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menú principal volver al programa X Coloquio Internacional de Geocrítica DIEZ AÑOS DE CAMBIOS EN EL MUNDO, EN LA GEOGRAFÍA Y EN LAS CIENCIAS SOCIALES, 1999-2008 Barcelona, 26 - 30 de mayo de 2008 Universidad de Barcelona PROJETO RIO CIDADE: INTERVENÇÃO URBANÍSTICA, PLANEJAMENTO URBANO E RESTRIÇÃO À CIDADANIA NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO Márcio Piñon de Oliveira Professor do Programa de Pós-graduação em Geografia, da Universidade Federal Fluminense, Brasil. [email protected] e [email protected] Projeto Rio Cidade: intervenção urbanística, planejamento urbano e restrição à cidadania na cidade do Rio de Janeiro (Resumo) O Projeto Rio Cidade integrou uma intervenção urbana implementada na cidade do Rio de Janeiro, no período de 1995 a 2000, inspirada no empreendedorismo urbano dos anos 1990, com forte influência das políticas aplicadas às cidades dos Estados Unidos e da Europa, a exemplo da cidade de Barcelona. Sob o subtítulo “o urbanismo de volta às ruas”, o Rio Cidade constituiu um dos projetos incluídos no Plano Estratégico da cidade do Rio de Janeiro. Este plano foi construído na administração municipal do Prefeito César Maia (1993-1996), tendo sua elaboração finalizada em setembro de 1995. O Rio Cidade teve a abrangência de 15 áreas na primeira fase (Rio Cidade I) e mais 15 áreas na segunda fase (Rio Cidade II). A marca distintiva do Rio Cidade em relação aos outros planos de intervenção urbana idealizados para a cidade do Rio de Janeiro é, no nosso entender, a de ter uma escala de abrangência que alcançou diferentes pontos da cidade, sem se constituir propriamente num plano de reforma urbana como um todo. Sua ação foi pontual, realizando-se em áreas/eixos comerciais dos bairros que sofreram a intervenção. Até então, a Reforma Pereira Passos, nos primeiros anos do século XX, o Plano

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X Coloquio Internacional de GeocrticaDIEZ AOS DE CAMBIOS EN EL MUNDO, EN LA GEOGRAFA Y EN LAS CIENCIAS SOCIALES, 1999-2008 Barcelona, 26 - 30 de mayo de 2008Universidad de Barcelona

PROJETO RIO CIDADE: INTERVENO URBANSTICA, PLANEJAMENTO URBANO E RESTRIO CIDADANIA NA CIDADE DO RIO DE JANEIROMrcio Pion de Oliveira

Professor do Programa de Ps-graduao em Geografia, da Universidade Federal Fluminense, Brasil. [email protected] e [email protected]

Projeto Rio Cidade: interveno urbanstica, planejamento urbano e restrio cidadania na cidade do Rio de Janeiro (Resumo)O Projeto Rio Cidade integrou uma interveno urbana implementada na cidade do Rio de Janeiro, no perodo de 1995 a 2000, inspirada no empreendedorismo urbano dos anos 1990, com forte influncia das polticas aplicadas s cidades dos Estados Unidos e da Europa, a exemplo da cidade de Barcelona. Sob o subttulo o urbanismo de volta s ruas, o Rio Cidade constituiu um dos projetos includos no Plano Estratgico da cidade do Rio de Janeiro. Este plano foi construdo na administrao municipal do Prefeito Csar Maia (1993-1996), tendo sua elaborao finalizada em setembro de 1995. O Rio Cidade teve a abrangncia de 15 reas na primeira fase (Rio Cidade I) e mais 15 reas na segunda fase (Rio Cidade II). A marca distintiva do Rio Cidade em relao aos outros planos de interveno urbana idealizados para a cidade do Rio de Janeiro , no nosso entender, a de ter uma escala de abrangncia que alcanou diferentes pontos da cidade, sem se constituir propriamente num plano de reforma urbana como um todo. Sua ao foi pontual, realizando-se em reas/eixos comerciais dos bairros que sofreram a interveno. At ento, a Reforma Pereira Passos, nos primeiros anos do sculo XX, o Plano Agache, nos anos 1920, e o Plano Doxiadis, na dcada de 1960, se constituam em planos urbanos, sobretudo os dois ltimos, que tomavam e pensavam a cidade como um todo, como organismo social ou como um sistema. Embora o projeto tenha como slogan o resgate da cidadania e a devoluo dos espaos pblicos a quem de direito, este teve como pano de fundo uma concepo de racionalidade empresarial da administrao dos negcios pblicos, visando participao do setor privado na gesto de servios e equipamentos pblicos, com base em estratgias econmicas de investimentos e polticas de controle e excluso social. Deste modo, nos bairros onde a interveno urbana ocorreu, estabeleceu-se aquilo que a nossa pesquisa denominou de territrio Rio Cidade, identificado tanto pela distino espacial dos elementos que compem o mobilirio urbano e a paisagem em geral, quanto pelo controle social exercido pela fora policial (Guarda Municipal e outras) sobre o comrcio ambulante e a populao em situao de rua. Assim, se por um lado, a interveno urbanstica possibilita um planejamento urbano tido como de novo tipo, com uma racionalidade e administrao de empresa, por outro, o que observamos um aumento do controle social sobre o espao, os seus usos e servios e a populao que dele se utiliza, caracterizando, ao nosso ver, em muitos aspectos, formas de restrio cidadania para determinados sujeitos e atores sociais. Palavras-chaves: Rio de Janeiro, Projeto Rio Cidade, interveno urbanstica, planejamento urbano, cidadania

Rio Cidade Project: urban intervention, urban planning and ways of restraining the citizenship in Rio de Janeiro City (Abstract)Rio Cidade Project was part of an urban intervention established in Rio, between 1995 and 2000, following the 90s urban investments, with strong influence from the politics applied at American and European cities, like Barcelona. Rio Cidade was part of one of the projects included in Rio de Janeiros City Strategy, under the subtitle the urbanism is back to the city. This plan was worked out on Cesar Maias council administration (1993-1996) and it was concluded in September, 1995. The Rio Cidade covered fifteen areas on its first stage (called Rio Cidade I) and more fifteen ones on its second stage (Rio Cidade II). Rio Cidade is a benchmark plan for urban intervention idealized for Rio, in relation to other plans has covered, according to our point of view, different parts of the town, without been an urban renovation itself as a whole. Its action was specific, achieving trading areas districts which suffered the interventions. Until then, Pereira Passos Reform, in the early twentieth century, Agache Plan, in 1920, and Doxiadis Plan, in the 60s, constituted urban plans, above all, the last two plans, which took and thought the city as a whole, as a social organism or as a system. Although the project has the slogan citizenship redemption and the restitution of public spaces to whom it may concern, its backdrop was administrative public deals, a reasonable business concept of the aiming participation from the private sectors in the management of public services and equipments, based on economic investments strategies and controlled policies and social exclusion. So, the areas which had an urban intervention, established the, what our research called, Rio Cidade territory, identified by both spatial distinction of the elements which in general, consists with the urban facilities and the scenery, and by the social control used by the official forces (council police and others) over the strolling business and the people who live on the streets. In this way, if on one hand, the urbanistic intervention allows an urban planning seen as of a new type, with reasonableness and administration enterprise, on the other hand we notice an increase on social control over the spaces, uses and services and to the population that uses it, showing in many aspects and in our opinion, ways of restraining the citizenship for certain social subjects and actors.Key words: Rio de Janeiro; Rio Cidade Project; urbanistic intervention; urban planning; citizenship

Nos anos 1990, assiste-se a um processo que caminha das potncias mundiais e suas metrpoles s cidades globais que comandam os fluxos de mercadorias, investimentos financeiros e informaes (Sassen, 1991). Dentro deste quadro, lanam-se sobre as cidades interesses que forjam aquilo que muitos denominaram de uma competio entre elas, procurando mostrar suas potencialidades e apresentar e atrair investimentos de capitais que circulam mundialmente. Tal fato interferir tambm na gesto das cidades. No dizer de Harvey (1996, p.49), h uma mudana do gerenciamento para o empresariamento na administrao urbana. Este empresariamento das cidades, tambm denominado de empreendedorismo urbano, apresenta como carcterstica central a noo de parceria pblico-privada na qual as tradicionais reivindicaes locais esto integradas com a utilizao dos poderes pblicos locais para tentar atrair fontes externas de financiamento, novos investimentos diretos ou novas fontes geradoras de emprego (Idem, p. 52). Para tanto, ser necessria a promoo da cidade e de sua imagem junto ao mercado mundial com objetivo de atrair novos investimentos. A este fenmeno de promoo e venda da imagem da cidade, Borja e Forn (1996, p.33) chamaram de city marketing. Assim, tornou-se comum, portanto, falar-se hoje em planos estratgicos que promovam a imagem das cidades e as preparem, por meio de um planejamento urbano de novo tipo, e ressaltem suas potencialidades para a atrao de investimentos.Nesse sentido, a cidade do Rio de Janeiro no ser uma exceo a essa conjuntura neoliberal das cidades contemporneas. Ao contrrio, expressar por meio do seu planejamento urbano e gesto, na dcada de 1990, essa forte tendncia da cidade do pensamento nico, cidade-empreendimento ou cidade-mercadoria (Arantes, 2000).A interveno urbanstica, na qual consiste o Projeto Rio Cidade, est associada a este tipo de tipo de planejamento e cultura de gesto urbana e fez parte de um conjunto de projetos e aes que compuseram o Plano Estratgico da Cidade do Rio de Janeiro.Apresentando o Rio CidadeSob o subttulo o urbanismo de volta s ruas, o Projeto Rio Cidade integrou uma interveno urbana implementada na cidade do Rio de Janeiro, no perodo de 1995 a 2000, inspirada no empreendedorismo urbano dos anos 1990, com forte influncia das polticas aplicadas s cidades dos Estados Unidos e da Europa, a exemplo da cidade de Barcelona.Trataremos aqui neste trabalho da anlise do projeto Rio Cidade I que se deu no perodo de 1993 a 1996, na primeira administrao do Prefeito Csar Maia, na cidade do Rio de Janeiro.A Secretaria Municipal de Obras do Municpio do Rio de Janeiro1 definiu o Rio Cidade, poca, da seguinte maneira:O projeto Rio Cidade se caracteriza por uma srie de intervenes em reas de uso predominantemente comercial em eixos/corredores e/ou centros de bairros.O objetivo do Rio Cidade resgatar a integrao do cidado com o espao da sua cidade, restabelecendo os padres de conforto, segurana e disciplina dos usurios atravs da renovao e ordenao do mobilirio urbano, adaptao das caladas aos deficientes fsicos, reformulao do sistema de iluminao e sinalizao pblicas, alm de solues para os problemas de drenagem das guas pluviais e converso, quando for o caso, das redes areas da Light e da Telerj em subterrneas.A primeira etapa do projeto - Rio Cidade I - contemplou 15 bairros: Ilha do Governador, Copacabana, Catete, Vila Isabel, Penha, Campo Grande, Ipanema, Botagogo (Voluntrios), Tijuca, Centro, Mier, Leblon, Bonsucesso, Madureira e Pavuna (e reas remanescentes).As intervenes propostas no Rio Cidade II abrangem 15 novas reas, a saber: Santa Cruz, Bangu, Realengo, Marechal Hermes, Rocha Miranda, Graja, Largo do Bico, Madureira, Iraj, Praa Seca, Ramos, Campo Grande, Haddock Lobo e Santa Teresa.

Figura 1 - Mapa Rio Cidade IQuadro 1 Rio Cidade I

primeira vista, ao lermos esta sntese, no h nada que diferencie muito o Rio Cidade de tantos outros projetos de interveno em reas da cidade para a melhoria de seus servios e infra-estrutura. Aparte a escala de abrangncia alcanada por esta interveno, que salta aos olhos, incluindo bairros da Zona Norte e Zona Oeste, fora do ncleo central da cidade e, at ento, raramente contemplados com este tipo de investimento, o Rio Cidade, na sua apresentao ao usurio da rede, muito se assemelha a outros projetos de urbanizao propostos por rgos tcnicos e de planejamento.Contudo, foi precisamente esta escala de abrangncia geogrfica assumida pelo projeto que nos chamou a ateno sobre o seu papel, transformando-se na nossa pista inicial. Levando-se em conta que o espao , no mnimo, condio e condicionante das relaes, ou seja, aquilo que possibilita a produo e reproduo material e cultural da sociedade, se mudam as escolhas geogrficas porque alguma mudana deve estar se operando no conjunto da cidade, e para alm dela, onde estas novas localizaes ganham uma outra importncia e significados.Como pressuposto geral podemos dizer que as novas localizaes e a escala de abrangncia alteram a maneira de intervir no espao, e como toda interveno por natureza ordenadora, teremos, com efeito, uma mudana na forma de ordenamento da cidade. Para cada forma de interveno temos um discurso, uma estratgia e uma forma especfica de ordenamento territorial.Neste sentido, a escala de abrangncia geogrfica do Rio Cidade e as novas localizaes do investimento pblico, associadas s suas caractersticas intrnsecas como projeto urbanstico, nos levaram a levantar algumas hipteses:- O Rio Cidade, ao reordenar determinados espaos delimitados dentro da cidade, arbitra, condiciona e disciplina o ir e vir dos indivduos no seu cotidiano a partir do bairro;- Aparte as crticas sobre o Rio Cidade como obra de maquiagem, o projeto distribui, de fato, alguns bens e servios a bairros antes excludos pela sua prpria localizao geogrfica;- Ao levar o centro periferia, atravs do investimento de recursos em reas tradicionalmente secundarizadas pelo poder pblico, o Rio Cidade atua sobre o sentimento de pertencimento dos moradores desses bairros cidade como um todo, fazendo com que se sintam mais includos nela;- Ao ordenar e disciplinar o uso do espao a partir da rua, implementando servios, renovando o mobilirio urbano e embelezando a paisagem, o Rio Cidade cria uma imagem de maior civilidade e bem-estar para as pessoas, atuando sobre a imagem da cidade e para fora dela;- O Rio Cidade contribui decisivamente para o refazer do pacto poltico-territorial da cidade que se encontrava deteriorado, dando a ele novos contornos.A partir deste olhar, qual, ento, a especificidade do Rio Cidade como projeto urbanstico?No nosso entender dois so os pontos que conferem, de antemo, uma certa especificidade ao Rio Cidade como um projeto de interveno/ordenamento territorial urbano:1) ser parte de um plano mais geral de interveno no espao da cidade, no mesmo perodo, a saber: Plano Estratgico da Cidade do Rio de Janeiro; 2) se propor como um projeto urbanstico de resgate da cidadania, sintetizado na expresso ou subttulo: o urbanismo de volta s ruas. O Rio Cidade como parte do Plano Estratgico da cidade do Rio de JaneiroO Rio Cidade constitui um dos projetos includos no Plano Estratgico da cidade do Rio de Janeiro, que tem como subttulo a expresso Rio sempre Rio. Este plano foi construdo ao longo da administrao municipal do Prefeito Csar Maia2, tendo sua elaborao finalizada em setembro de 1995. Apesar de aparecer como parte do Plano Estratgico, o Rio Cidade lhe anterior, tendo seu edital lanado no incio do segundo semestre de 1993. O conhecimento do Plano Estratgico, entretanto, nos parece fundamental para uma compreenso mais completa do quadro geral em que se insere o projeto que pretendemos analisar.O Rio Cidade um dos 159 projetos listados no Plano Estratgico - Rio sempre Rio. Aparece vinculado estratgia denominada Rio Acolhedor sintetizada, no documento, da seguinte forma:Melhorar a relao da cidade com seu entorno uma exigncia de qualidade do meio ambiente urbano necessria para conseguir aue o Rio de Janeiro seja identificado como uma cidade receptiva, funcional e capaz de promover e ampliar a convivncia e a vizinhana3.A tnica desta estratgia recai sobre a qualidade do meio ambiente e a necessidade de se pensar o cidado dentro dele. Ela se desdobra em dois vetores, um voltado para a natureza stricto sensu - floresta, praia, encostas, etc. - e outro que se refere organizao do espao pblico nos bairros visando, segundo o documento desprivatizar o seu uso, devolvendo-os s atividades do dia-a-dia coletivo4.Decorrem dela dois objetivos:- melhorar o relacionamento cidado-meio ambiente, restaurando, quando possvel, a degradao do espao natural e assegurando um desenvolvimento sustentvel (...);- qualificar e fortalecer a vida dos bairros e melhorar a qualidade dos espaos pblicos, estimulando o sentimento de pertencimento de sua populao, dando maior acessibilidade, dignificando os espaos pblicos e eliminando barreiras mobilidade das pessoas5. Este ltimo objetivo, que nos interessa mais diretamente, pois engloba o Rio Cidade, indica que a interveno deva ser feita nos eixos urbanos dos bairros, recuperando e re-qualificando a vida de seus moradores, o resgate de sua memria (...) como formas de tornar o Rio mais acolhedor6.O Rio Cidade , portanto, um dos 25 projetos listados dentro da estratgia Rio Acolhedor e aparece juntamente com o projeto de Valorizao da Orla Martima da Baa da Guanabara vinculados ao Melhorar a qualidade do espao urbano. Esta ao norteadora dos dois projetos sintetizada na seguinte idia: Realizar intervenes especfcas nos principais espaos urbanos para melhorar as infra-estruturas e a esttica da cidade7.Ao analisarmos o Plano Estratgico da Cidade do Rio de Janeiro notaremos que o Rio Cidade no possui nele nenhum destaque, aparecendo como mais um dos muitos projetos a serem realizados. Contudo, o Rio Cidade foi, sem dvida, aquele projeto que ganhou maior visibilidade como obra na cidade e alcanou maior repercursso pblica. Basta percorrermos os bairros da cidade e recorrermos aos jornais da poca de realizao das obras do Rio Cidade I para constatarmos esta evidncia.Pudemos perceber, analisando o conjunto das estratgias, que o Rio Cidade se relaciona diretamente com outras cinco delas. O acesso aos bens sociais e culturais no seu sentido mais amplo da estratgia O Carioca do Sculo XXI; a reorganizao da vida comunitria e novas formas de cidadania do Rio Participativo; as novas centralidades que facilitem a difuso da qualidade urbana do Rio Integrado; o fortalecimento de setores econmicos tradicionais e a implantao de servios avanados do Rio Competitivo; os efeitos sobre a sua imagem interna e externa do Rio 2004, so todos tens que se identificam com a concepo que inspirou o Rio Cidade.Em linhas gerais, todas as estratgias convergem, a nosso ver, para forjar para o Rio de Janeiro uma dada qualidade urbana, tanto esttica quanto em infra-estrutura, que possa atuar sobre a imagem da cidade e apresent-la como um produto competitivo no mercado internacional. Nestes termos, o projeto Rio Cidade ocupou na prtica uma posio central para qual convergiram estas intenes.O Rio Cidade como projeto urbansticoO Rio Cidade como projeto urbanstico apresenta uma especificidade em relao a outras reformas ou planos urbansticos dirigidos cidade do Rio de Janeiro no passado. Entre o projeto (desenho) e o plano (interveno) o Rio Cidade incorpora traos, tanto estticos quanto na forma de interveno, que o distinguem de uma antiga tradio de urbanismo aplicada cidade. Antes de entrarmos na anlise da concepo urbanstica do projeto, faremos um pequeno histrico do seu surgimento, elaborao e realizao para podermos situar melhor as nossas idias.A marca distintiva do Rio Cidade em relao aos outros planos de interveno pensados para a cidade do Rio de Janeiro , no nosso entender, a de ter uma escala de abrangncia que alcana diferentes pontos da cidade sem se constituir propriamente num plano de reforma urbanstica. At ento, a Reforma Pereira Passos, no incio do sculo, o Plano Agache, nos anos 20, e o Plano Doxiadis, na dcada de 60, se constituam em planos urbansticos, sobretudo os dois ltimos, que tomavam e pensavam a cidade como um todo, como organismo social ou como um sistema. Isto no quer dizer, no entanto, que o Rio Cidade, a exemplo da reforma e planos citados, no parta de uma idia geral sobre a cidade do Rio de Janeiro. Nisto se inclui um diagnstico sobre a cidade que se tem e uma projeo da cidade que se deveria ter. Ao contrrio das outras intervenes, o Rio Cidade no faz uma projeo para um futuro muito distante. Prope intervenes pontuais, diferenciadas e a curto prazo. Sua perspectiva no futurista, nem pretende civilizar uma cidade inteira a partir de uma grande cirurgia urbana. Nesse sentido, prope aes pragmticas relativamente rpidas na sua concretizao, visando melhorar a infra-estrutura e embelezar trechos da cidade.Com a Reforma Pereira Passos - que, segundo Stuckenbruck (1996), no chegou a ser um plano, mas um projeto urbanstico de grandes propores para a cidade da poca - o Rio Cidade tem algumas semelhanas. Uma delas diz respeito ao signo da ordem. A ordem pblica seria proporcionada pela interveno urbana, conferindo autoridade ao Estado para exercer aes coercitivas e disciplinadoras do uso do espao. Esta face da Reforma Passos ficou conhecida na mxima Rio civiliza-se. No Rio Cidade este signo nos remete ao dito resgate da cidadania to recorrente nas falas e documentos oficiais.O ponto de partida de ambos, como realidade, o da desordem ou caos social. No passado, tratava-se de elevar o Rio de Janeiro condio de uma grande cidade moderna, a exemplo das capitais europias. Hoje trata-se de restaurar a sua imagem e inseri-la na competio internacional incrementada pelo chamado processo de globalizao. A outra semelhana entre as duas intervenes refere-se ao signo do embelezamento. No passado, tratava-se de reformar e embelezar uma cidade de estrutura colonial e dominar a sua natureza rude e primitiva. Hoje o foco do embelezamento est centrado na restaurao de uma imagem construda ao longo deste sculo e que se cristalizou na idia de cidade maravilhosa.Com relao aos outros dois planos, o Rio Cidade no guarda nenhuma semelhana, visto que so planos gerais, que propem solues, tambm gerais, grandiosas e funcionais, para toda a cidade. O Rio Cidade, neste sentido, paradoxal, pois no um plano para toda a cidade, mas um projeto que se estende amplamente sobre ela, embora de maneira pontual - restrita a algumas reas - e diferenciada. No dizer de Carvalho e Campista (1996)8, trata-se de um urbanismo diferencial uma acupuntura urbana, que intervm em pontos da cidade que precisam ser revitalizados ou recuperados.Na anlise dos documentos oficiais e nas entrevistas realizadas com arquitetos e tcnicos da Prefeitura constatamos que o contedo da concepo urbanstica proposta est segmentado em trs blocos: o primeiro que traa um diagnstico da cidade, o segundo que se instrumentaliza da histria urbana do Rio de Janeiro para justificar a forma de interveno e um terceiro que apresenta os objetivos dessa interveno, projetando os seus resultados na vida da cidade.A expresso que sintetiza o contedo do diagnstico a de caos urbano. A idia que a est contida pode ser assinalada, nas falas e documentos, de diversas maneiras. So vrias as expresses utilizadas em que essa idia se reflete desordem urbana, decadncia dos espaos pblicos, desequilbrio social, degradao da rua, desvalorizao da vida comunitria, medo e violncia, insegurana social, falta de civilidade, invaso do automvel, baixa estima do carioca, etc. Estas so expresses recorrentes neste diagnstico da cidade apresentado pelos governantes e tcnicos responsveis pela coordenao/realizao das obras. Logo aps sua eleio, ainda no final do ano de 1992, o Prefeito da cidade, Csar Maia, dizia para o seu futuro Secretrio de Urbanismo, Luiz Paulo Conde, que o Rio uma cidade que precisa reverter o quadro de desordem urbana9, convocando-o para pensar um projeto que respondesse esta questo. No seu entender, era evidente a necessidade de melhorar a imagem da cidade e a segurana era um aspecto fundamental. Ao deixar o seu governo, no ano de 1996, quando inaugurou as primeiras obras do Rio Cidade I, declarou o Prefeito:H quatro anos, quando assumimos a administrao municipal, defrontamo-nos com um temporrio cenrio de desordem urbana implantado na cidade, que logo identificamos como um dos principais entraves reverso do quadro de decadncia social e econmica que debilitava o Rio de Janeiro. Aprovamos e assumimos, ento, um compromisso poltico estratgico com o Programa Rio Cidade, na justa medida de seu amplo alcance: criao de empregos, resgate da imagem pblica carioca, elevao da auto-estima do cidado e devoluo dos espaos pblicos a quem de direito. Sugerimos que da adviriam novos investimentos privados, mais segurana, melhor educao cvica e, por que no dizer, mais beleza?10Tais falas refletem bem o diagnstico de caos urbano assinalado anteriormente e o papel que o Rio Cidade assumiria como um projeto prioritrio no governo do ento Prefeito Csar Maia. Em outra declarao, o Prefeito afirmaria que se alguma interveno realizada pela Prefeitura do Rio merece a adjetivao de estratgica, esta a reconstruo dos espaos pblicos, sublinhada pelo Rio Cidade11. Como vimos antes, este diagnstico no um mero exerccio de retrica por parte do Prefeito. A situao que alcanou a cidade do Rio de Janeiro no incio dos anos 90 atemorizava, no s as autoridades, mas segmentos importantes da sociedade civil que se lanaram em diferentes tipos de campanha pela cidadania tal o quadro de medo insegurana social que imperavam. O Rio Cidade encontraria, assim, como projeto urbanstico, uma populao, em geral, bastante receptiva s suas proposies, sobretudo por parte daqueles que habitam os bairros mais empobrecidos e carentes de investimentos pblicos.Em oposio ao caos urbano assinalado no diagnstico oficial apresentado, se projetaria a necessidade de resgate da imagem da cidade. A interveno do Rio Cidade deveria contribuir, aos olhos do poder pblico, para restaurar a imagem da chamada cidade maravilhosa consagrada internacionalmente. Esta imagem, muito fortemente construda no imaginrio dos habitantes da cidade, colocada como uma luz no fim do tnel, dando populao em geral a esperana de que seria possvel superar a situao catica de crise urbana por que passava o Rio de Janeiro a partir de uma interveno no seu espao. Atuar, portanto, no imaginrio da populao carioca, elevando a sua auto-estima e o seu sentimento de pertencimento atravs desta interveno urbana, que restauraria a imagem da cidade, um objetivo que se apresenta como pano de fundo do projeto Rio Cidade.Ao lado deste recurso ao passado de representao de uma cidade maravilhosa, alia-se uma leitura sobre a sua histria urbana, centrada nas modificaes que o seu desenho foi sofrendo desde a sua origem de cidade colonial. Nascida entre morros e brejos, espremida entre o mar e a montanha, o Rio de Janeiro foi constituindo seu stio, atravs de desmontes, drenagens, aterros que possibilitaram a criao de solo urbano para sua expanso. Portanto, a cidade tem uma histria de intervenes urbanas que antecede mesmo as grandes transformaes ocorridas neste sculo. Este fato tomado como uma espcie de componente natural da histria urbana do Rio de Janeiro, de que se lana mo para justificar, de certo modo, as intervenes de maiores propores realizadas na cidade do Rio de Janeiro. Assim, reformar a cidade, criar ou recriar o seu solo urbano, embelez-la e adequ-la a novas situaes mundiais, aparece como uma fala recorrente dos polticos, engenheiros, arquitetos e urbanistas ao longo de sua histria urbana. Esta foi, portanto, uma cidade que se habituou, desde logo, com plsticas peridicas, a exemplo da cirurgia urbana realizada por Pereira Passos no incio do sculo XX.Segundo Vicente del Rio, arquiteto e urbanista responsvel por um dos projetos do Rio Cidade12, esta realidade tambm se difundiria no Rio de Janeiro a partir do incio do sculo XX, em funo de uma progressiva insero de prticas capitalistas de reproduo e consumo nas lgicas scio-espaciais e seu rebatimento na hierarquizao do territrio. Para ele este caminho, das reformas urbanas, seria seguido posteriormente por So Paulo, na busca por uma nova imagem para o pas que o ajudasse a atrair investimentos estrangeiros e a internacionalizar nossa economia13.Outro aspecto da histria urbana do Rio de Janeiro que citado como uma das justificativas apresentada pelo Rio Cidade na sua concepo urbanstica relativo ao recente processo de urbanizao e os problemas dele decorrentes. No dizer de Luiz Paulo Conde, na poca Secretrio Municipal de Urbanismo,Cada vez mais, o Brasil torna-se um pas urbano. Hoje, a maioria dos brasileiros mora em cidades contraditoriamente, a essa tendncia sobrepem-se outra: ao invs de melhorarem, as cidades, sobretudo as grandes, vm se deteriorando, piorando a qualidade de vida de seus habitantes.O que todos desejamos que nossas ruas voltem a ser ruas lato sensu, isto , que readquiram o carter pblico que, historicamente, lhes foi peculiar mas que, gradualmente, foram perdendo14. Na concepo enunciada, essa tendncia de deteriorao e desumanizao recente das cidades com a urbanizao fez com que as ruas deixassem de ser um espao pblico de fato, de convivncia comunitria, e os bairros fossem perdendo a sua identidade prpria. Deste modo, a contrapartida apresentada pelo Rio Cidade a da revitalizao urbana que segundo Vicente del Rioao contrrio da renovao, que sempre pressupunha um processo destrutivoprecedente ao construtivo em busca de um princpio de ordem e de uma totalidade racional, o modelo de revitalizao urbana surgiu como um conceito abrangente que incorpora prticas anteriores, mas mais que a sua simples adio, pois as excede e supera, na busca por uma nova vitalidade (econmica, social, cultural e fsico espacial)15. No caso do Rio de Janeiro este modelo de revitalizao urbana j havia sido experimentado em duas reas da cidade, no chamado Corredor Cultural, no Centro, nos anos 80, e no Projeto Rio-Orla, nas praias da Zona Sul carioca, no incio desta dcada. Este tipo de interveno seleciona trechos (corredores) ou pontos da cidade que precisam ser revitalizados nas suas funes. Assim, a partir da reconstituio dos seus ambientes e da restaurao das formas, combinando-se estruturas espaciais pretritas e necessidades presentes, revaloriza-se o lugar, vivificando-o de acordo com as suas ditas vocaes, que podem ser cultural, turstica, comercial etc.Buscou-se substituir a cirurgia urbana pela revitalizao do tecido urbano, onde prevalece o conceito de recuperar o espao urbano sem que, para isto, seja necessrio reconstru-lo. Ao invs de destruir e apagar registros e imagens, reabilitar e resgatar as reas degradadas ou mutiladas16. nesta perspectiva e luz das experincias j realizadas no Rio de Janeiro de revitalizao urbana que o Rio Cidade vai se inspirar para propor o seu modelo de revitalizao de maneira ampliada para toda a cidade. Neste sentido, a forma de interveno proposta no Rio Cidade privilegia os chamados corredores estruturadores da imagem da cidade. Ela pontual, numa escala de cidade, e pragmtica, na medida em que procura alcanar resultados a curto prazo, a partir de aes possivis que visem, alm de uma requalificao daquele trecho urbano, uma rpida mudana de atitudes em relao ao lugar.Outro ponto importante a destacar que nesta concepo do Rio Cidade, ao contrrio das duas outras experincias de revitalizao, que estavam restritas ao Centro e Zona Sul, as suas intervenes se estendem pelas zonas Norte e Oeste, em bairros perifricos da cidade. A partir desta concepo, o Rio Cidade objetivava com a sua interveno: a revitalizao da rua, a revalorizao dos bairros, a reconstruo de espaos pblicos, a recuperao de centros comerciais, a reconstituio de corredores de bairros, a requalificao da imagem da cidade, o reequilbrio psicossocial. Todas estas expresses so exaustivamente utilizadas nos documentos oficiais e entrevistas com tcnicos e arquitetos do projeto. a fora do RE, do que pretende trazer de volta aquilo de bom que teria se perdido na cidade, atualizando a sua face frente ao momento histrico por que passamos no pas e no mundo. importante destacar a nfase que a rua tem como ponto de partida e conceito estruturador nesta concepo urbanstica. a partir dela que decorrem os outros conceitos que lhes so extenso como de espaos pblicos, corredores e bairros. Bem como, convergem para ela o alvo da interveno urbanstica e os seus resultados, expressos recorrentemente nas frases: o urbanismo de volta s ruas e a devoluo das ruas ao cidado.Como resultados pretendidos pelo Rio Cidade e projetados por sua concepo urbanstica, numa dimenso mais simblica e ontolgica, encontraremos: a recuperao da imagem da cidade, a elevao da auto-estima do carioca e a valorizao do sentimento de pertencimento. Tudo isso se desenvolveria num movimento contraditrio durante a implementao do projeto, demonstrando os limites deste discurso urbanstico e a constituio no espao da cidade novos territrios de restrio cidadania, a despeito de seu resgate.O territrio Rio CidadeCom o objetivo de fazer uma observao in loco das transformaes promovidas pelo projeto Rio Cidade I, resolvemos, em pesquisa de campo realizada entre janeiro e abril de 1998, percorrer o maior nmero possvel de bairros por ele afetados. Dos 15 bairros onde o projeto j havia sido implementado e suas obras concludas, visitamos 13. Neles procuramos observar livremente a realidade emprica do lugar, bem como o comportamento das pessoas diante da obra. Complementamos a observao com algumas entrevistas feitas com moradores dos bairros ou pessoas que circulavam ou usavam o mobilirio e servios urbanos introduzidos ou recriados pelo projeto.Assim sendo, sintetizaremos a seguir o conjunto dessas observaes, enfatizando os aspectos comuns existentes entre os diferentes bairros onde o Rio Cidade I foi implementado.O primeiro ponto de carter abrangente que nos chamou a ateno que o Rio Cidade demarca um territrio no interior de cada bairro. Tal fato ocorre primeiramente atravs do reforo que ele promove ao ser implementado naquelas reas onde j havia uma maior circulao e uma maior concentrao do comrcio local. Essas reas foram re-qualificadas pelo projeto urbanstico recebendo um novo mobilirio urbano e tratamento diferenciado, como veremos adiante.Alm disso, um trao marcante dos projetos urbansticos dirigidos a esses bairros que, embora tenham sido feitos por escritrios de arquitetura distintos, h neles uma preocupao em estabelecer marcos atravs de objetos ornamentais, tais como obeliscos, chafarizes, relgios, esculturas, etc, pontuando o incio e o fim da rea de abrangncia do Rio Cidade e visando aludir a elementos identitrios do prprio bairro. Tal fato foi facilitado pela escolha de trechos ou corredores que demarcam os limites/formato de cada projeto.Esse formato linear, alongado, em eixos, predomina como caracterstica da geografia dos projetos, em que aparecer sempre uma artria importante (avenida ou rua) como referncia para a interveno. So exemplos disso as intervenes em algumas importantes avenidas da cidade como a Rio Branco, no Centro. Esse aspecto, no nosso entender, facilita o controle urbano e a manuteno da segurana, na rea do projeto, uma vez que tende para uma perspectiva de panopticum na qual do ponto inicial possvel se ter uma viso que abarca todo um longo trecho.O segundo ponto a destacar diz respeito limpeza da paisagem promovida pelo projeto. Uma das formas de realizar essa limpeza foi a da eliminao de fios - das redes eltrica e telefnica que cortavam a paisagem. Toda a fiao, nos trechos tocados pelos projetos, foi embutida no subsolo. Para efeito de embelezamento os postes de iluminao foram reordenados e substitudos por outros que visam causar impacto esttico e ampliam a claridade.Tambm as caladas foram alvo desta limpeza. Observamos que houve uma certa uniformizao da sua forma e do seu uso. Por exemplo, em alguns bairros elas tiveram sua largura reduzida; em outros, elas cresceram em tamanho. As modificaes variaram no s de bairro para bairro, como tambm no interior do prprio bairro. Em alguns lugares, elas foram reduzidas para dar lugar a pontos de txi ou recuo para carga e descarga e estacionamento. Em outros, elas foram ampliadas para facilitar a circulao de pessoas no passeio e seu acesso aos prdios e lojas. A longo delas, foram tambm realocados os telefones pblicos, as caixas coletoras dos correios e as bancas de jornal. Tudo isso provoca em quem chega ou passa nessas reas um impacto que se associa a uma sensao de ordem e limpeza.A prpria limpeza urbana, no seu sentido estrito, foi incrementada, de maneira geral, nas ruas atingidas pelos projetos do Rio Cidade. Ao circularmos por essas ruas, nos surpreendeu a presena quase permanente de trabalhadores da empresa de limpeza urbana realizando a limpeza dos logradouros pblicos nos limites do projeto. Em alguns bairros, inclusive, encontramos um reforo dessa limpeza sendo realizado por homens e mulheres que vestiam macaces azuis com a expresso Fazenda Modelo impressa nas costas. Atravs de entrevistas17, soubemos que se tratava de ex-indigentes que foram retirados da rua pela Prefeitura, abrigados naquela fazenda - localizada na Zona Oeste da cidade - e incorporados ao trabalho de limpeza urbana por um salrio mnimo e meio, tendo moradia, alimentao e transporte garantidos, a poca, pela Prefeitura18.Como parte dessa limpeza da paisagem houve, ainda, medidas visando a desobstruo das ruas. A principal delas, observada por ns, foi a retirada de camels (comrcio informal) das caladas de ruas onde tradicionalmente se localizava este tipo de comrcio. Em nosso trabalho, fomos surpreendidos, por exemplo, pelo esvaziamento de ruas tradicionais deste tipo de comrcio na cidade. A sada dos camels tirou dessas ruas um certo ar de feira popular secularmente instalada nesses bairros19.O comrcio ambulante foi realocado, em todos os bairros visitados, tendo sido retirado das ruas principais e transferido para transversais de menor circulao, perifricas ao eixo atingido pelos limites do projeto. Alm disso, o nmero de camels reduziu-se significativamente e passou a sofrer uma vigilncia implacvel da fiscalizao da Prefeitura, com a cobertura da Guarda Municipal, no sentido de impedir seu retorno aos locais originalmente ocupados.Em contrapartida, foi possvel observar a ocupao de caladas por bares e lanchonetes que passaram a estender seus servios - com barracas, mesas e cadeiras - para o exterior de suas lojas. O maior exemplo disso o da mundialmente conhecida lanchonete Mac Donalds que, em vrios pontos da cidade, ocupou reas externas s suas propriedades, estendendo-se para o passeio ou calada. Portanto, a limpeza das ruas nos pareceu seletiva com a sada de uns e a entrada de outros atores. Os camels no podem ocupar o passeio ou caladas, mas os estabelecimentos comerciais (lanchonetes, bares e restaurantes), passaram a poder ocupa-lo em determinadas situaes e horas do dia, ampliando, assim, para o espao pblico suas instalaes. Entraram, tambm, no lugar dos camels, quiosques de venda de plantas e flores e enormes bancas de jornal e revistas. Os quiosques, embora no tenham todos o mesmo formato, acompanham uma certa padronizao, provavelmente exigida pela Prefeitura. So todos de madeira, de forma quadrangular, e expem as mercadorias ao seu redor, ocupando boa parte das caladas. Normalmente situam-se nos largos, praas ou em ruas exclusivas para pedestres, aparecendo em quase todas as reas atingidas pelo projeto.Essas mudanas aparecem associadas racionalizao e disciplinarizao do uso das ruas. Procurou-se reordenar a circulao de pessoas atravs da instalao de cercas e jardineiras ou obstculos nos limites das caladas - sobretudo nas esquinas -, da recomposio de faixas de pedestres, da realocao de pontos de nibus e de txis e da disciplinarizao dos estacionamentos de automveis, evitando paradas nos eixos principais do projeto. Os estacionamentos autorizados encontram-se, em geral, nas reas limtrofes ao trecho do Rio Cidade em cada bairro.Apesar dos documentos oficiais exaltarem a devoluo das ruas para os pedestres, observamos que, em alguns bairros, a nfase recaiu sobre a circulao, tanto de pessoas quanto de veculos, de tal modo que o reordenamento da rua e o mobilirio urbano introduzido nos pareceram ter o objetivo de aumentar a fluidez, privilegiando aquele que passa, de automvel ou a p. As paradas de nibus se tornaram mais distantes umas das outras e raramente possuem bancos para que as pessoas possam se sentar enquanto aguardam o nibus. O mesmo podemos dizer em relao aos telefones pblicos, que foram concentrados em ilhas, com intervalos bem maiores entre eles. O conjunto dessas mudanas de ordenamento e disciplinarizao do novo territrio introduzidas pelo Rio Cidade condicionou certos comportamentos e atitudes e, em contrapartida, inibiram outros. Nesse sentido, observamos que os elementos urbansticos utilizados pelo projeto garantem-lhe uma dose de eficincia ao impedir ou constrangir alguns usos do espao pblico, independente da coibio policial. O fechamento de praas que s abrem durante o dia e so guardadas permanentemente pelo policiamento e evita que sirvam a outros fins que no os de lazer. O mesmo podemos afirmar sobre a ausncia de bancos e coberturas amplas nas paradas de nibus, o que elimina a possibilidade destas servirem de abrigo a pessoas sem teto ou indigentes. Estes so exemplos, ao nosso ver, extremos deste fato.Ao inibir ou constranger a utilizao das ruas para certos usos e paras algumas pessoas (camels, sem tetos, meninos de rua, indigentes, etc) voltamos quele ponto da seletividade do projeto. Pareceu-nos ntida a intencionalidade dos projetos urbansticos que compem o Rio Cidade em evitar a presena de certas pessoas tidas como indesejveis ou sobrantes, uma vez que so consideradas como elementos causadores de caos, insegurana e, portanto, de desordem urbana.A presena marcante da Guarda Municipal20 nos domnios do Rio Cidade vem corroborar a idia de que se trata de um territrio de uso seletivo e diferenciado do conjunto do prprio bairro onde ele se situa. A ao da Guarda Municipal no se d de maneira generalizada em todo o bairro, concentrando-se nas reas do projeto. Pudemos constatar que sua atuao se dirige, sobretudo, retirada dessas pessoas indesejveis e reforada, em alguns lugares, pela presena de uma espcie de segurana privada, identificada por coletes pretos, onde se lem Apoio s lojas, semelhantes quelas que encontramos nos shopping centers. Essas duas foras coercitivas no portam armas de fogo, mas agem de forma complementar. A Guarda Municipal tem autoridade conferida pelo poder pblico para uma represso mais ostensiva, caso seja necessrio. Portam cacetetes, algemas, walk-talks e, em algumas situaes de confronto, podem lanar mo de ces, escudos e mscaras protetoras, constituindo-se, tambm, numa tropa de choque. Quanto segurana privada de Apoio s lojas, so grupos pra-policiais que atuam fazendo uma viglia permanente nas portas dos estabelecimentos comerciais e no uso das caladas, no limite das lojas. Apesar de no portarem armas, estes homens so, em geral corpulentos e portam, em alguns casos, walk-talks para se comunicarem entre si e com a Guarda Municipal. So pagos por lojistas associados por ruas e comum trazerem impressos, nos coletes, os nomes das ruas em que trabalham/vigiam ou controlam.Este aspecto da dita segurana, adicionado aos elementos urbansticos e s medidas de disciplinarizao introduzidas pelos projetos em cada rea - e j comentados acima - acarretaram a revalorizao do comrcio formal, beneficiando, sobretudo, os lojistas. Tornou-se possvel, assim, afastar a concorrncia renitente do comrcio informal (camel), dar maior visibilidade s vitrines das lojas, revalorizar as fachadas e atrair - pelo menos em tese uma maior clientela atravs do embelezamento e aparncia de maior segurana nas ruas.Este coquetel, que combina, no mesmo territrio, componentes estticos, segurana e comodidade para o consumo nos remete receita de sucesso dos shopping centers na cidade. Ao mesmo tempo, traz para as ruas um estilo de organizao de ambientes seletivos j testados e habituais para o consumidor carioca, visto que os shopping centers j se encontram difundidos por toda a cidade (desde incio dos anos de 1980), alcanando hoje diferentes bairros. Estes estabelecimentos, que so dirigidos por administraes compostas por um conglomerado de lojas, ao se implantarem, passaram a drenar parte do mercado consumidor, exatamente por se apresentarem sob uma forma esteticamente moderna, sedutora, confortvel, segura e aprazvel. Constituram-se, portanto, em fortssimos concorrentes ao comrcio formal j cristalizado nos bairros.No toa que, em algumas passagens dos documentos oficiais, h referncias urbanizao do Rio Cidade como sendo um projeto que transforma as ruas num shopping a cu aberto21. Nas visitas para observao, pudemos sentir exatamente a justeza desta expresso.Este produto urbanstico - Rio Cidade - sintetizado na idia de shopping a cu aberto, ao ser implantado, desencadeou um processo de diferenciao entre bairros e no interior de cada bairro onde ele se deu. Isso ocorreu sobretudo nos bairros das Zonas Norte e Oeste da cidade do Rio de Janeiro. At ento, as intervenes urbanas que visavam melhorias de servios, novos equipamentos, embelezamento e segurana eram dirigidas, preferencialmente, para o Centro e bairros da Zona Sul da cidade. Portanto, a ao do Rio Cidade em bairros que nunca ou raramente receberam obras de infra-estrutura e melhoria urbanstica tendeu a causar, na paisagem, um contraste maior do que em bairros que j se apresentavam com uma aparncia urbana mais moderna. Neste sentido, os bairros das Zonas Norte e Oeste da cidade que receberam o Rio Cidade passaram a apresentar um contraste maior em relao aos bairros vizinhos, em funo da re-qualificao de que foram objetos. A partir da, desencadeou-se, junto Prefeitura, por parte de bairros situados nessas Zonas e no contemplados pelo projeto, toda uma demanda por extenso dos benefcios do Rio Cidade.No interior de cada bairro tambm se operou um processo de diferenciao, igualmente acentuado, sobretudo naqueles bairros de Zonas mais pobres. Ao percorrermos as ruas de cada bairro do Rio Cidade I, visvel o contraste entre aquelas reformadas pelo projeto e as demais. As ruas que sofreram a interveno tiveram uma mudana significativa e, alm dos recursos urbansticos, foram dotadas de novas galerias pluviais, nova iluminao, arborizao, pavimentao de caladas, dutos para as redes telefnica e eltrica, novos coletores de lixo e telefones pblicos, etc. Estes benefcios, no entanto, no se estenderam ao conjunto do bairro, reforando-se bastante, dessa forma, uma diferenciao pr-existente, pois as ruas escolhidas para o Rio Cidade j se destacavam pela concentrao do comrcio local e servios. Portanto, houve um reforo com o projeto das centralidades j existentes. O Rio Cidade leva, portanto, recursos, antes concentrados na rea central da cidade, para bairros perifricos. Entretanto, a forma de sua realizao, recria a relao centro-periferia no interior do prprio bairro e deste para os bairros vizinhos.O Rio Cidade traz, portanto, na sua proposio e realizao, um elemento segregador espacialmente que se multiplica de diferentes maneiras. A primeira delas j est presente na prpria concentrao de investimentos em reas/pontos restritos dos bairros, como assinalamos. A outra, tambm j comentada anteriormente, aquela que escolhe quem vai usar, de fato, o novo territrio, expulsando dela os indesejveis ou sobrantes de seu consumo. Por fim, insere-se na manuteno desta segregao o maior controle scio-espacial da rua, efetuado seletivamente pela fora policial - Guarda Municipal e milcias de Apoio. guisa de conclusoNum quadro histrico de concentrao de riqueza, particular sociedade brasileira, e acentuado, neste momento, por um processo mundial de polticas neoliberais aplicadas s cidades, esse tipo de interveno urbana adquire, ao nosso ver, um aspecto dramtico, uma vez que, a pretexto de revitalizar certos espaos da cidade para o capital privado, o poder pblico local acaba por criar ou recriar novos territrios de restrio cidadania num sentido amplo a toda a populao. Como lembramos, a expresso shopping centers a cu aberto nos d bem a medida destes novos territrios produzidos pela plstica urbanstica no interior da cidade do Rio de Janeiro e submetidos a diversas formas de controle e coero policial. Em certa medida, quase um sculo depois, Pereira Passos atualizado na limpeza social da cidade e aliado ao embelezamento e ordem. No lugar de civilizar-se, cidadanizar-se ao sabor dos desejos do mercado e interesses vinculados ao turismo em escala internacional.O Rio Cidade apresenta-se, portanto, marcado pela ambigidade presente no discurso fundante da cidade do Rio de Janeiro. Mais uma vez, tentando-se ativar o plo do maravilhoso e enfraquecer o plo da degradao ou do caos, se buscou criar territrios que facilitassem o controle scio-espacial e que servissem de vitrine para os observadores da cidade. Ao mesmo tempo, buscou-se construir, atravs da interveno urbana, a legitimao de uma ordem elitista e excludente j consagrada na cidade.Dessa vez, entretanto, o discurso fundante atualiza-se na combinao com o discurso ideolgico da cidadania de mercado do neoliberalismo. A cidade, portanto, uma grande mercadoria, produto de marketing e da instrumentalizao de um capital que se pretende global ou mundial. Para ser cidado, portanto, na cidade, preciso estar apto a consumir ou preparado para se tornar cliente ou usurio. Neste modelo de cidadania, raramente h espao para reconhecimento, ou mesmo, incorporao do outro, aquele que est de fora, se apresenta como diferente ou se ope politicamente de uma forma organizada.Mais do que nunca est pr-definido, neste modelo de cidade, quem poder ser cidado. Ambigamente, ao se tentar ativar o plo do maravilhoso na cidade do Rio de Janeiro, empurrando para territrios secundrios e cada vez mais secundarizados aqueles que espelham a problemtica social pelas poucas oportunidades de vida e trabalho que possuem, ativa-se, ainda mais, o plo da degradao. A iluso de que se pode preservar ilhas de um suposto bem-estar ou, mesmo, de propag-lo para toda a cidade por um efeito de contgio sinergia promovido pelos projetos urbansticos, no encontra fundamento real, apenas uma representao e porque no dizer uma ideologia. Assim, se por um lado, a interveno urbanstica do Rio Cidade possibilitou um planejamento urbano tido como de novo tipo, com uma racionalidade e administrao de empresa, como parte do plano estratgico da cidade, por outro, o que observamos um aumento do controle social sobre o espao, dos seus usos e servios e da populao que dele se utiliza, caracterizando, ao nosso ver, em muitos aspectos, formas de restrio cidadania para determinados sujeitos e atores sociais. Notas

1 O endereo eletrnico da Secretaria Municipal de Obras do Rio de Janeiro http://www.rio.rj.gov.br/smo/smo5.htm.2 Cesar Maia venceu as eleies para prefeito da cidade na campanha de 1992, pelo Partido da Frente Liberal (PFL, atual DEM - Democratas), quando concorreu no segundo turno contra Benedita da Silva do Partido dos Trabalhadores (PT). Sua gesto iniciou-se em 1 de janeiro de 1993, terminando em 1 de janeiro de 1997, com a posse de Luiz Paulo Conde, candidato apoiado por Csar Maia - havia sido seu Secretrio de Urbanismo - tambm do ento PFL.3 Idem, p. 31.4 Idem, ibidem.5 Idem, ibidem.6 Idem, ibidem.7 Idem, p. 33.8 Revista Rio Cidade, p. 4.9 Rio Cidade: um percurso, p. 310 Rio Cidade: o urbanismo de volta s ruas, p. 11.11 Rio Cidade: o urbanismo de volta rua, p. 3.12 Vicente del Rio participou como integrante do escritrio M &T Mayerhofer & Toledo Arquitetura e Planejamento e Consultoria Ltda., do projeto Rio Cidade para o bairro do Mier, na Zona Norte da cidade.13 Rio Cidade: um percurso, p. 17. Rio Cidade: um percurso, p. 17.14 Rio Cidade: o urbanismo de volta rua, p. 4.15 Rio Cidade: um percurso, p. 20.16 Idem, p. 3.17 A maior parte dessas informaes obtivemos em entrevista com a supervisora de um desses grupos de trabalho na Praa Saens Pea, na Tijuca.18 Essa iniciativa faz parte de um outro projeto da Prefeitura de nome Morar sem risco, vinculado Secretaria Municipal de Habitao, existente h dez anos. Alm dos indigentes, so dirigidos para a Fazenda Modelo desabrigados de enchentes e populaes que habitavam reas localizadas sob viadutos enquanto aguardam novas moradias.19 No caso da Penha, esta tradio do comrcio ambulante se liga, na origem, aos famosos barraqueiros que ali se instalavam nos perodos de festa da Igreja de Nossa Senhora da Penha. No bairro de Madureira, as barracas se constituam numa espcie de prolongamento do antigo mercado que funcionava nesta rua, onde hoje se concentra o principal comrcio varejista do bairro, no local que atualmente abriga a quadra da Escola de Samba do Imprio Serrano.20 A Guarda Municipal foi criada pela Lei n. 1.887/92.21 No documento Rio Cidade - o urbanismo de volta s ruas encontraremos esta aluso, por exemplo, no projeto feito para o bairro da Penha, onde se l que bancos, jardineiras e quiosques foram dispostos longitudinalmente, qualificando o ambiente maneira de um shopping a cu aberto (p. 93).BibliografiaARANTES, Otlia et all. A cidade do pensamento nico: desmanchando consensos. Petrpolis: Vozes, 2000.BORJA, Jordi e FORN, Manuel de. Polticas da Europa e dos Estados Unidos para as cidades. Espao & Debates, So Paulo: Ncleo de Estudos Regionais Urbanos, (39): 33-47, 1996.HARVEY, David. Do gerenciamento ao empresariamento: a transformao da administrao urbana no capitalismo tardio. Espao & Debates. So Paulo: Ncleo de Estudos Regionais e Urbanos, (39): 48-64, 1996.SASSEN, Saskia. The global city. New York/London/Tokyo: Princeton University Press, 1991.Fontes documentaisConcurso Projeto Rio-Cidade: edital e anexos. Rio de Janeiro: IAB-RJ, 1993.Plano Estratgico da Cidade do Rio de Janeiro: Rio Sempre Rio: Rio de Janeiro, jan. 1996.Rio Cidade. Rio de janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro: Iplanrio, out. 1996.Rio Cidade: o urbanismo de volta s ruas. Rio de janeiro: Iplanrio, out. 1994.Rio Cidade: um percurso. Rio de Janeiro: Iplanrio, 1995.Rio Cidade: o urbanismo de volta s ruas. Rio de janeiro: Iplanrio/Mauad, 1996.Referencia bibliogrfica

OLIVEIRA, Mrcio Pion de. Projeto Rio Cidade: interveno urbanstica, planejamento urbano e restrio cidadania na cidade do Rio de Janeiro. Diez aos de cambios en el Mundo, en la Geografa y en las Ciencias Sociales, 1999-2008. Actas del X Coloquio Internacional de Geocrtica, Universidad de Barcelona, 26-30 de mayo de 2008.