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Rio de Janeiro
2017, v. 10, nº 1
ISSN 1982-5870
Publicação do Grupo de Pesquisas Spinoza & Nietzsche: estudos de filosofia da imanência
(SpiN) e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (PPGF-UFRJ).
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Reitor Roberto Leher
Vice-Reitora Denise Fernandes Lopez Nascimento
Pró-Reitora de Pós-Graduação Leila Rodrigues da Silva
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS (IFCS)
Diretor Marco Aurélio Santana
Departamento de Filosofia
Chefe Antônio Saturnino Braga
Coord. do Prog. de Pós-graduação em Filosofia Rafael Haddock-Lobo
Editor Responsável / Editor-in-Chief
André Martins (UFRJ)
Editores Adjuntos / Associated Editors
Danilo Bilate (UFRRJ), Luiza Regattieri (UFRJ)
Comissão Editorial / Associated Editors
Ana Claudia Gama Barreto (UFRJ), Antônio Augusto Madureira de Pinho (UERJ), Armando
Turbae Junior (UFRJ), Djalma Lopes da Silva (IFFluminense), Leo Moreira Lima (UFRJ),
Mariana de Toledo Barbosa (UFF), Sidharta Mendes Monteiro (UFRJ)
Conselho Científico / Scientific Advisors
Antônio Edmilson Paschoal (UFPR), Bertrand Binoche (Université de Paris I – Panthéon-
Sorbonne), Clademir Araldi (UFPEL), Ernani Chaves (UFPA), Gilvan Fogel (UFRJ),
Guillaume Sibertin-Blanc (Université de Toulouse – Le Mirail), João Constâncio
(Universidade Nova de Lisboa), Maurício Rocha (PUC-RJ), Miguel Angel de Barrenechea
(UNIRIO), Olímpio José Pimenta Neto (UFOP), Oswaldo Giacoia Jr (Unicamp), Rosa Maria
Dias (UERJ), Sandro Kobol Fornazari (UNIFESP), Scarlett Marton (USP), Tereza Cristina B.
Calomeni (UFF), Vania Dutra de Azeredo (PUC-Campinas)
Sumário
Editorial 6
Artigos
Nietzsche e a ideia do professor como um “mal necessário” 8
Djalma Lopes da Silva
Contribuições de Nietzsche para uma concepção artística de educação 24
Adriany Ferreira de Mendonça & Alexandre Ferreira de Mendonça
Arte e saúde em Nietzsche 42
Carlos Roger Sales da Ponte
Para além da lei moral: morte de Deus e gratuidade de Feuerbach a Sartre 60
Paolo Stellino
Negatividade e produção: elementos para uma teoria do desejo em Deleuze 73
André Dias de Andrade
Tradução
De Sacher-Masoch ao masoquismo 94
Gilles Deleuze
Resenha
Resenha sobre o Camus de L. Bove 107
Danilo Bilate
6 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, 2017
Editorial
Editorial
Abrimos, com esta primeira edição de 2017, o décimo volume da Revista Trágica
que traz preciosas contribuições de pesquisadores do Brasil e Portugal reunindo textos
sobre diferentes autores, dentro de uma perspectiva da imanência.
Esta seção Varia se inicia com dois trabalhos cuja temática central é a educação
em Nietzsche: Djalma Lopes (IFFluminense) expõe a crítica nietzschiana aos
estabelecimentos de ensino da época e reflete sobre a afirmação feita por Nietzsche de
que o professor seria um mal necessário; Adriany Mendonça (UFRJ) e Alexandre
Mendonça (UERJ) discutem as possíveis contribuições do pensamento de Nietzsche para
a problematização de nossas práticas pedagógicas e levantam elementos para esboçar uma
concepção artística da educação.
Em um segundo momento os artigos variam de temática: Carlos Roger Sales
(UFC) disserta sobre a arte e suas possíveis ligações com o conceito de saúde em
Nietzsche; Paolo Stellino (Universidade Nova de Lisboa) analisa a relação existente entre
a morte de Deus e a gratuidade no período que vai de Feuerbach a Sartre e Camus,
passando por Dostoievski e Nietzsche; enfim, no último artigo André Dias (UFSCar)
aborda a crítica de Deleuze à negatividade no que tange à elaboração de uma ontologia
positiva do desejo.
Na seção de traduções a edição conta com o texto de Gilles Deleuze De Sacher-
Masoch ao masoquismo publicado pela primeira vez no original em francês na Revista
Arguments em 1961 e traduzido do original para esta edição pelo prof. André Martins
(UFRJ), sendo provavelmente a primeira tradução em português deste importante texto
de Deleuze.
Encerra esta edição a resenha sobre o livro Albert Camus, de la transfiguration:
pour une expérimentation vitale de l’immanence de Laurent Bove, publicado em 2014,
feita pelo prof. Danilo Bilate (URRRJ).
Desejamos a todos uma boa leitura!
Os Editores
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, 2017 7
Artigos
8 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 8-23, 2017
Nietzsche e a ideia do professor como um “mal necessário”
Djalma Lopes da Silva
Resumo: O objetivo deste artigo é expor a crítica de Nietzsche aos
estabelecimentos de ensino de sua época, que, segundo ele, eram espaços onde
predominava uma educação que formava apenas para o funcionalismo e para o
lucro, o que poderia sufocar a possibilidade de uma educação voltada para a
“verdadeira cultura”; bem como refletir sobre a afirmação feita por ele, no
aforismo 282 de “O andarilho e sua sombra”, de que o professor seria um mal
necessário.
Palavras-chave: Friedrich Nietzsche; Alemanha; educação; professor.
Nietzsche and the idea of the teacher as a necessary evil
Abstract: The objective of this article is to expose the criticism of Nietzsche on
educational institutions of his time, which, according to him, were spaces only
focusing on an education aiming mainly on functionalism and profit, which could
stifle the possibility of an education for the “real culture”; as well as to reflect on
the statement made by him in the aphorism 282 of “The Wanderer and his
Shadow” that the teacher would be a necessary evil.
Key words: Friedrich Nietzsche; Germany; education; teacher.
Introdução
Nietzsche possuía uma indiscutível vocação pedagógica, habilidade que foi se
formando ao longo de sua vida e se evidenciando em seus escritos. Sua preocupação com
o problema da educação alemã – questão importante para a compreensão de seu
pensamento como um todo – está presente nas obras, nos escritos e nos fragmentos
póstumos produzidos no período de juventude, e mesmo depois, já na sua plena
maturidade. No entanto, o período em que Nietzsche mais escreve sobre o problema da
educação alemã é em sua fase inicial, compreendida entre os anos de 1870 e 1876.1 De
Doutorando em Filosofia pelo PPGF-UFRJ e professor do Instituto Federal Fluminense. Quissamã, RJ,
Brasil. Contato: [email protected] 1 Cabe aqui fazer uma observação em relação à cronologia dos textos de Nietzsche. Neste artigo, tomamos
por horizonte a divisão da obra nietzschiana em três períodos, assim como Scarllet Marton e Oswaldo
Giacoia fazem em seus textos: o primeiro período estaria situado, aproximadamente, entre os anos de 1870
e 1876; o segundo entre 1876 e 1882; e o terceiro e último período entre 1882 e 1889, ano em que os
sucessivos problemas de saúde interromperiam definitivamente as atividades filosóficas de Nietzsche.
Nietzsche e a ideia do professor como um “mal necessário”
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 8-23, 2017 9
maneira geral, os textos produzidos nesse período expõem suas teses sobre o declínio da
cultura e da educação alemãs, que estariam totalmente atreladas ao Estado, numa situação
de dependência total, como aponta um dos escritos póstumos produzidos nessa época:
Cultura e subordinação. Isso é novo. O Estado como guia da cultura e da educação. Nele
atuam os elementos opostos à verdadeira cultura: ele conta com o grande formato, ele
forma para o seu uso próprio a massa de jovens professores.2
Na Alemanha oitocentista, predominavam os pressupostos iluministas, que
sugeriam a defesa de alguns pontos cruciais para o desenvolvimento da crítica
nietzschiana, entre os quais, podemos citar: a ideia de que a cultura e a educação deveriam
ficar ao encargo do Estado; a necessidade de tornar o ensino obrigatório e gratuito; e
também o surgimento de uma espécie de orientação prática, voltada para as ciências,
técnicas e ofícios, em detrimento de uma educação humanística. De acordo com Rosa
Dias, Nietzsche percebeu “estar diante de um sistema educacional que abandonara uma
formação humanista em proveito de uma formação cientificista”, e acrescenta:
[...] a consequente vulgarização do ensino tinha por objetivo formar homens tanto quanto
possíveis úteis e rentáveis, e não personalidades harmoniosamente amadurecidas e
desenvolvidas. Atento a tudo que se relacionava à educação, Nietzsche decidiu denunciar
os “métodos antinaturais de educação” e as tendências que a minavam.3
A implantação desse ideário trouxe consigo a necessidade de ampliação do
número de estabelecimentos de ensino e, consequentemente, do número de professores.
Mas de onde viria essa necessidade? Ela se justificaria pelo fato de que o Estado teria
como uma de suas principais preocupações a formação de um maior número de jovens,
no menor tempo possível, para ocupar cargos no funcionalismo público e privado. Dito
de forma simples, ao tornar a cultura e a educação acessível a um maior número de
pessoas, a intenção do Estado seria a de suprir e servir a si mesmo no menor tempo
possível. Surge então, como um dos resultados mais trágicos desse processo, a
uniformização da cultura e da educação. Ao que parece, a preocupação de Nietzsche se
justifica pelo fato de que o excessivo número de professores a serviço do Estado acabaria
por reforçar a tendência de uma educação que formaria apenas para o funcionalismo e
2 NIETZSCHE, F. Digitale Kritische Gesamtausgabe Werke und Briefe (eKGWB), Fragmento Póstumo
(FP) 8[65], inverno de 1870-71 – outono de 1872. 3 DIAS, Rosa. Nietzsche educador, p. 16.
Djalma Lopes da Silva
10 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 8-23, 2017
para o lucro, o que poderia sufocar a possibilidade de uma educação voltada para a
“verdadeira cultura”.4 Além disso, tal postura faz com que os estabelecimentos de ensino
assumam o papel de serem para o Estado os responsáveis por instituir um determinado
tipo de sociedade e um determinado ritmo e modus social. Não por acaso, nas
conferências que compõem o escrito inacabado Sobre o futuro dos nossos
estabelecimentos de ensino, proferidas entre janeiro e março de 1872, no Akademisches
Kunstnuseun da Basileia, e na III Consideração extemporânea: Schopenhauer como
educador5, escrita em 1874, Nietzsche defende a ideia de que a educação, a cultura e a
filosofia deveriam se desvincular do Estado. Nesses textos, ele condena a modernização
pedagógica operada na educação alemã de sua época e aponta para uma reformulação dos
objetivos, dos métodos, dos conteúdos e das formas do processo pedagógico,
considerando, especificamente, as relações didáticas entre professor e aluno; além disso,
indica e reforça a função estratégica da filosofia e da exemplaridade dos chamados
“homens superiores” em tudo que está relacionado à educação intelectual e moral dos
indivíduos.6
Nietzsche sempre prezou, enquanto foi professor na Universidade e no
Pädagogium da Basileia, pelo ensino da antiguidade clássica aos seus alunos, levantando
para eles os grandes problemas da existência e mostrando a eles a importância
fundamental do pensamento filosófico.7 Ele acreditava que a filosofia deveria nortear os
processos educacionais que envolviam os jovens, e não ser a imitação de filosofia que era
encontrada nos estabelecimentos de ensino da época, que privilegiavam conhecimentos
particulares e específicos em prol do que ele chama de “incultura”8. Ao denunciar essa
4 “Acredito ter observado de que lado é mais claro o apelo à extensão, à ampliação máxima da cultura. Esta
extensão é um dos dogmas da economia política [...]. Temos aqui, como objetivo e fim da cultura a
utilidade, ou, mais exatamente, o lucro, o maior ganho de dinheiro possível”. NIETZSCHE, F. Sobre o
futuro dos nossos estabelecimentos de ensino, 1ª conferência, p. 72; “Toda educação que deixa vislumbrar
no fim de sua trajetória um posto de funcionário ou um ganho material não é uma educação para a cultura
tal como a compreendemos, mas simplesmente uma indicação do caminho que podem percorrer para o
indivíduo se salvar e se proteger na luta pela existência”. Ibidem, 4ª conferência, p. 122. 5 Entre os anos de 1872 e 1876, Nietzsche escreveu quatro Considerações extemporâneas: David Strauss
como apóstolo e escritor; Da utilidade e dos inconvenientes da história para a vida; Schopenhauer como
educador; e Richard Wagner em Bayreuth. 6 CORREIA, Noéli. A pedagogia de Nietzsche, p. 11. 7 Nietzsche nutria uma grande admiração pela antiguidade clássica. Em seus textos, ele constantemente faz
elogios como esse, de um fragmento póstumo do final de 1870: “Os filósofos gregos são modelos para
nós”. NIETZSCHE, eKGWB, FP 7[74], final de 1870 – abril de 1871. 8 Nietzsche afirma que a cultura alemã de sua época não é boa para ninguém e que não se furtará “jamais à
tarefa de descrever essa incultura. E isto precisamente, em relação aos domínios onde se deveria aprender
algo da Antiguidade, caso se pudesse fazê-lo em geral [por exemplo, escrever, falar etc.]”. Ibidem, FP
3[37], março de 1875.
Nietzsche e a ideia do professor como um “mal necessário”
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 8-23, 2017 11
condição de submissão da cultura e da educação ao Estado, Nietzsche expõe a forma
lamentável como a cultura clássica e a filosofia eram tratadas dentro dos estabelecimentos
de ensino alemães:
Situação ridícula da cultura clássica: o Estado tem interesse no esparciata “profissional”,
assim como em matéria de filosofia, ele exige ou a única filosofia profissional e filológica,
ou a filosofia panegírica do Estado.9
O “esparciata profissional”, o “professor de profissão”10, ou melhor, o “filisteu da
cultura”11 – expressão utilizada por Nietzsche, de forma irônica, para se referir ao falso
“homem de cultura” que predominava em sua época – seria um dos maiores responsáveis
pela disseminação dessa “incultura”, que privilegia o ensino de disciplinas especializadas
em detrimento da filosofia e da cultura clássica. No entanto, como sugere Nietzsche, é
“preciso dar relevância à leitura dos Antigos”12. “Alguns anos de Helenidade”13 são
fundamentais, sobretudo quando falamos da ideia de uma cultura superior.14 Não por
acaso, na apresentação do livro intitulado Escritos sobre a educação, Noéli Correia
defende a ideia de que:
A afirmação da filosofia como estratégia e da cultura clássica como exemplo é a
contrapartida direta da sua crítica às disciplinas especializadas como sendo incapazes, por
causa mesmo da sua natureza e limites, de lidar com os verdadeiros problemas da cultura,
que são os problemas da existência. A divisão do trabalho científico e a “atomização do
conhecimento”, segundo Nietzsche, traziam como resultado a ruptura entre conhecimento
e civilização [...].15
Somente a filosofia poderia desfazer essa ruptura, integrando o conhecimento à
vida16; somente a filosofia poderia desenvolver uma cultura profunda e rara, restringindo
e concentrando a esfera da cultura, defende Nietzsche.17 Esta postura seria uma exigência
que a própria modernidade fazia a si própria, já que as circunstâncias da época tornavam
9 Ibidem, FP 8[65], inverno de 1870-71 – outono de 1872. 10 Ibidem, FP 14[15], primavera de 1871 – início de 1872. 11 NIETZSCHE, I Consideração extemporânea: David Strauss como apóstolo e escritor, p. 21. 12 NIETZSCHE, eKGWB, FP 5[144], primavera-verão de 1875. 13 De acordo com Nietzsche, a cultura só seria possível “depois de experiências, de eventos, da aquisição
de visões do mundo. ‘Alguns anos de Helenidade’”. Ibidem, FP 5[9], setembro 1870 – janeiro 1871. 14 “Esta cultura superior, eu não a reconheço até agora senão como o renascimento da Helenidade”, afirma
Nietzsche em um fragmento póstumo. Ibidem, FP 14 [25], primavera de 1871 – início de 1872. 15 CORREIA, Noéli. A pedagogia de Nietzsche, p. 27. 16 NIETZSCHE, eKGWB, FP 19[172], verão de 1872 – início de 1873. 17 “Contra a aspiração de uma ‘cultura geral’, buscar antes uma cultura profunda e rara, portanto, uma
restrição e uma concentração da cultura [...]”. Ibidem, FP 9[64], 1871.
Djalma Lopes da Silva
12 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 8-23, 2017
as reivindicações por uma cultura clássica e uma sabedoria clássica – entendidas por ele
como as verdadeiras cultura e sabedoria – totalmente cabíveis.18
Como foi destacado no início do texto, as considerações nietzschianas sobre a
decadência da cultura alemã estão presentes não apenas nos escritos de sua juventude,
mas ao longo de toda sua obra. Contudo, é na fase mais madura de seu pensamento que
suas críticas adquirem um tom muito mais radical. Esse radicalismo aparece de forma
bem clara em Crepúsculo dos ídolos, obra de 1888. No aforismo 4 do capítulo VIII deste
livro, intitulado “O que falta aos alemães”, e que trata da relação entre cultura e Estado,
Nietzsche afirma:
A cultura e o Estado – não haja engano a respeito disso – são antagonistas: “Estado
cultural” é apenas uma ideia moderna. Um vive do outro, um prospera à custa do outro.
Todas as grandes épocas da cultura são tempos de declínio político: o que é grande no
sentido cultural é apolítico, mesmo antipolítico.19
A ideia de “Estado cultural” alemão – no qual a educação, a cultura e a filosofia
ficam totalmente submetidas ao Estado – seria algo totalmente moderno. Como o próprio
Nietzsche faz questão de destacar, o declínio da educação e cultura alemãs tem uma razão
evidente: cultura e Estado atuam em sentidos opostos, um vive a expensas do outro. Essa
falsa ideia de que o desenvolvimento da cultura estaria diretamente ligado ao
desenvolvimento do Estado serve apenas para sustentar o poder e os interesses deste, pois
um processo pedagógico que forma alunos e professores para o serviço do Estado ou para
o atendimento do mercado jamais formará homens livres e cultivados, ou seja, “homens
superiores”20. Na realidade, às épocas de grande fertilidade cultural correspondem épocas
de decadência política. De acordo com Nietzsche, a ascensão do Reich na Alemanha é
um bom exemplo no sentido de nos auxiliar a evidenciar a falsidade dessa tese que atrela
a elevação da cultura à elevação do Estado, pois:
Na história da cultura europeia, a ascensão do Reich significa sobretudo uma coisa: uma
mudança do centro de gravidade. Em toda parte se sabe: no principal – que continua
sendo a cultura – os alemães já não são considerados. As pessoas perguntam: vocês têm
ao menos um espírito que conte para a Europa?21
18 “A reivindicação de uma cultura clássica é algo totalmente moderno, e uma subversão da tendência do
liceu”, afirma Nietzsche. Ibidem, FP 14[15], primavera de 1871 – início de 1872. 19 NIETZSCHE, Crepúsculo dos ídolos (CI), VIII, “O que falta aos alemães”, § 4, p. 58. 20 “Na Alemanha falta aos homens superiores um grande meio de educação: a risada dos homens superiores;
estes não riem na Alemanha”. NIETZSCHE, A gaia ciência (GC), III, § 177, p.167. 21 NIETZSCHE, CI, VIII, “O que falta aos alemães”, § 4, p.58.
Nietzsche e a ideia do professor como um “mal necessário”
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 8-23, 2017 13
Onde estariam os grandes pensadores alemães? Como seria possível produzir um
novo Goethe, outro Heine ou Schopenhauer22 – “espíritos alemães” que teriam sido
importantes para a história da cultura europeia – se o sistema educacional alemão tinha
perdido sua finalidade, assim como os meios para se atingir essa finalidade? Segundo
Nietzsche, não era o Reich que deveria ser a finalidade última do sistema educacional,
mas a educação, a formação dos jovens alemães: “Esqueceu-se que educação, formação
é o fim – e não ‘o Reich’ [...]”23. Aprender a pensar, isto era fundamental:
[...] o pensar deve ser aprendido, tal como a dança deve ser aprendida, como uma espécie
de dança... Quem, entre os alemães, ainda conhece por experiência o sutil calafrio que os
pés ligeiros em coisas espirituais transmitem a todos os músculos? [...] não se pode excluir
a dança, em todas as formas, da educação nobre, saber dançar com os pés, com os
conceitos, com as palavras; ainda tenho que dizer que é preciso saber dançar com a pena
– que é preciso aprender a escrever?24
O problema é que nos estabelecimentos de ensino alemães não se tinha a mínima
ideia do que seria isso, alega Nietzsche. Para ele, a lógica, a teoria, a prática e a técnica
de pensar desapareciam nestes lugares.25 Como o autor destaca no texto citado acima,
pensar é como dançar, no sentido de saber dançar com os pés, com as ideias, com as
palavras e com a pena, pois também é preciso aprender a escrever. Mas para atingir este
fim eram necessários “educadores”. Estes deveriam, antes de tudo, educar a si próprios,
ser superiores em matéria de espírito, ser “nobres, provados a cada momento, provados
pela palavra e pelo silêncio, de culturas maduras, tornadas doces”26. Eles seriam a
primeira condição para uma verdadeira educação. Porém, nos estabelecimentos de ensino
alemães, não havia mais educadores no sentido próprio do termo: “[...] não se compra
com este nome senão pessoas que não são elas próprias educadas. Há professores, mas
não educadores”27. Portanto, deveríamos ver o professor como um mal necessário,
defende Nietzsche, no aforismo 282 de “O andarilho e sua sombra”, texto do período
22 Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832): poeta, escritor e cientista alemão; Heinrich Heine (1797-
1856): poeta, ficcionista e crítico alemão; Arthur Schopenhauer (1788-1860): filósofo alemão. 23 NIETZSCHE, CI, VIII, “O que falta aos alemães”, § 5, p. 58. 24 Ibidem, § 7, p. 61. 25 “Os professores de filosofia não ensinam mais qualquer saber-fazer, nem mesmo a arte da disputa. A
lógica, tal como ela é ensinada, é totalmente inútil. Mas estes professores são jovens demais para serem
outra coisa senão demonstradores científicos: como poderiam eles educar para a sabedoria?”. NIETZSCHE,
eKGWB, FP 30[21], outono de 1873 – inverno 1873-1874. 26 NIETZSCHE, CI, VIII, “O que falta aos alemães”, § 5, p. 58. 27 NIETZSCHE, eKGWB, FP 19[61], outubro-dezembro de 1876.
Djalma Lopes da Silva
14 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 8-23, 2017
intermediário de sua obra.28 Era preciso suprimi-los, torná-los o menor número possível
entre “os espíritos produtivos e os espíritos famintos e receptivos”:
Pois os mediadores falseiam quase automaticamente a nutrição que transmitem: e
querem, como pagamento por sua intermediação, muita coisa para si, que então é tirada
dos espíritos originais, produtivos: a saber, interesse, admiração, tempo, dinheiro, etc. –
Portanto: veja-se o professor como um mal necessário, exatamente igual ao comerciante:
como um mal que devemos tornar o menor possível! – Se a miséria das condições alemãs
atuais talvez tenha sua principal razão no fato de muitos quererem viver – e viver bem –
do comércio (ou seja, de procurarem diminuir ao máximo os preços do produtor e subir
ao máximo os preços para o consumidor, beneficiando-se da máxima desvantagem de
ambos): então podemos ver no grande número de professores uma das principais razões
da miséria intelectual: por causa disso aprende-se tão pouco e tão mal.29
A presença de um número excessivo de “filisteus da cultura” nos estabelecimentos
de ensino, esses falsos eruditos que se dizem professores, essa massa de homens sem
vocação para a profissão, seres dotados de uma cultura especializada e estreita, desejosos
de lucro e promoções, e que estariam preocupados apenas em educar para a conformidade
e a submissão ao Estado, seria, talvez, um dos principais motivos que teriam levado
Nietzsche a fazer a afirmação de que o professor é um mal necessário. Ao que parece,
essa afirmação implicaria no seguinte: na Alemanha de sua época, os professores podiam
ser um mal, contudo, eles constituíam um tipo necessário. Mas por quê?
O professor como um “mal”
Embora necessário no processo pedagógico, estritamente na relação
ensino/aprendizagem, o professor era visto por Nietzsche como um mal; e um mal que
deveria se tornar o menor possível, pois quanto maior o seu número, maior ainda seria a
presença de homens sem vocação no magistério; homens que acabariam, infelizmente,
contaminando a formação e a transmissão da cultura entre os jovens, na medida em que
colocariam em andamento práticas e procedimentos que apenas ratificariam os objetivos
integradores da educação ministrada pelo Estado.
28 Nietzsche publicou “O andarilho e sua sombra” em 1880, como segunda continuação de Humano,
demasiado Humano. Já a primeira continuação, intitulada “Opiniões e sentenças diversas”, fora publicada
no ano anterior, em 1879. 29 NIETZSCHE, Humano, demasiado humano (HH), “O andarilho e sua sombra”, § 282, p. 287.
Nietzsche e a ideia do professor como um “mal necessário”
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 8-23, 2017 15
Com a modernização pedagógica, a educação alemã tornou-se submissa aos
interesses do Estado e, consequentemente, todo processo pedagógico realizado nos
estabelecimentos de ensino buscava atender estes interesses, isto é, formar e tornar útil
para o Estado, com a menor perda possível de tempo, um grande número de homens
jovens. Daí poder-se afirmar, segundo Jorge Larrosa, que essa política educacional era
claramente orientada no sentido das grandes massas.30 Para realizar o objetivo de tornar
a educação acessível ao maior número de pessoas, era necessário um grande número de
estabelecimentos de ensino e de professores. Esses estabelecimentos deveriam formar
para o funcionalismo e/ou para o lucro. Os professores, enquanto peças chave na relação
ensino/aprendizagem, eram, portanto, os responsáveis por colocar em andamento as
práticas e os procedimentos que efetivariam os objetivos do Estado, disseminando uma
cultura universal, integradora, totalmente voltada para o bem comum.
O professor era um “mal”, pois não era capaz de alcançar uma visão abrangente e
real a respeito da vida e do mundo, tal como Nietzsche acreditava ser possível através do
ensino da cultura clássica aos jovens. Pelo contrário, o professor sequer procurava
estabelecer um sentido ou visar a um objetivo que o levasse para além da sua
especialidade e da sua profissão remunerada, eles eram apenas intermediários que
falseavam quase automaticamente o conhecimento que transmitiam.31 Seduzidos pela
possibilidade que o Estado oferecia, no sentido de alcançar um número muito importante
de postos, títulos ou condecorações oficiais, esses “filisteus da cultura” estavam muito
mais preocupados com a estabilidade profissional e financeira do que com qualquer outra
coisa. Isso os levava a acolher de forma ainda mais estrita os propósitos do Estado:
Através desse professorado mantido em xeque fisicamente e espiritualmente, toda a
juventude da nação é, tanto quanto possível, erguida a uma certa altura cultural, útil ao
Estado e adequadamente graduada: mas, sobretudo, quase imperceptivelmente se
transmite, aos espíritos imaturos e ávidos de honra de todas as classes, a mentalidade de
que apenas uma orientação de vida reconhecida e homologada pelo Estado acarreta uma
pronta distinção social.32
Graças aos “filisteus da cultura”, esse professorado material e moralmente
mantido sob controle, toda a juventude da Alemanha era conduzida a certo nível de
30 De acordo com Larrosa, Nietzsche defendia a “impossibilidade de qualquer educação que passe pelo
funcionamento homogêneo e homogeneizador de um sistema de massas”. LARROSA, Jorge. Nietzsche e
a Educação, p. 39. 31 NIETZSCHE, HH, “O andarilho e sua sombra”, § 282, p. 287. 32 Ibidem, “Opiniões e sentenças diversas”, § 320, p. 134-135.
Djalma Lopes da Silva
16 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 8-23, 2017
cultura útil ao Estado e formada em conformidade com este objetivo: era transmitida a
mentalidade de que somente uma carreira reconhecida e selada pelo Estado acarretaria
uma distinção social. Tais professores, portanto, não eram bons para ninguém. Eles
transmitiam uma “incultura”, na qual importava o máximo possível de conhecimento,
“portanto o máximo de produção e necessidades possível –, portanto o máximo de
felicidade possível: – eis mais ou menos a fórmula”, afirma Nietzsche.33 De acordo com
essa perspectiva, a finalidade da educação e da cultura seria a utilidade, ou, mais
precisamente, o lucro. Aqui, vemos transparecer claramente a crítica de Nietzsche a um
ideal muito em voga na sua época: trata-se do princípio da máxima felicidade,
apresentado pelo filósofo inglês Jeremy Bentham (1748-1832) na obra intitulada Uma
introdução aos princípios da moral e da legislação. Bentham é considerado o fundador
da doutrina filosófica conhecida como Utilitarismo, segundo a qual o mais elevado
objetivo da educação e da cultura seria maximizar a felicidade e a utilidade.34 De acordo
com Michael Sandel, Bentham acreditava que “a coisa certa a fazer é aquela que
maximizará a utilidade”, definindo como “utilidade” qualquer coisa que produza prazer
ou felicidade e que evite a dor ou o sofrimento.35 No entanto, para Nietzsche, esse
princípio da máxima utilidade e felicidade atuaria no sentido da massificação (ampliação)
e da mediocrização (redução) da cultura, tendências contra as quais o filósofo se voltava
de forma cada vez mais radical em suas críticas sobre a educação alemã.
Para Nietzsche, a tendência utilitarista de valorizar a formação de indivíduos cada
vez mais aptos a extrair da vida a maior quantidade possível de felicidade e lucro tornava
a busca pela chamada “cultura superior” algo cada vez mais raro. Reforçando esse
diagnóstico acerca da decadência da educação alemã, Larrosa afirma, em Nietzsche e a
educação, que os estabelecimentos de ensino daquela época, incluindo as universidades,
não ensinavam a estudar; segundo ele, nesses espaços, o estudo, a humildade e o silêncio
do estudo não eram sequer permitidos.36 Se ninguém mais estudava, como aponta
Larrosa, de que maneira seria possível, então, estimular o desenvolvimento de uma
cultura completa, superior? Na realidade, não havia, na Alemanha, escola que colocasse
isto como tarefa, defende Nietzsche.37 Não existia um grande meio de educação para o
33 NIETZSCHE, Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino, 1ª conferência, p. 72. 34 BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação, p. 3. 35 SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa?, p. 48. 36 LARROSA, Jorge. Nietzsche e a Educação, p. 15. 37 “As nossas escolas indicam a via de uma divisão do trabalho ainda mais acentuada. A cultura completa
seria, portanto, sempre mais raramente buscada: não há escola que se coloque isto como tarefa. Não se sabe
Nietzsche e a ideia do professor como um “mal necessário”
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 8-23, 2017 17
homem superior, que possibilitasse uma cultura superior: “Na Alemanha falta aos homens
superiores um grande meio de educação [...]”38. O alto número de estabelecimentos de
ensino e de professores não era compatível com esta tarefa: o grande número de escolas
de “alto nível” era incompatível com a formação de homens selecionados, assim como o
grande número de professores era incompatível com a transmissão de uma cultura
elevada.39 A maioria dos professores não tinha sequer vocação para a profissão40, o que
era extremamente prejudicial à tarefa fundamental da educação, a saber, a formação e a
transmissão da cultura entre os jovens.
O professor como um tipo “necessário”
Se a miséria da educação reside em práticas pedagógicas que visam a utilidade e
o lucro, assim como no grande número de estabelecimentos de ensino e de professores
sem vocação – que querem viver bem dessa profissão e acabam por se deixar corromper
pelas vantagens oferecidas pelo Estado, e, justamente por isso, agem em detrimento da
educação, não guiando seus alunos para o conhecimento, mas sim para a cultura universal,
jornalística –, por que, ainda assim, o professor constituía um tipo “necessário” para
Nietzsche?
De acordo com o filósofo, o professor deve educar, isto é, formar. Mas o que seria
esse “formar”? Seria fazer “compreender imediatamente tudo o que se viu através de
fantasmas determinados”41. Mas o que seriam esses “fantasmas determinados”? Seriam
as representações suscitadas pelo professor na consciência dos alunos. Porém, a tarefa
educativa do professor não consistiria somente em suscitar determinadas representações
na consciência dos alunos, afirma Correia.42 Segundo o autor, é preciso fazê-los perseguir
mesmo mais onde se dirigir quando se procura um material de ensino para esta cultura completa”.
NIETZSCHE, eKGWB, FP 14[25], primavera de 1871 – início de 1872. 38 NIETZSCHE, GC, III, § 177, p. 167. 39 Para Nietzsche, “é preciso que sejamos unânimes a este respeito: para alcançar realmente a cultura, a
própria natureza não destinou senão um número infinitamente restrito de homens, e, para o feliz
desenvolvimento destes, basta um número muito mais restrito de estabelecimentos de ensino superior [...]”.
NIETZSCHE, Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino, 3ª conferência, p. 103. 40 Quanto a essa ausência de vocação, Nietzsche afirma: “[...] pobres mestres tão numerosos, a quem a
natureza não concedeu dons para uma verdadeira cultura, e que chegaram mesmo à pretensão de fazer as
vezes de mestres da cultura, só porque os impulsiona a necessidade de ganhar o pão de cada dia e porque o
excessivo número de escolas exige para si um excessivo número de mestres [...]”. Ibidem, p. 112-113. 41 NIETZSCHE, eKGWB, FP 5[106], setembro de 1870 – janeiro de 1871. 42 CORREIA, Noéli. A pedagogia de Nietzsche, p. 31.
Djalma Lopes da Silva
18 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 8-23, 2017
a sua decifração; é preciso fazê-los ver e compreender o que se oculta nos “fantasmas”
das suas representações, pois, para Nietzsche, “a educação é um assunto do intelecto e,
portanto, possível até certo ponto”43. A educação deveria ser, portanto, uma eterna
produção desses “fantasmas”, dessas imagens energéticas suscitadas e transmitidas pelo
professor. A consideração do valor das representações é aqui o que pode determinar o
valor de uma cultura ou de um processo pedagógico.44 Como afirma Nietzsche: “Toda
criação de uma nova cultura” se dá através das “naturezas fortes e exemplares, nas quais
os fantasmas são engendrados novamente”45. Logo, pode-se dizer que os professores com
personalidade mais forte devem possuir a energia necessária para comunicar e transferir
para os seus alunos estas “representações fantasmáticas”46, e, nesta medida, pode-se dizer
também que o processo educacional “depende da grandeza moral e do caráter do
professor”47.
No entanto, em um fragmento póstumo, Nietzsche chama a atenção para o fato de
que os próprios professores também precisam receber uma educação adequada a seu
ofício, pois, para possibilitar o surgimento de uma “aristocracia espiritual”, é preciso,
antes de tudo, começar pelas “instituições de cultura e educação para professores”; é
preciso criar “escolas de cultura e educação [...] para a cultura e educação dos
professores”48. Além disso, eles deveriam ser maduros, quer dizer, não deveriam ser
jovens, pois, como o próprio Nietzsche afirma: “Dar ensino é um dever do homem de
idade”49. Não se trata aqui, absolutamente, de um ensino técnico do magistério, mas de
uma ambientação mais demorada e profunda com os grandes criadores da cultura, num
processo de autocultivo que possa levar à criação de uma “aristocracia espiritual”50. O
professor somente será um verdadeiro guia e pensador quando estiver já suficientemente
formado e consciente da sua própria experiência individual.51 Daí Nietzsche sugerir a
criação de uma escola para os educadores, que, segundo Dias, seria uma instituição
completamente desvinculada do Estado, uma espécie de “universidade livre”, na qual
43 NIETZSCHE, eKGWB, FP 5[106], setembro de 1870 – janeiro de 1871. 44 CORREIA, Noéli. A pedagogia de Nietzsche, p. 32. 45 NIETZSCHE, eKGWB, FP 5[107], setembro de 1870 – janeiro de 1871. 46 “Estas representações fantasmáticas somente são comunicadas pela energia das personalidades”.
Ibidem, FP 5[106], setembro de 1870 – janeiro de 1871. 47 Ibidem. 48 Ibidem, FP 9[70], 1871. 49 Ibidem. 50 Ibidem, FP 14[25], primavera de 1871 – início de 1872. 51 “Um dia, quando há muito tempo estamos educados [...], descobrimos a nós mesmos: começa então a
tarefa do pensador, é tempo de solicitar-lhe ajuda – não como um educador, mas como um auto-educado
que tem experiência”. NIETZSCHE, HH, “O andarilho e sua sombra”, § 267, p. 279.
Nietzsche e a ideia do professor como um “mal necessário”
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 8-23, 2017 19
todos trabalhariam juntos, servindo de professores uns aos outros, e se dedicariam a
renovar a cultura da época.52 Mas qual seria o sentido dessa proposta? De onde viria essa
ideia sobre uma “escola dos educadores”? De acordo com Paolo D’Iorio, Nietzsche
afirma, em um fragmento póstumo do final de 1876, que esta ideia se basearia na
constatação de que os educadores alemães de sua época não eram eles próprios educados,
de que a necessidade deles se fazia cada vez maior, mas a qualidade era cada vez mais
medíocre.53
Nessas escolas para educadores, os professores amadureceriam e se tornariam
capazes de compreender que a primeira tarefa do professor é colocar seus alunos em
guarda contra si mesmos54, tanto no que diz respeito à sua juventude, quanto no sentido
de livrá-los de uma admiração prematura e irrefletida em relação a seus mestres e guias.55
Dito de outro modo, a tarefa do verdadeiro mestre seria a de “purificar a cultura” e
despertar nos alunos a força diante da visão das “novas tendências” que deveriam superar
a mediocridade de então.56 Além disso, Correia aponta para o fato de que Nietzsche exigia
certo rigor na relação pedagógica entre professor e aluno, uma vez que nem o primeiro
deveria ser “tão complacente e indiferente a ponto de se isentar na prática de sua tarefa
educativa”, nem o segundo deveria ser “conservado na sua jovem tagarelice pretensiosa
a propósito de qualquer coisa”57. Dessa forma, a relação professor-aluno exigia uma
atenção especial ao “indivíduo” e ao desenvolvimento de todas as suas capacidades, no
sentido de promover nos jovens uma harmonia tal que neles fizesse crescer as forças ainda
“imberbes” que carregavam e fizesse, por outro lado, diminuir as forças predominantes
que os contaminavam, acrescenta Noéli.58 Daí a função precisa dos exames no processo
52 “O que importava era preservar a cultura alemã [...]. Nietzsche lembra-se então da Germânia, a sociedade
literária que criara com Carl von Gersdorff e Paul Deussen, nos tempos de ginásio, e pensa em organizar,
nesses mesmos moldes, [...] uma ‘escola para educadores’, onde os amigos serviriam de professores uns
aos outros, discutiriam e trabalhariam juntos pela cultura alemã”. DIAS, Rosa. Nietzsche educador, p. 34;
“Nessa pequena comunidade de amigos [...], seria praticada uma educação mútua e se usariam os livros
escritos pelos membros da comunidade como anzóis, a fim de atrair novos adeptos para a confraria de
amigos. Edificariam a ‘escola de educadores’, a ‘universidade livre’, na qual cada um poderia educar-se a
si mesmo”. Ibidem, p. 48. 53 D’IORIO, Paolo. Nietzsche na Itália: a viagem que mudou os rumos da filosofia, Cap. 2, p. 60-61;
NIETZSCHE, eKGWB, FP 23[136], final de 1876 – verão de 1877. 54 “Faz parte da humanidade de um mestre advertir seus alunos contra ele mesmo”. NIETZSCHE, Aurora
(AU), V, § 447, p. 231. 55 CORREIA, Noéli. A pedagogia de Nietzsche, p. 33. 56 Em um fragmento póstumo do início de 1880, Nietzsche fala sobre a tarefa de “purificar a cultura”, ideia
que pode ser tomada no sentido de superar a mediocridade cultural que predominava até então.
NIETZSCHE, eKGWB, FP 1[33], início de 1880. 57 CORREIA, Noéli. A pedagogia de Nietzsche, p. 33. 58 Ibidem, p. 34.
Djalma Lopes da Silva
20 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 8-23, 2017
pedagógico: eles disciplinam, orientam e submetem os impulsos e a atenção dos alunos.59
Pois o homem superior, que deve ser o alvo de qualquer educação, é aquele que recebeu
“uma forma” no longo curso de sua aprendizagem.60
Conclusão
Reformular os objetivos, os métodos, os conteúdos e as formas dos processos
pedagógicos apresentados pelos estabelecimentos de ensino alemães, desatrelando-os do
Estado; diminuir o número de estabelecimentos de ensino de “alto nível” e de professores
sem vocação em prol de uma elevação da cultura; criar uma escola para educadores com
vistas a elevar o nível de qualificação da formação dos professores e excluir os homens
medíocres desta função eram, diante da modernização pedagógica alemã, as propostas de
Nietzsche para se alcançar uma verdadeira educação, uma educação capaz de formar
homens elevados, de transmitir uma cultura elevada. Mas, para que isso fosse possível,
era fundamental que o professor fosse um educador nato, isto é, alguém com capacidade
para educar a si mesmo, tomando como referência os grandes exemplos oferecidos pela
história da humanidade, como Schopenhauer teria sido para o próprio Nietzsche.
De acordo com Nietzsche, a cultura superior, que seria sobretudo a cultura
filosófica, não poderia ser um bem comum, como pretendia a política educacional alemã
da época, que disseminava tendências que colaboravam para a massificação e
mediocrização da cultura. Como afirma Larrosa, a educação para uma cultura elevada
não poderia ser ministrada de modo técnico e massificado.61 Ao contrário, defende
Nietzsche, ela seria privilégio de poucos, e a democratização do ensino, tornado geral,
vulgar, só poderia levar a cultura alemã ao declínio. Nesse sentido, o professor era
necessário na medida em que toda cultura é transmitida fundamentalmente pelo seu
“poder pessoal” e não depende exclusivamente do conhecimento espontâneo dos jovens.
Porém, para que esse objetivo fosse alcançado, era necessário que o professor fosse um
59 Sobre esse assunto, Nietzsche acrescenta: “Toda cultura começa, ao contrário de tudo o que se elogia
hoje com o nome de liberdade acadêmica, com a obediência, com a disciplina, com a instrução, com o
sentido do dever. E, assim como os grandes guias têm necessidade de homens para conduzir, também
aqueles que devem ser conduzidos têm necessidade de guias [...]”. NIETZSCHE, Sobre o futuro dos nossos
estabelecimentos de ensino, 5ª conferência, p. 158. 60 NIETZSCHE, eKGWB, FP 19[307], verão de 1872 – início de 1873. 61 LARROSA, Jorge. Nietzsche e a Educação, p.39.
Nietzsche e a ideia do professor como um “mal necessário”
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 8-23, 2017 21
educador “nato”62, assim, ele seria capaz de colocar o aluno em contato com os “espíritos
superiores” e orientá-lo no estudo das principais obras produzidas por esses indivíduos
exemplares; mais do que isso, o professor mostraria a necessidade de tomar estes “grandes
espíritos” como modelos e de traçar um objetivo formativo de acordo com a grandeza
deles, pois um homem deve ser medido por sua cultura superior ou medíocre, afirma
Nietzsche.63 Portanto, a verdadeira educação consistiria em transmitir a exemplaridade e
grandeza dos homens mais nobres do passado e cultivar individualidades superiores
capazes de herdar essa exemplaridade, e, ao mesmo tempo, ser a condição das grandes
obras que ficarão para o futuro da humanidade; uma educação como esta não pode ser
uma simples função do Estado ou do mercado, ao contrário, ela deve ter a máxima
liberdade e autonomia para exercer sua posição de formadora do pensamento.64
Contrariamente, aquilo que é modernamente chamado de “Estado cultural” trazia
como resultado um enfraquecimento da cultura, pois alimentava a crença de que não deve
haver privilégios e, portanto, não pode haver homens superiores, que deveriam ser
exatamente os propiciadores da elevação da cultura. A cultura universal seria sinônimo
de “decadência”, sua intenção oculta ou manifesta seria aplaudir e exaltar o que é
“adequado” ao presente por causa da sua “utilidade”: ela é a cultura que prepara para uma
profissão, para o mercado.
Nos textos em que trata sobre o tema da educação, Nietzsche reconhece que as
escolas alemãs tinham perdido suas bases culturais, filosóficas e científicas anteriores e
que tinham se entregado indefesas aos desígnios do Estado, ou seja, à criação de um
“Estado cultural”, como se não houvesse claramente uma exclusão recíproca entre Estado
e cultura. Contudo, para se atingir a meta e o fim último da cultura, que seria o cultivo
dos grandes homens, ela não poderia estar atrelada ao Estado. De acordo com Nietzsche,
os homens, especialmente os mais bem-dotados, não deveriam ser educados para atender
as necessidades de uma divisão do trabalho qualquer, para se tornarem novos “filisteus
da cultura”, mas sim para se tornarem homens superiores, ou seja, “seres soberanos,
capazes de abarcar o todo num golpe de olhar e assistir como espectadores o jogo da
62 NIETZSCHE, Além do bem e do mal (ABM), IV, § 63, p. 62. 63 NIETZSCHE, eKGWB, FP 8[92], inverno de1870-1871 – outono de 1872. 64 Sobre as intenções do Estado ao ampliar o acesso à educação, Nietzsche afirma: “[...] não é a cultura da
massa que deve ser a nossa finalidade, mas a cultura de indivíduos selecionados, munidos das armas
necessárias para a realização das grandes obras que ficarão [...]”. NIETZSCHE, Sobre o futuro dos nossos
estabelecimentos de ensino, 3ª conferência, p. 105.
Djalma Lopes da Silva
22 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 8-23, 2017
vida”65. Como vimos, justamente para atender esse objetivo, Nietzsche proporá uma
educação baseada no modelo dos grandes mestres, professores que, com sua grandeza e
genialidade, fariam com que toda sociedade se elevasse culturalmente.
Embora o projeto de criação de um espaço propício para a formação desses
grandes mestres – a chamada “escola dos educadores” – não tenha sido levado à frente
por Nietzsche, como afirma D’Iorio66, a ideia da criação de escolas voltadas para a cultura
e educação dos professores era uma possibilidade de elevar a condição do professor como
educador, de torná-lo maduro e preparado para o magistério, pois dar ensino seria um
dever do homem de mais idade, com mais experiência. Por isso Nietzsche defendia a ideia
de que os homens responsáveis pelo processo de formação e transmissão da cultura não
deveriam ser jovens. Para o filósofo, os mestres, os guias, deveriam ser os homens
maduros, cultos, que possibilitariam uma “aristocracia do espírito”, capaz de criar um
espaço de liberdade diante do Estado, no qual seria possível levar adiante a tarefa
fundamental da educação, a saber, a elevação da cultura, que ocorreria através da criação
de novos valores, de novas interpretações e perspectivas mais afirmativas em relação à
existência. Porém, contra essa ideia de elevação cultural em prol da vida, haveria, como
Nietzsche diagnosticou, os interesses do Estado e do mercado, esferas que, em sua época,
enxergavam a educação com o olhar utilitarista, isto é, apenas como meio para obtenção
de seus fins.
Qualquer semelhança com os dias de hoje não nos parece ser mera coincidência.
Diante desse diagnóstico alarmante apresentado por Nietzsche, podemos afirmar que é
impossível ignorar a proximidade de suas críticas sobre o sistema educacional alemão do
século XIX com as que faríamos hoje do nosso. Como ressalta Scarlett Marton, no
prefácio de Nietzsche educador, a leitura dos escritos de Nietzsche sobre educação
impressiona pela atualidade, “tomado como ferramenta de trabalho, ele nos permite
lançar um olhar mais crítico sobre o momento em que vivemos”67.
Referências Bibliográficas:
BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. Trad. de
Luiz João Baraúna. Coleção: Os pensadores – 3ª ed. – São Paulo: Abril cultural, 1984.
65 NIETZSCHE, eKGWB, FP 11[145], primavera-outono de 1881. 66 D’IORIO, Paolo. Nietzsche na Itália: a viagem que mudou os rumos da filosofia, Cap. 2, p. 63. 67 DIAS, Rosa. Nietzsche educador, p. 7.
Nietzsche e a ideia do professor como um “mal necessário”
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 8-23, 2017 23
CORREIA, Noéli. “A pedagogia de Nietzsche”. In. Escritos sobre educação: Friedrich
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LARROSA, Jorge. Nietzsche e a Educação. Trad. Semíramis Gorini da Veiga. 3ª ed. –
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DIAS, Rosa. Nietzsche educador. 1ª ed. – São Paulo: Scipione, 1987.
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___________________. Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino. In.
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___________________. Crepúsculo dos ídolos. Trad. de Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 2006.
SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa? Trad. de Heloísa Matias e
Maria Alice Máximo. 23ª ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.
Recebido em: 25/04/2016
Aprovado em: 03/05/2017
24 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 24-41, 2017
Contribuições de Nietzsche para uma concepção artística de educação
Adriany Ferreira de Mendonça* e Alexandre Ferreira de Mendonça**
Para os amigos de colégio, para Danielle e Zé Luis,
para Irene, Ana Cláudia, Luiz e Ana Beatriz.
Resumo: Este artigo tem por objetivo discutir as possíveis contribuições do
pensamento de Nietzsche para a problematização de nossas práticas
pedagógicas. Partindo de textos em que tal debate não aparece de um modo
evidente – em especial Além do bem e do mal, Genealogia da moral e,
principalmente, A gaia ciência – pretende-se levantar elementos tanto para a
crítica ao que seria um modelo racionalista, idealista, e eminentemente teórico
de educação quanto para se esboçar uma concepção artística de educação que se
constitua em uma potente alternativa ao regime disciplinar vigente a partir da
modernidade.
Palavras-chave: educação; genealogia; arte; experimentação.
Nietzsche's contributions to an artistic conception of education
Abstract: This article aims to discuss possible contributions of Nietzsche’s
thoughts to the questioning of our pedagogical practices. Referring to works
where this debate is not obvious – especially Beyond good and evil, Genealogy
of morals and mainly The Gay science – it intends to present elements to a
critique of what would be the rationalist, idealist and eminently theoretical
model of education, as well as to outline an artistic conception of education
which constitutes a potent alternative to the disciplinary regime in place since
modernity.
Keywords: education; genealogy; art; experimentation.
Os primeiros escritos de Friedrich Nietzsche, apresentados publicamente quando
ainda atuava como professor na Universidade e no Pädagogium da Basileia, não deixam
de anunciar de forma mais ou menos direta o posicionamento crítico que, naquele
momento, nutria em relação às práticas pedagógicas modernas: práticas que teriam
incidido sobre sua formação no ginásio e sobre sua formação universitária como
filólogo; práticas com as quais ele, então, se via diretamente envolvido como professor
em instituições erigidas em plena sintonia com o modelo por ele criticado.
Sinais desse posicionamento já podem ser identificados em O nascimento da
tragédia, seu primeiro livro, publicado ao final de 1871, pouco mais de dois anos após
ter assumido o cargo de professor. Nele, Nietzsche contrapõe a apologia da arte trágica,
* Professora Dra. do Departamento de Filosofia do IFCS/UFRJ. Contato: [email protected] ** Professor Dr. do Departamento de Fundamentos da Educação da FE/UFRJ. Contato:
Contribuições de Nietzsche para uma concepção artística de educação
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 24-41, 2017 25
o elogio a uma cultura assentada sobre a experiência sensorial proporcionada pela
tragédia à violenta crítica ao racionalismo de origem socrática e à versão moderna dessa
tendência hegemônica no Ocidente – o cientificismo. O texto não trata explicitamente
de educação, não tematiza de modo óbvio o papel das instituições de ensino. Mas basta
levar em conta as influências da tradição racionalista sobre as bases não tão novas do
projeto pedagógico moderno, basta atentar para o quanto tais instituições contribuem
com a naturalização do valor de verdade que se atribui às ciências e com a difusão de
conteúdos provenientes do conhecimento científico como elementos de máxima
importância nos processos de formação, para se ter ideia das implicações que já este
escrito teria para o campo da educação. Soma-se a isso o fato de que Nietzsche não se
limita aí a um elogio nostálgico de uma cultura trágica perdida, o quanto ele aposta no
renascimento de uma tal cultura, e, mais que isso, o quanto ele pretende intervir no
sentido de contribuir para a promoção do renascimento e fortalecimento de tendências
absolutamente avessas àquelas que presidem o modelo de educação que o então
professor não tardaria a atacar de modo explícito. Se O nascimento da tragédia não é
um livro que trate claramente de questões reconhecidas como pedagógicas, nem por isso
ele deixa de poder exercer uma interferência bastante perturbadora sobre o contexto
educacional do qual ele emerge. No mínimo, aí se antecipa muito do que trazem à tona
os textos que vieram a ser conhecidos como seus escritos sobre educação – aqueles que
recebem os títulos Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino e Schopenhauer
como educador. E, talvez, nessa antecipação, seu posicionamento nos leve a dele extrair
efeitos ainda mais contundentes para o campo da educação justamente pelo fato de nele
o autor não precisar estabelecer nenhum compromisso com a discussão direta sobre as
práticas pedagógicas modernas e, por isso mesmo, não se restringir a alternativas ainda
demasiado próximas ao campo demarcado pela educação institucional. Enquanto os
escritos sobre educação não deixam de esboçar, pelo menos em certa medida,
alternativas que podem soar reformistas, internas ao ambiente institucional, O
nascimento da tragédia alardeia a potência da experiência estética promovida pela
tragédia – experiência balizada por impulsos antagônicos (o apolíneo e o dionisíaco)
que remetem, por um lado, ao contato sensorial com as formas do universo plástico e
poético e, por outro, ao violento efeito de suspensão da racionalidade provocado pela
música e pela embriaguez.
De todo modo, já no início de 1872, Nietzsche traz ao público a série de cinco
conferências, intitulada Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino, que é
Adriany Ferreira de Mendonça & Alexandre Ferreira de Mendonça
26 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 24-41, 2017
então pronunciada na Sociedade Acadêmica da Basileia e só postumamente publicada
como texto impresso. Logo em seguida, de 1873 a 1875, prepara e publica a série de
quatro Considerações Extemporâneas. Se todas elas tocam ao menos indiretamente na
temática educacional, a terceira Extemporânea, publicada em 1874 com o sugestivo
título Schopenhauer como educador, faz dela seu eixo central, a ela remetendo todas as
demais questões levantadas. As conferências de 1872 e a Extemporânea de 1874
cumprem então o papel de abordar direta, explícita e privilegiadamente as questões
relativas à educação moderna. Nesses textos, é recorrente a ideia de que nossas
instituições de ensino não seriam capazes de promover uma cultura superior, não teriam
verdadeiramente este papel e objetivo. Antes, refletiriam e aprofundariam sua
decadência. Por esta perspectiva, os estabelecimentos de ensino estariam a serviço das
exigências colocadas em jogo por um outro regime de poder simbolizado pelo Estado
burguês. Exigências que naquele contexto – e que talvez ainda mais no nosso –
priorizam a circulação e a aquisição de dinheiro, a promoção do lucro. É assim que ele
interpreta o fato de a formação profissionalizante, de base utilitária e cientificista, estar
substituindo a formação humanística. Esta substituição seria sintoma da assimilação da
educação e da produção cultural pela produção industrial de caráter massificante,
homogeneizante e meramente utilitário. É nesse sentido que o cientificismo presente nos
modelos curriculares, o valor atribuído à erudição de fachada, o privilégio dado ao
ensino teórico descolado do compromisso com o fortalecimento da vida e o
vínculo estabelecido entre as instituições de ensino e o Estado são os alvos centrais de
seu ataque. Por outro lado, Nietzsche não deixa de apontar para a possibilidade de
alteração do quadro negativo por ele diagnosticado em relação ao modelo de educação
que presidiria o funcionamento das instituições de ensino modernas. Alternativas neste
sentido se esboçariam a partir da revalorização e revigoramento do papel atribuído
à filosofia e à arte nos processos de formação. O fortalecimento da cultura popular –
aqui sua principal referência inspiradora seria a cultura trágica dos gregos previamente
tematizada em O nascimento da tragédia – e, ao mesmo tempo, a instauração de outras
práticas pedagógicas concebidas como um rigoroso exercício de fortalecimento de
singularidades individuais teriam o sentido de possibilitar a emergência do gênio.
Especificamente em Schopenhauer como educador, Nietzsche parece assumir um
posicionamento mais radical, levando adiante a discussão sobre a possibilidade de se
escapar das tendências dominantes nos estabelecimentos de ensino modernos ao tomar
Contribuições de Nietzsche para uma concepção artística de educação
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 24-41, 2017 27
Schopenhauer como exemplo de quem soube resistir a tais tendências através de
um artístico e rigoroso processo de autoformação.
*
A partir da publicação de Humano, demasiado humano, em 1878, a filosofia de
Nietzsche assume um direcionamento reconhecidamente diferente daquele apontado por
seus primeiros escritos. Há um significativo distanciamento das abordagens
inicialmente desenvolvidas. Distanciamento que se evidencia na ruptura com o
pensamento de Schopenhauer e Kant e com a estética de Wagner – as três principais
referências com as quais Nietzsche até então tinha estabelecido uma relação explícita de
aliança. Além disso, a preparação e a publicação deste novo livro coincidem com um
paulatino processo de afastamento das suas atividades como professor que se inicia com
uma série de longas licenças por problemas de saúde e se consuma com o seu definitivo
desligamento em 1879.
Ao comentar Humano, demasiado humano na autobiografia Ecce homo, Nietzsche
procura esclarecer o sentido da série de transformações e redirecionamentos ligados à
preparação desse livro:
Humano, demasiado humano é o monumento de uma crise. Ele se proclama um livro para
espíritos livres: quase cada frase, ali, expressa uma vitória – com ele me libertei do que não
pertencia à minha natureza. A ela não pertencia o idealismo: o título diz “onde vocês vêem
coisas ideais eu vejo – coisas humanas, ah, somente coisas demasiado humanas!”. 1
Esse comentário sugere que a alteração de sua perspectiva de pensamento estaria
ligada ao posicionamento anti-idealista que ele passa então a assumir. Nietzsche aqui
faz uso da expressão “idealismo” com sentido ampliado, utilizando-a para se referir a
todo e qualquer modo de pensamento que postule a existência de uma realidade
transcendente – um “mundo verdadeiro” oposto ao chamado “mundo aparente” –, que
pressuponha a existência de realidades de caráter abstrato em oposição ao que é por nós
experimentado, que pressuponha a existência de valores superiores, cujas origens jamais
são problematizadas. Agora, seu pensamento assume a recusa de tais ideais, investe na
desmistificação de seu suposto caráter superior através da investigação de suas origens
históricas e da denúncia de seu caráter demasiado humano. O comentário sugere ainda a
existência de um vínculo íntimo entre as transformações de sua perspectiva de
1 NIETZSCHE, F. Ecce Homo: como alguém se torna o que é, “Humano, demasiado humano”, §1, p. 72.
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28 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 24-41, 2017
pensamento e profundas mudanças no modo pelo qual guiava sua própria vida: tudo se
passa como se fosse preciso livrar sua própria natureza daquilo que a ela não pertencia,
livrar-se dos idealismos na própria maneira de lidar com a vida. Um pouco mais à
frente, ainda no capítulo de Ecce homo em que comenta Humano, demasiado humano,
Nietzsche observa que, pouco antes de iniciar a redação do livro, ele teria se dado conta
do quanto havia se desviado de seus instintos e de que a proximidade com Wagner e a
cátedra da Basiléia seriam apenas sinais desse desvio de sua própria natureza em prol do
ceder a pressões externas, do atender a exigências do ambiente em que vivia e que
refletia tendências da modernidade que ele qualificava como negativas2. A publicação
de Humano, demasiado humano inauguraria, assim, um processo de singularização de
seu pensamento que evidenciaria a necessidade da radicalização das estratégias de luta
contra seu tempo, a necessidade de escapar efetivamente das tendências hegemônicas no
próprio ambiente acadêmico em que ele teria se formado e em que agora ele professava.
O fato de tudo isso se confundir com o seu afastamento definitivo das instituições de
ensino em que atuava como professor pode indicar o que pensar sobre o papel das
instituições de ensino modernas. O fato de, a partir desse afastamento, passar a
experimentar e a desenvolver sua própria linguagem, de enveredar por caminhos cada
vez mais próprios e dar cada vez mais consistência às suas abordagens, levando adiante
o processo pelo qual pode vir a tornar-se o que se tornou dá ainda mais o que pensar a
esse respeito.
Curiosamente, Nietzsche não volta mais a dedicar seus escritos à reflexão detida
sobre as instituições de ensino – pouquíssimas, eventuais e esparsas são as referências
explícitas a partir de então e, quando aparecem, aparecem em curtos aforismos, frases
de efeito e jamais desenvolvidas como antes. Há certo silêncio a esse respeito. Um
talvez salutar “desvio de olhar” em relação a tais problemas.
**
Embora, a partir da publicação de Humano, demasiado humano, Nietzsche não
se dedique mais – pelo menos não de modo explícito – à discussão sobre o papel dos
estabelecimentos de ensino modernos e a questões facilmente identificáveis como
pedagógicas, isto não significa que a principal contribuição de sua filosofia para o
2 Ibidem.
Contribuições de Nietzsche para uma concepção artística de educação
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 24-41, 2017 29
campo da educação se restrinja ao que pode ser extraído das conferências proferidas na
Basileia ou da terceira Extemporânea. É justamente dos seus textos posteriores, em que
o tema da educação moderna não parece estar diretamente presente, que surge não só a
incitação para que se invista numa reavaliação dos valores, dos saberes, dos princípios e
pressupostos diretamente ligados ao funcionamento das nossas práticas, mas também a
“metodologia” a partir da qual tal reavaliação pode ser feita.
O movimento de radicalização de seu pensamento que se torna público com
Humano, demasiado humano se intensifica nos escritos seguintes e parece atingir seu
auge com a publicação de Além do bem e do mal, em 1886, e Genealogia da Moral, em
1887 – textos em que se delineia o modelo de avaliação nietzschiano que ficou
conhecido como método genealógico. A especificidade destes textos está em abrir a
possibilidade de se aprofundar o questionamento a respeito das práticas, saberes e
valores que vigoram na modernidade, colocando em jogo a necessidade de nos
interrogarmos a respeito do modo pelo qual tendemos a operar a própria avaliação de
tais práticas e saberes, a necessidade de nos interrogarmos acerca dos próprios valores a
partir dos quais se dão nossas avaliações e até acerca do valor das motivações que
levam a tais avaliações. Trata-se, talvez primeiramente, de colocar em xeque o próprio
valor pelo qual tendemos a avaliar os demais valores, o próprio valor que jaz como base
de toda e qualquer forma de conhecimento – a “verdade” – e ainda o desejo que o
engendra – a “vontade de verdade”.
Já na primeira secção de Além do bem e do mal, Nietzsche introduz essa guinada
em suas problematizações, colocando claramente em questão o valor da verdade e da
vontade de verdade. Este questionamento se desenvolve nas secções seguintes, e na
secção 4 se esboça não só a estratégia utilizada para se procurar respondê-lo, como
também se insinua a própria resposta:
A falsidade de um juízo não chega a constituir, para nós, uma objeção contra ele; é talvez nesse
ponto que a nossa nova linguagem soa mais estranha. A questão é em que medida ele promove
ou conserva a vida, conserva ou até mesmo cultiva a espécie; e a nossa inclinação básica é
afirmar que os juízos mais falsos (entre eles os juízos sintéticos a priori) nos são os mais
indispensáveis, que, sem permitir a vigência das ficções lógicas, sem medir a realidade com o
mundo puramente inventado do absoluto, do igual a si mesmo, o homem não poderia viver – que
renunciar aos juízos falsos equivale a renunciar à vida. Reconhecer a inverdade como condição
de vida: isto significa, sem dúvida, enfrentar de maneira perigosa os habituais sentimentos de
valor; e uma filosofia que se atreve a fazê-lo se coloca, apenas por isso, além do bem e do mal.3
3 NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal, I, § 4, p.11.
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30 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 24-41, 2017
A proposta aqui anunciada é a de se colocar em questão o próprio valor da
veracidade e da falsidade como critérios de avaliação de um juízo. Em vez de tomar tais
elementos como parâmetros seguros a partir dos quais seriam conduzidas as avaliações,
Nietzsche coloca em jogo a necessidade de se perguntar sobre o quanto nossos juízos
contribuem ou não para a promoção ou conservação da vida. Para essa outra questão, a
resposta que o autor aí indica de modo francamente polêmico e provocativo
desestabiliza as bases de nossa tradição de pensamento, de nossos hábitos e do que
tendemos a priorizar, embaralhando as fronteiras que supomos haver entre o verdadeiro
e o falso. O mundo do absoluto e do igual a si mesmo, as bases da lógica a partir das
quais tendemos a operar nossas avaliações são tratados como ficções e invenções e
assim associados ao campo do falso. Como se não bastasse, apesar de toda a falsidade
atribuída a esses elementos, neles é reconhecida a positividade de serem indispensáveis
à vida. Por essa perspectiva, que já não concebe o falso como o oposto do que
tradicionalmente tomamos como verdadeiro, o valor positivo de toda a sorte de ficções e
invenções colocadas em jogo por nossas avaliações lógicas estaria condicionado ao
papel desempenhado na promoção da vida. Como conseqüência, se a inverdade é
interpretada como condição de vida, renunciar a ela equivaleria a renunciar à vida.
Emerge daí uma convocação a que, no mínimo, suspeitemos de tudo aquilo que somos
levados a tomar por verdadeiro, que desconfiemos do seu suposto valor positivo, ou
pelo menos de sua validade universal.
No “Prólogo” de Genealogia da moral, mais especificamente em uma passagem
dedicada a problematizar o valor da compaixão e da moral da compaixão, Nietzsche é
ainda mais claro e incisivo a respeito de como conduzir as problematizações que propõe
e suas possíveis respostas, remetendo suas investigações claramente a uma pesquisa
histórica a respeito das condições de vida que estariam por trás do modo pelo qual
tendemos a conduzir nossas avaliações:
(...) quem neste ponto se detém, quem aqui aprende a questionar, a este sucederá o mesmo que
ocorreu a mim – uma perspectiva imensa se abre para ele, uma nova possibilidade dele se
apodera como uma vertigem, toda espécie de desconfiança, de suspeita e temor salta adiante,
cambaleia a crença na moral, em toda moral – por fim, uma nova exigência se faz ouvir.
Enunciemo-la, esta nova exigência: necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio
valor desses valores deverá ser colocado em questão – para isso é necessário um conhecimento
das condições e circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se desenvolveram e se
modificaram (moral como conseqüência, como máscara, tartufice, doença, mal-entendido; mas
também moral como causa, medicamento, estimulante, inibição, veneno), um conhecimento tal
como até hoje nunca existiu nem foi desejado. Tomava-se o valor desses “valores” como dado,
como efetivo, como além de qualquer questionamento; até hoje, não houve dúvida ou hesitação
em atribuir ao “bom” valor mais elevado que ao “mau”, mais elevado no sentido da promoção,
Contribuições de Nietzsche para uma concepção artística de educação
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 24-41, 2017 31
utilidade, influência fecunda para o homem (não esquecendo o futuro do homem). E se o
contrário fosse a verdade?4
Trata-se aqui, explicitamente, de propor uma crítica dos valores a partir dos
quais conduzimos nossas avaliações, de propor uma avaliação daquilo que se tomava
como dado inquestionável: o próprio valor dos valores. Avaliação que toma a forma de
uma investigação genealógica, de uma busca pela origem histórica destes valores, de um
estudo sobre “as condições e circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se
desenvolveram e se modificaram”. Em outra passagem do referido texto, pouco anterior
à supracitada, Nietzsche, referindo-se a como “alguma educação histórica e filológica,
juntamente com um inato senso seletivo em questões psicológicas”, transformou os
problemas de seus primeiros escritos naqueles com os quais então passou a lidar, lista
uma série de questões que cumprem o papel de indicar o sentido de seu método:
(...) sob que condições o homem inventou para si os juízos de valor “bom” e “mau”? E que valor
têm eles? Obstruíram ou promoveram até agora o crescimento do homem? São indício de
miséria, empobrecimento, degeneração da vida? Ou, ao contrário, revela-se neles a plenitude, a
força, a vontade de vida, sua coragem, sua certeza, seu futuro?5
Nietzsche exercitou o que poderíamos chamar de método genealógico colocando
em xeque não só os valores hegemônicos que balizam nossas práticas na modernidade.
Tal problematização repercute necessariamente sobre os saberes aos quais tendemos a
atribuir valores ditos positivos. No caso da cultura moderna, ela se desdobra na
reavaliação do saber científico, que tende a se impor como substituto da religião e da
filosofia metafísica. Nesse sentido, embora nesse momento posterior de sua obra o autor
não tenha explicitamente se dedicado ao questionamento de nossas práticas
educacionais ou do funcionamento dos nossos estabelecimentos de ensino, como fez em
seus primeiros escritos, ainda assim ele teria aberto espaço para uma série de
questionamentos a serem levados adiante: o que fazemos, o que pensamos, o que
aprendemos, o que ensinamos, o que difundimos e desejamos atende a que propósitos e
interesses? Tudo isso instaura ou alimenta que tipo de relações de poder? Promove ou
não que modo de relação com a vida? Qual o valor de se educar para e pela verdade?
Qual o valor das verdades constitutivas de nossas práticas em educação?
Seguindo as pistas deixadas por Nietzsche em Genealogia da moral e Além do
bem e do mal – com toda violenta crítica aos ideais da modernidade presente nestes
4 NIETZSCHE. F. Genealogia da moral: uma polêmica, “Prólogo”, § 6, p. 12. 5 Ibidem, § 3, p. 9.
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32 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 24-41, 2017
escritos –, seríamos levados a reconhecer o vínculo existente entre nossas práticas
pedagógicas e o campo de valorações que o autor identifica à “moral do rebanho” (em
sua versão burguesa). Seríamos levados a perceber a linha de continuidade entre a
ciência – instrumento de legitimação das próprias práticas pedagógicas que difundem
seus conteúdos e nos induzem a naturalizar e assumir seu suposto valor de verdade –, e
os ideais ascéticos de origem metafísico-religiosa. Seríamos levados ainda a perceber o
caráter utilitário do conhecimento científico, seu papel na produção de subjetividades
modeladas pelas exigências de produtividade e lucro, seu comprometimento com todo o
jogo de interesses que rege as emergentes sociedades modernas em que o lucro e sua
identificação ao ideal da felicidade são os valores pelo quais todos os outros valores são
regidos. Em suma, por essa perspectiva, nossas práticas pedagógicas seriam balizadas
por saberes e valores que não só teriam sua origem em um modo de vida decadente,
doente, enfraquecido, como teriam o sentido de disseminar e aprofundar o caráter
negativo de tal modo de vida. Mais do que confirmar algumas das conclusões
apresentadas por Nietzsche naqueles que ficaram conhecidos como seus escritos sobre
educação, a genealogia das nossas práticas pedagógicas, de seus princípios e
pressupostos, dos valores e saberes por elas colocados em jogo – genealogia que
Nietzsche inspira embora não a realize – tende a levar ao aprofundamento, ao
desenvolvimento e à melhor fundamentação da abordagem crítica que teria sido
anunciada em seus primeiros escritos, fortalecendo a possibilidade de um
questionamento radical do suposto valor positivo que tendemos a ingenuamente atribuir
ao próprio ideal da educação na modernidade.
***
“Não! Não me venham com a ciência, quando busco a antagonista natural do
ideal ascético (...). Ambos, a ciência e o ideal ascético, acham-se no mesmo terreno – já
o dei a entender”, previne Nietzsche no início da secção 25 da terceira dissertação da
Genealogia moral, para logo em seguida, anunciar a instância com a qual seu
pensamento teria então procurado estabelecer um vínculo direto: “a arte, na qual
precisamente a mentira se santifica, a vontade de ilusão tem a boa consciência a seu
favor, opõe-se bem mais radicalmente do que a ciência ao ideal ascético”6. Se tanto a
6 NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral, III, § 25, p. 141.
Contribuições de Nietzsche para uma concepção artística de educação
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 24-41, 2017 33
ciência quanto o ideal ascético se encontrariam no campo da crença na superestimação e
na incriticabilidade da verdade e se, por isso, só poderiam ser combatidos juntos, a arte,
por acolher a aparência como a aparência, a mentira como mentira, e afirmar com boa
consciência a própria vontade de ilusão, se torna a principal aliada de Nietzsche na
guerra contra o campo de avaliações do qual pretende escapar.
Dessa sugestão de aliança com a arte se delineiam, então, outras possíveis
contribuições nietzschianas para o campo da educação. O diagnóstico negativo sobre o
regime de educação moderno ao qual a genealogia parece nos levar encontra seu revés
afirmativo justo nas alternativas que a arte nos incita a pensar. Alternativas que se
constituem a partir da possibilidade de valorização não só de saberes diferentes daqueles
veiculados preferencialmente por nossas instituições de ensino, mas também de um
outro modo de relação com a vida, calcado em uma perspectiva experimental, pela qual
seríamos estimulados a assumir uma postura artística em relação à existência, a investir
na criação de valores singulares, mais afinados com as nossas idiossincrasias, na criação
de uma dieta de hábitos mais convenientes ao nosso fortalecimento e, por assim dizer,
no esboço de processos de autoformação a serem permanentemente problematizados,
reavaliados e reconfigurados.
Nesse sentido, A gaia ciência é um livro exemplar. O próprio título escolhido
para essa publicação de 1882 cumpre bem o papel de anunciar festivamente essa aliança
e suas implicações. Não se trata aí de uma referência à ciência tal como pensada a partir
de nossa tradição racionalista. Trata-se sim de uma referência direta às expressões “gaya
scienza” ou “gai saber”, pelas quais se nomeava uma modalidade de sabedoria distante
dos modelos que prevaleceram no ocidente: a sabedoria presente no exercício da arte
dos trovadores provençais em meio à cultura popular medieval – sabedoria poético-
musical que diz respeito à composição e à apresentação pública de poemas-canções
formalmente sofisticados, de conteúdo leve, bem humorados e por vezes até mesmo
iconoclastas.
Evidências do enlace que aí se dá entre a filosofia nietzschiana e a arte “ligeira,
zombeteira, divinamente imperturbada, divinamente artificial” dos poetas provençais,
como sugere o prefácio acrescentado à segunda edição, surgem nos 63 poemas que
abrem o livro, e nas 14 canções também acrescentadas por ocasião desta outra edição.
Mas talvez ainda mais significativos sejam os versos utilizados por Nietzsche a título de
epígrafe: “Vivo em minha própria casa/ Jamais imitei algo de alguém/ E sempre ri de
todo mestre/ Que nunca riu de si também”. Esse poema curto, que antecede todos os
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34 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 24-41, 2017
demais escritos que compõem o livro, vem acompanhado ainda da curiosa observação
“inscrição sobre a minha porta”, sendo apresentado assim como uma humorada
advertência ao leitor prestes a adentrar a obra. Ele tem o efeito de um filtro
interpretativo que antecipa, condensa e realça alguns dos principais elementos que
constituem a gaia ciência nietzschiana: a aposta na valorização das singularidades; a
recusa de modelos homogeneizantes, o vínculo que se estabelece entre esta outra ciência
e um regime afetivo marcado pelo bom humor; a exaltação do riso como antídoto contra
todo o pathos da seriedade, como uma arma leve e jocosa capaz de desestabilizar a
autoridade que se tende conferir à figura sisuda do mestre, tão cara à tradição
pedagógica; e, mais uma vez, a franca opção pela aventura de exercitar a expressão de
seu pensamento pela linguagem poética.
De modo geral, essa experimentação estilística, essa escrita poética e, por vezes,
também dramática atravessa todo o livro, mesmo que, em alguns casos, de maneira mais
sutil, sobrepondo-se ao estilo aforístico já ensaiado desde a guinada com Humano,
demasiado humano. Tal aproximação em relação ao campo da poesia permite que o
autor apresente suas abordagens com uma tonalidade bastante diferente daquela com
que mais frequentemente se apresentam os discursos que se pretendem (ou que
pretendem nos induzir a tomá-los por) inquestionavelmente verdadeiros. Ela parece
cumprir o papel de evidenciar que o autor é impulsionado por um pathos que em muito
difere da “vontade de verdade” que teria conduzido a história do pensamento ocidental.
Nietzsche opta por formulações que, já pelo modo como são apresentadas, chamam a
atenção para seu caráter fictício e meramente hipotético. Com isso, o leitor é convidado
a estabelecer um tipo de relação nada ingênua com os próprios textos que constituem A
gaia ciência, com esses textos em que Nietzsche desenvolve sua perspectiva crítica
incidindo privilegiadamente sobre a moral, a religião, a filosofia dogmática e a ciência.
Por outro lado, é através desses textos que o autor leva adiante sua aliança com a arte,
criando formulações que tematizam explicitamente o papel positivo que a arte teria
como um importante contraponto à hegemonia exercida pela moral, pela religião, pela
filosofia e, mais recentemente, pela ciência. Concebida como uma “espécie de culto do
não-verdadeiro”, para além dos limites do que se reconhece como obra, a arte é tomada
como um antimodelo a partir do qual se poderia pensar a vida, o conhecimento e formas
alternativas de lidarmos com a existência, não balizadas por valores de caráter universal.
Um dos melhores exemplos do posicionamento de Nietzsche em relação à arte
em A gaia ciência aparece na secção 107. Tendo desenvolvido na secção 54 a ideia de
Contribuições de Nietzsche para uma concepção artística de educação
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 24-41, 2017 35
que a vida se constitui integralmente no campo das aparências, de que a ilusão e o erro
são elementos integrantes da vida em todas as suas instâncias e de que o conhecimento
seria um artifício da própria vida para levar esse jogo adiante7, Nietzsche, agora nesta
outra secção, intitulada “Nossa derradeira gratidão para com a arte”, retoma todos esses
pontos para daí propor a ideia de que a própria existência poderia ser compreendida
como um fenômeno estético e derivar uma série de implicações:
Se não tivéssemos aprovado as artes e inventado essa espécie de culto do não-verdadeiro, a
percepção da inverdade e mendacidade geral, que agora nos é dada pela ciência – da ilusão e do
erro como condições da existência cognoscente e sensível –, seria intolerável para nós. A retidão
teria por conseqüência a náusea e o suicídio. Mas agora a retidão tem uma força contrária, que
nos ajuda a evitar conseqüências tais: a arte como a boa vontade de aparência. (...) Como
fenômeno estético a existência ainda nos é suportável, e por meio da arte nos são dados os olhos
e mãos e, sobretudo, boa consciência, para poder fazer de nós mesmos um tal fenômeno.
Ocasionalmente precisamos descansar de nós mesmos, olhando-nos de cima e de longe e, de
uma artística distância, rindo de nós ou chorando por nós; precisamos descobrir o herói e
também o tolo que há em nossa paixão do conhecimento, precisamos nos alegrar com a nossa
estupidez de vez em quando, para poder continuar nos alegrando com a nossa sabedoria! E
justamente por sermos, no fundo, homens pesados e sérios, e antes pesos do que homens, nada
nos faz tão bem como o chapéu do bobo; necessitamos dele diante de nós mesmos –
necessitamos de toda arte exuberante, flutuante, dançante, zombeteira, infantil e venturosa, para
não perdermos a liberdade de pairar acima das coisas, que o nosso ideal exige de nós. Seria para
nós um retrocesso cair totalmente na moral, justamente com a nossa suscetível retidão, e, por
causa das severas exigências que aí fazemos a nós mesmos, tornamo-nos virtuosos monstros e
espantalhos. Devemos também poder ficar acima da moral: e não só ficar em pé, com a
angustiada rigidez de quem receia escorregar e cair a todo instante, mas também flutuar e brincar
acima dela! Como poderíamos então nos privar da arte, assim como do tolo? – Enquanto vocês
tiverem alguma vergonha de si mesmos, não serão ainda um de nós!8
A arte, apresentada nesta secção como uma “espécie de culto do não
verdadeiro”, ao evidenciar os artifícios que a constituem, nos sensibilizaria para
perceber o que há de artificial e artístico na própria vida e, mais que isso, para ver com
outros olhos o caráter meramente aparente de tudo o que nos cerca. Através dela,
seríamos levados não só a perceber as ilusões constitutivas da própria existência, mas
também a compreender o que nelas pode haver de positivo e necessário. Seríamos
levados, assim, a estabelecer um outro tipo de relação com nós mesmos e com o mundo
em que vivemos, não mais pautada pela crença moral no valor superior da verdade, mas
sim na afirmação do erro, da ilusão como elementos próprios e imprescindíveis ao
funcionamento da vida. Daí Nietzsche propor explicitamente nesta secção que, através
da arte, nos são dados os meios e a boa consciência para que possamos fazer de nós
mesmos um fenômeno estético. Afirmação que, em última instância, atribui à arte o
poder de nos induzir a um modo de agir que já não se apóia no apego a qualquer valor
7 NIETZSCHE, F. A gaia ciência, I, § 54, p. 92. 8 Ibidem, II, § 107, pp. 132-133.
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36 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 24-41, 2017
de caráter universal instituído previamente, mas sim na consciência de que lidamos com
um mundo de puras aparências eternamente cambiantes, e de que nossas ações e
pensamentos valem como intervenções artísticas que nos habilitam a tomar parte neste
jogo pelo qual se recriam permanentemente as possibilidades de vida. A ideia de que o
próprio conhecimento ou mesmo a moral não passariam de invenções que colocariam
em jogo toda a sorte de truques ilusórios em proveito de certos modos de vida (e não da
vida em geral), a ideia de se conceber a própria vida não pelo viés da unidade ou da
totalidade, mas pelo das multiplicidades, tudo isso implica o rompimento com a
exigência de submissão a modelos unitários pretensamente universais. Tudo isso se
articula necessariamente com a já tematizada exigência de se pensar em outras e
inusitadas formas de conhecimento e avaliação, em outras maneiras de se produzir tais
artifícios, de modo a contemplar a própria variedade de formas de vida.
O que um texto como a referida secção de A gaia ciência parece indicar mais
uma vez, embora de modo talvez enviesado, é que, diante de qualquer modelo que a nós
se imponha, cabe a pergunta sobre o seu valor para a vida; cabe a pergunta sobre o tipo
de vida ao qual ele serve; cabe a pergunta sobre os seus efeitos. Coloca-se, assim, a
exigência de desenvolvermos uma sutil percepção a respeito do que nos convém ou não,
do que nos fortalece ou não, ou do que pode, deve ou merece ser estimulado e
desenvolvido em nós. Exigência a partir da qual se abre a possibilidade de participarmos
de modo alegre, zombeteiro, dançante e flutuante na criação de outros artifícios que
venham a auxiliar positivamente nossa relação com a vida, sem que se possa contar com
respostas prévias para nos guiar nessa atividade, mas apenas com um exercício
assumidamente experimental, no qual o erro deixa de ser pensado como algo em si
mesmo negativo.
Tanto a compreensão da arte como algo que se coloca para além das obras de
arte, como a ideia de uma ação estética sobre a existência voltam a aparecer no quarto
livro de A gaia ciência. A secção 290 chama a atenção para a necessidade de que o
homem atinja a satisfação consigo mesmo, situando a arte como um instrumento para se
conseguir tal efeito. Mais adiante, na secção 299, sugestivamente intitulada “O que
devemos aprender com os artistas”, Nietzsche propõe que com eles aprendamos a
utilizar toda a série de invenções e artifícios para tornar as coisas belas, atraentes e
desejáveis, mesmo quando elas não o são, concluindo o texto com o convite para que
nos tornemos poetas autores de nossas vidas, principiando pelas coisas mínimas e
cotidianas:
Contribuições de Nietzsche para uma concepção artística de educação
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 24-41, 2017 37
De que meios dispomos para tornar as coisas belas quando elas não o são? – e eu acho que em si
elas nunca o são! Aí temos algo a aprender com os médicos, quando eles, por exemplo, diluem o
que é amargo ou acrescentam açúcar e vinho à mistura; ainda mais dos artistas que
permanentemente se dedicam a essas invenções e artifícios. Afastarmo-nos das coisas até que
não mais vejamos muita coisa delas e nosso olhar tenha de juntar muita coisa para vê-las ainda –
ou ver as coisas de soslaio e como que em recorte – ou dispô-las de forma tal que elas encubram
parcialmente umas às outras e permitam somente vislumbres em perspectivas – ou contemplá-las
por um vidro colorido, ou à luz do poente – ou dotá-las de pele e superfície que não seja
transparente: tudo isso devemos aprender com os artistas, e no restante ser mais sábios do que
eles. Pois neles esta sutil capacidade termina, normalmente, onde termina a arte e começa a vida;
nós, no entanto, queremos ser os poetas-autores de nossas vidas, principiando pelas coisas
mínimas e cotidianas.9
De início, Nietzsche recusa a ideia de que as coisas possam possuir um valor
positivo em si mesmo. Nesse caso específico, a “beleza” é tratada não como um ideal
transcendente, ou um valor absoluto, mas como uma criação artificial. Nietzsche parte
então de uma curiosa valorização do médico – que não é apresentado como um porta-
voz da verdade a quem deveríamos nos submeter, mas como alguém com quem
poderíamos aprender a dominar certos truques que diriam respeito à transfiguração das
aparências – para então chamar a atenção para a superior importância dos artistas: com
eles teríamos ainda mais o que aprender a esse respeito.
Também fica claro nessa passagem que o tipo de revalorização que Nietzsche
empreende acerca da arte não se confunde com a mistificação do artista ou das obras de
arte. Ao contrário, ele não deixa de sutilmente lançar suas críticas aos artistas por,
normalmente, não serem capazes de exercer suas habilidades para além dos limites da
obra de arte. Daí nos prevenir que devemos ser ainda mais sábios que os artistas. Trata-
se mais uma vez de valorizar a arte para além das obras de arte. Trata-se de exaltar o
sutil poder que seus artifícios assumem quando aplicados na reavaliação de nossa
relação com a vida. Trata-se de extrair da arte os meios pelos quais se pode intervir
sobre a existência, de modo a torná-la atraente e desejável aos nossos olhos. Ao se
referir às artimanhas cujo domínio seria privilégio dos artistas, Nietzsche as compreende
e as utiliza em sentido eminentemente metafórico, transportando-as para o campo da
própria vida cotidiana. Ver as coisas a partir de determinadas perspectivas, encobri-las
parcialmente, sobrepor a elas uma superfície colorida, variar a luz que sobre elas incide:
eis a série de artifícios que Nietzsche propõe que aprendamos a utilizar para empregá-
los não na preparação daquilo que já se reconhece previamente como obra de arte, mas
na recriação da vida. A arte exercida para além dos limites da obra de arte poderia então
9 Ibidem, IV, § 299, p. 202.
Adriany Ferreira de Mendonça & Alexandre Ferreira de Mendonça
38 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 24-41, 2017
ser valorizada não só por nos incitar a deixar de lado as valorações universais a partir
das quais tradicionalmente avaliamos nossas ações, nosso suposto caráter, nossa suposta
natureza, nossa vida, mas ainda por nos induzir a uma atividade criativa pela qual
podemos investir na produção de um sentido afirmativo para as singularidades que
compõem a nossa existência, como uma atividade pela qual podemos nos tornar
criadores de nós mesmos, afirmando sobretudo nossas idiossincrasias, convertendo em
virtude singular aquilo que, sob uma perspectiva moral, talvez fosse interpretado como
fraqueza, erro, desvio, patologia.
Essa articulação entre a valorização da arte para além das obras de arte e a
possibilidade de ultrapassagem das valorações morais volta a ser sugerida de um modo
mais direto em outros textos de A gaia ciência. A secção 301, por exemplo, retoma a
ideia, já apresentada de outro modo na secção 299, de que nada possui valor em si
mesmo, acrescentando que o que quer que tenha valor nesse mundo só o tem graças às
invenções de homens de propensão artística. Mas é a secção 335 a mais explícita a esse
respeito. Neste texto, Nietzsche, após atacar precisamente a suposição de leis e valores
universais a partir dos quais seriam julgadas nossas condutas, nos convida a criar ideais
próprios, a instituir nossas próprias tábuas de valores para, assim, nos tornarmos aqueles
que somos, criando-nos a nós mesmos: “É tempo de se enojar com toda a tagarelice
moral de uns sobre os outros (...) Nós, porém queremos nos tornar aqueles que somos –
os novos, únicos, incomparáveis, que dão leis a si mesmos, que criam a si mesmos!”10.
Todos esses textos de A gaia ciência trazem à tona tanto a discussão sobre a
urgência de estabelecermos certa distância em relação ao que somos levados a aprender
dentro e fora de nossas instituições quanto a discussão sobre a necessidade de
apreendermos coisas muito diferentes daquelas que tendemos a comumente valorizar
como alvo de aprendizado. Por essa perspectiva, deveríamos antes de mais nada
aprender a suspeitar dos valores e saberes aos quais somos permanentemente incitados a
aderir pelas práticas pedagógicas que constituem o modelo de educação moderno,
deveríamos avaliá-los a partir de abordagens singularizantes que levem em conta nossas
idiossincrasias, nossas necessidades e possibilidades – sempre provisórias,
circunstanciais e, portanto, não passíveis de universalização. Deveríamos aprender ainda
a investir na criação de outras formas de avaliar, pensar e lidar com a vida, calcadas não
em modelos e identidades prévias, verdades e valores universais, respostas fixas e regras
10 Ibidem, § 335, p. 224.
Contribuições de Nietzsche para uma concepção artística de educação
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 24-41, 2017 39
inquestionáveis, mas na experimentação – experimentação de outras maneiras de viver,
de modo a atender à necessidade de desenvolvermos e fortalecermos nossas potências
singulares. Se a importância do aprendizado persiste, trata-se agora de um outro
aprendizado que teria na arte no mínimo sua fonte de inspiração. Rejeição de modelos
universais, de princípios e fundamentos inquestionáveis, revalorização da
experimentação, incitação a que tomemos um papel ativo no processo de invenção e
reinvenção destes modelos, princípios e fundamentos: são esses os elementos que
constituem a concepção artística de educação que emerge desses textos. Uma concepção
eminentemente experimental, que teria no estímulo à criação de valores singulares e de
outras formas de saber e viver o contraponto necessário às tendências moralizantes e
homogeneizantes que ainda presidem a constituição e difusão dos saberes hegemônicos
na modernidade.
****
O horizonte para o qual os textos e a própria biografia de Nietzsche apontam vai
muito além daquele almejado pela educação estritamente institucional. A concepção de
experiências artísticas de educação que estes textos nos convidam a esboçar não se
reduz à formação disciplinar no interior de instituições que pressupõem o modelo ao
qual aquele que pretende se tornar artista deve corresponder – pouco importa se o
modelo pressuposto corresponde ao artista intelectualizado, erudito, que é capaz de se
mover nos círculos da suposta alta cultura ou àquele que atende às mais recentes
exigências do mercado do entretenimento. Ela também não se reduz ao uso instrumental
da arte como ferramenta que teria o sentido de contribuir para a maior eficiência na
produção dos efeitos que nossos estabelecimentos de ensino previamente se
comprometem a alcançar. Ao contrário, tanto em um caso como no outro, estaria em
jogo o risco de aniquilamento da potência perturbadora que Nietzsche exalta na arte.
Trata-se, em vez disso, de extrair da arte elementos que nos inspirem um outro modo de
nos relacionarmos com nosso próprio processo de formação e de, a partir daí,
redefinirmos o que podem ser os modos de funcionamento, os papéis e os limites da
educação institucional.
Cabe perguntar, então, se o esboço de uma concepção artística de educação, tal
como sugerido por tais textos de Nietzsche, seria compatível com o regime de forças
que preside o funcionamento de nossas instituições de ensino. Seria possível contribuir
Adriany Ferreira de Mendonça & Alexandre Ferreira de Mendonça
40 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 24-41, 2017
para a instauração de processos de formação de caráter singularizante, não modelares,
não homogeneizantes ainda que no interior dessas instituições? Seria possível a criação
de ambientes capazes de estimular uma relação experimental com a vida, de modo a se
promover o desenvolvimento de processos de autoformação a partir do contato com as
instituições de ensino? E, para isso, seria preciso uma alteração radical do modelo que
as rege? Ou bastaria a alteração da nossa relação – quer sejamos alunos, professores,
funcionários de qualquer escalão, pais... – com tais instituições, a alteração da nossa
relação com os valores e saberes que as sustentam e que elas promovem? Seria possível
delas nos apropriarmos, nos apropriarmos do que elas veiculam e converter em algo
proveitoso para o desenvolvimento de nossa própria autoformação independentemente
do efeito de formação que elas pretendem e tendem a produzir? Em que medida aquilo
mesmo que por elas não é previsto, a presença da intratável alteridade, aquilo mesmo
que nelas é combatido como negativo e que é identificado pelos signos do caos, da
desordem e da perturbação pode ser o que nelas há de valioso? Eis a gama de questões
que essa discussão pode suscitar para o campo da educação institucional. Questões que
exigem debate e para as quais respostas prévias devem ser previamente recusadas, seja
por se tratar aí de um campo de forças, de tensões e disputas cujo funcionamento talvez
seja difícil de mapear ou de se reduzir a relações de causa e efeito identificáveis, seja
porque o caráter experimental daquilo que aqui se propõe exige antes a experiência, o
gosto pelo risco e a alegre afirmação da possibilidade do erro, em vez de garantias, leis,
ou regras de conduta.
Referências bibliográficas
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Tradução de Paulo César Souza. São Paulo:
Cia das letras, 2001.
____________________. Além do bem e do mal. Tradução de Paulo César Souza. São
Paulo: Cia das letras, 1998.
____________________. Ecce homo. Tradução de Paulo César Souza. São Paulo: Cia
das letras, 1995.
____________________. Escritos sobre educação. Tradução de Noéli Correia de Melo
Sobrinho. São Paulo: Loyolla, 2003.
____________________. Genealogia da moral. Tradução de Paulo César Souza. São
Paulo: Cia das letras, 1998.
Contribuições de Nietzsche para uma concepção artística de educação
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 24-41, 2017 41
____________________. Humano, demasiado humano. Tradução de Paulo César
Souza. São Paulo: Cia das letras, 2004.
____________________. O nascimento da tragédia. Tradução de J. Guinsburg. São
Paulo: Cia das letras, 1992.
Recebido em: 08/05/2017
Aprovado em: 25/05/2017
42 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 42-59, 2017
Arte e saúde em Nietzsche
Carlos Roger Sales da Ponte
Resumo: Trata-se de um exercício compreensivo-interpretativo acerca de
algumas posições do filósofo alemão Friedrich Nietzsche sobre a arte na obra
Humano, Demasiado Humano e suas possíveis ligações com o tema da “saúde”.
Buscam-se elementos para uma compreensão ampliada de uma saúde
existencial, tomando a arte como um meio privilegiado para esta finalidade.
Palavras-chave: arte; saúde; Humano, Demasiado Humano; Friedrich
Nietzsche.
Art and health in Nietzsche
Abstract: It is a comprehensive-interpretative exercise about some positions of
the German philosopher Friedrich Nietzsche on the work of art in the book
Human, All Too Human and possible links with the theme of "health." Look up
elements for a broader understanding of an existential health, taking art as a
privileged means for this purpose.
Keywords: art; health; Human, All Too Human; Friedrich Nietzsche.
Uma coisa é necessário ter:
ou um espírito leve por natureza
ou um espírito aliviado pela arte e pelo saber.
Nietzsche1
Introdução
O saudoso professor e filósofo Gerd Bornheim, em um texto intitulado Filosofia
e Poesia2, nos diz que aquela nasceu desta última ao nos recordar que a maioria dos
filósofos Pré-Socráticos escreveram suas reflexões em forma de poemas. Ou seja,
qualquer argumentação na busca ou no vislumbre de alguma “verdade”, deveria vir à
luz versejando. Deduz-se daí que filosofia e arte, apesar de suas diferenças, não
poderiam estar separadas, pois o terreno da experiência vivida é o solo comum do poeta
e do filósofo: ambos experienciam este mundo e, neste reflexivo contato, o expressam
Este escrito é uma versão estendida da palestra proferida no VI Encontro Ludovicense de
Fenomenologia, Psicologia Fenomenológica e Filosofias da Existência, que ocorreu em abril de 2016
na Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Professor do Curso de Psicologia da UFC/Campus Sobral. Mestre em Filosofia e Mestre em Psicologia
UFC). Doutorando em Filosofia (UFC). Contato: [email protected] 1 NIETZSCHE, Humano, demasiado humano, aforismo 486. 2 BORNHEIM, Filosofia e poesia. Disponível em:
<http://www.pgletras.uerj.br/matraga/matraga00/matraga0a15.pdf>
Arte e saúde em Nietzsche
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 42-59, 2017 43
em suas respectivas obras. Com o filósofo alemão Friedrich Nietzsche não foi diferente:
arte (sobretudo a música) e filosofia, em vários momentos, são quase indiscerníveis no
percurso de sua obra.
Não pretendendo discorrer sobre as inúmeras nuances que o tema da arte toma
na multiforme trajetória de Nietzsche, tarefa grande demais e para uma vida inteira
talvez... Desejo aqui realizar um exercício compreensivo-interpretativo acerca de
algumas posições do filósofo no que se refere à arte na obra Humano, Demasiado
Humano (doravante HDH) e suas possíveis ligações com o que significa “saúde” e
“doença”, entendidas no contexto do seu pensamento.
É claro, tratar destas temáticas não significa fazer uma mera exegese do texto de
Nietzsche onde estes assuntos vêm à tona de maneiras mais ou menos explícitas, ou
como conceitos soltos que podemos unir em argumentos encadeados logicamente.
Implica, antes, delinear seus contornos na ideia muitas vezes por ele repetida do tornar-
se o que se é: o que quer dizer “ser saudável” e, ao mesmo tempo, estar em busca de si
mesmo? Como a experiência da arte dá suporte a esta concepção de saúde? Por outros
termos, desejo explorar aspectos da arte e da saúde como experiências desencadeadoras
ou “auxiliares”, digamos, a partir das quais alguém se torna o que é. Dando um corpo
vivente a estes temas, trato aqui de buscar elementos para dar certa visibilidade a uma
compreensão mais ampliada de uma saúde existencial, tomando a arte, segundo a ótica
de Nietzsche, como meio privilegiado para tanto.
Cumpre deixar claro, desde já, que um procedimento de pesquisa que vai
experimentando os vários lugares que figuram no discurso de Nietzsche, implica em
não tomar o próprio Nietzsche como uma “fonte de convicções” ou “verdades
estabelecidas”, pois “não existe uma lei ou obrigação dessa espécie; temos de nos tornar
traidores, praticar a infidelidade, sempre abandonar nossos ideais”3, preferindo-se,
portanto, transitar pelo labirinto das reflexões do filósofo alemão até chegar a alguma
verdade, alguma certeza, ainda que este conhecimento experienciado e descrito aqui,
circunscrito aos elementos escolhidos para se deter (arte, saúde, doença, tornar-se o que
se é) seja tomado como uma ficção provisória e aberta, posto que criativo/criador de
outras vias igualmente possíveis de compreensão e interpretações. Afinal, Marton
(2010), nos lembra que
3 NIETZSCHE, Humano, demasiado humano, aforismo 629.
Carlos Roger Sales da Ponte
44 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 42-59, 2017
são várias as passagens em que Nietzsche convida o leitor à experimentação, seja por
entender que nós, humanos, não passamos de experiências ou por acreditar que não
devemos nos furtar a fazer experiências com nós mesmos. Seus escritos, tentativas
renovadas de refletir sobre algumas questões, possibilitam experimentos com o próprio
pensar.4
Humano, demasiado humano e as “observações psicológicas”
A obra Humano, Demasiado Humano inaugura a chamada fase intermediária da
filosofia de Nietzsche (que vai de 1878 – ano da publicação do livro – a 1882),
constituída também pelos dois complementos a este primeiro livro, Opiniões e
Sentenças Diversas e O Andarilho e sua Sombra. Completa esta fase as obras, Aurora e
as quatro primeiras partes de A Gaia Ciência.
Ao longo da gestação de HDH, Nietzsche estava passando por um momento de
grande conturbação pessoal, já que ele ainda respirava o ar de “profundo
estranhamento” causado pelo 1º Festival de Bayreuth. O pensador alemão estava em
processo, digamos, de “assepsia” a esta experiência pessoalmente traumática. E por
quê? Na percepção de Nietzsche, Wagner teria se desvirtuado de suas propostas
artísticas originais e se rendido à lógica burguesa do espetáculo; ao fascínio pelos ideais
nacionalistas dos liberais do Segundo Reich; e a um pietismo religioso cristão, em
detrimento dos significados dos mitos nórdicos para a construção de uma cultura e arte
semelhante à cultura trágica dos antigos helenos. As esperanças depositadas em Wagner
e em um projeto (antes gestados pelos dois) de renovação cultural do espírito e cultura
alemães foram colocados por terra. E Nietzsche se ressentiu com essa traumática
experiência com o compositor.
Nietzsche considera HDH como o “monumento de uma crise”5, e onde se
envereda agora em “duras observações psicológicas”6 dirigidas às condições históricas,
sociais, religiosas, políticas, morais e artísticas sob os auspícios das ciências da natureza
do século XIX, as quais refletem uma postura mais “fria”, decorrentes de uma
compreensão imanente, naturalista e global do mundo. Por outros termos, a partir de
HDH, Nietzsche percebe que tudo no mundo humano encontra-se sob a égide do devir;
que tudo veio-a-ser, desvencilhando-se de quaisquer entidades metafísicas para serem
garantidas ou confirmadas: tudo é humano, demasiadamente humano.
4 MARTON, Nietzsche, filósofo da suspeita, p.16. 5 NIETZSCHE, Ecce Homo, “Humano, demasiado humano”, Seção 1. 6 Ibdem, Seção 2.
Arte e saúde em Nietzsche
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 42-59, 2017 45
Fica fácil perceber que, de HDH em diante, as contribuições wagnerianas e
schopenhaurianas de ordem metafísica não tinham mais solo para crescer na filosofia de
Nietzsche. Não era, no fundo, uma simples ruptura com seus mestres espirituais (que
estavam marcadamente presentes em seu primeiro livro, O Nascimento da Tragédia),
mas com todo um modo de pensar e toda uma visão de mundo e do humano que não
combinavam mais com os novos percursos que se assomavam no espírito de Nietzsche.
HDH simboliza do que o filósofo se livrou, do que não pertencia à sua natureza,
assumindo que estava tornando seu espírito livre, isto é, “que de si mesmo de novo
tomou posse”7. Livrou-se para recuperar seu próprio espírito; sua honestidade
intelectual; sua autenticidade pessoal.
Encaminhando-se na direção de uma postura mais “pragmática”, mais
“científica”, alimentada pela leitura que fez do ideal iluminista e de uma fé nas ciências
da natureza por estas poderem fazer dissipar as supostas “certezas” metafísicas de
caráter transcendente, Nietzsche compreendeu que vigorava uma exaltada valorização
de um suposto mundo inteligível sobre o mundo sensível. Em contrapartida, era preciso
constituir uma “filosofia histórica” que assegurasse um “sentido histórico” cuja falta era
o “defeito hereditário de todos os filósofos”8. Nietzsche percebe que no humano
vigoram uma diversidade de impulsos fisiológicos que se encontram em constante luta e
estes impulsos são a base para complexas construções como a cultura, a arte, a política,
as relações sociais e a ciência, por exemplo. Basicamente, o período intermédio da
trajetória nietzschiana transcorre num tom antirromântico e antimetafísico, posto que
ele,
[...] ao falar de sensível, ele já não se refere a uma esfera que se opõe a um suposto mundo
transcendente, eterno. A realidade sensível passa a ser, para ele, a única existente, a única a partir
da qual o problema do conhecimento das origens deve ser considerado.9
Nietzsche mostra uma nova versatilidade criativa para expressar suas
inquirições, pois é em HDH que o filósofo ousa enveredar-se na arte de exprimir-se em
“sentenças psicológicas”, como ele mesmo diz, na forma de uma escrita experimental de
expressão dos afetos e pensamentos em trânsito: o aforismo. Ao usar deste expediente
estilístico, Nietzsche adentra numa atividade plena de criação de perspectivas, tentando
realizar um esforço “no sentido de começar a dispor de uma linguagem mais própria,
7 NIETZSCHE, Ecce Homo, “Humano, demasiado humano”, Seção 1. 8 NIETZSCHE, Humano, demasiado humano, aforismos 1 e 2. 9 MENDONÇA, “De Humano, demasiado humano à Gaia ciência: Nietzsche e sua declaração de guerra à
metafísica”, p.05.
Carlos Roger Sales da Ponte
46 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 42-59, 2017
livre de elos com aquilo contra o que ele se volta. [HDH] Surge como um escrito em
que seu espírito, não sem sofrimento, teria se tornado livre”.10
Descrito em suas linhas gerais, podemos dizer que, com HDH, Nietzsche já vai
elaborando sua postura perspectivista, sustentando o caráter ilusório, criativo e “falso”
do conhecimento, concebido tão somente como aparência, mas sem opô-lo a uma
suposta “essência”. Se a arte, ciência, religião, cultura e moral não passam de
elaborações humanas, demasiado humanas, compostas por uma miríade de valores e
perspectivas recheadas de interesses que nada tem de metafísicos ou transcendentes, não
poderiam existir “conhecimentos desinteressados”, sentidos “ocultos” ou “essenciais”
que poderiam ser desvelados como “fundamentos” fixos e imutáveis do mundo, dando-
lhe suas “finalidades”.
Almejando alcançar êxito nesse empreendimento, Nietzsche apela para o que ele
chamou de “observações psicológicas”. Antes de mais, o que o filósofo alemão entende
e pratica sob o nome de “psicologia” não é o mesmo que a nossa compreensão atual.
Em Nietzsche, psicologia não é sinônimo de uma “ciência da consciência subjetiva e,
portanto, da subjetividade”11, mas como um instrumento privilegiado e estratégico para
dissecar os idealismos metafísicos, unindo-se a uma história dos sentimentos morais,
desembocando por fim, no desvelar das origens humanas da construção dos valores;
algo que desmantelaria tanto as religiões quanto a moralidade, ambas baseadas em
construções metafísicas. Do exposto, fazer psicologia, segundo os moldes nietzschianos,
“remete a uma análise crítica que alia história, arte e perspectivismo para esboçar uma
destruição dos privilégios da consciência e do dualismo que marcara a compreensão dos
fenômenos humanos”.12
Tentando descrever como se dá esse percurso incisivo, Nietzsche, no aforismo
35 de HDH, diz que esta observação psicológica tem por foco o que é demasiadamente
humano; uma observação despudorada da vida social. Por que social? Para não se
reduzir ou recair numa concepção geral do humano despregada do mundo concreto; um
“humano em-si”; uma ideia puramente idealista e metafísica que daria suporte a outras
explicações do mundo. Porém, as construções culturais são sociais, portanto históricas.
O exemplo dos moralistas franceses, nos quais Nietzsche se espelha, não é tanto pela
agudeza de suas breves e ácidas sentenças, mas pelo fato de falar abertamente o que a
10 Ibdem, p.04. 11 OLIVEIRA, “A psicologia como procedimento de análise da moralidade nos escritos intermediários de
Friedrich Nietzsche”, p.562. 12 Ibdem, p.563.
Arte e saúde em Nietzsche
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 42-59, 2017 47
comunidade humana, com seus valores morais gregários, faz questão de não ouvir,
encobrir e, se possível, esquecer. O caráter dessa psicologia é incisivo e é neste ponto
que a situação delineada fica perigosa e sufocante: afinal, como poderemos admitir
certos fenômenos humanos, que se mostram em sua crueza natural e concreta, e ainda
poder sustentar outras concepções valorativas (idealistas), as quais agora podem cair
como escamas secas e quebradiças? Por outros termos, como ficarmos tranquilos se
nossos valores morais, submetidos a esta crítica, podem cair por terra? Os fenômenos
demasiadamente humanos, assim vislumbrados, dizem respeito a nós; dizem algo
profundo; longínquo sobre nós. E Nietzsche se encaminha nessa via de exposição.
A razão da aversão da cultura pela história de suas proveniências morais pode
ser percebida no aforismo 36: a crença não comprovada, mas aceita, numa “natureza
humana” bondosa tornou a cultura avessa a qualquer análise mais penetrante dos
meandros da constituição humana, confiando na capacidade “inata” do humano de
“elevar-se”. Em suma, essa fé retirou a qualidade da desconfiança: o humano
desconfiado é alguém que não aceita fácil o discurso ou a postura de outrem que traria
uma suposta “verdade inquestionável”. Neste caso, a desconfiança tira seu alimento
também da postura dogmática.
Uma vez mais, ainda neste aforismo, Nietzsche traz à baila os moralistas
franceses chamando-os de “atiradores de boa mira que acertam sempre no escuro – mas
no escuro da natureza humana”. A imagem do atirador é de interesse: é preciso
paciência para detectar o alvo após severa e minuciosa observação. Quando algo ganhou
a condição de alvo é porque mereceu a atenção (uma atenção desconfiada, digamos) e
houve o disparo. A observação psicológica ganha maior relevo quando atinge os
meandros humanos dos quais cuidadosamente foi retirada a luz, e jogados nas sombras
para fazer de conta que não existem, ou francamente deles se esquecer. Essa observação
joga na cara as construções culturais tornadas “patrimônios intocáveis”. Porém,
Nietzsche mostra que o percurso histórico que tornou obscuro e esqueceu o que é
demasiado humano fez nascer as crenças metafisicas.
Nietzsche atesta claramente, no aforismo 37, que a observação psicológica e a
observação moral são sinônimas: um procedimento que disseca (e só se disseca o que já
não tem mais vida; ou uma vida de segunda mão) as entranhas históricas escondidas dos
sentimentos morais desde suas origens. Embora Nietzsche ainda não consiga extrair as
consequências sociológicas e filosóficas de tal procedimento, ele sabe que as longas
teias argumentativas da tradição filosófica acerca das motivações e ações humanas
Carlos Roger Sales da Ponte
48 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 42-59, 2017
provem de ideias de fundo religioso e, mesmo, mitológico, as quais não fazem mais
sentido, segundo o filósofo. Dedicar-se a esse empreendimento psicológico faz
Nietzsche sublinhar a necessidade de uma “persistência” e “austera valentia” ao
psicólogo que se dedica a esse labor. Não existe uma “necessidade metafísica” do
humano que justifique deixar na sombra o que o agrilhoa a preconceitos não trazidos à
luz e, por isso, não tematizados que poderiam mostrar-lhe outras perspectivas de
existência, outros modos de ser potencialmente enriquecedores.
No aforismo 38, Nietzsche é enfático ao sustentar que a ciência não pode passar
sem a observação psicológica. Ora, a justificativa dessa afirmação repousa em que a
compreensão do próprio conhecimento não pode ser esclarecida sem que se dê conta da
mediação humana na constituição mesma deste conhecimento. Nietzsche está cônscio
de que “conhecer” não é uma mera descrição objetivada do mundo, e este, como algo
“externo”, “dado”, à espera de uma descrição ou representação. Não se trata, é óbvio, de
elaborar um discurso ontológico devedor, em última instância, de um ideário metafísico
ou de uma epistemologia. O filósofo vislumbra com muita agudeza as perspectivas
humanas (portanto, imanentes; concretas) entranhada nos discursos tanto das ciências
quanto da filosofia; todos eles legítimos se percebidos como criações. Criações
artísticas, podemos completar. Portanto, tecidos pelo pensar e ação humanos como
“farsa”; como “engano”.
Tomando em mãos o diagnóstico dos sentimentos morais desde suas origens na
formação da cultura moderna, talvez aí se possam fazer prognósticos quanto ao devir
das criações humanas e se elas trarão “utilidade ou desvantagem aos homens”. É claro,
Nietzsche não pretende atear fogo em tudo com sua proposta da filosofia histórica, uma
vez que refutar uma ideia implica propor outra “mais verdadeira” que a anterior, o que
ele não faz. Nietzsche percebe as “enfermidades” na forma de cristalizações;
convicções; criações ilusórias artísticas agora tomadas como crenças cegas e dogmas de
ordem metafísica. E porque se encontram enrijecidas, estes pontos de vista impedem o
movimento do pensar para outras paragens igualmente válidas de serem exploradas. Do
exposto, fica claro que Nietzsche não tem como parâmetro um ideal de ciência como
um puro empirismo objetivista típico do positivismo do século XIX; porém, uma
“imitação da natureza em conceitos”; isto é, mímesis e arte em forma de enunciados
esclarecedores acerca das origens históricas dos sentimentos morais, destituindo-a de
suas “origens” extramundanas, para desnudar-lhes sua condição natural; “terrena”;
Arte e saúde em Nietzsche
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 42-59, 2017 49
mundana; transitória; humana enfim. E, por conta disso, o escrutínio das observações
psicológicas é indispensável à ciência, conclui Nietzsche.
“Compressas de gelo” é o que o médico-filósofo Nietzsche sugere para o
procedimento mais detido da dissecação dos sentimentos morais: requer-se “frieza” para
a tarefa de espelhar e ser fotografia da cultura humana. Não é ofício do filósofo “ser
melhor” que outros, imputando-lhes outras maneiras “mais corretas” de viver e avaliar a
existência. Seria um novo tipo de moralismo. Para se fazer essa ciência, demasiada e
assumidamente humana (porque se trata de compreender como a vida se enfraqueceu
com a trajetória metafísica, esquecendo-se de suas origens mundana); mimética e
artística (porque se trata de procurar outras veredas para potencializar a vida em sua
riqueza multiforme), não se pode perder a dimensão crítica. Neste caso, Nietzsche
convida à autocrítica severa como condição para trilhar outros rumos mais próximos às
trajetórias e características humanas.
A arte é mais um desses artigos culturais que também, de acordo com Nietzsche,
se deixou entranhar por crenças metafísicas sobre sua história e finalidades. E como
obra humana constituída historicamente, Nietzsche não deixou de apontar seu olhar de
psicólogo e desvendar o que os artistas gostariam de esquecer ou não saber.
A arte demasiada humana
Já sabemos há tempos: Nietzsche, ao seu modo, também foi um artista (músico
de pouco talento, é verdade. Todavia, foi se dotando de uma capacidade literário-poética
ímpar). Não se contentando com as tarefas que julgava maçantes do ofício de professor
filólogo, teve pretensões de unir, em uma só pesquisa e escrita, o rigor filológico e
filosófico, e a pulsão da arte. Resultado: o centauro chamado O Nascimento da
Tragédia. Poucos compreenderam de que se tratava, isto sim, de um trabalho filosófico-
filológico (e não somente um trabalho filológico) que postulava como era o modo de
ser, viver e a criação artística (em especial a música e a poesia) dos antigos helenos,
com base em seus instintos agonísticos e estéticos: o apolíneo e o dionisíaco,
entendidos como forças constitutivas das manifestações artísticas que vinham se
desenvolvendo desde a poesia épica dos aedos, passando pela poesia lírica até
encontrarem-se, formando aquela potência avassaladora que foi a teatro trágico.
Nietzsche mostra também como estas pulsões foram covardemente mortas pela poesia
racionalizada de Eurípedes, inspirada na pervertida dialética e estética socráticas,
Carlos Roger Sales da Ponte
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nivelando humanos e deuses, suprimindo a distância que os separavam; e, na conclusão
de seu estudo, declara (de um modo bem panfletário) uma esperança de retorno do
espírito musical e das pulsões trágicas helênicas para a reforma da cultura alemã (com
os mitos nórdicos como pano de fundo), tendo como carro-chefe o drama musical
wagneriano. Por essa época, Nietzsche era amplamente influenciado pela música de
Wagner e pela metafísica do artista de Schopenhauer. Esse estado de coisas mudaria
radicalmente pouco mais de seis anos depois...
Por seu turno, em HDH, a adoção de ideias e uma postura de cunho científico e
iluminista podem nos fazer acreditar, à primeira vista, que Nietzsche simplesmente
abandona suas paixões pela arte em suas formas poéticas e/ou musicais, (suas
preferências explícitas que figuraram em seu estudo sobre a tragédia), por uma vontade
de fazer surgir aqueles “espíritos livres”, mediante a crítica à estrutura da modernidade.
Mas essa seria uma conclusão apressada e, em parte, errônea. É justo que indaguemos:
como Nietzsche percebe e compreende a arte nestes primeiros momentos de seu novo
percurso filosófico em que não se encontra mais sob os auspícios de um suporte
metafísico que justifique a vida? Qual percurso Nietzsche trilha a fim de descrever a
gênese do fenômeno estético, a qual também é um artigo criado culturalmente, à luz da
filosofia histórica por ele praticada?
De pronto, podemos perceber que Nietzsche agora invoca a necessidade de se
construir uma “ciência da arte”13, na abertura do capítulo quarto de HDH dedicado à
descrição psicológica de como vivem e pensam artistas e escritores, a fim de que não
mais nos deixemos levar por ilusões de ordem metafísica acerca do fazer artístico e da
obra de arte mesma, posto que esta não surgiu miraculosa e repentinamente; o que já
choca um pouco a quem considera as obras como possuidoras, digamos, de uma aura
divina.
Numa leitura atenta, podemos notar que tanto em HDH, como nos seus dois
complementos (Opiniões e Sentenças Diversas e O Andarilho e sua Sombra),
“Nietzsche continua a fazer avaliações críticas à arte, a desmascará-la quando está
envolvida em sua áurea metafísica”14, mas exibindo uma “passagem da reflexão sobre
as obras de arte para uma reflexão bem particular, a vida mesma considerada como
13 NIETZSCHE, Humano, demasiado humano, aforismo 145. 14 DIAS, Nietzsche, vida como obra de arte, p.109.
Arte e saúde em Nietzsche
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arte”15. Nada mais distante das reflexões do jovem professor de filologia de quando
ainda era profundamente marcado por ideais românticos.
Agora Nietzsche se mostra intransigente em denunciar aquilo que os artistas
gostariam de fazer calar, a saber, o que figura por trás dos efeitos impactantes que a arte
provoca no humano. Certamente não há nada de miraculoso. O filósofo quer explicar,
esmiuçar o fazer artístico que não quer saber de verdades científicas, preocupado que
está o artista em promover e em dar um ritmo diferente ao que a vida comum possui16;
mostra inclusive que a obra de arte, apesar de qualquer comoção ou arrebatamento que
possa provocar, nada tem de transcendente17; porém, que é fruto de um contínuo esforço
e exercício do artista18, dotando-a da linguagem que ele quiser dar a ela19, posto que a
arte e o artista, despidos de supostas origens metafísicas e idealistas, são acontecimentos
de um grande esforço e trabalho humano.
O que figura no discurso nietzscheano é a constatação de que a arte, quando
ornada de qualidades idealistas advindas de um suposto além-do-mundo, tende a se
separar do mundo humano (um lugar deturpado, imperfeito e feio por assim dizer),
ganhando assim uma “legitimação” porque falaria de aspectos transcendentes os quais
provocariam fortes emoções a quem dela frui e fazendo do artista um ser “iluminado”
como que acima do resto dos mortais. Arte e artista são consideradas, então, artigos
“sagrados”. A crença altamente difundida do acontecimento repentino chamado de
inspiração e na capacidade excepcional de criação de obras de arte cuja força é
altamente impactante, tecida por certos humanos excepcionais (os “gênios”), são
exemplos de perspectivas distantes da vida, posto que as obras de arte são frutos de um
labor contínuo e exigente por parte do artista, não possuindo nenhum tipo de qualidade
distante do mundo e da existência humanas, ou advindos de um “céu platônico”. O
artista, digno desse nome, seria o reflexo da imersão deste em suas experiências
particulares e como ele reverbera as experiências de sua cultura; ou seja, na vida
concretamente vivida está a matéria-prima das pulsões que animam o artista e dão corpo
às suas obras. Não há nada de obscuro ou divino nesse tecido duro da lida artística.
Se o humano é puro devir, e devir também é a forma própria do mundo, a arte
deve refletir esse vir-a-ser, materializando-se nesta ou naquela obra. Importa que o
15 Ibdem, p.111 16 NIETZSCHE, Humano, demasiado humano, aforismos 146-148. 17 Ibdem, aforismo 161. 18 Ibdem, aforismo 155-156. 19 Ibdem, aforismo 171.
Carlos Roger Sales da Ponte
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humano artista se transfigure e se expresse em forma de algo belo, uma vez que a arte
“na medida em que olha a vida de frente, compreende a experiência existencial e ajuda a
ver que mesmo ali, onde há dor, sofrimento, desilusão, horror, temor e morte, mesmo aí
há vida e porque é assim, há beleza, há força afirmativa, há vontade de dizer Sim [...]”20.
Estas considerações tocam e reafirmam diretamente a fórmula nietzschiana de fazer da
vida uma obra de arte. Não seria outro modo de dizer o que muito depois Ferreira
Gullar enunciou belamente de que a “arte existe porque a vida não basta”?
Os significados dessa sentença podem ser muitos, sobretudo para os
esteticamente sensíveis; os que habitam nas vizinhanças da arte. Contudo, um sentido se
sobressai: afirmar inteiramente a existência vivida em todas as suas faces, quaisquer
que sejam.
Supondo que não haja outra vida além desta, cumpre exaltar o viver pelo simples
fato de viver, e não apenas cotidianamente “repetir-se” onde a existência humana seja
simplesmente “jogada” no ritmo avassalador do trabalho instrumental, burocrático e
impessoal. “Afirmar” implica dar forma, conteúdo, harmonia ao que o humano
considerar mais satisfatório, apesar da cultura ocidental perpetuar um esvaziamento
cotidiano das singularidades em favor do “comum”; do regime de vida gregário da
cotidianidade; do humano nivelado por baixo, consumista e valorizando somente os
padrões de existência previamente dados pelo senso comum. Para usar um termo muito
usado por Nietzsche, afirmar-se não é fazer parte do rebanho, ainda que se tenha de
conviver em meio aos ditames das formações culturais deste rebanho.
A arte tornada vida desagrilhoou o humano de tudo aquilo que restringia sua
potência de ser; de “ser em devir”, sabendo mais ou menos que não há pontos de
chegada. Sem fim no seu existir (só encontrando finalização por ocasião da morte), o
humano artisticamente lapidado, não é sinônimo de alguém que põe em prática alguma
forma de atividade artística específica, tais como pertencer a um grupo teatral ou de
dança, ou ser um pintor, ou escritor, etc. (embora tudo isso possa favorecer no saber-se
mais de si). Porém, artista é quem se dispõe a decidir algo substancialmente diferente
acerca de sua própria vida em meio à cultura em que vive, posicionando-se frente a ela
também: alguém que se expande; que vai adiante da medida imputada pelo modo de
vida social comum burocratizado; alguém que busca tornar-se “para além”.
20 OLIVEIRA, “A psicologia como procedimento de análise da moralidade nos escritos intermediários de
Friedrich Nietzsche”, p.573.
Arte e saúde em Nietzsche
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 42-59, 2017 53
Em suas reflexões sobre arte e o artista em HDH, Nietzsche nos convida, e
mesmo nos intima, a imergir na arte mesma, despojados de raciocínios e conclusões
idealistas com a finalidade de reencontrar a existência concreta e o prazer que a mesma
pode nos proporcionar, ainda que as obras de arte encontrassem seu fim, deixando-nos
talvez desamparados em princípio. Desamparo ilusório perante um espírito talhado na
frieza da ciência e das observações psicológicas, imune às seduções metafísicas. Por
isso, diz Nietzsche, mesmo que “a arte desaparecesse a intensidade e multiplicidade da
alegria de vida que ela semeou continuaria e exigir satisfação. O homem científico é a
continuação do homem artístico”21. Em outras palavras, na busca pela alegria de viver,
deixando de lado os auspícios da religião indo em direção da arte para, enfim,
beneficiar-se dos resultados de uma ciência esclarecedora do devir humano,
reencontraríamos a nós mesmos, humanos-artistas.
Arte e saúde
Sem pretender expor todos os contornos que circunscrevem os ditos
nietzschianos acerca dessa temática tão cara ao filósofo em seu período intermediário,
apontarei algumas considerações do pensador alemão sobre a arte e saúde quando estas
indicam possíveis interseções, restringindo-me somente ao primeiro volume de HDH,
deixando o exame dos mesmos assuntos nas continuações deste volume para outro
momento.
Quando Nietzsche fala de “saúde” ou “doença”, em primeiro lugar não se trata
de moléstias orgânicas passíveis de intervenção biomédica. Não é nesse nível que ele se
encontra. Todavia, o filósofo alemão, num procedimento semelhante ao médico,
perscruta nas condições culturais as consequências para uma potencialização da vida
(favorecendo sua saúde) ou minando-a (retirando sua vitalidade). Bem entendido, o
texto nietzschiano sugere que quando a vida multiplica suas possibilidades criativas; de
poder-ser “diferente”; de dirigir-se em outras direções interpretativas/perspectivistas
polifônicas e promissoras diferentes do usual, eis aí a saúde. O oposto disso, reduzindo
as opções de escolha; instaurando-se uma monotonia da “mesmice”; onde outras vozes e
influências retiram as possibilidades de singularidade e autenticidade, eis aí a doença. É
claro, as reflexões de Nietzsche sempre têm como pano de fundo a construção histórico-
21 NIETZSCHE, Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres, aforismo 222.
Carlos Roger Sales da Ponte
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cultural que desenharam os contornos da modernidade e que, em vários sentidos, ainda
nos concerne.
No aforismo 214 de HDH, por exemplo, e ao contrário de nossa cultura
excessivamente preocupada em fazer a assepsia das diferenças e tomar o “estar doente”
como uma espécie de “erro” ou como um evento comum da vida, os antigos helenos
tomavam as ocorrências “mórbidas” como proveniente de alguma divindade; portanto,
como um teste de força ao qual deviam responder à altura. Por outros termos, a doença
era a oportunidade de auto-observação (não do tipo psicológica, pois as condições de
emergência de uma subjetividade privada não existiam na antiguidade helênica) de
poder-confrontar e saborear a própria força (ou fraqueza) como algo próprio, para longe
de avaliações sob parâmetros morais de “bem” e “mal”. Era uma avaliação forte e
inocente a qual somos pouco capazes.
Por outro lado, no aforismo 289, sob o título de “O valor da doença”, e falando
algo um pouco mais próximo de nós, escreve Nietzsche
O homem que jaz doente na cama talvez perceba que em geral está doente do seu ofício, de seus
negócios ou de sua sociedade, e que por causa dessas coisas perdeu a capacidade de reflexão
sobre si mesmo: ele obtém esta sabedoria a partir do ócio a que sua doença o obriga.
Ora, não é o caso de generalizarmos o dito de Nietzsche e chegarmos à
conclusão de que todas as doenças têm origem somente cultural (o que é discutível sob
outros pressupostos), mas quando nos encontramos prostrados, obtemos a oportunidade
(ainda que não garantida) de refletirmos sobre como temos estruturado nossa própria
condição existencial. É como se a doença nos colocasse “de fora” do existir,
possibilitando-nos um vislumbre ímpar acerca de nós mesmos a partir do ócio
compulsório que ela nos “presenteia”. Claro está que esse ócio pode não ser encarado
desse modo (é uma escolha possível apenas a quem já desenvolveu certa sensibilidade
em relação a si), o que comprova como o humano, em geral, “perdeu a capacidade de
reflexão sobre si mesmo”, tomando a doença apenas como um “mal” que atrapalha os
prazeres da vida e a agenda cotidiana do trabalho. Os dias “perdidos” podem ser mesmo
considerados como “em vão” pela falta de reflexividade.
Por seu turno, o aforismo 244 tem como horizonte muito claro o ritmo veloz da
cultura moderna, fruto do desenvolvimento industrial e cultural capitalista com seu
cortejo infindável de objetos consumíveis os quais atingem em cheio a sensibilidade do
humano. Nietzsche descreve algo semelhante ao que mais tarde Walter Benjamin
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chamará de vivência de choque22, característica do humano que vive nessa ciranda
vertiginosa de estímulos sensoriais que o atingem sem cessar, resultando na quase
incapacidade de reter algo que seja chamado efetivamente de experiência, passível de
ser assimilada e talvez narrada posteriormente como fruto de uma tradição.
Contudo, neste momento Nietzsche identifica esse choque com uma
“superexcitação das forças nervosas e intelectuais” que pode levar alguns à loucura. O
filósofo sugere “reduzir a tensão do sentir”, mesmo sabendo que não há como livrar-se
de todo da “opressão da cultura”. Nietzsche lança mão da tese do “espírito da ciência”
para não se deixar excitar os sentimentos na via rápida da fé em verdades finais e
convicções. Não esqueçamos que no aforismo 483, Nietzsche dispara, “Convicções são
inimigas da verdade mais perigosas que a mentira”. Assim, a tentativa sempre retomada
para mitigar as vivências de choque passa por um pensar/agir que retira sua força
decisória não de considerações morais, mas das experiências que atravessam o corpo,
essa “grande razão”, fonte inesgotável de avaliação de vida. Os percursos entrevistos a
partir dos textos nietzschianos para alcançar alguma saúde multiplicam-se
consideravelmente e se entrecruzam passando longe de vias pavimentadas e bem
sinalizadas por verdades dogmáticas ou idealistas.
Esse pensar/agir, como já deve ter ficado claro, nos pode ser conferido pela
ciência, tal como a concebe Nietzsche. Ciência necessária para uma “cultura superior”23.
Entretanto, essa cultura científica não é sinônima de uma seriedade carrancuda e
curvada por “verdades” aferidas por métodos experimentais positivistas, estando muito
mais aparentada a uma parte do cultivo de si, de uma arte de si. Ora, o que isso pode
significar? Nietzsche, neste mesmo aforismo, diz que as ilusões, paixões, parcialidades
são a fonte de energia do empreendimento humano. Mas é preciso um regulador: as
ciências. Sem esta, o humano se jogaria sem pensar nos braços de suas “invenções
consoladoras” da existência: seja na fruição rasa e consumível de algumas formas de
produtos ditos “artísticos” que condizem à ideia do “tempo livre” de um ócio irrefletido,
fruto da indústria cultural, seja com as construções religiosas que prometem uma
justificação da vida e uma recompensa num “porvir”, num “além” da existência.
Essa arte de si numa cultura superior pede ao humano que ande na corda bamba
tentando sempre fazer convergir numa mistura feliz, o ser artístico e o ser cético e frio,
22 O ensaísta e crítico alemão trata especificamente dessa temática, confrontando-a com a noção de
experiência, no texto “Sobre alguns temas em Baudelaire”. Cf. BENJAMIN; HORKHEIMER;
ADORNO e HABERMAS, 1973. 23 NIETZSCHE, Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres, aforismo 251.
Carlos Roger Sales da Ponte
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numa direção outra que não crie um novo tipo de ilusão dogmático/metafísico ou se
deixe enganar por “promessas” de resolução dos problemas humanos advindos única e
exclusivamente do conhecimento das diversas disciplinas científicas (não no sentido
dado por Nietzsche) e seus usos técnicos: sabemos bem por quais caminhos a razão
tecnocrática nos levou e continua a nos conduzir desde o século passado: à tecnificação
da vida e à degradação da natureza.
É muito mais exigente essa arte de si: força à reunião de uma variedade de
perspectivas incluindo, também, as que podem empobrecer o viver. Um movimento de
análise e plasmação de interpretações cuja forma ao final (se é que tem um final...) é
imprevisível. A posição de Nietzsche em apontar o estado de coisas da estrutura cultural
dos sentimentos morais que atravessam a modernidade, esfriando seu olhar, afinando-o
e afiando-o para cortar fundo e expor as entranhas de toda essa proveniência histórica,
habilita-o a perceber possíveis linhas de fuga ao ponto de nem sempre termos de dançar
essa ciranda imposta pelos idealismos em sua miríade de formas. A crítica nietzschiana
vem acompanhada de certa exigência de quem segue as reflexões do filósofo, a se
pensar possíveis formas de viver para além do que consideremos uma “vida boa”. Fica
fácil perceber que não se pode viver diferentemente sem que surja a necessidade de
abrir mão de algo muito próximo; de talvez ter de cortar na carne coisas queridas...
Os ditos nietzschianos estão mais para um tipo de diapasão ou martelo (martelo
pequeno, mas certeiro nos pontos em que bate) a nos fazer perceber (se conseguirmos
tal despojamento) se temos um “pensamento forte”, ou se no “lugar deste surge a
intenção de encontrar uma rima”24, isto é, uma vida que apenas vem se repetindo; ou
ainda se possuímos a tenacidade, perseverança, energia” para desenvolvermos “talentos,
isto é, se tornar aquilo que é” em obras e ações.
Nietzsche, esse homem que tanto padeceu de enfermidades físicas (algumas
delas decorrentes da sífilis contraída na juventude e que mais tarde lhe roubaria a
sanidade jogando-o na demência); com certa amargura pelas feições que tomou a
cultura alemã, distante dos anseios originais do filósofo; meio solitário e errante;
incompreendido pela maior parte de seus contemporâneos e amigos, não se deixou
abater por completo: é lícito supor com muita segurança que toda essa adversidade
existencial alimentou mais ainda sua reflexão e direção do que significa tornar-se o que
se é, subtítulo inclusive, e para lembrarmos, de sua autobiografia, Ecce Homo.
24 NIETZSCHE, Humano, demasiado humano, aforismo 610.
Arte e saúde em Nietzsche
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Concluindo
Em meio a condições adversas de sua vida e outras que, em parte por escolhas
próprias, o tenham levado a direcionar seu olhar fino e incisivo para os modos de
estruturação da modernidade a partir dos valores e sentimentos morais espraiando suas
reflexões em várias direções, Nietzsche percebeu muito claramente e não ousou deixar
de lado durante sua existência e filosofia andarilhas algo que foi decisivo ao perscrutar
os modos culturais de existência em suas proveniências genealógicas: o aspecto
cambiante do existir humano; sua inexatidão; o que pode ser o previsível e o
imprevisível; o razoado e o apaixonado em quaisquer intensidades.
Se for possível resumir, a partir das palavras de Nietzsche, em um breve dito,
podemos afirmar: o humano, este ser aberto, não passa de um campo onde atuam uma
rica gama de forças as quais se chocam, conformando muitos modos de ser/existir que
vão se revezando num exercício contínuo de poder. Em suma, o que vigora hoje,
deixará de existir em outro momento, dando lugar a outra expressividade potente.
Nietzsche percebeu que existir não foi, não é, e provavelmente nunca será
tranquilo, calmo e suave. Adentrar na aceitação do caráter de luta imanente à vida,
presenteia o humano com a certeza de que a vida que faz sentido é aquela que é
assumida em todo seu vigor como jogo de forças. É justamente aí que o humano vive
sua saúde existencial: afirmando plenamente a vida da maneira como ela se apresenta a
ele, sendo ele mesmo (o humano) manifestação de força vital.
Por sua vez, se a arte é aquele modo ímpar de que dispomos para suportar a
existência em vir-a-ser, atravessado pela luta, o humano faz-se, então, artista; faz-se
obra, conferindo um pouco ou muito de beleza até no mais trágico, cruel e doloroso no
viver. A arte está a serviço do humano para poder suportar a vida, expressando sua
beleza combativa. Logo, não há consolo possível. Qualquer busca aflita por consolações
em algum “plano superior” idealizado, qualquer que seja ele, parte de uma interpretação
dicotômica: existiria este mundo e algum outro “melhor”, mesmo que seja em promessa.
Em Nietzsche, vige apenas “este mundo” e nada mais. Uma afirmação trágica e bela ao
mesmo tempo, incitando-nos a assumir francamente o devir, criando novos valores que
tonifiquem a vida.
Carlos Roger Sales da Ponte
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O tema da Grande Saúde, Nietzsche o tratará apenas na Gaia Ciência. Mas suas
primeiras linhas já surgem em HDH. Eis aqui, em resumo, o que significa essa tese
nietzschiana:
A grande saúde, na ótica nietzschiana, é, portanto, a capacidade de amar a efetividade até mesmo
em nossos momentos de doença. É essa afirmação alegre da vida, mesmo diante da dor, da
doença, da morte, do sentido trágico da própria existência. Para o filósofo alemão, a grande
saúde é, consequentemente, o desejo de vida, a capacidade de dizer sim a vida, de enfrentar os
combates físicos e existências que compõem a dinâmica fundamental.25
Tornar-se si mesmo; tomar posse novamente de si ao ponto de pensar “de modo
diverso do que se esperaria com base em sua procedência, seu meio, sua posição e
função, ou com base nas opiniões que predominam em seu tempo”26, que é a definição
mesma de espírito livre proposta por Nietzsche, implica um processo de (re)criação
nada tranquilo e francamente doloroso. Implica “estar doente” dos valores gregários que
imputam “regras” rígidas a todos os “cativos”, enquanto a liberdade de tornar-se adere à
ser a “exceção”. A convalescença também é igualmente difícil, pois lamentaremos os
“bens” deixados para trás, mas que nos agrilhoavam a existência com idealismos em
forma de avaliações morais enfraquecedores da vida. Porém, a arte vivida do cultivo de
si intima o humano a fazer-se diferença absoluta tendo por arena a vida se confrontando
com outras diferenças. Esse é um modo de ser saudável. Entretanto, seremos capazes de
sermos artistas e obra numa abertura tão grande e sem garantias, bastando, para
começar, afirmando um Sim!, ainda que (talvez) tenhamos de dizer/ser muitos Não?
Nietzsche aposta que sim.
25 AZEREDO, “Nietzsche: a grande saúde e o sentido trágico da vida”, p.259. 26 NIETZSCHE, Humano, demasiado humano, aforismo 225.
Arte e saúde em Nietzsche
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Referências Bibliográficas
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OLIVEIRA, J.R. “A psicologia como procedimento de análise da moralidade nos
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Rio de Janeiro, Ano 9, n.03, 2º semestre de 2009, p.560-581.
Recebido em: 26/09/2016
Aprovado em: 23/05/2017
60 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 60-72, 2017
Para além da lei moral: morte de Deus e gratuidade de Feuerbach a Sartre*
Paolo Stellino
Resumo: O presente trabalho tem por objetivo mostrar o contexto filosófico e
literário no qual evolui o seguinte problema: quais são as consequências da
morte de Deus para a moral? Para responder a esta questão, focarei minha
atenção sobre um período específico do pensamento ocidental, a saber, o que vai
de Feuerbach (ou, da publicação da Crítica da razão pura de Kant em 1781) a
Sartre e Camus, passando particularmente por Dostoievski e Nietzsche. Mais
especificamente, analisarei a relação existente entre a morte de Deus e a
gratuidade.
Palavras-chave: morte de Deus; gratuidade; niilismo; amoralidade.
Na parte inicial de sua obra O existencialismo é um humanismo (1946), Sartre responde
às críticas endereçadas ao existencialismo. Em particular, do lado cristão, repreendia-se
aos existencialistas “de negar a realidade e a seriedade dos empreendimentos humanos,
pois que se suprimimos os mandamentos de Deus e os valores inscritos na eternidade,
nada mais resta senão a estrita gratuidade, cada um podendo fazer o que quer”.1 Para
compreender o sentido desse enunciado condicional, composto pelo precedente “se
suprimimos os mandamentos de Deus e os valores inscritos na eternidade” e pelo
conseguinte “nada mais resta senão a estrita gratuidade”, é preciso antes de tudo decifrar
a alusão à “estrita gratuidade”. Nesta passagem, Sartre faz referência ao Ato gratuito de
André Gide, escritor francês que viveu entre os séculos XIX e XX e que teve um papel
de primeira importância na vida intelectual de sua época.
O conceito de ato gratuito aparece na obra de Gide inicialmente em estado
embrionário, como ato livre (Paludes, 1895). Quatro anos depois, Gide publica Le
Prométhée mal enchainé ([O Prometeu mal acorrentado], 1899), onde ele dá a seguinte
definição de ato gratuito: “um ato que não é motivado por nada. [...] O ato
desinteressado; nasce de si; o ato também sem finalidade; portanto sem mestre; o ato
* Traduzido do francês por André Martins. Ph. D. em Filosofia pela Universidade de Valencia (Espanha) e professor do Instituto de Filosofia da
Nova (IFILNOVA/FCSH) da Universidade Nova de Lisboa, Portugal. Contato: [email protected]
1 Sartre, J. P., L’existentialisme est un humanisme. Paris: Gallimard, 1996, p. 22.
Para além da lei moral: morte de Deus e gratuidade de Feuerbach a Sartre
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 60-72, 2017 61
livre; o Ato autóctone”.2 É, todavia, somente com a publicação de Les caves du Vatican
[Os porões do Vaticano] em 1914 que a atenção do grande público é atraída para o ato
gratuito. Lafcadio Wluiki, um jovem de 19 anos, comete um crime inteiramente
imotivado, empurrando de um trem Amédée Fleurissoire, um velho senhor que é para
ele um completo desconhecido. Este crime é gratuito no que não tem motivo nem
justificativa aparentes: não se trata de um roubo, nem de uma vingança, muito menos de
um crime passional. No entanto, Lafcadio não é vítima de uma súbita loucura assassina.
O crime é premeditado e pensado, mesmo se Lafcadio tenha afirmado mais tarde que
ele matou “como em um sonho”.3
O ato gratuito de Gide se inscreve em um contexto cultural bem específico.4
Gide não é o primeiro, nem o último, a falar de gratuidade (mesmo se lhe reconhecemos
o mérito de ter transformado o ato gratuito em um topos literário e filosófico). Podemos
aqui pensar em Edgar Allan Poe que, em seu conto O demônio da perversidade (1845),
descreve a perversidade como “um móvel sem motivo, um motivo não motivado”.5 Ou
ainda, em Dostoievski: o crime de Raskolnikov, o herói do romance Crime e castigo
(1866), serve a Gide de fato como inspiração para o crime de Lafcadio. Além do quê, na
série de conferências que Gide profere no teatro do Vieux-Colombier em 1922 e que ele
dedica a Dostoievski, o suicídio de Kiriloff, um dos personagens de Os demônios de
Dostoievski, é descrito como “um ato absolutamente gratuito, quero dizer, sua
motivação não é de modo algum exterior”.6 Mesmo no século XX podemos encontrar
exemplos célebres de ato gratuito. Em O estrangeiro (1942), de Albert Camus,
Mersault, o protagonista do romance, mata um homem sem razão aparente. Igualmente
sem motivo é o crime central da peça de teatro A corda (1929) de Patrick Hamilton,
peça que inspira alguns anos mais tarde o filme homônimo de Alfred Hitchcock
(1948).7
O que é mais importante no contexto que nos ocupa aqui, é que o ato gratuito
mergulha suas raízes no niilismo do século XIX. É por isso que, em seu estudo dedicado
ao ato gratuito, Martin Raether sublinhou que “sem Dostoievski e Nietzsche, o ato
2 Gide, A, Romans et récits. Œuvres lyriques et dramatiques. Paris : Gallimard, 2009, p. 472. 3 Ibidem, p. 1174. 4 Ver Raether, M., Der Acte gratuit. Revolte und Literatur. Heidelberg, Carl Winter Universitätsverlag,
1980 e Roebling, I., ‚Acte gratuit‘. Variationen einer Denkfigur von André Gide. Munich, Wilhelm Fink,
2009. 5 Poe, E. A., Nouvelles histoires extraordinaires. Paris, Gallimard, 1974, p. 51. 6 Gide, A., Dostoïevski. Articles et causeries. Paris, Gallimard, 1981, p. 176. 7 Stellino, P., “Crossing the Line: Dostoevsky and Nietzsche on Moral Permissibility”. In: Jahrbuch der
Deutschen Dostojewskij-Gesellschaft. Leipzig: Verlag Otto Sagner, no 21, 2014, pp. 98-124, pp. 106-110.
Paolo Stellino
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gratuito, sua pré-história, sua estrutura e sua realidade, não seria pensável”.8 A fim de
esclarecer a relação entre niilismo e gratuidade, é pertinente distinguir as duas questões
seguintes: (1) Pode existir um ato gratuito? (2) Como é possível um ato gratuito como o
de Lafcadio?
A primeira questão concerne à possibilidade metafísica de um ato gratuito e
remete à dificuldade, quiçá à impossibilidade, de conceber uma ação ex nihilo, a saber,
uma ação que surge do nada. Temos o hábito de interpretar todo agir humano segundo o
esquema lógico causa-efeito e uma ação “motivada por nada” ou “nascida de si
mesma”, para utilizar as palavras de Gide, parece escapar a este esquema. Aliás, a
vontade de realizar um ato gratuito já não constitui uma razão, um motivo para o
próprio ato? Como mostra o filósofo Jacques Maritain, “se realizo um ato ‘gratuito’
porque eu quero realizar um ato gratuito, testemunhar para mim mesmo que eu posso
agir sem razão, isso mesmo é já uma razão, eu cedo a um motivo”.9 Analogamente, é
preciso lembrar que o crime de Raskolnikov – o herói dostoievskiano do romance
Crime e castigo – que, tal como mencionado, servira a Gide de inspiração para o crime
de Lafcadio, é somente aparentemente gratuito. Como Raskolnikov confessa
posteriormente para Sonia, o verdadeiro motivo de seu crime era de se pôr à prova, de
testar sua força, de demonstrar para si mesmo que ele pertencia à categoria dos homens
extraordinários.10
Na verdade, como indicado em uma passagem de 1928, Gide estava bem
consciente que, estritamente falando, um ato gratuito, isto é, um ato completamente
imotivado, é impossível:
Um ato gratuito... Entendamo-nos. Eu mesmo não acredito de forma alguma em um ato
gratuito, isto é, um ato que não seria motivado por nada. È essencialmente inadmissível.
Não há efeitos sem causa. As palabras ‘ato gratuito’ são uma etiqueta provisória que me
parece cômoda para designar os atos que escapam às explicações psicologicamente
ordinárias, os gestos que não determinam o simples interesse pessoal (e é nesse sentido,
jogando um pouco com as palavras, que pude falar de atos desinteressados).11
8 Raether, M., Der Acte gratuit. Revolte und Literatur. Heidelberg, p. 75. 9 Ver Maritain, J. e R., Œuvres complètes, vol. XVI. Fribourg: Éditions Universitaires/Paris: Éditions
Saint-Paul, 1999, p. 1164 10 É sintomático que Lafcadio, antes de matar Fleurissoire, tenha analogamente dito a si mesmo: “Não é
tanto sobre os acontecimentos que tenho curiosidade, mas de mim mesmo.” (Gide, A, Romans et récits.
Œuvres lyriques et dramatiques, p.1134). 11 Citado por Raether, M., Der Acte gratuit. Revolte und Literatur. Heidelberg, p.121-122. Ver também a
passagem seguinte extraída de uma carta de 1929: “Não, eu não creio de modo algum em um ato gratuito.
Mais que isso, eu tomo este como perfeitamente impossível de ser conceber, de se imaginar. Há sempre
uma motivação para tudo; de modo que entendo por ‘ato gratuito’ um ato cuja motivação não é aparente,
e que apresenta as características do desinteresse. Um ato que não foi cometido em vista de tal proveito
ou recompensa, mas que responde a um impulso secreto, através do qual aquilo que o indivíduo tem de
mais particular se revela, se trai.” (Ibidem, p.121.)
Para além da lei moral: morte de Deus e gratuidade de Feuerbach a Sartre
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 60-72, 2017 63
A segunda questão (a saber, como é possível um ato gratuito como o de
Lafcadio?) já concerne à possibilidade moral de um ato gratuito. É a esta possibilidade
que a referência sartriana à “estrita gratuidade” em O existencialismo é um humanismo
remete. Em outros termos, trata-se de compreender quais são as condições ou pré-
condições que tornam moralmente possível um ato gratuito tal como o de Lafcadio. A
fim de responder a esta questão, é necessário considerar o que Raether chama de a “pré-
história” do ato gratuito. Esta pré-história é formada, em particular, por Dostoievski e
Nietzsche, com o niilismo de sua época.
Em um fragmento póstumo muito conhecido (11[411]), datando do período de
novembro de 1887 a março de 1888, Nietzsche escreve:
O que eu conto é a história dos dois próximos séculos. Descrevo o que virá, o que não
pode mais advir de uma outra maneira: o advento do niilismo. Esta história pode ser
relatada desde já: pois é a própria necessidade que está aqui em curso.12
Segundo Nietzsche, o advento do niilismo se revela necessário pois, a partir da
morte de Deus anunciada pelo Insensato de A gaia ciência (§125), a interpretação
moral-cristã do mundo rui. Esta interpretação, explica Nietzsche em sua célebre nota do
Lenzer Heide (5[71], verão 1886 - outono 1887) dedicada ao niilismo europeu, passava
por ser “a interpretação”.13 Na falta dessa interpretação, “parece que não há mais
sentido algum na existência, que tudo é em vão”14: a partir daí, a fatalidade inelutável do
niilismo.
A morte de Deus provoca uma crise cultural e espiritual sem precedente. Os
valores superiores (entre eles, os valores morais) se desvalorizam, deixando um vazio
axiológico e normativo difícil de ser preenchido. O agir humano, privado de seus
referenciais, se vê não somente sem justificação ou motivação última, mas também sem
guia ou direção. É nessa atmosfera cultural muito particular que Dostoievski escreve
seus grandes romances. No último deles, Os irmãos Karamazov (1880), Ivan, o segundo
filho de Fiodor Pavlovitch Karamazov, defende a ideia segundo a qual, se não há Deus
nem imortalidade da alma, então tudo é permitido, até mesmo a antropofagia. Assim
sendo, Ivan inverte o raciocínio que Kant havia desenvolvido na Doutrina
transcendental do método de sua Crítica da razão pura (1781), onde a existência de um
Deus e de uma vida futura constituem os fundamentos da moral: “[...] sem um Deus, ou
sem um mundo que não nos é conhecido agora, mas que nós esperamos”, escreve Kant, 12 Nietzsche, F., Fragments Posthumes. Automne 1887-mars 1888. Paris: Gallimard, 1976, p. 362. 13 Nietzsche, F., Fragments Posthumes. Automne 1885-automne 1887. Paris: Gallimard, 1978, p. 213. 14 Ibidem.
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“as ideias soberbas da moralidade serão verdadeiramente dignas de aprovação e
admiração, mas não serão motivo de intenção e de execução” (KrV, A 813/B 841). A
ideia de Ivan, apresentada em várias passagens e por vários personagens ao longo do
romance, fornece a justificação filosófica e (paradoxalmente!) moral do parricídio
cometido por Smerdiakov, o filho ilegítimo de Fiodor Pavlovitch, e do qual Mikhail, o
primogênito, é injustamente acusado.
Os irmãos Karamazov explicita de uma forma muito clara a passagem do
niilismo à gratuidade. Como se sabe, mesmo se a palavra ‘niilismo’ já aparece na carta
que Jacobi enviou a Fichte em 1799, este termo torna-se célebre e popularizado graças a
Tourgueniev, que o utilizara em seu romance Pais e filhos (1862). Neste romance,
Tourgueniev descrevia uma mudança cultural que se produzia na Rússia: a nova
geração, dos filhos, tinha começado a defender uma nova concepção de mundo, uma
concepção materialista e niilista. Esta concepção estava ainda longe do socialismo
radical e revolucionário defendido pelos agitadores magistralmente representados por
Dostoievski em Os demônios (1873). No entanto, o ateísmo já havia substituído o Deus
ortodoxo nos corações dos jovens adolescentes russos.
Ivan Karamazov é um representante típico da juventude russa deste período. Seu
ateísmo se apóia sobre um argumento que não é ontológico, mas sim moral. Segundo
Ivan, a questão metafísica em torno da existência de Deus não tem nenhum sentido para
um ser, como o homem, dotado de inteligência euclidiana e terrestre. Neste sentido,
Ivan não rejeita a priori a existência de Deus. Ele recusa antes o mundo criado por um
Deus por razões morais, um mundo onde, a cada dia, um número enorme de crianças
inocentes são injustamente torturadas, abusadas e humilhadas. Ora, a teologia cristã
descreve Deus como benévolo e todo poderoso. Como um tal Deus pode aceitar o
sofrimento infligido a inocentes? Tal como argumenta James P. Scanlan em seu estudo
dedicado ao pensamento de Dostoievski, ou Deus não é benévolo (pois se fosse teria
querido criar um mundo diferente), ou não é todo poderoso (pois se fosse teria sido
capaz de criar tal mundo diferente). Em todo caso, a existência de Deus (ao menos, do
Deus cristão) é negada.15
15 Scanlan, J. P., Dostoevsky. The Thinker. Ithaca: Cornell University Press, 2002, p. 52. Uma
argumentação semelhante é defendida pelo epicurista Brotteaux contra o padre Longuemate em Os deuses
têm sede, de Anatole France: “Epicuro disse: Ou Deus quer impedir o mal e não pode, ou ele pode e não
quer, ou ele nem pode nem quer, ou ele quer e pode. Se quer e não pode, ele é impotente; se pode e não
quer, é perverso; se nem pode nem quer, é impotente e perverso; se quer e pode, não o faz, meu padre?”
(France, A., Les dieux ont soif. Paris: Libraire Générale Française, 1989, p. 171.)
Para além da lei moral: morte de Deus e gratuidade de Feuerbach a Sartre
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 60-72, 2017 65
Ivan apenas faz derivar, de uma maneira muito coerente e lógica, as
conseqüências deste ateísmo para a moral. Se Deus não existe, a moral não tem mais
base na qual se apoiar. Por conseguinte, ela rui. Alguns anos mais tarde, Nietzsche anota
exatamente a mesma lógica em seus cadernos: “Em que medida”, escreve o filósofo,
“junto com ‘Deus’, a moral tradicional também desmorona? Eles se sustentavam um ao
outro” (FP 39[15], agosto-setembro de 1885).16 Assim, continua Ivan, na falta de uma
moral através da qual não somente se dê uma direção ao agir humano, mas também se o
restrinja, tudo se torna permitido. Ou, como Sartre escreve na passagem evocada no
início dessa apresentação: “Se suprimimos os mandamentos de Deus e os valores
inscritos na eternidade, nada mais resta senão a estrita gratuidade, cada um podendo
fazer o que quiser”.17
Vemos claramente que Sartre traduz e transpõe a lógica karamazoviana em
termos gidianos. A palavra ‘gratuidade’ passa assim a indicar a ausência de toda e
qualquer justificação e de todo e qualquer suporte para a conduta humana. Como
explica Manuel de Dieguez em seu estudo dedicado ao absurdo e ao niilismo, “tendo o
ato perdido seus suportes, sobreviverá em plena gratuidade: é esta a própria definição do
niilismo”.18 Em outros termos, a questão fundamental é a seguinte: Se Deus não existe,
como poderemos motivar, justificar, apoiar, fundar o ato humano? “Se [...] Deus não
existe”, escreve ainda Sartre, “não encontramos diante de nós valores ou imposições que
legitimariam nossa conduta. Assim, não temos nem atrás de nós, nem diante de nós, no
domínio dos valores, justificações ou desculpas”.19
Examinemos mais de perto essa lógica. Podemos verdadeiramente afirmar que,
se Deus não existe, tudo é permitido, como o sugere Dostoievski através de seu
personagem Ivan Karamarozov? Na realidade, como já mostrou Feuerbach em sua obra
A essência do cristianismo (1841), a fundação da moral sobre a teologia não constitui
per se uma garantia de conduta moral:
Onde se funda a moral sobre a teologia, o direito sobre a instituição divina, pode-se
justificar e fundar as coisas mais imorais, mais injustas, mais vergonhosas. Só posso
fundar a moral sobre a teologia se determino previamente o ser divino pela moral.
Senão, não terei critério para a moralidade e a imoralidade, mas uma base arbitrária,
imoral, de onde poderei deduzir qualquer coisa.20
16 Nietzsche, F., Fragments Posthumes. Automne 1884-automne 1885. Paris: Gallimard, 1982, p. 360. 17 Sartre, J. P., L’existentialisme est un humanisme, p. 22. 18 De Diéguez, M., De l’absurde. Paris: Éditions du Triolet, 1948, p. 29. 19 Sartre, J. P., L’existentialisme est un humanisme, p. 39. 20 Feuerbach, L., L’essence du christianisme. Paris: Gallimard, 1968, p. 429.
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O argumento de Feuerbach é sólido e convincente, mas o problema filosófico
que nos preocupa permanece não resolvido. Pois que, se Deus não existe, como
determinaremos os limites da liberdade humana e do que é ou não é moralmente
permitido? Como evitaremos o risco de uma conduta arbitrária e amoral? Em outros
termos, trata-se, de um lado, de dar e imprimir uma direção ao agir humano
preenchendo o vazio axiológico e normativo decorrente da morte de Deus, e, de outro
lado, trata-se de restringir uma liberdade que se tornou potencialmente ilimitada. Como
escreve Sartre, “de fato, tudo é permitido se Deus não existe, e por conseguinte o
homem é abandonado, porque ele não encontra nele, nem fora dele, uma possibilidade
de se apegar. [...] o homem é livre, o homem é liberdade”.21
Esta liberdade é concebida por Nietzsche, antes de tudo, como causa de
desorientação. As questões postas pelo Insensato de A gaia ciência simbolizam
claramente o desamparo que se segue à descoberta da morte de Deus: “Onde foi parar
Deus? [...] Nós o matamos, – você e eu! Somos todos seus assassinos! Mas como o
fizemos? Como pudemos beber o mar até a última gota? Quem nos deu a esponja para
fazer desaparecer todo horizonte? Que fizemos nós separando esta terra de seu sol? ».22
Por seu lado, Dostoievski, como vimos, concebe a liberdade derivando da morte de
Deus em termos decididamente mais negativos e sombrios, seja como ocasião para
justificar cada tipo de crime ou de ato amoral (no caso de Ivan Karamazov), seja como
tentação de auto-deificação (no caso de Kirilloff).23
Estabelecendo uma relação entre a liberdade derivando da morte de Deus e a
tentação de auto-deificação, Dostoievski segue os passos de Feuerbach (aliás, a teoria de
Kiriloff, segundo a qual Deus representa a projeção antropomórfica do medo humano da morte,
é tipicamente feuerbachiana). De fato, em sua obra A essência do cristianismo,
Feuerbach tinha considerado a auto-deificação do homem como a conseqüência lógica
da recusa de Deus. Se as qualidade e as propriedades, atribuídas pelo homem a Deus,
21 Sartre, J. P., L’existentialisme est un humanisme, p. 39. 22 Nietzsche, F., Œuvres. Paris: Flammarion, 2000, §125, p. 162. 23 Kiriloff, um dos personagens do romance Os demônios, é conhecido por sua teoria bem particular:
tirando a própria vida, ele quer provar sua independência (svoevolie) e, por conseguinte, a divindade do
homem. Seu raciocínio é muito lógico: se Deus existe, tudo dele depende, e o homem não pode nada fora
da vontade dele. Se Deus não existe, tudo depende do homem, que é chamado a afirmar sua
independência. O suicídio, concebido como um ato de suprema afirmação de si, é precisamente o meio
pelo qual Kiriloff pretende proclamar seu livre-arbítrio e, ao mesmo tempo, provar a inexistência de
Deus. A conseqüência que Kiriloff deriva da inexistência de Deus é a autodeificação do homem. Com
efeito, segundo Kiriloff, é afirmando sua própria independência, concebida como o atributo da divindade
humana, que o homem, através de um ato heróico de insubordinação e de revolta, toma o lugar de Deus.
Na concepção utópica e visionária de Kiriloff, um homem novo advirá e seu nome será o homem-Deus.
Para além da lei moral: morte de Deus e gratuidade de Feuerbach a Sartre
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 60-72, 2017 67
são na realidade qualidades e propriedades humanas, então, segundo o raciocínio de
Feuerbach, a essência humana deve ser colocada em primeiro plano. O princípio prático
novo torna-se então: “Homo homini deus est ».24 Três anos mais tarde, Max Stirner
denunciava duramente esta nova religião da Humanidade como a última metamorfose
da religião cristã: “Na aurora dos novos tempos surge o Homem-Deus”, escrevia
Stirner;
Em seu declínio, o único Deus terá se desfeito? E o Homem-Deus pode de fato morrer
se o único Deus morre nele? Não se colocou esta questão; acreditou-se ter cumprido
tudo quando, nos nossos dias, se levou a cabo a obra do iluminismo e se venceu o Deus;
não se percebeu que o Homem só matou o Deus para tornar-se por sua vez ‘o único
Deus que reina nos céus’ (Parte II, epígrafe).
Se Stirner denuncia a lógica teológica que se esconde por detrás da auto-
deificação tipicamente feuerbachiana do homem, Dostoievski põe em evidência sua
periculosidade. Tendo negado Deus, o novo homem (o homem-deus) está destinado não
somente a tomar o lugar de Deus sobre a Terra, mas também a herdar uma de suas
propriedades mais essenciais, isto é, a liberdade moral absoluta. Em outros termos, a
tentação da auto-deificação está ligada estritamente à tentação de ultrapassar os limites
morais convencionais. A advertência de Dostoievski é bem clara: renunciar à crença em
Deus e abraçar o ateísmo significa escolher percorrer uma ladeira extremamente
escorregadia que, através da queda da moral antiga e da auto-deificação do homem,
conduz à gratuidade da conduta e ao ‘tudo é permitido’ karamazoviano.
É exatamente nesse sentido que, já a partir do final do século XIX, vários
intelectuais interpretaram a filosofia de Nietzsche. Na realidade, não há nada mais
distante do pensamento nietzschiano que a gratuidade da conduta moral justificada pelo
‘tudo é permitido’ karamazoviano. No entanto, a identificação entre o amoralismo de
Ivan e a filosofia nietzschiana, assim como a interpretação do superhomem no sentido
de um homem-Deus ao qual tudo seria permitido e que estaria acima da lei, é um
mitopoema, para utilizar a expressão de Nel Grillaert25, muito difundido entre os
intérpretes (D. Merejkovski, L. Chestov, A. Gide, H. de Lubac, A. Camus, etc.).26 A
24 Feuerbach, L., L’essence du christianisme. Paris: Gallimard, 1968, p. 426.
25 Grillaert, N. What the God-Seekers Found in Nietzsche. The Reception of Nietzsche’s Übermensch by
the Philosophers of the Russian Renaissance. Amsterdam/New York: Rodopi, 2008, p. 41. 26 Ver Merejkovski, D., L. Tolstoy i Dostoevsky. Vechnye Sputniki. Moscow: Respublika, 1995 [1901] ;
Chestov, L., La philosophie de la tragédie : Dostoïevski et Nietzsche. Paris: Le Bruit du Temps, 2012;
Gide, A., Dostoïevski. Articles et causeries. Paris, Gallimard, 1981; De Lubac, H., Le drame de
l’humanisme athée. Paris: Cerf, 1944; Camus, A., L’homme révolté. Paris: Gallimard, 1951. Para uma
análise mais aprofundada, ver Stellino, P., Nietzsche and Dostoevsky: On the Verge of Nihilism. Bern:
Paolo Stellino
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difusão deste mitopoema foi encorajada, antes de tudo, pela pretensa deificação do
superhomem por Nietzsche. Todavia, basta ler a passagem seguinte do discurso Nas
ilhas fortunadas (segunda parte do Zaratustra) para ver que a interpretação do
superhomem no sentido de um homem-deus feuerbachiano é, para dizer o mínimo,
bastante problemática: “Deus é apenas uma conjuntura, mas não quero que suas
conjunturas ultrapassem a medida de seu querer criador. Poderiam vocês criar um deus?
Então não me falem mais de deuses! Mas o além-do-homem, vocês podem criá-lo”.27
Como mostrou Heidegger em sua leitura da expressão nietzschiana “Deus está morto”,
aqueles que interpretam o além-do-homem com um novo deus esquecem a diferença de
estatuto ontológico existente entre Deus e o homem:
Pensando grosseiramente, poderia-se acreditar que esta expressão [“Deus está morto”]
diz que o governo do ente passa de Deus ao homem, ou, ainda mais grosseiramente, que
Nietzsche coloca o homem no lugar de Deus. Aqueles que entendem assim pensam na
verdade bem pouco divinamente sobre a essência divina. O homem nunca pode se
colocar no lugar de Deus, porque a essência do homem nunca atinge a região da
essência de Deus. [...] O além-do-homem nunca tomará o lugar de Deus.28
Em segundo lugar, a interpretação da filosofia nietzschiana no sentido de um
amoralismo ao modo de Karamazov foi encorajado pela chocante similaridade entre a
ideia já mencionada de Ivan Karamazov (se não há Deus nem imortalidade da alma,
então tudo é permitido) e a máxima “nada é verdadeiro, tudo é permitido”, que aparece
em Assim falava Zaratustra e em A genealogia da moral.29 No entanto, quando essa
máxima é situada em seu contexto, torna-se patente que o objetivo de Nietzsche não é a
de defender a possibilidade de uma práxis amoral. Como Karl Jaspers já escrevia em
1936:
Esta proposição [nada é verdadeiro, tudo é permitido], frequentemente repetida por
Nietzsche, deve ser considerada, por ela mesma, incompreensível. Se consideramos
somente ela, ela aparece como a expressão de uma ausência total de obrigação, como
um convite ao capricho, aos sofismas e aos crimes.30
Peter Lang, 2015, pp. 145-152. O mesmo mitopoema tem sua aparição no texto do mandado de prisão do
ex-presidente Lula, onde uma citação retirada de Assim falava Zaratustra é utilizada para evocar o
princípio constitucional de isonomia. O sentido da referência a Nietzsche é o seguinte: Lula não seria um
superhomem e, por conseguinte, não se encontraria acima da lei. 27 Nietzsche, F., Œuvres., Nas ilhas afortunadas, pp. 395-396. 28 Heidegger, H., “Le mot de Nietzsche « Dieu est mort »”. In: Chemins qui ne mènent nulle part. Paris:
Gallimard, 1962, pp. 189-190. 29 A máxima “nada é verdadeiro, tudo é permitido”, aparece também nos fragmentos póstumos seguintes:
25[304] e [322], primavera 1884 ; 26[25], verão-outono 1884 ; 31[51] e 32[8], inverno 1884-1885. Ver
igualmente a variante “Tudo é falso! Tudo é permitido!”, do fragmento póstumo 25[505], primavera
1884. Para uma análise mais aprofundada do uso e significação desta máxima na filosofia de Nietzsche,
ver Stellino, P., Nietzsche and Dostoevsky: On the Verge of Nihilism., pp. 169-188. 30 Jaspers, K., Nietzsche : Introduction à sa philosophie. Paris: Gallimard, 1950, p. 232.
Para além da lei moral: morte de Deus e gratuidade de Feuerbach a Sartre
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 60-72, 2017 69
Contrariamente a Dostoievski, Nietzsche não considera que a morte de Deus
abre inevitavelmente a porta ao “tudo é permitido”. Decerto, já o dissemos, a
desvalorização dos valores supremos derivando da morte de Deus deixa um vazio
axiológico e normativo. Todavia, a intenção de Nietzsche não é a de aceitar
passivamente esta situação, nem de cair em atitudes niilistas radicais tais como aquelas
sintetizadas no “tudo é permitido” ou o “tudo é inútil, tudo é em vão”.31 Ao contrário,
uma grande parte da última filosofia de Nietzsche é justamente dedicada a preencher
este vazio axiológico e normativo através de uma transvaloração dos valores. Há
poucas dúvidas de que este empreendimento filosófico provoque um monte de questões
meta-éticas complicadas tais como, por exemplo: Qual critério avaliativo Nietzsche
utiliza para sua transvaloração? Qual o estatuto epistêmico deste critério? Qual sua
validade e sobre o quê ela repousa? Qual a razão pela qual nos deveríamos privilegiar
este critério avaliativo mais que algum outro? No entanto, para além desses problemas
evidentes, aos quais supõe-se que o especialista nietzschiano tem que responder, no
contexto dessa apresentação é importante sublinhar que a filosofia nietzschiana pode ser
definida como imoral, mas não como amoral (sendo a amoralidade caracterizada pela
ausência completa de normas morais).32 É justamente por esta razão que a analogia
entre Ivan Karamazov e Nietzsche é uma analogia falaciosa. Enquanto tal, ela deve ser
recusada.
Para terminar, voltemos à questão inicial : quais seriam as consequências da
morte de Deus para a moral? Como vimos, Dostoievski e Nietzsche dão respostas
diametralmente opostas a esta questão. Para Dostoievski, a existência de Deus e a
imortalidade são dois pilares essenciais do edifício moral. Sem eles, temos uma ladeira
escorregadia que nos conduz do ateísmo à auto-deificação, e da auto-deificação à
liberdade moral absoluta ou à “estrita gratuidade”, segundo a expressão de Sartre. Para
Nietzsche, ao contrário, a dicotomia ou Deus ou a amoralidade é uma dicotomia falsa e
31 O profeta da segunda parte do Zaratustra representa um exemplo típico desta última atitude niilista e
pessimista: “…E eu vi uma grande tristeza se abater sobre todos os homens. Os melhores se cansaram de
seus trabalhos. Uma doutrina se espalhou trazendo consigo uma crença: ‘Tudo é vão, tudo é igual, está
tudo acabado.’ E de todas as colinas o eco se repetia: ‘Tudo é vão, tudo é igual, está tudo acabado’. Nós
fizemos a colheita: mas porque todos os nossos frutos apodreceram e murcharam? […] Nosso trabalho
foi inútil, nosso vinho se transformou em veneno, o olho grande queimou e torrou nossos campos e
nossos corações […] ‘Que lástima! Onde ainda há um mar para nos afogarmos? Tal é nosso lamento ao
longo dos lisos pântanos. Na verdade, nós já estamos demasiado cansados para morrer; continuamos a
vigiar e a viver – em câmeras sepulcrais.’” (Nietzsche, F., Œuvres. O adivinhho, p. 438). 32 Não esqueçamos que Nietzsche demonstra uma preferência evidente por um modelo aristocrático de
sociedade na qual o grupo dominante se caracteriza não por uma ausência completa de normas morais
mas pelo que Nietzsche chama ‘moral dos senhores’ (Herren-Moral).
Paolo Stellino
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enganosa. Para ir-se além dela, é essencial criar novos valores, valores que, renunciando
a uma justificação metafísica ou teológica, não deixem por isso de ter uma pretensão de
validade. Sartre, por seu lado, é muito mais próximo de Nietzsche que de Dostoïevski,
dadas as diferenças não negligenciáveis existentes entre a filosofia nietzschiana e a
sartriana33. Decerto, como vimos, Sartre concorda com Dostoïevski quando o escritor
russo afirma, através do seu personagem Ivan Karamazov, que tudo é permitido se Deus
não existe34. Todavia, Sartre está longe de conceber que “tudo é permitido” nos termos
do simples capricho ou da amoralidade de Karamazov. Ao contrário, a “total
liberdade”35, derivada da “total gratuidade”36 da existência, implica, segundo Sartre, um
sentimento de responsabilidade face a nossos atos, nossas escolhas e nossos valores37.
Tal como escreve o filósofo francês: “o homem que se engaja e que percebe que ele é
não somente aquele que ele escolhe ser, mas também um legislador escolhendo ao
mesmo tempo a humanidade inteira, não saberia escapar ao sentimento de sua total e
profunda responsabilidade.”38
33 Ver Louette, F., Sartre contra Nietzsche (Les mouches, Huis clos, Les Mots). Grenoble: Presses
Universitaires de Grenoble, 1996; Daigle, C., Le nihilisme est-il un humanisme ? Études sur Nietzsche et
Sartre. Québec: Les Presses de l’Université Laval, 2005. 34 Sartre, J. P., L’existentialisme est un humanisme, p. 39. 35 Ibidem, p. 70. 36 Ibidem 37 Mesmo nesse ponto, Sartre é extremamente próximo de Nietzsche. Com efeito, se por um lado
Nietzsche critica diversas vezes o conceito tradicional de ‘responsabilidade’, baseada na noção de livre-
arbítrio, por outro lado, ele encoraja a humanidade não somente a criar novos valores (isto é, a se auto-
determinar), como também a assumir a responsabilidade derivada desta criação. Tal como escreveu
Heidegger, especificamente em relação ao sobre-humano: “É fácil, mas irresponsável, se indignar diante
da ideia e da figura do além-do-homem – à qual, é verdade, acomodou-se seu próprio mal-entendido – e
fazer essa indignação se passar por uma refutação. É difícil, mas, para o pensamento futuro, inelutável,
aceder à alta responsabilidade [hohe Verantwortun ; itálico nosso] a partir da qual Nietzsche pensou a
essência de uma humanidade que, na destinação historial da vontade de potência, se vê condenada ao
fardo de reinar sobre a terra. A essência do além-do-homem não é licença para uma arbitrariedade
descarrilada. Ela é a salvação, fundada no próprio ser, de uma longa cadeia de ultrapassamentos de si
[...]” (Heidegger, H., “Le mot de Nietzsche « Dieu est mort »”, p. 188). Para uma análise em
profundidade do conceito de responsabilidade em Nietzsche, ver Pfeuffer, S., Die Entgrenzung der
Verantwortung. Nietzsche – Dostojewskij – Levinas. Berlin/New York: de Gruyter, 2008. 38 Sartre, J. P., L’existentialisme est un humanisme, pp. 39-40.
Para além da lei moral: morte de Deus e gratuidade de Feuerbach a Sartre
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 60-72, 2017 71
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Recebido em: 28/09/2016
Aprovado em: 17/03/2017
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 73-92, 2017 73
Negatividade e produção: elementos para uma teoria do desejo em Deleuze
André Dias de Andrade*
Resumo: Abordamos a crítica de Deleuze à negatividade no que tange à elaboração de
uma ontologia positiva do desejo. Importa notar como as obras que se encaminham para
uma teoria do desejo, notadamente Nietzsche e a Filosofia (1962) e Espinoza: filosofia
prática (1970), servem de base para a construção de tal teoria propriamente dita em O
Anti-Édipo (1972) – já fruto de um agenciamento entre Deleuze e Guattari. Além de
pensar o desejo como chave de leitura para as obras-comentário de Deleuze, buscando
suas afinidades com a puissance nietzschiana e o conatus espinozista, adotamos como
fio-condutor a crítica que elas estabelecem contra a noção de negativo e sobre como esta
compromete toda concepção de desejo. Assim, acreditamos que o recenseamento
terminológico das obras nos fornece os elementos com os quais Deleuze, junto de
Guattari, elaboram uma ontologia do desejo como “produção” e que serve de alternativa
a uma concepção negativa e representativa do desejo presente na filosofia francesa
contemporânea.
Palavras-chave: Deleuze; desejo; dialética; ética; produção.
Negativity and production: elements toward a theory of desire in Deleuze
Abstract:
We approach Deleuze’s critics to negativity with regard to the elaboration of a positive
ontology of desire. It’s important to notice how works like Nietzsche and Philosophy
(1962) and Spinoza: practical philosophy (1970) address themselves to a theory of
desire and embase the construction of this theory itself in Anti-Oedipus (1972) – which
results from an agency between Deleuze and Guattari. Besides thinking desire as a key
to read the commentary-works of Gilles Deleuze, that is, seeking its affinities with
Nietzsche’s puissance and Spinoza’s contaus, we adopt as the guiding-line of this paper
the critics that they stablish against the notion of negativity and how it compromises all
conception of desire. Therefore, we believe that the terminological census of those
works provides us with the elements upon wich Deleuze, along with Guattari, elaborate
an ontology of desire as “production”, wich serves as an alternative to its negative and
representacionist conception present in contemporary french philosophy.
Key-words: Deleuze; desire; dialetics; ethics; production.
I
A fim de esboçar as teses deleuzianas a respeito do desejo, passando por obras
suas em que esse tema é capital, é preciso compreender como sua teoria se distingue
daquela em voga na França até então. Sabe-se que os cursos de Kojève sobre Hegel e,
posteriormente, a tradução francesa da Fenomenologia do Espírito de Jean Hyppolite,
* Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Contato:
André Dias de Andrade
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seguida de seu comentário1, contribuem para estabelecer um cenário que se apropria das
categorias hegelianas na reflexão filosófica. “Consciência de si”, “desejo”,
“negatividade”, “não-ser”, são noções que fazem fortuna nesta geração, de modo que o
sujeito e sua relação com o mundo, na forma do desejo, possam ser compreendidos
numa complexa articulação entre ser e nada2. A ontologia, com a ajuda do aparato
dialético hegeliano tal como reproduzido por Kojève e Hyppolite, obrigatoriamente, é
pensada em aliança com a noção de negatividade, de forma que é na negação – do
mundo, do em-si, da alteridade – que o fenômeno toma forma e que surge o sentido.
Obviamente, há nuances das mais diversas entre tais teóricos; enquanto Kojève
parece advogar uma leitura dualista e, para tanto, pensar o sentido como propriamente
“humano” e a consciência desejante como negadora da natureza, de modo a fazer
progredir a história3, Hyppolite elabora um monismo ontológico sob a categoria de
“vida” depreendida de Hegel, a partir do qual a negação e o sentido surgem no seio do
próprio ser, na realidade enquanto tal4. Além disso, tais perspectivas podem inclusive
ser estendidas e multiplicadas aos seus alunos e/ou leitores, tais como Sartre e Merleau-
Ponty, na medida em que o primeiro corrobora a visão dual de uma dialética “sem
síntese” e da outorga de uma dimensão existencial e humana para a filosofia5; enquanto
que se há um “humanismo” no segundo, trata-se de uma perspectiva mais branda a qual
concebe o sujeito e sua característica desejante como uma espécie de “oco” no ser,
1 Respectivamente: KOJÈVE, A. Introduction à la lecture de Hegel, 1947; HEGEL, G.W.F.
Phenoménologie de l’esprit. Trad. Jean Hyppolite. Paris: Aubier 1941; HYPPOLITE, J. Génèse et
structure de la Phénoménologie de l'esprit de Hegel. Paris, Aubier, 1946. 2 “se considerarmos que a preocupação filosófica com o desejo no século XX começa na França, na
década de 1930, com os cursos de Kojève sobre Hegel, a questão sobre o lugar metafísico e a eficácia
moral dos sujeitos humanos está presente em todo lugar”. BUTLER, J. Subjects of desire: Hegelian
Reflections in Twentieth-Century France, 1987, p. 5. 3 Quando Kojève procura fornecer a estrutura geral da obra de Hegel, pontua que os primeiros capítulos
contêm uma finalidade “sobretudo gnosiológica”, enquanto o capítulo quatro é “sobretudo antropológico”
(KOJÈVE, Op. Cit., 1947, p. 49). Trata-se da humanização da dialética hegeliana, a partir dos cursos da
École Pratique de Hautes études, entre 1933-39. O que fica claro nessa chave de leitura é a
dicotomização entre uma realidade natural e uma propriamente humana – esta atrelada ao desejo. Se “a
história humana é a história dos desejos desejados” (Ibidem, 1947, p. 13), pode-se conceber a imagem
desse homem, como limite e gênese do sentido no mundo, enquanto sujeito fadado à busca de
reconhecimento e de uma plenitude jamais alcançada. 4 “O que aparece através do homem [...] é o discurso ontológico, o saber absoluto do ser, e esse saber não
é o homem, ainda que não exista em outro lugar que na linguagem e possua incontestavelmente uma
historicidade. [...] Não é o homem que interpreta o Ser, é o Ser que se diz no homem, e essa revelação do
Ser [...] passa pelo homem” (HYPPOLITE, J. Figures de la Pensée Philosophique, 1971, p. 156-7). 5 Sobre O Ser e o Nada escreve Descombes: “Como o ser é o idêntico que só é idêntico, enquanto que a
consciência é a diferença que nunca deve alcançar a identidade, a relação entre ambos forçosamente é
uma não-relação e a síntese um fracasso” (DESCOMBES, V. Lo mismo y lo outro, 1988, p. 79). Quanto à
continuidade da leitura dualista de Hegel, Hyppolite, por sua vez, havia já sustentado tal ideia: “a dupla
ontologia que reclamava Kojève, é Sartre quem a realiza em O Ser e o Nada”. HYPPOLITE, Op. Cit.,
1971, p. 240.
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como um espaço de negação, de não-ser e de possibilidade que só toma forma a partir
de uma realidade prévia, de um campo de possíveis em que uns aparecem como mais
“atraentes” e significativos que outros6 – portanto, uma perspectiva não dual e mais
próxima de Hyppolite, que compreende o “nada” sob o fundo de ser.
Destarte tal pluralidade argumentativa que surge em torno do hegelianismo
francês, uma questão se impõe: trata-se de pensar o estatuto da negatividade para se
fazer ontologia e, por conseguinte, delimitar qual o papel do desejo neste interim.
Assim, a questão do negativo vai de par com aquela da relação de sentido que se pode
ter com as coisas (o desejo), de modo que se podemos pensar numa definição
(respeitando a pluralidade e toda a riqueza do debate que aí assinalamos existir) poderia
ser aquela de Paulo Arantes ao comentar tal paisagem intelectual: “o desejo do homem é
o desejo do outro”7. Vê-se desde logo que há uma negação na base do desejo.
Ainda que tal relação com a alteridade, oriunda da dialética entre senhor e
escravo, possa ser lida de diversas maneiras pelos filósofos franceses, trata-se sempre de
pensa-la como uma relação negativa; segundo Deleuze, a partir de então, introduz-se a
falta (ainda que sob variadas figuras) no desejo e se subtrai seu caráter positivo. Se o
desejo é desejo de um outro, independente do estatuto desta alteridade, ausência ou
transcendência8, ele não pode ser vislumbrado como tendo um caráter produtivo – para
todos os efeitos, ele é negativo ou negador, uma busca que supõe perda, e não algo de
verdadeiramente positivo. É contra tal noção negativa do desejo, moeda de troca na
filosofia francesa do século XX, que Deleuze procura investir.
Nossa intenção, doravante, é reconstruir tal crítica ao negativo a fim de nos
aproximarmos de uma ontologia positiva do desejo, presente em O Anti-Édipo, a partir
de noções desenvolvidas ao longo das leituras de Nietzsche e Espinoza propostas por
6 Parafraseando e se opondo à Sartre, quando este afirma que o homem é o ser pelo qual o nada vem ao
mundo, Merleau-Ponty aponta que “se é pela subjetividade que o nada aparece no mundo, pode-se dizer
também que é pelo mundo que o nada vem ao ser”. MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da
percepção, 1999, p. 606. 7 ARANTES, P. “Hegel no espelho do Dr. Lacan”, 1995, p. 23. Embora o personagem eleito para se
comentar nesta virada seja Lacan, aliás outro frequentador dos cursos de Kojève, por trás de sua
concepção do desejo está justamente aquela de uma “aclimatação francesa do hegelianismo”, porquanto
“Lacan está atrás de uma virada, nos seus termos, num instante em que o desejo é confusamente
apreendido no outro, ou ainda como se diz, lembrando-se sem dúvida Kojève: é nesse exato momento que
se isola, no ser humano, a consciência enquanto consciência-de-si e o desejo aparece como pura
negatividade”. ARANTES, Op. Cit., p. 23. 8 “Os três erros sobre o desejo denominam-se a falta, a lei e o significante [...] E de nada adianta
interpretar estas noções nos termos de uma combinatória que faz da falta um lugar vazio e não mais uma
privação, que faz da lei uma regra de jogo e não mais uma ordem, que faz do significante um distribuidor
e não mais um sentido; nada disso adianta, porque isso não as impede de trazer consigo seu cortejo
teológico, a insuficiência de ser, a culpabilidade, a significação”. DELEUZE-GUATTARI, O Anti-Édipo:
Capitalismo e Esquizofrenia, 2010, p. 152.
André Dias de Andrade
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Deleuze. Tal itinerário se justifica na medida em que há uma profunda semelhança entre
as noções de potência, conatus e desejo, respectivamente, sendo salutar compreender a
ontologia que se cria na obra de Deleuze-Guattari a partir da contribuição de tal pano de
fundo teórico. Passemos então à “leitura da leitura”; ao estatuto da vontade e do desejo
em Nietzsche e a filosofia e Espinoza: filosofia prática.
II
Deleuze rastreia em filósofos como Espinoza e Nietzsche, mas também em
Bergson, uma espécie de pensamento afirmativo que se relaciona com um universo no
qual não há realidade para a falta, a ausência, a oposição e a contradição; em suma, para
o negativo9. Desse modo a dialética hegeliana, como mecanismo que dá um estatuto
ontológico positivo à negação, constitui uma teoria avessa e até hostil a tais filosofias
sobre as quais Deleuze pretende meditar10. Em Nietzsche, haveria como que uma
preocupação fundamental que magnetiza as demais: a vida e seus perigos. Dito de outro
modo, afirmar a vida e criticar sua negação. Nesta filosofia, “a vida seria a força ativa
do pensamento, mas o pensamento, a potência afirmativa da vida”11, de modo que, entre
pensamento e vida, a relação é mais estreita do que entre pensamento e conhecimento.
Ora, isto não é dado de partida, mas requer que se faça uma “nova imagem do
pensamento”12, a qual tem como objeto não a verdade, mas o sentido e o valor (o
“nobre”, o “vil”, o “alto” e o “baixo”).
9 Quanto a Bergson, encontramos esta mesma direção de leitura em Bergsonismo: “Na dialética, Bergson
reprova o falso movimento, isto é, um movimento do conceito abstrato, que só vai de um contrário ao
outro à força de imprecisão [...] O essencial do projeto de Bergson é pensar as diferenças de natureza
independentemente de toda forma de negação: há diferenças no ser e, todavia, nada há de negativo”.
DELEUZE, Bergsonismo, 2012, pp. 38; 40. 10 “Quanto a mim, ‘fiz’ por muito tempo história da filosofia, li livros sobre tal ou qual autor. Mas eu me
compensava de várias maneiras. Primeiro, gostando dos autores que se opunham à tradição racionalista
dessa história (e entre Lucrécio, Hume, Espinoza, Nietzsche, há para mim um vínculo secreto constituído
pela crítica do negativo, pela cultura da alegria, o ódio à interioridade, a exterioridade das forças e das
relações, a denúncia do poder..., etc.). O que eu mais detestava era o hegelianismo e a dialética”.
DELEUZE, Conversações, 1992, p. 14. 11 .DELEUZE, Nietzsche et la philosophie, 1962, p. 115. 12 Ibidem, p. 118. Imagem que reitera sua urgência para a geração de Deleuze, porquanto não se trata de
uma novidade do tempo de Nietzsche, mas de uma filosofia “inatual”, como toda filosofia deve ser. Ela,
nesse sentido, não pertence ao contexto temporal de Nietzsche, que serve de contragolpe à Hegel, nem ao
contexto de Deleuze, oposto ao hegelianismo francês – aliás não é mesmo atemporal –: ela é de tempo
nenhum ou “intempestiva”. “Dos filósofos e a filosofia de seu tempo Nietzsche dizia: pintura de tudo o
que sempre se acreditou. Talvez ainda o dissesse da filosofia atual, em que nietzscheanismo,
hegelianismo, husserlianismo são os pedaços do novo pensamento multicolorido”. Ibidem, p.223.
Negatividade e produção: elementos para uma teoria do desejo em Deleuze
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Trata-se então de afirmar a vida e de combater toda forma de negação dela, de
seu aprisionamento a uma ordem pré-estabelecida de valores e que a impede de se
desenvolver. Assim, a criação é a marca distintiva da vida e sua neutralização a ameaça
mais iminente. Pois, para Deleuze, Nietzsche identifica a realidade como um complexo
jogo de forças, umas agindo sobre as outras, e que criam sentido e valor – sujeito,
objeto, mundo, verdade, erro, e outros tantos elementos comuns ao discurso filosófico
tradicional seriam secundários em relação ao sentido e valor que estão na base de todo
fenômeno, de maneira que seja antes preciso compreender como eles se produzem.
Desse modo, é necessário proceder a uma tipificação ou tipologia das forças que
estão em jogo na natureza; de modo que aquelas que agem e conquistam outras são
denominadas ativas e as conquistadas reativas. Uma questão de forças, portanto, sendo
cada uma diferente e singular com relação às outras e todas agindo continuamente sobre
outras forças, não havendo “coisas” que sofrem sua ação. A intenção é não reduzir o
pensamento à consciência, visto que ela é apenas uma expressão possível das forças
‘reativas’ e, portanto, não representa ou compreende toda forma de relação com o real.
Trata-se, portanto, de acercar-se de um princípio mais fundamental que a consciência ou
que o mundo objetivo: a vontade de potência.
Tal vontade de potência é o princípio da realidade; portanto, um movimento em
direção da “potência”, não como conquista do “mais forte”, mas uma ampliação
indeterminada de ação e de experimentação. É ela que faz com que a vida, ao mesmo
tempo em que seja afirmada, conte sempre com novas possibilidades de sentido. De
fato, sob este novo regime ou imagem do pensamento, “pensar significaria descobrir,
inventar novas possibilidades de vida”13. Pensar, nesse sentido vai para além de uma
relação de conhecimento, não é possuir uma imagem ou objeto em pensamento, mas
utilizar duma força e, portanto, sempre interpelar e criar valor no mundo. Partindo desse
princípio, mesmo a negação sob sua forma mais radical, a vontade de nada ou o
niilismo, são, para Nietzsche, expressão da vontade de potência. De acordo com
Deleuze, a vontade de potência é como que um princípio dinâmico, a própria
dinamicidade do real, que se expressa na articulação entre forças ativas e reativas.
A vontade de potência não pode ser separada da força sem cair na abstração metafísica. Mas
confundir força e vontade é um risco ainda maior: não se compreende mais a força enquanto
força, recai-se no mecanismo, esquece-se a diferença de forças que constitui seu ser, ignora-se o
13 Ibidem, p. 115.
André Dias de Andrade
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elemento do qual deriva sua gênese recíproca. A força é o que pode, a vontade de potência é o
que quer.14
Querer não significa volição, sendo que a vontade de potência se faz à revelia de
um sujeito – tal vontade não deve ser confundida com o arbítrio –; ela é o próprio ser, o
ser como aquilo que i) diferencia todas as forças, dá-lhes sua singularidade, e as ii)
constitui em sua natureza15. Portanto, ela se expressa através das forças, não sendo um
princípio transcendente (e nem “princípio” num sentido causal), não obstante não se
reduza a elas – “é ao mesmo tempo um complemento da força e algo de interno”16. Não
há finalidade para tal expressão, assim como não se pode reportar a uma origem para a
vontade de potência, sendo necessário pensa-la junto com suas características na
perspectiva do eterno retorno.
Pois bem, é tal teoria que permite a Nietzsche, segundo Deleuze, pensar a
vontade de potência de maneira imanente, não fazendo dela a vontade de um sujeito ou
a emanação de um transcendente – bem entendido, o real é o eterno retorno daquilo que
é desencadeado por essa potência afirmativa. Ela se coaduna ao desejo inconsciente tal
como vislumbrado em O Anti-Édipo, isto é, de forma imanente e positiva. Ao passo em
que o desejo trabalha fragmentos infinitamente pequenos, de modo a compor, com tais
peças, máquinas e estruturas que engendram o real, a potência é responsável pela
gênese e diferenciação das forças que articulam sentido e valor17. Como nota Deleuze,
ainda em 1962 (dez anos antes de O Anti-Édipo), isto aponta para uma teoria do
inconsciente produtivo que não poderia se assujeitar inteiramente a uma estrutura como
a edipiana. “Pode-se imaginar o que Nietzsche teria pensado de Freud: aí ainda ele teria
denunciado uma concepção muito ‘reativa’ da vida psíquica, uma ignorância da
verdadeira ‘atividade’”18.
Não obstante o caráter positivo da vontade de potência, é importante notar como
o aspecto reativo das forças, aliado à negação como uma das qualidades da vontade (ela
ou nega ou afirma acerca das coisas), pode ser nocivo para a filosofia e para a
construção de uma ética. Pois, se na origem há apenas forças em coexistência e se estas
dividem-se em ativas e reativas, pode-se dizer que as forças reativas têm a característica
14 Ibidem, p. 57. 15 Deleuze cita Nietzsche: “O quê então quer a potência? Questão absurda, se o ser é por si próprio
vontade de potência...”. Apud DELEUZE, 1962, p. 56. 16 Ibidem, p. 56. 17 “A vontade de potência é ao mesmo tempo o elemento genético da força e o princípio da síntese das
forças” (Ibidem, p. 58). 18 Ibidem, p. 131 nota.
Negatividade e produção: elementos para uma teoria do desejo em Deleuze
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 73-92, 2017 79
de limitar as forças ativas. É a partir desta limitação que devemos entender a introdução
do negativo na filosofia da vontade, de modo que Nietzsche vê no ressentimento e na
moral escrava um triunfo das forças reativas contra as forças ativas. O negativo deve ser
visto como um produto da existência e não essencial, pois ele não tem realidade própria,
sendo sempre fruto de um contrassenso na filosofia da vontade. Se “jamais em
Nietzsche a relação essencial de uma força com outra é concebida como um elemento
negativo” isso se deve ao fato de que elas não se negam, mas se diferenciam umas das
outras – e tal diferenciação é uma afirmação de si mesma, sem necessidade de oposição.
“A questão tão frequente em Nietzsche; o que quer uma vontade, o que quer este,
aquele?, não deve ser compreendida como a busca de um objetivo, de um motivo, nem
de um objeto para essa vontade. O que quer uma vontade é afirmar sua diferença”19.
Pensar as relações entre forças como negação, oposição, contradição é sempre
pensa-las do ponto de visto do escravo ou da consciência, conforme Deleuze, para quem
ambos – escravo e consciência na figura da consciência servil20 – compreendem um
“triunfo” da reatividade, ao contrário da perspectiva ativa do senhor e da potência
(atrelada ao inconsciente). Deixando isto de lado no momento, vê-se que a vontade de
potência, quando concebida do lado de uma força reativa, é re-presentada. Desse modo,
a aparência de negativo é o efeito de uma inversão na origem do problema: o
hegelianismo concebe a pluralidade de forças, vale dizer, a multiplicidade, a partir do
crivo da representação e da objetivação possível, sendo necessário ao desejo se reportar
à alteridade, num movimento de negação, superação, conservação e síntese numa
totalidade (o lema dialético da Aufhebung). Segundo tal aspecto invertido da origem,
sempre falta algo ao desejo, vale dizer, ele tem que ser definido como “desejo do
outro”.
O problema é que uma concepção negativa da vontade não é exclusiva do
terreno especulativo ou estritamente teórico; mais que isso, o ressentimento atrelado à
moral escrava resulta naquilo que Nietzsche denomina “má consciência” e “ideal
19 Ibidem, p. 10. 20 Vemos como na Genealogia da Moral há uma relação estreita entre ressentimento e negação – o
ressentido é aquele que nega. “A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se
torna criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a dos atos,
e que apenas por uma vingança imaginária obtêm reparação. Enquanto toda moral nobre nasce de um
triunfante Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz Não a um ‘fora’, um ‘outro’, um ‘não-eu’ - e
este Não é seu ato criador” (NIETZSCHE, Genealogia da Moral: uma polêmica 1998, p. 28-29). Assim
quem tornaria dialética a relação entre forças e introduziria aí o negativo é o escravo, uma vez que ele
parte do ponto de vista reativo das forças, de uma recognição da potência e da afirmação originárias:
“quem é dialético, quem dialetiza a relação? É o escravo, o ponto de vista do escravo, o pensamento do
ponto de vista do escravo”. DELEUZE, Op. Cit., p. 11.
André Dias de Andrade
80 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 73-92, 2017
ascético”, como uma negação da vida a partir de um deslocamento de sentido da
posição do desejo. Tal como acontece com o cristianismo ao interpretar a vida como
uma perpétua expiação do pecado original, ou com o capitalismo ao apoiar-se numa
ideia de escassez que deve ser combatida ao longo de toda a existência, o “triunfo das
forças reativas” acarreta uma noção de falta originária – uma transcendentalização
radical do objeto do desejo – em que “a dívida perde o caráter ativo pelo qual
participava da liberação do homem: em sua forma nova é inesgotável, impagável”21.
Este é o mecanismo de expropriação que separa a força ativa daquilo que ela pode e
pelo qual os governantes e sacerdotes reprimem a potência de agir e o desejo, pois, ao
imprimir a figura de uma transcendência insuperável na base da vontade, de uma lacuna
jamais preenchida, fazem com que seus súditos e crentes lutem por sua própria servidão.
Esta é a questão que estava na base de uma moral e que, conforme Deleuze,
incomodava Espinoza22.
Ora, se mesmo as forças reativas contêm ação, pois são re-“ativas”, todo o
mecanismo de sua repressão não é capaz de subjugar tal caráter originariamente ativo e
afirmativo, mas apenas de o subverter inscrevendo aí o negativo. Na filosofia de
Espinoza, tal como lida por Deleuze, encontram-se diversos elementos que contribuem
para a compreensão dessa possível subversão. Pois ali nos deparamos, num primeiro
momento, com a compreensão de que a realidade é formada por um conjunto infinito de
corpos que se relacionam entre si, de forma a compor e decompor relações. Tais
relações principiais, ainda denominadas “inadequadas” por Espinoza, já que lhes falta o
conhecimento de suas causas, são “afecções” ou modos de representação próprios à
consciência, que recolhe apenas efeitos. Tais afecções, por si só, ao compor relações (tal
como a que vige entre o corpo fisiológico e o alimento) produzem alegria, enquanto que
ao decompor uma relação (como no caso do envenenamento) acarretam tristeza. Todo o
segredo está então em saber descobrir as relações convenientes – ou os “bons
encontros”23 – ao nosso corpo, fato este que demanda uma questão: como ascender a tal
conhecimento das “noções comuns”24, vale dizer, àquilo que há de comum e convém à
21 Ibidem, p. 162. 22 “A excomunhão, a guerra, a tirania, a reação, os homens que lutam por sua escravidão como se fosse a
sua liberdade, formam o mundo do negativo no qual vive Espinoza [...]” (DELEUZE, Spinoza.
Philosophie pratique, 1981, p. 22). A obra Espinoza. Filosofia Prática foi publicada em 1970 e
aumentada em uma reedição de 1981, a qual conta com um capítulo final que já exprime bem o
vocabulário utilizado por Deleuze e Guattari na finalização da série Capitalismo e Esquizofrenia II (Mil
Platôs) de 1980. 23 DELEUZE, Cursos sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981), 2009, p. 49. 24 DELEUZE, Op. Cit., 1981, pp. 52-53; 126.
Negatividade e produção: elementos para uma teoria do desejo em Deleuze
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 73-92, 2017 81
dois ou mais corpos em conjunto, e não permanecer à mercê das afecções, ao acaso dos
encontros?
Como o universo de Espinoza é compreendido por Deleuze como uma
quantidade infinita de corpos infinitamente pequenos, chegamos à definição de corpo –
da mesma maneira que em Nietzsche – com o auxílio da noção de relação. Uma coisa,
ou um indivíduo, se define antes pelas relações que possui entre os corpúsculos que a
formam do que pelo que ela “é”, de uma forma substancial. Na medida em que só há a
substância única que é Deus ou a Natureza (Deus sive Natura), tais corpos são
entrevistos como modos de um atributo preciso dessa substância, o atributo da extensão.
Enquanto tais, são antes potências do que pontos fixos. Aqui, é preciso notar toda a
contribuição de uma tal doutrina para a teoria do desejo deleuziana. Se tudo se constitui
por sua potência, isto significa que a definição de algo obedece antes àquilo que pode
(em dois sentidos interdependentes: como potência de agir ou afetar e potência de ser
afetado) do que por aquilo que é25. E tal transposição da essência em potência guarda a
possibilidade de pensar todo indivíduo como sendo definido de maneira singular e, ao
mesmo tempo, não estática; nenhuma potência é igual à outra, sendo que há um
desconhecimento inevitável sobre aquilo que tal potência pode, sobre quais infinidades
de relações ela pode engendrar26. Daí ser preciso assinalar novamente a limitação do
intelecto face à experiência, sendo que há sempre um desconhecimento do corpo – da
potência de agir – e, por outro lado, um desconhecimento da própria potência de pensar
– havendo, assim como antes, uma desvalorização da consciência em proveito do
pensamento27.
25 A palavra “potência” (puissance), conforme indica Deleuze num curso datado de 9 de dezembro de
1980, é fruto de uma criação de Nicolau de Cusa que, ao juntar as palavras latinas posse (infinitivo do
verbo “poder”) e est (terceira pessoa do verbo “ser”), chega à possest. Trata-se, portanto, de algo como
um poder que se é ou, melhor, poder em ato. “O ‘possest’ será precisamente a identidade da potência e do
ato pelo qual defino alguma coisa. Então eu não definirei alguma coisa por sua essência, aquilo que ela é,
eu a definirei por esta noção bárbara, o ‘possest’, aquilo que ela pode. Ao pé da letra: aquilo que ela pode
em ato” (DELEUZE, Op. Cit., 2009, p. 89). É importante notar também que já em sua obra de 1970 havia
uma aproximação entre a vontade de potência e o conatus – “o conatus, como todo estado de potência, é
sempre em ato (DELEUZE, Op. Cit., 1981, p.141) –, relação esta que dá ensejo a definição de “desejo”
nesta obra. 26 O saber quanto à tais relações constitui o terceiro gênero de conhecimento, subsequente às afecções e
noções comuns, da epistemologia espinozista: trata-se não mais das ideias que se têm, mas das ideias que
se é, ou seja, das ideias que alguém tem a respeito de sua própria essência – se por “essência” se mantem
em salvaguardo seu caráter dinâmico e relacional. 27 Ibidem, p. 28. O conatus e seus afetos são também uma maneira de “pensar” (Ibidem, p. 83) segundo a
filosofia de Espinoza, o que leva Deleuze a entrever já aí como a consciência se banha inteiramente no
inconsciente. O desconhecimento a respeito daquilo que pode o corpo é aparentado ao desconhecimento a
respeito dos processos maquínicos insonscientes, tal como serão esclarecidos à frente em O Anti-Édipo, e
que tomam forma a partir da concepção espinozista de que a composição entre corpos influencia tanto na
André Dias de Andrade
82 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 73-92, 2017
É dessa maneira que a definição de desejo aparece próxima daquela de
conatus28; se este pode ser definido como a tendência dupla de i) perseverar na
existência e ii) ampliar sua aptidão a afetar e ser afetado por cada ser, o desejo é a
atividade que obedece a tal duplicidade. Sua produção se relaciona, ao mesmo tempo,
com a ação e a afecção, sendo impossível separá-las29. “É preciso então que cheguemos
a uma definição real do desejo, que mostre ao mesmo tempo a ‘causa’ pela qual a
consciência é como que cavada no processo do apetite”30. Não é a consciência que
possui “apetite”, este sendo o próprio esforço pelo qual cada coisa se esforça por
perseverar em seu ser (conatus); logo, é antes a consciência que resulta do desejo. Então
não vamos, pelo desejo, ao desejado como aquilo que é “bom” – mas algo é julgado
“bom” porque vamos, pelo desejo, a ele. Novamente, é a consciência a responsável pela
leitura negativa do desejo, uma vez que quando ela capta o conatus através da ideia e da
representação, passa a crer que estas eram anteriores àquele e, mediante tal inversão,
que há desejo justamente porque há uma anterioridade do objeto desejado.
Tais elementos, como dito, permitem pensar uma ética ou “etologia” do desejo e
do conatus em Espinoza, de modo a desmontar toda moral que se baseia em princípios
universais e transcendentes. Ao invés da especificação e generalização (tais espécies de
animais se definem de tal forma, tais de outras, e assim por diante) promovida pelo
discurso moral, procede-se a uma diferenciação de acordo com a potência de cada
indivíduo. É mister, portanto, que tal diferenciação tenha como base uma ontologia
positiva31, a qual não entrevê lugar para o negativo e para a transcendência, de modo
potência de agir como na potência de pensar e compreender (de atingir as ideias adequadas e noções
comuns). 28 Ibidem, pp. 83; 136. 29 E tal seria uma resposta à crítica de Nietzsche a Espinoza, de que este não soubera “elevar-se até a
concepção de uma vontade de potência, confundiu poder com a simples força e concebeu a força de
maneira reativa (cf. o conatus e a conservação)” (DELEUZE, Op. Cit., 1962, p. 70); resposta apenas
possível quando Deleuze escreve o livro sobre Espinoza alguns anos mais tarde que aquele sobre
Nietzsche – resposta a um debate virtual encetado pelo próprio Deleuze, aliás. Quanto à dupla referência
do desejo, ação e afecção, haveria também espaço para ela no autor alemão, na medida em que a vontade
de potência contava também, em sua definição, com uma sensibilidade ou sentimento de potência. Há já
ali uma definição muito próxima da de desejo, já que “o poder de ser afetado não significa
necessariamente passividade, mas afetividade, sensibilidade, sensação”; e citando Nietzsche: “Eis o fato
fundamental... Para que a vontade de potência possa manifestar-se ela precisa perceber as coisas que vê,
ela sente a aproximação do que lhe é assimilável”. Ibidem, p. 70-71. 30 DELEUZE, Op. Cit., 1981, p. 32. 31 Conforme Alliez esta posição ética contraposta à moral possibilita que Deleuze desenvolva uma “onto-
etologia: para acabar com Deus, para acabar com o julgamento de seus avatares” (ALLIEZ, De
l’impossibilité de la phénomènologie, 1995, p. 79). É possível ver já em Espinoza a urgência desse
deslocamento entre onto-teologia e onto-etologia, porquanto “sua análise vai tão longe que consegue
encontrar, até na esperança e na segurança, este grão de tristeza que basta para fazer delas sentimentos de
escravos”. DELEUZE, Op. Cit., 1981, p. 39.
Negatividade e produção: elementos para uma teoria do desejo em Deleuze
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que “a prova ética é então o contrário do julgamento diferido: em lugar de reestabelecer
uma ordem moral, ela ratifica desde já a ordem imanente das essências e seus
estados”32. Além disso, a noção de desejo depreendida de tal filosofia investe contra a
ideia de falta, já que prescinde da noção de consciência e de representação – ao menos
em sua gênese – ao se aproximar daquelas do conatus spinozista ou da vontade de
potência nietzschiana. Assim, “a reprovação que Hegel fará a Espinosa, de ter ignorado
o negativo e a sua potência, é a glória e a inocência de Espinosa, sua descoberta
própria”33.
Antes de passar para o exame do desejo em O Anti-Édipo, passemos em revista o
principal dessas leituras deleuzianas. O “real”, o qual só é conhecido pela consciência
de forma derivada e representativa, é, em primeira instância, uma conjunção e
pluralidade de forças. Cabe ao sujeito espinozista, ao compreender-se como um
composto indissolúvel de corpo e espírito, paixão e pensamento, buscar os bons
encontros, vale dizer, aqueles em que a sua potência compõe com outras e acarretam
alegria. O desejo, nesse sentido, deve procurar a produção e não simplesmente visar
preencher uma falta – é isto o que ensinam a teoria do conhecimento e a ética de
Espinoza. Ora, em Nietzsche, é possível entrever que nem toda negação é nociva a uma
tal ética. Na medida em que não nega ou oblitera a vida, é possível pensar em um
trabalho positivo e “afirmativo da negação”, o qual está representado pela figura do
“leão” oriunda das três metamorfoses de Zaratustra e que resulta numa destruição
criativa, numa negação que possibilita engendrar novos valores. Bem entendido, tal
“negação” não passa de um modo de ser da afirmação e é disso que se trata quando da
transvaloração como criação ou produção de valores, de modo que a vontade de
potência – a puissance nietzschiana – se efetiva numa criação e não numa finalidade
específica. Levar a potência de cada ser à sua plena concreção é a tarefa de uma ética
pensada desde já por Nietzsche, mas a qual, na leitura deleuziana, na medida em que
envolve ao lado da ação a sensibilidade, pode ser coadunada ao conatus como desejo,
produção e satisfação. Como tal, encontra já a ressonância dos temas espinozistas
básicos: o universo e os indivíduos que nele habitam, são definidos a um só tempo pela
potência de agir e de ser afetado. É esta forma de definição que estaria na base da
tipologia nietzschiana e que definitivamente está na base do projeto de O Anti-Édipo.
32 Ibidem, p. 59. 33 Ibidem, p. 22.
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III
Quando nos deparamos com O Anti-Édipo e com sua proposição de cunho
ontológico inicial – “há tão somente máquinas” –, é salutar encontrar aí o ressoar da
leitura à qual Deleuze submetia Espinoza. E tal proposição não envolve metáfora
alguma, como salientam os autores34, de modo que nada há para encontrar além das
máquinas, sendo a elas que se deve dirigir a interrogação. Seria possível perguntar sobre
sua origem? Sobre sua estrutura? Sobre sua finalidade?
Enquanto máquinas, são compostas de “peças” – pedaços ou fragmentos
denominados objetos parciais –, tal como os órgãos de nosso corpo. A parcialidade
desses objetos mínimos que compõem as máquinas está como que em sua própria
natureza, de modo que não se pode pensa-la em referência a alguma totalidade possível.
As máquinas, desse modo, podem ser compostas e decompostas, arranjadas e
desarranjadas, de forma infinita e indeterminada. Tal disposição, a qual é a estruturação
do próprio real, se dá de acordo com a atividade inconsciente do desejo; é ela que
“maquina” ou que produz incessantemente as máquinas, de modo que o inconsciente
seja uma grande fábrica. Trata-se, por conseguinte, de entender como ele funciona
através de suas três sínteses próprias.
Enquanto indústria ou fábrica, o inconsciente, através do desejo, realiza
conexões entre os objetos parciais e intensifica o fluxo de produção (síntese conectiva
de produção); contudo, isto não aniquila sua parcialidade, não a submete a um modelo
acabado, o que permite pensar tais conexões ao infinito. Conjuntamente a isto, produz-
se também uma inscrição de tais conexões, agora denominadas máquinas-órgãos, sobre
a superfície de um corpo sem órgãos. Tal corpo desorganizado não é um vazio, algo
como um plano ideal que serve de fundamento para pensar os objetos, mas uma
superfície de registro em que as máquinas-órgãos podem coexistir, mas que não podem
encerrar, já que tal corpo não se deixa produzir totalmente e não se submete à
organização acabada35 – está aí o legado da advertência espinozista de que “não
sabemos o que pode o corpo”. Assim, esta síntese disjuntiva trabalha de forma
34 DELEUZE-GUATTARI, Op. Cit., 2010, p. 54. 35 “O corpo sem órgãos não é o testemunho de um nada original, nem o resto de uma totalidade perdida.
E, sobretudo, ele não é uma projeção: nada tem a ver com o corpo próprio ou com uma imagem do corpo.
É o corpo sem imagem” (Ibidem, p. 20).
Negatividade e produção: elementos para uma teoria do desejo em Deleuze
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 73-92, 2017 85
inclusiva36 ou ilimitativa, operando destacamentos na cadeia de produção sobre o corpo
sem órgãos. Este é, enquanto tal, uma superfície “deslizante e amorfa”, que atrai as
máquinas e também as repudia, atuando como um fator antiprodutivo do desejo. É neste
jogo de forças que compreendemos a terceira síntese conjuntiva em que o produto do
desejo pode ser consumido. Há uma espécie de dedução desta terceira síntese do
inconsciente, já que “na superfície de inscrição, algo da ordem de um sujeito se deixa
assinalar”37. Assim, junto da produção que é, a cada vez, produção de produção (1ª
síntese) e, ao mesmo tempo, produção de registro (2ª síntese), aparece um “consumo”
(3ª síntese), uma “volúpia”, algo como um sujeito residual do processo. Estabelecer,
sumariamente, os aspectos gerais destas sínteses, a fim de assinalar como o inconsciente
se assemelha a uma linha de produção, registro e consumo inextrincáveis, mas não
indiscerníveis, mostra já como Deleuze e Guattari procedem a uma caracterização
positiva do desejo através desta noção-chave de produtividade.
Assim, é crucial compreender como O Anti-Édipo começa por estabelecer a
realidade de forma relacional, entrevista como processo de produção, como uma relação
entre corpos (objetos parciais) que se arranjam em máquinas:
Homem e natureza não são como dois termos postos um em face do outro, mesmo se
tomados numa relação de causação, de compreensão ou de expressão (causa-efeito,
sujeito-objeto etc.), mas são uma só e mesma realidade essencial do produtor e do
produto. A produção como processo excede todas as categorias ideais e forma um ciclo
ao qual o desejo se relaciona como princípio imanente.38
Se se trata de um real relacional e produtivo, no qual só se pode compreender o
homem na condição de Homo natura, o princípio deste real só pode ser o desejo – e a
ontologia se faz enquanto ontologia do desejo. Assim, o que parece essencial para se
compreender o caráter positivo desta ontologia e, por conseguinte, compreender como
ela rechaça a negatividade, advém do fluxo de produção ininterrupto, no qual produzir
não é apenas produzir um produto e encerrar o processo, mas produzir mais produção.
Para tanto, trata-se de pensar de uma forma não dual a relação entre a produção e o
produto, mas correlata, já que o produzir “está sempre inserido no produto”. A relação
36 A disjunção “ou...ou...” é inclusiva (no francês “soit...soit...”) e não exclusiva (“ou bien...ou bien..”) e
permite que as diferenças sejam mantidas em simultâneo, sem absorvê-las num todo acabado. Como
apontam Deleuze e Guattari, tal síntese será limitada pela psicanálise através de um “uso transcendente”,
ou seja, ao coaduna-la à estrutura edipiana. A partir de então as máquinas-órgãos que o desejo produz
devem compor registros de alternativas ou disjunções exclusivas (tais como, “ou pai, ou mãe”; “ou
homem ou mulher”; “ou patrão ou empregado”; etc.). 37 Ibidem, p. 30. 38 Ibidem, p. 15.
André Dias de Andrade
86 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 73-92, 2017
desejante não apresenta o produto como signo extrínseco a ela mesma, nem a categoria
de máquina supõe um sujeito substancial por trás dela e que a controla, um operador da
máquina – “a produção desejante é produção de produção, assim como toda máquina é
máquina de máquina. Não podemos nos contentar com a categoria idealista de
expressão”39.
Se vimos em Nietzsche o caráter abstrato das questões sobre a origem
(princípio) ou finalidade (forma) contra as quais se interpunha o eterno retorno e a
vontade de potência, pode-se dizer que aqui elas dão passagem ao caráter produtivo e
incessante do desejo e do real. Trata-se, agora aliado à leitura de Espinoza, de pensar tal
caráter eminentemente produtivo a partir de um campo de imanência e, com isso, dar
um estatuto positivo ao desejo. Antes disso, porém, retomaremos a possibilidade de
compreensão negativa do desejo, baseada na falta do objeto desejado, a qual uma vez
mais aparece aqui como a postura a ser criticada.
Segundo os autores, há, desde a divisão platônica entre aquisição e produção,
um passo em falso na compreensão do desejo, já que se insiste em situá-lo no primeiro
termo da relação e pensa-lo como uma relação a algo exterior. Ao se pensar o desejo
como aquisição, “fazemos dele uma concepção idealista (dialética, niilista) que o
determina, em primeiro lugar, como falta, falta de objeto, falta do objeto real”40.
Quando, por outro lado, compreende-se no desejo uma potência produtiva, é somente
para ver aí uma criação de fantasma, vale dizer, uma “irrealização” a partir da estrutura
causal do mundo que nos apresenta os objetos na percepção. Sob este ponto de vista, há
produção, mas produção interior, produção de uma realidade psíquica. A divisão inicial
entre aquisição e produção se mantém; é até mesmo ela que está sob a compreensão
psicologista da produtividade do desejo num segundo momento. Tratar-se-ia, portanto,
de repensar tanto a ideia inicial do desejo como falta de um objeto real, como relação a
algo determinado e que reside “no mundo”, no exterior do sujeito, quanto a de desejo
como relação a um objeto irreal, o qual habita apenas a interioridade do sujeito. Pois
destarte o aspecto em que se o considere, apontam Deleuze e Guattari, o desejo está
numa “essência de falta”. Tal essência é radicalizada pela psicanálise, já que levando ao
limite a ideia de uma produtividade fantasmática do desejo, pensa-o como uma
sublimação necessária na relação com o mundo e, por isso, “reduplica” a falta,
39 Ibidem, p. 17. 40 Ibidem, p. 41.
Negatividade e produção: elementos para uma teoria do desejo em Deleuze
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“levando-a ao absoluto, fazendo dela uma ‘incurável insuficiência de ser’”41. Além da
relação opositiva entre sujeito e mundo, trata-se, agora, de uma relação negativa
subsistente entre desejo e desejado e que faz do desejo uma teatralização – um
dispositivo que representa o real. O desejo passa a se apoiar em necessidades e sua
positividade é reabsorvida nessa falta. A produção passa a ser produção de fantasma ou
negação42.
Ora, é contra tal concepção idealista e cênica do desejo e da própria
produtividade que é preciso retornar à acepção comum de produção como “produção
industrial” e, em seguida, ao inconsciente como uma fábrica. Ao deixar de ser
compreendido como um teatro, como uma atividade que representa sempre outra coisa,
revela-se logo a dimensão positiva do desejo: nada lhe faltando, ele passa a ser criador;
é o produtor do desejado e não se pauta ou se guia por ele. Se ele é criativo, portanto, é
criador ou produtor da própria realidade (se ele não cria fantasma ou representação, “só
pode sê-lo na realidade, e de realidade”). Tal “real” é aquele que provém da relação
entre o desejo e os objetos parciais, infinitamente complexos e sem remissão a um todo,
e que se apresentam sempre de uma forma já “maquinada”, vale dizer, trabalhada e
produzida pelo inconsciente. Ao invés de um objeto exterior ao desejo e que poderia
sobrevir a ele como falta – além do que seria então possível inquirir o estatuto desse
objeto, sua “objetividade”, precedente à própria relação desejante –, o desejo tem como
matéria-prima tais fragmentos que são os objetos parciais. Daí que é possível chegar a
uma definição:
O desejo é esse conjunto de sínteses passivas que maquinam os objetos parciais, os
fluxos e os corpos, e que funcionam como unidades de produção. O real decorre disso, é
o resultado das sínteses passivas do desejo como autoprodução do inconsciente43.
Com isso se chega também a uma definição não-dual, de modo que o desejo e o
desejado, o desejo e seu objeto são um e o mesmo. Tal correlação é defendida desde o
41 “No nível mais baixo da interpretação isso significa que o objeto real que falta ao desejo remete, por
sua vez, a uma produção natural ou social extrínseca, ao passo que o desejo produz intrinsecamente um
imaginário que vem duplicar a realidade, como se houvesse ‘um objeto sonhado atrás de cada objeto real’
ou uma produção mental atrás das produções reais” (Ibidem, p. 42). 42 E nisso se ouve o eco da “aclimatação francesa do hegelianismo” que aponta Paulo Arantes, a qual
prossegue até a psicanálise lacaniana que figura também como objeto de crítica em O Anti-Édipo:
“diferença entre necessidade e desejo, a primeira nascida de uma tensão interna e satisfeita por um objeto
real e específico, o segundo, que só tem realidade psíquica, imantado pela procura de um fantasma, sendo
além do mais inconsciente e vinculado a signos infantis indestrutíveis; nestas condições estão dados os
elementos da irredutibilidade lacaniana do desejo, nem visada de um objeto real nem demanda
articulada”. ARANTES, Op. Cit., 1995, p. 22. 43 Ibidem, p. 43.
André Dias de Andrade
88 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 73-92, 2017
início da obra, onde se prescreve tudo como “máquina” e “máquina de máquina”, uma
espécie de infraestrutura maquinal do mundo, produzida por acoplamentos, cortes,
fluxos, extrações etc. Essas formulações permitem ir ao encontro de uma psiquiatria
materialista, a qual teria como diretriz “introduzir o desejo no mecanismo e introduzir a
produção no desejo”44. Vimos como a “maquinaria” que desenvolve O Anti-Édipo pode
ser melhor compreendida a partir de uma “materialidade” já trabalhada nos escritos
anteriores de Deleuze. Ao entrever em Espinosa uma física de corpos infinitamente
pequenos, tão ínfimos que só se poderia tratar deles através de suas relações, o autor os
qualifica como intensidades puras. Uma das dificuldades na definição da coisa como
conjunto de relações entre tais partículas estava justamente em pensar tais relações
como “relações puras”, vale dizer, puras relações sem termos e, assim, não as
compreender a partir de uma unidade mínima anterior à toda relação e estática45. Se
vemos em Deleuze a tentativa de encontrar um “grão do real” em certos autores, é
sobretudo por entrever neles uma precedência das forças e dos valores em relação à
objetividade (Nietzsche), bem como do esforço simultâneo em conservar e expandir a si
mesmo na definição de cada indivíduo (Espinoza), ou seja, na definição por aquilo que
podem, pelas relações que são capazes de engendrar. Se se pensa um “mecanismo” n’O
Anti-Édipo, por conseguinte, não se trata de uma remissão ao mecanicismo, já que
vimos o quanto a categoria de “vida” e um certo “vitalismo”46 habitam as análises de
Deleuze, mas de um mecanismo capaz de ação indeterminada – a máquina desejante.
A segunda diretriz para uma psiquiatria materialista nos informa que seria
preciso “introduzir a produção no desejo”, de modo que, agora, não estamos tratando
apenas de ação indeterminada – o caráter desejante do mecanismo –, mas de criação
indeterminada. Ora, tal aspecto já foi anunciado pelas inúmeras críticas à noção de
negativo atrelada ao desejo. Se este não passa a existir motivado por um ente
44 Ibidem, p. 38-39. 45 É dada ênfase a esta dificuldade no curso de 17 de fevereiro de 1981, onde Deleuze procura definir o
indivíduo como três dimensões, a saber: relação, potência e modo. É necessário um pensamento do
infinito, o qual se desenvolve no século XVII e com o cálculo infinitesimal, para conceber uma relação
pura, de modo que “o limite até o qual tende a relação, é a razão de conhecer a relação como
independente de seus termos, isto é, dx e dy, e o infinito, o infinitamente pequeno, é a razão de ser da
relação; com efeito, é a razão de ser de dy”. DELEUZE, Op. Cit., 2009, p. 192; cf. DELEUZE, Op. Cit.,
1962, p. 57-8. 46 Mas é preciso ponderar, pensando um vitalismo alheio à toda forma de finalismo ou causa final. “Em
geral o problema das relações partes-todo permanece também mal formulado pelo mecanicismo e pelo
vitalismo clássicos, enquanto se considerar o todo quer como totalidade derivada das partes, quer como
totalidade originária da qual emanam as partes, quer como totalização dialética. Tal como o vitalismo, o
mecanicismo nunca apreendeu a natureza das máquinas desejantes, nem a dupla necessidade de introduzir
tanto a produção no desejo como o desejo na mecânica”. DELEUZE-GUATTARI, Op. Cit., 2010, p. 64.
Negatividade e produção: elementos para uma teoria do desejo em Deleuze
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transcendente ou anterior a ele mesmo, o qual seria objeto de consumo, deleite, negação
(nas acepções múltiplas da Aufhebung hegeliana), doravante o desejo é o responsável
pelo desejado e por toda criação sua. Enquanto tal, define-se como uma instância
produtora de realidade.
Mas é preciso ir mais fundo na crítica à noção de falta no desejo de modo a
entender como é possível que tal concepção negativa e errônea tome forma, uma vez
que é a partir da produção positiva que se dá toda relação de desejo e, por extensão, toda
relação de sentido possível. É novamente em torno de uma inversão qualitativa que se
vai reintroduzir a falta no desejo e o negativo na realidade. Como vimos, ao não se
apoiar em necessidades preexistentes, seria preciso que o desejo, sob condições
determinadas, possibilitasse ou criasse de alguma forma tais necessidades. Pois bem,
Deleuze e Guattari argumentam que “a falta é um contraefeito do desejo, depositada,
arrumada, vacuolizada no real natural e social”47, uma espécie de inversão entre a
produção e o produto que faz com que o segundo anteceda o primeiro. Para Deleuze e
para Guattari, tal inversão, se não encontra sua raison d’être num campo positivo de
desejo, só pode ser desencadeada pelas circunstâncias nas quais o desejo é
empreendido; mais que uma ontologia do desejo, portanto, é preciso fazer uma teoria
social do desejo ou, por certo, aproximar a produção desejante da produção social48.
IV
Por conseguinte, em O Anti-Édipo, a questão da falta e do negativo ganha
contornos políticos. É a própria teoria que o demanda, já que se torna impossível pensar
o registro do desejo como independente em relação à vida comum e à produção social.
Não haveria ruptura entre desejo e sociedade, dizem Deleuze e Guattari, de forma que
seus objetos, oriundos da produção desejante e da produção social, sejam objetos de um
mesmo real e que haja uma “coextensão do campo social e do desejo”49. Contudo, se
47 Ibidem, p. 44. 48 A teorização da “consciência servil” em Nietzsche prepara o lugar para este desejo reprimido, fixado
em certa condições de reprodução. A duplicação do desejo que instaurava a negação (do senhor, pelo
escravo) em sua base, agora cede lugar à representação edipiana que toma forma em toda e qualquer
produção do inconsciente. Conforme Nietzsche “a moral do povo discrimina entre a força e as expressões
da força, como se por trás do forte houvesse um substrato indiferente que fosse livre para expressar ou
não a força. Mas não existe um tal substrato; não existe ‘ser’ por trás do fazer, do atuar, do devir; o
‘agente’ é uma ficção acrescentada à ação – a ação é tudo. O povo duplica a ação, na verdade”
(NIETZSCHE, Op. Cit., 1998, p. 36). Aqui, tal duplicação passa a ser a do psicanalista quando toma o
significado de toda ação com base em Édipo. 49 DELEUZE-GUATTARI, Op. Cit., 2010, p. 47.
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não há diferença de natureza entre eles, há, ao menos, uma diferença de regime, vale
dizer, uma diferença nos modos de produção.50 O desejo e o social não compõem duas
realidades distintas; antes, são a mesma atividade ora subordinada a certas condições,
ora à outras.
Dizemos que o campo social é imediatamente percorrido pelo desejo, que é o seu
produto historicamente determinado, e que a libido não tem necessidade de mediação ou
sublimação alguma, de operação psíquica alguma, e de transformação alguma, para
investir as forças produtivas e as relações de produção. Há tão somente o desejo e o
social, e nada mais.51
Reintroduzir a ideia de falta no desejo como se estivesse na base dele, como falta
original, contribui para a manutenção de uma ordem social determinada. Assim, poder-
se-ia responder à pergunta colocada na obra de Espinoza e reiterada aqui, em O Anti-
Édipo, a respeito da condição paradoxal dos povos que lutam por sua própria sujeição.
É concebendo a vida como relação conflituosa a uma carência originária – a escassez na
sociedade capitalista, o pecado e a culpa originais no cristianismo, a castração na
psicanálise – que se dá ensejo à servidão voluntária; e é pensando o desejo de forma
negativa, vale dizer, como relação a um transcendente, que é possível defender
teoricamente esta concepção. Tal posição teórica parece ter suas duas maiores figuras
no hegelianismo e na psicanálise52, a partir das obras estudadas, sendo que ambas
partilham desta perspectiva de leitura do desejo. Deleuze e Guattari procuram desfazer
tal inversão, de modo que a morte, a culpa, a escassez sejam produtos do desejo; e não
este produto daquelas. Desse modo, defendem uma concepção positiva do desejo, capaz
de criar a ideia errônea de falta, mas também de subvertê-la novamente, recuperando
uma potência revolucionária própria às máquinas desejantes.
50 Ibidem, pp. 55; 78. 51 Ibidem, p. 46 52 “É que a castração como estado analisável (ou inanalisável, como um rochedo último) é, sobretudo, o
efeito da castração como ato psicanalítico” (Ibidem, p. 93). Na psicanálise a diferença de regime entre
produção social e desejante se intensifica justamente com a inserção do Complexo de Édipo. Pois ao se
tornar princípio explicativo das sínteses do inconsciente, compromete toda sua produção num jogo entre o
objeto e sua relação com a estrutura parental. “Toda produção desejante é esmagada, submetida às
exigências da representação, aos jogos sombrios do representante e do representado na representação [...]
a produção vem a ser apenas produção de fantasmas, produção de expressão” (Ibidem, p. 77-78). Esta
reviravolta é crucial e une a crítica de O Anti-Édipo àquela das obras anteriores: o caráter produtivo do
inconsciente é substituído por um poder geral de criar e reproduzir representações, sendo que tal
substituição entre produção ativa e reprodução passiva é a mesma operada pelas forças reativas aliadas à
negação, ao desviar a potência de agir daquilo que ela pode e a assujeitar a um ideal transcendente.
Negatividade e produção: elementos para uma teoria do desejo em Deleuze
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 73-92, 2017 91
A existência maciça de uma repressão social que incide sobre a produção desejante não
afeta em nada nosso princípio: o desejo produz real, ou a produção desejante não é outra
coisa senão a produção social53.
Há ainda a possibilidade, destarte o uso transcendente e repressivo que as
instituições sociais fazem de todo mecanismo desejante, de pensar formas de
reaproximação entre a produção social e a produção desejante – de aumentar o
coeficiente de afinidade entre elas – ajustando a primeira à segunda. A conquista dessa
possibilidade parece ser o que está em jogo na obra de Deleuze e Guattari, da qual
esboçamos certos aspectos teóricos, uma vez que ela se baseia na defesa de uma
concepção produtiva e positiva do desejo. Segundo ela, o desejo não estaria
indefinidamente fadado ao fracasso, sujeito a uma busca inesgotável de preenchimento,
já que nada falta a ele – não é, como havíamos assinalado à guisa de definição, um
“desejo do outro”. O drama hegeliano que deu lugar a um drama psicanalítico54, ainda
precisa ser confrontado com a teoria de Deleuze e Guattari em seus agenciamentos
através da esquizoanálise. Antes disso, porém, é salutar notar como a alternativa a este
drama do desejo, para Deleuze, já perseverava na história da filosofia.
Lucrécio denunciando a perturbação da alma e aqueles que dela precisam para instalar
seu poder – Espinoza denunciando a tristeza, todas as causas da tristeza, todos os que
fundam seu poder no seio dessa tristeza – Nietzsche denunciando o ressentimento, a má
consciência, o poder do negativo que lhes serve de princípio: ‘inatualidade’ de uma
filosofia que tem como objeto libertar55.
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53 Ibidem, p. 48. 54 “o drama hegeliano que toda subjetividade deve sofrer: como pode uma negação, através da auto-
negação, situar a si mesma como um ser positivo?”. BUTLER, Subjects of desire, 1987, p. 170. 55 DELEUZE, Op. Cit., 1962, p. 218.
André Dias de Andrade
92 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 73-92, 2017
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Recebido em: 02/01/2017
Aprovado em: 09/04/2017
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, 2017 93
Tradução
94 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 94-105, 2017
De Sacher-Masoch ao masoquismo*
Gilles Deleuze
O masoquismo não pode se separar do contrato, mas ao mesmo tempo que o
projeta sobre a mulher dominadora, ele o leva ao extremo, desmonta suas engrenagens
e, talvez, o torna risível.
Sacher-Masoch (1835-1895) nasceu na Galícia, em Lemberg1. Ascendência
espanhola e boemia. Família de funcionários públicos, sob o império austro-húngaro.
Seu pai foi diretor da polícia de Lemberg. O tema da polícia assombrará a obra de
Masoch. Mas sobretudo o problema das minorias (judia, pequeno-russa, etc.) será uma
de suas principais fontes de inspiração. Masoch participa da grande tradição do
romantismo alemão. Ele concebera sua obra não como perversa, mas como genérica e
enciclopédica. Um vasto ciclo que devia constituir uma história natural da humanidade,
sob o título geral: O Legado de Caim. Das seis partes previstas (o amor, a propriedade,
o dinheiro, o Estado, a guerra, a morte), ele terminara as duas primeiras. Mas mesmo o
amor, segundo ele, não se separa de um complexo cultural, político, social e etnológico.
Os gostos amorosos de Masoch são célebres. O músculo lhe parece uma matéria
essencialmente feminina. Ele queria que a mulher amada tivesse casacos de pele e um
chicote. A mulher amada não é de modo algum sádica por natureza, ela é lentamente
persuadida, adestrada para sua função. Ele queria estar vinculado a ela por um contrato
de cláusulas precisas; uma dessas cláusulas freqüentemente o levava a se fantasiar de
empregado doméstico e a mudar de nome. Entre ele e a mulher amada, ele desejava
* Traduzido do francês por André Martins (agradecimentos à revisão realizada por Sidharta Mendes
Monteiro). Título original: “De Sacher-Masoch au masochisme”, publicado pela primeira vez na Revista
Arguments, a. 5, n. 21, 1961 (1º trimestre), p. 40-46. Texto original disponível em
http://www.multitudes.net/De-Sacher-Masoch-au-masochisme/ . A presente tradução nos parece ser a
primeira em língua portuguesa deste texto de 1961. Há uma tradução em língua inglesa (por Christian
Kerslake): “From Sacher-Masoch to masochism”, in Angelaki: Journal of the theoretical humanities, v.9,
n.1, 2004, p.25-33.
Deleuze retomou em parte esse texto, modificando-o, em sua Présentation de Sacher-Masoch: le froid et
le cruel, publicado em 1967 (Éd. Minuit; publicado com o texto integral de La Vénus à la fourrure
traduzido do alemão para o francês). Este segundo texto de Deleuze fora publicado em português
primeiramente como Apresentação de Sacher-Masoch (com o texto integral de “A Vênus das peles”),
tradução de Jorge Bastos, ed. Taurus, 1983; e reeditado (a mesma tradução, porém revista por Roberto
Machado; sem “A Vênus das peles”) como Sacher-Masoch: o frio e o cruel, ed. Zahar, 2009. (N.T.) 1 Lemberg, Lviv é uma cidade localizada na Galícia, região também conhecida como Áustria polonesa,
hoje dividida entre Ucrânia, Polônia e Romênia, e que à época de Sacher-Masoch pertencia ao império
Austríaco. Lemberg atualmente pertence à Ucrânia. (N.T.)
Gilles Deleuze
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 94-105, 2017 95
fortemente a intervenção de um terceiro, e a suscitava. A Vênus das peles2, seu romance
mais célebre, expõe um contrato detalhado. Seu biógrafo Schlichtegroll, e depois dele
Krafft-Ebing, reproduzem outros exemplos de contratos de Masoch (cf. Psychopatia
Sexualis, p. 238-240). É Krafft-Ebing que, em 1869, deu o nome de masoquismo a uma
perversão, para o grande desprazer do próprio Masoch. Sacher-Masoch não foi um autor
maldito. Ele foi homenageado, festejado e condecorado. Ele foi celebrado na França
(recepção triunfal, legião de honra, Revue des Deux Mondes). Mas quando morreu,
sofreu o esquecimento no qual sua obra já havia caído.
Quando, para o bem ou para o mal, o nome de alguém é dado a um distúrbio ou
uma doença, não se supõe que os tenha inventado. Mas se supõe, por exemplo, que se
“isolou” a doença, que se a distinguiu dos casos com os quais ela era confundida até
então, que se determinou e agrupou os seus sintomas de uma maneira nova e decisiva. A
etiologia depende primeiramente de uma boa sintomatologia. A especificidade
sintomatológica é primeira; a especificidade do agente causal, é sempre segunda e
relativa. Não se lamentará, portanto, no caso de Masoch, que os especialistas do
masoquismo tenham tão pouco se interessado ao conteúdo de sua obra. Em geral, eles
se contentaram com uma sintomatologia menos precisa, muito mais confusa do que
aquela que se encontra na obra do próprio Masoch. A pretensa unidade do sadismo e do
masoquismo multiplicou a confusão. Aqui, como alhures, uma má determinação dos
sintomas levou a etiologia para direções inúteis ou mesmo inexatas3.
Ao comparar-se a obra de Masoch com a de Sade, é-se surpreendido pela
impossibilidade de um encontro entre um sádico e um masoquista. Seus meios, suas
cerimônias diferem inteiramente; suas exigências nada têm de complementar. A
inspiração de Sade é antes de tudo mecanicista e instrumentalista. A de Masoch é
profundamente culturalista e estética. Quando os sentidos têm por objeto obras de arte é
que se sentem pela primeira vez masoquistas. São quadros do Renascimento que
revelam a Masoch a potência da musculatura de uma mulher envolta em peles. É na sua
semelhança com uma estátua que a mulher é amada. E o masoquista devolve à arte tudo
o que ela lhe dá: é deixando-se pintar ou fotografar, é olhando sua imagem em um
espelho que ele se prova e se conhece. Aprendemos que os sentidos tornam-se
“teóricos”, que o olho se torna humano quando seu próprio objeto se torna um objeto
2 Livro publicado em português no Brasil com tradução direta do original alemão (por Saulo Krieger) pela
ed. Hedra (2008, segunda edição de 2015). (N.T.) 3 Perruchot, em um estudo posterior, estuda o problema dos sintomas do masoquismo e questiona sua
unidade com o sadismo.
De Sacher-Masoch ao masoquismo
96 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 94-105, 2017
humano, vindo do homem e destinado ao homem. Um órgão se torna humano quando
toma por objeto a obra de arte. O masoquismo é apresentado como o sofrimento de uma
tal transmutação. Todo animal sofre quando seus órgãos deixam de ser animais.
Retomando uma expressão de Goethe, Masoch não pára de dizer: Eu sou o ultra-
sensualista, e até mesmo o ultra-sentimental4.
A segunda característica do masoquismo, ainda mais oposta ao sadismo, é o
gosto pelo contrato, o extraordinário apetite contratual. O masoquismo deve ser definido
por suas características formais, e não por seu conteúdo dito dolorígeno5. Ora, de todas
as características formais, não há nenhuma mais importante do que o contrato. Não há
masoquismo sem contrato com a mulher. Mas o essencial, justamente, é que o contrato
se encontra projetado na relação do homem com uma mulher dominadora.
Normalmente, o contrato tem uma função que depende estreitamente das sociedades
patriarcais: ele é feito para exprimir e mesmo justificar o que há de não material, de
espiritual ou de instituído nas relações de autoridade e de associação tais que se
estabelecem entre homens, inclusive entre pais e filhos. Mas o vínculo material e
ctônico6 que nos une à mulher, que une a criança à mãe, parece por natureza rebelde à
expressão contratual. Quando uma mulher entra em um contrato, o faz “indo em
direção” aos homens, reconhecendo sua dependência no seio da sociedade patriarcal.
Ora, no contrato de Masoch, isso tudo é derrubado: o contrato exprime aqui a
predominância material da mulher e a superioridade do princípio materno. Perguntar-se-
á sobre a intenção masoquista que determina essa derrubada, essa projeção. Tanto mais
que o masoquista também transpõe o movimento pelo qual o contrato, quando se supõe
que funde uma sociedade viril, evolui no tempo. Pois todo contrato, no sentido preciso
da palavra, exige a limitação temporal, a não intervenção de terceiros, a exclusão de
certas propriedades inalienáveis (por exemplo, a vida). Mas não há sociedade que possa
se conservar sem postular sua própria eternidade, sem fazer valer seu império sobre
terceiros que não passaram pelo contrato, e sem se dar um direito de morte sobre seus
súditos. Este movimento se encontra e se acentua no contrato masoquista com a mulher.
O contrato de Masoch, se necessário, prevê um limite de tempo no absoluto; mas a
mulher é livre para fazer durar este tempo dividindo-o em fatias. Uma cláusula acessória
e secreta lhe dá o direito de morte. E o lugar do terceiro estará reservado, por uma hábil
4 Todos os temas, precedentes e seguintes, encontram ilustração em A Vênus das peles (tr. fr. Ed. Arcanes,
1952). 5 No original, dolorigène. Neologismo deuleuziano significando ‘que gera dor’. (N.T.) 6 Termo grego que se refere ao mundo subterrâneo; em latim traduzido por telúrico. (N.T.)
Gilles Deleuze
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 94-105, 2017 97
precaução jurídica. A mulher é como o Príncipe absoluto, que mantém e multiplica os
seus direitos; o masoquista, como seu súdito que perde efetivamente todos os seus.
Tudo se passa como se o culturalismo de Masoch fosse ainda mais jurídico do que
estético. O masoquismo não pode se separar do contrato, mas ao mesmo tempo que o
projeta sobre a mulher dominadora, ele o leva ao extremo, desmonta suas engrenagens
e, talvez, o torna risível.
O contrato de Masoch, em terceiro lugar, só se compreende sob perspectivas
históricas estranhas. Masoch faz alusão frequentemente a uma época da bela Natureza, a
um mundo arcaico presidido por Vênus-Afrodite, onde a relação fugitiva da mulher e do
homem tem por única lei o prazer entre parceiros iguais. As heroínas de Masoch não
têm uma natureza sádica, mas, dizem elas, uma natureza pagã, antiga e heróica. Mas a
bela natureza fora desequilibrada por uma catástrofe climática ou um desastre glacial.
Então, a lei natural se recolhe no seio materno, como no princípio feminino que guarda
um pouco de calor. Os homens se tornam “as crianças da reflexão”. Em seu esforço na
direção de uma espiritualidade autônoma, os homens perderam a natureza ou a Alma:
“Quando você é natural, se torna grosseiro”7. As peles com as quais as mulheres de
Masoch se envolvem têm múltiplos sentidos, mas o primeiro desses sentidos é que elas
têm frio em um ambiente glacial. As heroínas de Masoch, enfiadas em seus casacos de
pele, espirram constantemente. A interpretação da pele como imagem paterna é
singularmente desprovida de fundamento: a pele é antes de tudo símbolo diretamente
materno, indicando a dobradura da lei dentro do princípio feminino, a mater Natura
ameaçada pela ambição de seus filhos. O urso é o animal de Artemis, o urso peludo é a
Mãe, a pele é o troféu materno. Assim, nesse recolhimento, a lei da Natureza se torna
terrível: o casaco de pele é a pele da mãe déspota e devoradora instaurando a ordem
ginecocrática. Masoch sonha com que a mulher amada se transforme em urso, o sufoque
e o rasgue. As divindades femininas, ctônicas e lunares, as grandes caçadoras, as
potentes Amazonas, as cortesãs reinantes, testemunham o rigor dessa lei de natureza
idêntica ao princípio materno. Em O Legado de Caim, é preciso compreender o filho
primogênito, o agricultor, o preferido da mãe, como uma imagem material da própria
Mãe que vai até ao crime para quebrar a aliança espiritual do Pai com o outro filho, com
o pastor. Mas o triunfo final do princípio paterno, viril ou glacial, significa o
recalcamento da Anima, o acontecimento de uma nova lei, a instituição de um mundo
7 Deleuze cita trechos de A Vênus das peles. (N.T.)
De Sacher-Masoch ao masoquismo
98 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 94-105, 2017
onde as alianças espirituais prevalecem sobre o vínculo materno do sangue, mundo
romano, e depois cristão, no qual Vênus não tem mais lugar: “Vênus, que em nosso
Norte abstrato, nesse mundo cristão gelado, deve se envolver em um grande e pesado
casaco de pele a fim de não se resfriar”. “Permaneçam em seus enevoados hiperbóreos,
no meio de seu incenso cristão; nos deixem, nós pagãos, sob nossas ruínas; nos deixem
repousar sob a lava, não nos desenterrem... Vocês não precisam de deuses, nós
congelamos no seu mundo. ”
Apaixonadas, simplificadas e romanceadas, reconhece-se as célebres teses de
Bachofen8 no que diz respeito a três estados na humanidade: o heterismo primitivo9, a
ginecocracia e o patriarcado. A influência de Bachofen é inegável, e explica a ambição
de Masoch de escrever uma história natural da humanidade. Mas o que é propriamente
masoquista é a fantasia regressiva pela qual Masoch sonha em se servir do próprio
patriarcado para restaurar a ginecocracia, e da ginecocracia para restaurar o comunismo
primitivo. Aquele que desenterra a Anima saberá tirar proveito das estruturas patriarcais
e reencontrar a potência da Mãe devoradora. Em A Czarina Negra, Masoch conta a
história de uma prisioneira amada pelo Czar no ano de 900: ela caça o urso peludo e
toma para si seu troféu, organiza um regimento de amazonas, mata os boiardos10 e
manda decapitar o czar por uma negra. Um homem da comuna, um “comunista”, parece
ser a meta distante de sua ação11. Em Sabathai Sweg, um messias se casa pela terceira
vez com uma mulher que o rejeita. O sultão quer que o casamento se consume; a mulher
flagela seu marido, o coroa com espinhos, consuma o casamento e lhe diz: “fiz de você
um homem, você não é o messias”12. Sempre com Masoch, o homem verdadeiro sairá
dos rigores de uma ginecocracia restaurada, assim como a mulher potente e sua
restauração sairá das estruturas de um patriarcado desviado. Na fantasia regressiva, a
relação doméstica, a relação conjugal, a própria relação contratual, se dão em benefício
da Mulher terrível ou da Mãe devoradora.
8 Cf. Bachofen, Das Mutterrecht. (As páginas escolhidas de Bachofen foram traduzidas para o francês por
Turel, éd. Alcan, 1938). Sobre temas análogos, Pierre Gordon escreveu recentemente um lindo livro,
L’Initiation sexuelle et l’évolution religieuse (PUF, 1946). 9 Característica de sociedades onde inexiste a instituição do casamento e é natural a liberdade sexual entre
seus membros. (N.T.) 10 Aristocratas e latifundiários da Rússia até a Revolução de 1917. (N.T.) 11 Sobre o “comunismo” visto por Masoch, cf. O paraíso do Dniestre. 12 Sabathai Zweg (Sabathai Cevi) foi um dos mais importantes Messias que comoveram a Europa no
século XVII. Numerosos Messias apareceram na Galícia nos séculos XVII e XVIII. Cf. Graetz, Histoire
des Juifs, tomo V.
Gilles Deleuze
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 94-105, 2017 99
Desde então, parece muito duvidoso que a imagem do Pai, no masoquismo,
tenha o papel que Freud lhe confere. A psicanálise freudiana em geral sofre de uma
inflação do pai. No caso particular do masoquismo, é-se convidado a uma
impressionante ginástica para explicar como a imagem do Pai é antes interiorizada no
supereu, e em seguida re-exteriorizada em uma imagem de mulher13.
Tudo se passa como se as interpretações freudianas, frequentemente, somente
atingissem as camadas mais superficiais e mais individualizadas do inconsciente. Elas
não penetram nessas dimensões profundas onde a imagem da Mãe reina por conta
própria, sem dever nada à influência do pai. O mesmo vale para a unidade do sadismo e
do masoquismo: se apoiando sobre o papel do pai, elas se dissipam para além das
primeiras espessuras do inconsciente. Que existam camadas do inconsciente muito
diferentes, de origem e valor desiguais, suscitando regressões que diferem em natureza,
tendo entre elas relações de oposição, de compensação e de reorganização: este
princípio caro a Jung não foi reconhecido por Freud, porque este reduzia o inconsciente
ao simples fato de desejar. Acontece que se assiste a alianças da consciência com as
camadas superficiais do inconsciente, e isto para manter em xeque o inconsciente mais
profundo que nos envolve por um vínculo de sangue.
Também no inconsciente há coisas que são somente aparências. Freud contudo o
pressentia, quando descobriu para além do inconsciente propriamente objetal a
existência de um inconsciente de identificação. Ora, essa imagem que domina no
inconsciente do ponto de vista das relações objetais pode perder todo valor ou significar
outra coisa nas regiões mais profundas. Muitas neuroses parecem fixadas no pai, mas
são trabalhadas e destruídas por uma imagem de mãe tanto mais potente quanto ela não
está investida no inconsciente superficial. Em regra geral, os personagens dominantes
mudam segundo o nível de análise ao qual se chega: desconfiemos daqueles em quem a
análise revela numa primeira aproximação uma imagem de mãe inativa, apagada ou
mesmo depreciada. No masoquismo, é provável que a figura do pai seja apenas
13 A psicanálise também tenta elucidar este problema que ela mesma suscitou: o objeto feminino não o
seria de fato, pois que é adornado de ‘qualidades viris’. O masoquismo seria assim um tipo de
compromisso, pelo qual ele fugiria de uma escolha homossexual demasiado manifesta. Cf. Freud, ‘Bate-
se numa criança’, Revue Fr. Psych., VI ; Nacht, Le Masochisme, éd. Payot, p. 186 (Reik, Masochismus
und Gesellschaft). Toda dificuldade vem de que a psicanálise, contra toda evidência, primeiramente
postulou que a Mãe devoradora, o casaco de pele, o chicote etc. eram imagens do pai. Reik: “Cada vez
que tivemos a possibilidade de estudar um caso particular, encontramos o pai ou seu delegado oculto sob
a imagem da mulher infligindo o castigo.” (p.27). No entanto, no mesmo livro, Reik tem dúvidas a este
respeito recorrentemente, notadamente nas páginas 187-189. Mas ele não tira dessas dúvidas nenhuma
conseqüência.
De Sacher-Masoch ao masoquismo
100 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 94-105, 2017
aparentemente invasiva, simples meio para uma finalidade mais profunda, simples etapa
em uma regressão mais longínqua onde se poderá ver todas as determinações paternas
virarem em proveito da Mãe.
Nos perguntamos: por quê o masoquismo projeta o contrato em sua relação com
uma mulher dominadora? É que, mais profundamente, a aplicação da lei paterna é assim
recolocada nas mãos da Mulher ou da Mãe. Desta transferência, o masoquista consegue
isto: que a lei lhe dê precisamente o prazer que se esperava que ela interditaria. Pois este
prazer que a lei paterna proíbe, ele o experimentará pela lei, desde que a lei, em todo o
seu rigor, lhe seja aplicada pela mulher. Por detrás das primeiras aparências, descobre-
se uma característica real do masoquismo: de fato, sua extrema submissão significa que
ele torna risível o pai e a lei paterna. Reik escreveu um dos melhores livros sobre o
masoquismo; é que, para determinar sua essência, ele partia de características formais.
Ele distinguia quatro: a importância primordial da fantasia como preliminar
indispensável ao exercício masoquista; o fator suspensivo onde o prazer final é ao
máximo rejeitado, substituído por uma espera que controla e dissolve a ansiedade; o
traço demonstrativo, exibição invertida propriamente masoquista; o fator de provocação
no qual o masoquista “força uma outra pessoa a forçá-lo”. É estranho que Reik não
tenha levado em conta o contrato. Mas o estudo dos fatores precedentes o levou a
concluir que o masoquista não tinha de modo algum uma personalidade fraca e
submissa, sonhando com o aniquilamento de si mesmo: o desafio, a vingança, o
sarcasmo, a sabotagem e a zombaria lhe pareciam todos traços constitutivos do
masoquismo14. O masoquismo se serve da lei do pai para obter precisamente o prazer
que esta proíbe. Temos numerosos exemplos de desvio da lei por submissão fingida ou
mesmo exagerada. Por exemplo, a lei que proíbe que a criança fume pode ocorrer em
lugares escondidos e malditos, onde dificilmente ela se aplica; mas a criança pode fazer
como se a lei se aplicasse por si só, ordenando-lhe que fume nesses lugares e em mais
nenhum. De forma geral, há duas maneiras de interpretar a operação pela qual a lei nos
separa de um prazer: ou bem pensamos que ela o rejeita e o afasta uniformemente, de
modo que somente obteremos o prazer pela destruição da lei (sadismo); ou bem
pensamos que a lei tomou para si o prazer, o guardou para si; é portanto esposando a lei,
submetendo-nos escrupulosamente à lei e a suas consequências que experimentaremos o
prazer que ela nos proíbe. O masoquismo vai mais longe: é a execução da punição que
14 Reik, p. 132-152.
Gilles Deleuze
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 94-105, 2017 101
se torna primeira e nos introduz no prazer proibido. “A inversão no tempo indica uma
inversão do conteúdo... O Tu não deves fazer isso... Uma demonstração do absurdo da
punição é obtido monstrando-se que essa punição por um prazer proibido produz
precisamente esse mesmo prazer.”15 “Ele exibe o castigo e sua falência.”16 A mesma lei
que me proíbe de realizar um desejo sob pena de uma conseqüente punição é agora uma
lei que põe a punição primeiro e me ordena por conseguinte que eu satisfaça o desejo:
há aí uma forma de humor propriamente masoquista.
A tese de Reik tem a vantagem de abrir mão de explicar o masoquismo pelo
desejo de ser punido. Certo, o desejo de ser punido intervém; mas é impossível
confundir a satisfação deste desejo com o prazer sexual provado pelo masoquista. O
masoquista, segundo Reik, é aquele que somente consegue provar o prazer a partir da
punição: não é dizer que ele encontra seu prazer (senão um prazer secundário) na
própria punição. É dizer somente que a punição serve de condição indispensável para o
prazer sexual primário. Longe de explicar o masoquismo, o desejo de ser punido o
supõe, e envia ele próprio a um benefício derivado17. Todavia, Reik é menos
convincente quando tenta explicar por quê e como a punição serve assim de condição
para o prazer. Ele pensa que ela tem por papel dinâmico resolver a angústia ou dominá-
la18. Esta referência indireta ao sentimento de culpa não nos ajuda quase nada: qualquer
que seja sua real diferença em relação à teoria do desejo de ser punido, esta concepção
propõe uma explicação funcional que não leva em conta as características “tópicas” do
masoquismo. Permanece a questão: como (em quais circunstâncias tópicas) a punição
preenche esta função de resolver a angústia?
Se a punição masoquista se torna uma condição do prazer sexual, não é porque
ela resolva a angústia, mas porque ela passa para a mãe a incumbência de “castigar”
uma falta cometida para com o pai. Ou, se preferirmos, é por esse deslocamento que a
punição resolve efetivamente a angústia. O erro de Reik nos parece ser ainda o de se
ater à imagem aparente do pai e de não avaliar a importância da projeção sobre a mulher
ou da regressão à mãe. Assim, ele desconhece a verdadeira natureza da zombaria
masoquista. Se o pai é ridicularizado, se a lei paterna é ela própria revirada, é graças à
15 Reik, p.137. 16 Reik, p.134. 17 Reik: “A punição ou a humilhação precedem a satisfação... Porque para o masoquista o prazer segue o
sofrimento, parecia evidente que o sofrimento fosse a causa do prazer” (p. 238-242); “O masoquista tira
seu prazer das mesmas coisas que nós todos, mas ele não consegue adquiri-lo antes de ter sofrido. ” (p.
356). 18 Reik, p. 122-123. Sobre o papel da angústia no masoquismo, cf. igualmente Nacht, Le Masochisme.
De Sacher-Masoch ao masoquismo
102 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 94-105, 2017
projeção do contrato, na medida em que é feita uma regressão na direção da mãe, na
qual a aplicação da lei paterna aparece simbolicamente posta nas mãos da mulher. No
entanto, à primeira vista, não se vê o que há de alívio em um tal deslocamento: não há
nenhuma razão para contar, em geral, com uma indulgência maior da Mãe devoradora.
Mas devemos considerar que a lei paterna enquanto tal interdita o incesto com a mãe.
Como mostrou Jung, o incesto significa um segundo nascimento, isto é, um nascimento
heróico, uma partogênese (entrar uma segunda vez no seio materno para nascer de novo
ou se re-parir)19. Se o pai interdita o incesto, não é porque a mulher ficaria feliz com ele,
mas porque o segundo nascimento se faria sem o pai. Ora, é claro que a Mãe não tem as
mesmas razões de interditar o incesto ou de castigar seu desejo: a lei materna exige que
o filho abandone todos os atributos do pai, mas o exige como condição do incesto e de
seu sucesso. É porque a Mãe não é devoradora somente enquanto sua imagem é
recalcada, mas o é nela mesma e por ela mesma. Ela impõe ao filho terríveis provações,
a fim de que ele renasça homem somente através ela: assim a castração de Attis sobre
Osíris, ser engolido por um dragão-baleia ou por um peixe guloso, a mordida por uma
serpente, a suspensão na árvore materna, todos esses símbolos de retorno à Mãe
significam a necessidade de sacrificar a sexualidade genital herdada do pai, para obter o
renascimento que nos dotará de uma virilidade nova e independente. Assim, Hércules é
afeminado por Ônfale; Osíris acasala com Isis, mas como uma sombra: sempre o
incesto é concebido como um retorno à sexualidade pré-genital. Vemos que sobre um
ponto (a castração), a lei materna e a lei paterna apresentam uma estranha coincidência.
Mas o que do ponto de vista do pai é uma ameaça impedindo o incesto ou uma punição
o sancionando, é, ao contrário, do ponto de vista da mãe, uma condição que o torna
possível e que lhe assegura o sucesso20. É portanto a regressão à Mãe que explica como
a lei paterna é invertida tanto no tempo como em seu conteúdo.
Quando o masoquista, em virtude dessa coincidência, projeta sobre a imagem da
Mãe a aplicação da lei paterna e a execução da punição, duas conseqüências se seguem:
19 Jung, Metamorfoses da alma e seus símbolos, II, caps. 4 e 5. 20 De fato, a certeza de sucesso não é assim tão grande quanto estamos dizendo. Freqüentemente o herói
não será reconstituído completamente, ou até mesmo permanecerá engolido pela mãe: a Mãe terrível se
impõe então à Mãe de vida. Mas é preciso ver nisso um estágio de degradação do mito? Parece antes que
o mito, e também a neurose, tal como o veremos, apresentam dois aspectos segundo o que é acentuado, se
a regressão perigosa ou a progressão que pode dela emergir. O terceiro, na experiência do contrato
masoquista, parece ser uma projeção da saída bem sucedida, ou do sucesso final, isto é, do novo homem
que surge dos sofrimentos e das mutilações. Mas justamente à medida em que esta saída não é certa e em
que a regressão é acentuada, o terceiro deforma a meta final: ele então representa uma vingança do pai
ridicularizado, uma reaparição do pai sob a forma sádica, que reage tanto contra a mãe quanto contra o
filho.
Gilles Deleuze
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 94-105, 2017 103
a lei materna é reforçada e como que reavivada, porque ela vira em seu proveito todas
as armas do pai; a lei paterna é ridicularizada, porque ela acaba precisamente por nos
dar o prazer que se propunha a nos interditar. Freud distinguia três tipos de
masoquismos, cada vez mais profundos21: o masoquismo moral, correspondente ao
desejo de ser punido; o masoquismo feminino, correspondente à atitude passiva e
mesmo às satisfações pré-genitais; o masoquismo erógeno, correspondente à associação
de sofrimento e prazer sexual. Mas o desejo de ser punido, no masoquismo, não é
separável de uma tentativa de desviar a autoridade paterna; essa tentativa, não separável
da transferência à mãe que nos dá um prazer incestuoso pré-genital; esse prazer, ele
próprio não separável de uma provação ou de um sacrifício doloroso, como condição do
sucesso do incesto, isto é, do renascimento. A fantasia masoquista remonta da imagem
do pai à da mãe, e desta ao “homem da comuna”; ela comporta também o tema das duas
Mães, que simboliza o duplo nascimento22. É a imagem da Mãe, é a regressão a essa
imagem que é constitutiva do masoquismo e forma sua unidade. À condição de
interpretar essa imagem originária à maneira de Jung, como um arquétipo das camadas
profundas do inconsciente. O problema do masoquismo fora complicado singularmente
porque começou-se por retirar da mulher certas características que pertenciam à imagem
materna, para então se surpreender que ela as recebesse de fora: aí como em outros
lugares, fazendo da imagem algo de compósito, suprimia-se da imagem seu poder
diretor e compreensivo.
Quando Freud descobrira um masoquismo primário, proporcionara à análise um
grande progresso, pois que renunciava a derivar o masoquismo do sadismo. É verdade
que a derivação inversa não é mais convincente: o masoquista e o sádico não têm mais
chances de se reunir em um mesmo indivíduo, do que de se encontrar no mundo
exterior, contrariamente ao que desejaria uma história engraçada. Por outro lado, a
explicação que Freud dá ao masoquismo primário, a partir do instinto de morte23,
mostrava ainda que ele não acreditava em símbolos ou em Imagens enquanto tais. É
21 Freud, “O problema econômico do masoquismo”, Revue Fr. Psych. II, 1928. 22 Freqüentemente essa segunda mãe é uma besta, um animal de peles. No caso do próprio Masoch, é uma
de suas tias que exercera o papel de segunda mãe: Masoch criança se esconde em um armário com
casacos de pele, para espiá-la (“Choses vécues”, Revue Bleue, Paris, 1888). O episódio é transposto em A
Vênus das peles. Do mesmo modo, os ritos de suspensão têm um grande papel em Masoch e no
masoquismo, papel análogo ao que eles exercem nos mitos incestuosos do segundo nascimento. Cf. o que
Reik chama o “fator suspensivo”. 23 Optamos por manter o termo utilizado por Deleuze, instinct de mort, ao invés de ‘corrigi-lo’ por
‘pulsão’, inclusive pelo fato de ulteriormente o próprio Deleuze aproveitar esta questão de tradução para
tornar os dois termos conceitos distintos em sua própria teoria, atribuindo a instinto um caráter
transcendental ou virtual e às pulsões um caráter empírico ou atual. (N. T.)
De Sacher-Masoch ao masoquismo
104 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 94-105, 2017
uma tendência geral do freudismo dissolver as Imagens, fazer delas algo de compósito
remetendo por um lado a eventos reais, por outro a desejos ou instintos irredutíveis que
não são jamais “simbolizantes” por sua conta. Assim, segundo Freud, “o sexual não é
nunca símbolo”; e no instinto de morte, trata-se de uma morte real e de um instinto
irredutível que é retorno à matéria. No entanto Freud reconhecia que a única natureza do
instinto consiste na regressão, e a única diferença entre os instintos (por exemplo, de
vida e de morte), no término da regressão24. Faltava-lhe apreender o papel das imagens
originárias: elas não se explicam por outra coisa que não elas, ao contrário elas são ao
mesmo tempo o término das regressões, o princípio de interpretação dos próprios
acontecimentos. Os símbolos não se deixam reduzir nem compor; ao contrário, são a
regra última para a composição dos desejos e de seu objeto, eles formam os únicos
dados irredutíveis do inconsciente. O dado irredutível do inconsciente, é o próprio
símbolo, e não um simbolizado último. Na verdade, tudo é símbolo no inconsciente: a
sexualidade, a morte, não menos que o restante. A morte deve ser compreendida como
uma morte simbólica, e o retorno à matéria, como um retorno à morte simbólica. Os
instintos são somente as percepções internas das Imagens originárias, apreendidas lá
onde elas estão, nas diversas espessuras do inconsciente25. O masoquismo é a percepção
da imagem materna ou da mãe devoradora; ele faz os desvios e o caminho necessários
para percebê-la lá onde ela está. O que importa é que este caminho não seja perdido.
Existe sempre uma verdade das neuroses ou dos distúrbios enquanto tais. O problema
do tratamento não é dissolver os símbolos para substituí-los por uma justa apreensão do
real, mas, ao contrário, de aproveitar o que há de surreal neles para dar aos elementos
negligenciados de nossa personalidade o desenvolvimento que eles reclamam. Toda
neurose tem duas faces. No masoquismo, a regressão à Mãe é como o protesto
patológico de uma parte de nós mesmos esmagada pela lei; mas também as
possibilidades de uma progressão compensatória ou normativa dessa mesma parte,
como deixa-se perceber na fantasia masoquista de renascimento. Faz parte do
tratamento, nesse como nos outros casos, “dar razão ao doente”, em conformidade com
24 Cf. Freud, Para além do princípio do prazer. 25 Notemos que enquanto nesse texto de 1961, Deleuze utiliza Jung, em sua versão que publicará como
Apresentação de Sacher-Masoch a influência junguiana é elidida. No entanto, parece claro aqui que
Deleuze se serve dos conceitos de Imagem originária e símbolo de Jung, lendo-os sob a ótica do que virá
a ser sua leitura do estruturalismo e seus próprios conceitos de virtual e transcendental, posteriormente
retirados de Bergson e Kant. (N.T.)
Gilles Deleuze
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 94-105, 2017 105
a verdade de seu distúrbio, isto é, atualizar as possibilidades da neurose reintegrando-as
no todo de sua personalidade26.
Recebido em: 10/05/2017
Aprovado em: 05/06/2017
26 Sobre Freud e Jung. Todos esses pontos remetem em geral às diferenças entre Freud e Jung. Para bem
compreender essas diferenças essenciais, seria necessário considerar que os dois autores não retiveram o
mesmo material clínico. Os primeiros conceitos freudianos (por exemplo, o recalque) são cunhados na
moeda da histeria. E o serão sempre, embora Freud com genialidade tenha sentido a necessidade de
remanejá-los em função dos outros casos que cada vez mais aprofundou (obsessão, angústia, etc....).
Todavia, os métodos freudianos cabem, sobretudo, para a abordagem dos neuróticos jovens cujos
distúrbios ainda se remetem a reminiscências pessoais e cujo problema, qualquer que seja o papel dos
conflitos interiores, é o de se reconciliar com o real (amar, se fazer amar, se adaptar, etc.). Mas há
neuroses de um tipo inteiramente outro, próximas da psicose. Neuróticos adultos, esmagados por
‘Imagens’ que ultrapassam toda experiência; o problema deles é o de se reconciliar consigo mesmos, isto
é, de reintegrar em sua personalidade as partes de si mesmos cujo desenvolvimento eles negligenciaram,
que estão como que alienadas nas Imagens de onde elas extraem uma perigosa vida autônoma. Em
relação a essas Imagens primordiais, o método analítico de Freud não convém mais. Irredutíveis, a elas
cabe serem abordadas por um método sintético que busca para além da experiência do sujeito a verdade
da neurose, e, nessa verdade, as possibilidades de uma assimilação pessoal de seu conteúdo pelo próprio
sujeito. Jung pode portanto criticar Freud por este não ter descoberto nem os verdadeiros perigos
presentes em uma neurose, nem os tesouros que ela continha. Freud, diz ele, tem sobre as neuroses um
ponto de vista depreciativo: “não é nada senão...” Segundo Jung, ao contrário, “na neurose reside nosso
mais tenaz inimigo ou nosso melhor amigo” (cf. Correspondência com Loy, 1930, em A cura
psicológica). Não está excluído que, até certo ponto, caiba para uma neurose uma interpretação freudiana,
esta interpretação perdendo sua pertinência à medida em que se penetra nas camadas mais profundas do
inconsciente, ou mesmo à medida em que ela se desenvolve, se transforma ou se reanima com a idade.
106 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, 2017
Resenha
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1 p. 107-109, 2017 107
Resenha sobre o Camus de L. Bove
BOVE, Laurent. Albert Camus, de la transfiguration: pour une expérimentation vitale de
l’immanence. Col. La Philosophie à l’œuvre. Paris: Publications de la Sorbonne, 2014,
168 p.
Danilo Bilate*
A ainda recente publicação de Laurent Bove Albert Camus, de la transfiguration
é um belo livro. Como outros trabalhos do mesmo autor, a leitura é extremamente
prazerosa, seja pelo estilo agradável e claro,1 seja pela coerência da argumentação aliada
à formidável capacidade de problematização filosófica e à postura teórica
apaixonadamente vinculada à vida. No que se refere a esse último ponto, aliás, é preciso
dizer que o subtítulo do livro é certamente mais elucidativo sobre seu teor do que
propriamente o título – fora evidentemente a referência inevitável a Camus –; trata-se de
uma experimentação vital da imanência e me arrisco a dizer que tal experimentação é, em
verdade, de Bove, a usar amorosamente Camus como instrumento, invejável instrumento,
mas não muito mais do que isso. Que não se queira concluir daí que a obra não sirva como
auxílio para a compreensão do pensamento camusiano, é claro. O que digo é apenas que
a sua interpretação não pretende se prender à verdade do texto, sendo antes, para repetir
a expressão, uma experimentação vital com o texto, como deveria ser a meu ver toda
interpretação filosófica, donde se explica este parágrafo já enfadonho de tão elogioso.
Passemos então à abordagem tradicional esperada de uma resenha, ainda que
muito e propositadamente sucinta. O absurdo da existência humana é tema já abordado
desde a introdução que o circunscreve à “imanência radical” (p.8) ou à “presença
imanente da luz das coisas em um mundo privado de transcendência” e “inseparável da
flama devorante da sua morte” (p.7). Esse tema já tão banalizado e, portanto, prestigiado
e desvalorizado pelo mesmo prestígio, central no pensamento do “Camus autor, escritor-
filósofo” (p.8) recebe aqui a atenção devida. Como com Meursault, que “se sentirá para
sempre indiferente e inocente” – esses dois afetos próprios à toda sabedoria –, o homem
* Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da UFRRJ. 1 Apesar de raros momentos de obscuridade estilística, como a lamentável linguagem deleuzo-
heideggeriana da página 103.
Danilo Bilate
108 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1 p. 107-109, 2017
do absurdo deixa-se “atravessar pela morte” (p.11), constituindo, segundo Bove, a
“positividade ética imanentista que, ainda que explicitamente (e metafisicamente)
recusada por Camus, insistirá no entanto ao longo de sua obra, se misturando de modo
mais ou menos intenso às reflexões morais sobre a revolta até investir totalmente seu
campo com o tema ontológico-político da ‘transfiguração’” (pp.13-14). Tema ou temas
(o ético-ontológico do amor indiferente e o ético-político da revolta) que Bove afirma
constituir o objeto principal de seu livro e, de fato, assim o é, refletindo na estrutura do
texto, com duas partes para cada tema mais geral.
A primeira parte é dedicada precisamente a Meursault e trata dessa “ética da
simpatia e do amor” dependente da “metafísica da imanência” (p.20) e da “filosofia da
pura afirmação, próxima do epicurismo” (p.24) que Bove, de forma mais densa e
detalhada, descreve assim:
Será preciso ir até o ponto de limpar o desejo humano da ilusão do Um, do Ser, do Todo,
da Mãe unificadora. Será preciso liberar a vida de uma tal falta, de uma tal exigência de
unidade, de ordem, de sentido, para ascender à doçura da plenitude no coração mesmo da
dispersão. É para além do absurdo (da contradição vivida do desejo de unidade e da
irracionalidade do mundo – e só há irracionalidade do mundo em função desse desejo)
que Meursault – do seio das coordenações e das disjunções que são, com o acaso dos
encontros que elas supõem, a natureza mesma das coisas – afirma de fato uma sabedoria
da fraternidade do diverso (p.34).
Para Bove, Camus defenderia uma fraternidade amorosa, extremamente próxima
do evangelho aliás, que independe da fantasia do Um como união imaginária a justificar
a compaixão pela identificação com o outro. Tal amor fraterno se daria como a aparente
contradição do amor pelo diferente por indiferença salutar que nos afasta dos afetos
reativos ou ressentidos causadores da violência e da desumanização pela exploração:
“Um amor sem memória nem projeto, sem fantasia nem interpretação, sem identificação
nem possessão, sem transferência nem neurose... Eterno no presente e no entanto
necessariamente limitado e moral: um amor trágico” (p.40). Amor trágico porque
incondicional e incondicional por ser amor pela vida, modo de afetar-se positiva e
alegremente pelo todo da multiplicidade, pelo Um das diferenças. Amor não outro senão
o amor por si mesmo, que voltado para si ou para outrem, é amor pelo mundo, pelo
destino, pelo o que é: “Verdade do amor da mãe, verdade de todo amor da vida, esse pelo
qual nós amamos os outros com o mesmo amor ‘indiferente’ pelo qual nos amamos”
(p.48).
Resenha sobre o Camus de L. Bove
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1 p. 107-109, 2017 109
Mas então como amar o terror? Talvez tenha sido uma questão parecida que tenha
feito Bove escrever uma segunda e última parte para seu livro. Parte que aborda as
questões ético-políticas imbricadas ao pensamento precedentemente exposto. Afinal,
diante do horrendo, o que resta àquele que ama incondicionalmente? A revolta. Revolta
que nasce do amor pelo homem. Revolta amorosa, portanto, contra a “animalização” ou
esse “modelo do homem de aparelho” que preso às suas funções e “surdo ao diálogo
humano” constitui o terror mesmo (p.85).
Revolta não imatura, contudo. Refletida, consciente de si, revolta que gera a
resistência como a única ação política possível a quem ama: “uma resistência afirmativa
realmente ativa, constituinte de história e radicalmente livre de uma lógica mortífera de
dominação” (p.89). Revolta amorosa que resiste na liberdade, ativamente como criação
de si mesmo e, pela fraternidade, como criação amigável com o outro: “A revolta (e a
resistência que lhe é fiel) apaga, portanto, a ilusão do sujeito (autônomo ou independente)
em um movimento real de identificação solidária que é uma verdadeira criação de ser e
de ser-com” (pp.118-119).
Com a experimentação vital da imanência à qual somos convidados por Bove (e
por Camus), fica essa pergunta dolorosa a nós, homens de boa vontade: neste mundo tão
sofrível, de que forma resistir? Aqui o livro se encerra e o presente se abre – a nós.
Recebido em: 08/04/2017
Aprovado em: 20/04/2017