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CADERNO CRH, Salvador, n. 26/27, p. 19-40, jan./dez. 1997 * ** Robert CASTEL *** RESUMO: Os processos de marginalização social e o questi- onamento sobre diversas estratégias de inserção consti- tuem o eixo central deste artigo. O autor se interroga sobre as diversas abordagens que buscam explicar o fenô- meno da marginalidade e da exclusão social. Após um pa- rênteses histórico que permite compreender a evolução das políticas assistenciais e previdenciárias, a ênfase é dada à dinâmica atual dos processos de marginalização que se caracterizaria pela retomada da vulnerabilidade, ou seja, a conjunção da precarização do trabalho e a fragilidade dos suportes relacionais. Este artigo permi- te pois repensar a denominação dos fenômenos e das rea- lidades sociais não mais em termos de algo acabado mas como processo. O autor se interroga por outro lado, so- bre certas medidas que permitem a reinserção de popula- ções marginalizadas e discute a renda mínima de inserção (RMI), não como uma solução global, mas como uma estra- tégia temporária e necessária. PALAVRAS-CHAVE: Marginalidade, exclusão, vulnerabilidade, inserção social, RMI. Gostaria de propor uma hipótese para interpretar o modo de exis- tência de um certo número de grupos ou de indivíduos rejeitados do cir- cuito comum das relações sociais: indigentes, “drop out”, sem domicílio fixo, certos toxicômanos, jovens à deriva em subúrbios deserdados **** , * N.T.: o autor utiliza o termo “désaffiliation”, traduzido neste artigo por “desfiliação”, signifi- cando situações nas quais indivíduos deixam de pertencer, deixam de estar vinculados ao uni- verso do trabalho e/ou a redes sociais mais amplas. ** Artigo publicado, anteriormente, no “Cahiers de Recherche Sociologique” (22) 1994. *** Diretor de Estudo da Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales. Paris. **** N.T.: Désheritées, do francês, para significar situações de abandono, precariedade.

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  • CADERNO CRH, Salvador, n. 26/27, p. 19-40, jan./dez. 1997

    * **

    Robert CASTEL***

    RESUMO: Os processos de marginalizao social e o questi-onamento sobre diversas estratgias de insero consti-tuem o eixo central deste artigo. O autor se interroga sobre as diversas abordagens que buscam explicar o fen-meno da marginalidade e da excluso social. Aps um pa-rnteses histrico que permite compreender a evoluo das polticas assistenciais e previdencirias, a nfase dada dinmica atual dos processos de marginalizao que se caracterizaria pela retomada da vulnerabilidade, ou seja, a conjuno da precarizao do trabalho e a fragilidade dos suportes relacionais. Este artigo permi-te pois repensar a denominao dos fenmenos e das rea-lidades sociais no mais em termos de algo acabado mas como processo. O autor se interroga por outro lado, so-bre certas medidas que permitem a reinsero de popula-es marginalizadas e discute a renda mnima de insero (RMI), no como uma soluo global, mas como uma estra-tgia temporria e necessria. PALAVRAS-CHAVE: Marginalidade, excluso, vulnerabilidade, insero social, RMI.

    Gostaria de propor uma hiptese para interpretar o modo de exis-tncia de um certo nmero de grupos ou de indivduos rejeitados do cir-cuito comum das relaes sociais: indigentes, drop out, sem domiclio fixo, certos toxicmanos, jovens deriva em subrbios deserdados****,

    * N.T.: o autor utiliza o termo dsaffiliation, traduzido neste artigo por desfiliao, signifi-

    cando situaes nas quais indivduos deixam de pertencer, deixam de estar vinculados ao uni-verso do trabalho e/ou a redes sociais mais amplas.

    ** Artigo publicado, anteriormente, no Cahiers de Recherche Sociologique (22) 1994. *** Diretor de Estudo da Ecole des Hautes tudes en Sciences Sociales. Paris. **** N.T.: Dsherites, do francs, para significar situaes de abandono, precariedade.

  • A DINMICA DOS PROCESSOS DE MARGINALIZAO: DA VULNERABILIDADE DESFILIAO

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    ex-pacientes psiquitricos ou ex-delinqentes sados de instituies, etc. Trata-se de tentar tomar a marginalizao como um processo e de com-preender a situao desses indivduos como resultado de uma dinmica de excluso, que se manifesta antes que ela produza efeitos completa-mente dessocializantes.

    A grande marginalidade apresenta-se, assim, ao fim de um percur-so. Esta zona de excluso ou de quase excluso alimentada tanto por marginais propriamente ditos como por aqueles que esto ameaados, instveis, frgeis, correndo o risco de cair na marginalidade.

    POBREZA, DEFICINCIA E DINMICA DE MARGINALIZAO

    Essa abordagem difere um pouco de duas outras formas mais cls-sicas de tratar os fenmenos da marginalidade e da excluso, sendo-lhes todavia complementar.

    A abordagem em termos de pobreza

    Incontestavelmente a misria econmica est na base da maior parte das situaes de grande marginalidade, seno de todas. Todavia, sabe-se das dificuldades, para no dizer impossibilidade, de definir pata-mares de pobreza que sirvam como critrios de deciso sobre quem so os que necessitam de apoio. Contar os pobres , sem dvida, uma ope-rao indispensvel, ainda que por razes apenas administrativas. Porm, a heterogeneidade das avaliaes revela bem que a dimenso exclusiva-mente econmica nunca oferece uma informao suficiente. E mais: e-xistem formas de pobreza real que no suscitam problemas. Existe uma pobreza integrada. Por exemplo, nas sociedades europias at o sculo XIX, a maioria do campesinato e dos artesos que constituam as artes mecnicas viviam no limite do patamar da pobreza, no sentido deles no terem reservas e estarem merc de mudanas conjunturais. Entre-tanto, eles eram considerados como autnomos e auto-suficientes e no dependiam de medidas especiais, que constituiriam o equivalente a uma

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    poltica social. Melhor ainda: h uma indigncia integrada que no marginalidade. Nas sociedades do Antigo Regime ainda, a tolerncia a certas formas de mendicncia, o sistema hospitalar e a distribuio regu-lar de assistncia a certas categorias de indigentes asseguravam uma esta-bilidade, uma responsabilidade social com indivduos que se situavam incontestavelmente, abaixo do patamar da pobreza, qualquer que fosse a forma de mensurao. No entanto, outros grupos, como vagabundos, que a priori no eram nem mais nem menos pobres, recebiam um tra-tamento totalmente diferente e eram completamente marginalizados.1

    Assim, o nvel de recursos econmicos, em qualquer grau ou pa-tamar que se estabelea, constitui-se apenas num elemento para caracte-rizar as situaes marginais.

    A abordagem classificatria por categorias de dependentes

    A lgica dos servios sociais provm, freqentemente, de recortes

    das populaes-alvo s quais atribuem-se meios especficos para proteg-

    las socialmente, ou seja, significa que para essas populaes so mobili-

    zados recursos, especialistas e instituies especiais para atender seus

    problemas particulares. Assim foram distinguidos os indigentes, os inv-

    lidos, as crianas abandonadas, as vivas e a velhice desamparada, os do-

    entes mentais, os delinqentes, os toxicmanos, etc. Hoje somos tenta-

    dos a incluir a os desempregados de longa durao, os jovens dessociali-

    zados, as famlias monoparentais*, podendo-se ampliar esta lista infini-

    tamente. O modelo que se encontra por trs desta orientao a ex-

    tenso e o aperfeioamento do que Goffman chama de relao de ser-

    vio: fazer corresponder s populaes-alvo certas competncias profis-

    sionais e institucionais especficas.

    1 Sobre esses aspectos, as vrias obras sobre a histria da assistncia so convergentes. Ver, por exemplo, uma das ltimas e mais importantes, GEREMEK, B. (1988).

    * N.T.: Famlias com a presena de um s dos pais.

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    Tal abordagem tem seus mritos. Ela permitiu a criao de servi-

    os sociais que certamente foram mais vlidos que o puro e simples a-

    bandono das populaes despossudas. No entanto, esta abordagem a-

    presenta, ao menos dois inconvenientes, que pem em dvida at que

    ponto ela se constitui na melhor via para assumir a responsabilidade da

    marginalidade. Primeiramente ela contm sempre um carter estigmati-

    zante, como exemplo tpico a psiquiatria clssica, que prope um aten-

    dimento social especializado, com instituies especiais, profissionais

    especializados, e mesmo uma legislao especfica. Esse desdobramento

    tcnico conduziu ao Hospital psiquitrico clssico, a formas cientifica-

    mente legitimadas de excluso, das quais a medicina mental moderna

    tem muita dificuldade em superar.

    Mas alm do risco de confinar os assistidos numa espcie de desti-

    no social e institucional definitivo, observa-se cada vez mais novas for-

    mas de marginalidade que no se enquadram facilmente nesse sistema de

    categorizao. Assim, certos jovens que povoam subrbios deserdados

    em torno das grandes cidades so de modo geral, simultnea ou sucessi-

    vamente um pouco delinqentes, um pouco toxicmanos, um pouco

    vagabundos, um pouco desempregados ou um pouco trabalhadores pre-

    crios (DUBET, 1986). Nenhum desses rtulos lhes convm exatamente.

    Raramente eles se instalam de forma permanente num desses estados,

    mas circulam de um a outro. Face a essa instabilidade, a essa fluidez, as

    culturas institucionais e profissionais clssicas encontram-se desprovidas:

    como assumir este contingente? necessrio categoriz-los, para atribu-

    ir-lhes competncias profissionais correspondentes a lugares institucio-

    nais precisos?

    Sem pretender propor uma terceira via, distinta das abordagens

    economicista e tcnico-clnica que acabamos de ver, eu gostaria de de-

    fender um enfoque transversal para estas populaes, perguntando-me o

    que elas tm em comum que no seja somente o seu nvel muito baixo

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    de renda, ou uma tal deficincia pessoal qualquer. Parece-me que este

    deslocamento da questo pode suscitar formas de responsabilidades i-

    gualmente transversais em relao a estas populaes marginalizadas.

    AS QUATRO ZONAS

    Trata-se, portanto, de um modelo que, num primeiro momento, talvez possa parecer demasiado terico; todavia espero mostrar que ele tem implicaes prticas interessantes.

    As situaes marginais aparecem ao fim de um duplo processo de desligamento: em relao ao trabalho e em relao insero relacional. Todo indivduo pode ser situado com a ajuda deste duplo eixo, de uma integrao pelo trabalho e de uma insero relacional. Esquematizando bastante, distinguimos trs gradaes em cada um desses eixos: trabalho estvel, trabalho precrio, no-trabalho; insero relacional forte, fragili-dade relacional, isolamento social. Acoplando estas gradaes duas a du-as obtemos trs zonas, ou seja, a zona de integrao (trabalho estvel e forte insero relacional, que sempre esto juntos), a zona de vulnerabi-lidade (trabalho precrio e fragilidade dos apoios relacionais) e a zona de marginalidade, que prefiro chamar de zona de desfiliao para marcar nitidamente a amplitude do duplo processo de desligamento: ausncia de trabalho e isolamento relacional.

    Por exemplo, nas sociedades europias anteriores revoluo in-dustrial, cujas estruturas sociais eram talvez mais simples que as nossas, ou que assim nos parecem, observa-se facilmente:

    Uma zona integrada, representada pelo arteso regido pelo sistema de corporaes, ou pela maioria dos domsticos. Esses grupos go-zam de uma grande segurana no emprego e integram fortes e coe-rentes redes de dependncia. Eles so em geral pobres, todavia, co-mo sugeri, no suscitam problemas, salvo se eles se desligassem, passando para a zona de vulnerabilidade, ou seja, a terceira zona.

    A zona de vulnerabilidade compreende pequenos trabalhadores in-dependentes sem reservas econmicas (mercadores, ambulantes...) e

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    um salariato precrio de trabalhadores intermitentes do campo ou da cidade que no so assumidos pelo sistema corporativo, no se bene-ficiando de suas garantias (trabalhador manual, trabalhador sazonal, trabalhadores braais diaristas ou por empreitada...). Sua instabilidade crnica e eles esto sempre ameaados a passar para a terceira zo-na.

    O personagem tipo da zona de grande marginalidade, ou de desfilia-o, o vagabundo. Ele no trabalha, apesar de poder trabalhar, no sentido de estar apto ao trabalho. Ao mesmo tempo, ele est cortado de todo apoio relacional. o errante, o estrangeiro que no pode ser reconhecido por ningum e se encontra rejeitado, de fato, por toda parte. Conseqentemente sobre ele recaem medidas repressivas cru-is, do rechaamento exposio morte, em casos extremos.

    V-se por esse exemplo que bem mais que um exemplo, vez que a represso vagabundagem foi uma das grandes obsesses das so-ciedades pr-industriais que a marginalidade o resultado deste duplo desligamento, ao mesmo tempo em relao ao trabalho e em relao insero relacional. O tratamento dispensado ao vagabundo difere total-mente daquele dispensado ao invlido que no pode trabalhar, seja por razes fsicas (enfermidades, doenas) seja em razo de sua idade (crian-as, velhos), seja porque ele se encontra numa situao familiar extrema (vivas com numerosos filhos). Se o indigente invlido ao mesmo tem-po, conhecido, com residncia conhecida, pertencente a uma parquia, a um bairro, ele ter quase sempre um suporte social. Dessa forma, o tra-tamento dispensado indigncia invlida define uma quarta zona, a zona da assistncia. Essa ltima realiza uma proteo aproximada, fundada no princpio da casa de caridade*.

    Assim, mesmo no setor da grande pobreza, ou da indigncia, exis-tem dois tipos muito diferentes de populaes, que se beneficiam de modos de tratamento igualmente distintos. O vagabundo que est apto a trabalhar e foi expulso das redes familiares de sustentao social, da pro-teo de proximidade, e que completamente rejeitado e estigmatizado.2

    * N.T.: domicile de secours no original. 2 Colocaremos aqui entre parnteses a questo de saber se esta ociosidade e incessante mobilidade dos vagabundos so voluntrias ou impostas, especialmente pela situao do mercado de traba-lho. Os vagabundos tm sido quase sempre estigmatizados como indivduos preguiosos, apro-

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    O indigente incapaz de trabalhar nem sempre bem assistido, seja dire-tamente pela comunidade (esmolas), seja sob formas institucionais (hos-pitalizao, distribuio regular de socorros...). Estas formas de assistn-cia podem ser insuficientes, mal organizadas, e mesmo escandalosamente deficientes. De qualquer forma, a concesso de assistncia aos indigentes ao mesmo tempo incapacitados de trabalhar e inseridos na comunidade no levantam problemas de princpio como mostram todas as histrias da assistncia: os socorro a estes indigentes so h muito tempo um ob-jetivo reconhecido, uma preocupao permanente das diferentes instn-cias responsveis (Igrejas, municipalidade, poder real), ainda que esse objetivo no seja realizado satisfatoriamente.

    Contudo, os encargos com os indigentes que so ao mesmo tempo vlidos e no inseridos, levantou uma questo insolvel qual as socie-dades pr-industriais s puderam responder pela represso, medida, alis, impotente para resolver o problema. A imposio ao trabalho, mesmo acompanhada de fortes sanes, jamais conseguiu resolver o problema da marginalidade errante.

    Eu me permiti fazer essa digresso pelas sociedades pr-industriais porque elas evidenciam mais claramente uma dinmica em construo nos pases da Europa industrializada. evidente que a situao atual no reproduz pura e simplesmente aquela do Antigo Regime. Mas dois ensi-namentos principais podem ser extrados desse esquema, ajudando a es-clarecer a questo da marginalidade atual.

    Sem negar a importncia decisiva do fator pobreza, ele no exclu-sivamente determinante. Ao menos trs situaes se apresentam co-mo qualitativamente diferentes, apesar de todas elas serem caracteri-zadas pela pobreza: a pobreza integrada, que uma pobreza traba-lhadora; a indigncia integrada, que depende das aes de socorro, ligadas insero comunitria; a indigncia desfiliada, marginalizada

    veitadores, libertinos, preferindo a vida fcil ao trabalho. Mas quando se reconstituem suas bio-grafias v-se que se trata muito freqentemente de trabalhadores precrios e subqualificados, expulsos do seu territrio por presses econmicas, errantes e procura mais ou menos convin-cente de um trabalho qualquer. Eu desenvolvi esses pontos em CASTEL, R. (1992).

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    ou excluda, que no encontra um lugar nem na ordem do trabalho, nem na ordem comunitria.

    O esquema acima no deve ser lido de maneira esttica, mas dinmi-ca. As zonas que distingui no so dadas em definitivo, suas fron-teiras so mveis, operando-se passagens incessantes de uma a outra. A zona de vulnerabilidade, em particular, ocupa uma posio estra-tgica. um espao social de instabilidade, de turbulncias, povoado de indivduos em situao precria na sua relao com o trabalho e frgeis em sua insero relacional. Da o risco de carem na ltima zona, que aparece, assim, como o fim de um percurso. a vulnerabi-lidade que alimenta a grande marginalidade ou a desfiliao.

    PROTEO SOCIAL GENERALIZADA E MARGINALIDADE RESIDUAL

    No o caso aqui, evidentemente, de continuar detalhando as transformaes desta problematizao. Eu me contentarei em caracteri-zar, de forma igualmente esquemtica, o ltimo dos seus desdobramen-tos.

    At data recente, a situao dos pases europeus parecia marcada pela estabilizao da zona de vulnerabilidade. A marginalidade era, en-to, um fator residual numa formao social globalmente integrada.

    De um lado, efetivamente, uma proporo importante dos indi-

    gentes eram assumidos segundo tcnicas de proteo prximas da assis-

    tncia. Uma tutela se exercia sobre os necessitados ao mesmo tempo

    provendo-lhes socorros e mantendo-os numa relao de interdependn-

    cia com o seu ambiente. a inspirao fundamental das polticas assis-

    tenciais do Antigo Regime que evoquei, por exemplo, as Poor Law in-

    glesas, a propsito das quais falou-se em servido paroquial (pa-

    rish serfdom). Mas o esprito filantrpico do sculo XIX e depois os ser-

    vios sociais modernos continuam a desdobrar, sob formas eufemsticas,

    as estratgias de ajuda cujo ideal consiste em estabelecer uma relao

    personalizada entre a instncia que dispensa a ajuda e o beneficirio.

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    Quando os principais Estados europeus impuseram, no final do sculo

    XIX, um direito ao socorro*, a assistncia fez um progresso considervel

    para garantir as prestaes de servio uniforme e legalmente exigveis.

    Mas convm notar que as categorias de beneficirios so muito restritas,

    coincidindo estreitamente com as antigas classificaes da indigncia as-

    sistida, fundadas na incapacidade de trabalhar: velhos, enfermos, doentes

    incurveis, crianas abandonadas... O direito ao socorro tem portanto,

    um contedo muito restritivo quanto s populaes concernidas: elas so

    exatamente as mesmas que, bem ou mal, haviam sido assumidas pela I-

    greja, autoridades municipais ou o poder real na Europa pr-industrial.

    Mais ambicioso e mais conseqente nos seus efeitos o recurso ao

    seguro social. A generalizao do seguro social resolveu o problema pos-

    to pela indigncia vlida. Questo insolvel, como mostra toda a legisla-

    o sobre a vagabundagem das sociedades do Antigo Regime, enquanto

    a obrigao de trabalhar no fosse acompanhada da abertura de um ver-

    dadeiro mercado de trabalho, acompanhado de garantias contra os prin-

    cipais riscos sociais. Com a generalizao do salariato e o reconhecimen-

    to de uma condio trabalhadora, fundada na supremacia do contrato de

    trabalho por tempo indeterminado, a cobertura social se estende, para

    alm mesmo dos assalariados, imensa maioria das populaes das soci-

    edades industriais. Foi incontestavelmente o seguro social que permitiu

    controlar parte importante da zona de vulnerabilidade alimentada pela

    precariedade do trabalho.3

    Essa conjuntura, dominante no incio dos anos setenta nos pases

    industrializados europeus, fundava uma concepo da marginalidade que

    se pode qualificar de residual. Direito ao socorro e ajuda social para as

    principais categorias de dependentes, seguro social ligado ao trabalho

    * N.T.: no original droit au secours. 3 Sobre esses pontos que esquematizam de fato a gnese do Estado-providncia, a bibliografia igualmente muito abundante. Por exemplo, para a Frana, HARTZFELD, H. (1971); DONZE-LOT, J (1984); EWALD, F. (1986).

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    para a maior parte dos demais, garantiam uma cobertura mxima contra

    a pobreza e os imprevistos da existncia social. No que se tenha acredi-

    tado que a misria e a insegurana tinham sido totalmente erradicados.

    Mas, precisamente, a amplitude das protees fazia daqueles que no se

    incluam nos seus critrios, marginais, incapazes de se adaptar s exign-

    cias de uma sociedade moderna na qual os avanos da proteo social

    acompanhavam os progressos do crescimento (ideologia dos Estados-

    providncia). Assim essas populaes so significativamente chamadas

    do quarto mundo, como se a grande pobreza representasse situaes

    quase esdrxulas nas sociedades industriais. A marginalidade aqui ao

    mesmo tempo a anttese da modernidade e a forma moderna da no-

    sociabilidade*: ela caracteriza os abandonados pelo progresso, todos a-

    queles que no puderam ou no quiseram se dobrar s exigncias do de-

    senvolvimento.4

    Nesse contexto pode-se distinguir duas formas principais de mar-

    ginalidade. A primeira uma marginalidade livre, caracterizada pela

    distncia em relao ao trabalho regular, mas tambm em relao s for-

    mas organizadas da proteo aproximada que se constitui na assistn-

    cia. O marginal organiza para si uma existncia precria, nos interstcios

    da vida social. No verdadeiramente um assistido, na medida em que

    ele estabelece apenas relaes pontuais com os servios sociais. Esse tra-

    o merece ser novamente sublinhado, pois ele distingue claramente a

    marginalidade da pobreza, e mesmo da pobreza dependente. Nas socie-

    dades de Welfare State, certas categorias de dependentes incapacitados

    para suprirem suas prprias necessidades, conseguem adquirir um verda-

    deiro estatuto graas utilizao regular dos direitos assistncia e aos

    servios sociais (PAYGAM, 1990). Este estatuto , sem nenhuma dvida,

    inferior aos estatutos normais, que dependem do lugar ocupado no

    * N.T. Do autor asocialit, correspondendo a situao de inadaptao ou negao da vida social

    moderna. 4 a viso refletida, ao menos at os anos setenta, pelas posies das associaes caritativas cls-sicas, como A.T.D. Quart-Monde na Frana.

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    processo de produo. Todavia, ele distingue claramente esses grupos

    assistidos dos marginais propriamente ditos, que podemos qualificar de

    sem-estatuto*. So os clochards**, os ciganos, os sem domiclio fixo, a cli-

    entela espordica das associaes caritativas tradicionais como o Exrci-

    to da salvao, os catadores de papel e outros coletores de lixo nos limi-

    tes da cidade.

    O segundo conjunto de marginais constitui-se daqueles que foram retirados a ttulo provisrio ou definitivo, da vida social comum, encon-trando-se institucionalizados em espaos separados. Nesse caso a ten-dncia que os servios mdicos e sociais caracterizem essas populaes a partir de uma deficincia especfica (problema psquico, deficincia fsi-ca profunda, invalidez crnica...) estabelecendo uma correspondncia com uma proteo social especializada. Eles tambm so dotados de um estatuto, mas este, estabelecido com base numa deficincia, impe-lhes um regime especial e um tratamento excepcional nos asilos para velhos indigentes, nos estabelecimentos para menores abandonados ou deficien-tes, nos hospitais psiquitricos desde que estes cumpram tambm a fun-o de ltimo recurso para indivduos dessocializados que no encon-tram lugar em outra parte.5

    A VULNERABILIDADE NO CONTEXTO ATUAL

    A situao assim esquematizada sem dvida ainda hoje dominan-te. Os grandes marginais so ou aqueles que mais fogem institucionali-zao e se entregam ainda, a formas de nomadismo incertas e arriscadas, * N.T.: Hors-statut no original. **N.T.: clochard, arde: pessoa socialmente inadaptado, que vive sem trabalho e sem domiclio nas grandes cidades. V. mendigo, vagabundo. In: Micro Robert, Dictionnaire du franais primordial.

    5 Poderamos acrescentar aqui os prisioneiros, provisria ou definitivamente afastados da vida social. A diferena com os marginais se deve ao fato de que a situao deles resulta de uma transgresso das normas sociais, ao passo que os marginais vivem sobretudo fora dessas normas. Mas a fronteira constantemente frgil, como mostra o exemplo dos toxicmanos sempre ame-aados de fazer ressurgir o aparato judicirio. A criminalizao da marginalidade uma forma importante da sua gesto social, seja que a precariedade das condies da vida marginal pressio-na freqentemente a cometer delitos, seja que certas formas de marginalidade so diretamente qualificadas de delitos como o mostra a criminalizao massiva da vagabundagem atravs de to-da a histria europia.

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    nas sociedades modernas, ou aqueles que se encontram superinstitucio-nalizados em espaos de recluso, que so as instituies totais ou totali-trias das quais fala GOFFMAN (1968). Todavia desde alguns anos parece ter se produzido inflexes que conduzem, ao menos, a reatualizar este esquema. At a metade dos anos setenta, falava-se de bom grado de ex-cluso para qualificar as situaes de no integrao social, pensadas como aquelas que ficavam fora do desenvolvimento do conjunto das sociedades modernas, cujos progressos do Welfare State representavam sua verso social (LENOIR, 1974). Estes fenmenos de excluso consti-tuam, ento, a um s tempo, as excees e os arcasmos dos progressos da modernidade. Podia-se aceitar ou se indignar com estes fenmenos, mas eles no colocavam em questo a dinmica social geral6.

    Em relao a esta conjuntura o fato novo, a partir dos ltimos quinze anos, parece ser a retomada da vulnerabilidade, tal como eu a caracterizei, na conjuno da precarizao do trabalho e da fragilizao dos apoios relacionais. Este desenvolvimento de uma zona instvel, entre integrao e excluso, parece renovar, ao menos parcialmente, a proble-mtica da marginalidade.

    Do lado do trabalho, a vulnerabilidade parecia, como dissemos, es-tabilizada pela generalizao de uma situao salarial slida possibilitada pelo crescimento econmico e o quase-pleno emprego. Essa situao degradou-se nos ltimos vinte anos. No se trata apenas do aumento do desemprego (cujos ndices foram multiplicados por seis na Frana, du-rante esses anos, atingindo hoje mais de trs milhes de desempregados), mas tambm, e talvez sobretudo, da precarizao do trabalho. Da a im-portncia do fenmeno de desestabilizao de uma frao importante do mercado de trabalho. Assim na Frana, mais de um quinto dos em- 6 Esse relativo otimismo era partilhado esquerda como direita do tabuleiro poltico. Se o pen-samento liberal se acomodava bastante bem com a existncia de uma franja residual de abando-nados por conta da marcha geral em direo ao progresso, a crtica da esquerda denunciava a hipocrisia das concepes dominantes do Welfare State que abandonavam uma parte dos cida-dos em condies indignas de um Estado de Direito. Por exemplo, as crticas do hospital psi-quitrico ou da priso como instituies totalitrias so nutridas pela convico de que era ao mesmo tempo possvel e necessrio destruir essas sobrevivncias de um passado onde reinaram o arbtrio e a violncia, incompatveis com as exigncias de justia social e de tratamento demo-crtico proclamados pelos Estados Modernos.

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    pregos so atpicos, no sentido de escaparem forma do contrato por tempo indeterminado que representava uma segurana no tempo e uma cobertura social importante (INSEE, 1990). Mas sobretudo estes empre-gos precrios com diversos ttulos constituem atualmente a maioria dos engajamentos dos assalariados. Particularmente, junto aos jovens, a al-ternncia de trabalho intermitente e de perodos de desemprego atinge mais de um sobre quatro indivduos (LEUBAUBE, 1988). A chamada re-estruturao do aparelho produtivo conduz marginalizao mais de um dcimo da fora de trabalho, condenada ao desemprego ou recor-rncia de perodos de desemprego e de empregos precrios. Esta fragili-zao da condio salarial agravou-se consideravelmente, h alguns me-ses. Ela se transformou na preocupao dominante do discurso poltico.

    A transformao do mercado de trabalho em termos de sua preca-rizao foi acompanhada de uma degradao dos apoios sociais relacio-nais, que asseguram uma proteo aproximada. Tal fragilizao mais difcil de ser evidenciada em poucas linhas, pois ela envolve a ao de diversas variveis. A insero de um indivduo depende de fato ao mes-mo tempo de sua inscrio no seio da famlia e numa rede relacional mais ampla. Sobre essas duas vertentes eu me contentarei em apresentar aqui algumas anotaes que sugerem a fragilizao destes pertencimen-tos.

    Assim as famlias monoparentais associam freqentemente de-pendncia econmica, isolamento relacional e risco de desemprego (INSEE, 1990). Na mesma faixa etria, jovens desempregados so trs vezes menos casados que os jovens com atividades de trabalho e quando residem com seus pais, , geralmente, em condies muito precrias (GALLAND, 1985). os casais no casados tm mais chances (uma sobre quatro) de contar apenas um desempregado, do que os casais casados (CHALION-DEMERSAY, 1987), etc.

    Percebe-se, assim, que a precariedade do trabalho ou o desempre-go e a fragilidade das redes relacionais, esto freqentemente associadas e ampliam os riscos de queda da vulnerabilidade, para o que eu chamei

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    de desfiliao, isto , a conjuno perda de trabalho-isolamento relacio-nal. Da mesma forma, a fragilidade da estrutura familiar acompanhada, freqentemente, das situaes de degradao das redes de sociabilidade popular que aqui eu cito apenas. Sabe-se que o bairro popular serviu fre-qentemente de rede de proteo, tanto do ponto de vista econmico quanto em relao aos riscos de dessocializao determinados pela po-breza.7 Mas, geralmente, a estruturao de uma cultura operria, tal como descreveu, por exemplo, Richard Hoggart na Inglaterra nos anos cin-qenta, contribuiu a integrar o povo segundo organizaes coerentes de modos de vida e de valores partilhados em comunidade (HOGGART, 1968). As transplantaes, efeitos de uma urbanizao selvagem, e tam-bm a crise dos valores sindicais e polticos, tendem a desfazer essas co-nivncias de classe e a quebrar as solidariedades que elas mantinham en-tre si.

    Assim, as cidades operrias organizadas em torno de uma s inds-tria e atingidas gravemente por um desemprego massivo e, mais ainda, certos subrbios na periferia das grandes cidades, so sem dvida, hoje, as zonas de emergncia mais visveis de uma nova marginalidade. Nessas zonas, particularmente, os jovens vivenciam uma relao duplamente negativa: em relao ao trabalho, quando a alternncia do desemprego e do subemprego no permite definir uma trajetria profissional estvel; e em relao s referncias sociorrelacionais, uma vez que a famlia no possui um capital social a transmitir, quando o sistema escolar estranho cultura de origem, como a situao dos imigrantes, e quando a sociabi-lidade se esgota em relaes espordicas, ou se mata o tempo com pe-quenas provocaes e pequenos delitos para superar o tdio de uma temporalidade sem futuro. A galre* sem dvida uma experincia no-va, ou relativamente nova, de desfiliao, entendida como passagem para um modo de existncia que no est estruturado, seja por uma relao

    7 Ver por exemplo S. Magri, Ch. Topalov (dir.), Villes ouvrires, 1900-1950. Paris, LHarmattan,

    1990. * N.T.: expresso usada na Frana (fazendo referncia ao antigo navio de guerra a remos), signifi-cando o mesmo barco de todos aqueles excludos dos progressos sociais, isto , os sem trabalho, sem domiclio fixo, etc.

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    contnua com o trabalho, seja pela insero em formas estveis de socia-bilidade.

    MARGINALIDADE E PRTICAS DE INSERO

    Assim, ao lado de formas tradicionais de marginalidade que subsis-tem, observa-se o aparecimento de novas, a partir das recomposies mais recentes do aparelho produtivo, da fragilizao da estrutura familiar e da crise da cultura operria. (Falo aqui ligeiramente de cultura oper-ria, dada a impossibilidade de discorrer mais longamente sobre este te-ma. O fato que, nos pases europeus h muito tempo industrializados, os anos setenta pareciam marcar a concluso de um processo secular de integrao das camadas populares, a tal ponto que muito falou-se do seu aburguesamento. Hoje, uma parte desses grupos continuou sua assimi-lao s classes mdias, ao passo que outros permanecem ameaados pela pauperizao e desaculturao). A anlise das populaes que de-pendem da renda mnima de insero (RMI) expressiva dessa situao.

    Sabe-se, sem dvida, que a RMI votada pelo Parlamento francs em 1 de dezembro de 1988, abre um direito a uma renda mnima de cerca de 2.000F (dois mil francos) a toda pessoa cujos recursos so infe-riores a esta quantia. No se trata de uma indenizao especfica, corres-pondente a esta ou aquela deficincia, mas de um direito geral enderea-do a toda pessoa desprovida que em contrapartida se compromete a produzir uma atividade dita de insero (voltaremos a essa questo). H, atualmente, mais de 500.000 beneficirios diretos da RMI na Frana o que, tomando-se em conta os cnjuges e os filhos, cobre cerca de um milho de pessoas.

    Quem so estes beneficirios da RMI?8 Em primeiro lugar, o mapa de distribuio do benefcio da RMI bem prximo daquele do desem-prego: h uma relao significativa entre as situaes de misria e a rees-truturao do aparelho produtivo. Em segundo lugar, mais da metade

    8 Cf. VANLERENBERGHE, 1992

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    dos que recebem os benefcios da RMI eram desconhecidos dos servios sociais tradicionais: no se trata aqui necessariamente de novos pobres, a medida concerne, em mais da metade dos casos, a novos assistidos, ou a novos socorridos, isto , pessoas que haviam ficado at ento de fora dos sistemas clssicos da proteo social. Mas o perfil sociofamiliar dos beneficirios da RMI ainda mais significativo. o caso de trs quartos dos no empregados, desempregados ou inativos, geralmente de longa data, e tambm de trs quartos de pessoas ss, sem cnjuges (dos quais 20% de mulheres ss com filho(s)). Confirma-se assim, de maneira parti-cularmente espetacular, a existncia desse duplo eixo, do afastamento em relao ao trabalho e do isolamento relacional, que produz situaes de extrema misria, j vivenciadas pelos vagabundos nas sociedades pr-industriais. Como as famlias, as pessoas idosas tambm so bastante mi-noritrias nessas populaes: mais da metade dos assistidos pelo progra-ma tm menos de quarenta anos. Encontramos tambm as caractersticas clssicas habituais das populaes desfavorecidas: a subqualificao pro-fissional, o baixo nvel de instruo, as ms condies de moradia. Trata-se exatamente da camada mais carente da populao francesa, lanada margem da produo e da participao das prticas habituais de consu-mo e de troca.

    A respeito desse conjunto, seria desnecessrio falar de uma nova marginalidade. Uma anlise mais acurada mostra perfis muito tradicio-nais de perdidos do quarto mundo, clochards, sem domiclio fixo, etc. De outro lado encontram-se tambm indivduos provisoriamente cados na pobreza em decorrncia do desemprego, ou de um acidente nas suas bi-ografias, em relao aos quais no adequado o rtulo de marginais. A mim parece ser mais interessante a operao que consiste em se pergun-tar o que esses grupos tm em comum, que os fazem participar de uma mesma condio de misria. Ora, v-se que sob formas diversas e vivn-cias diferentes, esse duplo desligamento manifesta-se, em relao inte-grao pelo trabalho e em relao insero relacional. Eles chegam a por caminhos diferentes, em seguida a uma perda econmica ou a um drama familiar, a uma infncia desastrosa, ou a um acidente, ou a uma

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    doena, ou, ainda, a uma desqualificao profissional, ou a dificuldades psquicas... de fato, geralmente, em decorrncia de vrias dessas razes ao mesmo tempo. Mas ao invs de nos fixarmos em multiplicar os rtu-los, faz mais sentido estabelecer um corte transversal no processo que cavou em torno deles um vazio social.

    Ao trmino do percurso encontramos esses homeless people que freqentam certos espaos da cidade, cais de metr, cantos de jardins pblicos, entradas de estao, bairros precrios do subrbio... Tudo os separa, afora essa experincia comum de ruptura do vnculo social: anti-gos pacientes desinstitucionalizados dos hospitais psiquitricos, jovens toxicmanos gravemente dessocializados, pequenos delinqentes, clo-chards de longa data, prostitutas ocasionais, drop out de toda sorte...

    Tal indeterminao apresenta graves dificuldades, e os profissio-nais encontram-se freqentemente desprovidos diante destas situaes que no se enquadram exatamente nem no sistema sanitrio, nem no sistema policial, nem no da justia, nem nos das agncias do Welfare, e que no entanto suscitam, simultnea ou sucessivamente, problemas de segurana, de sade e de assistncia. Diante desse mal-estar, a soluo consistiria em sofisticar os sistemas de categorizao fazendo-os corres-ponder a formas de proteo social especficas? Tal resposta, que corres-ponde tendncia dominante de desenvolvimento dos servios sanit-rios e sociais, no insensata na medida em que bastante difcil tratar destas populaes sem remet-las s instncias responsveis. Mas sabe-se, tambm, que as categorizaes clssicas freqentemente tm efeitos perversos considerveis. Por exemplo, a regulamentao da vagabunda-gem conduziu sua criminalizao. O doente mental pagou o reconhe-cimento de sua especificidade com um estatuto de exceo que tambm era um estatuto de excluso. Inversamente, a crtica deste estatuto (da recluso numa instituio total e da legislao especial a respeito dos do-entes mentais) tem conduzido s vezes a formas de desinstitucionaliza-o selvagens em conseqncia de que ex-pacientes psiquitricos acabam por engrossar a vaga de errantes abandonados nas zonas urbanas deser-dadas.

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    O problema , portanto, difcil. Sem pretender trazer aqui uma so-luo, gostaria de defender os mritos de uma responsabilidade pblica global dessas populaes, na perspectiva de uma insero que no passe necessariamente pelo seu recorte por categorias. Se verdade, como su-geri, que a grande marginalidade a ponta avanada de um processo de afastamento em relao ao trabalho e de isolamento social, esta condio de desfiliao pesa mais do que os desdobramentos que levaram at a. Essa condio comum pode ento encorajar a definir estratgias de in-sero cujo ideal seria poder negociar com essas pessoas um compromis-so para tentar preencher o vazio social. Trata-se menos de tentar reparar uma deficincia a partir de um diagnstico segundo o modelo clnico ainda to presente no trabalho social, que de elaborar um programa pr-tico, visando mobilizar as capacidades do sujeito para sair de sua situao de excludo.

    Tal me parece o esprito que distingue a lei francesa recente sobre a renda mnima de insero das formas clssicas de luta contra a pobreza e a marginalidade, sejam elas de inspirao econmica ou clnica. Esse dispositivo inova em dois pontos. Primeiramente, ele assume o carter de transversalidade da desfiliao, independentemente das causas que puderam ocasion-la. Artigo 1 da Lei de 1 de dezembro de 1988: Toda pessoa que, em decorrncia de seu estado fsico ou mental, da situao da economia ou

    do emprego, se encontre fora da condio de trabalhar, tem o direito de obter da coleti-

    vidade os meios decentes de existncia. romper com a lgica tradicional da interveno social ou mdico-social, que se empenha em definir uma de-ficincia especfica, fazendo-lhe corresponder um servio ou benefcio. Em particular v-se que se encontram aqui reunidos, enquanto benefici-rios de um mesmo direito, os invlidos que dependem da assistncia e aqueles que em razo da situao da economia e do emprego, no en-contram trabalho.

    Em segundo lugar, a este direito ao socorro corresponde um impe-rativo de insero. Seguindo o Artigo 1 da Lei: A insero social e profissio-nal das pessoas em dificuldades representa um imperativo nacional. Mas a inser-o no apenas uma obrigao imposta ao beneficirio como contra-

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    partida da renda que recebe. , ao mesmo tempo, uma obrigao para a coletividade, que deve se mobilizar para propor contratos de insero adaptados situao do destinatrio. No esprito dos promotores da RMI, no mnimo, a atribuio do benefcio no deve ser retirada daqueles que no realizarem o seu contrato de insero. Cabe comunidade, em parti-cular aos agentes dos servios sociais, encontrar tarefas, mesmo modes-tas, realizveis pelos beneficirios.

    Certamente esta noo de insero fundamentalmente ambgua. A insero ideal que seria a integrao num emprego estvel geral-mente impossvel devido, ao mesmo tempo, situao do mercado de trabalho e s capacidades de muitos dos beneficirios, freqentemente distanciados h muito tempo, ou mesmo desde sempre, das obrigaes de ordem produtiva. Nessas situaes (falamos ento de insero social e no de insero profissional), a insero corre o risco de ser um arreme-do de certa forma improvisado, um simples ocupacionismo que consisti-ria, no limite, em fazer qualquer coisa em lugar de no fazer nada. Mas preciso compreender esta ambigidade, como constitutiva da insero partir do enfrentamento das situaes prvias de no insero e que cul-minam na grande marginalidade. Inserir geralmente menos que inte-grar, pois o vnculo social que se procura reconstituir mais frouxo, cor-rendo o risco de ser mais frgil que as interdependncias que incluem um indivduo num emprego estvel e numa rede inter-relacional forte. Quando o beneficirio encontra um trabalho, o que pode ser considera-do como um sucesso, isto ocorre freqentemente na faixa dos peque-nos trabalhos, sem garantia de durao. Da o risco de manter-se os ci-clos de alternncia trabalho-no trabalho, que no representam uma ver-dadeira integrao. Dessa forma, essas prticas estabilizariam a margina-lidade, se podemos assim dizer, sem reduzi-la verdadeiramente. E o que mais grave, sem dvida: muitos dos beneficirios da RMI, inativos du-rante muito tempo, gravemente dessocializados, parecem pouco aptos a se erguerem e se reinserirem, ainda que sob formas frgeis. Para eles a atribuio da RMI pode ser uma medida de assistncia no sentido mais tradicional, mantendo-os na dependncia.

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    Eu no fao, portanto, um elogio entusiasta da RMI. Mas, existem outras solues, alm de uma redistribuio do trabalho, que no estado atual parece bem utpica? Fosse esse um mal menor, o imperativo da insero responde exigncia de no deixar o indivduo marginal se en-quistar numa situao de dessocializao, quaisquer que sejam as razes que o tenham conduzido a esta excluso e a distncia de onde ele se en-

    contra, em relao s condies de uma existncia normal. Logo, a margem de manobra da insero estreita, pois sua posio intermedi-ria (isto , tambm em posio falsa e ambgua) entre o controle, quase sempre impossvel, dos processos que conduziram excluso e a resig-nao permanncia desta excluso. Nesse contexto, a renda mnima de insero no certamente a panacia a todos os difceis problemas colo-cados pela marginalidade, mas me parece operar um deslocamento inte-ressante para responder ao desafio da excluso nas sociedades modernas.

    tentador ler as situaes de marginalidade como os ltimos ter-renos exticos* que subsistem nas sociedades dominadas pela preocupa-o com a organizao racional e a rentabilidade econmica. A margina-lidade constitui ento um quarto mundo povoado de estranhos estran-geiros. Paradoxalmente, os esforos cientficos para assumi-la confortam freqentemente esse sentimento de estranheza multiplicando os estatutos de exceo fundados sobre oposies bipolares: normal-patolgico, trabalhado-res-ociosos, integrados-desviados, autnomos-dependentes..., e colocando em evidncia a diferena que separa essas populaes do regime comum.

    A conjuntura atual, em muitos aspectos inquietante, porque multi-plica o nmero das configuraes atpicas, apresenta todavia o mrito de convidar a pensar sobre situaes intermedirias, que so tambm situa-es mistas. Os mais desvalidos em recursos e em apoios sociais ligam-se efetivamente a grupos mais amplos que so ameaados antes de serem destitudos. Existe, assim, um processo decrescente, que vai da integra-o desfiliao, passando pela vulnerabilidade. Inversamente, podemos conceber a insero como uma estratgia de refazer esse caminho ao contrrio, reconstruindo os apoios ao mesmo tempo relacionais e ocupa-

    * N.T.: Exticos usado no sentido de que no pertencem nossa civilizao ocidental moderna; resqucios de sociedades anteriores e/ou atrasadas.

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    cionais para arrancar da excluso aqueles que, progressivamente ou brus-camente, desligaram-se. A possibilidade desse duplo movimento sugere que a excluso no um destino. So possveis intervenes na perspec-tiva preventiva, de um lado, para consolidar a zona de vulnerabilidade e tentar evitar a queda na marginalidade, e, de outro lado, na zona da desfi-liao, para tentar evitar uma instalao nesse campo, transformando as dificuldades de insero em excluso definitiva.

    Do ponto de vista prtico, preciso distinguir bem essas duas es-tratgias, sem ao mesmo tempo menosprezar nenhuma delas. Sem dvi-da alguma, as grandes polticas de luta contra a marginalidade seriam aquelas dirigidas para o emprego, a moradia, a situao de eroso cultural das categorias desfavorecidas, isto , s causas da misria e da infelici-dade. Mas sobre esses programas, em torno dos quais h obviamente unanimidade, ao menos na superfcie, as presses polticas e econmicas so fortes. Estaramos cometendo um equvoco, portanto, ao subestimar a importncia de esforos mais modestos e menos prestigiosos, dirigidos aos que j se desligaram. Tais so as polticas reparatrias (e no pre-ventivas) como a renda mnima de insero. Um critrio paradoxal do sucesso das intervenes desse tipo9 seria que um mximo de pessoas sassem do dispositivo e que o nmero de beneficirios diminusse, da-do que um grande nmero dentre eles teria conseguido sua reinsero, mas tambm porque o trabalho desenvolvido paralelamente sobre a zona de vulnerabilidade teria impedido a entrada na marginalidade de recm-chegados. Portanto, no devemos conceber as aes preventivas e as a-es reparatrias como antagnicas, mas sim como complementares.

    Traduo: Ida Maria Thereza S. Frank*

    9 A renda mnima de insero se inscreve num conjunto mais amplo de intervenes sociais que

    se desenvolveram particularmente na Frana a partir do incio dos anos oitenta. Elas visam en-frentar os problemas da marginalidade, da insegurana, do desemprego e da privao econmi-ca e cultural sobre uma base ao mesmo tempo global e local fazendo intervir as diferentes ins-tncias concernidas sobre o terreno (parceria e transversalidade). Dessa forma, os comits de preveno da delinqncia, os programas de desenvolvimento social dos bairros e das zonas de educao prioritria, muitas operaes sobre a insero social e profissional dos jovens... Essas polticas adquirem atualmente uma forma unificada e sistemtica sob o nome de poltica da cidade e sob a responsabilidade de um ministro.

    * Sociloga pela Universidade Federal da Bahia.

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