rio de sangue parte i
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RIO DE SANGUE Parte I: O Começo
No começo eram sós os
índios, como em todo o continente americano, os Tupis-
Guaranis que englobavam os Tapes, Carijós, Caaguas,
Guaianás, Aranchanes, Gês, Coroados, e os Guaicurus dos
quais faziam Parte os Jaros, Guenos, Charruas e Minuanos.
Os Tupis-Guaranis já dominavam o cultivo da terra,
instalando suas aldeias nos lugares mais férteis, os
Guaicurus viviam da caça e da pesca.
Até chegarem os grandes navegadores. Portugueses e
espanhóis dominaram o continente do norte para o sul,
tomando tudo o que viam pela frente como seu. Portugueses
pelo leste, espanhóis pelo oeste em disputas fronteiriças
entre si, mas sem duvidar nunca que eram os donos de tudo.
Quando o território começou a afunilar essas disputas se
tornaram mais acirradas, até o inevitável encontro.
A terra encontrou o mar, portugueses e espanhóis disputavam
o mesmo pedaço.
A Província de São Pedro do Rio grande do sul só teve sua
posse e fronteiras definidas no ano de 1777, das missões
Jesuítas até o oceano Atlântico era território português.
Já havia nessa época um pequeno núcleo urbano em função do
forte militar Jesus Maria Jose e do Porto que se localizava
no único ponto do litoral em que a presença das lagoas não
impedia o cesso direto ao continente. Foi nessa província
ainda sem nenhuma atividade econômica relevante, que no ano
de 1779 desembarcou um português vindo da Província do
ceara na companhia de alguns negros, e a idéia de produzir
carne salgada. Como o processo exigia a secagem da carne em
varais, as praias de areia fina do Rio Grande não foram
adequadas. E foi à procura do lugar ideal que esses homens
chegaram às margens do arroio Pelotas em 1780.
Com uma mistura de
tecnologia obtida das culturas indígenas e africanas o
português criou a industrialização de um produto que
encontrou mercado no pais inteiro e logo em outros paises,
chegando a ser a 5ª economia do Brasil. Como esse processo
de industrialização dependia não só da mão de obra, mas
principalmente do conhecimento dos africanos, esses firam
trazidos em massa, nas piores condições possíveis. Chegaram
a representar 60% da população o que deixa bastante clara a
sua importância na construção desta economia. A estação de
matança ocorria nos meses que havia sol para secagem ou
seja de novembro à maio, no restante do ano o contingente
africano era transferido para as olarias. Um séc. inteiro
produzindo charque, dormindo em senzalas úmidas, agüentando
o frio, as doenças, e o "mal do sal" rachando seus pés.
Um séc. amassando barro,
fazendo telhas, falquejando madeira, entalhando pedras,
dando forma a uma arquitetura opulenta que nascia da
riqueza do charque. Construindo o cenário perfeito para uma
historias de barões, generais, guerras, saraus, teatro,
musica, requinte e sotaque francês. Enquanto os salões
adquiriam fama nacional, nas cozinhas estavam habeis
criaturas cuja cultura milenar ritualizava o preparo de
iguarias, que tornaram memoráveis as mesas deste lugar.
Todo o luxo e refinamento que o dinheiro do
charque, a habilidade dos africanos, e a terra dos índios
lhes permitiu. Uma grande historia, um grande momento, os
navios saiam carregados de charque todos os dias
abastecendo armazéns pelo mundo a fora, o charque era a
gasolina do mundo escravista, já que o trabalho escravo era
a força motriz do séc. XIX, esta carne era a única proteína
que mantinha forte o plantel africano, que na condição de
escravos, construía o "novo mundo" e dava manutenção ao
"velho".
Disponível:http://terradeandrea.blogspot.com.br/2009/01/rio-de-sangue-parte-i-o-
comeo.html
A Produção do Charque em Pelotas no Séc. XIX
Este texto foi publicado pelo inglês Nicolaus Dreys no ano de 1839 no livro Noticia Descritiva
do Rio Grande, tentando descrever essa "novidade" que era a forma de produção do charque
no sitio charqueador pelotense...
Cruzei ele com a gravura e de J. B. Debret de 1827 "Charqueada em Pelotas", usei também um
desenho de Pedro Marasco para o storyboard do filme Concerto Campestre, a aquarela do
alemão Wendroth de 1857 intitulada "Dança de Negros em Pelotas" eo desenho de Carybé
"Ala de Oxalá". Afim de tentar visualizar esse engenhoso processo de produção que mudou a
história e o destino de tantos... E fundou duas cidades... Pelotas RS Aracati CE
A Influência da Cultura Africana na Formação do RS
sábado, 26 de abril de 2014
F de Fujão
Esse “F” de fujão está em nossa alma, está em nossas raízes...
Era assim que marcavam negros na época da escravidão para que
todos soubessem que esse negro era um problema.
Hoje esse “F” é nossa resistência é nossa luta diária
De quem Reconstrói a sua negritude e luta realmente para ser
livre ou liberto de qualquer situação, prisão, descriminação...
Enfrentando a complexidade de ser negro no tempo atual.
Tenho esse “F” hoje mais como Força como estranha forma de
liberdade que se impõe que não aceita a hipocrisia instaurada há
muitos anos pela nossa sociedade e seus padrões esbranquiçados
da nossa história mal contada em seus livros escolares.
Tenho esse “F” marcado na testa para que todos vejam que eu não
me entrego que não sou mais um na boiada, pois faço a diferença,
que não serei subjugada por valores onde o racismo ainda impera
com sua máscara dizendo: Que hoje sofremos menos preconceito do
que antes.
Tenho esse “F” marcado nas minhas costas que vai ao encontro com
as minhas origens e que mesmo com tantas barbarias não nos
silenciaram.
Texto Fabiana Lara dos Santos
Disponível: http://terradeandrea.blogspot.com.br/search?updated-min=2014-01-01T00:00:00-
02:00&updated-max=2015-01-01T00:00:00-02:00&max-results=3
Sobre a principal origem do negro no Rio Grande do Sul
"Encontram-se no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul três
listas referentes ao tráfico negreiro sulino durante os anos de 1802
e 1803. Eles registram, possivelmente, uma parte substancial dos
africanos escravizados introduzidos no Sul nestes dois anos. De um
total de 1.195 cativos, 1.104 eram, com certeza, africanos.
Nesta época, a produção charqueadora escravista encontrava-
se já em pleno desenvolvimento. O Sul constituía, então, um
importante centro "consumidor"de escravos novos que, trazidos
preferencialmente do Rio de Janeiro, eram introduzidos pelo porto
de Rio Grande e distribuídos no Sul. Se estes dois anos de tráfico
são representativos, também nos primeiros anos do século XIX, os
"angolanos" constituíam a parte essencial da população africana
gaúcha.
O grupo majoritário continua constituído pelos "angolas".
Tratavam-se de quimbundus do antigo reino do N'dongo,
provenientes das regiões do Kuanza. A seguir, tínhamos os
"benguelas", ou seja, povos ovimbundus "exportados" através do
porto de São Felipe de Benguela, fundado em 1617, pelos
lusitanos, no Sul angolano. Os "congos", quarto grupo em
importância, eram cativos kikongos do antigo reino do Konto, no
norte da hodierna Angola. Quanto ao terceiro grupo, não nos foi
possível descobrir que comunidade étnico-cultural os lusitanos
designavam sob o nome de "rebolos". "Minas", como já foi
assinalado, eram os africanos exportados da Costa da Mina, na
atual Gana. "Quissamas", "cassanges", "songas", "cabundas",
"ambacas", "ganguelas" são também "angolanos". Não nos foi
igualmente possível identificar de onde eram provenientes os
"mohumbes", os "manjolos" e os "messambes". Assim, os cativos
provenientes de Angola compreendiam - no mínimo - mais de 80%
do total dos assinalados nas listas de 1802 e 1803.
Fonte: Maestri Filho, Mario José. O escravo gaúcho: resistência e
trabalho, 1984. Ed. Brasiliense, São Paulo. (Págs. 35 a 37)
Disponível: http://sopapodopadeiro.blogspot.com.br/2014/02/sobre-
principal-origem-do-negro-no-rio.html
Texto escrito por Fernando Luiz Osório referenciando festa do culto de
matriz africana em Pelotas no século XIX
"Desde epochas muito remotas, a população africana aqui, então
representada por alguns milhares de pretos, [ ] todos os domingos e dias
santos, do meio dia á noite, exhibia-se publicamente em dansas e cantigas
usadas entre os gentios. O ponto dessa reunião era sempre á grande sombra
de cinco de nossas frondosas figueiras, dispostas em amplo circulo que
indicava o traço de um antiguíssimo curral, offerecendo, por essa
amplitude, franca área e todas as condições para a diversão. Essa localidade
é além do arroio Santa Bárbara, á esquerda da ponte da rua Riachuelo, entre
a Manduca Rodrigues e o referido arroio6. Á hora indicada, do centro da
cidade partia o grande grupo de africanos, cantando em altas vozes, ao som
de rudes tambores [grifo meu], chocalhos, guizos e de extranhos
instrumentos feitos de grandes porongos, revestidos de elevado número de
contas, búzios, pequenos caramujos e missangas. O vestuário era
exquisitissimo, constitӒdo de tangas, turbantes, capacetes, mantos, tudo
das mais vivas e variadas cores. Á frente, vestido no mesmo estilo, seguia o
Rei, por todos acompanhado até o lugar do batuque (candombé) como elles
denominavam. Todo esse cerimonial era também executado nos velórios,
assim como nos enterros até o defunto baixar à sepultura. (OSÓRIO, 1922,
p.174)"
Fernando Luiz Osorio era formado em Cie ncias Jurídicas e
Sociais e foi Ministro do Supremo Tribunal Federal durante o mandato
de Floriano Peixoto. Como cronista, escreveu livros e
inumeros artigos sobre a historia de Pelotas. Nao foi
possivel identificar a data da confere ncia citada. Entretanto,
podemos situá-la aproximadamente logo após a abolic ão, considerando
que nasceu em 1848 e faleceu em 1896.
Fonte: Maia, Mario de Souza. O Sopapo e o Cabobu - Etnografia de uma
tradição percussiva no extremo sul do Brasil, UFRGS, 2008.
Disponível: http://sopapodopadeiro.blogspot.com.br/2014/02/texto-escrito-por-fernando-luiz-
osorio.html
R I O G R A N D E D O S U L .
A História do Racismo e do Escravismo
A História do Racismo e do Escravismo
"Numa estimativa conservadora, mais de onze milhões de escravos atravessaram o Atlântico... pelo
menos dois milhões morreram na viagem infernal..." Vejam bem como diz o texto, isso significa que no
mínimo nove milhões foram escravizados no Novo Mundo, e seus descendentes por séculos, o que
aumenta drasticamente esse número.
Disponível: http://sopapodopadeiro.blogspot.com.br/2014/01/a-historia-do-racismo-e-do-escravismo.html
RIO de SANGUE Parte II: O processo de produção
Essa movimentação atraiu pra cá toda tipo de gente, aventureiros,
intelectuais, religiosos, cientistas, artistas, bandoleiros , fugitivos da
lei, aristocratas...
Muitos de passagem
deixaram seus relatos, escritos, imagens desenhadas, entre eles o
desenhista francêsJean Batist Debret que imortalizou os dois tipos
de abates, ficando clara a superioridade tecnológica do núcleo
charqueador pelotense.
O inglês Nicolau Dreys na obra Notícia Descritiva da Província do
Rio Grande de São Pedro de 1839 detalha esse processo de forma
minuciosa.
"O modo de matar gado, primeira operação da charqueada, deve
naturalmente influir sobre o asseio do estabelecimento,e
infelizmente esse modo não é uniforme em todas as partes, nem
igualmente aperfeiçoado; difere segundo as províncias e até, em
certos lugares, segundo as charqueadas; na campanha de
Montevidéu, e mesmo nas charqueadas limítrofes da Província do
Rio Grande, os peões montam a cavalo; um deles estimula o animal
recolhido num curral aberto agitando ante seus olhos um ponche
colorado, e quando o novilho exasperado lança-se afinal sobre o
agressor e entra a persegui-lo, outro peão armado de uma lança
comprida cujo ferro tem feitio de meia lua, corre atrás do boi e corta-
lhe o jarrete, abandonando-o logo que cai para ir atrás de outro boi
preliminarmente excitado pelos mesmos meios; entretanto, um
camarada ou u negro toma conta do animal e sangra-o; esse
método não é sem perigo, mas por isso mesmo agrada aos hábitos
aventurosos dos gaúchos [...] Porem homens tão esclarecidos com
são em geral os charqueadores do Rio Grande* não podiam deixar
de chamar a indústria em auxílio de seus trabalhos, tanto para
economizarem os braços como para minorarem, quanto possível ,
não só o perigo como também as repugnâncias inseparáveis do ato
e da conseqüência da matança; hoje em dia, nas charqueadas as
mais bem organizadas, matam-se os bois por um método mais
expedito, mais seguro e menos cruel. O gado fechado no curral é
impelido na direção de dois corredores, separados um do outro por
uma espécie de esplanada levantada a sete ou oito palmos do solo;
um peão em cima dela, lança no boi um laço cuja extremidade esta
atada , fora do recinto, num cabrestante posto em movimento por
um ferralho (trinqueta), manejada por dois negros: quando o boi,
puxado pelo laço, chega a encontrar-se com a cerca contra a qual a
cabeça se acha comprimida, uma pessoa, que o espera
exteriormente, introduz-lhe a ponta da faca nas primeiras clavículas
cerebrais, donde resulta ficar espontaneamente privado de
movimento; nesse estado, um guindaste, rodando sobre o eixo,
eleva o animal asfixiado para fora do curral por cima do cercado e o
transporta para debaixo do telheiro, sobre um lajedo disposto em
segmento de esfera, onde se sangra, sem que graças a disposição
bem entendida do lugar, a operação deixe depois vestígios nenhum.
Retalhado o boi, levam-se as mantas (assim se chama as partes
musculares) para o salgueiro, e não há nada mais fresco e menos
enojoso que o salgadeiro: vasto alpendre guarnecido de todos os
lados, até mesmo no chão, de folhas de butiá que escondem o
hediondo da morte debaixo de um véu de verdura e não revela ao
olfato nenhum átomo de mefitismo. Depois de salgada, a carne a
carne empilha-se ali mesmo pra se lhe extrair a umidade, a qual
corre com sal derretido e supérfluo num reservatório inferior, onde
se lança subseqüentemente as costelas, as línguas e outras partes
que se quer conservar na salmoura. Esgotada que seja, a carne é
levada do salgadeiro para os varais: assim é denominada uma
grande extensão de terreno plantado de espeques arruados, de
quatro a cinco palmos de altura,atravessados por varas compridas
em que se suspendem as mantas para secarem pela ação do sol e
dos ventos; quando se receia alguma chuva repentina, o toque de
um sino chama, para os varais, todos os negros da charqueada, e
coisa curiosa é ver como num instante a carne amontoada por
porções nos mesmos varais se acha escondida debaixo dos couros
que não permitem o menor acesso às águas do céu. Estando a
carne perfeitamente seca, é disposta em forma de grandes cubos
oblongos assentado num chão artificial, levantado de três a quatro
palmos, para dar passagem ao ar; nesse estado cobrem-se ainda
de couros para esperar o embarque. [...] È uma ocupação regular
distribuída segundo as forças de cada negro, no desempenho da
qual o negro entra com tanto mais vontade que não se pode
dissimular que alguma coisa tem de conforme o trabalho com suas
inclinações.
Gravura Danubio Gonçalves
Na estação da matança, isto é, de novembro ate maio, o
trabalho das charqueadas principia ordinariamente à meia-
noite, mas acaba ao meio-dia, e tão pouco cansados ficam os
negros que não é raridade vê-los consagrar a seus batuques as
horas de repouso que decorrem desde o fim do dia até o
instante da noite em que a voz do capataz se faz ouvir." [ps.202-
205]
Gravura Caribé
Essa ordem tão surpreendentemente instalada, exigia tecnologia,
conhecimento, preparo, treinamento. Seria um absurdo pensar que
um ritual religioso milenar praticado pelos africanos, estava na base
desta revolução tecnológica? Seria um absurdo pensar que a
presença de um povo que a milhares de anos realiza matanças
sagradas observando primícias, como não pisotear sangue,
despacha-lo em água corrente, não destratar viceras, colocar os
animais em quarentena antes do sacrifício, matar sem que o animal
entre em sofrimento,matar sempre de hora grande a hora grande,
(ou seja da meia-noite ao meio-dia), consagrar os sacrifícios aos
Deuses no tambor, estivesse por trás disso? Como se explica que
um processo de matança primitivo com características de caçada
indígena, repentinamente se transformasse num processo industrial
tão bem organizado, fazendo o núcleo charqueador pelotense
despontar como a 5ª economia do pais. Jose Pinto Martins que leva
a fama de ter fundado esse núcleo charqueador com todas as suas
evoluções tecnológicas, vem do Ceara na companhia de negros,
viveu , constituiu família e como mostra seu testamento, todos
aqueles que lhe são caras ao afeto eram africanos. Isso lhe rendeu
inúmeros ataques; "hedionda mistura de raças que gera
degradação universal" com o acuso publicamente Gonçalves
Chaves. Mesmo assim fez de seu filho João que teve com a negra
"crioula forra" Francisca se principal herdeiro, sem esquecer de
deixar testado os departamentos importantes de sua charqueada
para os respectivos mestres que o instalaram. Africanos e
portugueses uma mistura de técnicas e conhecimentos que criaram
um verdadeiro milagre econômico que assombrou o mundo.
Mas o medo, a arrogância e a ganância fizeram deste
relacionamento uma pagina difícil de ser lembrada...
"Uma charqueada bem administrada é uma penitenciaria"
Disponível: http://terradeandrea.blogspot.com.br/search/label/Hist%C3%B3ria%20de%20Pelotas
Críticas TeatraisDança Afro para Falar Sobre um Rio de Sangue
A história do município de Pelotas é sempre lembrada pelo período em que foi uma das cidades mais prósperas e ricas do Brasil, onde a indústria do charque progredia em escala geométrica. Para que toda essa evolução ocorresse, foi utilizada a mão de obra escrava, trazida da África.
Conforme publicado em 10/01/2009, em Terra de Andrea (<http://terradeandrea.blogspot.com.br/2009/01/rio-de-sangue-parte-i-o-comeo.html>), inicialmente, a Província de São Pedro era habitada pelos povos indígenas. Paulatinamente, a colonização europeia começou a povoar a região. No final do século XVII, inicia
a instalação da primeira Charqueada onde, atualmente, está localizado o município de Pelotas. Para que a produção de charque atingisse escala industrial, era necessário que houvesse um tipo de habilidade e tecnologia que permitisse o abate de animais em larga escala de maneira rápida e eficiente.
Os povos indígenas não dominavam as técnicas para a matança de animais da maneira como os africanos realizavam. Devido a particularidades dos cultos religiosos africanos, os povos vindos da África conseguiam sacrificar o gado de maneira mais rápida e eficiente, sem causar maiores sofrimentos aos animais. Essa habilidade foi fundamental para o desenvolvimento da indústria do charque, ou seja, as charqueadas foram um sucesso econômico graças à tecnologia que a mão de obra africana trouxe para o desenvolvimento dessa cidade.
Durante certo tempo, ao longo do século XIX, os escravos chegaram a representar mais de 60% da população da cidade de Pelotas. Seus conhecimentos foram importantes não somente por viabilizarem o apogeu das charqueadas, mas também por serem responsáveis pela construção dos prédios e casarões da cidade, como por exemplo, os moldes das telhas que eram feitos de barro na perna dos escravos.
Toda essa riqueza atraiu para essa região muitos intelectuais e artistas, responsáveis pelos primeiros registros artístico históricos da região das charqueadas durante o século XIX (<http://terradeandrea.blogspot.com.br/2009/01/parte-ii-o-processo-de-produo.html>). Os registros publicados por Andrea Terra, divididos em quatro partes, trazem breves relatos históricos e imagens sobre um período pouco falado sob o ponto de vista da importância da colonização africana para o desenvolvimento do Rio Grande do Sul (<http://terradeandrea.blogspot.com.br/2009/01/parte-iii-revoluo.html>).
Para finalizar, o blog Terra de Andrea ainda nos aponta para uma reflexão do que foi feito com os escravos após a sua abolição e abertura das portas das senzalas. Será que eles realmente se tornaram livres? (<http://terradeandrea.blogspot.com.br/2009/01/parte-iv-opulncia-abolio-queda.html>).
Iniciei essa crítica fazendo uma breve introdução citando um texto que, traz todos os referenciais e elementos relacionados ao espetáculo Rio de Sangue, apresentado pela Cia de Dança Daniel Amaro, no dia 08 de junho de 2013, no Theatro Guarany. Embora os textos que eu referenciei anteriormente não estejam publicados em um livro, nem sejam de autoria de um historiador(a)com publicações reconhecidas em todo o país, tanto a autoria deles, quanto o seu conteúdo provém de uma fonte que agregam a si a propriedade de poder contar essa história através dos relatos intrínsecos de quem participou dessas histórias ao longo das suas gerações familiares.
Notadamente, os textos publicados em Terra de Andrea podem servir de base para a construção do espetáculo Rio de Sangue. Porém, com uma peculiaridade que primordialmente os diferencia: no texto do blog, a autora enaltece, valoriza e fornece os devidos registros sobre a importância da colonização africana para o desenvolvimento do nosso estado, já o espetáculo de dança se fixa mais na alegoria das contribuições artísticas que a África trouxe ao Brasil.
Apesar das contribuições da cultura africana serem enormes no que constitui o que hoje denominamos como identidade cultural brasileira, jamais podemos esquecer o alto preço que o povo vindo da África pagou ao ser retirado de sua terra e ser escravizado no Brasil. Os rios de sangue não podem ser amenizados, mascarados ou esquecidos! Isso não significa que devemos nos fixar nas brutalidades e sofrimentos que os povos africanos sofreram nas mãos dos nossos colonizadores. Muito pelo contrário, ao
mantermos os rios de sangue sempre vivos em nossa memória, podemos não somente nos envergonhar desse passado histórico, como também refletirmos para que esse tipo de desrespeito à condição humana seja repetido nas gerações futuras.
Nesse sentido, acredito que o espetáculo Rio de Sangue colocou essa situação de maneira muito superficial, parecida com a perspectiva que nossos colonizadores colocam nos livros de história, escritos pelas brancas mãos descendentes dos povos europeus. A perspectiva do enredo também me parecia com a “história que os charqueadores querem contar”, muito longe do desnudamento do que significou a brutalidade exercida pelos charqueadores sobre seus escravos.
Senti falta de ver o rio de sangue. Obviamente que, o rio de sangue também está relacionado ao sangue das milhares de cabeças de gado, abatidas diariamente e que era despejado no Arroio Pelotas, o que forneceu esse nome ao local. Entretanto, o rio de sangue relacionado à condição humana, escravizada, dilacerada em seus direitos, dignidade e respeito jamais pode ser esquecido. Acredito que o espetáculo teria tocado de maneira mais eficiente à plateia presente, se tivesse mergulhado nas reais implicações do rio de sangue africano que foi derramado pelas mãos charqueadoras pelotenses.
Mesmo com essa particularidade, a direção de Daniel Amaro soube administrar muito bem alguns quesitos de sua encenação. Gostaria de destacar os coros presentes em todo o espetáculo. Ao mesmo tempo em que nos passavam uma ideia de unidade de grupamento populacional, o que podemos relacionar com os povos escravizados e trazidos em grupos para o Brasil, também compunham uma unidade que imprimia sua identidade na maneira de contar a história do espetáculo em grupo.
Alguns solos, pás-de-deux e pás-de-trois se destacavam dos demais em alguns momentos, explorando planos diferenciados para o desenho coreográfico, assim como também preenchiam e davam movimento ao espaço cênico como um todo. Embora as coreografias fossem bastante alegres, exaltando aspectos de felicidade, o impacto que Daniel desejava seria mais forte, caso ele “pesasse a mão” e não tivesse receio de aproximar sua dança dos sofrimentos a que os africanos foram submetidos em solo pelotense.
Apesar de ressaltar aqui nesse texto a leveza do espetáculo Rio de Sangue, não posso deixar de render elogios a Daniel Amaro pela maneira como ele conseguiu inserir o samba em suas coreografias. Desconstruindo-o em alguns momentos, sem retirar-lhe as características que o constituem e também por mostrar que o samba pode ser uma maneira de se contar a história em um espetáculo de dança afro, sem cair nos estereótipos televisivos. O elenco de bailarinos, muito coesos, conseguia nos mostrar uma outra alternativa para pensarmos na força que o samba pode ter, enquanto coreografia de um espetáculo de dança contemporânea.
O espetáculo trazia no seu elenco os seguintes interpretes e bailarinos: Anderson Martha, Carolina Paz, Carolina Rodrigues, Fernanda Chagas, Janaína Gutierres, Jaqueline Vigorito, Juliana Coelho, Karina Azevedo, Lisia Peixoto, Paula Farias, Thomas Marinho, Thuani Siveira. O figurino e Cenário ficaram por conta de Júlio Barbosa, fotografia do excelente Neco Tavares, edição de Imagens de Roger Terres, assistentes de direção Fabiana dos Santos e Victória Amaro. Além disso, a contra-regragem ficou por conta de Iver Folha e Douglas Passos. As coreografias foram criadas por Mano Amaro em parceria com o seu irmão Daniel Amaro que também assina a direção artística do espetáculo. A trilha Sonora continha obras de Djalma Corrêa, Cyro Baptista, Domínio Popular, Cantos Sagrados de Brasil e Cuba, Chico César, Afro Anatolian Tales, Baiafro e Dave Pike Set, Cleber Viera, Mestre João Pequeno, Las Brasa Afro e Serjola.
Devido ao fato desse espetáculo ser tão ligado à história do povo africano trazido ao Brasil, acredito que a utilização de som mecânico não fosse a mais adequada para o contexto cultural. Em certo momento, observamos que um tamboreiro entra em cena e executa a trilha musical de parte das coreografias, mas apenas de parte delas. Acredito que o efeito da trilha musical seria mais forte e viria mais ao encontro da temática abordada, se todas as músicas fossem tocadas ao vivo por tamboreiros e cantores, como aqueles que encontramos nos terreiros de umbanda, batuque, candomblé e demais manifestações culturais e religiosas de matriz africana.
Esse tipo de história precisa trazer a força de suas raízes, a força do tambor sendo tocado ao vivo, de todos os instrumentos que caracterizam as músicas de matriz africana que ainda sobrevivem nos cultos religiosos dessa origem. Inclusive, acredito que esse tipo de opção auxiliaria os bailarinos a mergulharem no universo de suas personagens durante o espetáculo.
Alguns aspectos dos figurinos de Júlio Barbosa, me remeteram a uma coleção da stylist Doida da Espanha, que podemos ver nesse endereço:http://doidadaespanha.blogspot.com.br/. Nessa coleção, Doida da Espanha se inspirou nos movimentos da vegetação encontrada às margens do Canal São Gonçalo e nos movimentos das águas que circulam pelas Charqueadas. Além disso, essa coleção também tem um forte diálogo com a maneira como Andrea Terra conta a história dos africanos escravizados em Pelotas em seu blog. Apesar de fazer alguns anos que Doida da Espanha lançou essa coleção inspirada no tempo das Charqueadas, o movimento, a qualidade de execução e concepção desse tipo de proposta, se desenvolvido com essa perspectiva, também criaria um impacto visual bastante forte ao espetáculo Rio de Sangue. Refiro isso, pois senti a necessidade dos figurinos também enfatizarem o peso desse recorte histórico da nossa região.
Infelizmente, apesar da grande qualidade criativa dos artistas envolvidos no espetáculo, não podemos deixar de ponderar o fato
de que, mesmo com toda a criatividade, não se consegue executar um projeto artístico sem investimentos. Saliento esse fato, pois aqui, no trabalho dessa companhia de dança, já visualizamos um bom exemplo da necessidade dos nossos governos investirem mais em cultura. O espetáculo Rio de Sangue ilustra uma parte da nossa história e para que a qualidade do produto artístico oferecido aos nossos espectadores esteja à altura do talento de sua equipe e do que é de direito dos espectadores, os nossos governos precisariam investir mais em trabalhos artísticos desse tipo ao invés de alocarem grandes montantes de verbas para projetos que além da qualidade duvidosa, pouco agregam a nossa população.
Outra situação que também me deixou bastante curioso foi o fato de haverem apenas dois bailarinos homens no espetáculo. Claro, compreendo totalmente o fato de haverem poucos homens que se dedicam, tem talento e força para se jogarem no mundo da dança. Mas, senti falta de um elenco masculino em maior número, sobretudo para contar esse tipo de história. Mas, infelizmente, essa é uma dura realidade que o diretor do espetáculo terá que enfrentar. Tomara que, ao longo do tempo, outros homens vejam esse espetáculo e despertem o seu interesse pela dança como um todo.
Atualmente, a utilização de recursos tecnológicos tem sido uma constante em todas as artes cênicas. Não podemos negar o advento tecnológico, nem as suas possibilidades como meio de interação com a plateia e, também, como forma de agregar outras qualidades aos espetáculos. No entanto, a sua utilização deve ser muito bem ponderada para que não fique gratuita. Já comentei isso algumas vezes, pois, comumente, observo que alguns espetáculos de teatro usam as tecnologias mais para justificarem um apelo de verbas às fontes de fomento, do que à real necessidade desses recursos à coerência da encenação.
Em face disso, considero que as projeções utilizadas durante as cenas do espetáculo deveriam ter um diálogo mais íntimo e eficiente com as cenas. Refiro isso, pois, em alguns momentos,
observamos focos diferentes, ou seja, o que era projetado trazia consigo informações que ficavam ali, enquanto o que se fazia no palco continha outras informações que se encerravam em si. Apesar de estarem todas dentro de um mesmo contexto, as projeções e as cenas do palco não dialogavam entre si. Ao dizer isso, não quero passar a imagem rasa de que eu estaria me referindo ao fato das coreografias terem que fazer um jogral com as projeções. Longe disso! O que saliento é que a intensidade do “entre” elas deve ser explorada. Quando um espetáculo consegue atingir esse aspecto, o impacto visual além de ser muito eficiente, consegue envolver os espectadores no contexto da história que está sendo contada.
Tendo em vista a rara quantidade de espetáculos de dança afro produzidos no Brasil, apesar da forte herança cultural africana em nosso país, considero que a Cia Daniel Amaro representa um importante papel na sobrevivência das origens culturais africanas nos palcos brasileiros. O que não podemos deixar é que a história de como os povos africanos foram trazidos ao Brasil, seja contada de maneira superficial, como os livros de história costumam fazer.
Além disso, ao existirem espetáculos de dança afro nos palcos brasileiros, também estamos resistindo e mostrando a importância da cultura de matriz africana na constituição da nossa identidade nacional. Assim como o período de escravidão africana costuma ser atenuado pelos caucasianos contadores de histórias, as danças e outras manifestações culturais vindas da África também costumam ser estigmatizadas, estereotipadas, amordaçadas e mantidas longe dos palcos brasileiros, em detrimento das artes de origem europeia.
Não podemos deixar que a supremacia caucasiana continue ditando o “seu lado da história” e “dificultando” a exposição das barbáries a que nossos ancestrais europeus submeteram os povos vindos da África. Nesse sentido, quando falarmos dos diversos rios de sangue do nosso país, não podemos ter medo de nos jogarmos neles, mergulharmos em suas dores e sofrimentos, para
mostrarmos que, apesar de tudo isso, esse povo possibilitou que se construísse uma nação que hoje tanto divulga a sua constituição mestiça, formada pelos diversos matizes que aqui vieram, se estabeleceram e se misturaram, para formar o que hoje chamamos de povo brasileiro.
Daniel Amaro e sua companhia desempenham um importante papel nesse contexto, na medida em que lutam para manter viva a dança de origem africana nos palcos brasileiros que tanto sofrem pressões embranquecedoras de estéticas e linguagens cênicas. Portanto, apesar de ter pontuado alguns aspectos do espetáculo Rio de Sangue, considero que ele representa um importante papel de resistência da cultura negra em Pelotas.
Vagner Vargas
Ator – DRT: 6606
Crítico de Teatro
Disponível: http://criticasparateatro.blogspot.com.br/2013/11/danca-afro-para-falar-sobre-um-rio-de.html