robótica pedagógica livre: uma possibilidade metodológica para o processo de...

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ROBÓTICA PEDAGÓGICA LIVRE: UMA POSSIBILIDADE METODOLÓGICA PARA O PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZAGEM Resumo: Este artigo apresenta a proposta da robótica pedagógica livre na sua práxis coletiva de ensino-aprendizagem, sobre uma perspectiva lúdica e de relacionamento do corpo humano com artefatos robóticos. Como proposta didática a robótica livre tem como essência a troca e produção do conhecimento na utilização da práxis pautada na liberdade. Isso demonstra que o conhecimento produzido pela humanidade deve ser compartilhado por todos e não visto como propriedade particular. É destacado a relevância da robótica livre enquanto metodologia de ensino e sua característica transdisplinar entre os pares (educadores e educandos). Descrevemos também a metodologia utilizada nas oficinas oferecidas e as experiências de construção dos artefatos robóticos e kit's de robótica pedagógica livre. E por fim apresentamos os resultados a partir das oficinas. Palavras-chave: Robótica Pedagógica Livre, Brinquedo, Corpo, Ensino-aprendizagem, Artefato robótico. 1 INTRODUÇÃO As tentativas de uso da robótica na construção de metodologias pedagógicas não são nenhuma novidade nem tampouco nenhum bicho de quarenta cabeças. Esta parte da ciência que se dedica a estudar os robôs, os autômatos, tem muito a contribuir para o processo pedagógico de construção do conhecimento. Numa primeira análise, é perceptível que a proposta de robótica pedagógica está em consonância com os princípios do construtivismo. Educadores e pensadores como Seymour Papert (1985) e Pierre Lévy (1987) buscam desde há muito essa conciliação entre dispositivos mecânicos e eletrônicos e o processo de ensino-aprendizagem. A construção de um ambiente em que educadores e educandos desenvolvem sua criatividade, seu conhecimento, sua inteligência, e seu potencial em lidar com situações adversas do cotidiano, tem sido um dos principais motivadores para as tentativas de integração da robótica nas práxis 1 educacionais. Entendendo essas características e outras que a elas se agrega, é possível dizer 1 “[...] termo 'práxis' para designar a atividade consciente objetiva, sem que, por outro lado, seja concebida com o caráter estritamente utilitário que se refere do significado do 'prático' na linguagem comum. [...] a práxis ocupa o lugar central da filosofia que se concebe a si mesma não só como interpretação do mundo, mas também como elemento do processo de sua transformação.” (Vázquez, 2007, p.28).

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Este artigo apresenta a proposta da robótica pedagógica livre na sua práxis coletiva de ensino-aprendizagem, sobre uma perspectiva lúdica e de relacionamento do corpo humano com artefatos robóticos. Como proposta didática a robótica livre tem como essência a troca e produção do conhecimento na utilização da práxis pautada na liberdade. Isso demonstra que o conhecimento produzido pela humanidade deve ser compartilhado por todos e não visto como propriedade particular. É destacado a relevância da robótica livre enquanto metodologia de ensino e sua característica transdisplinar entre os pares (educadores e educandos). Descrevemos também a metodologia utilizada nas oficinas oferecidas e as experiências de construção dos artefatos robóticos e kit's de robótica pedagógica livre. E por fim apresentamos os resultados a partir das oficinas.

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Page 1: ROBÓTICA PEDAGÓGICA LIVRE: UMA POSSIBILIDADE METODOLÓGICA PARA O PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZAGEM

ROBÓTICA PEDAGÓGICA LIVRE: UMA POSSIBILIDADE METODOLÓGICA PARA O PROCESSO

DE ENSINO-APRENDIZAGEM

Resumo: Este artigo apresenta a proposta da robótica pedagógica livre na sua práxis coletiva de ensino-aprendizagem, sobre uma perspectiva lúdica e de relacionamento do corpo humano com artefatos robóticos. Como proposta didática a robótica livre tem como essência a troca e produção do conhecimento na utilização da práxis pautada na liberdade. Isso demonstra que o conhecimento produzido pela humanidade deve ser compartilhado por todos e não visto como propriedade particular. É destacado a relevância da robótica livre enquanto metodologia de ensino e sua característica transdisplinar entre os pares (educadores e educandos). Descrevemos também a metodologia utilizada nas oficinas oferecidas e as experiências de construção dos artefatos robóticos e kit's de robótica pedagógica livre. E por fim apresentamos os resultados a partir das oficinas. Palavras-chave: Robótica Pedagógica Livre, Brinquedo, Corpo, Ensino-aprendizagem, Artefato robótico.

1 INTRODUÇÃO

As tentativas de uso da robótica na construção de metodologias pedagógicas não

são nenhuma novidade nem tampouco nenhum bicho de quarenta cabeças. Esta parte da

ciência que se dedica a estudar os robôs, os autômatos, tem muito a contribuir para o

processo pedagógico de construção do conhecimento. Numa primeira análise, é

perceptível que a proposta de robótica pedagógica está em consonância com os

princípios do construtivismo. Educadores e pensadores como Seymour Papert (1985) e

Pierre Lévy (1987) buscam desde há muito essa conciliação entre dispositivos

mecânicos e eletrônicos e o processo de ensino-aprendizagem. A construção de um

ambiente em que educadores e educandos desenvolvem sua criatividade, seu

conhecimento, sua inteligência, e seu potencial em lidar com situações adversas do

cotidiano, tem sido um dos principais motivadores para as tentativas de integração da

robótica nas práxis1 educacionais.

Entendendo essas características e outras que a elas se agrega, é possível dizer

1 “[...] termo 'práxis' para designar a atividade consciente objetiva, sem que, por outro lado, seja concebida com o caráter estritamente utilitário que se refere do significado do 'prático' na linguagem comum. [...] a práxis ocupa o lugar central da filosofia que se concebe a si mesma não só como interpretação do mundo, mas também como elemento do processo de sua transformação.” (Vázquez, 2007, p.28).

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que a robótica contempla a transdisciplinaridade, como coloca Basarab Nicolescu:

a transdisciplinaridade, como o prefixo ‘trans’ indica, diz respeito àquilo que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de qualquer disciplina. Seu objetivo é a compreensão do mundo presente, para o qual um dos imperativos é a unidade do conhecimento (NICOLESCU, 1999, p. 46).

Assim, a robótica vai integrar os diversos conhecimentos e diversas práxis. Estes

fatores, bem como a própria motivação humana pela criação de robôs tornam a robótica

uma interessante ferramenta de uso na educação. É visto que “[...] a disciplinaridade, a

pluridisciplinaridade, a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade são as flechas de

um único e mesmo arco: o conhecimento” (NICOLESCU, 1999, p. 48). É visto que os

projetos de robótica pedagógica se valem dessas quatro condições, o que vem a ser de

grande valia para a aprendizagem no que se refere, principalmente, a resolução de

problemas, do mais simples aos mais complexos, o que vai depender do nível de ensino

em que for aplicado, tendo em vista que um mesmo projeto de robótica pedagógica

pode envolver diferentes graus de complexidade e atender a propostas pedagógicas para

qualquer instância do ensino (fundamental, médio ou superior).

Educadores que empregam esses instrumentos robóticos na educação

denominam esse processo de robótica pedagógica ou robótica educacional. Mas o que

pode ser concebido como robótica pedagógica? Existe aí algum equívoco conceitual?

Ainda que não chegue a constituir um equívoco, ao menos entre os educadores

que aplicam a robótica como metodologia pedagógica é facilmente perceptível certa

confusão em torno da definição de robótica pedagógica. O mesmo ocorre em páginas

de internet que tratam do assunto. Ora encontramos o termo robótica pedagógica

relacionado aos dispositivos robóticos, às máquinas (ao hardware); ora relaciona-se ao

espaço físico, ao laboratório ou ao ambiente de aprendizagem; e, por vezes, o termo

aparece como sinônimo do projeto em desenvolvimento ou mesmo como a metodologia

em si. O fato é que parece não haver um consenso ou preocupação em definir o que

possa ser considerado como robótica pedagógica.

Sem querer tomar posição de adotar como conceito acertado ou acabado,

faremos uso da expressão robótica pedagógica como proposta pedagógica; isto é,

consideramos que robótica pedagógica é uma denominação para o conjunto de

processos e procedimentos envolvidos em propostas de ensino-aprendizagem que

tomam os dispositivos robóticos como tecnologia de mediação para a construção do

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conhecimento. Desta forma, quando nos referirmos à robótica pedagógica não estamos

falando da tecnologia ou dos artefatos robóticos em si, nem do ambiente físico onde as

atividades são desenvolvidas. Não estaremos nos referindo à outra coisa senão à

proposta de possibilidades metodológicas de uso de tecnologias informáticas e robóticas

no processo de ensino-aprendizagem.

2 ROBÓTICA PEDAGÓGICA LIVRE

Atualmente a robótica na educação está centrada basicamente no “treinamento” dos

educandos a partir da utilização de kits comerciais e padronizados que se caracterizam

por softwares e principalmente por hardwares proprietários, que são adquiridos

comercialmente, e que servem para controle e acionamento dos dispositivos

eletromecânicos. Esse estudo, na contramão do que vem sendo feito, vai trabalhar com a

perspectiva de uma robótica pedagógica livre. Mas do que se trata isso? O que é a

robótica livre? Qual a sua concepção?

Compreendemos por robótica pedagógica alternativa o conjunto de processos e

procedimentos envolvidos em propostas de ensino-aprendizagem que tomam os

dispositivos robóticos baseados em soluções livres e em sucatas como tecnologia de

mediação para a construção do conhecimento. De forma específica, trataremos a

Robótica Pedagógica Alternativa como Robótica Livre, denominação utilizada pelo

grupo de educadores e educandos envolvidos na experiência de robótica que

apresentaremos neste artigo.

A Robótica Livre tem uma proposta diferenciada, pois parte para soluções livres

em substituição aos produtos comerciais. Propõe o uso de softwares livres2 (Linux e

seus aplicativos) como base para a programação, e utiliza-se da sucata de equipamentos

eletroeletrônicos e hardwares abertos/livres3 para a construção de kits alternativos de

robótica pedagógica (kits construídos de acordo com a realidade social de cada escola) e

2 No artigo, apresentaremos alguns aspectos relacionados à Licença Pública Geral do GNU (GPL), bem como ao software livre. Entretanto, caso queira saber mais sobre essa temática, sugerimos o texto Mundo Livre, de Daniel Zilli (ZILLI, 2005). 3 São artefatos construídos (Ex.: Freearduino e Interface de Hardware Livre – IHL) a partir de soluções livres, ou seja, os desenhos da placa de circuito impresso, as especificaçoẽs técnicas, o desenho lógico do circuito eletrônico, os softwares livres utilizados e embarcados na construção do artefato e o processo de montagem seguem as 4 liberdades (Liberdade de uso, estudo e modificação, distribuição e redistribuição das melhorias) da filosofia do Software Livre. Assim como no software livre, o hardware livre também está protegido por licenças que garantem as liberdades e dão a cobertura legal (Exemplos: a GPL e a Copyleft).

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protótipos de artefatos robóticos (robôs, braços mecânicos, elevadores...). A utilização

de uma práxis pautada na liberdade vem da crença de que o conhecimento produzido

pela humanidade deve ser compartilhado por todos, sem que seja visto como

propriedade particular. A proposta da robótica pedagógica livre é de uma práxis coletiva

de ensino-aprendizagem, em que todos trocam e produzem conhecimento, como aponta

Sérgio Amadeu

o conhecimento é um bem social fundamental da humanidade. Não é por menos que se registra e se transmite o conhecimento desde o princípio dos tempos históricos.Também desde tempos longínquos a humanidade assiste ao enfrentamento de forças obscurantistas que tentam aprisionar e ocultar o conhecimento, seja por interesses políticos, econômicos ou doutrinários. A ciência somente pôde se desenvolver devido à liberdade assegurada à transmissão e ao compartilhamento do conhecimento (SILVEIRA, 2004, p.7).

Essa concepção é fundamental para a filosofia livre, proposta didática da robótica na

qual se firma. É visto que a liberdade que só era assegurada aos cientistas, acaba por ser

forçada para todos, pela própria metodologia adotada.

3 SOBRE ROBÓTICA E BRINQUEDOS

Entendemos que a prática das oficinas de robótica pedagógica livre, é um convite

para um ensino aprendizagem pautado no estímulo da criatividade, é um espaço de

compartilhamento e de brincadeira. Ora, desde que nascemos, brincamos; ao crescermos

apoderamo-nos dos brinquedos, começamos a utilizar a imaginação, o que nos leva a

entender o mundo por vários ângulos e esses vários ângulos correspondem a níveis

simbólicos de compreensão. A importância disso, como coloca Machado (2003), é que

“brincando, [a criança] aprende a linguagem dos símbolos e entra no espaço original de

todas as atividades sócio-criativo-culturais” (p. 26). O ato de brincar é uma ação e esta é

a base da elaboração prática e teórica de compreensão do mundo. Enquanto brinca, a

criança age e, enquanto age, compreende o mundo a partir de sua ação, ou seja, através

do brincar, que é uma ação, entra-se no espaço da experiência simbólica que vai

significar e re-significar as relações socioculturais, na medida em que o brinquedo é

visto como forma de entendimento do mundo.

A brincadeira não fica no plano apenas da criança, começa na infância e estende-

se ou deveria estender-se por toda a vida. Ao brincar, o indivíduo experimenta “[...] a

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ligação entre o que possui dentro de si e a realidade de fora, o espaço potencial que

aproxima e mistura esses dois mundos” (MACHADO, 2003, p. 35), e isso é muito

importante, pois “[...] quando ocorre essa união, a pessoa (adulto ou criança) se sente

mais inteira e dona de si mesma, buscando entendimento de quem ela é e como vê o

mundo [...]” (MACHADO, 2003, p. 35), pois no ato de brincar, se faz presente cada

brincante com seu passado e seu presente, com sua afetividade e sua mente, com sua

corporeidade, se faz presente o brincante em seu todo, não são apenas partes suas que

brincam.

Por outro lado, junto com o brincante estão outros brincantes, que, juntos, brincam

e trocam experiências, confrontando o outro, chorando e alegrando-se com ele, e com

ele aprendendo, com ele solidarizando-se, e fazendo descobertas. O ato de brincar,

afinal, propicia um encontro de seres humanos que crescem juntos, aprendem a se

verem como indivíduos e como parte de um todo que chamamos sociedade, e essa é

uma das propostas das oficinas de robótica pedagógica livre, quando essa promove o

trabalho colaborativo. Assim os brincantes unem as peças, planejam, sonham juntos,

experimentam seus brinquedos, num espaço onde não há vencedores, porque cada um

contribui como pôde para a realização do artefato.

A robótica pedagógica livre, pela perspectiva do brinquedo, traz uma proposta de

aprendizagem mais prazerosa e imbricada no cotidiano do indivíduo, agregando os

conhecimentos técnicos e científicos do universo escolar. Considerando o que Paulo

Freire aponta para os processos e técnicas de aprendizagem, em que

a questão não são as técnicas em si mesmas – não que não sejam importantes -, mas a verdadeira questão é a compreensão da substantividade do processo que, por sua vez, requer múltiplas técnicas para atingir um objetivo particular. É o processo que leva à necessidade das técnicas que precisa ser entendido (FREIRE, 2001, p. 57).

e vemos que nas aulas e oficinas de robótica pedagógica livre, é o entendimento do

processo de criação que assegura a apreensão do conteúdo. Vendo de outra forma, o que

no início, são peças aparentemente sem utilidade de aparelhos eletrônicos que já não

cumprem a sua função, mas que, aos poucos, transformam-se em objetos que ganham

movimento e outras possibilidades de uso. Assim, a robótica, que pode ser traduzida

como uma ciência de sistemas que interagem com o mundo real, com ou sem

intervenção dos humanos e que, inicialmente, pertence ao grupo das ciências

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informáticas, vai deixando de ser um tema trabalhado apenas por cientistas começando

a fazer parte do cenário educacional, abarcando um perfil acessível às diferentes faixas

etárias.

4 A TÉCNICA E A NATUREZA DOS ARTEFATOS ROBÓTICOS

A robótica é um dos caminhos em que o ser humano busca desenvolver e

expressar sua sensibilidade e razão por meio de criações tecnológicas. Por todos os

cantos, estamos rodeados de artefatos tecnológicos, criações que agregam

conhecimentos, elaboradas pela razão humana. Com o passar do tempo, estes artefatos

são descartados, não sendo apropriados para o uso, considerados sem valor ou sentido.

No entanto, com o uso pedagógico destes equipamentos, o que antes havia perdido seu

significado técnico, é transformado em artefato robótico, que renasce a partir do

trabalho coletivo de educadores e educandos.

Na robótica pedagógica o ímpeto pela construção é estimulado pela capacidade

de criar, resultado de um desejo natural do ser humano. A inspiração está na própria

natureza, como “metáfora fundadora” (Le Breton, 2003) e modelo para o homem que

renasce e se transforma na produção-criação dos objetos técnicos. Portanto, a técnica é o

motor de nosso mundo, que faz com que garanta nossa sobrevivência, o que nos

acompanha desde as primeiras criações, dos objetos mais rudimentares aos mais

complexos. A robótica é o resultado da necessidade que sentimos em produzir máquinas

capazes de desempenhar funções. Como prótese que ocupa o lugar de membros e órgãos

para restituir, substituir e ampliar a capacidade orgânica limitada do corpo humano.

Na proposta educacional que utiliza a robótica pedagógica está a relação entre

vários conhecimentos para assim efetuar a concretização do objeto técnico. A ideia de

concretização permite desenvolver e aprofundar a intuição original de seus criadores,

não existindo mais a dicotomia entre seres humanos e objetos técnicos, pois os objetos

são a expressão de seu interior.

A concretização do objeto é a tradução do sistema intelectual de seu criador. De

modo que o objeto perde o seu caráter artificial, não como uma característica

proporcionada pela origem fabricada do objeto, mas pelo interior artificializante do ser

humano, quer esta ação intervenha sobre um objeto natural ou sobre um objeto

inteiramente fabricado. Portanto, quanto mais concreto se torna o objeto técnico, mais

próximo do natural ele poderá ser considerado (SIMONDON, 2007).

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Como proposta didática, a robótica pedagógica é utilizada como estímulo a

aprendizagem tecnológica, que passa a agregar outros significados, a partir de uma

vertente transdisciplinar. Enquanto transportamos esse pensamento, educandos e

educadores projetam a essência de seus corpos nos movimentos dos artefatos robóticos

desenvolvidos nas oficinas. Fazendo de sua criação, expressão de sua sensibilidade

humana. Neste relacionamento entre os pares o mais importante estão as trocas “[...] de

energia e de informação num objeto técnico ou entre o objeto técnico e o seu meio”

(SIMONDON, 2007 p. 48).

Para tal produção, a robótica pedagógica proporciona mudanças que percebemos

ser proporcionado pela valorização da prática hipertextual. O que rompe com a

perspectiva linear ainda predominante entre os educadores a partir de novas práxis

educacionais. Dessa forma a criação passa a refletir a imagem de seu criador. Como

uma forma de dar ao objeto uma característica que lhe é peculiar, como sua alma

definidora (SANTAELLA, 2004).

A subjetividade dos artefatos robóticos está inscrita na superfície e no interior do

corpo humano. Ela reflete a imagem de seus sujeitos criadores resultante de um

processo estético entre o homem e a máquina. Assim, educando e educadores, assumem

a posição de a(u)tores que produzem novos significados traçados por uma linguagem

transdisciplinar que busca a existência tecnológica a partir de artefatos robóticos.

5 ENTRE POSSIBILIDADES, EXPERIÊNCIAS E RESULTADOS

5.1 POSSIBILIDADES METODOLÓGICAS

A metodologia foi aplicada em duas oficinas de robótica livre que estão descritas

no tópico 5.2. Abaixo destacamos as 7 etapas do processo:

Sensibilização – Constituir o grupo de professores e alunos em torno das

propostas pedagógicas do projeto. Professores e alunos são companheiros nessas

atividades, sujeitos que assumem dinamicamente o papel de autor dos projetos e

dos processos;

Temas Geradores – Demonstração do funcionamento e das possibilidades de

uso da tecnologia da robótica, como elemento integrador do projeto, em torno do

qual se estruturam as atividades propostas;

Formação Básica – Aprendizagem específica num nível suficiente para

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entendimento do funcionamento dos dispositivos e recursos (Interface de

Hardware Livre - IHL, Dispositivos Eletrônicos a serem Comandados - DEC e

Sistemas e Aplicativos em Software Livre - SASL)4 dos seguintes conteúdos:

informática; eletricidade e eletrônica; lógica binária; linguagem de programção:

Shell script e Logo; montagem de circuito impresso; noções de dispositivos

eletromecânicos: Motores e sensores; construção e reaproveitamento de

materiais: Roldanas, engrenagens, eixos; noções de projeto;

Experimentações de controle do DEC – Utilizando modelos de DEC

construídos e testados anteriormente pelo propositor do curso, o grupo visualiza

de forma concreta o controle dos DEC através da robótica. Nesta etapa, a partir

de uma IHL e DEC disponibilizados, os educandos aprendem a interligar os

DEC aos circuitos demandados (IHL, fiação, ligação da fonte de alimentação

etc);

Planejamento dos projetos de controle do DEC – Organização do grupo em

pequenos subgrupos, denominados equipes. Cada equipe apresenta e discute

com o grupo seu projeto específico, do qual consta o nome, descrição, diagrama

de montagem, planilha de materiais a serem utilizados e o esboço de um

cronograma inicial;

Montagem da IHL - No primeiro momento o propositor do curso indica em

quais equipamentos obsoletos ou inutilizados podem ser encontrados os

componentes para a montagem da IHL. A partir desta engrenagem propulsora, o

propositor instiga alunos e professores a pesquisarem outras fontes alternativas

de equipamentos, para extraírem os componentes necessários para a montagem

da IHL;

Montagem dos projetos de controle do DEC – Nesta etapa o propositor do

curso indica quais equipamentos costumam conter dispositivos eletromecânicos,

como motores e sensores, além de materiais que ajudarão o educando na

montagem de seus projetos de controle do DEC, como eixos, roldanas,

engrenagens, fiações, bornes de ligação, resistores, etc. Vale lembrar que esta

possibilidade não se limita a equipamentos de informática e o propositor instiga

os educandos a procurarem outras fontes alternativas;

Avaliação – A avaliação é cíclica, ou seja, o tempo todo devem ser avaliadas as

4 Mais detalhes sobre IHL, SASL e DEC em Anais do 6º Fórum Internacional de Software Livre: 6º Workshop sobre Software Livre, Porto Alegre, 2005, p.293.

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atividades, o projeto desenvolvido, os processos envolvidos e o produto final na

Robótica Livre.

5.2 OFICINAS E RESULTADOS

OFICINA 1 - Durante a III Semana de Software Livre da Faculdade de Educação5

da Universidade Federal da Bahia (UFBA), foi realizada a oficina de Robótica Livre

com o objetivo de demonstrar algumas aplicabilidades da robótica com o uso de

tecnologias livres (hardware e software livre) no contexto educacional, além de

despertar a consciência ambiental no que se refere a destinação do lixo tecnológico e

busca de soluções para preservação do meio ambiente. O público foi estudantes,

professores e demais interessados. Trouxeram de casa ferramentas básicas (chaves de

fenda, alicates ...), além de sucatas como rádio, telefone, peças de computadores para a

oficina. A carga horário foi de 4 horas com 10 participantes, agrupados dois a dois.

Foram utilizados microcomputadores com Sistema Operacional GNU/LINUX Debian,

as ferramentas, 5 cabos paralelos (Macho-Macho/DB25-DB25), 40 Led's (Diodo

Emissor de Luz), 40 Resistores de 390 Ohms, 5 Conectores DB-25 Fêmea para circuito

impresso, Ferro de Solda, Solda, 5 Placa de Circuito impresso 5x5 ou 10x10 (perfurada)

e os aplicativos Kommander (para desenvolvimento do software de controle da IHL),

Ktechlab (construção do circuito lógico) e Klogo-Turtle (Linguagem de programação

para teste da IHL). Como conteúdo foi explicado como podemos utilizar o lixo

tecnológico na construção de artefatos robóticos no ambiente de ensino-aprendizagem

de robótica pedagógica.

Ficou definido que a partir do kit construído eles iriam simular um pisca-pisca de

árvore de natal. Então cada grupo construiu cooperadamente seu kit básico de robótica

pedagógica livre para ser utilizado na porta paralela do micro (Anexo A), e programaram

no aplicativo kommander as aplicações educacionais de acesso a porta paralela para

interação com os artefatos robóticos, que neste caso foram os Led's (Diodos Emissores

de Luz) simulando o pisca-pisca da árvore de natal.

OFICINA 2 - Na III Semana de Software Livre da UFC foi realizada a I

Olimpíada de Robótica Livre6, que teve caráter de oficina. Trabalharam 3 grupos de 4

5 SSL-FACED. Disponível em <http://www.ssl.faced.ufba.br/twiki/bin/view/SSL/RoboticaLivre> Acesso em: 5 ago 2008. 6 SESOL. Disponível em <http://www.sesol.ufc.br/sesol3/Main/AtividadesTecnicas#roboticalivre>

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pessoas (4 professores e 8 alunos), cuja recomendação foi a de já possuírem

conhecimento em eletrônica (corrosão de placas de circuito impresso, soldagem de

componentes eletrônicos, etc) e conhecimentos básicos de linguagem de programação

(programaram em shell script usando o aplicativo Kommander). Os grupos foram

formados no primeiro dia da olimpíada e assim cada grupo definiu qual o tema e os

materiais que iriam utilizar na olimpíada (considerando as limitações da IHL e do

tempo). No período de 4 dias (4 horas por dia/32 horas), cada grupo construiu uma

Interface de Hardware Livre (IHL), além da construção de um "artefato robótico" com a

utilização de sucatas. Nesta olimpíada (Anexo B) professores e alunos utilizaram

diversos componentes eletrônicos (capacitores de cerâmico, circuito integrado,

resistores, relês, Diodos ...), ferramentas (alicates, perfurador de placa de circuito

impresso, chaves de fenda, solda, ferro de solda, sugador de solda ...), caneta para

desenhar em circuito impresso, percloreto de ferro para corrosão das placas de circuito

impresso e placas de fenolite (circuito impresso). No último dia da olimpíada, cada

grupo apresentou seu produto final (kit de robótica pedagógico e artefato robótico)

construído a partir do “lixo tecnológico” e demonstraram os seus movimentos (cada um

com seu nível de interação) a partir dos softwares desenvolvidos. Uma comissão avaliou

os artefatos construídos no quesito aplicabilidade e grau de dificuldade do software

desenvolvido. No final não houve vencedor, pois todos receberam como prêmio quadros

pintados em grafite como troféus simbólicos.

CONCLUSÃO

O trabalho com a robótica pedagógica livre tem por finalidade propor uma

solução cooperada, colaborativa e solidária, características próprias da comunidade de

Software Livre. Foi observado que os atores aprendem com o desafio de dominar os

recursos da robótica a construir seu próprio projeto, articulando os mais diversos

conteúdos, trabalhando ativamente com seu objeto de interesse, agregando conteúdos

escolares com práticas reais/concretas. A participação ativa do educando na construção

e controle de seus objetos de desejo faz com que o mesmo se sinta parte do processo e

do meio em que vive, ampliando seus conhecimentos através da mensagem transmitida

pelo tutor e pelo grupo. Além disso, eles praticam uma postura mais ecológica,

Acesso em: 28 jul 2008.

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percebendo que elementos/componentes tidos como lixo podem ser fonte de recursos

nos processos de desenvolvimento de novos produtos.

Homem e máquina estão se relacionando de maneira a produzir o conhecimento

coletivamente por meio de artefatos robóticos que vão ganhando vida ao saírem da

sucata. Na construção das oficinas, conhecimentos são mixados de maneira coletiva,

momento em que educadores e educandos deixam suas marcas nos objetos construídos.

ao mesmo tempo são marcados. A partir dos artefatos robóticos o ser humano projeta a

potência de seu corpo fazendo a máquina exercer determinadas funções.

Esses artefatos, também vistos como brinquedos, servem para que os indivíduos,

tomando como referencial o contexto da criação e concepção dos objetos, tenham a

possibilidade de desenvolver o seu potencial criativo. Outro ponto importante a ser

abordado é a práxis do ensino-aprendizagem, que propícia o compartilhamento de forma

mais prazerosa, e porque não dizer, mais fácil, dos conhecimentos científicos e

tecnológicos, bem como, promove o exercício de valores sociais de colaboração e ajuda

rompendo barreiras da individualidade e disseminando a produção do conhecimento

compartilhado.

Visto isso, é importante ressaltar que os conceitos da Licença Pública Geral

(GPL) são praticados, ou seja, compartilham trabalho, informação e conhecimento, além

de desmistificarem a falácia de que soluções de baixo custo são soluções de baixa

qualidade ou inviáveis. Por último, mas não menos importante, verifica-se que os

resultados alcançados são satisfatórios, pois a cada etapa concluída os educandos se

mostraram mais motivados com o projeto, dominando competências e habilidades

propostas, relacionadas tanto ao conteúdo específico da robótica quanto às dinâmicas de

ensino-aprendizagem que direcionam o projeto. O “Produto” passa a ter importância a

partir do “Processo” como um todo, instigando a criação de opiniões e o

desenvolvimento do pensamento reflexivo, crítico e criativo.

REFERÊNCIAS

FÓRUM INTERNACIOANL DE SOFTWARE LIVRE: WORKSHOP SOBRE SOFTWARE LIVRE, 6., 2005, Porto Alegre. Anais do 6º Fórum Internacional de Software Livre: 6º Workshop sobre Software Livre. Porto Alegre: Armazém, 2005. 324 p. FREIRE, P. Pedagogia dos sonhos possíveis. São Paulo: Editora UNESP, 2001.

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LE BRETON, David. Adeus ao Corpo: Antropologia e Sociedade. Tradução de Maria Appenzeller. Campinas, São Paulo: Papirus, 2003. LÉVY, Pierre. A máquina universo: Ciação, cognição e cultura informática. Lisboa: Instituto Piaget, 1987. Licenses GNU, 2007. Disponível em <http://www.gnu.org/licenses/licenses.html> Acesso em: 6 ago 2007. MACHADO, M. M. O brinquedo-sucata e a criança. A importância do brincar. Atividades e materiais. 5º Ed. São Paulo: Loyola, 2003. NICOLESCU, B. O manifesto da transdisciplinaridade. São Paulo: TRIOM, 1999. PAPERT, Seymour. LOGO: Computadores e Educação. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985. SANTAELLA, Lúcia. Corpo e comunicação: Sintoma da cultura. São Paulo: Paulus, 2004. SESOL. Disponível em <http://www.sesol.ufc.br/sesol3/Main/AtividadesTecnicas#roboticalivre> Acesso em: 28 jul 2008. SILVEIRA, S.A. Software livre: a luta pela liberdade do conhecimento. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004. (Coleção Brasil Urgente) SIMONDON, Gilbert. El modo de existência de los objetos técnicos. Tradução de Margarita Martínez e Pablo Rodríguez. Buenos Aires: Prometeo, 2007. SSL-FACED. Disponível em <http://www.ssl.faced.ufba.br/twiki/bin/view/SSL/RoboticaLivre> Acesso em: 5 ago 2008. VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da práxis. Tradução de María Encarnación Moya. São Paulo: CLACSO, 2007, p.28. ZILLI, Daniel. Mundo livre. 4.ed. [s.e.]: [s.l.], 2005. Disponível em http://zilli.gulinuxsul.org/livros/ml.pdf. Visitado em 5 março de 2009.

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Anexo A

Kit Básico de Robótica Pedagógica Livre

Figura 1. Componentes utilizados na montagem do kit robótico pedagógico para controlar led's.

Figura 2. Materiais utilizados na montagem do kit para controlar led´s.

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Anexo B

Olimpíada de Robótica Livre: Algumas etapas do processo de desenvolvimento do Kit de Robótica Pedagógica Livre e da criação do Artefato Robótico.

Figura 3. Sucata de equipamentos descartados levada por professores e alunos para a oficina de robótica pedagógica livre.

Figura 4. Passando a imagem do circuito a ser montado para a placa de circuito impresso (fenolite) com a utilização da caneta para desenhar circuito.

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Figura 5. Placa IHL (Interface de Hadware Livre) depois de pronta. Cuja função é a de controlar os artefatos robóticos construídos.

Figura 6. Artefato robótico feito de palito de picolé, engrenagens e motor de Cdrom retirados da sucata.

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Figura 7. Artefato robótico feito com rodas do sistema de engrenagem de uma impressora com defeito, motor de passo retirado também da impressora e madeira já reutilizada.