rogério sganzerla [=] os cafajestes de rui guerra

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Rogério Sganzerla

Os Cafajestesde Rui Guerra

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Os primeiros instantes de Os cafajestes ,filme de estreia de Rui Guerra no cinema brasi-

leiro, introduzem a inquietude que é sua carac-terística fundamental, como forma originaria eexpontânea de contato com a tragédia. A in-quietude desencadeia a ânsia, a ânsia da procu-

ra da indagação, e é decorrente desta ansiedadeque o drama se revela.

Os cafajestes  é um filme sobre o amor e é apartir do ato amoroso que se desenvolve. Já na

cena inicial a câmara embrenha-se pelo túnel,simbolização do ato amoroso, que é um ato deprocura, procura da origem e de conhecimento.(Esta cena funciona também como aviso e pre-

 venção de que a tragédia passa-se no submun-do, que Rui Guerra usa como símbolo do pró-prio mundo). Assim fica esboçada a armadurado filme, que é a da procura universal do ho-

mem, da ânsia do conhecimento provinda dainquietação.Pouco depois de principiado o filme, há o

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filme, há o desnudamento de Leda, principalpersonagem feminino, que servirá para a reve-

lação conjunta dos outros personagens.Como forma de revelação destas persona-

gens, foram utilizados dois momentos funda-mentais do filme: 1) Momento de procura. 2)

Momento de revolta.Esses momentos compõem a própria exis-

tência trágica do homem, sucedendo-se cons-tantemente um ao outro num ciclo de repeti-

ção. Rui Guerra constrói o primeiro momento,de procura, na perseguição de Leda nua pelapraia, e o segundo, de revolta, na seqüencia emque Vavá, depois de uma noite de medo e per-

plexidade, apanha um revolver e tenta o suicí-dio, mas não o consuma, disparando a armacontra as dunas.

 Ambos os momentos significam, para as

personagens, tentativas frustradas. Mesmo as-sim, o ciclo persiste (procura-revolta-procura-revolta...) e isto significa que um personagem,

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depois de fracassar no segundo momento, re-tornará ao primeiro, e assim continuadamente,

persistindo numa procura aprisionante. Os per-sonagens aprisionam-se no ciclo de repetiçãoconstante, que é de estrutura circular, e é nadamais nada menos do que um circulo vicioso.

 A fila principia com as personagens nesseestado, num confinamento ideologicamenteprovindo da certeza do “fatalismo histórico”,que é, para Guerra, uma forma realista de cap-

tar a realidade. Leda, por exemplo, aprisionara-se pela inquietude que desencadeia “automati-camente” o ciclo de repetição, mas toma cons-ciência de sua situação: da crueldade do fato de

ser instrumento do egoísmo dos homens, quenão conhece. É inimiga do amor, teme-o, mas,acima de tudo, procurando-o. Revolta-se, lutacom todas as suas forças para alcançar o amor,

faz de tudo, complica a vida dos outros (Vilmae Vavá), o que significa dizer que retornou aoprimeiro momento, o de procura, mesmo de-

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pois de inúmeras tentativas frustradas. Tentauma vez mais, o que leva a crer que continuará

tentando sempre, mas tudo não passa de maisuma tentativa.

 Além desse ciclo há o da potenciação doprocesso trágico da repetição simétrica, que

evolui em direção da consciência da impotên-cia. Esse ciclo apresenta uma estrutura espiral,e no final da fita alcança uma evidência, a pon-to de Jandir e Leda nem tentarem pôr em pra-

tica a possibilidade de seu amor.Trata-se de fatalismo: Rui Guerra o sobre-

põe à ânsia do conhecimento; inevitavelmentehaverá o eterno impedimento, e essa ânsia

nunca será saciada porque será sempre insaciá- vel. O fatalismo, em Os cafajestes , é o fatalismoda procura, da procura que nunca encontra,mas que persiste. Resulta insaciável e obsessivo,

um fatalismo tão impulsivo como o própriofilme. Kierkegaard diz que “tudo que é impulsosó aparece como ânsia”, e essa ânsia tem cará-

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ter de perseguição.Sua insaciabilidade desconhece motivos e

razões “palpáveis” duma trama justificada eexplicada, para procurá-los em valores univer-sais. Assim, o fatalismo dirige-se, em ascendên-cia, para a suprema procura do homem. Projeta

também a simbologia num “crescendo”, atéuma hierarquia de valores universais e absolu-tos. Funciona como uma linha de fuga, que seprojeta numa perspectiva trágica, dentro da

qual o próprio filme é um ponto, uma referen-cia. A historia existe a partir do filme, não écontida totalmente nele. Por isso ela, em si,pouco interessa.

Para “fatalizar” completamente a ação, oobjeto e o ser, Rui Guerra usa do circulo derepetição, destruindo-os como entidades diver-sas entre si, para interligá-los e interdependê-

los na estrutura circular. Conduz tudo à repeti-ção simétrica, em que só há um caminho, eonde qualquer tentativa de fuga é inútil. Chega

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a recriar visualmente esta estrutura com o “tra- velling” circular ao redor do corpo nu de Leda.

Tal recurso acrescenta erotismo ao momentode procura, já que as linhas circulares são aslinhas eróticas.

 Assim, Guerra tem possibilidades ampla-

mente fatalistas de contato com a tragédia, poisa estrutura do filme é indefinida em sua dura-ção, mas definida em sua trajetória. E é esta adefinição que dá da existência, que funciona

como o desenrolar constante deste circulo, on-de a linha geométrica é eternamente igual a simesma, sempre dependente de um centro inde-terminando, o qual Rui não procura definir,

mas em compensação procura desligar-se delepor intermédio da expressão artística sincera,ingressando no Metafísico com sua disposiçãode procura.

Com as possibilidades desse ciclo concên-trico, seu fatalismo projeta-se na procura, quetambém se desenvolve no ciclo de potenciação,

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de “gangster” o fatalismo tem ascendência pro-gressiva até o desenlace. Conclui-se que o fata-

lismo, em Os cafajestes , é uma determinaçãohistórica e intemporal.

Para conseguir uma estaticidade criadora,Guerra esforça-se para não desenvolvê-lo, im-

primindo-lhe um fluxo contínuo semelhante aodo “ritmo” do filme, prendendo-o em instante.Daí o recurso da fotografia estática, que apare-ce diversas vezes em Os cafajestes . Este filme é,

estruturalmente, um instante da tragédia; assimsendo, o fatalismo captado por este instantetem que ser, necessariamente, uma absorçãofatalista incompleta e indeterminada, podendo,

como o instante, circular à vontade ao longo dociclo da repetição. O fatalismo torna-se, então,eternamente móvel.

 A tragédia captada por Os cafajestes  é fra-

gmentária (não é explicada nem delimitada),mas Rui Guerra tira proveito disso. Sendo fra-gmentária, comporta a dúvida; assim, o fata-

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lismo torna-se dinâmico e perde o caráter está-tico que permite a previsão “do que vai aconte-

cer”. Trata-se duma projeção criativa da tragé-dia, permitindo dramatizações secundárias, eOs cafajestes  é um filme totalmente insinuantena matéria dramática.

Exige, pois, soluções dúbias, incompletas efragmentárias, não definitivas e tão hesitantescomo o próprio comportamento de Jandir. Assoluções finais da história são não soluções,

principalmente o desenlace Vilma-Vavá, com-pletamente impreciso mas rico em insinuações.O que leva a crer que o comportamento daspersonagens, e as próprias personagens, não

têm vida, não têm presença dramática, sãoapenas hipóteses materializadas em corposhumanos. Hipóteses não solucionadas, e isto émais uma razão para que se conclua que Os

cafajestes  são uma concretização da consciênciade seus personagens.Proust diz que “a realidade não se forma

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senão na memória”, procurando, assim, desen- volver um realismo mais autêntico e profundo.

Foi dirigindo-se neste caminho que Alain Res-nais realizou seus filmes; em Hiroshima  fala-seda “evidente necessidade da memória” e o mu-seu é símbolo proeminente disso, bem como a

biblioteca é “toute la mémoire du monde” etc.Kierkegaard denomina-a de “destilação da ex-periência”.

Existem diferenças fundamentais entre a

repetição (devida à estrutura circular) e a me-mória, pois a repetição “nasce onde a rítmicada repetição – sem memória – se entorpecenuma série cerrada de movimentos casuais”

(Kierkegaard) e conduz inevitavelmente ao té-dio.Repetição e memória excluem-se recipro-

camente, e em Os cafajestes   há só repetição,

que é uma forma de encontro com o tédio; ospersonagens não têm memória. (O tédio já foidefinido como a repetição daquilo que é sem-

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pre idêntico, e o círculo de repetição só podeoferecer o tédio).

Gaston Bounoure, escrevendo sobre AlainResnais, diz que “fora da memória não há se-não a morte”. Rui Guerra é tão convicto destarealidade que chega a mostrar os dois cafajestes

a ler um jornal em que se destaca um dísticoem letras garrafais: “Dois mortos”.

Os personagens são mortos para a existên-cia, é a morte em vida, pois não têm memória.

Têm, somente, a consciência da dor, estendidaem todo o tempo, o que significa que têmconsciência da dor total (dor passada, presentee futura).

O Estado de S. Paulo

Suplemento Literário

4 de janeiro de 1964