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  • 7/27/2019 Roberto Motta

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    Ano VII n. 7 dezembro/2008 - 55

    Revista de Teologia e Cincias da Religio

    O CORPO E A RELIGIO NOXANG E NA UMBANDA

    Prof. Dr. Roberto Motta, PhD1

    ResumoO problema do corpo, na Religio, encontra-se associado ao problemamais geral da substituio da vontade natural pela vontade racional(Tnnies) ou da ao afetiva pela ao racional (Weber). Ainda queconstitua uma caracterstica central da Modernidade, essa transforma-

    o tem razes na Grcia Antiga (Nietzsche) e na Teologia do NovoTestamento (So Paulo). Devido s complexidades de sua formaotnica, observa-se no Brasil a coexistncia de religies iconoflicas (ousomatoflicas) e logoflicas. As religies do corpo esto sujeitas a umcrescente processo de racionalizao, devido, inclusive, influncia deestudiosos, eles prprios reflexo do avano da racionalizao na Socie-dade Brasileira. Parece, portanto, duvidosa a sobrevivncia de uma au-tntica religio do corpo num mundo cada vez mais racionalizado e cadavez mais globalizado.Palavras-chave: Antropologia Religiosa, religies afro-brasileiras, cor-po e tradies religiosas.

    AbstractThe problem related to the body, in Religion, is seen as being associatedto natural will substitution most general problem by rational will(Tnnies) or affective action replacement by rational action (Weber).Even though it could constitute Modernitys central characteristic, this

    transformation is rooted in Ancient Greece (Nietzche) and NewTestament Theology (St. Paul). On account of its ethnical formationcomplexity, one observes, in Brazil, iconophylical (or some tophylical)and logophylical Religions coexistence. Religions related to body aresubdued to a rationalization increasing process, on account of, including,the scholars influence, since they are themselves rationalization advancein Brazilian Society. Therefore, it seems that an authentic Religion relatedto the body, in a more rationalized and more and more globalized world is

    doubtful.Key words: Religious Anthropology, Afro-brazilian Religions, Body andReligious Traditions.

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    Mestrado em Cincias da Religio Unicap

    1 Tnnies, Weber, Nietzsche e o corpo

    Este trabalho quer tratar de alguns problemas ligados ao corpo na

    religio e na Sociologia da Religio. A questo do corpo que ,simplesmente, o inverso da questo da racionalidade , , em cheio,sociolgica e est muito presente na teoria mais geral da Sociologia,sobretudo entre os autores de orientao mais acentuadamente hist-rica, como Ferdinand Tnnies, autor desse livro fundamental, que Comunidade e Sociedade, contendo toda uma interpretao da pas-sagem da tradio modernidade, caracterizada, a primeira, pela von-tade natural ou vontade essencial (Wesenwille) e a segunda, pela von-

    tade de arbtrio ou vontade racional (Kurwille). Trata-se, na base, dapassagem da cultura do corpo, com a espontaneidade dos instintos,afetos e movimentos, a cultura da racionalidade, com a represso, oclculo. a abstrao, a previso e o planejamento. Segundo esse emi-nente socilogo alemo

    a vontade natural o equivalente psicolgico do corpo hu-mano. [...] implicando uma forma de pensamento associa-

    da s clulas do crebro, as quais, quando estimuladas, cau-sam atividades psicolgicas que podem ser consideradascomo equivalentes ao pensamento (TNNIES, 1988, p.103).

    O corpo tambm est presente na teorizao sociolgica de MaxWeber, opondo ao afetiva e ao racional. Mesmo sendo Webermenos inclinado do que Tnnies a empregar as palavras corpo e or-ganismo, podemos constatar que, para ele, a primeira dessas formasde ao se assenta no corpo e deriva de suas paixes, sendo determi-nada por afetos ou estados emocionais. [...]. Age de maneira afetivaquem, de maneira brutal ou sublimada satisfaz uma necessidade devingana, de prazer, de descarga de afetos (WEBER, 1994, p. 15).

    Esse um problema central, ou mesmo o problema central dacincia social, ou seja, a passagem da ao derivada da emoo e da

    paixo ao derivada da racionalidade. Lembremos aqui a formula-o magistral de Weber nos pargrafos de abertura da Introduoaos Ensaios Reunidos sobre a Sociologia da Religio:

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    Revista de Teologia e Cincias da Religio

    que encadeamento particular de circunstncias levou a queno Ocidente, e s aqui, tenham aparecido fenmenos cultu-rais que como pelo menos gostamos de pensar se situ-aram numa direo evolutiva de significado e valor univer-sais? (WEBER, 1996, p. 11).

    E ele acrescenta que a impregnao com a racionalidade decincia, teologia, astronomia, medicina, qumica, msica, arquitetura,administrao e, finalmente, da atividade econmica, que d tal signi-ficado e valor universais civilizao ocidental2. Situando sua refle-xo no ponto mais alto do desenvolvimento da Histria3, Weber que-

    ria entender a tendncia fundamental do tempo e, de modo semelhantea Tnnies, trata do problema do corpo nas cincias sociais, mas usan-do sua prpria terminologia. O significado e valor universais, depen-dentes da racionalidade, implicam formas de pensar e de agir que trans-cendem o corpo, com suas percepes, emoes e paixes e se situ-am muito acima dessas na escala do progresso.

    Weber sustenta que foi com o Calvinismo que chegou ao fim ogrande processo histrico-religioso do desencantamento do mundo

    [...] condenando todos os meios mgicos na procura da salvao comosuperstio e sacrilgio (WEBER, 1996, p. 94), acarretando, entreoutras coisas, que seja a tarefa mais premente a eliminao do gozoespontneo da vida (WEBER, 1996, p. 103), associado s tendnci-as do corpo. Weber v no Calvinismo a culminao desse processo,mas no deixa de reconhecer outras influncias: as profecias do Ju-dasmo antigo4 e o pensamento cientfico helnico (WEBER, 1996,

    p. 94).No que se refere ao mundo helnico, Nietzsche considera que a

    racionalizao, trazendo consigo a represso do gozo espontneo, jse manifestava no sculo V a.C., com Eurpides e Scrates. Antes

    o homem se expressava pelo canto e pela dana comomembro da comunidade. Ele se esquecera de andar e defalar e voava ao danar. Cada um de seus gestos era en-cantado. [] Sentia-se um deus, como os deuses que vianos seus sonhos. J no era sequer um artista, mas umaobra de arte (NIETZSCHE, 1967, p. 37).

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    Mestrado em Cincias da Religio Unicap

    O esprito da tragdia foi expulso por

    um poder demonaco, falando atravs de Eurpides. Mesmo

    Eurpides era s uma mscara. A divindade que falava atra-vs dele no era nem Dioniso nem Apolo, mas um demnionovo chamado Scrates. E foi assim que a tragdia gregafoi arruinada.(NIETZSCHE, 1967, p. 82).

    E o resultado dessa tendncia, sobre a qual Nietzsche no pro-cura esconder seu pessimismo, foi que os Gregos ficaram [] cadavez mais empenhados na lgica e na aplicao da lgica ao mundo e

    portanto cada vez mais otimistas e cientficos []. A predominn-cia cada vez maior da racionalidade e do utilitarismo [] revelava odeclnio da fora, a chegada da velhice e do esgotamento fisiolgico(NIETZSCHE, 1967, p. 21).

    E, em concluso,

    a concepo trgica do mundo foi, em toda parte, totalmen-te destruda pela intruso desse esprito antidionisaco []

    tendo ento de ter de fugir da arte para o submundo, subsis-tindo na forma degenerada de um culto secreto(NIETZSCHE, 1967, p. 109).

    Se seguimos os princpios sugeridos por Roger Bastide, encara-mos o processo de aculturao como a reinterpretao do primitivoatravs de uma sensibilidade europeizada ou racionalizada5. Nietzschesurge ento como um precursor dos estudos antropolgicos de contacto,

    mudana ou interpenetrao de mentalidades e civilizaes. De qual-quer maneira, certo que no deixa dvida sobre o que consideracomo a decadncia causada pela substituio da paixo e da emoo

    pelo racionalismo socrtico6.

    2 Paulo e o culto racional

    So Paulo se situa na linha exata que Nietzsche atribui a Scratesquando escreve, na epstola aos Romanos:

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    Rogo-vos pois, irmos, pela compaixo de Deus, queapresenteis os vossos corpos em sacrifcio, vivo, santo eagradvel a Deus, que o vosso culto racional7.

    Os Cristos devem, portanto, praticar aquilo que Paulo deno-mina logikn latrean, traduzido pela Vulgata como obsequiumrationale8. A interpretao mais tcnica dessa e de outras passagensdeve ficar a cargo dos especialistas em estudos bblicos. Mas se pode

    perfeitamente concluir que a exortao de Paulo, para todos os efeitosprticos, implicou a excluso do corpo, com sua espontaneidade, suaspaixes, emoes e arrebatamentos, da prtica religiosa do Ocidente.

    Pode-se entretanto registrar uma recuperao limitada do cor-po no Cristianismo medieval, tanto no Oriente quanto no Ocidente,que foi ento muito imagstico ou icnico. Essa caracterstica pareceter-se acentuado ainda mais no perodo barroco, durante o qual, pelomenos nas terras de lngua portuguesa, danas nas igrejas ou em tornos igrejas, mesmo sem serem incorporadas liturgia oficial, represen-taram, segundo a documentao da poca, prtica corrente9.

    Como se sabe, a Reforma, que num de seus aspectos principais

    significou o retorno s fontes bblicas, escritas, do Cristianismo, origi-nou uma reao radical sobretudo em sua verso calvinista contrao imagismo medieval. Calvino autor de uma veemente refutao douso de cones no captulo XI do livro I de suaInstitution Chrtienne10.E o Calvinismo, at o dia de hoje, permanece como prottipo dasreligies iconoclastas na terminologia de Victor Turner11. Segundo o

    pranteado antroplogo britnico,

    as religies iconoflicas costumam desenvolver sistemas deritual complexos e elaborados. Os smbolos tendem a pos-suir carter visual e sua significao est ligada ao desdo-bramento do prprio ritual. As religies iconoclsticas estoassociadas a uma reforma radical e procuram purificar osentido subjacente eliminando os signantia, os smbolosicnicos, considerados como dolos que se intrometementre os crentes e as verdades enunciadas pelos fundado-

    res (TURNER, 1975, p. 155).

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    Tambm acontece, em certas situaes, como por exemplo nossistemas operacionais dos computadores, que os cones sejam esvazi-ados de seu valor intrnseco e reduzidos a sinais puramente arbitrrios.

    Algumas religies podem parecer que so icnicas e que se praticamcom a totalidade emocional do corpo, no entanto, as imagens,os gestos, as efuses j no funcionam mais como meros sinais emimediata dependncia de uma estruturao intelectualizada. isso oque veio a acontecer, como j veremos, a certas formas de religioafro-brasileira.

    3 Complicaes brasileiras

    O caso do Brasil, se comparado tendncia dominante dospases ocidentais, especial e merece tratamento mais detalhado.Existem aqui religies do corpo que so religies da dana, do transee do sacrifcio sangrento. Resultaram do encontro das tradies afri-canas com o Catolicismo barroco do perodo colonial. Aquele Catoli-cismo se encontrava muito centrado em torno ao contrato didico12entre homens e santos, traduzido em promessas, festas, danas e ou-tros rituais13. Como diz Gilberto Freyre um dos mximos, se no omximo intrprete de nossa formao:

    Verificou-se entre ns uma profunda confraternizao devalores e de sentimentos [...] que dificilmente se teria rea-lizado se outro tipo de Cristianismo tivesse dominado a for-mao social do Brasil, um tipo mais clerical, mais asctico,mais ortodoxo, calvinista ou rigidamente catlico, diversoda religio doce, domstica, de relaes quase de famliaentre os santos e os homens, que das capelas patriarcaisdas casas-grandes, das igrejas sempre em festas batizados,casamentos, festas de bandeira de santos, crismas,novenas presidiu o desenvolvimento social brasileiro Foiesse Cristianismo domstico, lrico e festivo, de santos com-padres, de santas comadres dos homens, de Nossas Senho-ras madrinhas dos meninos, que criou nos Negros as pri-

    meiras ligaes espirituais, morais e estticas com a famliae com a cultura brasileira. [...] A religio tornou-se o ponto

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    de encontro e de confraternizao entre as duas culturas, ado senhor e a do Negro, e nunca uma intransponvel e durabarreira. [...] A liberdade do escravo de conservar e at deostentar em festas pblicas [] formas e acessrios desua mtica, de sua cultura fetichista e totmica, d bem aidia do processo de aproximao das duas culturas no Brasil(FREYRE, 2003, p. 438-439).

    Em seu estilo inconfundvel, empregando aqui e ali expressesque deixaram de ser politicamente corretas, Gilberto Freyre chama aateno para um aspecto fundador da civilizao brasileira, com de-corrncias tericas que afetam, inclusive, a controvrsia em torno datese weberiana sobre a tica protestante e o esprito do moderno capi-talismo. O Brasil tradicional fez sua escolha: preferiu a festa, com todaa sua ambigidade, a festa que representa a forma pura do rito, semoutro significado que o de sua prpria execuo e permitindo a coe-xistncia de vrias etiologias, isto , de vrias explicaes para aorigem da ao litrgica, que ora se harmonizam, ora, como se diz emfrancs, hurlent de se trouver ensemble, contradizendo-se mutua-

    mente e, no entanto, convivendo. esse o processo que se encontrana base das religies sincrticas do Brasil e, sem dvida, de outrasformas de sincretismo. A civilizao da festa, como Weber sabia muito

    bem, encontra-se em oposio diametral com a civilizao baseada nodesencantamento e na racionalidade. A pureza original do rito implicaa impureza original das mitologias ou ideologias. A uma religio orien-tada para a festa difcil aplicar um conceito weberiano e, talvez aindamenos, hegeliano, de racionalidade, como caracterstica de um pensa-

    mento consciente de si em clareza e reflexo. No Brasil, tem havido,at o dia de hoje, a coexistncia e esse um dos motives por que o

    pas vem sendo considerado como um laboratrio do mundo ps-moderno de diferentes espcies de religio, algumas delas danadase, portanto, religies do corpo. Mas no se pode garantir o futuro detais religies. Pois a espontaneidade do corpo reprimida por outrasinfluncias.

    No terreno especfico dos cultos afro-brasileiros, enquanto paraalguns intrpretes, ou para alguns praticantes, a Africanidade associa-da com a religio do corpo tinha a conotao favorvel de autentici-

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    dade; para outros, ao contrrio, encontrava-se ligada aoprimitivismo, imoralidade e a outros traos repulsivos, presentesem certos mitos e rituais, como o sacrifcio sangrento de animais. E,

    dessa maneira, surgiu, em meados do sculo XX, um novo movimentoreligioso, com o intuito de purificar e civilizar as religies de influ-ncia africana e indgena, submetendo-as a um processo dereinterpretao largamente baseado nos princpios teolgicos de AllanKardec, o codificador francs das crenas e das prticas do Espiri-tismo europeu14.

    A nova tendncia denominou-se Umbanda. Mas convm acres-centar que no se tratou de uma manifestao uniforme: cada congre-

    gao podia fazer sua seleo dentre as crenas e prticas sujeitas reinterpretao. A Umbanda mais pura, mais prxima do padrokardecista, tambm chamada Umbanda Branca,adotou a noo deprogressoespiritual, aceitando um universo em dois planos, o espi-ritual e o material. No primeiro, encontram-se os espritos que retornam

    periodicamente e se reencarnam para o cumprimento de sua misso,que gradualmente elevar os habitantes do mundo material purezado esprito. O transe , por excelncia, o meio de comunicao entreos dois nveis da realidade. Mas a Umbandatransforma o transe dedana, xtase, entusiasmo e emoo da religio afro-brasileira numamanifestao verbal. A personalidade ordinria do mdium substitu-da pela de uma entidade que proporciona conselhos e solues paraos problemas morais e materiais do consulente15.

    A Umbanda, como diz o ttulo do livro de um de seus principaisintrpretes, levou morte branca do feiticeiro negro (ORTIZ, 1978).

    As tradies africanas foram, por assim dizer, expropriadas e postas aservio da unidade e do progresso material e do moral da nao bra-sileira... Mas pouco esperavam os fundadores da Umbanda que essemovimento, antes de muito tempo. viesse a ser, ao menos na aparn-cia, revertido. Pois os lderes afro-brasileiros das correntes mais tradi-cionais, agindo como empresrios religiosos e contando com a assis-tncia tcnica de antroplogos e socilogos, tanto brasileiros comoestrangeiros, elaboraram um artigo alternativo, legitimado pela auten-

    ticidade e apresentado como uma volta a formas mais tradicionais doCandombl de origem baiana.

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    4 A Santa Aliana

    O ingresso nesses grupos revitalizados de Candombl ou de

    Xang oferecido a uma clientela de consumidores, sem distino decor nem de raa. o que j tem sido denominado a desetnizao doCandombl16. Entretanto, a etnicidade no deixa de permanecer comomarca de autenticidade do artigo mgico-religioso, oferecido a pes-soas de todas as origens. Sem ter rompido seus laos com as grandesfamlias sacerdotais da Bahia (ou mesmo de Pernambuco) a base desua legitimidade no mercado concorrencial o Candombl se trans-forma numa religio universalista, apelando a todos os Brasileiros e

    aceitando, com prazer, gente de outras nacionalidades. E, assim, tem-se expandido, em todo o Brasil, e ultrapassado as fronteiras.

    Mas esse Neo-Candombl (e Neo-Xang) no deixa de sertambm uma Neo-Umbanda, pois, tal como esta, sofreu um processode codificao e racionalizao devido a cientistas sociais que gostamde avaliar os movimentos religiosos pelo acordo que manifestem comos valores do progresso e da modernidade. Apesar de seu acintosocarter sacrificial, o Candombl rejeita as noes de pecado e de cul-

    pa, tal como entendidas no Cristianismo tradicional. Partindo desse ede outros aspectos, a religio do Candombl adquiriu, pelos trabalhosdos socilogos e dos antroplogos, uma reinterpretao teolgica al-tamente racionalizada. J no se trata da religio do corpo, do transe eda emoo, embora se conservem marcas acintosas do antigo regime.Congressos, simpsios e assemelhados, freqentados, com liberdade,igualdade e fraternidade, por estudiosos e religiosos, funcionam como

    conclios ecumnicos, definindo e proclamando a f. E isso vem a ser aimplementao do projeto positivista da religio da humanidade.Pois, enquanto o estado teolgico no for definitivamente superado, ao cientista social que compete a administrao do que ainda sobra.Disso h paralelos noutras religies.

    E da se origina uma nova espcie de sincretismo, que se fazentre a religio popular e a cincia social. E, devido a essa mutao, oCandomble cultos a ele aparentados transformam-se, de altamente

    iconoflicos e somatoflicos que costumavam ser (para dizer em voca-bulrio inspirado por Victor Turner), em religies fortemente logoflicas,

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    embora no cheguem a ser iconoclastas, adotando as especulaes deestudiosos que crem que lhes fazem (como dizia Claude Lvi-Straussem polmica com Jean-Paul Sartre) o dom da inteligibilidade (LVI-

    STRAUSS, 1967).As religies afro-brasileiras consistiam num sistema de manipu-lao mgica do mundo. Os fiis estabeleciam relacionamentos perso-nalizados com as divindades, s quais ofertavam animais sacrificadosem altares de pedra. Tambm lhes ofereciam os prprios corpos, paraque os deuses os possussem, especialmente na dana e no transe.

    Nada podia estar mais distante dessa religio do que qualquer tentati-va de racionalizao teolgica, tica ou asctica. Os fiis davam muito

    pouco valor a conceitos abstratos. Passa agora a haver uma santa esbia aliana entre os filhos-de-santo e os cientistas sociais que defi-nem os valores da modernidade. E ao Candombl, que sempre foiuma religio real, uma religio em si, com seus ritos e mitos, os pes-quisadores oferecem um sistema teolgico estruturado, que lhe permi-te transformar-se numa religio para si, independente e rival de outrasreligies.

    Consideraes finais

    Podemos, agora, perguntar se as religies afro-brasileiras tmpassado por um processo de recomposio ou decomposio. Pois,do mesmo modo que,de acordo com Nietzsche, Eurpides e o de-mnio Scrates levaram perda irrecupervel do esprito da tragdiae a sua substituio pelo racionalismo e pelo moralismo, a aquisio de

    uma teologia racionalizada pelos Afro-brasileiros tem acarretado a perdada fora mstica do corpo, com suas paixes, que se exprimem atravsdos fluidos bsicos da condio humana. Gestos e danas se reduzema simples sinais, cada vez mais esvaziados de seu poder simblico.

    De maneira mais geral e sem nos restringirmos ao Brasil, serque possvel pensar na sobrevivncia ou no reavivamento das religi-es do corpo, com toda a sua espontaneidade e intensidade, num mundode racionalidade globalizada? verdade, como dizia Shakespeare,

    que existem bem mais coisas neste vasto mundo do que sabe a nossav filosofia. Mas ser possvel reverter o programa de So Paulo a

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    respeito da logik latria? No convm cultivarmos utopias. Temosde reconhecer que a racionalidade continua a expandir-se em nosso

    princpio de milnio supostamente ps-moderno. Como pode, nesse

    contexto, caber uma religio do corpo, que represente mais do quevestgio ou reconstituio mais ou menos pedantesca?17

    Pois o problema do corpo na religio est associado, ao menosde modo latente, concepo do moderno e do ps-moderno. No esta a ocasio para uma discusso exaustiva sobre o tema. Mas certo que, se caiu o Muro de Berlim, com tudo que representava, nocaiu Wall Street18 com tudo o que possa significar19. A modernidade,caracterizada (entre outras coisas) pela expanso do Capitalismo e da

    racionalidade, certamente no recuou. Ao contrrio, para seu avanono parece haver limites. E enquanto persistir a tendncia racionali-zao globalizada, as religies do corpo, baseadas na Wesenwille deTnnies ou na ao afetiva de Max Weber, devero continuar decain-do quando j no tenham desaparecido20.

    Notas

    1 Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq - Nvel 1B. Possuigraduao em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco(1962), mestrado em Cincias Sociais e Desenvolvimento pela InstituteOf Social Sciences (1964) , doutorado em Antropologia pela ColumbiaUniversity (1973) , ps-doutorado pela Universit de Paris V (RenDescartes) (1991) , ps-doutorado pela Harvard University (1997) eps-doutorado pela University Of California At Los Angeles (1998) .Tem experincia na rea de Antropologia , com nfase em Antropo-

    logia da Religio. E-mail: [email protected] Do mesmo modo, para Hegel, tambm no Ocidente, e s no Oci-

    dente, que o esprito chega recionalidade, tornando-se conscientede si em clareza, reflexo e liberdade, em decorrncia de existir em sie para si. O que faz a grandeza de nosso tempo o reconhecimentoda liberdade, a possesso do esprito por si mesmo, o fato que estem si e para si. (HEGEL, 1971, p. 329).

    3 Am Spitze der Geschichte, segundo a feliz expresso de Nicolaus

    Sombart (1958, p. 43).4 O profetismo tico no Judasmo antigo tende a ser tratado com ex-cessiva importncia por Max Weber e seguidores. No podemos tra-

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    tar adequadamente deste tpico neste artigo, porm notemos que, deacordo, entre outros, com Rudolf Bultmann (1984), o Judasmo dotempo de Jesus, estava longe de consistir numa religio proftica oumesmo propriamente tica, mas era uma religio dirigida para a ob-servncia de preceitos rituais, pessoais e coletivos.

    5 Bastide se refere, entre outras coisas, a uma tomada de conscin-cia da frica por sensibilidades e inteligncias desafricanizadass(2001, p. 141), E to pessimista a respeito do resultado desse pro-cesso como Nietzsche a respeito da substituio do esprito da trag-dia pelo racionalismo de Scrates e Eurpides, no hesitando em em-pregar as palavras degenerao e degradao para descrever aaculturao dos Africanos no Brasil e noutros pases. Sobre os Esta-

    dos Unidos, ele diz que o pior aconteceu quando os descendentesdos Africanos finalmente assimilaram os valores Norte-Americanose adotaram uma espcie de narcisismo branco. E no puderam des-cobrir melhor maneira de se identificarem com a Amrica do que aadoo da mentalidade do Puritanismo (BASTIDE, 1969, p. 46).

    6 A religio grega era, em grande parte, danada (cf. ROUGET, 1980,e a bibliografia por ele mencionada). Esse tambm parece ter sido ocaso da religio hebraica mais antiga. Sabemos que o Rei Davi dan-

    ava em certas ocasies rituais, chegando ao ponto de mostrar a suanudez, conforme fica explcito no segundo livro de Samuel, no qualse l e Davi saltava com todas as suas foras diante do Senhor eestava Davi cingido com uma tanga de linho []. E Mical, a filha deSaul, saiu a encontrar-se com Davi e disse: Quo honrado foi o rei deIsrael ,descobrindo-se hoje aos olhos das servas de seus servos, comosem pejo se descobre qualquer dos vadios!(2 Samuel 6:11 e 20,citado de acordo com a traduo de Joo Ferreira dAlmeida).

    7 Romanos, 12:1, citado de acordo com a verso de Joo FerreiradAlmeida. O original grego tem thusan para sacrifcio elatrean para culto.

    8 A primeira epstola de So Pedro fala de ierteuma hgion [...]pneumatiks thusas (1 Pedro, 2:5), isto sacerdcio santo [...]sacrifcios espirituais, em sentido muito prximo s passagens re-cm-citadas da epstola aos Romanos (cf. BULTMAN, 1984).

    9 Casa-Grande & Senzala (FREYRE, 2003) contm saborosas des-cries dessas prticas e assemelhadas.

    1 0 Comment lcriture, pour corriger toute superstition, opposeexclusivement le vrai Dieu toutes les idoles des paens Como

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    a Escritura, para corrigir toda superstio, separa estritamente o [cultodo] verdadeiro Deus de todos os dolos dos pagos (CALVIN, 1978,p. 58).

    1 1 Nestes termos, ou equivalentes, o mesmo j tinha sido dito por auto-res anteriores a Turner.

    1 2 Esta expresso aqui empregada com o sentido que possui no traba-lho fundamental de Foster (1976).

    1 3 Como fcil imaginar (com alguma ajuda de Max Weber), tal esp-cie de religio no conduz necessariamente a um processo generali-zado de racionalizao da sociedade e do comportamento daspessoas.

    1 4 Que no deixava alis de apresentar fortes marcas das religies

    reencarnacionistas originrias do Hindusto.1 5 Sobre as diversas formas de transe nas religies populares do Brasil,

    pode-se ver Motta, 2005.1 6 Sobre esse assunto, consulte-se Motta, 1994 e Motta, 2001.1 7 Era muito aproximadamente a um fenmeno desse tipo que se refe-

    ria o Cardeal Ratzinger, atual Papa Bento XVI, ao falar na tentativade se introduzirem pantomimas na liturgia do Catolicismo.

    1 8 Apesar das Twin Towers.1 9

    E certamente significa, nas palavras de Marx e Engels, que se apli-cam to bem a nosso princpio de sculo como a quando foramredigidas (1848), que a expanso da racionalidade ou, se preferirmos,do esprito do Capitalismo, Afogou os fervores sagrados do xtasereligioso, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burgus nas guas geladas do clculo egosta. [...] Tudo que era s-lido e estvel se esfuma, tudo o que era sagrado profanado(MARX;ENGELS, 1956, p. 23-24).

    2 0 Michel Leiris, observador agudo e admirador entusiasta das religi-es danadas da frica e da Amrica Latina, tinha perfeita consci-ncia da incompatibilidade das religies do corpo com a modernidadeocidental. assim que escreve: Ser outro alm de si, superar-se noentusiasmo e no transe, no ser uma das necessidades bsicas dohomem? Temos de reconhecer o mrito de diversas sociedades, pou-co ou nada industrializadas, por terem sido capazes de criar ou con-servar os meios de satisfazer essa necessidade do modo mais diretoe material, muito alm do alcance de uma organizao social baseada

    na pura produtividade e portanto fechada a tudo que for irracional(LEIRIS, 1958, p. 10).

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    68 Universidade Catlica de Pernambuco

    Mestrado em Cincias da Religio Unicap

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