteção de algum potentado capaz

de dialogar com os invasores, preocupados sobretudo com o saque e os subsídios

impostos sob ameaça. A posse da Península Ibérica decidiu-se entre Suevos e

Visigodos74, numa guerra que trouxe os Suevos até ao sul várias vezes, tomando Olisipo

em 457 e de novo em 469. Estas incursões devem ter-se feito sentir na região torriense,

embora por esta altura o objetivo de uns e outros fossem as cidades. A guerra só terminou

em 585 com a destruição definitiva do reino Suévico.

O reino visigótico estabeleceu alguma normalidade num mundo definitivamente

diferente. A villa da Quinta de S. Gião terá sobrevivido à presença suévica, continuando

ocupada75, a crer no achado de uma moeda de ouro visigótica e, de alguma forma,

também através do hagiotopónimo do sítio, que se repete com variante em outro local

também com testemunhos antigos, Serra de S. Julião, na Carvoeira. A aldeia do Penedo

possui igualmente testemunhos de continuidade de ocupação na Alta Idade Média, entre

os quais um belo capitel, (Fig. 12), conservado no Museu Municipal76, parecido com

outro achado no Cadaval. É possível que a villa local se tenha transformado num povoado

nos finais do domínio romano ou na sequência das invasões bárbaras, mas, mais uma vez,

a falta de escavações arqueológicas sistemáticas dificulta a interpretação deste importante

sítio, como de outros, bem como a integração num cenário menos nebuloso dos materiais

avulsos, por vezes reutilizados, recolhidos no termo de Torres Vedras. Em alguns locais,

a reutilização de materiais romanos pode remontar ao período visigótico, talvez como

resultado de destruições anteriores, como talvez tenha sucedido no castelo torriense,

atendendo às excelentes condições defensivas do local.

Fig. 12 – Capitel alto-medieval achado na povoação de Penedo

(foto Vasco Mantas).

74 GARCÍA MORENO, L. – Historia de España Visigoda. Madrid: Cátedra, 1989. p. 63-131.

75 BELO, A. Ricardo – Nótulas sobre arqueologia de Torres Vedras e seu termo. Badaladas. 83 (1953).

76 CARDOSO; LUNA, 2005, p. 76-77.

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30 TORRES VEDRAS – NOVA HISTÓRIA LOCAL

A região torriense dependia eclesiasticamente do bispado olisiponense, um dos mais

antigos da Lusitânia, embora pouco se conheça, para não dizer mais, sobre a organização

paroquial na zona. O Provincial Visigótico, como não indica paróquias, mas apenas os

limites das dioceses, não é de grande auxílio neste aspeto. Todavia, um dos pontos

extremos do episcopado de Olisibona é indicado como sendo Mafar ou Matar, que

Almeida Fernandes identifica com Mafra ou perto77. Esta identificação relacionar-se-ia

com o território no extremo ocidental da diocese, correspondendo a zona de Usabiam,

talvez Alcobaça, ao limite norte, o que, assim sendo, preludia os limites setentrionais da

Região Oeste. Cremos que as áreas estabelecidas permitiam uma certa indefinição nos

limites das paróquias que, à imagem do território da diocese conimbricense no Paroquial

Suévico, apenas com sete paróquias, não deviam ser numerosas. Em Torres Vedras

indica-se uma origem visigótica para a ermida de Nossa Senhora do Ameal, mas a

arqueologia ainda o não pôde confirmar.

As invasões alteraram definitivamente o que subsistia do sistema romano, fazendo

retornar vastas regiões a um tipo de economia semelhante, ou inferior, ao da Idade do

Ferro, desenvolvendo formas básicas de economia fechada, não monetária. A restauração

visigótica não deixa de aparentar com frequência uma patética tentativa de continuar

certos aspetos da sociedade romana do Baixo-Império tardio, o que é compreensível

considerando o longo contacto havido entre Romanos e Visigodos. Em Lisboa, temos

provas da continuidade do comércio com o Mediterrâneo78, sem que, todavia, possamos

reconhecer-lhe alguma influência direta no termo torriense. Uma última questão, por ora

de difícil resposta: terá sido neste período que o topónimo antigo de Torres Vedras foi

substituído, como tantos outros, por uma denominação incluindo o elemento Turres,

talvez refletindo a existência de estabelecimentos rurais como o do Penedo, ou mais

prosaicamente resultante da abundância de villae destruídas em torno do velho ópido do

monte do castelo de Torres Vedras? Mas então como se explica que a presença

muçulmana não tenha alterado, corrompendo-o, um nome latino? Seja como for, antes e

depois da monarquia agrária, a história da região continuou com uma forte marca rural,

que lhe conferiu uma identidade incontestável, em tempos velhos que já foram novos: Já

lhe obedece toda a Estremadura / Óbidos, Alanquer, por onde soa / O tom das frescas

águas entre as pedras / Que murmurando lava, e Torres Vedras79.

77 FERNANDES, A. de Almeida – Paróquias suevas e dioceses visigóticas. Arouca: [s. n.], 1997.

p. 119-121, 124.

78 CUNLIFFE, B. – Facing the Ocean: The Atlantic and Its Peoples, 8000 BC-AD 1500, Oxford:

Oxford University Press, 2001, p. 478-481; FABIÃO, Carlos – O Ocidente da Península Ibérica no

século VI: sobre o Pentanummium de Justiniano I encontrado na unidade de produção de preparados

de peixes da casa do governador da Torre de Belém. Apontamentos de Arqueologia e Património.

Lisboa. 4 (2009) 25-50.

79 CAMÕES, Luís de – Os Lusíadas, III, 61. Agradecemos cordialmente a preparação das figuras desta

comunicação ao Dr. Luís Madeira.