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Roger Olson Contra o Calvinismo Prefácio de Michael Horton

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Roger O lson

Contra o CalvinismoPrefácio de Michael Horton

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“Nenhum de nós está imune da tentação das acusações falsas, mas Roger e eu concordamos que tem havido muito mais discussões impro­dutivas do que avanços nos debates entre calvinismo e arminianismo. Nenhum de nós sucumbe à ilusão de que ambos [sistemas soteriológi- cos] representam verdades parciais que possam ser equilibradas em uma mescla harmoniosa e sem contradições. “Calminianismo” não existe. Onde estas duas posições clássicas colidem, Roger é um arminiano genuíno e eu estou muito convencido que a Escritura ensina o que é infe­lizmente apelidado de “calvinismo”. Todavia, concordamos que nada se ganha — na verdade, muito se perde — ao representarmos errónea- mente as visões um do outro. Uma coisa é dizer que alguém defende certa visão sendo que a mesma é explicitamente rejeitada e outra coisa é argumentar que a visão leva, em termos lógicos, à determinada con­clusão. É exatamente neste ponto que geralmente ambos os lados come­tem equívocos: quando confundimos nossas interpretações das conse­quências da posição alheia com a visão que é, de fato, afirmada pelo outro”

“Também partilho da avaliação do Roger da situação de muitas coisas no evangelicalismo moderno. Muito além do arminianismo, ele sustenta, as premissas pelagianas parecem prevalecer de maneira espantosa. Ele concorda que o “Cristianismo sem Cristo” está “simplesmente impregna­do na vida eclesiástica estadunidense””.

Michael Horton

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Contra o Calvinismo

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Roger Olson

Contra o Calvinismo

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Sumário

Prolusão (por Michael Horton) 9

Prefácio 15

1. Introdução: Por que este livro agora? 21

2. Calvinismo de quem? Qual teologia reformada? 39

3. Calvinismo puro e simples: O sistema TULIP 59

4. Sim para a soberania divina; não para o determinismo divino 109

5. Sim para a eleição; não para a dupla predestinação 159

6. Sim para a expiação; não para a expiação limitada/ redenção particular 211

7. Sim para a graça; não para a graça irresistível/ monergismo 241

8. Conclusão: Os enigmas do calvinismo 271

Apêndice 1. Tentativas calvinistas de resgatar a reputação de Deus 281

Apêndice 2. Respostas às alegações calvinistas 293

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Este livro é dedicado a três de meus heróis teológicos

que passaram para o Senhor em 2010:

Donald Bloesch, Vernon Grounds e Clark Pinnock

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Prolusäo(por Michael Horton)

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O LIVRO DE ROGER OLSON Contra o Calvinismo representa uma apresentação e defesa contemporânea do arminianismo evangélico que não apenas merece, mas que também exige uma leitura cuidadosa e simpática da parte dos não arminianos.

O Roger está correto ao afirmar que atualmente está cada vez mais difícil saber o significado do termo “reformado”. Principalmente nos EUA onde todos gostam de selecionar e escolher os aspectos do credo de alguém, soa arrogante dizer à outras pessoas que elas não são, na ver­dade, reformadas caso sustentem visões que difiram substancialmente de nossas confissões e catecismos. Entretanto, como outras tradições confessionais, o ensino reformado é determinado por uma confissão comum de cristãos em igrejas reais, não pelas ênfases de certos ensi­nadores ou movimentos populares. Os credos e confissões não falam por nós; nós falamos como igrejas através deles e com eles. Portanto, os não calvinistas deveriam avaliar estas sínteses e os sistemas doutrinários que são consistentes com eles em vez de depender de apresentações idiossincráticas.

No que diz respeito às doutrinas da graça, nossas confissões rejei­tam tanto o hipercalvinismo quanto o arminianismo. Além do mais, a teologia do pacto — incluindo o batismo de filhos do pacto e o governo eclesiástico presbiterial [representativo] liderado por ministros e presbí-

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teros — pertencem à nossa confissão comum juntamente com o famoso acróstico TULIP. A gloriosa graça de Deus é tão evidente quanto nossa visão de batismo e a Ceia do Senhor mais como meios de graça do que como atos meramente humanos de comprometimento e lembrança. Para as igrejas Reformadas e Presbiterianas confessionais, a adoração regulamentada, ministério, missões, e disciplina embasados na Escritura é tão fundamental para glorificar e desfrutar de Deus quanto a doutrina da eleição ou justificação.

Mas este desafio é uma faca de dois gumes. Embora a maioria dos ar­minianos não possua uma confissão comum ou um conjunto de padrões doutrinários, existem claramente representações padrões de, ao menos, convicções arminianas evangélicas. Roger Olson lida efetivamente com as caricaturas, desafiando as concepções errôneas. Se a crítica popular contra o calvinismo frequentemente gira em torno de equívocos ou re­presentações exageradas, então os calvinistas também deveriam sentir empatia pelos arminianos por possuírem entendimento de causa quando estes são, por exemplo, acusados de serem “pelagianos”, que negam a graça em favor de obras de justiça.

Nenhum de nós está imune da tentação das acusações falsas, mas Roger e eu concordamos que tem havido muito mais discussões improdutivas do que avanços nos debates entre calvinismo e arminianismo. Nenhum de nós sucumbe à ilusão de que ambos [sistemas soteriológicos] repre­sentam verdades parciais que possam ser equilibradas em uma mescla harmoniosa e sem contradições. “Calminianismo” não existe. Onde estas duas posições clássicas colidem, o Roger é um arminiano genuíno e eu estou muito convencido que a Escritura ensina o que é infelizmente ape­lidado de “calvinismo”. Todavia, concordamos que nada se ganha — na verdade, muito se perde — ao representarmos erroneamente as visões um do outro. Uma coisa é dizer que alguém defende certa visão sendo que a mesma é explicitamente rejeitada e outra coisa é argumentar que a visão leva, em termos lógicos, à determinada conclusão. É exatamente

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neste ponto que geralmente ambos os lados cometem equívocos: quando confundimos nossas interpretações das consequências da posição alheia com a visão que é, de fato, afirmada pelo outro.

De um lado, Roger pensa que se eu seguisse o calvinismo até suas conclusões lógicas, eu deveria admitir que o Holocausto e os desastres naturais são causados diretamente por Deus e que os condenados no último dia poderiam, com justiça, culpar a Deus e não a si mesmos. No modo dele de pensar, o erro crucial do hipercalvinismo é, na ver­dade, a posição que, em termos lógicos, pode ser deduzida do próprio calvinismo. Em meu modo de ver, não é de se surpreender que alguns arminianos tenham abandonado o consenso cristão clássico no que diz respeito a alguns atributos divinos e o pecado original e adotaram teorias moralistas da pessoa de Cristo como também obras como justificação.

Por outro lado, penso que se o Roger seguisse o arminianismo até sua conclusão lógica, ele deveria ir adiante e negar que a salvação é inteira­mente da graça de Deus; que o arminianismo leva inevitavelmente mais a convicções antropocêntricas do que teocêntricas, caso as conclusões fossem seguidas de maneira consistente. Em outras palavras, cada um de nós acredita que a outra pessoa é inconsistente. No final das contas, o Roger suspeita que o monergismo (ex. Deus apenas trabalhando) mi­nimiza à bondade e o amor de Deus (assim como a agência humana), e eu não posso ver como o sinergismo pode se reconciliar com o sola

gratia (somente a graça). Todavia, o Roger sabe que o calvinismo não ensina que Deus seja o autor do mal ou que os seres humanos não pos­suem responsabilidade. E seria imprudente da minha parte descrever o arminianismo como “pelagiano”.

Embora eu ainda discorde de algumas das descrições do Roger acerca do calvinismo, eu respeito seu comprometimento em tratar das diferen­ças reais em vez de caricaturas. Da minha parte, tenho aprendido muito com o Roger em relação às posições dos principais teólogos arminianos e aprecio sua prudência e repreensões ao longo do percurso.

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Também partilho da avaliação do Roger da situação de muitas coisas no evangelicalismo moderno. Muito além do arminianismo, ele sustenta, as premissas pelagianas parecem prevalecer de maneira espantosa. Ele concorda que o “Cristianismo sem Cristo” está “simplesmente impreg­nado na vida eclesiástica estadunidense”. Quando amigos arminianos como Tom Oden, William Willimon e Roger Olson desafiam este esta­do geral das coisas ao passo que alguns pregadores que se professam reformados vendem seu direito de primogenitura por um mortal prato de lentilha de religião popular, nossas diferenças — embora importan­tes — são colocadas na perspectiva correta. Não tenho dúvidas de que Jacó Armínio ou João Wesley ficariam tão ofendidos quanto o Roger em relação ao que atualmente e com frequência é apresentado erroneamente como “arminianismo” em muitos círculos.

Sou grato ao Roger pela imparcialidade, paixão e a argumentação informada que este livro representa. No final das contas, Roger e eu partilhamos da concordância mais importante: que as questões vitais envolvidas aqui ou em outro debate devem ser trazidas ao escrutínio da Escritura. Ambos acreditamos que a Escritura é clara e suficiente, mesmo se formos confusos e fracos. Somos todos peregrinos no caminho, ainda não fazemos parte daqueles que chegaram ao nosso glorioso destino. Apenas ao nos esforçarmos mais e mais para dialogarmos uns com os outros como coerdeiros com Cristo em vez de tratarmos uns aos outros como adversários é que poderemos lidar com sérias discordâncias — e com o anseio de que também podemos nos surpreender com as praze­rosas concordâncias durante o caminho.

M1CHAEL HORTON

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Prefácio

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ESCREVO ESTE LIVRO com relutância; polêmica não é o meu estilo preferido de assuntos acadêmicos. O que quero dizer é que preferiria proclamar o que sou a favor a denunciar o que eu sou contra. Valorizo a abordagem conciliadora à teologia e espero ser contra o calvinismo o mais conciliador possível. Quero deixar claro “desde o início” que eu não sou contra os calvinistas. Muitos de meus parentes são calvinistas e eu os amo profundamente. Embora minha família imediata não fosse teologicamente desta persuasão, sabíamos que nossos familiares eram tão cristãos quanto nós éramos. Ainda acredito que este seja o caso; uma pessoa pode ser maravilhosamente salva e tão dedicada quanto um cristão possivelmente pode ser e ser calvinista. Deixe-me repetir: não sou contra os calvinistas.

Estou bastante cônscio, entretanto, de quão difícil pode ser separar a visão que alguém tem de sua auto-estima das crenças defendidas apaixonadamente por alguém. Espero que minha tia Margaret não role no túmulo quando este livro for lançado! E oro para que meus primos e amigos calvinistas não se sintam ofendidos. Tento o máximo possível fazer separação entre minha pessoa e minha teologia a fim de aceitar críticas à minha teologia sem se tornar pessoalmente defensivo. Só posso esperar e orar que meus amigos e familiares calvinistas façam o mesmo.

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Esta esperança por uma audiência imparcial requer que eu seja escrupulosamente justo em meu tratamento do calvinismo. Esta é a intenção deste livro. Prometo oferecer meu melhor na representação do calvinismo assim como os próprios calvinistas o representariam — sem distorção ou caricatura. Prometo não criar um espantalho que seja facil­mente destroçado e queimado. Meu lema é: “Antes de dizer ‘eu discordo’, certifique-se de que possa dizer ‘eu entendo’”. Outro princípio que tento seguir é: “Sempre represente o ponto de vista alheio da maneira como os melhores proponentes do mesmo o descreveriam”. É desta forma que quero que eu o meu arminianismo seja tratado e prometo dar o melhor de mim para que este seja o tratamento dispensado ao calvinismo.

Considero os calvinistas meus irmãos e irmãs em Cristo e me en­tristeço por ter que escrever contra a teologia destes meus irmãos, pois ela possui uma história e tradição ricas. Confesso que o calvinismo, que estudei a partir de suas fontes primárias (de Calvino, passando por Jonathan Edwards e chegando a John Piper e inúmeros outros teólogos reformados entre eles) possui muitos aspectos positivos. Como muitos calvinistas gostam de enfatizar, o calvinismo (ou teologia reformada) não está reduzido às doutrinas popularmente associadas a ele — depravação total, eleição incondicional, expiação limitada, graça irresistível e per­severança dos santos (TULIP). Alguns destes pontos (principalmente os três pontos do meio) são crenças que criticarei neste livro. Entretanto, o pensamento reformado, no geral, transcende tais pontos e é parte de um todo maior do qual a TULIP é apenas uma parte. Quão essenciais estes cinco pontos são para a teologia reformada é algo muito debatido tanto pelos próprios calvinistas quanto por outros.

Meu objetivo aqui é simplesmente admitir que quando eu disser que “sou contra o calvinismo” que estou apenas me referindo a determina­dos aspectos da teologia reformada e não a tudo quanto ela representa. Em virtude da tradição reformada (talvez muito diferente de algumas de suas doutrinas contestáveis) ser cristocêntrica, eu a considero parte

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da rica diversidade do cristianismo clássico. Posso e realmente adoro a Deus ao lado de calvinistas sem me sentir incomodado.

Caso alguém precise de mais persuasão acerca desta questão, quero enfatizar que trabalhei e adorei a Deus ao lado de calvinistas em três universidades cristãs e várias igrejas (Batista e Presbiteriana) durante os últimos trinta anos sem dificuldade. Votei a favor da contratação de pro­fessores calvinistas e também para que tivessem estabilidade acadêmica. Não tenho problemas com calvinistas sendo cristãos genuínos, acadêmi­cos e professores cristãos fiéis. Sei, de primeira mão, que geralmente eles são fiéis. Admito que fico ofendido com alguns calvinistas. Estes são os que consideram sua teologia o único cristianismo (ou evangelicalismo) autêntico e que interpretam erroneamente outras teologias que não a sua — principalmente o arminianismo. Infelizmente, especialmente nos últimos anos, eu tenho encontrado estas características com muita facilidade entre os “novos calvinistas”.

Alguns leitores podem questionar minhas credenciais para escrever acerca do calvinismo. Permita-me reafirmá-las. Por inúmeros motivos eu me considero apto para escrever imparcial e precisamente sobre uma teologia que eu discordo. Lecionei teologia histórica em três universida­des cristãs por quase trinta anos. Estudei Calvino, Jonathan Edwards e outros teólogos reformados no seminário e na pós-graduação e sempre exigi que meus alunos os lessem como parte de sua formação nos cursos de teologia histórica. Também me esforcei para convidar “calvinistas rígidos” (os comprometidos com todo o esquema da TULIP) para fala­rem e interagirem em minhas aulas. Li as Institutas da Religião Cristã de João Calvino assim como também li os tratados de Jonathan Edwards cuidadosamente e com extrema atenção para que a leitura não fosse preconceituosa.

Estou muito bem familiarizado com o maior proponente contempo­râneo do calvinismo — John Piper — e li muitos de seus livros. Estudei os escritos de vários outros calvinistas, incluindo Charles Hodge, Loraine

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Boettner, Louis Berkhof, Anthony Hoekema, R. C. Sproul e Paul Helm. Participei de conferências teológicas calvinistas, contribui com publi­cações calvinistas, me ocupei com diálogos longos com pensadores reformados e publiquei um importante livro-texto de teologia histórica que lida profundamente com a teologia reformada.

Meu conhecimento do calvinismo e da teologia reformada é mais do que algo passageiro. Tornou-se uma paixão — e não apenas com a intenção de refutá-lo. Meu estudo de fontes reformadas tem enriqueci­do grandemente minha vida teológica e espiritual. Não reivindico ser um especialista em calvinismo, mas defenderei minha habilidade de descrevê-lo e avaliá-lo embasado em estudo meticuloso de suas fontes primárias tanto arcaicas (século XVI) quanto contemporâneas. Espero e anseio que calvinistas bem informados considerem minhas descrições aqui justas, se não profundas.

Desejo agradecer inúmeras pessoas por suas ajudas inestimáveis na realização desta publicação. Todos os calvinistas que me ajudaram involuntariamente ao simplesmente responderem minhas indagações e por participarem comigo em diálogos teológicos. Não havia subterfúgio da minha parte; a ideia deste livro foi posterior a muitos destes eventos. Primeiramente eu quero agradecer ao Michael Horton, editor da revista Modem Reformation e um astuto acadêmico, que graciosamente con­versou (às vezes debateu) comigo acerca destes assuntos durante vários anos. Aprendi muito com ele. Também quero agradecer meus amigos calvinistas da igreja Redeemer Presbyterian Church de Waco, Texas, e da Reformed University Fellowship local. Eles nobremente aguentaram minhas despreocupadas interferências quando estes falavam com meus alunos e sempre me corrigiram meus erros de maneira cordial. Por fim, quero agradecer a muitos de meus alunos calvinistas que cursaram disci­plinas comigo apesar de conhecerem muito bem acerca de meus receios em relação à teologia reformada e que frequentemente contribuíram com o meu entendimento concernente a sua tradição de fé.

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Introdução

Por que este livro agora?

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LOGO APÓS EU COMEÇAR a lecionar teologia, um jovem aluno an­sioso me seguiu até minha sala e pediu para conversar comigo a sós. Sem hesitar eu o convidei a sentar ao lado de minha mesa e pedi para que ele dissesse o que se tratava. Ele se inclinou em minha direção e com um semblante sério disse: “Professor Olson, não acredito que o senhor seja cristão” Não é preciso dizer que eu fiquei, de certa forma, desconcertado.

“Por que está me dizendo isto?” , indaguei.“Porque o senhor não é calvinista” , foi sua resposta.Perguntei de onde ele havia tirado essa ideia de que apenas um

calvinista possa ser um cristão e ele me deu o nome de um pastor pre­eminente e autor cuja igreja tornou-se famosa mundialmente por sua promoção do calvinismo rígido. Encorajei meu aluno a conversar com seu pastor acerca deste assunto e confirmei minha confiança em ser cristão em virtude de minha fé em Jesus Cristo. O aluno jamais retirou sua acusação de que eu não era cristão. Anos mais tarde, entretanto, o pastor deveras negou ter alguma vez ensinado que apenas calvinistas poderiam ser cristãos.

Este foi, por assim dizer, a primeira salva (de tiros) em meu longo embate com o “novo calvinismo” celebrado pela revista Time (12 de maio de 2009) como uma das dez maiores ideias mudando o mundo “agora

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mesmo”. Meu aluno acusador foi um dos primeiros de um movimento de uma geração de cristãos denominado “jovem, incansável e reforma­do”. Naquela época tudo o que eu sabia era que meus melhores e mais inteligentes alunos de teologia estavam gravitando em direção ao calvi­nismo sob a influência do pastor que o aluno havia mencionado. Muitos dos docentes em nossa instituição os chamavam de “crias do Piper”. Mas esta tribo estava destinada a aumentar durante os anos sequentes.

O FENÔMENO JOVEM, INCANSÁVEL E REFORMADO

Em 2008 o jornalista cristão Collin Hansen publicou a primeira ex­ploração de proporções de livro de um fenômeno que a maioria dos líderes cristãos evangélicos estavam discutindo: Young, Restless, Refor­

med: A Journalist's Journey with the New Calvinists (Jovem, Incansável e

Reformado: A Jornada de um Jornalista com os Novos Calvinistas '. As raízes deste movimento estão bem alicerçadas na história protestante. O calvinismo, claro, oriunda seu'nome do reformador protestante João Calvino (1509 - 1564), cujo aniversário de quinhentos anos [de nasci- mentojfoi recentemente comemorado ao redor da América do Norte com conferências e eventos de admiração dedicados a sua memória. Um incentivador mais recente foi o pregador puritano, teólogo e educador Jonathan Edwards (1703 - 1758), da Nova Inglaterra, que notoriamente defendeu uma versão da teologia de Calvino contra o que ele enxergava como o crescente racionalismo do deísmo em seus dias. Um aspecto aparente do movimento jovem neo-calvinista (não confinado apenas aos jovens) é a popularidade de camisetas com estampas do rosto de Jonathan Edwards com o lema: Jonathan Edwards is my homeboy {Jo­

nathan Edwards é meu parceiro).

Um catalisador contemporâneo do movimento é o pastor batista de Mineápolis, autor e conferencista popular John Piper (n. 1946), cujos inú-

1. Collin Hansen, Young, Restless, Reformed: A Journalist’s Journey with the New Calvinists (Wheaton, IL: Crossway, 2008).

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meros livros teológicos são excepcionalmente fáceis de ler e acadêmicos— uma rara combinação. Seu livro Em Busca de Deus (Teologia da Alegria)2

perde apenas para a Bíblia em termos de inspiração e autoridade para muitos dos cristãos jovens, incansáveis e reformados que avidamente devoram os livros e os sermões de Piper (facilmente encontrados online). Piper fala para grandes públicos em conferências jovens nas “Passion Conferences” e eventos “One Day” — às vezes atingindo um número de quarenta mil pessoas com menos de vinte e seis anos. O que muitos de seus seguidores desconhecem é algo que o Piper não esconde de ninguém — que ele está simplesmente tornando mais atraente a teo­logia calvinista de Jonathan Edwards para a juventude contemporânea. (A leitura dos escritos de Edwards pode ser difícil!)

Para leitores não familiarizados com este “novo calvinismo” (ou tal­vez até mesmo com o próprio calvinismo), eu apresentarei a concisa e hábil descrição do jornalista Hansen. (Uma explicação mais completa do calvinismo e da teologia reformada será desenvolvida durante o curso deste livro). De acordo com Hansen:

Calvinistas — que recebem o nome do teólogo reformador João Calvino — enfatizam que a iniciativa, soberania e poder de Deus são a única esperança inquestionável para os seres humanos pecaminosos, instáveis e moralmente fracos. Além do mais, eles ensinam que a glória de Deus é o tema último da pregação e a ênfase da adoração3.

Além disso, Hansen explica: “o calvinismo estima muitíssimo a transcendência que extrai temas bíblicos tais como a santidade, glória e majestade de Deus”4. Mas se estas fossem as únicas ênfases do novo calvinismo (ou o velho calvinismo, tratando-se desta questão), poucos cristãos protestantes evangélicos sinceros fariam questão de discutir com

2. PIPER, John. Em busca de Deus: a plenitude da alegria cristã. Tradução de Hans Udo Fuchs. 2. ed. São Paulo: Shedd, 2008.

3. Hansen, Young, Restless, Reformed, 15.

4. Ibid., 21.

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esse sistema. Quais cristãos evangélicos negam os atributos citados? Para Hansen e as pessoas a quem ele estuda, todavia, tal pode ser uma questão de destaque. De acordo com ele, os novos calvinistas estão reagindo ao que ele considera um esmorecimento geral da teologia e, principalmente, da ênfase na glória de Deus na vida eclesiástica estadunidense contempo­rânea. Seus objetos de estudo, ele diz, estão reagindo contra a “teologia do bem-estar” de muitas igrejas evangélicas contemporâneas 5.

Hansen está se referindo a estudos sociológicos dos jovens cristãos que classificam a visão padrão de Deus como “Deísmo Terapêutico Moralista” 6 — um termo sofisticado para descrever uma visão de Deus como uma figura de um avô no céu que exige perfeição, mas que, no final, sempre perdoa. Este “Deus” é tanto um juiz quanto um coach de autoestima. Ele não pode ser agradado, mas sempre perdoa. Esta é uma visão fraca e diluída de Deus pelos padrões cristãos históricos e muitos jovens cristãos se deram conta disto e se voltaram para a única alternativa que lhes estava disponível — as robustas e espessas doutrinas do calvinismo.

Como um professor experiente de faculdades cristãs e de univer­sitários cristãos eu aceito esta crítica feita a muito da vida eclesiástica evangélica contemporânea e pregação. É demasiado alto o número de jovens cristãos que crescem praticamente sem nenhum conhecimento bíblico ou teológico, pensando que Deus existe para dar-lhes conforto e sucesso na vida ainda que ele estabeleça um padrão que ninguém possa realmente atingir. Como um amável avô que demonstra ternura excessiva para com seus descendentes pré-adolescentes, Deus pode até

5. Ibid., 20 - 21. O que exatamente constitui a “teologia do bem estar” nem sempre é fácil de dizer, mas muitos dos novos calvinistas (e outros, incluindo este autor não calvinista!) veem isso manifesto na pregação e publicação populares que promovem o cristianismo como o caminho para a auto-realização e sucesso, se não a prosperidade material.

6. Ver Christian Smith e Melinda Lundquist Denton, “Summary Interpretation: Therapeutic Deism,” em Soul Searching: The Religious and Spiritual Lives of American Teenagers (New York: Oxford Univ. Press, 2005), 102 - 71.

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se desapontar conosco, mas Seu objetivo último, de qualquer forma, é de nos trazer satisfação.

Isso pode ser uma espécie de caricatura; pouquíssimos pastores ou professores evangélicos diriam tal coisa. Mas minha experiência corro­bora com o que Hansen argumenta — que de alguma forma ou outra a maioria dos jovens cristãos acaba por se apegar a tal visão de Deus e fracassa plenamente na busca das riquezas da Bíblia ou da teologia cristã de sorte que aprofundem o entendimento acerca de si e de Deus. Muitos dos mais inteligentes e melhores jovens adquirem uma vaga percepção de que falta algo em sua educação cristã, e quando ouvem a mensagem do calvinismo, eles se apegam a ela como se fosse um bote salva-vidas que os livra de uma espiritualidade culturalmente acomodada e rala. Quem pode culpá-los? Todavia, o calvinismo não é a única alternativa, a maioria deles sabe muito pouco ou nada acerca da fraqueza deste sistema ou sobre teologias alternativas moderadas historicamente ricas e biblicamente fiéis.

RAÍZES DO NOVO CALVINISMO

Nesta altura os leitores podem estar se perguntando se este fenôme­no do novo calvinismo é um modismo de jovens que surgiu do nada. Já insinuei fortemente que não se trata disso. Mas algo novo está em curso nele — o apelo de uma antiga teologia para uma platéia bastante jovem. O calvinismo e teologia reformada (uma diferenciação e relação destes termos será feita no capítulo 2) costumavam ser uma tradição cristã grandemente atrelada principalmente a pessoas idosas. Anos atrás até mesmo muitos cristãos evangélicos pensavam no calvinismo como que quase restrito às regiões de Grand Rapids, Michigan e Pella, Iowa (e comunidades semelhantes povoadas principalmente por imigrantes holandeses). A Holanda era, afinal de contas, um país onde o calvinismo especialmente pegou. Grand Rapids oferece uma gama de instituições calvinistas influentes, tais como o Calvin College e Seminary, inúmeras

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editoras de viés calvinista e várias igrejas calvinistas grandes. Em Pella, Iowa, onde acontece um festival anual de tulipa bastante frequentado, podemos encontrar Primeira, Segunda e Terceiras igrejas reformadas com poucas quadras de distância uma das outras. E a cidade se orgulha do excelente Central College — uma faculdade de artes liberal reformada.

A descrição anterior em nada visa desmerecer as igrejas reformadas ou a teologia calvinista; elas possuem uma rica tradição histórica e uma grande presença dentro do cristianismo evangélico estadunidense. Mui­tos líderes e pensadores preeminentes têm sido reformados desde os dias dos puritanos (que eram calvinistas ingleses). Todavia, por várias gerações durante o século XX a vitalidade do calvinismo parecia estar se esvanecendo. Alguém pode perceber isso nos tons defensivos do massivo tomo do nobre teólogo calvinista Loraine Boettner (1901 - 1990), The Reformed Doctrine of Predestination.7, (o livro de Boettner foi tratado a muito como uma fonte magistral acerca do calvinismo rígido por inúmeros cristãos reformados, ainda que livros mais populares que tratam da mesma teologia sejam melhores que este).

Boettner, que declarou que “uma exposição plena e completa do sis­tema cristão só pode ser dada com base na verdade conforme estipulada no sistema calvinista” 8 e que “nossa doutrina é a doutrina claramente revelada das Escrituras” 9, denunciou o declínio da forte crença calvinista entre os evangélicos estadunidenses. Ele ficaria satisfeito em ver a atual renascença do calvinismo. Mas ele estava certo. Entre a década de 40 até a década de 80 o calvinismo enfrentou dificuldades com o público jovem; na década de 70 o Jesus Movement era qualquer coisa menos calvinista, e os movimentos carismáticos e a Terceira Onda também foram, em sua maioria, não calvinistas. Estes foram os movimentos populares de minha

7. Loraine Boettner, The Reformed Doctrine of Predestination (Grand Rapids: Eerdmans, 1948).

8. Ibid., 7.

9. Ibid., 248.

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juventude, muitos dos adolescentes cristãos de hoje e alunos universi­tários (e pessoas mais velhas também) estão tão empolgados com essa sua recém-encontrada fé na soberania absoluta de Deus como os jovens cristãos de minha geração estavam em relação a “ficar doidão em Jesus”.

Entretanto, o calvinismo jamais desapareceu ou ficou obscurecido. Ele sempre foi uma força robusta em certos segmentos da vida eclesiástica estadunidense. E os cristãos jovens, incansáveis e reformados estão larga­mente inconscientes de calvinistas anteriores a John Piper (e seus jovens pregadores e escritores popularizantes) que prepararam o caminho para a redescoberta desta mensagem e estilo de vida. Um desses calvinistas foi Boettner — pouco conhecido, mas influente. Outro foi James Mon­tgomery Boice (1938 - 2000), um de meus professores do seminário e que pastoreou a Décima Igreja Presbiteriana em Filadélfia, Pensilvânia, uma igreja evangélica e fortemente calvinista. Também foi pregador de rádio, comentarista bíblico, editor de revista cristã (Eternity) e autor de vários livros principalmente acerca da teologia reformada. (Boice tirou um período sabático de sua igreja na metade dos anos 70 durante o qual ele lecionou um curso no North American Baptist Seminary em Sioux Falis, Dakota do Sul; eu fui um de seus alunos durante aquele curso de mini semestre sobre pregação). A maioria dos jovens novos calvinistas jamais ouviu falar de Boice, mas ele foi um pastor-autor-teólogo-orador incrivelmente prolífico, quase que uma força da natureza na vida evan­gélica estadunidense, o mesmo que o Piper representa atualmente.

Outro precursor e pioneiro do novo calvinismo é o teólogo reforma­do e apologista R. C. Sproul (n. 1939), fundador do influente Ligonier Ministries, cuja especialidade é apologética cristã. (Nem todos os calvi­nistas gostam tanto de apologética racional quanto o Sproul, mas não há dúvidas acerca de suas credenciais calvinistas). Sproul atuou como docente em vários seminários calvinistas conservadores preeminentes e apareceu em pessoa e via mídia em inúmeras conferências cristãs e eventos eclesiásticos. Entre suas amplamente lidas exposições e defe­

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sas da teologia calvinista estão O que é Teologia Reformada? e Eleitos de

Deus 10. Hansen dá a Sproul grande crédito por preparar o caminho para o novo calvinismo ainda que ele não seja tão bem conhecido entre os jovens, incansáveis e reformados quanto John Piper.

Outro orador e escritor calvinista popular que ajudou a preparar o terreno para o reavivamento da teologia reformada entre os jovens é o evangelista de rádio, pastor e comentarista bíblico John F. MacArthur (n. 1939), pastor de uma das megaigrejas originais — Grace Community Church of Sun Valley, Califórnia. Seu programa radiofônico Grace to You

tem estado ininterruptamente no ar desde 1977. Em 1985 ele fundou sua própria faculdade cristã e em 1986 seu próprio seminário. É o autor de um grande número de livros, sendo que todos eles promovem uma perspectiva calvinista acerca da Bíblia e teologia. É indubitável que, assim como Boice e Sproul a influência de MacArthur ajudou a desenvolver os novos calvinistas que, em geral, jamais ouviram falar dele.

Outro precursor e pioneiro deve receber crédito pelo ressurgimento do calvinismo ainda que poucos de seus jovens adeptos o conheçam. Estou falando de Michael Horton (b. 1964), autor e editor teológico pro­lífico que leciona no Westminster Theological Seminary no campus em Escondido, Califórnia. É o organizador mestre e uniu muitos calvinistas (e outros com visões semelhantes de Deus e da salvação) em organiza­ções como a Aliança de Evangélicos Confessionais, da qual ele atuou como diretor executivo. É o editor da extremamente bem-sucedida revista Modem Reformation e apresentador do programa de rádio White

Horse Inn — órgãos de interpretação bíblica, crítica cultural e teologia calvinistas sérios, mas populares. Muitos jovens neocalvinistas estão redescobrindo Horton e suas obras, tais como Cristianismo sem Cristo:

O Evangelho Alternativo da Igreja Atual " — uma crítica profética da

10. SPROUL, R. C. O que é teologia reformada? Sào Paulo: Cultura Cristã, 2009. SPROUL, R.C. Eleitos de Deus, Editora Cultura Cristã, 2002.

11. HORTON, Michael. Cristianismo sem Cristo.Tradução de Neuza Batista. São Paulo: Cultura Cristã, 2010.

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raquítica teologia e espiritualidade “centrada no homem” de muito do cristianismo evangélico hodierno.

Estes insignes calvinistas estão rodeados de uma miríade de outros que poderiam ser citados como promotores influentes do calvinismo evangéli­co e preparadores da ascensão do novo calvinismo nas décadas de 90 e a primeira década do século XXI. Mas um fenômeno deve ser mencionado mesmo que dando um relato apressado do histórico do movimento — o “ressurgimento de Edwards” tanto na filosofia quanto na teologia durante as últimas décadas do século XX. Por décadas e talvez um século Jonathan Edwards era conhecido para a maioria das pessoas, cristãos inclusos, apenas como o pregador puritano carrancudo do sermão “Pecadores nas Mãos de um Deus Irado”. Todavia, ele foi redescoberto nos anos 80 e após como um profundo filósofo e teólogo assim como também um observador astuto da natureza e naturalista amador. Inúmeros livros continuam a sair das editoras promovendo Edward como o “Teólogo Americano” — o título de uma recomendação teológica de Edward e seu pensamento12. Durante seus dias como aluno no Fuller Theological Seminary escolheu John Piper como seu mentor teológico e encontrou nele explicação mais rica e completa do cristianismo bíblico no mundo moderno13.

Nada desta história inclui as pessoas associadas ao baluarte da vida e pensamento reformado estadunidense — Calvin College e Seminary de Grand Rapids, Michigan. A extensão na qual estas instituições prepa­raram o caminho para o novo calvinismo é incerta. A influência delas é

12. Robert W. Jenson, America's Theologian: A Recommendation of Jonathan Edwards (New York and Oxford: Oxford Univ. Press, 1988).

13. Meu conhecimento deste episódio e desenvolvimento na carreira do Piper vem de uma longa conversa com um dos professores de seminário do Piper, Lewis Smedes (1921 - 2002). O próprio Smedes era um tipo de calvinista, mas na fase madura de sua vida ele deixou o calvinismo rígido (o sistema da TULIP) e me confessou que havia abraçado o teísmo aberto - a visão de que Deus limita a si mesmo a ponto de não conhecer o futuro de maneira exaustiva e infalível. Todavia, como um dos mentores de Piper no Fuller Seminary anos antes, Smedes se lembrou de ter recomendado que o Piper estudasse Edwards e que mergulhasse em sua teologia. Sua mensagem para mim foi que, em sua opinião, o Piper levou essa tarefa a sério demais!

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provavelmente mais remota. Além disso, alguns pensadores reformados estadunidenses associados a estas instituições expressaram certas reser­vas acerca do novo calvinismo que, interpretado de certa forma, poderia ser visto como lançando dúvida sobre seus precursores já mencionados.

A edição da revista Christian Magazine de 1 de dezembro de 2009 continha um artigo do teólogo reformado Todd Billings do Western Theological Seminary of Holland, Michigan (que, assim como o Calvin College e Seminary, é um centro mais antigo da tradição reformada estabelecido na Holanda). Em seu artigo “O Retorno de Calvino? O Reformador Irresistível” , Billings dénunciou o foco unilateral do novo calvinismo em algumas doutrinas reformadas mais incomuns e, prin­cipalmente o esquema TULIP: depravação total, eleição incondicional, expiação limitada, graça irresistível e perseverança dos santos. Ele asseverou que os novos calvinistas utilizam a TULIP como um teste decisivo no qual se testa a autenticidade de alguém como reformado. Em resposta ele alega que o acróstico TULIP não fornece uma redução à essência adequada ou acurada da teologia reformada 14 e critica os neocalvinistas por colocar no centro o que é periférico à tradição.

Para Billings e para muitos outros “calvinistas litúrgicos” (um termo para os que estão associados às denominações sacramentais e liturgias holandesas, escocesas reformadas e presbiterianas mais antigas) os novos calvinistas estão cometendo um erro. “Reformado” não designa uma ênfase na predestinação e certamente também não na reprovação (predestinação de algumas pessoas ao inferno) — o que Calvino notoria­mente chamou de “decreto horrível [de Deus]” — mas em certas visões católicas (aqui, significando universal) e sacramentais do cristianismo que realmente enfatizam a soberania de Deus, mas que não o esgota em celebração do controle absoluto de Deus dos mais pormenorizados acontecimentos, incluindo o mal.

14. J. Todd Billings, “Calvin’s Comeback? The Irresistible Reformer,” Christian Century (December 1, 2009), 22 - 25.

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A objeção de Billings irá, sem dúvida, ser debatida por outros autopro- clamados cristãos reformados. Só a mencionei aqui porque ela expressa bem um murmúrio contra o novo calvinismo que pode ser ouvido das instituições estadunidenses e europeias reformadas mais antigas que, em certa extensão, minimizam o sistema TULIP da teologia reformada. Eu explorarei mais acerca do assunto e outros aspectos da diversidade reformada e calvinista nos próximos dois capítulos.

A NECESSIDADE DE UMA RESPOSTA AGORA

Esta introdução tem o título “Por quê Este Livro Agora?” De fato, por quê um livro Contra o Calvinismo? O aumento da reflexão teológica séria e comprometimento entre jovens cristãos não é uma coisa boa? Por quê derramar água fria sobre as chamas de espiritualidade do avivamento entre a juventude? Levo esta consideração muito a sério.

Todavia, creio que é chegado o tempo para que alguém aponte as fa­lhas e fraquezas neste tipo específico de calvinismo — o tipo amplamente abraçado e promovido por líderes e seguidores do movimento jovem, incansável e reformado. Mas a promoção do que considero um sistema falho não advêm apenas deles. A mesma teologia da soberania absoluta de Deus pode ser encontrada em Calvino (talvez sem o aspecto da expiação limitada), Edwards (de maneira extrema, conforme explicarei), Boettner, Boice, Sproul e inúmeros outros popularizadores do calvinismo. Mas então, qual é o erro em acreditar e celebrar a soberania de Deus? Absolutamente nenhum! Mas, a soberania pode e frequentemente é levada a excessos— fazendo de Deus o autor do pecado e do mal — que é algo que poucos calvinistas admitem, mas é o que se segue do que eles ensinam como a “consequência lógica e necessária” (uma expressão técnica de certa forma confusa geralmente utilizada pelos próprios calvinistas para salientar os efeitos temerosos que enxergam nas teologias não calvinistas).

Você pode acessar o fenômeno da Internet chamado Youtube e assis­tir vários clipes de vídeos de proponentes do novo calvinismo fazendo

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declarações chocantes acerca da soberania de Deus, incluindo que Deus causa calamidades e horrores “para sua glória” John Piper publicou um sermão, hoje muito conhecido, poucos dias após os acontecimentos terroristas nas Torres Gêmeas de 11 de setembro de 2001, declarando que Deus não apenas permitiu tais eventos, mas que os causou ,5. Ele desde então tem publicado outras declarações semelhantes em que atri­bui a Deus desastres naturais e calamidades horrendas. Piper não está sozinho; muitos dos novos calvinistas e seus mentores estão afirmando agressivamente que esta visão de Deus é a única que é bíblica e razoável.

O calvinismo popular contemporâneo pode ser, no geral, consisten­te com Calvino e muito de seus seguidores (embora eu pense que ele seja ainda mais moldado por seu sucessor e o pastor chefe de Genebra, Theodore Beza [1519 - 1605] e seus seguidores), mas ele não é a única versão da teologia reformada e do calvinismo. Explicarei mais sobre isso no capítulo seguinte. Por agora nos basta dizer que mesmo muitos cristãos reformados estão chocados e horrorizados com as implicações da ênfase extremada na soberania de Deus do novo calvinismo.

Claro, a definição de “reformado” depende grandemente da igreja e do pensador que reivindica o termo. Na verdade, a organização mundial chamada Comunhão Mundial de Igrejas Reformadas (CM1R) inclui muitas denominações e igrejas que, de forma alguma, abraçam todo o sistema da TULIP. (De fato, surpreendendo a muitos calvinistas, a CMIR inclui algumas igrejas arminianas que acreditam no livre-arbítrio e que negam o controle meticuloso e providencial de Deus de todos os acontecimentos!) Eu me considero reformado no sentido amplo — não luterano inserido na ampla corrente protestante que se estende da reforma suíça liderada originalmente por Ulrico Zuínglio (1484 - 1531).

15. John Piper, “Why I Do Not Say, 'God Did Not Cause the Calamity, but He Can Use It for Good.’ ” www.desiringgod.org/ResourceLibrary/TasteAndSee/ByDate/2001/1181_ Why_I_Do_Not_Say_God_Did_Not_Cause_the_Calamity_but_He_Can_Use_lt_for_ Good/.

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Acredito que alguém precise, por fim, se levantar e, em amor, dizer um “Não!” com firmeza às afirmações ofensivas frequentemente feitas por calvinistas acerca da soberania de Deus. Levadas a sua conclusão lógica, até mesmo o inferno e os que sofrerão eternamente nele são preordenados por Deus, Deus é, desse modo, retratado, no melhor cenário, como moralmente ambíguo e, no pior cenário, um monstro moral. Cheguei ao ponto de dizer que este tipo de calvinismo, que atribui tudo à vontade e o controle de Deus, torna difícil (pelo menos para mim) enxergar a diferença entre Deus e o diabo. Alguns de meus amigos calvinistas se sentiram ofendido com essa afirmação, mas eu continuo a acreditar que ela seja uma questão válida que valha a pena ser acompanhada. Quando digo isso quero dizer que se eu fosse calvi­nista e acreditasse no que estas pessoas ensinam, eu teria dificuldade em dizer a diferença entre Deus e Satanás. Falarei mais a esse respeito de maneira pormenorizada durante o curso deste livro.

Alguns calvinistas acusam os não calvinistas de rejeitarem sua teologia da soberania de Deus em razão do amor humanista latente pelo livre- -arbítrio. Um colega calvinista, que se tornou um autor bem conhecido de livros reformados, uma vez me indagou se eu considerava a possibilidade de que minha crença no livre-arbítrio fosse uma prova de humanismo não reconhecido em meu pensamento. Não é necessário dizer que rejeito essa suposição. A questão é que eu, assim como a maioria dos cristãos não calvinistas, abraço o livre-arbítrio por dois motivos (além do fato de acreditarmos que o conceito esteja suposto na Bíblia): o livre-arbítrio é necessário para conservar a responsabilidade humana pelo pecado e o mal e também por ele ser necessário para eximir Deus da responsabili­dade pelo pecado e o mal. Posso dizer com toda a sinceridade (como a maioria dos evangélicos não calvinistas o faz) que eu não dou a mínima para o livre-arbítrio a não ser por estes motivos.

Não tenho o interesse em uma teologia centrada no homem; estou intensamente interessado em adorar um Deus que é verdadeiramente

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bom e acima da repreensão pelo Holocausto e todos os outros males que são por demais numerosos para serem mencionados. Um elevado número de autores calvinistas interpreta equivocadamente as teologias não calvinistas como se elas fossem antropocêntricas, humanistas, desonrosas a Deus, e até mesmo não bíblicas sem jamais admitir os problemas em sua própria teologia. Muitíssimos seguidores jovens e impressionáveis ainda não se deram conta de quais sejam estes proble­mas16. Escrevo isso para ajudá-los.

É chegada a hora de um “Não” conciliador e amável para a versão extrema do calvinismo sendo promovida pelos líderes da geração jovem, incansável e reformada e que é frequentemente abraçada sem análise crítica por seus seguidores. Demonstrarei que o “Não” pode ser dito dentro da própria teologia reformada e que ele tem sido dito por alguns teólogos reformados e acadêmicos bíblicos preeminentes. Mostrarei que este calvinismo extremado, que juntamente com o partidário Hansel eu chamo de “radical” 17 é inerentemente defeituoso bíblica e logicamente e em termos da tradição cristã mais ampla.

Colocarei todas as minhas cartas na mesa aqui e confessarei que opero com quatro critérios de verdade teológica: Escritura, tradição, razão e experiência (o então chamado Quadrilátero Wesleyano). Es­

critura é a fonte e norma primária de teologia. Tradição é a “norma normatizada” — um respeitado mecanismo de orientação. Razão é

uma ferramenta crítica para interpretar a Escritura e eliminar alegações teológicas absolutamente inacreditáveis que são contraditórias entre si

16. Escrevi um livro inteiro sobre a teologia arminiana, uma tradição que frequentemente representada equivocadamente pelos críticos calvinistas como uma teologia centrada no homem (entre outras coisas. OLSON, Roger E. Teologia Arminiana: Mitos e Realidades; tradução Wellington Carvalho Mariano. São Paulo: Editora Reflexão, 2013. Nesta obra eu provo que a maioria das críticas feitas pelos calvinistas à teologia evangélica não calvinista (e talvez algumas outras) é falsa.

17. Hansen, Young. Restless, Reformed. 19.

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ou que levem a consequências que são insustentáveis à luz do que mais é crido. Experiência é o teste inevitável na qual a teologia é feita, mas embora ela seja um critério para avaliação, ela não é uma autoridade, portanto, dificilmente apelarei a ela. O que eu deveras acredito acerca da experiência é que nenhuma teologia é criada ou adotada no vácuo; experiência sempre afeta o que acreditamos e como acreditamos.

Argumentarei no decorrer deste livro que o calvinismo rígido não é a única e nem a melhor forma de se interpretar a Bíblia. Ele é uma inter­pretação possível de textos isolados, mas à luz de todo o testemunho da Escritura ele não é viável. Além do mais, argumentarei que o calvinismo rígido permanece em tensão com a antiga fé da igreja cristã e muito da herança da fé evangélica. Alguns de seus princípios fundamentais não podem ser encontrados antes de Agostinho, pai da igreja, no século V, e outros não podem ser encontrados antes de um herético chamado GottschalK (aproximadamente 867) ou a partir dele até o sucessor de Calvino, Theodore Beza.

Por fim, argumentarei que o calvinismo rígido entra em contradições; ele não pode ser feito inteligível — e o cristianismo deve ser inteligível. Por “inteligível” eu não quero dizer filosoficamente racional; quero di­zer capaz de ser entendido. Uma contradição pura é evidente sinal de erro; até mesmo a maioria dos calvinistas concorda com isso. A maior contradição é a de que Deus é confessado como perfeitamente bom ao mesmo tempo em que é descrito como autor do pecado e do mal. Não digo que todos os calvinistas admitem que sua teologia torna Deus o autor do pecado e do mal; muitos negam isso. Mas mostrarei que tal é a “consequência lógica e necessária” do que dizem sobre Deus.

Alguém disse que nenhuma teologia que não possa ser pregada na frente dos portões de Auschwitz é digna de ser crida. Eu, sob meu ponto de vista, não poderia ficar de pé na frente daqueles portões e pregar uma versão da soberania de Deus que faça do extermínio de seis milhões de judeus, incluindo muitas crianças, parte da vontade e plano de Deus de

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maneira que Deus o tenha preordenado e o tornado certo18. Quero que os jovens calvinistas (e outros) saibam e, ao menos passem a reconhe­cer e lidar com as consequências inevitáveis e insuperáveis do que esta forma radical de teologia reformada ensina. E quero dar a seus amigos, familiares e mentores espirituais a munição a ser utilizada para solapar esta, por vezes, exagerada confiança na solidez de seu sistema de crença.

18. Em todo esse livro eu utilizarei a frase “tornado certo” para descrever o que os calvinistas rígidos acreditam acerca do papel de Deus em causar o pecado e o mal. Poucos calvinistas rígidos dizem que Deus causou o Holocausto, mas eles dirão que Deus o preordenou e (para fazer uso da terminologia de John Piper) garantiu que ele acontecesse. “Tornado certo” é uma forma de evitar a linguagem de causação, pois os calvinistas não se sentem à vontade com isso, mas essa linguagem, ao mesmo tempo, expressa o que deve ser crido dentro da visão calvinista rígida da providência.

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capítulo 2

Calvinismo de quem? Qual teologia reformada?

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FREQUENTEI UMA ASSOCIAÇÃO profissional de teólogos cristãos na qual um acadêmico calvinista preeminente e teólogo reformado leu uma dissertação acerca da teologia calvinista. Em nenhum lugar ele mencio­nou as doutrinas da providência meticulosa (de que Deus controla todos os acontecimentos incluindo o pecado e o mal) ou a predestinação. Na verdade, todo o esquema da TULIP estava completamente ausente de sua descrição da teologia de Calvino. A ênfase estava preferivelmente na gratidão para com Deus como o grande tema de Calvino. Durante o período de discussão que se seguiu eu perguntei ao acadêmico por que ele não havia dito nada concernente à doutrina de Calvino da soberania divina absoluta e toda abrangente. Ele respondeu quase que condescen- dentemente que tal faceta não é parte essencial da teologia de Calvino ou da teologia reformada.

Essa resposta surpreenderia a muitos calvinistas jovens, incansáveis e reformados! Minha experiência é a de que a maioria deles se espe­cializa nesta doutrina; ela é para eles a doutrina de grande conforto e o motivo pelo qual eles, em primeiro lugar, abraçaram o calvinismo. Alguém me disse que ele teve uma segunda conversão — sendo esta segunda conversão ao calvinismo em razão de uma repentina e im­pressionante experiência de conforto e de acreditar que a salvação é um ato plenamente de Deus e que não tem nenhuma relação com suas

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decisões, exceto o fato de Deus lhe conceder o dom da fé para crer em Jesus Cristo. Para outros jovens calvinistas (e outros) a forte doutrina da soberania de Deus permite ao mundo caótico fazer sentido — tudo faz parte do desenrolar de um plano mestre divino.

Em suma, a maioria dos participantes no movimento do novo cal­vinismo acredita firmemente que a soberania absoluta de Deus, que exclui a contingência e o livre-arbítrio, é central a sua recém-descoberta fé reformada. Será um choque para eles descobrir que “reformado” é essencialmente um conceito contestado. O que eles estão chamando de “ reformado” não é a única versão da tradição reformada e é ainda mais debatível se o que eles estão chamando de calvinismo era acre­ditado em sua totalidade por Calvino.

O QUE SÃO CALVINISMO E TEOLOGIA REFORMADA?

Antes de mergulhar em minha crítica ao calvinismo, cabe a mim explicar com a maior cautela e acurácia possíveis qual calvinismo estou criticando e qual teologia reformada eu sou contra. Mas as próprias cate­gorias são utilizadas de maneiras tão diferentes por diferentes teólogos e historiadores que é difícil tratar estes termos como caixas (pacotes)— categorias fechadas na qual cada crença ou se encaixa plenamente ou não se encaixa. Há muita fluidez e ambiguidade nestes termos e os fenômenos que eles descrevem.

Comparo a situação a tentar separar conceitos tais como “liberal” e “conservador” na vida política estadunidense. Dizem que os repu­blicanos são conservadores. Entretanto, historicamente, muitos dos primeiros republicanos eram radicais. Abraham Lincoln foi um dos primeiros republicanos dos Estados Unidos e foi um infame icono­clasta e destruidor do status quo. Por conseguinte, ele foi tudo exceto

conservador em qualquer sentido comum da palavra. Durante a dé­cada de 60 vários políticos republicanos preeminentes eram notáveis liberais política e socialmente. Nelson Rockefeller (1908 - 1997) foi

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vice-presidente de Gerald R. Ford e foi famoso por ser, de certa forma, liberal. Entretanto, ele foi o líder do partido republicano. Também durante as décadas de 60 e 70 muitos democratas, principalmente do sul, eram arquiconservadores política e socialmente. Eram chamados de “Dixie Democrats” * e, às vezes, “Boll Weevil Democrats” ** em virtude se suas tradições sulistas e recusa de votar a favor de reformas sociais progressivas.

Categorias políticas não são nem de perto tão organizadas quanto muitas pessoas pensam. Nem os termos calvinista e reformado. Quan­do as pessoas me dizem que são teologicamente reformadas, eu tenho uma pequena ideia do que elas querem dizer. Entre os novos e jovens calvinistas isso geralmente significa que a pessoa é calvinista no sentido forte da crença em todo o sistema da TULIP de soteriologia (doutrina da salvação). Entretanto, conheço pessoas que são robustamente re­formadas em suas próprias mentes e que rejeitam aspectos cruciais da TULIP. De maneira semelhante, conheço pessoas que orgulhosamente se identificam como calvinistas que não seriam consideradas reformadas por autoridades preeminentes acerca do que reformado significa. Em alguns círculos batistas, calvinista indica apenas que a pessoa acredita na doutrina da segurança eterna dos verdadeiros crentes — que uma pessoa genuinamente salva não pode se apostatar e terminar no infer­no independente do que façam ou deixem de fazer. Em alguns círculos reformados (principalmente no que chamei de “reformados litúrgicos”) batistas não podem ser verdadeiramente reformados. A Comunhão Mundial de Igrejas Reformadas (CMIR), um órgão ecumênico de 214 de­nominações em 107 países — não inclui quaisquer grupos batistas ainda que alguns batistas declarem a si mesmos e suas igrejas como “batistas

* Partido político segregacionista dos EUA de curta duração.

** Nome dado aos políticos estadunidenses na década de 1920 em referência aos de­mocratas sulistas conservadores.

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reformadas”. Por fim, muitos luteranos utilizam o termo reformado para designar todos os protestantes não luteranos '.

Se estiver confuso, não se preocupe com isso. Estes termos e as cate­gorias que eles tentam nomear são escorregadios. Apesar da existência da CMIR não existe um magistério mundial (autoridade formal) que tenha o poder de decidir quem é e quem não é reformado ou calvinista. Falando em termos práticos, qualquer pessoa pode utilizar estes termos para referir-se a si mesma de qualquer forma que quiser e ninguém pode fazer nada a esse respeito (exceto rejeitar a reivindicação dela). Claro, algumas denominações, igrejas e outras organizações cristãs possuem seus próprios testes decisivos de classificação para determinar quem, dentro de tal organização, é verdadeiramente calvinista ou reformado (ou ambos). Uma abordagem tradicional é a de identificar como reformado apenas as pessoas e grupos que confessam os “três símbolos de unida­de” (declarações de fé) — Catecismo de Heidelberg, Confissão Belga e os Cânones de Dort. Mas tal abordagem exclui presbiterianos, a maioria dos quais identifica suas tradições como reformadas, e a Comunhão Mundial de Igrejas Reformadas (CMIR) inclui muitos grupos presbiterianos. Os presbiterianos aderem à Confissão de Fé de Westminster escrita pelos calvinistas britânicos em 1648 que foi, em grande parte, embasada nos “três símbolos de unidade” mencionados anteriormente.

Em razão desta confusão de termos será útil aqui esclarecer os termos mais cuidadosamente e examinar as alegações dos novos calvinistas, muitos dos quais pertencentes a igrejas batistas ou independentes, de serem verdadeiramente representantes do calvinismo histórico e

1. Ver, por exemplo,Casper Nervig, Christian Truth and Religious Delusions (Minneapolis, MN: Augsburg, 1941). O livro de Nervig foi amplamente utilizado por muito tempo pelos luteranos acerca dos prós e contras das denominações, ele lista e descreve sob a categoria “As igrejas Reformadas” as as seguintes igrejas: Presbiteriana, Congregacional, Episcopal Protestante (e suas ramificações), Metodista e Batistas. Muitos reformados e calvinistas conservadores ficariam chocados em encontrar metodistas e batistas agrupados sob a categoria de “reformado”.

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reformado e da teologia reformada. Muitos deles reivindicam que eles

ou seus líderes são os genuínos portadores do verdadeiro calvinismo e da teologia reformada, e tendem a colocar o esquema da TULIP no centro do que significa ser calvinista e reformado. Quero deixar claro que não me oponho a toda a teologia reformada, assim como também não me oponho a todo o espectro da forma de vida cristã reformada. Sou contra o esquema da TULIP do calvinismo e da teologia reformada radical que o abraça e o força até o seu limite. Chamo isso de “teologia reformada radical” em oposição à teologia reformada moderada, que é mais inclusiva e menos enfática acerca da TULIP

TEOLOGIA REFORMADA EM PERSPECTIVA HISTÓRICA

Uma maneira de lidar com a decisão de quem verdadeiramente é reformado é olhar para a CM1R. Todos apresentam certas reivindicações a ancestralidade espiritual e teológica na ala suíça da reforma do século XVI liderada por Zuínglio e Calvino. (Todavia, historicamente falando, o reformador de Estrasburgo, Martin Bucer [1491 - 1551], é comumente considerado pelos teólogos históricos um líder antigo do movimento re­formado igualmente importante). A CM1R sem dúvida e, de fato, celebra a vida e pensamento de João Calvino; algo que ficou evidente durante 2009 — aniversário de quinhentos anos do nascimento de Calvino. Todavia, sua membresia inclui denominações que não particularmente exaltam Calvino ou sua teologia, mas cuja linhagem histórica, assim por dizer, remontam da Reforma Suíça, da qual Calvino fez parte. A AM1R (Aliança Mundial de Igrejas Reformadas) fundiu-se com outra or­ganização reformada para formar a CM1R em 2010; o website da CM1R apresentava a seguinte descrição, que alguém pode presumir que esteja mais ou menos correta acerca da CM1R:

A AM1R é uma associação de mais de 200 igrejas com raízes na Reforma do século XVI liderada por João Calvino, João Knox, Ulrico Zuínglio e muitos outros e os primeiros movimentos reformadores de João Huss e Pedro Valdes. Nossas igrejas são Congregacionais,

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Presbiterianas, Reformada e Unida. A maioria vive e testemunha no hemisfério sul; muitas são minorias religiosas em seus países. A Aliança é uma rede interdependente de pessoas e igrejas trabalhan­do e adorando juntos com fé na promessa de Deus de sempre estar com sua criação2.

A CMIR, como a AMIR antes dela, inclui a todos, desde a Igreja Pro­testante da Algéria (primeira igreja membro listada em ordem alfabética por país) à Igreja Presbiteriana da África do Sul3. Entre as denominações membro estão a Igreja Evangélica Valdense do Rio da Prata, Uruguai, uma ramificação do movimento valdense mais amplo que remonta ao ministério do reformador italiano Pedro Waldo (1140 - 1218), que viveu bem antes de Calvino, e a Irmandade Remonstrante da Holanda — a mais antiga igreja arminiana no mundo. (Jacó Armínio [1560 - 1609] e seus seguidores, os remonstrantes, eram opositores ferrenhos de, pelo menos, os três pontos do meio do acróstico TULIP).

Notadamente ausentes da lista estão todas as igrejas batistas, e, entretanto, conforme dito antes, muitos dos líderes dos jovens, incan­sáveis e reformados são batistas. A exclusão dos batistas da CMIR mais do que sugere que os cristãos reformados do mundo não consideram “batista reformado” um termo historicamente preciso. Claro, os batistas reformados (e outros) sempre podem dizer que a CMIR não possui auto­ridade de decidir quem é e quem não é reformado — e isso é verdade. Entretanto, é interessante que a CMIR exclui batistas, mas inclui muitas [outras] igrejas, tais como as igrejas valdenses e remonstrantes, que não consideram a si mesmas calvinistas! Quais igrejas são ou podem ser inclusas na CMIR? De acordo com sua constituição, pode se filiar qualquer órgão (denominação) que:

• Aceita a Jesus Cristo como Senhor e Salvador;

2. www.warc.ch.

3. www.warc.ch/who/mc.html

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• Estima a Palavra de Deus dada nas Escrituras do Antigo e Novo Testamentos como a autoridade suprema em questões de fé e vida;

• Reconhece a necessidade da contínua reforma da igreja universal;

• Posiciona-se em fé e evangelismo em consonância geral com as confissões reformadas históricas;

• Reconhece que a tradição reformada é um ethos bíblico, reformado e doutrinário mais do que qualquer definição de fé e ordem exclusiva e reducionista4

Nada é dito acerca de quais “confissões reformadas” uma denomi­nação membro deve estar em consonância com ou o que “estar em consonância” significa. Alguém pode supor que tais sejam o Catecismo de Heidelberg, a Confissão Belga e a Confissão de Westminster ou a Declaração de Savoy (a versão congregacional da Confissão de West­minster). Todavia, em razão da pitada liberal de algumas denominações filiadas, é improvável que “consonância geral” signifique qualquer coisa próxima de adesão rígida.

A AM1R parece ter considerado a teologia reformada como algo flexível; a organização acentuou o velho lema “reformado e sempre reformando” (parafraseado em sua constituição como “a contínua reforma da Igreja universal”). Uma prova disto são os escritos de um de seus líderes — o ex- secretário teológico da AM1R Alan P. F. Sell (n. 1935). Como secretário teológico, a própria abordagem de Sell à teologia reformada pode ser con­fiada como pertencendo à corrente principal do pensamento reformado mundial contemporâneo. Sell foi professor de doutrina cristã e filosofia da religião na United Theological College da Escócia antes de sua aposentadoria.

Durante sua carreira como teólogo reformado Sell escreveu muitos livros, incluindo um volume acerca do debate soteriológico Calvinismo

4. Presumivelmente isto continuará a ser o caso com a CMIR [WCRC] embora, na época em que isto foi escrito, o website não oferecia esta lista de critério. O website do CMIR é www.wcrc.ch/.

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versus Arminianismo: The Great Debate: Calvinism. Arminianism. and Salvation. No livro ele criticou alguns aspectos do calvinismo tradicional sem tomar partido do arminianismo. De acordo com ele, “o protesto ético arminiano [contra a doutrina da dupla predestinação] não pode ser facilmente colocada de lado”5 e “após consideração sentimos que é preferível uma melhora do calvinismo a uma rendição a extremos arminianos” 6 O contexto deixa claro que ele não tanto se opõe ao ar­minianismo comum (ex. conforme o ensinado pelo próprio Armínio) quanto aos extremos racionais que foram adotados por alguns. Ele faz distinção entre “arminianismo de coração” , que ele pensa ser muito mais aceitável, e “arminianismo de cabeça” — uma espécie de religião racionalista e até mesmo deísta, que ele considera ser objetável.

Mas o comentário intrigante feito pelo Sell em The Great Debate é a citação acima acerca de uma “melhora do calvinismo”. Em outras palavras, como muitos outros no movimento reformado moderno, Sell acredita que alguns aspectos do “calvinismo rígido” clássico deve ser modificado. Ele não deixa dúvida acerca de quem ele se refere quando cita o teólogo escocês presbiteriano James Orr (1844 - 1913), que criticou a ideia de Calvino da soberania de Deus porque nela “o amor está subordinado à soberania, em vez de a soberania ao amor” 1. Como Orr e muitos outros pensadores reformados, Sell acredita que Calvino estava, em se tratando de teologia, parcialmente correto e parcialmente errado. Em um comen­tário surpreendente Sell sugere que a doutrina de Calvino da eleição deva ser reinterpretada de tal maneira que Deus chame não apenas pessoas, mas um povo para o seu louvor” (ex. eleição corporativa)8. Isto é o que Armínio acreditava em relação a eleição; a maioria dos arminianos no decorrer da história interpretaram a eleição desta maneira.

5. Alan P. F. Sell, The Great Debate: Calvinism, Arminianism, and Salvation (Grand Rapids: Baker, 1982), 21.

6. Ibid., 23.

7. Ibid., 22.

8. Ibid., 23.

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Em um conjunto de três volumes de uma teologia semi-sistemática com o abrangente título Doctrine andDevotion,9 Sell expressou uma pers­pectiva revisionista da teologia reformada que Calvino provavelmente não reconheceria como em continuidade com seu próprio pensamento, principalmente nas áreas da soberania de Deus na história (providência) e salvação (predestinação). Em todo os três volumes Sell rejeita qualquer forma de determinismo divino (a ideia de que Deus preordena e torna certo tudo o que acontece na história, sem exceção) e afirma o livre- -arbítrio limitado dos humanos. Para ser justo, deve ser dito que Sell também atribui toda a “obra” de salvação à Deus e nada aos humanos. Ele sem dúvida apontaria isso como prova de suas inclinações refor­madas. Todavia, Armínio afirmou a mesma coisa, assim como todos os arminianos clássicos desde então10.

Aqui eu utilizei Sell como um estudo de caso no que chamo “teologia reformada revisionista” para enfatizar que a “teologia reformada” não é, de jeito nenhum, uma estrutura monolítica ou um sistema fechado, como alguns dentro do movimento do novo calvinismo (e seus precursores e mentores) a entendem. Ela não é de forma alguma idêntica ao sistema da TULIP de soteriologia ou com uma visão determinista da soberania de Deus tanto na providência quanto na predestinação. Na verdade, muitos porta-vozes reformados preeminentes chegaram a rejeitar estes aspectos ao passo que insistiram que ainda assim eram reformados.

9. Alan P. F. Sell, Doctrine and Devotion (New York: Ragged Edge Press, 2000). Os três volumes são God our Father, Christ our Savior, e The Spirit Our Life.

10. Ver OLSON. Roger E. Teologia Arminiana: Mitos e Realidades; tradução Wellington Carvalho Mariano. São Paulo: Editora Reflexão, 2013. Este é um tema que permeia todo o livro. A questão é chamada de pelagianismo, a teologia condenada tanto por católicos quanto por protestantes, que os humanos iniciam e contribuem para sua própria salvação. Já demonstrei de maneira conclusiva que a teologia arminiana clássica não tem nada em comum com o pelagianismo. Quanto às afinidades do Sell com o arminianismo, considere esta frase extraída de The Spirit Our Life. 27: “Quase parece como se a salvação fosse um ato de Deus e também nosso: ele regenera, nós temos fé. A salvação é uma realização cooperativa em que Deus faz sua parte e nós a nossa? Sim - exceto no sentido de que fazemos nossa parte conforme Deus nos capacita”

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Outros além de Sell poderiam ser mencionados: C. Berkouwer (1903 - 1996), um dos teólogos reformados mais influentes do século XX, lutou contra o que considerava um calvinismo rígido que insistia na soberania de Deus até o limite de afirmar o decreto de reprovação contra certas pessoas (ou seja, que Deus preordenou para o inferno alguns seres hu­manos em específico). Hendrikus Berkhof (1914 - 1995) (que não deve ser confundido com o teólogo calvinista Louis Berkhof [1873 - 1957], com quem ele não possuía parentesco) um teólogo reformado holandês prolífico, rejeitava radicalmente a visão calvinista tradicional da soberania de Deus, enfatizando, em seu lugar, a autolimitação de Deus e a parceria pactuai humana com Deus no reino e salvação".

Outro teólogo reformado bastante conhecido que revisou a teologia reformada afastando-a do calvinismo clássico foi James Daane, que atuou como professor de teologia e ministério no Fuller Theological Seminary por muitos anos. Sua publicação The Freedom ofGod: A Study of Election

and Pulpit12 é um ataque vigoroso no determinismo e, principalmente, na doutrina do decreto de Deus da dupla predestinação. Para Daane a eleição divina incondicional é somente de uma pessoa, Jesus Cristo, e, por outro lado, do povo corporativo de Deus — Israel e a igreja. E Daane rejeita absolutamente qualquer decreto de reprovação.

Conclusivamente, outro teólogo reformado revisionista influente crítico do calvinismo rígido é o sulafricano Adrio König, professor aposentado na UNISA (University of South Africa), cuja obra Here Am I!

A Believer's Reflection on God[3 atacou toda versão determinista da so-

11. Ver principalmente a magistral teologia sistemática de um volume de Berkhof, Christian Faith: An Introduction to the Study of the Faith (Grand Rapids: Eerdmans, 1991), onde ele expõe uma teologia reformada radicalmente revisada que praticamente qualquer arminiano poderia adotar.

12. James Daane, The Freedom of God: A Study of Election and Pulpit (Grand Rapids: Eerdmans, 1973).

13. Adrio König, Here Am II A Believer's Reflection on God (Grand Rapids: Eerdmans, 1982).

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berania de Deus e afirmou, em seu lugar, um Deus que se autolimita, que sofre a rejeição humana e o mal e que convida as pessoas para um relacionamento pactuai consigo mesmo sem preordenar ou determinar suas escolhas. Novamente, assim como com Berkhof e outros teólogos reformados revisionistas aqui mencionados, a maioria dos arminianos, se não todos, assinariam de bom grado em concordância com estas visões reformadas da soberania de Deus.

Estou bastante cônscio, claro, que os teólogos calvinistas reformados mais tradicionalistas e seus seguidores tratarão estes revisionistas des­controlados como desertores da tradição [reformada]. Os revisionistas provavelmente responderiam que os tradicionalistas estão esquecendo o lema reformado “reformado e sempre reformando”. Até mesmo a própria tradição reformada precisa de reforma e, de acordo com os revisionistas, ela nunca esteve tão frágil a ponto de ser incapaz de mudar. Contudo, é preciso admitir que, especialmente nos EUA nos anos recentes, com a ascensão do novo calvinismo, o termo “reformado” é mais comumente utilizado nos círculos protestantes evangélicos para o sistema soterio- lógico da TULIP (sem, naturalmente, excluir outros aspectos da crença reformada). Mas tal utilização é necessariamente uma definição precisa do termo reformado? Até mesmo entre os evangélicos nos EUA o termo “reformado” é descrito de maneiras bastante distintas.

Como minha primeira testemunha eu chamo o conhecidíssimo e am­plamente reconhecido teólogo e historiador reformado Donald McKim, editor de um livro de referência para a editora presbiteriana Westminster John Knox Press e ex-professor de teologia em vários seminários reforma­dos e presbiterianos, incluindo o Memphis Theological Seminary (onde ele também atuou como reitor) e a University of Dubuque Theological Seminary. McKim formou-se bacharel pelo Westminster Theological Se­minary (um baluarte de teologia reformada conservadora) e obteve PhD pela University of Pittsburgh. Durante sua carreira ele editou e escreveu inúmeros livros sobre a teologia reformada, incluindo The Encyclopedia

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ofthe Reformed Faith, The Westminster Handbook to Reformed Theology,

and Introducing the Reformed Faith.'4. Praticamente por todos os aspec­tos, McKim é uma autoridade confiável acerca da teologia reformada.

De acordo com McKim, “cada igreja ou grupo de igrejas... tem sua própria definição do que significa ser ‘“ reformado”’ 15 Em outras palavras, de acordo com este perito, “reformado” não é uma categoria monolítica ou fechada; o termo é, na verdade, um conceito essencialmente contes­tado. E ele afirma que o termo é uma tradição viva ainda em processo16. Todavia, isso não significa que o termo seja vazio ou pertença a uma categoria vazia. Antes, de acordo com McKim, devemos tratar o termo como uma família diversificada — a “ família reformada” que traça sua ancestralidade à João Calvino de Genebra e a um período ainda mais remoto. “A fé reformada...tem sua árvore genealógica” , declara McKim, e como todas as árvores genealógicas, ela é repleta de diversidade17.

Um aspecto desta diversidade, de acordo com McKim, pode ser visto nas diferenças entre a própria abordagem de Calvino para a teologia e a de seus seguidores. “Embora Calvino tivesse uma mente sistemática brilhante, seus sucessores no século XVII sistematizaram sua teologia ainda mais. Ela tornou-se mais detalhada e fundiu-se ao modelo cha­mado escolasticismo” ,8. O restante do livro de McKim revela que não considera este desenvolvimento como algo bom.

Como muitos outros acadêmicos da tradição reformada, McKim o descreve em termos de “semelhanças familiares” em vez de um sistema

14. Donald K. McKim, The Encyclopedia ofthe Reformed Faith (Louisville, KY: Westminster John Knox, 1992); idem, The Westminster Handbook to Reformed Theology (Louisville, KY: Westminster John Knox, 2001); idem. Introducing the Reformed Faith (Louisville, KY: Westminster John Knox, 2001).

15. McKim, Introducing the Reformed Faith, xiii.

16. Ibid., XV.

17. Ibid., 2.

18. Ibid.

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fechado. Uma semelhança familiar é o confessionalismo — cristãos reformados frequentemente confessam sua fé fazendo uso das dos credos históricos do cristianismo (principalmente o Credo Niceno) e as confissões reformadas históricas, tais como a Fórmula Helvética de Consenso de 167519. Entretanto, de acordo com McKim, estas confis­sões de fé são sempre “relativas”, “temporárias” e “provisionais” 20. Ele percebe que nem todas as pessoas reformadas concordarão e dirão: “ Embora alguns órgãos reformados tenham uma tendência de se tor­narem mais restritos e quase presumem que suas formulações sejam os únicos meios de se expressar a verdade de Deus, este impulso está na contramão da verdadeira força vital da fé reformada”21. Um exemplo da abordagem “mais restrita” com as confissões reformadas pode ser a obra de Sproul, cujos livros, tal como O Que é Teologia Reformada?

que quase trata a Confissão de Westminster como em par de igualdade, em termos de autoridade, com a própria Escritura. (Claro que Sproul negaria isso, mas ele apela à confissão com tanta frequência como se ela fosse uma autoridade incorrigível para o cristão e, em especial, para o pensamento reformado).

O tratamento de McKim, da fé reformada ressalta seus pontos em comuns com outras ramificações do cristianismo; ele inclui capítulos acerca da Escritura como a Palavra de Deus, Trindade e a pessoa de Cristo, onde nada particularmente calvinista é encontrado. Nos capítu­los acerca da providência e salvação, onde alguém esperaria encontrar uma forte ênfase nas particularidades calvinistas, McKim fornece relatos modestos da doutrina reformada. Por exemplo, ao discutir a soberania de Deus na história (providência), ele reconhece que os reformados tradi­cionalmente enfatizam que o plano e os propósitos de Deus conduzem a

19. Ibid., 7.

20. Ibid., 8.

21. Ibid., 7.

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criação, história humana e as vidas humanas. O Deus que conhece todas as coisas também deseja todas as coisas “22. Todavia, quando volta-se para o problema de Deus e o mal, ele explicitamente nega o que muitos consideram o ponto controverso central do calvinismo rígido — que Deus até mesmo preordena e torna certo (“envia”) o mal: “Não falamos de Deus enviando o mal sobre nós ou causando tais coisas em nossas vidas que são contrários aos propósitos graciosos, amorosos e de justiça de Deus conforme vemos tais aspectos em Jesus Cristo” 23.

Claro, a maioria dos teólogos reformados nega que Deus realmente “causa” o mal em qualquer sentido direto, mas como mostrarei abaixo, muitos calvinistas de fato afirmam que até mesmo o pecado e o mal são partes do plano divino preordenado e tornado certo por Deus para se encaixar nos propósitos de Deus para a história. McKim parece querer evitar qualquer implicação de que o mal seja parte do plano de Deus ou que Deus o torne certo. Sua versão da soberania de Deus é uma versão abrandada que provavelmente não deixaria muitos dos novos calvinistas e seus teólogos mentores satisfeitos.

Mais surpreendente ainda, talvez, é que McKim sequer menciona a expiação limitada (o “L” na TULIP), também chamada de “redenção particular” por muitos calvinistas. Seu livro inclui um capítulo inteiro acerca da “Obra de Cristo” na qual ele discute a doutrina reformada da expiação. Mas podem procurar em vão pela expiação limitada — algo que chocaria muitos calvinistas.

Em seu capítulo acerca da “Salvação: Recebendo o Dom de Deus”, McKim alega descrever “ênfases reformadas” , mas diz pouco acerca da eleição ou graça irresistível. Ele coloca mais ênfase na eleição corpora­tiva para serviço do que na eleição incondicional de indivíduos, apenas mencionando resumidamente a última: “Alguns acreditam; outros não.

22. Ibid., 51 - 52.

23. Ibid., 52.

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A explicação para isso está na eterna eleição de Deus” 24. Por fim, pró­ximo do final de seu livro, McKim explica de maneira clara: “Nem todos os cristãos reformados aderem [aos] ‘Cinco Pontos do Calvinismo’”25.

O contraste entre esta descrição da fé reformada e a de Sproul em O Que é Teologia Reformada? (e em outros livros semelhantes) é descon­certante. No livro Sproul praticamente iguala a teologia reformada ao calvinismo rígido da TULIP e com uma doutrina da soberania de Deus tão forte e tão absoluta quanto possível: “Se Deus não é soberano, en­tão ele não é Deus. Pertence a Deus como Deus ser soberano” 26. O contexto deixa claro que por “soberano” Sproul quer dizer que Deus é o determinador e controlador absoluto de tudo até os mínimos detalhes. O restante do livro apresenta algo bem diferente da que é exposto por McKim; mostra a fé reformada em termos de TULIP, incluindo a dupla predestinação — o decreto de Deus de reprovação de alguns para o tormento eterno no inferno 27.

Temos, portanto, dois acadêmicos renomados da tradição reformada, Donald McKim e R. C. Sproul, definindo e descrevendo-a de maneiras bem distintas. As únicas coisas que eles parecem ter em comum são linhagem histórica da herança reformada, incluindo, mas não exclusi­vamente determinada por Calvino e uma ênfase na soberania divina considerada como de alguma forma ausente em teologias não reforma­das. Claro, até mesmo Sproul admitiria que “reformado” inclui mais do que apenas a TULIP (como McKim incansavelmente argumenta), mas que o sistema soteriológico lhe serve como a característica peculiar da teologia reformada ao passo que este mesmo sistema soteriológico não é peculiar para McKim.

24. Ibid., 124.

25. Ibid.. 183.

26. SPROUL, R. C. O que é teologia reformada? São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p 22.

27. Ibid., 141

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Um teólogo reformado estadunidense que parece andar em uma linha entre McKim e Sproul é Richard Mouw, presidente do Fuller Theological Seminary, cujo livro Calvinism in the Las Vegas Airport28 é uma prazerosa viagem pela teologia reformada conforme entendida pelo autor. Mouw afirma a TULIP sem a colocar na dianteira ou centro como o “elemento mais importante e supremo” da teologia reformada; para ele a visão reformada de uma sociedade transformada parece mais importante do que uma doutrina particular da soberania de Deus. Contudo, ele diz que ele abraça as doutrinas da TULIP ao passo que admite que há um “gosto ruim acerca destas doutrinas” 29 É fácil discernir que Mouw sente-se des­confortável com a ênfase do calvinista clássico na TULIP e, em especial, com as maneiras na qual a ênfase é geralmente expressada. “Devo... dizer francamente que... vejo muitas calvinistas que carecem de man­sidão e respeito. Até mesmo encontro essa ausência de qualidades nas interações de calvinistas com outros cristãos. De fato, os calvinistas não são comumente muito gentis e respeitosos ao debater pontos delicados da doutrina com colegas calvinistas” 30.

O desconforto de Mouw com alguns pontos da TULIP é aparente em seu capítulo sobre o “L” da TULIP — expiação limitada ou redenção particular, ou seja, a ideia de que a morte expiatória de Cristo na cruz foi intencionada por Deus apenas para alguns pecadores (os eleitos). Ele a chama de “doutrina de prateleira”, e que com essa expressão quer dizer que ela é parte de seu sistema de crença, mas que não funciona em sua vida no seu cotidiano31. Enquanto continua a afirmá-la (ainda que de certa forma revisada), Mouw deseja que a doutrina fique “em

28. Richard J. Mouw, Calvinism in the Las Vegas Airport (Grand Rapids: Zondervan, 2004).

29. Ibid., 14.

30. Ibid., 15.

31. Ibid., 39 - 40.

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paz” e que só a “retire da prateleira” de vez em quando, e então, para colocá-la de volta à prateleira. Pode-se imaginar porque alguém gostaria de se apegar a uma “doutrina de prateleira”.

O que quero dizer é que Mouw representa um terceiro tipo de teólo­go reformado nos EUA (e talvez em todo o mundo). O primeiro tipo é representado por McKim, cuja teologia reformada é flexível e aberta à revisão e não considera o esquema da TULIP como essencial. O segundo tipo é representado por Sproul, cuja teologia reformada parece um tanto fechada e gira em torno de uma forte visão da soberania de Deus (que eu chamo de determinismo humano) e o esquema da TULIP. O terceiro tipo é representado por Mouw, que afirma todos os elementos históricos do calvinismo, mas que fica, de certa forma, constrangido com, no mínimo, alguns destes elementos e que não considera o esquema da TULIP ou a soberania divina absoluta com os temas mais importantes da fé reformada.

Deste modo, o problema de definir “reformado” persiste e provavel­mente sempre persistirá. Como disse anteriormente (e espero agora ter provado) o termo “reformado” é, em essência, um conceito contestado. Ainda assim, o termo não é vazio ou sem sentido. Abordando os recur­sos que mencionei até o momento estas são as minhas teses acerca do significado de “reformado”. Primeiro, ele é um tipo ideal de teologia pro­testante atrelado à ramificação histórica da reforma protestante oriunda principalmente dos esforços reformadores dos teólogos suíços Ulrico Zuínglio e João Calvino (e seus companheiros), mas também do teólogo Martin Bucer, de Estrasburgo. Tais características podem ser encontradas em denominações tão diversas quanto congregacionais e anglicanas.

Segundo, a ênfase na supremacia e soberania de Deus é comum em todas as teologias reformadas, embora ela seja interpretada de maneiras diferentes. “Reformado” não é sinônimo de TULIP, embora a TULIP esteja presente dentro da tradição reformada e todos os reformados tendem a lidar com ela de certa forma (ainda que seja apenas ao rejeitá-la como a característica central de sua fé).

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Terceiro, a fé reformada é confessional (conforme McKim) e tende a rememorar, de certa maneira, a certas confissões reformadas de fé, tais como o Catecismo de Heidelberg e a Confissão de Fé de Westminster. (Se Batistas podem ser reformados eu deixo a questão em aberto ao passo que enfatizo que muitos batistas aderem à Confissão de Fé Batista de 1689, que foi fortemente influenciada pela Confissão de Westminster e que, por sua vez, influenciou as confissões batistas posteriores, tal como a Confissão de Fé Batista de New Hampshire).

Quero deixar claro que, no geral, não sou contra a teologia reformada.

Mas contra ao que está intimamente relacionado ao novo calvinismo do movimento dos jovens, incansáveis e reformados, o que eu chamo de “teologia reformada radical", que não é representante de todos os reformados ou suas tradições teológicas. Exporei mais sobre o assunto no capítulo 3.

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capítulo 3

Calvinismo puro e simples: O sistema TULIP

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MUITAS PESSOAS (principalmente no movimento neocalvinista dos jovens, incansáveis e reformados) simplesmente igualam o calvinismo à teologia reformada como se tais termos fossem sinônimos. Como expliquei anteriormente, esse claramente nâo é o caso. Todavia, ás vezes o uso co­mum excede o uso correto dos termos e o costume de equiparar os dois é tâo disseminado a ponto de quase estar além da correção. Apesar disso, é importante distinguir os dois termos já que muitas pessoas que legitimamen­te consideram a si mesmas reformadas não aderem ao que é geralmente considerado calvinismo em todas as suas características. O calvinismo é parte da história da tradição reformada, mas a tradição reformada não se resume apenas ao calvinismo, e, para muitos reformados, ele é dispensável.

Aqui eu quero explanar as características básicas do calvinismo his­tórico como um sistema de crença. Ao passo que “ reformado” indica uma ramificação da reforma e uma família diversa e ampla de protes­tantes, “calvinismo" designa um conjunto de crenças acerca da sobera­nia de Deus, principalmente em relação às doutrinas da providência e predestinação. O calvinismo está longe de ser monolítico, mas é mais unificado do que o termo reformado. Há características fundamentais do calvinismo sem as quais ele nâo seria reconhecido como tal, mas dentro dessa existência de características comuns há uma diversidade que frequentemente desencadeia em debates até mesmo entre os calvinistas.

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Entretanto, antes de adentrar nestas áreas de diversidade, quero permitir que proeminentes calvinistas expliquem o que eu chamo de “calvinismo geral” ou “calvinismo puro e simples”. Surpreendentemente, o calvinismo não está atrelado precisamente ou exatamente a tudo o que Calvino veio a ensinar, embora o sistema tenha um débito histórico e teológico para com Calvino. O que eu chamo de “calvinismo” hoje inclui alguns elementos que o próprio Calvino não enfatizou, isso se ele acreditou neles de alguma forma. Um exemplo disso é a “expiação limitada”. Alguns teólogos históricos acreditam que Calvino ficaria des­contente com a natureza extremamente sistemática e escolástica do calvinismo desenvolvido por seus seguidores. Explicarei estas questões mais a fundo neste capítulo.

Um teólogo calvinista preeminente e guia confiável para esse ponto de vista geral calvinista acerca da soberania é Loraine Boettner. Embora ele não seja conhecido, meio século após o cume de sua produtivida­de como autor, sua influência sobre os calvinistas contemporâneos é profunda. Ele é amplamente considerado pelos teólogos calvinistas nos EUA uma grande “figura paterna” que lhes empacotou e entregou a fé calvinista. Ele certamente não é considerado infalível, e alguns calvinistas discordarão de alguns de seus ensinos, mas poucos teólogos calvinistas do século XX podem permanecer ombro a ombro com ele em termos de influência e respeito.

De acordo com Boettner, o calvinismo começa com uma visão de Deus derivada da Escritura que também é consistente com o teísmo filosófico: “A própria essência do teísmo consistente é que Deus teria um plano exato para o mundo, conheceria de antemão as ações de todas as criaturas que Ele propôs criar e através de Sua providência toda-inclusiva Ele controlaria todo o sistema” ‘. Boettner finaliza a questão adiante ao afirmar que Deus “muito obviamente predeterminou todo evento que

1. Boettner, The Reformed Doctrine of Predestination, 23.

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aconteceria” de sorte que “até mesmo os atos pecaminosos dos homens estão inclusos neste plano” 2. Para Boettner (e muitos outros calvinistas) esta crença na providência divina meticulosa (que eu chamarei de “de­terminismo divino” e explicarei o porquê no capítulo 4) está embasada na infinidade de Deus (teísmo filosófico) e em passagens bíblicas tais como Amós 3.6: “Ocorre alguma desgraça na cidade, sem que o Senhor a tenha mandado?”

Praticamente todos os calvinistas (diferente de alguns na tradição reformada e, principalmente o que eu chamei de teólogos “reformados revisionistas”) afirmam uma visão forte ou elevada da soberania de Deus tal como a de Boettner. Será que o próprio Calvino afirmava esta visão? Nas Institutas da Religião Cristã de Calvino, o pastor-chefe de Genebra escreveu acerca da providência de Deus: “indubitavelmente, assim se deve entender que todas e quaisquer eventuações que se percebem no mundo provêm da operação secreta da mão de Deus. Todavia, o que Deus estatui certamente tem de acontecer”3. O contexto ao redor, in­cluindo uma vívida ilustração acerca de um mercador roubado e morto por salteadores, deixa absolutamente claro que Calvino acreditava que nada, de jeito nenhum, pode acontecer sem que seja preordenado ou tornado certo por Deus. Ele diz que um cristão irá perceber que nada é, de fato, um acidente, pois tudo é planejado por Deus.

Esse, então, é o primeiro ponto do calvinismo puro e simples: a sobe­rania meticulosa, absoluta e total de Deus na providência na qual Deus governa todo o curso da história humana até seus mínimos detalhes e torna tudo certo de maneira que nenhum evento é fortuito ou acidental, mas que se encaixa dentro do plano e propósito geral de Deus. Boettner expressa isso bem: “Não há nada casual nem contingente no mundo” 4.,

2. Ibid., 24.

3.CALVINO, Joáo. As Institutas: edição clássica, vol. 1. p. 210.

4. Boettner, The Reformed Doctrine of Predestination, 16.

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pois “o mundo como um todo, e em todas suas partes e movimentos e mudanças, foi colocado como unidade pela atividade governante, toda- -harmonizante e toda-dominante da vontade divina, e seu propósito foi de manifestar a glória divina” 5. Poucos calvinistas verdadeiros, e isso se houver algum, disputariam com qualquer parte desta definição. (Digo calvinistas verdadeiros porque não é difícil encontrar pessoas que alegam ser calvinistas, mas que não o são. Por exemplo, muitos batistas do sul pensam que são calvinistas só porque acreditam na segurança eterna do crente - o quinto ponto do sistema TULIP. Mas acreditar nisso, por si só, dificilmente faz de alguém um calvinista!).

Explicarei e criticarei esta visão calvinista da soberania de Deus no capítulo seguinte. Ela não é o que todos os cristãos acreditam. Todos os cristãos sempre acreditaram que nada, de jeito algum, pode acontecer sem a permissão de Deus, e quase todos os cristãos sempre acreditaram que Deus conhece de antemão tudo o que acontecerá. Mas os calvinistas normalmente vão além e alegam que tudo o que acontece é planejado e tornado certo por Deus. Calvino negou explicitamente a simples pres­ciência ou permissão de Deus - até mesmo para o m al6.

Alguns leitores podem imaginar se eu simplesmente escolhi um cal­vinista extremado - Boettner - para representar o “calvinismo geral” ou o calvinismo puro e simples. De forma alguma.Todas estas ideias acerca da soberania de Deus na história e salvação podem ser encontradas em calvinistas contemporâneos, tal como Sproul e Piper. Irei fazer citações destes calvinistas quando voltar para minha crítica no capítulo seguinte. Aqui eu simplesmente estou utilizando o Boettner como um modelo para apresentar o calvinismo dominante, geral.

De acordo com Boettner (e a maioria dos calvinistas), Deus não é apenas supremo e absoluto em controle (e controlador) da história; ele

5. Ibid., 14.

6. CALVINO, João. As Institutas: edição clássica, vol.2, p. 78.

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também está no controle absoluto acerca de quem irá e quem não irá ser salvo. É aqui que voltamos para o famoso (ou infame) acróstico TULIP para descrever o sistema calvinista de soteriologia. Os leitores devem saber a origem da TULIP. É um acróstico desenvolvido no século XIX para ajudar os alunos a se lembrar dos então chamados “cinco pontos do calvinismo” conforme eles foram afirmados nos Cânones do Sínodo de Dort em 1618/1619.

Dort foi uma reunião de “clérigos” calvinistas (teólogos, eruditos, pastores) na cidade holandesa de Dordrech para responder às crenças dos Remonstrantes - seguidores de Jacó Armínio. Os Remonstran- tes apresentaram aos líderes da Igreja Reformada da Holanda uma “remonstrância” ou protesto contra certas ideias calvinistas comuns. Alguns historiadores (principalmente calvinistas) tiraram conclusões equivocadas deste documento como se ele rejeitasse todos as cinco crenças representadas pela TULIP (depravação total, eleição incondicio­nal, expiação limitada, graça irresistível, perseverança dos santos). Na verdade, o documento só rejeitou os três pontos do meio, deixando a depravação total e a perseverança dos santos abertas à discussão futura. (Houve várias versões da “remonstrância” escritas e publicadas em toda a década após o falecimento de Armínio e o Sínodo de Dort, e algumas deixavam a perseverança aberta ao passo que outras pareciam fechar o caso como se a perseverança estivesse errada. Mas todos os documentos da remonstrância afirmaram a depravação total).

O Sínodo de Dort rejeitou a “remonstrância” dos Remonstrantes afirmou os então denominados cinco pontos do calvinismo que mais tarde vieram a ser resumidos fazendo uso do heurístico dispositivo TULIP. Os Cânones (decretos) de Dort incluíram muito mais que a TULIP, mas estas cinco crenças foram as consideradas negadas pelos Remonstrantes de maneira que elas foram tratadas como a essência dos pronunciamentos do Sínodo de Dort.

Desde Dort o calvinismo tem sido resumido pelos próprios calvinistas pelo uso dos cinco pontos e Boettner os segue bem de perto em sua

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exposição da fé calvinista. O mesmo faz um grande número de outros autores calvinistas cujos títulos das obras revelam a centralidade da TULIP. The Five Points of Calvinism (Os Cinco Pontos do Calvinismo) do pastor-teólogo cristão Edwin H. Palmer7 e The Five Points of Calvinism:

Defined, Defended and Documented (Os Cinco Pontos do Calvinismo: Defi­

nido, Defendido e Documentado) de David N. Steele e Curtis C. Thomas.8 Outros livros não apresentam os cinco pontos em seus títulos, mas, entretanto, organizam suas exposições do calvinismo de acordo com a TULIP. Um exemplo disso é a obra de Sproul O que é Teologia Reformada?

(Uma notável exceção é a obra de H. Henry Meeter, The Basic Ideas of

Calvinism,9 que mal menciona a TULIP. Este livro parece ser mais uma exposição da teologia reformada e do pensamento social em geral do que a soteriologia calvinista em particular).

Muitos calvinistas, se não todos, concordam com Boettner acerca dos cinco pontos como um sistema. Eles são, ele escreveu, um “sistema simples, harmonioso e autoconsistente” e “prove que qualquer um destes pontos seja falso e o sistema como um todo precisa ser abandonado”10. Uma questão que surgirá posteriormente é se este sistema pode ser encontrado em Calvino. Argumentarei que ele não pode ser encontrado e que pelo menos o “L” foi criado e inserido no sistema após Calvino. Mas isso não incomoda a maioria dos calvinistas, pois estes não pensam que seu calvinismo deva aderir submissamente a tudo o que Calvino acreditava ou escreveu.

7. Edwin H. Palmer, The Five Points of Calvinism (Grand Rapids: Baker, 1972).

8. David N. Steele e Curtis C. Thomas, The Five Points of Calvinism: Defined. Defended and Documented (Nutley, NJ: Presbyterian and Reformed, 1963).

9. H. Henry Meeter, The Basic Ideas o f Calvinism (Grand Rapids: Baker, 1990).

10. Boettner, The Reformed Doctrine of Predestination, 59.

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“T” DE DEPRAVAÇÃO TOTAL

O primeiro ponto do sistema calvinista é o T, que corresponde a depravação total. Este conceito é amplamente mal-entendido; ele não significa que os seres humanos são tão maus quanto possivelmente podem ser. O “total” é que faz com que as pessoas entendam erro­neamente este ponto. Antes, no geral, ele significa que toda parte da pessoa humana (exceto Jesus Cristo, claro) está infectado e tão afetado pelo pecado que a pessoa é completamente incapaz de agradar a Deus antes de ser regenerada (nascida de novo) pelo Espírito de Deus. De acordo com Boettner, a pessoa natural, antes e separada da graça rege­neradora de Deus, peca sempre e livremente e se deleita no pecado ", pois a pessoa “é estrangeira por nascimento e pecadora por escolha”12. As “virtudes naturais” das pessoas não contam como algo bom, pois são realizadas pelos motivos errados; a depravação jaz na condição do coração herdado de Adão 13. Os seres humanos nascem com uma natureza corrupta, mas são, entretanto, plenamente responsáveis pelos pecados que não podem evitar em virtude de sua condição 14. Boettner alega que “apenas os calvinistas parecem levar esta doutrina da queda [pecado origina] a sério” 15.

Mais uma vez, esta visão fortemente pessimista da humanidade é consistente com os próprios ensinos de Calvino? Sem sombra de dúvi­da que é. Calvino escreveu que em razão da queda de Adão “o homem inteiro, da cabeça aos pés, foi, como por um dilúvio, de tal modo asso­lado, que nenhuma parte ficou isenta de pecado, e em consequência

11. Ibid., 63.

12. Ibid., 62. Esta é ama citação da Confissão de Fé de Westminster.

13. Boettner, The Reformed Doctrine of Predestination, 72.

14. Ibid., 63.

15. Ibid., 72. Contestei esta alegação em Teologia Arminiana: Mitos e Realidades; tradução Wellington Carvalho Mariano. São Paulo: Editora Reflexão, 2013, 175 - 203.

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tudo quanto dele procede deve ser imputado ao pecado. Como Paulo diz [Rm 8.6, 7]: todos os afetos ou cogitações da carne são inimizades contra Deus; e por isso, morte” l6.

Isso também é consistente com o ensino calvinista contemporâneo após Boettner? Certamente é. Sproul o expressa de maneira sucinta: “em nossa humanidade corrupta nunca fazemos uma só coisa boa” ,7. Assim como Boetneer e Calvino antes dele, Sproul atribui essa condição desesperançada e incapaz da pessoa natural separada da graça regene­radora de Deus ã queda de Adão. Para todos os calvinistas - pelo menos para a maioria, se não todos - todos os humanos, com exceção de Jesus Cristo, herdam a natureza corrupta de Adão e são culpados pelo pecado de Adão. Boettner escreve: “O pecado de Adão é imputado a seus des­cendentes” IS. Sproul resume a severa visão calvinista da humanidade em razão da queda desta forma: “O homem é incapaz de elevar a si mesmo ao bem sem a obra da graça de Deus em seu interior. “Nós não temos mais capacidade de retornar a Deus do que um vaso vazio tem de ficar cheio de água novamente” 19.

Muitos calvinistas explicam a condição humana após a queda e antes da regeneração pelo Espírito Santo, de maneira literal, como uma morte espiritual, e fazem isso tendo por base Efésios 2. Em outras palavras, para o calvinismo típico, a pessoa humana caída é totalmente incapaz de até mesmo desejar Deus ou as coisas de Deus. Não há habilidade moral (em oposição a uma hipotética habilidade natural que não existe em questões espirituais) para alcançar a Deus ou aceitar a oferta divina de salvação. Tudo o que flui da pessoa morta é pútrido e sujo, ainda que tal pareça ser virtuoso. A razão disso é que a verdadeira virtude é definida

16. CALVINO, João. As Institutas: edição clássica, vol.2, p. 25.

1 7. SPROUL, R. C. O que é teologia reformada? São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 103.

18. Boettner, The Reformed Doctrine of Predestination, 77.

19. SPROUL, R. C. O que é teologia reformada? São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 105.

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pelo motivo, e o coração do pecador, escurecido pelo pecado, tem uma constante disposição para o eu em vez de para Deus ou o seu próximo. Esta descrição da condição humana é importante ter em mente, pois é por causa dela que muitos calvinistas argumentam que ninguém pode ser salvo sem a eleição incondicional e a graça irresistível.

Assim como Calvino, os calvinistas geralmente reconhecem a existên­cia de “virtudes civis” na pessoa natural caída que está espiritualmente morta. Calvino falou com eloquência acerca dos “dons naturais” das pessoas caídas, que são capazes, pela ajuda do Espírito de Deus, atra­vés da graça comum, de realizar grandes coisas nas artes e ciências20. Claro, nenhuma destas habilidades ou realizações possui qualquer re­lação com a salvação. Sproul comenta acerca da realidade da “virtude civil” pela qual as pessoas externamente se conformam à lei de Deus e realizam atos de caridade, mas ele nega que tais atos sejam sinais de vida espiritual, pois eles são todos feitos a partir do interesse próprio 21. A pessoa natural caída pode realizar coisas grandes, mas ela não pode agradar a Deus porque seu coração ainda é corrupto e centrado em si mesmo. O pecado jaz nos motivos, e eles são plenamente errados até que o Espírito Santo regenere a pessoa.

“ U” , DE ELEIÇÃO INCONDICIONAL

O Segundo ponto da TULIP é a eleição incondicional. “Eleição” é outra palavra bíblica para predestinação para salvação (ou serviço); elas são sinônimas. Todos os cristãos acreditam na eleição; os calvinistas acredi­tam nela de uma forma específica. Boettner a expressa claramente: “A fé reformada tem defendido a existência de um decreto divino eterno que, anterior a qualquer diferença ou deserção nos próprios homens, separa a raça humana em duas porções e ordena uma para a vida eterna

20. CALVINO, João. As Institutas: edição clássica, vol.2, pp. 42-45.

21. SPROUL, R. C. O que é teologia reformada? São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 103.

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e outra para a morte eterna [inferno]”22. Isto é, claro, o que é comumente conhecido como “dupla predestinação”.

Alguns calvinistas negarão este ensinamento em favor de uma “única predestinação” frequentemente chamada de “calvinismo moderado” ou ameno. (Estes termos também são, às vezes, utilizados para outras per­mutações do calvinismo). A predestinação única é a crença de que Deus escolhe algumas pessoas caídas para as salvar ao passo que simplesmente “ignora” outras, “abandonando-as” a sua merecida condenação. Em outras palavras, de acordo com esta ideia, não há decreto de Deus pela qual ele ordene qualquer pessoa para o inferno. Ou seja, não há “decreto para reprovação”, mas apenas um decreto de eleição para salvação.

Boetnner e outros calvinistas zombam da ideia de uma única predes­tinação. Ele enfatizou, corretamente julgo eu, que a predestinação de alguns para a salvação, da parte de Deus, é a predestinação de alguns para a condenação. Ele escreveu acerca da reprovação que “ela, tam­bém, é de Deus” 23. Ele explicou o caso desta maneira: “Nós [calvinistas] acreditamos que desde toda a eternidade Deus planejou deixar alguns da posteridade de Adão em seus pecados; e que o fator decisivo na vida de cada um encontra-se apenas na vontade de Deus” 24. Isso pode ser colocar as coisas de maneira um pouco mais forte do que a maioria dos calvinistas deseja colocar, mas a descrição corajosamente adere de maneira consistente à crença da soberania absoluta de Deus em todas as coisas. Observe o que Boettner está dizendo aqui: o “fator decisivo” na ida de algumas pessoas para o inferno é a vontade de Deus. Boettner era impaciente, para dizer o mínimo, com calvinistas que defendem a predestinação única: “Calvinismo brando é sinônimo de calvinismo enfermo, e a enfermidade, se não curada, é o início do fim” 25.

22. Boettner, The Reformed Doctrine of Predestination, 83.

23. Ibid., 102.

24. Ibid., 104.

25. Ibid., 105.

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O que Calvino disse? Ele acreditava nesta dupla predestinação, incluin­do a reprovação soberana divina de certas pessoas para o inferno? Ele escreveu: “que [Deus] designou de uma vez para sempre, em seu eterno e imutável desígnio, àqueles que ele quer que se salvem, e também àqueles que quer que se percam” 26. A fim de que ninguém o interprete de maneira equivocada, Calvino enfatizou esta posição ao ridicularizar os que aceitam a eleição, mas que rejeitam a reprovação, chamando tal coisa de “notável desvario” : “Portanto, aqueles a quem Deus pretere os

reprova; não por outra causa, mas porque os quer excluir da herança para a qual predestina a seus filhos” 27. Calvino notoriamente reconhe­ceu e afirmou o caráter altamente objetável desta dupla predestinação e, em especial, o lado reprobatório da predestinação, chamando-o de “decreto espantoso”. 28

O que dizer de outros calvinistas? Sproul afirma inequivocamente a eleição incondicional de alguns para a salvação e a predestinação de outros para a condenação:

Ensina [a visão calvinista da predestinação] que desde a eternidade Deus escolheu intervir nas vidas de algumas pessoas e trazê-las à fé salvadora, e escolheu não fazer isso para outras pessoas. Desde toda a eternidade, sem nenhuma visão prévia de nosso comportamento humano, Deus escolheu alguns para a eleição e outros para a repro­vação... A base para a escolha humana não está somente no homem, mas no beneplácito da vontade divina 29.

Aos que dizem que Deus elege alguns para a salvação, mas que não predestina ninguém para a condenação, Sproul responde: Se é que real­mente existe uma coisa tal como predestinação, e se essa predestinação

26. CALVINO, João. As Institutas: edição clássica, vol.3, p. 393.

27. CALVINO, João. As Institutas: edição clássica, vol.3, p. 409.

28. Ibid.. vol. 3, p. 416. As palavras exatas que Calvino utilizou no original foram "decretum horribile.” Ela foi traduzida, nesta versão, como “decreto espantoso”.

29. SPROUL, R.C. Eleitos de Deus, Editora Cultura Cristã, 2002, p. 101.

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não inclui todas as pessoas, então não podemos escapar da necessária influência de que há dois lados para a predestinação. Não é suficiente falar sobre Jacó; precisamos também considerar Esaú [em referência à Romanos 9]” 30.

Sproul explica cuidadosamente que estes dois decretos de Deus - eleição e reprovação - não são iguais. Ele rejeita o que ele chama de “hipercalvinismo”, que acredita na “ultimação igual” dos decretos da eleição e reprovação. (Aqui há uma área de diversidade entre os calvi­nistas, embora Sproul declare o que ele chama de “hipercalvinismo” como sendo “anticalvinismo”! 3I) Conforme ele explica, o decreto de eleição é positivo ao passo que o decreto de reprovação é negativo. Em outras palavras, Deus, de maneira positiva, coloca a fé nos corações dos eleitos enquanto que, de maneira proposital, negligência fazer o mesmo com os réprobos. A única diferença é que Deus não cria a descrença nos corações dos réprobos; ele simplesmente os abandona em suas condenações ao passo que Ele cria a crença nos corações dos eleitos 32.

Alguém só pode se perguntar quão grande é esta diferença. Como é que Deus não torna estes dois decretos igualmente finais? Ambos são incondi­cionais no sentido de que a escolha de Deus não está embasada em nada que Deus veja nas pessoas escolhidas ou ignoradas. Conforme explicarei no capítulo 5, chamar um decreto de “positivo” e o outro de “negativo” não parece diminuir a atrocidade da reprovação. Sproul acusa o hipercalvinismo de fazer “uma drástica violência à integridade de Deus”33. Um crítico do calvinismo rígido de Sproul diria o mesmo acerca de sua visão.

Alguns leitores que vieram a abraçar o calvinismo (ou estão consi­derando isso) ao ouvirem ou lerem John Piper podem se perguntar se

30. ibid., 103.

31. Ibid., 104.

32. Ibid., 104 - 05.

33. SPROUL, R.C. Eleitos de Deus, Editora Cultura Cristã, 2002, p 105.

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ele abraça este “decreto horrível” de reprovação. Ou seja, o Piper acre­dita que a predestinação é incondicional e dupla? Sem dúvida que ele acredita. Em The Pleasures of God (Os Prazeres de Deus) ele discute “O Prazer de Deus na Eleição” e não deixa dúvida de que ele concorda com Calvino, Boettnner e Sproul. A eleição, ele diz, é incondicional porque “ela não é embasada naquilo que alguém faz após nascer. Ela é livre e incondicional” 34. Ele não trata muito dos não eleitos, mas afirma que Deus escolhe alguns para não salvar, embora ele tenha compaixão deles” 35. Tratarei desta alegação no capítulo seguinte; tal alegação parece con­traditória para mim e para a maioria dos não calvinistas, se não todos 36.

O ponto principal do “U” da TULIP, para os calvinistas, é a natureza incondicional da eleição para a salvação (que também seria verdadeiro da reprovação). A predestinação de Deus dos destinos eternos de seres humanos individuais não tem qualquer relação com a presciência do caráter

ou escolhas.Toáo autor calvinista enfatiza e destaca este ponto. Boettner declara que a escolha de Deus não é embasada em nada que Deus veja em uma pessoa, incluindo sua presciência de sua fé ou arrependimento. Até mesmo a fé e o arrependimento são dons de Deus para o eleito e não podem ser a base de sua eleição 37. Para os calvinistas isto é uma doutrina de misericórdia e graça - que Deus soberanamente escolhe salvar alguns pecadores imerecedores e ele mesmo realiza toda a sal­vação sem qualquer cooperação dos pecadores. Os críticos acreditam que eles escolhem não dar a importância e ignoram o lado negro desta

34. John Piper, The Pleasures o f God (Portland, OR: Multnomah, 1991), 132.

35. Ibid., 144.

36. Aqui eu gostaria de observar que alguns luteranos acreditam na eleição incondicional, mas a maioria não acredita em um decreto de reprovação. Isto é o que os calvinistas consistentes, de qualquer forma, acham que é logicamente impossível. Então, os calvinistas não são os únicos que acreditam na eleição incondicional, mas aparentemente apenas os calvinistas acreditam em um decreto de reprovação.

37 Boettner, The Reformed Doctrine of Predestination, 98 - 101.

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doutrina, que é a de que Deus poderia salvar a todos - uma vez que a eleição para a salvação é incondicional - mas ele não o faz. Boettner tenta explicar a razão disto:

A condenação dos não eleitos é projetada primariamente para fornecer uma exibição eterna, diante dos homens e anjos, do ódio de Deus ao pecado, em outras palavras, é para ser uma manifesta­ção eterna da justiça de Deus. .. Este decreto exibe um dos atributos divinos que, sem condenação [dos não eleitos], jamais poderia ser apreciado de maneira adequada 38

Muitos calvinistas, neste ponto, preferem apelar ao mistério e não oferecem qualquer sugestão de a razão pela qual Deus não salva a todos. Talvez este seja um elemento isolado na teologia de alguns calvinistas que poderia corretamente ser chamada de extrema ou radical. A crença de Boetnner (e respostas semelhantes de outros calvinistas) levanta esta questão: A cruz de Cristo não foi uma manifestação suficiente da justiça de Deus e de seu ódio para com o pecado? (Não que Jesus tenha sido um pecador, mas que o pecado do mundo foi posto sobre ele, parcial­mente, para exibir o quão sério Deus considera o pecado). O motivo especulativo de Boettner e de outros calvinistas para a reprovação parece diminuir a glória da cruz.

“ L” DE EXPIAÇÃO LIMITADA

O terceiro elemento da TULIP é a “expiação limitada” - que também é chamada de maneira preferível por muitos calvinistas de “redenção parti­cular”. Este é o ponto da TULIP contestado por muitos que se auto-identi- ficam como calvinistas e que talvez seja o ponto totalmente ausente no pensamento de Calvino. Muitos calvinistas dizem que eles são de “quatro pontos” ou “calvinistas de quatro pontos”. O que eles querem dizer é que acreditam no “T” , “U” , “ I” e “P” , mas que não acreditam no “L” Todavia,

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o L - expiação limitada, redenção particular - é parte do sistema histórico calvinista de soteriologia, e muitos calvinistas rígidos argumentam que este ponto não pode ser retirado sem que faça violência a todo esquema calvinista de salvação.

Antes de expor este ponto da TULIP, eu devo pontuar que todos os calvinistas aceitam a “teoria da substituição penal” da expiação. Ou seja, eles acreditam juntamente com Calvino e os puritanos e a maio­ria dos cristãos evangélicos, que Deus puniu Jesus pelos pecados das pessoas que Deus queria salvar - ou o mundo inteiro incluindo todas as pessoas (a visão arminiana típica) ou os eleitos (a visão calvinista típica). Em outras palavras, Jesus Cristo satisfez a justiça de Deus ao suportar a punição merecida de todas as pessoas que Deus queria salvar. É isso que torna tais pessoas “salváveis”. Muitos não calvinistas também afirmam esta doutrina da expiação, mas os calvinistas geral­mente argúem que a crença de que Cristo suportou a punição pelos pecados de todas as pessoas leva inevitavelmente ao universalismo - crença na salvação de todos.

Boettner fortemente endossa a expiação limitada, defendendo que ela está logicamente conectada à eleição incondicional. Juntamente com a maioria dos calvinistas, ele enfaticamente afirma que o valor

da morte de Cristo foi suficiente para a salvação de todas as pessoas, mas que é foi eficaz para salvar apenas os eleitos 39. Outra forma de expressar isso é que os benefícios da morte de Cristo na cruz, embora suficiente para a salvação de todas as pessoas, foram intencionados por

Deus apenas para os eleitos. A natureza limitada da expiação, então, foi em seu escopo e não em seu valor. É por esta razão que muitos calvinistas preferem o termo “redenção particular” ou “expiação defi­nitiva”. Ela foi particularmente intencionada por Deus para um povo particular (em oposição à todos indiscriminadamente), e ela garantiu

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ou realizou definitivamente a salvação daqueles para os quais ela foi intencionada - os eleitos 40.

À verdadeira moda calvinista, Boettner afirma duramente a doutrina da redenção particular à medida em que se aplica aos não eleitos: “Ela [a cruz] não foi então, um amor geral e indiscriminado do qual todos os homens são igualmente beneficiários, mas um amor misterioso, infinito e peculiar para os eleitos, o que fez com que Deus enviasse Seu Filho ao mundo para sofrer e morrer” 41.

O que dizer acerca de outros calvinistas? Eles afirmam esta doutrina da expiação limitada conforme Boettner fez (e talvez Calvino não)? John Piper definitivamente a afirma: “Ele [Cristo] não morreu por todos os homens no mesmo sentido. A intenção da morte de Cristo para os filhos de Deus [os eleitos] foi que ele comprou muito mais que o nascer do sol e a oportunidade de ser salvo. A morte de Cristo, na verdade, salva de TODO o mal aqueles aos quais ‘em especial’ ele morreu”42. Sproul definitivamente afirma a expiação limitada. Ele prefere chamar esta doutrina de “expiação intencional” : “O propósito supremo da expiação

40. Alguns calvinistas gostam de dizer que as visões não calvinistas da expiação, tal como a expiação universal (que Deus planejou os benefícios da cruz para todos) diminuem o poder e a glória da cruz ao fazer dela apenas a criação da possibilidade de salvação em vez de, na verdade, a realização da salvação. John Piper disse publicamente que a cruz, na realidade, realizou a salvação dos eleitos (“For Whom Did Christ Die? & What Did Christ Actually Achieve on the Cross for Those for Whom He Died?”): www.monergism. com/thethreshold/articIes/piper/piper_atonement.html2/26/2009.) O problema dessa assertiva é muito óbvio e será tratado posteriormente. Apenas uma dica: Se a morte de Cristo, na realidade, realizou a salvação para alguém, então aquela pessoa não precisaria se arrepender e crer para ser salva e até mesmo os calvinistas acreditam que a salvação, de fato, mesmo a dos eleitos, não “acontece” na cruz, mas quando Deus concede fé àquela pessoa.

41. Boettner, The Reformed Doctrine of Predestination, 157.

42. Piper, “For Whom Did Christ Die?” Mais uma vez, isto suscita algumas dificuldades. Nem todos os calvinistas dirão que a cruz, na verdade, salva alguém até que Deus crie a fé no coração do eleito e lhe impute o benefício salvífico da cruz de Cristo. Piper parece estar confuso acerca deste ponto. Ou talvez não. Todavia, suas palavras estão confusas.

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se encontra no supremo propósito ou vontade de Deus. Esse propósito ou intento não inclui a raça humana inteira. Se incluísse, a raça humana inteira certamente seria redimida” 43.

As respostas às acusações destes calvinistas contra a crença na expia­ção universal (ex. que ela logicamente exige crença na salvação universal) será respondida no capítulo 6. Em minha opinião, elas são simplesmente erradas. Não existe conexão lógica entre expiação universal e salvação universal mais do que existe uma conexão lógica entre o presidente dos Estados Unidos declarando uma anistia incondicional para os protes­tantes da Guerra do Vietnã que fugiram para o Canadá para escapar do recrutamento e todos eles automaticamente se apropriando desta anistia e voltando aos EUA (Isso na verdade aconteceu sob o Presidente Jimmy Carter e muitos que poderiam ter voltado para casa, em razão de todos terem sido perdoados, não voltaram). Isso é apenas um breve panorama da TULIP Eu tratarei de assuntos complexos em maior profundidade nos capítulos subsequentes. Aqui, é importante observar, para o entendimento do calvinismo por parte dos leitores, que a maioria dos calvinistas nega que Deus intencionou a cruz para todas as pessoas, o que significa, natu­ralmente, que ele não ama a todos da mesma maneira.

Boettner e Piper realmente afirmam os benefícios da cruz para todos, de alguma forma. Deste modo, é verdadeiro dizer (pelo menos para eles) que Cristo morreu por todos. Boettner escreveu que “certos benefícios” da cruz foram estendidos a toda humanidade em geral. Estes benefícios são as “bênçãos temporais” apenas e não possuem nenhuma relação com a salvação” 44. Piper ensina que Cristo realmente morreu “por to­dos”, mas não no mesmo sentido. Ao tentar levar a sério as passagens bíblicas que tratam de “todos” (que serão lidas de maneira pormenori­zada posteriormente), ele diz:

43 SPROUL R. C. O que é teologia reformada? São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 151.

44. Boettner, The Reformed Doctrine o f Predestination, 160.

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Nós não negamos que, em certo sentido, todos os homens são os beneficiários pretendidos da cruz. 1 Timóteo 4.10 diz que Cristo é “o Salvador de todos os homens, principalmente dos que creem” O que negamos é que todos os homens são intencionados como bene­ficiários da morte de Cristo da mesma maneira. Toda a misericórdia de Deus para com os descrentes - desde o nascer do sol (Mateus 5.45) ã pregação do evangelho a todo o mundo (João 3.16) — torna-se possível em razão da cruz 45.

Claro, como enfatizarei e discutirei em mais detalhes no capítulo 6, alguém pode legitimamente imaginar quão benéfica a cruz realmente é para aqueles aos quais Deus nega seu poder salvífico. Como a cruz realiza qualquer coisa para os não eleitos? Como é que o raiar do sol é realizado pela cruz de Cristo e qual é benefício da pregação do evangelho para os não eleitos? Como é que a cruz realiza o raiar do sol e qual é o benefício da pregação para os não eleitos? Alguém só pode suspeitar que tanto Piper quanto Boettner (e outros calvinistas que alegam que Cristo morreu para os não eleitos “em algum sentido”) simplesmente querem desviar as acusações que a visão que defendem da expiação limitada se choca com as passagens bíblicas que Cristo morreu por todos.

Ademais, principalmente o Piper (e indubitavelmente outros calvinis­tas) deseja(m) dizer que Deus tem uma compaixão genuína com os não eleitos para os quais Cristo não morreu como um sacrifício expiatório. “Há um amor geral de Deus que ele concede a todas as suas criaturas”46 mas tal não é o amor que Deus tem por seus eleitos. E, de acordo com Piper, Deus tem uma compaixão sincera até mesmo para com os não eleitos de sorte que ele deseja a salvação destas pessoas, ainda que ele se recuse a prover esta salvação na cruz 47. Parafraseando João Wesley, este amor e esta compaixão são de gelar o sangue nas veias. Que amor

45. Piper, “For Whom Did Christ Die?”

46. Piper, The Pleasures of God, 148.

47. Ibid., 144 - 46.

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se recusa a salvar aqueles que poderiam ser salvos, uma vez que a sal­vação é incondicional? Que compaixão se recusa a prover pela salvação quando ela poderia ser fornecida?

A questão é que o “calvinismo geral” do calvinismo puro e simples, geralmente, mas nem sempre, restringe a intenção salvífica de Deus na cruz de Cristo aos eleitos; Deus não planejou a salvação dos réprobos, os não eleitos. Eles estão excluídos da expiação exceto em algum sentido atenuado de receber algum tipo de bênçãos temporais da cruz, sendo que tais bênçãos ficam, geralmente, sem explicação. Assim sendo, alguns calvinistas recusarão a dizer a um grupo de pessoas ou para desconhecidos as seguintes frases: “Cristo morreu de sorte que você possa ser salvo” ou “Cristo morreu por seus pecados”. Tais afirmações seriam presunçosas; não há como saber isso. Todavia, astutamente, Piper e alguns outros calvinistas que acreditam na expiação limitada podem dizer a qualquer um e a todos: “Cristo morreu por você”, sem querer dizer “Cristo morreu por seus pecados” ou “Porque Cristo morreu por você, você pode ser salvo”. Alguns consideram isso um subterfúgio; uma insinceridade.

Com base em quais versículos bíblicos os calvinistas afirmam a expiação limitada? Muitos críticos, incluindo alguns calvinistas que se denominam “de quatro pontos”, defendem que esta doutrina não possui base escriturística. Todavia, Boettner, Sproul, Piper e outros apontam para passagens tais como João 10.15; 11.51-52 e 17.6, 9, 19, na qual Jesus diz frases como “dou a minha vida pelas ovelhas”. O ponto principal do capítulo 6, dedicado à expiação limitada, será que o versículo aqui que fala acerca de Cristo morrendo por seu povo, suas ovelhas, ou os que lhe foram dados por seu Pai não necessariamente o exclui de morrer pelos outros. Na verdade, 1 João 2.2 claramente afirma que ele, Jesus, é a propiciação pelos pecados de todo o mundo. Piper e outros alegam que esta passagem se refere aos filhos de Deus espalhados por todo o mundo e que ela não se refere a todo mundo.

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“ I” DE GRAÇA IRRESISTÍVEL

O quarto ponto da TULIP é, de maneira variada, chamado de graça irresistível, graça eficaz (o termo favorito de Sproul para este ponto) ou graça efetiva (o termo favorito de Boettner para o ponto). Um termo relacionado bastante próximo é o monergismo - crença de que Deus é o único agente ativo na salvação. Monergismo é o oposto de sinergismo - a crença de que a salvação inclui a cooperação da pessoa sendo salva. A graça irresistível não significa que toda a graça sempre é irresistível ou eficaz. Antes, apenas a graça salvífica dada aos eleitos para regenerã- -los e dar a eles um novo nascimento é irresistível e eficaz. Uma pessoa escolhida por Deus para a salvação não irá, pelo fato dela não poder, resistir à “chamada interior” de Deus porque Deus “verga a sua vontade”. Não é uma questão de coerção; o Espírito Santo não esmaga e força a pessoa a se arrepender e crer; antes, o Espírito Santo transforma o co­ração da pessoa de maneira que ela quer se arrepender e crer. Boettner e outros calvinistas conectam este aspecto de sua soteriologia bem de perto com a depravação total:

Como calvinistas nós mantemos que a condição dos homens desde a queda é tal que se o homem fosse deixado como está ele continuaria em seu estado de rebelião e recusa ã todas as ofertas da salvação. Cristo, então, teria morrido em vão. Mas uma vez que foi prometido... a obra de Deus na redenção foi tornada eficaz através da missão do Espírito Santo que opera de tal forma na pessoa que ela é trazida ao arrependimento e fé, e, deste modo, feita participante da vida eterna48.

Eles embasam isto na doutrina da depravação total como morte espi­ritual absoluta tal que nem mesmo uma pessoa eleita tem a habilidade de responder a Deus, muito menos buscar a Deus, até que e a menos que Deus sopre nova vida nela em regeneração e Escritura. A principal

48. Boettner, The Reformed Doctrine of Predestination, 163.

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passagem bíblica que geralmente apontam é João 6.44, onde Jesus diz: “Ninguém pode vir a mim, se o Pai, que me enviou, não o atrair”. Os calvinistas defendem que a palavra grega traduzida por “atrair” sempre significa “compelir” (mas não “coage”). Para rebater qualquer ideia de que a palavra signifique “coagir” (tanto em João 6 ou na teologia calvinista) Sproul escreve: “Toda a questão da graça irresistível é que o renascimento vivifica a pessoa para a vida espiritual de tal maneira que Jesus agora é visto em sua irresistível doçura” 49.

Boettner concorda: “Esta mudança [regeneração através da graça irresistível através da chamada interna] não é realizada através de com­pulsão externa, mas através de um novo princípio de vida que foi criado dentro da alma e que busca o único alimento que pode satisfazê-la50. Este confiável líder calvinista também afirma inequivocamente que a obra do Espírito Santo na graça regeneradora, embora irresistível, jamais viola a livre agência da pessoa: “Os eleitos são influenciados de tal maneira pelo poder divino que sua chegada é um ato da escolha voluntária” 51. Isso parece peculiarmente paradoxo, mas isso não parece incomodar Boettner ou outros calvinistas.

Em relação ao recurso dos calvinistas de João 6.44, no capítulo 7 eu discutirei se a palavra grega traduzida por “atrair” realmente significa “compelir” ou “arrastar irresistivelmente” conforme Sproul e outros calvinistas argumentam. Assim como muitos textos utilizados como prova por calvinistas para suas doutrinas características, esta passa­gem está aberta a outras interpretações e até mesmo interpretações bem melhores. Por exemplo, se a palavra grega para “atrair” em João 6.44 só pode significar “trazer” ou “compelir” em vez de “cortejar” ou “chamar”, então João 12.32 deve ser interpretado como ensinando a

49. SPROUL, R.C. Eleitos de Deus, Editora Cultura Cristã, 2002, p. 91.

50. Boettner, The Reformed Doctrine o f Predestination, 177.

51. Ibid., 178.

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salvação universal. Na passagem em questão Jesus diz: “Mas eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim”. A palavra grega traduzida por “atrair” , neste versículo, é a mesma utilizada em João 6.44. Deste modo, se a palavra utilizada precisa ser interpretada como “compelir” ou “arrastar” , então em João 12.32 Jesus estava dizendo que ele atrairia ou traria todas as pessoas para si. Mas o versículo não é entendido assim até mesmo pelos calvinistas!

Calvino acreditou e ensinou a graça irresistível? Embora ele não tenha utilizado o termo, Calvino claramente ensinou o conceito no final de uma longa discussão de como Deus opera nos eleitos para trazê-los para si: “A síntese é: Deus, por uma adoção graciosa, cria aqueles a quem quer ter por filhos. A causa intrínseca disto, porém, está nele próprio, porque não leva em conta nada mais além de seu secreto e singular beneplácito” 52.

Sproul expressa fortemente esta doutrina: “Deus, unilateralmente e monergisticamente, faz para nós o que nós não podemos fazer para nós mesmos” 53. À verdadeira moda calvinista ele coloca a regeneração pelo Espírito Santo (ser nascido de novo) antes da conversão (na ordem lógica dos eventos da salvação). Ou seja, antes que uma pessoa seja até mesmo capaz de receber os dons da fé e arrependimento, ela deve ser feita nova criatura em Cristo Jesus através do “chamado interno eficaz”, que é comparável à criação a partir do nada54. Em outras palavras, Deus não pega algum potencial existente e constrói sobre ele ou extrai dele para operar a salvação na vida da pessoa. Antes, Deus pega uma pessoa morta em delitos e pecados e a traz para a vida, em termos espirituais.

Sproul, assim como todos os calvinistas, faz distinção entre o “cha­mado externo” , que é o evangelho pregado a todos, e o “chamado interno” , pela qual o Espírito Santo regenera uma pessoa. Apenas os

52. CALVINO, João. As Institutas: edição clássica, vol.3, p. 402.

53. SPROUL, R. C. O que é teologia reformada? São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 160.

54. Ibid., 163.

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eleitos recebem o “chamado interno” e ela sempre resulta na salvação das pessoas e o resultado não pode ser o contrário 55. A regeneração, então, deve preceder a conversão (arrependimento e fé), pois ninguém jamais responderia a Deus com arrependimento e fé a menos que a pessoa tenha nascido de novo. A pessoa salva, geralmente, não está cônscia da prioridade da regeneração, ela pode sentir que ser nascida de novo vem após a fé e o arrependimento, mas, teologicamente, o cal­vinista sabe que este não é o caso.

Esta é uma característica do esquema calvinista e, até onde sei, todos os calvinistas aderem a ela. Outros podem aderir a ela também, mas apenas se acreditarem que o batismo infantil regenera uma criança (re­generação batismal), como nas teologias episcopal e luterana. Todavia, muitos protestantes, tais como os batistas e pentecostais, acreditam que a fé precede a regeneração na ordem lógica da salvação. A mensagem simples do evangelho para a maioria dos cristãos evangélicos é “creia e seja salvo” embasado nas passagens bíblicas tais como João 3.1 - 21, na qual Jesus diz a Nicodemos que ele deve nascer de novo e que a fé nele realizará isso (v. 14). Não há nenhuma forma de reconciliar esta passagem com a crença de que a regeneração precede a fé.

“ P” DE PERSEVERANÇA

O quinto aspecto da TULIP é a perseverança dos santos. Esta é talvez o aspecto menos controverso do calvinismo, pois muitos não calvinistas acreditam nele também, e isso embasado nas passagens bíblicas tais como Romanos 8.35-39. Até mesmo Jacó Armínio (1560-1609), o grande oponente do calvinismo, declarou que ele era incapaz de se decidir acerca desta doutrina e a deixou para estudos subsequentes56. Ele morreu antes de, por fim, tomar uma posição. A primeira declaração de fé remonstrante

55. Ibid., 162.

56. Ver “Declaration of the Sentiments of Arminius” em The Works of James Arminius (trad., James Nichols; Grand Rapids: Baker, 1996), 1:667.

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de 1610 não incluiu uma negação ou afirmação da perseverança. Mais tarde, principalmente Wesley e seus seguidores (metodistas, wesleyanos) rejeitaram a perseverança tendo por base as passagens bíblicas tais como Hebreus 6. Ainda assim, tal não parece ser uma doutrina particularmente rejeitada por muitos calvinistas pelo fato de ela não tocar na questão chave do desentendimento: o caráter de Deus.

Contudo, vale a pena expor brevemente o quinto ponto da TULIP da forma como os calvinistas acreditam. Sproul corretamente observa que o termo “perseverança dos santos” é melhor expresso como “preserva­ção dos santos” em razão de a segurança eterna do verdadeiro cristão ser a obra inteiramente de Deus, e não a sua” 57. Todos os calvinistas acreditam que uma pessoa verdadeiramente eleita jamais pode alguma vez ou, de maneira final ou plena, se perder, pois Deus a guardará de cair. Outro termo para esta doutrina é “graça imperdível” (impossível ser perdida) . Este ponto segue logicamente os outros pontos da TULIP. (Luteranos, todavia, que geralmente concordam com o monergismo, rejeitam esta doutrina).

Alguns não calvinistas argumentarão veementemente contra esta crença: na maioria das vezes são arminianos que reagem contra o calvinismo. Por exemplo, muitas igrejas batistas são chamadas de “Batistas Livres” precisamente porque rejeitam esta doutrina mantida fortemente por até mesmo algumas igrejas batistas não calvinistas. Na verdade, provavelmente seria seguro dizer que a maioria dos batistas, principalmente no sul, não são calvinistas, mas aderem fervorosamente à graça imperdível sob a expressão “segurança eterna”. Os batistas livres se opõem não apenas ao calvinismo, mas também a esta doutrina na medida em, que ela é amplamente mantida por outros batistas.

Fizemos um tour, por assim dizer, no calvinismo geral ou calvinismo puro e simples. Mas isso não é toda a história do calvinismo. Na seção

57. SPROUL, R.C. Eleitos de Deus, Editora Cultura Cristã, 2002, p. 129.

84

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seguinte explorarei mais profundamente a diversidade entre calvinistas ao examinar algumas variedades de “calvinismo puro e simples”.

VARIEDADES DA TULIP

Já deveria estar claro, até o momento, que considero “reformado” uma categoria mais flexível e com diversidade muito maior que “calvi­nismo”. Claramente, pelos padrões mundiais contemporâneos, tais como a AM1R, as duas categorias não são intrinsecamente ligadas exceto no sentido de que todas as pessoas reformadas alegam uma árvore gene­alógica religiosa que remonta à reforma suíça do século XVI, incluindo a obra de João Calvino. Mas nem todos concordam com a TULIP ou até mesmo muito do que Calvino disse acerca da soberania de Deus. O calvinismo não é tanto uma família ou herança como é um sistema de crenças teológicas. O calvinismo está firmemente inserido na tradição reformada, mas não é a mesma coisa que reformado.

Muitos na tradição reformada estão incomodados com o calvinismo (assim como estavam alguns reformadores suíços na época de Calvino!), e o calvinismo se estende para fora da comunidade reformada de igrejas para, por exemplo, a vida batista. Pode ser encontrado aqui e acolá entre as denominadas Igrejas Livres (ex. Evangelical Free Church of America [Igreja Evangélica Livre da América], que, recentemente, tem se inclinado cada vez mais para o calvinismo) e, ocasionalmente, até mesmo entre pentecostais. Eu recentemente conheci um pastor calvinista de uma grande igreja As­sembleia de Deus; isso era sem precedentes no passado e provavelmente ainda abalaria a hierarquia da denominação Assembleia de Deus! O pastor assistente do pastor titular é claramente um membro do movimento jovem, incansável e reformado. Movimento reformado até mesmo para um assem- bleiano, isto é um termo errôneo e definitivamente uma anomalia. Chamar alguém tanto de “reformado” e pentecostal parece mais que esquisito.

Irei escrever aqui acerca da diversidade entre calvinistas concer­

nente ao calvinismo em vez de diversidade de calvinismo. Por quê?

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A diversidade é sempre de pessoas; o calvinismo não é um grupo de pessoas, mas uma construção teológica que é interpretada e vivida de várias formas por várias pessoas - alguns dentro da família reformada e alguns fora dela. O esboço do calvinismo geral ou calvinismo puro e simples apresentado acima está focado em um tipo ideal de calvi­nismo compartilhado por muitos calvinistas, mas não todos. Todos os verdadeiros calvinistas olham para a TULIP como uma descrição rela­tivamente acurada de sua soteriologia, mas alguns rejeitam um ponto (sempre o L) e alguns que aceitam todos os cinco pontos os aplicam à práticas, tais como evangelismo, de formas diferentes. E então há o velho argumento entre calvinistas “supralapsarianos” e “ infralapsaria- nos”, que eu discutirei brevemente.

Já mencionei o fato de que muitos cristãos rejeitam o “L” do acrósti­co TULIP em favor de uma combinação de expiação universal, eleição particular e graça eficaz. Estes calvinistas de “quatro pontos” destoam do grupo e argumentam que apesar de eleger apenas algumas pessoas para a salvação e apenas atrair algumas pessoas irresistivelmente para a fé, Deus enviou Cristo para morrer pelos pecados de todo o mundo e não apenas pelos pecados dos eleitos. A crítica à expiação limitada virá posteriormente, mas, no momento, me restringirei simplesmente a enfatizar que muitos calvinistas concordam com os arminianos e lute­ranos (e talvez outros) que a morte substitutiva de Cristo na cruz foi, na verdade, projetada por Deus para todas as pessoas. Em outras palavras, ele suportou a punição pelos pecados de todo o mundo, sem exceção.

Um eminente teólogo calvinista de tradição batista que aceitou todos os pontos da TULIP exceto o “L” foi August Hopkins Strong (1836 - 1921), professor de teologia por muito tempo no Rochester Theological Semi­nary e autor de inúmeros livros, incluindo um livro didático amplamente utilizado e influente, Systematic Theology. Tendo por base passagens bíblicas tais como 1 João 2.2, Strong argumentava que a “expiação de Cristo fez provisão objetiva para a salvação de todos, ao remover da

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mente divina todo obstáculo ao perdão e restauração de pecadores, exceto sua oposição obstinada à Deus e recusa à se voltar para Ele” 58.

Seguindo Strong ao verdadeiro estilo batista, Millard Erickson (n. 1932), teólogo calvinista batista posterior, argumentava de maneira semelhante: “Concluímos que a hipótese de expiação universal é capaz de explicar um segmento maior de testemunho bíblico com menos distorção do que a hipótese de expiação limitada” 59. Inúmeros outros. Principalmente batistas e calvinistas de Igrejas Livres, concordam com Strong e Erickson. Era provavelmente o calvinismo majoritário entre os evangélicos não reformados por grande parte do século XX - até a ascensão do movimento jovem, incansável e reformado sob a influência de John Piper e outros que defendem fortemente a expiação limitada.

Mas o que dizer dos teólogos dentro de comunidades tradicionalmente reformadas, tais como presbiterianos conservadores e cristãos reforma­dos? Todos eles afirmam o “L” na TULIP? Dificilmente. Um eminente exemplo é o teólogo James Daane, mencionado acima, um membro da Igreja Cristã Reformada. Em The Freedom of God este professor do Fuller Seminary criticava veementemente o Sínodo de Dort por não citar nenhum versículo bíblico que prova a “expiação limitada” e por virtualmente eliminar o mistério da teologia reformada através de modos de pensamento escolásticos que focam em um número em vez de uma comunidade. Do calvinismo muito tradicional, ele escreveu:

Todas... as tentativas de empregar o número - a ideia de limi­tação - para entender a natureza da eleição, a eleição da igreja, a natureza da graça divina e não da expiação de Cristo são, na verdade, tentativas de reduzir o mistério das verdades cristãs para limites que podemos racionalmente administrar. Por este caminho o mistério desaparece - o mistério da descrença e não menos o mistério de Cristo e da igreja 60.

58. Augustus Hopkins Strong, Systematic Theology (Valley Forge, PA: Judson, 1907), 772.

59. Millard Erickson, Christian Theology (Grand Rapids: Baker, 1984), 2:835.

60 Daane, The Freedom of God, 138.

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Os críticos rejeitam Daane como influenciado pelo teólogo reformado revisionista suíço Karl Barth (1886 - 1968), mas sua principal influência foi o teólogo reformado holandês Berkouwer, que é geralmente considerado muito mais tradicional que Barth. De qualquer forma, Daane represen­ta alguém não batista e plenamente dentro da família reformada e um evangélico (não liberal ou neo-ortodoxo) que rejeitava a expiação limitada.

Talvez a mais antiga e mais profunda divisão entre os calvinistas seja acerca da ordem dos decretos divinos. O debate remonta, pelo menos, a Theodore Beza, o sucessor de Calvino em Genebra. Esta é uma área tênue de teologia que afasta muitos principiantes, portanto, devotarei certo tempo e espaço aqui para explicar cuidadosamente do que isso se trata e a razão pela qual os calvinistas se dividem nesta área.

Logo após a morte de Calvino alguns de seus seguidores adotaram um estilo de obra teológica desconhecida pelo próprio Calvino. Tal tem sido geralmente rotulado de “escolástico” , remontando a tendência dos teólo­gos medievais de fazer uso da filosofia e lógica para especular acerca de questões deixadas sem menção na Bíblia. (O exemplo comum, embora de certa forma extremo, é: “Quantos anjos podem dançar sobre a ponta de um alfinete?”) Uma manifestação desta abordagem escolástica para o calvinismo foi uma tentativa de discernir a ordem lógica (não tempo­ral ou cronológica) dos decretos de Deus que expressam sua soberania sobre a criação e redenção. O pano de fundo da pergunta era: “Deus decretou a eleição e a reprovação de pessoas antes ou depois do decreto de permitir a queda? Eis aqui outra pergunta, e talvez uma melhor forma de expressá-la: “Deus decretou a eleição e reprovação de pessoas à luz da queda ou anterior a ela e não à luz dela1

Que tal trabalho parece um empenho totalmente especulativo, até mesmo muitos calvinistas concordariam. Todavia, uma vez que alguns calvinistas mais tarde chamaram de “supralapsarianos” - os que defen­diam que Deus primeiro e principal decreto foi salvar algumas pessoas ainda por serem criadas e condenar outras - apareceram com sua versão de calvinismo, todos tiveram de participar. Os “infralapsarianos” eram

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e são os que defendem que Deus decretou criar e permitir a queda (que todos concordam que ele, na verdade, a preordenou!) primeiro e somente então decretou eleger algumas pessoas caídas para a salvação e predestinar outras para a condenação.

Quando o Sínodo de Dort se reuniu em 1618/1619, isto foi debatido e a assembleia dos clérigos reformados por fim decidiu permitir ambas as visões sem marginalizar qualquer uma como heresia. Havia alguns presentes, todavia, que consideravam a visão supralapsariana herética, pois ela parecia fazer de Deus o autor do pecado e do mal. Boettner se coloca do lado do supralapsarianismo, chamando-o de “calvinismo rígido” 61. (Deve ser observado, contudo, que isto de forma nenhuma torna sua descrição geral do calvinismo, que é a TULIP, diferente do in- fralapsarianismo). Sproul, por contraste, condena o supralapsarianismo chamando-o de “hipercalvinismo” e “anticalvinismo” Esta visão, ele diz, faz de Deus o autor do pecado ao "envolver Deus na coerção do pecado” e, portanto, faz grande violência ao... caráter de Deus” 62.

Um supralapsariano poderia facilmente argumentar que Sproul é culpado de viver em uma casa de vidro enquanto atira pedras. De que maneira o supralapsarianismo faz de Deus mais autor do pecado do que o infralapsarianismo? A diferença parece jazer em outro lugar. O supralapsariano simplesmente deseja exaltar a supremacia de Deus ao não fazer nada dele, incluindo seus decretos, dependente de algo que acontece no mundo. O supralapsariano pensa que o infralapsariano fez exatamente isso ao subordinar o decreto da eleição e reprovação ao decreto de permitir a queda. Se apenas à luz da queda é que Deus opera seu plano de redenção, então, o supralapsariano diz que a redenção é uma espécie de “Plano” B na mente de Deus. Isso chega a se parecer muito com o arminianismo, assim diz o supralapsariano, pois faz Deus depender indiretamente do mundo.

61. Boettner, The Reformed Doctrine of Predestination. 129.

62. SPROUL. R.C. Eleitos de Deus, Editora Cultura Cristã, 2002, p. 105.

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Todavia, como mostrarei, fazer Deus dependente do mundo pode ser parte e parcela do calvinismo - principalmente o que chamo de calvinismo radical ou extremo, seja o supra ou o infralapsarianismo. Isso se dá em virtude de que alguns em ambos os campos enfatizam que todo o programa da criação e redenção (incluindo a reprovação e o inferno) foi feito “para a glória de Deus”. Deus precisa do mundo para glorificar a si mesmo? Ou antes é a criação o resultado do transbordante amor trinitariano de Deus?

Mais uma área de diversidade entre calvinistas tem a ver com se Deus apenas “permite” o pecado e o mal ou, na verdade, em certo sentido ele os causa. Todos os calvinistas concordam que Deus preordena o pe­cado e o mal porque tudo é preordenado por Deus. (Reconhecidamente algumas pessoas sem formação que pensam que são calvinistas podem não acreditar nisso, mas todo teólogo calvinista, remontando ao próprio Calvino, afirma essa preordenação). Sproul representa aqueles calvinistas que insistentemente negam que Deus é, em qualquer sentido, o autor do pecado e do mal. Calamidades, sim, mal moral, não.

A situação problemática é estabelecida pela afirmação de Sproul (e de outros calvinistas) da soberania divina absoluta (providência meticulosa e o que chamo de determinismo divino ainda que ele não goste desta terminologia): “Se há uma única molécula neste universo correndo sol­ta, totalmente livre da soberania de Deus, então não temos nenhuma garantia de que uma simples promessa de Deus jamais seja cumprida... Talvez essa única molécula seja a coisa que impede Cristo de voltar”63. Então a questão inevitavelmente surge: “É Deus, então, o autor do mal e do pecado?” Sproul diz que não: “Uma coisa é absolutamente impen­sável, que Deus possa ser o autor ou executor do pecado” 64. Ele afirma que Deus permitiu a entrada do pecado e do mal em sua criação boa, mas não o forçou” 65.

63. Ibid., 17- 18.

64. Ibid., 21.

65. Ibid.

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Outro calvinista bastante conhecido que diz que Deus aquiesce ou permite o pecado e o mal sem o causar ou ser seu autor é Paul Hem, um filósofo e teólogo britânico que leciona no Regent College, Canadá. Em seu livro The Providence ofGod este calvinista, assim como Sproul, expressa uma elevada visão da soberania de Deus: “Não somente todo átomo e molécula, todo pensamento e desejo, é mantido em existência por Deus, mas cada curva e cada volta de tudo isso está debaixo do controle direto de Deus”66.

Mas, claro, tal entendimento promove a questão do relacionamento de Deus com o pecado e o mal a outro nível. É Deus o autor deles? Helm diz que não. Em virtude da “natureza impecável” de Deus, ele não pode ser o autor do mal, mas em razão dele ser soberano, ele deve permitir o pecado e o mal se eles forem existir. Mas Helm argumenta que esta permissão de pecado e mal é “permissão específica” (semelhante ou idêntica ao que Boettner chama de “permissão desejosa”). Ou seja, Deus jamais assume a postura de espectador quando ele permite as coisas, incluindo o pecado e o mal. Sem causá-los ele especificamente os deseja de tal forma a ponto de garantir que eles acontecerão sem, na verdade, causá-los:

Deus ordena todas estas circunstâncias que são necessárias para a performance de uma pessoa de uma determinada ação moralmente má (digamos, uma ação de crueldade em determinado lugar e tem­po). O próprio Deus não realiza aquela ação, nem ele poderia, por razões já apresentadas [a saber, sua natureza impecável]. Contudo, ele permite que esta ação aconteça. Ele não a impede ou a para. Então, em circunstâncias ordenadas por Deus alguém faz uma ação má; as circunstâncias são ordenadas, mas o mal é permitido” 67.

Muitos calvinistas diriam “amém” para esta descrição do relaciona­mento de Deus com o pecado e o mal. Eles, assim como todos os demais, não querem dizer que Deus é a causa ou o autor do pecado e do mal.

66. HELM, Paul. A providência de Deus. São Paulo: Cultura Cristã, 2007. p. 19.

67. Ibid., 172.

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Boettner inclui um extenso capítulo em sua edição em The Reformed

Doctrine of Providence e, como Helm, argumenta (mas de forma ainda mais veemente) que embora Deus ordene tudo, ele não é a causa ou autor do pecado ou do mal. Investigarei isso mais adiante, no capítulo 4, então, por agora, colocarei de lado qualquer discussão mais longa dos problemas inerentes nesta visão. Que seja sabido agora que con­cordo com a segunda visão mantida por alguns calvinistas de que sua doutrina da soberania de Deus necessariamente implica ou ensina que Deus é o autor do pecado ou que pelo menos ativamente o garante em certo sentido causal de sorte que o termo “permissão” não é suficiente.

Não é nada difícil encontrar calvinistas na Internet (ex. blogueiros) que corajosamente afirmam que o calvinismo exige a confissão de que Deus é o autor do pecado e do mal. Tal pessoa é Vincent Cheung, que escreve acerca do calvinismo como calvinista em seu website www. vincentcheung.com. (Sei muito pouco desta pessoa exceto que ele é um comentarista prolífico em assuntos relacionados à teologia a partir de uma perspectiva calvinista). Assim como muitos outros autores que podem ser facilmente encontrados na web, Cheung ridiculariza seus companheiros calvinistas que dizem que Deus não é o autor do pecado68. Ele então diz que “quando alguém alega que minha visão da soberania divina torna Deus o autor do pecado, minha primeira reação tende a ser a seguinte ‘E daí?’ ... não há problema bíblico ou racional no fato dele ser o autor do pecado” 69. Cheung prossegue argumentando que a descrição calvinista típica da soberania absoluta de Deus necessariamente leva a Deus a ser o autor do pecado em qualquer sentido comum de “autor”

Outro calvinista que afirma que Deus mais do que meramente per­mite o pecado e o mal, mas sem, na verdade, chamar Deus o “autor do pecado” é John Frame (n. 1939). Frame lecionou por muitos anos no

68. Vincent Cheung, “The Author of Sin.” www.vincentcheung.com/2005/05/31/the- author-of-sin/.

69. Ibid.

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Westminster Theological Seminary e agora é professor de teologia no Reformed Theological Seminary. É autor de vários livros, muitos deles acerca da teologia reformada (a partir de uma forte perspectiva calvi­nista). Em uma entrevista com Andy Naselli publicada na Internet em 2009, Frame respondeu a uma pergunta acerca de Deus não causar, mas permitir o mal. Embora ele demore e se recuse a dizer que Deus causa ou é o autor do mal, Frame diz que a terminologia de permissão não é forte o bastante e prefere dizer que Deus, na verdade, efetua o m al70.

Outro calvinista que não acha que a linguagem de Deus meramente permitir o pecado e o mal seja forte o bastante para fazer justiça à so­berania de Deus é John Piper. Enquanto ele não rejeita a terminologia de permissão, ele frequentemente vai além dela ao explicar o papel de Deus em desastres, mal e até mesmo o pecado. Em um sermão publi­cado em seu website logo após os ataques terroristas em Nova York e Washington, D.C., no dia 11 de setembro de 2001, Piper rejeitou as meras explicações de permissão do papel de Deus e afirmou que, em certo sentido, Deus “planejou” , “ordenou” e “governou” tais eventos71. Durante um sermão pregado para uma conferência de jovens em 2005 ele enfatizou a soberania absoluta de Deus sobre todas as coisas e disse: “Até mesmo uma ‘bomba com material radioativo’ que destrua Mineá- polis seria de Deus” 72.

Muitos calvinistas ficam embaraçados com tais afirmações como a de Cheung, Frame e de Piper, mas outros as consideram a dura verda­de que necessariamente segue do próprio ensinamento da Bíblia. Por exemplo, José disse a seus irmãos que o ato de vendê-lo como escravo

70. “Entrevista com John Frame acerca do problema do mal” http://thegospelcoalition. org/blogs/justintaylor/2008/08/20/interview-with-john-frame-on-problem-of7.

71. Tal afirmação encontra-se no sermão já mencionado anteriormente “Why I Do Not Say, 'God Did Not Cause the Calamity’. . . . ”

72. John Piper, “God’s God-centeredness,” sermão pregado na Passion conference (Nashville, TN; Jan. 2 - 5, 2005).

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para o Egito, que eles intentaram como mal, Deus tornou em bem (Gn. 50.20). Então há o evento da cruz de Cristo, que foi preordenado por Deus “desde a fundação do mundo”. Ambos os eventos envolveram pecados. Deus não foi o autor destes pecados? Não importa como você tente sair disso, alguns calvinistas dirão, não há como fugir do fato de que Deus preordenou e tornou estes eventos certos, então ele é o autor deles, se não a sua causa direta. Enquanto discorde que tais histórias exijam a crença de que Deus tornou o pecado ou o mal certos, concordo com os calvinistas que dizem que a visão calvinista comum de soberania exige a confissão de Deus como o autor do pecado e do mal.

Há uma esfera final de diversidade no calvinismo a ser mencionada. E é o debate acerca do verdadeiro “hipercalvinismo” - corretamente uti­lizado (de acordo com a maioria dos teólogos reformados) da versão do calvinismo de Herman Hoeksema (1886 - 1965) que rejeitava a prática de apresentar, de maneira indiscriminada, o convite do evangelho para a salvação de todas as pessoas. Hoeksema nasceu na Holanda, mas imigrou para os EUA quando criança e se estabeleceu em Grand Rapids onde ele, por fim, pastoreou uma grande Igreja Cristã Reformada. Entre outras obras ele escreveu Reformed Dogmatics.73 Hoeksema iniciou uma controvérsia dentro das igrejas reformadas ao argumentar que o evan- gelismo indiscriminado, com apelos abertos voltados para a salvação, viola a doutrina da soberania de Deus na salvação.

A controvérsia foi descrita como concernente a “oferta sincera do evangelho” por Anthony Hoekema (1913 - 1988), eminente teólogo e professor do Calvin Theological Seminary (observe aqui a diferença de grafia para o nome Hoeksema; eles não são parentes). De acordo com Hoekema, Hoeksema ensinava que “a chamada do evangelho jamais é uma oferta” de salvação 74. É antes uma proclamação do que Deus

73. Herman Hoeksema, Reformed Dogmatics (Jenison, MI: Reformed Free Publishing Association, repr. 1985).

74. Anthony Hoekema, Saved by Grace (Grand Rapids: Eerdmans, 1989), 72.

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tem feito; só Deus decidirá o que fazer com ela, e ele sempre decide utilizá-la para atrair o eleito para si. Mas ela não é uma oferta sincera de salvação para todos, pois “Deus não deseja a salvação de todos aos qual o evangelho chega; ele deseja a salvação apenas dos eleitos” 75.

A Igreja Cristã Reformada expulsou Hoeksema por este motivo, sus­tentando que “a pregação do evangelho é uma oferta sincera de salvação, não apenas da parte do pregador, mas também da parte de Deus, para todos os que a ouvem, e que Deus seria e sinceramente deseja a salvação de todos ao qual a chamada do evangelho atinge” 76.

O teólogo reformado Daane atribui o calvinismo extreme de Ho­eksema não a uma interpretação anômala do calvinismo rígido, mas àquela própria teologia - uma teologia que ele chama de “teologia decretai” , que inclui a reprovação como um decreto de Deus 11. Alguém precisa imaginar qual lógica impede uma pessoa que acredita na TULIP de mudar para a posição de Hoeksema. Por que Deus sinceramente desejaria a salvação de todos e como pode a chamada do evangelho ser chamada de uma oferta sincera de salvação para todos indiscri­minadamente, incluindo os não eleitos, se Deus decretou que apenas alguns serão salvos?

TEOLOGIA REFORMADA / RADICAL

Dada a evidente diversidade da comunidade reformada e entre cal­vinistas, quando digo que sou “contra o calvinismo” e quero resgatar a reputação de Deus da “teologia reformada radical” , de qual calvinismo e de qual teologia reformada estou falando? Existem tantos tipos! Isso é verdade. Bem, aqui eu quero explicar qual é o tipo que eu estou contra; o restante do livro explicará a razão em detalhes.

75. ibid.. 73.

76. ibid.

77. Daane, The Freedom o/God, 24.

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O “calvinismo” que sou contra e que me refiro é o “calvinismo rígido” da TULIP, quer seja infralapsariano ou supralapsariano. Tais diferencia­ções, se examinadas de perto, não fazem diferença: ambas as visões farão que Deus seja, no melhor dos cenários, moralmente ambíguo e, no pior dos cenários, um monstro moral (apesar das alegações dos calvinistas do contrário!). Mais uma vez desejo enfatizar que não é o

livre-arbítrio que me preocupa, exceto o livre-arbítrio que é necessário para proteger o caráter de Deus de ser impugnado. O que me preocupa, e eu deixarei explicitamente claro, é o ensino bíblico de que “Deus é amor” (1 João 4.16).

Por favor, não rejeite isso como sendo superficial demais; irei des­compactar minha alegação de que o calvinismo rígido, o calvinismo que afirma a maioria ou todos os pontos da TULIP, contradiz diretamente que Deus é amor. Estou bastante consciente das objeções calvinistas de que o amor de Deus é diferente de nosso tipo de amor. Já ouvi isso inúmeras vezes. Enquanto há certa verdade nesta afirmação, ela é exagerada pela maioria dos calvinistas. Se o amor de Deus é absolutamente diferente de nossas mais elevadas e melhores noções de amor na medida em que as extraímos da própria Escritura (principalmente de Jesus Cristo), então o termo é simplesmente sem sentido quando em relação à Deus. Alguém pode também dizer que “Deus é creech-creech” - uma afirma­ção vazia de sentido.

Conforme espero demonstrar, alguns calvinistas concordam comigo acerca da analogia entre a bondade e amor de Deus e nossas melhores e mais elevadas ideias de bondade e amor. Paul Hem, por exemplo, rejeita qualquer ideia de que a bondade e ao amor de Deus seja qua­litativamente diferente do nosso (uma vez que o nosso seja derivado da Escritura, claro). Entretanto, argumentarei, que até mesmo os que concordam comigo não podem explicar adequadamente como a des­crição sua descrição da soberania de Deus, principalmente em relação ao pecado, mal e reprovação, é consistente com a bondade ou amor.

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Mais uma vez, eu sou contra o quê? Ao dizer “contra o calvinismo” eu quero dizer que me oponho a toda e qualquer sistema de crença que inclua o "U”, o “L ” e o 7 ” da TULIP. O “U” e o “1” sempre aparecem juntos mesmo quando o “L” é rejeitado. Eu me oponho mais energicamente ao “L”, mas penso que ele seja necessariamente consequência do “U” e do “ I” , então eu concordo com aqueles calvinistas que defendem que é inconsistente deixar o “L” de fora. A “flor” , por assim dizer, é danificada e fica irreconhecível ou irrecuperável ao tirar dela essa pétala!

Acredito também que a afirmação da eleição incondicional neces­sariamente implica na afirmação da reprovação, apesar da negação de alguns calvinistas. A reprovação é a “consequência lógica e necessária” da eleição incondicional a menos que alguém afirme a salvação universal.

(Um exemplo disto é o grande teólogo reformado Karl Barth, que, acre­dito eu, afirmava o universalismo). Como não posso afirmar a salvação universal, julgo que a eleição incondicional seja, com sua necessária correlata, a reprovação, inaceitável pelo fato de ela impugnar o caráter de Deus como incondicionalmente bom.

A graça irresistível faz a mesma coisa. Ela impugna a bondade de Deus. Se Deus chama e atrai pecadores irresistivelmente para si de ma­neira que eles escapam do inferno por que ele os domina e os regenera sem qualquer ato de livre-arbítrio da parte deles, então um Deus bom faria o mesmo para todos! Não estou contente em deixar a pergunta do “por quê” na esfera do mistério. Reconheço o mistério na revelação, mas não o que exige crença em uma vontade escondida ou secreta de Deus que faz dele um monstro moral. Somente um monstro moral recusaria salvar pessoas quando a salvação é absolutamente incondicional e uni­camente um ato de Deus que não depende do livre-arbítrio.

Quando digo que sou contra o calvinismo, então, me refiro às crenças principais do calvinismo geral, calvinismo puro e simples, na medida em que tais crenças são levadas às suas conclusões lógicas. Percebo que nem todos os calvinistas as levam a sua conclusão lógica; em

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vários estágios, no processo de raciocínio, certos calvinistas param e apelam ao mistério e recusam ser logicamente consistentes ao afirmar as consequências lógicas e necessárias de seu sistema de crença. Não

sou contra eles ou ao seu calvinismo altamente modificado e atenuado! (E isto é provavelmente o caso com a maioria das pessoas que eu conheço que se consideram calvinistas).

Todavia, dentro do movimento jovem, incansável e reformado do ne- ocalvinismo e entre seus mentores (as pessoas que eles leem e escutam e os consideram seus heróis), a maioria deles, em minha experiência, tem levado o calvinismo às suas conclusões lógicas - ou pelo menos caminharam bastante nesta direção. Há uma ousadia e até mesmo agressividade entre eles que eu não encontro entre a maioria dos cal­vinistas das gerações mais velhas. Eu sou contra qualquer calvinismo (e qualquer teologia) que impugne a bondade de Deus em favor da soberania absoluta, levando à conclusão que o mal, pecado e todos os horrores da história humana são planejados e tornados certos por Deus.

E a “teologia reformada radical”? O que eu quero dizer com isso e por que a reputação de Deus precisa ser resgatada dela? Por teologia reformada radical eu quero dizer o mesmo que o calvinismo consistente descrito acima. Quero dizer o calvinismo extremado tão evidente em alguns palestrantes e escritores calvinistas e seus ávidos seguidores que inevitavelmente acabam por fazer de Deus o autor do pecado e do mal, ainda que a linguagem (ex. “autor”) seja ou não utilizada. O fato de John Piper preferir dizer que Deus “projeta” e “governa” o mal, não faz dife­rença quando o contexto necessariamente implica que Deus quer que tal aconteça e o torna certo - principalmente quando se diz que isso é necessário para sua plena glorificação.

Para ser direto e sem rodeios, conforme diz o ditado, meu problema é primeira e principalmente com o determinismo divino que leva a repro­vação incondicional de Deus de certas pessoas para o sofrimento eterno no inferno para sua glória. Me oponho a qualquer ideia que, conforme

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o velho ditado calvinista diz: “aqueles que se encontram sofrendo no inferno podem, ao menos, se confortar com o fato de que eles estão lá para uma maior glória de Deus”. Eu reconheço e livremente admito que poucos calvinistas diriam isso. Mas meu argumento é que eles deve­riam encontrar a coragem de dizer isso, pois isto está necessariamente implícito pelo o que eles, de fato, falam. Explicarei e defenderei essa alegação em todo esse livro.

A teologia reformada radical, então, é qualquer teologia que faz afirmações acerca de Deus que necessária e logicamente implicam que Deus é menos do que perfeitamente bom no mais elevado sentido de bondade encontrado no Novo Testamento e, principalmente, em Jesus Cristo, a mais completa revelação de Deus para nós. É o infralapsaria- nismo ou supralapsarianismo consistente, quer seja hipercalvinista ou o calvinismo normal, puro e simples.

Então, qual é a teologia reformada a qual não sou contra? Acho que terei de dizer que a única teologia reformada que não sou contra é a teologia reformada revisionista - o tipo que encontro em Sell, Berkhof, Daane e König (embora eu possa não concordar com tudo o que qualquer um deles ensine). É a teologia reformada que explicitamente rejeita um decreto divino de reprovação e que a usa de embasamento para corajosamente rejeitar outras alegações calvinistas que necessariamente exijam a reprovação divina. É a teologia reformada que explicitamente rejeita o determinismo divino de cada evento único, sem exceção, não deixando espaço para o livre-arbítrio, e que utiliza isso como base para afirmar uma autolimitação divina e amorosa tal que Deus não é, de ma­neira alguma, responsável pelo sofrimento de inocentes no holocausto ou horrores semelhantes da história.

Creio que seja possível encontrar teologia reformada não radical comumente entre pessoas reformadas e até mesmo entre alguns que se consideram calvinistas. Eles apelam ao mistério e não para decretos divinos que governam todos os eventos, incluindo a queda. Eles afirmam

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a soberania de Deus sem estendê-la ao pecado e ao mal exceto à medida em que Deus os permite (sem aquela permissão desejosa positiva falada por calvinistas consistentes e o teólogo reformado radical que fala acer­ca de Deus os tornado certos). Eles afirmam a eleição como a escolha graciosa e incondicional de um povo para o serviço sem a determinação incondicional dos destinos eternos das pessoas, incluindo algumas para o inferno. Eles são pessoas reformadas que concordam com Adrio Kõnig, ele próprio sendo de linhagem reformada, que escreveu:

Qualquer um que nivela em vagas generalizações ao tentar explicar tudo e todas as possíveis circunstâncias como a vontade de Deus sempre acaba na impossível situação de que há mais exceções do que regras, mais coisas que são inexplicáveis e que tais colidirão com o retrato de Deus que nos é dado em sua palavra, do que há confirmações confortantes de que ele está dirigindo tudo... Qualquer um que tentar utilizar a onipotência e providência de Deus para propor um plano divino preparado e meticuloso que está se desenrolando na história do mundo (L. Boettner) será sempre deixado com o problema que outros crentes podem não ser capazes de discernir o Deus de amor no atual curso dos eventos do mundo... Deve ser afirmado enfaticamente que... as Escrituras não apresentam o futu­ro como algo que materializa [sic] de acordo com um “plano”, mas de acordo com o pacto... Há muitas coisas angustiantes que acontecem na terra que não são a vontade de Deus (Lucas 7.30 e todos outros pecados mencionados na Bíblia), que são contra sua vontade, e que se originam do pecado incompreensível e sem sentido no qual nós nascemos, no qual a maior parte da humanidade vive, e no qual Israel persistiu e contra a qual até mesmo ‘os mais santos homens’ lutaram todos os seus dias... Tentar interpretar todas estas coisas por meios do conceito de um plano de Deus, cria dificuldades intoleráveis e dá surgimento á mais exceções do que a regularidades. Mas a objeção mais importante é que a ideia de um plano é contra a mensagem da Bíblia uma vez que o próprio Deus se torna implausível, se o que ele com poder combate, e pelo qual ele

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sacrificou seu próprio Filho, foi, contudo, de algum jeito, parte e parcela de seu conselho eterno 78.

ALTERNATIVAS A TEOLOGIA REFORMADA / RADICAL

Um motivo pelo qual muitos jovens (e talvez outros) abracem o novo calvinismo que é de longe a teologia reformada radical que acabou de ser descrita é porque eles estão convencidos que ele seja a única teo­logia bíblica e intelectualmente séria que esteja disponível. É verdade, conforme alguns calvinistas defendem, que muitas igrejas evangélicas estadunidenses estão quase que totalmente desprovidas de teologia. Tenho lecionado teologia para milhares de alunos em três universidades cristãs há mais de 30 anos. Durante esta época eu percebi que há uma tendência de baixa em termos da consciência bíblica e teológica nos alunos cristãos.

Também percebi essa tendência nas igrejas que frequentei. Consi­derando que há 30 anos e antes disso a maioria das igrejas evangélicas ensinava histórias bíblicas e realizava alguma espécie de catequese com jovens, a maioria das igrejas passou a adotar o mais insípido “estudo” de questões éticas e morais - geralmente substituindo a discussão da possível interpretação espiritual de filmes para o ensino bíblico e o es­tudo de doutrinas 79.

78. Konig, HereAm I! 198 - 99.

79. Acredito que uma análise estatística não seja necessária, pois o fenômeno é visto universalmente como desta maneira pelas pessoas que ensinam estudos bíblicos e teológicos em faculdades e universidades cristãs. Poucos estudantes conhecem quaisquer hinos, e os hinos eram uma forma que a fé cristã era passada de geração à geração. A música cristã contemporânea é notoriamente rasa no que diz respeito à doutrina e à teologia (com algumas exceções, claro). Encontrei alunos que cresceram em lares e igrejas cristãs e até mesmo filhos de pastores e missionários que alegaram jamais ter ouvido acerca da ressurreição do corpo como uma fé cristã. Poucos sequer podem apresentar uma breve explicação da trindade ou deidade e humanidade de Jesus além de slogans da religião popular, tais como Jesus era “Deus em pele humana” - uma expressão popular da heresia antiga do apolinarianismo.

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Muitas igrejas e organizações cristãs de jovens simplesmente abdi­caram de sua responsabilidade de ensinar as crenças básicas cristãs de sorte que o cristianismo, para muitos cristãos jovens, parece uma religião raza de autorealização com o auxílio de Deus. Isso é o que o intelectual calvinista Michael Horton chama de “Cristianismo sem Cristo” 80 e eu concordo com ele. Isto está simplesmente difundido na vida eclesiástica estadunidense. Então, quando jovens intelectualmente curiosos que estão convencidos que de que deve haver algo a mais em sua fé do que a religião popular que eles receberam, eles encontram o calvinismo pela primeira vez (geralmente sob o nome de teologia reformada), e eles geralmente ficam tão impressionados e, ás vezes, totalmente arrebatados por ele. Em minha experiência, isto se dá parcialmente sob a influência de sermões extremamente apaixonados pregados por popularizadores eruditos do calvinismo que pregam em conferências de jovens (os sermões sendo transmitidos via podcast para que possam ser ouvido outras vezes), como se a teologia pregada fosse a única que verdadeiramente honra a Deus.

Descobri que muitos dos novos calvinistas simplesmente não es­tão conscientes de que há outras alternativas viáveis para sua recém descoberta fé doutrinal. Através da leitura de livros de seus pastores e professores favoritos, muitos deles estão convencidos que todas as al­ternativas - e, principalmente o temido “arminianismo” - são centradas no homem, sem fundamentação bíblica ou intelectualmente débeis. Quase todas as alternativas ao calvinismo são agrupadas juntas como arminianismo ou semipelagianismo ou ambos (muitos calvinistas, tais como Sproul, igualam as duas coisas). Em seu sermão acerca de “Por quem Cristo Morreu?” , Piper ataca o arminianismo como uma teologia da salvação própria. Ele diz: “A fim de que Cristo tenha morrido por todos os homens da mesma forma, o arminiano deve limitar a expiação para uma oportunidade impotente para os homens de salvarem a si mesmos da terrível má situação da depravação” 81.

80. O título de seu livro publicado em 2010 pela Editora Cultura Cristã.

81. Piper, “For Whom Did Christ Die?”

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Isto é, claro, uma caricatura do arminianismo, como demonstrei em Teologia Arminiana: Mitos e Realidades. Alguém precisa imaginar o que o Piper estava pensando quando ele tirou conclusões errôneas acerca do arminianismo desta forma. A teologia arminiana não diz que as pessoas salvam a si mesmas ou que a expiação é impotente. A teologia arminia­na tradicional diz que na cruz e através da cruz de Cristo o pecado de Adão herdado por todos foi perdoado (Romanos 5) de maneira que as pessoas só são condenáveis por seus próprios pecados. A cruz remove completamente todo obstáculo para a salvação de todo ser humano, exceto sua resistência à graça de Deus livremente ofertada, que é dada a todos em certa medida, mas principalmente através da pregação da palavra. Acredito que o Piper saiba isso, pois nós nos comunicamos a esse respeito e ele me disse que já foi arminiano!82

O que Piper e quase todos os críticos calvinistas do arminianismo (e outras teologias alternativas da soberania de Deus e salvação) geral­mente deixam de mencionar duas coisas que são cruciais: (1) qualquer limitação da soberania de Deus é uma autolimitação voluntária porque Deus é soberano acerca de sua soberania, e (2) se alguém vem a Cristo

82. Quando entrei em contato com Piper acerca desta citação, ele enfatizou que no sermão ele não disse que os arminianos realmente dizem isso sobre a expiação e salvação, mas apenas que eles devem dizer isso. Deixarei a decisão a cargo dos leitores e que a maioria de seus ouvintes e leitores pensou que ele quis dizer. Conheço algumas pessoas que pensaram que o que ele, de fato, quis dizer, foi a teologia arminiana. Em minha opinião, a declaração do Piper aqui e as muitas afirmações semelhantes feitas por calvinistas concernente o arminianismo violam a regra básica de debate civilizado que deveria reger não apenas os cristãos, mas todas as pessoas sérias: sempre descreva a visão de seu oponente conforme eles a descrevem, e se você for acusá-los de que a visão deles leva a uma conclusão que eles, na realidade, não adotam, diga que eles, na verdade, não a adotam. Me parece que o Piper, em seu sermão, faz o que muitos calvinistas fazem com o arminianismo - descrevem-no da forma mais infame ao atribuir a ele conclusões consideradas logicamente necessárias, mas que não são verdadeiramente abraçadas por seus adeptos. Não me oponho a discutir contra uma teologia pelo fato de ela levar necessariamente a algum lugar considerado ruim. É desta forma que atacarei o calvinismo. Mas me oponho a atribuir aos adeptos de uma teologia certas crenças que eles explicitamente rejeitam. Tal coisa é, em seu melhor cenário, injusta, e, desonesta, no seu pior cenário.

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com arrependimento e fé, é apenas porque foram capacitados pela graça “preveniente” de Deus para que assim agissem. Eu raramente encontro calvinistas que descrevam a doutrina arminiana da graça preveniente de maneira justa ainda que ela seja central e crucial ã teologia arminiana.

Então, o que é o arminianismo ou a teologia arminiana? É a muito caluniada, mas inocente, principal alternativa evangélica ao calvinismo. Para dar suporte à apresentação do arminianismo que darei aqui quero que os leitores leiam o livro Teologia Arminiana, que contem centenas de citações de apoio dos principais teólogos arminianos, remontando do próprio Jacó Armínio, que atribuiu toda a salvação à graça de Deus e que negou calorosamente que ele tenha atribuído qualquer parte da obra da salvação ao “homem” (a pessoa humana que se arrepende e crê para a salvação). Contrária às deturpações de muitos críticos calvinistas, o arminianismo não “limita a soberania de Deus” ou atribui mérito ao “homem” na salvação.

A teologia arminiana clássica, tal como a de João Wesley (1703 - 1791), afirma a depravação total dos seres humanos e sua total inca­pacidade de até mesmo exercer uma boa vontade para com Deus em separado da graça sobrenatural e auxiliadora de Deus. Ela atribui a ha­bilidade do pecador de responder ao evangelho com arrependimento e fé à graça preveniente - o poder iluminador, convincente, capacitador e convidativo do Espírito Santo na alma do pecador e tornando o pecador livre para escolher a graça salvífica (ou para rejeitá-la). Esta é a interpreta­ção arminiana para as “atrações” de Deus mencionada no evangelho de João. Deus não atrai irresistivelmente, mas persuasivamente, deixando os humanos capazes de dizer não.

A teologia arminiana realmente afirma a eleição divina, mas ela a interpreta como corporativa e não como individual. Romanos 9, a passagem alicerce do calvinismo rígido, é interpretada, assim como os primeiros pais da igreja fizeram - como se referindo ao serviço de Isra­

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el e os crentes gentios no plano de Deus, não aos destinos eternos de indivíduos. Arminianos afirmam a predestinação, interpretando-a com Romanos 8 como a presciência de Deus da fé. Eles rejeitam a reprovação, exceto na medida em que ela é livremente escolhida pelas pessoas que vivem contrariamente à vontade de Deus revelada em natureza e na lei escrita em seus corações (Romanos 1 - 2)

Acima de tudo os arminianos insistem que Deus é um Deus bom e amável, que verdadeiramente deseja a salvação de todas as pessoas. Observem 1 Timóteo 2.3-4: “ Isso é bom e agradável perante Deus, nos­so Salvador, que deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade”; e 2 Pedro 3.9: “O Senhor não demora em cumprir sua promessa, como julgam alguns. Pelo contrário, ele é paciente com vocês, não querendo que ninguém pereça, mas que todos cheguem ao arrependimento”. Os arminianos consideram estas e outras passagens bíblicas semelhantes a estas como clara e inequivocamente apontando para o desejo universal de Deus para a salvação de todas as pessoas. O versículo de 1 Timóteo 2.4, na língua grega, não pode

ser interpretado de qualquer outra forma além de se referir a todas as pessoas, sem limite. Alguns calvinistas interpretam 2 Pedro 2.4 como se referindo apenas aos eleitos, mas à luz de 1 Timóteo 2.4, tal inter­pretação dificilmente funciona.

Os arminianos acreditam que qualquer limitação da intenção de Deus para a salvação de todos, incluindo a “expiação limitada” , necessária e intrinsecamente impugna o caráter de Deus até mesmo onde os calvi­nistas insistem o contrário. Os arminianos não alegam que os calvinistas dizem que Deus não é bom ou amável; eles dizem que o calvinismo implica isso necessariamente, então que os calvinistas deveriam dizer

isso a fim de serem consistentes com eles mesmos.A principal alternativa ao calvinismo é o arminianismo clássico (que

é diferente do que, às vezes, vai sob esse rótulo!) conforme descrito brevemente acima. Mais uma vez, eu encorajo os leitores que estão

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interessados em explorar o tema um pouco mais, que leiam o livro Teologia Arminiana e outros livros escritos por arminianos acerca do arminianismo - assim como eu e muitos arminianos lemos as Institutas

de Calvino e muitos livros acerca do calvinismo escrito por calvinistas. Você não deve acreditar no que os calvinistas dizem acerca do arminia­nismo sem averiguar o fato por si mesmo ao ler as fontes primárias 83.

A teologia arminiana é bíblica e intelectualmente respeitável? É uma séria concorrente do calvinismo? Claro que só poderão ter certeza disso as pessoas que analisarem o arminianismo profunda e imparcialmente a partir das fontes primárias. Mas meu argumento é que a única razão que isto é levado em conta é em virtude das repetidas calúnias contra o arminianismo que foram levantadas pelos calvinistas através dos anos; a maioria do que os calvinistas dizem acerca do arminianismo é simples­mente inverídico ou, no mínimo, apenas parcialmente verdadeiro. Um dos principais ofensores é Sproul, que iguala o arminianismo à heresia de semipelagianismo 84, heresia esta que foi condenada no Segundo Con­cílio ou Sínodo de Orange em 529 dC (que também condenou qualquer crença que Deus predestinou o pecado). Praticamente todo livro de um calvinista que expõe a teologia calvinista que eu li (e li dezenas deles) acabam por disseminar uma forte crítica contra o arminianismo como uma mensagem rasa de salvação própria, se não heresia real.

83. Duas exposições importantes da teologia arminiana que também são prazerosas de se ler são Thomas Oden, The Transforming Power of Grace (Nashville, TN: Abingdon, 1993), e Robert E. Picirilli, Grace, Faith, Free Will (Nashville, TN: Randall, 2002).

84. Esta equação pode ser encontrada em muitas páginas das obras publicadas do Sproul, tal como O que é teologia reformada? São Paulo: Cultura Cristã, 2009, 139, 158 - 60. Sproul, de fato, reconhece a crença arminiana na grace preveniente, mas ele então apresenta erroneamente a visão arminiana quando pergunta aos arminianos: "Se a carne pode, por si mesma, se inclinar à graça, qual é a necessidade da graça?” (188). Nenhum arminiano verdadeiro diz que a carne (o ser humano caído, natural) pode se inclinar para a graça; tal inclinação sempre vem do Espírito Santo. A diferença entre isso e o calvinismo é que, de acordo com o arminianismo, esta obra do Espírito Santo chamada graça preveniente, é resistível (pois Deus escolhe permitir que a graça seja resistida!)

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Eu conclamo aos jovens, incansáveis e novos calvinistas reformados que pensem por eles mesmos acerca das alternativas ao calvinismo, incluindo e, principalmente, o arminianismo. Mas eu também recomen­do a investigação em teólogos reformados não calvinistas, tais como Berkhof, Kõnig e Daane, mas talvez, acima de tudo, o grande teólogo reformado holandês G. C. Berkouwer que publicou muitos volumes de teologia sistemática nas décadas de 1950 e 1960. Alguns podem considerá-lo um calvinista, mas ele definitivamente não era no sentido de ser “calvinista rígido” e/ou que adota toda a TULIP, principalmente pelo fato de rejeitar qualquer noção de reprovação divina como inclusa na soberania de Deus 85. Outras alternativas protestantes são o lutera- nismo, que rejeita a expiação limitada e a perseverança incondicional e a teologia anabatista, que foca principalmente em discipulado em vez da teologia sistemática, mas que claramente inclui a crença na liberda­de da vontade concedida por Deus e que rejeita a TULIP quase em sua totalidade. (Alguns anabatistas aceitam a depravação total).

Por fim, espero que as alternativas ao calvinismo justifiquem uma séria análise em virtude dos sérios enigmas apresentados pela extensão lógica do calvinismo clássico, ao qual este livro agora se dedica.

85. Ver a obra de vários volumes de Berkouwer com o título abrangente “Estudos em Dogmática” publicado pela Eerdmans.

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capítulo 4

Sim para a soberania divina; Não para o determinismo divino

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FUI OUVIR UM FAMOSO OFICIAL do governo, que também era um cristão evangélico bastante conhecido, discursar na capela de nossa faculdade. Eu esperava que ele abordasse os perigos do hábito de fumar cigarros, porque era exatamente por isso que ele era principalmente conhecido, ele era um guerreiro contra o tabaco. Mas não foi esse o tópico que ele abordou em sua fala na capela. Em vez disso, por cerca de uma hora, ele discorreu acerca do seguinte assunto: “Deus matou meu filho”. Eu não fiquei totalmente surpreso, pois eu sabia que ele era membro de uma grande e influente igreja reformada. Entretanto, eu jamais havia ouvido nenhum calvinista apresentar o assunto de ma­neira tão direta. O médico falou de maneira eloquente e tocante acerca da trágica morte de seu filho, um jovem adulto, em um acidente de alpinismo e, em vários momentos ele parou, olhou intencionalmente para o público jovem e afirmou: “Deus matou meu filho”.

O orador deixou extremamente claro o que ele quis dizer. Ele não

quis dizer que Deus permitiu a morte de seu filho ou que simplesmente permitiu que ela acontecesse. Pelo contrário, ele quis dizer que Deus pla­nejou a morte e a tornou certa. Ele não disse que Deus causou a morte, mas a sua mais que frequente repetição do título da palestra certamente deixava isso implícito: “Deus matou meu filho”. Ele também deixou muito claro de que o evento não foi uma ocorrência incomum da intervenção

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de Deus; o que ele quis dizer foi que toda morte, assim como todo evento, é planejado e governado por Deus de tal maneira a tornar o evento inevitável. (Estou certo de que ele diria, caso fosse indagado, de que Deus utiliza causas secundárias, tais como o clima e a umidade e o equipamento defeituoso, mais isso, para ele, não era pertinente. Tudo o que ele se importava era que Deus matara seu filho). Em outras palavras, este estadista cristão estava declamando publicamente que Deus é absolutamente soberano até os mínimos detalhes e que Deus planeja todo evento, incluindo as tragédias, e as torna certas.

O que foi principalmente significante acerca desta apresentação da visão calvinista da soberania divina em providência (o governo de Deus da história e vidas) foi a razão do orador para acreditar nisso de maneira tão apaixonada. Claro, ele acreditava neste tipo de soberania por achar que ela seja bíblica. Mas ele também deixou claro que ele acreditava nela porque ela era a única coisa que lhe trazia conforto e esperança em face de tal tragédia devastadora. Se a morte de seu filho foi simplesmente um acidente e não parte do plano de Deus, ele disse, ele não poderia viver com a total aleatoriedade e ausência de propósito dela. Ele só poderia encontrar conforto na morte de seu filho se ela fosse um ato de Deus e que não fosse, de forma alguma, um acidente.

Enquanto escutava, imaginava o que este grande estadista evangé­lico diria se a morte de seu filho não fosse, conforme ele relatava, uma morte rápida e indolor, mas antes, uma morte vagarosa, agonizante e dolorosa de, digamos, câncer. Tais mortes geralmente ocorrem e, ás vezes, com crianças e jovens! Lembro-me um dia visitar a amiga ado­lescente de minha filha no hospital e ouvir uma criança gritando em agonia ininterruptamente pelos trinta minutos que estive lá. Eram gritos agudos arrepiantes de tormenta absoluta ecoando pelos corredores do hospital. Jamais ouvi qualquer coisa parecida com aquilo, e aquilo me deixou abalado. E se os pais daquela criança perguntassem ao orador: “Você acredita que nosso filho está sendo morto desta maneira específica

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por Deus?”. O que ele diria? Se ele fosse consistente consigo mesmo e sua teologia, ele teria que dizer sim.

Certo dia estava trabalhando em meu escritório quando o telefone tocou. Era um pastor que havia lido no jornal estudantil acerca de mi­nha rejeição ao calvinismo. Ele exigiu saber: “Como você pode não acreditar na soberania de Deus?” Eu lhe perguntei o que ele queria dizer com soberania de Deus e ele respondeu: “Quero dizer, ao fato de Deus controlar tudo o que acontece”

Eu lhe respondi com uma pergunta: “ Essa soberania inclui o pecado e o mal?”

Ele pausou: “Não”.Então, perguntei: “Você realmente acredita na soberania de Deus?”

Ele pediu desculpas e desligou o telefone.O que eu queria dizer ao pastor era que eu realmente acredito na so­

berania de Deus - de todo o meu coração, alma e mente. Eu acredito, como a Bíblia ensina e todos os cristãos devem acreditar, que nada pode acontecer sem a permissão de Deus. Isso é o que alguns chamam de uma "visão fraca” da soberania de Deus (embora ela nada tenha a ver com qualquer “fraqueza” de Deus), onde o calvinismo normalmente afirma uma “visão forte” da soberania de Deus. Vamos analisar a dou­trina calvinista da providência divina - a doutrina da soberania de Deus sobre a natureza e história.

A DOUTRINA CALVINISTA DA PROVIDÊNCIA DE DEUS

Ulrico Zuínglio e Jo ão Calvino

Muitos eruditos consideram que o verdadeiro fundador da tradição reformada seja Ulrico Zuínglio, que escreveu um extenso ensaio intitulado Da Providência. Este ensaio veio a influenciar Calvino e, através dele, toda a tradição reformada (embora muitos reformados, principalmente os que se autodenominam “revisionistas” vieram a rejeitar muito desse ensaio). Zuínglio definiu a providência como “o domínio e direção de Deus de

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todas as coisas no universo. Pois se qualquer coisa fosse guiada por seu próprio poder ou insight, assim também seria a sabedoria e poder de nossa Deidade muito deficientes”1. Zuínglio continuou sua exposição ao negar que nada neste mundo é “contingente, fortuito ou acidental” , pois Deus sozinho é a “única causa” sobre tudo, de maneira que outras assim chamadas causas são simplesmente “instrumentos do trabalhar divino” 2.

Zuínglio embasou muito de sua forte doutrina da soberania na filoso­fia; ele começou com uma ideia pressuposta de Deus como a necessaria­mente a realidade toda-determinante e tirou dela a conclusão que tudo deve ser uma manifestação do poder de Deus ou, caso contrário, Deus não seria Deus. Claro, Zuínglio também apelou para a Escritura, assim como todos os defensores da forte doutrina da soberania de Deus. Será útil analisar algumas supostamente passagens bíblicas de suporte antes de mergulharmos na análise da doutrina de Calvino e das interpretações de providência dos calvinistas posteriores.

No capítulo 3, vimos que os calvinistas apelam para as histórias de José e da crucificação de Jesus para dar suporte à visão da soberania providencial de Deus como detalhada e meticulosa, incluindo o mal. Claro, nem todos os eruditos bíblicos ou interpretes deduzem essa doutrina a partir destas histórias e eventos. Por exemplo, não é possível que Deus tenha dito “o tornou em bem” no sentido de que ele poderia ter impedido os eventos, mas, antes, escolheu permití-los? A maioria dos calvinistas alegará aqui que há pouca diferença, isso se não houver nenhuma, entre essa visão e a que eles defendem, mas argumentarei que a diferença é grande.

Os calvinistas apelam para afirmações de profetas do Antigo Tes­tamento, tais como a já citada passagem de Amós 3.6. Mas há outras passagens, tais como Provérbios 16.33; Isaías 14.27; 43.13; 45.7. Todas

1. Ulrich Zwingli, On Providence and Other Essays, eds. Samuel Jackson and William John Hinke (Durham, NC: Labyrinth, 1983), 137.

2. Ibid., 157.

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estas passagens indicam a autoridade supervisora de Deus e domínio até aos detalhes. Por exemplo, Provérbios 16.33: “A sorte é lançada no colo, mas a decisão vem do Senhor” , enquanto que Isaías 45.7 diz: “Eu formo a luz e crio as trevas, promovo a paz e causo a desgraça; eu, o Senhor, faço todas estas coisas”. Dificilmente há qualquer necessidade de mais citações; estas duas passagens sozinhas parecem fornecer prova da forte visão da providência de Deus. Mais adiante neste capítulo, natural­mente, eu argumentarei que há interpretações alternativas que melhor expressam a soberania de Deus que não fazem de Deus o autor do mal.

Calvino continuou com sua doutrina da soberania de Deus sobre a história e a providência meticulosa de Deus de onde Zuínglio parou, em­bora ele não a tenha defendido a partir da filosofia, mas primariamente a partir das Escrituras (o que não é dizer que ele não foi influenciado pela filosofia!). Em uma vívida ilustração ele escreveu:

Imaginemos, por exemplo, um mercador que, havendo entrado em uma zona de mata com um grupo de homens de confiança, impru­dentemente se desgarre dos companheiros, em seu próprio divagar seja levado a um covil de salteadores, caia nas mãos dos ladrões, tenha o pescoço cortado. Sua morte fora não meramente antevista pelo olho de Deus, mas, além disso, é estabelecida por seu decreto. Ora, não se diz haver ele antevisto quanto se estenderia a vida de cada um; ao contrário, diz haver estabelecido e fixado os limites que não poderão ser ultrapassados [|ó 14.5].

Quanto, porém, o alcance de nossa mente apreende, tudo neste acontecimento parece acidental. Que pensará aqui o cristão? Provavel­mente isto: tudo quanto ocorreu em morte desse gênero era casual por sua natureza; contudo não terá dúvida de que a providência de Deus esteve a presidir, a fim de dirigir a seu termo essa contingencialidade3.

Calvino resume toda a doutrina da providência de Deus desta ma­neira: “vento algum jamais surge ou se desencadeia a não ser por de­terminação especial de Deus” 4. Em outros lugares, ele argumenta que

3. CALVINO, João. As Institutas: edição clássica, vol. 1, p. 209.

4. Ibid.. Vol. 1. (p. 206).

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o governo providencial de Deus da história não pode ser expresso por meios de permissão; Deus não simplesmente permite qualquer coisa, mas ordena e mais que certamente as efetua. Para Calvino, isto é visto mais claramente na queda de Adão, que foi preordenada por Deus. Caso haja qualquer picuinha acerca de quão forte era, para Calvino, a doutrina da providência, eu citarei esta passagem de suas Institutas:

Seja esta a síntese: uma vez se diz que a vontade de Deus é a causa de todas as coisas, a providência é estatuída como moderatriz em todos os planos e ações dos homens, de sorte que não apenas comprove sua eficiência nos eleitos, que são regidos pelo Espírito Santo, mas ainda obrigue os réprobos à obediência 5.

Como Calvino poderia se colocar de maneira mais direta e mais forte do que essa? Deus compeli os réprobos, os ímpios, para obedecer sua vontade. Em outras palavras, até mesmo o mal feito pelas pessoas per­versas é preordenado e tornado certo por Deus. Calvinistas posteriores, tais como Sproul, alegarão que o calvinismo não diz que Deus coage os ímpios para que façam atos malignos. Calvino parecia pensar que sim, ele até mesmo argumenta que Deus permanece imaculado pelo mal de tais pessoas, pois seus motivos são bons ao passo que os motivos destes ímpios são maus. (Claro, isso simplesmente levanta a questão dos motivos da origem do mal!)

Jonath an Edwards

As visões dos calvinistas posteriores da providência de Deus são, em grande parte, consistentes com a de Zuínglio e de Calvino. Em outras palavras, no geral, o calvinismo rígido de Zuínglio a Calvino, de Calvino a Edwards, de Edwards a Boettner, de Boettner a Sproul e de Sproul até o Piper, constitui determinismo divino, apesar das fortes objeções de alguns calvinistas à essa terminologia. Começamos com Jonathan Edwards.

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Edwards ensinou a doutrina mais forte possível do domínio de Deus. Para ele Deus não é apenas a realidade totalmente determinante; ele cria todo o mundo ex nihilo (a partir do nada) em todo momento e não trabalha por meio de causas secundárias6. Tudo, sem exceção, é direta e imediatamente causado por Deus, incluindo o mal. Edwards insistia que todas as coisas, incluindo o pecado e o mal, seguem de “uma prévia e infalível fixidez da futuridade do evento [significando todos os eventos]” , de forma que tudo acontece de acordo com uma “providência deter­minante universal” que impõe “algum tipo de necessidade de todos os eventos” 7. Edwards fecha o assunto:

Deus, em sua providência, de fato e decisivamente ordena todas as volições dos agentes morais, seja por influência positiva ou per­missão: e sendo permitido universalmente, que o que Deus faz no assunto das volições virtuosas do homem, quer seja mais ou menos, é por alguma influência positiva, e não por mera permissão, como na questão da volição pecaminosa 8.

Os leitores não devem se confundir com o uso do termo permissão por Edwards, pois tal deve ser entendido no contexto de suas afirmações citadas anteriormente acerca da “providência determinante” e a “necessidade de todos os eventos”. Claramente, por “permissão” Edwards apenas quer dizer que, no caso do mal. Deus não força ou coage as pessoas para pecar, mas ele o torna certo. Alguém pode se perguntar por que Edwards (e outros calvinistas) recua(m) e faz(em) uso de “permissão” quando sua (e a deles) explicação geral da providência de Deus exige algo mais direto e ativo?

Não apenas Edward de fato afirmou a soberania determinante e absoluta de Deus sobre todos os eventos no mundo, como ele também

6. Jonathan Edwards, The Great Christian Doctrine o f Original Sin, ed. Clyde A. Holbrook (New Haven, CT: Yale Univ. Press, 1970), 402.

7. Jonathan Edwards, Freedom o f the Will, in The Works of Jonathan Edwards (New Haven, CT: Yale Univ. Press, 1957), 1:431.

8. Ibid., 434.

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afirmou a necessidade das próprias decisões de Deus. Isso faz com que sua crença seja o que chamo de determinismo divino. Para ele, tudo o que acontece, até mesmo na própria mente e volição de Deus, é neces­sário. Para os que duvidam disso, considerem que Edwards afirmava “a necessidade de atos da vontade de Deus” 9. Claro, Edwards não queria dizer que alguma força fora de Deus ou até mesmo dentro de Deus coage a Deus a decidir e agir como ele o faz. Antes, “a determinação necessária

da vontade de Deus em todas as coisas, [é] pelo o que ele considera ser o melhor e mais apropriado” 10. Em outras palavras, “a vontade de Deus é determinada por sua própria sabedoria infinita e totalmente suficiente em tudo” ". O resultado inexorável disto deve ser que a criação do mun­do, por Deus, é necessária e não contingente. Ou seja, ela não é livre.

Alguns defensores de Edwards podem objetar que o teólogo puritano reivindicava que as ações de Deus são livres. De fato ele reivindicava isso. Mas como ele reconciliava estas coisas? Edwards argumentava que o livre-arbítrio apenas significa fazer o que está de acordo com ou motivo ou disposição mais forte. Para ele, como para a maioria dos calvinistas que desejam abraçar certo sentido de livre-arbítrio tanto em Deus quan­to nas criaturas, o livre-arbítrio não é ser capaz de fazer o contrário do que alguém faz (poder da escolha contrária), que é o sentido libertário do livre-arbítrio, mas apenas fazer o que alguém quer fazer mesmo se a

pessoa não puder fazer o contrário. De acordo com Edwards, até mesmo os desejos de alguém são sempre determinados por algo. O coração, a sede das disposições, determina os atos da vontade humana tão cer­tamente quanto a sabedoria divina determina suas decisões e ações.

Isso é o que os filósofos vieram a chamar de “compatibilismo” - crença de que o livre-arbítrio é compatível com o determinismo. Isto

9. Ibid., 395.

10. Ibid., 377.

11. Ibid., 380.

118

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provavelmente não é o que a maioria das pessoas querem dizer por livre-arbítrio, a habilidade de fazer o contrário do que alguém, de fato, faz. Mas de acordo com o compatibilismo, a única vez que alguém não

é livre é quando a pessoa está sendo forçada a fazer algo que ela não quer fazer. Neste sentido, então, a criação de Deus do mundo é “livre” porque é o que Deus queria fazer. Mas isso não quer dizer que Deus poderia ter feito o contrário.

Alguém precisa questionar a visão ortodoxa de Edwards. Toda a questão da ortodoxia cristã tradicionalmente afirmando a liberdade da criação é para garantir que ela esteja dentro da esfera da graça, e não da necessidade. Tudo o que é necessário não pode ser gracioso. Além do mais, se a criação de Deus do mundo foi necessária, então o mundo é, em certo sentido, parte de Deus - um aspecto da própria existência de Deus. Isso é conhecido como panenteísmo: a crença de que Deus e o mundo são realidades interdependentes. A maioria dos cristãos ortodoxos sempre considerou o pananteísmo uma heresia l2.

Não estou, na verdade, acusando Edwards de heresia; antes, estou acusando-o de inconsistência, pois ele claramente não tinha a intenção de fazer Deus, de qualquer forma, dependente do mundo. A questão é que suas reflexões especulativas acerca da soberania de Deus o levaram a conclusões com as quais ele provavelmente não estava confortável e pro­vavelmente não mantinha da mesma maneira em todo o tempo. Contudo, apesar das intenções de Edwards, sua forte doutrina da soberania - de­terminismo divino - é um terreno escorregadio que leva ao panenteísmo.

Outra questão que Edwards tem de lidar é o problema de relaciona­mento de Deus com o pecado e o mal. A sua forte doutrina da providência não leva inevitavelmente a Deus ser o autor do pecado e do mal? Edwar­ds estava claramente desconfortável com isso, mas, ao mesmo tempo,

12. Ver John W. Cooper, Panentheísm: The Other God of the Philosophers (Grand Rapids: Baker, 2006). Cooper explica bem porque o panenteísmo é considerado herético pelos padrões doutrinários ortodoxos e defende que a visão de Edwards da relação entre Deus e o mundo é panenteísta (77).

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ele admitiu isso em certo sentido. Primeiro, sua explicação de como Deus tornou a queda de Adão certa é que Deus reteve de Adão “aquelas influências, sem as quais a natureza será corrupta” , mas isso não faz de Deus o autor do pecado ,3. Para deixar o ponto mais claro, Edwards afirmou que “a primeira chegada ou existência daquela disposição má no coração de Adão, foi por permissão de Deus; que poderia ter impedido isso, se ele assim o quisesse, ao prover tais influências de seu Espírito, como teriam sido absolutamente eficazes para impedir a disposição má, que, na verdade, ele, de fato, reteve”14. Ainda que Deus tenha tornado certo a primeira disposição que deu origem a todas as outras, Edwards argumenta, Deus não é culpado. Apenas Adão foi culpado, pois suas intenções eram más. As intenções de Deus em tornar o pecado e o mal certos eram boas. “Ao desejar o mal Deus não faz o mal” l5.

Isso, de fato, inocenta a Deus, por assim dizer, de ser o autor do pecado e do mal? Edwards, por fim, concluiu:

Se por “autor do pecado” queremos dizer o permissor ou o não impossibilitador do pecado; e, ao mesmo tempo, um organizador do estado dos eventos, de tal maneira que, para fins e propósitos sábios, santos e mais que excelentes, aquele pecado, se permitido ou não impedido, mais que certa e infalivelmente acontecerá: eu digo, se isso for tudo o que se entende por ser autor do mal, eu não nego que Deus é o autor do mal '6.

Sugiro que a maioria das pessoas consideraria isso como sendo o autor do mal. Mas muitos calvinistas, percebendo que, para a maioria das pessoas “autor do mal” significa que Deus coagiu Adão a pecar contra sua vontade, rejeitam esta linguagem enquanto que concordam

13. Edwards, OriginalSin, 384.

14. Ibid., 393.

15. Edwards, Freedom ofthe Will, 411 - 12.

16. Ibid., 399.

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com Edwards. Nem Edwards e nem nenhum calvinista acredita que Deus tenha forçado Adão a pecar contra sua vontade, mas a linguagem simples dita que alguém é o “autor” de algo simplesmente por torná-lo certo. Assim sendo, eu argumento, o calvinismo, de fato, faz de Deus o autor do mal no sentido de que, de acordo com sua descrição da soberania de Deus, Deus tornou certo o pecado de Adão.

Minha questão aqui é simplesmente esta: quando os calvinistas negam que sua doutrina faz de Deus o “autor do pecado”, o que eles geralmente querem dizer é que Deus não coagiu Adão (ou ninguém) a pecar contra sua vontade. Todavia, eles devem admitir, juntamente com Edwards, que sua doutrina realmente faz de Deus o autor do pecado no sentido de que Deus tornou certo que Adão (e toda sua posteridade) pecaria.

R. C. Sproul

De maneira semelhante a Edwards, Sproul rejeita o rótulo “determi­nismo” para sua forte visão da soberania divina porque ele entende que “determinismo” quer dizer “força externa” l7. Ele admite, juntamente com Edwards e todos os outros calvinistas rígidos, que Deus determi­na todas as coisas, mas ele prefere não chamar essa “determinação” divina de “determinismo” '8. Podemos só nos perguntar que diferença isso realmente faz. Continuarei a chamar esta visão de determinismo divino seguindo a definição simples de “determinismo” (conforme dada em vários dicionários e enciclopédias), de que “todo evento se torna necessário por eventos e condições antecedentes” '9. Esse certamente é o caso com a crença de Edwards e de Sproul e da maioria dos outros calvinistas acerca da soberania de Deus.

17. SPROUL, R.C. Eleitos de Deus, Editora Cultura Cristã, 2002, p. 39-40.

18. SPROUL, R. C. O que é teologia reformada? São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p.l 63.

19. Ver Stanford Encyclopedia of Philosophy (http://plato.stanford.edu/).

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Vamos agora nos voltar para a descrição de Sproul da soberania provi­dencial de Deus. Sproul é bem conhecido por fazer afirmações um tanto quanto enfáticas e extremas acerca da doutrina calvinista. Por exemplo, em Eleitos de Deus, ele escreve que qualquer pessoa que não concorde com sua crença (conforme expressa na Confissão de Fé de Westminster) acerca da predestinação deve ser um “ateu convicto” 20. Para Sproul (e muitos outros calvinistas) a predestinação é mais do que um conceito acerca da soberania de Deus em decidir quem será salvo e quem não será salvo; ela também é um conceito acerca da “soberania total” de Deus em todas as cosias. No capítulo 3 eu citei a afirmação de Sproul que não pode haver uma única molécula sequer no universo que não esteja sob o controle de Deus. Ele é famoso por perguntar ao público se eles acreditam na soberania total de Deus, no sentido de que eu aqui, chamo de determinismo divino. Então ele pergunta quantos são ateus. As pessoas que não levantaram suas mãos em resposta à sua primeira pergunta, ele diz, deveriam levantar suas mãos na segunda pergunta. Sua conclusão, claro, é que “se Deus não é soberano, então ele não é Deus. Pertence a Deus como Deus ser soberano"21.

O que é estranho acerca disto é que em Eleitos de Deus, Sproul afirma que “eruditos e líderes cristãos” podem discordar acerca desta doutrina, mas então ele diz que qualquer um que não concordar com ele deve ser um ateu convicto. Ele não deveria se surpreender se alguns “eruditos e líderes cristãos” se ofendessem com essa sugestão!22 Muitos cristãos concordam com ele que a soberania de Deus é uma parte essencial da natureza de Deus sem concordar com sua interpretação dessa soberania.

20. SPROUL, R.C. Eleitos de Deus, Editora Cultura Cristã. 2002, p 16 A passagem da Confissão de Fé de Westminster referida por Sproul como exigindo concordância a fim de não ser um “ateu convicto" é que “Desde toda a eternidade. Deus, peio muito sábio e santo conselho da sua própria vontade, ordenou livre e inalterável tudo quanto acontece”.

21. SPROUL, R. C. O que é teologia reformada? São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 22.

22. SPROUL, R.C. Eleitos de Deus, Editora Cultura Cristã, 2002, p. 9-10,16.

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Então, qual é realmente a doutrina de Sproul da predestinação/pro­vidência? Obtemos uma forte dica em sua definição de predestinação: “Ela inclui tudo o que vem a acontecer no tempo e espaço” 23. Em outras palavras, a predestinação, em seu sentido mais amplo, é simplesmente outra palavra para a determinação de Deus de todos os eventos: provi­dência meticulosa. Ele afirma que tudo o que acontece é a vontade de Deus 24. Para concluir isso, ele escreve:

O movimento de cada molécula, as ações de cada planta, o cair de cada estrela, as escolhas de cada criatura volitiva, todos estes estão sujeitos à sua vontade soberana. Não há moléculas indisciplinadas correndo soltas no universo fora do controle do Criador. Se tal molécula existisse, ela poderia ser a mosca crítica no azeite eterno.25

Em outras palavras, “uma molécula indisciplinada poderia destruir todas as promessas que Deus já fez acerca do desfecho da história” 26. Sproul continua a fazer uma distinção entre os dois sentidos da vontade de Deus: a vontade decretiva de Deus e a vontade permissiva de Deus27. Tal distinção pode aliviar alguma ansiedade acerca do papel de Deus no mal, mas então ele tira com uma mão aquilo que ele deu com a outra: “o que Deus permite, ele decreta permitir” 28. Em outras palavras, a permissão de Deus é disposta e até mesmo permissão determinante: ela meramente reflete e promulga os decretos eternos de Deus. Assim, até mesmo o pecado jaz tanto dentro da vontade decretiva de Deus quanto da vontade permissiva de Deus. A última, não determina a primeira em nenhuma

23. SPROUL, R. C. O que é teologia reformada? São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 121.

24. Ibid . 147.

25. Ibid.

26. Ibid.

27. Ibid.

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forma ou caso contrário Deus não seria soberano. O que Deus permite, ele decretou permitir - incluindo o pecado. A forma como Sproul explica o relacionamento entre a vontade decretiva de Deus e a vontade permissiva de Deus tende a desmoronar as duas juntas. O espectro de um Deus que deseja o pecado e o mal ainda paira sobre ele.

A fim de obter um entendimento mais completo da doutrina do Sproul da soberania providencial de Deus, é útil olhar para sua visão de livre-arbítrio. Por um lado, diferente de alguns calvinistas, Sproul afirma que Adão e Eva caíram por seu próprio livre-arbítrio: “o calvinismo vê Adão pecando por seu próprio livre-arbítrio, e não por coação divina.”29. Ademais, sobre a queda, ele diz:

“Adão lançou-se no poço [da depravação e morte espiritual]. Em Adão, nós todos nos lançamos no poço. Deus não nos atirou dentro do poço” 30. Alguns dos leitores de Sproul são falsamente consolados por isso - como se isso aliviasse o problema da escolha soberana de Deus de que Adão pecaria. Mas isso não está claro de jeito algum.

É importante analisar mais atentamente o que Sproul quer dizer por “ livre-arbítrio”. Lá ele se volta ao compatibilismo de Edwards, no qual o “ livre-arbítrio” é simplesmente fazer o que você quer fazer mesmo se você não puder fazer o contrário. Assim como Edwards (em muitas formas, o mentor de Sproul), Sproul argumenta que “sempre escolhe­mos de acordo com a inclinação que é mais forte no momento” 31. Isso também seria verdadeiro para Adão, pois tanto Edwards quanto Sproul estão simplesmente explicando o que “ livre-arbítrio” sempre significa.

Sproul explica ainda mais: “Há um motivo para toda escolha que fazemos. Em um sentido limitado, toda escolha que fazemos é determinada”32.

Determinada pelo quê? Pelas nossas inclinações e motivos interiores.

29. SPROUL, R.C. Eleitos de Deus, Editora Cultura Cristã, 2002. p. 71.

30. Ibid., 72.

31. SPROUL, R. C. O que é teologia reformada? São Paulo: Cultura Cristã, 2009. p.113.

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Tudo o que alguém precisa fazer para ver que isso realmente não resolve o problema de Deus e o mal é voltar a pensar no primeiro pe­cado de Adão e para o motivo que o controlava e que, na verdade, o causou. Em outras palavras o que Sproul está dizendo é que o pecado de Adão estava predeterminado por sua disposição interior para pecar. Adão não poderia ter feito diferente do que ele fez. Sproul diz que isto não é determinismo porque ele define determinismo como “coerção por forças externas” , que, na verdade, não tem nada a ver com isso, como já observamos. Ele parece estar inventando essa definição arbi­trariamente para simplesmente evitar sua visão da história, incluindo a queda, de determinismo.

A questão para Sproul e para todos os calvinistas que usam esta abor­dagem é esta: de onde a má inclinação de Adão vinha? Para eles, ela não poderia vir do livre-arbítrio porque o livre-arbítrio é simplesmente agir sobre as inclinações de alguém. Posteriormente neste capítulo eu explorarei este dilema do calvinismo mais plenamente. Aqui eu quero simplesmente levantar o problema para as típicas explicações de Sproul e de outros calvinistas da queda da humanidade para o pecado e o mal e o envolvimento de Deus nisso. Uma dica do que está por vir: parece logicamente necessário, por esta descrição de livre-arbítrio e soberania de Deus, traçar a primeira inclinação do mal para Deus como sua fonte, que, claro, nenhum calvinista quer fazer!

Loraine Boettner

Agora eu deixo o Sproul e me volto para Boettner. O que Boettner disse acerca da providência soberana de Deus? Já citei suas fortes afirmações acerca da soberania de Deus. Aqui quero simplesmente acrescentar algo às explicações anteriores. De acordo com Boettner, a visão reformada da providência de Deus é que Deus “muito obviamente predeterminou cada evento que aconteceria... Até mesmo atos pecaminosos de homens

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estão inclusos neste plano” 33. Mas, assim como Sproul, Boettner quer dizer que Deus apenas permite os atos pecaminosos das pessoas; Ele não os causa. Entretanto, assim como Sproul, ele tira com uma mão aquilo que deu com a outra ao dizer isso:

Mesmo as ações pecaminosas de homens [incluindo o primeiro pecado de Adão] só podem ocorrer por sua [de Deus] permissão. E uma vez que ele permite, não relutantemente, mas desejosamente [voluntariamente], tudo o que vem a acontecer - incluindo as ações e o destino último dos homens - tais coisas devem estar, em certo sentido, de acordo com que ele desejou e planejou 34.

Em outras palavras, até mesmo o primeiro ato pecaminoso (e, por­tanto, a primeira inclinação para pecar) foi desejosamente planejada e pretendida por Deus, pois ele a desejou. Boettner insiste, entretanto, que Deus jamais peca ou até mesmo faz com que as pessoas pequem. Contudo, a fim de realizar seu propósito e plano, ele tornou certo o primeiro pecado. Como?

Tudo o que precisamos saber é que Deus governa Suas criaturas, que Seu controle sobre elas é tal que nenhuma violência é feita às suas naturezas e que Seu controle é consistente com Sua própria pureza e excelência. Deus apresenta de tal forma os estímulos exteriores que o homem age de acordo com sua própria natureza, contudo, faz exatamente o que Deus planeja para que ele faça 35.

Posteriormente neste capítulo eu explorarei isso mais a fundo e per­guntarei se isso, de fato, isenta Deus de ser o autor do pecado e do mal. Isso realmente é diferente de dizer que Deus determina o pecado e o mal e que ativamente os torna certos. A terminologia de mera permissão é, de fato, apropriada para esta descrição do papel de Deus no pecado e mal? Se Deus introduz às pessoas “estímulos exteriores” garantidos

33. Boettner, The Reformed Doctrine of Predestination, 24.

34. Ibid., 30.

35. Ibid., 38.

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para resultar em seus pecados, isso não faz de Deus o autor dos pecados deles? Se sim, como é que eles são responsáveis e Deus não é?

Paul Helm

Agora analisaremos Paul Hem, outra testemunha calvinista para a forte doutrina da providência que eu acredito que coloca o calvinismo em apuros ao inexoravelmente levar a “consequência lógica e necessária” de que Deus é o autor do pecado e do mal e até mesmo de todo o sofrimento inocente.

A obra de Helm, A Providência de Deus, é amplamente considerada um clássico contemporâneo do pensamento calvinista. Veja aqui como ele expressa a soberania de Deus em providência: “Não somente todo átomo e molécula, todo pensamento e desejo, é mantido em existência por Deus, mas cada curva e cada volta de tudo isso está debaixo do con­trole direto de Deus” 36. Então, “a providência de Deus é ‘refinada’, ela se estende à ocorrência de ações individuais e a cada aspecto de cada ação”37. Claro, Helm reconhece que para muitos de seus leitores esta forte visão da soberania de Deus irá promover ainda mais o debate do problema do mal. É Deus, então, o autor do pecado e do mal? O que dizer da bondade de Deus?

Este problema do mal e do papel de Deus nele torna-se ainda mais problemático quando Helm volta-se para descrever como Deus rege o mal no mundo:

Pois, de acordo com a visão "isenta de risco” [a visão de Helm da providência de Deus na qual Deus não se arrisca], Deus controla todos os eventos e também dá mandamentos morais que são desobede­cidos em alguns dos muitos eventos que ele controla. Por exemplo, ele ordena que homens e mulheres amem seu próximo enquanto ao mesmo tempo controla ações que são maliciosas e odiosas38.

36. HELM, Paul. A providência de Deus. São Paulo: Cultura Cristã, 2007. p. 19.

37. Ibid., 91.

38. Ibid., 117.

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De acordo com Helm, Deus tem duas vontades: “a que acontece” (a que ele decreta e torna certa) e “a que deve acontecer” (que ele ordena e que frequentemente vai contra o que ele decreta). Alguns calvinis­tas referem-se a estas vontades como “vontade decretiva” e “vontade preceptiva” de Deus. Em outras palavras, de acordo com esta visão da providência de Deus, Deus ordenou que Adão e Eva não comessem da árvore do conhecimento do bem e mal (vontade preceptiva) ao passo que ao mesmo tempo (ou desde toda a eternidade) decretou que eles comeriam da árvore. A questão crucial que é levantada é como Deus pode ser bom e não estar em conflito consigo mesmo? Deus garante que suas ordenanças morais serão desobedecidas. Como Deus pode fazer isso sem coagir as pessoas a pecar? E como ele faz isso sem ser responsável pelo pecado?

Nesta altura, Helm, assim como muitos calvinistas, voltam-se para a retenção de Deus da influência divina de maneira que as pessoas pecam naturalmente sem que Deus as faça pecar: “O que determina a ação [ex. a queda] na medida em que ela é má é a negação divina. Deus retém sua bondade ou graça, e em seguida o agente forma uma motivação ou razão moralmente deficiente e age de acordo com ela” 39.

Em outras palavras, Deus torna certo o mau sem que, ele mesmo, faça o mal. O mal, afinal de contas, está no motivo com a qual a ação preordenada é realizada pela criatura. O motivo do pecador é mal ao passo que o motivo de Deus em preordenar e tornar certo o mal é bom. O pecador está pecando porque, a partir de um motivo mal (ex. de ego­ísmo) ele desobedece a vontade preceptiva de Deus ainda que ele não faça o contrário porque Deus retém a provisão necessária para não pecar.

Isso suscita muitas perguntas acerca da bondade de Deus, responsa­bilidade humana e a fonte do primeiro motivo mal. Helm afirma que, apesar do envolvimento de Deus em tornar certo o mal, ele é um Deus

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perfeitamente bom de maneira que “a bondade de Deus deve ter alguma relação positiva com os tipos de ações humanas que consideramos boas. Caso contrário, por que atribuir bondade a Deus?40 Lidarei com os problemas inerentes a este relato de providência de Deus mais tarde neste capítulo. Por agora nos basta dizer que, em seu melhor cenário, tal relato é incoerente.

John Piper

E o influente John Piper - provavelmente o mentor mais importante do novo calvinismo entre a geração de jovens, incansáveis e reformados? O que ele diz acerca da soberania de Deus e providência, incluindo o mal? Ele segue Edwards e é muito parecido a Helm. Conforme explicado anterior­mente, Piper acredita que tudo, sem exceção, vem a acontecer de acordo com o plano e propósito preordenados por Deus e que Deus torna tudo isso certo sem que ele mesmo participe do mal: “De alguma maneira (que nós não podemos entender plenamente) Deus é capaz, sem ser culpado de “tentar”, de garantir que uma pessoa faça o que Deus ordena que ele faça ainda que isso envolva o mal” 41. Com Helm, Piper afirma duas vontades em Deus: “Deus decreta um estado das coisas [incluindo o mal] ao passo que também deseja e ensina que um estado de coisas diferentes deva acon­tecer” 42. Piper nega, em seu relato de providência, que Deus seja o autor do pecado e do mal ainda que ele, de fato, certifique-se de que as coisas que são contrárias as ordens de Deus venham a acontecer.

Cada um dos autores citados até aqui nesta seção em algum lugar diz que tudo o que Deus preordena e torna certo, incluindo o pecado e o mal, glorifica a Deus. Boettner é quem diz de maneira mais sucinta: “Deus tem um propósito definido na permissão [!] de todo pecado individual,

40. Ibid., 149.

41. John Piper, “Are There Two Wills in God,” in Still Sovereign: Contemporary Perspectives on Election, Foreknowledge, and Grace, eds., Thomas R. Schreiner and Bruce Ware (Grand Rapids: Baker, 2000), 123.

42. Ibid.. 109.

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tendo o ordenado [!] ‘para sua própria glória’”43. Até mesmo as obras de Satanás são preordenadas e controladas por Deus para sua glória!44.

Vamos resumir a típica visão do calvinismo rígido da soberania de Deus. Enquanto possa haver nuances de diferença em cada relato, é seguro dizer que há características comuns compartilhadas muito abrangentes de ma­neira que uma descrição geral possa ser oferecida. No calvinismo rígido a soberania de Deus em sua providência significa que tudo, até os mínimos detalhes da história e vidas individuais, incluindo o pensamento e ações das pessoas, são preordenados e tornado certos por Deus. Até mesmo ações más e pensamentos maus são planejados e efetivados de sorte que Deus “garante” que eles aconteçam para realizar sua vontade. Nada, de jeito ne­nhum, seja o que for, está fora do plano e destino predestinadores de Deus.

Contudo, Deus não é manchado pelo mal que as criaturas fazem ainda que ele o torne certo, pois seus motivos são sempre bons, até mesmo em efetivar o mal que ele proíbe. E o plano final de Deus é bom de tal sorte que o mal serve seu propósito. “Deus deseja corretamente estas coisas que os homens fazem impiamente” 45. Todavia, as criaturas são unicamente responsáveis pelo mal que cometem46. Deus torna o pecado e o mal certos não por coagir ou forçar as pessoas para que os cometam, mas ao retirar ou reter essa influência divina que eles precisariam para não pecar e não fazer o mal. Tudo o que acontece, incluindo o pecado, é ordenado por Deus para sua própria glória.

O PROBLEMA DA REPUTAÇÃO DE DEUS

Sproul afirma que “qualquer distorção do caráter de Deus envenena o restante de nossa teologia” 47. De fato, os cristãos não calvinistas concor­

43. Boettner, The Reformed Doctrine of Predestination, 251.

44. Ibid., 243.

45. Ibid., 229.

46. Craig R. Brown, The Five Dilemmas of Calvinism (Orlando, FL: Ligonier, 2007), 45 - 58.

47. SPROUL, R. C. O que é teologia reformada? São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p.33.

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dam completamente, mas eles consideram o relato típico do calvinismo rígido da soberania de Deus como inexoravelmente conduzindo a uma distorção do caráter de Deus. Claro, nenhum calvinista admite isso, mas essa não é a questão. Os calvinistas frequentemente acusam os arminianos e outros não calvinistas de não irem até o final das “consequências lógicas e necessárias” de suas crenças, então, é justo que os arminianos façam o mesmo com os calvinistas. Falando em termos gerais, com poucas exce­ções, os calvinistas afirmam a perfeita bondade e o amor de Deus, mas a crença calvinista na providência meticulosa e na soberania totalmente determinante e absoluta (determinismo) minimiza o que eles dizem. Eles parecem querer ficar com o bolo intacto e, ao mesmo tempo, comê-lo.

Antes de mergulharmos em minha crítica ao relato calvinista da so­berania de Deus, quero afirmar de maneira clara e inequívoca que todos os cristãos conservadores, incluindo os não calvinistas, tais como os ar­minianos, também afirmam a soberania de Deus. Às vezes os calvinistas inserem ilegalmente sua própria definição de soberania no sentido da própria palavra de maneira que todos os que não concordem com seu determinismo divino não possam acreditar na soberania divina 48. Eu já demonstrei que os arminianos acreditam na soberania de Deus, e, mais uma vez, eu aponto aos leitores o livro Teologia Arminiana: Mitos e Realidades. Os não calvinistas levam a vontade permissiva de Deus mais a sério do que os calvinistas e explicam histórias bíblicas, tais como a de José e seus irmãos (Gn. 50) e a crucificação de Jesus desta forma - Deus previu e permitiu que pessoas pecaminosas fizessem tais coisas, pois ele viu o bem que poderia realizar através de tais maldades 49. Mas Deus, de forma alguma, preordenou ou as tornou certas.

48. Ver, por exemplo, Brown, The Five Dilemmas of Calvinism, 43 - 44.

49. Esta frase não tem por intenção ser uma explicação exaustiva da existência do pecado e do mal no mundo de Deus; aqui estou simplesmente lidando com duas histórias bíblicas que os calvinistas muito frequentemente fazem uso para provar sua visão da soberania de Deus até nos atos de pessoas pecadoras. Eu afirmo, juntamente com a maioria dos não calvinistas, que Deus também simplesmente permite o pecado a fim de preservar o livre-arbítrio das pessoas, pois Deus não quer ter autômatos, mas agentes moralmente livres que podem livremente escolher amar a Deus ou não amá-lo, ou servir a Deus ou não servi-lo.

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Alguém pode se perguntar como Deus poderia estar certo que tais coisas aconteceriam. Deus conhece os corações das pessoas e pode prever que, dadas certas circunstâncias previstas, eles farão coisas peca­minosas. Deus não precisa manipular as coisas; ele pode simplesmente prevê-las de maneira infalível. Os calvinistas zombarão disso, mas a forma como os calvinistas lidam com o envolvimento de Deus suscita problemas maiores que eles precisam enfrentar do que se deixassem a questão sem solução.

Resumindo, o relato calvinista da soberania de Deus apresentado anteriormente neste capítulo inevitavelmente faz de Deus o autor do pecado, mal e do sofrimento inocente (tais como os das crianças do Ho­locausto) e, desse modo, impugna a integridade o caráter de Deus como bondoso e amoroso. O Deus deste calvinismo (em oposição, digamos, a teologia reformada revisionista) é, em seu melhor cenário, moralmente ambíguo e, no seu pior cenário, um monstro moral dificilmente de ser distinto do diabo. Lembre, de acordo este relato da soberania de Deus e providência, até mesmo o diabo está apenas fazendo as obras que lhe

foram dadas por Deus para que ele as fizesse. Isso, também, como todo o resto, foi preordenado, planejado, desejado por Deus e tornado certo por Deus para sua glória. Só posso concordar de todo o coração com o filósofo evangélico Jerry Walls que diz: “O calvinista deve sacrificar uma clara noção da bondade de Deus a fim de manter sua visão dos decretos soberanos de Deus” 50. Acerca da reivindicação calvinista de que até mesmo o mal é desejado e tornado certo por Deus, Walls corre­tamente diz: “Neste ponto a ideia de bondade, conforme a conhecemos, simplesmente perde sua forma” 51.

Deixe-me ser extremamente claro que sejam lá quais forem as obje­ções que Sproul e outros possam levantar, o relato calvinista da soberania

50. Jerry Walls, “The Free Will Defense, Calvinism, Wesley, and the Goodness of God,” Christian Scholar’s Review 13/1 (1983): 29.

51. Ibid., 32.

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de Deus é determinismo divino. Nenhuma quantidade de cavilação pode resolver a questão. Afirmar que tudo o que acontece, até os mínimos detalhes, incluindo até mesmo os próprios pensamentos e ações de Deus, são determinados, é por definição, afirmar o determinismo. Mesmo se Sproul não seguisse Edwards em argumentar que os próprios pensa­mentos e ações de Deus são determinados (que, dada sua concordância com a ideia compatibilista de Edwards de livre-arbítrio, ele parece ter), ele enfaticamente afirma que tudo no mundo é determinado por Deus.

Todos os calvinistas citados acima, ás vezes, recuam e utilizam a linguagem de permissão quando falam da soberania de Deus sobre o pecado e o mal, mas uma análise rigorosa do que eles querem dizer revela que a ideia deles da permissão de Deus é diferente do que uma simples permissão. É permissão desejosa [voluntária] e até mesmo determinante. Lembre-se de que Deus permite a queda de Adão, mas que também a torna certa, pois a queda está em sua vontade e propósito ao reter ou retirar o poder moral que faria com Adão não precisasse ter de pecar.

De fato, esta permissão é esquisita. Quem acreditaria que um professor, que retém uma informação necessária para que os alunos sejam aprovados em um curso, simplesmente tenha permitido que eles fossem reprovados? E se esse professor, quando convocado pelos pais e oficiais da escola, dissesse: “Eu não fiz com que fossem reprovados. Eles mesmos é que se reprovaram”. Alguém aceitaria essa explicação ou acusaria o professor de meramente permitir que os alunos fossem reprovados e, ao mesmo tempo, também de ter causado a reprovação? E se o professor argumentasse que ele planejou e tornou a reprovação de seus alunos certa por um bom moti­vo - para manter os padrões acadêmicos e mostrar o quão bom professor ele é ao demonstrar quão necessário sua informação é para que os alunos passem? Estas admissões não aprofundariam ainda mais as convicções de que este professor está moral e profissionalmente errado?

Muitos críticos do calvinismo, talvez a maioria, ficam extremamente pasmados com o determinismo divino calvinista. Há muitas razões, mas

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a primeira e mais importante é que ele faz com que Deus seja moral­mente impuro, se não repugnante.

Um dia, no final de uma aula que tratava da doutrina calvinista da soberania de Deus, um aluno me fez uma pergunta que eu havia adiado sua consideração. Ele indagou: “Se te fosse revelado de uma maneira que você não pudesse questionar ou negar que o verdadeiro Deus, na

verdade, é o que o calvinismo diz e que domina como o calvinismo afirma, ainda assim você o adoraria?” Sabia a única resposta possível, sem pestanejar, ainda que soubesse que chocaria muitas pessoas. Eu disse não, eu não adoraria, pois eu não conseguiria. Tal Deus seria um monstro moral. Claro, eu percebo que os calvinistas não pensam que sua visão da soberania de Deus o torna em um monstro moral, mas eu só posso concluir que eles não levaram o calvinismo à sua conclusão lógica ou até mesmo pensaram seriamente o bastante nas coisas que eles dizem acerca de Deus e do mal e do sofrimento inocente no mundo.

Talvez ninguém tenha uma postura mais forte contra a doutrina calvinista da providência de Deus do que o teólogo David Bentley Hart, que examinou o papel de Deus no sofrimento inocente em The Doors ofthe Sea:Where Was

God in the Tsunami?52 Nesta obra ela chama a visão adotada pelos calvinistas rígidos de “fatalismo teológico” e diz que as pessoas que mantém essa visão “difamam o amor e a bondade de Deus em razão de uma fascinação servil e doentia com sua ‘soberania medonha’”53. No livro, ele diz:

Se, de fato, houvesse um Deus cuja natureza verdadeira - cuja justiça ou soberania - fosse revelada na morte de uma criança ou no abandono de uma alma ou um inferno predestinado, então não seria uma grande transgressão pensar nele como uma espécie de demiurgo malevolente ou desprezível, e de odiá-lo e de negá-lo adoração e de buscar um Deus melhor que ele” 54.

52. David Bentley Hart, The Doors ofthe Sea: Where Was God in the Tsunami? (Grand Rapids: Eerdmans, 2005).

53. Ibid., 89.

54. Ibid., 91.

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Considero útil citar Hart com certa extensão conforme ele expressa meus sentimentos e os sentimentos da maioria dos não calvinistas acerca do determinismo divino do calvinismo, incluindo o pecado, o mal e o sofrimento inocente, de maneira tão clara e corajosa:

Alguém precisa considerar o preço no qual este conforto [a saber, de que o orador calvinista que pregou “Deus matou meu filho”] foi comprado: ele exige que acreditemos e que amemos um Deus cujos fins bondosos serão realizados não apenas apesar de - mas totalmente por forma de - toda crueldade, cada miséria fortuita, cada catástrofe, cada traição, cada pecado que o mundo já conheceu, ela exige que acreditemos na necessidade espiritual eterna de uma criança morren­do uma morte agonizante de difteria, de uma jovem mãe devastada pelo câncer, de dezenas de milhares de Asiáticos engolidos em um instante pelo mar, de milhões assassinados em campos de exter­mínio e campos de trabalhos forçados [gulags] e fomes forçadas (e assim por diante). De fato é uma coisa estranha buscar a paz em um universo tornado moralmente inteligível á custo de um Deus tornado moralmente repugnante 55.

Com grande relutância, pois sei que isso pode ofender profundamente alguns calvinistas, eu só posso dizer amém!

Sem dúvida, alguns calvinistas objetarão e dirão que Deus apenas per­

mite o pecado e o mal e o sofrimento inocente: ele, de fato, não os causa. E ele os permite sem culpa, sem participar do próprio pecado e do mal. A resposta para esta objeção à crítica devastadora de Hart deveria ser óbvia a partir das citações de calvinistas fornecidas acima. Os pensadores evan­gélicos Jerry Walls ejoseph Dongell corretamente enfatizam em Whyl Am

Nota Calvinist que a linguagem frequentemente utilizada depermissão “não cai bem com o calvinismo sério”56, ainda que alguns calvinistas, tais como Sproul e Helm, recuam e fazem uso dela para evitar qualquer implicação de que Deus seja a causa do pecado, mal ou o sofrimento inocente.

55. Ibid., 99. '

56. Jerry Walls and Joseph Dongell, Why I Am Not a Calvinist (Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 2004), 125.

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Walls e Dongell corretamente enfatizam que o próprio Calvino rejei­tava essa linguagem de permissão de Deus como inapropriada para a soberania de Deus 57. É verdade, alguns calvinistas utilizam esta lingua­gem, mas “se Deus apenas permite certas coisas sem especificamente as causar, é difícil ver como isso se encaixaria com a reivindicação calvinista de determinismo todo abrangente” 58 (O filósofo Walls define determinismo como “a visão de que todo evento deve acontecer exata­mente como aconteceu em razão de condições prévias”59)

De acordo com Walls e Dungell e muitos outros críticos meticulosos do calvinismo, uma profunda incoerência jaz no cerne da afirmação calvinista de soberania divina exaustiva, determinismo divino e mera permissão do mal: “Para um determinista - e esta é uma questão cru­cial - nenhum evento pode ser visto em isolamento a partir dos eventos que o causam. Quando mantemos isso em mente, é difícil ver como os calvinistas podem falar de quaisquer eventos ou escolhas como sendo permitidos” 60 Eles pegam a alegação de Sproul de que o mal se origina do caráter mal feito de disposições más. Esta é a tentativa de Sproul (e de outros calvinistas) de impedir fazer de Deus o autor do mal porque é dito que Deus preordena e torna certo certas ações ao passo que o mal deles flui dos desejos pecaminosos dos atores finitos. O motivo de Deus na preordenação e no ato de tornar certo o pecado é moralmente puro, e ele não coage ninguém a pecar. Assim sendo, diz-se que Deus meramente permite o pecado e a ação má ao passo que ao mesmo tempo Ele o torna certo.

Walls e Dungell corretamente questionam a incoerência deste relato do papel de Deus no mal, pois a questão inevitavelmente surge: De

57. Ibid., 126.

58. ibid.

59. Ibid., 98 - 99.

60. Ibid., 129.

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onde vêm a disposição má e os desejos maus da criatura? Aqui está um dos calcanhares de Aquiles do calvinismo ao fazer uso de Faraó como estudo de caso (pois Sproul culpa as más ações de Faraó como resultado de seu caráter mau e não em Deus que as preordenou). Walls e Dungell enfatizam que “Faraó não se tornou a pessoa que ele era em um vá­cuo. Antes, o caráter dele foi formado por uma longa série de eventos e escolhas, sendo que todas as escolhas e eventos foram determinados por Deus (de acordo com o calvinismo)”61. Em outras palavras, para ser consistente, o calvinismo deve dizer que até mesmo o caráter mal de Faraó, no final das contas, vem de Deus. (Imagine um universo em que apenas Deus e a primeira criatura existem. De onde o primeiro impulso mal vem, se não do livre-arbítrio da criatura, que o calvinismo nega, exceto no sentido compatibilista, ou de Deus?

Walls e Dongell, então, perguntam: “Qual é o sentido, então, de dizer que Deus permitiu as ações de Faraó, dado este cenário” do papel de Deus em tornar tudo certo, sem exceção? 62 Eles ressaltam que “a noção de permissão perde todo o significado importante em uma estrutura calvinista. Portanto, não é de se surpreender que o próprio Calvino es­tivesse duvidoso da ideia e que advertiu contra o uso dela” 63. Por fim, Walls e Dungel resumem todo o problema de maneira concisa e vigorosa: “o calvinismo enfrenta problemas para descrever o pecado e o mal de maneira que seja moralmente plausível. Pois se Deus determina tudo que acontece, então é difícil entender por que há tanto pecado e mal no mundo e por que Deus não é responsável por isso” M.

Apelar, então, para a permissão de Deus do pecado e do mal não se enquadra com a forte doutrina do calvinismo rígido da soberania de Deus.

61. ibid., 130.

62. ibid., 131.

63. Ibid., 132.

64. Ibid., 133.

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Reconhecidamente, muitos calvinistas, de fato, apelam para a permissão, mas isso não torna melhor as outras coisas que dizem do plano e ação totalmente determinante de Deus em tornar tudo, sem exceção, certo.

Alguns calvinistas defendem a bondade de Deus embasada no que é chamada na teodiceia de “bem maior”. (Teodiceia é qualquer tentativa teológica ou filosófica para justificar as ações de Deus em face do mal). Na verdade, até onde posso dizer, todos os calvinistas incorporam algu­mas versões de defesa do bem maior da bondade de Deus em face do pecado e do mal em suas doutrinas da providência. Walls e Dungell se referem especificamente a Paul Helm. O problema, eles enfatizam (e eu diria outro calcanhar de Aquiles do calvinismo), é a crença na decisão divina de reprovar muitas pessoas para o inferno ao soberanamente “ ignorá-los” ao passo que escolhe salvar alguns. Em qual sentido pode­-se dizer que o inferno serve a um bem maior? Qual bem? Falarei mais sobre isso no capítulo 5, que lida com a eleição incondicional.

Gostaria de fazer uma pausa aqui e de deixar algo claro. Se o calvi­nismo rígido estiver dizendo qualquer coisa diferente em sua doutrina da providência, é que Deus intencionalmente planeja e torna certo e controla tudo sem exceção. Falar de Deus como meramente permitindo o pecado e o mal e o sofrimento inocente fica em contraste extremo com sua forte doutrina da providência. Se for lógico para os calvinistas dizer que Deus permite ou concede o mal, eles só podem querer dizer isso em um sentido altamente atenuado e incomum de “permitir” e “conceder” - um sentido que está fora da categoria de linguagem da maioria das pessoas. Dizendo de maneira direta, mas clara, de acordo com o calvinismo rígido, Deus quer o pecado, o mal e que o sofrimento inocente aconteçam ainda que, como alguns calvinistas tal como John Piper diz, que isto machuque a Deus. E ele quer que estas coisas acon­teçam de maneira causal; ele as torna certas.

Vamos examinar um estudo de caso que a maioria dos calvinistas fica relutante em lidar. Vejo que a maioria de seus estudos de caso da

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soberania de Deus é acerca da permissão misericordiosa de Deus de sofrimentos na vida dos cristãos para deixá-los mais fortes. Veja, por exemplo, o livro O Sorriso Escondido de Deus,65, de autoria do Piper, em que ele explica como a intensa aflição ajudou a fortalecer as vidas espirituais de heróis cristãos John Bunyan, William Cowper e David Brainerd. Mas o que acontece se, nos desviarmos deste tipo de aflição disciplinar que Paulo, no Novo Testamento, claramente diz que Deus realmente traz para as vidas dos cristãos para o próprio bem deles e para sua glória e nos voltarmos para dois outros tipos de aflição: o intenso sofrimento de uma criança morrendo de câncer e o sequestro, estupro e morte de uma criança.

Se o calvinismo rígido estiver certo, não temos escolha a não ser atribuir estas aflições terríveis á Deus tanto quanto atribuímos as aflições de Bunyan, Cowper e de Brainerd à Deus. Não há como escapar disso, dado o que os calvinistas dizem acerca da soberania do “controle preci­so e meticuloso” de Deus que controla cada curva e cada volta de todo átomo e pensamento. De acordo com os calvinistas os sofrimentos de uma criança não estão isentos [de serem atribuídos à Deus], ainda que eles raramente toquem no assunto.

Então, volte comigo para o incidente previamente mencionado onde eu disse que visitei a amiga de minha filha no hospital. No corredor, não muito distante, pude ouvir uma criança pequena, talvez de dois ou três anos de idade, gritando em agonia entre tosses horríveis e ânsias de vômito. A pobre criança estava sendo segurada por alguém que falava de maneira calma e suave com ela enquanto ela tossia incontrolavelmente e então gritava mais um pouco. Não era de forma alguma uma birra normal ou costumeira de crianças ou um grito de desconforto. Jamais ouvi algo igual àquilo antes e desde aquele evento, até mesmo na TV. Meu pensamento constante era: “Por que alguém não faz algo para aliviar

65. PIPER, John. O Sorriso Escondido de Deus. Traduzido por Augustus Nicodemus. São Paulo: Shedd Publicações, 2002.

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o sofrimento daquela criança?” Eu queria correr pelo corredor e ver se poderia ajudar, mas posso dizer que havia muitas pessoas ao redor da­quela criança naquela sala. O que eu ouvi me assombra até hoje. Parece que a criança estava possivelmente morrendo uma morte agonizante.

Se o calvinismo for verdadeiro, Deus náo apenas planejou e ordenou, mas também tornou certo aquele sofrimento horrível daquela pequena criança. Ele não apenas planejou e ordenou e tornou certa a doença da criança, mas também a agonia resultante. Não vai funcionar responder que Deus sofre com ela, como Piper diz. Em The Pleasures of God Piper oferece seu próprio estudo de caso da soberania de Deus na tragédia. Ele conta, com certos detalhes, acerca da morte de sua mãe em um terrível acidente de carro. (Ele explica o fato de que ela sofreu pouco, mas e se ela tivesse sofrido igual àquela criança que eu ouvi no hospital?) Piper faz uso da morte de sua mãe para ilustrar como tudo o que acontece agrada a Deus, mesmo se isso o entristecer 66. Deus, ele assegura, planejou e garantiu que o acidente de carro de sua mãe e a morte dela aconteceriam para a sua glória. Mas como esse evento torna Deus menos monstruoso ao dizer que Deus planeja, ordena e torna certo a agonia de uma criança moribunda, mas que ele se entristece? Piper diz que tudo na criação, incluindo o pecado, mal e o sofrimento, é uma expressão da glória de Deus 67. Ele diz que Deus “ama ser reconhecido mundialmente” 68 e que faz tudo para fazer seu poderoso poder conhecido 69.

Em The Doors ofthe Sea o teólogo Hart fala sobre um homem de Sri Lanka de enorme força física cujos cinco filhos foram mortos pelo tsunami asiático de 2004. O homem foi apresentado em um artigo no New York

Times. Ele foi incapaz de impedir seus filhos de perecer e, conforme ele recontava suas fúteis tentativas, ele está “completamente dominado por

66. John Piper, The Pleasures of God (Portland, OR: Multnomah, 1991), 67 - 69.

67. Ibid., 89.

68. Ibid., 102.

69. Ibid., 108.

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seu próprio choro” 70. Então Hart escreve: “Só um cretino moral... teria tentado amenizar a angústia dele ao garanti-lo que seus filhos morreram como resultado de conselhos eternos, inescrutáveis e justos de Deus e que, na verdade, suas mortes haviam misteriosamente servido aos propósitos de Deus na história” 71. Claro, a maioria dos calvinistas aconselharia seus seguidores a não dizer tais coisas em tais momentos para tais pessoas. Todavia, Hart reflete que “se consideramos vergonhosamente tolo e cruel dizer tais coisas no momento quando a tristeza de alguém é mais real e irresistivelmente dolorosa, então não devemos dizer tais coisas jamais” 72.

Acompanhe comigo agora o segundo estudo de caso imaginário (mas frequentemente verdadeiro) do sofrimento inocente. Este aqui envolve o mal moral. Imagine uma menininha sendo sequestrada por um maníaco sexual vil que a coloca em seu carro e que se locomove da vizinhança e vai até uma floresta isolada ás margens de um lago. Apesar do choro e do protesto da menina, ele a leva até a margem do rio onde ele a estupra, a estrangula e lança seu corpo no rio. (Isso não é simplesmente imaginário; é embasado em uma história verídica que vi em um programa televisivo chamado Cold Case Files [Arquivo Morto])

Calvino nos oferece o caso de um mercador que, de maneira tola, se afasta de seus companheiros e acidentalmente chega a um covil de salteadores e é roubado e assassinado. Conforme citado anteriormente, ele diz que este evento, como todos os eventos, não foi apenas previsto e permitido por Deus, mas, na verdade, causado e governado pelo plano secreto de Deus. Em lugar nenhum ele sugere ou permite que esta seja uma exceção à soberania de Deus; antes, ele deixa claro que é uma ilus­tração de como Deus trabalha todas as coisas que são sempre “dirigidas pela mão sempre presente de Deus” 75. Lemos acerca desse mercador tolo

70. Hart, The Doors of the Sea, 99.

71. Ibid., 100.

72. Ibid.

73. CALVINO, João. As Institutas: edição clássica, vol. 1, p. 200

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ou de um evento semelhante hoje e balançamos nossas cabeças e dizemos: “Sim, posso ver Deus preordenando isso. Que homem tolo. E Deus poderia facilmente ter uma boa razão para causar este acontecimento”. Mas se Calvino estiver certo (e se os calvinistas rígidos tais como os que citamos acima estiverem certos), não é apenas a morte do mercador tolo que é tornada certa por Deus; também o é o sequestro, o estupro e o assassinato da garotinha, tudo isso foi “dirigido pela mão sempre presente de Deus”. Observe que este evento não foi um desastre excêntrico de natureza ou resultado da estupidez de alguém. Foi puramente mal. Mas se podemos pegar a ilustração de Calvino do mercador assassinado ou a ilustração bem real da garotinha, de acordo com a visão calvinista da soberania de Deus ambas são idênticas no sentido de que Deus a planejou, ordenou, governou e as tornou certo. Hart está certo que isso inexoravelmente faz Deus “o arquiteto secreto do mal”74.

Mas ainda pior, de acordo com Piper, isto faz com que Deus, por trás de toda “providência carrancuda” esconda uma “face sorridente”. Em O Sorriso Escondido de Deus, ele cita o hino “Deus Trabalha de Maneira

Misteriosa”, escrito por um compositor calvinista do século XVIII, William Cowper, com aprovação: “Não julgue o Senhor com débil entendimento, mas confie nele por sua graça; por trás de uma providência carrancuda ele oculta uma face sorridente” 75. Isso fica muito bem quando se fala das aflições que Deus traz para as vidas de seus heróis para fazer deles cristãos mais fortes. Mas e quando isso se aplica igualmente, como deve ser se Piper estiver correto acerca da providência de Deus, a cena de um maníaco sexual estuprando uma garotinha, depois a estrangulando e a jogando em um rio? Não vai dar para escapar da dificuldade ao dizer que em tais casos Deus meramente permite o pecado e o mal e o sofrimento inocente. Se o calvinismo estiver certo, Deus também aprova a ação do

74. Hart, The Doors of the Sea, 101.

75. PIPER, John. O Sorriso Escondido de Deus. Traduzido por Augustus Nicodemus São Paulo: Shedd Publicações, 2002, p.25.

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maníaco sexual e torna a ação certa ainda que ele se entristeça com o caso. Que tipo de Deus é esse?

Piper e outros calvinistas falam muito do grande renome e reputação de Deus. O que muitos de seus ouvintes e seguidores não conseguem perceber é que a descrição da soberania de Deus dos calvinistas torna a reputação de Deus dúbia, no seu melhor - a menos que, claro, que tudo que alguém queira dizer por reputação de Deus seja poder. Mas é isso é realmente o que queremos dizer com reputação de Deus? Não se trata mais de uma questão de seu caráter como bom? Como observado anteriormente, Helm diz que a bondade de Deus não pode ser tão dife­rente de nossas mais elevadas e boas ideias de bondade, caso contrário o sentido de bondade seria totalmente perdido. Mas não é o que acon­teceu aqui - com as ideias de Piper e ideias semelhantes de calvinistas do papel de Deus no mal e sofrimento inocente? Penso que sim.

Quero registrar o fato de que alguns dentro da comunidade reformada concordam com esta avaliação da doutrina do calvinismo rígido da so­berania de Deus. James Daane, entre outros, critica severamente o que ele chama de “teologia decretai” (que é o que chamo de determinismo divino) por falhar em levar o mal a sério. Extraindo as consequências lógicas e necessárias da explicação desta teologia acerca do papel de Deus no pecado e no mal, Daane diz: “Com o olho da fé o teólogo de­cretai pode olhar para uma humanidade sangrando e partida, para um mundo em guerra consigo mesmo, e ver apenas beleza e paz"76.

76. Daane, The Freedom o/Cod, 81. Claro, os calvinistas frequentemente usam passagens bíblicas que parecem retratar Deus como um ser monstruoso. Já citei algumas destas passagens veterotestamentárias próximas ao início desse livro. Daane e a maioria dos críticos do calvinismo acreditam que o caráter de Deus é perfeitamente revelado em Jesus Cristo e que devemos interpretar outras descrições de Deus à luz disto. Jesus se lamentou, de maneira genuína, em relaçáo ao pecado e ao mal e buscou claramente aliviar o sofrimento. Os calvinistas geralmente acusam os não calvinistas de náo levar a Bíblia a sério o bastante. O que querem dizer é que eles levam os “textos de terror” do Antigo Testamento mais a sério do que levam a Jesus! Pelo menos é desta maneira que a maioria dos calvinistas veem a questão.

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A LIBERDADE DE DEUS E A RESPONSABILIDADE HUMANA

Pelo menos dois outros problemas surgem diretamente do relato do calvinismo rígido da soberania de Deus. Náo apenas a reputação de Deus como boa é impugnada, mas também a liberdade de Deus em relação á criação e a responsabilidade humana para o mal são colocadas em dúvida.

Já toquei no problema da liberdade de Deus. Ela aparecerá mais uma vez em todo este livro porque isso é um assunto no cerne do debate sobre o calvinismo. Até mesmo alguns teólogos reformados acreditam que o calvinismo rígido clássico de maneira eficaz, se não inadvertidamente, minimiza a liberdade de Deus - que é altamente irônico, pois todos os calvinistas reivindicam que sua visão de Deus é projetada para proteger a transcendência de Deus, incluindo sua liberdade.

Muitos calvinistas argumentam que só o calvinismo protege Deus de ser feito dependente das criaturas. Boettner, por exemplo, defende que o calvinismo trata-se da absoluta liberdade de Deus de ser condi­cionado por qualquer pessoa ou qualquer coisa fora de si mesmo. Na verdade, para Boettner, todo o esquema do calvinismo, embora apoiado pela Escritura, pode ser derivado da ideia da eternidade de Deus. Assim sendo, quando Deus criou o mundo ele o fez com “perfeita liberdade”77. Helm também se apoia na ideia da transcendência de Deus ou total alteridade para dizer que as criaturas não podem afetar a vontade divi­na. Deus é totalmente livre do condicionamento humano ou qualquer outro: “Nenhuma decisão humana pode mudar a vontade divina sobre qualquer assunto” 78. Sproul escreve acerca da autossuficiência de Deus como absolutamente crucial à deidade de Deus e deixa claro por isso que Deus é livre de qualquer dependência de qualquer coisa fora de si mesmo para qualquer coisa que ele é ou faça 79.

77. Boettner, The Reformed Doctrine of Predestination, 24.

78. HELM, Paul. A providência de Deus. São Paulo: Cultura Cristã, 2007. p. 122.

79. SPROUL, R. C. O que é teologia reformada? São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 30-31.

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Estas ideias de Deus não são exclusivas do calvinismo; pois em sua maioria, elas são ideias comuns no que é chamado de “teísmo cristão clássico” - uma figura de Deus desenvolvida através dos séculos, mas principalmente na igreja primitiva e universidades medievais. No teísmo cristão clássico diz-se que Deus é incapaz de qualquer tipo de mudança ou dependência de qualquer coisa ou qualquer pessoa fora de si mesmo para qualquer coisa. Deus é actus purus, para utilizar o termo de Tomás de Aquino, o grande teólogo e filósofo escolástico medieval. Isso significa que não existe potencialidade em Deus, apenas realidade.

A pergunta é, todavia, se ao menos algumas versões do calvinismo inadvertidamente tornam Deus dependente do mundo para algo que ele precise - sua própria autoglorificação através da manifestação de todos os seus atributos de maneira igual. Este é um tema que perpassa a maioria do calvinismo rígido - que tudo o que Deus faz na criação e redenção é para sua glória. Esta ideia do propósito de Deus é traçada, ao menos, a Edwards, mas Boettner a expressa melhor com sua resposta ao motivo pelo qual Deus permitiu o pecado no mundo:

O pecado... é permitido a fim de que a misericórdia de Deus possa ser mostrada em seu perdão, e que Sua justiça possa ser mostrada em sua punição. Sua entrada é o resultado de um projeto estabelecido que Deus formou na eternidade, e através do qual Ele planejou revelar-se a Si mesmo para Sua criaturas racionais como completo e totalmente iluminado em todas as perfeições concebíveis” 80.

Piper, assim como Edwards, defende que o propósito de Deus em tudo o que acontece é a exibição de sua glória. Edwards explicou claramente, e Piper concorda, que o propósito em tudo, incluindo o mal, é a plena manifestação de todos os seus atributos, incluindo ajustiça e a ira”81.

80. Boettner, The Reformed Doctrine of Predestination, 234.

81. John E Smith, “God the Author of Sin,” introduction to Edwards' The Great Christian Doctrine o f Original Sin, 64.

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Em uma reviravolta irônica, esta explicação do propósito de Deus na criação e redenção, incluindo o pecado e o mal, volta para assombrar Edwards e a maioria dos calvinistas após ele. (Sugestões disso também podem ser encontradas em Calvino). Aparentemente, Deus precisa que o mundo seja como ele é, incluindo o pecado, mal, sofrimento inocente, redenção e reprovação (inferno), a fim de manifestar seus atributos e, assim, glorificar a si mesmo. Deus poderia ter se abstido disso? Não, de acordo com Edwards, que afirmou a “a determinação necessária da vontade de Deus em todas as coisas pelas quais ele entende como mais

apropriadas e melhores” 82.

As negações de Edwards e de outros calvinistas da liberdade libertária como incoerente e a adoção do compatibilismo, mesmo em Deus (ex. o livre-arbítrio de Deus é controlado por seus motivos mais fortes) levam diretamente para a ideia de que a criação do mundo, por Deus, como o “teatro de sua glória” era necessária e não verdadeiramente livre no sentido de que tal não poderia ter sido de maneira contrária. Esta con­clusão lógica a partir desta forte visão de soberania é contrária à forte ênfase na transcendência de Deus e liberdade de condicionamento. Ela também é contrária à ortodoxia cristã tradicional! E ela também mini­miza toda a ideia de criação e redenção sendo apenas unicamente pela

graça, pois o que é necessário não pode ser pela graça.O filósofo evangélico Bruce A. Little corretamente critica Piper e outros

que pensam como ele. De acordo com Piper, ele corretamente observa, Deus ordena o mal (assim como todas as demais coisas) para glorificar a si mesmo83. Ele nota que “Piper cuidadosamente utiliza suas palavras para dizer que Deus tem um propósito para todo o mal nesta terra: fazer com que a glória de Cristo brilhe mais claramente... a morte tortuosa

82. Edwards, Freedom ojthe Will, 377.

83. Bruce A. Little, “Evil and God’s Sovereignty,” em Whosoever Will: A Biblical- Theological Critique o f Five-Point Calvinism, eds. David L. Allen and Steve W. Lemke (Nashville, TN: Broadman & Holman, 2010), 283.

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[de uma criança] é parte de sua vontade. A posição não apenas torna o mal necessário ao propósito de Deus, ela faz de Deus único moralmente responsável pelo mal” 84. Little e outros críticos chegam bem perto de expor a extensão radical desta visão da soberania de Deus, incluindo o mal. É que Deus deve criar, permitir o pecado e o mal, redimir e rejeitar a

fim de cumprir o potencial de sua própria autoglorificação.

Sem o mundo, então, Deus não seria Deus da mesma forma; sua glória seria menos do que ela é agora. O mal, então, é necessário para Deus. Deus é dependente do mundo, incluindo o mal. O filósofo evangélico Jeremy Evans corretamente conclui: “Se Deus precisa da criação para exemplificar estas propriedades [justiça, ira], então os humanos podem corretamente questionar se Deus estava livre em Seu ato de criação” 85.

Claro, poucos calvinistas irão colocar a questão desta forma, mas é a “consequência lógica e necessária” do que alguns deles dizem acerca do propósito de Deus na criação e a necessidade das ações de Deus oriundas de seu caráter. O resultado é que Deus não é verdadeiramente livre em relação à criação no sentido de ser capaz de fazer o contrário a criar, permitir (tornar certo) o mal, redimir e condenar para sua glória.

O segundo dos dois problemas que seguem da doutrina calvinista da providência de Deus é a inevitável mudança da responsabilidade pelo pecado e o mal; das criaturas para Deus. Mais uma vez, todos os calvi­nistas dizem que Deus não é responsável pelo pecado e o mal, ainda que ele os preordene e os tornem certos, e que as criaturas são responsáveis, ainda que elas não possam fazer o contrário do que fazem.

Em suas Institutas, Calvino reivindica que “a providência de Deus não nos justifica nossa malignidade” 86. Aos que alegam que a providência de Deus realmente faz de Deus, e não o pecador, o responsável pelo mal,

84. Little, “Evil and God’s Sovereignty,” 290.

85. Jeremy A. Evans, “Reflections on Determinism and Human Freedom,” Whosoever W ill 266.

86. CALVINO, João. As Institutas: edição clássica, vol. 1, p 216.

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ele diz: fora com essa petulância canina, a qual na realidade podeladrar, à distância, contra a justiça de Deus, não, porém, tocá-/a!” 87. Sua explicação é que embora as pessoas não façam coisas más “a menos que ele [Deus] as tenha desejado” , eles as fazem motivados por uma “ inclinação má” Portanto, ainda que eles não possam fazer o contrário do que fazem, e ainda que “suas maldades sejam cometidas unicamente pela dispensação de Deus” 88, Deus não é culpado e eles são.

O que Calvino claramente quer dizer é que o “mal” jaz nas intenções do coração e que não nas próprias ações. Uma vez que Deus preordena e torna certas as ações com um bom motivo (indubitavelmente para sua glória!), ele não pode ser tido como responsável pelos males deles. Antes, a pessoa que faz o mal, o faz por não poder deixar de fazer (pois é compelida por um motivo mau e, por fim, por Deus)89, é a única culpada.

O que Edwards disse a esse respeito? Já vimos que Edwards acreditava e argumentava que Deus “torna o pecado certo de maneira infalível” ao “reter sua ação e energia”90. Acerca dos pecadores, ele escreveu que “Deus os abandona para com eles mesmos [de maneira que eles] neces­sariamente pecam” 91. Mas, Edwards alegava, Deus não faz o mal por desejar o m al92. Isto porque a culpa jaz inteiramente na disposição má do coração que se formou em Adão e em nós, pela permissão de Deus, tornando-a necessária. Aqui está a citação de Edwards mais clara acerca do assunto: “Para Deus... ter a disposição [controle] deste assunto [a queda], concernente a reter estas influências, sem as quais a natureza será corrupta, não é ser o autor do pecado” 93

87. Ibid., p. 217.

88. Ibid.

89. Lembre-se da citação feita anteriormente das Institutas de que Deus “obriga os réprobos à obediência”

90. Edwards, Freedom of the Will, 404.

91. Ibid.

92. Ibid., 411 - 12.

93. Edwards, Original Sin, 384.

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Observem algumas coisas aqui. Primeiro, Edwards acreditava e ensinava que a natureza humana (e talvez a natureza criada em geral, incluindo os anjos) se tornariam necessariamente corruptos e pecariam sem a influência divina sobrenatural. Todos os calvinistas que seguem a linha Edwards nesse ponto (e a maioria segue) devem estar fazendo a mesma suposição. O correlato necessário disso é que a natureza humana não foi criada boa. Isso equipara a finitude a algo que “não é bom”. Claro, ninguém jamais pensou que a natureza finita é metafisicamente perfeita assim como Deus é perfeito. Ela é capaz de corrupção. Mas dizer que ela necessariamente se tornará corrupta sem a influência sobrenatural de Deus é colocar em xeque a bondade da criação de Deus.

Segundo, Edwards está dizendo que Deus reteve a influência neces­sária, e ele deve querer dizer que ele a retirou, pois caso contrário a que­da teria acontecido imediatamente. De qualquer forma, Deus poderia ter preservado Adão de pecar; ele escolheu não preservá-la, sabendo infalivelmente que Adão cairia se ele retirasse seu poder sobrenatural preservador.

Terceiro, a queda de Adão e todas suas consequências (incluindo o sequestro, estupro e morte da garotinha) foram desejados por Deus e tornado certo por Deus. Quarto, Edwards em nenhum lugar explica a origem da disposição má de Adão que o tornou culpado, e não Deus. Mas sua doutrina da providência divina, que é soberania exaustiva até os mínimos detalhes, parece exigir que tudo na criação, incluindo todos os motivos e disposições, está sob o controle de Deus e é tornado certo por Deus. Entretanto, neste argumento Edwards parece estar dizendo que a disposição má de Adão simplesmente veio a existir do nada. Mas isso é proibido pela forte doutrina de Edwards da soberania de Deus e por sua negação do livre-arbítrio libertário. Tudo vem de algum lugar! Se a inclinação má que levou Adão a pecar veio dele mesmo, de maneira autônoma, tal seria uma enorme concessão ao arminianismo!

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John E. Smith, erudito em Edwards, editor de The Works of Jonathan

Edwards, comenta que “deve ser, então, que Deus, em sua sabedoria, conta uma natureza má necessária sujeita à culpa moral” 94 E, à luz da afirmação de Edwards em outra parte que “nada pode acontecer, mais o que for a vontade e o prazer de Deus devem acontecer... esta linguagem extraordinariamente forte parece colocar Edwards na posição de tornar Deus a causa eficaz de todo pecado e mal” 95. Smith critica Edwards por falhar em considerar adequadamente o pecado de Adão e a ausência de culpa em Deus e, falando da defesa de Deus da parte de Edwards, “Edwards termina imperfeitamente”96

Voltemos a Boettner. O que ele disse acerca da responsabilidade de Deus pelo pecado e o mal? Fiel a sua doutrina da providência meticulosa, ele não hesitou em afirmar “a influência absoluta de Deus sobre os pen­samentos e intenções do coração [do homem]”97. Todavia, ele defendeu, as pessoas estão escravizadas pelo pecado por sua própria culpa. Como esta escravidão ao pecado começou? Boettner repete os argumentos de Edwards. Mesmo a queda de Adão e Eva foi “ordenada nos conselhos se­cretos de Deus” 98, e Deus utilizou esta influência sobre seus pensamentos e intenções para tornar certa a queda. “Todavia” , Boettner alegou, “Deus de maneira alguma coagiu o homem a cair. Ele simplesmente reteve aquela graça coerciva imerecida com a qual Adão infalivelmente não teria caído, graça esta que Ele não tinha nenhuma obrigação de conceder”99. De acordo com Boettner, assim como Edwards antes dele, este é o motivo pelo qual Deus não é responsável pelo pecado e o mal e os seres humanos

94. Smith, “God the Author of Sin," 46.

95. Ibid., 62.

96. Ibid., 52.

97. Boettner, The Reformed Doctrine ofPredestination, 209.

98. Ibid., 234.

99. Ibid., 235.

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são. Todos desde Adão herdaram essa natureza corrompida e também se expressam pecaminosamente em razão dela.

Assim, de acordo com Boettner, a única maneira de Deus ter sido o responsável pelo primeiro pecado de Adão é se ele o houvesse com­pelido a pecar. Simplesmente tornar certo seu pecado ao reter “a graça coerciva” de forma alguma faz de Deus o responsável por ele. Duas perguntas surgem. Primeiro, quem acredita que uma pessoa que torna certa que outra pessoa irá cometer um crime, de maneira que a pessoa que, na verdade, comete o crime por não poder fazer o contrário, não é cúmplice do crime? Qualquer um que assiste a série de televisão Law

& Order sabe que a pessoa ou a companhia que seduz uma pessoa para cometer um crime, ainda que indiretamente, é tão culpada quando a pessoa que comete o crime. E a pessoa que comete o crime é culpada apenas na medida em que ela era capaz de evitar cometer tal crime. Eu pergunto, se você estivesse em um júri e se tornasse convencido (a) pelas provas que o réu não poderia ter feito senão cometer a ofensa, você votaria pela condenação ou pela absolvição? Eu me arrisco que o senso comum dita que os jurados, em tais casos, votam pela absolvição.

Segundo, Boettner acredita que Deus de forma alguma devia a Adão a graça coerciva necessária para não pecar. Considero tal coisa debatível. Mas a questão aqui não é se Deus devia a graça a ele, mas se o Deus que é amor, revelado mais plenamente em Jesus Cristo, teria removido a graça, e assim, portanto, tornando certo que Adão cairia e com todas as consequências advindas da queda. O argumento de Boetnner que Deus de forma alguma devia a graça coerciva a Adão certamente faz Deus parecer indiferente, principalmente quando Deus então culpa a Adão por pecar quando ele lhe criou com uma natureza tão fraca que o pecar era inevitável. Parece que, neste relato, Deus configurou Adão para pecar. Me lembra o antigo poema humorístico acerca do teólogo holandês supralapsariano Francisco Gomaro, que atormentou Armínio por não aceitar este relato rígido da soberania de Deus e de tudo que a acompanha:

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Franciscus Gomarus was a supralpsarius;

He actually gave Adam an excuse.

God had decreed,

Foreordained Adam’s deed.

God pre-cooked Adam’s goose.

Francisco Gomaro era supralapsário;

Ele, na verdade, deu a Adão uma desculpa.

Deus havia decretado,

De Adão preordenado o pecado.

Dando a Adão, de antemão, a culpa.

E o que dizer de outros calvinistas? O que eles dizem sobra a respon­sabilidade de Deus e a responsabilidade humana pela queda e todas as suas consequências? Helm repete os argumentos de Edwards e Boettner acerca da ordenação de Deus do mal e o ato de torná-lo certo. Deus não causa as ações más, mas "as determina” por “retenção divina” i0°. Ele alega que apenas a causa imediata de um ato mau pode ser considerado culpado dele 101. Creio que isso seja enganoso porque vai contra o senso comum e a lei natural. Jeremy Evans está certo: "a responsabilidade última... reside onde a causa última está” 102.

John Piper evita as explicações tortuosas de outros calvinistas e sim­plesmente diz que ele não sabe como é que Deus preordena o torna certo o pecado e o mal e, entretanto, os pecadores são responsáveis e Deus não é. Ele diz que isto é, no final das contas, um mistério que não pode ser aliviado pelo raciocínio humano. A Bíblia simplesmente diz ambos: Deus preordena o mal e os humanos são, mesmo assim, responsáveis” 103.

100. HELM, Paul. A providência de Deus. São Paulo: Cultura Cristã, 2007, pp. 151-52.

101. Ibid., 171.

102. Evans, “Reflections on Determinism and Human Freedom,” 263.

103. Uma das expressões mais claras e menos complicadas desta visão é a conversa de Piper cujo título é: “The Sovereignty of God and Human Responsibility,” em www. youtube.com: “Commending Christ Q & A Desiring God 2009 Conference for Pastors February 4, 2009.”

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Muitos críticos do calvinismo rígido, incluindo este escritor, acreditam que uma grave contradição jaz no cerne desta forte visão da soberania de Deus que inclui o ato de Deus preordenar e tornar o mal certo - prin­cipalmente quando ela é explicada pelo mecanismo de “retenção” ou “retirada” da parte de Deus da graça necessária de sorte que Adão caiu (e toda sua posteridade com ele) infalivelmente por desígnio de Deus. Eu levo a sério o fato de que os calvinistas raramente atribuem a culpa do pecado a Deus; eles quase sempre dizem que Deus é moralmente puro e imaculado e que toda a culpa pelo pecado está com as criaturas pecaminosas. Mas o problema é que isso contradiz sua forte visão da soberania de Deus que inclui a determinação de Deus para o mal.

Quem pode culpar os que temem que isso inevitavelmente leve a consequência lógica e necessária de que Deus seja o autor do pecado e do mal e que Deus, portanto, assume a responsabilidade primária por eles? Exceto por um simples ato de força de vontade para abraçar o que é ininteligível, o que impede alguém que acredita nisso de ir adiante e dizer que as criaturas não são responsáveis e que Deus é? O que alguém precisa enfrentar é a pergunta concernente a qual lado desta doutrina de dois lados; a saber, a soberania determinante e absoluta de Deus e a responsabilidade única dos humanos pelo mal, a pessoa deva abraçar. A pessoa não pode, de fato, abraçar as duas sem que caia em contradição. Apelar para o mistério não é apropriado; a contradição não é um mis­tério, assim como Sproul enfaticamente argumenta em Eleitos de Deus,

eu concordo com ele quando ele escreve que “para os cristãos, abraçar ambos os pólos de uma clara contradição é cometer suicídio intelectu­al”104. Lidarei mais com este problema da inteligibilidade na conclusão.

ALTERNATIVAS AO DETERMINISMO DIVINO

A Bíblia exige aceitação da doutrina calvinista rígida do determinismo divino? Ela não exige. O que dizer de todas as passagens bíblicas que os

104. SPROUL, R.C. Eleitos de Deus, Editora Cultura Cristã, 2002, p. 29.

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calvinistas utilizam para argumentar a favor da preordenação exaustiva e determinação de todos os eventos, incluindo o pecado e o mal? Algumas destas passagens foram mencionadas anteriormente. Cada passagem que supostamente ensina a determinação divina do mal, sofrimento ino­cente e o pecado pode ser interpretada como se referindo ã permissão de Deus. Praticamente todos os cristãos concordam que nada acontece sem a permissão de Deus. A pergunta é se o calvinismo está realmente permitido a recuar e utilizar a linguagem de permissão quando já diz que Deus deseja tudo o que acontece, incluindo o pecado e o mal, e que a permissão de Deus é “permissão desejosa” que ativamente torna tanto o pecado quanto o mal certos. A principal alternativa a esta forte doutrina da soberania de Deus é a autolimitação divirta.

Primeiro, que fique entendido de maneira clara que os que apelam para a autolimitação divina e a permissão passiva como explicação para o pecado e o mal no mundo do Deus criador e onipotente não dizem que Deus jamais manipula circunstâncias históricas para realizar sua vonta­de. O que Deus nunca faz é causar o mal. Deus pode e, sem dúvida, ás vezes, realiza algum evento ao colocar pessoas em circunstâncias onde ele sabe o que eles farão livremente, pois ele precisa que elas façam tal coisa para que seu plano seja realizado. Tal parece ser o caso com a cru­cificação de Jesus. Mesmo nesta situação, entretanto, não foi Deus quem tentou ou manipulou as pessoas para que pecassem. Antes, ele sabia quais eventos, tal como a entrada triunfante, resultariam na crucificação.

Mas o que não devemos dizer é que a queda de Adão, que deu ori­gem a toda a história do pecado e do mal, foi desejada, planejada e tornada certa por Deus. Deus não preordenou e nem tornou a queda certa, e ela também não era parte de sua vontade, exceto no sentido de relutantemente a permitir. Como sabemos disso? Sabemos disso porque conhecemos o caráter de Deus através de Jesus Cristo. A doutrina da encarnação prova que o caráter de Deus é plenamente revelado em Jesus de sorte que “nenhuma interpretação de qualquer passagem [na Bíblia]

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que destrua as revelações da mente divina inculcadas por Jesus pode ser aceita como válida. O que ele diz e faz é o que Deus diz e faz. Ele não tem decretos escondidos para acobertar, nenhum lado obscuro de seu Pai para proteger da exposição, nenhuma razão para ser defensivo acerca de [os caminhos de] Deus” 105.

A doutrina calvinista rígida da soberania de Deus, incluindo o mal como parte do plano, propósito e poder determinante de Deus, contradiz evidentemente as passagens bíblicas que revelam que “Deus é amor” (1 João 4.8), que Deus não se deleita na morte do ímpio (Ez. 18.32), quer que todos sejam salvos (Ez. 18.32; 1 Tm. 2.4, 2 Pe. 3.9) e jamais tenta a ninguém (Tg. 1.13). De fato, os calvinistas possuem explicações inteligentes, mas não convincentes, destas e inúmeras outras passagens bíblicas. Por exemplo, John Piper argumenta que Deus tem “sentimen­tos e motivos complexos”106 de sorte que genuinamente lamenta que o pecado e o mal façam parte deste mundo, deseja genuinamente que todas as pessoas possam ser salvas e que se entristece quando os que ele predestinou a morrer e até mesmo a sofrer no inferno pela eterni­dade, para sua glória, experimentam esse destino. Mas estas não são explicações convincentes destas passagens importantes que revelam o coração de Deus. Elas fazem de Deus um ser de mente dividida.

Então como devemos lidar com a realidade do pecado e do mal no mundo de Deus sem colocar limites indevidos ao poder e a soberania de Deus? A única forma é postular aquilo que a Bíblia presume em todos os lugares - uma autolimitação divina em relação ao mundo da liberdade moral, incluindo particularmente a liberdade libertária. Esta liberdade é um maravilhoso e terrível dom de Deus para os seres humanos criados a sua imagem e semelhança. Em outras palavras, Deus permite que sua

105. William G. MacDonald, “The Biblical Doctrine of Election," em The Grace of God. the Will of Man: A Case for Arminianism, ed., Clark H. Pinnock (Grand Rapids: Zondervan, 1989), 213.

106 Piper, The Pleasures of God. 146.

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perfeita vontade seja frustrada por suas criaturas humanas aos quais ele ama e as respeita o bastante a ponto para não controlá-las.

Desta forma, Deus realmente possui duas vontades, mas elas não são as postuladas pelo calvinismo. Como resultado da escolha livre de Adão para cair em pecado (escolha livre aqui significa que ele poderia ter feito o contrário), Deus tem uma vontade perfeita - também conhecida como sua vontade antecedente. (“Perfeito” aqui significa “o que Deus ver­dadeiramente deseja que aconteça”). A perfeita vontade de Deus é que ninguém se perca; esta é a vontade antecedente de Deus (antecedente à queda e a sua corrupção resultante no mundo). Deus também tem uma vontade consequente - consequente à rebelião das criaturas. É ela que permite alguns a livremente escolher perecer. Mas sua permissão é genuinamente relutante e não manipulativa.

O teólogo evangélico Stanley Grenz (1950 - 2005) ofereceu uma útil distinção na providência de Deus que corresponde às duas vontades - perfeita/antecedente e consequente - mencionadas acima. É a distinção entre “soberania de facto" e “soberania de jure” l07. De acordo com Grenz, com quem concordo, devido a autolimitação voluntária de Deus, ele agora é soberano de jure (por direito), mas não é soberano de facto (em realida­de). Sua soberania de facto é futura. Isto reflete a narrativa bíblica na qual Satanás é o “deus deste século” (2 Co 4.4) (onde “mundo” claramente significa “este presente século mau”) e Deus irá derrotá-lo na era vindoura para tornar-se “tudo em todos” (1 Co. 15.28). A totalidade de 1 Coríntios 15 não pode ser interpretada de outra forma; ela presume a distinção entre a regência soberana de Deus de jure agora e de facto no futuro. Isto não é

dizer, claro, que Deus não é agora, na verdade, soberano de forma nenhu­ma; isto só diz que Deus está permitindo que sua soberania seja desafiada e sua vontade seja parcialmente frustrada até então.

107. Stanley J. Grenz, Theology for the Community of God (Nashville, TN: Broadman & Holman, 1994), 140.

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Isso não limita o poder e a soberania de Deus? Não, pois Deus perma­nece onipotente, ele poderia controlar tudo e todos se assim o escolhesse. Mas visando ter criaturas reais e pessoas que podem livremente escolher amá-lo ou não, Deus limita seu controle. Ainda mais, Deus é soberano no sentido de que nada, de forma nenhuma, jamais pode acontecer sem que Deus permita. Nada cai fora de sua supervisão e governo interven­tor. Mas nem tudo o que acontece é o que Deus quer que aconteça ou determina que aconteça. Não há determinismo divino exaustivo.

Claro, Jesus, sendo Deus, poderia ter curado todos em Nazaré quan­do esteve no local (Marcos 6.5), mas ele “não podia” realizar milagres lá em razão de falta de fé que ali havia. Como Deus, ele tinha o poder absoluto de realizar milagres. Mas ele havia limitado seu poder simples­mente para realizar milagres na presença da fé. Ele não queria sair e curar as pessoas aleatoriamente, sem certa medida de fé cooperante e receptiva da parte dos moradores de Nazaré. Assim é com a soberania de Deus. Ele poderia exercer o controle determinista, mas ele escolheu não o fazer. Como o teólogo E. Frank Tupper diz, Deus não é um Deus do tipo “faz tudo, a toda hora, em todo lugar” , pois ele escolheu não ser este tipo de Deus l08. Ele escolheu se fazer parcialmente dependente de seus parceiros humanos do pacto enquanto que preservando o “poder pactuai superior do santo amor” 109. Este livro tem por intenção enfatizar as fraquezas e até mesmo erros fatais do calvinismo rígido, ou seja, a teologia reformada radical. Não tem por intenção ser uma defesa do arminianismo ou qualquer alternativa ao calvinismo. Tal faria com que o livro fosse muito mais extenso e, portanto, por esse motivo, alguém poderia se recusar a lê-lo. O que está faltando nas prateleiras das livra­rias e bibliotecas não são livros sobre o arminianismo ou até mesmo

108. E. Frank Tupper, A Scandalous Providence: The Jesus Story of the Compassion of God (Macon, GA: Mercer Univ. Press, 1995), 334 - 35.

109. Hendrikus Berkhof, The Christian Faith: An Introduction to the Study of the Faith (Grand Rapids: Eerdmans, 1991), 146.

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sobre a soberania autolimitante de Deus em oposição ao calvinismo. O que está faltando é um livro que demonstra o porquê o calvinismo rígido não é sustentável bíblica, teológica e logicamente. Isso é tudo o que este livro almeja ser. Ocasionalmente eu mencionarei alternativas ao calvinismo rígido, tal como os livros (acerca da soberania de Deus) de E. Frank Tupper, A Scandalous Providence; Gregory Boyd, Is God to

Blame? Jack Cottrell, What the Bible Says about God the Ruler:110 e prin­cipalmente David Bentley Hart, The Doors ofthe Sea: Where Was God in

the Tsunami? Aqui eu oferecerei um gostinho do ultimo livro citado, que bem expressa a minha alternativa (ao calvinismo) e de muitos outros cristãos da visão da providência de Deus. Hart explica:

Quão radicalmente o evangelho está permeado por um sentido de que a falência do mundo caído é a obra do livre-arbítrio racional rebelde, que Deus permite reinar, e também por um sentido de que Cristo vem genuinamente para salvar a criação, conquistar, resgatar, derrotar o poder do mal em todas as coisas. Esta grande narrativa da queda e redenção não é uma farsa, não é simplesmente uma lição dramatúrgica concernente as prerrogativas absolutas de Deus prepa­radas para nós desde a eternidade, mas uma consequência real do mistério da liberdade criada e da plenitude da graça 1,1.

110. Frank E. Tupper, A Scandalous Providence: Gregory A. Boyd, Is God to Blame? (Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 2003); Jack Cottrell, What the Bible Says about God the Ruler (Eugene, OR: Wipf & Stock, 2001).

111. Hart, The Doors ofthe Sea, 97.

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capítulo 5

Sim para a eleição; Não para a dupla predestinação

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NUNCA DESCOBRI O AUTOR DA FAÇANHA, mas devo dizer que foi inteligente e intrigante, se não de certa forma bizarro. Minha esposa e eu retornávamos à minha sala para que pegássemos nossos casacos após um programa de noite de natal e banquete no campus. Afixado na porta da minha sala estava um bilhete dobrado. Isso não é incomum; eu geralmente recebo bilhetes dos alunos, colegas ou visitantes. Então eu retirei o bilhete da porta, abri a porta e acendi a luz. Após isso li o bilhete: “Professor Olson, eu conversei com Deus; você está condenado. Achei que o senhor quisesse saber”. O bilhete não estava assinado. Claro, eu encarei aquilo como uma piada; eu havia feito parte de um debate tranquilo sobre “predestinação versus livre-arbítrio” , então presumi que o bilhete era a tentativa de alguém de fazer piada. Por outro lado, já conheci calvinistas que pensam que é possível saber, com certeza, quem é predestinado ao céu e quem é predestinado ao inferno.

Isso pode não ser tão bizarro quanto alguns calvinistas pensam. Eles deveriam estudar sua própria história. No capítulo anterior eu mencionei o livro de John Piper que inclui um capítulo sobre compositor calvinista William Cowper (pronuncia-se “Cooper”) (1731 - 1800), autor de “There Is a Fountain Filled with Blood” (Há uma Fonte Cheia de Sangue) e “God Moves in a Mysterious Way (Deus Trabalha de Maneira Misteriosa),” assim

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como centenas de outros hinos. Cowper foi um calvinista que acreditava fortemente na “dupla predestinação” - que Deus, desde a eternidade, escolheu salvar algumas pessoas e condenar outras. Em grande parte de sua vida adulta ele sofreu períodos de depressão extrema e até pas­sou um tempo em um asilo. Durante algumas destas fases ele estava convencido de que de alguma forma ele sabia que estava predestinado ao inferno. Se sua convicção de condenação o conduziu a depressão ou vice-versa é, claro, desconhecida.

Falei para uma sala de adultos da Escola Bíblica Dominical, cujo tema era doutrina cristã, e em parte da aula eu falei sobre a doutrina da eleição, explicando como os calvinistas a entendem como incondi­cional e arminianos (e outros) a entendem como condicional (quando se referindo a indivíduos e os destinos eternos dos mesmos). Falamos sobre os pontos fortes e fracos desta doutrina e, particularmente, do problema da bondade de Deus à luz de seu suposto decreto de “ignorar” ou até mesmo positivamente selecionar alguns para a perdição eterna. Os alunos da classe debateram entre si se tal visão é consistente com o amor de Deus mostrado em Jesus Cristo. Após a aula, um cavalheiro de meia idade com um PhD em psicologia, que também era autor de alguns livros bastante conhecidos sobre a área matrimonial veio até mim para um “bate-papo a sós comigo”. Ele explicou que não consi­derava a seleção de Deus de alguns para a condenação um problema, pois ele veio a acreditar que os réprobos não são, de fato, pessoas, mas autômatos (máquinas, robôs). Jamais havia ouvido tal explicação e teria suspeitado que isso fosse resultado da imaginação de uma mentalidade de certa forma não sofisticada, caso a frase não fosse dita por quem, de fato, a disse.

Sem dúvida a doutrina da eleição incondicional, o “U”, da TULIP, tem sido objeto de muito debate e controvérsia entre os cristãos conservado­res e evangélicos. Mas é crucial para todos os verdadeiros calvinistas; é o cerne de seu sistema de soteriologia. Para eles, é uma doutrina doce

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e confortante, pois ela lhes diz que sua salvação não depende de nada que eles façam, mas apenas da graça de Deus. Para os calvinistas ela está intrinsecamente relacionada ã doutrina basilar da reforma da justi­ficação pela graça por meio da fé somente. Eles acreditam que qualquer visão exceto a deles leva inexoravelmente a um enfraquecimento dessa doutrina da reforma. Para outros, entretanto, (assim como Calvinistas iguais ao Cowper), ela é uma doutrina de terror, em virtude do inevitável outro lado da moeda - que Deus escolheu alguns, a quem ele poderia salvar, para que sofram eternamente no inferno (ainda que apenas por ignorá-los quando seleciona outros para a salvação).

Enquanto os defensores da eleição incondicional a entendem como uma expressão da grande bondade e misericórdia de Deus, os oponentes (tal como João Wesley) a entendem como uma expressão de um Deus obscuro e escondido (o termo de Lutero para o lado de Deus que pre­destina alguns para o inferno) que se preocupa mais com sua própria glória do que o bem-estar de todas as pessoas. Os oponentes dizem que a eleição incondicional não pode ser reconciliada com passagens bíbli­cos tais como “Deus é amor” e “Deus [não quer] que ninguém pereça” (1 João 4.8, 16, 2 Pe. 3.9). Acima de tudo, a eleição incondicional não pode ser reconciliada com o caráter de Deus revelado em Jesus Cristo, que chorou sobre Jerusalém quando seus habitantes não o aceitaram como seu Messias (Lucas 9.41-44).

Poucas pessoas que sabem acerca da doutrina calvinista da eleição incondicional (geralmente expressa pelos não teólogos simplesmente como “predestinação”) são indiferentes; a maioria ou é contra (assim como João Wesley) ou insistentemente a favor (assim como Jonathan Edwards). (Menciono Wesley e Edwards aqui porque eles nasceram no mesmo ano [1 703], tendo suas vidas sobrepostas de maneira significan- te, durante o Grande Avivamento na Grã-Bretanha e América do Norte, e eles geralmente são considerados os dois tataravôs do movimento evangélico). Conforme explicarei mais plenamente neste capítulo, sou

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a favor da eleição incondicional no que tange ao povo de Deus. mas não a

pessoas específicas, e sou a favor eleição condicional de pessoas. Mas me oponho de maneira firme e inalterável à inevitável correlata da eleição incondicional de pessoas - reprovação. Eu acredito a assim chamada dupla predestinação de pessoas por Deus seja inconsistente com seu amor e ao ensiná-la, fica difícil fazer distinção entre Deus e o diabo.

ELEIÇÃO INCONDICIONAL É DUPLA PREDESTINAÇÃO

Alguns calvinistas dizem que acreditam na “predestinação única”. O que querem dizer é que não acreditam que Deus escolha condenar ninguém. Ele apenas seleciona alguns, dentre a humanidade caída (“a massa da condenação” de Santo Agostinho) para salvar, e deixa o restante para seu destino no inferno, algo que é merecido e livremente escolhido. Mas isso faz sentido?

Começo, como de costume, com Calvino, que escreveu nas Institutas

“que Deus ordenou desde a eternidade a quem quer abraçar em amor, exerce sua ira contra quem quer” 1. O contexto ao redor da afirmação dei­xa claro que ele concorda com o que foi dito. Seria difícil argumentar que Calvino defendia qualquer coisa diferente do que a dupla predestinação. Trechos das Institutas citados no capítulo 3 deixam isso claro; ele fala acerca dos réprobos sendo compelidos à obediência por Deus. (Novamente, o con­texto deixa claro que ele não quer dizer compelido à obediência à vontade

preceptiva de Deus, ou seja, as ordens morais de Deus, mas compelidos à obediência à vontade decretiva de Deus, ou seja, os decretos de Deus do que será incluindo a pecaminosidade dos réprobos). Calvino, eu acredito, ficaria chocado ao ouvir que as pessoas que chamam a si mesmas de calvinistas, mas que argumentam que a predestinação é apenas única, que ela se apli­ca apenas à eleição e não à reprovação - como se as duas pudessem ser separadas ou como se Deus pudesse ser soberano nesta situação.

1. CALVINO, João. As Institutas: edição clássica, vol. 3, p. 444.

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Boettner também afirmou a reprovação divina de algumas pessoas e até mesmo que a vontade de Deus é o “ fator decisivo” na condenação dos mesmos. Primeiro, ele escreveu da reprovação que: “esta, também”, assim como a eleição para a salvação, “é de Deus” 2. Além do mais, “nós acreditamos que desde a eternidade Deus intencionou deixar alguns da posteridade de Adão em seus pecados e que o fator decisivo na vida de cada um é ser encontrado na vontade de Deus” 3. É importante lembrar que para Boettner, como aparentemente para outros autores calvinistas que citei, “os escritores bíblicos não hesitaram em afirmar “a influên­cia absoluta de Deus sobre os pensamentos e intenções do coração [do homem]” 4. Também, “Deus governa os sentimentos internos, o ambiente externo, hábitos, desejos, motivos etc. dos homens que eles são livres para fazer o que Ele designa”5 Deus, ele confessou, “em um sentido real” determina as escolhas das pessoas e não existe tal coisa como “autodeterminação” 6. Assim sendo, o motivo é claro para a rei­vindicação de Boettner que de a reprovação é necessariamente parte do plano e propósito soberano de Deus e que não é, no final das contas, condicionada por qualquer coisa fora do próprio Deus. A vontade de Deus [obviamente sua “vontade decretiva”] é o “fator decisivo” na vida do réprobo e em sua reprovação.

Todavia, ao mesmo tempo, assim como todos os calvinistas que te­nho conhecimento, Boettner alega que os réprobos merecem sua punição (sofrimento eterno no inferno), pois eles “voluntariamente escolhem o pecado” 1. No fim das contas, ele deixa esta aparente contradição na esfera

2. Boettner, The Reformed Doctrine of Predestination, 104.

3. Ibid.

4. Ibid., 209.

5. Ibid., 214.

6. Ibid., 215, 217.

7. Ibid., 125.

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do mistério: “A predestinação [incluindo a reprovação] e a livre agência são duas colunas de um grande templo, e elas se encontram acima das nuvens, onde o olhar humano não pode penetrar” 8. Parece-me, todavia, que este mistério é uma completa contradição, algo que até mesmo o Sproul excluiu como fora dos limites para o discurso cristão. Devemos enfatizar aqui a diferença entre mistério e contradição; o mistério é algo que não pode ser plenamente explicado ou compreendido pela mente humana ao passo que a contradição é simplesmente algo sem sentido - dois conceitos que se anulam e que juntos tornam-se um absurdo. A teologia cristã jamais deve descansar confortavelmente com a contradição ao passo que o mistério sempre estará presente na fala humana de Deus.

Boettner tem palavras duras para aqueles calvinistas que optam pela predestinação única: ‘“ Calvinismo brando’ é sinônimo de calvinismo enfermo, e a enfermidade, se não curada, é o início do fim” 9. Enquanto admite que a reprovação é “admitidamente uma doutrina desagradá­vel”10, Boettner tenta provar a necessidade dela. Para ele, sem ela a justiça de Deus não será plenamente exibida e, desta forma, Deus não será plenamente glorificado no mundo e diante dos anjos.

Outra testemunha que a eleição incondicional necessariamente inclui a reprovação como seu “outro lado da moeda” é o pastor e teó­logo calvinista Edwin Palmer, autor de The Five Points of Calvinism, no qual ele expõe e defende “Doze Teses Sobre a Reprovação”. Primeiro, ele define reprovação como o decreto eterno, soberano, incondicional, imutável, sábio, santo e misterioso por meio do qual, ao eleger alguns para á vida eterna, Ele ignora outros, e então justamente os condena por seus próprios pecados - tudo para Sua própria glória” ". Assim

8. Ibid., 222.

9. Ibid., 105.

10. Ibid., 108.

11. Palmer, The Five Points of Calvinism, 95.

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como Boettner e outros, ele admite que esta é uma doutrina difícil, mas diz que “nosso Deus infinito nos apresenta algumas verdades im­pressionantes - verdades estas à quais nossas mentes pecaminosas e finitas se rebelam contra”12. Ele argumenta que o pecado acontece pela “permissão eficaz de Deus” - algo que nós já observamos em outros teólogos calvinistas que relutam em dizer que o pecado é causado por Deus . Parece que a “permissão eficaz” deve significar, assim como a permissão de Deus do pecado e o mal significa em Edwards, Boettner e outros, que Deus o torna certo sem forçar as pessoas a pecar. Palmer diz: “Todas as coisas, incluindo o pecado, são realizados por Deus - sem Deus violar Sua santidade” 13

Palmer defende que a predestinação de alguns necessariamente implica na reprovação de outros: “Se Deus escolhe alguns, então Ele necessariamente ignora outras”. Para cima sugere para baixo; atrás sugere a frente; o molhado sugere o seco; o mais tarde sugere o mais cedo, escolher sugere deixar outros sem que sejam escolhidos”14. Ele então prossegue para argumentar que Deus não “efetua” o pecado e a descrença da mesma forma que ele efetua a fé l5. “Deus deseja o pecado e a descrença indesejosamente; ele não se deleita neles”16. Alguém pode se perguntar o porquê disso se for verdade que Deus faz tudo “para a sua glória” Como Deus pode não se deleitar naquilo que o glorifica? Palmer prossegue de maneira ousada e afirma que a reprovação de Deus é tanto condicional quanto incondicional:

A reprovação como condenação é condicional no sentido de que uma vez que alguém é ignorado, então ele é condenado por Deus

12. ibid., 97.

13. Ibid., 101.

14. Ibid., 106.

15. Ibid.

16. Ibid., 107.

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por seus pecados e descrença. Embora todas as coisas - descrença e o pecado inclusos - procedam do decreto eterno de Deus, o homem ainda é culpado por seus pecados. Ele é culpado; o erro é dele e não de Deus 17.

Isto é o suficiente para deixar qualquer um confuso. E Palmer concorda e se deleita nisso. “Ele [o calvinista] percebe que o que ele advoga é ridícu­lo... O calvinista livremente admite que sua posição é ilógica, ridícula, sem sentido e tola” 18 Todavia, “esta questão secreta pertence ao Senhor, nosso Deus, e devemos deixar as coisas como estão. Não devemos investigar este conselho secreto de Deus” 19. Aparentemente Palmer concorda com Martinho Lutero que, quando pressionado contra a parede por Erasmo em seu debate sobre livre-arbítrio, encorajou seus ouvintes a “adorarem os mistérios” e não tentar usar a lógica. Palmer também ecoa o teólogo cristão primitivo Tertuliano, que disse: “Acredito porque é absurdo!” Talvez muitos calvinistas não concordem com Palmer, mas eles deveriam caso queiram manter o ensinamento de que Deus reprova as pessoas incon­dicionalmente (pois ele mesmo preordenou o pecado e o tornou certo) e ainda assim os réprobos são os únicos responsáveis e merecem a punição eterna, pois sua reprovação é “condicional”

O que leva Palmer e outros calvinistas rígidos a tamanho sacrifício do intelecto? Ele não faz segredo que é: Romanos 9 - a passagem bíblica basilar para a crença calvinista na eleição e reprovação incondicionais: Quando Deus fala - como ele claramente fez em Romanos 9 - então nós devemos simplesmente seguir e crer, mesmo se não possamos entender, e ainda que isso pareça contraditório para nossas mentes débeis” 20. Romanos 9 diz que Deus escolheu Jacó em detrimento de Esaú e amou a

17. ibid., 105 - 6.

18. Ibid., 85.

19. Ibid., 87.

20. Ibid., 109.

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Jacó e odiou a Esaú antes que eles nascessem ou que fizessem qualquer coisa boa ou má “ a fim de que o propósito de Deus, na eleição, ficasse firme: não por obras, mas por aquele que chama” (Romanos 9.11-12) Então Paulo cita Êxodo onde Deus diz a Moisés: “Terei misericórdia de quem eu quiser ter misericórdia e terei compaixão de quem eu quiser ter compaixão” (9.15). Então lemos: “Deus tem misericórdia de quem ele quer, e endurece a quem ele quer” (9.18)

Claro, Romanos 9 diz muito mais e eu encorajo os leitores para que leiam e estudem todo o livro de Romanos e interpretem o capítulo 9 no contexto de todo o livro. Assim como todos os calvinistas, Palmer interpreta estas afirmações literalmente como se aplicando a salvação e reprovação de indivíduos. Todavia, conforme mostrarei mais tarde neste capítulo, existem outras interpretações válidas que não acabam por exigir o sa­crifício do intelecto ou considerar Deus como arbitrário ou monstruoso.

Sproul é outro calvinista que argumenta que não pode haver eleição incondicional para a salvação sem reprovação, de maneira que a “predes­tinação única” é um conceito impossível. Ele corajosamente promove a dupla predestinação ao passo que faz algumas advertências importantes:

“Se é que realmente existe uma coisa tal como predestinação, e se essa predestinação não inclui todas as pessoas, então não podemos escapar da necessária influência de que há dois lados para a predestinação. Não é suficiente falar sobre Jacó; precisamos também considerar Esaú” 21.

A fim de amenizar o golpe (na bondade de Deus) Sproul defende que estes dois decretos de Deus - o de salvar alguns e condenar outros - não devem ser levados como “ igualmente últimos” ou ambos positivos. Ele critica o que chama de hipercalvinismo por transformar a eleição e a reprovação igualmente últimas - colocando-as no mesmo plano de Deus e realização deste plano por Deus 22. Contra o hipercalvinismo Sproul expressa o que ele acredita que seja a verdadeira doutrina reformada:

21. SPROUL, R.C. Eleitos de Deus, Editora Cultura Cristã, 2002, p. 101.

22. Ibid., 104.

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A visão reformada ensina que Deus positivamente e ativamente intervém nas vidas dos eleitos para garantir sua salvação. O restante da humanidade Deus deixa por si mesmos. Ele não cria incredulida­de em seus corações. Essa incredulidade já está lá. Ele não os coage a pecar. Eles pecam por suas próprias escolhas. No calvinismo, o decreto de eleição é positivo. O decreto de reprovação é negativo 23.

Alguém pode apenas se perguntar qual a grande diferença disto. Dizer que a eleição e a reprovação não são igualmente últimas e que uma é positiva e que a outra é negativa não muda realmente nada em termos de resgatar a integridade do caráter de Deus (que é claramente a preocupação do Sproul?).

Para Sproul é importante que a dupla predestinação seja entendida da sua maneira - como as decisões desiguais, finais e não finais de Deus para salvar alguns homens caídos e deixar que outros sofram a punição eterna. Primeiro, ele diz, aqueles a quem Deus permite que sofram o castigo eterno, os que ele ignora, são, de qualquer forma, merecedores da punição. Deus não tem obrigação de salvá-los. O ato de Deus ignorá­-los não o compromete no fracasso deles de jeito nenhum e isso não implica em imperfeição moral em Deus.

Uma análise mais detalhada de como Sproul diz que os réprobos são maus e merecedores do castigo eterno revela a falha de raciocínio acerca do caráter de Deus à luz da dupla predestinação. Ele utiliza o endurecimento do coração de Faraó, realizado por Deus, para ilustrar a maneira geral de Deus de tornar certo que um grupo dentre a huma­nidade, os não eleitos ou réprobos, mereçam o castigo eterno. “Tudo que Deus tem a fazer para endurecer o coração das pessoas é remover as restrições. Ele lhes dá uma corda mais longa... Em certo sentido, Ele lhes dá corda suficiente para que elas se enforquem” 24. Ele está afirmando a explicação calvinista normal de que Deus torna a queda e toda a corrupção consequente, incluindo o pecado e a culpa, certa

23. Ibid.

24. Ibid., 106.

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por retirar ou reter a graça suficiente. Deus escolhe certas pessoas para endurecer seus corações de maneira que elas não se arrependerão e não crerão. Então ele diz:

É assim que nós devemos entender a dupla predestinação. Deus dã misericórdia a seus eleitos operando fé em seus corações. Ele dá justiça aos reprovados deixando-os em seus próprios pecados. Não há simetria aqui. Um grupo recebe misericórdia. O outro grupo recebe justiça. Ninguém recebe injustiça. Ninguém pode queixar-se de que há injustiça em Deus 25.

Isto faz algum sentido? Não. Primeiro, como isto não é simétrico à luz do fato de que a pecaminosidade dos pecadores é preordenada e tornada certa por Deus de sorte que os réprobos não podem fazer o contrário? Como que o decreto divino da reprovação, de ignorar certos indivíduos é meramente negativo e passivo se Deus endurece seus co­rações? Como que o relato de Sproul realmente difere do que ele chama de hipercalvinismo?

O teólogo reformado James Daane, um arquiinimigo da dupla predestina­ção, chama este tipo de fala de “verbalismo” - “um jogo teatral na qual as palavras, de fato, não carregam nenhum sentido averiguável”26. Para Daane, conforme irei mencionar mais tarde neste capítulo, isso se aplica a muitas palavras utilizadas para os predestinadores duplos, a quem ele chama de “teólogos decretais”. Parece se aplicar bem com a fala de Sproul dos decretos de Deus não sendo igualmente finais, pois um [decreto] é positivo e o outro negativo e também se aplica à noção de justiça e imparcialidade de Sproul.

Todos os teólogos calvinistas que são favoráveis a dupla predestina­ção e contra a “predestinação única” abraçam e afirmam a ideia de que Deus soberanamente predestina alguns dentre suas próprias criaturas humanas, criados á sua imagem e semelhança, para o inferno, e que isso é consistente com a bondade, justiça e amor de Deus. Eu concordo com eles de todo o meu coração que não pode existir tal coisa como

25. Ibid , 108.

26. Daane, The Freedom oJCod, 71.

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predestinação única na medida em que a predestinação é a eleição incondicional de certas pessoas, de certo número dentre o total, para o céu. O correlato automático e inevitável para essa predestinação é a predestinação ao inferno. As duas coisas ou nada.

Onde eu discordo deles é que a dupla predestinação possa ser de­fendida como boa ou que um Deus que faz isso possa ser considerado bom, amável e justo em qualquer sentido análogo às estas virtudes conforme as mesmas nos são reveladas em Jesus Cristo e na Bíblia. Se Deus faz desta maneira que eles descrevem, então a “bondade” de Deus, o “amor” de Deus, a “justiça” de Deus são simples palavras com nenhum sentido averiguável. Daane está certo; seria mero verbalismo continuar a falar de Deus tendo estes atributos como aspectos de sua natureza e caráter eternos - algo que quase todos os calvinistas fazem.

Além do mais, ainda que Deus meramente ignorasse alguns a quem ele poderia salvar, por que faria isso se ele é bom, amável e justo? Qual significado estes atributos poderiam ter, mesmo quando aplicados a Deus, se Deus faz o que o calvinismo reivindica? Em outras palavras, isso não é apenas uma questão de reprovação, embora eu realmente acredite que a reprovação esteja necessariamente implícita na doutrina calvinista da eleição. Ainda que fosse possível manter a ideia de que Deus não reprova ninguém positivamente, mas apenas escolhe, de maneira misericordiosa, salvar alguns e deixar outros para sua “merecida conde­nação”, quais seriam os significados de “bondade” , “amor” e “justiça” quando atribuídos a um Deus que poderia salvar a todos pelo fato de a salvação ser absolutamente incondicional (a saber, não dependente de qualquer coisa que Deus veja ou acerca das pessoas sendo salvas)?”27.

27. Alguns calvinistas podem objetar à minha forma de expressão aqui e dizer que, enquanto a “eleição” é incondicional, a “salvação” não é. Em outras palavras, de acordo com a teologia calvinista, Deus escolhe salvar pessoas sem considerar nada acerca delas, mas ele salva tais pessoas apenas tendo por base a condição de arrependimento e fé (conversão) das mesmas. Todavia, parece certo e justo dizer que a própria salvação também é incondicional, pois Deus é quem dá até mesmo o arrependimento e a fé para eleger antes, não considerando quaisquer decisões ou ações que as pessoas façam. Em minha opinião, a distinção entre eleição para salvação como incondicional e a própria salvação como condicional é uma distinção sem uma diferença.

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Aqui temos outro calcanhar de Aquiles do calvinismo rígido. Apesar dos melhores esforços para evitá-lo, a “consequência lógica e necessária” de sua soteriologia - TULIP - é que Deus é moralmente ambíguo, se não um monstro moral. Não existe nenhuma analogia humana para esta “bondade” Qualquer ser humano que tivesse a habilidade de resgatar um grande número de pessoas de uma terrível calamidade, mas que resgata apenas alguns, jamais seria considerado bom, amável ou justo. Alguns dirão que estes termos têm significados diferentes; um para Deus e outro em nosso mundo. O calvinista Paul Helm está certo em rejeitar esse argumento: “a bondade de Deus deve possuir alguma relação po­sitiva com os tipos de relações humanas que consideramos como boas. De outra forma, por que deveríamos atribuir bondade à Deus? 2S.

UM PROBLEMA PARA O CARÁTER E A REPUTAÇÃO DE DEUS

Independente das contradições, à primeira vista, da dupla predestina­ção que foram mencionadas acima, os calvinistas realmente defendem esta teologia de várias formas. Penso que as entendi corretamente, mas ainda não vejo como estas defesas possam se manter.

Alguns calvinistas simplesmente colocam de lado as objeções á du­pla predestinação ao dizer: “Não está dentro da jurisdição das criaturas questionar a Deus” 29. Isto dificilmente é, claro, uma defesa, mas uma

28. HELM, Paul. A providência de Deus. São Paulo: Cultura Cristã, 2007. p 149. Aqui seria possível e correto entrar no debate da questão entre o “nominalismo” versus o “realismo” acerca de questões universais, tais como “bondade” e se Deus possui uma natureza eterna que determina seu caráter ou se Ele simplesmente escolhe fazer as coisas, tornando-as automaticamente boas pelo fato de as escolher. A maioria esmagadora dos cristãos ortodoxos (conservadores), através dos séculos, rejeitou o nominalismo por bons motivos. Lutero foi uma exceção, talvez Zuínglio também o seja. Todavia, a maioria dos calvinistas, claramente, não querem ser nominalistas; eles acreditam que Deus tenha uma natureza e caráter eterno, imutável e que age de acordo com tal natureza e caráter. Portanto, dizer que “tudo o que Deus faz é automaticamente bom, amável e justo pelo simples fato de Deus o fazer” é cair no nominalismo e seu acompanhante, a ideia do “Deus oculto” , que faz com que Deus seja incognoscível e indigno de confiança, fazendo com que os atributos morais de Deus sejam sem sentido.

29. Steele and Thomas, The Five Points of Calvinism, 31.

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resposta. Estranhamente, quase todos os calvinistas, entretanto, real­mente tentam defender a bondade de Deus, então alguém se pergunta o quão sério devemos responder a esta crítica. Além do mais, não é a Deus quem os críticos do calvinismo estão questionando. As crenças

calvinistas acerca de Deus é que estão sendo questionadas! Há uma di­ferença. A frequência com a qual alguém se depara com esta rejeição de crítica leva a conclusão de que pelo menos alguns calvinistas enfrentam problemas em distinguir entre sua própria doutrina de Deus e o próprio Deus. Como todos os demais, os calvinistas deveriam estar dispostos a, ao menos, considerar a possibilidade de que há deficiências e falhas graves nas crenças doutrinárias calvinistas.

Muitos teólogos calvinistas vão além da tentativa de colocar de lado as críticas com afirmações acerca de “não questionar a Deus”. Muitos oferecem estratégias para defender o caráter bom de Deus, a reputação de Deus, em face de perguntas críticas de não calvinistas. A principal questão que tratam é simplesmente essa: Como pode ser dito que Deus

é bom, amável e justo em face destas doutrinas do calvinismo rígido? Como Deus é bom, amável e justo com os réprobos? Como Deus não é arbi­trário em sua escolha de alguns para a salvação incondicional enquanto abandona outros para a perdição? E uma pergunta crítica relacionada é: Como o evangelho pode ser oferecido como uma oferta sincera para todos se alguns já foram escolhidos por Deus para a condenação e, desta forma, não possuem nenhuma chance, de modo algum, de serem aceitos por Deus? (Esta última pergunta geralmente alcança uma força maior em relação ao próximo ponto da TULIP - expiação limitada).

Outra forma de fazer o mesmo conjunto de perguntas é apresentar passagens bíblicas para calvinistas e perguntar como eles reconciliam suas crenças na reprovação - predestinação com as mesmas? Por exem­plo, João 3.16: “Porque Deus tanto amou o mundo que deu seu Filho Unigénito para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eter­na”. Observe também os versículos citados anteriormente: 1 Timóteo 2.4; 2 Pedro 3.9 e 1 João 4.8. Como Deus é amor se ele preordena muitas

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pessoas para o inferno para a eternidade quando ele poderia salvá-las, uma vez que a eleição para a salvação é sempre completamente incon­dicional e não qualquer relação com o caráter ou escolhas? Como é que Deus quer que todas as pessoas sejam salvas se ele determina algumas pessoas em específico para que sejam condenadas? Como é que Deus não tem prazer na morte dos ímpios (Ez. 18.32) se ele preordena tudo, incluindo sua reprovação e punição eterna, para seu beneplácito? Como Deus é bom se ele intencionalmente reteve de Adão a graça que ele precisava para não cair - sabendo que a queda de Adão resultaria nos horrores do pecado e mal e no sofrimento inocente da história?

Primeiro, algumas respostas de João Calvino. Calvino tinha pouco interesse em defender o caráter de Deus; para ele, tudo o que Deus faz é certo, e é errado questionar a Deus independente de quão injusto suas ações pareçam ser. Ele frequentemente admoestava aqueles que perscrutavam por demais os mistérios de Deus (ex. ao buscar uma causa ou razão além de simplesmente que Deus desejou algo) ou que acusam Deus de agir injustamente (pela qual ele parece também querer que se aplique àqueles que acusam sua doutrina de Deus de arruinar a reputação de Deus) 30.

Todavia, Calvino, de fato, tentou explicar algumas passagens bíblicas que possa parecer contraditórias com seus argumentos acerca da dupla predestinação de Deus. Em relação à reprovação de Deus de alguns à luz das passagens bíblicas que utilizam a palavra “todos”, ele escreveu;

diz-se que Deus ordenou desde a eternidade a quem quer abraçar em amor, exerce sua ira contra quem quer, e que proclama a salvação a todos indiscriminadamente. Deveras digo que elas se harmonizam

30. Às vezes Calvino soa como um nominalista — alguém que nega que Deus tenha uma natureza que oriente ou controle o que ele faz. Isto se dá toda vez que ele diz que Deus pode fazer o que Ele quiser, de maneira que suas ações não precisam ser consistentes com virtudes tais como bondade, amor ou justiça. Em outras vezes, todavia, Calvino parece ser um realista - alguém que acredita que Deus tenha uma natureza - e, neste caso, suas objeções de que Deus não pode ser acusado de ser injusto (ou odioso), pois tudo o que Ele faz é automaticamente justo (ou amável) perdem o totalmente peso.

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perfeitamente, pois, assim prometendo, outra coisa não pretende senão que sua misericórdia seja oferecida somente a todos os que a buscam e imploram, o que outros não fazem, a não ser aqueles a quem ilumina.

Entretanto, Deus ilumina aqueles a quem predestinou para a sal­vação. A estes, afirmo, patenteia-se a veracidade certa e inconcussa das promessas, de modo que não se pode dizer que houve alguma discrepância entre a eterna eleição de Deus e o testemunho que oferece aos fiéis de sua graça 31.

Isso só parece aprofundar o mistério. Se esta citação tinha por objetivo responder a pergunta de como estas afirmações concordam perfeita­mente uma com as outras, eu não vejo como isso alcança seu objetivo. Como um grande pensador e comunicador que Calvino foi, eu, às vezes, considero suas explicações obscuras, se não evasivas.

Calvino diz mais acerca do problema. Primeiro, ele defende que “nin­guém perece sem que o mereça” 32. É por isso que Deus é justo em punir os réprobos; eles merecem a punição. Por que eles merecem a punição? Por causa de sua “malícia e perversidade” 33. Por que eles continuam em sua malícia e perversidade e não se arrependem e creem como os eleitos o fazem? “Para que atinjam a seu fim, ora os priva da faculdade de ouvir sua palavra, ora mais os cega e os endurece por meio de sua pregação”34. Por que Deus age assim para com os réprobos? “Em vão se atormenta aquele que aqui procure causa mais alta que o conselho secreto e inescrutável de Deus” 35.

Calvino está chegando em algum lugar no sentido de resolver o pro­blema? Não vejo como esse possa ser o caso; ele parece simplesmente estar aprofundando o dilema da bondade de Deus.

31. CALVINO, João. As Institutas: edição clássica, vol. 3, p. 444.

32. Ibid., p. 438.

33 CALVINO, João. As Institutas: edição clássica, vol. 3, p. 440.

34. CALVINO, João. As Institutas: edição clássica, vol. 3, p. 438.

35. Ibid.

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Como Calvino interpreta 1 Timóteo 2.3-4, a revelação mais clara de que Deus deseja a salvação de todos os homens? “Com isto Paulo certamente quer dizer que Deus não fechou o caminho da salvação para qualquer ordem de homens; antes, ele derramou tanto de sua misericórdia que ele não quer ninguém fora dela”. Em outras palavras, todos em 1 Timóteo 2. 3-4 (e sem dúvida em 2 Pe. 3.9) significa que Deus quer pessoas de toda tribo e nação sejam salvos, mas não todas as pessoas. Isso dificilmente se encaixa na linguagem de 1 Timóteo 2.4, todavia, que especificamente diz “todos os homens”, significando “todas as pessoas” - não todos os tipos de pessoas.

Então, porque Deus reprova alguns e não elege todos para a salvação? Em alguns lugares Calvino deixa esta questão na esfera do mistério, mas em pelo menos em uma ocasião ele especula; “ foram suscitados para ilustrar sua glória através de sua própria condenação”36. Os que acusam Deus de ser injusto (ou só acusam esta doutrina de fazer de Deus um ser injusto!) são rejeitados por Calvino como “discípulo[s] de Porfírio [que] corroem impunemente ajustiça de Deus” 37. Ele impacientemente declara que tudo o que Deus faz é certo e justo simplesmente porque é Deus quem faz, e não há explicação nenhuma para o que Deus faz além de “porque assim lhe apraz” 38. Em lugar algum ele sequer tenta justificar a Deus ou reconciliar sua doutrina com o amor de Deus. O único amor de Deus que ele menciona é o amor de Deus pelos eleitos.

Felizmente, muitos calvinistas não se satisfizeram em deixar a questão como está. Ao passo que alguém adentra a era moderna e para o mundo pós-moderno do início do século XXI, encontramos muitos calvinistas, cada vez mais, interessados em justificar os caminhos de Deus.

Jonathan Edwards escreveu um ensaio completo sobre “Ajustiça de Deus na Condenação de Pecadores”. No ensaio ele ficou bem perto da

36. CALVINO, João. As Institutas: edição clássica, vol. 3, p. 440.

37. CALVINO, João. As Institutas: edição clássica, vol. 3, p. 438.

38. CALVINO, João. As Institutas: edição clássica, vol. 3, p. 408.

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abordagem de Calvino, embora de certa forma mais enfática e mais defensiva (talvez em virtude da crescente tendência do Iluminismo à questão da justiça de Deus). Mais uma vez, assim como foi com Cal­vino, a ênfase de Edwards repousa sobre a justiça de Deus em vez de seu amor, que ele dificilmente menciona. Veja o que Edwards diz aos que questionam a justiça de Deus na condenação eterna no inferno dos que ele preordenou e ainda tornou certa a queda em pecado e a permanência no pecado:

Quando os homens caem e tornam-se pecaminosos. Deus, por sua soberania, tem o direito de determinar acerca dos homens conforme lhe apraz. Ele tem o direto de determinar se irá ou não redimir o ho­mem. Ele poderia, caso isto lhe tivesse agradado, ter deixado todos para perecer ou poderia ter redimido a todos. Ou, ele poderia redimir a alguns e abandonar outros; e se ele assim o desejar, ele pode salvar a quem lhe apraz e abandonar a quem lhe apraz 39

Isto dificilmente resolve o problema da justiça de Deus, entretanto, quanto aos “homens” que estão caídos, a quem Deus tem o direito de tratar como ele desejar, caíram pela preordenação e o poder predestinador de Deus. Mais uma vez, a questão que surge naturalmente e que Edwards não responde é esta: “Qual significado “bondade”, “justiça” e “amor” têm em tal contexto? Assim como Calvino, Edwards parece mais interessado em colocar de lado todas e quaisquer perguntas acerca da justiça de Deus na reprovação e punição das pessoas. A única resposta que ele oferece é que tudo o que Deus faz é certo e está acima da crítica. Ele simplesmente pressupõe que sua interpretação do que Deus faz é a única interpretação razoável à luz de passagens bíblicas como a de Romanos 9.

O que Boettner diz acerca da bondade de Deus à luz de sua reprova­ção das pessoas? Ele primeiramente deixa claro, indubitavelmente, que

39. Jonathan Edwards, “The Justice of God in the Damnation of Sinners,” 2.3, in Jonathan Edwards: Representative Selections, with Introduction, Bibliography, and Notes, rev. ed., Clarence H. Faust and Thomas H. Johnson, eds. (New York: Hill and Wang, 1962), 119.

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o único propósito de Deus na reprovação é a sua glória; sem ela a justiça de Deus não poderia ser exibida de maneira suficiente - e que é um dos propósitos da criação e redenção 40. Claro, isto levanta a pergunta de por que é justo para Deus punir os réprobos, e Boettner simplesmente assegura que eles pecaram “voluntariamente” 41. A luz destas explicações, citadas e discutidas no capítulo anterior, parece um uso estranho de “voluntaria­mente”, uma vez que é Deus quem determinou. Para ele, obviamente, “voluntariamente” não significa que eles poderiam fazer o contrário do que fazem. Isso é um significado natural de “voluntário” e isto responde ou suscita mais perguntas acerca da justiça de Deus? Boettner não parece reconhecer este problema, ou ele prefere fazer vistas grossas. E ele não pa­rece, de fato, lidar com o amor de Deus, exceto em dizer (estranhamente) que “Deus em seu amor salva tantos homens da raça pecadora quanto Ele pode obter o consentimento de Sua toda natureza para salvar”42. Alguém pode apenas responder de maneira perplexa; “O quê?”

Pelo menos Boettner, contrastado com Calvino, Edwards e alguns outros calvinistas, tenta responder a pergunta. Mas a resposta não suscita mais perguntas? Deus é, de alguma forma, limitado? Por que ele não pode ter o consentimento de “toda sua natureza” para salvar a todos? A implicação óbvia, considerando tudo mais o que Boettner diz, é que Deus deve condenar alguns a fim de exibir seu atributo de justiça e, desta forma, glorificar a si mesmo. Então a necessidade de Deus de glorificar a si mesmo (e “necessidade” é a palavra correta, considerando a linguagem utilizada por Boettner acerca da limitação divina em relação à extensão da salvação) sobrepuja e controla seu amor.

Isto é exatamente o que os não calvinistas se preocupam concernente ao calvinismo; que sua lógica interna e profunda leva inflexivelmente

40. Boettner, The Reformed Doctrine of Predestination, 79, 117.

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a exaltar a glória de Deus em detrimento de e até mesmo contra o seu amor. Aparentemente, Deus pode (ou deve) limitar seu amor, mas ele não pode limitar sua autoglorificação. Eu inverteria a ordem das coisas e diria que, à luz do autoesvaziamento de Cristo (Fp 2), Deus pode limi­tar sua glória (poder, majestade, soberania), mas não seu amor (porque Deus é amor; ver 1 João 4!).

Boettner argumenta que Deus não é arbitrário em seus julgamentos, significando que sua escolha de quem salvar não é uma questão de cara ou coroa 43. Ele diz que Deus “tem seus motivos” ainda que não possa­mos sequer adivinhar quais eles sejam 44. Aqui temos outro problema. Como todos os calvinistas, Boettner afirma que a escolha de Deus das pessoas eleitas é absolutamente incondicional; que a esolha não possui nenhuma relação com qualquer coisa que Deus veja nas pessoas que ele elege 45. Assim como a reprovação é o outro lado necessário da moeda da eleição, então escolher ignorar alguns para escolher eleger outros deve, necessariamente, não ter relação nenhuma com qualquer coisa, principalmente má, que Deus veja nestas pessoas reprovadas. Todos são igualmente dignos de castigo eterno. Uma vez que a escolha, tendo por base algo em particular acerca dos que escolheu, tanto para a eleição quanto a reprovação, é cancelada, o que sobra? Eu defendo que tudo o que sobra é, e isto é uma questão de pura lógica, a escolha arbitrária - uni, duni, té”. Não existe uma terceira alternativa concebível.

Imagine que você confronte seu filho ou filha porque percebe que o nome dele (a) está escrito, de giz de cera, na parede do quarto da crian­ça. Ele ou ela nega que escreveu aquilo. Você pergunta: “Então quem escreveu?” e a criança responde: “Outra pessoa” Então você responde: “Mas espera um pouco, este é o seu quarto e o seu nome está escrito

43. Ibid., 97.

44. Ibid.

45. Ibid., 83.

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na parede e ninguém além de você esteve no seu quarto desde a última vez que vi a parede limpa”. Seu filho (a) responde: “Tudo bem, eu não escrevi, mas também não foi ninguém que escreveu”. Qual será a sua resposta? Você acreditaria nesta explicação dada pela criança? Por que não? Não poderia haver uma terceira possibilidade? A menos que você acredite que a casa seja assombrada ou algo do tipo, você provavelmente não levará a sério a explicação de seu filho (a). A pessoa que escreveu na parede precisa ser o seu filho (a) ou outra pessoa; não há uma terceira opção plausível. O mesmo se aplica com a “explicação” de Boettner (a mesma explicação utilizada pela maioria dos calvinistas) de que Deus não escolhe arbitrariamente, mas que também não escolhe embasado em nada especial acerca das pessoas que ele escolhe. Não existe uma terceira alternativa. A escolha precisa ser arbitrária para que seja abso­lutamente incondicional.

Diferente de Boettner e outros calvinistas, Edwards parece ter aceita­do, ao menos, que a escolha de Deus entre os eleitos e os não eleitos é arbitrária. Isto pode ser um choque para muitos calvinistas posteriores que contestam veementemente esta acusação acerca do Deus calvinista. Em seu famoso (ou infame) sermão “Pecadores nas Mãos de um Deus Irado”, Edwards apelou para a “vontade arbitrária de Deus” para explicar o tratamento de Deus com os não eleitos 46. Tal admissão é, ao menos, honesta, corajosa e consistente, mas ela suscita sérios problemas para o caráter e os caminhos de Deus.

Como Boettner lida com as passagens bíblicas que trazem a palavra “todos”? Em relação a João 3.16 e versículos semelhantes, ele diz que este “mundo” não significa todas as pessoas. Significa todos os tipos de pessoas 47. Uma vez que muitos calvinistas dão esta explicação, eu

46. Jonathan Edwards, “Sinners in the Hands of an Angry God,” in Jonathan Edwards: Representative Selections, 156.

47. Boettner, The Reformed Doctrine of Predestination, 293.

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deixarei a maioria da minha crítica contra ela para mais tarde neste capítulo quando resumo os problemas com as explicações calvinistas da reprovação de Deus. Por agora, basta dizer que esta interpretação de “mundo” dificilmente funciona, pois isso exigiria que inúmeras referên­cias à todo o mundo como caído significasse apenas todos os tipos de pessoas que são caídos.

Por exemplo, em João 1.10 está escrito que o “mundo” (mesma pa­lavra grega utilizada em João 3.16) não reconheceu a Palavra quando a Palavra veio. Se “mundo” em João 3.16 significa “ todos os tipos de pessoas” , então João 1.11 possivelmente significa que apenas algumas pessoas - de todos os tipos de pessoas, mas não todo mundo - não reconheceu Jesus como o Filho de Deus. Nenhum calvinista interpreta João 1.11 desta forma! A interpretação de Boettner de João 3.16 parece forçada. Embora ele não tenha coragem de dizer: “Deus odeia os não eleitos e este é o motivo pelo qual ele os reprova” , ele mais do que deixa isso implícito. Portanto, julgo justo e seguro dizer que Boettner, como muitos calvinistas, não pensa que Deus é amor conforme 1 João 4.8 diz, ou ele é, no mínimo, inconsistente ao lidar com a questão. Se a própria natureza de Deus é amor, então ele ama a todos e não apenas algumas pessoas de “todos os tipos”. (Claro, isso pressupõe mais uma vez que “amor” em Deus é análogo e não totalmente diferente do melhor amor conforme o conhecemos. Juntamente com Helm eu suponho isso, caso contrário a palavra amor não significa nada.

E em relação a 1 Timóteo 2.4 que diz, que Deus quer que “todos os ho­mens” se salvem? Boettner explica: “Versículos tais como 1 Timóteo 2.4, ao que parece, são melhores entendidos não como se referindo a homens individualmente, mas como ensinando a verdade geral de que Deus é benevolente que Ele não se deleita nos sofrimentos e morte de Suas criaturas” 48. Alguém só pode se perguntar: como é possível extrair essa interpretação desse versículo? E mais, como Deus não se deleita

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naquilo que ele mesmo preordenou e tornou certo para a sua glória? Ele não se deleita em ser glorificado? Este é, certamente, um enigma calvi­nista. Mas Boettner acrescenta isso: “É verdade que alguns versículos, interpretados por eles mesmos, realmente parecem sugerir a posição arminiana [a saber, que Deus realmente deseja a salvação de todos e a torna possível] Isto, entretanto, reduziria a Bíblia a uma massa de con­tradições”49. Alguém poderia simplesmente inverter a afirmação acima e substituir a “posição calvinista” pela “posição arminiana” e isso seria mais verdadeiro.

Sproul se esforça admiravelmente, mas, no fim das contas, não tem sucesso com o problema da bondade, amor e justiça de Deus em face de sua reprovação de muitas pessoas a quem ele poderia salvar. Primeiro, ele admite que Deus preordenou o pecado, e estou certo de que o citei o bas­tante para deixar claro que ele também acredita que Deus tornou o pecado certo50 Entretanto, ele defende, Deus não é responsável pelo pecado; nós somos 51. Deus é justo em condenar os réprobos porque eles o odeiam e são maus: “Há alguma razão pela qual um Deus justo precise ser amoroso para com uma criatura que o odeia e que se rebela constantemente contra sua divina autoridade e santidade?”52. Alguém só pode responder... sim. Porque a sua natureza é amar! (1 João 4.8) Além do mais, Romanos 5.8-10 diz que Deus amou os pecadores quando eles ainda eram pecadores e entregou Cristo por Eles! Sproul tende a descrever a Deus não como ten­do uma natureza amável; ele mais do que sugere que Deus ama alguns e odeia outros quando todos o odiaram e rebelaram contra sua autoridade e santidade 53. Isso nos traz de volta à questão da arbitrariedade.

49. Ibid.

50. SPROUL, R.C. Eleitos de Deus, Editora Cultura Cristã, 2002, p. 20-21.

51. Ibid.

52. Ibid., 23.

53. Na verdade, em O que é teologia reformada? 138, Sproul diz que Deus odeia o réprobo.

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Sproul enfrenta o problema da aparente arbitrariedade e falta de im­parcialidade de Deus (e eu acrescentaria a aparente ausência de amor) na dupla predestinação: “o desagradável problema para o calvinista [é]... se Deus pode e realmente escolhe assegurar a salvação de alguns, por que então ele não assegura a salvação de todos?” 54 De fato, por que não? Eis aqui a resposta de Sproul:

A única resposta que eu posso dar a esta pergunta é que eu não sei. Não tenho ideia por que Deus salva alguns e não todos. Não du­vido por um momento que Deus tenha o poder de salvar todos, mas eu sei que Ele não escolhe salvar todos. Realmente não sei por quê... Um a coisa sei. Se agrada a Deus salvar alguns e não todos, não há nada de errado com isso. Deus não está obrigado a salvar ninguém. Se Ele escolhe salvar alguns, isso de modo algum O obriga a salvar o restante.55

Sproul então se opõe aos não calvinistas que levantam essa questão como uma questão de tratamento igualitário e diz que Deus não preci­sa atender a nossos padrões de justiça 56. Tudo bem. Mas a justiça não é o cerne do problema. O cerne, que Sproul evita, é o amor. Se Deus pode(ria) salvar a todos pelo fato de a eleição para a salvação ser in­condicional e se Deus, por natureza, é amor, por que ele não salva? As únicas respostas que o Sproul pode oferecer são: (1) ele não ama a todos e, (2) Deus pode fazer o que quiser fazer, pois ele não tem obrigação de fazer nada para ninguém. Estas respostas degradam a Deus e impugna sua bondade e causam dano a sua reputação, que é embasada em seu caráter moralmente perfeito.

O que Sproul diz acerca de 1 Timóteo 2.4? Nada, não fui capaz de encontrar nenhuma explicação da importante passagem bíblica nos escritos de Sproul, mas ele escreveu tanta coisa que é possível que eu

54. SPROUL, R.C. Eleitos de Deus, Editora Cultura Cristã, 2002, p. 26.

55. Ibid.

56. Ibid., 26-27.

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não tenha encontrado seu comentário sobre a passagem em questão. Todavia, em Eleitos de Deus, ele, de fato, lida com 2 Pedro 3.9, que diz praticamente a mesma coisa, mas talvez não de maneira tão vigorosa. À medida em que Deus não quer que “ninguém pereça, mas que todos cheguem ao arrependimento”, Sproul diz que “ninguém” significa “os eleitos” 57. Contudo, tal explicação não funciona à luz de 1 Timóteo 2.4, que claramente se refere a todas as pessoas, sem exceções. (É por isso que Sproul ignora esse versículo bíblico, deixando-o sem comentário algum?).

Sproul também pega outra rota. Ele sugere que a Bíblia fala “mais de uma maneira” acerca da vontade de Deus” 58. Primeiro, ele diz, há a vontade soberana eficaz” de Deus. Esta vontade é a que os calvinistas chamam de “vontade decretiva” de Deus. Então há a “vontade precep­tiva” de Deus (suas ordenanças). Por fim, há a disposição de Deus — o que lhe agrada” 59. Assim, de acordo com esta interpretação de 2 Pedro 3.9 (e por extensão 1 Tm. 2.4), ela está dizendo que Deus deseja que todos sejam salvos ainda que ele não tenha por intenção salvar a todos.

Sproul diz que Deus se entristece em punir os ímpios 60. Ele faz uso de uma analogia de um juiz que deve sentenciar seu amado filho a prisão. Ele precisa sentenciar, mas aquilo o machuca. A analogia, claro, se quebra inteiramente. O juiz na ilustração não preordenou e nem tor­nou certo o crime de seu filho. Caso ele assim tivesse feito, ele estaria errado em sentenciá-lo à prisão! E mais, o juiz na analogia é obrigado a sentenciar seu filho à prisão; de acordo com Sproul, Deus não é obri­gado a salvar ninguém e poderia salvar a todos. Por fim, e se o juiz de Sproul que sentenciou seu próprio filho à prisão tivesse libertado outro

57. Ibid., 146.

58. Ibid.. 144-145.

59. Ibid., 145.

60. Ibid.

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homem que cometeu o mesmo crime? Todos não questionariam o amor do juiz por seu filho?

Vamos mudar a analogia um pouquinho. Suponha que um juiz tenha sentado em seu assento e chorado enquanto sentenciava seu próprio filho ã prisão por roubo a mão armada. Então fosse descoberto que o juiz fazia uso de condicionamento comportamental para fazer seu filho acreditar que roubo a mão armada é bom e correto e que levou seu filho, de carro, até o banco para que seu filho o roubasse. E que fosse descoberto também que o juiz havia concedido clemência a outro jo­vem que também havia roubado o banco da mesma maneira que seu filho o fez. Quem pensaria que o juiz era bom? E esta analogia da dupla predestinação é melhor do que a que foi utilizada pelo Sproul!

E concernente ao problema da aparente arbitrariedade de Deus a eleição e reprovação? Sproul diz: “Deus não faz nada sem uma razão. Ele não é caprichoso nem frívolo 61. Mas qual razão ele pode ter para escolher o João para a salvação e o Roberto para a condenação? Ele deixa claro por demais que a eleição e a reprovação são absolutamente incondicionais. Então, sua palavra final sobre o assunto é que Deus escolhe “segundo o beneplácito de sua vontade... Deus nos predestina de acordo com o que lhe agrada... O que agrada Deus é bondade... Embora a razão para nos escolher não esteja em nós, mas no divino prazer soberano, devemos ficar certos de que o divino prazer soberano é um beneplácito” 62 Mais uma vez, eu só posso responder de maneira chocada ou perplexa com um “hã”?

De volta à analogia que ofereci acima em resposta a reivindicação de Boettner de que a escolha de Deus não é arbitrária, mas que também não tem por base nada acerca das pessoas a quem ele escolhe. O apelo de Sproul para a “boa vontade” de Deus não diz nada acerca de como ele

61. Ibid., 115.

62. Ibid., 116.

186

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escolhe (ex. uma resposta livre ao evangelho capacitada por sua graça) e também elimina a escolha arbitrária, o que sobra? Nada concebível. Dizer “a boa vontade de Deus” é, então, dizer (conforme Edwards ao menos uma vez disse) “escolha arbitrária”.

John Piper aborda com grande vigor e imaginação o problema do amor de Deus em relação à sua escolha de alguns para que sofram nas chamas do inferno pela eternidade para a sua glória. Primeiro, como ele lida com as passagens bíblicas neotestamentárias que apresentam a palavra “todos” e com Ezequiel 18.23 - que ele chama de “textos ba­silares do arminianismo”? 63. Ele apela para as duas vontades de Deus: “Deus decreta uma situação enquanto também deseja e ensina que uma situação diferente aconteça” 64. Em outras palavras, Deus deseja que al­guns pereçam e, ao mesmo tempo, deseja que ninguém pereça. “Como um convicto crente na eleição individual incondicional, eu me regozijo em afirmar que Deus não se deleita na morte do impenitente e que ele tem compaixão de todas as pessoas. Meu objetivo aqui é mostrar que isso não é uma fala sem sentido” 65.

Então, como ele mostra que a fala não é sem sentido? Piper escreve acerca dos “sentimentos e motivos complexos de Deus” 66. Por um lado, Deus ama sua glória acima de todas as demais coisas: “Deus elege, predestina e garante por um propósito grande e final - que a glória de sua graça possa ser louvada para sempre e com afeição zelosa” 67. Mas, apesar do fato de que Deus recebe a glória da eleição e reprovação (ele concorda com os que argumentam que elas são inseparáveis como dois lados de uma moeda), ele também ama os não eleitos e possui genuína

63. John Piper, “Are There Two Wills in God?” 108.

64. Ibid., 109.

65 Ibid., 108.

66. Piper, The Pleasures of God, 146.

67. Ibid., 137.

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compaixão deles. Ele alega que Deus tem um “amor universal por todas as criaturas” que não é o amor que ele tem pelos eleitos. Então essa é a sua explicação para João 3.16 e 1 João 4.8. “Existe um amor geral de Deus que ele concede para todas as suas criaturas” 68. Mas apesar de amar todas as pessoas de alguma maneira, Deus apenas ama algumas pessoas da melhor maneira. Seu amor pelos não eleitos aparece nas bênçãos temporais que ele lhes concede. (Não consigo resistir e aqui digo que a visão do Piper equivale a dizer que Deus fornece aos não eleitos um pouquinho do céu para que depois sejam lançados no inferno!)

E concernente ao amor e a compaixão de Deus pelos eleitos? Piper assegura que Deus tem uma “compaixão verdadeira, que ainda está reprimida, no caso dos não eleitos, por razões consistentes e santas, de assumir a forma de uma volição para regenerar” 69. Além do mais, “afir­mo que Deus ama o mundo com uma profunda compaixão que deseja a salvação do mundo; todavia, também afirmo que ele escolheu desde antes da fundação do mundo os que ele salvará do pecado. A eleição é a boa nova que a salvação não apenas é uma oferta sincera para todos, mas um efeito certo na vida dos eleitos” 70.

Para ilustrar e defender esta ideia das duas vontades em Deus, Piper conta a história de George Washington e certo Major Andre, que havia cometido alguns atos de traição durante a Guerra Revolucionária71. Con­forme a história se desenvolve, Washington sentenciou o Major Andre à morte ainda que ele tivesse o poder de perdoá-lo. O futuro presidente e comandante supremo do Exército Continental teve grande compaixão do Major Andre enquanto assinava seu mandado de morte, que foi julgado necessária para sustentar a responsabilidade de seu cargo e as regras.

68. Ibid., 148.

69. Ibid., 145.

70. Ibid., 146.

71. Piper, “Are There Two Wills in God?” 128.

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Piper compara esta situação às emoções e sentimentos complexos de Deus ao passo que ele condena os réprobos.

Mas esta analogia funciona melhor do que a analogia do Sproul em que o juiz sentencia seu filho? A resposta é não, ela não funciona. Pri­meiro, se o Piper estiver certo, se Washington fosse verdadeiramente comparável a Deus, ele teria projetado e governado o crime do Major Andre e garantido que ele cometesse o crime. Quem consideraria Wa­shington bom por sentenciar o Major Andre à morte, se este fosse o caso - independente de quão “necessário” isso fosse para sustentar a responsabilidade de seu cargo e as regras?

Segundo, se o Major Andre fosse verdadeiramente comparável aos réprobos na teologia de Piper, ele não teria sido capaz de fazer o con­trário do que cometer o crime. Piper nega o livre-arbítrio libertário. Quem consideraria o Major Andre merecedor de morte caso ele fosse controlado por outra pessoa? (Lembre-se que, ainda que Piper acredite que as pessoas sempre ajam de acordo com seus motivos mais fortes- a visão de Edwards de “livre-arbítrio” - seu Deus também é a realida­de totalmente determinante e, desta forma, deve ser a causa final dos motivos controladores das criaturas)

Terceiro, a analogia sugere uma limitação de Deus - algo que certamen­te Piper não quer admitir considerando seu poderoso engrandecimento da supremacia de Deus em todas as coisas. Washington foi obrigado a sentenciar o Major Andre a morte: ele sentiu que a responsabilidade de sua posição lhe obrigava a fazer isso ao passo que ele devia satisfações ao Congresso Continental, seus companheiros oficiais e soldados e os cida­dãos das colônias. A quem Deus deve satisfações? Se ele sente tamanha compaixão pelos réprobos, por que ele não simplesmente os perdoa? Ele poderia, a menos que ele seja limitado e controlado por algo sobre o qual ele não tenha nenhum poder. Afinal de contas, a eleição de Deus para a salvação, no calvinismo, é absolutamente incondicional. Voltamos ao problema de Edwards da dependência implícita de Deus do mundo!

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Por fim, a analogia se desmonta, pois para ser uma analogia válida, Washington já teria de ter perdoado, pelo menos, outra pessoa que tenha cometido exatamente o mesmo crime que o Major Andre. Afinal de contas, de acordo com Piper, é isso o que Deus faz - perdoa (elege para a salvação incondicionalmente) muitas pessoas que não são em nada melhores que as pessoas que ele reprova. Quem consideraria Wa­shington “compassivo” neste caso? Ele não seria considerado arbitrário e caprichoso e suspeito de só querer mostrar sua severidade? 72

E concernente ao problema da chamada e convite do evangelho se Deus já tem escolhido alguns para a condenação? Muitos dos autores calvinistas aqui pesquisados não lidam diretamente com o problema. Como a chamada do evangelho poder ser oferecida de maneira since­ra a todos (o que a maioria dos calvinistas afirma) se alguns já foram escolhidos por Deus para a condenação e não têm nenhuma chance de serem aceitos por Deus? Piper responde a questão, de forma breve, em “Are There Two Wills in God? (Existe Duas Vontades em Deus?)” Ele diz: “A eleição incondicional [e por extensão, claro, a reprovação]... não anula as ofertas sinceras da salvação para todos que estão perdidos entre todos os povos do mundo” 73 Claro, tal é apenas uma declaração; ela carece de uma explicação.

Este é um problema enorme para qualquer um que acredite que seja apropriado para o pregador do evangelho fazer uma oferta de salvação a todos que estiverem ao alcance de sua voz. Todavia, a maioria dos

72. Alguns calvinistas, e suspeito que Piper seja um deles, sem dúvida responderiam às minhas reivindicações de que sua doutrina torna Deus em um ser arbitrário ao dizer que Deus tem “motivos consistentes e santos” para suas decisões, motivos estes que não podemos compreender. Todavia, isto é apenas uma frase, ela não nos informa de nada. Uma vez que Piper e outros calvinistas desqualificam tudo que Deus possa ver em nós ou acerca de nós como base para a sua escolha, a única alternativa que nos resta é a escolha arbitrária. Eu desafio os calvinistas a dizer quais “motivos consistentes e santos” de Deus para escolher uma pessoa em detrimento de outra uma vez que tudo acerca da pessoa escolhida é eliminado como uma causa da escolha de Deus.

73. John Piper, “Are There Two Wills in God?” 107.

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calvinistas evangélicos, de fato, acredita que seja legítimo, ainda que o

pregador saiba que há muitas pessoas entre os presentes que não podem

responder ao convite e para os quais o convite é impossível de ser aceito

em razão de Deus ter fechado a porta da possibilidade de sua chegada à fé e pelo fato de Jesus não ter morrido por eles! (Este é o assunto do capítulo seguinte).

TESTEMUNHAS CONTRA A DUPLA PREDESTINAÇÃO

Embora eu já tenha tornado conhecido meus receios (para dizer o mínimo!) acerca da dupla predestinação e principalmente o lado da reprovação da predestinação, agora quero convocar outras testemunhas para que deem seus testemunhos de por que a dupla predestinação não é bíblica e indigna do caráter de Deus conforme revelado na Escritura e principalmente em Jesus Cristo, e também porque ela é simplesmente iló­gica em termos de suas indesejadas “consequências lógicas e necessárias”.

Minha primeira testemunha é o teólogo G. C. Berkouwer - aquele grande e influente pensador reformado do século XX. Em seu livro Divi­

ne Election, Berkouwer expressa grande incómodo com qualquer forma de determinismo divino e, principalmente, qualquer preordenação de indivíduos para a condenação eterna. Ele argumenta que a doutrina calvi­nista de predestinação deve ser interpretada de forma não determinista: “ Por um lado, queremos manter a liberdade de Deus na eleição, e, por outro, evitar qualquer conclusão que faça de Deus a causa do pecado e da descrença” 74. Ele expressa frustração com a abordagem de Calvino, que diz, por um lado, que os seres humanos são a única causa de sua rejeição, mas que também diz, por outro lado, que Deus é a fonte final da “ruína e condenação” dos mesmos 75.

74. G. C. Berkouwer, Studies in Dogmatics: Divine Election (Grand Rapids: Eerdmans, 1960), 181.

75. Ibid., 187.

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Berkouwer rejeita qualquer causalidade de pecado, mal ou reprovação e defende a predestinação única sem a chamar dessa forma. Para ele, a reprovação não é um decreto de Deus, mas “o lado obscuro” da “luz da eleição” 76. De sua própria visão, que ele sustenta ser consistente com as confissões reformadas, ele diz: “Esta doutrina se opõe ao assim chamado “predestionalistas” que ensinam uma dupla predestinação no sentido de que Deus, desde a eternidade, ordenou um grupo para a salvação e outro como decididamente para a preterição [condenação], e que Cristo não morreu pelos réprobos” 77.

Mais importante para os nossos propósitos é que Berkouwer rejeitava a interpretação calvinista tradicional de Romanos 9 - o texto fundamental da dupla predestinação. De Romanos 9-11 ele escreveu: “Está cada vez mais sendo aceito que esta passagem não se trata primeiramente de estabelecer um locus de praedestinatione como uma análise de eleição ou rejeição individual, mas, preferivelmente, [trata de] certos problemas que surgem na história da salvação” 78. De acordo com ele, os “vasos de ira” de Paulo não são indivíduos predestinados para o inferno, mas Israel, que Deus temporariamente abandonou a fim de enxertar os gentios em seu povo” 79.

Berkouwer não é tão claro ou tão comunicativo acerca de suas visões sobre a predestinação como eu gostaria. Mas uma coisa é clara, ele rejeita o determinismo divino, principalmente em relação ao mal e à condenação. Ele opta por uma abordagem dialética ou paradoxal que tenta conduzir um curso entre a Cila do indeterminismo e Caríbdis do determinismo. Ambos são rochas sobre as quais a teologia irá se partir caso ela não seja cuidadosa. Por fim, sobre a vontade de Deus e a vontade

76. Ibid., 195.

77. Ibid., 198.

78. Ibid., 212.

79. Ibid., 215.

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do homem, ele alega que “toda forma de competição torna-se impossí­vel. Há relações aqui que não possuem analogias humanas” 80. A crítica mordaz de Sproul da predestinação única pode se aplicar á explicação de Berkouwer (se ela puder ser chamada de explicação!), mas a questão aqui é simplesmente que um dos teólogos reformados mais influentes do século XX lutou veementemente contra a reprovação divina como sendo inconcebível, considerando o caráter de Deus revelado em Jesus e através de toda a Bíblia.

Uma das principais razões pela qual Berkouwer rejeita a dupla predes­tinação ou qualquer forma de determinismo divino é que ela minimiza a pregação do evangelho. Eu irei prosseguir e voltarei mais tarde com mais detalhes para esse importante tópico quando for considerar as objeções do principal discípulo estadunidense de Berkouwer, James Daane, que escreveu um livro inteiro acerca do conflito entre o determinismo divino e a pregação do evangelho.

Berkouwer leva as passagens bíblicas que apresentam a palavra “todos” com extrema seriedade e afirma o amor de Deus pelo mundo inteiro, sem exceção. Ele rejeita a noção dualista de duas vontades em Deus 81. Ele diz que os textos universalistas devem ser levados a sério sem que se afirme o “universalismo objetivo” - a visão de que, por fim, não existem condenados. Na análise final, a abordagem de Berkouwer só é útil em criticar a dupla predestinação, mas não em oferecer uma alternativa viável, pois, embora ele leve os textos que apresentam a palavra “todos” muito a sério, ele se prende a ideia de predestinação única, que é, por fim, insus­tentável. Não acredito que seja possível levar os textos que apresentem a palavra “todos” a sério enquanto se possa abraçar qualquer forma de eleição incondicional - mesma visão inconsistente de eleição única de Berkouwer (a menos que alguém opte pelo universalismo).

80. Ibid., 216.

81. Ibid., 238 - 39.

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Um teólogo reformado que se afasta mais da eleição incondicional que Berkouwer, mas pelas mesmas razões, é James Daane. Em The

Freedom o/God ele critica severamente todo o sistema de pensamento do calvinismo rígido da eleição incondicional em termos de escolha de Deus de indivíduos e, principalmente em termos de números. Ele chama o calvinismo rígido de “teologia decretai” , “teologia do decreto único” e “escolasticismo reformado”, sendo que todos estes nomes significam o que chamo de “determinismo divino”. Esta teologia, ele diz, não pregará, e é por isso que há tão pouca pregação da eleição nas igrejas reformadas. (Ele escreveu isso bem antes da renascença do calvinismo do movimento neocalvinista dos jovens, incansáveis e reformados). Para ele, (como para mim) a eleição incondicional de indivíduos não é, de fato, boas novas, pois ela necessariamente sugere a reprovação de indivíduos: “Uma vez que alguém se compromete com o decreto da te­ologia decretai, é teologicamente impossível para ele permitir, justificar ou explicar a pregação do evangelho para todos os homens” 82.

Daane argumenta que os seguidores de Calvino, cada vez mais, de­finiram a eleição em separado da graça ao incorporar a reprovação em suas teologias. Para ele: “A Escritura fala de predestinação para á vida, mas não para a morte” 83. E ele reconhece que a predestinação para a morte é automaticamente o outro lado da eleição incondicional de indivíduos para a salvação. Daane rejeita toda a abordagem do calvinis­mo tradicional ao passo que ele inevitavelmente torna Deus o autor do pecado e condenação e que precisa apelar para duas ou três vontades em Deus, incluindo uma vontade secreta (para condenar alguns apesar de revelar sua vontade de salvar todos)84. A abordagem do calvinismo tradicional também se contradiz ao culpar os humanos por sua depra-

82. Daane, The Freedom of God, 33.

83. Ibid., 37.

84. Ibid., 39.

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vação e condenação quando Deus decretou tudo isso desde o início 85.A análise de Daane do calvinismo rígido penetra bem em seu alicer­

ce básico: a doutrina de Deus. “A fraqueza básica da teologia decretai parece ser precisamente seu entendimento do relacionamento de Deus com o mundo” 86. Esta teologia escolástica, ele corretamente argumenta, faz de Deus e o relacionamento de Deus com o mundo, não histórico, onde a Bíblia retrata Deus como entrando na história de maneira livre. “A possibilidade de levar a história a sério, como real e não meramente aparente, é executada pela definição escolástica do decreto único” 87. Para a teologia decretai escolástica, ele diz, nada no mundo pode realmente afetar a Deus; tudo, incluindo o pecado e o mal e a condenação são determinados por Deus. O resultado, ele diz, é que a “teologia decretai é uma profunda racionalização de tudo o que há” 89.

E mais, nessa teologia, o amor de Deus é realmente seu amor para ele mesmo e Cristo morreu para Deus em vez de pelo mundo 89. O pior de tudo, de acordo com Daane, esta teologia acaba por privar Deus de sua liberdade, tudo o que é, é o que deve ser - até mesmo para Deus.

Para Daane, a teologia reformada precisa recuar e levar a narrativa bíblica mais a sério que seu escolasticismo. O Deus da Bíblia realmente

decreta algo; ele decreta “entrar na história ao sair de Si, de maneira criativa, para e adentro tanto da criação quanto da redenção”90 Daane diz que “ao criar o mundo, Deus condicionou a si mesmo, mas com esta condição - que ele continuasse sendo Deus” 91. Essa é a liberdade de

85. Ibid.

86. Ibid., 63.

87. Ibid.. 86.

88. Ibid.. 81.

89. Ibid., 67, 92.

90. Ibid., 149.

91. Ibid., 63 - 64.

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Deus; envolver a si mesmo no mundo, seu tempo e história, seu sofri­mento e dor, a fim de tomar a responsabilidade para si e, deste modo, redimir o mundo. O pecado, então, não é preordenado por Deus como o calvinismo rígido diz. Daane rejeita essa noção: “A teologia decretai é muito vulnerável em sua inabilidade em manter a gravidade do peca­do”92. Ele quer dizer que ela faz do pecado, assim como todas as demais coisas, uma questão de curso; ele é decretado e preordenado necessaria­mente por Deus e, portanto, não é algo, de fato, que se oponha a Deus.

Daane parece se mover em direção a uma teologia de Deus como assumindo riscos, embora não chegue a se posicionar do lado arminia­no nem do teísmo aberto (a visão de que Deus não conhece o futuro de maneira absoluta). Por que ele caminha para essa direção? Porque ele leva a história a sério - a história bíblica de redenção que inclui Deus nela como muito envolvido em vez de pairando sobre ela como seu autor. Além do mais, ele leva o amor de Deus em Jesus Cristo muito a sério; ele leva a liberdade de Deus muito a sério não como sua liberdade de ser afetado pelo mundo, mas sua liberdade para ser afetado pelo mundo.

E concernente à eleição? Se Daane é “ reformado”, ele deve explicar a eleição. E ele explica. Daane a chama de eleição incondicional. Mas ela é a eleição incondicional de Deus de Jesus Cristo e seu povo, Israel e a igreja. Não é a aceitação incondicional de Deus de algumas pessoas para a salvação e a correspondente rejeição de outros para a condenação. “A Bíblia nada fala de uma doutrina de eleição isolada e individualista” 93. E ela nada tem a ver com o determinismo histórico.

Para Daane, a eleição não possui relação com números, transformá-la em números é inevitavelmente fazer da reprovação uma parte da eleição, o que torna a eleição impregável. “A eleição no pensamento bíblico jamais é uma seleção, uma aceitação disto e uma rejeição daquilo dentro de

92. ibid., 80.

93. ibid., 114.

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múltiplas realidades”. Antes, “a eleição é uma chamada para o serviço, uma convocação para ser colaborador com Deus na realização do pro­pósito e objetivo eletivo de Deus”94. Este propósito e objetivo eletivo de Deus gira em torno de Jesus Cristo como a missão de Deus no mundo para salvá-lo 95.

E Romanos 9-11 e Efésios 1 ? Dizem que estas duas passagens bíblicas neotestamentárias são as provas da doutrina calvinista rígida da dupla predestinação. Daane corretamente diz que Romanos 9- 11 não forma um comentário bíblico sobre a verdade da eleição individual. Em vez disso, é um comentário sobre o fato da inviolabilidade da eleição de Deus de Israel como uma nação” 96. Eleição para o quê? Para serviço de abençoar todas as nações ao apresentar Jesus Cristo - o verdadeiro sujeito e objeto da graça eletiva de Deus. Efésios 1, que fala muito de eleição, não trata-se de indivíduos e de seus destinos eternos, mas de um povo de Deus. O “nós” repetido em todo o capítulo, em referência ao povo de Deus, é plural: o novo povo de Deus, a igreja 97.

A abordagem reformada revisionista de Daane é muito mais prefe­rível ao determinismo divino do calvinismo e a dupla predestinação, incluindo a reprovação. E ela vai consideravelmente além de Berkower na anulação do escolasticismo calvinista. É correto focar na inabilida­de de pregar essa teologia como boas novas, pois ela inevitavelmente inclui o pecado, mal, sofrimento inocente e o inferno como a vontade de Deus - tudo o que os seus defensores possam dizer. Além disso, sua “consequência lógica e necessária” faz de Deus menos do que amável, menos do que livre e menos do que bom. Ela também faz com que a história não seja real, pois nada, de fato, acontece; tudo é simplesmente

94. ibid.. 150.

95. Ibid., 109.

96. Ibid., 114.

97. Ibid., 139 - 40.

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a execução do plano eterno e preordenado de Deus em um palco que foi feito para glorificar o autor e o diretor da peça, mas que, na verdade, faz com que ele seja monstruoso.

Talvez ninguém na história da igreja desde a reforma tenha atacado o calvinismo rígido e, principalmente, a dupla predestinação tão fe­rozmente quanto João Wesley, autor de dois tratados sobre o assunto: “Graça Livre” e “Predestinação Calmamente Considerada”. Sugiro que quaisquer pessoas que queiram ler uma crítica relativamente curta ao calvinismo rígido e que é simplesmente arrasadora, leiam pelo menos um destes dois escritos. Infelizmente, em certos lugares, a ferocidade de Wesley contra essa teologia fica quase que pessoal; sua linguagem contra esta teologia contribuiu para a ruptura de sua amizade com o o avivalista George Whitefield (1714 - 1770), um calvinista de cinco pontos.

Wesley corretamente declara, com até mesmo Sproul e muitos cal­vinistas, que a “predestinação única” é impossível. Seu argumento é digno de uma citação longa para aqueles que ainda pensam ser possível acreditar na eleição sem a reprovação:

Você ainda acredita que, em consequência de um decreto divino imutável e irresistível, a maior parte da humanidade permanece na morte, sem qualquer possibilidade de redenção: visto que ninguém pode salvá-los, exceto Deus; e ele não os salvará. Você acredita que ele decretou, de maneira absoluta, não salvá-los, e o que é isto senão decretar condená-los? Na verdade, as duas coisas são, sem tirar e nem acrescentar; exatamente a mesma coisa. Pois se você está morto e totalmente incapaz de reviver a si mesmo; então se Deus decretou, de maneira absoluta, sua morte eterna - você está absolutamente fadado à condenação. Então ainda que faça uso de eufemismos [a saber, predestinação única], você quer dizer a mesma coisa ,8.

98. John Wesley, “Free Grace,” em The Works o/John Wesley, Vol. 3, Sermons 71 - 114 (Grand Rapids: Zondervan, n.d.), 547.

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Então ele prossegue para destruir esta doutrina: “Suponha que ele [Deus] os envie [os réprobos] para o fogo eterno em razão de não terem se livrado do pecado! Ou seja, em termos diretos, por não terem recebido a graça que Deus decretou que eles jamais teriam! Ah, justiça estranha! Que imagem vocês fazem do Juiz de toda a terra!”99

À luz de todas as passagens que apresentam a palavra “todos” mencio­nadas várias vezes neste capítulo, Wesley diz que a eleição incondicional, que necessariamente inclui a reprovação, questiona a sinceridade de Deus. Em relação á chamada universal para o arrependimento e salvação e o desejo expresso de Deus de que todos respondam a elas a fim de que sejam salvos, Wesley propõe uma imagem para ilustrar o problema: um carcereiro chamando os prisioneiros para que deixem as celas sem que as portas das prisões estejam abertas l0°. “Ah, meus irmãos, que tipo de sinceridade é essa que vocês atribuem a Deus, nosso Salvador?” 101.

Então ele aborda a questão da bondade e do amor de Deus claramen­te revelados em Jesus Cristo e passagens tais como as de João 3.16 e 1 João 4.8. “Como Deus é bom ou amável para com o réprobo ou alguém que não seja eleito?” I02. Aos que argumentam que Deus realmente ama os réprobos de alguma maneira e lhes é bom, Wesley pergunta como Deus poderia ser bom para ele neste mundo (ex. em dons temporais) “quando para ele era melhor que ele não tivesse nascido?” 103. Quanto ao amor de Deus para com eles: “ Esse amor não é de gelar o sangue nas veias?... Se, pelo bem da eleição, você engolirá a reprovação, bem. Mas se você não conseguir digerir isso, você deve necessariamente desistir da eleição incondicional” 104.

99. John Wesley, “Predestination Calmly Considered,” em The Works of John Wesley, Vol. 10, Letters, Essays, Dialogs and Addresses (Grand Rapids: Zondervan, n.d.), 221.

100. Ibid., 227.

101. Ibid.

102. Ibid.

103. Ibid., 227 - 28.

104. Ibid., 229.

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W esley continua em seu serm ão “ Predestinação Calm am ente Considera­

d a ” (que talvez devesse ter sido m ais bem cham ada de “ Predestinação Não Tão C a lm am ente Considerada!) para argum entar que Deus não é exaltado

pela eleição incondicional, mas, em vez disso, é desonrado, e isso no m ais

elevado nível, ao supor que Ele despreza as obras de suas próprias m ãos” 105.

Mas, m ais um a vez, para os calvinistas rígidos que dizem que Deus am a os

não eleitos e é bom para com eles, ele, desdenhosam ente, indaga:

O que a voz universal da humanidade pronunciaria a respeito do homem que age desta maneira? Que, sendo capaz de libertar milhões de homens da morte com um único sopro de sua boca, se recuse a salvar mais do que um em uma centena e diga: “Não salvarei porque não salvarei!” Como então você exalta a misericórdia de Deus, quan­do você atribui tal comportamento a ele? Que comentário estranho é esse ern sua própria palavra diz que “suas misericórdias são sobre todas as suas obras!” 106

Na conc lusão de sua longa crítica , W e s le y ch a m a a du p la p red es ti­

nação (que é n ecessa riam en te o outro lado da m o ed a da e le ição in co n ­

d ic io n a l) de “ um erro tão p e rn ic io so para as m en tes dos h o m e n s ” 107.

O que dizer de R om anos 9? Com o W es ley lida com a passagem bíb lica

crucia l (para os ca lv in is tas)? E le a in terp re ta do je ito que p ra ticam en te

todos os não ca lv in istas a in terp re tam :

A passagem é inegavelmente clara, que ambas as escrituras [versículos 12 e 13] tratam, não das pessoas de Jacó e Esaú, mas de seus descendentes; os israelitas; descendentes de Jacó e os edomitas; descendentes de Esaú. Somente neste sentido é que o “mais velho” (Esaú) “serviu ao mais novo”; não em sua pessoa (pois Esaú jamais serviu a Jacó), mas em sua posteridade. A posteridade do irmão mais velho serviu a posteridade do irmão mais novo 108.

105. Ibid., 255.

106. Ibid., 235.

107. Ibid., 256.

108. Ibid., 237.

200

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Em outras palavras, “Jacó” e “Esaú” são símbolos para Israel e Edom, e para Paulo em Romanos 9 os dois nomes se referem a Israel e aos Gen­tios, que é tudo o que Paulo trata na seção de Romanos! Wesley conclui: “Então aqui também não temos um exemplo de qualquer homem sendo, em última instância, condenado pela mera vontade soberana de Deus” l09.

Para Wesley, a doutrina da dupla predestinação é “uma doutrina cheia de blasfêmia” "0 “tal que faz [ou deveria fazer] os ouvidos dos cristãosformigarem.... . Ela destrói todos os atributos de Deus (amor, justiça,compaixão etc.) e representa o Deus santíssimo como “pior que o diabo, mais falso, mais cruel e mais injusto” " 2. É por isso que Wesley, por fim, conclui acerca de Romanos 9 e de passagens semelhantes reivindicadas por calvinistas como prova de sua doutrina: “Seja lá o que a passagem provar, ela jamais pode provar isso. Seja lá qual for seu verdadeiro signifi­cado, isso não pode ser seu verdadeiro significado... Nenhuma passagem bíblica pode provar que Deus não é amor ou que sua misericórdia não está sobre toda a sua criação. Ou seja, seja lá o que ela provar além disso, nenhuma passagem bíblica pode provar a predestinação” "3.

ALTERNATIVAS À ELEIÇÃO INCONDICIONAL/REPROVAÇÃO

Felizmente, Wesley não deixou o assunto apenas nisso; ele ofereceu uma alternativa à doutrina que ele chamava de “blasfêmia”. Sua alterna­tiva é o arminianismo clássico, que não é o que a maioria dos calvinistas pensa. Geralmente a situação é apresentada como uma situação definida entre ou isso ou aquilo: ou salvação por obras de justiça ou salvação por eleição incondicional. Assim como todos os verdadeiros arminianos

109. ibid.

110. Wesley, “Free Grace,” 554.

111. Ibid., 555.

112. Ibid.

113. Ibid., 556.

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clássicos, Wesley afirmava como o início seu primeiro princípio: “Tudo o que for bom no homem ou for feito pelo homem, Deus é o autor e o realizador disso” " 4. Contrário ao que muitos pensam, Wesley, como um arminiano clássico, afirmava que a salvação é inteiramente da graça

e que não possui nenhuma relação com o mérito do homem:

[A salvação] é livre em todos a quem ela é dada. Ela não depen­de de qualquer poder ou mérito no homem, não depende em nível nenhum, nem no todo, nem em parte. Ela não depende de modo nenhum nem das boas obras ou justiça do recebedor; nem de nada que ele tenha feito ou qualquer coisa que ele seja. Ela não depende de seus empenhos. Ela não depende de sua boa disposição, bons desejos ou boas intenções; pois todas estas coisas derivam da graça livre de Deus " 5.

Todavia, Wesley não acreditava que essa posição de “graça livre” acerca da salvação exigisse a eleição incondicional. Para ele, a salvação é dada por Deus à pessoa que livremente responde ao evangelho com arrependimento e fé, que não são dons de Deus ou “boas obras” , mas respostas humanas ao dom de Deus da graça preveniente. Ele afirmava o pecado original, incluindo a depravação total no sentido de incapacidade espiritual. Mas ele também afirmava o dom universal de Deus da graça preveniente ou capacitadora que restaura a liberdade da vontade: “O próprio poder de ‘trabalhar juntamente com Ele’ veio de Deus” ll6. Este pode trabalhar juntamente com Deus para a salvação (que é inteiramente obra de Deus) é simplesmente a graça convidativa, iluminadora e capa­citadora que Deus implanta em um coração humano em razão de seu amor e em razão da obra de Cristo"7. Mas esta graça é resistível, não irresistível. Ela é dada em certa medida para todos. A eleição é simples-

114. ibid., 545.

115. ibid.

116. Wesley, “Predestination Calmly Considered,” 230.

117. Ibid., 232 - 33.

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mente a presciência de Deus de quem livremente receberá esta graça para a salvação (Rm. 8.29) " 8. A reprovação é simplesmente a rejeição do homem desta graça e a presciência de Deus disso.

Wesley pergunta aos calvinistas e aqueles tentados a se juntar a eles pelo fato deles parecerem fazer de Deus mais glorioso: “De que maneira Deus recebe mais glória ao salvar o homem irresistivelmente do que ao salvá-lo como agente livre, através de uma graça que pode ser coope­rada ou resistida?” 1,9 Para Wesley, a salvação do homem como agente livre faz com que Deus seja mais glorioso, pois tal não exige que Deus odeie ninguém ou que trate ninguém de maneira injusta. Para Wesley, a glória de Deus jaz em seu caráter moralmente perfeito mais do que em sua unicausalidade - algo que ele rejeita como impróprio para Deus, considerando o mal no mundo.

Alguém que trabalhou sobre o problema de Romanos 9 e outras pas­sagens acerca da eleição sem concluir que elas exijam crença em uma predestinação incondicional e individual é o erudito bíblico arminiano William Klein, autor de The New Chosen People. Nesta obra ele realiza um estudo detalhado das línguas originais de passagens bíblicas que são reivindicadas como dando suporte à predestinação individual para o céu ou para o inferno e conclui que “os escritores do Novo Testamento lidam com a eleição salvífica, primeiramente, se não exclusivamente, em termos cooperativos” '20. Sua conclusão teológica sistemática é que “Deus escolheu a igreja como um corpo em vez de pessoas em específico que populam o corpo” 121. Klein encontra base para esta visão em toda a Bíblia, mas, principalmente, menciona 2 João 1 e 13.

118. ibid., 210.

119. Ibid., 231.

120 William Klein, The New Chosen People (Eugene, OR: Wipf & Stock, 2001), 257.

121. Ibid., 259.

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Ainda mais básico que a eleição corporativa, todavia, de acordo com Klein, é a eleição de Deus de Jesus Cristo: “Cristo é o Escolhido de Deus, e a igreja é escolhida nele” l22. As duas coisas estão intrinseca­mente ligadas. Ele faz uso de Romanos 5 onde Paulo fala sobre “Adão” e “Cristo” como representantes e, em um sentido, como personalidades corporativas 123. Romanos 9, então, pressupõe esta ideia de uma unida­de corporativa, que Klein diz que está pressuposta em todos os lugares no mundo do pensamento bíblico l24. Assim como o “primeiro Adão” representa a humanidade caída em Romanos 5 e na mesma passagem “Cristo, o novo Adão” , representa a nova humanidade, assim em Ro­manos 9 “Jacó” representa o povo de Deus e “Esaú” não representa o povo de Deus. De acordo com Klein, então, como alguém se torna uma das pessoas eleitas? “Assim como Israel tornou-se o povo escolhido de Deus quando Deus escolheu Abraão e Abraão respondeu com fé, assim a igreja encontra sua eleição em unidade com Cristo, ou seja, em sua igreja e, assim, torna-se um eleito”. “ Exercer a fé em Cristo é entrar em seu corpo e tornar um dos ‘escolhidos’” 126.

Aqui será útil, quase necessário, citar o Klein extensivamente, pois várias passagens em seu livro resumem muito bem a principal alternativa

à visão calvinista rígida da eleição e salvação. É uma afirmação breve da teologia arminiana clássica:

Quando se trata da provisão da salvação e a determinação de seus benefícios e bênçãos, a linguagem dos escritores neotestamentários é dominante. Deus decretou, em sua soberana vontade, prover a salva­ção e então ele estabeleceu Jesus para garantir a salvação através de sua vida humana e ressurreição (Hb. 10.9-10). Ele planejou estender

122. Ibid., 260.

123. Ibid., 262.

124. Ibid., 260- 61.

125. Ibid., 264.

126. Ibid., 265.

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sua misericórdia ao seu povo e de endurecer e punir os que não cre­em. Ele predestinou ou predeterminou o que os que creem gozarão por virtude da posição deles em Cristo. Podemos traçar a salvação e tudo o que ela abarca unicamente ao beneplácito da vontade de Deus.

A vontade de Deus não determina especificamente as pessoas que receberão a salvação. A linguagem de “querer” abrange a todos, não um número seleto. A vontade de Deus não é restritiva; ele quer que todos sejam salvos. Todavia, as pessoas só podem obter a salvação nos termos de Deus. Embora Jesus deseje revelar Deus a todos, apenas os que vêm até ele em fé encontram Deus e a salvação que ele oferece. O fato de que alguns falham em encontrar a salvação, tal só pode ser atribuída a indisposição deles de acreditar - à preferência deles por seus próprios caminhos ao caminho de Deus. Se Deus deseja a salvação para todos, ele quer (no sentido mais forte) dar vida aos que acreditam. Estas duas coisas não são incompatíveis. Elas colocam a iniciativa em Deus por prover a salvação e a obrigação das pessoas em recebê-la nos termos de Deus - fé em Cristo. Deus fez mais do que meramente prover a salvação; ele “atrai” as pessoas (Jo. 6.44) de sorte que elas vêm à Cristo. Na verdade, as pessoas vêm à Cristo porque Deus as capacita (Jo. 6.65). Entretanto, estas ações de atrair e capacitar não são seletivas (apenas alguns são escolhidos para ela) e nem são irresistíveis. A crucificação de Jesus foi o meio de Deus de atrair todas as pessoas à Cristo (Jo. 12.32). Foi a provisão de Deus para sua salvação. Todos podem responder a proposta de Deus, mas eles devem fazer de maneira que depositem sua confiança em Cristo. Uma vez que Deus atrai a todos pela Cruz e ele deseja que todos se arrependam de seus pecados e encontrem a salvação, não é a vontade de Deus que determina precisamente quais pessoas encontrarão a salvação. Embora Deus certamente saiba quem estes serão, e embo­ra ele os escolheu como um corpo em Cristo, as pessoas devem se arrepender e acreditar na vontade de Deus para que seja feito” 127.

Alguém pode dizer: “ Bem , tudo está bem , exceto - que isso faz de

Deus m enos g lo rioso !” A resposta certa é: “ De que m a n e ira ? ” O crítico

pode dizer: “ E la lim ita a D e u s ” A resposta é: “ Deus não é soberano so­

bre sua so beran ia? Deus não pode lim itar-se para dar livre-arbítrio para

as pessoas? Se Deus, ao to rnar a sa lvação dependen te das decisões das

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pessoas for totalmente embasado na própria escolha voluntária de Deus, como isso pode ser menos glorioso? A cruz foi menos gloriosa porque ela não foi uma demonstração de poder e força ou majestade, mas de servilidade sofredora? Talvez seja o caso que a visão da glória de Deus do calvinista rígido seja embasada em uma noção humana de glória?”

Um teólogo que coloca a ideia da autolimitação de Deus em uso para falar acerca da grandeza e bondade de Deus, incluindo a eleição condicional de pessoas, é Jack Cottrell, autor de muitos livros de teologia arminiana. Como muitos outros críticos do calvinismo rígido, ele defende que a eleição incondicional e reprovação levam ao determinismo e, desta forma, distante do livre-arbítrio e de um Deus de amor e compaixão. O Deus do calvinismo, ele assevera, é um cuja soberania é marcada pela unicausalidade e incondicionalidade128. À luz do pecado, mal e sofrimento inocente da história e, principalmente à luz da realidade do inferno, tais coisas são inconsistentes com a bondade de Deus. Um Deus soberano unicausal e incondicional seria o autor do mal e de tudo isso. A única forma de evitar isso, Cottrell corretamente argumenta, é acreditar na autolimitação divina e uma tal além do que os calvinistas geralmente permitem. De acordo com Cottrell:

Deus limita a si mesmo não apenas por criar um mundo como tal, mas também e ainda mais longe pelo tipo de mundo que escolheu criar. Ou seja, ele escolheu fazer um mundo que é relativamente independente dele... Isso significa que Deus criou os seres humanos como pessoas com um poder inato de iniciar ações. Quer dizer, o homem é livre para agir sem que seus atos precisem ser predeterminados por Deus e sem coa­ções simultâneas e eficazes de Deus. Em termos simples, é permitido ao homem exercer seu poder de livre escolha sem interferência, coerção ou preordenação. Ao não interferir em suas decisões a menos que propósitos especiais exijam, Deus respeita tanto a integridade da liberdade que ele concedeu aos seres humanos quanto à integridade de sua própria escolha soberana de, em primeiro lugar, criar criaturas livres 129.

128. Jack Cottrell, “The Nature of Divine Sovereignty” em The Grace of God, The Will of Man, ed. Clark H. Pinnock (Grand Rapids: Zondervan, 1989), 106 - 7.

129. Ibid., 108.

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Claro, Cottrell não é o primeiro teólogo a pensar isso. Tal pensamento pode ser encontrado, por exemplo, no teólogo reformado suíço Emil Brunner (e Cottrell cita Brunner como fonte). Todavia, Cottrell explica a ideia de autolimitação divina clara e concisamente e a defende bem como necessária a fim de entender como Deus é soberano e, entretanto, não está deterministicamente no controle de tudo, o que levaria direto ã dupla predestinação e, deste modo, minimizaria, isso se não destruir, a bondade de Deus.

Ao criar, em especial, este mundo com sua liberdade humana conce­dida por Deus para se rebelar e pecar, Deus obrigou-se a reagir apenas em certas situações e não em outras. Isso não significa, de maneira nenhuma, uma diminuição de sua soberania, pois ela é uma expressão

de sua soberania! De acordo com Cottrell, e eu concordo com ele, en­quanto isso pode não ser ensinado de maneira explícita nas Escrituras, o conceito está pressuposto em toda a Bíblia. Por exemplo, na narrati­va bíblica Deus se entristece, abranda, promete e reage, e todas estas são expressões de condicionalidade, o que sugere limitação voluntária. Deus obviamente concedeu aos seres humanos um grau de liberdade até mesmo para machucá-lo e frustrar sua vontade (apenas até certo ponto, claro). Deus permanece onipotente e onisciente e ele é, portanto, totalmente habilidoso e capaz de responder a quaisquer coisas que as pessoas livres façam e da maneira mais sábia para preservar seu plano e realizar os fins que ele decidiu.

Uma área que discordo levemente do Cottrell é que ele declara que nesta autolimitação Deus retém o “controle soberano”. Ao passo que rejeita o determinismo, ele diz que “Deus permanece completamente em

controle de tudo”, pois “a menos que Deus esteja em total controle, ele não é soberano” l3°. Isso me parece, a priori, uma afirmação (totalmente pressuposta) e não, de fato, assegurada por sua própria sugestão de au- tolimtação divina. Um Deus que não exerce o poder determinista não está

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totalmente em controle. Prefiro dizer que Deus está “no comando, mas não no controle”. Parece-me que “completamente em controle de tudo” sugere algo que nem eu ou o Cottrell acreditamos - determinismo divino.

Afinal de contas, o contexto da afirmação de Cottrell acerca da autoli­mitação divina é a doutrina de eleição (pelo menos na fonte em que cito aqui). Se alguém disser que Deus está “completamente em controle de tudo” e isso inclui quem será salvo e quem não será, este ensinamento não é o que Cottrell ou qualquer outro não calvinista acredita. Se vamos explorar a idéia de autolimitação divina para evitar a dupla predestinação, devemos também descartar o conceito de controle total, caso contrário estamos tirando com uma mão tudo o que demos com a outra.

Neste momento algum leitor calvinista (ou outro) pode estar se descabelando e gritando (figurativamente falando): “E esse negócio de livre-arbítrio? O que é livre-arbítrio? O Edwards já não provou que o livre-arbítrio sequer existe, exceto no conceito de fazer de acordo com o motivo mais forte?” Cottrell e outros críticos do calvinismo rígido ape­lam para o livre-arbítrio mesmo até ao ponto de dizer que ele limita a Deus (ou, melhor colocado, Deus permite que o livre-arbítrio limite suas ações). Para Edwards e a maioria dos calvinistas, claro, o livre-arbítrio não limita a Deus, pois Deus controla até mesmo as decisões e ações de livre-arbítrio dos seres humanos.

Mas isso leva diretamente ao determinismo divino - algo que muitos calvinistas negam, mas sem sem proveito nenhum. Afinal de contas, como Deus pode controlar ou até mesmo governar as decisões e ações humanas a menos que ele transmita os motivos? Eles são, afinal de contas, os que controlam as decisões e ações. Isso faz de Deus a fonte do pecado e do mal, pois estes se originam e jazem dentro dos motivos (ou o que Edwards chamava de disposições).

Quero levantar a questão do livre-arbítrio em sua forma calvinista (compatibilista) e sua forma não calvinista (não-compatibilista) no capítulo 7 (sobre a graça irresistível). Por agora nos basta dizer que eu admito que o

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livre-arbítrio libertário (a vontade não totalmente governada por motivos e capaz de agir de maneira contrária ao que age) é, de certa forma, misterioso, mas eu não penso que ele seja impossível ou ilógico. Muitos filósofos pen­sam o mesmo. E eu realmente penso que, juntamente com Cottrell, Wesley e outros não calvinistas citados aqui, que sem a liberdade libertária, que pressupõe soberania divina autolimitadora, todos nós caímos de novo no determinismo divino com todas as suas conseqüências lógicas e necessárias.

Portanto, qual mistério é melhor? Com qual a pessoa pode viver? O mistério de como Deus é bom apesar de sua preordenação e deter­minação do pecado, mal e sofrimento inocente assim como também o sofrimento eterno dos réprobos (que são réprobos pelo projeto e controle de Deus), ou o mistério de onde vêm as escolhas livres libertárias? Eu me preocupo mais em preservar e defender a reputação de Deus como incondicionalmente bom do que resolver o problema do livre-arbítrio.

Quero terminar este capítulo acerca da eleição incondicional (e sua correlata necessária, a reprovação) ao apelar para certos textos específicos da Bíblia. Vamos olhar mais uma vez para João 3.16. Todo mundo conhece o versículo de cor. Ele diz que Deus ama o “mundo”. Os calvinistas ou não acreditam que o mundo se refira a todos, sem exceção, ou eles dizem (assim como o Piper) que Deus ama até mesmo os não eleitos em certos sentidos. Ambas as explicações de João 3.16 falham em fazer sentido. A melhor exegese crítica de João 3.16 significa “toda a raça humana” 131. Até mesmo alguns calvinistas não conseguem concordar com seus companheiros calvinistas que nesta passagem a palavra “mundo” refere-se apenas aos eleitos. Todos eles reconhecem muito bem o que a interpretação que limita “mundo” a apenas algumas pessoas de todas as tribos e nações faria com os outros versículos no evangelho de João que mencionam a palavra “mundo”.

131. Por exemplo, A. T. Robertson conforme citado por Jerry Vines, “Sermon on John 3:16,” em Whosoever Will: A Biblical-Theological Critique of Five-Point Calvinism, ed. David L. Allen and Steve W. Lemke (Nashville, TN: Broadman & Holman, 2010), 17.

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Quanto aos calvinistas que pensam que Deus ama “o mundo todo”, mas não do mesmo jeito, este amor é muito estranho e dificilmente se encaixa no contexto de João 3.16. “Pois Deus enviou seu Filho ao mundo, não para condenar o mundo, mas que este fosse salvo por meio dele” (3.17). Se “mundo” no versículo 16 significa todas as pessoas, então o versículo 1 7 claramente diz que Jesus veio para salvar a todos (ou dar a todos essa possibilidade). Tal entendimento contradiz a interpretação de Piper e de outros que reivindicam que Deus ama os não eleitos (in­clusos no “mundo” no versículo 16), pois ele certamente não enviaria Jesus para salvar os não eleitos! Ambas as interpretações calvinistas de João 3.16 acabam por ser impossíveis. O versículo permanece como um monumento contra a eleição incondicional e seu necessário lado sombrio da reprovação.

Concluindo, o que dizer de 1 Timóteo 2.4, que diz que Deus quer que “todos os homens” sejam salvos e onde o grego não pode ser inter­pretado de nenhuma outra forma a não ser como se referindo a cada pessoa sem exceção? Afinal de contas, a mesma palavra grega para “todos” é utilizada em 2 Timóteo 3.16 para dizer que “toda” a Escritura é inspirada. Se a palavra não significar literalmente “todos” em 1 Ti­móteo 2.4, então ela também não significa “toda” em 2 Timóteo 3.16 (“ toda a Escritura é inspirada”). 1 Timóteo 2.4 (que não está sozinho em universalizar a vontade de Deus pela salvação, mas está, pelo menos, aberta à qualquer outra interpretação) permanece lado a lado de João 3.16 como um texto prova contra a eleição incondicional, que, exceto no caso do universalismo, necessariamente inclui a reprovação.

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capítulo 6

Sim para a expiação; Não para a expiação limitada/

redenção particular

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DURANTE UMA DE MINHAS AULAS com oradores calvinistas, um líder da Reformed University Fellowship (RUF) [Sociedade Universitária Reformada] local perguntou a meus alunos: “Quantos aqui acreditam que Cristo morreu por todos?” Eu sabia o que ele queria dizer “por to­dos do mesmo jeito - para sofrer a punição por seus pecados” Todos os alunos levantaram as mãos. “ Então vocês precisam acreditar que todos serão salvos; vocês precisam ser universalistas. Quantos aqui são universalistas?” Todas as mãos se abaixaram, com exceção de um ou dois alunos. “Estão vendo” , o orador disse, “Se Cristo já sofreu a punição pelos pecados de todos, incluindo o pecado de descrença, então nin­guém vai para o inferno porque seria injusto para Deus punir o mesmo pecado duas vezes”.

O orador estava mencionando um dos “ganchos” favoritos do calvi­nismo rígido para fazer com que os jovens considerassem incluir o “L” da TULIP, a saber, expiação limitada, em sua soteriologia. E se alguém aceitar o “L” , os calvinistas argumentam, eles tem de aceitar o restante do sistema. Afinal de contas, se todas as pessoas não serão salvas, então Cristo morreu apenas por alguns - os que ele veio salvar. Quem seriam estas pessoas? Os eleitos incondicionalmente por Deus. Por que elas

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seriam eleitas incondicionalmente por Deus? Porque elas são totalmente depravadas e não possuem outra esperança além da eleição de Deus e a morte de Cristo por elas. E como Deus atrairá estas pessoas pelas quais Cristo morreu para que elas se beneficiem de sua morte por elas? Ao atraí-las irresistivelmente para si. Como pode um eleito e atraído por Deus, cujos pecados já estão pagos, se perder? É impossível.

Inteligente. Mas isso funciona? A expiação limitada, que a maioria dos calvinistas prefere chamar de “redenção particular” , é bíblica? Ela é consistente com o amor de Deus demonstrado em Jesus Cristo e expres­so no Novo Testamento muitas vezes de muitas formas (ex. João 3.16)? Calvino acreditava na expiação limitada? Alguma pessoa na história cristã antes dos seguidores escolásticos de Calvino acreditava nela? Ela é talvez mais uma dedução feita a partir do T, U, I e o P do que uma verdadeira revelação? Os calvinistas rígidos, na verdade, a abraçam por ela ser es- criturística ou porque a lógica exige a crença nela e eles pensam que a Escritura permite a expiação limitada? A rejeição da expiação limitada exige o universalismo como uma “consequência lógica e necessária” , como o orador alegou? Estas e outras perguntas serão consideradas aqui de maneira detalhada.

Minha conclusão será que a expiação limitada é outro calcanhar de Aquiles do calvinismo rígido. Ela não pode ser embasada pela Bíblia ou a Grande Tradição da crença Cristã (fora do calvinismo escolástico após Calvino). Ela contradiz o amor de Deus, fazendo de Deus não apenas parcial, mas odioso (para com os não eleitos). Sua rejeição não exige logicamente o universalismo, e os que a defendem assim o fazem porque (pensam que) a lógica a exige e que a Escritura a permite, não porque qualquer passagem bíblica, de maneira clara, a ensina.

Outra conclusão aqui será que o T, o U, o 1 e o P da TULIP realmente

exigem o L e que os calvinistas que alegam ser “de quatro pontos” e que rejeitam o L estão sendo inconsistentes. Ironicamente, nesta ques­tão, eu me posiciono em concordância com todos os calvinistas rígidos

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da variedade TULIP! Também argumentarei que a crença na expiação limitada, redenção particular, impossibilita, de maneira sensata, que a oferta sincera do evangelho de salvação para todos, indiscriminada­mente. Ironicamente, nesta questão, eu me posiciono em concordância com os hipercalvinistas!

Por fim, o orador calvinista da minha aula dirigiu seu último argumen­to calvinista comum a mim e aos alunos que concordam que a expiação não pode ser limitada. “Talvez vocês não saibam, mas vocês também limitam a expiação. Na verdade, vocês a limitam mais do que os calvi­nistas o fazem. São vocês, na verdade, arminianos [e ele quis dizer são todas as pessoas que dizem que Cristo morreu por todos] que acreditam na expiação limitada”. Isso chamou a atenção dos alunos! Eu já tinha ouvido esse argumento antes e sabia onde ele queria chegar. “Vocês limitam a expiação ao roubar dela o poder de, de fato, salvar alguém; para vocês a morte de Cristo na cruz só proporcionou uma oportunidade para que as pessoas sejam salvas. Nós, calvinistas, acreditamos que a expiação, na verdade, garantiu a salvação para os eleitos”.

Aqui, como antes, objetarei a esta tentativa e utilizarei o feitiço contra o feiticeiro. Eu não concordo que os não calvinistas limitam a expiação. Essa reclamação comumente ouvida simplesmente não se sustenta mesmo porque até o próprio Calvino não acreditava que a expiação salvasse alguém até que certas condições fossem atendidas - a saber, arrependimento e fé. Ainda que estes sejam dons de Deus para os elei­tos, o resultado é que a expiação não “salvou” mais pessoas do que os arminianos (e outros não calvinistas) acreditam.

A DOUTRINA CALVINISTA DA EXPIAÇÃO

Até onde pude ser capaz de averiguar, todos os verdadeiros calvinistas (em oposição a alguns teólogos reformados revisionistas), abraçam a então chamada “teoria da substituição penal” da expiação. Claro, eles não pensam que ela seja “apenas uma teoria”. Com muitos não calvinis-

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tas (tal como Wesley), eles a consideram como o ensinamento bíblico acerca da morte salvífica de Cristo na cruz. De acordo com esta doutrina, a morte de Jesus foi principalmente um sacrifício substitutivo oferecido à Deus por Jesus (ou seja, para o Pai pelo Filho) como a “propiciação” pelos pecados. “Propiciação” significa apaziguamento [conciliação]. Nesta visão, o acontecimento da cruz é visto como o apaziguamento de Cristo da ira de Deus. Ele sofreu o castigo pelos pecados dos que Deus intencionou salvar de sua merecida condenação ao inferno. Calvino resume a questão desta maneira:

Esta é nossa absolvição: que a culpa que nos mantinha sujeitos à pena foi transferida para a cabeça do Filho de Deus [ls 53.12]. Pois se deve ter em mente, acima de tudo, esta permuta, para que não tremamos e estejamos ansiosos por toda a vida, como se ainda pendesse sobre nós ajusta vingança de Deus, a qual o Filho de Deus transferiu para si '.

Calvino e a maioria dos calvinistas acreditavam que a morte de Cristo realizou mais (ex. a “transmutação de natureza das coisas” ou transformação de nossa natureza pecaminosa 2 e cumprimento da lei de Deus em nosso lugar)3, mas a conquista essencial de Cristo na cruz foi o sofrimento de nosso castigo.

Outras teorias da expiação surgiram na história da cristandade e algumas delas encontram ecos na teologia de Calvino. Por exemplo, a visão da morte salvífica de Cristo chamada de “Christus Victor” é popular principalmente a partir das publicações da clássica obra sobre a expiação, Christus Victor4, escrita pelo teólogo sueco Gustaf Aulén.

1. CALVINO, João. As Institutas: edição clássica, vol. 2, p. 263.

2. Ibid., p. 269.

3. Ibid., p. 264.

4. Gustaf Aulén, Christus Victor: An Historical Study of the Three Main Types of the Idea of the Atonement (New York: Macmillan, 1969).

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Calvino assente com esta imagem da morte expiatória de Cristo, que ela dominou a Satanás e liberou os pecadores da escravidão5, mas seu foco principal está na satisfação de Cristo da justiça de Deus ao sofrer a punição merecida pelos pecadores de sorte que Deus pode, de maneira justa, perdoá-los. Contrário à muitos críticos desta teoria da substituição penal, ela não se apóia em uma visão de Deus como sanguinário ou molestador de crianças! Calvino corretamente ressalta o amor como o motivo de Deus para enviar seu Filho para morrer pelos pecadores 6.

Os calvinistas rígidos desde Calvino, quase sem exceção, defendem firmemente esta visão da expiação e sua realização em prol de Deus e os pecadores. Eles não rejeitam outras dimensões da expiação, mas esta é central e essencial à toda a soteriologia calvinista. Muitos não calvinistas concordam. Mas a questão em jogo aqui é se Cristo morreu desta forma para todas as pessoas ou apenas por alguns - os eleitos. Nenhum calvinista nega a suficiência da morte de Cristo em termos de valor para salvar toda a raça humana. O que alguns vieram a negar é que Cristo, na verdade, sofreu a punição merecida por todas as pes­soas - algo claramente ensinado pela patrística grega e a maioria dos teólogos medievais e até mesmo Lutero. O calvinismo rígido clássico acredita e ensina que Deus apenas planejou a cruz para ser propiciação para algumas pessoas e não para outras; Cristo não sofreu por todos (pelo menos não da mesma forma, Piper gostaria de acrescentar), mas apenas por aqueles a quem Deus escolheu salvar.

Esta é a doutrina da “expiação limitada” ou o que alguns calvinistas preferem chamar de expiação “definitiva” , “particular” ou “eficaz”. Boettner expressa bem a doutrina: “Enquanto o valor da expiação foi suficiente para salvar toda a humanidade, ela foi eficaz para salvar apenas os eleitos” 7. A fim de que ninguém entenda e pense que isso significa

5. CALVINO, João. As Institutas; edição clássica, vol. 2, p. 269.

6. CALVINO, João. As Institutas; edição clássica, vol. 2, p. 270.

7. Boettner, The Reformed Doctrine of Predestination, 152.

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que Deus planejou a expiação para todos, mas que ela só efetua a sal­vação dos que a recebem com fé (a visão da maioria dos evangélicos não calvinistas), Boettner diz que os não eleitos foram excluídos de sua obra por Deus: “Não foi, portanto, um amor geral e indiscriminado de que todos os homens são igualmente participantes [que enviou Jesus a cruz], mas um amor particular, misterioso e infinito pelos eleitos que fez com que Deus enviasse Seu Filho ao mundo para sofrer e morrer” , e ele morreu apenas por eles8. Assim como muitos calvinistas, Boettner alega que “certos benefícios” da cruz se estendem a todas as pessoas em geral, mas estes benefícios são simplesmente “bênçãos temporais e não quaisquer coisas salvíficas 9.

Os não calvinistas olham para declarações como estas e tremem. Isto se­ria, de fato, um “amor excêntrico” que exclui algumas das mesmas criaturas que Deus criou à sua própria imagem e semelhança de qualquer esperança de salvação. Além do mais, estas “bênçãos temporais”, que alegam que se originam da cruz e das quais os não eleitos são participantes, dificilmente valem a pena ser mencionadas. Como enfatizei no capítulo anterior, tais bênçãos, para os não eleitos, se equivalem a receber um pouquinho do céu para que depois sejam lançados no inferno! Steele e Thomas, autores de The Five Points ofCalvinism, definem e descrevem a expiação limitada, que eles preferem chamar de redenção particular, desta maneira:

O calvinismo histórico ou principal tem mantido, de maneira consistente, que a obra redentora de Cristo foi definitiva em plano e realização - que ela teve por intenção executar plena satisfação para certos pecadores específicos e que ela verdadeiramente garantiu a salvação para estes indivíduos e para ninguém mais. A salvação que Cristo ganhou para Seu povo inclui tudo o que está envolvido em trazê-los ao relacionamento correto com Deus, incluindo os dons da fé e do arrependimento l0.

8. Ibid., 157.

9. Ibid., 160.

10. Steele and Thomas, The Five Points of Calvinism, 39.

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Assim como Boettner, estes teólogos asseguram que a expiação de Cristo não foi limitada em valor, mas apenas em plano [intenção]. E eles alegam que os arminianos (e outros não calvinistas) também limitam a expiação da maneira mencionada acima 11.

Steele e Thomas reivindicam embasamento para a expiação limitada em passagens bíblicas tais como João 10.11, 14- 18 e Romanos 5.12, 17-19. Todavia, mesmo uma análise superficial destas passagens revela que elas não limitam a expiação, mas que apenas dizem que ela visa e foi aplicada ao povo de Deus. Elas não negam que a expiação não é para os outros.

O que dizer das passagens bíblicas que mencionam as palavras “to­dos” e “mundo”, tal como 1 João 2.22: “Ele é a propiciação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também pelos pecados de todo o mundo” Steele e Thomas explicam isto desta maneira:

Um motivo para o uso destas expressões era para corrigir a falsa noção de que a salvação era apenas para os judeus... Estas expressões têm por intenção mostrar que Cristo morreu por todos os homens sem distinção (a saber, Ele morreu por judeus e, de mesmo modo, pelos gentios), mas elas não intencionam indicam que Cristo morreu por todos os homens sem exceção (a saber, Ele não morreu pelo propósito de salvar a cada e todo último pecador) l2.

Uma pergunta crucial que surge em resposta a estas alegações é a distinção entre o valor da morte expiatória de Cristo e seu plano e pro­

pósito. Aparentemente, Boetnner, Steele e Thomas (e outros calvinistas que citarei) acreditam que a morte de Cristo na cruz foi um sacrifício suficiente pelos pecados de todo o mundo. O que, então, eles querem dizer ao dizer que Cristo não morreu por todas as pessoas? Se ela foi um sacrifício suficiente pelos pecados de todo o mundo, incluindo todas as pessoas, e teve valor o bastante para todos, como é que não é contradi­tório então dizer que Cristo não morreu por todos?

li. ibid.

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Aparentemente, o que pelo menos alguns calvinistas querem dizer é que a morte de Cristo foi grande o bastante em escopo e valor para Deus perdoar a todos em razão dela, mas Deus não a planejou para to­dos, mas para os eleitos. Mas por que Deus faria com que Jesus sofresse uma punição suficiente em escopo pelos pecados que Deus não planejou perdoar? E se sua morte foi uma punição suficiente para todos, então isso não sugere que ele suportou a punição por todos? E se for assim, então mesmo que Deus tenha planejado a morte apenas para os eleitos, a acusação de que a expiação universal exige que todos sejam salvos (uma vez que os pecados não podem ser punidos duas vezes) retorna para assombrar os próprios calvinistas. Há algo terrivelmente confuso no cerne das alegações calvinistas típicas acerca desta doutrina.

Esta confusão torna-se principalmente intensa quando o pastor e teólogo calvinista Edwin Palmer ridiculariza a visão da expiação univer­sal: “Para eles [ele tem em mente principalmente os arminianos, mas isso pode se aplicar a outros não calvinistas] a expiação é como um kit de sobrevivência universal: há um kit para todos, mas apenas alguns pegarão o kit... Parte de Seu sangue [de Cristo] foi desperdiçado: caiu no chão” 13. Mas isso não seria verdadeiro de qualquer doutrina da expiação que diz que foi um “sacrifício suficiente” para o mundo todo e que diz que seu valor foi infinito? Parece que os advogados da expiação limitada devem dizer que a morte de Cristo não fo i suficiente para o mundo todo e não teve valor infinito caso decidam acusar os que creem na expiação universal de acreditar que o sangue de Cristo foi desperdiçado (pelo fato de que nem todos se beneficiam dela). Essa alegação, por parte dos cal­vinistas, de sua suficiência e valor não quer dizer a mesma coisa ainda

que eles continuem a dizer que Deus planejou e a intencionou apenas pelos eleitos? Parece que sim.

Palmer adota a mesma abordagem que Steele e Thomas no que diz respeito ás passagens universais, incluindo João 3.16-17: “Porque Deus

13. Palmer, The Five Points of Calvinism, 41.

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tanto amou o mundo que deu seu Filho Unigénito, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna. Pois Deus enviou seu Filho ao mundo, não para condenar o mundo, mas para que este fosse salvo por meio dele”. De acordo com Palmer, “nesta passagem a palavra ‘mundo’ não significa todas as pessoas... mas... pessoas de todas as tribos e nações” '4. Acerca das passagens que dizem que Cristo morreu por “todos”, ele diz: “Todos não são todos” l5.

Palmer chama o fato de Cristo ter morrido apenas pelos eleitos, mas que, todavia, “Deus, de maneira sincera e livre, oferece a salvação a todos” de um “mistério fundamental” l6. Como mostrarei, entretanto, os críticos da visão calvinista defendem que isto não é um mistério, mas uma contradição - uma distinção que R. C. Sproul descreve (e ele rejeita contradições na teologia). Como que um calvinista, pregador do evangelho, isso sem mencionar Deus, pode dizer a uma congregação ou a outro ajuntamento de pessoas: “Deus te ama e Jesus morreu por você para que você possa ser salvo, isso se você se arrepender e crer no Senhor Jesus Cristo” , sem acrescentar a advertência, “se você for um dos eleitos de Deus”? O pregador calvinista não pode fazer isso com a consciência limpa.

Sproul, um calvinista particularmente convicto na expiação limitada, chama esta doutrina de “expiação intencional de Cristo” l7. Isto é, claro, um pouco insincero na medida em que o termo visa expressar o que é nítido na visão calvinista, pois, claro, todos os cristãos acreditam que a expiação de Cristo foi “intencional”. Logo de cara, no início de sua exposição desta dou­trina, Sproul interpreta de maneira errônea e até mesmo faz caricaturas das visões não calvinistas. A fim de embasar sua crença na expiação limitada,

14. Ibid., 45.

15. ibid., 53.

16. Ibid., 51.

1 7. SPROUL, R. C. O que é teologia reformada? São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 139.

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Sproul cita o teólogo evangélico J. 1. Packer, que escreveu: “A diferença entre elas [as visões calvinistas e arminianas da expiação] não é primariamente de ênfase, mas de conteúdo. Uma proclama um Deus que salva, a outra fala de um Deus que capacita o homem a se salvar” '8.

Esta é talvez a calúnia mais depravada contra os não calvinistas. Nenhum arminiano ou outro cristão evangélico informado acredita em salvação própria. Sproul explica a acusação de Packer ao dizer que parao calvinista, Cristo é um “Salvador real” , ao passo que para o arminiano, Cristo é apenas um “Salvador potencial”. Já demonstrei a falsidade desta interpretação da teologia arminiana em minha obra Teologia Arminiana.

Explicarei abaixo a razão por que esta interpretação está errada.Sproul continua a lançar outra velha acusação contra a teologia

arminiana e qualquer teologia da expiação universal (ex. Luterana). “Se Cristo, realmente, objetivamente, satisfez as demandas da justiça de Deus para todos, então todos serão salvos” 19. Aqui Sproul está confiando grandemente na teologia do teólogo puritano John Owen (1616 - 1683), que foi um dos primeiros defensores da novidade teológica da expiação limitada. De acordo com Owen e Sproul, a expiação universal, a crença de que Cristo suportou o castigo de todas as pessoas, necessariamente leva ao universalismo da salvação. Afinal de contas, Owen argumentava, e Sproul o ecoa, como pode o mesmo pecado, incluindo a descrença, ser punido duas vezes por um Deus justo?

Alguém precisa imaginar se Sproul jamais ouviu a resposta óbvia para esta pergunta ou simplesmente escolhe ignorá-la (veja minha resposta posteriormente neste capítulo). Por agora nos basta dizer que este argu­mento é tão facilmente colocado de lado que não é de se surpreender por que ninguém o leva a sério. Então há o problema que mencionei anteriormente: Se a morte de Cristo foi uma satisfação suficiente parao pecado de todo o mundo, como é que isso é diferente de Cristo ter

18. Ibid., 139.

19. Ibid., 141.

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verdadeiramente sofrido o castigo por todos? Não há, de fato, diferença alguma; o primeiro ponto inclui o último!

Sproul lida com a passagem bíblica clássica da expiação universal (2 Pe. 3.9), mas ignora passagens universais igualmente importantes,1 Timóteo 2.5-6 e 1 João 2.2. De acordo com ele e muitos outros que aderem à expiação limitada, 2 Pedro 3.9 deveria ser interpretado como fazendo referência a “vontade de disposição”, que é diferente de sua “vontade decretiva” 20. Em outras palavras, este versículo não expressa0 que Deus decreta ser o caso, mas o que Deus deseja que fosse o caso. Enquanto tal pode ser uma interpretação possível de 2 Pedro 3.9 (em­bora eu duvide que seja essa a interpretação), não se pode interpretar1 Timóteo 2.5-6 desta maneira nem muitas outras passagens universais onde se diz que Cristo dá sua vida para “todos” ou o “mundo” ou “todo o mundo”. Sproul também sugere que em 2 Pedro 3.9 a palavra “ninguém” se refere aos eleitos de Deus 21. Mais uma vez, por mais forçada quanto esta interpretação seja, ela pode ser concebivelmente possível. Todavia, ela não é possível como uma interpretação para as outras passagens que incluem a palavra “todos”, incluindo 1 Timóteo 2.5-6.

O estadista evangelico Vernon Grounds (1914 - 2010), que presidiu por muito tempo o Denver Seminary e autor de muitos livros teológicos, menciona as seguintes passagens universais acerca da expiação de Cris­to: João 1.29; Romanos 5.17 - 21; 11.32, 1 Timóteo 2.6; Hebreus 2.9 e João 2.2 (além de, claro, 2 Pe. 3.9). Então ele diz da visão adotada por Sproul e outros calvinistas de 5 pontos: “É necessária uma ingenuidade exegética, que é algo senão uma virtuosidade aprendida para esvaziar estes textos de seus significados óbvios: é preciso uma ingenuidade bei­rando ao sofisma para negar a explícita universalidade destes textos” 22.

20. Ibid , 143-144.

21. Ibid., 145-146.

22. Vernon C. Grounds, “God’s Universal Salvific Grace,” in Grace Unlimited, ed. Clark H. Pinnock (Minneapolis: Bethany, 1975), 27.

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Esta observação é, talvez, o motivo pelo qual John Piper tem enfatizado tanto a ideia de que Cristo morreu por todos, mas não da mesma ma­neira. Duvido que tal explicação satisfaça a Grounds ou a qualquer outro crítico da expiação limitada. Ela apenas suscita mais questões acerca do amor, sinceridade e bondade de Deus, assim como também em relação ao valor das “bênçãos temporais” proporcionadas pela expiação para os não eleitos quando melhor seria que eles não tivessem nascidos.

John Piper defende arduamente a expiação limitada enquanto que ao mesmo tempo argumenta que também há certa universidade na expia­ção. Esta é a forma dele, ao que parece, de resolver o dilema proposto pelas passagens que apresentam a palavra “ todos” diante da crença na redenção particular e de resolver o problema de como a pessoa que acredita na expiação limitada pode pregar para seu público que Cristo morreu por todos. A doutrina de Piper do propósito da expiação é inte­ressante porque ela vai além da teoria da substituição penal comum e adentra em algo como a teoria governamental. Pensa-se, geralmente, que a teoria governamental da expiação seja uma doutrina típica arminiana, embora nem Armínio e nem Wesley a tenham ensinado.

De acordo com a visão da teoria governamental, Cristo não sofreu a punição exata merecida por cada ser humano, mas uma punição equi­valente a isso. Tal visão foi formulada pelo pensador arminiano Hugo Grócio (1583 - 1645) para resolver o problema de como a expiação po­deria ser universal e, entretanto, nem todos serem salvos. (Como muitos arminianos, penso que há uma resposta mais fácil para este problema do que desenvolver uma teoria nova de como a morte de Cristo satisfez a ira de Deus). De acordo com Grócio e outros que defendem esta visão, o propósito principal da expiação era sustentar o governo moral de Deus do universo diante de duas realidades: (1) nossa pecaminosidade, e (2) o perdão de Deus de nossa pecaminosidade. Como Deus pode ser reto, governador moral do universo e fingir não ver o pecado ao perdoar os pecadores? Ele não pode ser. Então Deus resolve este dilema interior ao

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enviar Cristo para sofrer uma punição exatamente como a que os peca­dores merecem - mas não a punição deles (que Grócio acreditava que seria injusto e resultaria em todos eles sendo salvos). Tal visão defende a retidão de Deus quando ele perdoa os pecadores.

Piper não rejeita a visão da substituição penal em favor da teoria do governo moral, mas ele realmente enfatiza o intuito do governo moral. Ele indaga: “Por que Deus feriu [a saber, matou] seu Filho e lhe trouxe aflição?” e então responde: “para salvar pecadores e, ao mesmo tempo, magnificar o valor de sua glória”23. Ao colocar “nossos pecados sobre Jesus e o abandoná-lo à vergonha e ao massacre da cruz”, “Deus desviou sua própria ira” 24. Piper também deixa claro que a cruz é principalmente uma vindicação da Retidão de Deus para perdoar os pecadores. Muitos dos arminianos e outros evangélicos não calvinistas, se não a maioria, podem dar um forte amém a isso. Os únicos problemas são (1) quando Piper prossegue e diz, como ele ocasionalmente faz em seus sermões, que Jesus morreu “para Deus” e (2) que o benefício salvífico de sua morte foi intencionado apenas para os eleitos. Romanos 5.8 clara e inequivocamente afirma que Cristo morreu “pelos pecadores” e muitos versículos já citados, incluindo e especialmente 1 João 2.2, dizem que sua morte foi um sacrifício propiciatório pelos pecados de todo o mundo.

Piper prega que Cristo morreu tal morte apenas para alguns - os elei­tos. Para eles e apenas eles a morte garantiu a justificação por Deus. Ela não apenas a tornou possível; ela, na verdade, a realizou. É por isso, ele argumenta, se Cristo morreu por todos, todos seriam justificados e não haveria inferno. Então como ele explica versículos tal como 1 João 2.2? “A expressão ‘todo o mundo’ refere-se aos filhos de Deus espalhados ao redor de todo o mundo” 25. Mas ele também reivindica que “nós não

23. Piper, The Pleasures of God, 165.

24. Ibid., 165, 167.

25. Piper, “For Whom Did Christ Die?”

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negamos que todos os homens são, em certo sentido, os beneficiários intencionados da cruz" 26 e que Cristo morreu por toda pessoa, mas não da mesma forma. “Há muitas passagens bíblicas que dizem que a morte de Cristo visava ã salvação do povo de Deus, não de todas as pessoas”27. Então ele cita João 10.15; 17.6, 9, 19; 11.51 e Apocalipse 5.9.

Verdade, estes versículos mencionam a morte de Cristo por “suas ovelhas” e “por aqueles a quem o Pai traz ao Filho”. Entretanto, nenhum versículo explicitamente limita sua morte para estas pessoas. Que Cristo morreu por eles [a saber, os cristãos] de forma alguma exige que ele tenha morrido apenas por eles. O crítico David Allen corretamente en­fatiza que “o fato de que muitos versículos falam de Cristo morrendo por suas ‘ovelhas’, sua ‘igreja’ ou seus ‘amigos’ não prova que Ele não tenha morrido por outros não incluídos nestas categorias” 28. Dizer que ele morreu por outros de uma forma diferente, não sofrendo a punição por eles, mas apenas proporcionando certas bênçãos temporais vagas, dificilmente satisfaz. Qual a vantagem destas bênçãos temporais a menos que Cristo tenha aberto a possibilidade da salvação para tais pessoas?

No geral, a doutrina do calvinismo rígido da expiação limitada é, na melhor das situações, confusa e é, na pior das situações, obviamente autocontraditória e sem embasamento bíblico.

PROBLEMAS COM A EXPIAÇÃO LIMITADA/ REDENÇÃO PARTICULAR

Antes de nos aprofundarmos nas inúmeras fortes objeções à expiação limitada, é ao menos interessante observar que o próprio João Calvino não acreditava nesta doutrina. Em 1979 o pesquisador R. T. Kendall (n. 1935) publicou um robusto argumento que Calvino não acreditava na expiação limitada: Calvin and English Calvinism to 1649.29 Kevin Kennedy

26. ibid.

27. ibid.

28. David L. Allen, “The Atonement: Limited or Universal?” in Whosever Will, 93.

29. R. T. Kendall, Calvin and English Calvinism to 1649 (Oxford: Oxford Univ. Press, 1979).

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utiliza a maioria de seus argumentos, juntamente com outros, em um artigo chamado “Was Calvin a ‘Calvinist’? John Calvin on the Extent of the Atonement.” (Calvino foi um Calvinista? João Calvino acerca da Ex­tensão da Expiação). Seguindo Kendall, Kennedy admite que Calvino, em lugar nenhum, explicitamente aborda a questão; ele aparentemente sequer pensou nela como uma questão ou ele teria ousadamente se posicionado de um lado ou de outro (algo que Calvino era famoso por fazer!). Mas ninguém consegue encontrar nos escritos de Calvino uma afirmação tal como “Cristo padeceu a punição por cada pessoa”, um fato de que os calvinistas que defendem que ele acreditava na redenção particular usam em seu benefício.

Todavia, conforme Kennedy entusiasticamente ressalta, Calvino real­

mente diz coisas que ninguém que acreditara na expiação limitada diria:

Por exemplo, se Calvino realmente professasse a expiação lim i­tada, alguém não poderia esperar encontrá-lo universalizando, de maneira intencional, passagens escriturísticas que teólogos da tra­dição reformada posterior alegam que estão, a partir de uma leitura simples do texto, claramente ensinando que Cristo morreu apenas pelos eleitos. Além do mais, se Calvino verdadeiramente acreditava que Cristo morreu apenas pelos eleitos, então alguém não esperaria encontrar Calvino alegando que descrentes que rejeitam o evangelho estão rejeitando uma provisão real que Cristo fez para eles na cruz. Nem alguém esperaria que Calvino, caso ele fosse um proponente da expiação limitada, falhar em refutar fortes alegações de que Cris­to morreu por toda a humanidade quando ele estava engajado em argumentos polémicos com católicos romanos e outros. Todavia, a verdade é que, Calvino faz isso tudo e mais 30.

Mas Kennedy não precisa inferir a crença de Calvino na expiação universal a partir do que ele não diz; ele apresenta muitas citações de Calvino, principalmente de seus comentários, que são afirmações univer­

30. Kevin Kennedy, “Was Calvin a ‘Calvinist’? John Calvin on the extent of the atonement,” em Whosoever Will: A Biblical-Theological Critique of Five-Point Calvinism, ed. David L. Allen and Steven W. Lemke (Nashville, TN: Broadman & Holman, 2010), 195.

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sais irrestritas acerca da expiação. Duas citações devem ser o bastante. Em seu comentário sobre Gálatas Calvino escreve em relação a Gl. 1.14: “ [Paulo] diz que esta redenção foi obtida pelo sangue de Cristo, pois pelo sacrifício de sua morte todos os pecados do mundo foram expiados”31. Em seu comentário sobre Isaías Calvino escreveu que “sobre ele foi posto a culpa de todo o mundo”32. Mais uma vez, Calvino escreveu em um sermão sobre a deidade de Cristo:

Ele [Cristo] deve ser o redentor do mundo. Ele deve ser condenado, de fato, não por ter pregado o Evangelho, mas por nós ele deve ser opri­mido, por assim dizer, às mais baixas profundezas e sustentar nossa causa, uma vez que ele esteve lá, por assim dizer, na pessoa de todos os amaldiçoados e de todos os transgressores e dos que mereciam a morte eterna. Um a vez que Jesus Cristo tem esse ofício, e ele carrega o fardo de todos estes que ofenderem a Deus mortalmente, é por isso que ele se mantém em silêncio 33.

Após citar várias passagens a partir dos escritos de Calvino, Kennedy conclui: “Estas passagens fornecem apenas uma amostra de muitos lugares onde Calvino utiliza a linguagem universal para descrever a expiação” 34. Kennedy prossegue em examinar a única passagem de Calvino que os adeptos da expiação limitada tendem a apontar para o que parece provar sua crença na doutrina: suas observações sobre a passagem de cunho universal de 1 João 2.2 em seu comentário sobre a carta. Kennedy argumenta que na passagem, Calvino estava simplesmente tentando evitar qualquer interpretação do verso como ensinando a salvação universal 35. Além disso, ele corretamente ressalta que uma única passagem, dentre várias pas­

31. ibid., 198.

32. ibid.

33. Ibid., 199 - 200.

34. Ibid., 200.

35. Ibid., 211.

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sagens que lidam com a extensão da expiação, dificilmente deveria ser levada a contradizer as demais.

É realmente importante o fato de Calvino acreditar na expiação uni­versal ou expiação limitada? Não. Ninguém duvida que Calvino fosse fortemente a favor dos outros quatro pontos da TULIP. Se ele tivesse vivido mais ele teria chegado ao “L”? Talvez. Certamente alguns de seus sucessores imediatos chegaram. Todavia, o fato de que Calvino aparen­temente não viu a expiação limitada ensinada de maneira explícita na Escritura minimiza as reivindicações dos calvinistas rígidos que dizem que ela é claramente ensinada na Bíblia.

Mais importante do que se Calvino acreditava na expiação limitada é se Paulo acreditava. Há um versículo nas cartas de Paulo que clara e inequivocamente contradiz a doutrina da redenção particular. Eu acredito que há. Em todas as minhas leituras de literaturas calvinistas e antical- vinistas eu não me deparei com nenhuma menção de 1 Coríntios 8.11, ainda que este único versículo pareça contradizer a expiação limitada. Nesta passagem Paulo escreve ao cristão que insiste em ostentar sua liberdade para comer carne em um templo pagão, mesmo em vista dos cristãos que possuem uma consciência mais fraca e que podem, deste modo, “tropeçar” : “Assim, esse irmão fraco, por quem Cristo morreu, é destruído por causa do conhecimento que você tem”. Claramente, Paulo está dando uma advertência aterrorizante aos que possuem uma “fé for­te” para que evitem ofender as consciências de seus irmãos mais fracos. Sua advertência é que ao exercer a liberdade cristã do legalismo muito publicamente, um “cristão forte” pode, na verdade, fazer com que uma pessoa amada por Deus, por quem Cristo morreu, seja “destruída” 36.

36. Alguns leitores podem se perguntar acerca da relevância desta passagem com o que às vezes é chamada de “segurança eterna” - a perseverança incondicional dos santos. Me parece ser possível interpretá-la das duas formas - como se referindo a alguém que já é um cristão e pode perder sua salvação em razão da ofensa do irmão mais forte, ou como fazendo referência à pessoa que ainda não é cristã (mas por quem Cristo morreu) que pode ser afastada pela ofensa.

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Agora, se a expiação limitada for verdadeira, a advertência de Paulo é uma ameaça vazia, pois ela não pode acontecer. Uma pessoa por quem Cristo morreu não pode ser destruída. Cristo morreu apenas pelos eleitos, e os elei­tos são atraídos irresistivelmente a Deus (o assunto do próximo capítulo) e serão preservados por Deus (o “P” na TUL1P) independente do que acontecer.

Os crentes na expiação limitada levantam duas objeções. Primeiro, o que “destruído” significa; a palavra não pode significar apenas “danifica­do” ou “ferido”? A palavra grega traduzida por “destruído" é apollytai, que significa “destruir, perecer, morrer”. É improvável, isso se não impossível, que a palavra pudesse significar qualquer outra coisa, principalmente neste contexto. Segundo, eu ouvi calvinistas insistirem que ela apenas significa “danificar” ou “ferir”. Mas por que a advertência de Paulo seria tão terrível neste caso? “Por quem Cristo morreu” - soa como se Paulo estivesse dizendo que esta ofensa é assunto sério. A conjunção de “por quem Cristo morreu" com “danificar” simplesmente não carrega muito peso.

O sentido óbvio do texto é que Paulo está advertindo os cristãos de consciência mais forte a tomarem cuidado para que não causem a completa destruição e ruína, em termos espirituais, do cristão mais fraco ou, pelo menos, de alguém por quem Cristo morreu. Se esse for o caso, eu estou firmemente convencido de que nenhuma outra exegese é possível, este versículo destrói a doutrina da expiação limitada ao demonstrar que Paulo não acreditava nela.

Antes de continuar com outras objeções à expiação limitada, quero eliminar o argumento de que a expiação universal necessariamente im­plica em universalismo. Ela não leva ao universalismo. Primeiro, mesmo Calvino sabia que há uma diferença entre a morte expiatória de Cristo no lugar de alguém e os benefícios desta expiação sendo aplicados na vida da pessoa para o perdão. Perdão, para Calvino, é claramente con­dicional; o perdão exige fé e arrependimento 37. Ou seja, a pessoa eleita

37. CALVINO, João. As Institutas: edição clássica, vol. 3, pp. 89-92.

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não é salva no momento que Cristo morreu por ela; aquela salvação pessoal é uma obra do Espírito Santo por meio da Palavra quando Deus concede os dons de fé e arrependimento para o perdão. Até mesmo a regeneração acontece simultaneamente com o arrependimento e não, naturalmente, quando Cristo morreu pela pessoa eleita38. Praticamente todo calvinista que conheço acredita que a “salvação” é a experiência de uma pessoa apenas quando os benefícios da morte de Cristo são aplicados na vida dela; as pessoas ainda não estão salvas no momento em que Cristo morreu por elas.

Assim sendo, o argumento de que a expiação universal necessaria­mente implica em salvação universal falha em levar em conta a lacuna, por assim dizer, entre a morte de Cristo por alguém e a aplicação de seus benefícios à vida da pessoa. Todos por quem Cristo morreu já não estavam salvos quando ele morreu. Até mesmo no calvinismo de cinco pontos, a morte de Cristo não “realiza” a salvação das pessoas, mas a “garante”, conforme Piper e outros dizem. Mas até mesmo Piper e outros proponentes da expiação limitada concordam que as pessoas por quem Cristo morreu, no sentido de padecer o castigo dessas-pessoas, devem ter fé para que sejam salvas pela morte de Cristo.

Acredito, assim como todos os arminianos e outros protestantes não calvinistas acreditam, que Cristo morreu por cada pessoa humana de maneira a garantir a salvação destes sem exigir ou torná-la certa. A apropriação subjetiva da salvação destas pessoas é uma condição da dita salvação segura sendo posse de alguém. Isso significa que parte do sangue de Cristo foi desperdiçado? Talvez. E é isso que faz da morte espiritual e o inferno tão trágicos - eles são absolutamente desnecessá­rios. Mas Deus, em seu amor, preferiu gastar parte do sangue de Cristo, por assim dizer, a ser egoísta com o sangue.

Uma analogia ilustrará o que quero dizer. Apenas um dia após a posse do presidente Jimmy Carter, ele deu prosseguimento a sua promessa de

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campanha e concedeu perdão total a todos os que resistiram ao recru­tamento durante a Guerra do Vietnã ao fugir dos EUA para o Canadá e outros países. O momento em que ele assinou aquela ordem executiva, cada exilado estava livre para retornar aos EUA com a garantia legal de que ele não seria processado. “Todos estão perdoados, voltem para casa” foi a mensagem para cada um deles.

Tal ação custou muito ao presidente Carter; alguns acreditam que a lei foi tão controversa; principalmente entre os veteranos, que ela contribuiu para a sua perda para Ronald Reagan na eleição seguinte. Ainda que houvesse uma anistia e perdão total, todavia, muitos exilados escolheram permanecer no Canadá ou outros países para os quais eles fugiram. Alguns morrereram sem sequer fazer uso da oportunidade de estar em casa com os familiares e amigos novamente. O custoso perdão não lhes fez bem algum, pois ele precisava ser subjetivamente apropriado

a fim de ser usufruído objetivamente. Colocando de outra forma, embora o perdão era objetivamente deles, para que pudessem se beneficiar dele, eles precisavam tê-lo aceitado subjetivamente. Muitos não o fizeram.

A reivindicação que a expiação objetiva necessariamente inclui ou exige a salvação subjetiva e pessoal é falha. O argumento, feito com muita frequência ao menos desde a obra The Death ofDeath in the Death

ofChrist [Por quem Cristo Morreu: A Morte da Morte na Morte de Cristo]39,

escrita por John Owen, que diz que Cristo ou morreu por todos e, por­tanto, todos são salvos ou que ele morreu por alguns e, portanto, alguns são salvos, é logicamente absurdo. Este argumento simplesmente ignora a real possibilidade que Cristo sofreu a punição por muitas pessoas que jamais usufruem desta liberação da punição. Por que Cristo sofreria a punição por pessoas que jamais gozam de seus benefícios? Por causa do amor de Deus por todos.

39. Muitas edições deste livro escrito por John Owen (1616 - 1683) estão disponíveis, tais como: The Death ofDeath in the Death ofChrist, ed. J. I. Packer (London: Banner of Truth Trust, 1963).

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Ainda há outra questão do argumento de Owen (e da maioria dos calvinistas rígidos) que o mesmo pecado não pode ser punido duas ve­zes. Mais uma vez, isso é simplesmente falso. Imagine uma pessoa que é multada por uma corte em mil reais por um mau comportamento e alguém entra e paga a multa. E se a pessoa multada se recusar a aceitar aquele pagamento e insistir que ela mesma pague a multa? A corte irá automaticamente restituir os primeiros mil reais? Provavelmente não. É o risco que a primeira pessoa corre em pagar a multa de seu amigo (a) por ele (a). Em uma situação como essa, a mesma punição poderia ser paga duas vezes. Não é que Deus cobre a mesma punição duas vezes; é o pecador que, à revelia, recusou a oferta livre de salvação, sujeitando a si mesmo à punição que já foi sofrida por ele. E, conforme observado acima é isso que torna o inferno tão terrivelmente trágico.

Então, há uma diferença entre a provisão de perdão de pecados e a aplicação de perdão de pecados. Calvino sabia disso. Suspeito que a maioria dos calvinistas sabe disso, mas tal conhecimento assume uma posição secundária em relação ao desejo de exercer o argumento de que a expiação universal exigiria salvação universal. O teólogo arminiano Ro­bert Picirilli (n. 1932) está certo quando, em relação à 1 Timóteo 4.10, ele diz: “Que ele [Jesus] é o salvador de todos os homens, fala de provisão; que Ele é o salvador especialmente dos que creem, fala de aplicação” 40.

Muitos calvinistas argumentaram que a crença na expiação universal leva ao universalismo. Eles apontam para certos arminianos dos sécu­los XVIII e XIX que formaram a base do movimento Universalista (que posteriormente se uniram a Igreja Unitária). Todavia, minha visão é a de que o calvinismo, com sua doutrina da expiação como garantindo a

salvação em uma forma necessária de sorte que todos por quem Cris­to morreu devam ser salvos, é que leva ao universalismo. O motivo é que para alguém que leva muito a sério o claro testemunho bíblico do amor universal de Deus por todas as pessoas e acredita que a expiação

40. Picirilli, Crace, Faith, Free Will, 136.

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necessariamente garante a salvação, o universalismo está apenas a um passo. A única forma de se afastar do universalismo é negando o amor de Deus em seu sentido mais pleno e verdadeiro ou negando que a expiação necessariamente garante a salvação para a pessoa expiada.

Um estudo de caso nesta trajetória do calvinismo ao universalismo é Karl Barth, que, estou convencido, realmente veio a acreditar na dou­trina do apokatastasis — que todos são ou serão salvos. Ele fez isso sem sacrificar o T, o U, o I e o P da TULIP. Mas ele reteve a noção errônea calvinista de que a substituição penal necessariamente garante a salva­ção subjetiva pessoal41. Uma vez que ele passou a acreditar que Cristo morreu por todos sem exceção, pois Deus é “o que ama em liberdade” , o universalismo foi o que, logicamente, veio depois.

Me parece, e para muitos outros não calvinistas, que qualquer pes­soa que tenha uma profunda compreensão do testemunho bíblico de Deus como revelado especificamente em Jesus Cristo, mas também em versículos tais como João 3.16 e 1 João 4.8 terão que desistir da reden­ção particular e, a fim de evitar o universalismo, de qualquer relação necessária entre redenção realizada e redenção aplicada. Calvinistas de quatro pontos, que tentam negar o “L” , mas que aderem ao restante da TULIP, têm de explicar por que Cristo sofreria a punição pelos réprobos- pecadores que Deus, de maneira intencional, recusa a possibilidade de salvação.

A maioria dos calvinistas rígidos, incluindo Boettner, Steele e Thomas, Sproul e Piper, acreditam apaixonadamente no evangelismo universal; eles rejeitam o hipercalvinismo, que diz que uma oferta sincera de sal­vação não pode ser feita a todos nem por Deus e nem pelos pregadores. Como já sugeri, todavia, há tensão e até conflito entre expiação parti-

41. Para uma análise detalhada e completa da mudança de Barth do calvinismo de cinco pontos para o universalismo, ver G. C. Berkouwer, The Triumph o f Grace in the Theology o f Karl Barth (Grand Rapids: Eerdmans, 1956). Embora Berkouwer não acuse Barth de universalismo evidente, ele realmente indica que a salvação universal está implícita na doutrina de eleição de Barth. Concordo com esta avaliação.

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cular e evangelismo indiscriminado. Entre outros críticos da expiação limitada, Gary Schultz argumentou de maneira convincente que não há sinceridade em uma pregação indiscriminada do evangelho e convite ao arrependimento, crença e salvação, se a expiação limitada for ver­dadeira. “O x da questão”, ele corretamente enfatiza:

e como o evangelho pode ser genuinamente oferecido aos não eleitos se Deus não fez nenhum pagamento pelos seus pecados... Se Cristo não pagou pelos pecados dos não eleitos, então é impossível oferecer genuinamente a salvação aos não eleitos, uma vez que não há salvação disponível para que lhes sejam oferecidos. Em um sen­tido, quando o evangelho é oferecido, os não eleitos receberiam a oferta de algo que nunca existiu para que eles para que, para início de conversa, pudessem receber42.

Então Schultz deixa a questão extremamente clara e fácil de se en­tender: “Se a expiação foi apenas para os eleitos, pregar esta mensagem aos não eleitos seria, no seu melhor, dar a eles uma falsa esperança e, no seu pior, falso” 43.

Alguns calvinistas podem responder que um pregador jamais sabe, de maneira exata, quem dentre os seus ouvintes, são os eleitos e quem são os não eleitos, portanto, ele ou ela devem oferecer a salvação a to­dos enquanto que pensando consigo mesmo que apenas os eleitos irão responder. Mas duas coisas impedem esta objeção. Primeira, a maioria dos calvinistas não hipercalvinistas, isso se não todos, acredita que não apenas o próprio Deus oferece salvação a todos como uma “oferta sin­cera” (conforme mencionado anteriormente como uma declaração da Igreja Cristã Reformada contra o hipercalvinismo). Certamente Deus sabe quem são os eleitos e os não eleitos. Por que Deus, tendo esse conhe­cimento, ofereceria a salvação aos que ele náo tem intenção de salvar

42. Gary L. Schultz, Jr.T “Why a Genuine Universal Gospel Call Requires an Atonement That Paíd for the Sins of Ali People,” Evangelical Quarterly 82:2 (2010): 122.

43. Ibid., 115.

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e para quem Cristo não morreu? Segunda, se isso é o que o pregador calvinista acredita, por que oferecer o evangelho da salvação a todos indiscriminadamente, mesmo se o pregador realmente souber quem é o eleito e quem não é?

Qual é a aplicação prática aqui? É simplesmente esta: se você acredita que possa haver alguns dentre seus ouvintes que não podem ser salvos porque Cristo não fez nenhuma provisão para a salvação deles, você

não pode, de maneira totalmente honesta, pregar que todos podem vir a Cristo através do arrependimento e fé em razão de Cristo ter morrido por eles. O calvinista precisa customizar sua oferta e convite para que ela se adapte a sua teologia e diga algo assim: “Se você for um dos eleitos de Deus e se Cristo morreu por você, você pode ser salvo ao responder com arrependimento e fé”. O calvinista não pode dizer a todos: “Cristo morreu por você de sorte que você pode ser salvo; arrependa-se e creia de maneira que o Senhor possa perdoar seus pecados e te aceitar como filho” Mas parece que o calvinismo não hipercalvinista está dizendo que Deus estaria dando uma segunda oferta e convite, então o pregador também pode. Mas isso seria insincero da parte de Deus e do pregador. A questão é, na medida em que o pregador acredita em expiação limita­da, ele deve se juntar aos hipercalvinistas e não oferecer o evangelho de salvação a todos indiscriminadamente. E, mais, como a crença na expiação limitada pode não limitar o evangelismo?

A ALTERNATIVA À EXPIAÇÃO LIMITADA/ REDENÇÃO PARTICULAR

Felizmente, a expiação limitada/particular não é a única opção para os cristãos considerando o que Cristo realizou na cruz. Uma pessoa pode afirmar a substituição penal, incluindo a crença de que Cristo cumpriu a lei para todos e sofreu a punição de todos e ainda acreditar que as pessoas devem subjetivamente se apropriar destes benefícios pela fé a fim de serem salvas. Este era, por exemplo, a doutrina de Wesley. É também a doutrina de muitos batistas e outros que, às vezes, aceitam

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certos pontos do calvinismo, mas não a expiação limitada (por mais inconsistente que isso possa ser).

A maioria esmagadora dos cristãos através dos séculos, incluindo todos os pais da igreja dos primeiros quatro séculos (a saber, antes de Agostinho) acreditava na expiação universal. Atanásio, o grande pai da igreja, altamente estimado por todos os cristãos, incluindo os ortodoxos orientais, católicos romanos e protestantes, insistia de maneira determi­nada que Cristo, por sua morte, trouxe salvação a todos sem exceção:

A Palavra percebeu que a corrupção não poderia ser removida senão através da morte; todavia Ele mesmo, como a Palavra, sendo imortal e o Filho do Pai, era tal que não podia morrer. Por esta razão, portanto, Ele assumiu um corpo capaz de morte, a fim de que este corpo, através do pertencimento à Palavra que é acima de todos, possa se tornar na morte, uma troca suficiente para todos, e, ele mesmo permanecendo incorruptível através de Sua habitação, pudesse, de­pois disso, por um fim á corrupção para todos os outros também, pela graça da ressurreição. Foi entregue à morte do corpo que ele havia assumido, como uma oferta e sacrifício livre de qualquer mácula, que Ele em seguida aboliu a morte para seus irmãos humanos pela oferta do equivalente. Pois, naturalmente, uma vez que a Palavra de Deus está acima de todos, quando Ele ofereceu Seu próprio templo e instrumento corpóreo como um substituto para a vida de todos, Ele cumpriu em morte todo o que era exigido. Também fica claro que, através desta união do Filho de Deus imortal com nossa natureza humana, todos os homens foram revestidos com incorrupção na promessa de ressurreição. Pois a solidariedade da humanidade é tal que, por virtude da habitação do Verbo [Palavra] em um único corpo humano, a corrupção que acompanha a morte perdeu seu poder sobre todos. Sabemos como isso se dá quando um grande rei entra em uma grande cidade e se hospeda em uma das casas daquela cidade; em razão de sua presença em uma única casa, toda a cidade é honrada e os inimigos e salteadores deixam de molestá-la. O mesmo sucede com o Rei de todos; Ele veio ao nosso mundo e habitou em um corpo no meio de muitos, e, como consequência, os desígnios do inimigo contra a humanidade foram frustrados e a corrupção da morte, que anteriormente detinha poder sobre a humanidade, simplesmente deixou de existir. Pois a raça humana teria perecido completamente

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caso o Senhor e Salvador de todos, o Filho de Deus, não tivesse vindo e colocado um fim à morte 44 (grifo meu).

Claramente Atanásio (junto com toda a patrística grega, Martinho Lutero, João Wesley e vários outros grandes homens e mulheres conservadores na história cristã) acreditava que Cristo morreu por todos, sem exceção, incluindo o sofrimento da penalidade para os pecados de todos. Também fica claro que Atanásio não acreditava (como poucos pais da igreja gregos acreditaram) no universalismo. Ele afirmou claramente, de forma que não pode ficar um mal-entendido, que a plena salvação, no sentido de vida eter­na, chega, de maneira final, apenas para os que se arrependem e creem e que muitas almas se perderão para sempre pelo fato de rejeitarem a Cristo.

O que os pais gregos e quase todo cristão de renome acreditava acer­ca do escopo e extensão da expiação (até os seguidores escolásticos de Calvino) era que Cristo foi o substituto para todos, sem exceção, de sorte que cada empecilho para o perdão de Deus para todas as pessoas era removido por Sua morte. Eles também acreditavam que os benefícios daquele sacrifício só seriam aplicados às pessoas que creem - quer se­jam eleitas (Lutero e Calvino) quer livremente escolhem aceitar a graça de Deus (Atanásio, Aquino, os Anabatistas, Wesley).

Este é o ensinamento ortodoxo da igreja; a expiação limitada/particu­lar é um ensinamento anômalo. Só porque este ensinamento tem estado entre os calvinistas por um tempo razoável (mas somente após Calvino!) não faz com que ele seja menos anômalo. Mesmo alguns dos clérigos reformados que se reuniram no Sínodo de Dort rejeitaram este ponto da TULIP, posicionando-se com os remonstrantes acerca desta questão. Então, cinquenta anos mais tarde, muitos puritanos na Assembleia de Westminster que escreveram a Confissão de Fé de Westminster se opu­seram a esta doutrina45. O que aconteceu? Evidentemente que as vozes

44. Athanasius, On the Incarnation of the Word 2.9, em Select Writings and Letters of Athanasius, Bishop of Alexandria, trans. Archibald Robertson, Nicene and Post-Nicene Fathers, second series, vol. 4 (Grand Rapids: Eerdmans, 1980), 40 - 41.

45. For these historical facts see Allen, “The Atonement: Limited or Universal?” 67 - 77.

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mais altas e mais insistentes ganharam a batalha apesar de não estarem em posse da verdade. Até hoje muitos reformados e muitos calvinistas não suportam este ponto do sistema TULIP, o extraem e o rejeitam, ainda que isso os coloque em conflito com o restante do que acreditam e também com seus companheiros cristãos reformados e calvinistas.

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capítulo 7

Sim para a graça; Não para a graça irresistível/

monergismo

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AINDA QUE EU TENHA LHE PROVADO que minha teologia, armi- nianismo clássico, não diz que as pessoas salvam a si mesmas através de suas boas obras ou que contribuam com qualquer coisa meritória para sua salvação, meu interlocutor calvinista não estava convencido. “Sua teologia”, ele acusou, “ainda é semipelagiana, se não plenamente pelagiana”.

Ligeiramente ofendido pelo fato de considerar o pelagianismo e o semipelagianismo como heresias, eu lhe pedi para que explicasse mais plenamente. Pensei que ele tivesse a consciência que os arminianos não acreditam em obras de retidão e que realmente acreditam que a salvação é inteiramente da graça e que não possui nenhuma relação com obras meritórias. Mas sua resposta foi a seguinte: “Pelo fato de vocês colocarem o fator decisivo na salvação em sua própria decisão de livre-arbítrio”.

Na época, anos atrás, eu jamais havia ouvido essa acusação, mas eu tinha certeza de que nenhum arminiano diz isso. Quando pressiona­do, meu amigo calvinista disse: “Sabe, se a salvação não for uma obra inteiramente de Deus e não tiver relação alguma com o que fizermos, ela não é inteiramente da graça e não é um dom”. Ao tornar a salvação dependente da livre aceitação da pessoa da graça de Deus, você trans-

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forma a salvação em uma boa obra e, portanto, não mais um dom; e tal entendimento contradiz Efésios 2.8-9. Desde então, tenho me deparado muitas vezes com essa acusação contra o arminianismo (e todas as te- ologias não calvinistas). De alguma maneira esta noção de que os não calvinistas tornam sua decisão livre (de livre-arbítrio) o “fator decisivo na salvação” tem se tornado um mantra para muitos calvinistas.

Enquanto eu realmente penso que esta acusação específica tenha uma resposta apropriada (que eu explicarei adiante), a questão subjacente nesta conversa era na verdade acerca da graça como sendo resistível ou irresistível. Um exame mais cuidadoso sugere que é este exatamente o problema subjacente, de que o arminianismo é o equivalente a “obras de retidão”. Como que a graça salvífica de Deus traz o benefício da morte expiatória de Cristo, perdão, reconciliação com Deus e justificação na vida de uma pessoa? É um dom imposto ou um dom recebido livremente.

A visão calvinista é chamada de monergismo - de duas palavras gregas que significam “um” e “energia” ou “ação”. O monergismo é a crença de que a salvação é uma ação inteiramente de Deus do início ao fim sem qualquer cooperação da pessoa sendo salva além daquilo que Deus incute naquela pessoa. A alternativa é o “sinergismo” - a crença de que a salvação é inteiramente da graça, mas que exige livre cooperação para que ela seja ativada na vida de uma pessoa.

A DOUTRINA CALVINISTA DA GRAÇA IRRESISTÍVEL OU EFICAZ / MONERGISMO

Há um motivo pelo qual o “1” segue o T, o U e o L na TULIP, e não é ape­nas pelo fato de é assim que escrevemos o nome dessa flor. Para os calvi­nistas, a graça irresistível, que muitos preferem chamar de “fraca eficaz” , é bíblica e logicamente necessária em razão da depravação total, eleição incondicional e expiação limitada. Para dar embasamento bíblico eles geralmente fazem uso de João 6.44: “Ninguém pode vir a mim, se o Pai, que me enviou, não o atrair; e eu o ressuscitarei no último dia”. Eles inter­

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pretam “atrair” como “compelir” , mas sem a conotação de força externa contra a vontade da pessoa. Em outras palavras, Deus verga a vontade da pessoa eleita de maneira que ela quer vir a Jesus com arrependimento e fé. Quanto à lógica, o argumento é que pelo fato de as pessoas serem to­talmente depravadas e mortas em pecados e delitos, a menos que Deus elege a pessoa, essa pessoa jamais responderá à chamada interna do Espírito Santo. Assim, o Espírito Santo precisa mudar a pessoa inter­namente de uma maneira eficaz, que é a regeneração. Então a pessoa nascida de novo deseja vir a Cristo, e, neste caso, a pessoa recebe arrependimento e fé (conversão) e justificação (perdão e imputação da justiça de Cristo). Este processo é chamado de “graça monergista” ou simplesmente “monergismo”.

O teólogo reformado Henry Meeter, no livro The Basic Ideas ofCalvi-

nism, define o monergismo desta maneira:

Alguém pode dizer, Deus planejou a salvação e ele a obteve em Cris­to. Agora, a escolha de aceitação ou rejeição é somente minha. Em certo sentido, isso é verdade. Mas quem é a causa que faz com que o Cristão aceite a Cristo? “Não há ninguém que entenda, ninguém que busque a Deus”. Então Cristo envia o Espírito Santo aos nossos corações obstinados, nos regenera, coloca a fé e o amor de Deus, assim como novas ambições e desejos. Isto ele faz com poder irre­sistível - não, como os arminianos dizem, se nós o deixarmos; nós jamais permitiríamos que isso acontecesse de maneira espontânea. Nós somente operamos nossa própria salvação porque é Deus quem opera em nós... Deste modo, toda a obra de redenção, em sua essên­cia, é obra de Deus. Deus, o Pai, a planejou. Deus, o Filho, a obteve. E Deus, o Espírito Santo, a aplicou, regenerando o coração e a vida. 1

Se Meeter apresentou o arminianismo de maneira correta é debatí- vel, e eu tenho desafiado descrições semelhantes a esta em meu livro Teologia Arminiana: Mitos e Realidades. Contudo, a descrição acima é uma expressão clara e concisa do monergismo universalmente mantido e defendido entre os calvinistas.1. Meeter, The Basic Ideas o f Calvinism, 45.

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A questão é que, para o calvinista, qualquer contribuição que a pessoa humana fizer à sua salvação é, na verdade, embora imperceptível, uma obra de Deus nele ou nela. Meeter parcialmente cita Filipenses 2.12, que diz: “De sorte que, meus amados, assim como sempre obedecestes, não só na minha presença, mas muito mais agora em minha ausência - assim também operai a vossa salvação com temor e tremor”. O versículo 13, que Meeter omite (possivelmente por engano), diz: “Por que Deus é o que opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade”. Para ele e todos os calvinistas que encontrei, o que Paulo quer dizer é isto: “Se você estiver operando a sua salvação com temor e tremor, lembre-se de que é Deus quem está fazendo tudo isso em e através de você” Somente desta forma é que se pode atribuir toda a glória para Deus na salvação.

Será que Calvino acreditava na graça monergista? Que ele acreditava está revelado em suas Institutas da Religião Cristã onde ele faz referência ao “chamado interior” , ele declarou:

“A própria administração da vocação eficaz...evidencia ser ela obra da graça divina” Ele continua: “Além disso, também a própria natureza e administração da vocação demonstram isto claramente, as quais não subsistem só pela pregação da Palavra, mas também da iluminação do Espírito... Quando Deus se mostra com a luz de sua Palavra aos que não o mereciam, nisso exibe evidência mui luminosa de sua graciosa bondade. Aqui, pois, já se manifesta a imensa bondade de Deus, mas não a todos para salvação, porque aos réprobos espera juízo mais grave, porquanto rejeitam o testemunho do amor de Deus [Claro, Calvino já havia anteriormente deixado claro que isto se dá em razão deles serem predestinados para tal] . E também Deus, a fim de realçar sua glória, subtrai deles a eficiência de seu Espírito. Portanto, esta vocação interior é o penhor da salvação, o qual não pode enganar. O que é pertinente essa afirmação de João: “Daí sabemos que somos seus filhos: que nos deu de seu Espírito” [ljo 3.24; também 4.13]. E para que a carne não se glorie de que ao menos lhe respondeu ao chamado e se ofereceu espontaneamente, afirma que não havia nenhum ouvido para ouvir, nem olhos para ver, senão aqueles que ele próprio fez. Ele os fez, porém, não segundo a gratidão de cada um, mas em função de sua eleição 2.

2. CALVINO, João. As Institutas: edição clássica, vol. 3, p. 427.

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Na citação anterior Calvino claramente expressa o monergismo ou a graça irresistível. Deus “ faz” com que os ouvidos do pecador eleito ouça e que os olhos vejam o evangelho e ele “retira” aquela “atuação eficaz” (graça irresistível) dos não eleitos, os réprobos.

Como explicarei posteriormente, a maioria dos calvinistas alegam que os sinergistas querem ser capazes de se vangloriar, mesmo que apenas por um pouquinho, dizendo que contribuíram com algo para sua salvação e/ou estão tão enamorados com o livre-arbítrio que não podem convencer a si mesmos em aceitar o fato de que Deus faz tudo na salvação e que eles não contribuem com nada. Tal descrição, entre­tanto, não reflete as verdadeiras declarações feitas pelos sinergistas. A questão é que a maioria dos sinergistas rejeita o monergismo em razão da implicação necessária afirmada abertamente por Calvino de que ela exige que Deus retenha ou retire a graça monergística de muitos das inúmeras pessoas que ele criou à sua imagem e semelhança para a condenação e sofrimento eterno “para sua glória”.

Este Calvino afirma claramente acerca dos réprobos: “são suscitados para este fim, ou seja, para que através deles a glória de Deus resplan­deça”3. A fim de que ninguém entenda mal a fonte de sua reprovação: “Quando, pois, se diz ou que Deus endurece, ou cumula de misericórdia a quem quis, com isso são os homens admoestados a não buscar ne­nhuma outra causa que esteja fora de sua vontade” 4. A única razão pela qual os cristãos evangélicos não calvinistas se opõem ao monergismo é porque o monergismo faz de Deus a causa última, ainda que de forma indireta, da descrença e condenação dos réprobos. O monergismo fere seriamente a reputação de Deus.

Lorraine Boettner segue Calvino bem de perto ao atribuir tudo na salvação a Deus à exclusão de qualquer cooperação humana livre com a

3. íbid , 3 p. 408.

4. Ibid.

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graça. Ele embasa esta visão nas doutrinas da depravação total e eleição incondicional. “Se o homem está morto em pecado, então nada menos que... poder doador de vida do Espírito Santo irá fazer com que faça aquilo que é espiritualmente bom” 5. Desta forma, a regeneração deve preceder a conversão: “A regeneração é um dom soberano de Deus gra­ciosamente concedido àqueles a quem Ele escolheu” 6. Ela envolve uma mudança essencial de caráter de sorte que a pessoa regenerada quer se arrepender, acreditar e servir a Deus. Boettner assegura que esta doutrina da graça irresistível é a única teologia evangélica porque somente ela atribui toda a obra da salvação à Deus, portanto, dando a glória apenas a Deus 1. O autor alega que o arminianismo não é evangélico porque ele faz com que o homem, no final das contas, tenha “o fator de decisão” e não Deus 8. É por isso que ele e outros calvinistas atacam a teologia arminiana como “centrada no homem” em vez de “centrada em Deus”.

Entretanto, precisamos imaginar quem é o Deus no centro desta teologia. Boettner admite que Deus poderia salvar a todos, pois a elei­ção para a salvação é incondicional e a regeneração e a fé são dons unicamente de Deus dados apenas para os eleitos: “Mas por razões que foram reveladas apenas parcialmente. Ele deixa muitos impeni­tentes”9. Enquanto os não calvinistas estão dispostos a admitir que o calvinismo rígido é centrado em Deus, eles tem bons motivos para se indagar como exatamente fazer distinção entre o Deus que ele se centra e entre Satanás - exceto no fato de que Satanás quer que todas as pessoas vão para o inferno e Deus quer que apenas certo número de pessoas seja condenado ao inferno. Isso pode parecer severo, mas é

5. Boettner, The Reformed Doctrine of Predestination, 163.

6. Ibid., 164.

7. Ibid., 173 - 74.

8. Ibid., 175.

9. Ibid., 169.

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esta a razão pela qual a maioria dos cristãos não é calvinista. E isso não é menos severo do que a frequente acusação feita pelos calvinistas de que os arminianos (e outros não calvinistas) colocam o homem, e não Deus, no centro de sua teologia, pois estes querem se gloriar e roubar a merecida glória de Deus.

De maneira irônica e confusa, Boettner prossegue para alegar que o monergismo não exige nenhuma violação da livre agência do pecador. “Esta mudança [isto é, regeneração] não é realizada por meio de qual­quer compulsão externa, mas através de um novo princípio de vida que foi criado dentro da alma e que busca pelo único alimento que pode satisfazê-la [isto é, a Palavra de Deus]”10. Então ele aumenta a confusão ainda mais ao dizer que “os eleitos são influenciados de tal maneira pela força divina que sua chegada é um ato da escolha voluntária” ". Alguém pode se indagar qual o significado de “escolha voluntária” nes­te contexto; eu presumo que Boettner esteja se referindo à liberdade compatibilista de Edwards e de outros calvinistas - liberdade compatível com o determinismo.

Steele e Thomas opinam sobre esta doutrina que eles chamam de “a chamada eficaz do Espírito”. Explicada de maneira simples, esta doutrina declara que o Espírito Santo jamais falha em trazer à salvação os pecadores a quem Ele pessoalmente chama para Cristo. Ele inevita­velmente aplica a salvação a todo pecador a quem Ele intenciona salvar e é Sua intenção salvar todos os eleitos” l2. Assim como Calvino, Boet­tner e a maioria dos calvinistas, eles fazem uma distinção entre uma “chamada geral e externa” do evangelho, que é um convite universal para a salvação a todas as pessoas e uma “chamada especial e interna” que é enviada apenas aos eleitos e que afeta a regeneração dos eleitos

10. lbid.. 177.

11. lbid., 178.

12 Steele and Thomas, The Five Points of Calvinism, 48.

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antes que estes respondam com arrependimento e fé. Esta chamada especial é irresistível: “A graça que o Espírito Santo estende aos eleitos não pode ser frustrada ou recusada, ela jamais falha em trazer os eleitos à verdadeira fé em Cristo” 13.

Como embasamento bíblico Sttele e Thomas fazem uso de Romanos 8.30: “E aos que predestinou a estes também chamou; e aos que chamou a estes também justificou; e aos que justificou a estes também glorificou” A omissão de 8.29 é conveniente ao propósito deles de mostrar Deus completa e unicamente responsável pela regeneração. O versículo diz: “Porque os que dantes conheceu também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos”. Aqui a eleição está embasada na presciência de Deus - algo que os calvinistas rejeitam como erro. Isso sem contar que o versículo 30 nada diz acerca da graça como sendo irresistível. Além do mais, Paulo pula a regeneração e vai para a justificação. Este verso, em seu contexto e não tratado eisegeticamente (inserindo signi­ficados no texto que não estão lá), não corroboram a graça irresistível. O calvinista Palmer concorda totalmente com Calvino, Boettner, Steele e Thomas acerca da graça irresistível, e pelos mesmos motivos; mas ele enfatiza mais a resposta ativa à graça que é necessária da parte da pessoa eleita caso ela deva ser salva. Como já temos visto, assim como alguns calvinistas, Palmer se deleita no paradoxo. Eis aqui outro caso:

Embora seja verdadeiro que ninguém poderia ser salvo se não fosse pela graça irresistível de Deus, ninguém pode jamais cair na armadilha racionalista de dizer que a pessoa não tem nenhum papel a fazer. Não é possível raciocinar assim uma vez que tudo depende do Espírito Santo, que a pessoa não precise crer ou que deva sim­plesmente esperar pelo Espírito Santo para movê-lo e não há nada que a pessoa possa fazer para ser salva M.

13. Ibid., 49.

14. Palmer, The Five Points of Calvinism, 66.

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Esta advertência parece calvinista e arminiana ao mesmo tempo; Palmer aparentemente quer ficar com o bolo intacto e ao mesmo tem­po quer comer uma fatia dele. Observem especificamente as palavras finais de sua afirmação onde ele adverte contra acreditar que não haja nada que uma pessoa possa fazer para ser salva. Após isso ele escreve: Se você assim o fizer [acreditar] agradeça a Deus por fazer com que aja assim” 15. Então, por um lado Deus “faz” com que o eleito creia, e somos proibidos de sugerir que tal ação seja de qualquer forma um ato do livre-arbítrio '6. Por outro lado, somos impedidos de sugerir que a pessoa não precisa, de fato, fazer nada. Estas ideias são difíceis, se não impossíveis, de serem reconciliadas.

R. C. Sproul também defende a graça irresistível: “Deus, unilateral­mente e monergisticamente, faz para nós o que nós não podemos fazer para nós mesmos” l7. Ele prefere chamar tal ação de “graça eficaz” a fim de que ninguém seja levado a entender errado o conceito ao pensar que Deus força alguém a ser salvo contra sua vontade. Antes, Deus graciosa­mente comunica o dom da fé de maneira que a pessoa quer acreditar: “A fé pelo qual somos salvos [eleitos] é um dom. Quando o apóstolo diz [em Ef.2.8-9] que não é por nós mesmos, ele não quer dizer que não seja nossa fé. Novamente, Deus não crê por nós. É nossa fé, mas não se origina de nós. É dada a nós. O dom não é merecido. É um dom de pura graça” l8. Além do mais, “toda a questão da graça irresistível é que o renascimento vivifica a pessoa para a vida espiritual de tal maneira que Jesus agora é visto em sua irresistível doçura” 19.

Para Sproul, então, Deus “monergistica e unilateralmente” salva a

15. ibid.

16. Ibid., 60.

1 7. SPROUL, R. C. O que é teologia reformada? São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 160.

18. SPROUL, R C. Eleitos de Deus, Editora Cultura Cristã, 2002, p. 88.

19. Ibid., 91.

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pessoa eleita ao dar-lhe o dom da fé, que então é a própria fé da pessoa e Deus regenera a pessoa de maneira que ela, pela primeira vez, vê Jesus “em sua doçura irresistível”. Tudo isso sem violar a vontade da pessoa.

Assim como Boettner, Sproul considera a graça irresistível ou graça eficaz como uma questão ainda mais essencial e básica da teologia protestante (e, portanto, evangélica) do que a justificação só pela fé. Afinal de contas, ele argumenta, se uma pessoa contribui com qualquer coisa para a salvação, incluindo uma mera permissão para consentir que Deus trabalhe, então a justificação não é só pela graça. A questão da graciosidade da salvação é mais importante, pois ela é mais elementar do que a questão da salvação só pela fé. “Aqui chegamos ao ponto final entre semipelagianismo e agos- tinianismo, entre arminianismo e calvinismo, entre Roma e a Reforma” 20.

Observem como Sproul está colocando o arminianismo, no qual ele quer dizer qualquer visão protestante que não seja o calvinismo rígido, está do lado de “Roma” - e com isso quer dizer o catolicismo romano - em contraste com a Reforma. O que ele está dizendo é que o arminianismo (ou seja, qualquer visão além da sua) não é realmente protestante e, por­tanto, também não é evangélica. Eu moro no Texas e aqui nós podemos dizer: “ Isso vai dar briga!” Sério, precisamos imaginar qual é o motivo que leva Sproul a ser tão descaradamente ofensivo com seus companheiros cristãos protestantes, incluindo todos dentro da tradição wesleyana, todos os pentecostais, muitos, se não todos os batistas e muitos outros cristãos evangélicos que, por boas razões, não aceitam seu ponto de vista.

Sproul continua:

“ Na visão da Reforma, a obra de regeneração é realizada por Deus e por ele sozinho. O pecador é completamente passivo em receber esta ação. A regeneração é um exemplo da graça operativa. Qualquer cooperação que demonstrarmos para com Deus ocorre apenas depois que a obra de regeneração tem sido completada” 21.

20. SPROUL, R. C. O que é teologia reformada? São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 158.

21. Ibid., p. 158-59

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O único suporte que Sproul apresenta para esta alegação de que esta seja a “visão reformada” é a dura resposta de Lutero dada a Desidério Erasmo (1466-1536) intitulada “A Escravidão da Vontade”. Neste docu­mento Lutero reconhecidamente expressou essa visão. O fato de ele ter expressado essa visão faz com que ela seja a “visão reformada”? Dificil­mente, o braço direito de Lutero, Philip Melanchthon (1497 - 1560), era mais um sinergista, concordando com Erasmo que a salvação envolve alguma cooperação com a graça de Deus pela pessoa humana ainda que ele tenha insistido energicamente que não existe mérito nesta coopera­ção 22. Os anabatistas da reforma, tais como Balthasar Hubmaier (1480- 1528) e Menno Simons (1496 - 1561) enfatizaram o livre-arbítrio em detrimento da graça monergística. A apresentação de Sproul da visão de salvação monergista em oposição a todas as outras como sendo visões católicas romanas é, no melhor dos casos, enganoso e, no pior, hipócrita.

John Piper pode ser contado entre os que concordam com Calvino, Boettner, Steele e Thomas, Palmer e Sproul. Mergulhando no paradoxo juntamente com eles, ele escreve: “Deus fará com que os eleitos ouçam o convite e que respondam de maneira apropriada... Mas ele não faz isso de maneira que diminua nossa responsabilidade de ouvir e crer” 23. Ele também argumenta que a graça irresistível, aliada à eleição incondi­cional, formam o único motivo razoável para a oração intercessória e a batalha espiritual. Isso se dá, ele defende, pois não faz sentido orar pela salvação dos perdidos ou pela derrota de Satanás, a quem ele admite que é o “o deus deste mundo” , a menos que Deus intervenha poderosa­

22. Ver a obra de Melanchthon Commentarius De Anima (1540) (Whitefish, MT: Kessinger Publishing, 2009) na qual ele identifica três “causas cooperantes [e simultâneas]” de justificação: palavra, Espírito e livre-arbítrio. Embora alguns monergistas rígidos desejem “resgatar” a reputação de Melanchthon da alegação de que ele adotava uma visão sinergista da salvação, a maioria dos eruditos em Melanchthon reconhece sua concordância essencial com Erasmo acerca desta questão, ainda que ele sempre tenha rejeitado qualquer noção de que a livre aceitação humana da graça seja equivalente a um ato de mérito.

23. Piper, The Pleasures of God, 202.

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mente para que tais coisas aconteçam. Se as pessoas possuem o livre- -arbítrio, Piper argumenta, não há motivos para orarmos pela salvação destas pessoas ou que elas não suportam Satanás em sua “devastação” do mundo. “Ou desistimos de orar para que Deus converta pecadores ou desistimos da autodeterminação humana suprema” 24.

Claro, qualquer um pode enxergar a profunda ironia em tais alega­ções. Em outro lugar desta obra Piper afirmou inequivocamente que Deus ordena, governa e até causa tudo o que acontece 25. Seja lá qual for o caso, foi quem Deus ordenou. Se ele responder a uma oração - por exemplo, para a salvação de um ente querido perdido - é porque ele a preordenou. A oração, na verdade, não muda coisa alguma; ela é apenas um meio preordenado para um fim preordenado. Piper é um determinista divino, quer ele goste do rótulo ou não. Então, qual papel a oração ou a batalha espiritual têm em sua teologia? Certamente a oração e a batalha espiritual não podem realmente fazer com que algo aconteça diferente do que Deus, de uma forma ou de outra, já tenha planejado agir e que necessariamente irá agir.

MAIS DANO A REPUTAÇÃO DE DEUS

Na próxima seção deste capítulo, “Alternativas à Graça Irresistível/ Monergismo”, eu mostrarei que muitas das acusações feitas pelos cal­vinistas, tal como a do Sproul contra todas as visões não calvinistas e, em especial, a visão arminiana, todas estas acusações erram o alvo por completo. Nesta seção quero mais uma vez expor as falácias dos argu­mentos calvinistas para o monergismo e demonstrar que o monergismo,

24. Ibid., 226.

25. Ver seu sermão (ou postagem no blog) com a data de 17 de setembro de 2001, logo após os ataques terroristas em Nova York e Washington, D.C., cujo o título é: “Why I do not say, ‘God did not cause the calamity, but he can use it for good.' ” (www. desiringgod.org/ResourceLibrary/TasteAndSee/ByDate/2001 /II 81_Why_l_Do_Not_ Say_God_Did_Not_Cause_the_Calamity_but_He_Can_Use_lt_for_Good/). Claramente, então, ele realmente diz que Deus causa o pecado e o mal!

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na verdade, traz danos a reputação de Deus ao necessariamente solapar a bondade e o amor de Deus.

Inicio com refutações às interpretações de passagens bíblicas comu- mente feitas por calvinistas que supostamente exigem o monergismo. Tais versículos mais importantes se encontram em João 6.44-45 onde Jesus diz que ninguém pode vir a Ele a menos que o Pai o “traga” para Ele. Sproul e outros calvinistas argumentam que o verbo grego aqui tra­duzido por “atrair” sempre e unicamente significa “compelir” 2Ó. Em uma dissertação brilhante, mas não publicada, cujo título é The ‘Drawings’ of God,” (“As ‘Atrações’ de Deus”), o pastor e teólogo Steve Witzki prova conclusivamente que Sproul está errado. Ele faz citações de vários léxicos gregos dizendo que a palavra grega nem sempre significa “compelir” , mas que frequentemente significa “trazer, atrair” 27.

Sproul cita uma obra de referência que muitos consideram autorida­de em assuntos de interpretação do grego neotestamentário — KitteTs Theological Dictionary ofthe New Testament (Dicionário Teológico do Novo

Testamento deKittel) — para corroborar sua definição do termo por todo o Novo Testamento, incluindo João 6.44 e passagens cognatas. Todavia, Witzki cita Kittel como permitindo uma possibilidade mais ampla de possíveis significados. Em referência a João 6.44 e 12.33, o autor do artigo de Kittel (Albrecht Oepke) escreve:

Aqui não há o pensamento de força ou mágica. O termo figurativa­mente expressa o poder sobrenatural do amor de Deus ou Cristo que é estendido a todos... mas sem o qual ninguém pode vir... A aparente contradição mostra que tanto a eleição quanto a universalidade da graça devem ser levadas a sério; a compulsão não é automática 28.

26. SPROUL, R.C. Eleitos de Deus, Editora Cultura Cristã, 2002, pp. 51-52.

27. Steve Witzki, "The 'Drawings' of God” (unpub. paper, 2003), 2 - 3.

28. Ver Theological Dictionary of the New Testament (Abridged Edition), ed. Gerhard Kittel and Gerhard Friedrich; trans., Geoffrey W. Bromiley (Grand Rapids: Eerdmans, 1985), 227.

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O argumento mais devastador contra o exemplo de Sproul como o termo sempre significando “cpmpelir” é João 12.32. Na passagem em questão Jesus diz: “quando for levantado da terra, atrairei todos a mim”. O verbo grego aqui é o mesmo de João 6.44 e 65. Se Sproul estiver correto e o verbo deva sempre significar “compelir” , então este verso ensina o universalismo. Na verdade, a palavra pode significar simplesmente tra­zer ou atrair em vez de compelir ou arrastar. A interpretação arminiana destes versículos em João 6 e 12 é sensata: que ninguém pode vir a Jesus Cristo a menos que a pessoa seja atraída pela graça preveniente de Deus que chama e capacita, mas que não compele.

Existem versículos que contradizem a graça irresistível? Steve Lemke compilou muitas passagens que a desaprovam. Por exemplo, Mateus 23 e Lucas 13 descrevem o lamento de Jesus sobre Jerusalém:

“Jerusalém, Jerusalém, você, que mata os profetas e apedreja os que lhe são enviados! Quantas vezes eu quis reunir os seus filhos, como a galinha reúne os seus pintinhos debaixo das suas asas, mas vocês não quiseram. Eis que a casa de vocês ficará deserta. Pois eu lhes digo que vocês não me verão desde agora, até que digam: 'Ben­dito é o que vem em nome do Senhor'"(Mateus 23.37-39)

Lemke corretamente observa que se o calvinismo estiver correto, “o lamento de Jesus deveria teria sido sobre a dureza do coração de Deus”29. Existem muitas passagens como esta na Bíblia onde Deus, Jesus ou um profeta denuncia pesarosamente a dureza de coração do povo como se o povo pudesse agir de maneira contrária. Se a graça irresistível fosse verdadeira, claro, Jesus poderia simplesmente ter atraído eficazmente o povo de Jerusalém para Si. Por que ele assim não o fez se estava tão pesaroso acerca de sua rejeição? E por que ele estaria triste acerca da rejeição se ela, assim como tudo, foi preordenado por Deus?

29. Lemke, “A Biblical and Theological Critique of Irresistible Grace,” in Whosoever Will: A Biblical-Theological Critique of Five-Point Calvinism, ed. David L. Allen and Steve W. Lemke (Nashville, TN: Broadman & Holman, 2010), 120.

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A resposta comum dos calvinistas para estas passagens é que Deus está triste em relação à dureza de coração do povo e a rejeição dEle. Que Deus não faz nada a esse respeito só pode ser porque ele escolhe não fazer e que ele escolhe não fazer só pode ser em razão de que seu motivo mais forte (definição de livre-arbítrio de Edwards) não quer. Em suma, ele não quer, mas deseja que poderia. A única pista que os calvinistas nos dão para explicar o motivo pelo qual Deus não faz o que ele deseja é que isto é para “sua glória”. Que tipo de Deus é glorificado por pessoas que o rejeitam quando ele escolhe não vencer essa rejeição quando ele poderia vencer tal rejeição?

Além disso, por que Deus ficaria triste ou pesaroso acerca daquilo que lhe glorifica? Que analogia possível poderia existir para tal em se tratando de experiência humana? Imagine que um pai possui uma po­ção do amor que faria com que todos os seus filhos o amassem e que jamais se rebelassem contra ele. Ele dá a poção à alguns de seus filhos, mas não a dá a outros e então chora pelo fato de que alguns de seus filhos o rejeitam e não o amam. Quem levaria esse pai a sério? Ou, se o levássemos a sério, quem não pensaria que ele é insincero ou um tanto quanto louco? Lemke conclui a partir da história do lamento de Jesus sobre Jerusalém:

Se Jesus acreditasse na graça irresistível, tanto na chamada exter­nas quanto na interna, seu lamento aparente sobre Jerusalém teria sido apenas um ato insincero, um show de dissimulação pelo fato dele saber que Deus não iria e que não daria a tais pessoas perdidas as condições necessárias para a salvação das mesmas” 30.

Outra passagem bíblica interessante mencionada por Lemke é Mateus 19.24, onde Jesus diz aos discípulos: “E lhes digo ainda: é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus”. Qual é o sentido deste versículo à luz da graça irresis­

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tível? Jesus está dizendo que é mais difícil para Deus salvar um rico do que um pobre? Como pode isso? Se todos, sem exceção, apenas entram no reino de Deus pela obra de Deus apenas sem nenhuma cooperação exigida da parte da pessoa, então a fala de Jesus não faz sentido algum. Novamente, o comentário de Lemke é preciso:

Claro, se Jesus fosse calvinista Ele jamais teria sugerido que é mais difícil para os ricos serem salvos pela graça irresistível de Deus do que os pobres. Suas vontades teriam sido mudadas imediata e invencivelmente no momento da chamada eficaz de Deus. Não seria mais difícil para um rico ser salvo pela chamada monergista e irresis­tível de Deus do que seria para qualquer outro pecador. Mas o Jesus real estava sugerindo que a salvação das pessoas estava, em certa medida, atrelada a sua resposta e compromisso com Sua chamada31.

Lemke também aponta para as inúmeras chamadas totalmente in- clusivistas na Bíblia que pedem para que as pessoas venham a Deus e a Cristo, principalmente as passagens já discutidas sobre o “todo” que expressam o desejo de Deus para que todos sejam salvos e que ninguém pereça (Mateus 18.14; 1 Timóteo 2;4; 2 Pedro 3.9 e 1 João 2.2). Como já demonstrei, estas passagens não podem ser interpretadas como se referindo apenas a algumas pessoas.

Mais devastador de tudo, Lemke corretamente enfatiza que “os calvinistas essencialmente culpam a Deus por aqueles que não vêm [à salvação]” 32. Afinal de contas, enquanto dizem que os que rejeitam o evangelho simplesmente recebem o abandono merecido quando são condenados, “há muito mais nesta questão do que meramente isso. Os calvinistas dizem que Deus elegeu alguns para a glória por motivos pessoais próprios desde que o mundo começou, e que Ele concedeu graça irresistível através de Seu Espírito de maneira que estes inevitavel­mente serão salvos” 33. Essa é a questão principal contra esta doutrina

31. Ibid., 121.

32. Ibid., 122.

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do calvinismo (assim como é o ponto principal contra todas as doutrinas calvinistas!). Tal entendimento retrata Deus como uma pessoa que faz acepção de pessoas porque ele escolhe salvar alguns irresistivelmente e escolhe que outros não recebam este dom crucial, que como resultado disso, fará com que sejam condenados para sempre. O fato de merece­rem a condenação não é a questão. A questão é que todos merecem a condenação, mas Deus é seletivo de forma a salvar alguns de maneira irresistível e abandona outros para que sofram no inferno uma separação eterna de Deus. Os calvinistas não apresentam nenhum motivo para isso além do “para o Seu beneplácito” e/ou “para a glória Deus”

Todavia, todos os calvinistas alegam que Deus é bom e amável. Que bondade e que amor é esses? Na verdade, para dizer sem rodeios, o calvinismo necessariamente implica, quer qualquer calvinista diga ou não, que Deus exige uma melhor qualidade de amor de nossa parte do que o amor que ele mesmo exerce! Em Lucas 6.35 e em passagens paralelas, Jesus pede para que amemos nossos inimigos; não há uma única sugestão de qualquer exceção. Mas, de acordo com o calvinismo, Deus não faz isso. Claro, alguns calvinistas insistem que Deus realmente

ama até mesmo seus inimigos réprobos. Mas não há nenhuma analogia para este tipo de amor na experiência humana. Seria um amor na qual a pessoa poderia resgatar alguns de mortes terríveis, mas que escolhe não salvá-las a fim de mostrar quão grande ele é. Há alguma analogia para esta “bondade” e “amor” na experiência humana? Se não, então eu sugiro, com Paul Hem, que este amor e esta bondade são insignificantes.

Walls e Dongell oferecem uma analogia para testar se qualquer ser humano poderia ser considerado amável ou bom caso ele agisse con­forme o calvinismo diz que Deus age ao conceder a graça irresistível apenas a algumas de suas criaturas humanas caídas. (Lembre-se, ele criou tudo a sua imagem e semelhança). Na ilustração desses autores, um médico descobre uma cura para uma doença mortal que está dizi­mando um grupo de crianças de um acampamento e dá a cura ao diretor

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do acampamento. O diretor aplica a cura em algumas das crianças de maneira que elas são curadas e nega a cura para as outras crianças de sorte que elas morrem de maneira terrível. Ele não está com o remédio em falta; não há nada que impeça o diretor de curar todas as crianças. Ainda que algumas crianças tenham resistido à cura, o diretor tinha a habilidade de persuadir a todas elas para que tomassem o remédio; ele só persuadiu algumas das crianças. Quando os pais confrontarem o di­retor, ele defende apaixonadamente que ele amava a todas as crianças- até mesmo as que morreram. Ele cuidou delas quando elas estavam doentes e as deixou da maneira mais confortável possível 34. Walls e Dongell corretamente concluem:

A alegação do diretor de amar todas as crianças é, no seu melhor, vazia e, no seu pior, enganadora. Se o amor não emprega todos os meios disponíveis para resgatar alguém da sua perda definitiva, é di­fícil ouvir que tal seja amor de alguma forma. Em nosso julgamento, torna-se sem sentido alegar que Deus quer salvar a todos ao passo que insistimos que Deus se abstém de tornar a salvar possível a todos. O que devemos fazer com um Deus que pede para que façamos aquilo que ele mesmo não faz?35

A questão pura e simples é que a doutrina da graça irresistível, sem a

salvação universal que a maioria dos calvinistas rejeita, leva à “consequência lógica e necessária” de que Deus não é bom e que não é amável. Agora, claro, nenhum calvinista admitiria isso! Mas o ensinamento deles de­veria levar uma pessoa pensante a esta conclusão. E o que eles dizem é inconsistente e, portanto, altamente problemático, se não completa­mente incoerente. Quando escuto ou leio um calvinista rígido dizendo que Deus ama a todos e que é um Deus bom, eu não tenho a mínima ideia do que isso significa.

34. Walls and Dongell, Why I Am Nota Calvinist, 54 - 55.

35. Ibid., 55.

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Outro problema com a graça irresistível é que os relacionamentos pessoais exigem mutualidade. O filósofo-teólogo holandês Vincent Brümmer demosntrou isso conclusivamente em seu ensaio Speaking of a Personal God (Falando de um Deus Pessoal), onde ele apresenta um argumento passo-a-passo que a mutualidade, no sentido de resposta livre que é resistível, é parte de qualquer relacionamento pessoal. Sem liberdade da vontade, que inclui a habilidade de resistir, os atos de uma pessoa não são realmente “atos” de jeito algum, mas “eventos” 3Ó. Por definição, a realização de um relacionamento pessoal exige atos livres de ambas as partes em relação de uma para com a outra:

Para a realização de um relacionamento pessoal a iniciativa de ambas as partes no relacionamento é necessária. Dado que ambas as partes em tal relacionamento são pessoas, ambas possuem, por definição, a liberdade da vontade, na qual deve ser factualmente possível para ambas as partes dizer “não” para a outra e assim impedir o relacionamento de entrar em existência. Apenas pelos meios do “sim” de uma parte que a outra recebe a liberdade de habilidade para realizar o relacionamento. Neste aspecto, os relacionamentos pessoais são simétricos e diferem dos relacionamentos puramente causais, que são assimétricos, pois apenas uma parte (a causa) possa ser o iniciador. A outra parte em um relacionamento puramente causal é um objeto de manipulação causal e, portanto, carece de liberdade da vontade para ser capaz de dizer “não” no que diz respeito ao que lhe acontece” 37.

Brümmer argumenta adiante que em nosso relacionamento com Deus, Deus pode ser o iniciador e deve ser em virtude de nossa carência de “liberdade de habilidade” devido a nossa pecaminosidade. Todavia, “um relacionamento pessoal com Deus supõe que a parte humana também permanece uma pessoa no relacionamento e que sua livre es­colha é igualmente uma condição necessária para que o relacionamento aconteça” 38. Por fim, Brümmer nega a ideia de graça irresistível ao dizer

36. Vincent Brümmer, Speaking of a Personal God (Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1992), 75.

37. Ibid.

38. Ibid.

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que mesmo Deus não pode realizar nossa escolha sem fazer com que ela deixe de ser nossa. Por definição, um relacionamento pessoal com Deus não pode ser factualmente [realistamente] inevitável para parte humana. Por esta razão a doutrina da irresistibilidade factual [real] exclui um relacionamento pessoal entre Deus e as pessoas humanas 39.

Não é preciso ser filósofo para estabelecer estes fatos; eles são do sen­so comum. Mas ajuda ter um filósofo que sustente tais fatos. E em nada ajudará o fato de os calvinistas reclamarem com os críticos pelo fato de apelarem à filosofia; eles são bons em usar a filosofia quando ela corrobora seus argumentos40. O senso comum apenas dita que um relacionamento verdadeiramente pessoal sempre envolve o livre-arbítrio; na medida em que uma parte controla a outra de tal forma que a outra não tem uma escolha real de estar ou não no relacionamento, não é um relacionamento real. Não faz diferença se ambas as partes queiram estar no relaciona­mento. Imagine uma amizade onde uma pessoa manipula a outra para que a outra seja sua amiga. Talvez a pessoa tenha dado dinheiro ou até mesmo tenha drogado a outra pessoa para torná-la amigável. Qualquer observador imparcial de tal “amizade” diria que ela não é uma amizade legítima - pelo menos não é uma amizade saudável. O consentimento mútuo e informado é um pré-requisito para qualquer bom relacionamento.

Mas Brümmer não abandona a questão neste ponto. Ele concentra sua crítica bem na própria noção de salvação do calvinismo rígido. Referindo-se ao calvinismo rígido com a metonímia de “Dordt” (fazendo referência ao Sínodo de Dort), ele diz:

39. ibid., 75 - 76.

40. Qualquer um que duvidar disso jamais estudou a teologia de Jonathan Edwards, que viu no empirismo de Locke um aliado para estabelecer a soberania de Deus e a ausência de livre-arbítrio libertário. Um dos intérpretes mais célebres de Edwards diz: “ o tratamento de Locke das faculdades humanas e sua teoria da ‘ideia simples’ tornaram-se úteis para Edwards em uma descrição das dinâmicas internas do ato da fé” Ver Conrad Cherry, The Theology of Jonathan Edwards: A Reappraisal (Bloomington, IN: Indiana Univ. Press, 1966), 15.

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Me surpreende que as dificuldades aqui tenham sua fonte no fato de que os teólogos de Dort não viram a salvação humana em termos de um relacionamento pessoal com Deus, mas em termos de uma condição renascida em nós. A única questão então diz respeito à causa

desta condição: é Deus ou nós, graça ou livre-arbítrio? 41.

Mas quando a salvação é considerada não como uma condição me­ramente causal, mas também e ainda mais uma relação pessoal, como a maioria dos evangélicos de fato a consideram, a ideia que a salvação pode ser fundada tanto na graça quanto na vontade humana (com a graça tendo superioridade) é convincente.

Irei encorpar esta descrição e crítica da doutrina calvinista da graça irresistível, monergismo, com uma citação apropriada de Vernon Groun­ds, um teólogo evangélico que concorda completamente com Brümmer:

“Deus lida pessoalmente com seres pessoais... a graça que não deixa opção alguma não é graça, é outra coisa. Devemos dizer: ‘Pelaforça fomos salvos e não de nós mesmos’”42.

ALTERNATIVAS À GRAÇA IRRESISTÍVEL/MONERGISMO

Agora abordarei algumas das objeções ao “sinergismo evangélico” feita por calvinistas. Por “sinergismo evangélico” eu me refiro, em termos próximos, à teologia arminiana, embora muitos que mantém esta visão de salvação não desejam ser chamados de arminianos. Respeito essa opção ao passo que respeitosamente peço para que estes considerem que o rótulo pode ser mais apropriado do que pensam.

Há séculos que os teólogos calvinistas, pela mera repetição e detur­pação, criaram uma situação onde o termo “arminiano” é amplamente visto como a designação de uma heresia. Demonstrei conclusivamente

41. Brummer, Speaking of a Personal God, 75, 76 - 77.

42. Grounds, “God’s Universal Salvific Grace,” 28.

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em meu livro Teologia Arminiana - Mitos e Realidades que o arminianismo não é o que eles dizem. Por exemplo, contrário ao que Sproul e outros críticos calvinistas mal informados ou insinceros, o arminianismo não é semipelagiano. Semipelagianismo é a heresia que diz que a iniciativa na salvação é nossa, da parte pessoa humana, e não de Deus 43. O ar­minianismo sempre insistiu que a iniciativa na salvação é de Deus, ela se chama “graça preveniente” e é capacitadora, mas resistível. Seria um choque para muitos calvinistas saber o quanto da salvação e o quanto da vida cristã tanto Armínio quanto Wesley atribuíram à graça - exata­

mente tudo.

Mas a teologia arminiana supõe, pelo fato de a Bíblia em sua totalidade supor, que Deus, em razão do amor, se limita de maneira que sua graça iniciadora e capacitadora seja resistível. Ela é poderosa e persuasiva, mas não é compulsiva no sentido determinista. Ela deixa o pecador como uma pessoa e não um objeto. O teólogo batista Robert E. Picirilli diz:

O que Armínio quis dizer com “graça preveniente” é que é aquela graça que precede a real regeneração e que, exceto quando resistida em último estágio, inevitavelmente conduz à regeneração. Ele foi rápido em observar que esta “assistência do Espírito Santo” é de tal suficiência a ponto de se manter o mais distante possível do Pela- gianismo” 44.

Outro teólogo batista, Stanley J. Grenz, foi um arminiano sem rotular­-se a si mesmo como tal. Em sua teologia sistemática, Theologyfor the

Community o/God (Teologia para a Comunidade de Deus), ele descreve a graça preveniente de três formas: iluminadora, convencedora e como convidativa e capacitadora45. Ele deixa claro que ela é sempre resistível

43. Ver Rebecca Harden Weaver, Divine Grace and Human Agency: A Study of the Semi­Pelagian Controversy (Macon, GA: Mercer Univ. Press, 1996), 110 - 11.

44. Picirilli, Grace, Faith, Free Will, 153.

45. Stanley J. Grenz, Theologyfor the Community of God (Grand Rapids: Eerdmans, 2000).

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porque ela é voltada para pessoas e não máquinas, por meio do ouvir a Palavra de Deus. A questão aqui é simplesmente esta: a teologia armi- niana (e muitas outras teologias não calvinistas que não são rotuladas assim)46 colocam a iniciativa na salvação e toda a obra de salvação ime­diatamente do lado divino da equação. A graça de Deus é a causa eficaz da salvação, mas a fé da pessoa humana em resposta à graça preveniente é a causa instrumental da salvação. O que é esta fé? É simplesmente a confiança em Deus; não é uma “boa obra” ou qualquer coisa meritória da qual o pecador pode se gabar.

Mas e quanto aos ataques dos calvinistas contra a teologia arminiana como uma forma de autosalvação e obras de retidão análogas a (eles diriam) teologia católica romana? Calvinistas eruditos não dizem que os arminianos acreditam que eles precisam trabalhar para sua salvação; eles dizem que o arminianismo e outros não calvinistas tornam a decisão humana da fé no “fator decisivo” na salvação e, portanto, trazem de volta, ainda que sem intenção, a salvação por boas obras.

Para os arminianos, entretanto, esta acusação é ridícula. Imagine um aluno que esteja passando fome e prestes a ser despejado de seu dormitório por falta de dinheiro. Um professor bondoso dá a esse aluno um cheque de R$ 1.000,00 - o suficiente para que ele pague seu aluguel e coloque uma boa quantidade de comida em sua dispensa. Imagine, pensando mais além, que o aluno que foi resgatado leve o cheque até o banco, assine e deposite o cheque em sua conta (o que faz com que seu extrato fique com R$ 1.000,00 positivos). Imagine também que o aluno então começa a andar pelo campus se gabando de que ele mereceu receber a quantia de R$ 1.000,00. Qual seria a resposta das pessoas caso soubessem a verdade acerca da situação? Eles acusariam o aluno de ser miserável e ingrato. Mas suponha que o aluno diga: “Mas

46. Por exemplo, anabatistas, tais como os menonitas, não se intitulam arminianos, mas sua soteriologia também é sinergista. Quando utilizo os termos “arminiano” e “sinergismo evangélico” , eu tenho por intenção a inclusão destes.

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o fato de eu endossar o cheque e o depositar em minha conta é o fator decisivo para que eu conseguisse o dinheiro, então eu fiz uma boa obra que mereceu, ao menos, parte do dinheiro, não mereci?" Ele seria ridi­cularizado e possivelmente ainda seria ignorado pelos demais por ser uma pessoa insensata.

Em qual situação na experiência humana que o simples ato de aceitar

um presente é o “fator decisivo” para recebê-lo? Isso é um fator, sim - mas dificilmente é o fator decisivo. A mera aceitação de um presente não dá o direito ao presenteado de se gabar. Ah, mas o calvinista dirá que ao aluno da ilustração acima poderia se gabar caso o professor tivesse oferecido um presente de dinheiro semelhante ao dele a outros alunos que estejam passando fome e estes alunos tenham rejeitado o presente. Ele poderia se orgulhar que, de alguma forma, ele é melhor que os outros alunos. Duvido. Ele pode tentar, mas quem acreditará nele? As pessoas lhe dirão: “Pare de querer ganhar crédito por ter sido resgatado! O fato de os outros não terem aceitado o dinheiro e terem sido despejados e estarem mendigando por comida nas ruas não diz nada em relação à você. Dê todo o crédito a quem ele pertence - ao professor bondoso”. Quem pode argumentar com isso?

Por que os arminianos e outros não calvinistas rejeitam a graça ir­resistível? Porque eles amam o livre-arbítrio e não querem dar toda a glória a Deus, como sugerem alguns calvinistas? De jeito nenhum. Essa é uma calúnia indigna de qualquer um que tenha se dado o trabalho de estudar o assunto. Todo arminiano, de Armínio até hoje, sempre deixou claro o verdadeiro motivo por trás da rejeição à doutrina da graça irre­sistível: a preservação do caráter bondoso e amoroso de Deus. Claro, se

uma pessoa pudesse ser universalista, não haveria obstáculo necessário para a graça irresistível exceto possivelmente a questão levantada acima acerca da natureza dos relacionamentos pessoais. Todavia, se a única forma possível na qual as pessoas possam ser salvas é que Deus as vença e as arraste para aceitar sua misericórdia, eu não teria nenhuma

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objeção essencial em acreditar nela conquanto que Deus agisse assim para

com todo mundo. Felizmente, existe outra forma: a graça preveniente. E uma vez que não posso acreditar na salvação universal, essa é a única alternativa ao monergismo que preserva o caráter de amor perfeito de Deus, revelado em Jesus Cristo.

Outra objeção calvinista comum ao sinergismo evangélico / arminia­nismo é que ele não leva a depravação total a sério o bastante. Afinal de contas, os calvinistas afirmam, humanos caídos são literalmente mortos em delitos e pecados. A única esperança desses caídos é que Deus os ressuscite. Isso é verdade, mas esse ato de Deus, a ressurreição dos caídos, não os deixa sem opção de aceitá-lo ou não. Na verdade, os arminianos e outros sinergistas realmente acreditam que a graça preve­niente restaura vida à pessoa morta em delitos e pecados. Todavia, ela não os força a aceitarem a misericórdia de Deus para a salvação, que exige arrependimento e fé (conversão).

Assim, na teologia arminiana, uma regeneração parcial realmente precede a conversão, mas ela não é uma regeneração completa. É um despertamento e uma capacitação, mas não uma força irresistível. É assim que sinergistas evangélicos interpretam as “atrações” do evan­gelho de João, incluindo as palavras de Jesus acerca de atrair todas as pessoas para si quando fosse levantado da terra. Na verdade, apenas

estas interpretações destas atrações mantêm-nas juntas significando a mesma coisa - o poderoso poder de atração e persuasão de Deus que na realidade partilha livre-arbítrio para ser salvo ou não. Ser salvo não é uma questão de fazer uma obra; é apenas uma questão de não resistência.

Quando uma pessoa decide permitir que a graça de Deus a salve, ela se arrepende e confia apenas e completamente em Cristo. Esse é um ato passivo; poderia ser comparado a uma pessoa se afogando que decide relaxar e permitir que o salva-vidas a salve do afogamento.

É assim que os arminianos/sinergistas evangélicos entendem Filipen- ses 2.12-13 citado anteriormente. O apóstolo Paulo, sob a inspiração

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do Espírito Santo, diz a seus leitores cristãos para que se lembrem de “operar” sua salvação “com temor e tremor”. Os críticos pensam que os arminianos e os sinergistas evangélicos geralmente param aqui e que ignoram o verso seguinte. Mas eles não fazem isso. Eles percebem e ensinam que se as pessoas estiverem operando sua salvação, do início ao fim, é apenas porque “Deus está trabalhando” nelas. Esta é a graça preveniente e auxiliadora: preveniente que leva à conversão e auxiliadora por toda a vida cristã. Mas não faria sentido algum para Paulo exortar seus leitores para que operassem sua salvação com temor e tremor se Deus estivesse fazendo tudo e eles sequer tivessem de cooperar permi­tindo que a graça de Deus trabalhasse neles.

Peço a tolerância do leitor no momento em que chego á conclusão deste capítulo para apresentar duas ilustrações bem despretensiosas do sinergismo evangélico que eu acredito que façam mais justiça ao texto bíblico e a experiência cristã e ao caráter de Deus do que as imagens e analogias calvinistas. Primeiro, imagine um poço fundo com lados ín­gremes e escorregadios. Várias pessoas estão deitadas débeis e feridas, completamente impotentes, no fundo do poço.

• Semipelagianismo diz que Deus se aproxima e que joga uma cordapara o fundo do poço e espera que a pessoa comece a puxar a corda. Quando a pessoa assim o faz, Deus responde gritando: “Segure bem firme na corda e a amarre em seu corpo. Juntos, nós te tiraremos daí” O problema é que a pessoa está demasiada machucada para fazer isso, a corda é fraca demais e Deus é bom demais para esperar que a pessoa inicie o processo.

• Monergismo diz que Deus se aproxima, lança a corda para dentrodo poço e que desce até o fundo do poço, enrola a corda em al­

gumas das pessoas e então sai do poço e puxa aquelas pessoas para a segurança sem qualquer cooperação. O problema aqui é que o Deus de Jesus Cristo é bom e amável demais para resgatar apenas algumas das pessoas impotentes.

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• Sinergismo Evangélico diz que Deus se aproxima, lança uma corda e grita: “Segurem na corda e puxem e juntos nós iremos tirar vocês daí”. Ninguém se mexe. Eles estão severamente feridos. Na verdade, para todos os propósitos práticos, eles estão “mortos” , pois estão completamente incapazes. Então Deus derrama água no poço e grita: “Relaxem e deixem que a água os faça boiar até que saiam do poço!” Em outras palavras: “Boiem!” Tudo que a pessoa no poço precisa fazer para ser resgatada é deixar que a água o faça subir e sair do poço. A ação exige uma decisão, mas não um esforço. A água, claro, é a graça preveniente 47.

Segundo, aqui temos uma ilustração da graça e “operação da vossa sal­vação” por toda a vida cristã. Durante os verões quentes eu preciso regar minhas plantas com frequência. Então vou até a torneira externa onde a mangueira está acoplada, abro toda a torneira e então vou até a outra extremidade da mangueira e arrasto a mangueira pela lateral da casa para regar um arbusto. Invariavelmente, quando chego no arbusto e pressiono o cabo da mangueira que está acoplado à ponta da mangueira, não sai nada. Volto até a torneira e descubro que não há nada de errado lá. A pressão da água é forte; a água está fluindo na mangueira com toda a força. Ah, eu me dou conta, há um nó na mangueira. Então eu encontro o nó que está impedindo a água que está dentro da mangueira de fluir e de funcionar.

Nesta ilustração a água representa a graça auxiliadora de Deus; ela sempre é “ força total” na vida cristã. Não há “doses de reforço de gra­ça”. A graça é plena e livre a partir da conversão e regeneração para a vida de santificação. Mas se eu não estou experimentando o fluxo da graça de Deus em confiança e poder para o serviço, isso não se dá pela ausência da graça; mas devido a nós na mangueira da minha vida. O

47. Outro aspecto desta ilustração que eu acho útil é que a água que visa à salvação das pessoas incapazes dentro do poço também se torna um meio de destruição, caso as pessoas queiram resistir a ela - uma imagem da ira de Deus?

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que são nós? Atitudes, pecados que nos assediam, ausência de oração. Tudo o que preciso fazer é decidir remover estes nós e a graça que já está lá terá seu fluxo restabelecido.

Esta é uma ilustração imperfeita de Filipenses 2.12-13 a partir de uma perspectiva sinergista evangélica. A única alteração necessária para fazer com que a ilustração realmente “ funcione” é que mesmo minha habilidade de remover estes “nós” é um dom de Deus. Mas eu preciso fazer algo - não uma obra boa e meritória da qual eu possa me gabar, mas simplesmente admitir minha incapacidade e total dependência da graça de Deus e pedir a Deus para que me dê a habilidade e o desejo de remover os nós.

A melhor exposição desta soteriologia sinergista evangélica/ arminia­na em língua moderna é o livro Trans/ormíng Power of Grace (O poder

transformador da graça) de Thomas Oden. De acordo com a opinião geral, o ortodoxo e biblicamente sério teólogo Oden, de maneira encan­tadora e bíblica articula a teologia brevemente esboçada acima, que eu chamo de sinergismo evangélico 4S. Da graça Oden diz: “Deus prepara a vontade e coopera com a vontade preparada. Na medida em que a graça precede e prepara o livre-arbítrio, ela se chama preveniente. Na medida em que a graça acompanha e capacita a vontade humana para operar com a vontade divina, ela se chama graça cooperante"49. “Ape­nas quando os pecadores são auxiliados pela graça preveniente é que eles podem começar a ceder seus corações para a cooperação com as formas subsequentes de graça”. “A necessidade da graça ser preveniente é grande, pois é precisamente quando ‘estando vós mortos em ofensas e pecados’ (Ef. 2.1) que ‘pela graça sois salvos’ (Ef.2.8)” 50.

48. Quero deixar claro que minhas ilustrações simples não foram extraídas de Oden e que náo sei o que ele pensaria acerca delas. A culpa pelas imperfeições da ilustração não deve ser atribuída a ele.

49. Oden, The Transforming Power o f Grace, 47. 50. Ibid.

50. Ibid.

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conclusão

Os enigmas do Calvinismo

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A LÓGICA É IMPORTANTE. A maioria dos calvinistas concorda. Sproul, por exemplo, insiste que a teologia não deve possuir quaisquer contra­dições. Mistérios - sim; contradições - não. Mais uma vez, um mistério é algo além de nossa completa compreensão - como a trindade, por exemplo. Uma contradição é algo impossível - um solteiro casado, um quadrado redondo, dois mais três é igual a quatro. Poucos calvinistas querem adotar contradições. Qualquer um que adotar ou expressar uma contradição está adentrando no absurdo. O que é um paradoxo? É uma aparente contradição e, portanto, sempre uma tarefa que exige reflexão mais aprofundada.

Mas eu gostaria de sugerir que há uma categoria entre o mistério e a contradição ou entre o mistério e o paradoxo - enigma. Um enigma é um quebra-cabeça mental - algo que estremece a mente. Pode ser uma contradição, mas é difícil de saber. Pode ser um sinal de mistério, mas beira à insensatez. Em todos os lugares e para todo mundo, um enigma é um sinal de algo errado, algo a ser examinado e refletido e, esperançosamente, resolvido.

Um exemplo extraído da ciência é a luz. Ela manifesta tanto aspec­tos de partículas quanto de ondas. Como ela pode ser as duas coisas até mesmo os melhores físicos não estão certos. Ela parece ser as

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duas coisas, mas não há nenhuma forma conhecida de que ela possa ser ambas as coisas. Assim sendo, a ciência continua a trabalhar na resolução do problema. Simplesmente sentar e dizer: “ Bem, isso não é maravilhoso; a luz é um mistério, portanto, vamos deixar as coisas como estão e vamos prosseguir” não satisfaria a ninguém com uma mente sensata. Mentes investigadoras querem saber como um enigma pode ser resolvido.

Acredito que o calvinismo tenha muitíssimos enigmas e enigmas profundos que não possuem soluções aparentes. Eles chegam, às vezes, até mesmo a parecer contradições, embora não sejam contradições ló­gicas, formais. O enigma mais óbvio e mencionado com frequência, até mesmo por calvinistas, é a combinação de soberania absoluta divina e a responsabilidade humana. Como já visto, até mesmo John Piper, um erudito detentor de um doutorado em estudos do Novõ Testamento de uma das maiores universidades europeias, admite que ele não compre­ende essa questão. Ele simplesmente aceita o enigma por pensar que a Escritura o exige.

A maioria dos calvinistas admite que isso seja um problema, um enigma, pois como as pessoas podem ser ordenadas a pecar e o pecado delas é tornado certo por Deus de tal maneira que elas não possam fazer o contrário (ex. Adão) e, ainda assim, as pessoas sejam responsáveis pelo pecado no sentido de culpa? Sob nenhuma circunstância em situações humanas uma pessoa seria tida por responsável e seria punida por algo que ela não poderia evitar fazer. Entretanto, isso é o que o calvinismo diz acerca de Deus e dos pecadores. Isto é, de fato, um enigma. Alguns o chamam de “antinomia” , que é simplesmente mais uma palavra para enigma. Não há nada estritamente ilógico no sentido formal acerca da combinação de determinismo e responsabilidade, mas ele vai contra o caráter de toda experiência e pensamento humano.

Para muitos de nós este enigma está por demais repleto com ten­são para que seja aceito. Ele precisa ser resolvido ao ser modificado e,

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felizmente, a Escritura permite isso Como? A preordenação de Deus das decisões e ações das pessoas não é nada mais que sua decisão de permiti-las. E ele as permite pela autolimitação, não “permissão dese­josa, específica” que as tornam certas. Os que pecam são responsáveis e devem prestar contas porque eles poderiam ter agido de maneira diferente com o livre-arbítrio que Deus lhes deu.

Outro enigma do calvinismo que está cheio de tensão: se o determi­nismo divino for verdadeiro, nada é, de fato, mau. Pense a respeito. Se o Deus todo poderoso e bom desejou, de maneira específica, e tornou certo cada evento da história, como algo pode ser realmente mau? Esse não deve ser o melhor de todos os mundos possíveis? Por que Deus preordenaria e tornaria certo qualquer coisa que não fosse o melhor de todos os mundos possíveis? E como qualquer coisa, no melhor dos mundos possíveis, pode ser, de fato, ontologicamente (em oposição à simplesmente nossa percepção) mau? Se eu fosse calvinista (no sentido determinista divino e forte) eu teria dificuldade em ficar bravo ou afetado em relação à qualquer coisa, pois eu tentaria ver tudo como a vontade de Deus - planejada e intencionada por Deus por uma boa razão, ainda que esta razão seja simplesmente “a maior glória de Deus”. Até mesmo o próprio inferno deve ser bom, pois ele manifesta a justiça de Deus e, consequentemente, glorifica a Deus. Então por que pensar que o inferno é um lugar ruim? De mesma sorte, o abuso infantil, assassinato, estupro, genocídio - todos desejados e tornados certos por Deus. Então por que pensar que tais coisas são ruins?

1. Em The Pleasures of God John Piper critica o teólogo Clark Pinnock por adotar o teísmo aberto em razão da “lógica exigida e pelo fato de a Bíblia o permitir” Mas considero a crítica como inválida. Todo cristão, até mesmo John Piper, acredita em certas coisas pelo fato de a razão exigi-las e a Bíblia as permitir. Talvez ele não esteja cônscio disto, mas me parece claro que ele acredita na expiação limitada da mesma forma que Pinnock acredita no teísmo aberto. Afinal de contas, em nenhum lugar a Bíblia explicitamente diz ou exige a crença de que Jesus tenha morrido apenas pelos eleitos; a expiação limitada é uma inferência feita a partir de algumas passagens bíblicas [do evangelho] de João. Por que as pessoas, tais como o Piper, gostam da expiação limitada? Penso que seja em razão da lógica que acróstico TULIP exige.

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Aqui é onde os calvinistas respondem ao apelar para as duas vontades de Deus - a decretiva e a preceptiva. Deus decreta tudo o que vem a acontecer e, portanto, ela é, em certo sentido, para uma maior glória de Deus. Mas ele também ordena que não façamos certas coisas e, portan­to, fazê-las, é mau. O resultado, claro, é que quando uma pessoa mata outra, a pessoa está fazendo tanto algo mau quanto algo bom. Qual é a realidade mais elevada? Bem, obviamente, o beneplácito de Deus é a lente mais ampla pela qual o acontecimento deve ser visto. Portanto, o acontecimento não é totalmente mau, é? Então alguns calvinistas responderão dizendo que o mal em um ato como assassinato jaz na disposição, intenção e motivo do assassino e não no próprio ato em si. Deus preordena e torna o ato certo (o assassino levantando a faca e a cravando no peito na vítima). Mas o motivo de Deus é bom ao passo que o motivo do assassino é mau. Como que essa explicação nos ajuda? Afinal de contas, de onde veio a intenção e disposição do assassino?

Simplesmente dizer “nós não sabemos” só irá suscitar uma pergunta ainda mais complicada: Como pode ser isso quando o calvinista já dis­se que Deus preordena e torna certo tudo, sem exceção, incluindo as intenções e os pensamentos das criaturas? Como que isso não inclui o motivo mau do coração do assassino? E mais, como Deus pode tornar o assassinato certo sem garantir que o assassino tenha um motivo mau? Então a maioria dos calvinistas dirá que o motivo ou intenção má surgiu em razão de Deus retirar ou reter sua graça inibidora. Como que isso ajuda? Deus ainda é o autor do motivo mau ao, de maneira intencional, proposital e ativa, retirar ou reter aquilo que ele sabia que teria impedido o assassinato. E ele supostamente é o autor do assassinato com um mo­tivo e um propósito bom - seja lá o que isso realmente signifique. Isso também sugere um erro na criação, de maneira que ela não foi criada inerentemente boa. Parece que a explicação calvinista está dando voltas, andando em círculos, sem jamais conseguir explicar como alguma coisa é verdadeiramente má. Penso que a maioria dos calvinistas ainda não começou a aceitar e a lidar com este enigma.

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Outro enigma intimamente relacionado é que se o calvinismo for verdadeiro, nada, de jeito nenhum, pode ferir ou diminuir a glória de Deus. Um amigo calvinista escreveu um livro acerca de uma suposta heresia que diminui a glória de Deus 2. Mas como isso pode acontecer? Não pode. Cada heresia, como todas as demais coisas, é preordenada por Deus para a sua glória. Assim, em termos lógicos, ela contribui para uma maior glória de Deus. Mesmo que a heresia diga que Deus não é glorioso, tal afirmação também glorifica a Deus - assim como todas as demais coisas. Logicamente, parece que um calvinista consistente jamais pode dizer que algo prejudica ou diminui a glória de Deus e isso no me­lhor sentido possível, pois caso contrário, Deus não teria preordenado tal coisa para sua glória.

Neste exato momento alguns leitores podem estar dizendo: “Espera um pouco. Eu não ligo para os enigmas. E daí? Não é espiritual aceitar todas as verdades bíblicas ainda que elas sejam confusas e até mesmo aparentemente contraditórias?”

Primeiro, ninguém está te dizendo para não aceitar as verdades bíblicas. A questão é se a Palavra de Deus na verdade exige crença em enigmas ou se os enigmas são sempre um sinal de algo errado em nos­sa interpretação da Palavra de Deus. Presume-se que Deus seja o autor da lógica e da razão (tais, no seu melhor, como funções da imagem de Deus). Todas as interpretações bíblicas sérias procuram resolver as in­consistências presumindo que Deus apela tanto a nossas mentes quanto a nossos corações.

Segundo, até mesmo a maioria dos teólogos calvinistas quer evitar ou resolver os enigmas enquanto que rara e relutantemente admitindo que alguns parecem ser inevitáveis.

Terceiro, mesmo os calvinistas tentam diminuir outras teologias ao apontar para os enigmas que elas possuem. Certamente seria utilizar dois

2. Bruce Ware, Cods Lesser Glory: The Diminished God of Open Theism (Wheaton, IL: Crossway, 2000).

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pesos e duas medidas ao adotar enigmas de maneira confortável enquan­to que, ao mesmo tempo, utilizar enigmas contra o arminianismo. Por exemplo, muitos calvinistas usam a crença dos arminianos de que Deus conhece o futuro de maneira exaustiva e infalível como um enigma ao combinar a crença em livre-arbítrio e a habilidade de fazer o contrário do que alguém faz. Como Deus pode saber o futuro sem preordená-lo. Uma vez que os calvinistas utilizam tal tática quando criticam outras teologias, eles não podem adotar enigmas em suas teologias sem buscar resolvê-los.

Um enigma que eu já enfatizei anteriormente é a crença calvinista de que Deus escolhe salvar algumas pessoas e “ignorar” outras, e que esta seleção não tem nenhuma relação com qualquer coisa que ele veja nas pessoas ou que seja acerca destas pessoas. Todavia, esta seleção não é arbitrária. Eu já argumentei anteriormente que não existe um meio termo entre arbitra­riedade e algo acerca das pessoas que faz com que Deus as selecione (tal como uma resposta livre para o convite de Deus para ser salvo). Apelar para o mistério é incorreto; isto não é um mistério, mas um enigma.

Mas o maior enigma de todos tem a ver com o caráter de Deus. Prati­camente todos os calvinistas confessam que Deus é o padrão de bondade moral, a fonte de todos os valores, a fonte perfeitamente terna do amor. Então eles também confessam que Deus ordena, planeja, controla e torna certo os atos malignos mais ofensivos, tais como sequestro, estupro e o assassinato de uma criancinha e o massacre genocida de centenas de milhares em Ruanda. Eles confessam que Deus “certifica-se” de que o homem peque, como na queda de Adão e Eva. E confessam que toda a salvação é um ato absolutamente de Deus e que não depende das decisões do livre-arbítrio das pessoas (monergismo) e que Deus salva apenas alguns, quando ele poderia salvar todos - garantindo que grande parte da humanidade venha a passar a eternidade no inferno quando Ele poderia salvar as pessoas do inferno.

Todas as teologias não possuem enigmas na medida em que tentam ser abrangentes e sistemáticas? Provavelmente sim. Uma forma de

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analisar a escolha entre as teologias concorrentes (quando a Escritura não é absolutamente clara)3 é decidir à base de quais enigmas alguém consegue viver. Para mim, e para a maioria dos não calvinistas, nada é mais importante do que preservar, proteger e promover o bom nome de Deus - a reputação de Deus que tem por base o seu caráter bom. Na medida em que o calvinismo minimiza isso, eu não posso viver com seus enigmas porque eles, no final das contas, causam danos à reputação de Deus - tornando difícil fazer uma distinção entre Deus e o diabo.

Alguns leitores podem questionar a sinceridade de meu apelo ou o sucesso de meu esforço em escrever acerca do calvinismo com um espírito conciliador. Eu, todavia, peço que você tenha em mente uma nítida diferença entre pessoas e crenças. De forma alguma eu desejo denegrir os calvinistas; o fato de eu defender que a crença calvinista, em última estância, minimiza a reputação de Deus não causa nenhum reflexo na integridade, sinceridade, espiritualidade ou sucesso como ministros e evangelistas. Eu não possuo hostilidade contra nenhum dos meus irmãos e irmãs calvinistas em virtude de suas crenças equivocadas. Eu enfrento dificuldades com algumas de suas interpretações errôneas acerca de minha própria teologia, mas tento não ficar ressentido com eles, apesar disso.

Claro que eu gostaria de persuadir os cristãos para que evitem o cal­vinismo, não porque penso que ele irá matar a fé ou a espiritualidade dos cristãos, mas porque quero que as pessoas pensem melhor acerca de Deus do que o calvinismo permite. Acredito que Deus se importa com

3. Claro, algumas pessoas de ambos os lados da divisão monergismo/sinergismo argumentarão que a Escritura é absolutamente clara acerca destes assuntos em disputa. Mas como pode ser tal coisa, se, de maneira igual, cristãos sinceros, tementes a Deus, que amam a Jesus e acreditam na Bíblia têm discordado há centenas de anos e continuam discordando, apesar de análises igualmente profundas de textos bíblicos? Um orador calvinista declarou publicamente que os não calvinistas não “honram” a Bíblia. Declarações semelhantes podem ser ouvidas de não calvinistas em relação aos calvinistas. Eu não penso que os calvinistas, até mesmo calvinistas rígidos do tipo de “cinco pontos” , desonram a Bíblia. O que penso é que eles estão cegos para as "consequências lógicas e necessárias” resultantes de seu sistema teológico.

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o que pensamos acerca dele, e, pelo fato de eu amar a Deus, eu quero que todas as pessoas pensem corretamente acerca dele.

Como busquei deixar claro em todo esse livro, acredito que o calvinis­mo rígido, inadvertida, mas inescapavelmente, impugna o bom caráter de Deus. Que eu quero persuadir as pessoas a evitarem o calvinismo não significa que eu quero que eles evitem os calvinistas. Para ser honesto, penso que os evangélicos calvinistas são alguns dos melhores cristãos do mundo. Eu só acho que eles são terrivelmente inconsistentes e ensinam e acreditam em doutrinas que contradizem à Bíblia, a maioria da tradi­ção cristã e a razão. E penso que algumas destas doutrinas desonram a Deus ainda que esta não seja a intenção dos calvinistas. Também penso que algumas destas doutrinas levarão ao menos alguns jovens cristãos a impasses teológicos e espirituais.

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apêndice 1

Tentativas Calvinistas de resgatar a reputação de Deus

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EM TODAS AS ÉPOCAS, mas principalmente na época em que vive­mos, certos calvinistas reconheceram os problemas que sua visão da soberania de Deus apresenta para a reputação de Deus e ofereceram soluções que supostamente abrandam a situação de Deus ser o autor do pecado e do mal. Em outras palavras, estas são tentativas de resgatar a bondade de Deus à luz da preordenação divina absoluta e o ato de Deus tornar certo todas as coisas, até seus mínimos detalhes, mas, principal­mente, as decisões e ações más das pessoas. Se Deus é absolutamente soberano sobre tudo, sem autolimitação que visa o livre-arbítrio das criaturas (habilidade de fazer o contrário, incluindo a habilidade de frus­trar a vontade de Deus), como é que Deus não ê o autor do pecado e do mal? E como é que as criaturas são responsáveis pelo mal e não Deus?

Vamos começar com um precedente legal que será utilizado por completo para examinar se estas estratégias funcionam para abrandar o problema: a queda de Adão no jardim do Éden. Todos os calvinistas concordam que Deus preordenou e tornou certa a queda com suas con­sequências. Já vimos algumas das formas em que os calvinistas tentam tirar a culpa de Deus, assim por dizer, de ser culpado pelo pecado de Adão. Como é que Deus não é culpado e Adão foi?

A primeira estratégia comumente utilizada é a de apelar para causas se­

cundárias. Este é um conceito filosófico oriundo da filosofia de Aristóteles;

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o teólogo medieval Tomás de Aquino (1225 - 1274) o utilizou para explicar como Deus garante que tudo aconteça, mas que não é culpado do pecado e do mal. Calvino fez uso deste conceito para distanciar o poder soberano de Deus operando todas as coisas de acordo com seu propósito das deci­sões e ações más das criaturas. O calvinista contemporâneo Paul Hem diz:

Há uma longa e honorável tradição segundo a qual existem causas primárias e secundárias. A causa (ou causas) primária é o sustento divino: as causa secundárias são os poderes causais das coisas criadas: o poder da semente germinar, de uma pessoa sentir fome ou descer a rua, e assim por diante '.

Poucos cristãos (ou teístas em geral) discordariam deste uso dos con­ceitos de causas primárias e secundárias. Deus é, naturalmente, o criador e sustentador de tudo fora de si mesmo e, portanto, precisa sustentar e até mesmo cooperar (mesmo que se apenas pela mera permissão) com qualquer coisa que aconteça na esfera das criaturas. As criaturas não possuem poder absoluto ou autônomo de si mesmas em contraste com Deus de forma que possam ser e agir totalmente à parte dele.

Todavia, os problemas surgem quando esta distinção entre causas primárias e secundárias é aplicada à providência divina para resolver o problema da bondade de Deus e o mal das criaturas. Por exemplo, o calvinista Loraine Boettner argumenta que Satanás foi a “causa [mais] próxima” (o mesmo que causa secundária) da queda de Adão. Isto, ele diz, remove toda a culpa de Deus ainda que Deus seja a causa final (o mesmo que causa primária) 2. Entretanto anteriormente, ele admite que Satanás era o “instrumento” de Deus 3. Ele também diz que Deus jamais é a “causa eficaz” do pecado4. Este emaranhado de causas surge

1. HELM, Paul. A providência de Deus. São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 76.

2. Boettner, The Reformed Doctrine of Predestination, 251.

3. Ibid., 241.

4. Ibid.

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sorrateiramente nas tentativas calvinistas de defender Deus de ser o autor do pecado, sugerindo que os problemas que eu ressaltei também incomodam os calvinistas.

O teólogo Henry Meeter tenta aclarar a confusão:

Considere a visão calvinista concernente o universo das coisas cria­das! Não apenas ela acredita que o tal universo foi criado por Deus; mas tudo o que nele ocorre, quer seja na natureza ou na vida humana, ele julga ser um desenrolar de um plano divino das eras. Até mesmo o pecado não acontece como acidente. Deus desejosamente [volunta­riamente] permitiu o pecado, deixa com que o pecado atue de acordo com sua própria natureza inerente e o controla para sua glória. Deus opera sobre esta criação de ambas as formas. Ele trabalha através das operações normais do universo. Homens, até mesmo homens peca­minosos, e a natureza agem livremente de acordo com seus próprios impulsos ou leis. Tais impulsos ou leis são, entretanto, apenas as cau­sas secundárias; por trás delas está Deus, como a Primeira Causa de todas as coisas. Ele, sem forçar quaisquer causas secundárias de agir de maneira contrária a sua própria natureza e escolha, realiza tudo o que acontece no universo... O calvinista não fica contente... até que trace todos os acontecimentos à Deus e os dedique a Ele 5.

Então, parafraseando, Deus como a causa primária de tudo que acon­tece faz e torna certo o que ele quer que aconteça de acordo com seu plano preordenado. Até mesmo a queda de Adão é planejada e tornada certa por Deus, mas Deus não é responsável pelo pecado de Adão por­que as causas secundárias ou próximas, tais como Satanás e a escolha de Adão, é que, na verdade, o realizam. O que é isto senão um apelo a uma causação direta e indireta? Em último estágio, todos os eventos, incluindo a queda de Adão, devem ser traçados como tendo origem em Deus, que os torna certos.

Como que apelar para causas secundárias isenta Deus do mal ou res­gata sua reputação? Helm reconhece os problemas e vai além ao apelar para intenções diferentes em tais eventos como a queda de Adão: “Deus

5. Meeter, The Basic ídeas of Calvinism, 44.

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ordena o mal, mas ele não planeja o mal como mal, como o agente hu­mano o faz. No caso de Deus há outra descrição da ação moralmente má que ele quer que a ação má preencha. Deus tem em vista outros fins e propósitos” 6.

Então, Deus planejou, preordenou, tornou certo e controlou a queda, mas Deus não é culpado e Adão é em razão das intenções diferentes de Adão e de Deus como causas primárias e secundárias. Mas Deus não age como o instigador último da intenção má de Adão? De onde mais a intenção poderia vir? Se traçamos toda a origem à Deus, como Meeter insiste que devemos fazer, Deus ainda não é o iniciador e o instigador e a causa última da vontade má de Adão? O ato de simplesmente dizer que Deus planejou a queda para o bem é o suficiente para isentar Deus da responsabilidade neste caso? Penso que não.

Há uma analogia para esta explicação calvinista do papel inocente de Deus no pecado e no mal na experiência humana? Penso que não. Lembre-se da analogia que ofereci anteriormente do pai que manipulava seu filho para roubar dinheiro. Não consigo pensar em um único exemplo onde uma pessoa que torna certo que outra pessoa faça algo mau seja considerada inocente - mesmo que a intenção seja para o bem. Em minha analogia este pai manipulador planejou utilizar o dinheiro que seu filho roubou para ajudar o pobre, o que não diminui sua responsabilidade legal no assalto. Como Evans (citou anteriormente): “A responsabilidade última... reside onde a causa última está” 7.

Parece que o apelo para a distinção entre causas primárias e secun­dárias fracassa em ajudar o calvinista a resolver o problema de Deus e o mal. Deus ainda é a causa última do mal em mais do que no sentido simples de ser o criador e sustentador do universo e o ser poderoso que deve cooperar com a ação do praticante do mal.

6. HELM, Paul. A providência de Deus. São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 169

7. Evans, “Reflections on Determinism and Freedom,” 263.

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Outra estratégia empregada por alguns calvinistas para resgatar a re­putação de Deus apesar do determinismo divino do pecado e do mal, é apelar para o que é chamado de “molinismo” ou “conhecimento médio”. O teólogo calvinista Bruce Ware utiliza esse método para explicar como Deus preordena e torna certo até mesmo as ações más das pessoas, tal como Adão em sua rebelião, e, entretanto, não é culpado e não carrega nenhuma culpa8. O molinismo (que recebeu o nome do teólogo jesuíta do século XVI Luis de Molina [1535 - 1600]) é a crença de que Deus possui “conhecimento médio” - conhecimento de que qualquer criatura poderia fazer livremente em qualquer conjunto de circunstâncias. A cria­tura pode possuir liberdade libertária - liberdade não compatível com o determinismo e capaz de fazer o contrário do que ela faz - mas Deus sabe o que a criatura faria com aquela habilidade em qualquer situação concebível (a saber, logicamente possível). Um calvinista molinista, tal como Ware, deve alterar a visão molinista tradicional de conhecimento médio, pois ele não acredita em liberdade libertária - o poder da escolha contrária. Então Ware tenta construir uma versão de molinismo que não utilize a liberdade libertária, mas que utilize a liberdade compatibilista com o conhecimento médio.

Ware emprega esta ideia de conhecimento médio para explicar a soberania imaculada de Deus sobre o mal. De acordo com Ware, Deus tem a habilidade

de prever, pelo conhecimento médio, um conjunto de situações no qual suas criaturas morais (angélicas e humanas) escolheriam e agiriam conforme escolheriam e agiriam. Mais especificamente, Deus

8. A visão discutida aqui também é a sugerida pelo teólogo evangélico Millard Erickson em Christiart Theology (Grand Rapids, Mich.: Baker, 1983), 1:356 - 62. Erickson a chama de “modelo moderadamente calvinista". É difícil enxergar o que há de “moderado” nesta visão ao passo que Erickson termina onde todos os calvinistas terminam - com o determinismo divino. Mas, mais tarde, assim como Ware, Erickson usa o conhecimento médio para tentar reconciliar o determinismo divino com a liberdade humana (compatibilista) e resgatar a reputação de Deus ao isentar Deus de causar o pecado e o mal.

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[é] capaz de saber exatamente o que um agente moral faria em uma situação, com seus fatores complexos particulares, em oposição ao que o agente faria em uma situação levemente diferente, com um conjunto de fatores levemente diferentes 9.

A fim de garantir que o pecado que Deus quer que aconteça não aconteça sem que ele seja a sua causa direta ou responsável por ele (no sentido de culpa), Deus simplesmente coloca a criatura (ex. Adão) em uma situação onde ele sabe que a criatura, de maneira voluntária, desenvolverá um motivo controlador e que agirá pecaminosamente a partir deste motivo. Ware chama tal coisa de uma “agência divina pas­siva indireta", que controla as escolhas pecaminosas humanas sem as causar. Ware fornece mais explicações:

Quando Deus prevê vários conjuntos de fatores dentro do que um agente desenvolverá uma inclinação mais forte para fazer uma coisa ou outra, a inclinação mais forte que emerge destes fatores não é causada pelos fatores e nem é causada por Deus. Antes, à luz da natureza da pessoa, quando certos fatores estão presentes, sua natureza responderá a estes fatores e buscará fazer o que ele, por natureza, mais quer fazer. Em suma, a causa da inclinação mais forte e a escolha resultante é a natureza da pessoa em resposta aos fatores que lhe foram apresentados 10.

Ware pensa que tal abordagem inocenta Deus do mal enquanto que, ao mesmo tempo, deixa Deus com soberania absoluta até mesmo sobre o mal. Ele sugere que, nesta descrição, nós devemos pensar em Deus como “ocasionando" as ações e decisões pecaminosas de uma pessoa ao mesmo tempo em que Ele não as “causa".

Em razão de Deus conhecer, de maneira perfeita, a natureza de cada pessoa, ele sabe como estas naturezas responderão a conjuntos específi-

9. Bruce Ware, God’s Greater Glory: The Exalted God of Scripture and the Christian Faith (Wheaton, IL.: Crossway, 2004), 120.

10. Ibid., 122.

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cos de fatores que lhe são apresentados. Assim sendo, sem causar uma pessoa a fazer o mal, ele, todavia, controla o mal que as pessoas fazem. Ele controla se o mal é feito, qual mal é feito e em qual (is) e todo(s) o(s) caso(s) ele poderia impedir o mal de ser feito. Desta forma, Deus mantém o controle meticuloso sobre o mal enquanto que suas criaturas morais, unicamente, são os agentes que cometem o mal, e apenas elas carregam a responsabilidade moral pelo mal que livremente cometem. "

Várias perguntas surgem a partir da explicação de Ware (e de outros calvinistas) do envolvimento de Deus no pecado e no mal. Primeiro, dada a forte visão da soberania de Deus, como é possível para uma criatura ter uma natureza que deseja e então automaticamente desenvolve uma inclinação maligna dominante independente da causalidade final divina? De onde tal natureza se origina? Qual é a fonte do mal nela que a causa a desenvolver uma inclinação ou motivo mal controlador e então a agir de acordo com esta inclinação ou motivo? Esta explicação da natureza humana não apresenta um elemento de autonomia das criaturas que não é permitido no calvinismo tradicional?

Para ser específico, qual erro na natureza de Adão tornou inevitável que ele pecasse que, caso ele fosse colocado em certas circunstâncias (a saber, o jardim do Éden com a serpente etc.), ele poderia pecar? E de onde este falha veio senão de Deus? A explicação de Ware parece apresentar um defeito na existência humana dada por Deus ou um nível de autonomia de Deus que não é consistente com a própria visão calvinista rígida de Ware acerca da soberania.

Segundo, e talvez mais óbvio, como esta descrição da soberania de Deus sobre o mal, de fato, isenta Deus, por assim dizer? Afinal de contas, Deus ainda é o ser que manipula as decisões e ações que acontecem. Por exemplo, de acordo com Ware, Deus conhecia Adão tão bem que ele sabia que ele desenvolveria um motivo mal controlador e, consequente­mente, pecaria, caso fosse colocado no jardim com a serpente e a árvore.

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Em qual experiência humana tal pessoa manipuladora e controladora não seria, ao menos, igualmente culpada juntamente com a pessoa que pecou (ou cometeu o crime)? Ware oferece algumas ilustrações de tal experiência, mas elas falham em pontos essenciais. Por exemplo, ele pede a seus leitores que imaginem uma operação policial à paisana em que o policial sabe, com certeza, que certo criminoso irá infringir a lei, caso seja atraído para certa situação.

Tal cenário não é difícil de ser imaginado; qualquer telespectador do programa Dateline já viu várias vezes algo do gênero na série To Catch

a Predator (Prendendo Aliciadores de Menores). No programa, oficiais (ou pessoas orientadas por eles) utilizam salas de bate-papo para atrair predadores sexuais para uma casa para ter relações sexuais com um menor de idade. Quando o predador aparece, a polícia está lá para cumprimentá-lo e prendê-lo. A polícia, claro, é inocente, ainda que ela tenha manipulado o predador a tentar cometer um crime. Ware oferece um exemplo assim (sem ser tão específico). Mas isso funciona? Isto é realmente uma analogia do uso divino do conhecimento médio para controlar o mau em sua visão da soberania de Deus?

Digo que esta explicação não funciona. Primeiro, a polícia que seduz os predadores não tem relação nenhuma com o fato de eles terem se tornado pervertidos sexuais. A polícia não é criadora de pessoas e não é regente soberana do universo dos predadores. Aqui há autonomia genuína; os predadores, assim como suas naturezas, não dependem da polícia de forma alguma para que existam. Ware parece se esquecer, por um instante, que, de acordo com o calvinismo, sistema este que ele plenamente adota, Deus é o criador de tudo, incluindo cada natureza. O calvinismo rejeita radicalmente a autonomia das criaturas. Ele pare­ce pensar que é compatível com o calvinismo dizer que certa natureza inclinada para o mal pode existir sem que Deus seja sua fonte. (Apenas o livre-arbítrio libertário pode realmente explicar como uma natureza boa torna-se má sem que Deus seja responsável por essa mudança. Mas o calvinismo de Ware rejeita o livre-arbítrio libertário)

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Segundo, e intimamente ligado à primeira objeção, para que a ana­logia funcione, você teria que imaginar a polícia não apenas atraindo uma pessoa desconhecida, conhecida pela Internet, para uma casa. Você precisaria imaginar a polícia também estabelecendo que a pessoa entre na Internet e que busque um menor de idade para que tenha relações sexuais. E precisaríamos continuar a retroceder [na analogia] para fazer com que a analogia entre Deus e a polícia funcione. A po­lícia teria que, de alguma forma, manipular o predador em potencial a ter pensamentos, sentimentos e desejos anormais. Afinal de contas, Ware não acredita que Deus simplesmente “encontra” uma pessoa, tal como Adão, e então faz uso de sua natureza deturpada, que já existe de maneira independente, e que fará surgir inevitavelmente uma incli­nação rebelde. Deus é o Criador de Adão; tudo acerca de Adão é criação de Deus. Dizer o contrário é introduzir um elemento de autonomia das criaturas que é excluído pelo forte entendimento calvinista concernente a soberania de Deus.

Terceiro, em uma operação policial à paisana, tal como To Catch a Preda­

tor, o policial, na relidade, jamais permite que o predador prejudique alguém.

Os policiais apenas permitem que os predadores cheguem até determinado ponto da situação. Se o policial ou até mesmo os agentes do programa te­levisivo que estão sob o olhar vigilante da polícia alguma vez permitissem que um menor fosse prejudicado, eles mesmos seriam responsáveis pelas acusações criminais das quais os predadores serão indiciados.

A principal objeção à utilização de Ware do conhecimento médio como ferramenta para explicar a soberania de Deus sobre o mal é que ele faz de Deus o manipulador mestre que torna o pecado e o mal cer­tos. Em sua visão, Adão foi colocado em uma situação precária onde Deus sabia que Adão indubitavelmente cairia. Não importa o fato de ele ter caído voluntariamente ou não; ele não teria caído caso Deus não o tivesse colocado naquela situação específica com o propósito de garantir

que ele pecasse.

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Não importa o quanto ele insistentemente assegure o contrário, Ware ainda faz de Deus o autor do pecado e do mal. Ainda que ele pudesse nos explicar como, de alguma forma e em um sentido puramente legal, Deus não era responsável pelo pecado real e que Adão fosse o único responsável pelo pecado (que eu duvido que seja possível), ainda have­ria o problema da intenção de Deus em tornar o pecado certo. Por que um Deus bom, um Deus de amor perfeito, iria querer tornar o pecado certo mesmo de uma maneira indireta (mas manipulativa)? A explicação que a intenção de Deus em tornar o pecado certo é boa simplesmente não é convincente pelas razões já explicadas, principalmente quando o sofrimento eterno no inferno espera aqueles a quem Deus manipulou para que pecassem.

Em suma, muitas das defesas padrões do calvinismo, quando colo­cadas seriamente à prova, revelam uma confiança chocante em noções da soberania de Deus que O tornam o autor final do pecado e do mal. Apesar de suas intenções, eles não são bem sucedidos em isentar a Deus, por assim dizer, do mal. Ou seja, eles não resgatam a reputação de Deus dos efeitos corrosivos do determinismo divino.

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apêndice 2

Respostas às alegaçõesCalvinistas

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1. Q ualquer outra visão da soberan ia de Deus que não se ja a visão

calvinista dim inui a glória de Deus; ap en as “as doutrinas da g raça”

honram e su sten tam plenam ente a glória de Deus.

Tudo depende do significado de “Glória de Deus”. Se ele significa po­der, então talvez a afirmação esteja correta. Mas o poder não é glorioso exceto quando guiado pela bondade e amor. Hitler era poderoso, mas obviamente, não glorioso. Jesus Cristo revelou Deus como “nosso Pai” e, portanto, como bondoso e amoroso. Na verdade, o calvinismo rígido (TULIP), erroneamente rotulado como “as doutrinas da graça” pelos calvinistas, diminui a glória de Deus ao representá-lo como perverso e arbitrário. Além do mais, se o calvinismo estiver correto, nada pode “diminuir a glória de Deus”, pois Deus preordenou tudo para a sua glória.

2. As teologias não calvinistas da salvação, tal com o o arm inianism o,

tornam a salvação dependente das boas obras, pois a decisão do p e ­

cador de aceitar a Cristo torna-se o fator decisivo em su a salvação.

Parece mais o caso que o calvinismo torna a salvação dependente das boas obras ou de algo bom acerca das pessoas eleitas para a salvação, senão, como é que Deus as escolhe dentre a massa de pessoas destinadas

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ao inferno? Ou é algo que Deus vê nessas pessoas senão a escolha de Deus destas pessoas é arbitrária e caprichosa. Além do mais, a teologia arminiana não torna a salvação dependente das boas obras; toda a “obra” de salvação é de Deus. O pecador é capacitado a se arrepender e a crer pela graça preveniente de Deus e a mera decisão de aceitar a salvação de Deus não é uma boa obra; ela é simplesmente a aceitação de um dom da graça. Em caso nenhum a aceitação de um presente é considerada o “fator decisivo” para que o presente seja usufruído.

3. A penas o calvinism o pode explicar com o Deus garantiu que Cris­

to m orreria su a m orte expiatória na cruz. A m en os que Deus tenha

preordenado que certos hom ens pecadores o crucificariam , Deus não

poderia ter assegurado a crucificação.

Supor isso é totalmente desnecessário. Certamente que Deus, em sua sabedoria e poder, pode garantir que certo evento aconteça sem precisar manipular certas pessoas para que pequem. Sim, Deus preordenou a cruz de Cristo, mas ele não fez com que certos homens (ou “garantiu” que eles) pecassem. Uma alternativa é a de que, no momento certo, Jesus Cristo entrou em Jerusalém em sua “entrada triunfal” , sabendo que isso provocaria sua crucificação. Não havia necessidade de manipular certos indivíduos para que pecassem.

4. A m enos que o calvinism o se ja verdadeiro, não podem os confiar

que a Bíblia se ja inerrante. A Bíblia só pode ser a Palavra de Deus

caso Deus tenha an ulado o livre-arbítrio do autor.

Nem o arminianismo ou quaisquer teologias não calvinistas dizem que Deus jamais anula o livre-arbítrio de uma pessoa. O que elas dizem é que Deus jamais preordena ou torna certo o pecado ou a escolha de aceitar a graça de Deus. Deus faz pressão nas pessoas para que façam o bem, incluindo receber a Cristo, mas jamais as influencia para que façam o mal ou anula o livre-arbítrio na questão da salvação.

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5. Só o calvinism o pode explicar a soberan ia de Deus sobre a natureza

e história; a m enos que Deus preordene e controle cada evento, até

os m ínim os detalhes da ex istên cia e até cada pen sam en to e intenção

da m ente e coração, Deus não pode ser soberano.

Este não é o significado de “soberania” em nenhum contexto huma­no. Uma pessoa soberana está no comando, mas não no controle do que acontece em seu domínio. Deus pode guiar o curso da natureza e história para seu objetivo planejado e garantir que a natureza e história cheguem ao fim desejado sem controlar tudo. Deus é como o mestre de xadrez que sabe como responder a cada jogada que seu oponente faz. Não há perigo de que a vontade final divina não seja feita. Na ver­dade, o calvinismo não consegue explicar a Oração do Pai Nosso que nos ensina a orar “seja feita sua vontade, assim na terra como no céu”, que sugere que a vontade de Deus não é sempre realizada na terra. De acordo com o calvinismo, ela é!

6. Só o calvinism o pode explicar p assagen s tais com o R om anos 9, que

diz que Deus tem m isericórd ia de quem ele quer ter m isericórdia.

Vista de maneira descontextualizada de todo o livro de Romanos, o capítulo 9 pode parecer apresentar um problema para a crença no livre-arbítrio. Todavia, a interpretação calvinista, que ensina a escolha incondicional e até arbitrária de pessoas, por parte de Deus, de sorte que algumas são salvas e outras condenadas, jamais foi ouvida antes de Agostinho, e isso no século V. Toda a patrística grega interpretava Romanos 9 de maneira diferente. Uma interpretação alternativa perfei­tamente sensata diz que a passagem de Romano 9 não está se referindo à indivíduos ou à salvação pessoal, mas à grupos e ao serviço. Deus é soberano em escolher Israel e então a igreja gentia para que cumpram seus respectivos papeis em seu plano de redenção.

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7. A teologia reform ada, calvinism o, é a única base para a teologia

cristã bíblica ortodoxa. Todas as dem ais abordagens, tal com o o arm i­

n ianism o, u m a teologia centrada no hom em , levam inevitavelm ente

à teologia liberal.

O arminianismo não é uma “teologia centrada no homem”, mas uma teologia centrada em Deus. Ele é movido total e exclusivamente por uma visão da bondade e amor incondicionais de Deus. A principal razão pela qual os arminianos e outros não calvinistas acreditam no livre-arbítrio é para preservar e proteger a bondade de Deus de maneira a não fazer deleo autor do pecado e do mal. O calvinismo dificulta traçar uma diferença entre Deus e o diabo, exceto no sentido de que o diabo quer que todos vão para o inferno e Deus quer que alguns vão para o inferno. A teologia arminiana não leva à teologia liberal. Na verdade, o calvinismo leva. Frie­drich Schleiermacher, o pai da teologia liberal moderna, era calvinista! Ele jamais sequer considerou o arminianismo; ele foi do calvinismo rígi­do e conservador direto para o universalismo enquanto que manteve a providência meticulosa divina até mesmo sobre o pecado. A maioria dos teólogos liberais do século XIX eram ex-calvinistas que vieram a abominar sua visão de Deus e desenvolveram a teologia liberal sem qualquer ajuda do arminianismo clássico. O arminianismo clássico foi preservado por muitos fundamentalistas, cristãos pentecostais, de movimentos de santida­de e batistas livres, nenhum dos quais podendo ser considerados liberais.

8. Deus tem o direito de fazer o que quiser com su as criaturas e, princi­

palm ente, com os pecadores que m erecem a condenação. Sua bondade

é m ostrada em seu resgate m isericordioso de alguns pecadores; ele não

deve nada a ninguém . As p essoas que Ele ignora m erecem o inferno.

Enquanto pode ser verdadeiro que todos mereçam o inferno, embora até mesmo muitos calvinistas hesitem em dizer isso acerca das crianças, Deus é um Deus de amor que genuinamente deseja que todas as pessoas

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sejam salvas, conforme o Novo Testamento claramente testifica em 1 Timóteo 2.4: “que deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade”. Não há como fugir do fato de que “todos os homens” signifique todas as pessoas, sem exceção. A questão não é imparcialidade, mas amor. Um Deus que poderia salvar a todos porque ele sempre salva incondicionalmente, mas escolhe salvar apenas alguns não seria um Deus bom ou amável. Ele certamente não seria o Deus de1 Timóteo 2.4 e de passagens semelhantes.

9. Se Deus conhece de an tem ão o que acon tecerá no m undo que ele

irá criar, incluindo a queda e todas a s su as con sequên cias, isto é o

m esm o que preordenar tudo, incluindo o pecado e o m al.

Deus conhece previamente porque algo vai acontecer; ele não conhe­ce previamente porque ele preordena. Em outras palavras, de acordo com a Escritura, tradição e a razão, o pecado de Adão é o que fez com que Deus o conhecesse. Deus não previu o pecado de Adão e então decidiu criar o mundo no qual Adão pecaria. A diferença jaz na intenção de Deus. O calvinista deve acreditar que Deus teve por intenção que Adão pecasse e tornou o pecado certo, fazendo de Deus o autor do pecado. Arminianos e outros não calvinistas acreditam que Deus jamais teve por intenção que Adão pecasse ainda que soubesse que isso aconteceria. O pecado não foi sua vontade. O calvinismo faz do pecado a vontade de Deus.

10. Teologias não calv in istas m inim izam a segurança e a confiança

da salvação porque elas tornam a salvação dependente das decisões

hum anas. Só o calvinism o proporciona conforto e segurança, pois ele

diz que tudo é de Deus, incluindo os dons de arrependim ento e fé.

Na verdade, o calvinismo enfraquece o conforto e a segurança ao tornar Deus arbitrário e moralmente ambíguo. Um Deus que predestinaria muitas pessoas ao inferno quando poderia salvá-las, uma vez que sua escolha

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sempre é incondicional, não é confiável. E mais, como que as pessoas podem saber, com certeza, que são eleitas? Muitos calvinistas duvidaram de suas eleições. Os calvinistas falam de “sinais de graça” que provam que alguém é eleito, mas e se a pessoa não tiver certeza ou não mostrar sinais de graça suficientes? O calvinismo não proporciona mais conforto e segurança do que o arminianismo ou teologias não calvinistas que ga­rantem que as pessoas são salvas se confiarem unicamente em Cristo.

11. As teologias não calvinistas, tal com o o arm in ian ism o, acreditam

que o livre-arbítrio libertário, crença de que decisões e ações livres

sim plesm en te não vêm de lugar nenhum , se ja im possível. O calvi­

nism o e outras teologias, assim com o m uitos filósofos, sabem que o

“ livre-arbítrio” sim plesm ente significa fazer o que você quer fazer e as

p esso as sem pre são controladas por seu s m otivos m ais fortes, então,

ser capaz de fazer o contrário - livre-arbítrio libertário, é um a ilusão.

Se “livre-arbítrio" só significa fazer o que você quer fazer ainda que não possa fazer o contrário, como é que alguém é responsável por aqui­lo que faz? Se um assassino, por exemplo, não pode fazer outra coisa senão matar, então um juiz ou um júri deve declará-lo inocente - talvez por razão de insanidade. A responsabilidade moral, prestação de con­tas e a culpa dependem da habilidade de fazer o contrário - liberdade libertária. A visão calvinista de “livre-arbítrio” não é, de fato, livre, de maneira nenhuma.

Outrossim, se não existe tal coisa como o livre-arbítrio libertário, então Deus também não o tem, e isso faz com que criação de Deus do mundo seja necessária e não escolhida livremente, neste caso, não pela graça, mas pela necessidade. A visão calvinista de “livre-arbítrio” rouba tanto a habilidade de Deus quanto a das pessoas de fazerem o contrário e, consequentemente, suas ações e decisões não são louváveis e nem culpáveis. O que é, é, e o que será, será. Isso caminha na contramão de nossos instintos e intuições acerca da responsabilidade moral e a liberdade transcendente de Deus de criar ou não criar.