ricardo ferreira freitas - a subversão pós-moderna e o diabólico maffesoli

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  • 8/17/2019 Ricardo Ferreira Freitas - A Subversão Pós-moderna e o Diabólico Maffesoli

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    Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 26 • abril 2005 • quadrimestral

     

    O artigo foi escrito à luz do pensamento de MichelMaffesoli, com inspiração no livro “A parte do diabo”. É umensaio sobre o polêmico pensamento do autor, que estudaas ciências sociais mesclando o trágico e o banal. Ao desafi-ar seus leitores e estudiosos a discutir a sociedade contem-porânea, Maffesoli conta com o diabo, neste caso, como umcompanheiro de suas provocações.

     This text deals with Michel Maffesoli’s new book  A parte doDiabo   (2004) where he discusses with his readers thecontemporaneous mixing of the tragic with the ordinary.

     -Diabólico (Evil)

    -Mídia ( Media)-Contemporaneidade (Contemporaneity)

    Ricardo Ferreira FreitasFCS - UERJ

    Só podemos entender bem uma época sentindo seusodores. Os humores sociais e instintivos são mais

    eloqüentes a seu respeito do que muitos tratadoseruditos. Neles exprimem-se os afetos, as paixões,

    as crenças que a permeiam. É assim que se manifes-tam os sonhos mais desvairados com que ela joga

    ou dos quais vem a ser joguete. É assim que

     podemos entender que a “parte destruidora”, a doexcesso ou da efervescência, é exatamente o quesempre antecipa uma nova harmonia

    (Maffesoli, 2004, p.17).

    NAS  ÚLTIMAS DÉCADAS do século XX, os inte-lectuais e a mídia de vários países do mun-do se surpreenderam com o pensamentosociológico de Michel Maffesoli. Polêmico,e absolutamente contemporâneo, Maffesolié um desses raros cientistas sociais que têma coragem de estudar assumidamente o co-tidiano. No Brasil, o interesse por sua obrafoi despertado nas estações finais da dita-dura militar e começou a ganhar grandeforça na época da retomada da democraciano país. Era um momento em que muitospensadores sul-americanos recorriam à vo-cação européia de influência nos paradig-mas críticos da sociedade, especialmenteaqueles considerados de vanguarda políti-ca. Desde então, Michel Maffesoli, titularda cadeira de Émile Durkheim na Sorbon-

    ne, tem se destacado por suas propostasepistemológicas que incorporaram às ciên-cias sociais temas aparentemente parado-xais como a paixão e o banal.

    Na sua obra, lidamos com o trágico ea festa para entender o mundo. Pode-se rirou chorar, mas é impossível não levar seusobjetivos a sério. Povoado por ancestraiscomo Durkheim, Weber e Simmel, em umrápido exemplo, sua forma de trabalhar

    privilegia o presente e o instante vividocomo assuntos fundamentais à discussão

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    sobre as construções simbólicas e as repre-sentações que os múltiplos grupos sociaisordenam e desordenam a cada dia. A mídiae os eventos promotores de ajuntamentosde pessoas1  são, portanto, referências ins-trumentais para analisar sociologicamente

    questões que muitas vezes são considera-das secundárias como o frívolo e a aparên-cia. Ao mesmo tempo, Maffesoli tambémcontempla o debate sobre os grandes confli-tos mundiais, sejam de origem étnica ou fi-nanceira, enriquecendo a compreensão arespeito da estética da contemporaneidade.Suas idéias vão além dos limites do políti-co e do econômico, abordando a realidadesocial em variadas dimensões e possibili-

    tando, assim, novas propostas à sociologiae área afins. Para alguns intelectuais, suaobra é vazia de provas, é apenas um jogode palavras. Essa é uma maneira rasteira eequivocada de interpretar o trabalho deMaffesoli. Como sabemos, os inovadoresincomodam e, por isso, geralmente, susci-tam sentimentos opostos de animosidadeou de admiração. Maffesoli é um dos gran-des nomes das ciências sociais contemporâ-neas e isso se deve justamente à coragemde estudar o ordinário, os ritos urbanos, arua e colocá-los lado a lado a assuntos me-gaprojectivos como as guerras e as bolsasde valores em todo o mundo.

    O corpo, a moda e a aparência são, noquadro maffesoliano, alguns dos compo-nentes estruturais, ou mesmo constitutivos,da sociedade. Não à toa, são também trêsvértices importantes da publicidade e pro-paganda na contemporaneidade, sempre le-

    vando as pessoas a desejarem o reconheci-mento dos outros; na maioria das vezes, pe-los produtos da cultura de massa. Por ou-tro lado, assistimos ao crescimento do espe-táculo dos clubes de fidelização que tribali-zam os consumidores em categorias apa-rentemente menores, mais “personaliza-das”. Em todas essas situações, é sabidoque o cidadão contemporâneo reage contrao que lhe incomoda comprando coisas, fi-

    cando cada vez mais refém dos objetos edos serviços. No consumo configuram-se as

    mais diversas tribos do cotidiano, tecendoe entrelaçando imensas teias sem fim. Umenredo no qual as ambiências tribais esti-muladas pela comunicação social e basea-das na lógica da identificação convivemcom totalitarismos religiosos, ditaduras e

    conflitos étnicos. Esse panorama instala aatualidade em redes que se sobrepõem aoutras redes, todas emaranhadas, mas cadauma mantendo alguma motivação própriapara existir.

    A sensação de insegurança e a denún-cia mundial da decadência do conceito deEstado-nação levam os cidadãos a se da-rem conta que a crise é totalmente planetá-ria. A poluição, a aids, as gangues de jo-

    vens, os atentados terroristas são elementosque permeiam todo o globo e que fazemparte da vida de cada cidadão consumidor.Mais do que nunca, céu e inferno se mistu-ram na vida das pessoas seja para viver ohorror dos dias de hoje, seja para aprovei-tar o conforto e a vida mais longa possibili-tados pelas tecnologias. Em todos essesprocessos a comunicação é palavra-chave.Eis o enredo deste artigo, escrito, com mui-to prazer, à luz do pensamento de MichelMaffesoli e com inspiração especial no li-vro A parte do diabo.

     

    A forma, com efeito, nos incita a pen-sar a partir do paroxismo ou do exces-so. Por isso, possui uma funçãoepistemológico-metodológica inegá-

    vel. (...) para retomar uma perspectivaweberiana, o “irreal” do tipo “ideal” éparticularmente pertinente para com-preender todos os fatos “reais” davida cotidiana que, sem isso, passari-am totalmente despercebidos. É nessesentido que a forma é uma força deatração. Ela acentua, caricaturiza, car-rega no traço e, assim, faz sobressair oinvisível, o subterrâneo, quase se po-

    deria dizer o subliminal, que a ciênciaoficial tem muita dificuldade para

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    distinguir, e ainda mais para integraràs suas análises. De tanto dissecar,distinguir, o pensamento moderno es-queceu que o todo possui uma forçaespecífica que é, qualitativamente, di-ferente da soma de suas partes...

    (Maffesoli, 1998, p. 89).

    Os confins misteriosos da alma huma-na são interrogações irresistíveis sobre asviagens individuais e coletivas a que a hu-manidade está sujeita. Mas uma coisa é cer-ta: a mídia está lá. Seja onde for. Nesse ce-nário, a obra de Michel Maffesoli é exem-plar e de fundamental importância para acomposição teórica de alguns fenômenos

    comunicacionais pós-modernos, especial-mente os “formados” ou ambientados nasgrandes cidades. Neste texto, optamos emalçar um exemplo da mídia carioca contem-porânea, o caso dos pitboys, para estimu-larmos a discussão sobre as aplicações docampo teórico maffesoliano às praticas do

     jornalismo diário.As megalópoles são povoadas por

    mensagens em todos os seus recantos.Além de superpopulosas, elas são tentacu-lares compondo-se de estradas aéreas, ter-restres, subterrâneas e virtuais que as li-gam, irremediavelmente, ao resto do globo,fazendo com que forma e conteúdo ga-nhem significados conjuntos e até insepará-veis em muitos casos. É o mundo da dita-dura da comunicação e da transfiguraçãodo político; dois campos que se entrecru-zam o tempo todo, tanto nos espaços físi-cos como nos virtuais. Mundo visitado por

    Maffesoli através dos ritos do cotidiano ur- bano que geram uma cadência desenfreadade acontecimentos sociais.

    Emergência: vivemos a tirania da rapi-dez e da velocidade. “Maquinismo a não po-der mais, lazeres invasores e imperativos, ra-pidez de relações e meios de comunicação,tudo contribui a esta ‘intensificação da vidados nervos’ (Einsteigerung des Nervensle-

     bens) que, segundo Simmel, é próprio das

    metrópoles modernas e que obviamente au-mentou consideravelmente nas megalópoles

    pós-modernas...” (Maffesoli, 1992, p. 194).Nesta mudança de milênio, a técnica

    reaparece como grande ator expressando-se por cabos de fibra óptica, satélites, ban-cos de dados e muita imagem. Rapidez emnome do conforto e da suposta necessidade

    de informação. E é exatamente o excesso decomunicações nas grandes cidades do iní-cio do século XXI que esvazia as possibili-dades de formalizações entre os enigmasdo bem e os do mal. Ainda tentamos classi-ficá-los, mas cada dia é mais difícil. A famí-lia diz uma coisa, a política diz outra e osmeios de comunicação de massa tentamdeter a verdade. Dada a desintegração dediversos valores modernos a favor do que

    poderia ser entendido como o bem ou ocorreto, a mídia ocupa, hoje, o lugar da to-mada de partido, ou seja, das definiçõesdas coisas que são da ordem de Deus e da-quelas que são da ordem do Diabo. Nempor isso, ela escapa de um permanente pa-radoxo crítico e ideológico no qual, porexemplo, num mesmo número de jornal,podem oferecer, em páginas diferentes,versões antagônicas sobre os fatos apura-dos. Por esse motivo, é irresistível comen-tar neste texto a cobertura jornalística quetem sido dada a um personagem das trevas,segundo o discurso da imprensa carioca,consolidado pela expressão pitboy2 . NoRio de Janeiro, e em outras grandes cida-des do planeta, identificamos esse persona-gem, em princípio do mal, mas que alcançanotoriedade midiática e, muitas vezes,transforma-se em ídolo, quase sempre efê-mero, proveniente da cultura de massa. Os

    pitboys são protagonistas de inúmeras no-tícias de violência em espaços de lazer nagrande mídia e ganham rápida e passagei-ra notoriedade. Entretanto, o personagempitboy parece ainda ter longa vida no ima-ginário da cidade visto que a cada diasabe-se de mais algum caso em algum bair-ro. Nos jornais do Rio de Janeiro, a Barrada Tijuca é campeã no número de notíciassobre o assunto.

    A Barra da Tijuca, bairro novo basea-do no conceito de condomínios fechados e

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    shopping centers, oferece várias possibili-dades de entretenimento diurno e noturno.Globalizada e poluída pela estética  Miami,a Barra é elencada por atividades direta-mente ligadas ao consumo que ajudam aconstruir uma nova espécie de sujeito mais

    do que nunca contaminado pelas supostas benesses do capital. Apesar das lindaspraias e das montanhas ainda existentes aoredor do bairro, seus moradores preferem areclusão em grupo. Em boates, academias,shoppings, clubes, pedaços quase privadosde areia na praia ou nas áreas do condomí-nio, cidadãos pensam afirmar-se como in-divíduos autônomos que transitam entre astribos que bem escolhem. No entanto, a

    proposta de privatização dos espaços delazer e moradia com o objetivo de oferecersegurança e convivialidade entre particula-res demonstra sua saturação quando nãoconsegue dar conta da violência cada vezmais presente nesse pedaço da cidade.Mais do que nunca, o sentimento de hete-ronomia substitui a fantasia da autonomiavendida pelos anúncios publicitários doscondomínios e dos shoppings da região.As ordens estão dadas pela tecnologia,pela violência e pela mídia.

    A agressividade de jovens nascidosno próprio bairro e dos freqüentadores ha-

     bituais é o exemplo aqui escolhido, maspoderíamos falar dos assaltos às mansões,dos acidentes mortais com carros possan-tes, do tráfico de drogas e de tantas outrasnotícias sobre esse bairro planejado, masque mantém o mesmo imaginário de peri-go e risco que o resto da cidade. Escolhe-

    mos os pitboys, pois, apesar de suas infra-ções, os jornais também fazem questão demostrar o lado família e o sofrimento da-queles que lhes são caros, provocando, ob-viamente, um sentimento dúbio no leitor.

    Nesse quadro, poder-se-ia mesmo di-zer que os pitboys são uma exacerbação dafalta de perspectivas nas heranças do proje-to moderno da busca de dignidade e deidentidade. Geralmente amantes de exercí-

    cios físicos pesados e de lutas, esses rapa-zes gostam de expor seus corpos como ma-

    neira de garantir o território de acordo comos bíceps ou os tríceps. Apesar de espanca-rem namorados que tentam proteger suascompanheiras, esbofetearem as moças e, in-variavelmente, estarem envolvidos em bri-gas de médias ou grandes proporções, há

    sempre uma lei que os ampara e os liberta.Poderíamos dizer que os pitboys são, por-tanto, a representação do mal. Do mal bur-guês e arrogante dos que detêm o domíniode certos bens materiais ou intelectuais eque, em países como o Brasil, conseguemestar acima da ética baseada no respeito atodos. A ética, neste caso, é essencialmentetribal e parte muito mais de princípios es-téticos do que morais ou cristãos, os quais,

    aliás como sabemos, estão em permanentetransfiguração há muito tempo.Naturalmente, não podemos simplifi-

    car as coisas a esse ponto, dividindo inge-nuamente as pessoas entre boas e más. Ahumanidade não se permite mais ser julga-da entre o bem e o mal apesar de havercriado normas e leis em toda sua história.Então, o problema já não é só a violênciaurbana do jeito “comum”, dos assaltos eassassinatos, da falta de liberdade de ir evir, mas sim do poder da retórica (as pala-vras), do dinheiro (os bens) e do corpo(sexo). A relação desses três ingredientesfaz com que a atitude nefasta desses rapa-zes receba também outros olhares, inclusi-ve o do desejo sexual ligado à força – as-pecto, aliás, que eles fazem questão de co-locar em pauta. Muitas vezes, eles deixamas boates, os bares ou os restaurantes com

     brigas porque não quiseram pagar as con-

    tas; nesse caso, eles se desestabilizam justa-mente por faltar com aquilo que pode pro-vocar adesão ao próximo, ou seja, o capital.

     Já quanto à palavra, seus argumentos resi-dem nos dois elementos anteriores: elesverbalizam a força do corpo para agredir edemonstrar poder e usam o dinheiro ou ainfluência política dos pais para ter a lei aseu favor. Do espaço público de socializa-ção passamos a uma permanente zona de

    conflito, mesmo em espaços privados. Éimportante também notar, ainda à luz da

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    visão maffesoliana, que esse comportamen-to pode ser interpretado como uma nega-ção do fim da modernidade, já que os valo-res masculinos são tão exacerbados. Aceitara pós-modernidade implicaria lidar comuma certa feminilização do mundo e acatar,

    portanto, a cultura dos sentimentos pluraisque não deixam de valorizar o corpo, mui-to pelo contrário, mas na qual o corpo deveser simultaneamente emissor e depositáriode diversas expressões misturadas da ra-zão e da emoção.

    Aliás, como Maffesoli constata háanos, em nome do bem ou do mal, para omelhor ou para pior, os transbordamentossociais são fenômenos da dimensão animal

    da humanidade que, na verdade, são da or-dem do sentimental e do plural. O homemdeve, então, aceitar tanto o seu corpo comoa sua sombra. Uma tal implicação traduz,de certa maneira, os entusiasmos baseadosno afeto ou simplesmente no estar-junto.

    O jornalismo e a publicidade sãograndes estimuladores das confusões con-temporâneas. Nesse sentido, o exemplodos pitboys aqui explorado é uma mera re-ferência às inúmeras contradições que po-dem ser encontradas na mídia sobre qual-quer fato. De nenhuma maneira, estamosimputando a Maffesoli a defesa do com-portamento bárbaro dos pitboys. Quere-mos somente lançar um outro olhar sobreos editoriais e as reportagens que se contra-dizem tão recorrentemente nos grandes ve-ículos de massa, como já é sabido. Nossaintenção é ressaltar a impossibilidade daescolha perfeita e justa do bem e do mal, o

    que evidentemente, é bastante diferente daopção pelo conceito do “politicamente cor-reto”, tão difundido em todo o mundo, eque rege a maioria das redações jornalísti-cas.

     

    Mergulhemos mais fundo sob estemal que sabemos – aceitemos ou não

    – ser conatural ao dado humano. Te-mos, para começar – o que está longede ser desprezível – a vox populi, que

     bem sabe, em seu saber incorporado,que, em suas diversas modulações, oconflito (ou a antinomia dos valores)

    capilariza-se no conjunto do corpo so-cial, ou ainda que é extremamentecomplexo e, ao mesmo tempo, extre-mamente simples. É precisamenteesta dupla estrutura que o torna im-permeável aos sistemas filosóficos.Estes, para explicar, precisam reduziro que abordam à sua expressão maissimples. Ora, apesar desta redução, omal está aí mesmo, constante, irre-

    futável. Ele tem uma realidade maciçaque não se pode negar (Maffesoli,2004, pp. 76-77).

    Em nome do bem, o homem construiudiversos episódios polêmicos em sua his-tória cultural. Os etnocídios e genocídiosconvocados pelos colonialismos e imperia-lismos econômicos e políticos ocorridos noocidente, como a Inquisição na Europa daIdade Média e as missões jesuítas na Amé-rica do Sul, bem exemplificam a defesa do

     bem contra o mal como base teórica ou ide-ológica. Mesmo depois da Revolução In-dustrial, os velhos desentendimentos entrevizinhos ou entre fiéis de diferentes religi-ões continuam inspirando as desavençasentre as pessoas, separando-as entre boas emás. Das grandes Guerras às conseqüênci-as do 11 de setembro, os últimos cem anoscontinuaram a viver grandes conflitos em

    que matar pelo bem era o argumento maisimportante.

    Mas, como sabemos, o inferno estácheio de boas intenções políticas. Esse qua-dro tem inspirado Michel Maffesoli a anali-sar, ao longo de sua carreira, a sociedadecontemporânea dando atenção especial àstribos urbanas e às questões do presente.Em  A Parte do Diabo, Maffesoli, novamenteinstigante, discute o esvaziamento político,

    a violência e os conflitos da atualidade, te-orizando sobre sensações e situações que

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    se desenrolam na vida cotidiana. Inspiradoem alguns de seus livros anteriores, nosquais as controvérsias do bem relacionadasaos supostos territórios do diabo estiveramem pauta, o sociólogo se dedica integral-mente, nesta obra, ao lugar do mal, delica-

    do tema dos nossos tempos sombrios. Faceaos excessos e às múltiplas efervescênciasde diversas ordens  que não cessam de in-comodá-lo, Michel Maffesoli retoma umaproblemática que o perturba há tanto tem-po: a aposta na mutação pós-moderna con-siste também na tarefa de reconhecer a par-te do diabo de nossas sociedades cristãs. O

     bem não seria mais o único fim das institui-ções humanas, mas um elemento entre ou-

    tros. A teatralização festiva e barroca do de-mônio, expressão de um sentimento trágicoda vida, torna-se então uma maneira eficazde afagar o mal, de se proteger, homeopati-zando-o.

    O mal é complementar ao bem. Ele éirredutível já que faz parte da estruturaçãosocial. Assim, negá-lo é mais destrutivo doque aceitá-lo. Reconhecer o aspecto estru-tural do mal significa participar, de umamaneira ou de outra, da força das coisas davida. Nas sociedades pós-modernas emgestação, desencantadas pela saturação dosvalores universais, onde o pouco interessepela política é só mais uma ilustração, asmarginalidades criativas, as alteridades fe-cundas, a exacerbação da crueldade, a rea-nimação do selvagem são alguns dos extre-mos dos recursos sociais, nômades e tri-

     bais. Mergulhar ritualisticamente na lamapara um culto vodu ou remexer o lodo

    numa festa techno são sintomas revelado-res de uma intensidade exponencialmenteexistencial das tramas contemporâneas. Aambivalência das comunhões comunitáriaspós-modernas, onde o lugar faz o elo, podeabrigar as histerias das mais diversas or-dens em nome do gozo como nos grandeseventos artísticos, esportivos e mesmo reli-giosos. Os ritos coletivos se difundem pelacapilaridade no cotidiano da vida social já

    que são baseados no politeísmo de valores,espécie de erotismo social no qual o outro

    está lá, com o diabo no corpo, nessas comu-nidades de destinos tribais que expressamo tempo do plural.

    O retorno da assepsia ideal das gran-des teorias ocidentais não resiste às imun-dícies da política e da economia. A pessoa

    plural num mundo policultural tende a in-tegrar o mal como mais um elemento entreoutros. Nesse quadro, o real plural relativi-za os valores, dando uma sensação de tran-sitoriedade aos estatutos sociais suposta-mente imutáveis como, por exemplo, os di-reitos dos trabalhadores e das categoriassocioprofissionais. O emprego não é maisum valor essencial já que a precarizaçãodos contratos distancia a possibilidade de

    se fazer carreira numa mesma instituição.Se conseguir um trabalho seguro é umapossibilidade remota, a energia juvenil dei-xa de ter como projeto a reivindicação, ofuturo, a história. Ela se manifesta e se es-gota no instante – festas, chats, trabalhostemporários – e não carece de uma tradu-ção política. Nesse contexto, os jornais e oslivros são cada vez menos lidos pelos jo-vens que preferem a Internet com seus fo-ros de discussão e outras buscas de encon-tro. Mas, por outro lado, Maffesoli tambémdefende que a parte destruidora, a do ex-cesso ou da efervescência, sempre antecipauma nova harmonia. O fim do ciclo do bemcomo valor absoluto não significa que esta-remos todos queimando nas fogueiras doinferno em futuro próximo, mas sim que épossível o povo ter uma visão mais críticaem relação aos princípios morais de facha-da e estabelecer outra relação com as reali-

    dades da vida, como já podemos perceberem uma série de comunidades onde a ine-xistência de referências básicas de cidada-nia obriga as pessoas a tomarem medidasem benefício do grupo, sobretudo devido àausência do poder público governamental.

    Assim, os excessos de todas as or-dens, as inúmeras práticas de risco, as no-vas rebeliões juvenis e todas as efervescên-cias da pós-modernidade são expressões

    dessa sede do infinito que acontece no dia-a-dia; infinito que, como vemos, é bastante

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    influenciado, para não dizer ameaçado,pela heteronomia que constitui o novo cor-po social.

    O lugar central da experiência contemporâ-nea se exprime pelo deslizamento que vaida História Geral, e segura de si mesma, àspequenas histórias que constituem o ci-mento social. Esses deslizamentos subli-nham a saturação da consciência tão pensa-da pelas ciências e disciplinas modernas.Consciência de si, própria do individualis-mo epistemológico, consciência de classe,

    fundamento da ação política, ou consciên-cia cidadã, típica do ideal democrático e docontrato social moderno. Em compensação,vemos surgir uma consciência espontânea,porém heteronômica, muitas vezes até sim-plesmente institucional. Consciência, tudoindica, de um desejo de ideal comunitário,no qual o bem e o mal estão irremediavel-mente unidos.

    As interpretações da obra de Maffeso-li rendem infinitos tratados, pensamentos,idéias. E é justamente aí que reside seumaior mérito: seu trabalho nos impõe a re-flexão. Muitas vezes, tendo o trágico comocampo de estudo, Maffesoli consegue dis-tanciar-se, como é necessário ao espírito ci-entífico, tanto do passado enquanto refe-rência pesada e definitiva como também dofuturo onde o risco da previsão pode serfatal. Neste pequeno artigo, mais uma ho-menagem do que uma certidão teórica, ten-

    tamos mostrar que, além de toda sua serie-dade profissional, Maffesoli continua se di-vertindo em desafiar seus leitores e estudi-osos a discutirem a sociedade contemporâ-nea e conta com o diabo, neste caso, comoum companheiro de suas provocações

    1 Referimo-nos nesse caso tanto aos espetáculos artísticos

    e esportivos com platéia como também aos ajuntamen-tos virtuais.

    2 A expressão  pitboy  é uma paródia à raça de cão chamadade  pitbull. Essa relação se expressa, sobretudo, pela vio-lência em comum entre esses rapazes e essa raça de ca-chorro e também porque, muitas vezes, são esses jovensos proprietários desses cães. Geralmente tatuados, eleshabitam boa parte das academias de musculação da ci-

    dade e fazem escola entre os adolescentes. A estética pitboy  está na moda. Durante os anos de 2003 e 2004, OGlobo  e o  Jornal do Brasil, além de outros jornais cariocas,dedicaram dezenas de páginas aos conflitos gerados poressa tribo.

    MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos. Rio de Janeiro, Foren-

    se Universitária, 1987._____. La transfiguration du politique. Paris, Grasset, 1992.

    _____. Elogio da razão sensível. Petrópolis, Vozes, 1998.

    _____. A parte do diabo: resumo da subversão pós-moderna. Rio de Ja-neiro, Record, 2004.

    _____. Le rythme de la vie: variations sur les sensibilités postmodernes.Paris, La Table Ronde, 2004.