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Rio de Janeiro 2017, v. 10, nº 1 ISSN 1982-5870

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Rio de Janeiro

2017, v. 10, nº 1

ISSN 1982-5870

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Publicação do Grupo de Pesquisas Spinoza & Nietzsche: estudos de filosofia da imanência

(SpiN) e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de

Janeiro (PPGF-UFRJ).

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Reitor Roberto Leher

Vice-Reitora Denise Fernandes Lopez Nascimento

Pró-Reitora de Pós-Graduação Leila Rodrigues da Silva

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS (IFCS)

Diretor Marco Aurélio Santana

Departamento de Filosofia

Chefe Antônio Saturnino Braga

Coord. do Prog. de Pós-graduação em Filosofia Rafael Haddock-Lobo

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Editor Responsável / Editor-in-Chief

André Martins (UFRJ)

Editores Adjuntos / Associated Editors

Danilo Bilate (UFRRJ), Luiza Regattieri (UFRJ)

Comissão Editorial / Associated Editors

Ana Claudia Gama Barreto (UFRJ), Antônio Augusto Madureira de Pinho (UERJ), Armando

Turbae Junior (UFRJ), Djalma Lopes da Silva (IFFluminense), Leo Moreira Lima (UFRJ),

Mariana de Toledo Barbosa (UFF), Sidharta Mendes Monteiro (UFRJ)

Conselho Científico / Scientific Advisors

Antônio Edmilson Paschoal (UFPR), Bertrand Binoche (Université de Paris I – Panthéon-

Sorbonne), Clademir Araldi (UFPEL), Ernani Chaves (UFPA), Gilvan Fogel (UFRJ),

Guillaume Sibertin-Blanc (Université de Toulouse – Le Mirail), João Constâncio

(Universidade Nova de Lisboa), Maurício Rocha (PUC-RJ), Miguel Angel de Barrenechea

(UNIRIO), Olímpio José Pimenta Neto (UFOP), Oswaldo Giacoia Jr (Unicamp), Rosa Maria

Dias (UERJ), Sandro Kobol Fornazari (UNIFESP), Scarlett Marton (USP), Tereza Cristina B.

Calomeni (UFF), Vania Dutra de Azeredo (PUC-Campinas)

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Sumário

Editorial 6

Artigos

Nietzsche e a ideia do professor como um “mal necessário” 8

Djalma Lopes da Silva

Contribuições de Nietzsche para uma concepção artística de educação 24

Adriany Ferreira de Mendonça & Alexandre Ferreira de Mendonça

Arte e saúde em Nietzsche 42

Carlos Roger Sales da Ponte

Para além da lei moral: morte de Deus e gratuidade de Feuerbach a Sartre 60

Paolo Stellino

Negatividade e produção: elementos para uma teoria do desejo em Deleuze 73

André Dias de Andrade

Tradução

De Sacher-Masoch ao masoquismo 94

Gilles Deleuze

Resenha

Resenha sobre o Camus de L. Bove 107

Danilo Bilate

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6 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, 2017

Editorial

Editorial

Abrimos, com esta primeira edição de 2017, o décimo volume da Revista Trágica

que traz preciosas contribuições de pesquisadores do Brasil e Portugal reunindo textos

sobre diferentes autores, dentro de uma perspectiva da imanência.

Esta seção Varia se inicia com dois trabalhos cuja temática central é a educação

em Nietzsche: Djalma Lopes (IFFluminense) expõe a crítica nietzschiana aos

estabelecimentos de ensino da época e reflete sobre a afirmação feita por Nietzsche de

que o professor seria um mal necessário; Adriany Mendonça (UFRJ) e Alexandre

Mendonça (UERJ) discutem as possíveis contribuições do pensamento de Nietzsche para

a problematização de nossas práticas pedagógicas e levantam elementos para esboçar uma

concepção artística da educação.

Em um segundo momento os artigos variam de temática: Carlos Roger Sales

(UFC) disserta sobre a arte e suas possíveis ligações com o conceito de saúde em

Nietzsche; Paolo Stellino (Universidade Nova de Lisboa) analisa a relação existente entre

a morte de Deus e a gratuidade no período que vai de Feuerbach a Sartre e Camus,

passando por Dostoievski e Nietzsche; enfim, no último artigo André Dias (UFSCar)

aborda a crítica de Deleuze à negatividade no que tange à elaboração de uma ontologia

positiva do desejo.

Na seção de traduções a edição conta com o texto de Gilles Deleuze De Sacher-

Masoch ao masoquismo publicado pela primeira vez no original em francês na Revista

Arguments em 1961 e traduzido do original para esta edição pelo prof. André Martins

(UFRJ), sendo provavelmente a primeira tradução em português deste importante texto

de Deleuze.

Encerra esta edição a resenha sobre o livro Albert Camus, de la transfiguration:

pour une expérimentation vitale de l’immanence de Laurent Bove, publicado em 2014,

feita pelo prof. Danilo Bilate (URRRJ).

Desejamos a todos uma boa leitura!

Os Editores

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Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, 2017 7

Artigos

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8 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 8-23, 2017

Nietzsche e a ideia do professor como um “mal necessário”

Djalma Lopes da Silva

Resumo: O objetivo deste artigo é expor a crítica de Nietzsche aos

estabelecimentos de ensino de sua época, que, segundo ele, eram espaços onde

predominava uma educação que formava apenas para o funcionalismo e para o

lucro, o que poderia sufocar a possibilidade de uma educação voltada para a

“verdadeira cultura”; bem como refletir sobre a afirmação feita por ele, no

aforismo 282 de “O andarilho e sua sombra”, de que o professor seria um mal

necessário.

Palavras-chave: Friedrich Nietzsche; Alemanha; educação; professor.

Nietzsche and the idea of the teacher as a necessary evil

Abstract: The objective of this article is to expose the criticism of Nietzsche on

educational institutions of his time, which, according to him, were spaces only

focusing on an education aiming mainly on functionalism and profit, which could

stifle the possibility of an education for the “real culture”; as well as to reflect on

the statement made by him in the aphorism 282 of “The Wanderer and his

Shadow” that the teacher would be a necessary evil.

Key words: Friedrich Nietzsche; Germany; education; teacher.

Introdução

Nietzsche possuía uma indiscutível vocação pedagógica, habilidade que foi se

formando ao longo de sua vida e se evidenciando em seus escritos. Sua preocupação com

o problema da educação alemã – questão importante para a compreensão de seu

pensamento como um todo – está presente nas obras, nos escritos e nos fragmentos

póstumos produzidos no período de juventude, e mesmo depois, já na sua plena

maturidade. No entanto, o período em que Nietzsche mais escreve sobre o problema da

educação alemã é em sua fase inicial, compreendida entre os anos de 1870 e 1876.1 De

Doutorando em Filosofia pelo PPGF-UFRJ e professor do Instituto Federal Fluminense. Quissamã, RJ,

Brasil. Contato: [email protected] 1 Cabe aqui fazer uma observação em relação à cronologia dos textos de Nietzsche. Neste artigo, tomamos

por horizonte a divisão da obra nietzschiana em três períodos, assim como Scarllet Marton e Oswaldo

Giacoia fazem em seus textos: o primeiro período estaria situado, aproximadamente, entre os anos de 1870

e 1876; o segundo entre 1876 e 1882; e o terceiro e último período entre 1882 e 1889, ano em que os

sucessivos problemas de saúde interromperiam definitivamente as atividades filosóficas de Nietzsche.

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Nietzsche e a ideia do professor como um “mal necessário”

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 8-23, 2017 9

maneira geral, os textos produzidos nesse período expõem suas teses sobre o declínio da

cultura e da educação alemãs, que estariam totalmente atreladas ao Estado, numa situação

de dependência total, como aponta um dos escritos póstumos produzidos nessa época:

Cultura e subordinação. Isso é novo. O Estado como guia da cultura e da educação. Nele

atuam os elementos opostos à verdadeira cultura: ele conta com o grande formato, ele

forma para o seu uso próprio a massa de jovens professores.2

Na Alemanha oitocentista, predominavam os pressupostos iluministas, que

sugeriam a defesa de alguns pontos cruciais para o desenvolvimento da crítica

nietzschiana, entre os quais, podemos citar: a ideia de que a cultura e a educação deveriam

ficar ao encargo do Estado; a necessidade de tornar o ensino obrigatório e gratuito; e

também o surgimento de uma espécie de orientação prática, voltada para as ciências,

técnicas e ofícios, em detrimento de uma educação humanística. De acordo com Rosa

Dias, Nietzsche percebeu “estar diante de um sistema educacional que abandonara uma

formação humanista em proveito de uma formação cientificista”, e acrescenta:

[...] a consequente vulgarização do ensino tinha por objetivo formar homens tanto quanto

possíveis úteis e rentáveis, e não personalidades harmoniosamente amadurecidas e

desenvolvidas. Atento a tudo que se relacionava à educação, Nietzsche decidiu denunciar

os “métodos antinaturais de educação” e as tendências que a minavam.3

A implantação desse ideário trouxe consigo a necessidade de ampliação do

número de estabelecimentos de ensino e, consequentemente, do número de professores.

Mas de onde viria essa necessidade? Ela se justificaria pelo fato de que o Estado teria

como uma de suas principais preocupações a formação de um maior número de jovens,

no menor tempo possível, para ocupar cargos no funcionalismo público e privado. Dito

de forma simples, ao tornar a cultura e a educação acessível a um maior número de

pessoas, a intenção do Estado seria a de suprir e servir a si mesmo no menor tempo

possível. Surge então, como um dos resultados mais trágicos desse processo, a

uniformização da cultura e da educação. Ao que parece, a preocupação de Nietzsche se

justifica pelo fato de que o excessivo número de professores a serviço do Estado acabaria

por reforçar a tendência de uma educação que formaria apenas para o funcionalismo e

2 NIETZSCHE, F. Digitale Kritische Gesamtausgabe Werke und Briefe (eKGWB), Fragmento Póstumo

(FP) 8[65], inverno de 1870-71 – outono de 1872. 3 DIAS, Rosa. Nietzsche educador, p. 16.

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Djalma Lopes da Silva

10 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 8-23, 2017

para o lucro, o que poderia sufocar a possibilidade de uma educação voltada para a

“verdadeira cultura”.4 Além disso, tal postura faz com que os estabelecimentos de ensino

assumam o papel de serem para o Estado os responsáveis por instituir um determinado

tipo de sociedade e um determinado ritmo e modus social. Não por acaso, nas

conferências que compõem o escrito inacabado Sobre o futuro dos nossos

estabelecimentos de ensino, proferidas entre janeiro e março de 1872, no Akademisches

Kunstnuseun da Basileia, e na III Consideração extemporânea: Schopenhauer como

educador5, escrita em 1874, Nietzsche defende a ideia de que a educação, a cultura e a

filosofia deveriam se desvincular do Estado. Nesses textos, ele condena a modernização

pedagógica operada na educação alemã de sua época e aponta para uma reformulação dos

objetivos, dos métodos, dos conteúdos e das formas do processo pedagógico,

considerando, especificamente, as relações didáticas entre professor e aluno; além disso,

indica e reforça a função estratégica da filosofia e da exemplaridade dos chamados

“homens superiores” em tudo que está relacionado à educação intelectual e moral dos

indivíduos.6

Nietzsche sempre prezou, enquanto foi professor na Universidade e no

Pädagogium da Basileia, pelo ensino da antiguidade clássica aos seus alunos, levantando

para eles os grandes problemas da existência e mostrando a eles a importância

fundamental do pensamento filosófico.7 Ele acreditava que a filosofia deveria nortear os

processos educacionais que envolviam os jovens, e não ser a imitação de filosofia que era

encontrada nos estabelecimentos de ensino da época, que privilegiavam conhecimentos

particulares e específicos em prol do que ele chama de “incultura”8. Ao denunciar essa

4 “Acredito ter observado de que lado é mais claro o apelo à extensão, à ampliação máxima da cultura. Esta

extensão é um dos dogmas da economia política [...]. Temos aqui, como objetivo e fim da cultura a

utilidade, ou, mais exatamente, o lucro, o maior ganho de dinheiro possível”. NIETZSCHE, F. Sobre o

futuro dos nossos estabelecimentos de ensino, 1ª conferência, p. 72; “Toda educação que deixa vislumbrar

no fim de sua trajetória um posto de funcionário ou um ganho material não é uma educação para a cultura

tal como a compreendemos, mas simplesmente uma indicação do caminho que podem percorrer para o

indivíduo se salvar e se proteger na luta pela existência”. Ibidem, 4ª conferência, p. 122. 5 Entre os anos de 1872 e 1876, Nietzsche escreveu quatro Considerações extemporâneas: David Strauss

como apóstolo e escritor; Da utilidade e dos inconvenientes da história para a vida; Schopenhauer como

educador; e Richard Wagner em Bayreuth. 6 CORREIA, Noéli. A pedagogia de Nietzsche, p. 11. 7 Nietzsche nutria uma grande admiração pela antiguidade clássica. Em seus textos, ele constantemente faz

elogios como esse, de um fragmento póstumo do final de 1870: “Os filósofos gregos são modelos para

nós”. NIETZSCHE, eKGWB, FP 7[74], final de 1870 – abril de 1871. 8 Nietzsche afirma que a cultura alemã de sua época não é boa para ninguém e que não se furtará “jamais à

tarefa de descrever essa incultura. E isto precisamente, em relação aos domínios onde se deveria aprender

algo da Antiguidade, caso se pudesse fazê-lo em geral [por exemplo, escrever, falar etc.]”. Ibidem, FP

3[37], março de 1875.

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Nietzsche e a ideia do professor como um “mal necessário”

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 8-23, 2017 11

condição de submissão da cultura e da educação ao Estado, Nietzsche expõe a forma

lamentável como a cultura clássica e a filosofia eram tratadas dentro dos estabelecimentos

de ensino alemães:

Situação ridícula da cultura clássica: o Estado tem interesse no esparciata “profissional”,

assim como em matéria de filosofia, ele exige ou a única filosofia profissional e filológica,

ou a filosofia panegírica do Estado.9

O “esparciata profissional”, o “professor de profissão”10, ou melhor, o “filisteu da

cultura”11 – expressão utilizada por Nietzsche, de forma irônica, para se referir ao falso

“homem de cultura” que predominava em sua época – seria um dos maiores responsáveis

pela disseminação dessa “incultura”, que privilegia o ensino de disciplinas especializadas

em detrimento da filosofia e da cultura clássica. No entanto, como sugere Nietzsche, é

“preciso dar relevância à leitura dos Antigos”12. “Alguns anos de Helenidade”13 são

fundamentais, sobretudo quando falamos da ideia de uma cultura superior.14 Não por

acaso, na apresentação do livro intitulado Escritos sobre a educação, Noéli Correia

defende a ideia de que:

A afirmação da filosofia como estratégia e da cultura clássica como exemplo é a

contrapartida direta da sua crítica às disciplinas especializadas como sendo incapazes, por

causa mesmo da sua natureza e limites, de lidar com os verdadeiros problemas da cultura,

que são os problemas da existência. A divisão do trabalho científico e a “atomização do

conhecimento”, segundo Nietzsche, traziam como resultado a ruptura entre conhecimento

e civilização [...].15

Somente a filosofia poderia desfazer essa ruptura, integrando o conhecimento à

vida16; somente a filosofia poderia desenvolver uma cultura profunda e rara, restringindo

e concentrando a esfera da cultura, defende Nietzsche.17 Esta postura seria uma exigência

que a própria modernidade fazia a si própria, já que as circunstâncias da época tornavam

9 Ibidem, FP 8[65], inverno de 1870-71 – outono de 1872. 10 Ibidem, FP 14[15], primavera de 1871 – início de 1872. 11 NIETZSCHE, I Consideração extemporânea: David Strauss como apóstolo e escritor, p. 21. 12 NIETZSCHE, eKGWB, FP 5[144], primavera-verão de 1875. 13 De acordo com Nietzsche, a cultura só seria possível “depois de experiências, de eventos, da aquisição

de visões do mundo. ‘Alguns anos de Helenidade’”. Ibidem, FP 5[9], setembro 1870 – janeiro 1871. 14 “Esta cultura superior, eu não a reconheço até agora senão como o renascimento da Helenidade”, afirma

Nietzsche em um fragmento póstumo. Ibidem, FP 14 [25], primavera de 1871 – início de 1872. 15 CORREIA, Noéli. A pedagogia de Nietzsche, p. 27. 16 NIETZSCHE, eKGWB, FP 19[172], verão de 1872 – início de 1873. 17 “Contra a aspiração de uma ‘cultura geral’, buscar antes uma cultura profunda e rara, portanto, uma

restrição e uma concentração da cultura [...]”. Ibidem, FP 9[64], 1871.

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Djalma Lopes da Silva

12 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 8-23, 2017

as reivindicações por uma cultura clássica e uma sabedoria clássica – entendidas por ele

como as verdadeiras cultura e sabedoria – totalmente cabíveis.18

Como foi destacado no início do texto, as considerações nietzschianas sobre a

decadência da cultura alemã estão presentes não apenas nos escritos de sua juventude,

mas ao longo de toda sua obra. Contudo, é na fase mais madura de seu pensamento que

suas críticas adquirem um tom muito mais radical. Esse radicalismo aparece de forma

bem clara em Crepúsculo dos ídolos, obra de 1888. No aforismo 4 do capítulo VIII deste

livro, intitulado “O que falta aos alemães”, e que trata da relação entre cultura e Estado,

Nietzsche afirma:

A cultura e o Estado – não haja engano a respeito disso – são antagonistas: “Estado

cultural” é apenas uma ideia moderna. Um vive do outro, um prospera à custa do outro.

Todas as grandes épocas da cultura são tempos de declínio político: o que é grande no

sentido cultural é apolítico, mesmo antipolítico.19

A ideia de “Estado cultural” alemão – no qual a educação, a cultura e a filosofia

ficam totalmente submetidas ao Estado – seria algo totalmente moderno. Como o próprio

Nietzsche faz questão de destacar, o declínio da educação e cultura alemãs tem uma razão

evidente: cultura e Estado atuam em sentidos opostos, um vive a expensas do outro. Essa

falsa ideia de que o desenvolvimento da cultura estaria diretamente ligado ao

desenvolvimento do Estado serve apenas para sustentar o poder e os interesses deste, pois

um processo pedagógico que forma alunos e professores para o serviço do Estado ou para

o atendimento do mercado jamais formará homens livres e cultivados, ou seja, “homens

superiores”20. Na realidade, às épocas de grande fertilidade cultural correspondem épocas

de decadência política. De acordo com Nietzsche, a ascensão do Reich na Alemanha é

um bom exemplo no sentido de nos auxiliar a evidenciar a falsidade dessa tese que atrela

a elevação da cultura à elevação do Estado, pois:

Na história da cultura europeia, a ascensão do Reich significa sobretudo uma coisa: uma

mudança do centro de gravidade. Em toda parte se sabe: no principal – que continua

sendo a cultura – os alemães já não são considerados. As pessoas perguntam: vocês têm

ao menos um espírito que conte para a Europa?21

18 “A reivindicação de uma cultura clássica é algo totalmente moderno, e uma subversão da tendência do

liceu”, afirma Nietzsche. Ibidem, FP 14[15], primavera de 1871 – início de 1872. 19 NIETZSCHE, Crepúsculo dos ídolos (CI), VIII, “O que falta aos alemães”, § 4, p. 58. 20 “Na Alemanha falta aos homens superiores um grande meio de educação: a risada dos homens superiores;

estes não riem na Alemanha”. NIETZSCHE, A gaia ciência (GC), III, § 177, p.167. 21 NIETZSCHE, CI, VIII, “O que falta aos alemães”, § 4, p.58.

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Nietzsche e a ideia do professor como um “mal necessário”

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 8-23, 2017 13

Onde estariam os grandes pensadores alemães? Como seria possível produzir um

novo Goethe, outro Heine ou Schopenhauer22 – “espíritos alemães” que teriam sido

importantes para a história da cultura europeia – se o sistema educacional alemão tinha

perdido sua finalidade, assim como os meios para se atingir essa finalidade? Segundo

Nietzsche, não era o Reich que deveria ser a finalidade última do sistema educacional,

mas a educação, a formação dos jovens alemães: “Esqueceu-se que educação, formação

é o fim – e não ‘o Reich’ [...]”23. Aprender a pensar, isto era fundamental:

[...] o pensar deve ser aprendido, tal como a dança deve ser aprendida, como uma espécie

de dança... Quem, entre os alemães, ainda conhece por experiência o sutil calafrio que os

pés ligeiros em coisas espirituais transmitem a todos os músculos? [...] não se pode excluir

a dança, em todas as formas, da educação nobre, saber dançar com os pés, com os

conceitos, com as palavras; ainda tenho que dizer que é preciso saber dançar com a pena

– que é preciso aprender a escrever?24

O problema é que nos estabelecimentos de ensino alemães não se tinha a mínima

ideia do que seria isso, alega Nietzsche. Para ele, a lógica, a teoria, a prática e a técnica

de pensar desapareciam nestes lugares.25 Como o autor destaca no texto citado acima,

pensar é como dançar, no sentido de saber dançar com os pés, com as ideias, com as

palavras e com a pena, pois também é preciso aprender a escrever. Mas para atingir este

fim eram necessários “educadores”. Estes deveriam, antes de tudo, educar a si próprios,

ser superiores em matéria de espírito, ser “nobres, provados a cada momento, provados

pela palavra e pelo silêncio, de culturas maduras, tornadas doces”26. Eles seriam a

primeira condição para uma verdadeira educação. Porém, nos estabelecimentos de ensino

alemães, não havia mais educadores no sentido próprio do termo: “[...] não se compra

com este nome senão pessoas que não são elas próprias educadas. Há professores, mas

não educadores”27. Portanto, deveríamos ver o professor como um mal necessário,

defende Nietzsche, no aforismo 282 de “O andarilho e sua sombra”, texto do período

22 Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832): poeta, escritor e cientista alemão; Heinrich Heine (1797-

1856): poeta, ficcionista e crítico alemão; Arthur Schopenhauer (1788-1860): filósofo alemão. 23 NIETZSCHE, CI, VIII, “O que falta aos alemães”, § 5, p. 58. 24 Ibidem, § 7, p. 61. 25 “Os professores de filosofia não ensinam mais qualquer saber-fazer, nem mesmo a arte da disputa. A

lógica, tal como ela é ensinada, é totalmente inútil. Mas estes professores são jovens demais para serem

outra coisa senão demonstradores científicos: como poderiam eles educar para a sabedoria?”. NIETZSCHE,

eKGWB, FP 30[21], outono de 1873 – inverno 1873-1874. 26 NIETZSCHE, CI, VIII, “O que falta aos alemães”, § 5, p. 58. 27 NIETZSCHE, eKGWB, FP 19[61], outubro-dezembro de 1876.

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Djalma Lopes da Silva

14 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 8-23, 2017

intermediário de sua obra.28 Era preciso suprimi-los, torná-los o menor número possível

entre “os espíritos produtivos e os espíritos famintos e receptivos”:

Pois os mediadores falseiam quase automaticamente a nutrição que transmitem: e

querem, como pagamento por sua intermediação, muita coisa para si, que então é tirada

dos espíritos originais, produtivos: a saber, interesse, admiração, tempo, dinheiro, etc. –

Portanto: veja-se o professor como um mal necessário, exatamente igual ao comerciante:

como um mal que devemos tornar o menor possível! – Se a miséria das condições alemãs

atuais talvez tenha sua principal razão no fato de muitos quererem viver – e viver bem –

do comércio (ou seja, de procurarem diminuir ao máximo os preços do produtor e subir

ao máximo os preços para o consumidor, beneficiando-se da máxima desvantagem de

ambos): então podemos ver no grande número de professores uma das principais razões

da miséria intelectual: por causa disso aprende-se tão pouco e tão mal.29

A presença de um número excessivo de “filisteus da cultura” nos estabelecimentos

de ensino, esses falsos eruditos que se dizem professores, essa massa de homens sem

vocação para a profissão, seres dotados de uma cultura especializada e estreita, desejosos

de lucro e promoções, e que estariam preocupados apenas em educar para a conformidade

e a submissão ao Estado, seria, talvez, um dos principais motivos que teriam levado

Nietzsche a fazer a afirmação de que o professor é um mal necessário. Ao que parece,

essa afirmação implicaria no seguinte: na Alemanha de sua época, os professores podiam

ser um mal, contudo, eles constituíam um tipo necessário. Mas por quê?

O professor como um “mal”

Embora necessário no processo pedagógico, estritamente na relação

ensino/aprendizagem, o professor era visto por Nietzsche como um mal; e um mal que

deveria se tornar o menor possível, pois quanto maior o seu número, maior ainda seria a

presença de homens sem vocação no magistério; homens que acabariam, infelizmente,

contaminando a formação e a transmissão da cultura entre os jovens, na medida em que

colocariam em andamento práticas e procedimentos que apenas ratificariam os objetivos

integradores da educação ministrada pelo Estado.

28 Nietzsche publicou “O andarilho e sua sombra” em 1880, como segunda continuação de Humano,

demasiado Humano. Já a primeira continuação, intitulada “Opiniões e sentenças diversas”, fora publicada

no ano anterior, em 1879. 29 NIETZSCHE, Humano, demasiado humano (HH), “O andarilho e sua sombra”, § 282, p. 287.

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Nietzsche e a ideia do professor como um “mal necessário”

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 8-23, 2017 15

Com a modernização pedagógica, a educação alemã tornou-se submissa aos

interesses do Estado e, consequentemente, todo processo pedagógico realizado nos

estabelecimentos de ensino buscava atender estes interesses, isto é, formar e tornar útil

para o Estado, com a menor perda possível de tempo, um grande número de homens

jovens. Daí poder-se afirmar, segundo Jorge Larrosa, que essa política educacional era

claramente orientada no sentido das grandes massas.30 Para realizar o objetivo de tornar

a educação acessível ao maior número de pessoas, era necessário um grande número de

estabelecimentos de ensino e de professores. Esses estabelecimentos deveriam formar

para o funcionalismo e/ou para o lucro. Os professores, enquanto peças chave na relação

ensino/aprendizagem, eram, portanto, os responsáveis por colocar em andamento as

práticas e os procedimentos que efetivariam os objetivos do Estado, disseminando uma

cultura universal, integradora, totalmente voltada para o bem comum.

O professor era um “mal”, pois não era capaz de alcançar uma visão abrangente e

real a respeito da vida e do mundo, tal como Nietzsche acreditava ser possível através do

ensino da cultura clássica aos jovens. Pelo contrário, o professor sequer procurava

estabelecer um sentido ou visar a um objetivo que o levasse para além da sua

especialidade e da sua profissão remunerada, eles eram apenas intermediários que

falseavam quase automaticamente o conhecimento que transmitiam.31 Seduzidos pela

possibilidade que o Estado oferecia, no sentido de alcançar um número muito importante

de postos, títulos ou condecorações oficiais, esses “filisteus da cultura” estavam muito

mais preocupados com a estabilidade profissional e financeira do que com qualquer outra

coisa. Isso os levava a acolher de forma ainda mais estrita os propósitos do Estado:

Através desse professorado mantido em xeque fisicamente e espiritualmente, toda a

juventude da nação é, tanto quanto possível, erguida a uma certa altura cultural, útil ao

Estado e adequadamente graduada: mas, sobretudo, quase imperceptivelmente se

transmite, aos espíritos imaturos e ávidos de honra de todas as classes, a mentalidade de

que apenas uma orientação de vida reconhecida e homologada pelo Estado acarreta uma

pronta distinção social.32

Graças aos “filisteus da cultura”, esse professorado material e moralmente

mantido sob controle, toda a juventude da Alemanha era conduzida a certo nível de

30 De acordo com Larrosa, Nietzsche defendia a “impossibilidade de qualquer educação que passe pelo

funcionamento homogêneo e homogeneizador de um sistema de massas”. LARROSA, Jorge. Nietzsche e

a Educação, p. 39. 31 NIETZSCHE, HH, “O andarilho e sua sombra”, § 282, p. 287. 32 Ibidem, “Opiniões e sentenças diversas”, § 320, p. 134-135.

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Djalma Lopes da Silva

16 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 8-23, 2017

cultura útil ao Estado e formada em conformidade com este objetivo: era transmitida a

mentalidade de que somente uma carreira reconhecida e selada pelo Estado acarretaria

uma distinção social. Tais professores, portanto, não eram bons para ninguém. Eles

transmitiam uma “incultura”, na qual importava o máximo possível de conhecimento,

“portanto o máximo de produção e necessidades possível –, portanto o máximo de

felicidade possível: – eis mais ou menos a fórmula”, afirma Nietzsche.33 De acordo com

essa perspectiva, a finalidade da educação e da cultura seria a utilidade, ou, mais

precisamente, o lucro. Aqui, vemos transparecer claramente a crítica de Nietzsche a um

ideal muito em voga na sua época: trata-se do princípio da máxima felicidade,

apresentado pelo filósofo inglês Jeremy Bentham (1748-1832) na obra intitulada Uma

introdução aos princípios da moral e da legislação. Bentham é considerado o fundador

da doutrina filosófica conhecida como Utilitarismo, segundo a qual o mais elevado

objetivo da educação e da cultura seria maximizar a felicidade e a utilidade.34 De acordo

com Michael Sandel, Bentham acreditava que “a coisa certa a fazer é aquela que

maximizará a utilidade”, definindo como “utilidade” qualquer coisa que produza prazer

ou felicidade e que evite a dor ou o sofrimento.35 No entanto, para Nietzsche, esse

princípio da máxima utilidade e felicidade atuaria no sentido da massificação (ampliação)

e da mediocrização (redução) da cultura, tendências contra as quais o filósofo se voltava

de forma cada vez mais radical em suas críticas sobre a educação alemã.

Para Nietzsche, a tendência utilitarista de valorizar a formação de indivíduos cada

vez mais aptos a extrair da vida a maior quantidade possível de felicidade e lucro tornava

a busca pela chamada “cultura superior” algo cada vez mais raro. Reforçando esse

diagnóstico acerca da decadência da educação alemã, Larrosa afirma, em Nietzsche e a

educação, que os estabelecimentos de ensino daquela época, incluindo as universidades,

não ensinavam a estudar; segundo ele, nesses espaços, o estudo, a humildade e o silêncio

do estudo não eram sequer permitidos.36 Se ninguém mais estudava, como aponta

Larrosa, de que maneira seria possível, então, estimular o desenvolvimento de uma

cultura completa, superior? Na realidade, não havia, na Alemanha, escola que colocasse

isto como tarefa, defende Nietzsche.37 Não existia um grande meio de educação para o

33 NIETZSCHE, Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino, 1ª conferência, p. 72. 34 BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação, p. 3. 35 SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa?, p. 48. 36 LARROSA, Jorge. Nietzsche e a Educação, p. 15. 37 “As nossas escolas indicam a via de uma divisão do trabalho ainda mais acentuada. A cultura completa

seria, portanto, sempre mais raramente buscada: não há escola que se coloque isto como tarefa. Não se sabe

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Nietzsche e a ideia do professor como um “mal necessário”

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 8-23, 2017 17

homem superior, que possibilitasse uma cultura superior: “Na Alemanha falta aos homens

superiores um grande meio de educação [...]”38. O alto número de estabelecimentos de

ensino e de professores não era compatível com esta tarefa: o grande número de escolas

de “alto nível” era incompatível com a formação de homens selecionados, assim como o

grande número de professores era incompatível com a transmissão de uma cultura

elevada.39 A maioria dos professores não tinha sequer vocação para a profissão40, o que

era extremamente prejudicial à tarefa fundamental da educação, a saber, a formação e a

transmissão da cultura entre os jovens.

O professor como um tipo “necessário”

Se a miséria da educação reside em práticas pedagógicas que visam a utilidade e

o lucro, assim como no grande número de estabelecimentos de ensino e de professores

sem vocação – que querem viver bem dessa profissão e acabam por se deixar corromper

pelas vantagens oferecidas pelo Estado, e, justamente por isso, agem em detrimento da

educação, não guiando seus alunos para o conhecimento, mas sim para a cultura universal,

jornalística –, por que, ainda assim, o professor constituía um tipo “necessário” para

Nietzsche?

De acordo com o filósofo, o professor deve educar, isto é, formar. Mas o que seria

esse “formar”? Seria fazer “compreender imediatamente tudo o que se viu através de

fantasmas determinados”41. Mas o que seriam esses “fantasmas determinados”? Seriam

as representações suscitadas pelo professor na consciência dos alunos. Porém, a tarefa

educativa do professor não consistiria somente em suscitar determinadas representações

na consciência dos alunos, afirma Correia.42 Segundo o autor, é preciso fazê-los perseguir

mesmo mais onde se dirigir quando se procura um material de ensino para esta cultura completa”.

NIETZSCHE, eKGWB, FP 14[25], primavera de 1871 – início de 1872. 38 NIETZSCHE, GC, III, § 177, p. 167. 39 Para Nietzsche, “é preciso que sejamos unânimes a este respeito: para alcançar realmente a cultura, a

própria natureza não destinou senão um número infinitamente restrito de homens, e, para o feliz

desenvolvimento destes, basta um número muito mais restrito de estabelecimentos de ensino superior [...]”.

NIETZSCHE, Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino, 3ª conferência, p. 103. 40 Quanto a essa ausência de vocação, Nietzsche afirma: “[...] pobres mestres tão numerosos, a quem a

natureza não concedeu dons para uma verdadeira cultura, e que chegaram mesmo à pretensão de fazer as

vezes de mestres da cultura, só porque os impulsiona a necessidade de ganhar o pão de cada dia e porque o

excessivo número de escolas exige para si um excessivo número de mestres [...]”. Ibidem, p. 112-113. 41 NIETZSCHE, eKGWB, FP 5[106], setembro de 1870 – janeiro de 1871. 42 CORREIA, Noéli. A pedagogia de Nietzsche, p. 31.

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18 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 8-23, 2017

a sua decifração; é preciso fazê-los ver e compreender o que se oculta nos “fantasmas”

das suas representações, pois, para Nietzsche, “a educação é um assunto do intelecto e,

portanto, possível até certo ponto”43. A educação deveria ser, portanto, uma eterna

produção desses “fantasmas”, dessas imagens energéticas suscitadas e transmitidas pelo

professor. A consideração do valor das representações é aqui o que pode determinar o

valor de uma cultura ou de um processo pedagógico.44 Como afirma Nietzsche: “Toda

criação de uma nova cultura” se dá através das “naturezas fortes e exemplares, nas quais

os fantasmas são engendrados novamente”45. Logo, pode-se dizer que os professores com

personalidade mais forte devem possuir a energia necessária para comunicar e transferir

para os seus alunos estas “representações fantasmáticas”46, e, nesta medida, pode-se dizer

também que o processo educacional “depende da grandeza moral e do caráter do

professor”47.

No entanto, em um fragmento póstumo, Nietzsche chama a atenção para o fato de

que os próprios professores também precisam receber uma educação adequada a seu

ofício, pois, para possibilitar o surgimento de uma “aristocracia espiritual”, é preciso,

antes de tudo, começar pelas “instituições de cultura e educação para professores”; é

preciso criar “escolas de cultura e educação [...] para a cultura e educação dos

professores”48. Além disso, eles deveriam ser maduros, quer dizer, não deveriam ser

jovens, pois, como o próprio Nietzsche afirma: “Dar ensino é um dever do homem de

idade”49. Não se trata aqui, absolutamente, de um ensino técnico do magistério, mas de

uma ambientação mais demorada e profunda com os grandes criadores da cultura, num

processo de autocultivo que possa levar à criação de uma “aristocracia espiritual”50. O

professor somente será um verdadeiro guia e pensador quando estiver já suficientemente

formado e consciente da sua própria experiência individual.51 Daí Nietzsche sugerir a

criação de uma escola para os educadores, que, segundo Dias, seria uma instituição

completamente desvinculada do Estado, uma espécie de “universidade livre”, na qual

43 NIETZSCHE, eKGWB, FP 5[106], setembro de 1870 – janeiro de 1871. 44 CORREIA, Noéli. A pedagogia de Nietzsche, p. 32. 45 NIETZSCHE, eKGWB, FP 5[107], setembro de 1870 – janeiro de 1871. 46 “Estas representações fantasmáticas somente são comunicadas pela energia das personalidades”.

Ibidem, FP 5[106], setembro de 1870 – janeiro de 1871. 47 Ibidem. 48 Ibidem, FP 9[70], 1871. 49 Ibidem. 50 Ibidem, FP 14[25], primavera de 1871 – início de 1872. 51 “Um dia, quando há muito tempo estamos educados [...], descobrimos a nós mesmos: começa então a

tarefa do pensador, é tempo de solicitar-lhe ajuda – não como um educador, mas como um auto-educado

que tem experiência”. NIETZSCHE, HH, “O andarilho e sua sombra”, § 267, p. 279.

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Nietzsche e a ideia do professor como um “mal necessário”

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 8-23, 2017 19

todos trabalhariam juntos, servindo de professores uns aos outros, e se dedicariam a

renovar a cultura da época.52 Mas qual seria o sentido dessa proposta? De onde viria essa

ideia sobre uma “escola dos educadores”? De acordo com Paolo D’Iorio, Nietzsche

afirma, em um fragmento póstumo do final de 1876, que esta ideia se basearia na

constatação de que os educadores alemães de sua época não eram eles próprios educados,

de que a necessidade deles se fazia cada vez maior, mas a qualidade era cada vez mais

medíocre.53

Nessas escolas para educadores, os professores amadureceriam e se tornariam

capazes de compreender que a primeira tarefa do professor é colocar seus alunos em

guarda contra si mesmos54, tanto no que diz respeito à sua juventude, quanto no sentido

de livrá-los de uma admiração prematura e irrefletida em relação a seus mestres e guias.55

Dito de outro modo, a tarefa do verdadeiro mestre seria a de “purificar a cultura” e

despertar nos alunos a força diante da visão das “novas tendências” que deveriam superar

a mediocridade de então.56 Além disso, Correia aponta para o fato de que Nietzsche exigia

certo rigor na relação pedagógica entre professor e aluno, uma vez que nem o primeiro

deveria ser “tão complacente e indiferente a ponto de se isentar na prática de sua tarefa

educativa”, nem o segundo deveria ser “conservado na sua jovem tagarelice pretensiosa

a propósito de qualquer coisa”57. Dessa forma, a relação professor-aluno exigia uma

atenção especial ao “indivíduo” e ao desenvolvimento de todas as suas capacidades, no

sentido de promover nos jovens uma harmonia tal que neles fizesse crescer as forças ainda

“imberbes” que carregavam e fizesse, por outro lado, diminuir as forças predominantes

que os contaminavam, acrescenta Noéli.58 Daí a função precisa dos exames no processo

52 “O que importava era preservar a cultura alemã [...]. Nietzsche lembra-se então da Germânia, a sociedade

literária que criara com Carl von Gersdorff e Paul Deussen, nos tempos de ginásio, e pensa em organizar,

nesses mesmos moldes, [...] uma ‘escola para educadores’, onde os amigos serviriam de professores uns

aos outros, discutiriam e trabalhariam juntos pela cultura alemã”. DIAS, Rosa. Nietzsche educador, p. 34;

“Nessa pequena comunidade de amigos [...], seria praticada uma educação mútua e se usariam os livros

escritos pelos membros da comunidade como anzóis, a fim de atrair novos adeptos para a confraria de

amigos. Edificariam a ‘escola de educadores’, a ‘universidade livre’, na qual cada um poderia educar-se a

si mesmo”. Ibidem, p. 48. 53 D’IORIO, Paolo. Nietzsche na Itália: a viagem que mudou os rumos da filosofia, Cap. 2, p. 60-61;

NIETZSCHE, eKGWB, FP 23[136], final de 1876 – verão de 1877. 54 “Faz parte da humanidade de um mestre advertir seus alunos contra ele mesmo”. NIETZSCHE, Aurora

(AU), V, § 447, p. 231. 55 CORREIA, Noéli. A pedagogia de Nietzsche, p. 33. 56 Em um fragmento póstumo do início de 1880, Nietzsche fala sobre a tarefa de “purificar a cultura”, ideia

que pode ser tomada no sentido de superar a mediocridade cultural que predominava até então.

NIETZSCHE, eKGWB, FP 1[33], início de 1880. 57 CORREIA, Noéli. A pedagogia de Nietzsche, p. 33. 58 Ibidem, p. 34.

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20 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 8-23, 2017

pedagógico: eles disciplinam, orientam e submetem os impulsos e a atenção dos alunos.59

Pois o homem superior, que deve ser o alvo de qualquer educação, é aquele que recebeu

“uma forma” no longo curso de sua aprendizagem.60

Conclusão

Reformular os objetivos, os métodos, os conteúdos e as formas dos processos

pedagógicos apresentados pelos estabelecimentos de ensino alemães, desatrelando-os do

Estado; diminuir o número de estabelecimentos de ensino de “alto nível” e de professores

sem vocação em prol de uma elevação da cultura; criar uma escola para educadores com

vistas a elevar o nível de qualificação da formação dos professores e excluir os homens

medíocres desta função eram, diante da modernização pedagógica alemã, as propostas de

Nietzsche para se alcançar uma verdadeira educação, uma educação capaz de formar

homens elevados, de transmitir uma cultura elevada. Mas, para que isso fosse possível,

era fundamental que o professor fosse um educador nato, isto é, alguém com capacidade

para educar a si mesmo, tomando como referência os grandes exemplos oferecidos pela

história da humanidade, como Schopenhauer teria sido para o próprio Nietzsche.

De acordo com Nietzsche, a cultura superior, que seria sobretudo a cultura

filosófica, não poderia ser um bem comum, como pretendia a política educacional alemã

da época, que disseminava tendências que colaboravam para a massificação e

mediocrização da cultura. Como afirma Larrosa, a educação para uma cultura elevada

não poderia ser ministrada de modo técnico e massificado.61 Ao contrário, defende

Nietzsche, ela seria privilégio de poucos, e a democratização do ensino, tornado geral,

vulgar, só poderia levar a cultura alemã ao declínio. Nesse sentido, o professor era

necessário na medida em que toda cultura é transmitida fundamentalmente pelo seu

“poder pessoal” e não depende exclusivamente do conhecimento espontâneo dos jovens.

Porém, para que esse objetivo fosse alcançado, era necessário que o professor fosse um

59 Sobre esse assunto, Nietzsche acrescenta: “Toda cultura começa, ao contrário de tudo o que se elogia

hoje com o nome de liberdade acadêmica, com a obediência, com a disciplina, com a instrução, com o

sentido do dever. E, assim como os grandes guias têm necessidade de homens para conduzir, também

aqueles que devem ser conduzidos têm necessidade de guias [...]”. NIETZSCHE, Sobre o futuro dos nossos

estabelecimentos de ensino, 5ª conferência, p. 158. 60 NIETZSCHE, eKGWB, FP 19[307], verão de 1872 – início de 1873. 61 LARROSA, Jorge. Nietzsche e a Educação, p.39.

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Nietzsche e a ideia do professor como um “mal necessário”

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 8-23, 2017 21

educador “nato”62, assim, ele seria capaz de colocar o aluno em contato com os “espíritos

superiores” e orientá-lo no estudo das principais obras produzidas por esses indivíduos

exemplares; mais do que isso, o professor mostraria a necessidade de tomar estes “grandes

espíritos” como modelos e de traçar um objetivo formativo de acordo com a grandeza

deles, pois um homem deve ser medido por sua cultura superior ou medíocre, afirma

Nietzsche.63 Portanto, a verdadeira educação consistiria em transmitir a exemplaridade e

grandeza dos homens mais nobres do passado e cultivar individualidades superiores

capazes de herdar essa exemplaridade, e, ao mesmo tempo, ser a condição das grandes

obras que ficarão para o futuro da humanidade; uma educação como esta não pode ser

uma simples função do Estado ou do mercado, ao contrário, ela deve ter a máxima

liberdade e autonomia para exercer sua posição de formadora do pensamento.64

Contrariamente, aquilo que é modernamente chamado de “Estado cultural” trazia

como resultado um enfraquecimento da cultura, pois alimentava a crença de que não deve

haver privilégios e, portanto, não pode haver homens superiores, que deveriam ser

exatamente os propiciadores da elevação da cultura. A cultura universal seria sinônimo

de “decadência”, sua intenção oculta ou manifesta seria aplaudir e exaltar o que é

“adequado” ao presente por causa da sua “utilidade”: ela é a cultura que prepara para uma

profissão, para o mercado.

Nos textos em que trata sobre o tema da educação, Nietzsche reconhece que as

escolas alemãs tinham perdido suas bases culturais, filosóficas e científicas anteriores e

que tinham se entregado indefesas aos desígnios do Estado, ou seja, à criação de um

“Estado cultural”, como se não houvesse claramente uma exclusão recíproca entre Estado

e cultura. Contudo, para se atingir a meta e o fim último da cultura, que seria o cultivo

dos grandes homens, ela não poderia estar atrelada ao Estado. De acordo com Nietzsche,

os homens, especialmente os mais bem-dotados, não deveriam ser educados para atender

as necessidades de uma divisão do trabalho qualquer, para se tornarem novos “filisteus

da cultura”, mas sim para se tornarem homens superiores, ou seja, “seres soberanos,

capazes de abarcar o todo num golpe de olhar e assistir como espectadores o jogo da

62 NIETZSCHE, Além do bem e do mal (ABM), IV, § 63, p. 62. 63 NIETZSCHE, eKGWB, FP 8[92], inverno de1870-1871 – outono de 1872. 64 Sobre as intenções do Estado ao ampliar o acesso à educação, Nietzsche afirma: “[...] não é a cultura da

massa que deve ser a nossa finalidade, mas a cultura de indivíduos selecionados, munidos das armas

necessárias para a realização das grandes obras que ficarão [...]”. NIETZSCHE, Sobre o futuro dos nossos

estabelecimentos de ensino, 3ª conferência, p. 105.

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vida”65. Como vimos, justamente para atender esse objetivo, Nietzsche proporá uma

educação baseada no modelo dos grandes mestres, professores que, com sua grandeza e

genialidade, fariam com que toda sociedade se elevasse culturalmente.

Embora o projeto de criação de um espaço propício para a formação desses

grandes mestres – a chamada “escola dos educadores” – não tenha sido levado à frente

por Nietzsche, como afirma D’Iorio66, a ideia da criação de escolas voltadas para a cultura

e educação dos professores era uma possibilidade de elevar a condição do professor como

educador, de torná-lo maduro e preparado para o magistério, pois dar ensino seria um

dever do homem de mais idade, com mais experiência. Por isso Nietzsche defendia a ideia

de que os homens responsáveis pelo processo de formação e transmissão da cultura não

deveriam ser jovens. Para o filósofo, os mestres, os guias, deveriam ser os homens

maduros, cultos, que possibilitariam uma “aristocracia do espírito”, capaz de criar um

espaço de liberdade diante do Estado, no qual seria possível levar adiante a tarefa

fundamental da educação, a saber, a elevação da cultura, que ocorreria através da criação

de novos valores, de novas interpretações e perspectivas mais afirmativas em relação à

existência. Porém, contra essa ideia de elevação cultural em prol da vida, haveria, como

Nietzsche diagnosticou, os interesses do Estado e do mercado, esferas que, em sua época,

enxergavam a educação com o olhar utilitarista, isto é, apenas como meio para obtenção

de seus fins.

Qualquer semelhança com os dias de hoje não nos parece ser mera coincidência.

Diante desse diagnóstico alarmante apresentado por Nietzsche, podemos afirmar que é

impossível ignorar a proximidade de suas críticas sobre o sistema educacional alemão do

século XIX com as que faríamos hoje do nosso. Como ressalta Scarlett Marton, no

prefácio de Nietzsche educador, a leitura dos escritos de Nietzsche sobre educação

impressiona pela atualidade, “tomado como ferramenta de trabalho, ele nos permite

lançar um olhar mais crítico sobre o momento em que vivemos”67.

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BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. Trad. de

Luiz João Baraúna. Coleção: Os pensadores – 3ª ed. – São Paulo: Abril cultural, 1984.

65 NIETZSCHE, eKGWB, FP 11[145], primavera-outono de 1881. 66 D’IORIO, Paolo. Nietzsche na Itália: a viagem que mudou os rumos da filosofia, Cap. 2, p. 63. 67 DIAS, Rosa. Nietzsche educador, p. 7.

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Recebido em: 25/04/2016

Aprovado em: 03/05/2017

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24 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 24-41, 2017

Contribuições de Nietzsche para uma concepção artística de educação

Adriany Ferreira de Mendonça* e Alexandre Ferreira de Mendonça**

Para os amigos de colégio, para Danielle e Zé Luis,

para Irene, Ana Cláudia, Luiz e Ana Beatriz.

Resumo: Este artigo tem por objetivo discutir as possíveis contribuições do

pensamento de Nietzsche para a problematização de nossas práticas

pedagógicas. Partindo de textos em que tal debate não aparece de um modo

evidente – em especial Além do bem e do mal, Genealogia da moral e,

principalmente, A gaia ciência – pretende-se levantar elementos tanto para a

crítica ao que seria um modelo racionalista, idealista, e eminentemente teórico

de educação quanto para se esboçar uma concepção artística de educação que se

constitua em uma potente alternativa ao regime disciplinar vigente a partir da

modernidade.

Palavras-chave: educação; genealogia; arte; experimentação.

Nietzsche's contributions to an artistic conception of education

Abstract: This article aims to discuss possible contributions of Nietzsche’s

thoughts to the questioning of our pedagogical practices. Referring to works

where this debate is not obvious – especially Beyond good and evil, Genealogy

of morals and mainly The Gay science – it intends to present elements to a

critique of what would be the rationalist, idealist and eminently theoretical

model of education, as well as to outline an artistic conception of education

which constitutes a potent alternative to the disciplinary regime in place since

modernity.

Keywords: education; genealogy; art; experimentation.

Os primeiros escritos de Friedrich Nietzsche, apresentados publicamente quando

ainda atuava como professor na Universidade e no Pädagogium da Basileia, não deixam

de anunciar de forma mais ou menos direta o posicionamento crítico que, naquele

momento, nutria em relação às práticas pedagógicas modernas: práticas que teriam

incidido sobre sua formação no ginásio e sobre sua formação universitária como

filólogo; práticas com as quais ele, então, se via diretamente envolvido como professor

em instituições erigidas em plena sintonia com o modelo por ele criticado.

Sinais desse posicionamento já podem ser identificados em O nascimento da

tragédia, seu primeiro livro, publicado ao final de 1871, pouco mais de dois anos após

ter assumido o cargo de professor. Nele, Nietzsche contrapõe a apologia da arte trágica,

* Professora Dra. do Departamento de Filosofia do IFCS/UFRJ. Contato: [email protected] ** Professor Dr. do Departamento de Fundamentos da Educação da FE/UFRJ. Contato:

[email protected]

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Contribuições de Nietzsche para uma concepção artística de educação

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 24-41, 2017 25

o elogio a uma cultura assentada sobre a experiência sensorial proporcionada pela

tragédia à violenta crítica ao racionalismo de origem socrática e à versão moderna dessa

tendência hegemônica no Ocidente – o cientificismo. O texto não trata explicitamente

de educação, não tematiza de modo óbvio o papel das instituições de ensino. Mas basta

levar em conta as influências da tradição racionalista sobre as bases não tão novas do

projeto pedagógico moderno, basta atentar para o quanto tais instituições contribuem

com a naturalização do valor de verdade que se atribui às ciências e com a difusão de

conteúdos provenientes do conhecimento científico como elementos de máxima

importância nos processos de formação, para se ter ideia das implicações que já este

escrito teria para o campo da educação. Soma-se a isso o fato de que Nietzsche não se

limita aí a um elogio nostálgico de uma cultura trágica perdida, o quanto ele aposta no

renascimento de uma tal cultura, e, mais que isso, o quanto ele pretende intervir no

sentido de contribuir para a promoção do renascimento e fortalecimento de tendências

absolutamente avessas àquelas que presidem o modelo de educação que o então

professor não tardaria a atacar de modo explícito. Se O nascimento da tragédia não é

um livro que trate claramente de questões reconhecidas como pedagógicas, nem por isso

ele deixa de poder exercer uma interferência bastante perturbadora sobre o contexto

educacional do qual ele emerge. No mínimo, aí se antecipa muito do que trazem à tona

os textos que vieram a ser conhecidos como seus escritos sobre educação – aqueles que

recebem os títulos Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino e Schopenhauer

como educador. E, talvez, nessa antecipação, seu posicionamento nos leve a dele extrair

efeitos ainda mais contundentes para o campo da educação justamente pelo fato de nele

o autor não precisar estabelecer nenhum compromisso com a discussão direta sobre as

práticas pedagógicas modernas e, por isso mesmo, não se restringir a alternativas ainda

demasiado próximas ao campo demarcado pela educação institucional. Enquanto os

escritos sobre educação não deixam de esboçar, pelo menos em certa medida,

alternativas que podem soar reformistas, internas ao ambiente institucional, O

nascimento da tragédia alardeia a potência da experiência estética promovida pela

tragédia – experiência balizada por impulsos antagônicos (o apolíneo e o dionisíaco)

que remetem, por um lado, ao contato sensorial com as formas do universo plástico e

poético e, por outro, ao violento efeito de suspensão da racionalidade provocado pela

música e pela embriaguez.

De todo modo, já no início de 1872, Nietzsche traz ao público a série de cinco

conferências, intitulada Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino, que é

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Adriany Ferreira de Mendonça & Alexandre Ferreira de Mendonça

26 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 24-41, 2017

então pronunciada na Sociedade Acadêmica da Basileia e só postumamente publicada

como texto impresso. Logo em seguida, de 1873 a 1875, prepara e publica a série de

quatro Considerações Extemporâneas. Se todas elas tocam ao menos indiretamente na

temática educacional, a terceira Extemporânea, publicada em 1874 com o sugestivo

título Schopenhauer como educador, faz dela seu eixo central, a ela remetendo todas as

demais questões levantadas. As conferências de 1872 e a Extemporânea de 1874

cumprem então o papel de abordar direta, explícita e privilegiadamente as questões

relativas à educação moderna. Nesses textos, é recorrente a ideia de que nossas

instituições de ensino não seriam capazes de promover uma cultura superior, não teriam

verdadeiramente este papel e objetivo. Antes, refletiriam e aprofundariam sua

decadência. Por esta perspectiva, os estabelecimentos de ensino estariam a serviço das

exigências colocadas em jogo por um outro regime de poder simbolizado pelo Estado

burguês. Exigências que naquele contexto – e que talvez ainda mais no nosso –

priorizam a circulação e a aquisição de dinheiro, a promoção do lucro. É assim que ele

interpreta o fato de a formação profissionalizante, de base utilitária e cientificista, estar

substituindo a formação humanística. Esta substituição seria sintoma da assimilação da

educação e da produção cultural pela produção industrial de caráter massificante,

homogeneizante e meramente utilitário. É nesse sentido que o cientificismo presente nos

modelos curriculares, o valor atribuído à erudição de fachada, o privilégio dado ao

ensino teórico descolado do compromisso com o fortalecimento da vida e o

vínculo estabelecido entre as instituições de ensino e o Estado são os alvos centrais de

seu ataque. Por outro lado, Nietzsche não deixa de apontar para a possibilidade de

alteração do quadro negativo por ele diagnosticado em relação ao modelo de educação

que presidiria o funcionamento das instituições de ensino modernas. Alternativas neste

sentido se esboçariam a partir da revalorização e revigoramento do papel atribuído

à filosofia e à arte nos processos de formação. O fortalecimento da cultura popular –

aqui sua principal referência inspiradora seria a cultura trágica dos gregos previamente

tematizada em O nascimento da tragédia – e, ao mesmo tempo, a instauração de outras

práticas pedagógicas concebidas como um rigoroso exercício de fortalecimento de

singularidades individuais teriam o sentido de possibilitar a emergência do gênio.

Especificamente em Schopenhauer como educador, Nietzsche parece assumir um

posicionamento mais radical, levando adiante a discussão sobre a possibilidade de se

escapar das tendências dominantes nos estabelecimentos de ensino modernos ao tomar

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Contribuições de Nietzsche para uma concepção artística de educação

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 24-41, 2017 27

Schopenhauer como exemplo de quem soube resistir a tais tendências através de

um artístico e rigoroso processo de autoformação.

*

A partir da publicação de Humano, demasiado humano, em 1878, a filosofia de

Nietzsche assume um direcionamento reconhecidamente diferente daquele apontado por

seus primeiros escritos. Há um significativo distanciamento das abordagens

inicialmente desenvolvidas. Distanciamento que se evidencia na ruptura com o

pensamento de Schopenhauer e Kant e com a estética de Wagner – as três principais

referências com as quais Nietzsche até então tinha estabelecido uma relação explícita de

aliança. Além disso, a preparação e a publicação deste novo livro coincidem com um

paulatino processo de afastamento das suas atividades como professor que se inicia com

uma série de longas licenças por problemas de saúde e se consuma com o seu definitivo

desligamento em 1879.

Ao comentar Humano, demasiado humano na autobiografia Ecce homo, Nietzsche

procura esclarecer o sentido da série de transformações e redirecionamentos ligados à

preparação desse livro:

Humano, demasiado humano é o monumento de uma crise. Ele se proclama um livro para

espíritos livres: quase cada frase, ali, expressa uma vitória – com ele me libertei do que não

pertencia à minha natureza. A ela não pertencia o idealismo: o título diz “onde vocês vêem

coisas ideais eu vejo – coisas humanas, ah, somente coisas demasiado humanas!”. 1

Esse comentário sugere que a alteração de sua perspectiva de pensamento estaria

ligada ao posicionamento anti-idealista que ele passa então a assumir. Nietzsche aqui

faz uso da expressão “idealismo” com sentido ampliado, utilizando-a para se referir a

todo e qualquer modo de pensamento que postule a existência de uma realidade

transcendente – um “mundo verdadeiro” oposto ao chamado “mundo aparente” –, que

pressuponha a existência de realidades de caráter abstrato em oposição ao que é por nós

experimentado, que pressuponha a existência de valores superiores, cujas origens jamais

são problematizadas. Agora, seu pensamento assume a recusa de tais ideais, investe na

desmistificação de seu suposto caráter superior através da investigação de suas origens

históricas e da denúncia de seu caráter demasiado humano. O comentário sugere ainda a

existência de um vínculo íntimo entre as transformações de sua perspectiva de

1 NIETZSCHE, F. Ecce Homo: como alguém se torna o que é, “Humano, demasiado humano”, §1, p. 72.

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Adriany Ferreira de Mendonça & Alexandre Ferreira de Mendonça

28 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 24-41, 2017

pensamento e profundas mudanças no modo pelo qual guiava sua própria vida: tudo se

passa como se fosse preciso livrar sua própria natureza daquilo que a ela não pertencia,

livrar-se dos idealismos na própria maneira de lidar com a vida. Um pouco mais à

frente, ainda no capítulo de Ecce homo em que comenta Humano, demasiado humano,

Nietzsche observa que, pouco antes de iniciar a redação do livro, ele teria se dado conta

do quanto havia se desviado de seus instintos e de que a proximidade com Wagner e a

cátedra da Basiléia seriam apenas sinais desse desvio de sua própria natureza em prol do

ceder a pressões externas, do atender a exigências do ambiente em que vivia e que

refletia tendências da modernidade que ele qualificava como negativas2. A publicação

de Humano, demasiado humano inauguraria, assim, um processo de singularização de

seu pensamento que evidenciaria a necessidade da radicalização das estratégias de luta

contra seu tempo, a necessidade de escapar efetivamente das tendências hegemônicas no

próprio ambiente acadêmico em que ele teria se formado e em que agora ele professava.

O fato de tudo isso se confundir com o seu afastamento definitivo das instituições de

ensino em que atuava como professor pode indicar o que pensar sobre o papel das

instituições de ensino modernas. O fato de, a partir desse afastamento, passar a

experimentar e a desenvolver sua própria linguagem, de enveredar por caminhos cada

vez mais próprios e dar cada vez mais consistência às suas abordagens, levando adiante

o processo pelo qual pode vir a tornar-se o que se tornou dá ainda mais o que pensar a

esse respeito.

Curiosamente, Nietzsche não volta mais a dedicar seus escritos à reflexão detida

sobre as instituições de ensino – pouquíssimas, eventuais e esparsas são as referências

explícitas a partir de então e, quando aparecem, aparecem em curtos aforismos, frases

de efeito e jamais desenvolvidas como antes. Há certo silêncio a esse respeito. Um

talvez salutar “desvio de olhar” em relação a tais problemas.

**

Embora, a partir da publicação de Humano, demasiado humano, Nietzsche não

se dedique mais – pelo menos não de modo explícito – à discussão sobre o papel dos

estabelecimentos de ensino modernos e a questões facilmente identificáveis como

pedagógicas, isto não significa que a principal contribuição de sua filosofia para o

2 Ibidem.

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Contribuições de Nietzsche para uma concepção artística de educação

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 24-41, 2017 29

campo da educação se restrinja ao que pode ser extraído das conferências proferidas na

Basileia ou da terceira Extemporânea. É justamente dos seus textos posteriores, em que

o tema da educação moderna não parece estar diretamente presente, que surge não só a

incitação para que se invista numa reavaliação dos valores, dos saberes, dos princípios e

pressupostos diretamente ligados ao funcionamento das nossas práticas, mas também a

“metodologia” a partir da qual tal reavaliação pode ser feita.

O movimento de radicalização de seu pensamento que se torna público com

Humano, demasiado humano se intensifica nos escritos seguintes e parece atingir seu

auge com a publicação de Além do bem e do mal, em 1886, e Genealogia da Moral, em

1887 – textos em que se delineia o modelo de avaliação nietzschiano que ficou

conhecido como método genealógico. A especificidade destes textos está em abrir a

possibilidade de se aprofundar o questionamento a respeito das práticas, saberes e

valores que vigoram na modernidade, colocando em jogo a necessidade de nos

interrogarmos a respeito do modo pelo qual tendemos a operar a própria avaliação de

tais práticas e saberes, a necessidade de nos interrogarmos acerca dos próprios valores a

partir dos quais se dão nossas avaliações e até acerca do valor das motivações que

levam a tais avaliações. Trata-se, talvez primeiramente, de colocar em xeque o próprio

valor pelo qual tendemos a avaliar os demais valores, o próprio valor que jaz como base

de toda e qualquer forma de conhecimento – a “verdade” – e ainda o desejo que o

engendra – a “vontade de verdade”.

Já na primeira secção de Além do bem e do mal, Nietzsche introduz essa guinada

em suas problematizações, colocando claramente em questão o valor da verdade e da

vontade de verdade. Este questionamento se desenvolve nas secções seguintes, e na

secção 4 se esboça não só a estratégia utilizada para se procurar respondê-lo, como

também se insinua a própria resposta:

A falsidade de um juízo não chega a constituir, para nós, uma objeção contra ele; é talvez nesse

ponto que a nossa nova linguagem soa mais estranha. A questão é em que medida ele promove

ou conserva a vida, conserva ou até mesmo cultiva a espécie; e a nossa inclinação básica é

afirmar que os juízos mais falsos (entre eles os juízos sintéticos a priori) nos são os mais

indispensáveis, que, sem permitir a vigência das ficções lógicas, sem medir a realidade com o

mundo puramente inventado do absoluto, do igual a si mesmo, o homem não poderia viver – que

renunciar aos juízos falsos equivale a renunciar à vida. Reconhecer a inverdade como condição

de vida: isto significa, sem dúvida, enfrentar de maneira perigosa os habituais sentimentos de

valor; e uma filosofia que se atreve a fazê-lo se coloca, apenas por isso, além do bem e do mal.3

3 NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal, I, § 4, p.11.

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Adriany Ferreira de Mendonça & Alexandre Ferreira de Mendonça

30 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 24-41, 2017

A proposta aqui anunciada é a de se colocar em questão o próprio valor da

veracidade e da falsidade como critérios de avaliação de um juízo. Em vez de tomar tais

elementos como parâmetros seguros a partir dos quais seriam conduzidas as avaliações,

Nietzsche coloca em jogo a necessidade de se perguntar sobre o quanto nossos juízos

contribuem ou não para a promoção ou conservação da vida. Para essa outra questão, a

resposta que o autor aí indica de modo francamente polêmico e provocativo

desestabiliza as bases de nossa tradição de pensamento, de nossos hábitos e do que

tendemos a priorizar, embaralhando as fronteiras que supomos haver entre o verdadeiro

e o falso. O mundo do absoluto e do igual a si mesmo, as bases da lógica a partir das

quais tendemos a operar nossas avaliações são tratados como ficções e invenções e

assim associados ao campo do falso. Como se não bastasse, apesar de toda a falsidade

atribuída a esses elementos, neles é reconhecida a positividade de serem indispensáveis

à vida. Por essa perspectiva, que já não concebe o falso como o oposto do que

tradicionalmente tomamos como verdadeiro, o valor positivo de toda a sorte de ficções e

invenções colocadas em jogo por nossas avaliações lógicas estaria condicionado ao

papel desempenhado na promoção da vida. Como conseqüência, se a inverdade é

interpretada como condição de vida, renunciar a ela equivaleria a renunciar à vida.

Emerge daí uma convocação a que, no mínimo, suspeitemos de tudo aquilo que somos

levados a tomar por verdadeiro, que desconfiemos do seu suposto valor positivo, ou

pelo menos de sua validade universal.

No “Prólogo” de Genealogia da moral, mais especificamente em uma passagem

dedicada a problematizar o valor da compaixão e da moral da compaixão, Nietzsche é

ainda mais claro e incisivo a respeito de como conduzir as problematizações que propõe

e suas possíveis respostas, remetendo suas investigações claramente a uma pesquisa

histórica a respeito das condições de vida que estariam por trás do modo pelo qual

tendemos a conduzir nossas avaliações:

(...) quem neste ponto se detém, quem aqui aprende a questionar, a este sucederá o mesmo que

ocorreu a mim – uma perspectiva imensa se abre para ele, uma nova possibilidade dele se

apodera como uma vertigem, toda espécie de desconfiança, de suspeita e temor salta adiante,

cambaleia a crença na moral, em toda moral – por fim, uma nova exigência se faz ouvir.

Enunciemo-la, esta nova exigência: necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio

valor desses valores deverá ser colocado em questão – para isso é necessário um conhecimento

das condições e circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se desenvolveram e se

modificaram (moral como conseqüência, como máscara, tartufice, doença, mal-entendido; mas

também moral como causa, medicamento, estimulante, inibição, veneno), um conhecimento tal

como até hoje nunca existiu nem foi desejado. Tomava-se o valor desses “valores” como dado,

como efetivo, como além de qualquer questionamento; até hoje, não houve dúvida ou hesitação

em atribuir ao “bom” valor mais elevado que ao “mau”, mais elevado no sentido da promoção,

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Contribuições de Nietzsche para uma concepção artística de educação

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 24-41, 2017 31

utilidade, influência fecunda para o homem (não esquecendo o futuro do homem). E se o

contrário fosse a verdade?4

Trata-se aqui, explicitamente, de propor uma crítica dos valores a partir dos

quais conduzimos nossas avaliações, de propor uma avaliação daquilo que se tomava

como dado inquestionável: o próprio valor dos valores. Avaliação que toma a forma de

uma investigação genealógica, de uma busca pela origem histórica destes valores, de um

estudo sobre “as condições e circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se

desenvolveram e se modificaram”. Em outra passagem do referido texto, pouco anterior

à supracitada, Nietzsche, referindo-se a como “alguma educação histórica e filológica,

juntamente com um inato senso seletivo em questões psicológicas”, transformou os

problemas de seus primeiros escritos naqueles com os quais então passou a lidar, lista

uma série de questões que cumprem o papel de indicar o sentido de seu método:

(...) sob que condições o homem inventou para si os juízos de valor “bom” e “mau”? E que valor

têm eles? Obstruíram ou promoveram até agora o crescimento do homem? São indício de

miséria, empobrecimento, degeneração da vida? Ou, ao contrário, revela-se neles a plenitude, a

força, a vontade de vida, sua coragem, sua certeza, seu futuro?5

Nietzsche exercitou o que poderíamos chamar de método genealógico colocando

em xeque não só os valores hegemônicos que balizam nossas práticas na modernidade.

Tal problematização repercute necessariamente sobre os saberes aos quais tendemos a

atribuir valores ditos positivos. No caso da cultura moderna, ela se desdobra na

reavaliação do saber científico, que tende a se impor como substituto da religião e da

filosofia metafísica. Nesse sentido, embora nesse momento posterior de sua obra o autor

não tenha explicitamente se dedicado ao questionamento de nossas práticas

educacionais ou do funcionamento dos nossos estabelecimentos de ensino, como fez em

seus primeiros escritos, ainda assim ele teria aberto espaço para uma série de

questionamentos a serem levados adiante: o que fazemos, o que pensamos, o que

aprendemos, o que ensinamos, o que difundimos e desejamos atende a que propósitos e

interesses? Tudo isso instaura ou alimenta que tipo de relações de poder? Promove ou

não que modo de relação com a vida? Qual o valor de se educar para e pela verdade?

Qual o valor das verdades constitutivas de nossas práticas em educação?

Seguindo as pistas deixadas por Nietzsche em Genealogia da moral e Além do

bem e do mal – com toda violenta crítica aos ideais da modernidade presente nestes

4 NIETZSCHE. F. Genealogia da moral: uma polêmica, “Prólogo”, § 6, p. 12. 5 Ibidem, § 3, p. 9.

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32 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 24-41, 2017

escritos –, seríamos levados a reconhecer o vínculo existente entre nossas práticas

pedagógicas e o campo de valorações que o autor identifica à “moral do rebanho” (em

sua versão burguesa). Seríamos levados a perceber a linha de continuidade entre a

ciência – instrumento de legitimação das próprias práticas pedagógicas que difundem

seus conteúdos e nos induzem a naturalizar e assumir seu suposto valor de verdade –, e

os ideais ascéticos de origem metafísico-religiosa. Seríamos levados ainda a perceber o

caráter utilitário do conhecimento científico, seu papel na produção de subjetividades

modeladas pelas exigências de produtividade e lucro, seu comprometimento com todo o

jogo de interesses que rege as emergentes sociedades modernas em que o lucro e sua

identificação ao ideal da felicidade são os valores pelo quais todos os outros valores são

regidos. Em suma, por essa perspectiva, nossas práticas pedagógicas seriam balizadas

por saberes e valores que não só teriam sua origem em um modo de vida decadente,

doente, enfraquecido, como teriam o sentido de disseminar e aprofundar o caráter

negativo de tal modo de vida. Mais do que confirmar algumas das conclusões

apresentadas por Nietzsche naqueles que ficaram conhecidos como seus escritos sobre

educação, a genealogia das nossas práticas pedagógicas, de seus princípios e

pressupostos, dos valores e saberes por elas colocados em jogo – genealogia que

Nietzsche inspira embora não a realize – tende a levar ao aprofundamento, ao

desenvolvimento e à melhor fundamentação da abordagem crítica que teria sido

anunciada em seus primeiros escritos, fortalecendo a possibilidade de um

questionamento radical do suposto valor positivo que tendemos a ingenuamente atribuir

ao próprio ideal da educação na modernidade.

***

“Não! Não me venham com a ciência, quando busco a antagonista natural do

ideal ascético (...). Ambos, a ciência e o ideal ascético, acham-se no mesmo terreno – já

o dei a entender”, previne Nietzsche no início da secção 25 da terceira dissertação da

Genealogia moral, para logo em seguida, anunciar a instância com a qual seu

pensamento teria então procurado estabelecer um vínculo direto: “a arte, na qual

precisamente a mentira se santifica, a vontade de ilusão tem a boa consciência a seu

favor, opõe-se bem mais radicalmente do que a ciência ao ideal ascético”6. Se tanto a

6 NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral, III, § 25, p. 141.

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Contribuições de Nietzsche para uma concepção artística de educação

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 24-41, 2017 33

ciência quanto o ideal ascético se encontrariam no campo da crença na superestimação e

na incriticabilidade da verdade e se, por isso, só poderiam ser combatidos juntos, a arte,

por acolher a aparência como a aparência, a mentira como mentira, e afirmar com boa

consciência a própria vontade de ilusão, se torna a principal aliada de Nietzsche na

guerra contra o campo de avaliações do qual pretende escapar.

Dessa sugestão de aliança com a arte se delineiam, então, outras possíveis

contribuições nietzschianas para o campo da educação. O diagnóstico negativo sobre o

regime de educação moderno ao qual a genealogia parece nos levar encontra seu revés

afirmativo justo nas alternativas que a arte nos incita a pensar. Alternativas que se

constituem a partir da possibilidade de valorização não só de saberes diferentes daqueles

veiculados preferencialmente por nossas instituições de ensino, mas também de um

outro modo de relação com a vida, calcado em uma perspectiva experimental, pela qual

seríamos estimulados a assumir uma postura artística em relação à existência, a investir

na criação de valores singulares, mais afinados com as nossas idiossincrasias, na criação

de uma dieta de hábitos mais convenientes ao nosso fortalecimento e, por assim dizer,

no esboço de processos de autoformação a serem permanentemente problematizados,

reavaliados e reconfigurados.

Nesse sentido, A gaia ciência é um livro exemplar. O próprio título escolhido

para essa publicação de 1882 cumpre bem o papel de anunciar festivamente essa aliança

e suas implicações. Não se trata aí de uma referência à ciência tal como pensada a partir

de nossa tradição racionalista. Trata-se sim de uma referência direta às expressões “gaya

scienza” ou “gai saber”, pelas quais se nomeava uma modalidade de sabedoria distante

dos modelos que prevaleceram no ocidente: a sabedoria presente no exercício da arte

dos trovadores provençais em meio à cultura popular medieval – sabedoria poético-

musical que diz respeito à composição e à apresentação pública de poemas-canções

formalmente sofisticados, de conteúdo leve, bem humorados e por vezes até mesmo

iconoclastas.

Evidências do enlace que aí se dá entre a filosofia nietzschiana e a arte “ligeira,

zombeteira, divinamente imperturbada, divinamente artificial” dos poetas provençais,

como sugere o prefácio acrescentado à segunda edição, surgem nos 63 poemas que

abrem o livro, e nas 14 canções também acrescentadas por ocasião desta outra edição.

Mas talvez ainda mais significativos sejam os versos utilizados por Nietzsche a título de

epígrafe: “Vivo em minha própria casa/ Jamais imitei algo de alguém/ E sempre ri de

todo mestre/ Que nunca riu de si também”. Esse poema curto, que antecede todos os

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34 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 24-41, 2017

demais escritos que compõem o livro, vem acompanhado ainda da curiosa observação

“inscrição sobre a minha porta”, sendo apresentado assim como uma humorada

advertência ao leitor prestes a adentrar a obra. Ele tem o efeito de um filtro

interpretativo que antecipa, condensa e realça alguns dos principais elementos que

constituem a gaia ciência nietzschiana: a aposta na valorização das singularidades; a

recusa de modelos homogeneizantes, o vínculo que se estabelece entre esta outra ciência

e um regime afetivo marcado pelo bom humor; a exaltação do riso como antídoto contra

todo o pathos da seriedade, como uma arma leve e jocosa capaz de desestabilizar a

autoridade que se tende conferir à figura sisuda do mestre, tão cara à tradição

pedagógica; e, mais uma vez, a franca opção pela aventura de exercitar a expressão de

seu pensamento pela linguagem poética.

De modo geral, essa experimentação estilística, essa escrita poética e, por vezes,

também dramática atravessa todo o livro, mesmo que, em alguns casos, de maneira mais

sutil, sobrepondo-se ao estilo aforístico já ensaiado desde a guinada com Humano,

demasiado humano. Tal aproximação em relação ao campo da poesia permite que o

autor apresente suas abordagens com uma tonalidade bastante diferente daquela com

que mais frequentemente se apresentam os discursos que se pretendem (ou que

pretendem nos induzir a tomá-los por) inquestionavelmente verdadeiros. Ela parece

cumprir o papel de evidenciar que o autor é impulsionado por um pathos que em muito

difere da “vontade de verdade” que teria conduzido a história do pensamento ocidental.

Nietzsche opta por formulações que, já pelo modo como são apresentadas, chamam a

atenção para seu caráter fictício e meramente hipotético. Com isso, o leitor é convidado

a estabelecer um tipo de relação nada ingênua com os próprios textos que constituem A

gaia ciência, com esses textos em que Nietzsche desenvolve sua perspectiva crítica

incidindo privilegiadamente sobre a moral, a religião, a filosofia dogmática e a ciência.

Por outro lado, é através desses textos que o autor leva adiante sua aliança com a arte,

criando formulações que tematizam explicitamente o papel positivo que a arte teria

como um importante contraponto à hegemonia exercida pela moral, pela religião, pela

filosofia e, mais recentemente, pela ciência. Concebida como uma “espécie de culto do

não-verdadeiro”, para além dos limites do que se reconhece como obra, a arte é tomada

como um antimodelo a partir do qual se poderia pensar a vida, o conhecimento e formas

alternativas de lidarmos com a existência, não balizadas por valores de caráter universal.

Um dos melhores exemplos do posicionamento de Nietzsche em relação à arte

em A gaia ciência aparece na secção 107. Tendo desenvolvido na secção 54 a ideia de

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Contribuições de Nietzsche para uma concepção artística de educação

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 24-41, 2017 35

que a vida se constitui integralmente no campo das aparências, de que a ilusão e o erro

são elementos integrantes da vida em todas as suas instâncias e de que o conhecimento

seria um artifício da própria vida para levar esse jogo adiante7, Nietzsche, agora nesta

outra secção, intitulada “Nossa derradeira gratidão para com a arte”, retoma todos esses

pontos para daí propor a ideia de que a própria existência poderia ser compreendida

como um fenômeno estético e derivar uma série de implicações:

Se não tivéssemos aprovado as artes e inventado essa espécie de culto do não-verdadeiro, a

percepção da inverdade e mendacidade geral, que agora nos é dada pela ciência – da ilusão e do

erro como condições da existência cognoscente e sensível –, seria intolerável para nós. A retidão

teria por conseqüência a náusea e o suicídio. Mas agora a retidão tem uma força contrária, que

nos ajuda a evitar conseqüências tais: a arte como a boa vontade de aparência. (...) Como

fenômeno estético a existência ainda nos é suportável, e por meio da arte nos são dados os olhos

e mãos e, sobretudo, boa consciência, para poder fazer de nós mesmos um tal fenômeno.

Ocasionalmente precisamos descansar de nós mesmos, olhando-nos de cima e de longe e, de

uma artística distância, rindo de nós ou chorando por nós; precisamos descobrir o herói e

também o tolo que há em nossa paixão do conhecimento, precisamos nos alegrar com a nossa

estupidez de vez em quando, para poder continuar nos alegrando com a nossa sabedoria! E

justamente por sermos, no fundo, homens pesados e sérios, e antes pesos do que homens, nada

nos faz tão bem como o chapéu do bobo; necessitamos dele diante de nós mesmos –

necessitamos de toda arte exuberante, flutuante, dançante, zombeteira, infantil e venturosa, para

não perdermos a liberdade de pairar acima das coisas, que o nosso ideal exige de nós. Seria para

nós um retrocesso cair totalmente na moral, justamente com a nossa suscetível retidão, e, por

causa das severas exigências que aí fazemos a nós mesmos, tornamo-nos virtuosos monstros e

espantalhos. Devemos também poder ficar acima da moral: e não só ficar em pé, com a

angustiada rigidez de quem receia escorregar e cair a todo instante, mas também flutuar e brincar

acima dela! Como poderíamos então nos privar da arte, assim como do tolo? – Enquanto vocês

tiverem alguma vergonha de si mesmos, não serão ainda um de nós!8

A arte, apresentada nesta secção como uma “espécie de culto do não

verdadeiro”, ao evidenciar os artifícios que a constituem, nos sensibilizaria para

perceber o que há de artificial e artístico na própria vida e, mais que isso, para ver com

outros olhos o caráter meramente aparente de tudo o que nos cerca. Através dela,

seríamos levados não só a perceber as ilusões constitutivas da própria existência, mas

também a compreender o que nelas pode haver de positivo e necessário. Seríamos

levados, assim, a estabelecer um outro tipo de relação com nós mesmos e com o mundo

em que vivemos, não mais pautada pela crença moral no valor superior da verdade, mas

sim na afirmação do erro, da ilusão como elementos próprios e imprescindíveis ao

funcionamento da vida. Daí Nietzsche propor explicitamente nesta secção que, através

da arte, nos são dados os meios e a boa consciência para que possamos fazer de nós

mesmos um fenômeno estético. Afirmação que, em última instância, atribui à arte o

poder de nos induzir a um modo de agir que já não se apóia no apego a qualquer valor

7 NIETZSCHE, F. A gaia ciência, I, § 54, p. 92. 8 Ibidem, II, § 107, pp. 132-133.

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Adriany Ferreira de Mendonça & Alexandre Ferreira de Mendonça

36 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 24-41, 2017

de caráter universal instituído previamente, mas sim na consciência de que lidamos com

um mundo de puras aparências eternamente cambiantes, e de que nossas ações e

pensamentos valem como intervenções artísticas que nos habilitam a tomar parte neste

jogo pelo qual se recriam permanentemente as possibilidades de vida. A ideia de que o

próprio conhecimento ou mesmo a moral não passariam de invenções que colocariam

em jogo toda a sorte de truques ilusórios em proveito de certos modos de vida (e não da

vida em geral), a ideia de se conceber a própria vida não pelo viés da unidade ou da

totalidade, mas pelo das multiplicidades, tudo isso implica o rompimento com a

exigência de submissão a modelos unitários pretensamente universais. Tudo isso se

articula necessariamente com a já tematizada exigência de se pensar em outras e

inusitadas formas de conhecimento e avaliação, em outras maneiras de se produzir tais

artifícios, de modo a contemplar a própria variedade de formas de vida.

O que um texto como a referida secção de A gaia ciência parece indicar mais

uma vez, embora de modo talvez enviesado, é que, diante de qualquer modelo que a nós

se imponha, cabe a pergunta sobre o seu valor para a vida; cabe a pergunta sobre o tipo

de vida ao qual ele serve; cabe a pergunta sobre os seus efeitos. Coloca-se, assim, a

exigência de desenvolvermos uma sutil percepção a respeito do que nos convém ou não,

do que nos fortalece ou não, ou do que pode, deve ou merece ser estimulado e

desenvolvido em nós. Exigência a partir da qual se abre a possibilidade de participarmos

de modo alegre, zombeteiro, dançante e flutuante na criação de outros artifícios que

venham a auxiliar positivamente nossa relação com a vida, sem que se possa contar com

respostas prévias para nos guiar nessa atividade, mas apenas com um exercício

assumidamente experimental, no qual o erro deixa de ser pensado como algo em si

mesmo negativo.

Tanto a compreensão da arte como algo que se coloca para além das obras de

arte, como a ideia de uma ação estética sobre a existência voltam a aparecer no quarto

livro de A gaia ciência. A secção 290 chama a atenção para a necessidade de que o

homem atinja a satisfação consigo mesmo, situando a arte como um instrumento para se

conseguir tal efeito. Mais adiante, na secção 299, sugestivamente intitulada “O que

devemos aprender com os artistas”, Nietzsche propõe que com eles aprendamos a

utilizar toda a série de invenções e artifícios para tornar as coisas belas, atraentes e

desejáveis, mesmo quando elas não o são, concluindo o texto com o convite para que

nos tornemos poetas autores de nossas vidas, principiando pelas coisas mínimas e

cotidianas:

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Contribuições de Nietzsche para uma concepção artística de educação

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 24-41, 2017 37

De que meios dispomos para tornar as coisas belas quando elas não o são? – e eu acho que em si

elas nunca o são! Aí temos algo a aprender com os médicos, quando eles, por exemplo, diluem o

que é amargo ou acrescentam açúcar e vinho à mistura; ainda mais dos artistas que

permanentemente se dedicam a essas invenções e artifícios. Afastarmo-nos das coisas até que

não mais vejamos muita coisa delas e nosso olhar tenha de juntar muita coisa para vê-las ainda –

ou ver as coisas de soslaio e como que em recorte – ou dispô-las de forma tal que elas encubram

parcialmente umas às outras e permitam somente vislumbres em perspectivas – ou contemplá-las

por um vidro colorido, ou à luz do poente – ou dotá-las de pele e superfície que não seja

transparente: tudo isso devemos aprender com os artistas, e no restante ser mais sábios do que

eles. Pois neles esta sutil capacidade termina, normalmente, onde termina a arte e começa a vida;

nós, no entanto, queremos ser os poetas-autores de nossas vidas, principiando pelas coisas

mínimas e cotidianas.9

De início, Nietzsche recusa a ideia de que as coisas possam possuir um valor

positivo em si mesmo. Nesse caso específico, a “beleza” é tratada não como um ideal

transcendente, ou um valor absoluto, mas como uma criação artificial. Nietzsche parte

então de uma curiosa valorização do médico – que não é apresentado como um porta-

voz da verdade a quem deveríamos nos submeter, mas como alguém com quem

poderíamos aprender a dominar certos truques que diriam respeito à transfiguração das

aparências – para então chamar a atenção para a superior importância dos artistas: com

eles teríamos ainda mais o que aprender a esse respeito.

Também fica claro nessa passagem que o tipo de revalorização que Nietzsche

empreende acerca da arte não se confunde com a mistificação do artista ou das obras de

arte. Ao contrário, ele não deixa de sutilmente lançar suas críticas aos artistas por,

normalmente, não serem capazes de exercer suas habilidades para além dos limites da

obra de arte. Daí nos prevenir que devemos ser ainda mais sábios que os artistas. Trata-

se mais uma vez de valorizar a arte para além das obras de arte. Trata-se de exaltar o

sutil poder que seus artifícios assumem quando aplicados na reavaliação de nossa

relação com a vida. Trata-se de extrair da arte os meios pelos quais se pode intervir

sobre a existência, de modo a torná-la atraente e desejável aos nossos olhos. Ao se

referir às artimanhas cujo domínio seria privilégio dos artistas, Nietzsche as compreende

e as utiliza em sentido eminentemente metafórico, transportando-as para o campo da

própria vida cotidiana. Ver as coisas a partir de determinadas perspectivas, encobri-las

parcialmente, sobrepor a elas uma superfície colorida, variar a luz que sobre elas incide:

eis a série de artifícios que Nietzsche propõe que aprendamos a utilizar para empregá-

los não na preparação daquilo que já se reconhece previamente como obra de arte, mas

na recriação da vida. A arte exercida para além dos limites da obra de arte poderia então

9 Ibidem, IV, § 299, p. 202.

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Adriany Ferreira de Mendonça & Alexandre Ferreira de Mendonça

38 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 24-41, 2017

ser valorizada não só por nos incitar a deixar de lado as valorações universais a partir

das quais tradicionalmente avaliamos nossas ações, nosso suposto caráter, nossa suposta

natureza, nossa vida, mas ainda por nos induzir a uma atividade criativa pela qual

podemos investir na produção de um sentido afirmativo para as singularidades que

compõem a nossa existência, como uma atividade pela qual podemos nos tornar

criadores de nós mesmos, afirmando sobretudo nossas idiossincrasias, convertendo em

virtude singular aquilo que, sob uma perspectiva moral, talvez fosse interpretado como

fraqueza, erro, desvio, patologia.

Essa articulação entre a valorização da arte para além das obras de arte e a

possibilidade de ultrapassagem das valorações morais volta a ser sugerida de um modo

mais direto em outros textos de A gaia ciência. A secção 301, por exemplo, retoma a

ideia, já apresentada de outro modo na secção 299, de que nada possui valor em si

mesmo, acrescentando que o que quer que tenha valor nesse mundo só o tem graças às

invenções de homens de propensão artística. Mas é a secção 335 a mais explícita a esse

respeito. Neste texto, Nietzsche, após atacar precisamente a suposição de leis e valores

universais a partir dos quais seriam julgadas nossas condutas, nos convida a criar ideais

próprios, a instituir nossas próprias tábuas de valores para, assim, nos tornarmos aqueles

que somos, criando-nos a nós mesmos: “É tempo de se enojar com toda a tagarelice

moral de uns sobre os outros (...) Nós, porém queremos nos tornar aqueles que somos –

os novos, únicos, incomparáveis, que dão leis a si mesmos, que criam a si mesmos!”10.

Todos esses textos de A gaia ciência trazem à tona tanto a discussão sobre a

urgência de estabelecermos certa distância em relação ao que somos levados a aprender

dentro e fora de nossas instituições quanto a discussão sobre a necessidade de

apreendermos coisas muito diferentes daquelas que tendemos a comumente valorizar

como alvo de aprendizado. Por essa perspectiva, deveríamos antes de mais nada

aprender a suspeitar dos valores e saberes aos quais somos permanentemente incitados a

aderir pelas práticas pedagógicas que constituem o modelo de educação moderno,

deveríamos avaliá-los a partir de abordagens singularizantes que levem em conta nossas

idiossincrasias, nossas necessidades e possibilidades – sempre provisórias,

circunstanciais e, portanto, não passíveis de universalização. Deveríamos aprender ainda

a investir na criação de outras formas de avaliar, pensar e lidar com a vida, calcadas não

em modelos e identidades prévias, verdades e valores universais, respostas fixas e regras

10 Ibidem, § 335, p. 224.

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Contribuições de Nietzsche para uma concepção artística de educação

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 24-41, 2017 39

inquestionáveis, mas na experimentação – experimentação de outras maneiras de viver,

de modo a atender à necessidade de desenvolvermos e fortalecermos nossas potências

singulares. Se a importância do aprendizado persiste, trata-se agora de um outro

aprendizado que teria na arte no mínimo sua fonte de inspiração. Rejeição de modelos

universais, de princípios e fundamentos inquestionáveis, revalorização da

experimentação, incitação a que tomemos um papel ativo no processo de invenção e

reinvenção destes modelos, princípios e fundamentos: são esses os elementos que

constituem a concepção artística de educação que emerge desses textos. Uma concepção

eminentemente experimental, que teria no estímulo à criação de valores singulares e de

outras formas de saber e viver o contraponto necessário às tendências moralizantes e

homogeneizantes que ainda presidem a constituição e difusão dos saberes hegemônicos

na modernidade.

****

O horizonte para o qual os textos e a própria biografia de Nietzsche apontam vai

muito além daquele almejado pela educação estritamente institucional. A concepção de

experiências artísticas de educação que estes textos nos convidam a esboçar não se

reduz à formação disciplinar no interior de instituições que pressupõem o modelo ao

qual aquele que pretende se tornar artista deve corresponder – pouco importa se o

modelo pressuposto corresponde ao artista intelectualizado, erudito, que é capaz de se

mover nos círculos da suposta alta cultura ou àquele que atende às mais recentes

exigências do mercado do entretenimento. Ela também não se reduz ao uso instrumental

da arte como ferramenta que teria o sentido de contribuir para a maior eficiência na

produção dos efeitos que nossos estabelecimentos de ensino previamente se

comprometem a alcançar. Ao contrário, tanto em um caso como no outro, estaria em

jogo o risco de aniquilamento da potência perturbadora que Nietzsche exalta na arte.

Trata-se, em vez disso, de extrair da arte elementos que nos inspirem um outro modo de

nos relacionarmos com nosso próprio processo de formação e de, a partir daí,

redefinirmos o que podem ser os modos de funcionamento, os papéis e os limites da

educação institucional.

Cabe perguntar, então, se o esboço de uma concepção artística de educação, tal

como sugerido por tais textos de Nietzsche, seria compatível com o regime de forças

que preside o funcionamento de nossas instituições de ensino. Seria possível contribuir

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Adriany Ferreira de Mendonça & Alexandre Ferreira de Mendonça

40 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 24-41, 2017

para a instauração de processos de formação de caráter singularizante, não modelares,

não homogeneizantes ainda que no interior dessas instituições? Seria possível a criação

de ambientes capazes de estimular uma relação experimental com a vida, de modo a se

promover o desenvolvimento de processos de autoformação a partir do contato com as

instituições de ensino? E, para isso, seria preciso uma alteração radical do modelo que

as rege? Ou bastaria a alteração da nossa relação – quer sejamos alunos, professores,

funcionários de qualquer escalão, pais... – com tais instituições, a alteração da nossa

relação com os valores e saberes que as sustentam e que elas promovem? Seria possível

delas nos apropriarmos, nos apropriarmos do que elas veiculam e converter em algo

proveitoso para o desenvolvimento de nossa própria autoformação independentemente

do efeito de formação que elas pretendem e tendem a produzir? Em que medida aquilo

mesmo que por elas não é previsto, a presença da intratável alteridade, aquilo mesmo

que nelas é combatido como negativo e que é identificado pelos signos do caos, da

desordem e da perturbação pode ser o que nelas há de valioso? Eis a gama de questões

que essa discussão pode suscitar para o campo da educação institucional. Questões que

exigem debate e para as quais respostas prévias devem ser previamente recusadas, seja

por se tratar aí de um campo de forças, de tensões e disputas cujo funcionamento talvez

seja difícil de mapear ou de se reduzir a relações de causa e efeito identificáveis, seja

porque o caráter experimental daquilo que aqui se propõe exige antes a experiência, o

gosto pelo risco e a alegre afirmação da possibilidade do erro, em vez de garantias, leis,

ou regras de conduta.

Referências bibliográficas

NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Tradução de Paulo César Souza. São Paulo:

Cia das letras, 2001.

____________________. Além do bem e do mal. Tradução de Paulo César Souza. São

Paulo: Cia das letras, 1998.

____________________. Ecce homo. Tradução de Paulo César Souza. São Paulo: Cia

das letras, 1995.

____________________. Escritos sobre educação. Tradução de Noéli Correia de Melo

Sobrinho. São Paulo: Loyolla, 2003.

____________________. Genealogia da moral. Tradução de Paulo César Souza. São

Paulo: Cia das letras, 1998.

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Contribuições de Nietzsche para uma concepção artística de educação

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 24-41, 2017 41

____________________. Humano, demasiado humano. Tradução de Paulo César

Souza. São Paulo: Cia das letras, 2004.

____________________. O nascimento da tragédia. Tradução de J. Guinsburg. São

Paulo: Cia das letras, 1992.

Recebido em: 08/05/2017

Aprovado em: 25/05/2017

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42 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 42-59, 2017

Arte e saúde em Nietzsche

Carlos Roger Sales da Ponte

Resumo: Trata-se de um exercício compreensivo-interpretativo acerca de

algumas posições do filósofo alemão Friedrich Nietzsche sobre a arte na obra

Humano, Demasiado Humano e suas possíveis ligações com o tema da “saúde”.

Buscam-se elementos para uma compreensão ampliada de uma saúde

existencial, tomando a arte como um meio privilegiado para esta finalidade.

Palavras-chave: arte; saúde; Humano, Demasiado Humano; Friedrich

Nietzsche.

Art and health in Nietzsche

Abstract: It is a comprehensive-interpretative exercise about some positions of

the German philosopher Friedrich Nietzsche on the work of art in the book

Human, All Too Human and possible links with the theme of "health." Look up

elements for a broader understanding of an existential health, taking art as a

privileged means for this purpose.

Keywords: art; health; Human, All Too Human; Friedrich Nietzsche.

Uma coisa é necessário ter:

ou um espírito leve por natureza

ou um espírito aliviado pela arte e pelo saber.

Nietzsche1

Introdução

O saudoso professor e filósofo Gerd Bornheim, em um texto intitulado Filosofia

e Poesia2, nos diz que aquela nasceu desta última ao nos recordar que a maioria dos

filósofos Pré-Socráticos escreveram suas reflexões em forma de poemas. Ou seja,

qualquer argumentação na busca ou no vislumbre de alguma “verdade”, deveria vir à

luz versejando. Deduz-se daí que filosofia e arte, apesar de suas diferenças, não

poderiam estar separadas, pois o terreno da experiência vivida é o solo comum do poeta

e do filósofo: ambos experienciam este mundo e, neste reflexivo contato, o expressam

Este escrito é uma versão estendida da palestra proferida no VI Encontro Ludovicense de

Fenomenologia, Psicologia Fenomenológica e Filosofias da Existência, que ocorreu em abril de 2016

na Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Professor do Curso de Psicologia da UFC/Campus Sobral. Mestre em Filosofia e Mestre em Psicologia

UFC). Doutorando em Filosofia (UFC). Contato: [email protected] 1 NIETZSCHE, Humano, demasiado humano, aforismo 486. 2 BORNHEIM, Filosofia e poesia. Disponível em:

<http://www.pgletras.uerj.br/matraga/matraga00/matraga0a15.pdf>

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Arte e saúde em Nietzsche

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 42-59, 2017 43

em suas respectivas obras. Com o filósofo alemão Friedrich Nietzsche não foi diferente:

arte (sobretudo a música) e filosofia, em vários momentos, são quase indiscerníveis no

percurso de sua obra.

Não pretendendo discorrer sobre as inúmeras nuances que o tema da arte toma

na multiforme trajetória de Nietzsche, tarefa grande demais e para uma vida inteira

talvez... Desejo aqui realizar um exercício compreensivo-interpretativo acerca de

algumas posições do filósofo no que se refere à arte na obra Humano, Demasiado

Humano (doravante HDH) e suas possíveis ligações com o que significa “saúde” e

“doença”, entendidas no contexto do seu pensamento.

É claro, tratar destas temáticas não significa fazer uma mera exegese do texto de

Nietzsche onde estes assuntos vêm à tona de maneiras mais ou menos explícitas, ou

como conceitos soltos que podemos unir em argumentos encadeados logicamente.

Implica, antes, delinear seus contornos na ideia muitas vezes por ele repetida do tornar-

se o que se é: o que quer dizer “ser saudável” e, ao mesmo tempo, estar em busca de si

mesmo? Como a experiência da arte dá suporte a esta concepção de saúde? Por outros

termos, desejo explorar aspectos da arte e da saúde como experiências desencadeadoras

ou “auxiliares”, digamos, a partir das quais alguém se torna o que é. Dando um corpo

vivente a estes temas, trato aqui de buscar elementos para dar certa visibilidade a uma

compreensão mais ampliada de uma saúde existencial, tomando a arte, segundo a ótica

de Nietzsche, como meio privilegiado para tanto.

Cumpre deixar claro, desde já, que um procedimento de pesquisa que vai

experimentando os vários lugares que figuram no discurso de Nietzsche, implica em

não tomar o próprio Nietzsche como uma “fonte de convicções” ou “verdades

estabelecidas”, pois “não existe uma lei ou obrigação dessa espécie; temos de nos tornar

traidores, praticar a infidelidade, sempre abandonar nossos ideais”3, preferindo-se,

portanto, transitar pelo labirinto das reflexões do filósofo alemão até chegar a alguma

verdade, alguma certeza, ainda que este conhecimento experienciado e descrito aqui,

circunscrito aos elementos escolhidos para se deter (arte, saúde, doença, tornar-se o que

se é) seja tomado como uma ficção provisória e aberta, posto que criativo/criador de

outras vias igualmente possíveis de compreensão e interpretações. Afinal, Marton

(2010), nos lembra que

3 NIETZSCHE, Humano, demasiado humano, aforismo 629.

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Carlos Roger Sales da Ponte

44 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 42-59, 2017

são várias as passagens em que Nietzsche convida o leitor à experimentação, seja por

entender que nós, humanos, não passamos de experiências ou por acreditar que não

devemos nos furtar a fazer experiências com nós mesmos. Seus escritos, tentativas

renovadas de refletir sobre algumas questões, possibilitam experimentos com o próprio

pensar.4

Humano, demasiado humano e as “observações psicológicas”

A obra Humano, Demasiado Humano inaugura a chamada fase intermediária da

filosofia de Nietzsche (que vai de 1878 – ano da publicação do livro – a 1882),

constituída também pelos dois complementos a este primeiro livro, Opiniões e

Sentenças Diversas e O Andarilho e sua Sombra. Completa esta fase as obras, Aurora e

as quatro primeiras partes de A Gaia Ciência.

Ao longo da gestação de HDH, Nietzsche estava passando por um momento de

grande conturbação pessoal, já que ele ainda respirava o ar de “profundo

estranhamento” causado pelo 1º Festival de Bayreuth. O pensador alemão estava em

processo, digamos, de “assepsia” a esta experiência pessoalmente traumática. E por

quê? Na percepção de Nietzsche, Wagner teria se desvirtuado de suas propostas

artísticas originais e se rendido à lógica burguesa do espetáculo; ao fascínio pelos ideais

nacionalistas dos liberais do Segundo Reich; e a um pietismo religioso cristão, em

detrimento dos significados dos mitos nórdicos para a construção de uma cultura e arte

semelhante à cultura trágica dos antigos helenos. As esperanças depositadas em Wagner

e em um projeto (antes gestados pelos dois) de renovação cultural do espírito e cultura

alemães foram colocados por terra. E Nietzsche se ressentiu com essa traumática

experiência com o compositor.

Nietzsche considera HDH como o “monumento de uma crise”5, e onde se

envereda agora em “duras observações psicológicas”6 dirigidas às condições históricas,

sociais, religiosas, políticas, morais e artísticas sob os auspícios das ciências da natureza

do século XIX, as quais refletem uma postura mais “fria”, decorrentes de uma

compreensão imanente, naturalista e global do mundo. Por outros termos, a partir de

HDH, Nietzsche percebe que tudo no mundo humano encontra-se sob a égide do devir;

que tudo veio-a-ser, desvencilhando-se de quaisquer entidades metafísicas para serem

garantidas ou confirmadas: tudo é humano, demasiadamente humano.

4 MARTON, Nietzsche, filósofo da suspeita, p.16. 5 NIETZSCHE, Ecce Homo, “Humano, demasiado humano”, Seção 1. 6 Ibdem, Seção 2.

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Arte e saúde em Nietzsche

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 42-59, 2017 45

Fica fácil perceber que, de HDH em diante, as contribuições wagnerianas e

schopenhaurianas de ordem metafísica não tinham mais solo para crescer na filosofia de

Nietzsche. Não era, no fundo, uma simples ruptura com seus mestres espirituais (que

estavam marcadamente presentes em seu primeiro livro, O Nascimento da Tragédia),

mas com todo um modo de pensar e toda uma visão de mundo e do humano que não

combinavam mais com os novos percursos que se assomavam no espírito de Nietzsche.

HDH simboliza do que o filósofo se livrou, do que não pertencia à sua natureza,

assumindo que estava tornando seu espírito livre, isto é, “que de si mesmo de novo

tomou posse”7. Livrou-se para recuperar seu próprio espírito; sua honestidade

intelectual; sua autenticidade pessoal.

Encaminhando-se na direção de uma postura mais “pragmática”, mais

“científica”, alimentada pela leitura que fez do ideal iluminista e de uma fé nas ciências

da natureza por estas poderem fazer dissipar as supostas “certezas” metafísicas de

caráter transcendente, Nietzsche compreendeu que vigorava uma exaltada valorização

de um suposto mundo inteligível sobre o mundo sensível. Em contrapartida, era preciso

constituir uma “filosofia histórica” que assegurasse um “sentido histórico” cuja falta era

o “defeito hereditário de todos os filósofos”8. Nietzsche percebe que no humano

vigoram uma diversidade de impulsos fisiológicos que se encontram em constante luta e

estes impulsos são a base para complexas construções como a cultura, a arte, a política,

as relações sociais e a ciência, por exemplo. Basicamente, o período intermédio da

trajetória nietzschiana transcorre num tom antirromântico e antimetafísico, posto que

ele,

[...] ao falar de sensível, ele já não se refere a uma esfera que se opõe a um suposto mundo

transcendente, eterno. A realidade sensível passa a ser, para ele, a única existente, a única a partir

da qual o problema do conhecimento das origens deve ser considerado.9

Nietzsche mostra uma nova versatilidade criativa para expressar suas

inquirições, pois é em HDH que o filósofo ousa enveredar-se na arte de exprimir-se em

“sentenças psicológicas”, como ele mesmo diz, na forma de uma escrita experimental de

expressão dos afetos e pensamentos em trânsito: o aforismo. Ao usar deste expediente

estilístico, Nietzsche adentra numa atividade plena de criação de perspectivas, tentando

realizar um esforço “no sentido de começar a dispor de uma linguagem mais própria,

7 NIETZSCHE, Ecce Homo, “Humano, demasiado humano”, Seção 1. 8 NIETZSCHE, Humano, demasiado humano, aforismos 1 e 2. 9 MENDONÇA, “De Humano, demasiado humano à Gaia ciência: Nietzsche e sua declaração de guerra à

metafísica”, p.05.

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46 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 42-59, 2017

livre de elos com aquilo contra o que ele se volta. [HDH] Surge como um escrito em

que seu espírito, não sem sofrimento, teria se tornado livre”.10

Descrito em suas linhas gerais, podemos dizer que, com HDH, Nietzsche já vai

elaborando sua postura perspectivista, sustentando o caráter ilusório, criativo e “falso”

do conhecimento, concebido tão somente como aparência, mas sem opô-lo a uma

suposta “essência”. Se a arte, ciência, religião, cultura e moral não passam de

elaborações humanas, demasiado humanas, compostas por uma miríade de valores e

perspectivas recheadas de interesses que nada tem de metafísicos ou transcendentes, não

poderiam existir “conhecimentos desinteressados”, sentidos “ocultos” ou “essenciais”

que poderiam ser desvelados como “fundamentos” fixos e imutáveis do mundo, dando-

lhe suas “finalidades”.

Almejando alcançar êxito nesse empreendimento, Nietzsche apela para o que ele

chamou de “observações psicológicas”. Antes de mais, o que o filósofo alemão entende

e pratica sob o nome de “psicologia” não é o mesmo que a nossa compreensão atual.

Em Nietzsche, psicologia não é sinônimo de uma “ciência da consciência subjetiva e,

portanto, da subjetividade”11, mas como um instrumento privilegiado e estratégico para

dissecar os idealismos metafísicos, unindo-se a uma história dos sentimentos morais,

desembocando por fim, no desvelar das origens humanas da construção dos valores;

algo que desmantelaria tanto as religiões quanto a moralidade, ambas baseadas em

construções metafísicas. Do exposto, fazer psicologia, segundo os moldes nietzschianos,

“remete a uma análise crítica que alia história, arte e perspectivismo para esboçar uma

destruição dos privilégios da consciência e do dualismo que marcara a compreensão dos

fenômenos humanos”.12

Tentando descrever como se dá esse percurso incisivo, Nietzsche, no aforismo

35 de HDH, diz que esta observação psicológica tem por foco o que é demasiadamente

humano; uma observação despudorada da vida social. Por que social? Para não se

reduzir ou recair numa concepção geral do humano despregada do mundo concreto; um

“humano em-si”; uma ideia puramente idealista e metafísica que daria suporte a outras

explicações do mundo. Porém, as construções culturais são sociais, portanto históricas.

O exemplo dos moralistas franceses, nos quais Nietzsche se espelha, não é tanto pela

agudeza de suas breves e ácidas sentenças, mas pelo fato de falar abertamente o que a

10 Ibdem, p.04. 11 OLIVEIRA, “A psicologia como procedimento de análise da moralidade nos escritos intermediários de

Friedrich Nietzsche”, p.562. 12 Ibdem, p.563.

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comunidade humana, com seus valores morais gregários, faz questão de não ouvir,

encobrir e, se possível, esquecer. O caráter dessa psicologia é incisivo e é neste ponto

que a situação delineada fica perigosa e sufocante: afinal, como poderemos admitir

certos fenômenos humanos, que se mostram em sua crueza natural e concreta, e ainda

poder sustentar outras concepções valorativas (idealistas), as quais agora podem cair

como escamas secas e quebradiças? Por outros termos, como ficarmos tranquilos se

nossos valores morais, submetidos a esta crítica, podem cair por terra? Os fenômenos

demasiadamente humanos, assim vislumbrados, dizem respeito a nós; dizem algo

profundo; longínquo sobre nós. E Nietzsche se encaminha nessa via de exposição.

A razão da aversão da cultura pela história de suas proveniências morais pode

ser percebida no aforismo 36: a crença não comprovada, mas aceita, numa “natureza

humana” bondosa tornou a cultura avessa a qualquer análise mais penetrante dos

meandros da constituição humana, confiando na capacidade “inata” do humano de

“elevar-se”. Em suma, essa fé retirou a qualidade da desconfiança: o humano

desconfiado é alguém que não aceita fácil o discurso ou a postura de outrem que traria

uma suposta “verdade inquestionável”. Neste caso, a desconfiança tira seu alimento

também da postura dogmática.

Uma vez mais, ainda neste aforismo, Nietzsche traz à baila os moralistas

franceses chamando-os de “atiradores de boa mira que acertam sempre no escuro – mas

no escuro da natureza humana”. A imagem do atirador é de interesse: é preciso

paciência para detectar o alvo após severa e minuciosa observação. Quando algo ganhou

a condição de alvo é porque mereceu a atenção (uma atenção desconfiada, digamos) e

houve o disparo. A observação psicológica ganha maior relevo quando atinge os

meandros humanos dos quais cuidadosamente foi retirada a luz, e jogados nas sombras

para fazer de conta que não existem, ou francamente deles se esquecer. Essa observação

joga na cara as construções culturais tornadas “patrimônios intocáveis”. Porém,

Nietzsche mostra que o percurso histórico que tornou obscuro e esqueceu o que é

demasiado humano fez nascer as crenças metafisicas.

Nietzsche atesta claramente, no aforismo 37, que a observação psicológica e a

observação moral são sinônimas: um procedimento que disseca (e só se disseca o que já

não tem mais vida; ou uma vida de segunda mão) as entranhas históricas escondidas dos

sentimentos morais desde suas origens. Embora Nietzsche ainda não consiga extrair as

consequências sociológicas e filosóficas de tal procedimento, ele sabe que as longas

teias argumentativas da tradição filosófica acerca das motivações e ações humanas

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48 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 42-59, 2017

provem de ideias de fundo religioso e, mesmo, mitológico, as quais não fazem mais

sentido, segundo o filósofo. Dedicar-se a esse empreendimento psicológico faz

Nietzsche sublinhar a necessidade de uma “persistência” e “austera valentia” ao

psicólogo que se dedica a esse labor. Não existe uma “necessidade metafísica” do

humano que justifique deixar na sombra o que o agrilhoa a preconceitos não trazidos à

luz e, por isso, não tematizados que poderiam mostrar-lhe outras perspectivas de

existência, outros modos de ser potencialmente enriquecedores.

No aforismo 38, Nietzsche é enfático ao sustentar que a ciência não pode passar

sem a observação psicológica. Ora, a justificativa dessa afirmação repousa em que a

compreensão do próprio conhecimento não pode ser esclarecida sem que se dê conta da

mediação humana na constituição mesma deste conhecimento. Nietzsche está cônscio

de que “conhecer” não é uma mera descrição objetivada do mundo, e este, como algo

“externo”, “dado”, à espera de uma descrição ou representação. Não se trata, é óbvio, de

elaborar um discurso ontológico devedor, em última instância, de um ideário metafísico

ou de uma epistemologia. O filósofo vislumbra com muita agudeza as perspectivas

humanas (portanto, imanentes; concretas) entranhada nos discursos tanto das ciências

quanto da filosofia; todos eles legítimos se percebidos como criações. Criações

artísticas, podemos completar. Portanto, tecidos pelo pensar e ação humanos como

“farsa”; como “engano”.

Tomando em mãos o diagnóstico dos sentimentos morais desde suas origens na

formação da cultura moderna, talvez aí se possam fazer prognósticos quanto ao devir

das criações humanas e se elas trarão “utilidade ou desvantagem aos homens”. É claro,

Nietzsche não pretende atear fogo em tudo com sua proposta da filosofia histórica, uma

vez que refutar uma ideia implica propor outra “mais verdadeira” que a anterior, o que

ele não faz. Nietzsche percebe as “enfermidades” na forma de cristalizações;

convicções; criações ilusórias artísticas agora tomadas como crenças cegas e dogmas de

ordem metafísica. E porque se encontram enrijecidas, estes pontos de vista impedem o

movimento do pensar para outras paragens igualmente válidas de serem exploradas. Do

exposto, fica claro que Nietzsche não tem como parâmetro um ideal de ciência como

um puro empirismo objetivista típico do positivismo do século XIX; porém, uma

“imitação da natureza em conceitos”; isto é, mímesis e arte em forma de enunciados

esclarecedores acerca das origens históricas dos sentimentos morais, destituindo-a de

suas “origens” extramundanas, para desnudar-lhes sua condição natural; “terrena”;

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Arte e saúde em Nietzsche

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mundana; transitória; humana enfim. E, por conta disso, o escrutínio das observações

psicológicas é indispensável à ciência, conclui Nietzsche.

“Compressas de gelo” é o que o médico-filósofo Nietzsche sugere para o

procedimento mais detido da dissecação dos sentimentos morais: requer-se “frieza” para

a tarefa de espelhar e ser fotografia da cultura humana. Não é ofício do filósofo “ser

melhor” que outros, imputando-lhes outras maneiras “mais corretas” de viver e avaliar a

existência. Seria um novo tipo de moralismo. Para se fazer essa ciência, demasiada e

assumidamente humana (porque se trata de compreender como a vida se enfraqueceu

com a trajetória metafísica, esquecendo-se de suas origens mundana); mimética e

artística (porque se trata de procurar outras veredas para potencializar a vida em sua

riqueza multiforme), não se pode perder a dimensão crítica. Neste caso, Nietzsche

convida à autocrítica severa como condição para trilhar outros rumos mais próximos às

trajetórias e características humanas.

A arte é mais um desses artigos culturais que também, de acordo com Nietzsche,

se deixou entranhar por crenças metafísicas sobre sua história e finalidades. E como

obra humana constituída historicamente, Nietzsche não deixou de apontar seu olhar de

psicólogo e desvendar o que os artistas gostariam de esquecer ou não saber.

A arte demasiada humana

Já sabemos há tempos: Nietzsche, ao seu modo, também foi um artista (músico

de pouco talento, é verdade. Todavia, foi se dotando de uma capacidade literário-poética

ímpar). Não se contentando com as tarefas que julgava maçantes do ofício de professor

filólogo, teve pretensões de unir, em uma só pesquisa e escrita, o rigor filológico e

filosófico, e a pulsão da arte. Resultado: o centauro chamado O Nascimento da

Tragédia. Poucos compreenderam de que se tratava, isto sim, de um trabalho filosófico-

filológico (e não somente um trabalho filológico) que postulava como era o modo de

ser, viver e a criação artística (em especial a música e a poesia) dos antigos helenos,

com base em seus instintos agonísticos e estéticos: o apolíneo e o dionisíaco,

entendidos como forças constitutivas das manifestações artísticas que vinham se

desenvolvendo desde a poesia épica dos aedos, passando pela poesia lírica até

encontrarem-se, formando aquela potência avassaladora que foi a teatro trágico.

Nietzsche mostra também como estas pulsões foram covardemente mortas pela poesia

racionalizada de Eurípedes, inspirada na pervertida dialética e estética socráticas,

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nivelando humanos e deuses, suprimindo a distância que os separavam; e, na conclusão

de seu estudo, declara (de um modo bem panfletário) uma esperança de retorno do

espírito musical e das pulsões trágicas helênicas para a reforma da cultura alemã (com

os mitos nórdicos como pano de fundo), tendo como carro-chefe o drama musical

wagneriano. Por essa época, Nietzsche era amplamente influenciado pela música de

Wagner e pela metafísica do artista de Schopenhauer. Esse estado de coisas mudaria

radicalmente pouco mais de seis anos depois...

Por seu turno, em HDH, a adoção de ideias e uma postura de cunho científico e

iluminista podem nos fazer acreditar, à primeira vista, que Nietzsche simplesmente

abandona suas paixões pela arte em suas formas poéticas e/ou musicais, (suas

preferências explícitas que figuraram em seu estudo sobre a tragédia), por uma vontade

de fazer surgir aqueles “espíritos livres”, mediante a crítica à estrutura da modernidade.

Mas essa seria uma conclusão apressada e, em parte, errônea. É justo que indaguemos:

como Nietzsche percebe e compreende a arte nestes primeiros momentos de seu novo

percurso filosófico em que não se encontra mais sob os auspícios de um suporte

metafísico que justifique a vida? Qual percurso Nietzsche trilha a fim de descrever a

gênese do fenômeno estético, a qual também é um artigo criado culturalmente, à luz da

filosofia histórica por ele praticada?

De pronto, podemos perceber que Nietzsche agora invoca a necessidade de se

construir uma “ciência da arte”13, na abertura do capítulo quarto de HDH dedicado à

descrição psicológica de como vivem e pensam artistas e escritores, a fim de que não

mais nos deixemos levar por ilusões de ordem metafísica acerca do fazer artístico e da

obra de arte mesma, posto que esta não surgiu miraculosa e repentinamente; o que já

choca um pouco a quem considera as obras como possuidoras, digamos, de uma aura

divina.

Numa leitura atenta, podemos notar que tanto em HDH, como nos seus dois

complementos (Opiniões e Sentenças Diversas e O Andarilho e sua Sombra),

“Nietzsche continua a fazer avaliações críticas à arte, a desmascará-la quando está

envolvida em sua áurea metafísica”14, mas exibindo uma “passagem da reflexão sobre

as obras de arte para uma reflexão bem particular, a vida mesma considerada como

13 NIETZSCHE, Humano, demasiado humano, aforismo 145. 14 DIAS, Nietzsche, vida como obra de arte, p.109.

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Arte e saúde em Nietzsche

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 42-59, 2017 51

arte”15. Nada mais distante das reflexões do jovem professor de filologia de quando

ainda era profundamente marcado por ideais românticos.

Agora Nietzsche se mostra intransigente em denunciar aquilo que os artistas

gostariam de fazer calar, a saber, o que figura por trás dos efeitos impactantes que a arte

provoca no humano. Certamente não há nada de miraculoso. O filósofo quer explicar,

esmiuçar o fazer artístico que não quer saber de verdades científicas, preocupado que

está o artista em promover e em dar um ritmo diferente ao que a vida comum possui16;

mostra inclusive que a obra de arte, apesar de qualquer comoção ou arrebatamento que

possa provocar, nada tem de transcendente17; porém, que é fruto de um contínuo esforço

e exercício do artista18, dotando-a da linguagem que ele quiser dar a ela19, posto que a

arte e o artista, despidos de supostas origens metafísicas e idealistas, são acontecimentos

de um grande esforço e trabalho humano.

O que figura no discurso nietzscheano é a constatação de que a arte, quando

ornada de qualidades idealistas advindas de um suposto além-do-mundo, tende a se

separar do mundo humano (um lugar deturpado, imperfeito e feio por assim dizer),

ganhando assim uma “legitimação” porque falaria de aspectos transcendentes os quais

provocariam fortes emoções a quem dela frui e fazendo do artista um ser “iluminado”

como que acima do resto dos mortais. Arte e artista são consideradas, então, artigos

“sagrados”. A crença altamente difundida do acontecimento repentino chamado de

inspiração e na capacidade excepcional de criação de obras de arte cuja força é

altamente impactante, tecida por certos humanos excepcionais (os “gênios”), são

exemplos de perspectivas distantes da vida, posto que as obras de arte são frutos de um

labor contínuo e exigente por parte do artista, não possuindo nenhum tipo de qualidade

distante do mundo e da existência humanas, ou advindos de um “céu platônico”. O

artista, digno desse nome, seria o reflexo da imersão deste em suas experiências

particulares e como ele reverbera as experiências de sua cultura; ou seja, na vida

concretamente vivida está a matéria-prima das pulsões que animam o artista e dão corpo

às suas obras. Não há nada de obscuro ou divino nesse tecido duro da lida artística.

Se o humano é puro devir, e devir também é a forma própria do mundo, a arte

deve refletir esse vir-a-ser, materializando-se nesta ou naquela obra. Importa que o

15 Ibdem, p.111 16 NIETZSCHE, Humano, demasiado humano, aforismos 146-148. 17 Ibdem, aforismo 161. 18 Ibdem, aforismo 155-156. 19 Ibdem, aforismo 171.

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humano artista se transfigure e se expresse em forma de algo belo, uma vez que a arte

“na medida em que olha a vida de frente, compreende a experiência existencial e ajuda a

ver que mesmo ali, onde há dor, sofrimento, desilusão, horror, temor e morte, mesmo aí

há vida e porque é assim, há beleza, há força afirmativa, há vontade de dizer Sim [...]”20.

Estas considerações tocam e reafirmam diretamente a fórmula nietzschiana de fazer da

vida uma obra de arte. Não seria outro modo de dizer o que muito depois Ferreira

Gullar enunciou belamente de que a “arte existe porque a vida não basta”?

Os significados dessa sentença podem ser muitos, sobretudo para os

esteticamente sensíveis; os que habitam nas vizinhanças da arte. Contudo, um sentido se

sobressai: afirmar inteiramente a existência vivida em todas as suas faces, quaisquer

que sejam.

Supondo que não haja outra vida além desta, cumpre exaltar o viver pelo simples

fato de viver, e não apenas cotidianamente “repetir-se” onde a existência humana seja

simplesmente “jogada” no ritmo avassalador do trabalho instrumental, burocrático e

impessoal. “Afirmar” implica dar forma, conteúdo, harmonia ao que o humano

considerar mais satisfatório, apesar da cultura ocidental perpetuar um esvaziamento

cotidiano das singularidades em favor do “comum”; do regime de vida gregário da

cotidianidade; do humano nivelado por baixo, consumista e valorizando somente os

padrões de existência previamente dados pelo senso comum. Para usar um termo muito

usado por Nietzsche, afirmar-se não é fazer parte do rebanho, ainda que se tenha de

conviver em meio aos ditames das formações culturais deste rebanho.

A arte tornada vida desagrilhoou o humano de tudo aquilo que restringia sua

potência de ser; de “ser em devir”, sabendo mais ou menos que não há pontos de

chegada. Sem fim no seu existir (só encontrando finalização por ocasião da morte), o

humano artisticamente lapidado, não é sinônimo de alguém que põe em prática alguma

forma de atividade artística específica, tais como pertencer a um grupo teatral ou de

dança, ou ser um pintor, ou escritor, etc. (embora tudo isso possa favorecer no saber-se

mais de si). Porém, artista é quem se dispõe a decidir algo substancialmente diferente

acerca de sua própria vida em meio à cultura em que vive, posicionando-se frente a ela

também: alguém que se expande; que vai adiante da medida imputada pelo modo de

vida social comum burocratizado; alguém que busca tornar-se “para além”.

20 OLIVEIRA, “A psicologia como procedimento de análise da moralidade nos escritos intermediários de

Friedrich Nietzsche”, p.573.

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Arte e saúde em Nietzsche

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 42-59, 2017 53

Em suas reflexões sobre arte e o artista em HDH, Nietzsche nos convida, e

mesmo nos intima, a imergir na arte mesma, despojados de raciocínios e conclusões

idealistas com a finalidade de reencontrar a existência concreta e o prazer que a mesma

pode nos proporcionar, ainda que as obras de arte encontrassem seu fim, deixando-nos

talvez desamparados em princípio. Desamparo ilusório perante um espírito talhado na

frieza da ciência e das observações psicológicas, imune às seduções metafísicas. Por

isso, diz Nietzsche, mesmo que “a arte desaparecesse a intensidade e multiplicidade da

alegria de vida que ela semeou continuaria e exigir satisfação. O homem científico é a

continuação do homem artístico”21. Em outras palavras, na busca pela alegria de viver,

deixando de lado os auspícios da religião indo em direção da arte para, enfim,

beneficiar-se dos resultados de uma ciência esclarecedora do devir humano,

reencontraríamos a nós mesmos, humanos-artistas.

Arte e saúde

Sem pretender expor todos os contornos que circunscrevem os ditos

nietzschianos acerca dessa temática tão cara ao filósofo em seu período intermediário,

apontarei algumas considerações do pensador alemão sobre a arte e saúde quando estas

indicam possíveis interseções, restringindo-me somente ao primeiro volume de HDH,

deixando o exame dos mesmos assuntos nas continuações deste volume para outro

momento.

Quando Nietzsche fala de “saúde” ou “doença”, em primeiro lugar não se trata

de moléstias orgânicas passíveis de intervenção biomédica. Não é nesse nível que ele se

encontra. Todavia, o filósofo alemão, num procedimento semelhante ao médico,

perscruta nas condições culturais as consequências para uma potencialização da vida

(favorecendo sua saúde) ou minando-a (retirando sua vitalidade). Bem entendido, o

texto nietzschiano sugere que quando a vida multiplica suas possibilidades criativas; de

poder-ser “diferente”; de dirigir-se em outras direções interpretativas/perspectivistas

polifônicas e promissoras diferentes do usual, eis aí a saúde. O oposto disso, reduzindo

as opções de escolha; instaurando-se uma monotonia da “mesmice”; onde outras vozes e

influências retiram as possibilidades de singularidade e autenticidade, eis aí a doença. É

claro, as reflexões de Nietzsche sempre têm como pano de fundo a construção histórico-

21 NIETZSCHE, Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres, aforismo 222.

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cultural que desenharam os contornos da modernidade e que, em vários sentidos, ainda

nos concerne.

No aforismo 214 de HDH, por exemplo, e ao contrário de nossa cultura

excessivamente preocupada em fazer a assepsia das diferenças e tomar o “estar doente”

como uma espécie de “erro” ou como um evento comum da vida, os antigos helenos

tomavam as ocorrências “mórbidas” como proveniente de alguma divindade; portanto,

como um teste de força ao qual deviam responder à altura. Por outros termos, a doença

era a oportunidade de auto-observação (não do tipo psicológica, pois as condições de

emergência de uma subjetividade privada não existiam na antiguidade helênica) de

poder-confrontar e saborear a própria força (ou fraqueza) como algo próprio, para longe

de avaliações sob parâmetros morais de “bem” e “mal”. Era uma avaliação forte e

inocente a qual somos pouco capazes.

Por outro lado, no aforismo 289, sob o título de “O valor da doença”, e falando

algo um pouco mais próximo de nós, escreve Nietzsche

O homem que jaz doente na cama talvez perceba que em geral está doente do seu ofício, de seus

negócios ou de sua sociedade, e que por causa dessas coisas perdeu a capacidade de reflexão

sobre si mesmo: ele obtém esta sabedoria a partir do ócio a que sua doença o obriga.

Ora, não é o caso de generalizarmos o dito de Nietzsche e chegarmos à

conclusão de que todas as doenças têm origem somente cultural (o que é discutível sob

outros pressupostos), mas quando nos encontramos prostrados, obtemos a oportunidade

(ainda que não garantida) de refletirmos sobre como temos estruturado nossa própria

condição existencial. É como se a doença nos colocasse “de fora” do existir,

possibilitando-nos um vislumbre ímpar acerca de nós mesmos a partir do ócio

compulsório que ela nos “presenteia”. Claro está que esse ócio pode não ser encarado

desse modo (é uma escolha possível apenas a quem já desenvolveu certa sensibilidade

em relação a si), o que comprova como o humano, em geral, “perdeu a capacidade de

reflexão sobre si mesmo”, tomando a doença apenas como um “mal” que atrapalha os

prazeres da vida e a agenda cotidiana do trabalho. Os dias “perdidos” podem ser mesmo

considerados como “em vão” pela falta de reflexividade.

Por seu turno, o aforismo 244 tem como horizonte muito claro o ritmo veloz da

cultura moderna, fruto do desenvolvimento industrial e cultural capitalista com seu

cortejo infindável de objetos consumíveis os quais atingem em cheio a sensibilidade do

humano. Nietzsche descreve algo semelhante ao que mais tarde Walter Benjamin

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Arte e saúde em Nietzsche

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 42-59, 2017 55

chamará de vivência de choque22, característica do humano que vive nessa ciranda

vertiginosa de estímulos sensoriais que o atingem sem cessar, resultando na quase

incapacidade de reter algo que seja chamado efetivamente de experiência, passível de

ser assimilada e talvez narrada posteriormente como fruto de uma tradição.

Contudo, neste momento Nietzsche identifica esse choque com uma

“superexcitação das forças nervosas e intelectuais” que pode levar alguns à loucura. O

filósofo sugere “reduzir a tensão do sentir”, mesmo sabendo que não há como livrar-se

de todo da “opressão da cultura”. Nietzsche lança mão da tese do “espírito da ciência”

para não se deixar excitar os sentimentos na via rápida da fé em verdades finais e

convicções. Não esqueçamos que no aforismo 483, Nietzsche dispara, “Convicções são

inimigas da verdade mais perigosas que a mentira”. Assim, a tentativa sempre retomada

para mitigar as vivências de choque passa por um pensar/agir que retira sua força

decisória não de considerações morais, mas das experiências que atravessam o corpo,

essa “grande razão”, fonte inesgotável de avaliação de vida. Os percursos entrevistos a

partir dos textos nietzschianos para alcançar alguma saúde multiplicam-se

consideravelmente e se entrecruzam passando longe de vias pavimentadas e bem

sinalizadas por verdades dogmáticas ou idealistas.

Esse pensar/agir, como já deve ter ficado claro, nos pode ser conferido pela

ciência, tal como a concebe Nietzsche. Ciência necessária para uma “cultura superior”23.

Entretanto, essa cultura científica não é sinônima de uma seriedade carrancuda e

curvada por “verdades” aferidas por métodos experimentais positivistas, estando muito

mais aparentada a uma parte do cultivo de si, de uma arte de si. Ora, o que isso pode

significar? Nietzsche, neste mesmo aforismo, diz que as ilusões, paixões, parcialidades

são a fonte de energia do empreendimento humano. Mas é preciso um regulador: as

ciências. Sem esta, o humano se jogaria sem pensar nos braços de suas “invenções

consoladoras” da existência: seja na fruição rasa e consumível de algumas formas de

produtos ditos “artísticos” que condizem à ideia do “tempo livre” de um ócio irrefletido,

fruto da indústria cultural, seja com as construções religiosas que prometem uma

justificação da vida e uma recompensa num “porvir”, num “além” da existência.

Essa arte de si numa cultura superior pede ao humano que ande na corda bamba

tentando sempre fazer convergir numa mistura feliz, o ser artístico e o ser cético e frio,

22 O ensaísta e crítico alemão trata especificamente dessa temática, confrontando-a com a noção de

experiência, no texto “Sobre alguns temas em Baudelaire”. Cf. BENJAMIN; HORKHEIMER;

ADORNO e HABERMAS, 1973. 23 NIETZSCHE, Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres, aforismo 251.

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Carlos Roger Sales da Ponte

56 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 42-59, 2017

numa direção outra que não crie um novo tipo de ilusão dogmático/metafísico ou se

deixe enganar por “promessas” de resolução dos problemas humanos advindos única e

exclusivamente do conhecimento das diversas disciplinas científicas (não no sentido

dado por Nietzsche) e seus usos técnicos: sabemos bem por quais caminhos a razão

tecnocrática nos levou e continua a nos conduzir desde o século passado: à tecnificação

da vida e à degradação da natureza.

É muito mais exigente essa arte de si: força à reunião de uma variedade de

perspectivas incluindo, também, as que podem empobrecer o viver. Um movimento de

análise e plasmação de interpretações cuja forma ao final (se é que tem um final...) é

imprevisível. A posição de Nietzsche em apontar o estado de coisas da estrutura cultural

dos sentimentos morais que atravessam a modernidade, esfriando seu olhar, afinando-o

e afiando-o para cortar fundo e expor as entranhas de toda essa proveniência histórica,

habilita-o a perceber possíveis linhas de fuga ao ponto de nem sempre termos de dançar

essa ciranda imposta pelos idealismos em sua miríade de formas. A crítica nietzschiana

vem acompanhada de certa exigência de quem segue as reflexões do filósofo, a se

pensar possíveis formas de viver para além do que consideremos uma “vida boa”. Fica

fácil perceber que não se pode viver diferentemente sem que surja a necessidade de

abrir mão de algo muito próximo; de talvez ter de cortar na carne coisas queridas...

Os ditos nietzschianos estão mais para um tipo de diapasão ou martelo (martelo

pequeno, mas certeiro nos pontos em que bate) a nos fazer perceber (se conseguirmos

tal despojamento) se temos um “pensamento forte”, ou se no “lugar deste surge a

intenção de encontrar uma rima”24, isto é, uma vida que apenas vem se repetindo; ou

ainda se possuímos a tenacidade, perseverança, energia” para desenvolvermos “talentos,

isto é, se tornar aquilo que é” em obras e ações.

Nietzsche, esse homem que tanto padeceu de enfermidades físicas (algumas

delas decorrentes da sífilis contraída na juventude e que mais tarde lhe roubaria a

sanidade jogando-o na demência); com certa amargura pelas feições que tomou a

cultura alemã, distante dos anseios originais do filósofo; meio solitário e errante;

incompreendido pela maior parte de seus contemporâneos e amigos, não se deixou

abater por completo: é lícito supor com muita segurança que toda essa adversidade

existencial alimentou mais ainda sua reflexão e direção do que significa tornar-se o que

se é, subtítulo inclusive, e para lembrarmos, de sua autobiografia, Ecce Homo.

24 NIETZSCHE, Humano, demasiado humano, aforismo 610.

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Arte e saúde em Nietzsche

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 42-59, 2017 57

Concluindo

Em meio a condições adversas de sua vida e outras que, em parte por escolhas

próprias, o tenham levado a direcionar seu olhar fino e incisivo para os modos de

estruturação da modernidade a partir dos valores e sentimentos morais espraiando suas

reflexões em várias direções, Nietzsche percebeu muito claramente e não ousou deixar

de lado durante sua existência e filosofia andarilhas algo que foi decisivo ao perscrutar

os modos culturais de existência em suas proveniências genealógicas: o aspecto

cambiante do existir humano; sua inexatidão; o que pode ser o previsível e o

imprevisível; o razoado e o apaixonado em quaisquer intensidades.

Se for possível resumir, a partir das palavras de Nietzsche, em um breve dito,

podemos afirmar: o humano, este ser aberto, não passa de um campo onde atuam uma

rica gama de forças as quais se chocam, conformando muitos modos de ser/existir que

vão se revezando num exercício contínuo de poder. Em suma, o que vigora hoje,

deixará de existir em outro momento, dando lugar a outra expressividade potente.

Nietzsche percebeu que existir não foi, não é, e provavelmente nunca será

tranquilo, calmo e suave. Adentrar na aceitação do caráter de luta imanente à vida,

presenteia o humano com a certeza de que a vida que faz sentido é aquela que é

assumida em todo seu vigor como jogo de forças. É justamente aí que o humano vive

sua saúde existencial: afirmando plenamente a vida da maneira como ela se apresenta a

ele, sendo ele mesmo (o humano) manifestação de força vital.

Por sua vez, se a arte é aquele modo ímpar de que dispomos para suportar a

existência em vir-a-ser, atravessado pela luta, o humano faz-se, então, artista; faz-se

obra, conferindo um pouco ou muito de beleza até no mais trágico, cruel e doloroso no

viver. A arte está a serviço do humano para poder suportar a vida, expressando sua

beleza combativa. Logo, não há consolo possível. Qualquer busca aflita por consolações

em algum “plano superior” idealizado, qualquer que seja ele, parte de uma interpretação

dicotômica: existiria este mundo e algum outro “melhor”, mesmo que seja em promessa.

Em Nietzsche, vige apenas “este mundo” e nada mais. Uma afirmação trágica e bela ao

mesmo tempo, incitando-nos a assumir francamente o devir, criando novos valores que

tonifiquem a vida.

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Carlos Roger Sales da Ponte

58 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 42-59, 2017

O tema da Grande Saúde, Nietzsche o tratará apenas na Gaia Ciência. Mas suas

primeiras linhas já surgem em HDH. Eis aqui, em resumo, o que significa essa tese

nietzschiana:

A grande saúde, na ótica nietzschiana, é, portanto, a capacidade de amar a efetividade até mesmo

em nossos momentos de doença. É essa afirmação alegre da vida, mesmo diante da dor, da

doença, da morte, do sentido trágico da própria existência. Para o filósofo alemão, a grande

saúde é, consequentemente, o desejo de vida, a capacidade de dizer sim a vida, de enfrentar os

combates físicos e existências que compõem a dinâmica fundamental.25

Tornar-se si mesmo; tomar posse novamente de si ao ponto de pensar “de modo

diverso do que se esperaria com base em sua procedência, seu meio, sua posição e

função, ou com base nas opiniões que predominam em seu tempo”26, que é a definição

mesma de espírito livre proposta por Nietzsche, implica um processo de (re)criação

nada tranquilo e francamente doloroso. Implica “estar doente” dos valores gregários que

imputam “regras” rígidas a todos os “cativos”, enquanto a liberdade de tornar-se adere à

ser a “exceção”. A convalescença também é igualmente difícil, pois lamentaremos os

“bens” deixados para trás, mas que nos agrilhoavam a existência com idealismos em

forma de avaliações morais enfraquecedores da vida. Porém, a arte vivida do cultivo de

si intima o humano a fazer-se diferença absoluta tendo por arena a vida se confrontando

com outras diferenças. Esse é um modo de ser saudável. Entretanto, seremos capazes de

sermos artistas e obra numa abertura tão grande e sem garantias, bastando, para

começar, afirmando um Sim!, ainda que (talvez) tenhamos de dizer/ser muitos Não?

Nietzsche aposta que sim.

25 AZEREDO, “Nietzsche: a grande saúde e o sentido trágico da vida”, p.259. 26 NIETZSCHE, Humano, demasiado humano, aforismo 225.

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Arte e saúde em Nietzsche

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 42-59, 2017 59

Referências Bibliográficas

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Paulo: 2003.

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Companhia da Letras, 1995.

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Rio de Janeiro, Ano 9, n.03, 2º semestre de 2009, p.560-581.

Recebido em: 26/09/2016

Aprovado em: 23/05/2017

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Para além da lei moral: morte de Deus e gratuidade de Feuerbach a Sartre*

Paolo Stellino

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo mostrar o contexto filosófico e

literário no qual evolui o seguinte problema: quais são as consequências da

morte de Deus para a moral? Para responder a esta questão, focarei minha

atenção sobre um período específico do pensamento ocidental, a saber, o que vai

de Feuerbach (ou, da publicação da Crítica da razão pura de Kant em 1781) a

Sartre e Camus, passando particularmente por Dostoievski e Nietzsche. Mais

especificamente, analisarei a relação existente entre a morte de Deus e a

gratuidade.

Palavras-chave: morte de Deus; gratuidade; niilismo; amoralidade.

Na parte inicial de sua obra O existencialismo é um humanismo (1946), Sartre responde

às críticas endereçadas ao existencialismo. Em particular, do lado cristão, repreendia-se

aos existencialistas “de negar a realidade e a seriedade dos empreendimentos humanos,

pois que se suprimimos os mandamentos de Deus e os valores inscritos na eternidade,

nada mais resta senão a estrita gratuidade, cada um podendo fazer o que quer”.1 Para

compreender o sentido desse enunciado condicional, composto pelo precedente “se

suprimimos os mandamentos de Deus e os valores inscritos na eternidade” e pelo

conseguinte “nada mais resta senão a estrita gratuidade”, é preciso antes de tudo decifrar

a alusão à “estrita gratuidade”. Nesta passagem, Sartre faz referência ao Ato gratuito de

André Gide, escritor francês que viveu entre os séculos XIX e XX e que teve um papel

de primeira importância na vida intelectual de sua época.

O conceito de ato gratuito aparece na obra de Gide inicialmente em estado

embrionário, como ato livre (Paludes, 1895). Quatro anos depois, Gide publica Le

Prométhée mal enchainé ([O Prometeu mal acorrentado], 1899), onde ele dá a seguinte

definição de ato gratuito: “um ato que não é motivado por nada. [...] O ato

desinteressado; nasce de si; o ato também sem finalidade; portanto sem mestre; o ato

* Traduzido do francês por André Martins. Ph. D. em Filosofia pela Universidade de Valencia (Espanha) e professor do Instituto de Filosofia da

Nova (IFILNOVA/FCSH) da Universidade Nova de Lisboa, Portugal. Contato: [email protected]

1 Sartre, J. P., L’existentialisme est un humanisme. Paris: Gallimard, 1996, p. 22.

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livre; o Ato autóctone”.2 É, todavia, somente com a publicação de Les caves du Vatican

[Os porões do Vaticano] em 1914 que a atenção do grande público é atraída para o ato

gratuito. Lafcadio Wluiki, um jovem de 19 anos, comete um crime inteiramente

imotivado, empurrando de um trem Amédée Fleurissoire, um velho senhor que é para

ele um completo desconhecido. Este crime é gratuito no que não tem motivo nem

justificativa aparentes: não se trata de um roubo, nem de uma vingança, muito menos de

um crime passional. No entanto, Lafcadio não é vítima de uma súbita loucura assassina.

O crime é premeditado e pensado, mesmo se Lafcadio tenha afirmado mais tarde que

ele matou “como em um sonho”.3

O ato gratuito de Gide se inscreve em um contexto cultural bem específico.4

Gide não é o primeiro, nem o último, a falar de gratuidade (mesmo se lhe reconhecemos

o mérito de ter transformado o ato gratuito em um topos literário e filosófico). Podemos

aqui pensar em Edgar Allan Poe que, em seu conto O demônio da perversidade (1845),

descreve a perversidade como “um móvel sem motivo, um motivo não motivado”.5 Ou

ainda, em Dostoievski: o crime de Raskolnikov, o herói do romance Crime e castigo

(1866), serve a Gide de fato como inspiração para o crime de Lafcadio. Além do quê, na

série de conferências que Gide profere no teatro do Vieux-Colombier em 1922 e que ele

dedica a Dostoievski, o suicídio de Kiriloff, um dos personagens de Os demônios de

Dostoievski, é descrito como “um ato absolutamente gratuito, quero dizer, sua

motivação não é de modo algum exterior”.6 Mesmo no século XX podemos encontrar

exemplos célebres de ato gratuito. Em O estrangeiro (1942), de Albert Camus,

Mersault, o protagonista do romance, mata um homem sem razão aparente. Igualmente

sem motivo é o crime central da peça de teatro A corda (1929) de Patrick Hamilton,

peça que inspira alguns anos mais tarde o filme homônimo de Alfred Hitchcock

(1948).7

O que é mais importante no contexto que nos ocupa aqui, é que o ato gratuito

mergulha suas raízes no niilismo do século XIX. É por isso que, em seu estudo dedicado

ao ato gratuito, Martin Raether sublinhou que “sem Dostoievski e Nietzsche, o ato

2 Gide, A, Romans et récits. Œuvres lyriques et dramatiques. Paris : Gallimard, 2009, p. 472. 3 Ibidem, p. 1174. 4 Ver Raether, M., Der Acte gratuit. Revolte und Literatur. Heidelberg, Carl Winter Universitätsverlag,

1980 e Roebling, I., ‚Acte gratuit‘. Variationen einer Denkfigur von André Gide. Munich, Wilhelm Fink,

2009. 5 Poe, E. A., Nouvelles histoires extraordinaires. Paris, Gallimard, 1974, p. 51. 6 Gide, A., Dostoïevski. Articles et causeries. Paris, Gallimard, 1981, p. 176. 7 Stellino, P., “Crossing the Line: Dostoevsky and Nietzsche on Moral Permissibility”. In: Jahrbuch der

Deutschen Dostojewskij-Gesellschaft. Leipzig: Verlag Otto Sagner, no 21, 2014, pp. 98-124, pp. 106-110.

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gratuito, sua pré-história, sua estrutura e sua realidade, não seria pensável”.8 A fim de

esclarecer a relação entre niilismo e gratuidade, é pertinente distinguir as duas questões

seguintes: (1) Pode existir um ato gratuito? (2) Como é possível um ato gratuito como o

de Lafcadio?

A primeira questão concerne à possibilidade metafísica de um ato gratuito e

remete à dificuldade, quiçá à impossibilidade, de conceber uma ação ex nihilo, a saber,

uma ação que surge do nada. Temos o hábito de interpretar todo agir humano segundo o

esquema lógico causa-efeito e uma ação “motivada por nada” ou “nascida de si

mesma”, para utilizar as palavras de Gide, parece escapar a este esquema. Aliás, a

vontade de realizar um ato gratuito já não constitui uma razão, um motivo para o

próprio ato? Como mostra o filósofo Jacques Maritain, “se realizo um ato ‘gratuito’

porque eu quero realizar um ato gratuito, testemunhar para mim mesmo que eu posso

agir sem razão, isso mesmo é já uma razão, eu cedo a um motivo”.9 Analogamente, é

preciso lembrar que o crime de Raskolnikov – o herói dostoievskiano do romance

Crime e castigo – que, tal como mencionado, servira a Gide de inspiração para o crime

de Lafcadio, é somente aparentemente gratuito. Como Raskolnikov confessa

posteriormente para Sonia, o verdadeiro motivo de seu crime era de se pôr à prova, de

testar sua força, de demonstrar para si mesmo que ele pertencia à categoria dos homens

extraordinários.10

Na verdade, como indicado em uma passagem de 1928, Gide estava bem

consciente que, estritamente falando, um ato gratuito, isto é, um ato completamente

imotivado, é impossível:

Um ato gratuito... Entendamo-nos. Eu mesmo não acredito de forma alguma em um ato

gratuito, isto é, um ato que não seria motivado por nada. È essencialmente inadmissível.

Não há efeitos sem causa. As palabras ‘ato gratuito’ são uma etiqueta provisória que me

parece cômoda para designar os atos que escapam às explicações psicologicamente

ordinárias, os gestos que não determinam o simples interesse pessoal (e é nesse sentido,

jogando um pouco com as palavras, que pude falar de atos desinteressados).11

8 Raether, M., Der Acte gratuit. Revolte und Literatur. Heidelberg, p. 75. 9 Ver Maritain, J. e R., Œuvres complètes, vol. XVI. Fribourg: Éditions Universitaires/Paris: Éditions

Saint-Paul, 1999, p. 1164 10 É sintomático que Lafcadio, antes de matar Fleurissoire, tenha analogamente dito a si mesmo: “Não é

tanto sobre os acontecimentos que tenho curiosidade, mas de mim mesmo.” (Gide, A, Romans et récits.

Œuvres lyriques et dramatiques, p.1134). 11 Citado por Raether, M., Der Acte gratuit. Revolte und Literatur. Heidelberg, p.121-122. Ver também a

passagem seguinte extraída de uma carta de 1929: “Não, eu não creio de modo algum em um ato gratuito.

Mais que isso, eu tomo este como perfeitamente impossível de ser conceber, de se imaginar. Há sempre

uma motivação para tudo; de modo que entendo por ‘ato gratuito’ um ato cuja motivação não é aparente,

e que apresenta as características do desinteresse. Um ato que não foi cometido em vista de tal proveito

ou recompensa, mas que responde a um impulso secreto, através do qual aquilo que o indivíduo tem de

mais particular se revela, se trai.” (Ibidem, p.121.)

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A segunda questão (a saber, como é possível um ato gratuito como o de

Lafcadio?) já concerne à possibilidade moral de um ato gratuito. É a esta possibilidade

que a referência sartriana à “estrita gratuidade” em O existencialismo é um humanismo

remete. Em outros termos, trata-se de compreender quais são as condições ou pré-

condições que tornam moralmente possível um ato gratuito tal como o de Lafcadio. A

fim de responder a esta questão, é necessário considerar o que Raether chama de a “pré-

história” do ato gratuito. Esta pré-história é formada, em particular, por Dostoievski e

Nietzsche, com o niilismo de sua época.

Em um fragmento póstumo muito conhecido (11[411]), datando do período de

novembro de 1887 a março de 1888, Nietzsche escreve:

O que eu conto é a história dos dois próximos séculos. Descrevo o que virá, o que não

pode mais advir de uma outra maneira: o advento do niilismo. Esta história pode ser

relatada desde já: pois é a própria necessidade que está aqui em curso.12

Segundo Nietzsche, o advento do niilismo se revela necessário pois, a partir da

morte de Deus anunciada pelo Insensato de A gaia ciência (§125), a interpretação

moral-cristã do mundo rui. Esta interpretação, explica Nietzsche em sua célebre nota do

Lenzer Heide (5[71], verão 1886 - outono 1887) dedicada ao niilismo europeu, passava

por ser “a interpretação”.13 Na falta dessa interpretação, “parece que não há mais

sentido algum na existência, que tudo é em vão”14: a partir daí, a fatalidade inelutável do

niilismo.

A morte de Deus provoca uma crise cultural e espiritual sem precedente. Os

valores superiores (entre eles, os valores morais) se desvalorizam, deixando um vazio

axiológico e normativo difícil de ser preenchido. O agir humano, privado de seus

referenciais, se vê não somente sem justificação ou motivação última, mas também sem

guia ou direção. É nessa atmosfera cultural muito particular que Dostoievski escreve

seus grandes romances. No último deles, Os irmãos Karamazov (1880), Ivan, o segundo

filho de Fiodor Pavlovitch Karamazov, defende a ideia segundo a qual, se não há Deus

nem imortalidade da alma, então tudo é permitido, até mesmo a antropofagia. Assim

sendo, Ivan inverte o raciocínio que Kant havia desenvolvido na Doutrina

transcendental do método de sua Crítica da razão pura (1781), onde a existência de um

Deus e de uma vida futura constituem os fundamentos da moral: “[...] sem um Deus, ou

sem um mundo que não nos é conhecido agora, mas que nós esperamos”, escreve Kant, 12 Nietzsche, F., Fragments Posthumes. Automne 1887-mars 1888. Paris: Gallimard, 1976, p. 362. 13 Nietzsche, F., Fragments Posthumes. Automne 1885-automne 1887. Paris: Gallimard, 1978, p. 213. 14 Ibidem.

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“as ideias soberbas da moralidade serão verdadeiramente dignas de aprovação e

admiração, mas não serão motivo de intenção e de execução” (KrV, A 813/B 841). A

ideia de Ivan, apresentada em várias passagens e por vários personagens ao longo do

romance, fornece a justificação filosófica e (paradoxalmente!) moral do parricídio

cometido por Smerdiakov, o filho ilegítimo de Fiodor Pavlovitch, e do qual Mikhail, o

primogênito, é injustamente acusado.

Os irmãos Karamazov explicita de uma forma muito clara a passagem do

niilismo à gratuidade. Como se sabe, mesmo se a palavra ‘niilismo’ já aparece na carta

que Jacobi enviou a Fichte em 1799, este termo torna-se célebre e popularizado graças a

Tourgueniev, que o utilizara em seu romance Pais e filhos (1862). Neste romance,

Tourgueniev descrevia uma mudança cultural que se produzia na Rússia: a nova

geração, dos filhos, tinha começado a defender uma nova concepção de mundo, uma

concepção materialista e niilista. Esta concepção estava ainda longe do socialismo

radical e revolucionário defendido pelos agitadores magistralmente representados por

Dostoievski em Os demônios (1873). No entanto, o ateísmo já havia substituído o Deus

ortodoxo nos corações dos jovens adolescentes russos.

Ivan Karamazov é um representante típico da juventude russa deste período. Seu

ateísmo se apóia sobre um argumento que não é ontológico, mas sim moral. Segundo

Ivan, a questão metafísica em torno da existência de Deus não tem nenhum sentido para

um ser, como o homem, dotado de inteligência euclidiana e terrestre. Neste sentido,

Ivan não rejeita a priori a existência de Deus. Ele recusa antes o mundo criado por um

Deus por razões morais, um mundo onde, a cada dia, um número enorme de crianças

inocentes são injustamente torturadas, abusadas e humilhadas. Ora, a teologia cristã

descreve Deus como benévolo e todo poderoso. Como um tal Deus pode aceitar o

sofrimento infligido a inocentes? Tal como argumenta James P. Scanlan em seu estudo

dedicado ao pensamento de Dostoievski, ou Deus não é benévolo (pois se fosse teria

querido criar um mundo diferente), ou não é todo poderoso (pois se fosse teria sido

capaz de criar tal mundo diferente). Em todo caso, a existência de Deus (ao menos, do

Deus cristão) é negada.15

15 Scanlan, J. P., Dostoevsky. The Thinker. Ithaca: Cornell University Press, 2002, p. 52. Uma

argumentação semelhante é defendida pelo epicurista Brotteaux contra o padre Longuemate em Os deuses

têm sede, de Anatole France: “Epicuro disse: Ou Deus quer impedir o mal e não pode, ou ele pode e não

quer, ou ele nem pode nem quer, ou ele quer e pode. Se quer e não pode, ele é impotente; se pode e não

quer, é perverso; se nem pode nem quer, é impotente e perverso; se quer e pode, não o faz, meu padre?”

(France, A., Les dieux ont soif. Paris: Libraire Générale Française, 1989, p. 171.)

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Ivan apenas faz derivar, de uma maneira muito coerente e lógica, as

conseqüências deste ateísmo para a moral. Se Deus não existe, a moral não tem mais

base na qual se apoiar. Por conseguinte, ela rui. Alguns anos mais tarde, Nietzsche anota

exatamente a mesma lógica em seus cadernos: “Em que medida”, escreve o filósofo,

“junto com ‘Deus’, a moral tradicional também desmorona? Eles se sustentavam um ao

outro” (FP 39[15], agosto-setembro de 1885).16 Assim, continua Ivan, na falta de uma

moral através da qual não somente se dê uma direção ao agir humano, mas também se o

restrinja, tudo se torna permitido. Ou, como Sartre escreve na passagem evocada no

início dessa apresentação: “Se suprimimos os mandamentos de Deus e os valores

inscritos na eternidade, nada mais resta senão a estrita gratuidade, cada um podendo

fazer o que quiser”.17

Vemos claramente que Sartre traduz e transpõe a lógica karamazoviana em

termos gidianos. A palavra ‘gratuidade’ passa assim a indicar a ausência de toda e

qualquer justificação e de todo e qualquer suporte para a conduta humana. Como

explica Manuel de Dieguez em seu estudo dedicado ao absurdo e ao niilismo, “tendo o

ato perdido seus suportes, sobreviverá em plena gratuidade: é esta a própria definição do

niilismo”.18 Em outros termos, a questão fundamental é a seguinte: Se Deus não existe,

como poderemos motivar, justificar, apoiar, fundar o ato humano? “Se [...] Deus não

existe”, escreve ainda Sartre, “não encontramos diante de nós valores ou imposições que

legitimariam nossa conduta. Assim, não temos nem atrás de nós, nem diante de nós, no

domínio dos valores, justificações ou desculpas”.19

Examinemos mais de perto essa lógica. Podemos verdadeiramente afirmar que,

se Deus não existe, tudo é permitido, como o sugere Dostoievski através de seu

personagem Ivan Karamarozov? Na realidade, como já mostrou Feuerbach em sua obra

A essência do cristianismo (1841), a fundação da moral sobre a teologia não constitui

per se uma garantia de conduta moral:

Onde se funda a moral sobre a teologia, o direito sobre a instituição divina, pode-se

justificar e fundar as coisas mais imorais, mais injustas, mais vergonhosas. Só posso

fundar a moral sobre a teologia se determino previamente o ser divino pela moral.

Senão, não terei critério para a moralidade e a imoralidade, mas uma base arbitrária,

imoral, de onde poderei deduzir qualquer coisa.20

16 Nietzsche, F., Fragments Posthumes. Automne 1884-automne 1885. Paris: Gallimard, 1982, p. 360. 17 Sartre, J. P., L’existentialisme est un humanisme, p. 22. 18 De Diéguez, M., De l’absurde. Paris: Éditions du Triolet, 1948, p. 29. 19 Sartre, J. P., L’existentialisme est un humanisme, p. 39. 20 Feuerbach, L., L’essence du christianisme. Paris: Gallimard, 1968, p. 429.

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Paolo Stellino

66 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 60-72, 2017

O argumento de Feuerbach é sólido e convincente, mas o problema filosófico

que nos preocupa permanece não resolvido. Pois que, se Deus não existe, como

determinaremos os limites da liberdade humana e do que é ou não é moralmente

permitido? Como evitaremos o risco de uma conduta arbitrária e amoral? Em outros

termos, trata-se, de um lado, de dar e imprimir uma direção ao agir humano

preenchendo o vazio axiológico e normativo decorrente da morte de Deus, e, de outro

lado, trata-se de restringir uma liberdade que se tornou potencialmente ilimitada. Como

escreve Sartre, “de fato, tudo é permitido se Deus não existe, e por conseguinte o

homem é abandonado, porque ele não encontra nele, nem fora dele, uma possibilidade

de se apegar. [...] o homem é livre, o homem é liberdade”.21

Esta liberdade é concebida por Nietzsche, antes de tudo, como causa de

desorientação. As questões postas pelo Insensato de A gaia ciência simbolizam

claramente o desamparo que se segue à descoberta da morte de Deus: “Onde foi parar

Deus? [...] Nós o matamos, – você e eu! Somos todos seus assassinos! Mas como o

fizemos? Como pudemos beber o mar até a última gota? Quem nos deu a esponja para

fazer desaparecer todo horizonte? Que fizemos nós separando esta terra de seu sol? ».22

Por seu lado, Dostoievski, como vimos, concebe a liberdade derivando da morte de

Deus em termos decididamente mais negativos e sombrios, seja como ocasião para

justificar cada tipo de crime ou de ato amoral (no caso de Ivan Karamazov), seja como

tentação de auto-deificação (no caso de Kirilloff).23

Estabelecendo uma relação entre a liberdade derivando da morte de Deus e a

tentação de auto-deificação, Dostoievski segue os passos de Feuerbach (aliás, a teoria de

Kiriloff, segundo a qual Deus representa a projeção antropomórfica do medo humano da morte,

é tipicamente feuerbachiana). De fato, em sua obra A essência do cristianismo,

Feuerbach tinha considerado a auto-deificação do homem como a conseqüência lógica

da recusa de Deus. Se as qualidade e as propriedades, atribuídas pelo homem a Deus,

21 Sartre, J. P., L’existentialisme est un humanisme, p. 39. 22 Nietzsche, F., Œuvres. Paris: Flammarion, 2000, §125, p. 162. 23 Kiriloff, um dos personagens do romance Os demônios, é conhecido por sua teoria bem particular:

tirando a própria vida, ele quer provar sua independência (svoevolie) e, por conseguinte, a divindade do

homem. Seu raciocínio é muito lógico: se Deus existe, tudo dele depende, e o homem não pode nada fora

da vontade dele. Se Deus não existe, tudo depende do homem, que é chamado a afirmar sua

independência. O suicídio, concebido como um ato de suprema afirmação de si, é precisamente o meio

pelo qual Kiriloff pretende proclamar seu livre-arbítrio e, ao mesmo tempo, provar a inexistência de

Deus. A conseqüência que Kiriloff deriva da inexistência de Deus é a autodeificação do homem. Com

efeito, segundo Kiriloff, é afirmando sua própria independência, concebida como o atributo da divindade

humana, que o homem, através de um ato heróico de insubordinação e de revolta, toma o lugar de Deus.

Na concepção utópica e visionária de Kiriloff, um homem novo advirá e seu nome será o homem-Deus.

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Para além da lei moral: morte de Deus e gratuidade de Feuerbach a Sartre

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 60-72, 2017 67

são na realidade qualidades e propriedades humanas, então, segundo o raciocínio de

Feuerbach, a essência humana deve ser colocada em primeiro plano. O princípio prático

novo torna-se então: “Homo homini deus est ».24 Três anos mais tarde, Max Stirner

denunciava duramente esta nova religião da Humanidade como a última metamorfose

da religião cristã: “Na aurora dos novos tempos surge o Homem-Deus”, escrevia

Stirner;

Em seu declínio, o único Deus terá se desfeito? E o Homem-Deus pode de fato morrer

se o único Deus morre nele? Não se colocou esta questão; acreditou-se ter cumprido

tudo quando, nos nossos dias, se levou a cabo a obra do iluminismo e se venceu o Deus;

não se percebeu que o Homem só matou o Deus para tornar-se por sua vez ‘o único

Deus que reina nos céus’ (Parte II, epígrafe).

Se Stirner denuncia a lógica teológica que se esconde por detrás da auto-

deificação tipicamente feuerbachiana do homem, Dostoievski põe em evidência sua

periculosidade. Tendo negado Deus, o novo homem (o homem-deus) está destinado não

somente a tomar o lugar de Deus sobre a Terra, mas também a herdar uma de suas

propriedades mais essenciais, isto é, a liberdade moral absoluta. Em outros termos, a

tentação da auto-deificação está ligada estritamente à tentação de ultrapassar os limites

morais convencionais. A advertência de Dostoievski é bem clara: renunciar à crença em

Deus e abraçar o ateísmo significa escolher percorrer uma ladeira extremamente

escorregadia que, através da queda da moral antiga e da auto-deificação do homem,

conduz à gratuidade da conduta e ao ‘tudo é permitido’ karamazoviano.

É exatamente nesse sentido que, já a partir do final do século XIX, vários

intelectuais interpretaram a filosofia de Nietzsche. Na realidade, não há nada mais

distante do pensamento nietzschiano que a gratuidade da conduta moral justificada pelo

‘tudo é permitido’ karamazoviano. No entanto, a identificação entre o amoralismo de

Ivan e a filosofia nietzschiana, assim como a interpretação do superhomem no sentido

de um homem-Deus ao qual tudo seria permitido e que estaria acima da lei, é um

mitopoema, para utilizar a expressão de Nel Grillaert25, muito difundido entre os

intérpretes (D. Merejkovski, L. Chestov, A. Gide, H. de Lubac, A. Camus, etc.).26 A

24 Feuerbach, L., L’essence du christianisme. Paris: Gallimard, 1968, p. 426.

25 Grillaert, N. What the God-Seekers Found in Nietzsche. The Reception of Nietzsche’s Übermensch by

the Philosophers of the Russian Renaissance. Amsterdam/New York: Rodopi, 2008, p. 41. 26 Ver Merejkovski, D., L. Tolstoy i Dostoevsky. Vechnye Sputniki. Moscow: Respublika, 1995 [1901] ;

Chestov, L., La philosophie de la tragédie : Dostoïevski et Nietzsche. Paris: Le Bruit du Temps, 2012;

Gide, A., Dostoïevski. Articles et causeries. Paris, Gallimard, 1981; De Lubac, H., Le drame de

l’humanisme athée. Paris: Cerf, 1944; Camus, A., L’homme révolté. Paris: Gallimard, 1951. Para uma

análise mais aprofundada, ver Stellino, P., Nietzsche and Dostoevsky: On the Verge of Nihilism. Bern:

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Paolo Stellino

68 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 60-72, 2017

difusão deste mitopoema foi encorajada, antes de tudo, pela pretensa deificação do

superhomem por Nietzsche. Todavia, basta ler a passagem seguinte do discurso Nas

ilhas fortunadas (segunda parte do Zaratustra) para ver que a interpretação do

superhomem no sentido de um homem-deus feuerbachiano é, para dizer o mínimo,

bastante problemática: “Deus é apenas uma conjuntura, mas não quero que suas

conjunturas ultrapassem a medida de seu querer criador. Poderiam vocês criar um deus?

Então não me falem mais de deuses! Mas o além-do-homem, vocês podem criá-lo”.27

Como mostrou Heidegger em sua leitura da expressão nietzschiana “Deus está morto”,

aqueles que interpretam o além-do-homem com um novo deus esquecem a diferença de

estatuto ontológico existente entre Deus e o homem:

Pensando grosseiramente, poderia-se acreditar que esta expressão [“Deus está morto”]

diz que o governo do ente passa de Deus ao homem, ou, ainda mais grosseiramente, que

Nietzsche coloca o homem no lugar de Deus. Aqueles que entendem assim pensam na

verdade bem pouco divinamente sobre a essência divina. O homem nunca pode se

colocar no lugar de Deus, porque a essência do homem nunca atinge a região da

essência de Deus. [...] O além-do-homem nunca tomará o lugar de Deus.28

Em segundo lugar, a interpretação da filosofia nietzschiana no sentido de um

amoralismo ao modo de Karamazov foi encorajado pela chocante similaridade entre a

ideia já mencionada de Ivan Karamazov (se não há Deus nem imortalidade da alma,

então tudo é permitido) e a máxima “nada é verdadeiro, tudo é permitido”, que aparece

em Assim falava Zaratustra e em A genealogia da moral.29 No entanto, quando essa

máxima é situada em seu contexto, torna-se patente que o objetivo de Nietzsche não é a

de defender a possibilidade de uma práxis amoral. Como Karl Jaspers já escrevia em

1936:

Esta proposição [nada é verdadeiro, tudo é permitido], frequentemente repetida por

Nietzsche, deve ser considerada, por ela mesma, incompreensível. Se consideramos

somente ela, ela aparece como a expressão de uma ausência total de obrigação, como

um convite ao capricho, aos sofismas e aos crimes.30

Peter Lang, 2015, pp. 145-152. O mesmo mitopoema tem sua aparição no texto do mandado de prisão do

ex-presidente Lula, onde uma citação retirada de Assim falava Zaratustra é utilizada para evocar o

princípio constitucional de isonomia. O sentido da referência a Nietzsche é o seguinte: Lula não seria um

superhomem e, por conseguinte, não se encontraria acima da lei. 27 Nietzsche, F., Œuvres., Nas ilhas afortunadas, pp. 395-396. 28 Heidegger, H., “Le mot de Nietzsche « Dieu est mort »”. In: Chemins qui ne mènent nulle part. Paris:

Gallimard, 1962, pp. 189-190. 29 A máxima “nada é verdadeiro, tudo é permitido”, aparece também nos fragmentos póstumos seguintes:

25[304] e [322], primavera 1884 ; 26[25], verão-outono 1884 ; 31[51] e 32[8], inverno 1884-1885. Ver

igualmente a variante “Tudo é falso! Tudo é permitido!”, do fragmento póstumo 25[505], primavera

1884. Para uma análise mais aprofundada do uso e significação desta máxima na filosofia de Nietzsche,

ver Stellino, P., Nietzsche and Dostoevsky: On the Verge of Nihilism., pp. 169-188. 30 Jaspers, K., Nietzsche : Introduction à sa philosophie. Paris: Gallimard, 1950, p. 232.

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Para além da lei moral: morte de Deus e gratuidade de Feuerbach a Sartre

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 60-72, 2017 69

Contrariamente a Dostoievski, Nietzsche não considera que a morte de Deus

abre inevitavelmente a porta ao “tudo é permitido”. Decerto, já o dissemos, a

desvalorização dos valores supremos derivando da morte de Deus deixa um vazio

axiológico e normativo. Todavia, a intenção de Nietzsche não é a de aceitar

passivamente esta situação, nem de cair em atitudes niilistas radicais tais como aquelas

sintetizadas no “tudo é permitido” ou o “tudo é inútil, tudo é em vão”.31 Ao contrário,

uma grande parte da última filosofia de Nietzsche é justamente dedicada a preencher

este vazio axiológico e normativo através de uma transvaloração dos valores. Há

poucas dúvidas de que este empreendimento filosófico provoque um monte de questões

meta-éticas complicadas tais como, por exemplo: Qual critério avaliativo Nietzsche

utiliza para sua transvaloração? Qual o estatuto epistêmico deste critério? Qual sua

validade e sobre o quê ela repousa? Qual a razão pela qual nos deveríamos privilegiar

este critério avaliativo mais que algum outro? No entanto, para além desses problemas

evidentes, aos quais supõe-se que o especialista nietzschiano tem que responder, no

contexto dessa apresentação é importante sublinhar que a filosofia nietzschiana pode ser

definida como imoral, mas não como amoral (sendo a amoralidade caracterizada pela

ausência completa de normas morais).32 É justamente por esta razão que a analogia

entre Ivan Karamazov e Nietzsche é uma analogia falaciosa. Enquanto tal, ela deve ser

recusada.

Para terminar, voltemos à questão inicial : quais seriam as consequências da

morte de Deus para a moral? Como vimos, Dostoievski e Nietzsche dão respostas

diametralmente opostas a esta questão. Para Dostoievski, a existência de Deus e a

imortalidade são dois pilares essenciais do edifício moral. Sem eles, temos uma ladeira

escorregadia que nos conduz do ateísmo à auto-deificação, e da auto-deificação à

liberdade moral absoluta ou à “estrita gratuidade”, segundo a expressão de Sartre. Para

Nietzsche, ao contrário, a dicotomia ou Deus ou a amoralidade é uma dicotomia falsa e

31 O profeta da segunda parte do Zaratustra representa um exemplo típico desta última atitude niilista e

pessimista: “…E eu vi uma grande tristeza se abater sobre todos os homens. Os melhores se cansaram de

seus trabalhos. Uma doutrina se espalhou trazendo consigo uma crença: ‘Tudo é vão, tudo é igual, está

tudo acabado.’ E de todas as colinas o eco se repetia: ‘Tudo é vão, tudo é igual, está tudo acabado’. Nós

fizemos a colheita: mas porque todos os nossos frutos apodreceram e murcharam? […] Nosso trabalho

foi inútil, nosso vinho se transformou em veneno, o olho grande queimou e torrou nossos campos e

nossos corações […] ‘Que lástima! Onde ainda há um mar para nos afogarmos? Tal é nosso lamento ao

longo dos lisos pântanos. Na verdade, nós já estamos demasiado cansados para morrer; continuamos a

vigiar e a viver – em câmeras sepulcrais.’” (Nietzsche, F., Œuvres. O adivinhho, p. 438). 32 Não esqueçamos que Nietzsche demonstra uma preferência evidente por um modelo aristocrático de

sociedade na qual o grupo dominante se caracteriza não por uma ausência completa de normas morais

mas pelo que Nietzsche chama ‘moral dos senhores’ (Herren-Moral).

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Paolo Stellino

70 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 60-72, 2017

enganosa. Para ir-se além dela, é essencial criar novos valores, valores que, renunciando

a uma justificação metafísica ou teológica, não deixem por isso de ter uma pretensão de

validade. Sartre, por seu lado, é muito mais próximo de Nietzsche que de Dostoïevski,

dadas as diferenças não negligenciáveis existentes entre a filosofia nietzschiana e a

sartriana33. Decerto, como vimos, Sartre concorda com Dostoïevski quando o escritor

russo afirma, através do seu personagem Ivan Karamazov, que tudo é permitido se Deus

não existe34. Todavia, Sartre está longe de conceber que “tudo é permitido” nos termos

do simples capricho ou da amoralidade de Karamazov. Ao contrário, a “total

liberdade”35, derivada da “total gratuidade”36 da existência, implica, segundo Sartre, um

sentimento de responsabilidade face a nossos atos, nossas escolhas e nossos valores37.

Tal como escreve o filósofo francês: “o homem que se engaja e que percebe que ele é

não somente aquele que ele escolhe ser, mas também um legislador escolhendo ao

mesmo tempo a humanidade inteira, não saberia escapar ao sentimento de sua total e

profunda responsabilidade.”38

33 Ver Louette, F., Sartre contra Nietzsche (Les mouches, Huis clos, Les Mots). Grenoble: Presses

Universitaires de Grenoble, 1996; Daigle, C., Le nihilisme est-il un humanisme ? Études sur Nietzsche et

Sartre. Québec: Les Presses de l’Université Laval, 2005. 34 Sartre, J. P., L’existentialisme est un humanisme, p. 39. 35 Ibidem, p. 70. 36 Ibidem 37 Mesmo nesse ponto, Sartre é extremamente próximo de Nietzsche. Com efeito, se por um lado

Nietzsche critica diversas vezes o conceito tradicional de ‘responsabilidade’, baseada na noção de livre-

arbítrio, por outro lado, ele encoraja a humanidade não somente a criar novos valores (isto é, a se auto-

determinar), como também a assumir a responsabilidade derivada desta criação. Tal como escreveu

Heidegger, especificamente em relação ao sobre-humano: “É fácil, mas irresponsável, se indignar diante

da ideia e da figura do além-do-homem – à qual, é verdade, acomodou-se seu próprio mal-entendido – e

fazer essa indignação se passar por uma refutação. É difícil, mas, para o pensamento futuro, inelutável,

aceder à alta responsabilidade [hohe Verantwortun ; itálico nosso] a partir da qual Nietzsche pensou a

essência de uma humanidade que, na destinação historial da vontade de potência, se vê condenada ao

fardo de reinar sobre a terra. A essência do além-do-homem não é licença para uma arbitrariedade

descarrilada. Ela é a salvação, fundada no próprio ser, de uma longa cadeia de ultrapassamentos de si

[...]” (Heidegger, H., “Le mot de Nietzsche « Dieu est mort »”, p. 188). Para uma análise em

profundidade do conceito de responsabilidade em Nietzsche, ver Pfeuffer, S., Die Entgrenzung der

Verantwortung. Nietzsche – Dostojewskij – Levinas. Berlin/New York: de Gruyter, 2008. 38 Sartre, J. P., L’existentialisme est un humanisme, pp. 39-40.

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Para além da lei moral: morte de Deus e gratuidade de Feuerbach a Sartre

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Recebido em: 28/09/2016

Aprovado em: 17/03/2017

Page 73: Rio de Janeiro 2017, v. 10, nº 1 ISSN 1982-5870tragica.org/artigos/v10n1/v10n01.pdf · formação humanista em proveito de uma formação cientificista”, e acrescenta: [...] a

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 73-92, 2017 73

Negatividade e produção: elementos para uma teoria do desejo em Deleuze

André Dias de Andrade*

Resumo: Abordamos a crítica de Deleuze à negatividade no que tange à elaboração de

uma ontologia positiva do desejo. Importa notar como as obras que se encaminham para

uma teoria do desejo, notadamente Nietzsche e a Filosofia (1962) e Espinoza: filosofia

prática (1970), servem de base para a construção de tal teoria propriamente dita em O

Anti-Édipo (1972) – já fruto de um agenciamento entre Deleuze e Guattari. Além de

pensar o desejo como chave de leitura para as obras-comentário de Deleuze, buscando

suas afinidades com a puissance nietzschiana e o conatus espinozista, adotamos como

fio-condutor a crítica que elas estabelecem contra a noção de negativo e sobre como esta

compromete toda concepção de desejo. Assim, acreditamos que o recenseamento

terminológico das obras nos fornece os elementos com os quais Deleuze, junto de

Guattari, elaboram uma ontologia do desejo como “produção” e que serve de alternativa

a uma concepção negativa e representativa do desejo presente na filosofia francesa

contemporânea.

Palavras-chave: Deleuze; desejo; dialética; ética; produção.

Negativity and production: elements toward a theory of desire in Deleuze

Abstract:

We approach Deleuze’s critics to negativity with regard to the elaboration of a positive

ontology of desire. It’s important to notice how works like Nietzsche and Philosophy

(1962) and Spinoza: practical philosophy (1970) address themselves to a theory of

desire and embase the construction of this theory itself in Anti-Oedipus (1972) – which

results from an agency between Deleuze and Guattari. Besides thinking desire as a key

to read the commentary-works of Gilles Deleuze, that is, seeking its affinities with

Nietzsche’s puissance and Spinoza’s contaus, we adopt as the guiding-line of this paper

the critics that they stablish against the notion of negativity and how it compromises all

conception of desire. Therefore, we believe that the terminological census of those

works provides us with the elements upon wich Deleuze, along with Guattari, elaborate

an ontology of desire as “production”, wich serves as an alternative to its negative and

representacionist conception present in contemporary french philosophy.

Key-words: Deleuze; desire; dialetics; ethics; production.

I

A fim de esboçar as teses deleuzianas a respeito do desejo, passando por obras

suas em que esse tema é capital, é preciso compreender como sua teoria se distingue

daquela em voga na França até então. Sabe-se que os cursos de Kojève sobre Hegel e,

posteriormente, a tradução francesa da Fenomenologia do Espírito de Jean Hyppolite,

* Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Contato:

[email protected]

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André Dias de Andrade

74 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 73-92, 2017

seguida de seu comentário1, contribuem para estabelecer um cenário que se apropria das

categorias hegelianas na reflexão filosófica. “Consciência de si”, “desejo”,

“negatividade”, “não-ser”, são noções que fazem fortuna nesta geração, de modo que o

sujeito e sua relação com o mundo, na forma do desejo, possam ser compreendidos

numa complexa articulação entre ser e nada2. A ontologia, com a ajuda do aparato

dialético hegeliano tal como reproduzido por Kojève e Hyppolite, obrigatoriamente, é

pensada em aliança com a noção de negatividade, de forma que é na negação – do

mundo, do em-si, da alteridade – que o fenômeno toma forma e que surge o sentido.

Obviamente, há nuances das mais diversas entre tais teóricos; enquanto Kojève

parece advogar uma leitura dualista e, para tanto, pensar o sentido como propriamente

“humano” e a consciência desejante como negadora da natureza, de modo a fazer

progredir a história3, Hyppolite elabora um monismo ontológico sob a categoria de

“vida” depreendida de Hegel, a partir do qual a negação e o sentido surgem no seio do

próprio ser, na realidade enquanto tal4. Além disso, tais perspectivas podem inclusive

ser estendidas e multiplicadas aos seus alunos e/ou leitores, tais como Sartre e Merleau-

Ponty, na medida em que o primeiro corrobora a visão dual de uma dialética “sem

síntese” e da outorga de uma dimensão existencial e humana para a filosofia5; enquanto

que se há um “humanismo” no segundo, trata-se de uma perspectiva mais branda a qual

concebe o sujeito e sua característica desejante como uma espécie de “oco” no ser,

1 Respectivamente: KOJÈVE, A. Introduction à la lecture de Hegel, 1947; HEGEL, G.W.F.

Phenoménologie de l’esprit. Trad. Jean Hyppolite. Paris: Aubier 1941; HYPPOLITE, J. Génèse et

structure de la Phénoménologie de l'esprit de Hegel. Paris, Aubier, 1946. 2 “se considerarmos que a preocupação filosófica com o desejo no século XX começa na França, na

década de 1930, com os cursos de Kojève sobre Hegel, a questão sobre o lugar metafísico e a eficácia

moral dos sujeitos humanos está presente em todo lugar”. BUTLER, J. Subjects of desire: Hegelian

Reflections in Twentieth-Century France, 1987, p. 5. 3 Quando Kojève procura fornecer a estrutura geral da obra de Hegel, pontua que os primeiros capítulos

contêm uma finalidade “sobretudo gnosiológica”, enquanto o capítulo quatro é “sobretudo antropológico”

(KOJÈVE, Op. Cit., 1947, p. 49). Trata-se da humanização da dialética hegeliana, a partir dos cursos da

École Pratique de Hautes études, entre 1933-39. O que fica claro nessa chave de leitura é a

dicotomização entre uma realidade natural e uma propriamente humana – esta atrelada ao desejo. Se “a

história humana é a história dos desejos desejados” (Ibidem, 1947, p. 13), pode-se conceber a imagem

desse homem, como limite e gênese do sentido no mundo, enquanto sujeito fadado à busca de

reconhecimento e de uma plenitude jamais alcançada. 4 “O que aparece através do homem [...] é o discurso ontológico, o saber absoluto do ser, e esse saber não

é o homem, ainda que não exista em outro lugar que na linguagem e possua incontestavelmente uma

historicidade. [...] Não é o homem que interpreta o Ser, é o Ser que se diz no homem, e essa revelação do

Ser [...] passa pelo homem” (HYPPOLITE, J. Figures de la Pensée Philosophique, 1971, p. 156-7). 5 Sobre O Ser e o Nada escreve Descombes: “Como o ser é o idêntico que só é idêntico, enquanto que a

consciência é a diferença que nunca deve alcançar a identidade, a relação entre ambos forçosamente é

uma não-relação e a síntese um fracasso” (DESCOMBES, V. Lo mismo y lo outro, 1988, p. 79). Quanto à

continuidade da leitura dualista de Hegel, Hyppolite, por sua vez, havia já sustentado tal ideia: “a dupla

ontologia que reclamava Kojève, é Sartre quem a realiza em O Ser e o Nada”. HYPPOLITE, Op. Cit.,

1971, p. 240.

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Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 73-92, 2017 75

como um espaço de negação, de não-ser e de possibilidade que só toma forma a partir

de uma realidade prévia, de um campo de possíveis em que uns aparecem como mais

“atraentes” e significativos que outros6 – portanto, uma perspectiva não dual e mais

próxima de Hyppolite, que compreende o “nada” sob o fundo de ser.

Destarte tal pluralidade argumentativa que surge em torno do hegelianismo

francês, uma questão se impõe: trata-se de pensar o estatuto da negatividade para se

fazer ontologia e, por conseguinte, delimitar qual o papel do desejo neste interim.

Assim, a questão do negativo vai de par com aquela da relação de sentido que se pode

ter com as coisas (o desejo), de modo que se podemos pensar numa definição

(respeitando a pluralidade e toda a riqueza do debate que aí assinalamos existir) poderia

ser aquela de Paulo Arantes ao comentar tal paisagem intelectual: “o desejo do homem é

o desejo do outro”7. Vê-se desde logo que há uma negação na base do desejo.

Ainda que tal relação com a alteridade, oriunda da dialética entre senhor e

escravo, possa ser lida de diversas maneiras pelos filósofos franceses, trata-se sempre de

pensa-la como uma relação negativa; segundo Deleuze, a partir de então, introduz-se a

falta (ainda que sob variadas figuras) no desejo e se subtrai seu caráter positivo. Se o

desejo é desejo de um outro, independente do estatuto desta alteridade, ausência ou

transcendência8, ele não pode ser vislumbrado como tendo um caráter produtivo – para

todos os efeitos, ele é negativo ou negador, uma busca que supõe perda, e não algo de

verdadeiramente positivo. É contra tal noção negativa do desejo, moeda de troca na

filosofia francesa do século XX, que Deleuze procura investir.

Nossa intenção, doravante, é reconstruir tal crítica ao negativo a fim de nos

aproximarmos de uma ontologia positiva do desejo, presente em O Anti-Édipo, a partir

de noções desenvolvidas ao longo das leituras de Nietzsche e Espinoza propostas por

6 Parafraseando e se opondo à Sartre, quando este afirma que o homem é o ser pelo qual o nada vem ao

mundo, Merleau-Ponty aponta que “se é pela subjetividade que o nada aparece no mundo, pode-se dizer

também que é pelo mundo que o nada vem ao ser”. MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da

percepção, 1999, p. 606. 7 ARANTES, P. “Hegel no espelho do Dr. Lacan”, 1995, p. 23. Embora o personagem eleito para se

comentar nesta virada seja Lacan, aliás outro frequentador dos cursos de Kojève, por trás de sua

concepção do desejo está justamente aquela de uma “aclimatação francesa do hegelianismo”, porquanto

“Lacan está atrás de uma virada, nos seus termos, num instante em que o desejo é confusamente

apreendido no outro, ou ainda como se diz, lembrando-se sem dúvida Kojève: é nesse exato momento que

se isola, no ser humano, a consciência enquanto consciência-de-si e o desejo aparece como pura

negatividade”. ARANTES, Op. Cit., p. 23. 8 “Os três erros sobre o desejo denominam-se a falta, a lei e o significante [...] E de nada adianta

interpretar estas noções nos termos de uma combinatória que faz da falta um lugar vazio e não mais uma

privação, que faz da lei uma regra de jogo e não mais uma ordem, que faz do significante um distribuidor

e não mais um sentido; nada disso adianta, porque isso não as impede de trazer consigo seu cortejo

teológico, a insuficiência de ser, a culpabilidade, a significação”. DELEUZE-GUATTARI, O Anti-Édipo:

Capitalismo e Esquizofrenia, 2010, p. 152.

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Deleuze. Tal itinerário se justifica na medida em que há uma profunda semelhança entre

as noções de potência, conatus e desejo, respectivamente, sendo salutar compreender a

ontologia que se cria na obra de Deleuze-Guattari a partir da contribuição de tal pano de

fundo teórico. Passemos então à “leitura da leitura”; ao estatuto da vontade e do desejo

em Nietzsche e a filosofia e Espinoza: filosofia prática.

II

Deleuze rastreia em filósofos como Espinoza e Nietzsche, mas também em

Bergson, uma espécie de pensamento afirmativo que se relaciona com um universo no

qual não há realidade para a falta, a ausência, a oposição e a contradição; em suma, para

o negativo9. Desse modo a dialética hegeliana, como mecanismo que dá um estatuto

ontológico positivo à negação, constitui uma teoria avessa e até hostil a tais filosofias

sobre as quais Deleuze pretende meditar10. Em Nietzsche, haveria como que uma

preocupação fundamental que magnetiza as demais: a vida e seus perigos. Dito de outro

modo, afirmar a vida e criticar sua negação. Nesta filosofia, “a vida seria a força ativa

do pensamento, mas o pensamento, a potência afirmativa da vida”11, de modo que, entre

pensamento e vida, a relação é mais estreita do que entre pensamento e conhecimento.

Ora, isto não é dado de partida, mas requer que se faça uma “nova imagem do

pensamento”12, a qual tem como objeto não a verdade, mas o sentido e o valor (o

“nobre”, o “vil”, o “alto” e o “baixo”).

9 Quanto a Bergson, encontramos esta mesma direção de leitura em Bergsonismo: “Na dialética, Bergson

reprova o falso movimento, isto é, um movimento do conceito abstrato, que só vai de um contrário ao

outro à força de imprecisão [...] O essencial do projeto de Bergson é pensar as diferenças de natureza

independentemente de toda forma de negação: há diferenças no ser e, todavia, nada há de negativo”.

DELEUZE, Bergsonismo, 2012, pp. 38; 40. 10 “Quanto a mim, ‘fiz’ por muito tempo história da filosofia, li livros sobre tal ou qual autor. Mas eu me

compensava de várias maneiras. Primeiro, gostando dos autores que se opunham à tradição racionalista

dessa história (e entre Lucrécio, Hume, Espinoza, Nietzsche, há para mim um vínculo secreto constituído

pela crítica do negativo, pela cultura da alegria, o ódio à interioridade, a exterioridade das forças e das

relações, a denúncia do poder..., etc.). O que eu mais detestava era o hegelianismo e a dialética”.

DELEUZE, Conversações, 1992, p. 14. 11 .DELEUZE, Nietzsche et la philosophie, 1962, p. 115. 12 Ibidem, p. 118. Imagem que reitera sua urgência para a geração de Deleuze, porquanto não se trata de

uma novidade do tempo de Nietzsche, mas de uma filosofia “inatual”, como toda filosofia deve ser. Ela,

nesse sentido, não pertence ao contexto temporal de Nietzsche, que serve de contragolpe à Hegel, nem ao

contexto de Deleuze, oposto ao hegelianismo francês – aliás não é mesmo atemporal –: ela é de tempo

nenhum ou “intempestiva”. “Dos filósofos e a filosofia de seu tempo Nietzsche dizia: pintura de tudo o

que sempre se acreditou. Talvez ainda o dissesse da filosofia atual, em que nietzscheanismo,

hegelianismo, husserlianismo são os pedaços do novo pensamento multicolorido”. Ibidem, p.223.

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Trata-se então de afirmar a vida e de combater toda forma de negação dela, de

seu aprisionamento a uma ordem pré-estabelecida de valores e que a impede de se

desenvolver. Assim, a criação é a marca distintiva da vida e sua neutralização a ameaça

mais iminente. Pois, para Deleuze, Nietzsche identifica a realidade como um complexo

jogo de forças, umas agindo sobre as outras, e que criam sentido e valor – sujeito,

objeto, mundo, verdade, erro, e outros tantos elementos comuns ao discurso filosófico

tradicional seriam secundários em relação ao sentido e valor que estão na base de todo

fenômeno, de maneira que seja antes preciso compreender como eles se produzem.

Desse modo, é necessário proceder a uma tipificação ou tipologia das forças que

estão em jogo na natureza; de modo que aquelas que agem e conquistam outras são

denominadas ativas e as conquistadas reativas. Uma questão de forças, portanto, sendo

cada uma diferente e singular com relação às outras e todas agindo continuamente sobre

outras forças, não havendo “coisas” que sofrem sua ação. A intenção é não reduzir o

pensamento à consciência, visto que ela é apenas uma expressão possível das forças

‘reativas’ e, portanto, não representa ou compreende toda forma de relação com o real.

Trata-se, portanto, de acercar-se de um princípio mais fundamental que a consciência ou

que o mundo objetivo: a vontade de potência.

Tal vontade de potência é o princípio da realidade; portanto, um movimento em

direção da “potência”, não como conquista do “mais forte”, mas uma ampliação

indeterminada de ação e de experimentação. É ela que faz com que a vida, ao mesmo

tempo em que seja afirmada, conte sempre com novas possibilidades de sentido. De

fato, sob este novo regime ou imagem do pensamento, “pensar significaria descobrir,

inventar novas possibilidades de vida”13. Pensar, nesse sentido vai para além de uma

relação de conhecimento, não é possuir uma imagem ou objeto em pensamento, mas

utilizar duma força e, portanto, sempre interpelar e criar valor no mundo. Partindo desse

princípio, mesmo a negação sob sua forma mais radical, a vontade de nada ou o

niilismo, são, para Nietzsche, expressão da vontade de potência. De acordo com

Deleuze, a vontade de potência é como que um princípio dinâmico, a própria

dinamicidade do real, que se expressa na articulação entre forças ativas e reativas.

A vontade de potência não pode ser separada da força sem cair na abstração metafísica. Mas

confundir força e vontade é um risco ainda maior: não se compreende mais a força enquanto

força, recai-se no mecanismo, esquece-se a diferença de forças que constitui seu ser, ignora-se o

13 Ibidem, p. 115.

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elemento do qual deriva sua gênese recíproca. A força é o que pode, a vontade de potência é o

que quer.14

Querer não significa volição, sendo que a vontade de potência se faz à revelia de

um sujeito – tal vontade não deve ser confundida com o arbítrio –; ela é o próprio ser, o

ser como aquilo que i) diferencia todas as forças, dá-lhes sua singularidade, e as ii)

constitui em sua natureza15. Portanto, ela se expressa através das forças, não sendo um

princípio transcendente (e nem “princípio” num sentido causal), não obstante não se

reduza a elas – “é ao mesmo tempo um complemento da força e algo de interno”16. Não

há finalidade para tal expressão, assim como não se pode reportar a uma origem para a

vontade de potência, sendo necessário pensa-la junto com suas características na

perspectiva do eterno retorno.

Pois bem, é tal teoria que permite a Nietzsche, segundo Deleuze, pensar a

vontade de potência de maneira imanente, não fazendo dela a vontade de um sujeito ou

a emanação de um transcendente – bem entendido, o real é o eterno retorno daquilo que

é desencadeado por essa potência afirmativa. Ela se coaduna ao desejo inconsciente tal

como vislumbrado em O Anti-Édipo, isto é, de forma imanente e positiva. Ao passo em

que o desejo trabalha fragmentos infinitamente pequenos, de modo a compor, com tais

peças, máquinas e estruturas que engendram o real, a potência é responsável pela

gênese e diferenciação das forças que articulam sentido e valor17. Como nota Deleuze,

ainda em 1962 (dez anos antes de O Anti-Édipo), isto aponta para uma teoria do

inconsciente produtivo que não poderia se assujeitar inteiramente a uma estrutura como

a edipiana. “Pode-se imaginar o que Nietzsche teria pensado de Freud: aí ainda ele teria

denunciado uma concepção muito ‘reativa’ da vida psíquica, uma ignorância da

verdadeira ‘atividade’”18.

Não obstante o caráter positivo da vontade de potência, é importante notar como

o aspecto reativo das forças, aliado à negação como uma das qualidades da vontade (ela

ou nega ou afirma acerca das coisas), pode ser nocivo para a filosofia e para a

construção de uma ética. Pois, se na origem há apenas forças em coexistência e se estas

dividem-se em ativas e reativas, pode-se dizer que as forças reativas têm a característica

14 Ibidem, p. 57. 15 Deleuze cita Nietzsche: “O quê então quer a potência? Questão absurda, se o ser é por si próprio

vontade de potência...”. Apud DELEUZE, 1962, p. 56. 16 Ibidem, p. 56. 17 “A vontade de potência é ao mesmo tempo o elemento genético da força e o princípio da síntese das

forças” (Ibidem, p. 58). 18 Ibidem, p. 131 nota.

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Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 73-92, 2017 79

de limitar as forças ativas. É a partir desta limitação que devemos entender a introdução

do negativo na filosofia da vontade, de modo que Nietzsche vê no ressentimento e na

moral escrava um triunfo das forças reativas contra as forças ativas. O negativo deve ser

visto como um produto da existência e não essencial, pois ele não tem realidade própria,

sendo sempre fruto de um contrassenso na filosofia da vontade. Se “jamais em

Nietzsche a relação essencial de uma força com outra é concebida como um elemento

negativo” isso se deve ao fato de que elas não se negam, mas se diferenciam umas das

outras – e tal diferenciação é uma afirmação de si mesma, sem necessidade de oposição.

“A questão tão frequente em Nietzsche; o que quer uma vontade, o que quer este,

aquele?, não deve ser compreendida como a busca de um objetivo, de um motivo, nem

de um objeto para essa vontade. O que quer uma vontade é afirmar sua diferença”19.

Pensar as relações entre forças como negação, oposição, contradição é sempre

pensa-las do ponto de visto do escravo ou da consciência, conforme Deleuze, para quem

ambos – escravo e consciência na figura da consciência servil20 – compreendem um

“triunfo” da reatividade, ao contrário da perspectiva ativa do senhor e da potência

(atrelada ao inconsciente). Deixando isto de lado no momento, vê-se que a vontade de

potência, quando concebida do lado de uma força reativa, é re-presentada. Desse modo,

a aparência de negativo é o efeito de uma inversão na origem do problema: o

hegelianismo concebe a pluralidade de forças, vale dizer, a multiplicidade, a partir do

crivo da representação e da objetivação possível, sendo necessário ao desejo se reportar

à alteridade, num movimento de negação, superação, conservação e síntese numa

totalidade (o lema dialético da Aufhebung). Segundo tal aspecto invertido da origem,

sempre falta algo ao desejo, vale dizer, ele tem que ser definido como “desejo do

outro”.

O problema é que uma concepção negativa da vontade não é exclusiva do

terreno especulativo ou estritamente teórico; mais que isso, o ressentimento atrelado à

moral escrava resulta naquilo que Nietzsche denomina “má consciência” e “ideal

19 Ibidem, p. 10. 20 Vemos como na Genealogia da Moral há uma relação estreita entre ressentimento e negação – o

ressentido é aquele que nega. “A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se

torna criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a dos atos,

e que apenas por uma vingança imaginária obtêm reparação. Enquanto toda moral nobre nasce de um

triunfante Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz Não a um ‘fora’, um ‘outro’, um ‘não-eu’ - e

este Não é seu ato criador” (NIETZSCHE, Genealogia da Moral: uma polêmica 1998, p. 28-29). Assim

quem tornaria dialética a relação entre forças e introduziria aí o negativo é o escravo, uma vez que ele

parte do ponto de vista reativo das forças, de uma recognição da potência e da afirmação originárias:

“quem é dialético, quem dialetiza a relação? É o escravo, o ponto de vista do escravo, o pensamento do

ponto de vista do escravo”. DELEUZE, Op. Cit., p. 11.

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ascético”, como uma negação da vida a partir de um deslocamento de sentido da

posição do desejo. Tal como acontece com o cristianismo ao interpretar a vida como

uma perpétua expiação do pecado original, ou com o capitalismo ao apoiar-se numa

ideia de escassez que deve ser combatida ao longo de toda a existência, o “triunfo das

forças reativas” acarreta uma noção de falta originária – uma transcendentalização

radical do objeto do desejo – em que “a dívida perde o caráter ativo pelo qual

participava da liberação do homem: em sua forma nova é inesgotável, impagável”21.

Este é o mecanismo de expropriação que separa a força ativa daquilo que ela pode e

pelo qual os governantes e sacerdotes reprimem a potência de agir e o desejo, pois, ao

imprimir a figura de uma transcendência insuperável na base da vontade, de uma lacuna

jamais preenchida, fazem com que seus súditos e crentes lutem por sua própria servidão.

Esta é a questão que estava na base de uma moral e que, conforme Deleuze,

incomodava Espinoza22.

Ora, se mesmo as forças reativas contêm ação, pois são re-“ativas”, todo o

mecanismo de sua repressão não é capaz de subjugar tal caráter originariamente ativo e

afirmativo, mas apenas de o subverter inscrevendo aí o negativo. Na filosofia de

Espinoza, tal como lida por Deleuze, encontram-se diversos elementos que contribuem

para a compreensão dessa possível subversão. Pois ali nos deparamos, num primeiro

momento, com a compreensão de que a realidade é formada por um conjunto infinito de

corpos que se relacionam entre si, de forma a compor e decompor relações. Tais

relações principiais, ainda denominadas “inadequadas” por Espinoza, já que lhes falta o

conhecimento de suas causas, são “afecções” ou modos de representação próprios à

consciência, que recolhe apenas efeitos. Tais afecções, por si só, ao compor relações (tal

como a que vige entre o corpo fisiológico e o alimento) produzem alegria, enquanto que

ao decompor uma relação (como no caso do envenenamento) acarretam tristeza. Todo o

segredo está então em saber descobrir as relações convenientes – ou os “bons

encontros”23 – ao nosso corpo, fato este que demanda uma questão: como ascender a tal

conhecimento das “noções comuns”24, vale dizer, àquilo que há de comum e convém à

21 Ibidem, p. 162. 22 “A excomunhão, a guerra, a tirania, a reação, os homens que lutam por sua escravidão como se fosse a

sua liberdade, formam o mundo do negativo no qual vive Espinoza [...]” (DELEUZE, Spinoza.

Philosophie pratique, 1981, p. 22). A obra Espinoza. Filosofia Prática foi publicada em 1970 e

aumentada em uma reedição de 1981, a qual conta com um capítulo final que já exprime bem o

vocabulário utilizado por Deleuze e Guattari na finalização da série Capitalismo e Esquizofrenia II (Mil

Platôs) de 1980. 23 DELEUZE, Cursos sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981), 2009, p. 49. 24 DELEUZE, Op. Cit., 1981, pp. 52-53; 126.

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Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 73-92, 2017 81

dois ou mais corpos em conjunto, e não permanecer à mercê das afecções, ao acaso dos

encontros?

Como o universo de Espinoza é compreendido por Deleuze como uma

quantidade infinita de corpos infinitamente pequenos, chegamos à definição de corpo –

da mesma maneira que em Nietzsche – com o auxílio da noção de relação. Uma coisa,

ou um indivíduo, se define antes pelas relações que possui entre os corpúsculos que a

formam do que pelo que ela “é”, de uma forma substancial. Na medida em que só há a

substância única que é Deus ou a Natureza (Deus sive Natura), tais corpos são

entrevistos como modos de um atributo preciso dessa substância, o atributo da extensão.

Enquanto tais, são antes potências do que pontos fixos. Aqui, é preciso notar toda a

contribuição de uma tal doutrina para a teoria do desejo deleuziana. Se tudo se constitui

por sua potência, isto significa que a definição de algo obedece antes àquilo que pode

(em dois sentidos interdependentes: como potência de agir ou afetar e potência de ser

afetado) do que por aquilo que é25. E tal transposição da essência em potência guarda a

possibilidade de pensar todo indivíduo como sendo definido de maneira singular e, ao

mesmo tempo, não estática; nenhuma potência é igual à outra, sendo que há um

desconhecimento inevitável sobre aquilo que tal potência pode, sobre quais infinidades

de relações ela pode engendrar26. Daí ser preciso assinalar novamente a limitação do

intelecto face à experiência, sendo que há sempre um desconhecimento do corpo – da

potência de agir – e, por outro lado, um desconhecimento da própria potência de pensar

– havendo, assim como antes, uma desvalorização da consciência em proveito do

pensamento27.

25 A palavra “potência” (puissance), conforme indica Deleuze num curso datado de 9 de dezembro de

1980, é fruto de uma criação de Nicolau de Cusa que, ao juntar as palavras latinas posse (infinitivo do

verbo “poder”) e est (terceira pessoa do verbo “ser”), chega à possest. Trata-se, portanto, de algo como

um poder que se é ou, melhor, poder em ato. “O ‘possest’ será precisamente a identidade da potência e do

ato pelo qual defino alguma coisa. Então eu não definirei alguma coisa por sua essência, aquilo que ela é,

eu a definirei por esta noção bárbara, o ‘possest’, aquilo que ela pode. Ao pé da letra: aquilo que ela pode

em ato” (DELEUZE, Op. Cit., 2009, p. 89). É importante notar também que já em sua obra de 1970 havia

uma aproximação entre a vontade de potência e o conatus – “o conatus, como todo estado de potência, é

sempre em ato (DELEUZE, Op. Cit., 1981, p.141) –, relação esta que dá ensejo a definição de “desejo”

nesta obra. 26 O saber quanto à tais relações constitui o terceiro gênero de conhecimento, subsequente às afecções e

noções comuns, da epistemologia espinozista: trata-se não mais das ideias que se têm, mas das ideias que

se é, ou seja, das ideias que alguém tem a respeito de sua própria essência – se por “essência” se mantem

em salvaguardo seu caráter dinâmico e relacional. 27 Ibidem, p. 28. O conatus e seus afetos são também uma maneira de “pensar” (Ibidem, p. 83) segundo a

filosofia de Espinoza, o que leva Deleuze a entrever já aí como a consciência se banha inteiramente no

inconsciente. O desconhecimento a respeito daquilo que pode o corpo é aparentado ao desconhecimento a

respeito dos processos maquínicos insonscientes, tal como serão esclarecidos à frente em O Anti-Édipo, e

que tomam forma a partir da concepção espinozista de que a composição entre corpos influencia tanto na

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82 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 73-92, 2017

É dessa maneira que a definição de desejo aparece próxima daquela de

conatus28; se este pode ser definido como a tendência dupla de i) perseverar na

existência e ii) ampliar sua aptidão a afetar e ser afetado por cada ser, o desejo é a

atividade que obedece a tal duplicidade. Sua produção se relaciona, ao mesmo tempo,

com a ação e a afecção, sendo impossível separá-las29. “É preciso então que cheguemos

a uma definição real do desejo, que mostre ao mesmo tempo a ‘causa’ pela qual a

consciência é como que cavada no processo do apetite”30. Não é a consciência que

possui “apetite”, este sendo o próprio esforço pelo qual cada coisa se esforça por

perseverar em seu ser (conatus); logo, é antes a consciência que resulta do desejo. Então

não vamos, pelo desejo, ao desejado como aquilo que é “bom” – mas algo é julgado

“bom” porque vamos, pelo desejo, a ele. Novamente, é a consciência a responsável pela

leitura negativa do desejo, uma vez que quando ela capta o conatus através da ideia e da

representação, passa a crer que estas eram anteriores àquele e, mediante tal inversão,

que há desejo justamente porque há uma anterioridade do objeto desejado.

Tais elementos, como dito, permitem pensar uma ética ou “etologia” do desejo e

do conatus em Espinoza, de modo a desmontar toda moral que se baseia em princípios

universais e transcendentes. Ao invés da especificação e generalização (tais espécies de

animais se definem de tal forma, tais de outras, e assim por diante) promovida pelo

discurso moral, procede-se a uma diferenciação de acordo com a potência de cada

indivíduo. É mister, portanto, que tal diferenciação tenha como base uma ontologia

positiva31, a qual não entrevê lugar para o negativo e para a transcendência, de modo

potência de agir como na potência de pensar e compreender (de atingir as ideias adequadas e noções

comuns). 28 Ibidem, pp. 83; 136. 29 E tal seria uma resposta à crítica de Nietzsche a Espinoza, de que este não soubera “elevar-se até a

concepção de uma vontade de potência, confundiu poder com a simples força e concebeu a força de

maneira reativa (cf. o conatus e a conservação)” (DELEUZE, Op. Cit., 1962, p. 70); resposta apenas

possível quando Deleuze escreve o livro sobre Espinoza alguns anos mais tarde que aquele sobre

Nietzsche – resposta a um debate virtual encetado pelo próprio Deleuze, aliás. Quanto à dupla referência

do desejo, ação e afecção, haveria também espaço para ela no autor alemão, na medida em que a vontade

de potência contava também, em sua definição, com uma sensibilidade ou sentimento de potência. Há já

ali uma definição muito próxima da de desejo, já que “o poder de ser afetado não significa

necessariamente passividade, mas afetividade, sensibilidade, sensação”; e citando Nietzsche: “Eis o fato

fundamental... Para que a vontade de potência possa manifestar-se ela precisa perceber as coisas que vê,

ela sente a aproximação do que lhe é assimilável”. Ibidem, p. 70-71. 30 DELEUZE, Op. Cit., 1981, p. 32. 31 Conforme Alliez esta posição ética contraposta à moral possibilita que Deleuze desenvolva uma “onto-

etologia: para acabar com Deus, para acabar com o julgamento de seus avatares” (ALLIEZ, De

l’impossibilité de la phénomènologie, 1995, p. 79). É possível ver já em Espinoza a urgência desse

deslocamento entre onto-teologia e onto-etologia, porquanto “sua análise vai tão longe que consegue

encontrar, até na esperança e na segurança, este grão de tristeza que basta para fazer delas sentimentos de

escravos”. DELEUZE, Op. Cit., 1981, p. 39.

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Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 73-92, 2017 83

que “a prova ética é então o contrário do julgamento diferido: em lugar de reestabelecer

uma ordem moral, ela ratifica desde já a ordem imanente das essências e seus

estados”32. Além disso, a noção de desejo depreendida de tal filosofia investe contra a

ideia de falta, já que prescinde da noção de consciência e de representação – ao menos

em sua gênese – ao se aproximar daquelas do conatus spinozista ou da vontade de

potência nietzschiana. Assim, “a reprovação que Hegel fará a Espinosa, de ter ignorado

o negativo e a sua potência, é a glória e a inocência de Espinosa, sua descoberta

própria”33.

Antes de passar para o exame do desejo em O Anti-Édipo, passemos em revista o

principal dessas leituras deleuzianas. O “real”, o qual só é conhecido pela consciência

de forma derivada e representativa, é, em primeira instância, uma conjunção e

pluralidade de forças. Cabe ao sujeito espinozista, ao compreender-se como um

composto indissolúvel de corpo e espírito, paixão e pensamento, buscar os bons

encontros, vale dizer, aqueles em que a sua potência compõe com outras e acarretam

alegria. O desejo, nesse sentido, deve procurar a produção e não simplesmente visar

preencher uma falta – é isto o que ensinam a teoria do conhecimento e a ética de

Espinoza. Ora, em Nietzsche, é possível entrever que nem toda negação é nociva a uma

tal ética. Na medida em que não nega ou oblitera a vida, é possível pensar em um

trabalho positivo e “afirmativo da negação”, o qual está representado pela figura do

“leão” oriunda das três metamorfoses de Zaratustra e que resulta numa destruição

criativa, numa negação que possibilita engendrar novos valores. Bem entendido, tal

“negação” não passa de um modo de ser da afirmação e é disso que se trata quando da

transvaloração como criação ou produção de valores, de modo que a vontade de

potência – a puissance nietzschiana – se efetiva numa criação e não numa finalidade

específica. Levar a potência de cada ser à sua plena concreção é a tarefa de uma ética

pensada desde já por Nietzsche, mas a qual, na leitura deleuziana, na medida em que

envolve ao lado da ação a sensibilidade, pode ser coadunada ao conatus como desejo,

produção e satisfação. Como tal, encontra já a ressonância dos temas espinozistas

básicos: o universo e os indivíduos que nele habitam, são definidos a um só tempo pela

potência de agir e de ser afetado. É esta forma de definição que estaria na base da

tipologia nietzschiana e que definitivamente está na base do projeto de O Anti-Édipo.

32 Ibidem, p. 59. 33 Ibidem, p. 22.

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III

Quando nos deparamos com O Anti-Édipo e com sua proposição de cunho

ontológico inicial – “há tão somente máquinas” –, é salutar encontrar aí o ressoar da

leitura à qual Deleuze submetia Espinoza. E tal proposição não envolve metáfora

alguma, como salientam os autores34, de modo que nada há para encontrar além das

máquinas, sendo a elas que se deve dirigir a interrogação. Seria possível perguntar sobre

sua origem? Sobre sua estrutura? Sobre sua finalidade?

Enquanto máquinas, são compostas de “peças” – pedaços ou fragmentos

denominados objetos parciais –, tal como os órgãos de nosso corpo. A parcialidade

desses objetos mínimos que compõem as máquinas está como que em sua própria

natureza, de modo que não se pode pensa-la em referência a alguma totalidade possível.

As máquinas, desse modo, podem ser compostas e decompostas, arranjadas e

desarranjadas, de forma infinita e indeterminada. Tal disposição, a qual é a estruturação

do próprio real, se dá de acordo com a atividade inconsciente do desejo; é ela que

“maquina” ou que produz incessantemente as máquinas, de modo que o inconsciente

seja uma grande fábrica. Trata-se, por conseguinte, de entender como ele funciona

através de suas três sínteses próprias.

Enquanto indústria ou fábrica, o inconsciente, através do desejo, realiza

conexões entre os objetos parciais e intensifica o fluxo de produção (síntese conectiva

de produção); contudo, isto não aniquila sua parcialidade, não a submete a um modelo

acabado, o que permite pensar tais conexões ao infinito. Conjuntamente a isto, produz-

se também uma inscrição de tais conexões, agora denominadas máquinas-órgãos, sobre

a superfície de um corpo sem órgãos. Tal corpo desorganizado não é um vazio, algo

como um plano ideal que serve de fundamento para pensar os objetos, mas uma

superfície de registro em que as máquinas-órgãos podem coexistir, mas que não podem

encerrar, já que tal corpo não se deixa produzir totalmente e não se submete à

organização acabada35 – está aí o legado da advertência espinozista de que “não

sabemos o que pode o corpo”. Assim, esta síntese disjuntiva trabalha de forma

34 DELEUZE-GUATTARI, Op. Cit., 2010, p. 54. 35 “O corpo sem órgãos não é o testemunho de um nada original, nem o resto de uma totalidade perdida.

E, sobretudo, ele não é uma projeção: nada tem a ver com o corpo próprio ou com uma imagem do corpo.

É o corpo sem imagem” (Ibidem, p. 20).

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Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 73-92, 2017 85

inclusiva36 ou ilimitativa, operando destacamentos na cadeia de produção sobre o corpo

sem órgãos. Este é, enquanto tal, uma superfície “deslizante e amorfa”, que atrai as

máquinas e também as repudia, atuando como um fator antiprodutivo do desejo. É neste

jogo de forças que compreendemos a terceira síntese conjuntiva em que o produto do

desejo pode ser consumido. Há uma espécie de dedução desta terceira síntese do

inconsciente, já que “na superfície de inscrição, algo da ordem de um sujeito se deixa

assinalar”37. Assim, junto da produção que é, a cada vez, produção de produção (1ª

síntese) e, ao mesmo tempo, produção de registro (2ª síntese), aparece um “consumo”

(3ª síntese), uma “volúpia”, algo como um sujeito residual do processo. Estabelecer,

sumariamente, os aspectos gerais destas sínteses, a fim de assinalar como o inconsciente

se assemelha a uma linha de produção, registro e consumo inextrincáveis, mas não

indiscerníveis, mostra já como Deleuze e Guattari procedem a uma caracterização

positiva do desejo através desta noção-chave de produtividade.

Assim, é crucial compreender como O Anti-Édipo começa por estabelecer a

realidade de forma relacional, entrevista como processo de produção, como uma relação

entre corpos (objetos parciais) que se arranjam em máquinas:

Homem e natureza não são como dois termos postos um em face do outro, mesmo se

tomados numa relação de causação, de compreensão ou de expressão (causa-efeito,

sujeito-objeto etc.), mas são uma só e mesma realidade essencial do produtor e do

produto. A produção como processo excede todas as categorias ideais e forma um ciclo

ao qual o desejo se relaciona como princípio imanente.38

Se se trata de um real relacional e produtivo, no qual só se pode compreender o

homem na condição de Homo natura, o princípio deste real só pode ser o desejo – e a

ontologia se faz enquanto ontologia do desejo. Assim, o que parece essencial para se

compreender o caráter positivo desta ontologia e, por conseguinte, compreender como

ela rechaça a negatividade, advém do fluxo de produção ininterrupto, no qual produzir

não é apenas produzir um produto e encerrar o processo, mas produzir mais produção.

Para tanto, trata-se de pensar de uma forma não dual a relação entre a produção e o

produto, mas correlata, já que o produzir “está sempre inserido no produto”. A relação

36 A disjunção “ou...ou...” é inclusiva (no francês “soit...soit...”) e não exclusiva (“ou bien...ou bien..”) e

permite que as diferenças sejam mantidas em simultâneo, sem absorvê-las num todo acabado. Como

apontam Deleuze e Guattari, tal síntese será limitada pela psicanálise através de um “uso transcendente”,

ou seja, ao coaduna-la à estrutura edipiana. A partir de então as máquinas-órgãos que o desejo produz

devem compor registros de alternativas ou disjunções exclusivas (tais como, “ou pai, ou mãe”; “ou

homem ou mulher”; “ou patrão ou empregado”; etc.). 37 Ibidem, p. 30. 38 Ibidem, p. 15.

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desejante não apresenta o produto como signo extrínseco a ela mesma, nem a categoria

de máquina supõe um sujeito substancial por trás dela e que a controla, um operador da

máquina – “a produção desejante é produção de produção, assim como toda máquina é

máquina de máquina. Não podemos nos contentar com a categoria idealista de

expressão”39.

Se vimos em Nietzsche o caráter abstrato das questões sobre a origem

(princípio) ou finalidade (forma) contra as quais se interpunha o eterno retorno e a

vontade de potência, pode-se dizer que aqui elas dão passagem ao caráter produtivo e

incessante do desejo e do real. Trata-se, agora aliado à leitura de Espinoza, de pensar tal

caráter eminentemente produtivo a partir de um campo de imanência e, com isso, dar

um estatuto positivo ao desejo. Antes disso, porém, retomaremos a possibilidade de

compreensão negativa do desejo, baseada na falta do objeto desejado, a qual uma vez

mais aparece aqui como a postura a ser criticada.

Segundo os autores, há, desde a divisão platônica entre aquisição e produção,

um passo em falso na compreensão do desejo, já que se insiste em situá-lo no primeiro

termo da relação e pensa-lo como uma relação a algo exterior. Ao se pensar o desejo

como aquisição, “fazemos dele uma concepção idealista (dialética, niilista) que o

determina, em primeiro lugar, como falta, falta de objeto, falta do objeto real”40.

Quando, por outro lado, compreende-se no desejo uma potência produtiva, é somente

para ver aí uma criação de fantasma, vale dizer, uma “irrealização” a partir da estrutura

causal do mundo que nos apresenta os objetos na percepção. Sob este ponto de vista, há

produção, mas produção interior, produção de uma realidade psíquica. A divisão inicial

entre aquisição e produção se mantém; é até mesmo ela que está sob a compreensão

psicologista da produtividade do desejo num segundo momento. Tratar-se-ia, portanto,

de repensar tanto a ideia inicial do desejo como falta de um objeto real, como relação a

algo determinado e que reside “no mundo”, no exterior do sujeito, quanto a de desejo

como relação a um objeto irreal, o qual habita apenas a interioridade do sujeito. Pois

destarte o aspecto em que se o considere, apontam Deleuze e Guattari, o desejo está

numa “essência de falta”. Tal essência é radicalizada pela psicanálise, já que levando ao

limite a ideia de uma produtividade fantasmática do desejo, pensa-o como uma

sublimação necessária na relação com o mundo e, por isso, “reduplica” a falta,

39 Ibidem, p. 17. 40 Ibidem, p. 41.

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“levando-a ao absoluto, fazendo dela uma ‘incurável insuficiência de ser’”41. Além da

relação opositiva entre sujeito e mundo, trata-se, agora, de uma relação negativa

subsistente entre desejo e desejado e que faz do desejo uma teatralização – um

dispositivo que representa o real. O desejo passa a se apoiar em necessidades e sua

positividade é reabsorvida nessa falta. A produção passa a ser produção de fantasma ou

negação42.

Ora, é contra tal concepção idealista e cênica do desejo e da própria

produtividade que é preciso retornar à acepção comum de produção como “produção

industrial” e, em seguida, ao inconsciente como uma fábrica. Ao deixar de ser

compreendido como um teatro, como uma atividade que representa sempre outra coisa,

revela-se logo a dimensão positiva do desejo: nada lhe faltando, ele passa a ser criador;

é o produtor do desejado e não se pauta ou se guia por ele. Se ele é criativo, portanto, é

criador ou produtor da própria realidade (se ele não cria fantasma ou representação, “só

pode sê-lo na realidade, e de realidade”). Tal “real” é aquele que provém da relação

entre o desejo e os objetos parciais, infinitamente complexos e sem remissão a um todo,

e que se apresentam sempre de uma forma já “maquinada”, vale dizer, trabalhada e

produzida pelo inconsciente. Ao invés de um objeto exterior ao desejo e que poderia

sobrevir a ele como falta – além do que seria então possível inquirir o estatuto desse

objeto, sua “objetividade”, precedente à própria relação desejante –, o desejo tem como

matéria-prima tais fragmentos que são os objetos parciais. Daí que é possível chegar a

uma definição:

O desejo é esse conjunto de sínteses passivas que maquinam os objetos parciais, os

fluxos e os corpos, e que funcionam como unidades de produção. O real decorre disso, é

o resultado das sínteses passivas do desejo como autoprodução do inconsciente43.

Com isso se chega também a uma definição não-dual, de modo que o desejo e o

desejado, o desejo e seu objeto são um e o mesmo. Tal correlação é defendida desde o

41 “No nível mais baixo da interpretação isso significa que o objeto real que falta ao desejo remete, por

sua vez, a uma produção natural ou social extrínseca, ao passo que o desejo produz intrinsecamente um

imaginário que vem duplicar a realidade, como se houvesse ‘um objeto sonhado atrás de cada objeto real’

ou uma produção mental atrás das produções reais” (Ibidem, p. 42). 42 E nisso se ouve o eco da “aclimatação francesa do hegelianismo” que aponta Paulo Arantes, a qual

prossegue até a psicanálise lacaniana que figura também como objeto de crítica em O Anti-Édipo:

“diferença entre necessidade e desejo, a primeira nascida de uma tensão interna e satisfeita por um objeto

real e específico, o segundo, que só tem realidade psíquica, imantado pela procura de um fantasma, sendo

além do mais inconsciente e vinculado a signos infantis indestrutíveis; nestas condições estão dados os

elementos da irredutibilidade lacaniana do desejo, nem visada de um objeto real nem demanda

articulada”. ARANTES, Op. Cit., 1995, p. 22. 43 Ibidem, p. 43.

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início da obra, onde se prescreve tudo como “máquina” e “máquina de máquina”, uma

espécie de infraestrutura maquinal do mundo, produzida por acoplamentos, cortes,

fluxos, extrações etc. Essas formulações permitem ir ao encontro de uma psiquiatria

materialista, a qual teria como diretriz “introduzir o desejo no mecanismo e introduzir a

produção no desejo”44. Vimos como a “maquinaria” que desenvolve O Anti-Édipo pode

ser melhor compreendida a partir de uma “materialidade” já trabalhada nos escritos

anteriores de Deleuze. Ao entrever em Espinosa uma física de corpos infinitamente

pequenos, tão ínfimos que só se poderia tratar deles através de suas relações, o autor os

qualifica como intensidades puras. Uma das dificuldades na definição da coisa como

conjunto de relações entre tais partículas estava justamente em pensar tais relações

como “relações puras”, vale dizer, puras relações sem termos e, assim, não as

compreender a partir de uma unidade mínima anterior à toda relação e estática45. Se

vemos em Deleuze a tentativa de encontrar um “grão do real” em certos autores, é

sobretudo por entrever neles uma precedência das forças e dos valores em relação à

objetividade (Nietzsche), bem como do esforço simultâneo em conservar e expandir a si

mesmo na definição de cada indivíduo (Espinoza), ou seja, na definição por aquilo que

podem, pelas relações que são capazes de engendrar. Se se pensa um “mecanismo” n’O

Anti-Édipo, por conseguinte, não se trata de uma remissão ao mecanicismo, já que

vimos o quanto a categoria de “vida” e um certo “vitalismo”46 habitam as análises de

Deleuze, mas de um mecanismo capaz de ação indeterminada – a máquina desejante.

A segunda diretriz para uma psiquiatria materialista nos informa que seria

preciso “introduzir a produção no desejo”, de modo que, agora, não estamos tratando

apenas de ação indeterminada – o caráter desejante do mecanismo –, mas de criação

indeterminada. Ora, tal aspecto já foi anunciado pelas inúmeras críticas à noção de

negativo atrelada ao desejo. Se este não passa a existir motivado por um ente

44 Ibidem, p. 38-39. 45 É dada ênfase a esta dificuldade no curso de 17 de fevereiro de 1981, onde Deleuze procura definir o

indivíduo como três dimensões, a saber: relação, potência e modo. É necessário um pensamento do

infinito, o qual se desenvolve no século XVII e com o cálculo infinitesimal, para conceber uma relação

pura, de modo que “o limite até o qual tende a relação, é a razão de conhecer a relação como

independente de seus termos, isto é, dx e dy, e o infinito, o infinitamente pequeno, é a razão de ser da

relação; com efeito, é a razão de ser de dy”. DELEUZE, Op. Cit., 2009, p. 192; cf. DELEUZE, Op. Cit.,

1962, p. 57-8. 46 Mas é preciso ponderar, pensando um vitalismo alheio à toda forma de finalismo ou causa final. “Em

geral o problema das relações partes-todo permanece também mal formulado pelo mecanicismo e pelo

vitalismo clássicos, enquanto se considerar o todo quer como totalidade derivada das partes, quer como

totalidade originária da qual emanam as partes, quer como totalização dialética. Tal como o vitalismo, o

mecanicismo nunca apreendeu a natureza das máquinas desejantes, nem a dupla necessidade de introduzir

tanto a produção no desejo como o desejo na mecânica”. DELEUZE-GUATTARI, Op. Cit., 2010, p. 64.

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Negatividade e produção: elementos para uma teoria do desejo em Deleuze

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 73-92, 2017 89

transcendente ou anterior a ele mesmo, o qual seria objeto de consumo, deleite, negação

(nas acepções múltiplas da Aufhebung hegeliana), doravante o desejo é o responsável

pelo desejado e por toda criação sua. Enquanto tal, define-se como uma instância

produtora de realidade.

Mas é preciso ir mais fundo na crítica à noção de falta no desejo de modo a

entender como é possível que tal concepção negativa e errônea tome forma, uma vez

que é a partir da produção positiva que se dá toda relação de desejo e, por extensão, toda

relação de sentido possível. É novamente em torno de uma inversão qualitativa que se

vai reintroduzir a falta no desejo e o negativo na realidade. Como vimos, ao não se

apoiar em necessidades preexistentes, seria preciso que o desejo, sob condições

determinadas, possibilitasse ou criasse de alguma forma tais necessidades. Pois bem,

Deleuze e Guattari argumentam que “a falta é um contraefeito do desejo, depositada,

arrumada, vacuolizada no real natural e social”47, uma espécie de inversão entre a

produção e o produto que faz com que o segundo anteceda o primeiro. Para Deleuze e

para Guattari, tal inversão, se não encontra sua raison d’être num campo positivo de

desejo, só pode ser desencadeada pelas circunstâncias nas quais o desejo é

empreendido; mais que uma ontologia do desejo, portanto, é preciso fazer uma teoria

social do desejo ou, por certo, aproximar a produção desejante da produção social48.

IV

Por conseguinte, em O Anti-Édipo, a questão da falta e do negativo ganha

contornos políticos. É a própria teoria que o demanda, já que se torna impossível pensar

o registro do desejo como independente em relação à vida comum e à produção social.

Não haveria ruptura entre desejo e sociedade, dizem Deleuze e Guattari, de forma que

seus objetos, oriundos da produção desejante e da produção social, sejam objetos de um

mesmo real e que haja uma “coextensão do campo social e do desejo”49. Contudo, se

47 Ibidem, p. 44. 48 A teorização da “consciência servil” em Nietzsche prepara o lugar para este desejo reprimido, fixado

em certa condições de reprodução. A duplicação do desejo que instaurava a negação (do senhor, pelo

escravo) em sua base, agora cede lugar à representação edipiana que toma forma em toda e qualquer

produção do inconsciente. Conforme Nietzsche “a moral do povo discrimina entre a força e as expressões

da força, como se por trás do forte houvesse um substrato indiferente que fosse livre para expressar ou

não a força. Mas não existe um tal substrato; não existe ‘ser’ por trás do fazer, do atuar, do devir; o

‘agente’ é uma ficção acrescentada à ação – a ação é tudo. O povo duplica a ação, na verdade”

(NIETZSCHE, Op. Cit., 1998, p. 36). Aqui, tal duplicação passa a ser a do psicanalista quando toma o

significado de toda ação com base em Édipo. 49 DELEUZE-GUATTARI, Op. Cit., 2010, p. 47.

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90 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 73-92, 2017

não há diferença de natureza entre eles, há, ao menos, uma diferença de regime, vale

dizer, uma diferença nos modos de produção.50 O desejo e o social não compõem duas

realidades distintas; antes, são a mesma atividade ora subordinada a certas condições,

ora à outras.

Dizemos que o campo social é imediatamente percorrido pelo desejo, que é o seu

produto historicamente determinado, e que a libido não tem necessidade de mediação ou

sublimação alguma, de operação psíquica alguma, e de transformação alguma, para

investir as forças produtivas e as relações de produção. Há tão somente o desejo e o

social, e nada mais.51

Reintroduzir a ideia de falta no desejo como se estivesse na base dele, como falta

original, contribui para a manutenção de uma ordem social determinada. Assim, poder-

se-ia responder à pergunta colocada na obra de Espinoza e reiterada aqui, em O Anti-

Édipo, a respeito da condição paradoxal dos povos que lutam por sua própria sujeição.

É concebendo a vida como relação conflituosa a uma carência originária – a escassez na

sociedade capitalista, o pecado e a culpa originais no cristianismo, a castração na

psicanálise – que se dá ensejo à servidão voluntária; e é pensando o desejo de forma

negativa, vale dizer, como relação a um transcendente, que é possível defender

teoricamente esta concepção. Tal posição teórica parece ter suas duas maiores figuras

no hegelianismo e na psicanálise52, a partir das obras estudadas, sendo que ambas

partilham desta perspectiva de leitura do desejo. Deleuze e Guattari procuram desfazer

tal inversão, de modo que a morte, a culpa, a escassez sejam produtos do desejo; e não

este produto daquelas. Desse modo, defendem uma concepção positiva do desejo, capaz

de criar a ideia errônea de falta, mas também de subvertê-la novamente, recuperando

uma potência revolucionária própria às máquinas desejantes.

50 Ibidem, pp. 55; 78. 51 Ibidem, p. 46 52 “É que a castração como estado analisável (ou inanalisável, como um rochedo último) é, sobretudo, o

efeito da castração como ato psicanalítico” (Ibidem, p. 93). Na psicanálise a diferença de regime entre

produção social e desejante se intensifica justamente com a inserção do Complexo de Édipo. Pois ao se

tornar princípio explicativo das sínteses do inconsciente, compromete toda sua produção num jogo entre o

objeto e sua relação com a estrutura parental. “Toda produção desejante é esmagada, submetida às

exigências da representação, aos jogos sombrios do representante e do representado na representação [...]

a produção vem a ser apenas produção de fantasmas, produção de expressão” (Ibidem, p. 77-78). Esta

reviravolta é crucial e une a crítica de O Anti-Édipo àquela das obras anteriores: o caráter produtivo do

inconsciente é substituído por um poder geral de criar e reproduzir representações, sendo que tal

substituição entre produção ativa e reprodução passiva é a mesma operada pelas forças reativas aliadas à

negação, ao desviar a potência de agir daquilo que ela pode e a assujeitar a um ideal transcendente.

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Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 73-92, 2017 91

A existência maciça de uma repressão social que incide sobre a produção desejante não

afeta em nada nosso princípio: o desejo produz real, ou a produção desejante não é outra

coisa senão a produção social53.

Há ainda a possibilidade, destarte o uso transcendente e repressivo que as

instituições sociais fazem de todo mecanismo desejante, de pensar formas de

reaproximação entre a produção social e a produção desejante – de aumentar o

coeficiente de afinidade entre elas – ajustando a primeira à segunda. A conquista dessa

possibilidade parece ser o que está em jogo na obra de Deleuze e Guattari, da qual

esboçamos certos aspectos teóricos, uma vez que ela se baseia na defesa de uma

concepção produtiva e positiva do desejo. Segundo ela, o desejo não estaria

indefinidamente fadado ao fracasso, sujeito a uma busca inesgotável de preenchimento,

já que nada falta a ele – não é, como havíamos assinalado à guisa de definição, um

“desejo do outro”. O drama hegeliano que deu lugar a um drama psicanalítico54, ainda

precisa ser confrontado com a teoria de Deleuze e Guattari em seus agenciamentos

através da esquizoanálise. Antes disso, porém, é salutar notar como a alternativa a este

drama do desejo, para Deleuze, já perseverava na história da filosofia.

Lucrécio denunciando a perturbação da alma e aqueles que dela precisam para instalar

seu poder – Espinoza denunciando a tristeza, todas as causas da tristeza, todos os que

fundam seu poder no seio dessa tristeza – Nietzsche denunciando o ressentimento, a má

consciência, o poder do negativo que lhes serve de princípio: ‘inatualidade’ de uma

filosofia que tem como objeto libertar55.

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53 Ibidem, p. 48. 54 “o drama hegeliano que toda subjetividade deve sofrer: como pode uma negação, através da auto-

negação, situar a si mesma como um ser positivo?”. BUTLER, Subjects of desire, 1987, p. 170. 55 DELEUZE, Op. Cit., 1962, p. 218.

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Recebido em: 02/01/2017

Aprovado em: 09/04/2017

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Tradução

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De Sacher-Masoch ao masoquismo*

Gilles Deleuze

O masoquismo não pode se separar do contrato, mas ao mesmo tempo que o

projeta sobre a mulher dominadora, ele o leva ao extremo, desmonta suas engrenagens

e, talvez, o torna risível.

Sacher-Masoch (1835-1895) nasceu na Galícia, em Lemberg1. Ascendência

espanhola e boemia. Família de funcionários públicos, sob o império austro-húngaro.

Seu pai foi diretor da polícia de Lemberg. O tema da polícia assombrará a obra de

Masoch. Mas sobretudo o problema das minorias (judia, pequeno-russa, etc.) será uma

de suas principais fontes de inspiração. Masoch participa da grande tradição do

romantismo alemão. Ele concebera sua obra não como perversa, mas como genérica e

enciclopédica. Um vasto ciclo que devia constituir uma história natural da humanidade,

sob o título geral: O Legado de Caim. Das seis partes previstas (o amor, a propriedade,

o dinheiro, o Estado, a guerra, a morte), ele terminara as duas primeiras. Mas mesmo o

amor, segundo ele, não se separa de um complexo cultural, político, social e etnológico.

Os gostos amorosos de Masoch são célebres. O músculo lhe parece uma matéria

essencialmente feminina. Ele queria que a mulher amada tivesse casacos de pele e um

chicote. A mulher amada não é de modo algum sádica por natureza, ela é lentamente

persuadida, adestrada para sua função. Ele queria estar vinculado a ela por um contrato

de cláusulas precisas; uma dessas cláusulas freqüentemente o levava a se fantasiar de

empregado doméstico e a mudar de nome. Entre ele e a mulher amada, ele desejava

* Traduzido do francês por André Martins (agradecimentos à revisão realizada por Sidharta Mendes

Monteiro). Título original: “De Sacher-Masoch au masochisme”, publicado pela primeira vez na Revista

Arguments, a. 5, n. 21, 1961 (1º trimestre), p. 40-46. Texto original disponível em

http://www.multitudes.net/De-Sacher-Masoch-au-masochisme/ . A presente tradução nos parece ser a

primeira em língua portuguesa deste texto de 1961. Há uma tradução em língua inglesa (por Christian

Kerslake): “From Sacher-Masoch to masochism”, in Angelaki: Journal of the theoretical humanities, v.9,

n.1, 2004, p.25-33.

Deleuze retomou em parte esse texto, modificando-o, em sua Présentation de Sacher-Masoch: le froid et

le cruel, publicado em 1967 (Éd. Minuit; publicado com o texto integral de La Vénus à la fourrure

traduzido do alemão para o francês). Este segundo texto de Deleuze fora publicado em português

primeiramente como Apresentação de Sacher-Masoch (com o texto integral de “A Vênus das peles”),

tradução de Jorge Bastos, ed. Taurus, 1983; e reeditado (a mesma tradução, porém revista por Roberto

Machado; sem “A Vênus das peles”) como Sacher-Masoch: o frio e o cruel, ed. Zahar, 2009. (N.T.) 1 Lemberg, Lviv é uma cidade localizada na Galícia, região também conhecida como Áustria polonesa,

hoje dividida entre Ucrânia, Polônia e Romênia, e que à época de Sacher-Masoch pertencia ao império

Austríaco. Lemberg atualmente pertence à Ucrânia. (N.T.)

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Gilles Deleuze

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fortemente a intervenção de um terceiro, e a suscitava. A Vênus das peles2, seu romance

mais célebre, expõe um contrato detalhado. Seu biógrafo Schlichtegroll, e depois dele

Krafft-Ebing, reproduzem outros exemplos de contratos de Masoch (cf. Psychopatia

Sexualis, p. 238-240). É Krafft-Ebing que, em 1869, deu o nome de masoquismo a uma

perversão, para o grande desprazer do próprio Masoch. Sacher-Masoch não foi um autor

maldito. Ele foi homenageado, festejado e condecorado. Ele foi celebrado na França

(recepção triunfal, legião de honra, Revue des Deux Mondes). Mas quando morreu,

sofreu o esquecimento no qual sua obra já havia caído.

Quando, para o bem ou para o mal, o nome de alguém é dado a um distúrbio ou

uma doença, não se supõe que os tenha inventado. Mas se supõe, por exemplo, que se

“isolou” a doença, que se a distinguiu dos casos com os quais ela era confundida até

então, que se determinou e agrupou os seus sintomas de uma maneira nova e decisiva. A

etiologia depende primeiramente de uma boa sintomatologia. A especificidade

sintomatológica é primeira; a especificidade do agente causal, é sempre segunda e

relativa. Não se lamentará, portanto, no caso de Masoch, que os especialistas do

masoquismo tenham tão pouco se interessado ao conteúdo de sua obra. Em geral, eles

se contentaram com uma sintomatologia menos precisa, muito mais confusa do que

aquela que se encontra na obra do próprio Masoch. A pretensa unidade do sadismo e do

masoquismo multiplicou a confusão. Aqui, como alhures, uma má determinação dos

sintomas levou a etiologia para direções inúteis ou mesmo inexatas3.

Ao comparar-se a obra de Masoch com a de Sade, é-se surpreendido pela

impossibilidade de um encontro entre um sádico e um masoquista. Seus meios, suas

cerimônias diferem inteiramente; suas exigências nada têm de complementar. A

inspiração de Sade é antes de tudo mecanicista e instrumentalista. A de Masoch é

profundamente culturalista e estética. Quando os sentidos têm por objeto obras de arte é

que se sentem pela primeira vez masoquistas. São quadros do Renascimento que

revelam a Masoch a potência da musculatura de uma mulher envolta em peles. É na sua

semelhança com uma estátua que a mulher é amada. E o masoquista devolve à arte tudo

o que ela lhe dá: é deixando-se pintar ou fotografar, é olhando sua imagem em um

espelho que ele se prova e se conhece. Aprendemos que os sentidos tornam-se

“teóricos”, que o olho se torna humano quando seu próprio objeto se torna um objeto

2 Livro publicado em português no Brasil com tradução direta do original alemão (por Saulo Krieger) pela

ed. Hedra (2008, segunda edição de 2015). (N.T.) 3 Perruchot, em um estudo posterior, estuda o problema dos sintomas do masoquismo e questiona sua

unidade com o sadismo.

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De Sacher-Masoch ao masoquismo

96 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 94-105, 2017

humano, vindo do homem e destinado ao homem. Um órgão se torna humano quando

toma por objeto a obra de arte. O masoquismo é apresentado como o sofrimento de uma

tal transmutação. Todo animal sofre quando seus órgãos deixam de ser animais.

Retomando uma expressão de Goethe, Masoch não pára de dizer: Eu sou o ultra-

sensualista, e até mesmo o ultra-sentimental4.

A segunda característica do masoquismo, ainda mais oposta ao sadismo, é o

gosto pelo contrato, o extraordinário apetite contratual. O masoquismo deve ser definido

por suas características formais, e não por seu conteúdo dito dolorígeno5. Ora, de todas

as características formais, não há nenhuma mais importante do que o contrato. Não há

masoquismo sem contrato com a mulher. Mas o essencial, justamente, é que o contrato

se encontra projetado na relação do homem com uma mulher dominadora.

Normalmente, o contrato tem uma função que depende estreitamente das sociedades

patriarcais: ele é feito para exprimir e mesmo justificar o que há de não material, de

espiritual ou de instituído nas relações de autoridade e de associação tais que se

estabelecem entre homens, inclusive entre pais e filhos. Mas o vínculo material e

ctônico6 que nos une à mulher, que une a criança à mãe, parece por natureza rebelde à

expressão contratual. Quando uma mulher entra em um contrato, o faz “indo em

direção” aos homens, reconhecendo sua dependência no seio da sociedade patriarcal.

Ora, no contrato de Masoch, isso tudo é derrubado: o contrato exprime aqui a

predominância material da mulher e a superioridade do princípio materno. Perguntar-se-

á sobre a intenção masoquista que determina essa derrubada, essa projeção. Tanto mais

que o masoquista também transpõe o movimento pelo qual o contrato, quando se supõe

que funde uma sociedade viril, evolui no tempo. Pois todo contrato, no sentido preciso

da palavra, exige a limitação temporal, a não intervenção de terceiros, a exclusão de

certas propriedades inalienáveis (por exemplo, a vida). Mas não há sociedade que possa

se conservar sem postular sua própria eternidade, sem fazer valer seu império sobre

terceiros que não passaram pelo contrato, e sem se dar um direito de morte sobre seus

súditos. Este movimento se encontra e se acentua no contrato masoquista com a mulher.

O contrato de Masoch, se necessário, prevê um limite de tempo no absoluto; mas a

mulher é livre para fazer durar este tempo dividindo-o em fatias. Uma cláusula acessória

e secreta lhe dá o direito de morte. E o lugar do terceiro estará reservado, por uma hábil

4 Todos os temas, precedentes e seguintes, encontram ilustração em A Vênus das peles (tr. fr. Ed. Arcanes,

1952). 5 No original, dolorigène. Neologismo deuleuziano significando ‘que gera dor’. (N.T.) 6 Termo grego que se refere ao mundo subterrâneo; em latim traduzido por telúrico. (N.T.)

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Gilles Deleuze

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 94-105, 2017 97

precaução jurídica. A mulher é como o Príncipe absoluto, que mantém e multiplica os

seus direitos; o masoquista, como seu súdito que perde efetivamente todos os seus.

Tudo se passa como se o culturalismo de Masoch fosse ainda mais jurídico do que

estético. O masoquismo não pode se separar do contrato, mas ao mesmo tempo que o

projeta sobre a mulher dominadora, ele o leva ao extremo, desmonta suas engrenagens

e, talvez, o torna risível.

O contrato de Masoch, em terceiro lugar, só se compreende sob perspectivas

históricas estranhas. Masoch faz alusão frequentemente a uma época da bela Natureza, a

um mundo arcaico presidido por Vênus-Afrodite, onde a relação fugitiva da mulher e do

homem tem por única lei o prazer entre parceiros iguais. As heroínas de Masoch não

têm uma natureza sádica, mas, dizem elas, uma natureza pagã, antiga e heróica. Mas a

bela natureza fora desequilibrada por uma catástrofe climática ou um desastre glacial.

Então, a lei natural se recolhe no seio materno, como no princípio feminino que guarda

um pouco de calor. Os homens se tornam “as crianças da reflexão”. Em seu esforço na

direção de uma espiritualidade autônoma, os homens perderam a natureza ou a Alma:

“Quando você é natural, se torna grosseiro”7. As peles com as quais as mulheres de

Masoch se envolvem têm múltiplos sentidos, mas o primeiro desses sentidos é que elas

têm frio em um ambiente glacial. As heroínas de Masoch, enfiadas em seus casacos de

pele, espirram constantemente. A interpretação da pele como imagem paterna é

singularmente desprovida de fundamento: a pele é antes de tudo símbolo diretamente

materno, indicando a dobradura da lei dentro do princípio feminino, a mater Natura

ameaçada pela ambição de seus filhos. O urso é o animal de Artemis, o urso peludo é a

Mãe, a pele é o troféu materno. Assim, nesse recolhimento, a lei da Natureza se torna

terrível: o casaco de pele é a pele da mãe déspota e devoradora instaurando a ordem

ginecocrática. Masoch sonha com que a mulher amada se transforme em urso, o sufoque

e o rasgue. As divindades femininas, ctônicas e lunares, as grandes caçadoras, as

potentes Amazonas, as cortesãs reinantes, testemunham o rigor dessa lei de natureza

idêntica ao princípio materno. Em O Legado de Caim, é preciso compreender o filho

primogênito, o agricultor, o preferido da mãe, como uma imagem material da própria

Mãe que vai até ao crime para quebrar a aliança espiritual do Pai com o outro filho, com

o pastor. Mas o triunfo final do princípio paterno, viril ou glacial, significa o

recalcamento da Anima, o acontecimento de uma nova lei, a instituição de um mundo

7 Deleuze cita trechos de A Vênus das peles. (N.T.)

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De Sacher-Masoch ao masoquismo

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onde as alianças espirituais prevalecem sobre o vínculo materno do sangue, mundo

romano, e depois cristão, no qual Vênus não tem mais lugar: “Vênus, que em nosso

Norte abstrato, nesse mundo cristão gelado, deve se envolver em um grande e pesado

casaco de pele a fim de não se resfriar”. “Permaneçam em seus enevoados hiperbóreos,

no meio de seu incenso cristão; nos deixem, nós pagãos, sob nossas ruínas; nos deixem

repousar sob a lava, não nos desenterrem... Vocês não precisam de deuses, nós

congelamos no seu mundo. ”

Apaixonadas, simplificadas e romanceadas, reconhece-se as célebres teses de

Bachofen8 no que diz respeito a três estados na humanidade: o heterismo primitivo9, a

ginecocracia e o patriarcado. A influência de Bachofen é inegável, e explica a ambição

de Masoch de escrever uma história natural da humanidade. Mas o que é propriamente

masoquista é a fantasia regressiva pela qual Masoch sonha em se servir do próprio

patriarcado para restaurar a ginecocracia, e da ginecocracia para restaurar o comunismo

primitivo. Aquele que desenterra a Anima saberá tirar proveito das estruturas patriarcais

e reencontrar a potência da Mãe devoradora. Em A Czarina Negra, Masoch conta a

história de uma prisioneira amada pelo Czar no ano de 900: ela caça o urso peludo e

toma para si seu troféu, organiza um regimento de amazonas, mata os boiardos10 e

manda decapitar o czar por uma negra. Um homem da comuna, um “comunista”, parece

ser a meta distante de sua ação11. Em Sabathai Sweg, um messias se casa pela terceira

vez com uma mulher que o rejeita. O sultão quer que o casamento se consume; a mulher

flagela seu marido, o coroa com espinhos, consuma o casamento e lhe diz: “fiz de você

um homem, você não é o messias”12. Sempre com Masoch, o homem verdadeiro sairá

dos rigores de uma ginecocracia restaurada, assim como a mulher potente e sua

restauração sairá das estruturas de um patriarcado desviado. Na fantasia regressiva, a

relação doméstica, a relação conjugal, a própria relação contratual, se dão em benefício

da Mulher terrível ou da Mãe devoradora.

8 Cf. Bachofen, Das Mutterrecht. (As páginas escolhidas de Bachofen foram traduzidas para o francês por

Turel, éd. Alcan, 1938). Sobre temas análogos, Pierre Gordon escreveu recentemente um lindo livro,

L’Initiation sexuelle et l’évolution religieuse (PUF, 1946). 9 Característica de sociedades onde inexiste a instituição do casamento e é natural a liberdade sexual entre

seus membros. (N.T.) 10 Aristocratas e latifundiários da Rússia até a Revolução de 1917. (N.T.) 11 Sobre o “comunismo” visto por Masoch, cf. O paraíso do Dniestre. 12 Sabathai Zweg (Sabathai Cevi) foi um dos mais importantes Messias que comoveram a Europa no

século XVII. Numerosos Messias apareceram na Galícia nos séculos XVII e XVIII. Cf. Graetz, Histoire

des Juifs, tomo V.

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Gilles Deleuze

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 94-105, 2017 99

Desde então, parece muito duvidoso que a imagem do Pai, no masoquismo,

tenha o papel que Freud lhe confere. A psicanálise freudiana em geral sofre de uma

inflação do pai. No caso particular do masoquismo, é-se convidado a uma

impressionante ginástica para explicar como a imagem do Pai é antes interiorizada no

supereu, e em seguida re-exteriorizada em uma imagem de mulher13.

Tudo se passa como se as interpretações freudianas, frequentemente, somente

atingissem as camadas mais superficiais e mais individualizadas do inconsciente. Elas

não penetram nessas dimensões profundas onde a imagem da Mãe reina por conta

própria, sem dever nada à influência do pai. O mesmo vale para a unidade do sadismo e

do masoquismo: se apoiando sobre o papel do pai, elas se dissipam para além das

primeiras espessuras do inconsciente. Que existam camadas do inconsciente muito

diferentes, de origem e valor desiguais, suscitando regressões que diferem em natureza,

tendo entre elas relações de oposição, de compensação e de reorganização: este

princípio caro a Jung não foi reconhecido por Freud, porque este reduzia o inconsciente

ao simples fato de desejar. Acontece que se assiste a alianças da consciência com as

camadas superficiais do inconsciente, e isto para manter em xeque o inconsciente mais

profundo que nos envolve por um vínculo de sangue.

Também no inconsciente há coisas que são somente aparências. Freud contudo o

pressentia, quando descobriu para além do inconsciente propriamente objetal a

existência de um inconsciente de identificação. Ora, essa imagem que domina no

inconsciente do ponto de vista das relações objetais pode perder todo valor ou significar

outra coisa nas regiões mais profundas. Muitas neuroses parecem fixadas no pai, mas

são trabalhadas e destruídas por uma imagem de mãe tanto mais potente quanto ela não

está investida no inconsciente superficial. Em regra geral, os personagens dominantes

mudam segundo o nível de análise ao qual se chega: desconfiemos daqueles em quem a

análise revela numa primeira aproximação uma imagem de mãe inativa, apagada ou

mesmo depreciada. No masoquismo, é provável que a figura do pai seja apenas

13 A psicanálise também tenta elucidar este problema que ela mesma suscitou: o objeto feminino não o

seria de fato, pois que é adornado de ‘qualidades viris’. O masoquismo seria assim um tipo de

compromisso, pelo qual ele fugiria de uma escolha homossexual demasiado manifesta. Cf. Freud, ‘Bate-

se numa criança’, Revue Fr. Psych., VI ; Nacht, Le Masochisme, éd. Payot, p. 186 (Reik, Masochismus

und Gesellschaft). Toda dificuldade vem de que a psicanálise, contra toda evidência, primeiramente

postulou que a Mãe devoradora, o casaco de pele, o chicote etc. eram imagens do pai. Reik: “Cada vez

que tivemos a possibilidade de estudar um caso particular, encontramos o pai ou seu delegado oculto sob

a imagem da mulher infligindo o castigo.” (p.27). No entanto, no mesmo livro, Reik tem dúvidas a este

respeito recorrentemente, notadamente nas páginas 187-189. Mas ele não tira dessas dúvidas nenhuma

conseqüência.

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De Sacher-Masoch ao masoquismo

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aparentemente invasiva, simples meio para uma finalidade mais profunda, simples etapa

em uma regressão mais longínqua onde se poderá ver todas as determinações paternas

virarem em proveito da Mãe.

Nos perguntamos: por quê o masoquismo projeta o contrato em sua relação com

uma mulher dominadora? É que, mais profundamente, a aplicação da lei paterna é assim

recolocada nas mãos da Mulher ou da Mãe. Desta transferência, o masoquista consegue

isto: que a lei lhe dê precisamente o prazer que se esperava que ela interditaria. Pois este

prazer que a lei paterna proíbe, ele o experimentará pela lei, desde que a lei, em todo o

seu rigor, lhe seja aplicada pela mulher. Por detrás das primeiras aparências, descobre-

se uma característica real do masoquismo: de fato, sua extrema submissão significa que

ele torna risível o pai e a lei paterna. Reik escreveu um dos melhores livros sobre o

masoquismo; é que, para determinar sua essência, ele partia de características formais.

Ele distinguia quatro: a importância primordial da fantasia como preliminar

indispensável ao exercício masoquista; o fator suspensivo onde o prazer final é ao

máximo rejeitado, substituído por uma espera que controla e dissolve a ansiedade; o

traço demonstrativo, exibição invertida propriamente masoquista; o fator de provocação

no qual o masoquista “força uma outra pessoa a forçá-lo”. É estranho que Reik não

tenha levado em conta o contrato. Mas o estudo dos fatores precedentes o levou a

concluir que o masoquista não tinha de modo algum uma personalidade fraca e

submissa, sonhando com o aniquilamento de si mesmo: o desafio, a vingança, o

sarcasmo, a sabotagem e a zombaria lhe pareciam todos traços constitutivos do

masoquismo14. O masoquismo se serve da lei do pai para obter precisamente o prazer

que esta proíbe. Temos numerosos exemplos de desvio da lei por submissão fingida ou

mesmo exagerada. Por exemplo, a lei que proíbe que a criança fume pode ocorrer em

lugares escondidos e malditos, onde dificilmente ela se aplica; mas a criança pode fazer

como se a lei se aplicasse por si só, ordenando-lhe que fume nesses lugares e em mais

nenhum. De forma geral, há duas maneiras de interpretar a operação pela qual a lei nos

separa de um prazer: ou bem pensamos que ela o rejeita e o afasta uniformemente, de

modo que somente obteremos o prazer pela destruição da lei (sadismo); ou bem

pensamos que a lei tomou para si o prazer, o guardou para si; é portanto esposando a lei,

submetendo-nos escrupulosamente à lei e a suas consequências que experimentaremos o

prazer que ela nos proíbe. O masoquismo vai mais longe: é a execução da punição que

14 Reik, p. 132-152.

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Gilles Deleuze

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 94-105, 2017 101

se torna primeira e nos introduz no prazer proibido. “A inversão no tempo indica uma

inversão do conteúdo... O Tu não deves fazer isso... Uma demonstração do absurdo da

punição é obtido monstrando-se que essa punição por um prazer proibido produz

precisamente esse mesmo prazer.”15 “Ele exibe o castigo e sua falência.”16 A mesma lei

que me proíbe de realizar um desejo sob pena de uma conseqüente punição é agora uma

lei que põe a punição primeiro e me ordena por conseguinte que eu satisfaça o desejo:

há aí uma forma de humor propriamente masoquista.

A tese de Reik tem a vantagem de abrir mão de explicar o masoquismo pelo

desejo de ser punido. Certo, o desejo de ser punido intervém; mas é impossível

confundir a satisfação deste desejo com o prazer sexual provado pelo masoquista. O

masoquista, segundo Reik, é aquele que somente consegue provar o prazer a partir da

punição: não é dizer que ele encontra seu prazer (senão um prazer secundário) na

própria punição. É dizer somente que a punição serve de condição indispensável para o

prazer sexual primário. Longe de explicar o masoquismo, o desejo de ser punido o

supõe, e envia ele próprio a um benefício derivado17. Todavia, Reik é menos

convincente quando tenta explicar por quê e como a punição serve assim de condição

para o prazer. Ele pensa que ela tem por papel dinâmico resolver a angústia ou dominá-

la18. Esta referência indireta ao sentimento de culpa não nos ajuda quase nada: qualquer

que seja sua real diferença em relação à teoria do desejo de ser punido, esta concepção

propõe uma explicação funcional que não leva em conta as características “tópicas” do

masoquismo. Permanece a questão: como (em quais circunstâncias tópicas) a punição

preenche esta função de resolver a angústia?

Se a punição masoquista se torna uma condição do prazer sexual, não é porque

ela resolva a angústia, mas porque ela passa para a mãe a incumbência de “castigar”

uma falta cometida para com o pai. Ou, se preferirmos, é por esse deslocamento que a

punição resolve efetivamente a angústia. O erro de Reik nos parece ser ainda o de se

ater à imagem aparente do pai e de não avaliar a importância da projeção sobre a mulher

ou da regressão à mãe. Assim, ele desconhece a verdadeira natureza da zombaria

masoquista. Se o pai é ridicularizado, se a lei paterna é ela própria revirada, é graças à

15 Reik, p.137. 16 Reik, p.134. 17 Reik: “A punição ou a humilhação precedem a satisfação... Porque para o masoquista o prazer segue o

sofrimento, parecia evidente que o sofrimento fosse a causa do prazer” (p. 238-242); “O masoquista tira

seu prazer das mesmas coisas que nós todos, mas ele não consegue adquiri-lo antes de ter sofrido. ” (p.

356). 18 Reik, p. 122-123. Sobre o papel da angústia no masoquismo, cf. igualmente Nacht, Le Masochisme.

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De Sacher-Masoch ao masoquismo

102 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 94-105, 2017

projeção do contrato, na medida em que é feita uma regressão na direção da mãe, na

qual a aplicação da lei paterna aparece simbolicamente posta nas mãos da mulher. No

entanto, à primeira vista, não se vê o que há de alívio em um tal deslocamento: não há

nenhuma razão para contar, em geral, com uma indulgência maior da Mãe devoradora.

Mas devemos considerar que a lei paterna enquanto tal interdita o incesto com a mãe.

Como mostrou Jung, o incesto significa um segundo nascimento, isto é, um nascimento

heróico, uma partogênese (entrar uma segunda vez no seio materno para nascer de novo

ou se re-parir)19. Se o pai interdita o incesto, não é porque a mulher ficaria feliz com ele,

mas porque o segundo nascimento se faria sem o pai. Ora, é claro que a Mãe não tem as

mesmas razões de interditar o incesto ou de castigar seu desejo: a lei materna exige que

o filho abandone todos os atributos do pai, mas o exige como condição do incesto e de

seu sucesso. É porque a Mãe não é devoradora somente enquanto sua imagem é

recalcada, mas o é nela mesma e por ela mesma. Ela impõe ao filho terríveis provações,

a fim de que ele renasça homem somente através ela: assim a castração de Attis sobre

Osíris, ser engolido por um dragão-baleia ou por um peixe guloso, a mordida por uma

serpente, a suspensão na árvore materna, todos esses símbolos de retorno à Mãe

significam a necessidade de sacrificar a sexualidade genital herdada do pai, para obter o

renascimento que nos dotará de uma virilidade nova e independente. Assim, Hércules é

afeminado por Ônfale; Osíris acasala com Isis, mas como uma sombra: sempre o

incesto é concebido como um retorno à sexualidade pré-genital. Vemos que sobre um

ponto (a castração), a lei materna e a lei paterna apresentam uma estranha coincidência.

Mas o que do ponto de vista do pai é uma ameaça impedindo o incesto ou uma punição

o sancionando, é, ao contrário, do ponto de vista da mãe, uma condição que o torna

possível e que lhe assegura o sucesso20. É portanto a regressão à Mãe que explica como

a lei paterna é invertida tanto no tempo como em seu conteúdo.

Quando o masoquista, em virtude dessa coincidência, projeta sobre a imagem da

Mãe a aplicação da lei paterna e a execução da punição, duas conseqüências se seguem:

19 Jung, Metamorfoses da alma e seus símbolos, II, caps. 4 e 5. 20 De fato, a certeza de sucesso não é assim tão grande quanto estamos dizendo. Freqüentemente o herói

não será reconstituído completamente, ou até mesmo permanecerá engolido pela mãe: a Mãe terrível se

impõe então à Mãe de vida. Mas é preciso ver nisso um estágio de degradação do mito? Parece antes que

o mito, e também a neurose, tal como o veremos, apresentam dois aspectos segundo o que é acentuado, se

a regressão perigosa ou a progressão que pode dela emergir. O terceiro, na experiência do contrato

masoquista, parece ser uma projeção da saída bem sucedida, ou do sucesso final, isto é, do novo homem

que surge dos sofrimentos e das mutilações. Mas justamente à medida em que esta saída não é certa e em

que a regressão é acentuada, o terceiro deforma a meta final: ele então representa uma vingança do pai

ridicularizado, uma reaparição do pai sob a forma sádica, que reage tanto contra a mãe quanto contra o

filho.

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Gilles Deleuze

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 94-105, 2017 103

a lei materna é reforçada e como que reavivada, porque ela vira em seu proveito todas

as armas do pai; a lei paterna é ridicularizada, porque ela acaba precisamente por nos

dar o prazer que se propunha a nos interditar. Freud distinguia três tipos de

masoquismos, cada vez mais profundos21: o masoquismo moral, correspondente ao

desejo de ser punido; o masoquismo feminino, correspondente à atitude passiva e

mesmo às satisfações pré-genitais; o masoquismo erógeno, correspondente à associação

de sofrimento e prazer sexual. Mas o desejo de ser punido, no masoquismo, não é

separável de uma tentativa de desviar a autoridade paterna; essa tentativa, não separável

da transferência à mãe que nos dá um prazer incestuoso pré-genital; esse prazer, ele

próprio não separável de uma provação ou de um sacrifício doloroso, como condição do

sucesso do incesto, isto é, do renascimento. A fantasia masoquista remonta da imagem

do pai à da mãe, e desta ao “homem da comuna”; ela comporta também o tema das duas

Mães, que simboliza o duplo nascimento22. É a imagem da Mãe, é a regressão a essa

imagem que é constitutiva do masoquismo e forma sua unidade. À condição de

interpretar essa imagem originária à maneira de Jung, como um arquétipo das camadas

profundas do inconsciente. O problema do masoquismo fora complicado singularmente

porque começou-se por retirar da mulher certas características que pertenciam à imagem

materna, para então se surpreender que ela as recebesse de fora: aí como em outros

lugares, fazendo da imagem algo de compósito, suprimia-se da imagem seu poder

diretor e compreensivo.

Quando Freud descobrira um masoquismo primário, proporcionara à análise um

grande progresso, pois que renunciava a derivar o masoquismo do sadismo. É verdade

que a derivação inversa não é mais convincente: o masoquista e o sádico não têm mais

chances de se reunir em um mesmo indivíduo, do que de se encontrar no mundo

exterior, contrariamente ao que desejaria uma história engraçada. Por outro lado, a

explicação que Freud dá ao masoquismo primário, a partir do instinto de morte23,

mostrava ainda que ele não acreditava em símbolos ou em Imagens enquanto tais. É

21 Freud, “O problema econômico do masoquismo”, Revue Fr. Psych. II, 1928. 22 Freqüentemente essa segunda mãe é uma besta, um animal de peles. No caso do próprio Masoch, é uma

de suas tias que exercera o papel de segunda mãe: Masoch criança se esconde em um armário com

casacos de pele, para espiá-la (“Choses vécues”, Revue Bleue, Paris, 1888). O episódio é transposto em A

Vênus das peles. Do mesmo modo, os ritos de suspensão têm um grande papel em Masoch e no

masoquismo, papel análogo ao que eles exercem nos mitos incestuosos do segundo nascimento. Cf. o que

Reik chama o “fator suspensivo”. 23 Optamos por manter o termo utilizado por Deleuze, instinct de mort, ao invés de ‘corrigi-lo’ por

‘pulsão’, inclusive pelo fato de ulteriormente o próprio Deleuze aproveitar esta questão de tradução para

tornar os dois termos conceitos distintos em sua própria teoria, atribuindo a instinto um caráter

transcendental ou virtual e às pulsões um caráter empírico ou atual. (N. T.)

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104 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 94-105, 2017

uma tendência geral do freudismo dissolver as Imagens, fazer delas algo de compósito

remetendo por um lado a eventos reais, por outro a desejos ou instintos irredutíveis que

não são jamais “simbolizantes” por sua conta. Assim, segundo Freud, “o sexual não é

nunca símbolo”; e no instinto de morte, trata-se de uma morte real e de um instinto

irredutível que é retorno à matéria. No entanto Freud reconhecia que a única natureza do

instinto consiste na regressão, e a única diferença entre os instintos (por exemplo, de

vida e de morte), no término da regressão24. Faltava-lhe apreender o papel das imagens

originárias: elas não se explicam por outra coisa que não elas, ao contrário elas são ao

mesmo tempo o término das regressões, o princípio de interpretação dos próprios

acontecimentos. Os símbolos não se deixam reduzir nem compor; ao contrário, são a

regra última para a composição dos desejos e de seu objeto, eles formam os únicos

dados irredutíveis do inconsciente. O dado irredutível do inconsciente, é o próprio

símbolo, e não um simbolizado último. Na verdade, tudo é símbolo no inconsciente: a

sexualidade, a morte, não menos que o restante. A morte deve ser compreendida como

uma morte simbólica, e o retorno à matéria, como um retorno à morte simbólica. Os

instintos são somente as percepções internas das Imagens originárias, apreendidas lá

onde elas estão, nas diversas espessuras do inconsciente25. O masoquismo é a percepção

da imagem materna ou da mãe devoradora; ele faz os desvios e o caminho necessários

para percebê-la lá onde ela está. O que importa é que este caminho não seja perdido.

Existe sempre uma verdade das neuroses ou dos distúrbios enquanto tais. O problema

do tratamento não é dissolver os símbolos para substituí-los por uma justa apreensão do

real, mas, ao contrário, de aproveitar o que há de surreal neles para dar aos elementos

negligenciados de nossa personalidade o desenvolvimento que eles reclamam. Toda

neurose tem duas faces. No masoquismo, a regressão à Mãe é como o protesto

patológico de uma parte de nós mesmos esmagada pela lei; mas também as

possibilidades de uma progressão compensatória ou normativa dessa mesma parte,

como deixa-se perceber na fantasia masoquista de renascimento. Faz parte do

tratamento, nesse como nos outros casos, “dar razão ao doente”, em conformidade com

24 Cf. Freud, Para além do princípio do prazer. 25 Notemos que enquanto nesse texto de 1961, Deleuze utiliza Jung, em sua versão que publicará como

Apresentação de Sacher-Masoch a influência junguiana é elidida. No entanto, parece claro aqui que

Deleuze se serve dos conceitos de Imagem originária e símbolo de Jung, lendo-os sob a ótica do que virá

a ser sua leitura do estruturalismo e seus próprios conceitos de virtual e transcendental, posteriormente

retirados de Bergson e Kant. (N.T.)

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Gilles Deleuze

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, p. 94-105, 2017 105

a verdade de seu distúrbio, isto é, atualizar as possibilidades da neurose reintegrando-as

no todo de sua personalidade26.

Recebido em: 10/05/2017

Aprovado em: 05/06/2017

26 Sobre Freud e Jung. Todos esses pontos remetem em geral às diferenças entre Freud e Jung. Para bem

compreender essas diferenças essenciais, seria necessário considerar que os dois autores não retiveram o

mesmo material clínico. Os primeiros conceitos freudianos (por exemplo, o recalque) são cunhados na

moeda da histeria. E o serão sempre, embora Freud com genialidade tenha sentido a necessidade de

remanejá-los em função dos outros casos que cada vez mais aprofundou (obsessão, angústia, etc....).

Todavia, os métodos freudianos cabem, sobretudo, para a abordagem dos neuróticos jovens cujos

distúrbios ainda se remetem a reminiscências pessoais e cujo problema, qualquer que seja o papel dos

conflitos interiores, é o de se reconciliar com o real (amar, se fazer amar, se adaptar, etc.). Mas há

neuroses de um tipo inteiramente outro, próximas da psicose. Neuróticos adultos, esmagados por

‘Imagens’ que ultrapassam toda experiência; o problema deles é o de se reconciliar consigo mesmos, isto

é, de reintegrar em sua personalidade as partes de si mesmos cujo desenvolvimento eles negligenciaram,

que estão como que alienadas nas Imagens de onde elas extraem uma perigosa vida autônoma. Em

relação a essas Imagens primordiais, o método analítico de Freud não convém mais. Irredutíveis, a elas

cabe serem abordadas por um método sintético que busca para além da experiência do sujeito a verdade

da neurose, e, nessa verdade, as possibilidades de uma assimilação pessoal de seu conteúdo pelo próprio

sujeito. Jung pode portanto criticar Freud por este não ter descoberto nem os verdadeiros perigos

presentes em uma neurose, nem os tesouros que ela continha. Freud, diz ele, tem sobre as neuroses um

ponto de vista depreciativo: “não é nada senão...” Segundo Jung, ao contrário, “na neurose reside nosso

mais tenaz inimigo ou nosso melhor amigo” (cf. Correspondência com Loy, 1930, em A cura

psicológica). Não está excluído que, até certo ponto, caiba para uma neurose uma interpretação freudiana,

esta interpretação perdendo sua pertinência à medida em que se penetra nas camadas mais profundas do

inconsciente, ou mesmo à medida em que ela se desenvolve, se transforma ou se reanima com a idade.

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106 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1, 2017

Resenha

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Resenha sobre o Camus de L. Bove

BOVE, Laurent. Albert Camus, de la transfiguration: pour une expérimentation vitale de

l’immanence. Col. La Philosophie à l’œuvre. Paris: Publications de la Sorbonne, 2014,

168 p.

Danilo Bilate*

A ainda recente publicação de Laurent Bove Albert Camus, de la transfiguration

é um belo livro. Como outros trabalhos do mesmo autor, a leitura é extremamente

prazerosa, seja pelo estilo agradável e claro,1 seja pela coerência da argumentação aliada

à formidável capacidade de problematização filosófica e à postura teórica

apaixonadamente vinculada à vida. No que se refere a esse último ponto, aliás, é preciso

dizer que o subtítulo do livro é certamente mais elucidativo sobre seu teor do que

propriamente o título – fora evidentemente a referência inevitável a Camus –; trata-se de

uma experimentação vital da imanência e me arrisco a dizer que tal experimentação é, em

verdade, de Bove, a usar amorosamente Camus como instrumento, invejável instrumento,

mas não muito mais do que isso. Que não se queira concluir daí que a obra não sirva como

auxílio para a compreensão do pensamento camusiano, é claro. O que digo é apenas que

a sua interpretação não pretende se prender à verdade do texto, sendo antes, para repetir

a expressão, uma experimentação vital com o texto, como deveria ser a meu ver toda

interpretação filosófica, donde se explica este parágrafo já enfadonho de tão elogioso.

Passemos então à abordagem tradicional esperada de uma resenha, ainda que

muito e propositadamente sucinta. O absurdo da existência humana é tema já abordado

desde a introdução que o circunscreve à “imanência radical” (p.8) ou à “presença

imanente da luz das coisas em um mundo privado de transcendência” e “inseparável da

flama devorante da sua morte” (p.7). Esse tema já tão banalizado e, portanto, prestigiado

e desvalorizado pelo mesmo prestígio, central no pensamento do “Camus autor, escritor-

filósofo” (p.8) recebe aqui a atenção devida. Como com Meursault, que “se sentirá para

sempre indiferente e inocente” – esses dois afetos próprios à toda sabedoria –, o homem

* Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da UFRRJ. 1 Apesar de raros momentos de obscuridade estilística, como a lamentável linguagem deleuzo-

heideggeriana da página 103.

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Danilo Bilate

108 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1 p. 107-109, 2017

do absurdo deixa-se “atravessar pela morte” (p.11), constituindo, segundo Bove, a

“positividade ética imanentista que, ainda que explicitamente (e metafisicamente)

recusada por Camus, insistirá no entanto ao longo de sua obra, se misturando de modo

mais ou menos intenso às reflexões morais sobre a revolta até investir totalmente seu

campo com o tema ontológico-político da ‘transfiguração’” (pp.13-14). Tema ou temas

(o ético-ontológico do amor indiferente e o ético-político da revolta) que Bove afirma

constituir o objeto principal de seu livro e, de fato, assim o é, refletindo na estrutura do

texto, com duas partes para cada tema mais geral.

A primeira parte é dedicada precisamente a Meursault e trata dessa “ética da

simpatia e do amor” dependente da “metafísica da imanência” (p.20) e da “filosofia da

pura afirmação, próxima do epicurismo” (p.24) que Bove, de forma mais densa e

detalhada, descreve assim:

Será preciso ir até o ponto de limpar o desejo humano da ilusão do Um, do Ser, do Todo,

da Mãe unificadora. Será preciso liberar a vida de uma tal falta, de uma tal exigência de

unidade, de ordem, de sentido, para ascender à doçura da plenitude no coração mesmo da

dispersão. É para além do absurdo (da contradição vivida do desejo de unidade e da

irracionalidade do mundo – e só há irracionalidade do mundo em função desse desejo)

que Meursault – do seio das coordenações e das disjunções que são, com o acaso dos

encontros que elas supõem, a natureza mesma das coisas – afirma de fato uma sabedoria

da fraternidade do diverso (p.34).

Para Bove, Camus defenderia uma fraternidade amorosa, extremamente próxima

do evangelho aliás, que independe da fantasia do Um como união imaginária a justificar

a compaixão pela identificação com o outro. Tal amor fraterno se daria como a aparente

contradição do amor pelo diferente por indiferença salutar que nos afasta dos afetos

reativos ou ressentidos causadores da violência e da desumanização pela exploração:

“Um amor sem memória nem projeto, sem fantasia nem interpretação, sem identificação

nem possessão, sem transferência nem neurose... Eterno no presente e no entanto

necessariamente limitado e moral: um amor trágico” (p.40). Amor trágico porque

incondicional e incondicional por ser amor pela vida, modo de afetar-se positiva e

alegremente pelo todo da multiplicidade, pelo Um das diferenças. Amor não outro senão

o amor por si mesmo, que voltado para si ou para outrem, é amor pelo mundo, pelo

destino, pelo o que é: “Verdade do amor da mãe, verdade de todo amor da vida, esse pelo

qual nós amamos os outros com o mesmo amor ‘indiferente’ pelo qual nos amamos”

(p.48).

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Resenha sobre o Camus de L. Bove

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 1 p. 107-109, 2017 109

Mas então como amar o terror? Talvez tenha sido uma questão parecida que tenha

feito Bove escrever uma segunda e última parte para seu livro. Parte que aborda as

questões ético-políticas imbricadas ao pensamento precedentemente exposto. Afinal,

diante do horrendo, o que resta àquele que ama incondicionalmente? A revolta. Revolta

que nasce do amor pelo homem. Revolta amorosa, portanto, contra a “animalização” ou

esse “modelo do homem de aparelho” que preso às suas funções e “surdo ao diálogo

humano” constitui o terror mesmo (p.85).

Revolta não imatura, contudo. Refletida, consciente de si, revolta que gera a

resistência como a única ação política possível a quem ama: “uma resistência afirmativa

realmente ativa, constituinte de história e radicalmente livre de uma lógica mortífera de

dominação” (p.89). Revolta amorosa que resiste na liberdade, ativamente como criação

de si mesmo e, pela fraternidade, como criação amigável com o outro: “A revolta (e a

resistência que lhe é fiel) apaga, portanto, a ilusão do sujeito (autônomo ou independente)

em um movimento real de identificação solidária que é uma verdadeira criação de ser e

de ser-com” (pp.118-119).

Com a experimentação vital da imanência à qual somos convidados por Bove (e

por Camus), fica essa pergunta dolorosa a nós, homens de boa vontade: neste mundo tão

sofrível, de que forma resistir? Aqui o livro se encerra e o presente se abre – a nós.

Recebido em: 08/04/2017

Aprovado em: 20/04/2017