roberto motta_ escatologia e visão de mundo nas religiões afro-brasileiras
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Roberto Motta - Escatologia e Visão de Mundo nas Religiões Afro-BrasileirasTRANSCRIPT
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Escatologia e Visão do Mundo nas Religiões Afro-Brasileiras
Comunicação apresentada à mesa de trabalho
"Culturas e Religiões Populares na América Latina e no Caribe"
II Conferência Geral da
Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina
CEHILA São Paulo
Julho de 1995
2
Publicado como "Escatologia e Visão do Mundo nas Religiões Afro-Brasileiras", em Sylvana Brandão (org.) - História das Religiões no Brasil, vol. II, Recife, Editora Universitária da Universidade Federal de Pernambuco, 2002, 678 pp.. Pp. 75-107.
Escatologia e Visão do Mundo nas Religiões Afro-Brasileiras
Roberto Motta , Ph.D. Profesor-Titular de Antropologia
Univ. Federal de Pernambuco (Recife)
Resumo As religiões afro-brasileiras apresentam-se em grande variedade, indo de formas estruturadas que tendem cada vez mais a formar igrejas independentes, a grupos informais, voltados sobretudo para a prática de terapias mágicas. Essas religiões se caracterizam por sua orientação intramundana, ao mesmo tempo em que se afastam de toda idéia de ascese. Também não possuem o projeto e um mundo que há de vir, no que se diferenciam de outras religiões brasileiras, inclusive do catolicismo associado à teologia da libertação. Mas não deixam de apresentar ao menos o esboço de mitos messiânicos, representados pela cidade da jurema e pela vaga lembrança de certos heróis libertadores. Além disso, os terreiros afro-brasileiros, numa espécie de curto-circuito apocalíptico, criam seu mundo dentro do mundo, ao qual os fiéis têm acesso através de um percurso iniciático, implicando o renascimento místico do indivíduo e do grupo que, pelo transe, confundem suas personalidades com as dos deuses.
Conteúdo:
Candomblé, Xangô e Tambor de Mina Decadência do Sincretismo
Religiões Urbanas Catimbó, candomblé de caboclo, macumba
Umbanda e Kardecismo Os Novíssimos
Conformismo e Protesto O Curto-Circuito Apocalíptico
Os Heróis e o Reino O Terreiro
Notas
Candomblé, Xangô e Tambor de Mina
As religiões afro-brasileiras formam um conjunto bastante complexo,1 dentro do
qual podemos em primeiro lugar distinguir as variedades com organização eclesiástica
mais desenvolvida, a exemplo do candomblé da Bahia, descrito por Roger Bastide.2
Pertencem à mesma categoria o xangô do Recife,3 que só em alguns detalhes diverge do
candomblé,4 e o tambor de mina de São Luís do Maranhão, este se distanciando dos demais
3
pelo seu substrato fon (ewe), denominado jeje no Brasil, enquanto no resto do país a
influência decisiva é de origem iorubá, vulgarmente conhecida como nagô.
Os cultos desse primeiro grupo possuem um sistema doutrinal tendendo cada vez
mais a fixar-se numa estruturação dogmática; um corpus ritual cada vez mais uniformizado;
e um sacerdócio hierárquico, cujo acesso é reservado aos que passaram por um processo
específico de iniciação ou ordenação. E, apesar de tendências recentes, que vêm levando a
acelerada dissolução dos laços sincréticos, esses cultos também se caracterizam pela
identificação de suas divindades (orixás na Bahia e no Recife, voduns em São Luís do
Maranhão) aos santos e mistérios do catolicismo.
É aliás pelo diabo que começa a mistura. Este, ao mesmo tempo em que perde a
perversidade intrínseca que lhe atribui o dogma cristão, transforma-se em Exu ou Elebará, o
“trickster” dos iorubás e dos fon da África Ocidental. Dono do ferro, das facas, das espadas
e portanto da guerra, Ogum vem a ser São Jorge. O senhor do trovão, Xangô, confunde-se
com São João Batista, que, no Nordeste do Brasil, possui o mesmo atributo. Oxalá, o Velho,
padroeiro da brancura e pai dos deuses, assimila-se a Nosso Senhor, sobretudo na forma
do Senhor do Bonfim, cuja igreja, em Salvador da Bahia, sem nenhum prejuízo de seu caráter
católico e romano, representa, com toda probabilidade, o santuário preferido dos afro-
brasileiros.
Do lado das deusas, Nanã, a Velha, “vó dos orixás”, torna-se Santana. Iemanjá, a
casta, confunde-se com Nossa Senhora da Conceição. Oxum, “dona do ouro”, sincretiza-se
com Nossa Senhora do Carmo, representada com uma coroa de ouro. Iansã, senhora do
raio, mistura-s com Santa Bárbara, a qual, segundo a lenda européia, possui idêntico
atributo.5
O sincretismo não se limita ao plano das personalidades míticas. O calendário da Igreja
também serve ao culto dos orixás. Nos mesmo dias, ou pelo menos nos mesmos ciclos --as
festas têm novenas, vigílias, oitavas--, as liturgias se completam, mas sem confundir-se.6 Em
certos casos, antes da celebração no terreiro,7 assiste-se à missa em determinada igreja. No dia
de Nossa Senhora da Conceição, o correto era, e ainda é, a pessoa sair diretamente do
“presente de Iemanjá” (que correspondendo à estrela do mar e à estrela da manhã, gosta de
receber dons e sacrifícios no oceano, ao qual se vai em procissão um pouco antes do raiar do
dia) para a peregrinação à montanha sagrada. É o morro da Conceição, no qual um grupo
de ricaços, impregnados de catolicismo francês ultramontano, erigiu, no começo do
século XX, uma estátua monumental, em honra da Virgem e da infalibilidade do Papa,
estátua essa que, apesar da origem elitista, possui, para os recifenses, a mesma importância,
4
ou quase, do Senhor do Bonfim para os baianos. Até data ainda muito recente, nenhuma
festa de orixá, com suas danças e transes, podia realizar-se antes da recitação do terço e
de certas ladainhas. Chegava-se mesmo ao ponto de, em plena festa, parar de vez em
quando a dança, para que os fiéis se ajoelhassem e “adorassem” os panos bordados com as
imagens católicas dos santos.8 E não era também verdade que, mesmo em seus atos mais
simples, a religião africana só podia ser legitimamente praticada pelos que tivessem recebido
o batismo do padre?9
Decadência do Sincretismo
O sincretismo constituiu, nas décadas de 30 e de 40, um dos temas preferidos da
pesquisa afro-brasileira.10 O fenômeno certamente ainda subsiste, mas, a partir
aproximadamente de 1970, a tendência principal dos pesquisadores11 vem sendo dar-lhe
importância bem menor, sendo reinterpretado, de acordo com a sugestão de Bastide, como
a “máscara colonial” que os escravos tiveram de usar para preservar sua identidade cultural e
étnica. Pode-se, nesse ponto de vista, reconhecer a influência de um vago populismo,
considerando os negros como uma espécie de classe oprimida, um proletariado que teria
resistido ao opressor justamente pela religião, assimilada a uma pré-consciência de classe
à qual não faltaria certo potencial revolucionário.
Mas a verdade é que têm ocorrido transformações na vivência religiosa, as quais
em grande parte se originam no próprio catolicismo, para o qual o culto dos santos se
torna menos importante, principalmente o culto daqueles santos que, depois de madura
reflexão histórica e arqueológica, resolveu-se que nunca existiram. Ora, entre os santos
“cassados” (como se diz no Brasil) encontram-se figuras centrais da devoção afro-
brasileira como São Jorge e Santa Bárbara. Digamos então que, querendo-o ou não, a
religião afro-brasileira se afasta da Igreja Católica, na medida justamente em que esta se
afasta do catolicismo tradicional ibero-americano. Pois a Igreja repudia essa religiosidade,
largamente orientada para o alívio das aflições do quotidiano, e volta-se --é
eminentemente o caso da teologia da libertação-- para um projeto histórico de
transformação da sociedade.12 Ora, as ligações sincréticas do candomblé faziam-se
essencialmente com o catolicismo popular, baseadas que estavam, ao nível das estruturas
profundas, na equivalência entre o culto dos santos e o dos orixás, com os quais os fiéis
estabeleciam relações de clientela e vassalidade.
Religiões Urbanas
Observemos ainda que o candomblé e suas variantes regionais (xangô, tambor
de mina) constituem fenômeno essencialmente urbano. Suas bases se encontram em certas
5
grandes cidades litorâneas --nunca, ou quase nunca, no interior ou em áreas de agricultura--
as quais têm historicamente servido como portos para o escoamento das grandes plantações
de cana-de-açúcar ou, secundariamente, de tabaco ou algodão. E tudo leva a crer que o
candomblé não fosse propriamente uma religião de escravos. Pois sua base social originária
parece sobretudo encontrar-se numa plebe urbana, talvez mesmo numa pequena burguesia
negra, composta de pequenos comerciantes, artesãos, prestadores de serviços, cada vez mais
absorvidos pelo setor informal tão característico das cidades brasileiras. A experiência
social dessa camada, condicionada por um regime de produção e troca direto e concreto,
por relacionamentos personalizados, face to face, é sem dúvida afim ao caráter
extremamente concreto, às vezes até mesmo brutal, da liturgia afro-brasileira, cujo rito
fundamental outro não é que o sacrifício sangrento de animais. Ora, o crescimento do
setor informal não deixa, a seu modo, de representar uma consequência do processo de
desenvolvimento econômico. Pois tal setor é essencialmente constituído daqueles que o
processo de modernização rejeitou ou abandonou. As religiões afro-brasileiros vêm portanto
a significar o reflexo, mas o reflexo invertido da modernização da sociedade brasileira.
E essa inversão nos ajuda a entender o paradoxo derivado da coexistência do
candomblé, o qual passa no momento por acelerada expansão do número de seus adeptos,13
com as mais avançadas manifestações da modernidade brasileira. Estamos aqui diante do
exato oposto, tanto da correlação entre o “mundo real” do “trabalho homogêneo” e as
religiões do “homem abstrato” em seus “desenvolvimentos burgueses: protestantismo,
deismo, etc”, postulada por Karl Marx no primeiro capitulo de O Capital, como da ligação
entre capitalismo moderno e racionalidade religiosa, tal como a concebe Max Weber na
introdução aos seus Ensaios Reunidos sobre a Sociologia da Religião.
Isso dito, nada impede que se reconheça uma sutil afinidade entre a modernidade,
pelo menos brasileira, e o candomblé. Aquela abandona as noções cristãs de pecado
(“original” ou “atual”) e culpa. E este não poderia atribuir menor importância às mesmas
noções. Muito representativa, neste particular, é a atitude de um famoso babalorixá, o
pranteado João da Goméia, o qual, no dizer de seu biógrafo:
Desde menino, foi muito religioso. Frequentava sempre a Igreja e era amigo de padres e de freiras. [...] Candomblecista e católico convicto, Joãozinho da Goméia frisava sempre que o candomblé não impõe uma moral, como as demais religiões, e não se preocupava com o que lhe sucederia após a morte.14
E desse modo a religião afro-brasileira resolve um problema comparável ao da
quadratura do círculo, permitindo conciliar uma experiência religiosa que chega até a fusão
6
mística do fiel com o divino, com ampla permissividade, inclusive no domínio sexual, o
que por certo não lhe traz desvantagens na disputa com outras religiões, seitas e
movimentos, pela conquista do mercado brasileiro dos bens e serviços mágico-religiosos.
Catimbó, candomblé de caboclo, macumba
Ao lado do candomblé e de suas variantes regionais, que representam, por assim dizer,
a forma “clássica” de religião afro-brasileira, encontram-se também cultos menos
estruturados, de aspecto mais marcadamente mágico que religioso. Apesar dos numerosos
africanismos que hoje em dia os caracterizam, tudo leva a crer que tais cultos --que já
podemos reconhecer em documentos da Inquisição, datados de fins do século XVI e
reproduzidos em Vandezande 1974-- consistissem, em suas versões originárias, de um
sincretismo entre certas práticas de origem indígena e a religião popular luso-brasileira.15
O catimbó da região do Recife, bem como o seu equivalente de Salvador, denominado
candomblé de caboclo,16 é fundamentalmente o culto dos mestres, espíritos curadores de
origem páleo-luso-brasileira, e dos caboclos, que são igualmente espíritos curadores, mas de
origem ameríndia. A essas duas influências, parece que desde o princípio se juntaram alguns
traços da religião dos ciganos hispano-portugueses. É assim que se reencontra no catimbó
o espírito de Maria Padilha, venerada pela Carmen de Prosper Mérimée, junto com toda
uma categoria de espíritos ciganos, complementar às dos mestres e caboclos.
Faltam documentos sobre a pré-história da macumba do Rio de Janeiro. Podemos
entretanto supor que no princípio se tratasse, na antiga capital do País, do equivalente ao
catimbó do Recife e ao candomblé de caboclo de Salvador de Bahia. Seriam portanto
grupos mais informais e dirigidos por carismáticos e orientados para o alivio das aflições
do quotidiano. O que a macumba17 tem de mais específico é a importância que atribui a
Exu, ou aos exus, que o candomblé concebe como mensageiros ou mesmo como
“escravos” dos orixás, e que se tornam entidades autônomas, na realidade as principais
divindades dessa forma de religião, as quais, partindo do Rio, vêm fazer concorrência aos
mestres, aos caboclos, aos ciganos e a outros espíritos das tradições regionais.
Macumba, catimbó, candomblé de caboclo, constituem cultos menos estruturados
do que candomblé, xangô, ou tambor de mina. Estes desde o princípio formaram
congregações hierarquizadas, as quais, neste momento de rutura das ligações sincréticas
com a Igreja Católica, tendem a cada vez mais transformar-se em igrejas independentes,
disputando com outras igrejas, seitas e movimentos a conquista do mercado religioso. Por
outro lado, catimbó e equivalentes não requerem, em regra geral, o acionamento de um
processo iniciático, com seus custos e complicações. De fato, o grosso da clientela dos
7
cultos menos estruturados provém atualmente do sub-proletariado das grandes cidades, o
qual não possui bastante capacidade econômica para enfrentar os custos inerentes aos
ritos, em princípio considerados como mais eficazes, do candomblé ou do xangô.
Umbanda e Kardecismo
Podemos ainda reconhecer uma terceira categoria de religião afro-brasileira. É a
umbanda, que tenta reinterpretar a tradição popular através de uma teologia que invoca a
inspiração de Allan Kardec (pseudônimo de Leon Rivail, cujo Livre des Esprits foi
publicado em 1857). Orixás, exus, mestres, caboclos, ciganos e “tutti quanti” passam a ser
vistos como espíritos situados em certo nível de evolução espiritual e que, de acordo com
esse nível, são capazes de ajudar ou prejudicar a humanidade presentemente incarnada. O
doutrinamento mútuo desempenha importante papel nesse contexto, alguns espíritos --entre
eles os orixás e determinados caboclos-- sendo considerados como mais avançados e
outros --entre eles os exus e determinados mestres que lhes são assimilados-- como mais
atrasados do que a média das pessoas.
Pois a noção de progresso ocupa posição central no espiritismo kardecista e na
umbanda por ele influenciada. É em primeiro lugar o “desenvolvimento” do indivíduo,
passando pelo de sua “mediunidade”. Mas é um progresso que se faz ao longo de
infindáveis reincarnações terrestes e extra-terrestes. Concebe-se a Terra como “planeta de
expiação”, outros astros, entre os quais por excelência Júpiter, sendo lugar de uma existência
bem mais evoluída, o que sem dúvida vem a representar concepção excessivamente
etérea do mundo que há de vir.
A umbanda significou uma espécie de reforma dos cultos tradicionais. Seu ponto de
partida se encontra na convicção de que o povo brasileiro necessita de comunicar-se com
espíritos apropriados a seu grau de civilização. O que logo acarreta um dilema. Se se
conservam os espíritos “primitivos”, por que também não se conservam os ritos tradicionais?
Ou então por que não recusar definitivamente tudo que é popular, buscando o contacto
direto com as entidades da tradição européia?
E aí se acham as razões que explicam tanto que a umbanda, no sentido estrito da
palavra,18 só tenha afinal atingido uma minoria de devotos, como o sucesso, para muitos
ininteligível, da contra-ofensiva dos cultos mais tradicionais. Pois o candomblé não cessa de
aumentar nas cidades mais modernas do País, recrutando novos adeptos entre gente de todas
as cores e de todas as origens, inclusive na cidade de São Paulo, onde não se registrava a
presença de tradição religiosa afro-brasileira.
8
Os Novíssimos19
As religiões afro-brasileiras orientam-se essencialmente para o alívio das aflições
deste mundo, neste mundo, e se preocupam muitíssimo pouco com o que possa acontecer
depois da morte. O conceito afro-brasileiro de santidade (axé) confunde-se com os de força
e de saúde. Tal é o horror que a morte provoca,20 que os ritos funerários afro-brasileiros
consistem numa verdadeira dessacralização ou "desiniciação". Na iniciação havia sido
instalada no corpo do fiel, sobretudo em sua cabeça, a presença física, material, da
divindade, tanto mais que, nessa religião, que não compartilha a separação, característica
das religiões européias, entre corpo e alma, não se chega tampouco a conceber outras formas
de presença. Trata-se agora, antes do sepultamento, de retirar do morto todo vestígio de
santidade. Os deuses são deuses de vivos e não deuses de mortos. Somente Iansã --Iansã
egun nitá, Iansã vencedora dos fantasmas-- é que pode, em certas circunstâncias, enfrentar
a morte e penetrar nos cemitérios.21
Na verdade, os devotos acreditam na sobrevivência do egun, o fantasma que ronda
os lugares por onde viveu. Todo terreiro mais ou menos tradicional se acha na obrigação
de possuir o seu quarto de balé, no qual recebem sacrifício o egun, ou os deuses a ele
associados, entre os quais Iansã, que é senhora de todos os eguns. Porém a respeito da
imortalidade da alma em sentido mais estrito, suas noções são muito vagas e não deixam de
lembrar as dos antigos gregos. Para a mentalidade afro-brasileira, como é geralmente o
caso das religiões populares, ou a devoção trará algum proveito para a vida do fiel neste
mundo, ou não servirá mais para nada.
Neste ponto, como em outros, a atitude arquetípica é a de João da Goméia, o qual,
como já vimos, “não se preocupava com o que lhe sucederia após a morte”. Outra não era,
no Recife, a opinião do finado Mário Mirando, que, como várias vezes pude escutar,
gostava de exprimir-se a sua congregação do seguinte modo:
Quando a pessoa morre, acabou-se. Sabe o que é o céu? Quando morre uma pessoa boa, o povo diz, “que pena, vamos rezar por ele”. Quando é um homem ruim, todo mundo diz “já morreu tarde, caixão nele”. O inferno é essa vida aqui mesmo. Quem foi que falou em diabo? Eu não acredito em nenhum diabo. O diabo é o olho grande do povo. Nessa vida eu acredito mesmo é em três deuses: Exu, dinheiro e a polícia.
Tais declarações de radical agnosticismo em nada aliás impediam meu pranteado
informante e amigo de, no decorrer da mesma alocução, solicitar a seus fiéis e amigos
9
que lhe trouxessem 400, 500 frangos para a grande obrigação na véspera do dia de Exu (24
de agosto).
É que o candomblé, finalmente, está voltado para questões relativas ao trabalho e
ao dinheiro, à saúde, ao amor e ao sexo. Ele se caracteriza pela ausência de um projeto de
transformação do mundo ou dos indivíduos. Longe de querer mudar a ordem (ou a
desordem) da existência, o que lhe importa é dela aproveitar-se ao máximo, através
tanto da manipulação mágica do quotidiano, quanto do acionamento das redes de clientela
que sempre se formam ao redor dos terreiros.
Notemos também que se trata de uma religião boa para comer.22 Pois o rito central
do candomblé-xangô outro não é que a oferta de alimentos aos deuses, os quais logo os
partilham com seus devotos. Na véspera das festas dos orixás é normal, como se fazia em
casa de Mário Miranda, que se matem cinco ou seis bichos de quatro pés (cabras, bodes,
carneiros), além de cerca de 40 aves. É também na região do Recife que Pai Edu (o qual
hoje aparece com frequência na televisão italiana), mata ou faz matar perto de 500 frangos
para a festa do seu Exu, ao mesmo tempo em que reune em sua casa, para banquetes bem
irrigados, intelectuais, jornalistas, damas da alta sociedade... A finada Badia, cujo terreiro
ficava bem no centro do velho Recife, jamais oferecia, no aniversário de sua iniciação,
menos de 15 quadrúpedes, acompanhados de 45 galináceos. E pai Raminho, que não gosta
de perder para ninguém quando se trata dos esplendores da liturgia, lançou recentemente a
moda dos sacrifícios de bois, matando,dentro de seu terreiro, quatro ou cinco deles quando
das grandes cerimônias do mês de agosto.23
Somente pode falar de xangô ou de candomblé aquele que já assistiu, às vezes dentro
de um pegi (capela) de menos de dez metros quadrados, a uma dessas grandes cerimônias. Aí
se acha a essência da religião.24 Cabeças cortadas, cheiro do sangue que escorre e
impregna as roupas dos circunstantes, libações, alegria, gritos de glória, passos de
dança sobre o chão vermelho, êxtase.
A estrutura básica do candomblé se configura no “contrato diádico”25 que se
estabelece entre o deus e o homem, pelo qual este se compromete a “dar de comer” àquele,
através do oferta de vítimas sacrificiais, na verdade também do seu próprio corpo, para que
o deus possa se manifestar pela dança e pelo transe. Em compensação, o orixá dá ao fiel
proteção e apoio na gerência do seu quotidiano e nas crises de sua existência, ao mesmo
tempo em que lhe faz o dom de uma nova identidade, instalada na cabeça do homem
pelos ritos de iniciação, e que influencia cada um de seus gestos e atitudes.
10
Os fiéis não atribuem importância a princípios abstratos, nem a concepções
abstratas do bem e do mal. Essas categorias são negociadas de acordo com as
circunstâncias, nada excluindo que o que é bom, desde certo ponto de vista, seja mau a partir
de outro. Digamos que eu deseje um lugar na Universidade Federal de Pernambuco e que eu
solicite a ajuda do Alto para conseguir esse objetivo. Essa ajuda me será concedida,
acredita-se, mesmo se for preciso que alguma coisa aconteça ao atual ocupante do cargo...
Mas meu rival pode também apelar para uma ajuda do mesmo gênero. Ocorrerá então uma
guerra mágica, na qual os deuses --principalmente Exu, que participa com prazer de tudo que
se assemelha a feitiçaria-- prestarão especial atenção à quantidade e à qualidade dos
presentes que lhes forem ofertados...
É também costume dar sacrifícios preventivos. Uma vez que eu estava em casa de Pai
M. C. por ocasião de um desses rituais, ele me sugeriu que eu escrevesse o nome de um
inimigo num pedacinho de papel, que o dobrasse e colocasse em cima do altar de Exu.
Notando que eu hesitava, o pai-de-santo me passou enérgico carão:
O que, você está com pena? Olhe bem, se você estivesse num campo de batalha, você não matava, se você podesse, dez, cem, mil inimigos, com a condição de você ficar vivo? Pois a vida é um campo de batalha. Se você tiver pena dos inimigos, fique certo que eles não vão ter pena de você. Faça logo o que eu estou mandando, porque você haverá de ter muita gente que tem inveja de você.
Também não existe, nessa forma de religião, um projeto de mudança social. O
mundo é aceito tal como se apresenta à experiência quotidiana dos devotos,26 sem que se
cogite de transformá-lo e isso tanto menos porque, de acordo com a mentalidade dos
filhos-de-santo, quanto mais o mundo mudar, mais vai ficar como era. Mas se admite sem
dificuldade que alguns indivíduos, com ajuda dos orixás, possam ocasionalmente trocar de
lugar com outros indivíduos.
Conformismo e Protesto
A religião afro-brasileira se caracteriza portanto por sua atitude essencialmente
“naturalista”, não-ascética, o que acarreta certo conformismo com relação ao status quo. Por
aí ela se distingue de outras formas de religião, que com ela coexistem dentro da sociedade
brasileira. É assim que o candomblé se separa do pentecostalismo, entre outros traços por
causas da importância que este atribui à racionalização ascética do comportamento dos seus
fiéis. Efetivamente, é paradoxal que pessoas provenientes exatamente dos mesmos
ambientes sócio-econômicos, como os filhos-de-santo e os crentes,27 possam fazer escolhas
religiosas tão diferentes.
11
Já se quis explicar essa alternância pela importância que ambas religiões atribuem ao
transe. Mas não nos enganemos. Nada existe, no transe pentecostal, que corresponda ao
caráter abertamente, intensamente passional do transe do candomblé, que representa a
eclosão das emoções fundamentais do ser humano, e nunca sua negação ou controle ascético.
O candomblé se pratica em meio aos fluidos que exprimem e transmitem a vida. O suor dos
dançantes, o sangue dos animais sacrificados, o sangue que escorre das cabeças dos
fiéis no momento das incisões iniciáticas. Nem o candomblé se opõe a outras efusões,
pois se trata de uma religião que considera a atividade sexual como perfeitamente
indiferente aos deuses ou mesmo, ao menos em certas circunstâncias, como diretamente
influenciada por suas preferências.28
Podemos conceber o pentecostalismo, bem como outras seitas e igrejas de
inspiração evangélica, como formas de protesto social simbólico, na medida em que
pregam a reversão das condições, os primeiros se tornando os últimos e os últimos os
primeiros, mas isto em plano puramente sobrenatural e num mundo que há de vir. A religião
afro-brasileira vai também apresentar contraste acentuado com os movimentos inspirados
pela teologia da libertação, que envolve uma forma de protesto que ultrapassa o plano
puramente simbólico, visando uma transformação efetiva deste mundo, e isto a curto prazo
histórico e devido à ação dos próprios fiéis.29
O candomblé se afasta igualmente dos numerosos movimentos apocalípticos e
messiânicos do interior do Brasil, sobre os quais se dispõe de vasta bibliografia.30 O
messianismo camponês representa, com certeza, protesto efetivo e não só imaginário,
contra o sofrimento e a opressão das massas, mas sem que esse protesto acarrete o projeto de
construção de uma nova sociedade. Seria mais a volta à idade de ouro... Como escreve
M.I. Pereira de Queiroz:
Os messias camponeses não exigem a transformação da estrutura social, mas a substituição ou o afastamento de certos chefes locais, a mudança dos governantes. A hierarquia inaugurada pelos messias é a cópia da antiga. Os líderes rústicos ficam no topo da escala; tudo é submetido a sua autoridade na vida da comunidade, eles regulam a vida de seus adeptos em todos os detalhes: família, economia, política, religião. Exercem o mesmo poder dos chefes politicos. Não se trata de uma destruição da antiga hierarquia, que seria substituída por uma nova hierarquia, mas da substituição dos chefes e das pessoas no contexto da mesma hierarquia, operação que se reveste de um sentido sagrado.31
Ora, o candomblé representa por excelência a religião da negociação, da astúcia, do
acomodamento, sem jamais exigir a substituição das hierarquias deste mundo. Em
12
compensação, como em seguida veremos, possui suas próprias hierarquias e seu próprio
mundo.
O Curto-Circuito Apocalíptico 32
Apesar do naturalismo e do conformismo que as caracterizam, as religiões afro-
brasileiras envolvem a criação de um novo mundo, de um novo céu e de uma nova terra, dos
quais se excluem toda mágoa e toda lágrima. Porque finalmente o que significa a
assimilação do fiel ao deus, na festa e na alegria, através da dança e do transe, se não o
esforço do homem para deter o tempo e anular a morte, a passagem desta vida,
precária, incerta, contingente, à estabilidade, à certeza, à verdade dos deuses?
Como salienta Vittorio Lanternari:
A própria cultura, enquanto tecido de valores e sentidos confiáveis, não é outra coisa senão a resposta criativa, regeneradora do homem em sociedade, confrontado ao risco radical da morte, à catástrofe sem resgate: ao risco apocalíptico.33
Os Heróis e o Reino
Mas antes mesmo de destacar o papel apocalíptico da festa, da dança e do transe,
notemos que se pode também encontrar, em certos ritos afro-brasileiros, sobretudo no
catimbó, a vaga lembrança de alguns heróis libertadores. É assim que certos hinos se
referem a Rei Canindé, o chefe do último grande esforço de resistência dos índios do
Nordeste à penetração luso-brasileira, a chamada Guerra dos Janduins, que explodiu
depois de terminada a ocupação holandesa da região, em 1650. Do mesmo modo, a figura
de Mestre Malunguinho seguramente corresponde à lembrança de um líder das revoltas de
escravos que, na região do Recife, ocorreram em princípios do século XIX.34
O hinário do catimbó faz frequentes referências à cidade e ao reino da Jurema, onde
moram os caboclos e os mestres e que representam a memória utópica de uma idade de
ouro. A cidade da Jurema se encontra também personificada na cabocla Jurema, que canta
no seu ponto: “Eu sou uma cabocla que vem lá das aldeias, carregando flores, mas eu sou
frecheira”.
E jurema é também o nome de uma bebida alucinógena, ainda hoje abundantemente
consumida na cidade do Recife, que proporciona acesso imediato ao Reino, com o seu
poder e a sua glória.35
O Terreiro
As religiões afro-brasileiros não se preocupam, conforme já foi visto, em mudar
este mundo. E nem tampouco cuidam da criação de um mundo que há de vir em futuro
remoto, ou de uma vida que começa com a morte. Para os seus adeptos, pode até
13
acontecer que essas coisas existam, mas elas não lhes interessam. Quem quiser trabalhar para
a salvação da alma, que procure o padre da paróquia... Em compensação, os filhos-de-santo
edificam, nesta vida, o seu próprio mundo, que se superpõe ao mundo ordinário. É o
mundo dos terreiros, com suas hierarquias, suas regras, seu calendário, sua língua, sua
economia.
Os fiéis possuem uma espécie de dupla cidadania. Pertencem à sociedade brasileira
e, sem nem por isso repudiá-la, pertencem também à sociedade “africana”. É desta que lhes
advém seu novo nome, essa identidade que se constitui através do percurso iniciático.
Este se inaugura por uma sessão do jogo dos búzios, através do qual um dos deuses anuncia
seus direitos à cabeça, isto é, à alma do devoto. O passo seguinte é o ebori, a comida da
cabeça, sacrifício oferecido à cabeça, que é ao mesmo tempo alma do noviço e seu ponto
de fusão com a divindade, para que a cabeça, ou, em linguagem mística, o ori , possa
enfrentar as provações subsequentes. Depois vem o amassi, consistindo num batismo --que
não substitui, mas se acrescenta ao batismo católico--, uma lavagem da cabeça com água
misturada ao sumo de certas ervas e folhas. A essa cerimônia, segue-se o assentamento, a
fixação do orixá numa pedra ou pedaço de metal, que a partir de então o devoto terá
obrigação de nutrir periodicamente com o sangue das vítimas sacrificiais. O ato supremo e
definitivo é a consagração da cabeça do iniciando, por meio de cortes e incisões, do
derramamento do seu sangue, que se mistura ao sangue dos animais.
O homem se tranforma no deus, mas é também verdade que este precisa do corpo de
seu fiel, para que possa se manifestar. Pois o que não se manifesta, não existe. Como
dizia George Berkeley, o grande filósofo inglês, “ser é ser percebido”. E por isso a
iniciação termina com a grande festa do reconhecimento e da transparência.
No primeiro ou segundo domingo que se segue à consagração da cabeça, o
neófito é solenemente apresentado à comunidade do seu terreiro, dos terreiros aliados ao
seu e à sociedade, de modo geral. É a festa da iaô, da jovem noiva, mesmo quando se trata
de um homem, consagrado a uma divindade masculina. Como em qualquer outra festa,
começa-se cantando para Exu, Ogum, Odé, etc, segundo a ordem do ritual. Mas quando
chega o momento em que o sol começa a cair, o pai-de-santo interrompe a solenidade.
Agora é o noviço que vai brilhar. Vestido com a roupa, carregando as insígnias de seu orixá,
ele deixa o pegi, a capela em que se recolhera durante as últimas semanas, para meditar e
impregnar-se com o caráter, as preferências, os gestos do seu Senhor.
Duas ou três vezes, a iaô, em estado de transe, faz a volta da sala, enquanto os
presentes a aclamam, jogando-lhe grãos de arroz. Ela então declara a sua digina, seu nome
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novo, que exprime um aspecto da personalidade do deus a que se assimila. Pouco a pouco
o transe se generaliza. Se a iaô é filha de Oxum, primeiro vêm as outras Oxuns. Com mais
um pouco chegam os demais orixás e toda a comunidade participa do mesmo êxtase. E aí,
mesmo se nós sabemos que as desigualdades, inclusive as desigualdades dentro do terreiro,
não desapareceram, que continuam a existir pobres e ricos, que a dor nos cerca e que nós
morreremos, encontramos neste momento, eterno enquanto dura, a pureza original do
paraíso. Os amanhãs não cantam, mas que importa? Agora nós cantamos. Caimos no poço
sem fundo deste instante. Para, és belo!
Notas 1Justamente por causa dessa variedade, Roger Bastide denominou seu livro mais conhecido As Religiões Africanas no Brasil (São Paulo, Pioneira, 1970). 2O qual forma o assunto específico de outro livro importante de nosso autor, O Candomblé da Bahia (Rito Nagô), São Paulo, Companhia Editora Nacional, 3a. edição, 1978. 3Embora minha pesquisa tenha se estendido a várias cidades brasileiras (inclusive São Luís do Maranhão), foi no Recife sobretudo que realizei o vasto trabalho de campo que se encontra na base de meus trabalhos publicados sobre o tema, no Brasil e no estrangeiro, entre os quais “Comida, Família, Dança e Transe: Sugestões para o Estudo do Xangô” (Revista de Antropologia, São Paulo, vol. XXV, 1982, pp. 147-157); “A Eclesificação dos Cultos Afro-Brasileiros”(Comunicações do ISER, ano 7, no. 30, 1988, pp. 31-43); “Indo-Afro-European Syncretic Cults in Brazil: Their Economic and Social Roots” (Cahiers du Brésil Contemporain, Paris, Maison des Sciences de l'Homme, no. 5, 1988, pp. 27-48); “Transe, Sacrifício, Comunhão e Poder no Xangô de Pernambuco” (Revista de Antropologia, São Paulo, vol. 34, 1991, pp. 131-142); “Ethnicité, Nationalité et Syncrétisme dans les Religions Populaires Brésiliennes” (Social Compass, International Review of Sociology of Religion, Proceedings of the 22nd Conference on the Sociology of Religion, 1994, pp. 67-78); “Le Geste et Le Corps dans la Religion Afro-Brésilienne”, (Social Compass, v. 42, n. 4, 1995, pp. 477-486); “O Xangô do Recife: Sacrifício, Mesa e Festa” (em Danielle Rocha-Pitta e Rita Maria Costa Mello, orgs., Vertentes do Imaginário, Recife, Editora Universitária, 1995, pp. 107-114); “La Modernità del Feticismo: Scienziati Sociali, Riunioni, Incontri e la Formazione della Chiesa Afro-Brasiliana”, (in Identità e Mutamento nel Religioso Latinoamericano: Teorie e Ricerche, a cura di Roberto Cipriani, Paula Eleta, Arnaldo Nesti. Milano: FrancoAngeli, 1997, pp. 245-256); “Afrobrasilianische Kulte” (in Religion in Geschichte und Gegenwart: Handwörterbuch für Theologie und Religionswissenschaft, Tübingen: Moher Siebeck, 1998, 170-173); “Religiões Afro-Recifenses: Ensaio de Classificação” (em Carlos Caroso & Jeferson Bacelar, orgs., Faces da Tradição Afro-Brasileira. Rio de Janeiro: Pallas; Salvador, BA:CEAO, 1999, pp. 17-35), etc.. 4O termo candomblé será muitas vezes usado, no decorrer desta comunicação, para designar todo o conjunto das religiões afro-brasileiras. 5Essas correspondências, predominantes no xangô do Recife, não são sempre as mesmas de Salvador ou do Rio de Janeiro. 6Foi essa quase completa ausência de confusão que me levou a falar de sincretismo vertical ou metafórico entre o candomblé e o catolicismo. Este funcionava para aquele como uma espécie de metalíngua, permitindo que o candomblé, o qual, pelo menos na origem, não possuia um sistema teológico racionalizado, se pensasse e se representasse a si mesmo. Era assim que as imagens católicas dos santos geralmente se colocavam (o que ainda
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continua largamente a ser praticado), no interior dos pegis (santuários afro-brasileiros), em prateleiras situadas acima das pedras e dos ferros, nos quais, segundo a crença africana, reside a força (axé) dos deuses. Santos e orixás sendo as metáforas uns dos outros, nunca ou quase nunca apareciam no mesmo nível icônico nem no mesmo contexto ritual. Os fiéis os separavam em cerimônias diferentes, ou pelo menos em momentos diferentes das mesmas cerimônias. Tratava-se também de uma sincretismo assimétrico. Pelo menos até data ainda bem recente, o clero católico, apesar de certa tolerância implícita enquanto a religião afro-brasileira não se apresentou como igreja independente e rival, jamais teria admitido a fusão, mesmo puramente metafórica, entre os santos e os orixás. Mas essas restrições de modo algum impedem o sincretismo afro-católico, por vertical ou metafórico que possa ser, de estar fundado, ao nível da estrutura profunda, sobre a continuidade, e portanto sobre o relacionamento metonímico, entre o culto dos santos no catolicismo popular e o “contrato diádico” que une o fiel afro-brasileiro a sua divindade. 7O terreiro, como a igreja cristã, representa ao mesmo tempo o lugar do culto e a congregação afro-brasileira. À sua frente encontram-se sacerdotes (pais-de-santo, babalorixás) e sacerdotisas (mães-de-santo, ialorixás). Os fiéis são os filhos-de-santo. 8Era pelo menos o que acontecia, no Recife, nos terreiros de tradição xambá, considerados, nessa cidade, como um dos ritos ortodoxos, ao lado dos ritos nagô, jeje e congo. Mas todas essas tradições, muitas vezes chamadas nações, encontram-se fortemente marcadas pela influência ritual e mitológica dos Iorubas da África Ocidental, cujo idioma, em versão arcaica conhecida no Brasil como nagô, tornou-se a língua geral da diáspora afro-brasileira, salvo no Maranhão e na Amazônia, onde tem de enfrentar a concorrência do jeje (fon), originário do que hoje em dia corresponde à República do Benin. 9E acontecia que os terreiros se revelassem autênticos conservatórios de tradições católicas, há muito abandonadas pela Igreja oficial. Onde mais se iria escutar certa ladainha de São João Batista, a não ser num terreiro do Recife, alguns quartos de hora antes das danças e dos transes em honra de seu alter ego afro-brasileiro, o orixá Xangô? 10Arthur Ramos, em O Negro Brasileiro (Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1940, 2ª ed.) e Waldemar Valente, em Sincretismo Religioso Afro-Brasileiro (São Paulo, Companhia Editora Nacional, Brasiliana 280, 1955) são exemplos eminentes da tendência filo-sincrética. 11O exemplo arquetípico da tendência ânti-sincrética é o livro de Juana Elbein dos Santos, Os Nagô e a Morte (Petrópolis, R. J., Vozes, 1976), o qual, desde seu aparecimento, não parou de influenciar a pesquisa afro-brasileira. De fato, muito antes queessa tendência se generalizasse entre os pesquisadores, a partir dos anos 70, ela já se encontrava nos trabalhos de Edison Carneiro (Religiões Negras, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1936; Negros Bantus, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1937). Este autor, que não tem gozado da reputação que certamente mereceu, exerceu decisiva influência sobre Roger Bastide, o qual, apesar de seu “politeismo” teórico e empírico, falava muito de “pureza africana” e considerava o candomblé --é o argumento central de seus dois livros principais sobre o assunto- - como a sobrevivência, no Brasil, de uma África que coexistiria com a sociedade brasileira, mas sem jamais com esta fundir-se. 12Na realidade, se bem que o distanciamento da Igreja com relação à religião popular se torne bem mais forte nas últimas décadas dos século XX, trata-se de processo bem mais antigo, ligado ao que Gilberto Freyre (Sobrados e Mocambos, Rio de Janeiro, José Olympio, 1936) chamou a “reeuropeização” do catolicismo brasileiro, que já se evidencia a partir da segunda metade do século XIX. Essa idéia, retomada por Roger Bastide (“Religion and Church in Brazil”, in T. Lynn Smith & Alexander Merchant, eds., Brazil: Portrait of Half a Continent , New York, Dryden Press, 1951), o qual prefere falar de “romanização” e depois por historiadores como Ralph della Cava (Miracle at Joaseiro,
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New York, Columbia University Press, 1970) e Thomas Bruneau (The Political Transformation of the Brazilian Catholic Church, London, Cambridge University Press, 1970), tornou-se uma das idéias centrais da pesquisa histórica e sociológica sobre a religiosidade brasileira, conforme o exemplo do livro de Pedro Ribeiro de Oliveira, Religião e Dominação de Classe: Gênese, Estrutura e Fundação do Catolicismo Romanizado no Brasil, (Petrópolis, Vozes, 1985). Ora, essa “reeuropeização”, que atinge sobretudo o catolicismo de certa elite social e intelectual, levando-o a uma orientação mais ética e mais social, provoca indiretamente um vazio na religião popular, ocasionando o surgimento de outras igrejas ou para-igrejas, inclusive de um candomblé cada vez mais “reafricanizado”, as quais tentam assumir a herança do antigo catolicismo tradicional. 13É o que destaca Reginaldo Prandi, em seu livro Os Candomblés de São Paulo: A Velha Magia na Metrópole Nova, São Paulo, Hucitec, 1991. Hucitec, 1991. 14 Paulo Siqueira, Vida e Morte de João da Goméia, Rio de Janeiro, Náutilus, 1971, pp. 91-92. 15Sobre a história do catimbó, vejam-se Luís da Câmara Cascudo, Meleagro : Depoimento e Pesquisa sobre a Magia Branca no Brasil. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora. 1951 ; René Vandezande, Catimbó: Forma Nordestina de Religião Mediúnica, Recife, dissertação de Mestrado em Sociologia, Universidade Federal de Pernambuco,1975. 16Aos quais correspondem, na região do Maranhão e na Amazônia, os ritos da pajelança. 17Sobre a macumba do Rio de Janeiro, consulte-se, entre outros, Arthur Ramos, O Negro Brasileiro, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1940; Georges Lapassade & Marco-Aurélio Luz, O Segredo da Macumba, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1972; Luciano Arcella, Rio Macumba, Roma, Bulzoni, 1980. 18A verdade é que o termo umbanda é decididamente polissêmico. Até os anos 40 deste século, significava mais ou menos a mesma coisa que macumba (ver Arthur Ramos, op. cit.). Foi então adotado, mas com sentido bem diferente, pela corrente reformadora imbuída de idéias kardecistas, cujas bases se encontravam justamente na região do Rio de Janeiro. Mas o movimento umbandista é bastante complexo. Ainda que muitos pesquisadores, seguindo a sugestão de Diana Brown (Umbanda: Religion and Politics in Brazil , Ann Arbor, MI, UMI Research Press, 1986), compreendam por umbanda o culto mais afastado do modelo africano, às vezes denominado umbanda branca, outras variedades, menos desafricanizadas, conservando o ritualismo do candomblé, mas ao mesmo tempo adotando uma teologia influenciada pelas idéias de Kardec, consideram-se igualmente umbandistas. Finalmente a palavra pode ser também empregada, em certos contextos, para designar todo o domínio religioso afro-brasileiro. 19Este termo está aqui empregado com sentido técnico derivado do catecismo católico. Neste, os quatro novíssimos são morte, juízo, inferno e paraíso. 20Os afro-brasileiros parecem seguir ao pé da letra os versos de um poeta popular: "A vida é jardim florido/a morte é o fim de tudo". 21Pode-se conjeturar que a associação com os fantasmas por parte dessa deusa --mais ou menos correspondente à Persefone ou Proserpina da mitologia greco-romana--, que é também senhora do raio e da ventania, derive da assimilação da alma a uma espécie de sopro. 22Desenvolvo essa opinião em minha tese de doutorado, RobertoMotta, Meat and Feast: The Xangô Religion of Recife, Brazil, Department of Anthropology, Columbia University, New York, 1986. Ver também meu artigo, “La Rationalité dans la Magie: Economie du Xangô de Recife”, em Jeux d'Identités: Etudes comparatives à partir de la Caraïbe, sous la direction de Marie-José Jolivet et Diana Rey-Hulman, L'Harmattan, Paris, 1993, pp. 355-365.
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23Sobre os sacrifícios de bois em casa de Raminho, veja-se o artigo de Jean Ferreux, “Possessions à Recife”, Galaxie Anthropologique, n. 4-5, Possessions: Fastasmes, Mythes et Ravissements, pp. 53-58, 1993. 24Aí se acha a essência não apenas da religião afro-brasileira, mas da religião, em geral, com o que Sigmund Freud certamente concordaria, pois para o autor de Totem e Tabu as religiões com projetos éticos não seriam mais do que transposições, noutra clave, das religiões sacrificiais. Mas o caráter primordial do sacrifício não precisa de justificativas psicanalíticas. Tudo, nas igrejas cristãs, gira em torno do sacrifício da Cruz, do qual a missa católica não pretende ser mais que a “reapresentação” incruenta. Não faltam portanto boas razões a Walter Burkert para dizer que “A maior experiência que o devoto pode ter do deus encontra-se não na conduta piedosa, ou na prece, no canto e na dança, mas no golpe mortal da lâmina e no jorro de sangue. [...] A matança sacrificial é a experiência básica do sagrado. O homo religiosus age e torna-se consciente de si como homo necans”. (Homo Necans: The Anthropology of Ancient Greek Sacrificial Ritual and Myth , Berkeley, University of Berkeley Press, 1983. Pp 2-3). E é justamente esse contacto imediato com o que de mais básico existe na condição humana, que explica o fascínio (às vezes a repulsa) exercido pela religião afro-brasileira. 25A idéia desse contrato diádico encontra-se, de modo explícito, em Georges Foster (Tzintzunzan: Mexican Peasants in a Changing World, Boston, Little Brown, 1967), tendo sido aplicada ao catolicismo popular brasileiro por Daniel Gross (“Ritual and Conformity”, Ethnology 10, 2, pp. 109-148, 1971). No Brasil, o Professor Thales de Azevedo (“Popular Catholicism in Brazil: Typology and Functions”, in Raymond Sayers, ed., Portugal and Brazil in Transition, Minneapolis, University of Minneapolis Press, 1969, pp. 176-178) tinha chegado às mesmas conclusões, notando a profunda continuidade de estrutura entre o catolicismo popular ibero-americano, baseado no culto dos santos (mesmo quando essa religiosidade não apresenta o menor vestígio de influência africana), e a religião afro-brasileira. 26Nessa, como noutras de suas formulações centrais, este artigo se encontra em profunda dependência com relação a Max Weber, sobretudo do capítulo sobre a sociologia da religião de Wirtschaft und Gesellschaft e das “Zwischenbetrachtungen” dos Gesammelte Aufsaetze sur Religionssoziologie. 27Para uma comparação do comportamento econômico dos pentecostais e dos filhos-de-santo, consulte-se Cecília Mariz, Coping with Poverty, (Philadelphia, Temple University Press, 1994). Na verdade, parece não existir explicação teórica inteiramente satisfatória para respostas religiosas tão altamente divergentes, por parte de pessoas que, de um ponto de vista sócio-econômico (se não propriamente psicológico) encontram-se na mesma situação. Pareceria que aqui estamos diante de mais um caso da oposição, que tanto atormenta as ciências sociais e históricas, entre a explicação teórica, mais ou menos abstrata, e a compreensão do singular concreto. 28É assim que o homossexualismo, num devoto de Oxum, poderá ser explicado pela feminilidade dessa deusa. 29Por outro lado as comunidades de base, inspiradas na teologia da libertação, tendem a abandonar todo ascetismo, intramundano ou extramundano (no sentido que estes termos possuem na obra de Max Weber), e aí se encontra sua contradição fundamental. Pois se pode pensar que todo movimento religioso, que queira transformar o mundo, deve partir da rejeição religiosa deste mundo, o que não pode deixar de implicar numa atitude ascética. Digamos portanto que, na medida em que a teologia da libertação se afasta dessa atitude, ela também se afasta de sua base religiosa e prejudica, consequentemente, sua eficácia sócio-política. Porém com certeza é também possível conceber a teologia da libertação como uma espécie de “ética do ínterim”, destinada não mais que a assegurar a
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transição entre uma maneira religiosa de negar o mundo e a ação propriamente politica com o objetivo de transformá-lo. 30Josildete G. Consorte & Lísias N. Negrão, O Messianismo no Brasil Contemporâneo, São Paulo, EDUSP, São Paulo, 1984. Ralph Della Cava, Milagre em Joaseiro, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976. Rui Facó, Cangaceiros e Fanáticos, Rio de Janeiro, Bertrand, 1978. Eduardo Hoornaert, Os Anjos de Canudos: Uma Revisão Histórica, Petrópolis, Vozes, 1997. Gilberto Mazzoleni, Maghi e Messia del Brasile, Roma, Bulzoni, 1993. Duglas Teixeira Monteiro, Errantes do Novo Século, São Paulo, Duas Cidades, 1974. Maria Isaura Pereira de Queiroz, O Messianismo no Brasil e no Mundo, São Paulo, EDUSP, 1965; Images Messianiques du Brésil (Recueil d'Articles), Cuernavaca, CIDOC, 1972. René Ribeiro, Antropologia da Religião, Recife, Massangana, 1982. E esta lista é evidentemente incompleta. Para uma reinterpretação recente de alguns aspectos desses messianismos, veja-se M. De Felice, “Caratteristiche Socio-Religiose delle Lotte Contadine nel Nord-Est del Brasile: il caso del Maranhão”, in La Critica Sociologica (Roma) 109, 1994, pp. 108-122. 31M. I. Pereira de Queiroz, “L'Influence du Milieu Social Interne sur les Mouvements Messianiques Brésiliens”, dans Archives de Sociologie des Religions (Paris), 5, pp. 2-30, 1958, reproduzido em Images Messianiques du Brésil, pp. 3/1-3/28. 32Como se sabe, as esperas apocalípticas constituem o objeto de uma bibliografia muito extensa, sociológica, antropológica, teológica. Aqui serão mencionados apenas alguns títulos, consultados por ocasião do preparo desta comunicação. Destaquenos o número especial de La Critica Sociologica (102, verão de 1992), com artigos, entre outros, de Franco Ferrarotti, “La Funzione Sociale dell'Utopia all'Epoca delle Democracie Acefale” (pp. III-V); Vittorio Lanternari, “Quante Apocalissi d'Ogni Secolo e d'Oggi” (pp. 1-12); Massimo Introvigne, “Appunti per una Tipologia dei Millenarismi” (pp. 107-119). O livro de Vittorio Lanternari, Movimenti Religiosi di Libertà e di Salvezza di Popoli Oppressi (Milano, Feltrinelli, 1974) representa, como se sabe, uma obra clássica de referência. Também muito importante Ernesto De Martino, La Fine del Mondo: Contributo all'Analisi delle Apocalissi Culturali (Torino, Einaudi, 1977). Mencionemos ainda o artigo de Claude Kappler, “Les Apocalypses: Un Défi au Dogmatismes” (em Omaggio a Franco Ferrarotti, a cura di Roberto Cipriani e Maria Immacolata Macioti, Roma, Siares, Studi e Ricerche, 1988, pp. 393-401). Sobre o relacionamento entre a festa e a intuição do presente, eterno enquanto dura, ver Jean Duvignaud, Fêtes et Civilisations, Genève, Weber, 1973. Para a bibliografia especificamente brasileira, ver a nota no. 29. Aproveito a ocasião para agradecer a Maria Immacolata Macioti, professora da Faculdade de Sociologia da Universidade de Roma (La Sapienza), o convite com que me distinguiu, para que eu passasse alguns meses em Roma, no segundo semestre de 1994, tomando parte na pesquisa por ela dirigida sobre as esperas apocalípticas no limiar do milênio. Esse grande projeto inclusive já resultou, não só no já mencionado número especial da revista Critica Sociologica, como na realização do congresso Esperas Apocalípticas no Limiar do Milênio: Medos de Ontem, Medos de Hoje (Roma, novembro de 1992). 33Vittorio Lanternari, “Quante Apocalissi d'Ogni Secolo e d'Oggi”, La Critica Sociologica, 102, verão de 1992, p. 10. 34Diferentemente do grande movimento de revolta de escravos, associado ao Quilombo de Palmares, que persistiu praticamente durante todo o século XVII e que constitui objeto de vastíssima bibliografia, as revoltas associadas, no Pernambuco do início do século XIX, ao Quilombo do Catucá, só recentemente é que começam a ser estudadas. Leia-se a seu respeito Marcus Joaquim M. de Carvalho, “O Quilombo do Catucá em Pernambuco”, Caderno CRH (Universidade Federal da Bahia), 15, julho-dezembro de 1991, pp. 5-26. Nada aliás impede que outras correspondências entre personalidades míticas e heróis
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libertadores venham ainda a ser descobertas. Isto posto, convém também evitar só querer ver naquelas personalidades a lembrança desses heróis. Pois as entidades afro-brasileiras possuem, de modo geral, antecedentes bem evidentes tanto nas mitologias da África Ocidental, como no catolicismo popular brasileiro. Nada tampouco poderia impedir que tal ou qual movimento social de nossos dias tente “recuperar” certos aspectos da religiosidade popular, colocando-os a serviço das reivindicações das massas predominantemente negras e mestiças. 35Segundo René Vandezande (op. cit.), essa bebida se prepara com a raiz da mimosa hostilis, cujo nome vulgar é jurema ou jurema preta. Segundo a minha experiência pessoal, o poder alucinógeno dessa bebida é sobretudo, ou mesmo totalmente, devido às generosas doses de aguardente de cana-de-açúcar com que é misturada.
Roberto MOTTA, nascido no Recife, depois de sua licença em filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco, obteve seu "Master's Degree" em sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais da Haia, Países-Baixos. É também doutor (Ph.D.) em antropologia pela Universidade de Columbia, em Nova Iorque. É professor-titular de Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco e pesquisador do CNPq.