7/21/2019 Rita Maria Felix - As Histrias Do Baro Otto Von Dews-01_de_10

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As Histrias do Baro Otto von Dews

Episdio 01 de 10 ngelo e o Saco de Dinheiro

Por Rita Maria Felix da Silva

O comeo de uma manh neblinosa e lgubre na ilha rochosa de SantaEdwiges que, assim dizem, situa-se no lugar mais remoto do mundo.

Ali, erguido em pequena elevao, ficava o Castelo do MonteTempestuoso, construo antiga, de pedras que resistiram s mars da Histria. Era o solitriolar do Baro Otto von Dews, como tinha sido por toda sua vida, pois, h muitos anos, oltimo de seus parentes deixara a terra dos vivos.

Padecendo de insnia crnica, o Baro tinha por costume esperar nabiblioteca at o amanhecer, sempre acompanhado de um bom livro e uma garrafa de vinho. E,muitas vezes, por acreditar que fantasmas vagavam por aquele lugar e vinham, invisveis,escut-lo, Otto lhes contava histrias:

Acabo de reler Histria da Riqueza do Homem, de Leo Huberman, disse o Baro, enquanto olhava para a garrafa e a taa vazias colocadas num mvel pertoda poltrona em que estava sentado, onde tambm repousava um livro talvez voc conheaaquele socialista americano. Uma boa obra. Sempre me faz refletir... Eu estava pensando

sobre o dinheiro, algo que tanto sobrevalorizamos e pelo qual muitas coisas, at as maisdesagradveis, so feitas. Nessas horas lembro-me da histria de ngelo.E o Baro Von Dews recostou-se na poltrona, bocejou intimamente

lamentava a falta do sono e assim disse:Pelos anos que at agora vivi, jamais encontrei resposta para uma

questo que deveria ser simples: a bondade uma ddiva inerente a todos ns ou precisa serperseguida com a mesma nsia que alguns homens caam tesouros?

De qualquer modo, nossa histria comea com ngelo. Seus pais, quemorreram quando ele mal chegara maturidade, deixaram-lhe uma pequena fortuna, osuficiente para uma vida sem preocupaes financeiras.

No seria difcil encontrar uma jovem que se dispusesse a passar a vida

com ele, mas ngelo tinha uma queda pela solido e, assim, jamais se casou e nunca ergueuuma famlia.Dizia que seu amor era pelo prximo, pela humanidade. Se aquele

homem era realmente bom ou no pois questiono que medida pode ser usada paradeterminar tal coisa , o fato que ele sentia um prazer indelvel em fazer caridade. Sentia-se elevado, superior s outras pessoas, quando elas se curvavam em agradecimento por tantagenerosidade. Acima de tudo, o elogio dos amigos e dos sacerdotes, que o bajulavamrotulando-o de o melhor ser humano do mundo fazia-lhe feliz.

Em certo momento, para atender aqueles que o interrompiam na ruapedindo-lhe esmolas, ngelo passou a levar consigo, pendurado na cintura, um saco cheio demoedas. E, logo, multides o seguiam pelas ruas, as mos vidas, as bocas suplicantes. Ele

atendia a todos com soberba, que disfarava muito bem em ternura. Aos seus olhos, era umaturba de animais que o cercavam submissos, como que em adorao. Talvez fosse dessaforma que Deus se sentiria, ele ponderou tantas vezes, e sorria satisfeito.

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Uma vez, porm, vindos da metrpole, chegaram Emlio e Wilson,pessoas de ndole reprovvel, que cidados prudentes deveriam evitar. ngelo, contudo apesar dos avisos de amigos que breve se antipatizaram com aquela dupla no os repeliu.Era bondoso, o Senhor o protegeria de tudo, e no discriminaria nenhuma alma que precisasse

de ajuda. Passou a tarde na companhia daqueles homens, pagou-lhes o que beber, bebeu comeles, riu, conversou frivolidades, e nesse estado, deixou-se conduzir.No comeo da noite, eles o levaram at a rea onde a cidade acumulava

lixo. L lhe cortaram a garganta, apoderaram-se do saco de moedas e fugiram, deixando-opara morrer em meio a restos, dejetos e coisas apodrecidas. Ironicamente, a quantia no sacomal lhes pagou outra noite de bebida.

Quanto a ngelo, pela manh, mendigos, que reviravam o lixo em buscade comida ou algo que pudessem vender, encontraram-lhe o cadver. Reconheceram-no elembraram-se de caridades passadas, contudo, logo um deles fez uma sugesto que invocou

protestos e repulsa, bem como um ligeiro debate. Mas, no final, enfatizaram que h dias nocomiam e, de qualquer modo, ele no estava mais vivo. Prefiro resumir o que houve a seguir

recordando que a fome uma senhora mais poderosa que a razo, a lei ou a condio humana.Assim, com facas e improvisados objetos cortantes, retalharam o corpo de ngelo. Emseguida, fizeram fogueira, dividiram a carne dele entre si, devoraram e festejaram poralgumas horas. Concluram aquela manh, satisfeitos, felizes e de estmago cheio, embora aconscincia teimasse em recrimin-los.

Foi dessa forma que ngelo terminou a vida. No poucas pessoas diriamque ele, por ser humano, mereceria um fim melhor. Concordo, mas, um amigo meu, jfalecido, diria: quem de ns bondoso, maligno ou farsante est a salvo da fatalidade,mesmo das mais sinistras?

O Baro Otto von Dews ficou em silncio por um instante, como sebuscasse as palavras para dizer algo muito importante, mas, fosse o que fosse, ele desistiu daidia e apenas falou com um tom de amargura:

Mais uma noite de insnia! Um bom dia, pequeno fantasma. Aguardo-o quando desejar ouvir outra histria.

E levantou-se da poltrona, recolocou o livro de volta a uma das estantes,recolheu a taa e a garrafa e comeou a descer as escadas at a sala de jantar, para a primeirarefeio do dia.

FIM