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Caminhos errados Aquilino Ribeiro

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Caminhos errados Aquilino Ribeiro

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“Grande bicho é o homem! Bate-se e morre desorriso nos lábios por disparates. Trilha sendasásperas e espinhosas, atrás de miragens, como sepisasse as mais fofas tapeçarias.” Nestas breves frases tiradas do prefácio, Aquilinoexplica o título do seu livro. “Caminhos Errados”conta a linha caprichosamente descrita por umpunhado de figuras, movidas, nos labirintos davida, pela bússola da sua própria inquietude e dasua sede de aventura. “Sem o erro”, diz-nos, “aTerra tornar-se-ia uma morna e desolada charneca,ou pelo menos uma paradisíaca e rotundapasmaceira.” Evaristo, jovem e frustrado, erra naprocura do amor, que julgara encontrar em MariaSalomé, o Lambru erra quando, vencidos tormentossem conta, vê a mulher que trazia nas meninas dosolhos casada com o homem que o atirara para oinferno da guerra. Há uma certa melancolia nestas seis novelas, a quenão escapa até “Menos Sete”, uma deliciosaaguarela tecida em torno das vicissitudes dos gatose gatas que povoaram os quintais de Aquilino. “A velha civilização, que ouço denominar cristã,bruxuleia e não vejo como se reanime. A mim, aquilhe confesso francamente, não me deixa saudades,tanto me sentia ferido nos acúleos da sua frieza.”

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Nestas palavras, João de Barros, em crítica queacerca do livro publicou na altura, julgava encontraruma “tristeza que o tempo tem acentuado, nobreangústia de quem sente, adivinha e sofre ascalamidades e ruínas da sua época, preciosotestemunho da humanidade intrínseca doextraordinário e do vitorioso criador e construtor deBeleza. E glosando este tema, João de Barros acrescentava:“Humanidade vibrante, sim, doçura e fraternidadehumanas que o ouro rico da sua frase jamaisesconde ou disfarça de todo, e que do estilo deAquilino faz, não a máscara ou a urna vazia da sóelegância formal, mas a imorredoura, a perenecintilação da sua ternura, da sua misericórdiaperante a dor, a aflição, a desventura e osdesconcertos do nosso universo quotidiano. E não éesta, para mim, a menor grandeza, a menor elevaçãoe dignidade do seu génio e da sua obra deromancista consagrado, de artista e de pensadorsempre sôfrego de transcender-se a si mesmo.Aquilino, mestre de nós todos, quer-se constantediscípulo e servo da sua inelutável, da suadominadora sede de perfeição. Honra lhe seja, comojá ele é honra suprema da nossa literatura de hoje ede sempre.”

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A João Pina de Morais Desta portada, tão de relance como se passasse nosares por cima de sua casa e o descobrisse à janela,saúdo o autor de Sangue Plebeu. Lembro-me queandámos de companhia por essa Europa e que aestrela que nos guiava, bem embora fosse deprimeira grandeza e radiosamente ideal, não nosconduziu a Bethlém. Das rampas desses caminhoserrados bem de certo que algum perfume perduraaté o fim dos nossos dias. É o óbolo aos coraçõessimples. De resto, confortemo-nos com a sinauniversal, tão precárias são as rotas que nestes diasaziagos se oferecem ao mundo e habitantespresumidos de racionais. A velha civilização, queouço denominar cristã, bruxuleia e não vejo como sereanime. A mim, aqui lhe confesso francamente, nãome deixa grandes saudades, tanto me sentia feridonos acúleos da sua fereza. Olhando à retaguarda, bato e torno a bater no peito.É possível que errar seja o condão inelutável detudo, dos homens, das nações, dos próprios astros.Não há ninguém que, chamado à loisa em Josafat,não tenha a rectificar 90 % dos seus passos. A cadaviragem se encontra um velhaco e a nossaimpróvida boa fé, um sandeu e a nossa infinitaculposa brandura, dolo, ingratidão, piratarias de

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vau para vau e a impertinente indulgência se nãonecessidade da nossa parte. Por outra, quesociólogo, perante a marcha histórica da carneiradahumana, não corrigira com dedo salomónico aqui ealém as suas parasangas angustiosas e conturbadas?E não falemos da mecânica celeste, pois não estáabsolutamente garantido que graves erros de cálculose não tenham infiltrado no risco da eclíptica,supondo que não seja seu fautor o mesmo astro.Ocorre-me que, prolongando estas premissas, meiria encontrar com Erasmo. Sim, também eu direique sem o erro a Terra se tornaria uma morna edesolada charneca, ou pelo menos uma paradisíacae rotunda pasmaceira. grande bicho é o homem!Bate-se e morre de sorriso nos lábios por disparates.Trilha sendas ásperas e espinhosas, atrás demiragens, como se pisasse as mais fofas tapeçarias.Sem dúvida que o seu egoísmo, entre um itinerárioduma rectitude inquebrantável e esta mareação decaravela, não hesitaria. Mas, repito, o planeta ficariatransmudado no mais fastidiento dos aquários. Omeu livro é o antípoda dessas beatitudes apenassonhadas. Dei conta que não vale a pena chorar perpetuamenteas cebolas do Egipto que, por descuido, falta de jeito

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oportuno, imperícia, deixámos de desaproveitarpara o nosso refogado. Siga a rusga! Querido e admirável amigo, honra das letrasnacionais, aceite com isto um abraço do camaradasaudoso dos tempos de Paris, Biarritz, Vigo,esperançado que ainda se nos hão-de proporcionarestádios a percorrer juntos sob a égide do mesmoHermes, o deus benigno que, plantado à beira daestrada, não deixará de nos dizer piedosamente, e équanto basta: ides bem! Casa de Santa Catarina, Maio de 1947. Aquilino Ribeiro Maria Salomé A camioneta da carreira, destes cangalhosestrepitosos e cheios de birras, que vieram suceder àpoética diligência com tão desairada prosa, botoutarde à vila. Tinha tido uma pane na bomba dagasolina logo à saída da cidade, e quebrou-se-lhe osemieixo a alturas da granja Velha. Automóveis quepassavam foram tomando alguns dos passageirosde evidência social, um padre, um doutor, o ricoproprietário, enquanto os demais, baldeados para omeio da estrada, bocejavam, viam passar as nuvens,ou renovavam com os compa-nheiros de azar umcolóquio às duas por três amortecido.

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Por isso a camioneta, que tinha o nome pomposo deMiss Antas-da-Beira, tendo chegado com atraso,dispunha-se a largar em pé de vento, quando era daregra queimar ali com o maior dos ripanços nuncamenos dos seus bons quinze minutos. Espicaçadas,desceram açodadamente umas pessoas com os seussaquinhos de amostras e, por último, aquela senhorade laço vermelho no chapéu, que tanto dava nogoto. Não tinha ninguém a esperá-la, e quedouperplexa no meio do largo com a mala de mão,símil-coiro, à sua banda. Entretanto o condutor, que trepara ao tejadilho,desentalava dentre as arcas dos ratinhos, quevoltavam do Alto Alentejo, os fardos da mercearia.O senhor Daniel, com o carregador a postos,especara em baixo, testo à manobra. Escurecia, e em renque pela estrada, sobre aregueira de luz dos faróis, os lampiões de petrolinedo Município todos se encolhiam encadeados emsua luz morrinhenta, do tempo dos capitães-mores.O Tavolado mostrava-se varrido de ociosos, hostilde todo como sempre que descia da Nave com o pôrdo Sol, mais picante que praganas, aquela carujeiramiudinha. No quiosque, a poucos passos, os quatroda vigairada de todos os burgos provinciais, presosà bisca lambida, nem viraram a cabeça.

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A senhorita, de plantão à beira da mala, deitavaolhos perscrutadores a todos os horizontes, olhos denáufrago, a que anima a esperança que acabe porchegar a subentendida pessoa. De estatura acima damediana, calçava sapatos de estrado alto em cortiça,sobre que pairava por altura do joelho a saia emgodets, e trazia na cabeça um chapelinho, mais doque boina, menos que um gorro, enfeitado com o tallaçarote encarnado, que fazia tanto chamariz semcontudo implicar desenvoltura. Além da carteira eda sombrinha, terçava ao pescoço a raposa a cujocontacto fofo, com os solavancos do calhambeque,Evaristo pudera sentir a espuma ligeira de suafragrância recatada. Como haviam viajadoprensados ombro com ombro, de começo não apudera ver bem senão de perfil. Afigurara-se-lhebonita, mas bonita como tantas mulheres. A pele daface, muito fina e transparente, coisa que sempre osensibilizara, assim como entre as flores o cetinosoda camélia, circunstâncias aristocráticas para a suavisualidade de serrano, Incutira-lhe de princípio umgrande respeito e ao mesmo tempo timidez. Quandoos joelhos se tocavam, fenómeno a que ela parecianão ligar importância nenhuma, logo ele refugiacom o seu, como se se houvesse tornado réu dumafalta de educação. E das vezes que se pusera a

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estudá-la e ela, por mero acaso ou porque lhepicasse o aguilhão do olhar insistente, o fitasse,desviava a vista, acobardado. Não era uma criaturadoutra plana social, ou pelo menos doutra plana desorte? Sorte no tocante a poder andar à moda, trazeruns sapatinhos com que dava a ideia de flutuar nãoobstante a impaciência que a ralava, ter os olhos dospassageiros assestados nela. Com a barafunda dasegunda pane, tivera ensejo de observá-la muito àsua vontade. Era o que em linguagem da trama sedenomina um peixão. Muito elegante e simples,ultrapassava a linde daquilo a que, no receio deenganar-se, confinara até então a sua homenagem.Realmente o seu porte inculcava uma distinçãoinata. Peito sem demais, ancas em correspondência,um rosto simpático, para não dizer formoso, tudonela estava coordenado de modo a gerar o desejo eobter o sufrágio dos sentidos. Coitada, agora não só ela mas até a mala, com osrectângulos niquelados das fechaduras a brilhar, deesguelha em relação às bermas, tinha ares decontrariada. O olhar da senhorita ia e tornava a irpelo Tavolado abaixo, inutilmente como o de irmãAna. Os raros vultos que descobria tomavam rumosque não lhe interessavam. E Evaristo considerou:

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“Não era mais simples para a criatura pegar elaprópria da mala e girar? Provavelmente temvergonha. Segundo a regra da perfeita fidalguia, orae sempre letra viva para portugueses de gravata,uma pessoa chique ou com pretensões só faz aquiloque não pode mandar fazer a um rústico.Transportes a lombo entre nós estão reservados aosgalegos. Esta senhora lá entende que lhe fica mallevar a mala e prefere correr todos osinconvenientes, como apanhar uma gripe, falhar oensejo de ver o namorado, não assistir à assinaturadum testamento. Que lhe preste, a esta hora, não lhecaíam os parentes à lama. No Tavolado, se alguémreina são os dois ou três bêbados do costume, nãofalando nos gatos pungidos por este seu libidinosomês de Janeiro. Mas, deixá-lo, se pegasse da mala ese pusesse a mexer, lobrigar-se-ia a si própria, e parao brio de certas criaturas é quanto basta.” Evaristo deixou de reflectir para a admirar apenas.A admiração é uma espécie de arroubo e não precisapara nada do concurso do entendimento. Depoisduma orgia cerebral volveu às cogitações: “Talvez que a maleta seja pesada demais para assuas forças. A carteira, a sombrinha, a raposa não aembaraçam pouco. É verdade que imóvel ou a batero tacão frenético em quatro palmos de solo, que é o

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mesmo, não resolve o problema. Ela própria já sedeve achar compenetrada desta noção, porque ei-laque se decide, embora a passo hesitante, a dirigir-seaos jogadores do quiosque. Onde ela vai bater!” - Compadre, corte a espadilha! - Corte o Diabo que o leve, para que puxou domanilhão? Porque os visse encanturrados à partida, ou porquenão reconhecesse entre eles a pessoa indicada,arrepiou caminho. Eles nem sequer haviamesboçado o jeito de dar conta. Postou-se de novo à beira da mala; contemplou-acom ar de quem troca impressões. A mala nãoinculcava riqueza e muito menos marquesado. Erauma mala honestinha de caixeiro de praça, deestudante a férias, ou mesmo de criada de servir, àvolta de Lisboa. Mas isso que tinha!? Depois de falarcom a mala, acabou por se dirigir à agência paraonde o senhor Daniel se recolhera, no rasto dohomem com a saca às costas. O senhor Daniel eraum senhor de grande nariz e óculos, que usavagravata e tamancos, contraste que chamariaespecialmente a atenção para ele, se toda a gentenão soubesse que o senhor Daniel era o senhorDaniel, inconfundivelmente o senhor Daniel desdeLamego a Trancoso, desde Armamar a Viseu, sócio,

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gerente, concessionário, lá isso ao certo é queninguém afirmava, da carreira de passageiros emercadorias da guarda para Vila Real, e homemsempre muito atarefado ou fingindo ser. Mas estasua truculência era precisamente o seu lado menosrebarbativo. Ora, ao tempo que no traço da portaagitava em mão um molho de facturas e exibia o seuindeclinável promontório nasal, a senhoritaaproximava-se: - Ó senhor Daniel, desculpe... A minha criada nãoesteve aqui? Teria desis-tido de esperar, na incertezaque havia da chegada da camioneta...? - Não lhe sei dizer, senhora D. Maria Salomé. Tenhoestado com a escritu-ração a tombos, há mais deduas horas que não ponho o pé na rua - e seguiu oseu destino. Chamava-se Maria Salomé, lindo nome! Mas aEvaristo ocorreu, precisa-mente nesta altura, que amulherzinha da sua terra, agora de costas voltadaspara ele na bancada da frente e de bruços à janela,lhe chamara Maria Salomé. Sim, lindo nome! Umnome, que pelo matiz, pela sonoridade, aimaginação podia muito bem supor ter sidoinventado para uma rapariga assim com aquelequiquinho na cabeça, precintado por uma fita queespalhava mais vermelhão à volta que um papoilal.

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Donde é que o estafermo da Clara Fagulha aconhecia? - Não sabe de ninguém, senhor Daniel, que me leveesta maleta a casa? Eu pago! - tornou a senhorita,sobrepondo-se à freima do agente com apostadapaciência e assestando olhos no carregador. O homem importante espraiou a vista peloTavolado; dirigiu-a depois para a estrada da bandade Lamego; ergueu-a para os telhados, para o céu;em nenhum horizonte descobriu quem queria. - Ainda há instantes aqui estava o Pouca Roupa -proferiu num tom perfeitamente desmoralizado. -Foi por lá a algum mandarete, mas não pode tardar.Entre, entre para dentro, faça favor. - Muito obrigada, eu espero bem aqui. A noite nempor isso está muito fria. - Quê!? A noite não está fria? Vem aí neve. Trago ospés como calhaus e olhe que pus dois pares decoturnos de lã, uns por cima dos outros. Ela não se dignou a objectar a prosa tão rasteira eparticular, e de novo explorou o largo com os olhos.Depois decidiu-se a subir para o traço da porta. Onariz super Cirano de Bergerac do senhor Danielapareceu ao lado do focinho deliciosamenteproporcionado de Maria Salomé.

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Mas a mulher que estava na camioneta deitou acabeça de fora e regougou: - Uma vila cheia de pirangas e, quando se quer um,não aparece! Não me dá a camioneta tempo, se nãoeu ia-lhe levar a mala! A damazinha sorriu. O senhor Daniel aprovou. Ocondutor, depois de rosnar qualquer coisa ao fundoda escada, subiu para a camioneta. Puxou o fechoéclair da raqueté, pôs a bolsa de coiro à tiracolo eentalou o lápis detrás da orelha. Um homem quenão tinha mãos a medir. E alguém, evidentemente,entre guarda e Vila Real. O que é, adregara receberapenas uma quota da importância que o senhorDaniel detinha por atacado. Evaristo entretanto fez-lhe um gesto, dois, nadamais que gestos, a que o condutor respondeuinteligentemente com acenar de cabeça. Evaristoapeou e foi direito a Maria Salomé: - Se Vossa Excelência me permite, acompanho-a elevo-lhe a mala. Não me custa nada. A camioneta dátempo. É a casa do Sr. Dr. Juiz, se percebi bem...? - É a casa do Sr. Dr. Juiz, sim, mas não se incomode.Eu espero. - Não me incomoda nada. Posso muito bem com amalinha. Ah, mas o que ela é leve! - Mas eu não queria.

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- Não há-de ficar aqui ao relento. Já iam a caminho. Ela não desejava outra coisa epôs-se logo par a par com o ombro de Evaristo.Caminhava silenciosa. Ele achava-se feliz - oh, demodo exultante - por prestar um pequeno serviço auma rapariga fina, tão engraçada, com aquele laçovermelho no chapelete e assentando com graça omoderníssimo sapato de sola de cortiça naquelaterra de tortulhos. Agora que tivera o desembaraçode lhe ser útil, não se ralava nada que ao acaso damarcha os ombros, os braços, se tocassem. Elatambém julgara-se na obrigação de se mostrargentilmente curiosa quanto à sua pessoa: se ia paralonge se não valia mais a pena pernoitar na vila como arzinho que cortava.“ se era dos sítios, etc., etc..Ele respondia de boa mente com enfáticasinceridade, porque não encontrava melhorlinguagem no seu deslumbramento. Era de gandrade Rei, conhecia, não? Para se lá ir, chegando agente a Tendal da Loba, tinha que se descer eacabava-se a jornada à pata. Eram dois quilómetrosde caminho velho, um salto para quem como eledispunha de boas pernas. - Então não sei onde fica gandra do Rei! É de láaquela mulherzinha que vinha a falar comigo nacamioneta.

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- A Clara Fagulha? - Essa mesma. Esteve a servir em casa do meu tiobastantes anos. Agora, às duas por três está lá caídapara matar saudades. Da criatura transitaram para gandra de Rei,turisticamente falando, terra de fraguedos, tojal elobos. - Lobos, há lá lobos?! Sério? Eu julguei que já nãohavia tais bichos! Que não passavam dumainvenção poética para divertir a gente - Por amor de Deus! Nem os dos Jardins Zoológicos?- Ah, nesses não acredito eu! Não, não. São homensfardados de lobos! hoje finge-se tudo. - Que ideia! - O senhor viu-os? - Venho da Capital, minha senhora, e vi-os nasLaranjeiras com estes que a terra há-de comer vi-osna jaula. - Tem a certeza que não foi iludido na sua boa fé?! -disse isto e desatou a rir. Evaristo desatou a rir também, no íntimo um poucoconfuso com descobrir-se mais ingénuo do que sesupunha e admirado daquele feitio faceto, quaseburlador de Maria Salomé. - Em gandra de Rei temos portanto lobos a valer,dizia o senhor?

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- Evaristo Soares, seu criado. - Garantidos, senhor Soares? - Garantidíssimos. Tão feras, tão à margem dodireito e da religião que até comem carneiroroubado às sextas-feiras. Desta feita Maria Salomé soltou-lhe um risinhosatisfeito. - Mas é de lá? - Sou de lá. - Não parece. - Vossência não é de Antas da Beira? Todavia quemo diria! - Ora essa! - Conheço perfeitamente a vila. É gandra de Rei comcamisa de goma. Ela sorriu e disse com lisonjeira condescendência: - Não sou daqui, de facto. Sou de Coimbra. Caí aqui,vai fazer dois anos. Em Antas tenho apenasparentes. - O Dr. Juiz Henrique de Ponces, não é? Decorreu uma pequena pausa, e ela emitiu num tomde voz que parecia doutra pessoa: - Sim, é meu tio. conhece-o? - O Dr. Juiz Ponces dava-se muito com meu pai, quefoi recebedor, e vive aposentado na aldeia. Quandolhe acontecia ir pela serra, reservava-nos a honra de

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aceitar a nossa modesta hospitalidade. Lá o conheci.Ele é que não estará lembrado de mim. Eu eramiúdo. - Tem estado fora? - Tenho estado em Lisboa. Há cinco anos que nãovenho a gandra de Rei. Desciam agora a rua que desembocava no Tavoladoe, com as suas casas de ripa e folha zincada, um ououtro solar envilecido, era a cabeça da estrada quemergulhava para o Tedo. Não se descobria vivalma. - Vem com demora? - inquiriu ela. - Nem eu sei. - O mesmo se dá comigo. Eu venho do Porto, tenholá uma irmã. Seguiram calados a ruminar aqueles mundos decoisas. Melhor a contemplar aquele mapa-múndi,pelos nomes e imensa vacuidade dos espaçosinterpostos. E àquele conspecto, em vez de seaproximarem, apartavam-se. Um bom momentoouviram em silêncio o martelado de seus passos.Estavam como que perdidos cada um no seuhemisfério, que já não era pequeno. Ela teria vinte edois a vinte e cinco anos. Ele ia nos vinte e dois. Osrios que haviam passado debaixo de tão dilatadoarco de tempo que águas turvas ou claras tinham

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arrastado? Não era fácil que se encontrassem. Tudono mundo era onda, dispersão. Mas tinham chegado a uma casa de cornija abacialcom janelas sobre-pujadas de sanefas à D. João V.Subiram a escada de pedra, às escuras, e noprimeiro patamar, com a ponteira da sombrinha,Maria Salomé bateu. Bateu e ficaram ambos parados à escuta decorrespondência de parte dos moradores. Evaristoestava em jurar que ela contrafazia o fôlego aqualquer opressão, acaso a cansaço. Na expectativa,com voluptuosidade se sentia penetrar dos eflúviosdo seu corpo, como se o facto de se encontrarem alino escuro, às espaldas do mundo, lhe conferis-secertos direitos de posse. O anélito dela, tendo-seacercado acidentalmente, roçava-lhe a face. Eenebriava-o o seu calor e aroma, tão impregnadosde sexo. Nada entretanto quebrara o silêncio, e Evaristo deuconta que a respiração dela, de começo apenasincerta, acelerava agora o ritmo. Tornou a bater,com a mão mais vigorosa, e novamente ficaram nacontenção de quem espera. - Não estarão?! - disse Evaristo. - Ah, isso estão.

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Que é que ele não daria para poder observá-la, ler-lhe na expressão do rosto o comentário àmorosidade com que era recebida! E segundos,minutos foram decorrendo, que para ela deviam serlongos como eternidades. Tornou a bater. Era aterceira vez que o fazia. Bateu, soltou um pequenosuspiro, e recaiu no silêncio de quem aguarda eaplica o ouvido no desejo de captar qualquer rumor.O seu suspiro fora um misto de ansiedade edesespero. Poderia traduzir-se pelo grito espantado:e esta? Mas dentro arrastaram-se passos, vagarosos, tãovagarosos, que pareciam seguir rotina que nadatinha a ver com Maria Salomé. Mas não, essespassos aproximaram-se. Abriu-se a porta e umasenhora ainda nova apareceu de candeeiro empunho. Não mostrou surpresa, nem se lhe viuagrado ou desagrado no rosto. Da mesma maneira,sem prazer nem relutância na sua sequidão, sedeixou beijar pela recém-vinda. Depois, como Evaristo se mantivesse hirto, de malaem punho, cabeça descoberta, Maria Saloméexplicou: - Este senhor vai de passagem para gandra de Rei evinha na camioneta. Viu-me à espera e ofereceu-separa me acompanhar.

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A senhora da casa, que tinha belos dentes e portealtamente senhoril, em despeito do desalinhodoméstico, mediu-o com o olhar. E num tom que lhepareceu de simpatia pronunciou: - Não deseja tomar nada? Era a oferta consabida da hospitalidade beiroa.Evaristo agradeceu com exagerada polidez e pediulicença para se retirar. A rapariga estendeu-lhe a mão e foi quase com umavertigem que, ao mantê-la dentro da sua, lhe ouviudizer: - Muito obrigada pelo seu obséquio, muito obrigada;estimei imenso conhecê-lo. Permita-me umapergunta, não é este ano que há Endoenças emgandra de Rei? Não sabe? Constou-me que sim. Sehouver, as minhas amigas Lemos são lá certas ecostumam convidar-me. Lá me tem a ver os lobos. - E eu que lhos mostro. Mando-os convocar por umedital. Sorriram: - Passe muito bem! - Às ordens de Vossência! - Para fazer quatro soldadas inteiras, faltou-mepouco mais dum mês - contava a Clara Fagulha. -Adoeceu minha irmã Antónia, que Deus haja, e tivede tomar conta do governinho da casa. Como a

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gente não tem mais que duas belgas ao luar, e alémde poucas são reles, só à força de cavar, de adubar,de sachar é que se colhe um bago de pão. Se não sãoas territas, ainda hoje lá estava. Estimavam-memuito. Tanto a senhora D. Rosinda como o senhorDr. Juiz eram boquinha que queres, coração quedesejas. E então aquela menina!? - A D. Maria Salomé, quer vossemecê dizer...? - Ela, pois quem há-de ser!? Uma boa serás e umamãos-rotas. Meias calçadas duas ou três vezesapenas, blusa que tinha acabado de se usar, vestidoque apanhou uma nódoa numa festa, pegue Clara,pegue Clara! Trilhavam o caminho velho que conduzia a gandrade Rei depois de apearem da camioneta. O piso eraáspero, fragoso, agravado ainda o percurso peloescuro que fazia. Deixara de se ouvir a trabucada domotor na lomba da Lage do Alto, a uma légua dali,onde os camions de carga se fartavam de amolar,sempre em primeira. Um automóvel passou embaixo, charriscando o mato com o lumaréu difusodos faróis, ora a aparecer, logo a desaparecer nasvoltas e corcovas da estrada. Evaristo fora apartando a Clara Fagulha do ranchoque seguia à frente, em grande forrobodó, na manhade poder interrogá-la à vontade. Levava a ferver-lhe

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no juízo a rapariga do laço vermelho e queria saberque género de pássara era aquela. - Uma senhora que veio à porta, bonita, alva derosto mas um pouco sardenta, com o cabeloentrançado na nuca, deve ser a tal D. Rosinda, não? - O menino tirou-lhe mesmo, mesmo, o retrato. É tale qual. Ela tem as suas sardas, lá isso tem, mas navila não há outra que se lhe ponha por diante. E olheque é mãe de três filhos. Um já fuma e vai muitobem encarreirado nos estudos. O chegante a estetambém lá vai levado - E a D. Maria Salomé que faz nesta casa? - Que faz?! Não faz nada. É sobrinha do senhor Dr.Juiz que lhe quer como a filha. - Mas então não faz nada, nada? - Quer dizer, faz a sua costurinha à máquina, lê etoca rabeca. Nas mãos dela, o raio do instrumentotanto chora como ri. Até parece feitiçaria! É elaquerer e segura a gente no largo, por baixo dajanela, como se a tivesse presa por uma corda. - Vê, e eu julguei que não passasse, como hei-de eudizer, que não passasse de uma espevitada. Semmais. - E onde há ele raparigas bonitas que o não sejam?Falta-lhes brio, vaidade, são insossas.

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- Já vejo que vossemecê entende desta poda?! Ah!ah! - Tenho lidado, meu menino, com muita gente quesabe onde tem a cabeça. Depois eu não era nadaruda! A Clara Fagulha suspirou e deixou que as suasgratas recordações e o seu amor-próprio seexpandissem na paz da noite. Foi Evaristo querompeu o silêncio: - A família dela, a bem dizer, é o Juiz...? - Não, ela tem família lá para Coimbra. Tem o pai,tem a irmã, mas parece que sofreram quebra nosnegócios, e cada um remedeia-se como pode. A irmãestá caixa numa livraria do porto, ouvi-a eu dizer. Omenino é que sabe o que isso é. O pai dirige umaquinta do governo... - Agrónomo...? - Como diz? - Agrónomo. - É isso, agrónimo ganha rios de dinheiro, mas nadalhe chega. ganha-o de dia e vai gastá-lo à noite.Atira tudo para a mesa de jogo. Coitado do homem,não olha para diante e, mais dia menos dia, cai comoum malho em casa do Dr. Juiz. Era o medo do meuamo. “A menina tem a quem sair!” bramava àsvezes a tia, que é uma senhora muito poupada, lá

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porque lhe parecia que esbanjasse. Mas ná, a meninaliberal era, lá isso diga-se, mas eu nunca lhe viestragar nada. Fina, fina é que ela era. Um anohouve uma entrudada na vila e a menina foirepresentar um papel. Toda a gente a gabou. Nemcomedianta em Lisboa faria melhor. A mulher falava pelos cotovelos, mas Evaristo não aouvia, alheado a mascar a curiosa revelação. Em suaconsciência de antigo bicho montesinho, sempreprofessara um certo preconcebimento por aquelasprendas histriónicas, mormente quando se tratavade amadores. Estas teatradas, nas terras deprovíncia, cheias de sono e de sombras, erampretexto ao amorio, encabeçado pelo apalpão e abeijoca entre os bastidores de lona. Maria Salomédescera um bom escalão no seu apreço. Iam subindo um caminho quase de cabras que, ailudir a ingremidade, coleava pela falda do montesem se importar com distâncias. A Clara Fagulha, àfrente, guiava-o muito maternal, com seus olhos decoruja: - Meta por aqui! Olhe ali um calhau, não tropece!Fuja deste charco! Irradiava do crescente, que acabava de erguer-sedetrás da serra, uma poeirada leitosa de luz e a essalumalha enxergavam-se, cravadas no céu como

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sovinas, as corutas dos pinheiros. começavam aouvir-se chocalhar águas, sinal de terras de lima,portanto povoação pela frente. O sincelo, ainda queraro e intermitente, aliado ao ventinho barbeiro,pungia no rosto como agulhas. Evaristo ia entregue às suas ruminações, quando amulher lhe perguntou à queima-roupa: - Então o menino agora fica por cá? Não prestara ouvido e ela acudiu: - Desculpe, mas habituei-me a dizer menino e custa-me dobrar a língua. Doutor, doutor, é que eu devodizer, não é? - Diga como quiser que diz sempre bem. - Perguntava eu se o menino quer dizer, se o senhordoutor agora ficava por cá...? Foi como se o picassem com um ferrão. Toda a suapobre história palpitou àqueles vozes. Respondeu àtoa: - Não senhora, venho de visita. - Correu por aí que já o não deixavam serprofessor.... Como não se dignasse satisfazer-lhe a curiosidade,ela tornou com sinuosa malícia: - Eu se fosse ao menino largava Lisboa. Sempre ouvidizer que Lisboa é uma terra de perdição. Perdem-seas moças no fado e os homens na política. Arranje

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mas é um emprego na vila como o paizinho e deixecorrer o marfim. Quem quiser levar vida regalada,diz o senhor professor que ali vai, ponha-se à mesado orçamento, mas cá de longe. - Perto pode-se apanhar coice, hem, senhora Clara!? - Não quer dizer que todos sejam como as bestas acomer à manjedoira. Mas, enfim, a sofreguidãomaior é no toco. Olhe, menino, aqui, à sombra dosenhor Soares que tem amigos no leigo e no frade,ninguém lhe faz mal. - Ninguém ainda me fez mal, senhora Clara. - Bem não lhe fizeram, se lhe apararam as voadeiras.Agora se é mentira, melhor, melhor! - É uma mentira em que andam a boiar àdecimaduas ou três verdades, como as olhas de azeite dospratos varridos na vianda. - Olha azeite! Foi tempo. Mas a Fagulha não atinara com a significação daimagem culinária, e volveu a sonhar por conta dele.Se ficasse na vila, com o que o paizinho tinha, juntoao que viesse a ganhar, era um reichiquito. Então,sim, podia escolher menina da forma do seu pé. Evaristo considerou que ela tinha Maria Salomé naimaginação, ou por palpite, ou porque a meiamaluqueira que o tomara ia sensibilizando oinstrumento de recepção espiritual que é um cérebro

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em relação a outro cérebro. Para tirar a prova,emitiu entre dois frouxos de riso: - Com cheta, ou sem cheta? - A cheta ganha-a o homem. O diabo da mulher não queria mais nada: acasalá-locom Maria Salomé! Tinham chegado à primeira casa do lugar, que era ataverna do Chico Fidalgo, entalada entre o caminhoque corria de Covas para Labruge e a via Ápia degandra de Rei. A paragem era obrigatória,mormente para um rancho como aquele que osenhor Luís Telo, professor local, tangera para a vilaa depor num pleito em que o rico senhor seu sogro,usurário e especulador, jogava a posse dum lameiro,caçado na tralha dum embarcadiço por artes deberliques e berloques. Estampava-se no negrume danoite o vão da porta avermelhado pela luz doquerosene. Evaristo e Clara Fagulha não passaramdo limiar, nem querendo faltar à solidariedade coma companhia nem suciar com ela. O Chico Fidalgoencheu a caneca tudo ainda segundo o estiloturdetano e o professor foi o primeiro a tirar os trêsgoles. Depois à mão direita, sempre em frente, brevelhe luziu o fundo. Deite outra, e prosseguiu arodada. vinham quentes da marcha, quentes dospeguilhos, leva que leva, e uma canada emborcou-se

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ali enquanto o diabo esfrega um olho. Só entãoderam conta de Evaristo. O Luís Telo, professorprimário, rendido ao oportunismo político,presidente da Junta, e até camarista, não havia de tergrande simpatia por ele. Mas era pessoa avisada etratou de emendar a mão. Tendo mandado deitarum copo à parte - bem lavado, hem, Fidalgo!? -avançou com ele em punho: - Senhor Dr. Evaristo, dê-me a honra de saborearesta pinga. Quis provar primeiro antes de lhe trazero copo; não é mau de todo. Este Fidalgo tanto metetiborna como geropiga. É ou não é, cara linda? Evaristo, aceitando por boa a francesia do professor,escusou-se polida-mente. O outro insistiu, ora esempre dentro do fuero-juzgo serrano: - Há-de beber! Era uma desfeita que fazia. Evaristo molhou os lábios para comprazer. - Tia Fagulha, agora vossemecê! A mulherzinha invocou a má disposição do seuestômago, depois de umas sardinhas assadas quecomera em Lamego e estavam ardidas. E logo Telo,por galantaria com Evaristo, pois se apercebera dequanto estava manu a manu com a Fagulha,encomendou para o taverneiro em tom imperativo: - Fidalgo, salta um decilitro de aguardente aqui paraa tia Fagulha! Da de Lusinde, hem! Ainda tens?

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Essa, essa que faz dar um esticãozinho à língua.Para a azia é remédio santo. A Fagulha, muito lisonjeada que a distinguissem,acercou-se do balcão. E, fazendo trejeitos simiescos,pois que era pena deixar líquido tão precioso adesquebrar, sorveu até à última gota o cálice delume e alcatrão. Com a comunicabilidade, que as libações trazem deenvolta, os camaradi-nhas entraram em granderelambório. Estavam a dez minutos de suas casas, equedarem ali era vício antigo. À semelhança da rezacanónica dos monges goliardos, rubricado obreviário em tais e tais páginas com o hic bibitur,mais além: hic pitatur, o caminho para a vilarecebera estações ad hoc. O primeiro passo da viagozosa era a venda do Chico Fidalgo; o segundo umtasquinho em Tendal da Loba, onde havia tremoçosou azeitonas puchavantes como sardinha de barrica;mais longe a loja do Artur em Souto do Egas. Osmanatas chegavam a Antas da Beira de olhosluminosos, nariz rúbido, a dançar a galharda, aponto de rebuçado para serem tosquiados peloslarpões oficiais. A camioneta matou a cadênciadionisíaca destes itinerários. O Luís Telo, sinuoso bastante para estar bem comDeus e o Diabo, informava-se com Evaristo do rumo

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da governação, criticando aqui, apoiando alicautelosamente, acolá reprovando com energia.Ainda não dobrara o cabo dos quarenta e tinharonha por sete. Assim ia regendo a escola com umaperna às costas e fazendo casa, todos os anosinscrevendo na matriz, do que ganhava e agenciavapor palhasalhas, uma leira ou um chavascal. Mesmoassim era diferente do sogro que trazia calcados trêspovos com onzena e compras a enforcados. Evaristo ia estudando no mestre-escola os estragosmorais dos tempos, quando se chegou a eles oRodrigo Maninelo, que fora tudo, caixeiro de praça,polícia, agente de seguros, candongueiro, até queconseguira levantar a cabeça com o volfrâmio eagora levava vida de fidalgo na aldeia. Sabiaescrever o seu nome, mas como não há como odinheiro para dar inteligência e tornar um homemcorrentão, já inculcava ares de alguém: - O senhor Dr. há-de perdoar uma pergunta que lhevou fazer. Ouvi dizer - e já declaro a quem o ouvi,para me não tomarem por inventor de galgas - ouvidizer à Ana Pinta, caseira do paizinho, que o senhornunca mais poderá ser professor. É verdade? Seassim é, lamento que fique cortada a carreira a umdos rapazes mais esperançosos dos nossos sítios.Quer saber mais, estava esta manhã o Sapão a dizer

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no cartório. Sabe quem é o Sapão? Presidente daCâmara, administrador, flibusteiro de marca? OSapão dizia do amigo: foi-lhe bem feita! Então aprimeira vez que sobe à cátedra para substituir olente não rompe com desconchavos como este: Deusnão existe? Evaristo soltou uma gargalhada e voltando-se parao Telo, o único que julgava susceptível decompreender a sua linguagem, pronunciou: - Eu não podia exprimir-me como qualquer boca-rota: Deus existe, ou Deus não existe. Foi na provade concurso, e não na cátedra, que tive ocasião deafirmar que as provas ontológicas da existência deDeus não satisfaziam nenhum cérebro de homemcom maioridade mental. É diferente. O professor, quer compreendesse quer não,dissentiu com um leve trejeito de lábios eacrescentou: - No fundo dá as mesmas voltas. - Se Deus não existe, quem fez a Terra? Quem fez asestrelas? arremeteu o Maninelo com impetuosidade. - Sim, quem fez o mundo? secundou o professor. - Com certeza o senhor não viu quem o fez. Eutambém não vi. Seu pai também não viu, nem o paido seu pai, nem por aí fora até a raiz da sua geração,à procura da qual teríamos de entrar nas cavernas e

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ir dar com um bicho que dava urros, quando ascoisas não corriam, e guichava quando estavasatisfeito. - E porque não havemos de ir dar com um homemfeito de barro, saído das mãos de Deus como umaestátua sai das mãos de um escultor? - Sim, a explicação mais fácil não só do homem, masdo Cosmos, é essa: um atelier de estatuário e Deus,há três para quatro mil anos, a fabricar lá estascoisas todas que constituem o mundo sensível. Masnesse caso, o caminho não dava a volta pelascavernas e ele dá essa volta, e tão grande ela é queleva mais de cem mil anos a percorrer. - Está demonstrado? - Está cientificamente demonstrado. Mas ouça ainda:admitindo que não havia melhor explicação para omundo e suas infinitas formas que o barromodelado e vivificado por Deus, é legítimo reportaro problema mais longe, pois que é da mesmanatureza: de que bago saiu por sua vez o Criador?Quem o amassou? Os circunstantes ficaram um momento calados, aolhar o chão, a dar à cabeça, até que o professorencontrou um dos argumentos no velho arsenal dasabedoria:

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- Meu pai não viu quem fez o mundo, nem o pai domeu pai, por aí fora até o espigão mais remoto daárvore humana; está certo. Mas eu que vejo omundo, vejo as estrelas, vejo as minhas mãos, vejoos meus filhos que nascem, os meus pais quemorrem, sinto que a esta ordem preside um entesuperior. - Melhor diria limitando-se a afirmar: sinto umaordem de que não apreendo o mecanismo. De facto,as rodagens ocultas dessa ordem, isto é, o seuporquê e como, escapam à percepção dos nossossentidos. Escapa-nos, por agora, parece-me lógicofuturar. Mas diga-me: aqui o Bernardo - e apontavaum dos lapuzes, muito engoiado na capucha aassistir à discussão como assistia à missa emborainteligente como é, e vivido, tanto assim que jáatravessou três vezes o mar, que sabe ele, porexemplo da turbina eléctrica...? Percebe como segera a electricidade...? Como se transmite...? O que éa própria electricidade...? Não percebe, nem eu, nemo senhor o que é o fluido prodigioso. Damos contadele na luz de nossas casas, no clarão do relâmpago,na energia motriz das máquinas, e todavia escapaaos nossos sentidos o seu desencadeamento atravésdo éter ou através dos fios de cobre. É um fenómenobem concreto todavia, exercendo-se,

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independentemente de qualquer acção metafísica,no mundo real. Assim podemos dizer da máquinado universo como escreveria o padre Vieira. Nãopercebemos o seu funcionamento e, como nãopercebemos, inventámos um relojoeiro omnisciente,dotado de poderes absolutos. Mas a mim cabe-meobservar: explicou-se o relógio, mas como se explicao relojoeiro? O Luís Telo não encontrou razões assaz pertinentespara opor à dialéctica do pedreiro-livre e mudou defolha com certa dexteridade: - Desculpe o Doutor, eu estava também no cartóriodo notário quando veio a talho de foice a suaexclusão do ensino. Assistente de CiênciasHistóricas, não era? - Sim, assistente de Ciências Históricas. - Segundo o notário, o Doutor teria dito que ariqueza duns era o produto do esbulho aos outros. Éverdade? - Verdade proferida por Leão XIII. E então? - E então, formulo eu: quem trabalha tem; é umdireito natural; porque tem, rouba quem nãotrabalha e por consequência nada tem? - O caro professor labora num círculo vicioso. Ondenão há que roubar, não pode haver roubo. Esse que

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não trabalha não foi roubado. Se alguém o foi, foiquem trabalha. O Luís Telo embatucou. O poder de raciocínio quelhe deixavam a batida às lebres, o copo de verdascoe o governinho da casa, não atingia a subtileza maisou menos especiosa. Ladeou: - Sabe o que me faz pena é vê-lo andar à rasca! Naminha humilde opinião, o melhor acerto que umhomem pode tirar das suas faculdades é assentar péna vida. Olhe, não era o filho de meu pai, com osventos que sopram por toda a parte, que se metia adiscutir a existência de Deus e o direito dos pobresem face dos ricos. Evaristo não se dignou responder e já a ClaraFagulha clamava que era tempo de se porem amexer se não queriam que lhe nascesse ali o sol. Eraevidente exagero, mas levantaram de roldão. Nomeio do professor e do Maninelo, Evaristoperguntou em tom velado: - Também aqui chegou que eu estive preso...? - Chegou. Anunciaram mesmo que o iam deportarpara África. - Como vê, não deportaram. De resto, não mefizeram favor. Não cometi delito algum.

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- Não é o que diz o Sapão - proferiu o Maninelo. -Segundo ele encheu-se de fazer gato-sapato dasideias fundamentais em que assenta o Estado. Evaristo não respondeu. Na algidez da noite, depoisde um longo silêncio, o professor pôs-se a computaras possibilidades de existência do Evaristo. Opaizinho tinha a aposentação; recebia uns carros decenteio: escasso, escasso, a menos que se metesse aocanto da lareira e se deixasse vegetar. - Eu venho para conferenciar com meu pai -proferiu, martelando as palavras com certaacrimónia. - Provavelmente emigro. O que existe emcasa de meu pai é sagrado; é de minha irmã. - De sua irmã? Metade é seu, ninguém lho tira! - Tiro-me eu a mim mesmo. Eu estudei, ela nãoestudou. A minha legítima está gasta. Ladravam os cães à entrada do povo. Nas ruelas equelhos flutuavam, rebatidos pela molinha especial,o bodum dos buréis e o salitre dos estábulos e daágua choca dos quinchosos. Mas cheiravaconsoladoramente à bola fresca. Evaristo reparouque entrava na casa paterna cheio de fome. A Confraria de Nossa Senhora do Encontro, de queLeónidas Soares era presidente, caprichara aqueleano representar com relevo particular o drama daPaixão. Estava no espírito dos tempos, além do

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incentivo particular comunicado aos bons vizinhosde gandra de Rei por interpostas pessoas, daaudiência de S. R. o Prelado. De modo que, aindaMarço não era fora, já se ensaiavam as rábulas etalhavam em chita e cetineta túnicas e balandraus. Aprimeira tarefa estava facilitada, de resto, pelaexperiência adquirida nos anos transactos em que,com mais brilho ou menos brilho, nunca se deixarade levar a efeito tão edificante celebração. Os papéisestavam de antemão distribuídos segundo marcasque se haviam tornado proverbiais. Assim o bomlabrego que desempenhava o papel de Caifásdeixara de se chamar José dos Santos, conforme apia e o nome de geração, para ser conhecido urbi etorbi pelo tio Caifás; Herodes ficara para todo osempre o Carlos Lampas, embora muitas vezessobrevestisse a toga de regedor. De certa certezaninguém sabia outro nome, senão Longuinhos, aohonrado e patudo lavrador que tinha três filhascasadoiras, rijas de encontros e mais esbeltas defachada que as torres de David. E o irmão da amado senhor abade, o respeitável e gordo padreNicolau Margalho, era invariavelmente para curas efregueses, mesmo quando servia de arrieiro aopregador, Francisquinho, o Cirinéu.

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Os papéis femininos é que não conferiam a alcunharespectiva a quem os representava. O pitorescoverbal é de meter em linha de conta nestes acidentesda onomástica. Assim não fazia sentido que a JúliaBorralha, uma estrofe trocáica tão rusticamentesonora, passasse a chamar-se Madalena, e a RosaCismas, nome tão mascavado e peco, fosse crismadaem Virgem Maria, porque as tituladas interferiamno drama sob tal ajoujamento. A serra da Nave em cada refolho tem um poviléu,de forma que mal estrepitaram as matracas no adrode gandra de Rei, os devotos enguicharam a orelha.E, como moscardos alvoraçados em seus vespeiros,já sem capucha de burel - o prestimoso sago quevem muito detrás dos Cartagineses - sem tamancos,que o Abril chegara quentinho e cheio de luz,correram à Via Sacra. Dera-se a feliz circunstância de regressarem àsberças, com fama de endinheirados, dois patríciosde quem há muito não havia notícias, perdidosdesde a guerra lá para o calcanhar de Judas emMato grosso. Fama foi ela que os dois se viramobrigados a sustentar por honra da firma,esportulando-se dignamente. portanto, viva aCristina, tinham com que untar a barbela aossenhores eclesiásticos e remunerar-lhes os serviços.

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Chegou a Semana Santa e bateu na aldeia um marde gente. A Divina Providência, que sabe sempremuito bem o que faz, aprouve-se aquele ano banir oluto para dentro da igreja, onde os santinhosestavam velados por panos quaresmais. O céureluzia como uma redoma de cristal. As ervas, osnabos, as searas, de paveia mais alta que sargaço,parecia não guardarem da espera solene daquelepavoroso dia mais que uma espreguiçada languidez.Da mesma maneira os galos, para as eiras, com seusesparvadíssimos cocoricós, o que lembravam, selembravam, da bíblica Jerusalém era a estridência,esfarrapada ao vento, das charamelas à testa dacoorte deicida rompendo marcha para o gólgota.Tanta claridade, tanto oiro solar, tanta rebeldiaprimaveril era demais. O padre Margalho, sepudesse, mandava pôr crepes ao sol por cima degandra de Rei. Da estrada, a pé, a cavalo, de carro, durante todosaqueles piedosíssimos dias, fartou-se de golfar gentepara o caminho velho que liga aquela espécie deOberammergau ao século. E pelos carreiros deformigas das serras viam-se colear filas indianas dexailes pretos e véstias de saragoça com o raminho desalpor na casa do botão.

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Em Quinta-Feira Maior, no intervalo das Endoenças,compareceu, trazido até a estrada pela camioneta daEmpresa Transduriense, o pessoal da vila ou commais propriedade o rancho das Lemos. Tudo o queAntas contava de representativo e ao mesmo tempocom prosápia de juvenilidade rolou dali: as quatroLemos, iguais e diferentes como as quatro damas dobaralho; a Maria Salomé, sem a distinção da qualuma excursão era penitência; a menina docomendador com a mamã ainda frescal; ascaldeirinhas namoradeiras e dengosas; asCoutinhos; as Senas; e homens, muitos homens erapazes, funcionários públicos, advogados,estudantes e o senhor delegado, que padecia degaguez. Quando a garbosa comitiva chegou à galilécom suas gravatas pretas e mantilhas da regra,estava para começar a função. O senhor padreMargalho retardou o que basta para acomodar asdamas em banquinhos à frente do mulherio, efranquear aos cavalheiros a teia do altar-mor.Escusaram-se estes pela boca do Relvas, escrivão,com não quererem causar um desmanchointempestivo, pedindo vénia para ficar à porta-travessa. Ali, a jeito de se pirarem à francesa aqualquer altura, e nas saias do madamismo, aramboia ficava sempre ramboia.

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Luís Telo, que temia uma incursão à adega com oconcomitante tributo em presunto e chouriço,evaporou-se arteiramente. Evaristo Soaresincorporou-se no grupo afidalgado. Estavam alicondiscípulos seus e os rapazes, estudantes algunsda Universidade, eram apenas dois ou três anosmais novos do que ele. Os celebrantes atacaram o segundo acto da divinatragédia, pois que o primeiro: missa e procissão doenterro tinha tido sua representação na parte damanhã. Diante do lampadário triangular de trezevelas amarelas, os cantores vieram por turnos entoaras lamentações. A voz cava reboou, tremulou,trovejou na cadência nocturnal do canto gregoriano.Ao expirar da antífona, com o apagador o acólitoextinguia um dos lumes, ora do lado do Evangelho,ora da Epístola. E, revezando-se assim os leitores, ospsalmos se sucederam, acabando com a suamonótona cadeia de nocturnos e laudes porcondensar no templo uma atmosfera lúgubre esobre-humana. Quedou finalmente uma só luz abrilhar no mar morto da nave. Os padres bateramcom o gradual nas estantes; arrastaram os pés;pigarrearam. Queriam em seus bastidores de latasimbolizar o trovão do juízo final. As meninas riramdo escarcéu.

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Um clérigo apareceu em seguida a desnudar osaltares: era Sião que despia suas galas; a primaveraque alijava suas louçanias; as matronas quearrancavam suas jóias pela morte de Deus. Omundo ficava báratro e treva. Quando romperam da sacristia os treze lavandos,treze homens da jorna e da lavoira própria, devéspera mandados à ribeira a desencardir os cascos,córneos à força de morder a terra, foi um alíviogeral. Os olhos estavam cheios de penumbra. Osenhor arcipreste é que procedeu à ablução dosmíseros pés descalços. Mas a cena, realizada numdos altares colaterais, não mereceu grande sufrágiodos fiéis. O rancho da vila abalara já de roldão parao adro a fumar o cigarrinho. Quando o senhor padreNicolau Margalho subiu ao púlpito pregar o sermãodo Mandato, houve ainda um movimento derefluxo. Mas o exórdio da peça oratória era comotodos os exórdios, e um a um, à capucha, nãoobstante os olhares aliciadores das Lemos e dasSenas que diziam: não abandonem nesta catacumbaa pobre da carochinha! catramugiram-se todos. Apalavra saiu da boca do escrivão Relvas, e pretendetraduzir a esquivança, tão subtil como maliciosa,dum cristão velho a uma estopada de respeito, por

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mil e um modos, até a quatro patas. Vinham todos aabarrotar de fome e de incenso. - E se fôssemos comer o jantar dos abades? - propôsRoberto Atalaia, um dos estudantes. - Credo! Credo - exclamou a Lemos. - Não era fácil - advertiu Evaristo. - Os padresaboletaram-se na casa deste e daquele como ossoldados. Em minha casa, por exemplo, hospeda-seo arcipreste. - Não precisará de acólito? - perguntou Roberto. - O papel dos padres é jejuar - emitia Ponces. - Vamos nós pelas casas e toca a comer! - Credo! Credo - continuava em tom de antífona a D.Carmo. Mas o senhor Leónidas Soares apareceu à boqueirado adro com boas alvíssaras. Os cestos da merendaestavam à sua guarda e, convencido que nãolevariam a mal, juntara-lhes um pratinho quente,amanhado em casa. Dirigia estas palavras aladas, deolhos no escrivão da fazenda, que era homemimportante, no causídico mais antigo da vila quetambém o era, e no senhor delegado que o podia vira ser. Na sala de jantar do Soares, branquinha e de tectoem masseira, a par dos farnéis desatados em cimada mesa, avultavam dois cabritos de francela sobre

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reclinatório de batatas, muito tostadinhas, muitofragrantes, tépidos ainda do forno. E reboou umaaleluia, uma verdadeira aleluia. Para a rapaziada,em bom direito hereditário, o anfitrião era EvaristoSoares, filho do honnorable Leónidas. As senhoras, com este particularismo que data daavó de Mumadona, amesendaram a um lado. Era osector um. Por ousio ou concessão muito especial,este ou aquele cavalheiro abeirava-se delas ouformava mesmo à sua ilharga. Um destes foi odelegado que se postou à mão direita de MariaSalomé. Evaristo observou o manejo comensombrecimento de espírito e raiva. Debaldeprocurou tranquilizar-se dando semelhanteaproximação como ocasional. Sê-lo-ia realmente?Tinha-lhe parecido surpreender durante o sermãodo Mandato olhares cruzados entre um e outro. Massendo assim, era possível que Maria Salomé ohouvesse distinguido também a ela com uma longae lânguida mirada?! Evaristo instalou-se em frente, em seu íntimoprometendo espiá-los com disfarce edesprendimento. Pobre dele, breve deu conta que,de segundo para segundo, os seus olhos fugiammagneticamente para ela, que não viam outra coisasenão ela. disso se apercebeu imediatamente a

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própria Maria Salomé, recompensando-o com outramirada que acabou por o enlouquecer. Ébrio daquele filtro que altera os sábios e prudentese o seu tanto dum vinho maduro criado nas encostasde Contim, sentiu-se animado da supervida quegera os loucos e os demiurgos. Já o Roberto deAtalaia, depois de esburgar conscienciosamenteuma coxa de cabrito, erguia no ar o terceiro copázio: - Minhas senhoras e meus senhores, peço licençapara fazer um brinde. Bebo a Judas Iscariote, sem oqual não teria havido o drama do gólgota e nós hojenão estaríamos aqui nesta santíssima função! - Que hereje! - exclamaram as senhoras entresorrisos e fingindo-se ofendidas. O senhor delegado, que era um homem bemparecido e tinha uma bela voz de barítono, mas porcontrapeso da equitativa natureza gaguejavaabominavelmente, ergueu também o seu copo: - Asso...sso...cio ao brinde Cai... Caifás, que... que totocou a si...si. - A sineta? - disse de lá o Relvas. - A si...sinagoga que condenou Jesus! - rematou numgrande esforço. - É verdade, é verdade, foi a maldita sinagoga quemexeu os cordelinhos! - dizia o Relvas em tom deamenizar o despautério.

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O senhor delegado, não obstante a garabulha, estavacontente consigo, via-se pelo gesto de galaroz comque chamava a atenção de Maria Salomé para certosbolinhos de bacalhau. Evaristo confrangeu-se todo elançou-lhe em rosto num acento que sibilava: - Discordo. Vossência como magistrado é suspeito. Éo compadre a julgar o compadre. Proponho um votode reprovação para Caifás, não pela sua crueldade,mas pela sua estupidez. - Essa... é... boa! - É boa, sim senhor! Se Caifás queria salvar ojudaísmo, o que tinha a fazer era crucificar Judas,um essénio puro. A Jesus devia-lhe dar trinta mildinheiros e pôr-lhe guarda de honra no jardim dasOliveiras para que ninguém o molestasse. A tirada era velha, mas foi quanto bastou paraprovocar a maior celeuma. Entre o delegado eEvaristo, mormente, travou-se viva disputa acercado pretório que julgou Cristo e sua competênciajurídica. E do mesmo modo que os estropiados, seouvem berrar ao fogo, deitam fora as muletas ecorrem como gamos, o delegado, tendo palpite dumadversário visceral, deitou fora a gaguez. Atalaiaque andava no terceiro ano de Leis, salientou asirregularidades do processo. Não tinham sidoouvidas as testemunhas de defesa. Depois, qual era

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o crime de Jesus? Dizer-se filho de Deus ou antes oemissário de Deus. Não consta que fosse sujeito aexame. - E havia psiquiatras, ao tempo? - observou odelegado. - Caramba, havia-os a dar com um pau - contestouEvaristo. - Para mim é novidade. Julguei que tal ciência eraaquisição moderna. - Não senhor. A psiquiatria é velha como o mundo –tornou Evaristo. – Nas cavernas têm-se encontradofrequentemente crânios trepanados. Trepana-dospara quê? De certo à busca do incubo, do hóspedemaligno, a psicose dos neurologistas. Evaristo falava com tão pressuroso calor, que traíauma razão oculta para lá de discrepância tãoarcádica. O próprio arreganho pedante com quefalava era sintomático. Algumas meninas riram pordetrás do leque. Macaco velho, o delegado deixoude lhe prestar ouvidos, entregando-seexclusivamente a jogos de gentileza com as meninas.Espeto eu, espetas tu, passou um prato dealmôndegas diante de Evaristo: - Estão sobre o sal! - proferiu o delegado gozoso. –Reclamam ambrosia... - Ambrósia! Ambrósia! - emendou Evaristo.

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- Ambrósia é uma mulher - reivindicoutonitruantemente o delegado. - Uma mulher, a mulher do Ambrósio, e a bebidados deuses. É esdruxu-lazinha; vem do grego;ambrósia por conseguinte para os dois lados. - Sempre ouvi dizer. - Pois ouviu dizer sempre mal! Pronunciou estas palavras com tal insolência,repicando as sílabas que o delegado começou aembuchar. Das almôndegas derivaram para sanduíches devitela e de fiambre; depois para os frangãos assados.Petisqueira de truz. Os rapazes comiam como porta-machados ao fimduma batalha. Atalaia continuava com seuspiramidais paradoxos: - Vocês já repararam o perto que estamos de Cristo?Suponham o tempo um poço e que não dispomos deoutro meio de chegar ao fundo que não seja umacadeia de homens. Esses homens, em vez deagarrarem uns aos outros pelos dedos, agarram-sepelos anos, isto é, a idade dum, setenta anos que é amédia da vida humana, liga com a idade do outro,como elo com elo. Quantos homens eram precisos? - Duzentos - disse o Manuelzinho Ponces. - Cem - clamou a lemos mais nova.

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- Mil - corrigiu outro, precisamente o notáveladvogado. - Menos de trinta - disse de lá o Evaristo que numápice fizera o cálculo. - Sim, menos de trinta. Bastam vinte e oito homens,vinte e oito, e chega-se a Cristo com a mão. Estrugiram os oh, os ah de espanto. Maria Saloméolhava para Evaristo com ar de dizer: Você é umtipo curioso, mas mete-me medo! - O poço não é grande! - comentou o Manuel Ponces.- Mais longe está Tutankamon. - Não é grande, mas não se lhe vê o fundo. - Qual não vê! - chalaceou Evaristo. - Eu vejo bem oCristo, confiado que seu pai o livraria da cruz, e onosso Caifás a arrotar os lagostins do lago deTiberíade. - E, olhe lá, Cristo andava descalço? - Cristo trazia sapatos de corda. - E barrete? - Trazia turbante. - Nego - replicou Atalaia. Cristo andava descalço edescoberto. Cristo não tinha vintém e ninguém lhefiava. Os judeus já a esse tempo eram judeus. O delegado permitiu-se retrucar: - Quem lhe deu a túnica, dava-lhe os sapatos.

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- Não dava os sapatos, não senhor - replicouEvaristo. - Os sapatos no oriente eram privativosdos ricos. - Cristo andava calçado. Lá diz por sua boca opsalmista: In Idumaeam extendam calceamentummeum. - O senhor foi seminarista. Já vejo. - É verdade, não nego. Mas o senhor ficou emsacristão, confesse! O Atalaia interpôs-se: - Aqui o doutor delegado chegou a receber a primatonsura. Não admira que saiba latim. mas o amigoEvaristo, além do latinório, estudou grego. Um podeser abade, o outro arquimandrita. Aplicaram-se à trincadeira. O delegado haviaencordoado de todo. O seu antagonista mostrava-secada vez mais agressivo. Quando todos os bolos desapareceram nos abismosestomacais, afogados sob líquido de vários canjirões,o rancho bateu asas. Escurecera há muito.Requisitaram-se quantos lampiões havia na terrapara que suas excelências se alumiassem no trajectoaté a camioneta. Sentido talvez da mornidão deatitudes de Maria Salomé para consigo, o delegadochegava-se para a comendadora. Era uma senhoramuito nutrida, sozinha, bem necessitada dum braço.

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Com o escuro daquela noite de Quinta-Feira Santa, ocaminho tornava-se-lhe uma verdadeira Rua daAmargura. Evaristo foi buscar um belo varapau defaia para que Maria Salomé se apoiasse. Nocaminho, dize que dize, ela teve o ensejo de proferir: - Que mal lhe fez o Dr. Delegado? - Não me fez mal nenhum. Bole-me com os nervosapenas. Ela suspendeu o passo como se quisesse olhar paraele no fundo dos olhos e não proferiu palavra. OManuel Ponces, primo da Maria Salomé, que ouviraou adivinhava de quem falavam, exclamou: - É um tolo quadrupedante. Maria Salomé sorriu. Os ares inebriavam: alecrim eaipo nas hortas; volatilizações acres das resinas nazona florestal; pelas rampas dos caminhos orescendor tímido das sarças e do mentrasto.Amando e com esperanças de ser amado, orasilenciosos, ora tagarelas, que regalo ir cortando omar quieto da escuridão! O rapaz que andava noprimeiro ano da Faculdade de Ciências, à despedidadizia para Evaristo, a quem já tratava por tu: - Vem aos cavalinhos, homem! Vamos ter umasemana em cheio. A rapariga do trapézio é umapêssega de estalo. Olha, vem, és nosso hóspede.

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Evaristo agradeceu e ficou de estudar tão grato emagno problema. O Dr. Juiz Henrique Ponces sofreu uma grave crisede icterícia que o pôs às portas da morte. Como erahomem importante e estimável, toda a comarcaesteve suspensa à sua cabeceira de enfermo. Hora ahora batiam à porta a informar-se do estado de SuaExcelência. Hora a hora lhe vinham das maisremotas terreolas da jurisdição com as mãos cheiasde presentes, a galinha poedeira que derrota o braçoa poder de enxúndias, o frango de S. João, o juncode trutas apanhadas ao galrito, e até os queijinhosde francela inacabados de secar. Em face de tão extremoso sobressalto, o Dr. Juizacabaria por se convencer - se alimentasse algumasdúvidas - de quanto era homem ilustre,benemerente, um verdadeiro mediador plásticoentre aquelas gentinhas agrestes, cheias de boavontade. E, sendo já temente a Deus, virou paradevoto. todas as manhãs, quando acordava,bendizia ao Senhor, de alma desvanecida em suainfinita bondade. Agradecia-lhe ter-lhe concedidopassar mais as alpodras dum dia tirando-o, no gozoembora precário dos cinco sentidos, do poço sempretemeroso da noite para a santa luz solar. Sobretudo

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agradecia-lhe tê-lo feito digno, inteligente, afável,prestimoso, benquisto a tão grande área de povos. É manifesto que Evaristo Soares, naufragado navida, à espera da maré providencial que o pusesse aflutuar, apaixonado até a fibra da fibra por MariaSalomé, se associou com voto pluriforme a sufrágiotão universal. A casa de seu pai era modesta, e eleconcebeu mil maneiras engenhosas de a fazerparticipar, mediante dádivas positivas, noholocausto ao querido homem. Enquanto durou aenfermidade e durante largos meses que se estendeua convalescença, a Clara Fagulha andou numa roda-viva para cima e para baixo, levando dons ereportando bem hajas, à parte o serviço aturado deestafeta para a correspondência de amor entreEvaristo e Maria Salomé. E como a mulher era pobre e cainha, primeiro pelablandícia, depois com a mais desaforada sem-cerimónia, foi prelevando a sua maquia. - Senhora Clara, vai-me amanhã à vila levar umrecado? - Amanhã não pode ser, meu menino, amanhã nãopode ser. Estou rogada para a casa da Gertrudes.Sabe, a Gertrudes é o nosso açafate quando nãotemos pão. Não lhe posso faltar. - Vá, que não perde o seu tempo.

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Coçava a cabeça. - Está bem, vou mas tenho de lhe trazer um convitedas lojas. - Diga lá. - Um lencinho de lã para a filha que é umaespertenida. Um lenço ou uma argolinha. Talvezuma argolinha. Muito me mata o bicho do ouvidoaquela repitosca que gostava tanto de ter um anelcom uma pedra a luzir! E lá ia, além da despesa com a oferenda e doshonorários da própria recoveira, um bónus a favorda miúda, que a Fagulha, bem entendido, estavalivre de fazer seguir ao destino virtual. Outras vezes a peita encareciadesproporcionalmente com o ágio a que a Fagulha asujeitava. - Senhora Clara, vá-me à feira e compre-me lá cincoou seis frangos para levar ao senhor Dr. Juiz. - Frangos, menino, frangos é fazenda que andamuito cara. Não pense nisso! - Nesta altura do ano? Vai-se por essa aldeia abaixo,são galináceos a dar com um pau! - Quem os tem chama-lhes seus. Não vendem. Sevendem é pelos olhos da morte. Não sabe que oalqueire do milho chegou a dar cento e cinquentamil réis!

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- Sim, mas milho é que eles não abispam. Sóroubado. - Pois sim, só roubado, mas roubado ou distribuídopela mão da dona, é o mesmo. Roubam-se uns aosoutros e lá sai da arca. - Compreendo, compreendo. Agora diga lá: quantojulga vossemecê que precisa para a meia dúzia dospintos? - Não sei ao certo. Mas pintos bons, bons, que nãosejam uns esqueletos, nem ao menino ficava bemdar ridicularias, não se tiram por menos de vinte ecinco a trinta mil réis. E lá iam duzentos mil réis à viola. A Fagulha eraimaginosa em se servir desta prodigiosa mão dogato, variando as sortes. O sorridente optimismocom que Evaristo lhe observava a manobra raro sedesfranzia. Uma vez que lhe mandou comprar trêsgalinhas de canja e lhe dera quantia abonada, aFagulha voltou chorosa a dar conta da incumbência. - Ai, meu senhor, nem venho em mim, a almaderrancadinha, derranca-dinha, que nem quepassasse por cima de mim uma manada de bois.Não me torne a encomendar estes alcriquetes. - Então, bateram-lhe? - Antes batessem! olhe, sou eu que sou uma tonta,que estou velha, que já não estou em termos de me

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encarregar de coisa de ponderação. Quer saber? Láfui comprar as três galinhas ao Eido da Serra. Trêsgalinhas como três carneiros. Só queria que visse.Destas que são criadas à beira dos povos e andampelo mato como as perdizes. Lá ajusto as três pitas150 mil réis, e ainda lhe fiquei em favor que não masqueria vender nem à quinta facada e meto-as nacesta muito bem acondicionadas, uma amarra àspatas, outra às voadeiras. Pesavam, mas o que elaspesavam! No coruto da serra, tiro o carrego paradescansar. E que havia de assuceder? O raio de umapita deu um sacolejão tão forte com as asas que sesoltou e deitou a fugir. Corro atrás dela e, enquantocorro, foge-me outra. Valha-me Deus, eram umasurcas, nunca imaginei que estoirassem os atilhos.Pois estoiraram como se fossem guita podre. Aquitem, meu senhor, meteram-se para as urgueiras, nãohouve maneira de lhes pôr mais a vista em riba. Láficaram. - De modo que não levou as galinhas ao senhor Dr.Juiz?! - Levei-lhe uma. - Uma? Vossemecê levou-lhe uma galinha?! Umagalinha? Raios a partam, não teve vergonha? -exclamou fora de si.

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- Vergonha de quê, meu senhor?!. De lhe levar sóuma galinha em vez dum poleiro delas? E a senhoraquando manda à praça não manda só por uma? - É diferente. - Qual diferente?! É o mesmo. Sozinhas ou aos paresvão ao direito para a panela. gostam de ver muito?Também eu, e olho para as minhas mãos e não vejonada. Têm de se contentar. Agora, o menino não searrenegue, eu pago as pitas, que o demónioconfunda. - Não me arrenego, acho que vossemecê não deviaaparecer lá com uma só galinha. Foi uma relice. Pôs-se a choramingar. Evaristo voltou-lhe as costas. Farto estava ele de saber que a Fagulha valia poruma companhia inteira do olho vivo. As dádivasficavam-lhe por dez vezes mais do seu justo valor.Mas onde encontrar uma intermediária solerte entreele e Maria Salomé? Que era mais que mise-en-scènetodo aquele ofertório ao egrégio cidadão? E,lançando a gatunice da recoveira na conta daalcofeta, continuou a aproveitar-se dela. Tambémnão havia pé mais leve e pronto que o seu. Largavao sacho da monda, ou ajuntava o milho na eira, e,alteando a saia na cinta para comodidade damarcha, onde estivesse, abalava para a vila deespora fita. E rápida como Mercúrio, sete falinhas

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doces como a Celestina, levava a cartinha melada aMaria Salomé ou o presentinho fresco ao rico tio. E ateia amorosa, com tal artífice, lá se ia urdindo. Para toda a família Ponces era evidente que estahomenagem assídua debordava directamente dogalanteio à sobrinha. Depois da estadia em casa dosPonces, a pretexto dos cavalinhos, tornara-sefamiliar na casa. Certa manhã, cedo, com a vilasossobrada ainda em sono, depois duma noite emque não conseguira fechar os olhos, toda a sua almaem febril alvoroço a seguir ao baile em casa dasLemos, durante o qual investira para a besta deApocalipse do delegado, encontrara-se com ela nocorredor quando se propunha abalar, sem darcavaco, para a sua alcaria. Também ela nãoconseguira dormir, segundo as suas palavras, pormotivo idêntico. Para que fizera escândalo empúblico e raso, chegando a injuriar o pobre doutor,que não tinha cometido outro crime senão gostardela? eram coisas que se fizessem mandá-lo desafiarpara um duelo?! Além de ridículo erainconveniente. Não havia dúvida que o homem,segundo as aparências, andava derretido. Mas elanão tinha culpa. Não dera conta como só dançaracom ele uma rumba, uma só? A Mariquinhas Lemosdissera-lhe: “Ó Maria Salomé, tu és cruel com este

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pobre homem.” Cruel? Chegara a ser malcriada. Elea dirigir-lhe galanteios e ela de cara dura. Quando afora convidar para o maxixe, virara-lhe as costas.Sim, senhor. Agora para escândalos não estava. Nãose corrigia, era um peludo, dava a cama por umabagatela, estava sempre com aqueles olhos de Oteloem cima dela, pronto, acabava-se o namoro. Evaristo ouviu a recriminatória, de princípioimpassível, fingindo-se cínico, depois transido detodo. Quando ela falou em acabar com o namoro foicomo se lhe dessem com uma maça na cabeça.Tapou os olhos com a mão a fugir ao clarãoofuscante de tal palavra. Aquilo então era namoro?Namoro, esse pé-de-alferes corridinho, hoje eu,amanhã aquele, Secretário dos Amantes na vila,gargarejo nas cidades, chata e corriqueira poluçãosentimental!? Não era então amor, o mais santo,reservado, e futuroso dos afectos? E não sabendo tornar resposta àquelas vozes dapragmática burguesa, como se se rompesse umencanto, caminhou para a porta hirto, solene,desenganado. Mas ela compreendeu. E, agarrando-ocom um nervoso que tornava a sua mão garra,segurou-o. Olhou-o de frente, viu-o pálido, de olhosmortos, e enternecida abraçou-se a ele a beijá-lo, abeijá-lo como sua mulherzinha muito chegada. Foi a

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catástrofe celestial. Dum momento para o outrovoltava-se a sorte; era o homem mais feliz domundo; o mais poderoso; quem era capaz de semedir com ele? Desde aquela hora entrou no seu peito uma almanova. Era outro; mais inteligente; mais dedicado;susceptível dos mais loucos heroísmos. Mas, robus-tecido em confiança, aquele amor, primeiro amor,tornara-se mais exigente. Todos os oito dias, pelo menos, tinha de vê-la: elarecebia-o pela porta que dava para a travessa nosilêncio e paz da casa adormecida. Era ali o aposentodos rapazes, que andavam nos estudos, agoradeserto. Em cima, a criada, aliciada a bem daquelesamores, velava. Mas tinha que velar? Em verdade, otio convalescia na Figueira da Foz sob o tectocarinhoso dum parente muito próximo. A D.Rosinda dormia ou era crível que dormisse, dandorepouso ao corpo cansado da lida da casa, poisprimava por excelente e meticulosa dona. Ficavam sozinhos, mas não passavam de beijos e defosquinhas platónicas de bem-querer. Maria Saloméreagia com frouxidão aos seus empreendimentos,mas ele não ousava ir longe. Com o andar do tempo,sim, tudo o que se reza das semi-virgens decorriaentre eles na longa e côncava noite.

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Antes da alva, de modo a sair da casa sem serpressentido e a chegar à aldeia sem ser notado,abalava. Tinha deixado o cavalo na loja do Piscoferrador, às portas da vila. Bebedola, mas comdignidade profissional, não era preciso dizer-lhe quelhe tratasse do bicho. Evaristo, depois da galopadafrenética pelos caminhos velhos, encontrava-oamantado e fresco. Era só cavalgar e recomeçar ogalope. Certas travessias que fez da serra comescuro de cortar à faca ou neve a chapar-se-lhe nosolhos; lobos a uivar nos tesos e os caminhosinfestados pelas quadrilhas; destemido com aimagem dela e o seu revólver, eram páginascoloridas, mas voláteis, diríamos, da sua odisseia deamor. O pior acidente destas correrias, a corta-matopela serra sempre que lhe era possível, foi o potroaparecer aberto dos peitos. O bicho era generoso,cheio de ralé, e não se negava ao acicate insofrido dodono. Evaristo calou-se, escondeu uma lágrima pelogeneroso animal, e o remédio foi efectuar estassurtidas pedibus calcantibus. Com a perda do cavalo e as despesas sub-reptícias,constantes, a economia doméstica dos Soaresressentiu-se. Inês, que era uma antena emsensibilidade, chamou o irmão para o advertir deque o pai andava suspeitoso com ver o nível dos

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cereais descer tão repentinamente nas tulhas.Queixava-se ainda que, tempos àquela parte, odinheiro não coalhava na gaveta. Como as pessoasde certos teres e gastos limitados, as suas contaseram de saco. Deitava para dentro, como tirava coma mesma mão desprevenida. Assim, ignorou sempreo montante do seu capital. A primeira vez que olhoupara ele com olhos exactos, teve o desprazer deverificar que estava na rosa divina. Evaporara-se demodo imperceptível como nas canalizações as fugasde gás. Onde é? perguntaram-se dez vezes antes deatinar com a rotura. - Evaristo, o pai foi para pagar uma conta e nãoencontrou dinheiro nenhum. Foram-lhe à gaveta.Foste tu? sê franco? - e a irmã fitava-openetrantemente muito no fundo dos olhos. Evaristo teve a desfaçatez de jurar que tal não fizera,quando a verdade é que forjara uma chave falsa euns dias por outros fazia mão baixa sobre onumerário da pobre casa. - Mas tens ido à tulha? Evaristo hesitou. O seu amor dava-lhe forças paraprotestar as verdades mais incontraditas, desde quevisse alguma vantagem. Mas os olhos da mana eramtão límpidos e celestiais na carinha triste e feia quefez, em choro desfeito, a confissão dos seus

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desatinos, entre eles o furto de dois sacos de centeioà arca paterna. - Evaristo, tais acções não te ficam bem. Como é quetu, tão sério, tão verdadeiro, tão leal, te tornaste tãodiferente do que eras?! - Perdoa-me, Inês, que não faria eu para sercorrespondido? - Se essa menina tem por ti o afecto puro que dizes,seria a primeira a reprovar a tua conduta. Não osabe? Por mais dissimulado que tu sejas, essas coisastransparecem sempre. Sim, transparecem sempre. E,deixa que te diga, mal vai que tu a enganes ou seengane. Evaristo torceu as mãos, dorido ou picado pordesperta serpente: - Não o sabe, Inês, juro-te, não o sabe! - Se não o sabe, melhor. Agora, escuta Precisas dedinheiro? Tens o meu oiro. Ponho-o à tuadisposição. Para que o quero eu? Faze dele o que teparecer. - Podem dar conta!? - proferiu ele com sofreguidão. - Não dão! Mas, espera, vende-o e substitui-o porplaqué. A operação é boa de fazer com o cordão e agargantilha. No fundo dá o mesmo. Leva-o, leva-o! Agradeceu o tresloucado e, trémulo de prazer maisque de melindre, tomou conta do oiro, o pouco oiro

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de sua irmãzinha. Precisamente Maria Saloméanunciava-lhe que ia passar uma temporada nosarredores do Porto onde residia a sua irmã. QuereriaEvaristo dar-lhe o gosto de acompanhá-la!? Contavacom ele. Contava com ele por todas as razões e maisuma, ajudar-lhe a passar as quatro a cinco horas deviagem, duas de camioneta, outras tantas decomboio. Não faltasse! A camioneta partia com o crepúsculo da alba deAntas da Beira e Evaristo intanguido, pois que o seusobretudo estava bom para espantalho em milharal,passeava de cá para lá à porta do Dr. Ponces. Vultosdiscorriam escoteiros pelo Largo do Tavoladoacima, engolfavam-se no escuro das vielas. Uma ououtra voz ressoava para a estrada e, depois domarulho rápido do silêncio pantanoso da manhãálgida e nevoenta, desvanecia-se como uma pedranum tanque de água. Já o motor da camionetaarcabuzava na estrada, intermitente e sincopado,traindo a mão do mecânico a acalentar-lhe asmazelas de calhambeque para o sacrifício que lhe iaser imposto de rodar mais uma dezena de léguas. Finalmente, com certo recato, abriu-se a porta dacasa do Dr. Ponces e a brancura duma cabeçalucilou. Incerto de quem fosse, Evaristo quedou

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interdito. Mas ouviu um pscht! pscht! e acercou-se:era Maria Salomé. Ia para beijá-la, ela furtou-lhe o rosto com daraviamento à partida: - Leva-me a mala. - Não vem ninguém contigo? - Não. Maria Salomé encostou a porta de mansinho contrao batente, como se não quisesse dar sinal de si, epuseram-se mudos e discretos, ombro com ombro, asubir a rua. Os prédios dormiam em sua pequenez edescaiado desleixo. No quiosque do Tavolado, aoalto, o bico do acetilene rutilava e em redor o céuparecia estrenoitar. Mais vultos ao longe, esbatidosna noite como riscos de giz quando se passou aesponja numa loisa, vozes soltas, sem fisionomia,que lhe importavam? Pois que a não beijara, Evaristo poisou-lhe a mão napolpa do braço. Ela não se deu por achada. Aquelacarne era roliça, quente e voluptuosa. Ao seucontacto e insulados, como se viam, nas sombras dodilúculo, sem olhos à volta, Evaristo experimentouem relação a ela um sentimento virtual de posse.Sim, era mais dele do que de ninguém. Daquelejeito, senhores de si, só casados de há muito. Mascomo podia ser aquilo, deixarem-na sair de casa

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sozinha pelo o lusco-fusco da manhã, sem atenção àsua delicadeza e ao melindre de convenções, tãovigilantes na província com os passos dumasenhora? Nem uma criada ao menos a acompanhá-la? - Teu tio já voltou? - Já. - Voltou bem? - Parece que sim. Proferiu estas palavras em tom sumido e seco queparecia advertir ao mesmo tempo que não deviafazer-lhe mais perguntas. Maria Salomé levava um pequeno saco de viagemna mão, a sua sombrinha de ondeado chinês, e araposa. A mala, que adivinhava ser aquela quedesafiara a sua intervenção de galantuomo a vezque a vira na estrada jacente à beira da ama,confrangida e perdida como um naufrágio, era destafeita bastante pesada, mas Evaristo não procuroutirar daí nenhuma hipótese. - Admira que te deixassem partir assim a furto,sozinha, como quem foge! - disse ele. - Então! - Nem se levantaram, hem? - Já sabes, a tia é uma despegada.

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- Afigurou-se-me tão boa pessoa! Com aquele rosto,aquela voz de anjo, aquele amor aos filhos! OManuel não quer que haja outra santa na terra - Parece, parece! No fundo, é má como as cobras.Mas são contos largos. Deixa. - E teu tio? - Oh!... - Esse estima-te? - Sim! Aquela enfiada de monossílabos queria-lhesignificar que não fosse mais longe. Não foi, masuma nuvem, de que não sabia explicar abrusquidão, cobriu a sua alma. Estavam ao pé daagência. Lentamente o caco velho com suas listas devermelhão e as grandes letras floridas: Trancoso,Antas da Beira, Régua, desamarrava da valeta. Ospassageiros subiam de rópia. Evaristo entregou amala ao Chegadinho condutor, e tomaram umbanco, daqueles bancos de dois lugares em que sócabe uma pessoa gorda. Engancharam os dedos e,apertando-se muito um contra o outro, ficarammudos, sonâmbulos, balouçados sobre o bulício dapartida, como se os levasse a corrente dum rio. Procedia-se à arrumação da bagagem e mercadoriasno tejadilho, lance longo e demorado. Entretanto ia-se completando a lotação. Quem estava bem

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deixava-se estar. Os retardatários bramavam.Entregues à sua vida interior, feira meioamodorrada, tudo acabou por evoluir à sua beira emvaguidão e névoa. Essa meia treva quebrou-aEvaristo como se obedecesse a um imperativo: - Amas-me, Maria Salomé? Ela não respondeu, limitando-se a apertar-lhe amão. - Amas-me? - tornou ele com intimativa. Ela circum-navegou os olhos e, como um passageiroque se erguera a arrumar a tralha na rede velasse aluz com as costas, pôs-lhe os lábios nos lábios. Aquele beijo restituiu-o ao seu paraíso e ao gozo daperene felicidade. Estreitou-se ainda mais contra ela;fundiam-se suas carnes; compenetrados de amorrecíproco, eram um só. Em sua exaltação disse-lheEvaristo: - Maria Salomé, nunca mais te deixo. Nunca mais! - E como podia isso ser? - perguntou, voltando-separa ele, muito atenta. Não soube tornar resposta. Ela acrescentou então: - Bem vês, não há maneira. Percebeu que era o mesmo que dissesse: sim, euaceitava não me separar mais de ti, mas a vida? Avida, isto é, esta coisa detestanda e inabolível,comer, vestir, calçar, ter um tecto?

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Ele não lhe podia garantir nada disso. Levava ali ocolarzinho e a cadeia da irmã, que de tempos atempos palpava a certificar-se que lá estavam, quenão os perdera, que ninguém lhos roubara, com quepodia custear as despesas comuns de três, quatrodias no Porto, e pagar o seu bilhete de ida e volta.Mais do que isso, como? - Dentro de dias parto para Lisboa. Meu pai tem láamigos valiosos e um emprego há-de arranjar-se. Eeu também tenho boas relações. Que diabo, quemais não seja, serei professor. Professor particular,num colégio, a domicílio, admitamos, explicadordos meninos cábulas, filhos de papá. A gentesempre se há-de governar. Dize, tu vens ter comigo?Mando-te um telegramazinho e saltas. Ela demorou a resposta e por fim murmurou: - Depende. - Depende, porquê? Se ganhar o que basta para osdois? Casamos logo. - Está bem - disse ela com decisão. - Vou ter contigo. - E teu tio e tua tia...? - Não me importa. Evaristo ficou mergulhado num pélago devoluptuosidades a prelibar o dia faustoso em queiria buscá-la à estação do Rossio e conduzi-la para oseu quarto de estudante perdão, para o seu quarto

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de professor ou funcionário público. Via a subir aescada, risonha mas tímida, pôr no quarto um pétrémulo, enquanto os olhos palpavam tudo. E,serenada, o primeiro gesto seria alijar o chapelinhopara cima da cama de ferro, onde reluziam echeiravam a cloreto os lençóis lavados em Caneças.Não faltaria uma jarrinha com as flores que elagostava. Apertando-lhe a mão em seu transporte,volveu: - Ouve, ficas comigo no Porto três, quatro dias? Maria Salomé não respondeu. Voltava a cabeça paraalguém que surgia na estrada. Evaristomaquinalmente olhou. Só se lhe via o chapéu.Pareceu-lhe o chapéu do Dr. Ponces. Mas eraabsurdo. - Quem era? - Não era ninguém. Um homem que passou. Ele não lhe tinha largado a mão e tornou a insistir: - Ficamos no Porto três, quatro dias, Maria Salomé? - Que homem! Minha irmã espera-me em Leça. - Ora, tua irmã lá está! Ficas, ficas, não digas quenão. A camioneta rompeu. Esclarecia a oriente, mas coma luz da lanterna e dos faróis a penumbra pareciaformada de sujos e desbotados crepes. Tudo davauma impressão de lividez macerada. Encarando em

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Maria Salomé, achou-lhe olhos pisados, a tez semviço, os lábios exangues, e na face o mau maquillagea estalar e a derreter-se. Mas seria efeito da luzcrepuscular! Sim, aquele bistre de lírios roxos nãoera próprio das suas pálpebras, tão brancas eirrugadas! Fantasmagorias da luz! Estava-se nos fins de Março, e já o sol se ergue cedo,vibrante como um galo nas eiras. Os viajantes brevesacudiram a morrinha sob a tepidez da luz diurna.Evaristo tornou a olhar para Maria Salomé ereconheceu que o que se lhe afigurara efeito da luzindecisa era bem estigma do rosto. Tinha por dianteuma fisionomia de tresnoitada. Disse-lho: - Maria Salomé, passaste mal a noite? - Não preguei olho. - Tiveste alguma ralação? Hesitou em responder. Depois fitando-o edominando-se, como se por obra da vontadehouvesse estancado sob a epiderme a flux dopróprio rubor, pronunciou com decidido entono: - Nenhuma. Estive a fazer a mala, a dispor um rorde trapalhadas. Ficaram em seguida calados. Calados sesurpreenderam pela longa estrada fora, mão namão, impregnados um do outro. De resto, tendo-seescrito cartas tão longas, conhecendo-se ou julgando

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conhecer-se em todos os recessos, não tinham nadaque se dizer. A cidade chegou tão imprevistamente que Evaristonem deu conta dum cónego, seu antigo mestre, aolhar para eles, não saberia dizer se guloso seescandalizado. Seguiu-se a viagem em Caminho deFerro, e eles tão agarrados um ao outro, que naopinião de toda a gente passavam por marido emulher. Mas o homem que viaja é minucioso eduma curiosidade inquisitorial. Afir-mando-se,pressentiram ali um gordo segredo. No ar de algunslia-se mesmo certo espanto, caldeado de desdém: asbotas de Evaristo estavam cambadas e no fato, nãoobstante os cuidados de Inês, transluzia da lavagema pau de campeche uma sonsa antiguidade. Erapossível que semelhante pobretana fosse o maridodaquela rapariga fina, escovada, sem luxo, sim, masvestida com esmero e certa elegância? E à primeiraimpressão sucedia outra, acrimoniosa: de que alihavia amorios suspeitos com mais ou menosdepravamento. Evaristo surpreendeu nos olhares de certospassageiros, sobretudo os burgueses e bemapessoados, esta malagueta ardente. Estudavam-nocom mofina persistência. O melhor era não fazercaso e em seu íntimo mandá-los ao Diabo, e assim

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procedeu. Quando porém se lhe afigurou ver noslábios dum rubicundo fajardo um sorriso sacripanta,rompeu a consigne: - O cavalheiro conhece-me? Não sou dentista paraque lhe valha a pena mostrar-me os dentes! Deixaram de o observar intimidados. Elepetulantemente, encavalara uma perna sobre aoutra, e passeava pelos companheiros de cabina umolhar de desafio. Maria Salomé fechara os olhos oumirava à banda o rio que corria torvo e igual, e faziasimulacro de não reparar em ninguém.Comportava-se como se estivesse a viver a sua vida,do modo mais normal e acomodado à própriaíndole. - Campanhã! - bradou o pregoeiro. A alma de Evaristo encheu-se, desdobrou-sesimultaneamente à esperança e ao temor, como umbalão de arraial. Que ia suceder?! Em S. Bento,quando apearam da carruagem, ninguém daturbamulta deu por eles; a ninguém interessavam.Ela fez menção de se dirigir para a estação daTrindade. Evaristo reteve-a pelo braço: - Maria Salomé, não tens confiança em mim!? - Minha irmã espera-me! - gemeu. - Maria Salomé, não tens confiança!?

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Ela fitou-o, imóvel, toda a sua alma contraídanaquele olhar. E disse: - Para onde me queres levar? - Vem. Um táxi transportou-os à Batalha. Por detrás doavental de mogno o porteiro-chefe não lhe viu asbotas e comandou ao groom: - Quarto 24. Subiram no ascensor. Uma crista engomada decriadinha à espreita, a rabugice da velha hóspeda noandar de cima, e a porta que se abre para eles e logose fecha. Por movimento unânime, suas bocasjuntaram-se: - Maria Salomé, meu amor, minha mulherzinha!Meu tudo! - Não, não, à noite! Logo! - Quero! Safou-se-lhe dos braços. Abriu a janela. O casarioesplendia à luz, em socalcos declinantes para oDouro. Torres ao alto, empenas de envolta comempenas, lanços versicolores de quarteirões,incendidos ao sol, compunham um painel da maisdesvairada policromia. gaia, com a sua barragarrida, entremeada do verde dos quintais, para láda teia de aranha da ponte D. Luís, encaixilhava desudoeste esta paisagem de deslumbramento.

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- Vem ver, vem ver! Que lindo! - exclamou ela. Também Evaristo se debruçou a admirar.Admirando, passou-lhe o braço à volta do pescoço,para logo lhe estreitar a cabeça contra a sua. Emmacieza a face dela excedia o flácido do cetim. - Que pele a tua! Nem rosas! - proferiu. - Também a tua é fina! Esteve um momento calada e proferiu, olhando oDouro com uma fixidez espasmódica: - Sabes, sempre to quero dizer, minha tia pôs-mefora de casa - Pôs-te fora de casa...? Porquê, porquê? - Por nada. Ridicularias. - Mas dize, dize! - E acreditas em mim? - Ora essa! - Jura lá. - Juro por tudo, pela nossa boa sorte. - Meteu-se-lhe na cabeça que eu andava a namorar oManuel. Imagina o despautério! - Não tem pés nem cabeça! - Pois não tem. Eu gosto muito dele, lá isso gosto,mas é como irmã. O que sentia por ele era e éternura fraternal. - E ele?

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- Ele gosta de si, e já não é pouco. É bastante egoístaou, se quiseres, inocente. Pensou lá alguma vez asério em mulheres!? Tu conhece-lo bem. Evaristo permaneceu um instante calado a dissecaros tópicos novos do problema e ponderou: - Não é tão indiferente a mulheres como isso. Dumamenina de Moncorvo gosta ele, que mo confessou.Agora, concordo, nunca deve ter olhado para ti comoutros olhos que não fossem de irmão. Ela guardou silêncio, dir-se-ia que despeitada com aresposta de Evaristo, porque não levantava os olhosdo chão. Ele prosseguiu com certo calor, massorridente: - Esta tua tia Rosinda é absurda. Lunática de todo.Nunca julguei. Olha lá, e teu tio que diz aoentremez? - Meu tio não diz nada Ela domina-o. Tornaram a ficar silenciosos e ele, arrancando-se àscogitações, perguntou: - E então que contas fazer? Ela esboçou um leve sorriso sardónico e respondeu: - E o meu queridinho que diz? - Vamos lutar! - Vamos a isso. Olha, vai procurar um emprego poresse Porto. Pode ser que tenhamos sorte. Se quiseres,eu também procuro.

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- Tu...? - Porque não? Dou lições de francês... sei um tudonada de violino.... Para as meninas Dias & Dias A.Boavida é quanto basta. Também sei fazer rendas... - Vou procurar, está bem. Primeiro eu; tu depois.Mas ouve, nós nunca mais nos separamos. Homeme mulher. Está entendido? - Vederemo. Arranja um emprego. Enlaçou-a pela cinta e procurou-lhe os lábios. MariaSalomé debateu-se e de boca esmagada pela bocadesejosa arquejava. - Não, não! Deixa-me. Logo; à noite! Vai procurar... - Agora! Para me dares alma, há-de ser agora! Nãotens confiança em mim, Maria Salomé!? Não tens!? Como Maria Salomé persistisse na resistência,resistência para ele inesperada, deixou-a: - Já vejo, que não tens confiança em mim! A sua voz tão lastimosa que desta vez foi ela que lhepassou os braços em torno do pescoço. Roçou a carapela dele, depois os lábios pelos dele, e soprou-lheao ouvido, brando, brando que mais ninguémouvisse, nem ela própria: - Sim, tudo o que tu quiseres. Tudo. Mas se nãoarranjarmos emprego, vamo-nos deitar ambos aoDouro. Valeu? A resposta do moço foi fogosamente imediata:

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- Valeu. Falhámos, vamo-nos embora! Desceu em Fortes do Varosa, distante de gandra deRei duas a duas léguas e meia de excomungadoscaminhos, por não ter dinheiro para ir mais longe nacamioneta. Mesmo até ali, foi preciso que umhomenzinho, conhecido de vista, lhe emprestassevinte e cinco tostões ante a relutância do condutor,que logo por azar era estranho, em fiar aquelaninharia. - Quando me encontrar, o senhor me reembolsará -dissera o viajante magnânimo com ar pomposo. - Seeu morrer antes disso, dê-os ao primeiro miserável. - Se a condição é essa, esteja certo que não morre.Nem à mão de Deus Padre! Mas, descanse, a suavontade será cumprida. Tanto mais - acrescentoucom bonomia e um sorriso fugaz nos lábios - quepara mandar rezar uma missa por alma do senhornão chega. Verdade, posso pôr o resto do meu bolso. - Deus o livre! - exclamou o sujeito semcompreender, mas reinando. - Missas agora custamos olhos da cara. Bastava encomendar-me nas suasdevoções. - Como queira. A primeira ideia também não eramá: dá-los. Davam-se por exemplo aqui ao senhorcondutor

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Estava a entardecer, mas como os dias em Março jásão compridos, contava botar a casa antes do sol-posto. Não obstante, a título de prudência, começoua estugar o passo, lembrado da máxima do pai: otempo só falta para o fim. Não fazia calor nem frio efoi-lhe agradável ver-se a trepar a encosta quelevava ao planalto a sós com os seus pensamentos.Aqueles dez dias no Porto marcariam na suaexistência de modo indelével para todo o sempre.Uma pessoa acabara nele e começara outra. Podiadizer-se que transpusera o vau da adolescência. Dalipara o futuro era tudo responsabilidade e obrigação. A transfiguração operara-se e até certo ponto sentia-se orgulhoso. Orgulhoso com tristura de permeio.Era um homem. Com Maria Salomé provara o maissaboroso da vida, aquilo que preleva ao próprioindivíduo, pois que estão nele empenhados móbeiseternos. Refartara-se de amor, pleno amor. A suaboca depois daqueles dias de coabitação rescendiaainda à boca dela, um gostinho muito particular demalápio sobre o verde, do mesmo modo que nosmembros lhe exsudavam ainda os poros da amada. Uma semana e tal de noivado à tripa-forra, comodizia o Maninelo quando se casou com a vacoila damulher, apenas interrompido por um passeio aoluar pela avenida da Foz. Maria Salomé revolvia-se

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como a salamandra no fogo e ele, que apenas tinhaprelibado o amor mercantil muito de passagem,revelara-se um hércules faminto e infatigável.Procurar emprego? Quem caía daí abaixo? Quemteria coragem de quebrar tão celestiais cadeias? Sóao fim da semana, quando lhe apresentaram a conta,e teve de vender o oiro da irmã, depois de desistirde empenhá-lo em face da quantia irrisória que lheofereciam, vendo-se obrigado a esportular aindaMaria Salomé, é que rompeu o encanto. Nãoaludiram sequer ao projecto de se afogarem noDouro. Depois do banquete dos sentidos, nãosentiam apetite para acto algum de abnegação oufirmeza. Apartaram-se com juras sinceras de eternoamor, mas não protestos de morte macaca. MariaSalomé iria passar as próximas semanas com amana, à data professora duma família rica, ali paraos lados de Matosinhos. Confiava que a troco dequalquer serviço - preleccinação, roupeira, dama decompanhia, em último caso criada de dentro lhedessem gasalhado. Ele ia partir em continente paraLisboa, a grande e adorada terra, a única terra compossibilidades em Portugal, onde sempre havialugar para mais um. Mercê dos bons ofícios dosamigos, das relações do pai altamente cotadas, maldele se não desanichasse no magistério ou na

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burocracia o empregozinho público ou particularque lhe permitisse reatar numa trapeira ou numavila dos arredores a sua lua de mel! Tal foi o ajuste selado de parte a parte com algumaslágrimas e recréscimos de amor. Conduziu-a àestação da Trindade, um barracão asqueroso de ripae cimento, talhado dir-se-ia a preceito paratrasbordar náufragos domar largo para um destinode misérias. Viu-a partir com dor e alívio. Ficava nasruas do Porto sem um vintém. Revistou as algibeirase só encontrou o relógio, uma pobre e lastimávelcebola de aço, puída até a brancura nuns planos,desoxidada noutros, ordinária mas exacta. Sentou-seno primeiro banco público e não quis pensar emnada de definido. gente ia, gente vinha, e o seuespírito derramou-se em todas as direcções comoum açude cheio. Depois, pouco a pouco, começou-lhe a tomar certas veredas, breves e incontínuas,porém mais teimosas umas que as outras. Àqueleepisódio de amor, gostoso e glorificado episódio,mareavam importunas sombras. É verdade quenesta espécie de representações há sempre a suaparte de mistério. Nada experiente das relaçõescarnais, que podia ele assegurar quanto a tal e talcircunstâncias?! Tudo quanto sabia da matéria eralivresco. Livreco ou bebido na tradição, que vale o

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mesmo. O seu comércio com a Vénus mercenária,raro como fora, não lhe deixara dados suficientespara constituir uma judicatura. Portanto em seuespírito tudo eram hipóteses, palpites, espectros,que tentava afugentar. Afigurava-se-lhe, pensando bem, que Maria Salométeatralizara uma iniciação ao amor que decorreraaliás em bastidores de brancura. Essa iniciaçãocincara nos testes costumados. Mas podia jurá-lo?Em qualquer dos casos a suspeita, que se esforçavapor varrer como aleivosa, roía-lhe no coração, ouvia-a ele mesmo roer com aquele incómodo masticatóriodo caruncho triturando uma tábua mole, cortada naseiva da má lua. De princípio é certo que nãopassava duma punção ligeira, ligeira, emboramolesta. Depois tomava forma. Bem se afadigava eleem desviar o curso dos pensamentos. À primeiraesquina de qualquer divagação voltava elaopiniática, insidiosa, mais roaz do que nunca. Porfim a sua alma aceitou o debate. Debate em campoaberto. Se ela te dissesse que fora vítima dummomento de cegueira ou duma cilada, se toconfessasse franca e lealmente, absolvias? -Absolvia, pois! - Com certeza? Com certeza;preconceitos são preconceitos. Sendo assim, porqueestás a marrar nesse preconceito? É uma tara

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atávica. Que lhe havemos de fazer! Não é tantoatávica como isso. Pode representar umapremonição a bem da higiene moral, da decência, dobem estar doméstico e da própria saúde física. Emmeu foro positivo não me julgaria no direito deresponsabilizá-la por um acto que não deve vincarde modo definitivo, pelo menos, na vida dasrelações. De resto, há sempre que chamar à barra ainterposta pessoa. Suponhamos que o partenairefora o delegado?! Que horror! Não perdoava. Masesse não foi. Se fosse, porque havia de porfiar? EManuel, o Manuel Ponces, o priminho, o primeirofilho da D. Rosinda? Ainda menos; é meu amigo eseria incapaz de cometer um abuso de confiança.Sabe-se lá! Não é provável. E o confessor que aconfessa? É pouco religiosa. O médico, que a trata?O médico de família é um inofensivo velhote.Procura sempre! Tudo isso são cocas; nãoesqueçamos que há naturezas femininas comdeterminadas conformações. Sim, debaixo da rosado sol são possíveis todas as formas, todas as ilusõese ilusões das ilusões. Do problema da pureza, posto tão objectivamente,transitou para o problema económico. Por mais querevirasse os bolsos só encontrava cotão. Estava acento e cinquenta quilómetros, pouco mais ou

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menos, de gandra de Rei. Se lhe desse na cabeçapara fazer a viagem à pata, mesmo com o fôlegotodo arriscava-se a cair estalado para umaribanceira. Pediria uma côdea de pão?! A sorrir, quenão com adesão íntima, pensou que seria agora aoportunidade de se deitar ao Douro. Ergueu-se do banco. Quem passava, detinha-se acerta distância a olhar para ele. No Porto não sepode ser diferente, tanto pela cara como pelas botas.Se se é, vem a suspeição. O Porto quer saber. Antes,o Porto precisa de saber. Meteu-se ao acaso pela primeira viela. Ospensamentos com a motilidade cambiam de tonus senão de rumo. Com efeito lembrou-se dumtamanqueiro, filhote da mesma parvónia,estabelecido na cidade. Ao primeiro guardaperguntou em que rua exerciam tais artífices seumester. E, uma vez lá, foi percorrendo loja a loja.Interpelou uns, inquiriu outros, e ao cabo de duashoras de aturada e esperta pesquisa teve a sorte dedesencantar o homem providencial. Ele emprestou-lhe a quantia reputada suficiente para regressar àsberças. Não contou com a fome, a fome dos vinte anos e daenergia desfalcada prodigamente, que rompeu atanazá-lo. E ali estava ele, trepa que trepa a escarpa

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íngreme de Fontes do Varosa, com mil cães aderriçar-lhe nas entranhas. O que valia era aamenidade do caminho. Mergulhado no côncavo, osol apenas banha o poviléu das onze horas emdiante, quando no festo do monte, vestido decastanheiros e árvores frondosas, vibra como umafanfarra. Embalado pelos seus pensamentos que à força decontrários, doidos, patuscos, mortificantes, valiamcomo um arraial e tinham o condão de lheentorpecer o apetite, graças à umbragem, atingiu oplanalto sem grande custo. Reparou apenas que osseus frágeis sapatos de calfe amarelo, que tãopéssima figura haviam feito na Avenida dosAliados, estavam descosidos de todo e os dedos dospés espreitavam a largas frestas franciscanas.Contando que o deixassem chegar a gandra de Rei. Até Penha da Moira, o trajecto fê-lo com relativafacilidade. Aqui e além em nesgas de terra,regaçadas entre dois oiteirinhos por um murogrosseiro de alvenaria, ranchos de mulheresmondavam o centeal. Que uberdade de solo era estaque para a gramínea mais rude requeria duas sachase uma monda? Os rebanhos desciam as vertentes jáde face para os estábulos, todo o monte palpitandode seiva anteprimaveril. Nos cômoros as giestas

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toucavam-se de gromos, donde ia rebentar umabatalha de flores. E já a urze com seus incipientes decorimbos de rubis, o sargaço laminado de oiro, otojo com a sua explêndida joalharia sarapitavam overde frouxel do mato. Foi-se-lhe pôr o Sol para lá da orca grande. Dali emfora o caminho era a descer, mas fragoso. Passou asbarrocas com o último suspiro de luz, quando ossapatos já não aguentavam mais. Teve que tirá-los eprosseguir em meias. Com eles debaixo do braço,para não entrar em casa como um ladrão, foiandando, tacteando o terreno e, pela comodidadecom que marchou o primeiro quarto de hora, quasese felicitava do expediente adoptado. Mas com oescuro, desatou a dar topadas; as arestas das pedraseram agudas e cravavam-se-lhe nos pés; onde nãohavia picos, eram as areias que o feriam, tornando-lhe insuportável cada passo que dava. Voltou acalçar-se, mas o mal estava feito. Era como semarchasse sobre pontas de punhais. Os pésescapuliam-se-lhe indecorosamente pelas fendashiantes do gaspeado. Quando se viu no termo degandra de Rei, onde tantas vezes chegara na coladum bando de perdizes, repoisou. Palpou os pés.Tinha-os ensanguentados. E agora?

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Toda a marcha para a felicidade é um martírio.Pagava os dias de amor, de beatitude sem limitesque gozara no Porto, tão grande que contrapesavacom o resto do universo. Era a lei. Agora não restavaoutro remédio senão meter a cara à marétempestuosa. Rasgou o lenço e com as tiras enfaixou os sapatosque deixavam que os pés se escapulissem para adireita e para a esquerda como presos que tentassema fuga. Cortou um brejoeiro nos cavalhiços do corgoe recomeçou a passo trémulo de inválido a jornadapavorosa. Não se lembrou de medos, nem tão-poucode lobos que por aquelas paragens costumavamandar sobejos. Para sentir medo é forçoso ter o corposão e a alma livre. Ambos esses bens lheminguavam. Quando chegou à aldeia, era quase meia-noite. Umaimponderável serenidade envolvia a casa e oscampos em redondo. A sua gente dormia, e receou-se de bater. Porque se sentisse réprobo? Transido de alma como de corpo, mal sustentadopelo ressaibo de felicidade que lhe porejava aindados lábios, dirigiu-se à estrebaria. A porta estavaapenas acravelhada e contrastes da vida! deitou-sena manjadoira do cavalo, devoluta depois quemorrera o baio.

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Vieram-lhe dizer que a senhora D. Rosinda acabavade bater à porta da Clara Fagulha, sua antiga criada,e ficou fora de si. Como podia ser?! Num ápiceenvergou o melhor fato e disse à irmã, suaconfidente: - Imagina! Virá por causa da Maria Salomé?! Vousabê-lo. Entretanto, Inês, peço-te o obséquio de tefazeres encontrada e, para o caso em que ela venhapor bem, convida-a para nossa casa. - E a nossa mãe? - Nossa mãe não pode levar a mal que se ofereçahospitalidade à mulher do Dr. Ponces. O papá nãofoi grande amigo dele? Lançou estas palavras, já de costas voltadas, a andarpara a casa da Fagulha, que era no outro extremo dopovo. De facto, na casinha térrea, lá estava aquelasenhora, tão alva, tão grande dama, em despeito dasua desafectada singeleza, que a casa branqueavacomo numa assunção! D. Rosinda acolheu-o comum alvoroço prazenteiro que interpretou comonatural desafogo de europeu perdido na cafraria.Contou que, indo de viagem para Coimbra nacamioneta da carreira, a altura de gandra de Rei sesentira muito mal. Provavelmente um princípio deinsolação. Por isso resolvera apear e recorrer à Claraque lhe desse guarida até ao dia seguinte, quando

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tornasse a passar a camioneta. Mas com a fresquidãodaquelas paredes e um copo de água já se sentiaboa. E abria-se toda num sorriso tão claro e desnevadoque voltou a parecer a Evaristo que se representavanaquela casa lôbrega o milagre das rosas, grandestoiceiras de rosas brancas brotarem ali por obra dagraça. D. Rosinda era mãe de três filhos, um dosquais já homem, o Manuel, mas ninguém o ia dizer.Com a blusa tête de nègre, os cabelos quase loirostufados sobre o pescoço, uma saia cor de café emplissados, sapatos cor de âmbar, inculcava-se antescomo uma rapariga solteira. Era o que se chamauma mulher bonita apesar das sardas que apolvilhavam literalmente da raiz dos cabelos aodecote. Mas o que tinha de mais belo era a boca,uma boca que, não sendo pequena, graças ao recortevoluptuoso e às duas fieiras de dentes, muitoregulares e alvos, dava gosto vê-la. O sorriso emconformidade era meigo, enliçador, destes sorrisosque se infiltram no sangue e são tudo, flor, melodia,perfume, veludo, manjar divino. A par disso, tinhauns olhos que parece mudavam de cor, do azul-escuro de mar profundo transvertendo, segundo aluz e segundo os sentimentos que a animavam, atéao verde translúcido.

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Sempre tratara Evaristo, seu hóspede durante asemana de cavalinhos, com franqueza maternal, ouassim ele aquilatava. De resto, não mantinha outraatitude com os colegas e condiscípulos do filho.Além de bonita, primava por senhora distinta,verdadeiramente donosa, nada tola, nada pires, esegundo a voz corrente tão boa esposa como mãeadorável. Mais duma vez Evaristo acordara de suascogitações a invejar a sorte do Dr. Juiz. Ali estava oespelho dos felizardos, protótipo de regalões! Ah, seMaria Salomé fosse cortada do lenho de D. Rosinda! Depois das confidências que recebera no Porto,reticentes porém e desconexas, notara-o depois de aspesar em balança de ourives, D. Rosinda revestianovos aspectos morais no seu juízo. Que fora umagrande namoradeira e era histérica; que erarancorosa e soberba. Meia verdade ou redondamentira, deviam esses defeitos representar o excessodas suas virtudes. Mas, e Evaristo não se explicavabem, bastava tê-la ali para cair por terra o edifíciopejorativo e ficar apenas aquele sorriso imaculadode alma branda, a que dava realce o cravo PríncipeNegro que trazia no corpete. Evaristo devia-lhe homenagem, e fácil foi persuadi-la a trocar o tugúrio da Fagulha, com as galinhasdentro de casa e os porcos a esfossar nos estrumes

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da quintã, pela sua casa, choupana de aldeia, masonde o pai, homem viajado devido aosdeslocamentos do ofício, tinha juntado dois tarecosdecentes. Felizmente Inês já vinha a caminho com oseu aventalinho de trazer na quinta, em rosto o seudoce e liberal sorriso. Era meia manhã e D. Rosinda soube insinuar-se noânimo de D. Alexandra que passava por arisca. Osenhor Soares adiava para a quinta a esladroar noscordões do bacelo, e logo despediu a saudar aesposa do Sr. Dr. Juiz, nobre e velho amigo. Játinham almoçado, e D. Rosinda declinou servir-sedo pão de ló e do licor com que queriam obrigá-la asatisfazer um apetite que não sentia, a título de queo jantar ainda estava demorado. Inês dera uma volta de mão no quarto de hóspedes,muito espelhadio da cera, modesto mas acolhedorcom a sua cómoda de castanho-claro, o lavatório deválvula, toalha turca pendente da barrazinha devidro aparafusada ao muro, e cama de ferro comlençóis muito brancos e uma pele de onça aos pés.Na parede, nada mais que La pensée de Rodin, ideiade Evaristo. A senhora D. Rosinda perdoasse, mas uma noitepassadoira era. Ela, pelo contrário, não calava a suasatisfação e reconhecimento. Tudo observava com

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êxtase. O quarto era fresco, fresquinho, a darvontade de dormir a sesta até ao fim do Verão. - Muito bonito! A janela para onde dá?! Ah, para ahorta. E que linda figueira além?! Lá longe tambémpertence? Lá longe era o pinhal, entressachado de mimosas,com suas sombras e boscagens. E como Evaristo lhedissesse que sim, também fazia parte da quintarola,exclamou: - E eu que gosto tanto da sombra do arvoredo! Há-de-me ir mostrar. Ficou sozinha. Do seu quarto, que era contíguo,Evaristo continuava a vê-la, sem querer, através doruído de gestos e passos. Lá andava dum lado parao outro, um pouco incerta; dir-se-ia que estudava oaposento e ainda o exterior da propriedade. Depoisabria a mala. Ao fim duma pequena pausa a águacaía de jorro na bacia. Lavava-se com um rumordiscreto às mãos ambas. Sucedia um grande silêncio,o seu tanto oco: talvez a pintura, um breve fumo deantimónio nos lábios que tinham púrpura própria.Em seguida, passos largos. Passos miudinhos, ecerta manobra íntima, muito subtil, que não dessemconta, mas que ele adivinhou com certoestremecimento voluptuoso. Passos mais afoitos,

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mais repetidos, que denotavam estar no fim datoilette. De facto a porta abriu-se e ela saiu para a sala deespera, mais branca ainda e dominiosa. Trocara ablusa mortiça por uma blusa bordada, alegre, quelhe dava cor e a tornava jovem de todo. Evaristoveio ter com ela e ficou deslumbrado. D. Rosindasorria-lhe ternamente, bem compreendendo ele quelhe dizia: “Acha-me bonita? O que não sou é velha. De resto,sou uma mulher como as mais.” Ah, porque estava ele com a boca tão seca eentabuada!? Tão naturalmente como estivesse em sua casa, D.Rosinda pegou das revistas que havia em cima dumcontador e pôs-se a folheá-las. Depois, foiborboleteando de assunto em assunto com espírito esainete. Subitamente expressou: - Disse-me a Clara que anda em preparativos deabalada. Para Lisboa, não é? - Sim, tenho a viagem mais ou menos aprazada. - Havemos de falar... - proferiu apenas, como se commergulhar olhos na revista interrompesse o cursodos pensamentos. No quintal havia uma frescura deliciosa. A águadescia do morro, que se alcandorava do lado norte

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da habitação, ora chocalhando, ora cantando atravésdos muitos e vários caleiros. Daquele lado a latadacobria grande trato do pátio e com as folhas aindalimitadas e os pâmpanos tenros o sol construía noterreiro sua tapeçaria japonesa. Uma escada, inscritano talude, conduzia ao primeiro cômoro, de cujaplatibanda uma segunda levava à matapropriamente dita. Os haveres dos Soaresresumiam-se, salvo uns lameiros de pastagem paraos bois, àquela herdade, tão mimosa a parte debaixo, como cascalho e salão a parte de cima. O senhor Soares tinha de ir vigiar os jornaleiros quetrazia a saibrar uma courela para o Corgo e pediadesculpa em não fazer companhia à esposa do seunobre e velho amigo. Inês andava dentro e fora, nasvoltas da casa, e D. Alexandra, essa sem papas nalíngua, disse que estava a fazer o jantar, pois nãotinham cozinheira. Ficaram sós. - Quer-me ir mostrar a mata? - disse ela. Subiram a meia dúzia de degraus do cômoro e, poruma vereda, colorida com as flores das fruteiras,iriadas nestas, purpúreas naquelas, alcançaram opicoto. Diante deles o marantéu zarpou com o seupluvial de oiro rutilante, mas as rolas, porqueestivessem no coruto alto dos pinheiros, não

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cessaram de cantar. Para o lado das moitas os gaiospalreiros saraivavam sua fralda de chita desbotada. - Então, diga-me cá, quando tenciona ir para Lisboa? - Não sei ainda ao certo, talvez antes do fim do mês. - Até ao fim do mês há uma semana e... cinco... não,quatro dias. Tem ainda tempo para reconsiderar. D. Rosinda caminhava muito chegada a ele,primeiro porque a vereda não permitia grandeespaçamento, depois porque punha nisso umaternura que supunha filha da sua dilecção maternal. - Eu nos seus casos não ia... - Não ia, ah! Mas eu tenho algum dia de começarcarreira. - Olhe para mim: vai para começar carreira ou pelosbonitos olhos de alguém? Seja franco... As pupilas dela não exprimiam maldade nenhuma,embora as suas tintas ondeassem do glauco semmatiz para o azul do céu vespertino, e Evaristobaixou a cabeça: - Não lhe nego, vou por sua sobrinha. Sim, emprimeiro lugar, vou por sua sobrinha; depois, pormim; não quero ser pesado a meus pais; só a ideiade que posso ser considerado parasita, nem durmo. - Faz bem, mas ouça, e ouça quem lhe não quer mal.Vá por si... por si só... por mais ninguém. - Eu já sabia que não gosta de Maria Salomé.

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- Não gosto, nem deixo de gostar. Essa rapariga faz-me pena e mais nada. É uma infeliz. Proferiu aquelas terríveis e enigmáticas palavras deafogadilho, com certo movimento de brusquidão, ea esse movimento correspondia o esfumadíssimotom de carmim que se lhe espalhava pelo rosto.Evaristo permaneceu um instante calado, a ruminarno que ouvia e emergindo longe, como borbotão dodiscurso que se ia elaborando no cérebro,murmurou: - É infeliz por ser pobre? É isso que quer dizer. - Não, Evaristo, não é isso. O Evaristo é uma criançae tem os olhos fechados às ruindades do mundo. AMaria Salomé não tem nada de seu, é certo, e porisso seria de lamentar, mas não mereceria o dó... odó que se tem pelas infelizes. Estavam dentro da mata onde ninguém os via e eles,através da grade múltipla dos troncos dos pinheiros,viam desdobrar-se a terra de alqueive e de vinha,deserta, batida pelo sol que desembainhava os hastisdo milho e fazia reluzir a farfalha verde do batatal. - Sentemo-nos aqui - disse ela. Sentou-se num corte dum velho carvalho, redondocomo um mocho, e fez-lhe sinal. Embora largo, nãocomportava assento para dois, pelo que ele persistiuem ficar de pé. Mas ela chamou-o para junto de si e,

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tão rente que se tocavam, Evaristo sentiu o hálitodela em sua boca, cálido, levemente adocicado,excitante. Reparava agora que se evolava dela umaroma muito fino, quase imperceptível, que nãosabia definir, talvez entre cravo e baunilha, mas queera sumamente capitoso. Ela pôs-lhe a mão no joelho e, com um sorriso leve,muito levemente sardónico, fitando-o com certaprovocação no fundo dos olhos, disse: - O Evaristo é um homem? - Penso que sim. - Posso-lhe falar como a um homem? - Ora essa! - exclamou titubeando, balouçado entreos pensamentos mais opostos: que quer ela? - Nuncame faltou o ânimo. - Então ouça o meu menino. A Maria Salomé não édigna de si. Evaristo fez-se muito pálido e todo aquele infernode dúvidas, que pela primeira vez se lhe formularanitidamente ao espírito no banco da Avenida dosAliados, entrou de chofre a esclarecer o lance. Egaguejou, adivinhando por uma fulguração doinstinto o que ia desabar sobre ele: - Faça favor de dizer, minha senhora. - Mas é homem, veja lá? - Não tenha receio - proferiu resfolgando.

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Ela então contou com longos rodeios e velaturasuma história tremebunda. Arteiramente, é possível,mas com tão acentuada firmeza que se via não haverali romanceação nem fábula. À medida que iafalando, um sorriso triste, triste como a luz dumacandeia moribunda, banhava, devia banhar o rostode Evaristo na vontade de protestar sua rijeza defibra para a adversidade. Ao mesmo tempo a mãodela apertava a sua, tão doce, docemente, comoseria o reconforto que pode comunicar a mãotríplice de mãe, de amante, e de irmãzinha. - É horrível! - exclamou ele. - A noite que se foi embora, fui encontrá-la nosbraços do bandalho!... Os olhos dela agora chispavam. As pupilas eram doazul que arde, o azul que se vê à volta das labaredase é como uma damasquinação do fogo. Depois fitou-o. E, dando-se conta do mal que fizera, passou-lhe obraço à roda do pescoço: - Não me fica a odiar, não? Por cima dele, como aparição dos belos sonhos damadrugada ela embebia os olhos tristes e meigosnos olhos dele. Evaristo viu-se anãozinho de todo noaço quente das suas pupilas. E o próprio sentimentoda desventura provocou a casquilharia das

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lágrimas. Desatou a chorar, a chorar em fonte,depois com fundos e convulsivos arquejos. Rosinda tirou o lencinho da cinta e limpou-lhe osolhos. Quando lhos viu enxutos, beijou-lhos. Elesorria. Era tão agradável ser tratado como criança!Mas ela encostava a face à dele. Fugitivamentepoisou-lhe um beijo no canto do lábio. Evaristo num repente visionou as cenas lúbricas daamante com o outro, depois consigo no hotel daBatalha, e ficou alumbrado. Notou na pupila dela aave de azul e chama, a ave do paraíso, divinamentesensual, a requerê-lo. Ao tentame roçou os lábiospela face cetinosa, e viu que as pálpebras lhedesciam cheias de penumbra. Num plano remoto prepassaram Maria Salomé, oDr. Ponces, Manuel-zinho... todos os estimulantes.Como luz que mal se acende se apaga, pensou:vingativa ou Madame Colibri?! Salamaleque Dos nove aos onze anos, o José Pais foi moço decego. Sua mãe, que estava carregada de filhos e nãotinha um palmo de terra onde cair morta, dera-o poruma malga de feijões para os dois manos da Aldeiade Nacomba, que andavam no peditório. Aprendeua moina e disse. Eram uma gente cainha de todo,

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dobrados sobre a própria miséria, tão futres que,tantos dias que passou com eles, nem uma carapuçalhe compraram. Gémeos e feridos desde nascença de gota serena,iam de povo em povo cantando e tocando, elerabeca, ela violão. Armavam nos largos e à boqueirados pátios a zanguizarra, e recolhendo o cincoreizinhos aqui, o coirato acolá, uma côdea nestaporta, duas cebolas naquela, lá iam acalentando osdias. O José Pais carregava com o bornal e guiava-ospelos tortuosos caminhos de Cristo, tendo cuidadoque não tropeçassem nas pedras ou metessem os pésnos charcos. Marchavam em bicha como se fossemengatados: o moço na dianteira, descalço e roto; ocego, de tabardo de burel, a mão no ombro do moço;a cega, de vasquinha escarlata, a mão no ombro doirmão e instrumento para as costas, tal o escudodum peltasta. No estio esta vida airada não era a pior de todas.Sempre havia que imolar, pomos e cachos emsuspensão dos taludes, o fundo das caçoilas a varrerpelas malhadas e os restos dos farnéis pelasromarias. O José Pais, sacudido para fora do regaçomaterno superpovoado, como sucede nos ninhos decertas aves quando os filhos são muitos, tirava oventre de misérias. A melhor bocada, de resto, ia ao

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direito para o fole do gato, que ali era ele, olazarilho, tão ágil de garra como ladino de olho. - Que deram em casa da senhora Micas brasileira?perguntava o cego. - Duas dentadas de broa tão rijas que só o Diabo aspode tragar. - Deixa ver, menino. O José Pais afundia a mão no taleigo e, como láhouvesse de tudo, apartando o pão fresco e folhado,arrancava o pedaço mais bolorento e empedernido. - Já não há caridade! gemia o velho. Rodando para outra porta, não cessava de rosnar: Pernoitavam a talhe de mão, umas vezes noscabanais quentes dos poviléus, outras vezes,surpreendidos pelo temporal, nas cortes da serra demistura com o gado. Altas horas, o José Pais erguia-se do grabato, muito sorrateiro, e a rastos como agiboia chegava-se às cabras. Assim que palpava umúbero bem repleto, punha-lhe os beiços e sugava,sugava até à última gota. Depois desse, outro.Voltava à cama refarto, a cheirar-se ele próprio amenino de mama, pesadão, para mergulhar numasoneira de que só acordava aos safanões. Os cegos sabiam trovas de todo o género, umas quefaziam rir, outras chorar. Cantavam o rimance dosapateiro que fora entregar a obra aos fregueses e à

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volta apanhara a mulher a cear com um frade, e asbocas escancaravam-se até às orelhas e as risadascaíam das queixadas, estrepitosas como espadanasem cima do linho. Mas lá vinha a história do filho aquem a amiga pediu o coração da mãe, se queriadormir com ela, e os olhos vidravam-se de lágrimas. O José Pais gostava pouco daquelas cantorias. A vozdos dois cegos, como se fizesse coro com as órbitasrevolcando-se brancas, vazias e absurdas nascapelas ramelosas, soava a outro mundo. Parecia-lheouvir o acompanhamento dos defuntos no traço daporta dos cemitérios. Tinha também a plangênciados ralos que cantam de noite debaixo da terra.Estava morto por despegar. Um dia, o cego apanhou-o enliçado no sono epassou-lhe revista aos bolsos. No fundo da algibeiradas calças, dentro dum trapo, encontrou-lhe otesoiro, dinheiro escamoteado moeda a moeda,desde o primeiro dia. Enquanto o sujeitava contra osolo com a mão esquerda, com a direita zurziu,zurziu sem dó nem piedade. A cega, em vez de lhevaler, açulava o algoz: - Mata, matame esse ladrão! No mesmo dia abalou. Estava farto da bordoada,daquela macarena azarenta, dos padre-nossos doscegos entremeados de pragas: oxalá que vos caia a

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casa em cima e vos esborrache a todos! Que aindahoje comam lume no inferno! da vida de cão, umasvezes molhado até o umbigo, outras a estorricar coma soalheira. Pois que a mãe o não queria em casatodas as tetas duma porca não chegavam para osirmãos, cada um de seu pai foi procurar amo. Ajustou-se na azenha dum moleiro que tinha famade mau e ladrão. A sua função era ir entregar amoenda a casa dos fregueses nos três povos maischegados. Com um cavalicoque branco pela rédea,tep, tep, a assobiar o Compadre Chegadinho, o cãoFarrusco à frente de batedor, dizia com os seusbotões: caí no mel! De facto, deixando farinha,carregando grão, se não fosse a sua bátega de águaque o pilhava nas andanças e certos dias madrugarcom o Sete-Estrelo, era vida regalada. O diabo é que o moleiro tirava a maquia com a mão,que Deus lhe deu, do tamanho duma pá; a mulhervinha à socapa e remaquiava os sacos castigados.Era gaiteira, precisava de bilhestres com que pagaroiros, folhos, sabonetes. E, pois que lhe davam oexemplo, porque não havia ele também de prelevarem cada fornada a sua maquiazinha? Entendeu-secom a Júlia Traça, uma triste da macaca, e rodandopelo eido onde ela morava, em três tempossubtraíam a sua escudela em cada moega.

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Este imposto durou mais que as rosas deAlexandria. Mas os fregueses doeram-se daexpoliação exorbitada, bramaram, e encarreirarampara outro moinho. O moleiro desdenhadoprocurou o aixe e descobriu-o. Era homemimpetuoso e aplicou uma surra à mulher, que deubrado ao longe. O José Pais aventou a boa distânciaa sorte que o esperava e, largando a cavalo àaventura, despediu. A Júlia Traça recolhia integral oproduto da melgueira, mas, deixá-lo, havia deaguentar também com o troco da mascambilha.Andou, andou sempre em frente, desviando-se daestrada para o caminho, do caminho para a vereda,a cada ruído singular julgando que era o moleiroduma figa que vinha no cavalo branco atrás dele. Ànoitinha encontrou-se com terra jamais pisada numarco de novos horizontes. Foi dormir ao forno, que éo albergue nas aldeias de todos os pobres emendicantes, e de manhã, como ouvisse tocar osino, assentou com os seus cuidados: - Vamos lá à santa missinha! Era em Maio e tudo floria. Os aromas da alfazema edo alecrim das hortas entravam pela porta da galiléa insensar ao Senhor juntamente com o fumo dosturíbulos. E as abelhas vinham também por alidentro, atrás das braçadas de flores com que as

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irmãs de Maria enfeitavam os altares, a largar a suamuinheira. O José Pais, nunca assistira, a bem dizer, a umamissa do princípio ao fim e ali esteve até resto,fazendo o que via fazer, ora ajoelhando, oraerguendo-se, benzendo-se algumas vezes com a mãocanhota por não saber que só se faz com a direita.Depois, com sete olhos e as suas sete fomes, assistiuà benção do pão. Era costume imemorial naquele poviléu semhistória, em certos dias do ano, benzer o sacerdote abroazinha do Senhor e reparti-la pelos fiéis, porescala, segundo o grau de suas importâncias. Todos,uns após outros, se chegavam à mesa da proposição,os ricos e honrados, primeiro, depois os mecânicos,finalmente os pelintras e filhos de má mãe. A elecoube-lhe ser dos derradeiros a receber uma côdeade nada. Pouco que era, à socapa foi passando-a aoestreito, que tinha o estômago a ladrar, desatinadaladração para um antigo moço de cego, afeito aojejum. Acabada a cerimónia, observou o José Pais que obom tracanaz de pão que sobrara levava jeitos deficar na credência. Com que fim, santo Deus? Exacerbado o apetite com as migalhas que engolira,os olhos marravam-se-lhe no pio manjar, como os

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dum podengo em rez do monte encovilada. Cozidoaliás de véspera, rescendia que consolava. Ah,benditas fossem as mãos que o governaram! Agorao homem da opa vermelha cobria-o com uma toalhae arrumava-o para a banda. Ficava ali, não haviaque duvidar. Com que fim, santo Deus? Para ascorujas, para os ratos, para as comadres ausentes? O José Pais escondeu-se para um canto dobaptistério e esperou que a igreja se esvaziasse.Retiraram-se os fiéis, retirou a última beata acochichar com o senhor prior, ao cabo o sacristãoque, depois de apagar as velas, se foi a arrastar aperna. Assim que a chave da porta travessa deu aderradeira volta na fechadura, ergueu a cabeça porcima do aro da pia baptismal e espreitou. Ninguém.Quer dizer, alguns santos fitavam nele os olhos devidro; um tinha um cordeiro ao pé e trazia moca;outro um bengalão de volta; mas não eram eles quedesciam dos tronos a dar-lhe lambada como fazia ocego e como não deixaria de fazer o moleiro se lhetem prantado as unhas em cima. Pois quem manda éDeus, adiante, meu povo! Dum salto pôs-se no altar-mor, e pegar do pão eferrar-lhe os dentes foi fulminante. Comeu, comeuprimeiro com voracidade, depois tasquinhandocomo um rato que vai armazenando para as horas

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de lazeira e pensando nas vidas. E só reparou quetinha dado conta do tropeço quando ingeriu aúltima migalha. Bateu então uma palmada na pança: bem bom! Opior é que começou a sentir sede. Só agora lheparecia notar que as dentadas do fim as atafulhara jáà sobreposse. Além de que o comer de seco se querregado a miúde, o pãozinho estava sobre o salgado,se é que ali não havia que responsabilizar senão aquantidade. Fosse como fosse, sentia muita sede. Oremédio era pirar-se. Mas por onde? A porta dasacristia estava fechada à chave; a porta travessaigualmente; a porta principal, essa achava-secerrada com uma tranca tão grossa e encastalhadanos encaixes de certo não era para os santos nãofugirem que, por mais que fizesse, não conseguiumovê-la. Circunvagando os olhos pelas grades, bemchumbadas nas ombreiras, por virgens e anacoretasque não mostravam ares de lhe ensinar a saída,reparou na pia da água benta. Lá estava mergulhadodentro o fachoco de alecrim com que os devotosenxotavam o Tinhoso maila choldra. Meteu aspontas dos dedos Estava fresquinha e tão límpidaque se via o fundo. E deixou-se cometer da tentação.Bebeu, bebeu até mais não poder. Apenas ao último

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gole se apercebeu de quanto era enxabida esalitrosa. Sabia, demais, a alho e a cadáver, mas erao mesmo. E, quase satisfeito com o destino, como láfora caía uma tal torreira que até a pardalada sehavia calado nos beirais da igreja, e as sombras alieram deleitosas, acolheu-se outra vez ao baptistérioa dormir a sesta. Estremunhou ao puxarem-lhe pela manga.Descerrou meio olho e pela frestazinha entreabertadivisou o senhor padre de sobrepeliz, dobrado paraele. Fingiu-se resvalar de novo ao sono de chumbo,resignado aos açoites que iam chover-lhe nocanastro. - Ó rapaz! Ó rapaz diabo! - gritava por cima deleSua Reverendíssima ao tempo que o sacudia maisdesabaladamente que à corda do sino nas missasglaciais. Não teve outro remédio senão acordar. - Que fazes aqui, grande larápio? Não respondeu. Que havia de responder?!Entretanto acorriam as beatas. - Vejam o que tem nos bolsos

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Duas, três servas do Senhor meteram-lhe as mãosnas algibeiras, palparam-no todo dos pés à cabeça,por dentro e por fora da camisa. - Não tem nada com ele, meu senhor! - Que fazes aqui, homem? - tornou o padrecravando nele um olhar de gavião. Pôs-se a chorar. Tinha aprendido a chorar e fazia-otão bem que cortava a alma. - É um pobrezinho, meu senhor - proferiu uma dasbeatas. – Entrou para dentro da igreja como pardalesparvado. O sacristão apareceu entretanto com a bandejavazia: - Não entrou tão esparvadamente como isso!Carambinha, comeu o pão bento todo. Chama-se umpaiol! Foi a admiração de quantos ali estavam. Orçavam otrancanaz entre quilo a quilo e meio. - Tinhas então fome? - perguntou o padre comjocosa amenidade. Em resposta pôs-se a chorar mais forte. Era umchoro convulso, entrecortado de arquejos fundos,destes que só não provocam compunção noscorações endurecidos. O padre puxou-o pelo antebraço e, como ele sefizesse morto, arrastando de asa, ergueu-o em

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pulins e levou-o para o adro. Ali, com blandícia ejeito, indagou de quem era e não era. O entremez,entretanto, atraía um senhor de óculos, sapatos delona e boné de pala, que subia a rua a passo deocioso, os dois polegares pendurados das cavas docolete. Em silêncio, os oito dedos salientes a bolirtais apêndices do caranguejo, escutou a miríficahistória do comilão do pão bento. E, como eramagro e alto, lembrava a cegonha no campanário aseguir os movimentos dum musaranho estateladono terreiro. Subitamente o senhor abriu a boca: - Queres tu vir comigo para a cidade? Meto-te nabotica. Hem? Quantos ali estavam secundaram a voz de SuaReverendíssima: - Leve-o, leve-o, senhor Lourenço Romão, que fazuma obra de caridade. Este menino, se o amparampode ainda vir a ser um homem. Se o largam, dá emvadio, inimigo da sociedade e um perdido de Deus. O José Pais não gostava das obras de caridade, queem geral acabavam em malandrice. Mas era darem-no quite quanto ao pão bento, e seguiu aquelehomem alto e desengonçado, com óculos depernóstico e pêlos ruivos no queixo, como um cãosem dono ao passante que lhe assobia.

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Passou o José Pais ao serviço do boticário daPrebenda, que lhe dava cama, mesa e roupa lavada,e a sua data de marmeleiro as vezes que claudicavanas obrigações. O rol destas era extenso e difuso. Depermeio com elas, pertencia-lhe aprender letraredonda e paleógrafo, tabuada e escrita, e orapazinho foi refinando. Espigou depressa. Aosdezoito anos era um virote rijo e direito, e não sefala de esperteza. À sua ciência antiga somava-se aque andava bebendo na escola da Sé com oreverendo Matusalém e na botica do Lourenço. Abotica era uma espécie de escola do cadelas dosfarmacópolas da província. Oficina ao mesmotempo e seminário. Ele era a rodilha. Comia ossobejos; a sua ocupação nos primeiros anos consistiuem fazer os fretes de todos e apanhar pontapés. Mascomo era mais ferrenho que a erva dos caminhos,vingou. Tinham-no alojado da parte de trás da loja,por baixo da escada que levava ao primeiro piso,residência propriamente dita. Era lá a camarata dospraticantes. Para falar justo, o ninho que lhe destinaram era opróprio desvão da escada. Ainda assim, não lhepertencia exclusivamente. A parede do fundodesaparecia sob os andares sucessivos dasprateleiras, escalonadas até os degraus, assentes nas

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traves mestras. Numas alinhavam os boiões de loiçado Rato com unguentos e bálsamos, os frascosbojudos e as redomas de rótulo ferruginoso, osvasos vidrados de rolhas herméticas para protegerdo ar e da humidade os simples de preço, comounto de crocodilo, bezoárticos animais, rasuras demarfim e de crânio humano, unha de grã-besta,pedra Bezoar, tanto oriental como ocidental, e atépós de múmia. - Tenham muito cuidadinho com esses frascos -exclamava o Lourenço, apontando a espéciemirabolante, de grande efeito quanto a atalhar agangrena e a resolver a tísica. - Muito cuidadinho.Aquela droga, ali onde a vêem, custa os olhos dacara e não passa duma impostura. Mais queimpostura, uma autêntica roubalheira. E vinha logo a história consabida. Estavaaveriguado que os judeus de Alexandria erammestres na arte de impingir à Europa como múmiasgenuínas, isto é, honrados cadáveres de egípcios daera faraónica, embalsamados com todos osmatadores e exumados dos seus sarcófagos do Valedos Reis por missões científicas, a que presidiainvariavelmente um inglês, sábio e lorde carcaçasde míseros felás vitimados pela peste. Aescamoteação era fácil: esvaziavam-nos das vísceras

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e, depois de os atufar muito bem de mirra, azebrecabalino, pez negro e betume da Judeia, precintadospor tiras de estopa embebidas em terebintina,punham-nos a dessecar ao sol bravo do deserto. Nãoatinavam com a impostura dois doutores deantropologia. Nas prateleiras superiores, andando da direita paraa esquerda e da esquerda para a direita,sucessivamente, em molhadas atadas por juncos ecom etiqueta ao pendurão, agrupavam-se as raízes eas ervas. Primeiro, as cinco raízes aperientesmaiores, seguidas das cinco menores, e na estremaas duas raízes aperientes comuns, de muitopréstimo em cozimentos e colírios. Vinham logo aservas ditas emolientes, que ajudam a relaxar oshumores e a encoirar as chagas, e por ordem defamílias as carminativas, as capitais quentes e ascapitais frias, as hepáticas e vulnerárias, a acabar nascordiais com as rosas secas de Jericó. Habituado a dormir nos palhais do feno e estábulos,afogados em rescendores tépidos, não era a naturezade semelhante aposentadoria o que mais o agoniava.Tão-pouco a fedorentina de certos artigos emdecomposição ou mal macerados, como lombos daserpente verde bojali, de muita virtude o seu salvolátil nas quenturas malignas, víboras de Outono a

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enxugar ao sol depois de esfoladas, ou barbatanasdo vitulus marinus conservadas em aguardente demedronhos. A sua pituitária afizera-se desdemenino a todos os metanas da cadaverização, demodo que não era daquilo que lhe provinham osengulhos. A certas horas, mesmo na cama debancos, em pelotas a premunir-se da fermentaçãovegetal e do calor da oficina, onde atestava nos diasgrandes um sol de rachar, lembrava um sardãosatisfeito, alapardado à boca da sua toca. O que lhecustava a engolir era ainda e sempre a exclusão aque o votavam em casa do Lourenço, em despeitoda sua boa vontade para trabalhos e canseiras. Ospraticantes não se dignavam mostrar-se em passeiona sua companhia. Se porventura se encontravamcom ele, corriam-no. Uma vez que o surpreen-deram em casa da Carriça, na Rua da Carvoeira,sujeitaram-no à operação vilipendiosa da barrela.Que mal fizera ele a Deus para permitir que fosseobjecto de semelhante enxovalho?! Era verdade quea Carriça tinha lá uma pupila que, ele a entrar, eraperdida e achada nos seus joelhos. Com a ciumeira,o Mendesius acusara-o ao patrão que lhe proibirasair aos domingos. Não era uma violênciainqualificável?

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Zé das Nicas derrancava-se o sangue a odiar, vendo-se estorvado da pândega tão grata em casa daCarriça. A oficina químico-galénica era-lhedetestanda por isso e muito mais. O passadio não iaalém de papas e carrapatos, carrapatos e papas,comer de negros. Também lhe davam volta aoestômago aquelas operações nojentas, das quais asmenos ascorosas era estripar as cobras e recolher-lhes as enxúndias, pisar as minhocas para lhesextrair o óleo, lançar na panela a ferver as rãssaltantes que lhe traziam ao direito do Pavia, para aelixação ser perfeita, ou raspar uma caveiracomprada ao coveiro por baixo de capucha parapeitorais dos que deitassem sangue pela boca. Por isso ele agradecia que o Lourenço o mandassecolher os simples pelos campos, mormente naPrimavera quando as plantas estão com o viço todo,exaltadas dos princípios espirituosos-alinos dointerior da terra. A lavar os tachos, acender osalambiques, desencardir as retortas preferia essetrabalho embora com o risco de apanhar uma cargade água ou arrochada dos donos das fazendas. O Lourenço, que era um poço de ciência, mas tinhaa pedanteria do sábio da Universidade que senarcisa no saber, recomendava aos praticantes, antes

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de abalarem, num latinório ainda mais latão que oda missa: - Observandum est plantas sponte obortas in locolibero. Um ou outro novato ficava de cara à banda e eletraduzia com a acrimónia de quem gosta de seradivinhado nada mais que pelo bolir dos lábios: - Sim, ignorantes, ignorantins, ignorantões, querem-se plantas que tenham nascido à lei da natureza enão in solo stercorisato. Voltava costas e o Valentim Mendes, umzangarelhão alto e malicioso, deitava a fazer grossachacota do Lourenço e de toda a endróminafarmacopáica. E lá ia com os outros em grande ealegre chinfrim S. João da Carreira fora, caixas defolha e sacos às costas, através de valeirozinhos emontados. O Zé Pais é que tinha de alombar com ocarrego maior das ervas, em peso cestada como asque, pelo tempo dos centeios a espigar, seapanhavam na seara para engorda dos cerdos.Deixá-lo, faziam gato-sapato dele, mas a brevetrecho sabia distinguir e classificar toda a casta deplantas pelas suas virtudes medicinais. Sabia que oaipo, o funcho, a gilbardeira têm grande préstimonos males da bexiga; que não há como a molarinhapara purificar o sangue, ministrada em xaropes; que

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a losna é quase miraculosa em actuar na conjunçãomensal e não se encontrou ainda nada superior aoalcaçuz para aliviar quem sofre do reumatismo. Nãotardou que por sua própria discriminação ordenassee arrumasse os simples segundo a escalaestabelecida. Da arte apoticária, a parte botânica,concernente à chamada colheição, era a que mais ointeressava. Que regalo se o enviavam a apanharrosas! Pedia licença para entrar nos jardins e erafortuito encontrar-se com uma cara bonita, não rarocom uma bele au bois dormant. O parque da Casado Arco era um mundo só sonhado. O Zé Pais da primeira vez que ali caiu ficouboquiaberto. Era o mês de Maio, e, diante da cópiade flores, com os seus aromas inebriando o ar e comsuas tintas dando à luz dos olhos uma alegriainocente, repisou a máxima do mestre, que por seuturno a tomara do grande Zacuto: - Flos est gaudium plantae et futuri veri spes. Por outros termos, termos do Lourenço pedagogo: - A flor é o mimo da planta e a embaixatriz doVerão. Não admira que por este conduto Zé Pais chegasse aganhar interesse pela arte de boticário, por algumarazão chamada dos antigos, no que encerra dehermético, a arte do perfeito magistério, e que, de

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reles aprendiz, cujo papel se confinava em colher ossimples pelas veigas e os montes, entregar osremédios, lavar e enxaguar a frascaria, passasse amanipulador. Os demais empregados do Lourenço,não só praticantes como alunos de espagíria, é quecada vez gostavam menos dele. Teve de ficar malcom uns, obrigado a participar ao Lourenço aspartidas que lhe faziam. Olhavam-no outros desoslaio, supondo-o denunciante sistemático de seusbródios e patuscadas. Zé Pais era reservado esuspicaz e ninguém tinha nada com isso.Chamavam-no acusa-cristos e beato falso. Era crimeouvir missa, beijar a mão ao ReverendíssimoMatusalém, fazer as vontadinhas à senhora? Da cáfila, contra si, o pior de todos era o ValentimMendes, a que chamavam em calão de escolaValentinus Mendesius. Todos tinham medo deleporque dava piparote com os dedos ósseos quevaliam mocadas, corria atrás de todas as saias deservas do bairro, e não se ensaiava para descomporum cristão, fosse bem embora beneficiado da Sé ou omais pintado do governo. Não frequentava asigrejas nem se confessava ainda mesmo pela Páscoada Ressurreição. O Mendesius não gostava dele nemtragado e Zé Pais pagava-lhe na mesma moeda. Ofacínora, por espírito de maroteira, ia meter-lhe

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entre as mantas rãs vivas e sapos. Outras vezes, se oapanhava desprevenido, polvilhava-lhe o comercom pó de cantáridas ou metia-lhe debaixo da camaassafétida. O Zé Pais ia-se chorar para o Lourençoque tinha sempre uma palavra sarcástica: - Já não tenho mama para ti! Estás muito crescido Não obstante tão graves e múltiplos senões, Zé Paisacabou por deixar-se empolgar por uma arte à qual,segundo o conspícuo Lourenço, a jurisprudênciafazia corpo de guarda, pesando na balança asquantidades; a matemática alumiava com seuscálculos para a boa aplicação dos simples segundo aconjunção dos astros; a filosofia vigiava para que doseu empirismo não sofresse quebra de parte darazão; a retórica enfim ensinava a elegância dasfórmulas e diagnose. E quando a cabecear com sonoZé Pais se recolhia ao seu cubículo, o último olharna loja ia para o grande Hipócrates talhado empedra tufa, que o seu nicho na parede presidia atoda a cabala quimico-galénica. E a ele, fundador dadogmática em medicina, genuflectia a devoção quelhe enchia o peito, como na Sé um menino de corofazia para com o Espírito Santo, entre apagar asvelas e escorropichar as galhetas. Uma tarde de Verão estava o José Pais à porta,sozinho que o Lourenço estanciava com a cara

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metade e meninos na quinta, à raiz da serra. O solacabara afinal por dobrar para trás da casa daPrebenda, padieiras rendadas, cornija bojuda, portadupla com aldraba de bronze, e a sua sombra e asbrisas que primeiro brincavam na coma grandiosada nogueira na cerca adjacente refrescavam a rua.Tinham abalado os ajudantes ao sabor doentardecer, e os aprendizes estavam para as suasfalperras da província que era tempo de férias. OJosé Pais, primeiro oficial da botica,melancolicamente cismava em coisas e loisas,porventura todas elas à volta do tema da suamocidade que se escoava incolor e sem ruído comochuvisco num areal. Àquela data era uma vergôntea de homem, pálido, apuxar para taciturno, reservado mas tido por bomrapaz, cumpridor dos mandamentos da Igreja eescravo dos seus deveres. Inflectira para ali etomava tal programa a sério. O lazarilho dormitavadentro dele. Ao romper do sol, já ele estava a tirar ostaipais da loja. Em continente, renovava a água dascelhas; acendia os fogareiros em que havia depreparar tais e tais eclegmas e opiatas; limpavaredomas; escarolava almofarizes para que raízes,flores, ervas de virtude, minerais ou bezoárticos nãoperdessem nenhuma das propriedades nas

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diferentes fases farmacopáicas até a sua mistão, ouos simples fossem integrados nos medicamentospropriamente ditos com toda a pureza original. Na cidade e à roda passava o Pais por um barra daespátula e da retorta. Ao mesmo tempo iamedicando, que dentro dum bom boticário estásempre acordado um médico prudente. Todavia nem a sua arte, nem a sua elevação a poderde trabalho e paciência, lhe valiam para mais nadado que viver, praticar um ofício, restrito nosproventos, módico no crédito. Assim, se por umlado nem fortuito lhe era ajudar a mãe, planturosacomo Aca Laurência, nem os irmãos, dado que lheviesse a tentação, acorrentados à miséria do molhoda lenha, por outro o boticário jamais se dignaraconvidá-lo a passar uns dias na terra natal,oferecendo-lhe hospitalidade. Semelhante facto eraindício seguro da sua pouca ou nenhumaimportância. No fundo, palpitava que ofarmacêutico mantivesse aquela quarentena paraevitar o contacto com Laurinda, que estava umatentação de pequena. Laurinda tota pulchra, tota venusta, poetava oMendesius, via-a hora a hora, e era sempre como sevisse a Primavera em pessoa. Onde ia a desataviadae impulsiva criança, de aventalinho branco em asas

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de borboleta a correr entre os boiões e porcarias dabotica? Era hoje uma fresca e fragrante rapariga,cheia de viço como uma pernada de mimosa emflor. E desde certo dia em que lhe sorrira e oenvolvera no mais cálido veludo dos seus olhos, aimagem dela enchia-lhe os sonhos, não sabendodizer a sua imaginação se desse modo era mais semenos especiosa do que na realidade. Aquela tarde, espairecia do calor da botica ao passoque assim ia magicando nas coisas da vida, quandoa voz de alguém que não vira chegar, rente com ascasas, do lado da rua do gonçalinho, lançou em tomdesfalecido: - Seja louvado N. S. Jesus Cristo! - Sempre seja louvado no céu e na terra! -respondeu, pondo olhos no recém-chegado. Era um frade, um frade mendicante, ainda novocom belos cabelos castanhos, feições marcadas eregulares de medalha, mas pelo jeito de fadiga,lombo curvo para terra, expressão macerada dorosto, vinha doente ou muito achacado do caminho.Com ar de quem vai perder o último alento, alijou obornal que trazia pouco menos que vazio na soleirada porta e ele próprio se deixou cair ao ladosoltando um suspiro de desafogo e cansaço. - Está enfadado, irmão? - inquiriu José Pais.

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- Mais que enfadado, venho a morrer - murmurouele. - Ai, não posso mais, não posso! Deus se amercieda minha alma, que sou um grande pecador Fechou os olhos e o José Pais ficou em suspensão,debruçado sobre ele, à espera. Ao cabo demomentos, abriu as pálpebras com aparatosademora como se as tivesse coladas ou voltasse dumagrande viagem em sonho, e, apercebendo-se dosemblante benigno por cima dele, sorriu. Era umsorriso doce, brandinho, como sol de inverno entrenuvens. Depois, com esse luaceiro pálido na face,pronunciou em voz langorosa: - Infinitas graças vos sejam dadas, meu Deus, queme trouxestes a porto cristão! Tornou a fechar os olhos e assim quedou um bomespaço como se dormisse ou estivesse a refazer-sedo quebranto. O Pais é que já se recobrara do sustoque o tomara. Uma boa dose da fraqueira edesfalecimento do frade era da regra. Estava nacartilha de todo o fiel mendicante. Mas, para lá daspartes gagas, havia uma cota de sério,irrepresentável, e o Pais depois de consolá-lo comumas tantas banalidades cristãs, disse-lhe: - Mas de que se queixa, irmão? - Sinto-me muito mal! - respondeu com grandeacento de sinceridade.

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- Onde é o aixe? O frade não respondeu e o Pais por sua altarecreação tomou-lhe o pulso: o coração batiaregular, embora fraco; debilidade. Esgarçou-lhe aspálpebras e viu-lhe a conjuntiva exangue,anemizada de todo. Pediu-lhe para deitar a línguade fora, o que ele fez depois dum instante dehesitação. Torceu o nariz Pareceu-lhe descobrirplacas suspeitas. - O que é que lhe dói, diga lá, irmão? - tornou o JoséPais com certa intimativa. O frade encarou nele com fixidez por um instante,ergueu os olhos ao céu, baixou-os, volveu a assentá-los nele, e suspiroso, pianinho que mal se ouvia,gazeou: - Não, não, antes morrer. Havia ali um mistério e movido um tanto peloinstinto de solidariedade humana, outro tantocurioso do que conteria aquele saco de padre-nossos, com a voz doce e persuasiva aprendida nosconfissionários, procurou levar o pobre religioso adeclarar-se. E tão fraterna e cordial devia ser a suapalavra ou contagiosa a sua simpatia que o fradeerguendo-se com um movimento cuja a agilidadenão era de esperar da sua aparente prostraçãoproferiu:

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- Está bem, lá dentro, lá dentro da loja, eu lhe digo omal de que sofro. O José Pais acompanhou-o mais do que conduziu-oà casa interior, e aí o mendicante, desentranhando-se em palavras de remorso e verecúndia, tornoupatente as suas misérias humanas. - Realmente deixou chegar o morbo a um estadoperigoso. Vamos a ver o que se pode fazer. Deus épai. Onde tem a cela? - Sou de longe, alma santa, sou de longe. Ouviualguma vez nomear o convento de S. Francisco deCaria? Para baixo da serra da Nave? É a casa de quesou indigno irmão. - E onde há-de ficar hoje? - Tenho o Convento de Santo António da nossaOrdem a quatro passos, alma santa. Lá irei pedir aenxerga e uma fatia de Pão. - Bem, bem! Vou-lhe dar para já, já, uma poção quehá-de ter a virtude de não deixar adiantar o mal.Receita do grande Madeira Arrais. Sente-se nesseescabelo enquanto lha vou preparar. O José Pais foi a um armário e procurou o específicoque, dada a sobejidão com que grassava este mal, setornara clássico e de uso quotidiano. Entretanto ofrade embrenhava-se numa longa e mal urdida

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história que cheirava a trapaça à légua. José Pais,para que o fradinho o não tivesse por tolo, atalhou: - Não ponha mais na carta. São coisas que sucedemdesde que o mundo é mundo. Vem já no Pentateucoum recipe para semelhante mal. - Nunca imaginei que aceitando a cama dumtangedor de sanfona, se desse tão facilmente ocontágio. - Não se canse o irmão a buscar explicações, queninguém lhas pede. Estes percalços acontecem amuita gente boa. Dizem que o senhor D. Pedro IImorreu disso, e que ao mal não foi estranha suaaugusta mulher, a princesa de Saboia. O que se trataagora é de se curar. O frade teimava em impor a suaversão no meio de juras e lamentos, mas já o Paisvinha com uma garrafinha do precioso vinho santode Madeira Arrais, com base na salsaparilha, e lhedava um cálice a beber: - Beba, beba todo. Não lhe tome o gosto. O frade emborcou a triaga após o que fez umacareta feia, horrenda, as comissuras dos lábiosarrepanhadas para os zigomas, boca aberta até oesófago mostrando a rija dentadura de lobo, atestalavrada por sulcos transversais como uma leira. - São as fezes do pecado disse-lhe o Pais a rir. - Leveesta beberagem e continue a tomá-la ao levantar e

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pelo dia fora. Agora, isto não basta. Temos de atacara úlcera in loco. Tem de se sangrar e pôr a dietaantes de lhe aplicar o unguento que amanhã começoa preparar, tratando de adquirir os simples que épreciso que sejam duma extrema frescura. Volteamanhã, irmão, e eu lhe direi. - Acha-se com forças para botar até ao convento? Sequer, eu dou-lhe o meu braço - Não, não, eu hei-de ir sozinho - respondeu comvoz quebrada, mas já risonho. - Podiam desconfiardos meus pecados e era o Diabo! Adeus, o claustrodos meus irmãos de S. Francisco não é longe. Eu voubem só, alma santa! Tantos coros de serafins oacompanhem na hora da morte ao trono doAltíssimo como de gotas havia na bebida que medeu! Adeus, meu salvador, meu anjo custódio! Atéamanhã com a graça do Pai do Céu! José Pais foi-o seguindo com o olhar, na sua marchalenta, cosido com o muro, quase invisível a favor dameia penumbra que descia dos beirais sobre a ruela,até desaparecer ao fundo, fátuo como a sombra. Em menos duma semana, era Domingo e haviadescanso na botica da Prebenda, Fr. Geraldo dasCinco Chagas madrugou a procurar o José Pais.Estava assente manipularem nesse dia o complexo emiraculoso emplastro de rãs, preconizado por

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abalizadas e conspícuas sumidades, Moisés Charas,Madeira Arrais, João de Vigo, sem falar em Lemerye Caetano de Santo António. Assim tão solidamentegarantido, e com a ajuda divina de anjos e santos, aquem o fradinho se apegava com fervor elamentações torrentosas, não podia deixar de pô-losão e escorreito. O Pais tinha os simples debaixo de mão, vasos eretortas limpos, a fornalha policresta pronta afuncionar. Assim, mal o frade se mostrou, acendeu olume, estripou as rãs, lavou as minhocas, e toca paradentro duma caçoila a cozer em vinho branco,genuíno sumo da uva proveniente da adega em queos senhores cónegos costumavam sortir as galhetas.Depois, a fogo lento, ignis nudus, como mandava atécnica espagírica, deixou cozer, cozer até as bolhasde gordura, bem visíveis quando introduzia acolher, sobrenadarem no cachão. Deitou entãodentro, cortadas em bocadinhos, as raízes do engos,da énula campana, da artemísia, do esquinanto;adicionou-lhe uma molhada de rosmaninho, eactivou o fogo. Frei Geraldo das Cinco Chagas, de pé em cimaduma esteira porque a laje era fria, jogava a suasentença ou laracha, já muito correntão com o Pais ereconfortado ante a perspectiva do remédio que o ia

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livrar da moléstia. O Pais com um olho na fervura,outro nas drogas, que ia pesando segundo o récipelitargírio, unto de porco sem ranço, óleo de macela,endros, lírio, louro e “de espica aná libra e meia”,uma botica respondia no mesmo tom de facécia ecordialidade. Estabelecera-se entre eles, mais querelações amicais, um verdadeiro compadrio feito deconfidências e de pequenas concessões de parte aparte em matéria de virtude e de moral. Omendicante acabara por mostrar-se desnudo da suatúnica monástica, e divertido que ele era! Dize tu, direi eu, o cozimento foi-se reduzindo a umterço mercê da evaporação, e o Pais, antes de lheadicionar os ingredientes que acabara de apartar,coou pelo passador. Remetendo em seguida asumptuosa mistela ao fogo, disse para Fr. Geraldo: - Venha aqui mexer, faça favor. Mas mexa, mexasempre de modo que não se cole ao fundo. O frade empunhou a colher e assim fez com a mãopresta e infatigável pudera! mais atentamente quea ajudar à missa. O Pais entretanto correu ao seucubículo buscar os simples preciosos. E, quando odecocto alcançou a expressão devida, adicionou-lheuma libra de cera amarela, para mais que não paramenos, e pôs a serenar. Maravilhado com ver a

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meticulosa, prolixa e difusa manobra que revestia apreparação do resolutivo, proferiu o frade: - Grande é o saber dos homens, dos Hipócrates, dosZacutos, dos Curvos Semedos! Admirável, a suamedicina, quando Deus quer! - Diz D. Caetano de Santo António, boticário-mor deS. Vicente de Fora, que Deus foi o primeiro médicofarmacópola. - Sem dúvida, irmão, sem dúvida. Lá está S. VicenteFerrer a confirmá-lo: Caro Christi est pilula nostraesalutis. No corpo de Cristo está a pílula salutar. - E quem faz as doenças? - perguntou Pais depois dereflectir um momento. - As doenças fá-las o Diabo respondeu o frade comveemência. - Se as faz o Diabo é maior que Deus, que é a pílula,ou pelo menos igual. Não? - Não, não! Ora atenda: Deus faz; o Diabo vem edesfaz; torna Deus e refaz. Quem é o mais forte? - O mais forte será Deus, mas o Diabo parece-memais perfeito, pois que pode atentar contra a obradivina e desconcertá-la. - A traça por que Deus regula o mal e o bem nomundo não nos compete a nós discerni-la proferiu ofrade em tom afável, afastando todo o espírito decontrovérsia. No que teólogos e filósofos estão de

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acordo é que Deus criou tudo, inclusive o Diabo.Dirá o meu excelente amigo: o pai da causa é o paido causado. Seja; estamos dentro da engrenagemincompreensível. Mas é o mesmo. Diz-nos asantíssima e argutíssima teologia que o Diabo é umagente per se. Contentemo-nos com a explicação. - Precisamente o que eu queria era não ternecessidade de contentar-me. Mas pronto: o Diabofaz o mal, Deus o bem, as flores os frutos, oentendimento dos galenos, a eloquência dos Cíceros,os homens prudentes, as mulheres bonitas Ah, se asmaçãs camoesas não tivessem algumas vezes obicho por dentro o que não era a Criação! O frade suspirou, despediu uma risadinha e disse: - A mão de Deus e a Mão do Diabo confundem-senesse e em muitos outros casos, segundo o nossograu de visibilidade; mas aí deve andar logro danossa retina. Diga-me: não me valeu mais a mimfazer neste mundo penitência dos meus culpososdeleites, tendo encontrado em José Pais umadmirável samaritano, um estremoso irmão, do queaparecera ao juízo de Deus com o meu pecado embranco? - Mas se foi o tocador de sanfona que por casualcontacto lhe transmitiu o mal, que pecado tinha aresgatar, frei Geraldo?

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O frade tornou-se muito sério, pôs os olhos no chão,depois abstractamente na fornalha, cujo ruborembrandecia, por fim no tecto: - O homem, quitanda de todas as más especiarias, éum ser plural, plural no pecado. Quem podeassegurar que em suas misérias terrenas está aresponder por este ou por aquele? Quanto ao meucaso particular, irmão Pais, eu quero ser-lhe franco.Preciso mesmo de sê-lo, que exige lisura o meureconhecimento. A história do tocador da sanfona éinvenção escarrada do princípio ao fim E com lágrimas nos olhos, lágrimas que se iamesbagoando, silenciosas e lentas, como a cera dumavela a arder adormecida aos pés do Senhor, contou asua aventura. No entretanto, como o decocto jáestivesse morno, Pais adicionava-lhe as doses legaisde incenso, de eufórbio e de açafrão, e, depois deanaçar convenientemente, levou-o para o ar livre adecantar. Acompanhando com os olhosinteressados, que é fácil supor, aquela fase daoperação, o fradinho não perdia o fio da anedota: - A rua do Castelo àquela hora, batida pelo sol,parecia um canal do Inferno. “Dá uma esmolinhaem louvor do nosso grande padre S. Francisco!” e amaldita com uns grandes olhos pretos, cheios desombra, a sombra que eu precisava, e lábios

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vermelhos, disse: “Entre, irmãozinho, que aí forafica abrasado. Eu vou-lhe buscar a esmola Elaprópria abriu a cancela, e eu entrei na casa que erade laje, fresca, com dois banquinhos cobertos comalmofadas de chita e uma cama ao fundo.Compreendi logo que estava em presença de MariaEgipcíaca antes de se avistar com Zózimo, o santohomem do deserto, e em vez de fugir, no queandava bem, deixei-me ficar, julgando-mecouraçado contra as armas de Satanás. Veio-me elacom uma malga de castanhas piladas a pobreta! eah, se lhe visse, irmão Pais, aqueles olhos grandes elentos, com tal fundura de cisterna que davavertigens, e a todo o cabo da negridão não sei quê,doce, meigo e malicioso ao mesmo tempo, a desafiara gente para investir, se lhe visse os peitos por baixodo colete de atacadores assim como dois pãezinhoscóscoros, gostava de saber o que fazia no meu lugar! Ela viu-me estonteado e rompeu às risadinhas. Ah,não lhe digo nada! Ao compasso daquelasrisadinhas, cada vez mais brejeiras e blandiciosas, operfume nausebundo do pecado subiu-me à cabeçae penetrou-me todo. Valha-me Deus! Aquela rua doCastelo, em Lamego, debaixo do sol do meio-dia,com as casas enterradas nas muralhas de granito arevessar langor e frescura, e um fradinho, descalço e

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cabeça descoberta, fradinho novo e fraco a pedirpara seus irmãos ainda hoje não sei, não sei se é umanesga do Céu se do Inferno! Aqui está, alma santa,aqui está! O Pais agora malaxava num covilhete, à força dededo, azougue com unto de víbora, estoraque eterebintina. Quanto ao argentum vivum seextinguiu nos demais simples, entornou-o com oconteúdo do tacho num almofariz de pedra. Sóhavia que pisar, repisar, volver e revolver até cadamolécula se compenetrar das mais moléculas. Umavez convertido em madaleões, aplicava-se ounguento nas partes chaguentas com coiro de luvapara que, insinuando-se nos vasos sanguíneos,dissipasse no sangue os espículos salino-venéreoscontidos no sangue. E aqui estava como um homemse punha rijo e fero à semelhança de Adão ao sairdos dedos do Criador. Frei Geraldo das Cinco Chagas, todo entregue àadmiração do melindroso laboratório, rejubilava: - Só de ver este famoso remédio me sinto já bom.grande é o saber dos homens! - Sim, irmão, dentro de duas semanas conto vê-lolimpo dessas bostelas feias e das úlceras que oimpedem de andar. Depois, veja lá se se metenoutra!

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O fradinho torceu-se todo e arqueou as sobrancelhasno hieróglifo da fatalidade: - Alma santa, a carne é quem manda. O espírito éum carneirinho. Um carneirinho estúpido eobediente. O que lhe juro, ó amigo dos pobres fradescrucificados, é não me deixar tentar por moça queme venha com olhos bugalhudos e a sua tigelinhade castanhas! A Malvina caprichava em pôr o ramo na feira de S.Mateus. A sua barraca regurgitava de fregueses atéaltas horas, que a pinga de três estalos nunca faltavade viático a vitela de Lafões e o peixe fresco deAveiro. Já as vozes esmoreciam nas demais tendas, já orealejo acabara de expectorar do cavernameescangalhado a última serranilha, e os dois amigos,engoiados numa espécie de gabinete particular,atacavam com mal disfarçado brio o terceiro pichelao tempo que imolavam cada um a sua perdiz emmolho de vilão. - Deus é grande - murmurou José Pais - que criou océu para nele poderem voar estas aves com queagora nos estamos a regalar! - ... e que também criou a terra para fornecer húmusàs raízes das cepas que produzem o líquido que nosfaz esquecer das misérias do Vale de Lágrimas!

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acrescentou no tom e solenidade de quem ajuda àmissa Fr. Geraldo das Cinco Chagas. - Frade, não esqueças que certos prazeres te sãodefesos. O teu reino não é deste mundo. - Irmão, o Inferno é pequeno perante os sentidos dohomem. E Deus é grande, sabes tu porquê? Porquenos permite saltar a barreira para lá do bem e domal. O homem adapta-se a todos os contingentes.Nas chamas do Inferno deve sentir-se tão de perfeitasaúde como ao luar desta noite de Setembro. Deusque deixou o Diabo à solta, é porque tinha dereserva esta marosca da natureza. Mesmo assim,irmão, bebo à tua entrada no reino dos Céus daqui adois carros de anos! - Por muitos e bons! Ergueram os copos e ficaram um momentosilenciosos, de olhos na toalha em que se arrastavammoscas sonolentas, pesadas da lambedoria dospratos. - Deus é grande - tornou Frei Geraldo - tão grandeque o homem se encontra a invocá-lo em pleno mardas suas ambições e loucuras. Quando menoschama por ele é quando reza. Queres saber, irmão?O dia em que caí prostrado à porta da botica, faziauma semana que berrava por ele como um bezerrode leite pela mãe. É o que te digo! Não tanto lá

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porque me visse doente, mas porque ansiava a todoo custo chegar à cidade. Eu vinha de longe, irmão,de longe! Vinha da banda de lá da serra de Caria,sem mais nada que a borracha à cinta e o cajado namão. Quando ouvi dizer que passara a comitiva doconde do Arco, liteiras e mais liteiras, cavalos e maiscavalos, de andilhas e à estardiota, não quis saber demais nada e pus-me a caminho. Não era a minhasemana de peditório, mas, ora, larguei nas barbas doguardião, sem lhe dizer por aqui me vou. Quejornada, caríssimo, que jornada! Ia comer com oscamponeses nas malhadas, e dormir, tanto dormianos cabanais como ao relento. Atravessei assim acomarca negra da Nave, depois a serra de Vale deCavalos, nua, nua, sem uma árvore que dê sombra aum cristão, batendo légua após légua, rumo ao sul.Ao subir as encostas do Vouga, que são ruins detrepar como calvários, pareceu-me colher-lhe osventos. Em verdade eu corria ao cheiro da garça,fungando o ar como um rafeiro, caríssimo, como umrafeiro! Leva que leva, ao entrar na serra de Mundãosenti as pernas presas. Hem?! Que era aquilo, quehavia de ser? O veneno que me instilara no sangue amagana de Lamego. - Ah, meu Deus! Então eu jáenxergava ao longe as torres altas, o morrião da Sé, ehavia de ficar ali como Moisés à vista da terra da

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Promissão?! Ah, Deus, Deus rogava-lhe , deixai-meao menos chegar lá, deixai-me vê-la uma vez efulminai-me depois! E deixou, que é grande, irmão,grande. De Mundão até à Rua do Arco bebi a águachoca das fontes, semi-extintas com um sol, que eutomaria por um prenúncio do fim do mundo, se aosseus raios, pelas escarpas, não amadurassem asuvas. Evax, via reluzir o bastardinho e o tourigo,cujo sumo deriva, por obra e graça do divinomistério da transubstanciação, para sangue de JesusSalvador, que morreu para nos remir e salvar. Maspensei, suei, e, como digo, berrava por ele como umvitelo: Meu Deus, deixai-ma ver só mais uma vez efulminai-me! - E viste-la? - Vi! Sentei-me no chafariz do largo e depois derepoisar e beber aquela água, beber até me desforrarda sede de dez léguas, ergui um cântico a Deus tãoalto que toda a gente parava na rua a ouvir; asmulheres ficavam de cântaro à cabeça diante demim; e do palácio do conde do Arco vieram todas ascriadas, todas as donzelas, toda a fidalguia àsjanelas. - Um cântico que afinal não foi o canto do cisne! Adesejada é pois da família do conde do Arco?

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- Chut, é dama de companhia da condessa. Nãodigas nada, caríssimo, não digas nada, mas estemaldito coração sonha, chora, soluça, ladra por ela.Ah, se a visses! Que garça, que garça real que é! - E como recebeu vossa cantoria? - Quem? Micaela? Como recebeu?! Como recebeu?!Para te falar a verdade, não entendi bem. Estava aolado do conde, aquele terrível gerifalte de donzelas emulheres casadas, e àquela circunstância, que podeter sido casual, a minha alma entenebreceu.Entenebreceu como a noite das Oliveiras, irmão.Talvez fosse por isso, que o mal tomou conta demim, se me enroscou ao corpo todo que nem quetivesse caído num ninho de serpentes - E agora? - Agora que graças à tua caridade me sinto bom, voudesvendar o enigma. Se te disser que é uma mulherpara perder um homem, digo-te pouco da sedutora.Não me aconselhes que fuja enquanto é tempo, queseria escusado. Hei-de-me salvar, se me salvar, àbeira do abismo. Por agora o que procuro é chegar-me a ela, vê-la, dizer-lhe: quem vive? Sou umgrande pecador, detesta-me! - O pecado é um processo de sublimação espiritual,já o ouvi dizer a um santo.

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- Que dúvida! Se eu não soubesse o que era pecado,como podia aborrecer em mim o pecador? Comopodia distinguir o que é que agrada em mim a Deuse o que lhe desagrada? Peco e preparo-me ipso factopara trilhar o caminho de Damasco, isto é, ficopreparado para adorá-lo no meu arrependimento ena possibilidade de lhe oferecer uma ara trabalhadapela penitência e a maceração da carne. Aqui estáporque Deus amou sempre mais os pecadores, quese mostram contristados de suas faltas, do que ossantos que jamais pecaram. Estes são os inocentes, orebotalho do céu. Bebamos-lhe, caríssimo, amanhãcomeço com a pregação Veio outro pichel. Chegou a vez de José Pais, queuns tinham por sonso, outros por mágico, abrir opeito. Também dentro dele morava uma deidade:Laurinda. Também ela lhe ia fugir, forçada pelo paia professar, agora que o morgado, aquele imbecil doAlonsinho Romão, ia receber-se com uma meninachalada, mas muito rica, das bandas do Tedo. Játinha cela posta, com o requerido enxoval e tença,nas Comendadeiras de Lisboa. Mas, ali muito àpuridade, que nem o grande Deus nem o perigosoDiabo ouvissem, no primeiro ensejo a pássara batiaasas. Estava entendido. Por modos, tal convento deSantos era uma gaiola sem grades.

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E o Pais, sugestionado por Frei Geraldo, exclamavacomprimindo o seio com a mão aberta: - A filha do boticário, também, ou me perde ou mesalva! E como houvesse grande paridade em seus destinos,copo na mão e olhos nos olhos, ali se juraram aliançacom o fim de cobrar suas damas ou morrer. Homem da melhor presença e boas palavras, FreiGeraldo das Cinco Chagas viu acorrer encapeladasondas de gentio às suas homilias e prédicas. Paraestreia versou em S. Miguel do Fetal, igrejinharecolhida na tangente da cidade entre bosques epomares, onde si vera est fama repoisam dovaganau das batalhas as cinzas do rei Rodrigo, otema tão empolgante do Juízo Derradeiro. E a talponto retumbou o eco que, à segunda prédica, asLágrimas de S. Pedro, na capela do conde de Prime,foram disputados os lugares a sopapo e diz-se quemesmo a cunquibus. Sucessivamente, na igreja deSanto António, na Misericórdia, depois na Sé, amultidão dos fiéis atropelava-se, ansiosa por ouvir apalavra inspirada do missionário. Era em fins deOutono, quando de quintas e praias regressam aspessoas de teres e senhoras dadas à mundanidade.Caía sobre a terra uma chuva miudinha, precursorados dias rigorosos com ventanias e nevadas, e quem

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dispunha de ócios e ainda quem tinha a fé a picar-lhe à flor da pele não faltava à representação. Era deresto das horas que os relógios raro dão duas vezescom aquele frade novo, bem apessoado, rosto pálidode asceta, espécie de S. João Baptista na veemência ena crueza com que verbava o século e glorificava asdelícias do Céu. Entretanto que pregava, irmãos leigos faziam correra bandeja pela assistência, e ouviam-se as esmolascrepitar no metal pingues e amiudadas. Além dasesmolas em pecúnia, as dádivas em génerosacumulavam-se na sua cela de Santo António. Destemodo pôde despachar um macho bem aviado aoconventinho de Caria, zelo e lembrança essa que lhevaleram serem canceladas no livro da Ordem assuas faltas, que não eram grãos de painço. Frei Geraldo multiplicava-se, fazendo-se ouvir tantopelas igrejas como pelas capelas particulares,sempre com grande afluência de povo. Estaspráticas, sobre a tarde e ainda na primeira vigília danoite, foram atraindo, atrás dos crentes, os curiosose até os cépticos, que já os havia na cidadedescuidada, feliz à margem das filosofias e anedotasdos seus graciosos. O José Pais, artista urbi et orbi da espádula e doalmofariz, era um dos seus indefectíveis ouvintes.

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Outro, o Lourenço esse contritamente marrano,esmurrando o peito a cada sessão. Ainda umterceiro, aquele arganaz do Valentim Mendes,Valentinus Mendesius em calão de botica, que abriaa bocarra de pedreiro-livre e de mariola até asorelhas na raiva de não poder malsinar do pregador. Entretanto, o Pais acabara por tornar-se em adro epraça o arauto do fradinho. À comunicação místicasucedeu a notória estima pessoal, e breve os doiseram como unha com carne no meio da populaçãotemente a Deus e no geral pouco afadigada dascoisas da terra. Viam-nos sempre juntos por toda aparte, no templo e na cela, mesmo discorrendosantamente pelas alamedas e a Cava, camândulasem punho, rezo eu, respondes tu. E a nomeada dosdois cresceu com estas demonstrações evidentes deespírito fraterno e de piedade, a ponto de chegar aFontelo e enternecer o bispo. A última prédica foi no palácio do conde do Arco,em véspera de partida do nobre senhor para a Cortecom o pessoal de sua casa, que era variado efaustoso. Era lição do dia o Arrependimento deMadalena, e nunca o frade foi mais patético, iroso acombater o luxo, cadente a causticar os desmandosda castelã de Magdalo, e implacável com os seusrequestadores e amásios. Também desde essa data

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nunca mais soltou pio a garganta daquele novo JoãoCrisóstomo. Uma manhã as alamedas da cidade apareceramdesertas do casaco de briche e da túnica deestamenha de Pais e de Frei Geraldo, sombraspervagantes e inseparáveis de Orestes e Pílades. Tinham abalado sem dar santo ou senha. Para onde?O Lourenço, que por baixo da sua pele rósea debeato guardava o surro desconfiado do montanhês,correu à loja passar revista aos simples preciososque custam uma fortuna, como pós de múmia eoutros bezoárticos, não falando dos cadinhos deprata. Nada faltava. Nas igrejas e por baixo daserguilha humilde, batida pelo rosário, pode acoitar-se um cavaleiro de indústria igualmente não faltavaresplendor de santo, nem apareceu cofre de esmolasarrombado. Tanto o missionário como o oficial defarmacópola tinham ido viajar por seus própriosmeios. Começou então a correr o ruído que iam de rumo àTerra Santa penitenciar-se do deplorável crime deserem netos de Adão e Eva, pois que outras máculasnão negrejavam em seus cândidos costumes. E ruídofoi esse que engrossou com o parecer afirmativo daJúlia Pandorga, beata, meia zuca, meia miraculada,com quem Frei Geraldo trocava amenidades divinas

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e cortesias humanas. E assim ficou acreditado que ofrade e com ele José Pais tinham ido ao longe ganharo invejável bónus cristão, mercê do qual, na bentahora do trespasse, suas almas subiriam direitascomo setas para o Reino da glória. E os anos rolaram sobre os anos; as necessidadesmateriais sobre as boas disposições do espírito; obem e o mal foram-se afundindo, de cambulhadapor igual, no poço sem fundo da eternidade. Acrosta do tempo foi mais e mais patinando as ruas,as casas, a cidade, e a cara da gente, apagando ostraços, que fosforejam, da vida perpassante dia adia. Quem se lembrava de Frei Geraldo e da suasombra devota, o José Pais da farmácia daPrebenda?! Manhã de Primavera, quem trabalhava nos camposda Balsa viu marechar lento e tropeçante debaixo dobornal, pelo caminho de Ranhados, uma silhuetadesbotada de religioso. Chegado ao Rossio, alijou obornal com desafogo, sentou-se numa pedra erespirou o hausto consolado das acácias em flor.Depois puxou do rosário e pôs-se a bichanar asrezas. Via-se-lhe pelo bolir dos lábios e asofreguidão espiritual que era a dar graças por terarribado a seu porto.

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Nisto, uma velhinha que se acercara ao ver o magotede mirones exclamou: - Olha quem ele é: Frei Geraldo das Cinco Chagas! ÉFrei Geraldo! Correu voz e para aquela gente sem paixõeshistóricas, solicitada pelos cuidados froixinhos datemporalidade, foi tão imprevisto como se surgissedo meio do nevoeiro el-rei D. Sebastião. Acompanhado já de grande concurso de povodirigiu-se o peregrino ao mosteiro de Santo António.O guardião e os mais freires, que tinham sobrevindoà foiçada da morte naquela meia dúzia de anos,reconhecendo-o, acolheram-no de braços abertos.Ele, sorridente, mais etéreo do que nunca, abriu ocofre de suas grandes e blandiciosas alvíssaras: “Ele e o Pais tinham percorrido Seca e Meca e terrasde Galileia e Jordão. Onde Cristo rompera os pés,passaram eles de joelhos e olhos em fonte. OndeNossa Senhora deu à luz o Unigénito, retemperaramalma e coração em Deus. Tanto destilaram a suamundanidade e se deixaram compenetrar do divino,que o Pais fazia milagres mais facilmente que umaroseira dá rosas. Por todo o Oriente a fama da suasantidade voava. Ali trazia ele as cartas encíclicasdos bispos orientais, coptas, ortodoxos e romanoscom seus selos de chumbo, teste-munhando o facto

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assombroso. A confirmar tudo uma bula deindulgências a favor da boa cidade nada mais quepor ser a pátria ditosa de tão ínclito cidadão napessoa de seus vizinhos. Assinava-a D. AntónioCaetano Maciel Calheiros, arcebispo deLacedemónia, deputado da Real Mesa Censória,provisor e vigário geral do Patriarcado e juizapostólico. Tivessem a bondade de verificar“ E em abono puxou da provisão e dos pergaminhosveneráveis, alagartados duma letra em que nem opadre Côta, que falava latim, nem um comerciantede costela rabina, que sabia hebraico, conseguirammeter o dente. Mas o pergaminho era pergaminho, aquelesdocumentos cheiravam à légua a Terra Santa, e ossenhores cónegos e os nobres da terra, com algunsbons burgueses de permeio, encontraram-se peranteemergência não sonhada. Qual a atitude a adoptar,considerando que patrício de tanta virtude setornava não apenas útil, mas indispensável, ultra-necessário numa terra em que o joio sobrepujava àboa messe?! Com efeito, a cidade outrorapacatíssima, obediente a Deus e a César, tornara-sedesordeira e rebelde. Os pobres não seconformavam com sê-lo, os ricos dobravam astrancas às portas, os mal-casados protestavam

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contra a indissolubilidade do matrimónio, e osescribas e publicanos, que os havia na cidadeafonsina, discorriam por veredas erróneas dopensamento. As igrejas estavam às moscas, asautoridades seculares desluziam de prestígio, a cadapasso se gritava à del-rei, as cabeças soando arachado nas lutas de irmãos com irmãos e deparoquianos com quadrilheiros. Uma Babilónia! E convencidos que a tão grande e lastimosoabandalhamento só um santo, desdobrado de sábio,podia pôr cobro, chamaram Frei Geraldo das CincoChagas e disseram-lhe: - Ide-nos buscar o beato José Pais. Constou na cidade que José Pais chegava pelaestrada de Vale de Besteiros e desde o nascer do Solque às portas, até Repezes, era grande oajuntamento de povo. Frei Geraldo das CincoChagas tivera na véspera o avisado pensamento deexpedir um estafeta de Mortágua a rogar pelobendito nome que lhe mandassem a caminhoqualquer modo de condução. O santo homem vinha,por modos, muito trilhado da jornada e em grandeânsia física, tal Moisés ao conspecto da TerraPrometida. Compreendia-se. Débil de compleição,silícios e jejuns tinham-no alquebrado a ponto quesó por obra de Deus, salto miraculoso no espaço à

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maneira do Padre Santo António, se explicavaaquele regresso rápido da longínqua Terra Santa,baldeado de dromedário para navio, de navio parasege, mula de recoveiro, ou besta de empréstimoonde faleciam meios idóneos de transporte. Nãofora ele chamado a toda a pressa para salvar o burgoda corrupção galopante? Mal raçoado, conforme erade esperar de sua regra ascética, dava-o omensageiro como mais branco de cor que um santoembalsamado, etéreo, só pelangra e ossos. O recado do fradinho calou no ânimo dos senhorescónegos e não menos dos homens bons, movidos,todos por igual, segundo o interesse religioso e civil.E o arcediago, um vegete redondinho e rúbido, quetomava rapé às pazadas e era muito requerido aoconfessionário, propôs que, não sendo legítimoofender a humanidade do santo homemdespachando-lhe uma cadeirinha, se aprontassesimplesmente qualquer charola da Sé e almofadadaconvenientemente se lhe enviasse ao encontro porquatro clérigos ou tercenários de boa vontade epulso. E assim se fez. Obra de meia manhã avistou-se subindo a rampa deFail a serpe negra do cortejo, à frente José Pais noandor episcopal, a seguir o franciscanoescarrapachado num burro, camândulas na mão, e

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atrás a cauda cometária do poviléu das aldeias, quevinha engrossando desde terras do Buçaco. Foi patética a recepção. O arcediago adiantou-se, emnome da cidade e do bispo, a saudar e acongratular-se pelo regresso não do filho pródigo,mas, desta feita, do filho prodígio. E debalde seusolhos perspicazes pretenderam ler nos lábios finosdo Pais, ao vê-los franzir-se num rictus que, semexcluir uma suavíssima unção, era maisimpenetrável que estela apagada. grande foi ainda asua estranheza quando ele, de perna cruzada àoriental, se soergueu do recosto dos almandraqueseclesiásticos e alçou a mão, índice e médio hirtos,dobrados anelar e mínimo. Balançando-a depois àdireita e esquerda numa audaciosa bênçãopontificial, lançou as vozes sibilinas. - Salamaleque! Salamaleque! Seriam copta, araméu, arménio, e perguntou aofrade: - Que querem dizer estas palavras? - Querem dizer; a paz de Deus seja convosco, comesta cidade, com o mundo todo, como é comigo, navida e na morte e por todos os séculos da vidaeterna. Foi com estas vozes que Salomão entrou àrainha de Sabá e que por toda a terra em que reina aIgreja Ortodoxa se abrem os sacrários da verdade

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divina e os tabernáculos da ciência esotérica. Onosso santinho esqueceu a língua materna e quasetodas as línguas terrestres filhas da confusão deBabel. As únicas vozes que lhe ouvireis, Monsenhor,serão estas, de todo iluminativas, balbucio sinópticoda linguagem dos anjos. O braço do José Pais continuava descrevendo lentase sumptuosas volatas a todo o pano do céu,enquanto proferia em tom grandíloquo: - Salamaleque! Salamaleque! Chegaram à cidade processionalmente,desfraldando a ladainha, se os historiógrafos locaisdeste sucesso, na transposição, não perverteram asfontes. Tinham fechado as baiucas do comércio eestralejavam foguetes de três respostas no céusereno. Em Fontelo, o prelado aguardava comnatural sobressalto notícias seguras do Messias queia restaurar na sua diocese a ordem e os bonscostumes. E quando ele apareceu e, dobrado emarco, salvou: Salamaleque! Salamaleque! Delágrimas nos olhos e transbordante alegria na almareconheceu estar em presença dum emissário doAlto. Instalou-se José Pais no solar dos Melos a convite davelha devota fidalga, que não tinha próximos nemaderentes que a tolhessem de investir em obras pias

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os seus haveres que eram muitos. E logo no diaseguinte encetou na capela de Nossa Senhora dosRemédios uma novena festiva, com Frei Geraldo dasCinco Chagas de celebrante e ele, José Pais,quebrado para o chão em dois, como mortal quesonda os penetrais da Vida Eterna. Ao fim dacerimónia, como o frade estendesse a bandeja,choveram tantos pintos nela que foi preciso despejá-la três vezes para prosseguir o peditório. Em curtas semanas o burgo podrido voltou ao são.Casaram os amancebados e reconciliaram-se oscônjuges desavindos. Enforcou-se com beneplácidorégio um increu na Praça da Erva, e de tal modoalastrou a cheia mística, que dir-se-ia florir erescender a diocese como um campo de açucenas naPrimavera. Em seguida à fundação do templozinho de NossaSenhora da Lapa lá reza o letreiro: Esta capela he dopovo que se fez à custa das esmolas dos devotos.Anno 1742 - empreendeu José Pais construir umvasto e grandioso albergue para peregrinos sobre aestrada que levava aos Banhos de Alafões. Aomesmo tempo que legado filantrópico ao porvir,seria um padrão a comemorar o restabelecimentomoral do velho burgo na integridade primitiva. Aideia era magnífica e ambiciosa. Mercê, porém, da

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graça de Deus e do poder cabalístico das palavras:Salamaleque! Salamaleque! - que o santo homemcontinuava a proferir invariável e exclusivamente -afluiram donativos, sem conto, de cidade, vila etermo. E não tardou que o filantrópico edifício, queainda hoje ali se vê com claustro e empenas de belorocaille sobre a Praça, se erguesse ao sol coniventedas alturas. José Pais era o guardião e o ecúmeno, ecomo não se por incentivo seu os alvenéis haviamtrabalhado quase de graça, embora esfomeados ecom os joelhos rotos, os ricos proprietários tinhamcardado os rendeiros e carretado seus dízimos, asricaças deixado bons legados no bem de alma, e atéos pobres, para livrar-se do Inferno, de rostos emfebre, trazido o seu óbulo?! Uma noite tropeou à porta do hospício, que atéentão não albergara ninguém a não ser José Pais e oséquito, uma besta possante. As portas que davampara a calçada abriram-se em rópia. Dois homensarrastaram outro manietado de pés e mãos eatiraram com ele de rebentina para cima da albarda;amarraram-no e cilharam-no em carga como odreou saco de farinha; estenderam uma manta por cimapara que se não reconhecesse à primeira tão singularfazenda. Mas ele, muito longe de morto, urrava:

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- Ladrão, tudo o que agora tens develo a mim, mastu mas pagarás! Não te chegaram os quatro anos degalés com a Comendadeira e queres voltar?! Poishás-de voltar, tu e essa desenvergonhada daMicaela! O conde do Arco há-de saber quem é a suamanteúda! Polha, rascoa de cão e gato, víbora!Entregais-me aos frades, mas do cárcere da Ordemtambém se volta. Excomungados! Veremos quem éo último a cantar o Salamaleque! Um brutamontes de bigodes façanhudos e clavina atiracolo, que bem se via ser um homem lige, saltoupara o aparelho do cavalo, deitou a mão à gargantado algemado e, ora apertando, ora afrouxando comose governasse uma buzina, picou. Chumbo Tudo foi bem até às alturas dos dezassete anos.Certa manhã de domingo, com os pintassilgos agorjear nos loureiros do quintal, pareceu-lhesurpreender na luz opalescente, mais fulgurado querelâmpago, um tagaté do Lambu para a Eduarda.Foi tão instantâneo, que ficou a pensar se fora aquilodesenho da sua fantasia, se traço real na loisacaseira. E precatou-se. Suspicaz por sabedoria e pelos cinquenta anos,pareceu ao senhor Manuelzinho, proprietário, que o

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criado, movido a um reflexo subtil, se precataratambém. Nunca mais o pilhou a entrar na cozinhaou de olhos levantados para a menina. Semelhanterecato mais o convenceu de que andava mouro nacosta. E persistiu nas suas reservas. O rapaz era fechado como uma campa, já não assima doidinha. Foi por ela que veio a destorcer oprelúdio amoroso dum romance que só Deus sabeonde levaria. Dera em andar nervosa, arrufadiça, esó estava bem onde não estava. Como o Zé Lambuficara de lazareto, corrido de todo o comércio comeles, a pequena acabara por tornar-se insuportável. - Esperai lá, que eu tiro-vos as fidúcias! Sem dizer água vai, um belo dia despachou o moçoà vila com recado que o demorava até à noite, e elemeteu esporas para a cidade. Falou com o Chança, ogrande Chança, de Pendi-lhe, a quem todos os anosaviava a sua peita de chouriço, além do pão de lópela Páscoa, na mira de ter no Distrito deRecrutamento uma cunha para as ocasiões. Andara com ele nas primeiras letras, e tinham ficadoamigos de tu cá, tu lá. O Chança fizera ainda doisanos de Seminário, mas tomara-se de tal birra com olatim que, sem deixar de ser cristão praticante,adoptara a carreira das armas.

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Falou ao oficial com o coração nas mãos e obteve oque pretendia: o rapaz assentaria praça comovoluntário, era só aparecer no regimento. Quanto à moral do caso, estavam ambos de acordo.Em vez de deixar chegar a serpente até Eva, eles,macacos de rabo pelado, no lugar do Padre Eternotê-la-iam desviado para longe; e lá quanto aconservar no Paraíso a árvore de belos pomos, comque não deixaria de se tentar a gulosa, nunca pornunca. A poder de verem exemplos pelo mundo,graças à soma de empirismo adquirida na porca davida, sabiam quanto são de cera branda os coraçõese inflamável a carne juvenil. Para mais, o Lambu eradissimulado, um sonso fingido, afirmava o ManuelBezerra. - Pois mochila às costas! - reiterava o Chança. Tepetepe, no caminho de regresso, o senhorManuelzinho batia os rubis da sua descobertapsicológica: um sonso fingido, olé, um grande mula!modo de se desanuviar do transtorno que lhecausava ter de apartar-se do rapaz, fâmulo, arrieirohortelão sem igual, bom para tudo, menos paragenro pela mão canhota ou com a sua benção. Láisso, to’ruça! No dia seguinte, José Lambu, de sapatos brancos,chapéu novo enfeitado à Marialva, duma pena de

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pavão, gravata de fivela com fundo verde-mar emque boiavam ervilhas vermelhas, apresentou-se noquartel a entregar uma carta do senhorManuelzinho. Em bolandas, da sentinela para o caboda guarda, do cabo da guarda para o segundo-sargento, do segundo-sargento para o oficial depiquete, acabou por ser informado que o majorChança, àquela altura da incorporação, entravatarde; tinha tempo para ir jogar a choca. Remoendo a sua filosofia de filho das ervas, a quenão haviam obliterado de todo aqueles anos degorda servidão, não era sem uma certa inquietudeque sentia na algibeira do colete, contra a carne, acarta de prego. Vagamente se dizia que podia ser elepróprio a matéria versada; mas a que título? Que alihavia gato, havia, agora qual, por muitas voltas quedesse ao entendimento, não era capaz de atinar. Oinstinto teimava em adverti-lo que não se tratava decoisa boa, e essa advertência era como um espinhoque o pungia desde a primeira hora. Mas quê?! -tornava a repetir-se. Sentou-se num frade estroncado, que havia àdesbanda da porta de armas, mal adormecidos osseus cuidados ante a perspectiva matinal queoferecia a praça: gente, em baixo, leva-que-leva àsobrigaçõezinhas, a chusma de galuchos e oficiais

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que iam e vinham, aqueles batendo a bota de seteléguas, estes muito intanguidos no capindó, que ocarujo cortava como navalha de barba. Não deixava de ser curioso observar tudo aquilo,mormente os toques das cornetas, que ia decifrandopelos manejos respectivos; ao rancho, e a inferneirabeduína, todos à uma, pós-catrapós; a doentes, e oclangor que, por obra do silêncio, se congelava no are se colava às paredes como lívidos lençóis; asargentos, e lá ao fundo da parada perpassava umvulto mazorreiro, outro subia a rampa afogadiço. Mais duas rodadas do ano, e também ele, JoséLambu, filho da Maria Simeão e do Luís Lambu,mateiros e pés frescos, teria de passar porsemelhante portela. Até lá cantaria o mocho muitasvezes. Depois, lá estava o senhor Manuelzinho parao livrar das correias, se entretanto não saísse uma leique acabasse com a guerra ou só obrigasse a sertropa quem tinha inclinação. Ele não tinha. Aquilode marchar a compasso ou à voz dum cornetim:direita; esquerda; ordinário, marche; volver, comovia que manobrava além fora a manga de recrutas,quadrava mal ao seu génio. Criado à rédea solta danatureza, qualquer contracção aos livresmovimentos lhe era molesta. Ordens tolerava as doamo, que o vestia e calçava e lhe punha o comer. E

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quanto a apanhar o seu cachação, agora que lheapontava o buço, nisga, nem do pai, e mais rezava acartilha do abade de Salamonde era quem mandavanele abaixo de Deus. Nada, nada! A caserna deparedes altas, golpeadas de frestas gradeadas, com ovau, que era a porta de armas, vigiado noite e dia,para ele, bicho do monte, revestia a catadura dumacasa de reclusão. Livra! Tocavam as cornetas: Quem quiser galinha... Não, ele não gostava daquela galinha, por muitobem temperada que fosse. Os recrutas lá em cimamoviam-se como uma centopeia, um, dois, um, dois,e não era mais custoso que bater dois sacos deespigas ao mangual. Também a mochila não botavapeso que rendesse ninguém. Embora. Aquilo erarica vida para os filhos-famílias e todos os quetinham sido educados na regra do bom viver. Paraele não. Faltava-lhe jeito para obedecer a gente quenunca vira mais gorda, à qual ignorava porquedevia vénia, e que frutos daí podiam resultar. Por muito tempo esteve de olhos perdidos nosvários panoramas da caserna, enquanto o espíritodobava a meada interior, sem princípio nem fim. Deespaço a espaço, experimentava uma picada: era acarta. Era a carta contra o peito, comburente comoum cáustico Ainda se não tinha saturado de

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malucação quando o cabo o espertou com umacotovelada: - Homem, você não viu passar o nosso major?! Através de escadas e mais escadas, todas mais apique e sebáceas umas que as outras, alcançou a salaem que estava com vários escribas fardados osenhor major Chança. Era um homem de pescoçoem regueifas, barba azul à força de preta e rapada,olhos tranquilos. Leu a carta e, com fisionomiaimpenetrável, perguntou para o graduado à suabanda, ao tempo que enroscava o cigarro naboquilha: - O nosso tenente-médico já chegou? - Ainda não chegou. O major estendeu os braços a espreguiçar-se,perplexo, bem se via, em face daquela emergência, etendo achado a saída enquanto se espreguiçava,disse ao impedido: - Ordenança, leva este rapaz para a sala deinspecções. O José Lambu viu-se, dali a pouco, numa casacomprida e de alto pé direito, com uma janela aofundo coalhada de teias de aranha, em que reluziamcomo pérolas sujas os abdómens estivais das moscasmortas. Contra a parede não se via mais que umamesa, por sinal bem coberta de pó, e no meio do pó,

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solitária e suja como as que se vêem pelos quelhos, abotina de vidro do tinteiro. Ao fundo, o aparelhoesquipático, pernaltudo à maneira de grou, deviaser a craveira com que tomavam a altura dosrecrutas. Esse aparelho, assim que lhe penetrou autilidade, deixou de o interessar. O que mais lhechamava a atenção era no cromo da parede arapariga bonita, cabra de alto lá com ela, perna aoléu, nariz impudente, sorriso brejeiro, e que serviade espaldar a um calendário. A Eduarda, por muitotentadora que fosse, estava a léguas daquela. Masexistiam mulheres assim bonitas, ou não eram maisque farófias da imaginação? As horas, entretanto, iam passando, e ele perguntouao seu donguinha: que estou aqui a fazer? Nãosabia, e por muito que olhasse a biqueira dossapatos, os seus ricos sapatos de vitela, contasse astábuas do soalho, depois os remendos das mesmastábuas, não acertava com a resposta. Mas de certacerteza não estava ali para receber a sorte grande. Na secretaria ao lado, como borbotões dum riacho,erguiam-se vozes, ateava-se o paleio e extinguia-se,assoava-se gente com estrondosa fungadela. E, cadavez mais insistente, lhe ferrava o espinho: - Que estou eu aqui a fazer?

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Pouco a pouco a ansiedade invadia-o, e consultava-se sobre o crime que mau grado seu podia tercometido ou que lhe podiam atribuir. Mas nãoestava em casa do senhor Manuelzinho, proprietárioe por várias vezes juiz de paz, que não se enganava,dotado daquele faro que confere a profissão ao cabode largo exercício, mercê do quê era-lhe fácildescobrir o podre onde cheirava mal!? E o ZéLambu, vadio e irregular ontem, farto e morigeradohoje, tanto se sobressaltava como volvia à calma,segundo a alternativa de humor de suas duascondições. Para trapa, tinha os olhos abertos. No seu horizonte subjectivo trancavam-se nãomenos obtundentemente que as paredes daquelasala as figuras do senhor Manuelzinho e do Chança.A Eduardinha vinha de envolta com a paisagem queos olhos da alma trazem sempre consigo e é, porassim dizer, o pano de fundo para todas as coisasvistas ou sonhadas. Ela, a senhora Francisca, a mãe,o pai Lambu, vinham representar no seu guinhol,coriféus infalíveis, como sucede, de resto, com todaa gente, mal se ergue o pano no teatro de cada um.Mas, apenas apareciam, apagavam-se, fluidos,rápidos como as estrelas cadentes riscadas numabruma indecisa. Quem estava assinalado a grossotraço era o amo e o Chança, um que escrevera a

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carta de que fora portador, outro que a lera e ficaramudo como um penedo. Ali havia história, mas asbiqueiras dos sapatos, as últimas moscas friorentas,que sarabandeavam na vidraça, as frinchas dosobrado não lho sabiam dizer. Fosse o que Deusquisesse! Aquela janela tinha uma carreira de cinco vidros atoda a largura e outra de oito de alto a fundo; total,nos dois caixilhos: quarenta vidros. Quarenta, umcarro de milho, metade dos anos dum cristão quemorra com os dias cheios. Contando depois daesquerda para a direita, deu-se a fazer rodopiar osvidros de molde a apanhar sempre o da frente comoponto de partida. Levava o seu tempo a dar a volta,e entretinha-se no carrocel, como um doido queprocura pilhar o polegar da mão direita,enclausurado entre os dedos da mão esquerda, só acabeça de fora, com lançar-lhe na mais fulminanterapidez os cinco dedos da mesma mão direitaquando a porta se abriu de rebentina. Além do Chança e seu graduado, vinha um homemà paisana, que o puxou pela gola da véstia, sem lhedeixar tempo a erguer-se spontesua: - Já alguma vez estiveste doente? - perguntou-lhe àqueima-roupa.

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Que raio de pergunta! Mesmo assim em despeito doinusitado, respondeu de pronto: - Não senhor. - Bom é isso. Quantos anos tens? Calou-se. Não lhe ocorria quantos anos tinha. Masque ganhavam em sabê-lo? Nascera... - Vai fazer dezoito - disse o Chança. - Verifique oSantos Santos, o graduado, mergulhou a vista nos papéisque trazia e corroborou: - Faz dezoito anos em Março. - Não há que dizer quanto à altura e tórax - tornou opaisana, pondo-lhe a mão na cabeça, modo de oobservar bem de frente. - Aleijão ou defeito não lhevejo. Bom, bom, está na conta. Que mais, major?Vocês cá o medem. Estou com uma pressa danada,voltou-se-me o vinho! Adeus, adeus... Largou porta fora, na impaciência meio alucinadade acudir ao sinistro dos seus tonéis. O majorChança olhou para o Lambu e com o dedo indicou-lhe a craveira. - Para quê? - Breve o saberás. Faze o que te mandam. Postou-se na craveira e ouviu o sargento que lia alto:um metro e setenta, para logo de seguida volver à

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papelada e anotar. Isto feito, estenderam-lhe umapágina lavrada: - Assina... Tinha ouvido ao senhor Manuelzinho que nunca sepõe o nome por baixo de papel sem o ler, pelomenos, duas vezes, e respondeu: - Assino? E com que fim, se não queda mal operguntar? - Já vais ver, assina! - Haja de perdoar, mas isso é que não assino! O major deu um estalo com a língua, fitou-o muito,ao passo que o sargento não o fitava menos: - Não assinas? Então queres ou não queres assentarpraça? Aquela palavra foi uma centelha. Daquela centelharompeu o clarão que dilucidou tudo: queriam-noobrigar a assentar praça como voluntário. Masporquê, santo Deus? Num ápice, meio atordoado,com o chão a oscilar debaixo dos pés, respondeu emvoz que tinha tanto de soluço como de grito: - Não senhor, não quero assentar praça. Quando mechegar a vez, cá me têm. Antes, não, antes, não!Prefiro deitar-me à ribeira. Não queriam lá ver, um bisbórria daqueles aarvorar-se em senhor do seu nariz!? E permitia-se

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ter engulhos, hem?! Então porque não havia deassentar praça, porquê? - Porquê, não farás o favor de me dizer? - repetiapela segunda vez o senhor major Chança,escarninho e subindo de tom. Não sabia, mesmo que lhe quisesse dar a respostadevida. Porque é que um homem não gosta doutro,sem jamais ter tido meças com ele, digam lá?!Porque é que a gente se recusa a provar de certascomidas, sem jamais as ter saboreado?!Auscultandose o mais rapidamente que lheconsentia a atitude por igual afrontada e zombeteirado major, encontrava no fundo do seu instinto umaresposta vaga: é que deixava de ser livre, livre comoaté ali era, livre como o vento, que ninguém tolhe decorrer, livre como um pássaro que vai para onde lhepuxa a asa, livre como o gato montês, que tantodorme, como caça, como brinca no brejo natal. Écerto que estava de soldada em casa do senhorManuelzinho, o mesmo era que cativo, mas devontade, de sua espontânea vontade. Embora deajuste, podia sem riscos, se lhe desse na tineta,correr como o vento, lançar-se a qualquer ponto darosa como as aves, ir moinar como o bicho bravo.Enquanto que no regimento deixava de se pertencer.

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Era da lei, assim fora instituído para todos, mas a eleninguém lhe dissera: gostas? - Não dizes?! Fica sabendo que assentam praçacomo voluntários filhos de muito boa gente, ricos einstruídos, cem vezes mais mimosos do que tu!Olha, do perto se vai ao longe, que é como quemdiz, pela tarimba também se sobe a general. Sabes,meu asno, sabes?! - Quando me chegar a vez, cá venho. Agora não,meu senhor, agora não. Fazia muita falta em casa dosenhor Manuelzinho, vossemecê sabe, o senhorManuelzinho que, para mais, é outra vez juiz de pazde Cabeço de Vide... O major olhou para ele com infinito desprezo e,enquanto o sargento sorria com igual desdém,proferiu, pegando nos papéis: - Está aqui a petição e o consentimento de teu pai:Luís Lambu, também chamado Luís Fidalgo. Teupai quer, os teus querem, e tu dizes tórola! Imaginasque estamos aqui para panos quentes?! O rapaz quedou-se suspenso, boquiaberto primeiro,depois de olhos fitos nas frinchas do soalho, até quedespertou: - Eu não estou em casa de meus pais; há muito quelá não estou, não senhor. Onde eu estou é em casado senhor Manuelzinho Bezerra, de Cabeço de Vide.

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Ele é que manda em mim. É meu amo? É mais quemeu amo. Foi ele que me criou-me mandou à escola.Meu pai não manda nada... Olhavam para ele muito fitos e, como pelos autosmostrassem ar de virados, ar de pessoas a quem oânimo deu volta, tornou: - Até se me está a fazer tarde e ele mal podedispensar-me um instante... Aquelas palavras, os dois graduados desataram arir. Riam, riam consoladamente, que era uma formasacripanta de troçar, vendo-o feito numa rodilha. - É chumbo, isto é chumbo! - chalaceava o sargento. Ouvindo aquelas vozes de achinca-lhe e disfrute,entraram com ele as desconfianças, que picam comovespas. Ao tentame, proferiu: - A menos que meu amo me não queira lá! - É chumbo! - continuava o sargento a esporteirarentre esfusiadas de riso. - Pois não quer, homem, não quer! Tarde deste novinte! - exclamou o Chança, em tom meio depiedade, meio de bonomia, satisfeito com haverencontrado o X do problema. - Como o sabe vossemecê? - proferiu, levantandogrimpa de galaripo. O major foi à outra sala buscar a carta do juiz emeteu-lha debaixo dos olhos:

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“Aí te mando o rapazote. A roupa leva-a a oveira,senão era dizer-lhe onde ia. Como nunca sofreu deachaque, nem é aleijado, podem deitar-lhe ascorreias ao lombo mesmo sem exame médico, quenão arreia“ Não foi mais longe. Borbulharam-lhe duas lágrimasnos olhos que, a disfarçar, foi esmagando com ascostas da mão, e repentinamente declarou: - Deixá-lo! Assentar praça, não assento. Vou serviroutro amo. Passem muito bem, meus senhores, eu cávou... Foi tão imprevisto o seu rasgo, que pôde chegar atéa porta sem que lhe embargassem o passo. Mas omajor, recobrando-se, gritou-lhe: - És menor, não te podemos deixar ir sozinho - Mas sozinho vim eu! - É diferente. - É diferente? - É muito diferente - disse o sargento comirrespondível suficiência, como o Chança ficasse denovo embaraçado. - Enquanto te não vierem buscar,não podes sair - Mas ninguém me vem buscar! - exclamou numgrito de desespero. - Se não vierem... Se não vierem... Não sei. - Mandem-me preso a meu pai.

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- Isto aqui não é polícia, meu santo. - Chamem então meu pai... Agora eram os dois que aparentavam ar deinterditos. O major lembrou-se que a recoveira lhehavia de trazer o bragal de recruta. - Está bem, logo, quando vier a mulher, manda-se-lhe o recado. Saíram da sala. Ele ia-lhes na peugada, mas o majorvoltou-se, erguendo um dedo cominativo: - Ficas detido até que te venham buscar... . Fico detido? Mas ainda não almocei. Tenho fome!Deixem-me ir almoçar e já volto - Isso também eu queria. Não almoçaste? Nem eu... O José Lambu pôs-se a soluçar alto. Não era fome,embora sentisse no estômago esticões mais violentosque dum garraio amarrado à trela e aguilhoado. Erade verse preso. Era de ver-se, ao contrário do vento,dos pássaros, do gato bravo, encurralado entrequatro paredes. O major demorou-se o tempo dumai entre dois batentes, a mão na maçaneta do trinco,e em voz ralhada, voz que pretendia ser paternal,murmurou: - Assina o papel, homem, não sejas tolo! Assina.Assinas e podes girar...

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Como o grande cabeçudo não respondesse, bateu-lhe com a porta na cara, e arrebatadamentedespediu. O José Lambu assentou praça - que remédio? - e aguerra, a nossa guerra, encontrou-o com a instruçãoem ponto e diploma de atirador de primeira. E umatarde de carujo, com o cume dos montesarredondados pela névoa, lá foi de mochila àscostas, Nº 96 de Infantaria 14, Secção Ligeira daColuna Nº I a caminho do embarque. Custou-lhe a despegar? Mal deu conta. Quandotoda a magalagem tinha gente à despedida com asua taleiguinha de castanhas, as duas maçãsreinetas, os cinco reizinhos para cigarros do tio Zé,do senhor Afonso brasileiro, por ele ninguém deupasso. Também foi de olhos enxutos que viu aspobres mães debulharem-se em pranto e oscamaradinhas esmagarem as lágrimas, gordas comorepolhos, com a polpa dos dedos calejados. Em seuslábios acabou mesmo por acender-se um sorriso demofa para tanta choradeira. Mas no fundo da almasentia um vazio, triste e aziago como terra maninha.Foi sob o império de não sabia que desconsolo quevoltou dentro e, já de correias ao ombro, na bancada casa das armas, enquanto não acabava a

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formatura, escreveu a cartinha que confiou à Rosarecoveira: Menina Eduarda. A sorte com que cada um nasce cá me leva a mim paralonge da nossa terra. Se já isso não custa pouco, pior équando se vai para longe de quem é a luz dos nossosolhos. Saberá que é seu pai o culpado de eu ir para a guerra,porque a mim não me cabia a vez. Lá se entendeu com onosso major, como já tinha sido de mascambilha com eleque me obrigou a assentar praça. Tudo isto para metirarem da vista da menina. Estava a dizê-lo o mesmopara o primeiro-sargento e eu detrás da porta a ouvir.Mas deixá-lo, ao senhor Manuelzinho nem mal lhe queroem respeito de ser pai de quem é. O mundo dá muitavolta; tornam as águas às fontes e as andorinhas aosbeirais onde foram criadas. Pode ser que eu torne; se talassuceder, o meu coração irá logo perguntar por quem é asua dona. Se não tornar, que me leve por lá Barzabu oualguma bala, a menina Eduarda pode dizer, que não erra:pobre do Zé Lambu que morreu a pensar em mim. Perdoe a quem tanto lhe quer e que, a bem dizer, nunca seatreveu a confessar-lho. José Lambu, soldado Nº 96 da 2ª Secção Ligeira daColuna Nº I. Lá abalaram num comboio muito comprido earrastado: pouca terra! pouca terra! da cidade

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provincial. A máquina não podia apitar, aflita, eparecia que era o peito que lhe estalava e se punha auivar. Por aquelas estações fora: choros, gritos,forças em formatura, e uma noite negra com Lisboaao cabo da viagem sem fim. Afinal lá chegaram.Uma grande bisarma torva fumegava encostada aocais e, sem que ninguém lhe dissesse que era o navioque os havia de transportar, ele teve logo o palpite,como se tirasse por outros em que andara demareante numa vida passada. Ah, o mar era grande, bem grande, mas ele ainda osonhara maior! Não era mais largo e, por certo, maisfundo o céu por cima dos montes de Cabeço deVide? Ao cabo de cinco, seis dias, botaram à terra estranhados nevoeiros e piratas. A gente não era como a dasua terra, toda ela mais lauta, mais branca, com ardesdenhoso ou travesso. Que rico femeaço! A falar,só o Diabo os entendia. Ao fim de semanas de calacice, atiraram com eles decambulhada para as trincheiras. Agora é que eramelas: fogo e mais fogo, balas e medo por uma pávelha! Minha Nossa Senhora, para o que uma mãecria um filho! Com o rolar do tempo operou-se a sedimentação detodas estas coisas doidas e nunca vistas. Faziam-se

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de chumbo, sem energia, mas fixes e pregados aosolo. O troar do canhão acabou mesmo por se lhetornar tão natural como a goela do José da Eira aesporteirar lá dos altos para seu pai: - Ó tio Luís Lambu! Tio Luís Lambu! Deite lume aoforno!!! A fuzilaria constante, o crepitar das mil máquinasSinger das metrelha-doras não lhe faziam maisimpressão que a tamancada do poviléu ao despedir,adro fora, da missa do domingo. O fogo nocturno,verylights e minas, de princípio recreou-o como oarraial da Senhora da Lapa. À força de repetir-se,nem abria os olhos sequer para ver a mirabolantecatadupa de cores despenhar-se do céu e esclarecera terra. Entrou num raide, de rastos como umacobra, pela terra de ninguém, sossobrada na noiteescura. O camarada de tempos a tempos apertava-lhe o braço: - Onde estás tu? Não viste mexer lá em frente?Estamos quilhados... Com efeito, de repente, as metralhadoras inimigasraiaram a escuridade com sua filaça de fogo.grandes vultos negros arremeteram para eles dofundo da noite. - Ui, que lá tombou o nosso major! - Foi o ladrão que me atirou para a guerra. Embora...

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O Lambu pegou às costas do homem prostrado. Nãoera da patarrega, não era o senhor major Chança,que lhe dizia sempre que o encontrava, batendo ostick: Como vais, rapaz? Não, ali não havia de morrer. Chegou às linhas asoprar, cada cabelo sua fonte, que o Chança erahomem alentado. Bah, uma bala entrara-lhe na coxapor um lado, saíra-lhe por outro. Assim ferido, foioiro sobre azul. Base com ele; depois Portugal. - Que queres para a parvónia, ó 96? Coçou a nuca. - Dize lá, homem... Desembuchou: - Se vir por lá a filha do senhor Manuelzinho, sabe, amenina Eduarda, faça-lhe visitas da minha parte. - Mariola! No ataque de envolvimento às linhas portuguesascaiu com a peça vadia de sete e meio, a que andavaadido como servente, na redada do inimigo. Ao Sol-pôr, grande caterva de prisioneiros era tangida paraa retaguarda à chuçada dos canos de espingardas.Nunca tinha visto os “alimões” bem de frente. Aoafirmar-se naqueles grandes homens ruivos, feros ecom muitos bolsos, muitas portinholas nos bolsos,muitos botões, muita coisa às costas e ao peito, deque não percebia a utilidade e não custavam nada a

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levar, ficou a cismar consigo e com Deus: quem oshá-de vencer? Numa caravana, em que havia bicho de todos oscambais da terra, até chins, foi conduzido a pé pelaestrada pegajosa, escoltado por guardas a cavalo,que uivavam para eles de cima de suas horsas. Alama colava-se aos sapatos e era um castigo darpassada. Às bandas, nos campos desertos, bandos ebandos de corvos esvoaçavam crocitando. Reluzia oaço dos infinitos carros escaquei-rados e as ossadasdos animais de tiro. A suar em bica, embora fizesse frio de rachar,chegaram a uma grande cidade, de casas baças quenem que as envolvesse o sincelo, apertadas umas àsoutras e soturnas. Comer? De grilo. Três diasestiveram sem provar bocada e o António Pardal,patrício que descobrira na turbamulta, dizia-lhe: - Já nem vejo a terra que piso. - Nem eu. - Mas vejo bem aquela cara do “alimorda”. Sabes,estou mesmo com ganas de me botar a ele e àdentada arrancar-lhe uma assadura da nádega. Olhaque rabadão, ó 96! Não lhe deram pitança alguma, nem gorda, nemmagra, mas atiraram logo com eles para a frente aarrasar trincheiras e a estender pranchões no terreno

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lamacento para a artilharia passar. Foi na voltaduma dessas fachinas que o ladrão dum “reitre”, decara hirsuta como um chibo velho, veio com umpote de tinta e, a pincel, começou a pôr-lhes umnúmero nas costas. O Pardal, que era todo nervos,quando se viu marcado como uma rês, deitou achorar. - Deixa, homem - disse-lhe o Lambu. - Hoje pintam-nos eles, amanhã pintamo-los nós. Quando terminaram o trabalho nas linhas e osalemães se preparavam para novo avanço,distribuíram-nos em piquetes. Uns foram mandadosreparar estradas, outros cavar abrigos, aquelecarregar e descarregar material de guerra decamiões e galeras que só andavam de noite e defaróis apagados. A ele coube-lhe com o Pardal e o76, que era dos arredores de Lisboa, e uns tantosfranceses, arranjar a estrada que levava deArmentière para o Argonne. Todo aquele fim de Abril e as duas primeirassemanas de Agosto andaram de pá em punho,governados por um perna de pau, de carabina atiracolo, que lhes não deixava levantar cabeça. A suaração diária era um litro de sopa de beterraba, semtempero e mal mexida, e 100 gramas de casqueiro,do tal que o Diabo amassa. Onde iam buscar forças

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para remover a terra? O Pardal rangia os dentes equando o chefe de turma lhe dizia em mauportuguês: - Trravaalhem, madriones! - ele chamava-lhe, defilho duma porca para baixo, quantos nomesobscenos ecoam pelas vielas. Um dia o Lambu disse ao Pardal e ao alfacinha: - Ó rapazes, eu vou ver se me ponho ao fresco.Quereis vós fugir comigo? - Por onde, alma do Diabo? - Tenho cá um plano. Sabeis nadar, não sabeis?Olhai, passamos a nado o canal de La Gorgue e élimpinho - Limpinho? - Quer dizer, para lá do Canal é outro mundo.Temos já uns tentos a nosso favor. Tinham o quartel num lugarejo que, pela dispersãoe pouquidão das casas, escapara até ali à foiçada daartilharia. Um obus viera cravar-se na empena dataverna Au cheval gris, depois de ter penetrado natorre pela ventana, que estava devoluta, eesboucelado o sino na outra. E um shrapnelsalpicara de grossas e esparralhadas bexigas afrontaria da igreja. Mas os sinistros não eramclamorosos. Já os campos em torno mostravam-sesemeados de crateras, de barrocas, cavadas pelas

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granadas o que dificultava a vida agrícola segundoas variações de uma alça que tomara por objectivoconstante a estrada essencial do Argonne. A Kommandantur não vira inconveniente em que osprisioneiros, alojados à retaguarda das linhas,gozassem de relativa liberdade. Eram algunsmilhares, de todos os polipeiros humanos, e falandotodas as algaravias, e repartidos por turmas aolongo daquela importante via de comunicação,podiam ir depois das horas de trabalhoregulamentar, onde lhes puxasse a veneta. Osportugueses, que eram menos que dúzia, umasnoites por outras arranchavam num estaminet quehavia, obra de meia légua dali, num poviléudesmantelado atraídos pela dona, uma loiraçadesnalgada e liberal, que se pegara de béguin porum deles, filhote de Castelo Branco. Elaempazinava-os com feijões à la bretonne e batatasfritas, e eles traziam-lhe os objectos que podiamunhar, mal guardados aqui e além, dos depósitos edomicílios particulares. As mais das vezes metiam-se na cave, que lhes servia de dormitório e, antes deferrar o galho, jogavam a bisca lambida à luz do luarque entrava pelas lucarnas, ou remendavam aroupa, em má hora se apartara deles o Justino doTojal, 68 do 14, havendo-se inculcado aos alemães

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como graduado, no intuito de se furtar à pá e àenxada. Deixado à sirga uns dias, o êxito daprimeira trapaça inspirara-lhe veleidades de fugir.Fora abatido como um caçapo nas primeiras linhasalemães. Deitado de costas na enxerga de palha, o 96 pesavaos prós e contras do seu plano de evasão. As estrelasque mais lhe luziam eram os olhos de Eduarda, cujaimagem estava mesmo a ver, àquela altura da sazão,no quintal túrgido de peras amorim e maçãscamoesas; depois o vivório dos camaradas do 14,quando lhes aparecesse na guinguette à hora emque, rendidos da lama das trincheiras, viessemdecilitrar o rascãozinho da terra; não menos oscaminhos livres e desimpedidos, o sol amigo, um solestrangeiro, é certo, à semelhança do Dieu de laFrance, mas em suma sol da banda de lá, de modo apoder gozá-lo um pobre soldado à tripa-forra eespernegar-se um cristão à sua chama como oslagartos. Deus ou o Diabo, vá lá saber qual, acenava-lhe, por outra, com os maus azares da fuga: abaioneta dum boche que, fosse ele caçado, nãodeixaria de espetá-lo, assim como um sapo numaestaca, a rajada da metralhadora que o mandariapara os anjinhos sem ter tempo de dizer: ai minhamãe! Contra, havia ainda os camones que estavam

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da banda de lá, e que, brutos como portas e poucoatilados, quando vissem a sua sombra rastejar naterra de ninguém, eram capazes, se lhes desse nogoto, de abrir fogo que fumegava, como às vezesque apanhavam um caco, diante dos pés nocaminho, se empurravam uns aos outros a dar-lhechutos. Mas coração para trás das costas: - Ó Pardal, queres fugir ou não queres? E tu, ó 76? - Quero. Mas primeiro hás-de jurar que me levasdireitinho às linhas dos aliados - respondeu oPardal. E um burro para ires escarrapachado, não pedes? - Um automóvel seria melhor. Mas vamos, expõe láessa estrangeirinha O Zé Lambu fez uma larga explanação do seuprojecto. Falava baixo, menos que ciciado, de modoque só ouvissem o conterrâneo e o lisboeta, nãofosse por lá o Diabo armá-las. O Diabo eram unscamaradinhas ali ao lado, o raio duns pilordas quesó para apanhar aos alemães mais um naco dechouriço não se envergonhavam de lhes dar graxa,correr a toque de rufo diante deles e rapar naestrada como quatro, e uns italianos, gente de másintenções, que podiam desconfiar e dá-los à dica. Dequando em quando fazia a sua pausa, o tempo depassear o rabo do olho por uns e por outros. Mas só

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a sua desconfiança de raposão era susceptível de taiscautelas. Ninguém se importava com o que dizia.Uns ressonavam de papo para o ar; outros falavam asua língua de trapos em que só o Diabo metia dente;havia menino, franciu das ilhas, que tocavaberimbau. De quando em quando, por cima deles,estalava o soalho ou ouvia-se o estampatório dequem entrava, chocando-se às escuras, malorientado ou bêbado, contra os dois ou três móveisque alfaiavam a casa. Os donos, gente de lavoira com as suas posses,tinham-na evacuado a tempo, depois de retirar oshaveres de maior valia. Haviam ficado os trastespesados, a mesa de sala de jantar a que umamericano quebrara a perna com uma patada, cincoou seis cadeiras com a palhinha rota, e o armáriopicardo, tão mexido e remexido por quantos vinhamaboletar-se na casa que, das portas desenculatradas,uma se estatelava para trás a modo de bandeira,outra pendia sobre o gonzo de baixo, caio, não caio.Quem entrava, e não sabia ou vinha a pensar noutracoisa, marrava infalivelmente na porta escancarada,e era praguedo que fervia e o vingativo e estrondososopapo contra a infeliz. Ao Pardal a coisa afigurou-se muito arriscada. Daliaté à frente portuguesa ou inglesa, tirada uma recta,

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devia ser uma légua, mais quilómetro menosquilómetro. Havia três linhas alemãs a atravessar,não falando nos abrigos, nos ninhos demetralhadoras e nos blockhaus camuflados aqui ealém. Tinham toda a noite, sim, para singrar entre...- e o Pardal emitiu uma imagem obscena que fezcacarejar o lisboeta. Era como ir de pés descalços porum soito fora, depois da apanha das castanhas, enão se picar. Uma grande aventura; novecentas enoventa e nove probabilidades de serem fisgadoscontra uma de se safarem na fresca da ribeira. Não.Não contassem com ele. Era casado, tinha na terramulher nova, só com um gaiulo, não queria queoutro se gozasse dela. - Deixa lá, 96, não vai ele, vamos nós! - exclamou oalfacinha com certo ímpeto. - Não precisamos dotipo para nada, nem para nos assobiar às botas.Vamos nós, 96. Dize lá quando há-de ser? - Quando há-de ser? Hoje mesmos. Ainda não deu ameia-noite. - Toca! O alfacinha levantou-se da cama lesto enaturalmente como quem vai a um destino notório;o Lambu tirou debaixo da enxerga a machadinha demão que bifara numa granja, meteu-a à sorrelfaentre o coiro e a camisa, e foi-se em pós.

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À porta espreitaram a rua e o mundo. Não boliagato, mas o céu estrepitava do batuque da artilhariapesada, martelando, sem relego, a retaguarda daslinhas alemãs. De cá respondiam, e a atmosferaenrubescia de leve poalha ruiva, que ficavasuspensa das malhas da cacimba e talvez de cirrosbaixos como um velário cor-de-rosa sobre a terranocturna. - Vamos lá com Nossa Senhora do Livramento! -murmurou o Lambu, dando o primeiro passo dalibertação. Até proximidades do canal, a marcha não ofereciagrandes riscos. Estava uma noite levemente opaca,com luz de quarto minguante, e os vultos das coisasa mais de vinte passos diluíam-se na vaguidãoespacial. Mesmo assim, caminhavam sorrateirospelas bermas em que crescia a erva, acoitando-se detempos a tempos entre as rimas de ferro velho e nasdobras do terreno, a especular. Um segundo deatenção e silêncio, e rompiam adiante. A artilharia continuava, de parte a parte, a bater asvias de comunicação, parecendo que do lado daFrança se intensificava o fogo. As granadas caíam atorto e a direito, aqui uma, além outra, rebentandocom fragor e projectando ao ar nuvens de terra eestilhas de toda a sorte, cujo bouquet adivinhavam

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mais que viam. Aquilo era o pão quotidiano e, ala,sempre em frente. O canal, de cuja água viam lucilar sobre a direita olume mortiço, parecia silencioso e deserto. Comsatisfação notaram que à entrada da ponte faltava asentinela do costume. Mais a montante a ponte dasvagonetas estava igualmente imersa em sossegoabsoluto, a barra fosca da sua linha ressaltandocorredia contra o fundo estanhado do céu. E,perante aquela singular suspensão de movimento evida, estancaram o seu tanto atónitos e suspicazes.Mas uma granada anunciou-se pelo silvo fugaz,para logo ir rebentar a pequena distância; outra caiuno canal: chapão! projectando ao ar uma tromba deágua de que sentiram o molinheiro em rosto. Umaterceira abateu-se sobre as sombras enoveladas queestavam à entrada do pontão, provocando umestardalhaço metálico de mil demónios. E, poraquela chuva de fogo, calcularam que os aliadosfaziam incidir o bombardeamento sobre o canal,motivo por que os alemães haviam levantado assentinelas dos seus postos. Não estariam longe, masa passagem pela ponte oferecia-se-lhes livre. Afoitadamente meteram por ela, que era de tábuas,pelo salpicamento mais negro do piso advertidosdos alçapões e rombos onde não deviam por o pé

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para não malhar no pego. Fazendo acrobacia,pendurados das guardas, pinchando, láconseguiram passar à outra margem. E agora?Reluziam, como estrias, vários carreiros aspadosconfusamente na terra, e meteram pelo primeiro quese lhes antolhou levar em frente. À sua fuga presidiaesta simples estimativa: sempre ao direito do nariz.O chão era plano e as sombras, à medida queavançavam, iam-se dissipando, anulando a suainanidade. Mas, andando sempre, defrontou-se-lhesuma espécie de eça, maciça e alta. Dessa alterosaarmação repentinamente soltou-se uma chamadifusa a toda a roda, seguida dum ribombo terrível.Descreveram uma cambalhota no ar, tendo dadoconta ao breve resplendor que era ali a posiçãocamuflada duma peça de grosso calibre. Pelo que,ainda mal recobrados do sopapo, retrocederam parao canal. A todo o arco do horizonte toava agora aartilharia. E a claridade lunar afogueava-se dumapoalha ígnea, semeada do fundo da noite, por cimade suas cabeças, para outro extremo da noite, comoum arco-íris. Não havia que errar: lá atrás, furando por baixodele, é que ficava o porto de salvamento. E meteramavante, o Lambu na dianteira tacteando o piso,desviando-se e fazendo desviar o companheiro das

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nódoas de tinta que eram os boqueirões das craterascavadas pelas granadas, tão fundas umas que eramverdadeiros quebra-costas, depósitos inomináveisde tudo, sucata, cadáveres, outras cheias de águachoca exalando ao casual arrepio da vista umafosforescência momentânea. Duma maneira oudoutra, eram fojos traiçoeiros para evitar os quaistodos os cuidados eram poucos. Pelo aspecto do terreno, cortado de largos sulcoslongitudinais, presumiam que trilhavam o chãoduma granja. De facto, logo adiante foram dar comas ruínas do casario, que deveria ter sido vasto,paredes esqueléticas de cristas caprichosas, janelasvazadas para o espaço, montão confuso de telha epedra. E os escombros estavam mergulhados numsilêncio profundo, que os tornava ainda maissinistros. Que género de monstro não estaria láanichado? O alfacinha puxava para lá; precisavatomar fôlego, descansar. Ao Lambu o sítio pareciasuspeito. Na dúvida puseram-se à escuta: um raloensaiou a sua nota merencórdia, uma vez, duasvezes; à terceira ficou engasgado. Era como sequisesse convencer-se que não havia perigo emcantar e imprevistamente houvesse surgido odragão.

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- Anda daí - disse o Lambu. - Aposto que lá dentrohá boche. Foram pela chã fora, dobrados para terra, não sóporque assim se inteiravam melhor do piso, comono propósito instintivo de oferecer o menos alvopossível à vista. A certa altura entremostrou-se-lhesà mão esquerda uma sorte de platibanda em quedeveria ter havido bosque ou pomar. Os vultos maisespessos e verticais eram com certeza troncos,troncos decapitados. Ao toro parecia apinharem-sesombras estranhas, sombras informes e sombras quese prestam a tomar a forma que entenda aimaginação e que, quanto mais se olha para elas,mais metamorfoses revestem: homens, bichos,penedos, casas, um exército, e nunca o que são deverdade. Precisamente uma delas estava-lhes a darque cismar; era uma sentinela, ou o fuste dumaárvore? Se era uma sentinela, havia-os pressentido eo seu silêncio e inalterável imobilidade não tinhamoutro fim: certificar-se. O que havia a fazer eraresponder-lhe na mesma moeda. Em harmonia,ficaram tão quietos que ouviam pulsar o própriocoração. A artilharia continuava à retaguarda e emfrente no seu batuque diabólico. Às vezes, umavespa de fogo sulcava a atmosfera, mais veloz, dir-se-ia, que as estrelas cadentes, e ouviam o seu

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zumbido macareno: vuuuump; outras vezes, era umfio delgado de lume que saltava ao céu como se ohouvesse libertado duma bobone sua elasticidadeirreprimível, atravessava a noite num largo pano e,descendo com rapidez pasmosa, derramava no soloum clarão deslumbrante de que sentiam o reflexonas pupilas, seguido momentos depois dumribombo de trovão ao longe: um shrapnell que iavisitar o amigo boche. Estiveram ali o tempo que julgaram suficiente parao plantão se denunciar. E, como persistisserigidamente inquebrantável, recomeçaram amarcha. Não teriam dado meia dúzia de passos, umverylight subiu ao ar, alumiando grande extensãode terra com sua lívida incandescência. Os doisfugitivos mal tiveram tempo de se afundir na erva,que ali crescia balofa, de barriga para baixo. Lambu,que não perdera a calma, aproveitou para secompenetrar de que estavam numa antiga terra desementio, com os trolhos da lavoira a zebrar o solo,espantalhos as árvores sem copa, abegoarias nochão. E nunca botara melhor palpite: lá se via asentinela, capacete de ponta, capote aparatoso, aespingarda de baioneta calada repoisando entre ospés juntos, mais testa no seu plantão do que talhadaem bronze. Estava à boca do abrigo contra cujo vão

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se lhe afigurou que se apinhavam mais capacetes ecanos de aço. Ali estiveram cinco, dez minutos, atédesassombrar os alemães de suas suspeitas. Quandopuderam concluir que os soldados se haviamrecolhido, tranquilizados, e viram a sentinela baterpara cá e para lá os cinco passos, botaram-se denovo a caminho, de gatas, lenço na boca, não ospossuísse acesso de tosse ou resfolego mais forte.Tinham pressa em safar-se daquela insua negra,com que se sentiam engalinhar. À frente ia o Lambu,mão aqui, mão além, pela agro fora, como nadador àcrawl. O que lhes valia era a erva muito louçã afogartodos os ruídos e ser capaz de escondê-los à luz dospróprios foguetões de magnésio, se desse na bolhaaos alemães de recorrer a semelhante fogo deartifício. Teriam percorrido duzentos metros, figurou-se-lhesacharem-se no limite duma nova granja. Diantedeles, havia muito arame farpado, mal estendido, eferro por uma pá velha. As crateras das explosõesamiúdavam-se. Singrando por entre ruínas edestroços de coisas inclassificáveis, foram esbarrarcom um talude de terra, que tanto podia ser obalastro do caminho de ferro, como uma antigatrincheira mal nivelada. Avistando uma sorte detoca na ribanceira, o alfacinha puxou o Lambu:

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- Vamos descansar ali um bocadinho. De vir tantotempo dobrado, já me doem os rins. Comprimindo-se um contra o outro, conseguiramacocorar-se no covil, embora ficassem joelhos ecabeças a descoberto. A artilharia agora espacejavamais o tiro. Devia estar a acabar o duelo da noite.Um shrapnell veio da frente, lá de longe, tão delonge que o Lambu concebeu uma noção pessimistada distância a que estavam das linhas dos aliados.Mas não disse nada ao camarada. Ele, porquetivesse o mesmo pensamento, murmurou em voztriste: - Nunca mais lá chegamos! - Qual o quê! Bem sabes, a artilharia está lá muitopara a retaguarda Calaram-se e ficaram à escuta. Cantava um grilo aliperto. Bom sinal: viva lá! - Estou derreado - tornou o lisboeta. - Também eu - disse o Lambu para dizer algumacoisa. - As pernas estão rijas, que é o que se quer. À desbanda ia grande arraial. Crepitava a fuzilaria eos verylights cruzavam-se numa doida contradança.Depois eram as surriadas das metralhadoras que sesucediam umas após outras e lembravam caixeiros arasgar o pano-cru ao balcão: rrurru!

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- Anda, homem! - disse o Lambu, como lhe vissebater o queixo. - Vínhamos quentes e estamos aarrefecer. - Deixa-me estar mais um nadinha! Decorrida uma breve pausa, tornou o Lambu: - Vamos! As noites são um sopro e dum momentopara o outro amanhece. Entesa-te, não sei se aindatemos muito que andar... - Disseste que em linha recta eram dois quilómetrosa dois quilómetros e meio, se tanto... - E as voltas que demos? E aquelas que aindateremos a dar? - Olha, deixa-me ficar, vai tu. - Nem a brincar se diz...! - Digo-o a sério. - Não acredito. Tu não és dos que cortam prego... - Mas ouve lá: se ficássemos aqui esta noite? Aquinão dão connosco podíamos à luz do dia estudar oterreno. - Deus te livre! Não vês que não estamos a cempassos do abrigo?! Isto aqui é como uma eira: logotudo aqui vem bater. - Talvez não. - Ora, ora! E paparoca? - Trazes aí um bocado de pão...? - Uma dentada.

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- Eu trago também um bocado... O Lambu não deu mais palavra e pôs-se em pé.Arrastou o camarada pelo braço. Saltaram o talude eromperam de novo marcha sempre em frente donariz. Figurou-se-lhes andando, andando, quecaminhavam em campo deserto, tão raso edesabrigado era, e iam mais afoitos, se não maiscéleres. E, inesperadamente à sua direita, dumbulcão de sombras, ouviu-se o matraquear dasmetralhadoras, entretanto que lhe assobiavam aosouvidos as rajadas das balas. Desta feita, tomadosde susto, acicatados pelo bruto instinto deconservação, deitaram a fugir. Correram, correram atodo o fundo, um atrás do outro, até perder o alento.Passaram, porque não podiam doutro modo, aandar devagar. Afinal, ninguém vinha atrás deles, eforam serenando. Já recobrados, deram conta quehavia ali uma espécie de chafariz, pois queperceberam a toada da água a despenhar-se namassa líquida da pia ou tanque, e encaminharam-separa lá. Estava o alfacinha a beber, uma voz porcima deles falava-lhes. Que dizia? Não perceberam. A voz vinha de perto,quatro a cinco passos distantes, e era no tom dequem está a caçoar. Deram a volta ao chafariz amedo, sem pinga de sangue, e escapuliram-se para a

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zona mais escura da chã. Deparavam-se-lhes maisruínas, muros em terra, empenas meio destroçadas,nitreiras em cuja água salitrosa lampejava àpassagem, muito viva e lúcida, a estrelinha mais altado firmamento. O companheiro do Lambu atirou-se para umrecanto, dizendo: - Não posso mais! - Não podes mais?! - Não, não posso. Vai tu! Eu morro aqui... - Morres, morres! - Pois morro. Mas morrer aqui ou mais longe ésempre esticar o canelo. - Anda, homem; o mais difícil está andado... - Qual! Não vês que há ninhos de metralhadoras portoda a parte? Os boches são como as areias do mar. - Mas ainda não nos furaram a pele... - Mas furam. - Quem sabe?! Eu tenho esperança que não furem. - Eu não tenho esperança nenhuma. Se soubesse quetínhamos de atravessar este inferno, ficava novillage. - Anda, homem, anda! Assim que amanhecer, dãocontigo e fuzilam-te! - Talvez não fuzilem. Que ganham? - Ganham os outros não tentar fugir. É limpinho.

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- Talvez não. Calaram-se de novo. Ao cabo duma pausa, o Lambuameigou a voz: - Vamos, homem...! - Não vou, já disse. Proferiu estas palavras com um tom de decisão earreganho que o Lambu convenceu-se que perdia otempo se teimasse. - Pois eu vou para a frente. Adeus! - Vai! Vai! Adeus! Já ele despedia, chamou: Pst, pst,pega lá a côdea... - Guarda-a. - A mim de que me serve? O Lambu foi-lhe a dar um abraço e desataramambos a chorar. Quando se viu sozinho no meio da noite, à beiraduma estrada misteriosa, o Lambu conversou comos seus botões. Os seus botões não se mostraramnada optimistas. Onde estava? Não fazia a menorideia, embora tivesse motivos para supor que sehavia abeirado da linha dos aliados. Com efeito, ostiros da artilharia da frente, raros, muito rarosàquela hora pré-matutina, soavam-lhe mais perto;da mesma maneira, os tiros de canhão daretaguarda soavam-lhe de mais longe. Lá nosconfins da noite, em face, uma espécie de auréola

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assegurava-lhe que para ali devia ser a linha de fogodos ingleses. Mas não estaria iludido? Depois detantas voltas e reviravoltas, não se daria o caso deestar a refazer o caminho e a marchar ao invés dasua vontade? No propósito de ilucidar esta série de problemas,meteu-se num barranco que ali havia e era umacratera meio desmanchada pelo entulho doutra,decidido a esperar. Neste meio tempo podiaproduzir-se o fenómeno necessário que o guiasse etirasse de incertezas. Na noite continuava a dobar-se a sempre mesmameada; tiros insulados de artilharia; o estampidodos morteiros, aqui e além, estrondoso e cavo comoa derrubada, a um tempo, de cem árvoresramalhudas; o assobio agudo das balas dos snipers,pelo espaço, tais aves levadas no voo e gazeando. Asestrelinhas continuavam a luzir por cima daaçougada, indiferentes, frias e minúsculas comorisos de menino. Não eram elas que lhe diziam paraonde ficava a França e son sacré chien. Mas deviaser à sua frente, do lado do clarão. Chegaria alguma vez até lá? Pesando prós e contrasda aventura, ouviu passos. Era a primeira vez queos ouvia bem afirmativos, de gente calçando botasbrochadas e assentando a planta toda no chão da

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terra sanguentadas. Até ali toda a vida nocturnadeslizara nas sombras, por detrás dos muros dosabrigos e postos de escuta, a favor de alpargatas ousolas de borracha, os homens tornados toupeiras,feras esquivas, fantasmas. Era uma patrulha quepassava, de soldados sapadores. A meio conduziamuma maca; no coice, o espanejamento alvadio era asobrepeliz dum padre. Vinham falando a meia voz.O Lambu, embutido nas ranhuras do solo com oreceio de que o lobrigassem, deu conta de tudo. Foram não muito longe. Os homens depuseram amaca; os outros romperam a cavar a terra. Percebeu:enterravam um morto. Que era aquilo no imensocemitério? A cerimónia deixou-o indiferente. O quelhe ficou a azoinar o juízo era saber que estava aindadentro das linhas alemãs. A que profundidade dafrente dos aliados? Tinha que se despachar e, acicatado pelo sentimentode que jogava uma partida de vida ou de morte,meteu decididamente pelos campos fora. Aindafazia escuro, mas uma suspeita de arrebol começavaa arruçar o céu a nascente. Para lá apagavam-se já asestrelas. Leva que leva, encontrou uma vereda maltrilhada e foi seguindo o seu torcicolo. No peitoagora roía-lhe como um bicho ruim a ansiedade.Perdera muito da bela segurança com que saíra do

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village e se metera a atravessar o canal de LaGorgue. A passo de lobo, o seu tanto distraído natentativa de desenvencilhar-se dos nós da suaserpente, ouviu um brado quase em rosto. Deu umsalto. Pelo tom imperioso, compreendeu que afigura gigantesca e engrifada diante de si omandava parar. Parou. O Golias, então, deu maisdois passos à frente e proferiu duas ou três palavrasque zuniam como pedras. Que queria ele dizer?Provavelmente pedia-lhe o santo e a senha. Sim, eraisso. Pedia-lhe o santo e a senha e, como o nãosoubesse nem tivesse artes para trapacear,ignorando a língua, era homem liquidado. Látornava a repetir as palavras rabiosas Em seu desapoderado transe o instinto não lhesugeriu outro recurso senão deitar-se de joelhos emãos postas. E, de joelhos e mãos postas, balbucioua palavra agónica do Jardim das Oliveiras: Perdão!Qual perdão! O colosso dominava-o e de certo ia adescarregar o golpe, pois viu-lhe o braço rodarginasticamente à retaguarda, quando o Lambuacertou palpar a machadinha. Foi fulgurante. Maisrápido que o corisco jogou-lha em pleno peito. Simultaneamente, metendo a cabeça como um gatobravo que arremete, largou em quatro patas àdesfilada. A granada de mão bateu um metro atrás,

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e uma chuva de terra e pedras envolveu-o todo.Mercê do impulso ou lá do que fosse, continuou acorrer. Passos adiante, com os ouvidos a zoar,perguntou para si e para com Deus: “Morri?” Elogo, reflexamente, ouviu em sua consciência: “Queideia! Se morresse, não mo dizia. Mas escapei deboa!” O que sentia era uma grande dor no queixo. Nãotinha importância. Deveria ter sido provocada peloricochete dalguma pedra. A questão é que corriaágil, com os membros bem lestos, o resto erahistória. Levado num galão dos diabos, nem reparou que, aorebentar da granada de mão, sucedera por toda aparte uma fuzilaria acerba e incoerente. De cem eum abrigos e blockhaus, as metralhadorascrepitavam. Faziam uma ladração terrível e ele, afavor da inferneira, foi correndo sempre. Corria degatas, sem o quê há muito estaria na primeira faseda metamorfose para tijolo. Talvez fizesse assim mais de mil metros, tantadistância quanta lhe permitiram os joelhosmacerados. Quando se viu longe do vespeiro emalvoroço, acoitou-se entre a ervagem para respirarum pouco e de novo tomar rumo. Nossa Senhora doLivramento, que se venerava na serra da Lobeira,

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acabava de safá-lo muitas vezes da morte. Qual seriaa boa alma a pedir por si? Talvez Eduarda. Sim, nãopodia ser outra. Esta ideia sensibilizou-o e, atravésdo éter, todo o seu ser em distensão, dirigiu-lhe umasaudade enternecida. Ah, mas começava a branquear para bandas da terraforte e desatinada da Alemanha. Ao largo tudo erabáratro ainda, mas ao perto os volumes começavama desenhar-se nos seus contornos relativos.Adivinhava-se o desdobre da planície, ondulandodocemente, salpicada de montes de terra e covas debordos túmidos como leicenços. Altas bisarmasnegras, que eram redutos desamparados, esqueletosde granjas e de fábricas, lobreguejavam mais além.O Lambu com a luz sentia-se tonto e trôpego comouma pessoa que se houvesse safado duma caverna.Depois que atravessara a zona das metralhadoras,onde se encontrava ele? A artilharia agora atiravacom pausa quase solene. Aqui e além via a terrasaltar ao ar em altos repuchos, sinal de que aquelelocal era por qualquer razão, que não abarcava,ponto de mira para a artilharia. A únicainterpretação, que lhe parecia lógica, é que seaproximara das linhas dos aliados. Seguiu calcorreando, mais cauteloso, ao tentame,planície fora. A terra esclarecia cada vez mais. O

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nimbo de luz, que permitia se corporizassem ascoisas em seu vero ser, dilatava-se. Pareceu-lhemesmo ouvir um vago chilido de ave, por lá detutinegra, cujo apego ao terrunho natal prevalecesseao banzé e assolações da guerra. Chegado a umaespécie de cômoro, que devia ter sido trincheira,arrasada com o avanço e recuo dos combatentes,pôs-se a marchar na sua espalda. Ao fazer umaviragem, deu fé dum vulto que saía dum monte desacos de areia a pouco mais dum tiro de escopeta.Agachou-se; era um soldado muito cinturado nocapote cinzento, capacete em ponta, botas detrincheira. Vinha cabisbaixo, meditabundo, a pontoque nem fez reparo nele. Deixou-o desaparecer pordetrás das ruínas duma arribana, e para a frente éque era o caminho! Tinha que ir a nove, que a luz nocéu desabrochava como uma grande rosa chá. Logo,com o sol infernal que mordia a terra, enxergava-seum alfinete a dez passos. Teve porém uma recidivade desânimo. Seria possível chegar a porto desalvamento? Marchava na boa direcção? Pôs-se a monologar consigo: - A vida é uma só, Zé Lambu! Perdeu-se, acabou-se;ninguém te pede contas. José Lambu, avança,mostra que és homem!

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E avançou a bom avançar, mas, como cão batido, demodo que ninguém o visse, tirando partido de tudoo que pudesse encobri-lo. Topou uma estrada eatravessou-a. Ia a meter a corta-mato, quando o seupé tocou alguma coisa que não era solo. Era umchapeado de zinco que começou logo a vibrar comtremura estranha. Com seiscentos moscardos, temosratoeira! Fugiu com o pé e atirou-se para o ladooposto. Viu ainda uma cabeça que se erguia para ládo chão sensibilizado e o cano de metralhadoratomar posição de fogo. Voltou à estrada, dobrado em dois, manso, manso,nem bafejando sequer. Logo adiante havia valacheia de água, defendida por uma rodilhainextricável de arame farpado. Deitou-se na relva, àsua beira, de barriga para baixo, a estudá-la. Nãodevia ser funda a avaliar pelo clape que produzia aágua ao atirar-lhe com uma pedra. O arame por suavez estava desarticulado e aqui e além as pontas daestrepe emergiam da água. Que fazer? Voltar paratrás, não. Era ir dar nas metralhadoras alemãs. Deresto, estaria a bater a hora de a postos, e astrincheiras iam desentranhar-se em balas emorteiros. Por enquanto, tudo dormia e o silêncioera completo, salvo um ou outro tiro, como o sinaldos rafeiros quando guardam os currais. O melhor

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que havia a fazer era meter-se ao chafurdo, e fosse oque Deus quisesse. Pois que estava de cabeça para avala, imprimiu rotação às pernas à maneira decompasso e, quebrado logo o equilíbrio do corpo,deixou-se escorregar. Experimentou a profundidade a medo; afundiram-se os pés. As pernas, depois, foram entrando,entrando Chegou-lhe a água à virilha. Continuou adescer; atingiu-lhe o umbigo. - Vamos, homem! -Espicaçou-se. Enterrou-se até ao peito. Pareceu-lheque topava fundo. Ainda não. Mas agora, maisafoito, deixou-se cair. A água subiu-lhe até acimados mamilos, mas era bem no lastro. Tirou a boinada cabeça que lhe tinha dado um prisioneiro francês,e envolvendo a mão começou a difícil tarefa: desviaro arame da sua frente. Levou tempo, mas abriupassagem. Já havia luz do dia, contudo não pôdeenxergar a outra margem devido ao talude. Apenascom a cabeça de fora, o que lhe dava a segurança denão ser visto, passou a vala. Agatanhou pelaribanceira, e deu logo de cara, em sua frente, comuma seara. Uma leira de trigo, de trigo como na suaterra, era uma sucursal do paraíso e, comsentimento de desafogo, embrenhou-se por eladentro. Onde estava agora?

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A alvorada nas trincheiras começava pavorosa.Matraqueavam as metralhadoras sem relego, e ocanhão troava com vagar, mas sinistra majestade.No céu, sem que se vissem, zumbiam os aviões. Lálonge, para trás duma colina buzinavam os strombsa precaver da nuvem de gás. Jesus, para que servia osaber dos homens! O trigal parecia fora da terra maldita. Lá de raro emraro, como se alguém andasse à caça para trás docampo, soavam tiros espaçados. Deixa, não era fácildarem com ele; ali, sim, podia esperar, agora lá ondeo pobre do lisboeta ficara, livra! Sentia mesmo ganasde acoitar-se, cavar um covil no solo como oscoelhos e deixar-se viver. E comida? Comida, osbagos do cereal. E pôs-se a ripar para o bolso o grãodas espigas, que estavam gradas. Perdeu um pedaçonaquilo quando deu fé que começava a arrefecer.Encharcado até ao pescoço, como não havia desentir frio?! O remédio era pôr-se a mexer...explorando o terreno, ou rompendo a seu destino.As paveias à passagem sussurravam brandamente.Era como na sua terra. E que espigas gordas? Àcautela, foi debulhando e enceleirando mais para osbolsos. Se tivesse de andar a monte muitos dias,sempre encontraria na boca coisa que roer.Trituraria o grão nos queixais, e algum sustento

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havia de passar ao sangue. Da messe, levantou-seuma bandada de pardais que o atemorizou. Entãoainda por ali havia das boas e inofensivas alimáriasde Nosso Senhor? Subitamente, deu conta que estava a chegar à orlada seara. Rareava já o trigo. Havia no palhedo sinaisde calcadura e foi-se aproximando com todo oresguardo. A artilharia e a fuzilaria faziam umbanzé do fim do mundo. Cruzavam o céu, muitoaltos, aviões perseguidos por outros aviões. Para adireita, uma coisa, desajeitada e tonta como umcesto vindimo, subia ao ar e baixava em curvarodopiando e executando patuscas gambérrias.Depois um estrondo repercutia até ao centro daterra, ao passo que um grande espalhafato enchia osares. Eram os minewafer alemães; com certeza eraessa porcaria de engenhos. As linhas dos aliadosonde passavam então? Com a alma inundada de esperança, olhou todo oâmbito do horizonte. Não se sabia orientar. Asúltimas sombras refugiam do solo e da seara. Mas,fosse névoa, fosse realidade, teve a impressão deque estava numa espécie de patamar do mundo.Aquilo era tal o tejadilho daqueles carros-oficinasque andam pelas ruas das cidades a consertar ostrolleys. Tremia na mesma como eles. Sim, dali não

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podia safar-se. Se se atirasse abaixo era homem aomar. Pelo outro lado, tão-pouco poderia escapar-se.Deviam torcer para lá as linhas alemãs. Para trás,muito menos. Pronto, estava preso no cocuruto daterra. Para qualquer lado que se virasse, era oabismo sem fundo. Dali não o tiravam as rezas nemo bem-querer de Eduarda. Lá vinha o senhorManuelzinho Bezerra, muito crescido no casacão deferro, capacete de bico na cabeça. Ah, desse fugia asete pés. Fugia que o alma de cântaro opunha-se aocasamento. Mas queria ela e queria ele, tantomontava fazer-lhe guerra como não. Iam à Igrejareceber-se. Eduarda estava toda liró, com um ricovestido branco, muito oiro ao peito, mas levavabotas de trincheira. Era isso que mais o aborrecia.Ele pusera sandálias que não faziam mais barulhoque um texugo por um milharal fora. Sempre eramais decente que as botifarras dela. Iam casar-se a Cabeço de Vide, mas nunca mais láchegavam. – Vamos depressa! - exclamava o majorChança, que era o padrinho. Sim, o major era opadrinho, bem lembrado que fora ele que lhesalvara a pele. Se não é o Lambu - diziam todos -aquele tanganhão tinha ficado a espernear na terrade ninguém. Era agradecido, honra lhe seja feita!Oh, com a breca, nunca mais acabavam de chegar à

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igreja! Compreendia agora: os boches não osqueriam deixar passar. Atravessavam-lhes pelafrente redes de arame farpado; valas com águachoca; ninhos de metralhadoras. Mas ele lá ia comEduarda pela mão rompendo sempre. Ah, agora eraEduarda que se queria meter num buraco docaminho. Como uma rata. - Anda daí! instava ele. -Daqui não dou passo respondia ela combrusquidão. Pronto, não queria ir mais longe, e odesespero dele era grande. Tão grande queacordou... Que raio de alhos e bogalhos iam na sua cabeça?!Tinham-se-lhe fechado as pálpebras um instante, e oespírito enchera-se-lhe de detritos. Entretantorompera a madrugada. Cantavam ali perto ospássaros, bem embora mais longe rouquejassem asmetralhadoras. Espraiando olhos à roda pela terraque se descobria, despojada das sombras e gases dabruma, era como se lhe houvessem caído ascataratas dos olhos. O mundo era outro, o mundoera novo. Tão outro que reparou numa escavação deterra fresca, à sua direita, a menos de cem passos. Eum clarão súbito, ao mesmo tempo alegria e paz,iluminou de jacto a sua alma: as linhas dos aliados! Sem perda dum segundo, irreflectidamente,caminhou de rastos para lá. Era a terra de ninguém,

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onde mal haviam escapado duas repas de ervamoira e dois cardos rolantes à cilindrada dos raids.Pequenos montículos e os borrões negros das covasassinalavam a rebentação dos morteiros e granadas.Um sabre e duas tíbias, duma brancura ofuscante,lembravam insígnias heráldicas em campo de sable.À distância de cinco passos, o Lambu pôs-se dejoelhos e bateu as palmas: - Camarade, prisioneiro português! Camarade! Uma cabeça ruiva, um momento suspeitosa,mostrou-se ao parapeito com o cano dametralhadora ao lado. - Camarade! - Yes, camone, yes! - tornava-lhe. Ia a erguer-se. O bife acenou-lhe energicamente quese agachasse, fazendo o jeito da metralhadora, aoceifar em leque: - Boche making rététété! Mas ele já não tinha medo. Podia lá ser depois deatravessar trancos e barrancos, cair rés-vés datrincheira de salvação!? Avançou, quase corpodescoberto. O inglês, quando ele chegou aoparapeito, deitou-lhe a manápula à gola edespachadamente fê-lo tombar para cima dabanqueta.

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Regressou à sua cidade natal no princípio duminverno triste e mormaceiro. Caía uma chuvinhamole e álgida que parecia, menos que molhar,bezuntar de óleo as pedras das calçadas e torná-laslanguinhentas. Os habitantes de focinho anémico,cabeça para o chão recolhida entre os ombros, mãosnos bolsos a jeito dos ossos dos cotovelosexcrescerem da linha do corpo como cotos de asa,procuravam em sua lentidão ingénita marchardepressa para debelar o frio. O Lambu, que vinha de cidades dinâmicas edesenganadas, não obstante a guerra, sentia umagrande depressão em tudo, como se corpos e almasandassem combalidos por igual. Que penitênciasecular, à ordem de quem e porquê, andava acumprir o infeliz povo? Para que lhe dessem baixa, forçoso era que sedirigisse ao quartel. Lá estava tudo inalteravelmentefixo, o mesmo sebo, os mesmos toques de clarim, asmesmas dragonas à mesa de pinho da secretaria, e omesmo cabo no casão. Ia glorioso de si, com a fardanova que lhe dera a Intendência, pois a outra levara-a a cramona na fuga de rastos através dequilómetros e quilómetros de linhas inimigas, e amáscara contra gases, que guardava para memória.Tinham-no proposto para cruz de guerra, mas como

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a insígnia era em geral para os cachapins da base,desdenharam de lha pregar no peito honrado. Eletambém não a reclamou, nem avaliava aimportância de semelhante troféu. Bastavam-lhe emsua alma ardente as palavras do general inglês queviera admirá-lo e proferira segundo a versão dointérprete: - Só um homem couraçado com as sete peles doDiabo e o ardil dum raposo era capaz de tal proeza.Não houve muitas assim. O cabo batia-lhe no ombro, admirando o seu garboviril e desafectado: - Voltas mais homem, 96. Também só uma vergastacomo tu era capaz de fugir das tanazes do boche. Mas ele passava bem sem cumprimentos, o quequeria era saber novidades. Novidades, bah, tudona mesma! Ia-se vivendo: muitas doenças... umpouco de lazeira... bastantes poucas vergonhas. - O nosso major Chança? - O major Chança vive lá para a aldeia. Casou... - Casou? Com geba e tudo, aquele catrapizonga?! - É verdade, casou com uma rapariga, de que podiaser avô, filha dum tal Bezerra... O Lambu sentiu uma estocada no coração que porpouco não o lançou a terra. O cabo viu-oempalidecer:

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- Que tens, 96? - Que tenho? Nada, nada. Ainda não comi hoje... porlá fraqueza. - Pois são horas de meter alguma coisa no bucho.Vou contigo... Abancaram a uma taverna. O Lambu bebia. Bebia,mal tocando nos pratos. - Lá fora, casca-se-lhe, hem? - dizia o cabo. - Até cair sobre o traseiro. À noite encontraram-se de braço dado numa casaimunda da Rua da Carvoeira. Muito bêbado, oLambu tanto chorava, como rangia os dentes. Epunha-se com ideias que não lembravam ao Diabo: - Dizei-me cá: ainda haverá quadrilhas por essasfalperras? Coisa assim no género do José doTelhado? - Não consta. Para que perguntas? - Quero-me fazer quadrilheiro. Pois não andei aaprender a matar gente?! Para alguma coisa há-deservir o que aprendi. Rico emprego, hem?! Arranjoum trabuco e saio à estrada: tio Bezerra, para aqui abolsa ou a vida.. Desataram todos às gargalhadas. O Lambu afivelaraum ar facínora, que metia medo. - Não tenho ocupação, vou-me filiar numaquadrilha do olho vivo. Que quereis que eu faça?

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- Homem, deixa-te ficar na tropa! És instruído, sabesler e escrever, daqui a pouco estás furriel. - Não. Faço-me ladrão. Faço-me ladrão, a menos quenão vá para a África ou Brasil. Queres vir comigo,casta Susana? Ouvi dizer que se ganhavam lá rios dedinheiro no ofício de engraxador. Sim, para o raiodum português, já não digo para um branco, maspara um português da trama como cá o egas, quevem da guerra sem cheta, não tem família, nem temonde cair morto, o ofício que está indicado éengraxar pretos. Depois de andar a matar nosalemães, para ficar bem com a consciência, só isso!Quem disser que estou a caçoar, vou-lhe ao fagoteMeninas, venha vinho! Porque não vem maisvinho?! Aqui ainda há bilhestres para emborracharquantos homens honrados venham a esta santa casa. Menos Sete Quando viemos habitar o novo prédio, com umquintal à borda da ribeira, logo reconhecemos anecessidade de ter um gato. Nos baixos vivia umacolónia densíssima de ratos que, insinuando-sepelas frinchas ocultas do soalho, saqueavam oscomes e bebes da dispensa e copa, roíam o queijo noaparador, e, mal as luzes se apagavam na sala dejantar, faziam em cima da mesa toda a espécie de

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corridas e gincanas. Nós dávamos conta das suasgambérrias, à força de ruidosas e deslavadas. Bemsei que eram destes ratos de focinho gracioso, vivoscomo pecados veniais, duma finura de azougue, quepassam onde passa o fumo. Além de proletários daCriação, são uma espécie de divindades maliciosasda domus. Há ratos, ergo, há toda a arsenalizaçãohumana. Pior que eles eram as ratazanas que têm alura rente à água, nadam como castores, alimentam-se de imundícies, sem que ao seu dente derrancadoescapem pelas capoeiras os coelhos novos e osfrangos inverniços a que gostam de sugar o sanguequente na artéria. São mais que nojentas, infestas,segundo dizia Buffon, pois não há melhoresportadoras do cólera. - Guerra aos ratos, guerra! Venha um bichano! A Vitorina logo de princípio teve artes de trazer aoengodo da pinga de leite uma gata meia Angora,meia malteza, de pelúcia parda estriada de branco,salvo o peitoral duma pureza de neve, rabo empluma, ainda que o topete a trair a velha cortesã,pelos jeitos de vadia e esquiva o mais galdéria quese pode imaginar. Atrás dum ousio veio outro,depois mais e mais, e a gata acabou por tornar-sevisita quotidiana. Familiar, não. Como tinha umsentimento muito possessivo da liberdade, comia as

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sopas, as tripas do peixe, fazia sentada no traço daporta sobre o posterior a sua toilette, ia dizer, punhao bâton, e ala. A rua com os seus mil acidentes, apedrada do garoto, o fraldiqueiro que se encrespa earremete, o automóvel que passa em furacão, apeixeira que deixa escorregar uma sardinha dacanastra, era o seu habitat essencial. O mais erapanorama. Às vezes encontrava-a pela margem dorio fora, de súcia com outros gatos, à caça dosverdilhões e escrevedeiras, rouxinóis e outrospassarinhos que se comprazem das sombrasfluviais, e lembrava-me das minhas desarvoradaspiratarias, ao sair da aula, no tempo dos ninhos. Erauma gata incorrigivelmente pé-leve, moinanta decorpo e alma. Mas, embora nós não conseguíssemos trazê-la àprática e gozo dos morigerados costumes burgueses,ela é que não desdenhou eleger a nossa casa paraMaternidade. Foi na livraria, atrás da dulcidãoirradiante do Bernardes, do Arrais e Heitor Pintoque instalou o seu leito de parturiente. A Vitorinadera conta do esvaziar do saco e andou uns diasintrigada sem saber onde. Mas viu-a saltar pelajanela, e lá foi dar com a ninhada, seis revolventes,moles e chiantes almôndegas. Depois, a primeiravez que a mãe-gata, saudosa da gandaia, foi

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espairecer à beira do rio, cometeu implacavelmenteo morticínio dos recém-nascidos no balde da casa. Escapou um, cor de rato, este género de negro turco,que se encontra na paleta cambiando o azul-celestecom o betume das terras e é na pelagem dosroedores um meio ainda de defesa, e que acertou serdo sexo forte, pois que a Vitorina como alegava -não lhe sabia ler o escrito. Aquele, salvo pela sua mão de morrer na água, eraum pouco coisa própria e como tal passou a tutelá-lo. - Chamem-lhe Moisés! Não pegou o nome de Moisés, mas o mais racional eimediato, aquele que lhe daria sua madrinha:Vitorino. Acalentando a mãe para beneficiar o filholá lhe ia no leite mais papinhas, mais mimalhos, obichano cresceu depressa. Ao fim de três semanasjogava a péla como o mais pintado pedibola otermo para o caso é duma exactidão realista e sempar. Às quatro semanas caçava as sardaniscas eoutras bestiagas nas paredes do quintal e seguiacom olho rúbido os requebros das andorinhas nocéu da tarde. Mas era brusco, torto de carácter e perverso comoum tigre verdadeiro. Ainda a mamar tratava tãopouco respeitosamente a mãe que tínhamos vontade

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de o zurzir. Ela a aparecer, e o demonico a saltar-lheem cima como um apache. Arranhava-a; bufava-lhe;não consentia que dormisse em cima das cadeiras; semetia o focinho na escudela, logo ele vinha com acarda no ar, assanhado. Não se percebia bem a fontedaquele asco tão agressivo. Que, integrado na boamoral, sentisse nela uma bardina sem eira nembeira, e lhe votasse a invencível repugnância dumgato “bem”? Que o envergonhasse o parentesco,mãe ribalda, pai incógnito, o mais provável um gatobirbantão, aventureiro e cadastrado? Que tivesse emmira permanecer sozinho no curral, dado oindividualismo de que nascem eivados tais bichos?Ou finalmente não passaria de brincadeira de felinoesta arisca atitude, beijos mordidos, brincosbeliscados? O certo, certo é que tinha ocomportamento clássico do filho desnaturado, apedir correccional. As vezes que arranhava a mãe, que lhe davabofetadas imprevistas, que lhe pulava ao cachaço,que lhe rosnava, não tinham conta. A Vitorina já nãosabia como desculpá-lo. Mas o macanjo cresceu e fez-se uma linda estampade gato. Em flexuosidade superava à onda. Trepavaàs árvores como os esquilos e não acuava diante dosabujo mais pintado que se marrasse diante dele, de

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bocarra aberta, a ladrar à carabina. Deixava-lhesesgotar o repertório e, ao primeiro descuido, dumsalto punha-se em França. Os pulos em altura que dava, à hora que asandorinhas passam rasteiras a procurar à superfíciedo solo os mosquitos que se evoluam, com afresquidão, das plantas de jardim e dos juncos dorio, honrariam um acrobata. Projectava-se, nãomenos, num galão inconcebível contra o saltareloque se lhe desfechava inopinadamente no nariz comum barulho e arrastar de asa de velho aeroplano.Ainda na adolescência, e já os ratos deixaram debailar em cima da mesa da sala de jantar, à roda daslaranjas baianas de Setúbal, empinocadas no centrode cristal. E os arganazes do rio procuraram outrosvalhacoutos. Não era bicho que apreciasse muito a mão dos amosa passear-lhe cariciosa pelo lombo. Esses requebrosagradecidos e eléctricos dos demais gatos não erampara a sua espinha. Tinha no sangue, o seu sanguede plebeu, a indocilidade pouco simpática da mãerascoa e pai matulão. Ao cabo duns tantos afagos,enchouriçava-se. Além de certa medida, parecer-lhe-iam abusos; niquices da confiança; blandícias à suasubalternidade. E erguia a manápula com os seus

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cinco punhais sacados da baínha, ou fleugmática eorgulhosamente mudava de poiso. Cumpria a sua obrigação, Buda de alcova e políciamuranho, e tolerávamos-lhe os assomos de rebelde.Estes pruridos dos gatos têm de resto a sua graça,pelo menos até o ponto em que parecem desdenhardos donos, vistos na teia dos respeitos sociais. Eraaltivo, orgulhoso, misantropo, cheio de si, tudo istomergulhado, embora sem fundura, no poço do seuegoísmo. Rateiro, nebri de saltões, primava também comocaçador de musaranhos, estes pobres e feios bichosque vivem da graça de Deus, fazem ninho ao toroduma couve ou duma simples cenoura, têm umfocinho misto de toupeira e de morcego, quasedoloroso de feio. Marinhava pelas paredes elimpava-as de osgas, outro não menos feio bichoque tem o mérito, com a hediondez toda, de comernão sei quantos milhares de moscas, mosquitos emoscardos por dia, em suma, verdadeiras bateladasdesses ascorosos insectos sugadores de sangue,veículos de moléstias, alguns que passam a noite atrombetear em surdina por cima do nosso sono e sãopiores que Liberators numa cidade bombardeada. Sobretudo, oh sobretudo, liquidou a rataria da casa.Tudo isto por desporto, creio bem, pois que aos

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ratos que preava fazia partes, judiarias lheschamava a Vitorina, que arrepiavam coiro e cabelo.A manobra realmente era do mais bárbaro einquisitorial que se pode conceber. Uma vez filado obicharoco, vía-mo-lo inerte, dir-se-ia já sem sentidos,entre as mãos cautchutadas do captor, que metera asadagas na bainha. Subitamente essas mãos, de luvas,descerravam-se. O quê? Que prodígio era esse, paida Vida? O rato cometia a fuga. Já a entrar para oburaco salvador, zás, caía-lhe o monstro em cima: - Olá amigo, quem lhe deu licença?! Outras vezes jogava-o ao ar, longe, para que opobre, uma vez em terra, tivesse a sensação doslivres espaços em frente de si. Se o deixava largar,mesmo esconder, com uma patada ia arrancá-lo doesconderijo miserando. E nesse jogo de o deixarfugir, de lhe incutir o sentimento alternativo deesperança e desesperança, mais cruel que todas asdesilusões, se comprazia tempos sem fim. - Nem o Diabo no Inferno! - exclamava a Vitorina. -Que necessidade tem o alma de cântaro de fazerestas barbaridades à triste alimária!? Isto de criaçãonão está bem, meu senhor! - Nem está bem nem mal, Vitorina. Está como está -respondi ao estilo de Pacheco. - Sabe porque é queele se entrega a este desfrute com o rato? Para lhe

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macerar a carne. Não sei, mas a bílis deveextravasar-lhe pelo corpo e torná-lo pitéu apetecívelpara gato. A modos de carne de vinha-de-alhos. - Mas repare que o não come...! - Se o não come, é porque anda farto. Mas procedeaos ritos costumados da imolação. O Vitorino desenvolveu-se em esbelteza, alor eforça, e tornou-se um galhardo exemplar damaltesia. Um dia, vi escoar-se por entre osmalmequeres e redodendros sombras enoveladas esedosas; outro dia ouvi renaus-naus magoados parao canavial. Chegara cálida e olorosa a primavera,sub-quadra de amor para a espécie, e eram asfêmeas aluadas que vinham à procura do beloadolescente. Primeiro apareceu uma gata toda franduna, comares de sabida e lambisqueira; depois outra com umjeitinho curiosa de menina sonsa, envergonhada;aquela, matronaça de todo, mas ainda frescal; tais etais, novas, peladas, cocottes batidas de olharsemimorto, que se acocoravam ao fundo da fazendacomo pedintes respeitosos à espera de esmola. O quintal tornou-se um harém. Quem maisrequestado que o meu Vitorino, pêlo de toupeira,atleta de rins infatigáveis, exímio caçador, até entãoimune à loucura dos sentidos!?

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Como nos tempos da galantaria, quando eram elasque procuravam o chichisbéu, como é justo que sejaamanhã dada a desproporção numérica dos doissexos causadas pelas guerras, as actividades febris,as tarefas ardorosas e mil aventuras no céu, terra emar, tudo ao activo de Adão, eram elas que ovinham provocar. Primeiro a medo, depois com odescaro de megeras desatinadas. O Vitorino, que sótinha às costas haver expulso a mãe, tornou-se umnoctívago e tunantão. À tardinha, encontravasempre jeito de pirar-se, por mais diligências que asua madrinha pusesse em retê-lo no aconchego dasalmofadas. Uma noite que conseguiu encarcerá-lo, os miadosdele, ora chorosos, ora coléricos, os delas súplices elíricos, tornaram o quintal todo, com o rio ao fundo,o mar mais longe, soluçando na praia, uma ilhasonante, eliseana. Nos outros dias, por mais que a criada aflautasse avoz, a enchesse de meiguice e promessas decarapauzinhos frescos: - Vitorino! Vitorininho!Bichaninho tonto! - o mariola nem voltava a cabeça.A título de prudência, escapulia-se de casa com o solalto. Que entrasse com as Trindades, como outrora,já ninguém contava. As manhãs, sim, de ordináriovinha dormi-las no sofá da sala de jantar, rolado

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como o bicho de conta, o focinho amarfanhadocontra a filaça abdominal, reduzido pela fragalhoticea uma bola inerte e felpuda, sem frémito nemsobressalto. Mas aquele delírio erótico das noites primaveris,mais surdas e veludosas que sobrecéus de leitosreais, tornara-se-me insuportável. Ainda a norachiava e o jacto da água caía dos alcatruzes branco eespelhento como o machado do rachador decavacos, e já ele se punha de largo, em regra deesfinge numa das almácegas. Ali, imóvel por maistempo, nem um bonzo acocorado na galilé do seupagode. O burro prosseguia no calvário, tardo,mavioso, não raro fazendo cera até que a voz dohortelão o acicatasse do regadio: - Ah! ladrão, espera lá espera, que eu já vou! Recomeçava então a romaria ao poço, lenta,dolentemente, sem outra testemunha além doVitorino que prestava ouvido ao murmurejo da linfae gostava de sentir, pela certa, cair-lhe em cima orociozinho, que rorejava de suas cascatas muitofresco e volátil. E enquanto o jumento, de olhosvendados, seguia na ronda custosa e ralaça, imagemde tudo o que foi, é e será no mundo, ele ali quedavasonâmbulo ou cogitativo. Com o despedir doabegão, surgiam as gatas enamoradas da redondeza.

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E começava o sortidíssimo sarau com árias deprima-dona, duetos, e doces rondós, musicados àPergolesi. O meu gato era o ídolo vivo, o objectosagrado de todas aquelas oblatas de amor, expressoem semifusas patéticas e gemebundas. Primeiro, a esfinge mantinha-se impassível nopedestal. Só depois de queimado muito incenso eesgotado o ofertório, se dignava descer à terra.Antes havia de adensar-se a noite que os gatosaproveitam para os seus sacrifícios nupciais. Com estrelas ou à luz do quarto, um quarto nãomaior que seitoira, é que eles gostam de celebrarseus mistérios, como em Eleusis. Ao contrário docão, que não sabe o que é vergonha, o gato é umbicho cheio de pudor e recato. Não gosta, pelomenos, que os outros bichos o observem nas suaspráticas galantes. A presença do homem quase lhe éinibitória. Por isso o Vitorino aguardava que o asnofosse desamarrado da nora e o abegão tropeasse nolimiar da choupana a desensocar os tamancos, paraele se decidir por esta ou aquela odalisca. Mas,quando soava essa hora, o sarambeque, à força degritos histéricos, gemidos de insuspeito gozo, ralhose quebrantos, lembrava-me uma daquelasorquestras super-selvagens de Nova Iorquedespejando para o éter suas rumbas e swings.

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O diabo é que aqueles saturnais não me deixavamdormir; pior ainda, não me deixavam trabalhar.Mandava a criada enxotá-los a pau, a pedra,lamentando não dispor como os policemenamericanos de agulhetas com água fervente. Eupróprio descia à lapidação. Debalde. Os libertinoscontentavam-se em mudar apenas o arraial. O Vitorino, rendido à sina da sua máhereditariedade, dera em birbante e tranca-ruas.Surpreendi-o uma das vezes em luta com umentremetidiço; pô-lo fora de combate foi um brevepasse de armas. Mas não era a sua fereza que meincomodava. O que eu não queria era sacrificar-lhe aminha adorável quietude de sertão, que me permitiaouvir ranger o aparo no papel, sentir o eu a pulsar,brando e insulado como o relógio na mesa decabeceira. Pronto, chamou-se o operador sinistro. Umadaquelas manhãs mornas e sossegadas, apanhou-seo gatarrão a dormir descuidoso no divã. Com gestohábil o homem negro sepultou o bicho dentro dumsaco, cabeça para baixo. E, em três tempos, com umalanceta de sangrador, suprimiu-lhe as fontes davida. O Vitorino deu um galão, e foi meter-se na copa. Vi-o a olhar para nós, mais espantado do que dorido,

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com olhos de água choca, olhos tão estranhamenteturvos de desespero, sofrimento, fins do mundo,que só isso me fez arrepender da bárbara mutilaçãoconcedida à minha comodidade. Teria o animalpercebido tudo?! Tornou-se um tipo anafadíssimo, gorducho eegoísta, como aquele Madeira de Pedro, o Cru, deque reza Fernão Lopes. E, se mau era, mais mauficou. Não deixava tocar no dorso, fosse a quem fosse.Passava a vida a rezar, ou assim parecia, de joelhosem cima duma cadeira, olhos com uma frestazinhapequena a dizer que muito se iludia quem o julgassedesamodorrado. Em verdade rezava, meditava oudeixava apenas seguir livre curso à sua vidavegetativa? Somente sabia ronronar, roçar-se pelas pernasflectido em aduela, rabo em vírgula ou em mastro,quando queria comer. Era evidente que tinharefinado no seu fundo atávico de hipocrisia. Sim,mais hipócrita só um devoto profissional. De raroem raro, tomava-se de certas ressurgentesveleidades, e saía a terreiro. Uma vez ou outra corriaatrás duma fralda, mas breve, porque sedesenganasse, o víamos regressar a passo quadrado,certo, de operário que deu a jorna. Os do seu sexo é

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que ele corria implacavelmente do quintal, soltandorenaus-naus abaritonados, que ecoavam imperativoscomo de guarda de serralho. A sua ocupação, sobretudo, era dormir. Dormiacomo as esferas nas pirâmides das igrejas. A dormirfez-se gordo como um nababo. Não era o gato dumescritor, era o gato dum banqueiro, endinheirado,rechonchudo, inglorioso, feio de redondo, imune àmais pintada bicha solitária a roer a sua bola desebo. O pior do pior é que pactuou com os ratos, ouassim se me afigurou. Os ratos dançavam-lhedebaixo do nariz? Coitadinhos, deixá-los dançar! Asratazanas vinham do rio e levavam os laparotosainda de mama? Eram umas infelizes da maleita quetinham fome. Vingava-se como estes eunucos deBisâncio que acabavam sempre por fazer umarevolução ou levantar o punhal contra o seu senhor. - Que préstimo tem afinal este emplastro de carne epele de coelho do monte, não me saberá dizer,Vitorina? Eu formulava a interrogação malévola, mas nofundo tinha-lhe apego. Tinha-lhe o amor do faquir àestátua de Brama, do felá à esfinge do Deserto, setudo isso não era mais que o remorso de haversacrificado ao meu gosto de silêncio e de paz avirilidade do belo bicho. E por nada deste mundo

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aceitaria que se cometesse nova violência contra oinfeliz. Mas a criada é que não o entendeu assim. Um dia parou à porta a camionete militar de Caxias,a rogo do seu patrício e namorado. A Vitorina,depois de muito relambório, muito festa para festa,passou-lhe dentro dum cesto o anafadíssimoVitorino. O magala foi abri-lo na Praça da Ribeira,falanstério dos gatos. Se é lei que a natureza tem horror ao vácuo, tambémeu poderei dizer com segurança de Salomão: o meuquintal tem horror ao vácuo amoroso. Aquém dasua vedação de mióporos e da sua parede velha deazinhaga, forçoso é, como propunha SantoAgostinho, amar e ser amado: os gatos, as aves, aspessoas. Quedam imunes os donos porque atravessaram hámuito a zona equatorial. Mas a Vitorina, essa, vai nosexto namoro: dois magalas, um moço de padeiro, oleitor da água, o beleguim do mercado negro. Naboa quadra, os pardais caem da pimenteira, em quese debicam, de cambulhada aos três e quatro, econtinuam no solo, engrifados e frenéticos, suarefrega afrodisíaca. Neste estado de exaltação,deixam-se pegar como anjinhos. O próprio mundo vegetal participa desta luxuriaçãoerótica. Ao mais pequeno descuido as ervas

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parasitas absorvem o plantio. A junça multiplica-semais tentacularmente que Abraão. Vá que por suavez, as plantas úteis assumem proporções dignas,balofas de viço. As favas, ainda com o rabo deraposa enroscado na raiz, reproduzem-se em cincoou seis caules. Os tomates parecem beringelas e asberingelas monstruosos odres dos tempos dosalmocreves. Foi-se o Vitorino e pouco tempo esteve devoluto olugar. Da mesma maneira que não se compreende oNilo sem crocodilos, o meu quintal sem gatos nãoteria significação à beira do corgo, com passarinhosloucos pelas rama-lheiras, ratazanas nos pegos, aaragem ora salitrosa, ora cálida que lhe vem do mare do agro saloio, sem falar na sua situação deenclave quanto ao casario do arrabalde. De facto,surgiu uma gata, três cores, que parecia ter-seevadido dum cartão de Steinlen. Era magra dosflancos, coleativa, langorosa, nariz de nácar puro,picante, arreganhadita, tipo da fausse-maigre, aloucura dos machos que se entendem. a avaliarpelas vazias e o jeito de farejar, deveria ter fome.Quanto a idade, púbere. Vitorina avançou com a consabida gota de leite dosuborno. Não se fez rogada, tratando-se, como apinta inculcava, destes seres para quem tudo na

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existência é a aventura. Bebeu o leite sem relutância,lambeu-lhe o beiço, e quedou diante de nós,assentada sobre o traseiro, com uma das mãos no ar,em cuja polpa ia pondo uma suspeita de saliva, afazer uma toilette sumária. Não foi preciso mais. Filha das ervas, batida, aceitoua hospitalidade sem o mais leve rebuço. Baptizou-ao pequeno do caseiro - não sei porquê - Meni-meni.Digo que este Meni-meni foi tirado, por sugestãoonomatopaica, às estrelas do cinema ou àsmisteriosas divindades da Índia, de nome assimrequebrado como os tigres da sua jungle, mas não ojuro. Em poucos dias, a nova pupila revelou-se umaserigaita perfeita, com lume no sangue, lume nosolhos doirados, caprichos tão inverosímeis como asua inteligência era pavorosa. Sabia destapar umacaçoila e arpoar o petisco melhor que o mais ladinodos pickpockets. Quando a Vitorina fritava ocarapau, julgava-se com direito às primícias comouma antiga donatária. Havia de achar sempre modode iludir a vigilância da moça e, enquanto ela com ogarfo virava a nova forjicada, zape, lá ia o maisgordo e tostadinho.

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- Nem o prestidigitador que esteve no Coliseu! -exclamava a cozinheira, que tem a moina toda dacapital. Com estas taras, que revelavam a sua baixaeducação, se não a má índole, a Meni-meni era deinexcedível meiguice com as pessoas da casa. AVitorina fechava os olhos aos rapinanços,conquistada pelas marradinhas dengosas que lhedava no rosto, se se chegava a ela, ou nopatriotismo, que era amplo e apreciável, quando àmesa da copa limpava os talheres. Seguia o pequenodo caseiro como uma cachorrinha. Ia dizer, votava-lhe um afecto vigilante e acrisolado. Uma vez quehouve jeitos de se despenhar da figueira em queandava aos figos, ela como que tendo rebate dolance marinhou a toda a pressa pelo tronco acima nointuito, parecia, de lhe acudir. E os seus sortilégios?Igual à meiguice com que se roçava às pernas dagente só a ondulação subtil de que se possuía a suaespinha, ao passearem-lhe pelo cerro uma mãoveludosa. Todos os seus movimentos vinhamimpregnados do ritmo da graça, conducentes emúltima análise à sedução e voluptuosidade. Poressas virtudes não raras, mas nela singularmenteesquisitas, perdoava-se-lhe ser lambisqueira comodez freiras de Odivelas.

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O pior é que chegou o Janeiro e escancarou-se nestebicho todo o seu impossível ser. A três quartos doInverno, os gatos pressentem na onda de claridade,mais cheia, que vem do Nascente, a quadra doRenovamento. As noites de grande luar prateado,como praias de embarque para Citera, convidam-nos ao amor. ao seu gosto de recato e de silêncio,mesmo à sua algidez de maneiras, agrada aincomparável serenidade que o céu reveste por estasalturas. Até nós, os humanos, olhando para asestrelas, brilhando no fundo dos abismos espaciais,esquecemos que moramos num pátio gradeado. Oespírito solta-se e, quando não se solta mas sente ascadeias que o prendem, não há na Urânia deFlammarion voos que não tente. Evadir-se assim agente ainda é reconforto. Os gatos, de certo, nãoolham para Altair, mas não está averiguado que nãorecebem no sangue o influxo da sua luz branca, eque nas sonoridades do luar, em suspensão, nãoleiam a mensagem antecipada da Primavera. Àgestação da prole convém, mais do que qualqueroutro, este período intermédio, de modo a que caia aparidura nos dias assoalhados. Deste modo secombina a poesia das noites de Janeiro, amplas ereligiosas como catedrais, com a economianecessária da espécie. E ainda a conclusão que se

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recomenda à nossa humildade é que as criaturasobedecem a leis irremissíveis, e as suas veleidades ecaprichos não passam de gotas insignificativas emrelação ao estuário para que vão defluindo. A Meni-meni, corria o mês de Janeiro, perdera oapetite e em seus olhos doirados a bolinha de lumerefulgia mais buliçosa do que nunca. Ao mesmotempo, considerava-nos com uma indiferença, queparecia desafeição. Se porfiávamos em forçar estaindiferença, o seu olhar tornava-se maléfico. Uma noite, guiado não sei por que sentidotranscendental, um gato veio lançar à porta, talsanto e senha, dois miaus atridos, quase dolorosos.Foi tão de passagem que nem conseguimosapercebermo-nos do menestrel. Ela respondeu baixinho e cavidosa, à maneira dedonzela em convento. Mas foi como um ai quetremeluziu e se desvaneceu. Quem o soltou? No dia seguinte, o entremez tomou corpo. O bardofoi postar-se a uns dez passos da casa e de lá ergueuum apelo queixoso e demorado, com síncopesbreves, em que palpitava um grande frémito deexultação e pena. Sim, o amor, antes que seja umagrata satisfação, representa o cumprimento dumanecessidade cruel.

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A Meni-meni saltou da almofada, em quedormitava, para o peitoril da janela, e de láentabulou com o apaixonado um sostenidocolóquio. Foi o primeiro contacto. Que se disseram?Nós, que sabemos um ror de línguas mortas e vivas,não traduzimos ainda a gama sónica dos animaisque dispõem duma glote modulada e vária.Contentamo-nos com as explicações que se oferecemà nossa instintiva compreensão. O que sei é que na tarde imediata a Meni-menisumiu-se pela porta de serviço, ao abrir-se aohomem da água de Caneças, e esse dia não voltoumais a casa. Vimos uma vaga fímbria de estampariatricrómica pelo telhado, ao lusco-fusco, que podiatomar-se pelo seu saiote. Por volta das onze horas,quando o sítio soçobrava em paz morta, começou oconcerto da gatarrada. Eram muitas vozes,melífluas, gementes, irosas, deseperadas, indício deque se tratava entre os calondros do quintal umrepenicadíssimo torneio de amor. Estava a noitesobre o escuro, a atmosfera tal qual água-tintavioleta que enfeita a pança duma taça de majólica.De qualquer canteiro de junquilhos a brisalevantava um rescendor sápido e penetrante. Asfavas que tinham a altura de palmo, as couvesportuguesas de bom porte, e as sombras projectadas

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das laranjeiras e limoeiros, não deixavam ver osmantenedores, mas pela variação musical se poderiaavaliar da concorrência e desenvolvimento dasjustas. Em casa ninguém conseguiu fechar olho. Quando veio a manhã, baça mas enxuta, divisámosa Meni-meni deitada na terra do faval, meiosonolenta, e os seus idólatras em torno. A Vitorinabenzeu-se. Tinham feito um largo eprejudicialíssimo espojadoiro no terreno, que lhefora campo de batalha, não se vendo uma só couvedireita em muitos metros à roda. E, soprados novento, ou agarrados às asperezas do chão, viam-sefiapos de pêlo de todos os matizes, mechas,guedelhas, troféus de guerra. Eu conhecia alguns daqueles bichos pelas incursõesque faziam no quintal, seguidos algumas vezes dassuas donas que apaparicavam no tareco, umas, oseu tirano, outras, o seu único ai-jesus, aquelas, até oseu utilitário caçador. Um era o Nhoca, vizinho dolado de lá do prédio, amarelo e rotundo, quase umvelo de oiro, que nos era familiar. Na quadra do cio,era um tuno de alto lá com ele. Ouvia-se pela noitedentro a voz suspirosa da velha beata, com o seu ecode senzala e sertão: - Nhoca! Nhoquinha!

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Outro era o Meia-noite, todo de azeviche, apenascom uma guedelha arruivada no lombo, que tantopoderia representar uma singularidade capilar comoa sombra duma casquelhice de suas donasoxigenadas. Era ainda novo e começava a dar quefalar. A palheta de oiro na sua pupila era como umacaravela, batida de sol, a singrar num mar azul. Um terceiro chamava-se Cortadillo e tinha a suahistória. Era um gato de pelagem compósita,leopardo na cauda e no pescoço, mesclado dotronco, cabeça imponente de deus púnico. De géniotudo o que há de mais rebolão. No primeiro andardo seu prédio vivia uma gata francesa, branca,sedosa, farfalhuda, sempre lavada e escovada, afeder a água de Colónia: Ninon. Usava um laçovermelho ao pescoço e em elegância, dengue,arrebique de maneiras, era tudo o que há de maisprecioso. Pois o Cortadillo teve artes de se insinuarno ânimo da delambida e seduzi-la. Com pasmo daama, que esperava uma ninhada de príncipes, aNinon botou ao mundo seis gatorros ordinários, queeram o pai escarrado. Daí o corte de relações entreas respectivas donas depois de virulento bate-língua. - Imagine o amigo - contou-nos o senhor Ramos, quetem as suas letras - a Lucrécia, para evitar ralhos e

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despiques, deu o gato para Cai-Água a uma gentenossa conhecida, tipo de bons burgueses, ricaços esem filhos, que se queixavam de que os ratos lhescomiam as orelhas. O Cortadillo, rateiro de marca,estava na conta. Aqui para nós, não foi sem lágrimasque a Lucrécia se resignou a desfazer-se dele.Também a mim me custou. Que quer o amigo? Umgato e de modo geral qualquer bicho de estimaçãoacabam por tornar-se, como o cigarro e o café, umvício indispensável. Vícios do nosso amor.Honestamente se confessou aos bons burgueses queo nome de Cortadillo representava umahomenagem ao grande Cervantes que tirara de suafantasia este gatuno audaz e azougado. Foi asneira,não há dúvida, mas fizemo-lo por escrúpulo, nãofossem eles tomá-lo por algum vulto do FlosSanctorum e dar o cavaco quando o soubessem,tanto mais que se tratava de marido e mulher tudo oque há de mais suspicaz e recatado, ele sempre deóculos pretos e capachinho, ela o tipo clássico daSalvation Army, que se haviam consagrado àVirgem e eram felizes. Agora, deixe-me que lhediga. O gato não merecia o ominoso do nome. Eraum frascário de primeira, lá isso era, mas gatuno demodo algum. Acabava o mês de Janeiro, magro,escanelado, a cair da boca aos cães. Mas que tinha lá

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isso? É manifesto que o amor esvazia esta casta debichos como uma bola de football. Dão-se todos,gozam como poucos bichos na escala zoológica,basta ouvir-lhe o lamento vibrantíssimo no instantecrucial, mas ficam reduzidos a pele e osso. Pagamcaro o tributo à voluptuosidade. Mas, como lhe iacontando, o gato foi para Cai-Água e, veja odesconchavo, os meus burgueses ignaroscomeçaram por cometer a injúria literária de ocrismar de Cortadillo para Bichano. Bichano,palavra insignificativa, impessoal, e epicena como acara deles! Depois, como amigo feles não abdicavade suas virtudes másculas e ficava logo no ar seouvia uma fêmea miar na rua, à de el-rei porque eraum rufia. Para encurtar, a páginas tantas os grandestartufos encafuaram o animal num cabaz edevolveram-no. Limitei-me a dizer-lhes: - Queriam o gato ajoelhado ao lado a rezar o terço,não era!? Ainda lá não chegámos! O Cortadillo ocupava na liça um lugar muitochegado à Meni-meni, incapaz por índole ecoerência dum papel subalterno. Ou favorito oureptador. Espraindo os olhos até o mais fundo do proscénio,viam-se ainda outros gatos. Eram de todas as cores eclasses, desde o gato amarelo, cor de barro, dir-se-ia

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feito de encomenda para figurar decorativamentenuma sala de jantar, mogno ou carvalho, ao gatobranco, pêlo à escovinha, com manchas vagas doabastardamento. Não faltava o gato do poeta, magroe triste, alimentado a espinhas ou ratos, o que é asuprema abjecção, ao gato perna-marota, queperdera a gâmbia debaixo do comboio da Linha deCascais e arrastava pelo bairro seu andar, aospulinhos, de canguru. Entre os inominados, à frentede todos, interceptando o horizonte o Cortadillo,estava uma estampa curiosa de felino, exemplar depura maltesia. Era na pinta e no raiado, salvo otamanho, o perfeito tigre real. Tinha igualmente unsolhos glaucos que assestava em nós cominterrogativo furor. Alto, cabeça maciça, estirado demembros, quando marchava fazia-o num passoverdadeiramente nobre, o que verificámos aoacercar-se da Meni-meni e que, sobranceiro àdemais gatarrada, ergueu sobre ela as duas mãos.Pelo que informava Vitorina, foi este o primeiro queacudiu aos eflúvios da fêmea aluada e que desde avéspera lhe fazia corte ardente e porfiosa. Esta bicharada, quieta mas rolando suasantecipações por detrás dos olhos semicerrados,ocupava, tal um acampamento, o chão das favas.Mas, como era chão de cultivo, que Vitorina, em seu

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ânimo de camponesa, não podia ver calcado, alto lá.Chamou a Meni-meni. E como ela não lheobedecesse, carregou-se de pedras e lapidou-os comdenodo. Eles meteram pela cevada, foramrestolhando pelo couval fora sem grande pressanem pânico, e trasladaram, pouco mais ou menospela mesma ordem, sua liça para mais longe. Como dançarina a que chegasse a hora de exibir obailado, anaçando no ar véus de muitas cores, aoritmo cadenciado de passes graciosos e piruetasligeiras, a Meni-meni encetou as suas partes gagas.No focinho dos galãs, provocando uns e negaceandocom outros, rebolando-se por terra faceira ealiciadora, ali se desentranhou em gaifonas emomices. Após a exibição, parou como estonteada.Os gatos, de jarrete flectido pronto a formar salto,esperavam. Ela então soltou um gemido lânguido,derramado, que foi como o sinal aos mantenedores.Primeiro que nenhum outro, o gato tigradorespondeu com uma súplica, aproximando-se. Mas já em passo de desafio, pescoço esticado, dorsorectilíneo, o Cortadillo se abeirava. Pé aqui, pé ali,proferia ao mesmo tempo renaus-nausvibrantíssimos. O Nhoca, o Meia-noite, o Papo-seco,de rabo no ar, como paveses de guerra, acudiam adeclarar sua beligerância. O grande gato maltês

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soltou um assopro terrível e projectou-se. Estavatravada a luta. Durante minutos, ora debaixo, ora decima, regougando uma raiva mortal e bufando, sedigladiaram os dois rivais. Entretanto a Meni-menifazia simulacro de não assistir à batalha, entregue afaceciosas cambalhotas na arada. Quando seapartaram, cambaleando, ambos os justadoresmiavam queixosos e de certo feridos. Que queriameles dizer em sua voz conturbada? Que o amor erapara eles uma difícil e crua prova, que ia prosseguir.De facto o Nhoca investia por sua vez contra ogrande maltês. E o duelo arrastou-se não menosderrancado e turbulento. A Meni-meni, assim oentendiam, pertenceria ao mais forte, se não ao maisbelo. Pertenceria àquele que soubesse melhorexprimir o seu desejo e melhor o defendesse emcampo aberto, talvez ainda àquele que exalasse oodor que correspondia à sua sensibilidade. E portodo aquele dia fusco, ora na margem do rio, ora naterra lavrada do quintal, os gatos se bateram. Ela, dirigindo-se ora a um, ora a outro, açulava-oscom suas fosquinhas e caprichosas distinções. Etanto se contorcia, virando-se e revirando-se sobre oventre, como deitava a correr, toda espalha-brasas,desnorteando os galanteadores.

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A Meni-meni acabou por se render ao gato maltês.A todos eles superara no vigor de rins e graças àesgrima tão rápida como decidida de suas garrasafiadas. Também nenhum lançava apelos maisprometedores de luxúria e fortaleza. Quatro dias e quatro noites o par delirou devoluptuosidade, uma voluptuosidade cantada,chorada, gemida, com o acompanhamento a muitasvozes dos outros gatos, presentes aos esponsais. AVitorina andava com uma vassoira no ar, tal umafúria de manicómio congestionada de cólera, aescorraçá-los. Deixou apanhar bispo ao guisado esubir o leite não se sabe quantas vezes. Cometeuoutras avarias de marca. Em casa, não haviamaneira de se conciliar o sono. Por minha parte era-me impossível concentrar oespírito na elaboração do discurso que destinava àAcademia em homenagem a um recipendiário.Propunha-me - santa ingenuidade - justiçar aliteratura mestiça à maneira de Vítor Hugo noCromwel. Desejá-lo-ia por isso temperado dovernáculo de Vieira e com o conteúdo subtil edevastador das palavras de António, ao povo, noJúlio César de Shakespeare. E, relendo as minhasduas copiosas laudas, pareceu-me ouvir sinosrachados.

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Na manhã do quarto dia, depois de uma hora dequebranto, recomeçou o entremez mavioso a curtadistância da casa. A gata chorava em surdina, doce,docemente, toda ela estirada debaixo do arcoflexível e percussor do maltês. Depois, na sonatinanupcial repicava com imprevista fuga uma diatónicatão lancinante como apaixonada. A sopeira foi a toda a pressa com uma panela deágua que, mal arremessada, se escaqueirou fora doalvo. Mesmo assim desviaram-se para a horta, ondecom brandos tagatés se preparavam para reatar. - Não deixam lá chegar! - exclamava Vitorina entresórdidas gargalhadas. - Ai, ele é assim!? - proferi enervado e com o mauhumor dum tirano de quem zombamsistematicamente. Peguei da espingarda e não consumi muito tempo aencontrar o maltês bem a jeito por detrás do pontode mira. Desfechei. O gatarrão deu um salto prodigioso e em silênciopulou a parede para o lado do rio. A Meni-meni,interdita um tempo de nada, foi empós. Contou Vitorina, que dava uma volta na ponta daunha para não perder o desenlace, que dois diasesteve o maltês a agonizar entre as merugens e ojuncal. Os gatos têm sete fôlegos e àquele, taludo e

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reforçado, custava-lhe a morrer. Aqui e além,encarrapitados em bola por cima do muro, osdemais assistiram. A Meni-meni, ao vê-lo inerte,tocava-o com a pata. Velou-o um dia, dois dias. Aságuas vivas da preia-mar, lufando rio acima,incharam a veia. O refluxo, como uma misericórdia,arrastou o cadáver para o Tejo. A Meni-meni nunca mais voltou a casa. Encontrei-atempos depois à porta duma taverna a pentear-se aosol, na companhia dum carocho lazarento como ela.Fingiu que me não conhecia. Como era da natureza do quintalejo chamar estacasta de bichos, tão antipática em última análisecomo original, dei ordens terminantes à criada: - Corra-me com quantos gatos apareçam. Ouviubem?! - O meu senhor nunca gostou de gatos. Se gostasse,que lhe importava lá a vida deles?.. - Importa-me o meu ripanço e basta. - Por isso mesmo. Matou o maltesinho, queira Deusnão lhe ande a vida sete anos para trás! - Se ele é isso, Vitorina, deixe entrar os bichos todos! Remontar de quando em quando o rio de Cronos,poder fechar na cara dos patifes as cancelas que emboa fé deixámos abertas para a nossa intimidade,libar segunda vez a dulcidão de certas taças, quem

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não mataria o mandarim, quanto mais um gatomaltês?! Fereza Àquela data, era ermitão de Nossa Senhora daPenhavouga um homenzinho já entrado nos anos,baixo, redondete, que, aos olhos dos peregrinos,pareceu brotar como a flor da esteva ou o musgo dafraga, ali com alvura e pujança estranhas, por obra evirtude do solo miraculoso. O antecessor foraencontrado, depois de insepulto todo um longoInverno, tão ressequido e pergaminhado, que podeconduzi-lo à cabeça para o cemitério do Castelo,num caixão de anjinho, uma moçoila da Barroca. Eapenas o seu estado de diafaneidade preservou ocorpo, dizia-se, de exalar o cheiro de mortulho que,no meio do ermo, levaria os bichos bravos, em trêstempos, a fazer dele um pastel. O novo ermitão, quando estropeou na Penha aprimeira aldeia a cumprir de cruz alçada o voto quevinha de tempos imemoriais, deu respostas quesatisfizeram a toda a gente. - Chamo-me o irmão Simplício, e mandou-me paraaqui Frei José, da Lapa. - Muito que viva! Esteve então no Convento daFraga com ele?

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- Somos ambos egressos. Mas eu sou leigo e ele épadre. Possuía uma bela barba branca, fluvial, sem cujoatavio, de resto, não era o perfeito ermitão, umavozinha em falsete, entre infantil e feminina, e mãosque, pela pequenez, pareciam talhadas antes parafazer renda do que para mandar a sachola. E, defacto, nunca mais se viu a couve troncha desorelhar-se no cerradinho, e muito menos aqueles repolhosque desatavam a crescer, como a rã da fábula, nafebre de se porem a par com o tamanho dospenedos, que todos no sítio eram descomunais.Primeiro, tomaram posse do agro as malvas e oscardos, e ali vicejaram com soberbia inconcebível atéa altura em que o vento do Outono soprou para lácom a semente da urze e do sargaço. Quando a serrarenovou o seu manto, tornou-se aquilo um matagalfechado. O irmão Simplício deixava a natureza à sua rédeasolta. Já não era pouco, alquebrado de forças, ascostas em aduela, ir com uma lenta chamiça degiesta tirar as teias de aranha nos altares e varrer ochão. A sua principal tarefa, não falando do rezar,era deixar-se viver. E deixava-se viver como umlagarto daquelas brenhas, estirado ao soalheiro nosmeses frios, à sombra nos dias caniculares, sem

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dispêndio do músculo, ergo com pouco cibo. Asesmolas sempre iam pingando com que, emboraraçoado de seco, entreter a máquina. E lá diz oanexim serrano: boa vida é meia mantença. Que havia ele de fazer, de resto, quando à roda tudoera peste, fome e guerra?! Os homens chacinavam-seuns aos outros, sem saber bem porquê, e faziam-noaos vivas a El-rei, uns, à Carta, outros. Simplício eradesprovido de ideais tão abnegados. Afagava olinho das barbaças e via correr as nuvens. Outrasvezes punha-se a ouvir cantar os melros e davagraças ao Criador. Em modelar todo este ripançonas vinte e quatro horas consistia a sua arte deermitão. Que ganhava ele, o mundo ou Deus, se emvez desta regra benigna passasse o tempo a engrolarpadre-nossos ou esfarrapasse os joelhos à roda dosantuário? Ora uma noite de Dezembro, com o Vougaentumecido a pular de rocha em rocha numestardalhaço de inferno, ventania e chuvaceiros avarrer furiosamente a terra, ouviu bater à porta.Batiam tão de rijo, que o servo de Nosso Senhor deuum pulo na enxerga. E nem se perguntou seatravessava as alpodras dalgum mau pesadelo ou seestava com os cinco sentidos despertos.

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- Abra! - secundou uma voz que, pela intimativa,dava a entender que não admitia nem delongas nemréplica. Cingiu o bom barbaçanas o cordão sobre a túnica deburel e avançou o mais rápido que os anos lheconsentiam para a tranca. Era um bando de gentearmada, negra e truculenta, que empurrou a porta eentrou de roldão. Pelo recortar dos vultos contra oestanho do céu e certos luze-luzes e jeitos, percebeuSimplício que conduziam um homem numas andas. - Santinho, trazemos-lhe aqui este homem para lheministrar a confissão. Avie-se lá, que pode acontecernão ter corda para muito tempo. - Confessava, ora se não confessava, pudesse eu! -respondeu Simplício com suavidade. - Não posso,nunca recebi ordens de sacerdote. Que se entreguenas mãos de Deus: Ele ouve-o. - Diabos te carreguem, alma de cântaro velho, entãotu não eras frade de S. Francisco? - Era, mas nunca passei de irmão leigo. Os guerrilheiros trocaram seus pareceres earrazoado, mais áspera e descompassadamente queo choque das reiunas. E um, provavelmente ocabecilha, proferiu: - Vamos deixar este homem à tua guarda. Agoraouve, tu respondes pelo que lhe suceder. Está ferido.

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Se o tratares tão bem que fique sarado, ganhas umabolsa com cem pintos. - Para que me serve o dinheiro?! - Para que te serve? Não tens amigas? Então, olha,quando tivermos vindimado os chamorros,fazemos-te bispo. - Já vos disse que não recebi ordens... - Queres tu uma coisa?... Vais para bedel da Sé deLamego. Repara, papinho farto, fato de veludo,bastão em punho...? Estás a ver-te, hem? - E se o ferido expirar? atalhou Simplício. - Se o ferido expirar, dás-lhe sepultura, que remédio!Mas não deixes de lhe rezar um trintário, que Deus eo rei não tinham melhor servidor. Esperemos queescape... - Livrete Deus de lhe fazeres a cova no meio domonte, como para um constitucional - rosnou umavoz aguardentada. - Enterra-o no chão da capelinha. Nem lhe deram tempo de responder. Deescantilhão, como chegaram, assim desapareceramno escuro, entre as bisarmas assombradas dopenedal. O ermita, quando a algazarra da malta soçobrou nocachão repicado do rio, acendeu um fachoco dequeirozes e, à chama que se elevou, descobriu os

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olhos do homem fitos nele. A boca entreabria-se-lhetambém no rictus de quem vai falar. Simplício abeirou-se e deu conta que os olhos, quese lhe afiguravam focados nele, eram janelasabsortas por onde se coava para o mundo a lividezestagnada da noite eterna. Do mesmo modo, oslábios haviam deixado passar o último anélito comoregueira onde secou a linfa. Era cadáver. Simplício, a quem já nada espantava no Vale deLágrimas, não se impressionou sobremaneira com apresença do defunto e muito menos com ospossíveis sobressaltos da sua alma, em bolandas dasportas do Céu para as do Inferno. Que sabia eledaquele macabeu? Que lhe importava o que fora oseu trânsito até se reduzir a saco de esterco e gasesfétidos? O problema, único para si, estava emdesquitar-se dele. Mas como era problema de magnitude para ralar ojuízo dum doutor, pôs mais acendalhas, e aosrevérberos observou que se tratava dum sujeito demeia idade, hercúleo, de peito abaulado e ombroslargos, estes homenzarrões que dariam dois,serrados ao meio. Mau grado que assim fosse! Comoremover tão ponderoso empecilho? Enterrá-lo nacapela não podia, por causa do chão que era delájea. E na horta? Teria ele alento para abrir uma

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cova, de vara pelo menos, à força de biceps, umavez que não podia contar que os leões - e quem dizleões diz os lobos da fauna local - saíssem dasbrenhas a cavar-lhe a sepultura, como faziam comos anacoretas da Tebaida?! Não era merecedor,pelos seus pecados, de tão grande fineza de Deus.Assim pensando, lembrou-se que há muito nãopunha a vista em cima da enxada, a afanosaenxadinha do seu predecessor, e deu-se a procurá-lapor todos os cantos. Não a achou, e de ânimotisicado, arrostando com a invernia, dirigindo-sequase pelo tacto, foi procurá-la na horta. O honestoinstrumento tinha levado sumiço, porventura algumesfomeado a larapiara, para a trocar por uma côdea. Não lhe restava, pois, o recurso de abrir a cova naterra, a terra que, dentro dos templos, no cemitério,no cibório ou num logradouro, é sempre a terra daverdade no comer a todos por igual. Que faria, santoDeus, do machacaz? Deitá-lo na corrente do Vougaera processo aconselhável. Mas onde tinha ele vigorpara arrostar com aquelas seis arrobas de muladarmais de quinhentos passos? Verdade, podia chegarà Barroca e dar parte; à Barroca ou a outro lugarejo.Mas, além de que a cheia do Vouga devia alagar ospontigos, corria grave risco em derramar naquelacaterva de imaginações primárias uma história

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nocturna, azarenta, e pouco verosímil. Não iriaatirar de pantanas com a sua doce paz temporal? Simplício passou o resto da noite a pesar prós econtras, e todos os expedientes lhe pareceram pioresuns que os outros. E aconteceu o que se deparavamais propenso e imediato à sua falta de meios, senão à sua incapacidade em resolver casos assimbicudos; o cadáver começou a apodrecer na enxerga. Os primeiros dias, com a temperatura glacial, aconsumpção foi-se operando paulatinamente, e nãoera grande o odor daquele laboratório químico empequena actividade. Mas, pouco a pouco, a matériacorrupta foi-se soltando das matrizes, e a casa doermitão tornou-se uma cloaca insuportável. Não valia mais a pena desertar do seu pobre e ternocenóbio onde, mercê das boas almas, a existência lheia decorrendo como manancial que, entre juncais,não se ouve, não se vê, lagrimejando até vir raio dosol mais quente que o abrasa e consome?! Mas emque tugúrio, lar amigo, refugiar-se, desvalido, semparentes nem próximos? A invernia continuava fera e impetuosa, e Simplício,a tiritar, encharcado até aos ossos, apertava comNossa Senhora, de quem era guardião ralaço mascontrito, que se dignasse sugerir-lhe a forma de selibertar do tórpido arganaz. Algumas vezes, a sua

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prece era tão atrida, que se damasquinavam depranto! Mas os lábios da Mãe de Deus mantinham-se firmemente cerrados, naquele sorriso de doçuraetérea, coalhado para além das realidades e ilusõesdo Mundo. E as suas súplicas redundavam tãoineficazes, que nem um frémito via a sacudir-lhe opeplo de rosas de Alexandria. O cadáver é que continuava a sua obra maléfica deempestamento. A face contraía-se-lhe e revestia umamáscara que Simplício nunca sonhou nos própriosdemónios do Inferno. Além do que tinha de tábido,sensorialmente imundo, tornara-se hediondaobsessão. O triste via-se com o morto a cavalo;beijado pelo morto; chupado pelo morto. Era, maisque um corpo em decomposição, um vampirovoraz. Acaso não estaria no reino de Belzebut? Nãoseria aquele um suplício? Suplício infernal, dos queenumeram os teólogos, o seu para castigo dosmuitos pecados? Nas horas em que vinha a si, o ermitão sentia todo onojo do esterco humano, uma vez despojado dessaaura imponderável, etérea, surpreendente, que fazgirar o sangue nas veias, impulsiona os misteriososmecanismos do cérebro, recolhe a luz do céu naspupilas e desloca o bloco animal de jau para jalescomo o mais rigoroso e inteligente dos motores. E

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ora e sempre implorava à Mãe de Deus que, pelassuas sete lançadas, o desatolasse do esterquilínio. Um dia que voltava melancólico e desiludido dosantuário, de cabeça torcida para dentro da loba afugir à vergasta do temporal, sentiu passar por cimade si listões negros, sorte de farrapos funéreosbalanceados nas refegas do vento. Eram os corvos,de certo açulados em sua gula de sepultureiros peloodor de cadáver. Ah, mas eles traziam-lhe umamensagem salvadora! Sempre louvados fossemDeus e os santos, Cristo e a Virgem Maria, as avesnojentas vinham libertá-lo da presença abominável. Contemplando o soberbo penedal, compreendiaagora porque é que à flor do solo, numa furnadeserta, entre as ribas dum corgo selvagem, seelevavam aquelas bisarmas, algumas da altura decastelos. Sem dúvida para que, mediante as incisõescavadas em seus flancos como nos poços, as almaspias pudessem ir adorar as bentas imagens de SantaMaria Madalena, S. Paulo Ermitão, Santa MariaEgipcíaca, guindadas a aéreos redutos comoconvinha à sua natureza celestial. Essas e, coroandoa todas, mais em alto, o passo da Ceia do Senhor. Mas se figurava lá esse passo - e estava muito bemem tanto que Deus é o vero cibo do homem - forarelegada para um nicho, muito abaixo, a vera e

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antiquíssima imagem de Nossa Senhora, dona dePenhavouga. Acaso essa estátua em despeito dorobusto tronco, do pescoço taurino, da frontebrutesca, duma clâmide tão achavascada quesobressaía dela com escândalo a graça femininaduma fíbula grosseira, tinha menos direitos ao cultoque as madonoas especiosas de Rafael? Não erasempre Maria Santíssima, igualzinha a si própria,como eram filhas iguais no amor de Pai Celeste arainha de Sabá e a pastora de tamancos?! A Senhora havia sido apeada das alturas, que lhepertenciam, que mais não fosse, pela sua condiçãode “nuvem branca a singrar em mar de estrelas”. Defacto, contemplando o panorama do andaimesuperior daquele penhasco, os olhos inebriavam-sede extensão e vertigem. Ao mesmo tempo, por todaa parte refulgiam estrelas: estrelas no tojal, cujasflores lembravam bagas de oiro a liquefazer-se; nasgiestas, as maias brancas com as amarelascompondo um duo de infinita alacridade; nas urzes,suas umbelas parecendo ter recolhido a farinha daVia-Láctea peneirada em noite de luar. O chãodesafiava o firmamento. O telhado verde-limoso daermidinha soçobrava sob as frondes das urgueirasquase arbóreas e, à desbanda, a casota com o hortejofugia por entre rosmaninhos e vela-luz.

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Mas se a tinham apeado do seu trono cerúleo emproveito da Ceia do Senhor fora inegavelmente pordeterminação divina. O baixo-relevo era umsímbolo. Nada mais que o nome significava umaindicação à sua alma conturbada: pertencia-lhe darde comer àqueles hóspedes alados. Estava-lhedestinada, na qualidade de argonautas dos espaços,a mesa excelsa. Aos homens, vermes da vasa, o chão rasteiro. Nãoobstante o estigma, que epulas as deles, mal vinha oequinócio da Primavera, à volta do morroensimesmado?! Com o guião e a cruz detintinábulos, os romeiros de cem aldeias traziamfrauta, sanfona e o bornal farto. Depois das loas,desatavam as merendas na sombra granítica e,borracha túrgida de mão em mão, deglutindo,amando e folgando, era o regalo dos regalos.Entretanto que reinavam, escapulia-se debaixo dassaias duma rapariga, entre surriadas e rabolevas,um láparo meio arrelampado com o sono ourelampejava um sardão. No pequeno largo em frente da capela, em seguidaao bródio, cantavam e dançavam. A Simplício, de péno limiar com o seu rosário ao pescoço e a barba delinho, os festeiros, joviais com a vinhaça eirreverentes, chamavam-lhe S. Pedro, uns, velho

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fauno, outros. Que mal! Tirava o ventre de misériase armazenava alegria e simpatia humana paramuitos meses. Armazenava ainda com que suprir opanelo nos meses ladros, a talhada de toicinho, ochouriço, o selamim de castanhas piladas, a malgade ervilhas e de feijão. A quarta de centeio que já ostetravôs dos actuais peregrinos, segundo umsabichão da Grécia, traziam a Ceres, que antes daVirgem ali dispensara seus favores em esconjurardos campos a praga da lagarta, sua era. O moleiroda Barroca, quando acertava transitar por ali,carregava a moenda. Nenhum eclesiástico lhedisputava tais réditos. Assim estava escrito. Mascom a Deusa da Terra ou o Lírio de Jericó, aespiritualidade estava sempre salva, sobrepostosseus bálsamos à contingência dos respectivos mitos. Considerando e tornando a considerar a brutapenha, explicava-se Simplício a sua misteriosaabusão pela faculdade que Deus lhe oferecia deresolver o angustioso problema. Os gritos esganiçados dos corvos, por cima datormenta, o boléu de suas asas robustas nas lufadasdo nordeste, anunciavam bem manifestadamente opropósito que os trazia. Pois que assim era, fizesse avontade do Senhor.

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Como se recebesse inspiração divina, Simplíciopegou da faquinha que lhe servia para cortar o pãode semanas e o queijo de cabra de duas estaçõescom que o mimoseavam os bons romeiros dePenhavouga. Foi-se a um penedo e, passeando alâmina ora dum lado, ora doutro, afiou-a o melhorque pôde. Isto feito, atirou-se ao cadáver. E de mãocerteira, como magarefe ou cirurgião, amputou-lheos braços e as pernas pelas articulações; esquartejou-lhe o arcaboiço; decapitou-o. Uma vez finda aoperação melindrosa, em nome de Deus, do prazerde se ver safo, da obrigação que se infligira de fazerpenitência, tratou de ganhar ânimo para, debaixodos aguaceiros, subir à penha altíssima com as peçasa que reduzira o defunto. Era uma tarefa derespeito, mas paciência. Pois que os corvos, e decerto com os corvos os milhafres, estavam a postospara o resgatarem da vérmina, ia servir-lhes obanquete no coruto da penha, sua nobre e dignamesa. Oh, abençoadas para todo o sempre fossem asaves ascorosas, atentas às batalhas, prontas a limpara terra da carniça humana, obra da estupidez e dofuror! E Simplício, depois de executar mais de dez vezes aascensão aspérrima, consagrou-se com solertediligência a desinfectar o tugúrio profano, lavando,

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arejando, queimando com altivo fogo a enxergaempapada de guzanos. E rendido de forças, mas dealma jubilosa adormeceu do bom e merecido sonodo justo e do rachador. Ninguém, nem Deus nem oshomens, lhe podia pedir contas de tão expedito edesapiedado funeral. Durante três dias, compreendido o lusco-fusco daalba e da tarde, banquetearam-se os corvos nosdespojos do finado. Em torno da penha, como docatafalco dum rei, rocegaram os crepesininterruptamente. De princípio tais exéquias foramdecorrendo pianinho, quase em paz morta. Depois,pouco a pouco, ateou-se a balbúrdia, grasnidosestrídulos, espalhafatoso chimfrim de asas, a horadas charamelas. Vinham em bandos. Simplício divisava-os ao longe,sulcando o céu tempestuoso em voo altaneiro, taisfaúlhas sacudidas nas lufadas do nordeste. Antes depousar, faziam um rodeio e, crocitando, parece quediziam com o cinismo do sapateiro de Braga: - Isto é para todos ou quê? Comiam todos, embora densos como larvas davareja em podredero. Ouvia-se-lhes o derriçadoiro,semelhante ao da tosquia, quando são muitastesouras a tosar um rebanho.

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Em regra aplicavam-se à comezaina em silêncio ecom discreta porfia. Apenas saciados, se mostravamfaceciosos e fanfarrões. Então, sim, armavamnutrido despique, pincharolando pela penha,desembainhando uma asa dengosa, debicando-se,alguns catando o piolho e grasnando. Dentre osbanqueadores, atentos à função, erguia-se por vezesgrita repentina, que tanto podia ser troca de saúdescomo de impropérios. E rebentava um carroceldoido, inexplicável, de muitos deles por cima dobarrocal. Simplício distraía-se a observar-lhe o corrupioanimado e, ora e sempre, a contínua sarabanda dunsque chegavam, doutros que partiam, balanceados nopé de vento como velas na monção. Acontecia este eaquele levantarem do bródio e ficaremsingularmente a voejar em roda da penedia e porcima do santuário, e tais voejos sem sentidosignificavam por certo seu exuberante desenfado.Não era abandonando-se à tineira dos músculoslocomotores que se recreiam os bem comidos destemundo quando jovens e sadios?! O festim na Penhavouga não decorreu em amical epantagruélica bambochata até resto. Em dadomomento, assim que começou a escassear obazulaque, desavieram-se os convivas. A primeira

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sarrafusca foi com um retardatário. Vinha comfome, zás, atirou-se à melhor posta, a menosesburgada, e ala, céus fora. Pelos modos, orompante, sobretudo a sua rapacidade, tratava-sedum bandoleiro. Logo, no seu encalço, muitosergueram voo com grande espalhafato de asas eceleuma de vozes, que bem traíam a cólera quesuscitara. E vai um corvachão, agente da ordem aavaliar pelo jeito e a membratura seca, marrou-se àcola do gatuno. Em menos de nada obrigava-o alargar a presa que foi cair no telhado da ermida, aopasso que o criminoso despedia em voo afogadiçopara lá das arribas do Vouga. E na peça recobradaviu Simplício que se talhavam por sua vez um bodoo vencedor e os amigos. Entretanto, como se o rapinanço se houvessetornado contagioso, vários deles desarvoravam como seu naco. Um abalou com uma tripa à dependura,e era cómico, sorte de papagaio de papel a quereralar-se, e o peso a repuxá-lo para terra. Doisengalfinharam-se por via dum migalho que aSimplício pareceu o coração. E nada mais curiosoque os saltaricos e rapapés que descreviam seuscorpos negros, dotados duma elasticidade depelotas, esbulhando-se uns aos outros, raspando-se

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com o cibo apertado na torquez córnea ou renhindo-o à fina força. Ao entardecer do segundo dia, quando nãorestavam mais que ossos descarnados, aespectaculosa bacanal derivou para batalha. Ossôfregos não se contentavam com desperdícios e osfamélicos da derradeira hora já não tinham com quematar a fome. Brigaram. Donos da posição, osocupantes da penha defendiam-se com vantagem.Mas no horizonte acorreram reforços com rópia deestafetas e o desespero vertiginoso de reservaslançadas na fornalha, e os famintos escorraçaram osfartos. O penedal desapareceu debaixo duma ondade vérmina, compacta e remoinhante, esganiçadacomo sarambeque de pretos. Não havia em queaguçar o bico, e os triunfadores de há poucotravaram-se de peleja uns com os outros, primeiroem cima da penha, depois nos ares, com grandedestampatório e nenhum sarrabulho. Simplício filosofava com as suas barbas, mas deuconta que ia errado: - A desigualdade, com que Deus brindou o mundo,é uma das causas do mal. Acaso a sua bondadeprecisa da cizânia para luzir?! E dar-se-á o caso quea sua misericórdia não tenha melhor objecto que amiséria dos fracos e desvalidos?!

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Ao terceiro dia assinalaram-se entre nuvens osmilhafres e os gaviões. Um peneireiro, de asaadejante por cima da penha, estampou-se como umaserpe no estanho velho do céu. Mas todos eles, degarra firme e asa nervuda, não estavam em númeropara aguentar o combate com os corvos. E, depoisde fazer o circuito do santuário, retiraram-se semoferecer combate aos alões do ar. Essa mesma noite uma alcateia rondou e uivou emtorno da penha com acirrado denodo, como se sepreparasse para executar um assédio. Um lobo maisatrevido veio escarvar-lhe à porta. A desilusão, senão a aurora, destroçou-os pelas brenhas comosombras esquivas, mal-avindas com a luz do sol. Ainda no dilúculo do quarto dia houve babaréu naesplanada da rocha, à beira do painel da Ceia doSenhor. Com o raiar, todas as aves debandaram naspenas do vento, tal uma frota que levanta ferro. Umou outro mais lerdo aportou ainda à Penhavouga.Depois de explorar os lugares, não toscando febra,com vozes desabridas e uma ruflada de rémiges quedenotavam seu mau humor, disparava para longe. O cadáver tinha passado a S. Gulão, como a gentedos sítios tem por costume dizer das petisqueirasimoladas em três tempos. Simplício deu graças.Abençoado fosse o Criador que esfomeava os

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corvos, os lobos e as aves de rapina para exerceremà superfície da terra o papel sanitário de coveiros! Etão grato como jubiloso correu aos pés de NossaSenhora levar-lhe sua jaculatória agradecida emaravilhada. A vida, ainda para um ancião, não era má de todo.O Fevereiro ia fora, já a cotovia se encastelava nocéu a chamar o sol. As primeiras abelhas zumbiamsobre as estevas ainda adormecidas. Dentro de uma,duas semanas, as procissões reanimariam aPenhavouga. Simplício, essa noite, dormiu com os anjos. Manhã alta, singrava ainda Simplício em beatitudeangelical, quando acordou a grosso tropel noterreiro do santuário. Ouviu em seguida bater àporta mão frenética e uma voz de poucos amigosbradou: - Abra! Pareceu-lhe reconhecer pela braveza da pancada amão imperiosa e ainda a modulação da voz, econsigo e com a corte celestial a diluir-se em suaconsciência mal desperta assentou que não haviasubterfúgios a experimentar. Era de resto umhomem conformado com tudo o que viesse. Viver emorrer para ele, àquela altura da existência, eram

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termos equivalentes da mesma equação. Destrancoua porta. Uma chusma de gente armada, negra de per si etorva não menos nas sombras do lusco-fusco, fáciestresnoitados, apinhou-se contra os umbrais, aotempo que a garganta perra do sincelo e da cachaçaproferia: - Onde está o morgado de Covas? - O morgado de Covas...? - repetiu assombrado nasua estranheza. - Sim, o ferido que te deixámos... - Morreu, morreu logo, mal vossemecês viraramcostas - e o ermitão contou-lhes com hábeis eromanceados rodeios o passamento do guerrilha. - Enterras-te-lo? - Então não havia de enterrar!? - respondeu tão depronto como se apercebeu da bocarra do abismoescancarada a seus pés. - Leva-nos à cova que lhe queremos rezar por alma.Despacha-te que temos pressa! Estavam sempre com pressa e mal lhe deixaramdeitar a garnachinha pelo ombro. Fora soprava ovento em lufadas rijas que tangiam pelo céu baixonuvens fuliginosas, tal um rebanho de vacas pretas.Via-se reluzir por entre o fraguedo a corrente do

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Vouga crespa e estanhada, tomada daimpetuosidade da cheia. O bando, como se recebesse palavra de senha,encaminhava-se para a capelinha de Nossa Senhora,pelo que Simplício achou bom advertir: - Não está enterrado na capela... - Não está enterrado na capela, essa é boa! Entãoonde está?- regougou o cabecilha. - O chão é de lájea e eu não pude, por mais esforçosque fizesse, remover as pedras. - Então, meu cachorro, onde é que o enterraste? - Aqui no terreiro. Parece-lhes mal? Lembrem-sevossemecês que este terreiro é o mesmo que umadro, terra santa sem tirar nem pôr. - Léria não te falta, não tivesses tu sido frade!Vamos, indica lá o sítio da sepultura... O ermitão andou dum lado, andou doutro, ora atrás,ora adiante, à procura de chão que inculcasse tersido mexido. Os guerrilheiros, parados, nãoperdiam um só dos seus movimentos. - Foi aqui - balbuciava ele. - Não, aqui não seria...Há-de ser mais para acolá... Aqui há sinais... Não,ainda não é aqui... A madrugada está escura, não seenxerga bem. Além disso, a chuva arrasou a terra.Choveu, choveu, choveu.

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Simplício ia e vinha no terreiro, às voltas ereviravoltas, tanto parando como discorrendo, nojeito obstinado de quem procura coisa real, sumidapor arte do Diabo. Mas como o largo era pequeno, asua incerteza ia-se afigurando inverosímil. Algunsguerrilheiros, mais inocentes ou de boa vontade,debruçavam-se para o chão a procurar também.Outros espetavam os dedos pela terra alagadiça noapalpamento dimensional da provável sepultura.Ele multiplicava-se na porfia de encontrar os palmosde terra com que cobrira os despojos mortais domorgado de Covas, legionário glorioso de Deus e dorei. E nesse afã dava mostras de grande constância,o que não admirava ninguém, e de sincerodescoroçoamento, a julgar pelos estalidos da bocacom que compassava o seu manejo. Cansadofinalmente da vã expectativa, o capitão veio paraSimplício e, endireitando-lhe a cabeça com pôr-lheem cima enérgica manápula, disse-lhe nos olhos: - Entregaste-lo aos chamorros, hem? - Morreu! Eu nada podia fazer! Nem soltou um ai!Morreu, assim Deus me receba à sua mão direita. - Morreu...?! Se morreu, onde está o corpo? - O corpo..? O corpo, o corpo está aqui... Secavássemos neste redondo, havíamos de encontrá-lo...

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O guerrilheiro guardou uma pequena pausa aruminar as suas ideias ou a medir o que devia suporprotérvia do ermitão. E saiu-se dizendo: - És egresso; disseste que eras egresso do conventoda Fraga...?! Má fazenda egresso! Isso ou pedreiro-livre dá o mesmo. Tu entregaste mas foi o ferido aosmalhados... Fala franco uma vez na vida! Ninguémte faz mal... - Assim o Diabo se me entregue da alma! - Tu acreditas no Diabo?! Tens a certeza disso? Eunão tenho e mais sou cristão verdadeiro, cristãopraticante, defensor do trono e do altar. Mas vamosao que importa, onde está o cadáver do Morgado? De novo se desculpou o ermitão com a chuva quefora tanta, tanta que apagara todos os rastos naterra, teria atupido um vulcão, quanto mais oroçadoiro duma cova. Entretanto aquelesguerrilheiros que de boa fé, simulacro de se deixar irno logro, ou ainda por escrúpulo de consciência,palmilhavam o terreno de ventas no chão, aoestenderem-se até à raiz das penhas, sofreram amais alucinante das surpresas. Uma caveira dehomem, descarnada, apenas com umas farripas notoutiço, deparou-se-lhes no meio das ervas esargaços. E soltaram alarme que atraiu a malta toda.

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Com pasmo geral e estarrecido sobressalto doermitão, examinou a guerrilha a descobertamacabra. O crânio já não tinha olhos, mas aindahavia no fundo das órbitas restos tábidos dasmucosas. As capelas miravam vácuas e abstractascomo ventanas sem sinos. As mandíbulas descaíamdos encaixes, presas apenas por um dos risórios,muito lasso e putrefacto. O arreganhadentes - delobo que vai morder - era hediondo. Uma repa decabelos, dum castanho açafroado, suja, semelhante àherbagem reles dos caminhos desbaratada pelocalcadoiro, forneceu base segura à identificação. Eraa caveira do Morgado. Nojenta de aspecto, cheiravamal e metia medo. Ante o destroço miserando, o ermitão deitou-se dejoelhos, braços projectados em torquez, a soluçar. Ocabecilha passou-lhe a mão ao pulso e, retorcendo-lho e apertando-lhe gradualmente, obrigou-o arelatar timtim por timtim a destinação que dera aocadáver. Ao cabo da confissão engulhada, dolorosa, regadade lágrimas e suspiros, o cabecilha ordenou: - Pega nessa cabeça e anda... Tomaram a direcção do Vouga, os dois à frente, obando após em pegado e rumoroso alarido.Simplício ia cheio de náusea, obrigado a abraçar

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contra o peito, às mãos ambas, o crânio despelado eimundo, porque não tinha outro modo de oconduzir. Em seu horror só aspirava a uma coisa,ver o fim, fosse qual fosse, para lá daquele vauiníquo de incerteza e de angústia. Mesmo assim iaencomendando a alma à misericórdia de Deus, e erabem perceptível as preces sibilarem-lhe na raleirados dentes depois de provocarem na glote de anciãoum glu-glu afrontado. Quando chegaram à arriba da rocha, no fundo daqual se via o rio espadanar furioso e bravio, anaçadode espuma, o cabecilha apontando o pego, bradoupara o ermitão: - Atira! Façamos de conta que é o mar, o marsagrado... Simplício abriu os braços e, mais queda quearremesso, a caveira despenhou-se no redemoinhodas águas. - Tirem as carapuças. Rezemos um padre-nosso euma ave-maria por alma do nosso irmão! - tornou ocabecilha em voz que, de compungida, malsobrelevava ao sussurro da torrente. Quando as súplicas acabaram de bolir nos lábiosgrossos da cáfila, o chefe ferrou os cinco dedos nopescoço de Simplício: - Agora tu, farsante!

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Nem se ouviu um grito. A espuma envolveu o corpodiáfano do ermita, surda e branca como mortalha derendas e cambraia. Renunciação Julho, 2. A família mulher, duas filhas, um filho enora foram viajar, e eu resolvo passar-me para aserra. Que eu estava intratável, urso de todo e aomesmo tempo debiqueiro como um cardial, egoístae podre de mimo! É possível. Como havia eu deestar depois de meio século de negro trabalho,engenharias e mais engenharias, e, a bem dizer, semum momento de sobejo para saborear as coisas quemerecem ser gozadas na natureza!? Como havia eude estar no seio duma sociedade sevandijamenteorgulhosa dos seus reis, dos seus papas, dos seusimpostores, dos seus tiranos, dos seus luminares depechisbeque? Os meus ricos meninos não foram atéme chamar ginja, mas levou as mesmas voltas. Li-lho nos lábios sardónicos. Esperai lá que eu já vosfalo. Chamo a capítulo Adozinda, sobre quem aminha cara consorte nutre certas suspeitasinjustificadas, e chamo-a talvez por isso mesmo. Éuma ruivita de vinte anos, cabelo no ar, olhos azuis,saia por cima do joelho, alentejana. Abrótea nafrescura, mas dessalée. A mim não me engana ela.

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Mas é por este lado que a hei-de levar. Dei conta quetem dedo para a cozinha. Menina, estou na intenção de ir passar um mês,dois meses, quem sabe se mesmo mais tempo, numaserra lá para o norte, de papo para o ar e à caça. Tuvens comigo. Mandei lá fazer uma casota que nãotem mais que três compartimentos: um para dormir,outro para tudo o que não seja dormir, o terceiro,cozinha e anexos. Passa um corgo aos pés que levatrutas e tem ricas balsas para se tomar banho. Lápara a tua terra não há destes peixinhossarapintados, pois não?! Mas já te aviso: a um lado eoutro da casa tudo é fraga, rosmaninho e sargaço,coelhos, perdizes e lobos. É como se fosses parafreira. - Freira é o menos, agora lobos! - Não tenhas medo. Hei-de levar, além da cana depesca e espingarda para a caça, uma carabina. - E quem vai mais? - Não vai mais ninguém. Não vai mais ninguém,quer dizer, salvo um paquete, que já tenho de olho,para guardar as cabras que nos hão-de dar o leite eir à aldeia buscar os comestíveis necessários unsdias por outros, e salvo o hortelão, um bom tipo develhote, que trata das couves e dos pepinos. - Não se leva um aparelho de rádio...?

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- Não se leva aparelho de rádio nenhum, nem livrosou coisa que se pareça. Sabes, vomito civilização,esta nossa grande civilização cristã que trago aquiatravessada nos gorgomilos, e ao que aspiro éeliminar todas essas estupendas toxinas. Reparei que não entendia o que lhe estava a dizer eacrescentei poisando-lhe a mão sobre os cabelos queum raio de sol convertia no casco de cobre da Dianacaçadora: - Não levamos isso, mas de resto, em matéria depapança, não nos há-de faltar nada, louvado sejaNosso Senhor. Já lá estão a boa pingoleta do velhoDão, o presunto, o paio, a latinha de conserva, e unsboiõezinhos de gulodice. Os boiõzinhos reservo-ospara ti que és lambisqueira. - É uma ideia da senhora... “Se fosse uma ideia da senhora - estive tentado adizer-lhe, mas calei - com esses olhos, com essecabelinho a voejar para as nuvens, não tinha graça, etu és uma rapariga particularmente graciosa”. Sorria ainda, escondendo o rosto sorridente para olado, do meio madrigal, que leu na minhafisionomia jocosa, quando prossegui: - Remeti para lá muito mais coisas, porque eu, sevou para o ermitério, não me proponho ganhar océu. Estás inteirada: a minha vida será dormir,

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comer, pescar à cana, dar a sua batida às perdizesque ali se vêm meter na panela, ver passar asnuvens, e... - E mais nada. Que mais havia de ser?! Vou noscinquenta e cinco anos, embora a senhora afirmeque entrei na casa dos sessenta, e já não tenho víciosa alimentar. - Que lhe preste. Comigo não conte! - Como queiras. O meu propósito era contratar-te aum tanto por ano. Vou pôr um anúncio. Além dasoldada, como nunca te convidei e tens um pescoçobonito, propor-te-ia que o enfeitasses com estetrancelim... Abri o estojo e mostrei-lhe uma linda volta de oirocom um gatinho empinado, gravado em esmalte, depingente, à laia de amuleto. Fechou os olhos, deslumbrada. - Ouve, além do bonito pescoço, desses que Salomãoapreciava tanto que só sabia compará-los a umacoisa despropositada: uma torre da sua Jerusalém,as tuas orelhas são carnudinhas e bem feitas. Aosolhos dum entendedor as orelhas duma mulhercontam muito. É o que te digo. As tuas são duascasquinhas de noz divertidas. Mas andam como amãe as deitou ao mundo, sem o menor adorno.

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Queres ver o que elas precisariam para brilharem avaler, serem mais que pavilhões dos sons...!? Abri segundo estojo e saquei um par de brincos,com dois rubis engastados em platina, rubis porquesão da cor da tentação e do delírio. Eram tudo o quehá de mais subornador, duas verdadeiras risadinhasdo diabo. - Que tal? - Um encanto.. Não há que dizer!... - Bem, Adozinda, não quero arrancar-te umaaceitação de afogadilho. É tarde, são horas de deitar.Consulta o travesseiro e amanhã me darás aresposta. As portas estão todas fechadas...? Ah, faltaver o portão do jardim...?! Não te incomodes, eu voulá e fecho-o, se o jardineiro o não fechou. Boa noite,Adozinda. Julho, 3. Tomei o pequeno almoço, como deordinário com o jornal desdobrado em frente. AAdozinda mostrou-se mais solerte, exacta ediligente do que nunca. Reparei que se ataviaramuito, tendo posto a blusa vermelha dos domingos,excitante como uma Primavera, esbaforindo ocabelinho mais na testa, o que lhe dava um ar o seutanto follâtre, e que exalava uma suspeita, oh, nadamais que uma suspeita, do perfume peculiar deMadame. Assim que tomei o café, pôs-se a tirar a

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mesa, e eu deixei-me ficar, contra os meus hábitos,estiraçado na cadeira. Ela ia e vinha, rodava,rodopiava, magnetizada de todo, e eu impassível.Por fim, quando a vi à beira do descoroçoamento,não querendo prolongar muito a prova, disse-lhe: - Então, Adozinda, vens ou não vens? - Vou para onde...? - Para a serra. Ficou parada diante de mim, depois, voltando-secom brusquidão como se passasse a outra matéria,proferiu: - Não vai também a senhora? - A senhora foi para França, bem sabes. Queestivesse aqui, nunca anuiria ao que ela chama asminhas excentricidades. Por isso mesmo é que eu tecontrato. Vens, não é assim? Não te hás-de dearrepender... - Muito obrigada, mas não vou. - Bom, se queres não se fala mais nisso... - Beuh, que monta! - Talvez dês um pontapé na sorte... - Acha que é grande sorte ir-me meter no ermo comum homem de sessenta ou cinquenta anos, poucoimporta, mas sem que me livre de ficar difamada eamanhã ser corrida à tranca ou à pedrada pelos seusfilhos ou pela senhora, acha?! Pois eu não acho!

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- Não te exaltes; és maior, estás no teu direito de irou não ir. Vou pôr o anúncio... Entrei altas horas, cansado do Chiado, do chá das 5,depois duma ceia com os Borges de Canedo e umaviador que não sei bem como ali foi cair, o tenenteOlindo de Lacerda. Ajudante de campo dodiplomata ou de madame? Curiosa figura: falapouco e ri com ingenuidade. Não consegui penetraro que tem lá por dentro. A carreira das armas,sobretudo da aviação, com a vida semprehipotecada, cria destas esfinges. A Clemência, queestava ataviada como um pele-vermelha dos temposheróicos, não se propunha ir instalar-se com opaspalhão do marido, que padece duma mielite malclassificada, no meu ventanal da Beira? Que os milmetros o restituiriam à elaboração da copiosa obra,esperada ansiosamente pelas Academias: Oslombardos na monarquia sueva. Dessa está ele livre!Não tem aposentos permanentes no Hotel Princesa-Maria em Davos Platz? A Clemência tocava-me como joelho no meu joelho inerte. Bem compreendi queme dizia: lembra-te! Arreda, tenho que travar aúltima batalha com Adozinda e fugir à lufa-lufa. Acabamos com uma partida de bridge no Clube dosCem, a mais insossa das futilidades duma babilóniapataqueira e borralhenta.

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Propunha-me meter sozinho o carro na garage, quetive a boa ideia de mandar construir rente à casa, aofundo do jardim, quando a Adozinda saiu da portade serviço, em cabelo. - Porque é que estás ainda a pé? Então o Joaquim...? - O Joaquim apareceu a queixar-se de dores decabeça, foi-se deitar. Na sala de jantar, sob a cascata de luz que jorrava dolustre, reparei que a ruivita se tinha pintado.Mostrava-se além disso muito meiga, pressurosa emprevenir os meus possíveis desejos. As obrigaçõesde criada de dentro levaram-na mesmo até à beirada minha cama, no momento em que eu tirava ocasaco. - O senhor engenheiro não precisa de mais nada? - Não preciso mais nada, boa noite. Julho, 4. Chamei a minha cativa. Ainda se nãodeclara, mas eu bem lhe via a rendição nos olhos enos ademanes. - Adozinda, é hoje mesmo que saio de Lisboa.Desculpa, tenho de fechar a casa, tens aqui trêsmeses de soldada, mais a importância da passagempara a terra Messejana, não é? Além disso, asprendas que te mostrei são tuas. Não digas que não!Mas doravante, ouve, não me convém que voltespara esta casa...

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Manteve-se silenciosa, a torcer-se toda, como torciaum lenço que tinha nas mãos, enquanto eu punhaum envelope diante dela com as três soldadas e porcima do envelope os dois escrínios. E especou ali aenxugar a lágrima e a fungar. - Desculpa, Adozinda, não reflecti bem nosinconvenientes que havia em levar-te comigo eestive a abusar como hei-de eu dizer, estive a abusardas tuas inferioridades. Desculpa, e não se fala maisnisso. Agora vai, vai fazer a tua malinha que estoucom pressa Não respondeu, e como eu me propusesse tirá-lapara fora do quarto apoiou os cotovelos à cómoda eali marrou cismática. Quase estive tentado a fazer-lhe duas festas, mas olhei para o espelho que meinterpelou: - Tem juizinho e não esqueças que já tepassou a idade de sedutor. Repara para os cabelosbrancos, animal! Deixei de olhar o espelho e logo outra voz repontoudo meu fundo de egoísta e voluptuário: - Sedutor,talvez sim, talvez não, e que tem lá isso? É fora danatureza? Das minhas possibilidades físicas?Alguma violação das leis morais? Não é legítimo,por outra, que eleve a minha vida desde que nãorebaixe ninguém?!

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- Adozinda, reconsideraste? Reconsideraste, sim, equeres vir comigo. Pois vamos, e outra vez te digoque não te hás-de arrepender. - E vamos ficar lá muito tempo? - O tempo que for. - E a senhora que não vai ela dizer? - Essa é boa! Não te deixou sozinha aqui comigo?Descansa... A senhora não se importa com estasbagatelas. - Veja lá em que trabalhos me mete...?! Ri-me daquele pensamento tão utilitário e oportunode Sancha. Bem certo que Adozinda não eraBerenice. Pus-lhe as joiazitas no regaço, que ela recebeu comouma escritura recebe os selos em branco do punhonotarial. E correu a tomar disposições de partida. Julho, 6. Viajar de noite tem os seus encantos. Nestaquadra tórrida, é talvez preferível a viajar de dia,desde que se disponha dum automóvel bemcalçado, robusto de motor, que se agarre à estradacom denodo. O meu é destas máquinas, com efeito,a que pouco falta de discernimento para elaspróprias se dirigirem, virando nas curvas, salvandoas rectas num galão inquebrantável, fazendo aultrapassagem do pesado camião à devida altura earredando-se cristãmente da velha que vai a defiar o

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rosário ou da ovelha desgarrada o cabelo precisopara as não mandar para os anjinhos. Esta casta deviventes faz parte dos riscos capitais doautomobilista, a par com o ciclista, que na gíria dovolante chamam gafanhoto, e o ébrio, para quem aestrada é foro seu e de mais ninguém. Levaram-me o oito cilindros, o routier, mas este,destinado à cidade, 10 H. P. satisfaz plenamente. Avariadíssima fauna, com que é prudente contar à luzdo Sol, entocou-se, e avanço em pleno deserto,levado nos duzentos metros de terra iluminada, iadizer de iluminura. De facto, as duas margens daestrada trasvestiram-se. A natureza adormecida etocada de relance pelo feixe igniscente dos faróis éoutra. As árvores perdem aquele seu verdeinvariável, para se toucarem dos tons fulvos dumafloração irreal, só sonhada. Os longes nas lombas,nas curvas, numa alameda, num trato entre pinhaissão por vezes traiçoeiros, mas a máquina tem o seuinstinto e sabe fugir aos precipícios, se não é que umnovo sentido, esse das aves migradoras, por ora emestado latente, não começa a advertir oautomobilista, o aviador e todos os argonautas doespaço, dos errores de que são susceptíveis suasatávicas faculdades.

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Adiante das pupilas rúbidas dos faróis vaidecorrendo o mais feérico bailado de silfos que sepode conceber. Os insectos interceptados em suasrondas, sacudidos na folha da planta em queenterravam a trompa ou simplesmente sebalouçavam, surpresos no voo nupcial ouperegrinando e labutando, saltam de ímpeto para azona afogueda e um momento tecem para disfrutede nossos olhos um deslumbrantíssimo sarambeque.Lembram, por via de regra, as estrelas cadentes decertas noites profundas, disparando e cruzando-senas direcções mais reversas. Não voam, fluem,movendo-se segundo uma cinemática maravilhosa.De ordinário, erguem-se uns côvados acima do focoluminoso e, com brusquidão imprevista, flectem àretaguarda, tomando altura. O movimento é tãocronometricamente fulgurante que se hesita emdizer se o ângulo que descrevem seus bólidesalvadios representa uma ilusão de óptica, provocadapelo andamento do carro, ou a trajectória real emque intervém a ofuscação de suas pupilas facetadase sobressalto respectivo. Alguns precipitam-secontra a máscara do radiador em cujo favo ficamcravados. Outros esborracham-se contra o pára-brisa, plantando ali uma cravina vermelha. - Vais bem, Adozinda?

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- Vou toda regalada! - Não tens sono? - Tenho lá sono com um pagode destes! Adiante. Concentro-me sobre a estrada. Àsemelhança do raio do sol na câmara-escura, em quese vêem volitar corpúsculos de formas e coresestranhas, o revérbero do automóvel revela umapopulação celeste tão basta como ignorada. Falenasem cujas asas desvairam todas as tintas do arco-íris,moscas nocturnas verdes e dum roxo metálico,pulgões volantes, trombeteiros sanguissedentos,vacas-loiras, tira-olhos, bezouros, a arraiaenigmática dos mosquitos, avolumam ao contrasteda luz e da sombra. E espectralizados pelo clarão,ofuscados pelo inopinado sol, animados,porventura, de ilusória velocidade, reflexa damáquina, erguem-se, rodopiam, sulcamestelarmente a atmosfera, para se esvaírem emvertigem como meteorites na noite. Na corrida nocturna nada mais especioso que oiriado arraial dos élitros e das asas dosleptidópteros. O carro vai rompendo o silêncio e ameia treva como a querena duma nave corta a águadum canal. Ouço a arcabuzada do motor, e a suacanção regala-me, se não me inebria. O orgulho, sealguma vez tal mostro desempenha na alma do

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homem um papel salutar, nesta hora é-me de bomestímulo, embalando-me para lá das contingênciasquotidianas. Por que espécie de sugestão auditivana toada do motor se entretece a Rêverie deSchumann, que é um alar-se divino às altitudes? A estrada nocturna tem outras mágicas além do voodelirante dos insectos. De súbito, o pano de fundoda noite constela-se de tições lenticularesamarelados. Sua orbicularidade e seu lume fugidio,jogando em cadência, têm não sei quê doutromundo. Um enxame de esferas sulfúreas avançapara nós com lúbrica e silenciosa celeridade. É umaestrambólica aparição. Adozinda chega a soltar umgrito. Mas um vulto desenha-se a meio da estrada: opastor. O rebanho comprime-se a uma das bandas e,tais fogos fátuos, assim se desvanecem as moedas deoiro reluzente dos olhos obcecados. - Vais bem, pequena? - Não posso ir melhor. Sinto o seu ombro, por vezes, descair sobre o meu elogo despegar-se. O contacto sensualiza-me, enerva-me um momento, apenas um momento, e sou todosentidos à marcha. Meia-noite; hectómetro apóshectómetro; sinais; sempre a fita dormente daestrada. A sensação diurna, que tem o seu tanto deaflitivo, de que a estrada foge de nós, de noite

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inverte-se: a estrada vem para nós. É o tapete rolantede lá para cá. Aproxima-nos do nosso destino. Andatão depressa como o carro. De quando em quando, por uma coqueterie maisintencional do que nervosa, tendendo a mostrar quevai ao volante comigo, Adozinda sufoca um ai. Écomo o tremor do seu joelho que mal chega a roçar omeu. Os vultos à luz deformante dos faróis tomamproporções fantásticas. Os cães que arremetem dasvielas, a malta de ciganos que passa, o coelho queatravessa o nimbo da claridade à sorrelfa, o carroçãocom os farolins verde-glaucos dos olhos dos animaisderivam para coisas do país das quatro dimensões.Em verdade, o homem revolucionou as regras daperspectiva, como sucede neste remontar, umanoite, de Lisboa até às serranias da Beira. Para lá doLuso, ouvimos o cantar da toutinegra. Alvoresce. Acambiante cromática que a terra reveste desde a alva- lusco-fusco, rosicler, madrugada - assinalada pelapassagem da luz, ferrete, azulada, branca, só écomparável à faiscação das tintas no colo dumapomba. - Bom dia, Adozinda! No seu rosto charriscam as sombras da noite, massem conseguirem amortecer o brilho dos olhos. Com

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um belo sorriso, feliz da aventura, balbucia brandocomo a aragem: - Bom dia! À luz indecisa que roreja dos céus parece queajoelhavam os celtiberos, seduzidos pela graça emistério de sua mutação subtil. Os astros, a terra, aalma, tudo, enfim, terão sofrido transição análogaatravés dos limbos do caos para a ordenaçãogenésica. Também eu ajoelho. O Sol, para osorientais pai do nosso planeta, ao qual todos osnomes assentavam bem, até olho de boi, levanta-seno horizonte touro de todo. Toca a acelerar. Julho, 10. A arribana compõe-se de três divisões,além da varanda para sudoeste, recolhida nosistema do edifício, onde nos é agradável tomar ofresco da tardinha. Em frente e à esquerda ascorcovas do monte lembram, com o padernal muitoestilhaçado e negro, paisagens lunares. Mas para osul, a sabor do corgo, um valeiro vai descendo, comseus saltos e ravinas encoirados de giestas eurgueiras arborescentes. Para o norte uma verruga da serra não deixa vermais que um bocado de firmamento, acachapadosobre ela como o solidéu na calva dum bispo. É monótono, maninho e calcinado o monte em voltade nós. Durante o dia, todos os seus seixos brancos e

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pedras lascadas bebem sol. A mica e o quartzohialino alumiam. Certas noites revessa-se dali aquentura abafadiça dum forno. Aperta o coração veraquele tropo-galhopo da natureza mirrado e tristecomo um ossário. Mas com a tarde, em geral, ocampo desolado transfigura-se. Parece um milagrede piedade que se ergam dentre as fendas dopedriçal, as pequeninas maças de Hércules dorosmaninho e que a vela-luz rescenda tãoconsoladoramente. Os fieitos, as sarças, ascarpantas, que se toucam duma floração de café malmoído, revestem literalmente os interstícios e asnesgas de terra de laje para laje. Cobre-se de cores onegro catafalco. E pouco a pouco saem os seusíncolas a terreiro: o melro dos rochedos, que é umermita endiabrado, a sombria sisuda, a gralhanómada. O sol a mergulhar para trás do Caramulo, enuvens brancas e lentas como urcas vão deitando eerguendo na terra, umas após outras, crepes longos,inverosímeis. Começa a soprar a aragem e umcoelho descobre-se a pincharolar na clareira, entreurzes. Tep, tep, quatro passinhos e pausa; outraavançada, e abana as orelhas. Depois, uma carreira épara desentropecer os tendões e senhorear-se domundo. Nova estação; ergue a pata e coça o nariz.Mas o próprio movimento o aflige. Fica de orelhas à

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escuta. E como as nuvens no céu passem por cimadele mais surdas que odres de candongueiros, oscães dêem voz de presença, se a dão, lá para o fundoda várzea, muito longe, o lesto animalzinho vaisapateando pela encosta fora, serenado. Àqueleajunta-se outro e outro, e é uma quermesse defocinhos franzidos, com a vírgula branca do rabo abadalejar, brincalhões como colégios. As perdizes, por sua vez, aparecem na crista domorro, convocadas pelo cucuritar do macho. Vê-mo-las descer em fila por entre os penedinhos, pé aqui,pé ali, cabeça a cortar o ar como quilha, napropulsão cinética de pélas lançadas. O seu andar étão envolvido que na região o traduzem por corricar- termo que se aplica a uma roda e de modo geral aqualquer disco movendo-se num plano. Chama-as aágua do arroio, ou o verde da nossa horta e os grãosque caíram das gabelas na leira de restolho ao altoda fazenda. Mas o hortelão, agarrado à vara dapicota, chafurdando e subindo o balde, intimida-as.Ficam escondidas no mato à espera que otrangalhadanças recolha a penates. O arroio com a estiagem está reduzido a um frouxode água que se vai estilando brando e delgadoatravés da terra negra, soando aqui e além como acorda percutida duma viola. Ninguém dirá porém

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que na sombra das barranceiras se disfarçamfundões, sobre cuja areia pálida a água dorme numencantamento e limpidez original, mas ondedebalde eu espreito as trutas prometidas aAdozinda. E tão deliciosos são aqueles símiles de dormitóriosde casta soror aqua, que eu proíbo ao Zaranzamergulhar ali o aguador. Vou-me eu lá meter, masbenzo-me primeiro. No segundo dia da nossachegada os lobos vieram uivar para o morro.Cheirava-lhes o bodum das cabras, que nos dão oleite, e, depois de se aproximarem sorrateiros eretirarem descoroçoados farejando o inimigonúmero um, lançaram do alto a sua fanfarra. Paraaquietar Adozinda, descarreguei para lá aespingarda, e não só calaram a música como sedignaram desaparecer duma vez para sempre. Sol-posto, as sombras amortalham o morro pouco apouco com a exactidão minuciosa de gatos-pingadosa armar um quarto funerário. É um momentoagónico esse do fim do dia. Por cima da eça,desponta porém a cabeça amarela do primeiroprego: Vésper. Outras e outras estrelas acendem-se,e começam a cravejar o alto e fusco dossel,derramando uma douradura lívida. Um grilo ensaiaa sua arieta. Logo de seguida são os ralos e as rãs

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dos córregos montanheses, que têm a voz ampla decontralto, que se põem a solfejar. Breve entoamatinas à terra ensimesmada o coro pleno deinsectos estridulantes e flauteadores. Eu fico dono do universo, penetrado de suas vozes eeflúvios, e distribuído a todos os ventos cósmicospelos pensamentos mais inconformáveis. Acabo porme esquecer, desintegrado do eu, mas preso não seide que laço espiritual ao mundo dos fenómenos.Adozinda vem avisar que a ceia está servida leitede cabra, mais perfumado que nardo, compãezinhos torrados na brasa de torgo e manteigasem sebo. Deixo-me viver e suponho ter descoberto a pedrafilosofal da felicidade. Adozinda, logo dias depoisda nossa chegada, se pôs a bocejar. Julho, 15. Não há outro cercado à volta do meu édenalém duma sebe de giestas negrais. Tufada porcima, desgrenhada ao rés da terra, por ali furaramos roedores que comem connosco da horta. OZaranza em determinadas seitas (de sequor) arma asratoeiras, e todos os dias temos um laparotoimolado à nossa nutrição. A fazenda é tal qual um oásis no deserto. Para cánão há outro caminho além dum carreiro, estreitocomo nastro, que vai torcicolando pelo mato,

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emergindo aqui num teso, sumindo-se além numacova, ligando ao poviléu mais próximo. De lá nostraz o pão fresco, o carneiro, e ainda a vitela, nosdias de mercado na vila, o nosso zagal e estafeta.Quando o vento sopra de cantaril, ouve-se orepenicado dos galos nas eiras e não raro oschocalhos dos rebanhos pascendo pelas escarpas. Deespaço a espaço um estridor ecoa por monte e plainodando-me senha do badanal a que vim fugido. Comefeito, os carros automóveis esgalgam-se ao fundoda várzea, harpejando a caixa de ressonância, que éa campina com seus oiteiros e balsas, articuladospelas cordas sonoras dos caminhos. Por vezes olongo e áspero matraqueado é despejado do céupelos aviões que se cruzam na Europa de cidadepara cidade, qual delas mais miseranda eensanguentada. Às vezes estes pássaros de mámorte coruscam à luz solar nem que sendo de prata.Adozinda segue-os, gradativamente monstruosos àmaneira das alimárias dos pesadelos, robustos comomilhafres, mais diminutos que gafanhotos no voo,até se diluírem no azul, fiapos do fiapo. E suspira. Armei a cadeira de embarcadiço na minha varanda,ao estilo da beira-mar em terrinhas de Oeste, e ali,horas a fio, vomito, não me canso de vomitarcivilização: guerras, intolerância religiosa e camorra

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política, estupidez literária e arte hedionda oumedíocre, mentira oficial e particular, torpeza,convencionalismo, relice e mais relice. E quantomais vomito, mais tenho vontade de vomitar. Não éuma consciência dealbando-se, antes uma tripa quese purga das fezes sedimentadas anos e anos. Uma fonte, não menos ténue e doce que a colcheiaduma flauta, corre dum caleirinho para gastos dacasa na parte superior da fazenda. É a voz maispossessiva do silêncio, reza ininterrupta e todaviacantabile segundo a gama do vento. Se me ponho aescutá-la em sua subtil cromática, acabo por irdesdobrando árias longínquas e insuspeitas como adas esferas no éter. C’est fendre le cheveu en deux, mas nessepassatempo fútil me entretenho. Consiste outro emcontemplar a desfilada das nuvens no céu,diferentes todas, algumas tão túrgidas e outras tãoremansadas que nem o compasso das emigraçõespelos tempos fora. Eu vou embarcando nelas eviagem é essa de circum-navegação à volta docriado e incriado, de que não voltaria tão cedo, se amão de Adozinda me não abana por qualquermotivo: - Parece que anda na lua!

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Estou morto por que expire o defeso paraesfoguetear as perdizes. À tardinha pego no meupau ferrado e vou pelo monte. Saltando de rocha emrocha, de quebrada em quebrada, sinto deitar dias,anos, fora do pêlo. Diante de mim, saltamalvoroçados os bandos, capitaneado cada um porseu perdigão. Simuladamente ergo a vara e aponto.Pum! Pum, lindo doble! Ontem fui interromperduas lebres que se macheavam. A caça, com a ceifados centeios e painços e as primeiras decruas deterra de resteva, acolhe-se ao sertão. Da janela, pelasmanhãs quietas, vejo saraivar nos cerros o lomboaçafroado das maçaricas. Sobem para mais altoainda, o mar de carqueja que enche os cimos dameseta, com imensa chã calva ao lado, onde podemrepoisar ou correr, imunes ao homem. Sempre que volto destas pseudo-excursõesnenrodianas encontro Adozinda a chapinhar nospegos do corgo, dríade de todo, ou na horta, maisfresca que Pomona. Não vem do molho da lenha eda apanha da azeitona? Preside mesmo ao regadio,enquanto o velho Zaranza - nu de tronco, para, naqualidade de pária completo poder ser o homemfeliz da fábula, a pelúcia caprina escorrendo água esuor - manobra o balde, afundindo e alçando a varada picota com movimento rápido e pendular.

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Há quantos dias, semanas, estou eu nestemundificatório? Adozinda sabe-o, mas eu não toleroque mo diga. Basta que conheça quando é domingopelo dia de descanso do Zaranza. O meu receio eraque uma “telha” imprevista, como diz o outro,caísse em cima de mim. E caiu! Estivera um dia excepcionalmente canicular e sótarde, com o orvalho que um céu muito secoborrifou sobre a terra, é que os arbustos mesquinhosergueram a grimpa. Com a noite, noite água-tinta,dum negro translúcido de açude, não se distinguiamos objectos, mas adivinhavam-se. O morrocontinuava a revessar calor e fui-me deitar, que acama, armada para o lado do poente, é fresca eapetecível. Mal preguei olho, acordei a um ribombode fim do mundo: a trovoada. Logo a seguir umrelâmpago varreu a terra com tal vassoirada delume que se podiam contar as pedras todas dopicoto. E o trovão, sinal de que a tempestadeeléctrica pairava por cima de nós, crepitou num rorde castanhetados infernais pelos côncavos, paraacabar num estampido medonho. Numa pausa da trovoada, expectativa medonha eescuridão, estava eu a fechar as vidraças, senti unsbraços que se agarravam a mim. Era Adozinda.Tremia como varas verdes e, fora de si, mas sem me

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largar, enfiou-se pela minha cama dentro,arrastando-me. Puxou as mantas para a cabeça eenleiou-se-me ao corpo. Trémula e transida, nunca ahera se enroscou assim a um tronco. E a homem sóserpentes. Procurei aquietar a pobre criatura pávida. Atrovoada foi desferindo para longe, atroando outrasserranias, mas, contra todo o propósito, Adozindanão se desatou mais dos meus braços. Ah, quelátego não ia desabar sobre o meu pobre paraíso develho Adão sem vergonha?! Dir-se-ia que ela e otrovão - ou ela e Deus, teria escrito Vítor Hugo - seconjuraram contra mim. Julho, 19. Até ali quem mandava era eu, agora quemmanda é Adozinda. Manda em mim, na casa, nouniverso. Mandar é o menos; o pior é que o faz emcontra dos ditames que me atiraram para estaspenhas. Pergunto-me agora se o meu enfado era da mesmaíndole que o daquelas pessoas que noutros temposiam pedir agasalho aos claustros para o resto dosdias. Considerando bem, tenho-me por um cansadodo mundo sui generis. Este cansaço, com efeito, nãoé de ordem física; o meu organismo executa todas asfunções com ordem e regularidade. Tão-pouco sofricontratempo, destes que amachucam um pândego.

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O Inverno, isto é a velhice que avança a passo decarga, muito menos me mete medo. Sei que há umapiedade na natureza que, à medida queimpossibilita os homens para certos prazeres, ospriva do apetite desses mesmos prazeres. Quemergulha os moribundos na insensibilidade docoma antes de os fazer atravessar as pavorosasalpodras da vida para a morte. Nevou na minhacabeça, o espelho o proclama, mas sinto-me aindacom pernas, mal abra a época venatória, para estafarum bando de perdizes. De resto, não me meti emcavalarias altas e não me aguento nelas com honra? Portanto, saturação de prazeres; esgotamentocorpóreo; catástrofe psíquica veias de água queoutrora levavam o homem a buscar o claustro comoporto de refúgio não pesaram na minha decisão.Bem sei que todos genuflectiam a Deus esseapartamento do século; mas o espiritual para aépave humana era a douradura da pílula. Louvores ao Seráfico, nenhuma destas razões, maisou menos traumáticas, actuou na minhasensibilidade. Mas então? Julgo que me não enganose disser que detesto o mundo não no fastio dosgozos que me proporcionou ou na cainhez dosgozos que deixou de me dar; a minha receptivasensorial aqui tem pouco que ver. Detesto-o na sua

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trama intelectiva, nas decepções e, digamos, torturasque causou à minha inteligência. Como posso prazear-me de ser homem quando vejoos meus semelhantes convertidos em cães dematilha uns para os outros? Como posso eu nãoprotestar com me dizerem filho de cristão, nadocristão, formado ao úbero de tal maternidade, se asduas grandes e abomináveis chacinas, quesalpicaram os meus dias e noites do sangue e lamadas batalhas, se operaram no âmago da civilizaçãocristã? Por fas e por nefas gerou-as o ventrereligioso. Eclodiram à sombra da árvore sacrossanta,cujos frutos me deram a comer como o manjar daVida. Aqui está a causa primária que me leva a desertardo convívio dos meus concidadãos, em regraabsurdos, estúpidos, falsos, grosseiros e malcheirosos. E um nada, mas um destes nadas que ésusceptível converter-se no poedoiro em que sedobou a nebulosa de Laplace, me projectou de novopara o tumulto. Adozinda é esse supremo tudo-nada. É a serva dosCantares, mas, dado que aliterária de todo, não mejulgo obrigado a tecer endeixas à sua gentileza; tema planta que lhe vem de gerações de pé descalço ouestreada na bota à prateleira: larga e gorda. O

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artelho é fino, mas a perna incha muito depressa aformar panturrilha. Se é certo que na mulher, emmatéria de graças, ce sont les jambes la premièrechose qu’on écarte, como pretende o Cavaleiro deOliveira, também não é menos certo que numtemplo a colunata antecede a qualquer outro pontono estímulo à admiração. Mas tudo no corpo dalipara cima, cintura flexível e estreita; ventre enxuto;quadris ondulosos de gata; seio nutrido edeliquescente; cabeça de anjo florentino com asolheiras das nevróticas de Henner - combina-seadmiravelmente para formar o que se chama umpetisco apimentadinho, digno dum abade. Umabade de Abbaye Thelème, subentende-se, que osoutros abades, tanto os de hoje, de imaginaçãocerebral flutuante, como os de ontem, perdidos eachados por pastorear les grosses vaches, não lheachariam sabor ou pilhéria, não sendo carne nempeixe. Acabou-se: espio os desejos nos olhos de Adozindapara lhos satisfazer; às vezes não chega mesmo aformular a sua vontade até resto; a meio da frase, jáeu exclamo: faça-se! Vejo-lhe crescer as unhas,unhas de felino, mas por enquanto não há perigoque arranhem. Mandou fazer a permanente, mascomigo ao lado a dar-lhe conselhos de discreção e

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bom tom. Não ficou mal de todo, mas o penteado acarácter da fisionomia, dos olhos, do sorriso, doimponderável estético que há numa cabeça juvenil, éuma arte completa que não se atinge de salto.Voltaremos. Ando a civilizá-la por fora, que por dentro não meinteressa, nem sei se seria possível consegui-lo emuito menos se valeria a pena. Quero crer que omesmo era que estragá-la e deixo-a com a suadetestável pronúncia: mantêga! péxe! azête! e na suasantíssima ignorância de Eva do Paraíso Terreal. Fui à cidade enroupá-la dos pés à cabeça. Que bemlhe fica o vestido de alfaiate? Depois, aquele padrãode largo xadrez cor de café e vinho sobre sapato decalfe amarelo, salto à americana, assenta-lhe a matarcom a cor do cabelo e a tez sardenta. Mas a tolacobiçou-se desses horríveis sapatos com altostrampolins de cortiça e fivelas, que lhe fazemregueifas hediondas no peito carnudo do pé. E acriada de servir mata-se à légua. Uma vez senhorilmente ataviada, apeteceu-lhe vermundo, o mundo a que fugi eu e Santo AntónioErmita, e começam os meus amargos de boca. Tomoum automóvel de aluguer enquanto consertam omeu, recolhido, de baterias descarregadas, numagarage às portas da vila. Passamos dias inteiros fora

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do pedernal e eu encharco-me da vida provinciana.Mostro-lhe velhos burgos, encarrapitados emmorros tristes, parados como nebris à espera daovelha manca; esses relicários populacionaisdeixam-na indiferente. Visitamos quintas fidalgascom ruas de buxo onde perpassam sombrasromânticas e faunos em cima da peanha de musgonão acabam de tocar a sua gaitinha de cinco tubos;boceja. Passeio-a por uma praia da moda; ressente asua elevação de fresca data ou o deslustre dos meuscabelos brancos, e envergonha-se. Levo-a por feirase romarias e aí, sim, no seu elemento, respira eencontra-se. Aprendeu já a calçar uma luva; ontem surpreendeu-me com escovas e ingredientes de manicura. E poisque o culto da garra é incompatível com a cozinha,que remédio senão contratar uma cozinheira?Trouxeram-me uma mulher do povo, quecostumavam chamar para os banquetes nos geraiseclesiásticos e quando o senhor bispo fazia a suavisita pastoral às freguesias, negra e feia como umsudário da semana Santa: a Rita Procópia. Paramestra na arte culinária, à priori, só lhe falta o olhovesgo. De concessão em concessão instalo umaantena, que desce lá de cima do monte sobre a nossasala de estar. Serviu antes de mais nada para as

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andorinhas se baloiçarem nela. E todas as noites onosso poderoso radiofone atira ao silêncio daserrania a voz da América, a hora da saudade e atéos sambas do Rio. Por isto e por tudo o mais, ocorrilho de gente que durante o dia me vem visitar,curiosos, mendicantes, presenteadores da bilha deleite, necessitados, o meu retiro, até à altura quieto erealmente edénico, integra-se na relice nacional e nopandemónio cosmopolita. Julho, 20. Gostava tanto de ir à feira de Lamas!... - À feira de Lamas!? Oh, pequena, tu tens alma debufarinheira. Não estiveste na de Barrelas? Na deAguiar? - É diferente. - É a mesma, mesmíssima coisa. Mas, já quearrebentas se não vais, prepara-te. O Joaquim leva-tena jerica até o carro. Agarrou-se a mim aos abraços, porque não sabebeijar. Beijar é uma arte de civilizados, que aindanão teve ensejo de aprender, nem serei eu que lhe dêlições, não vá por lá a cascaroleta abusar da minhaconfiança. Antes das onze horas estávamos na feira. De quinzeem quinze dias, salvo os sábados “em que botaadiante”, acode ali o gentio de quatro léguas emredondo. Em matéria de veniaga, haja dinheiro,

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como diz o outro, que ali encontra-se de tudo. Oartigo especial são peles, peles de toda a espécie debicho, desde o coelho dos montes, fuzilado quandodorme no tojinho, à cabra azevieira a que o pastorquebrou a perna com uma lapada. Nos dias de sol,põem-nas a secar em público, sem grande respeitopela pituitária do cristão, e acode ali a moscaria decascos de rolha. Neste negócio andam muitos evários samarreiros batendo as aldeias e comprandopelas portas. - Compo-samarras! - é pregão tão trivial como oFresquinha como água! ou Amola tesoiras enavalhas! Segundo um estilo que vem desde D. Urraca,comum a todas as terras do Norte, o campo da feiraé um copado bosque de carvalhas, algumas quederam bolota aos porcos do primeiro senhor doCadaval, que cerca dali teve o paço. Ao seu toroencosta o homem das seitoras a cutelaria, pendura oourives o lençol de riquezas, prendeu o ferrador ogarrano que está a ferrar, como à sua sombra achafariqueira da sardinha ou da marrã acende obrasido e forjica a comezaina. Vacas e animaisdomésticos, salvo os cerdos, que se exibem à parte,alastram pela escarpa acima, e nas feiras em quehouve enchente, feirões lhes chamam, a mancha

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gregária, movediça e fulva, não deixa de ter o seupitoresco. Estes mercados são hoje o que eram no tempo daMaria Castanha, o barato. Reflectem de resto afisionomia da Beira, se não de Portugal inteiro.Marchantes e vendedores atropelam-se como asmarchanterias em que negoceiam. Raro que tenhampoiso certo, em obediência a um princípio de ordem.Quem chega adiantado escolhe o lugar. Mas tudocabe no terreiro, que tem o condão de ser elásticocomo o Vale de Josafá. Balcão e mostrador são opróprio chão. Excepcionalmente, o tendeiro delinhas e alfinetes e o vendedor de chitas e riscadoserguem tarimba. O louceiro, o latoeiro, tão bemcomo o hortelão que traz couves e cebolinhoderramam a fazenda por terra. O mesmo fazem asfruteiras, que se acocoram por detrás da canastra, eas padeiras de broa. Antigamente, o negócio fazia-sea olho. Regateava-se forte e feio, para se fechar aocabo de muito peguilho e palavriado: - A quanto as bêberas, tiazinha? - Quartinho o mei’cento. - Irra, vá vendê-las aos presos da cadeia! Este ano, porque foi escasso de fruta, o meio centodos figos moscatéis vale tanto como nos bonstempos a carga mais o onagro. Pera baguim, uma

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pera de baixa escala, vendem-se três por dez tostões.Pela primeira vez aparece a balança de ganchos apesar repolhos. - Seja pelo amor de Deus! - exclama uma velhotabenzendo-se. O sector mais curioso da feira, de resto tanto aquicomo em Salamanca ou Samarcande, é o das tendase da olaria. Bugigangas de arregalar, canivetes demarca anzol, colheres para as papas e o arroz doce,fitinhas de cores berrantes para os cabelos, ligas dasmeias, lenços de algibeira com dois coraçõesatravessados por uma seta, perfazem o tabuleiro demaravilhas aos olhos das pateguitas cobiçosas.Quanto a louça, há sempre grande sortido e deprocedência vária. De Vila Real vêm as infusaspretas, rivais das de Molelos, na cor que não noespecioso; de Vale de Ladrões, caçoilas de malhadae bojudas panelas; de S. Martinho de Paus, aspúcaras altas e elegantes, de três, quatro tigelas. Maso produto industrializado invade o mercado eexpulsa o oleiro rústico. Começam a rarear os pratosque têm um Sol ao meio que, parece, ajuda com seusraios em ouriço a aguentar o comer quentinho; ou apalavra amor escrita com tanto requebro que trai nocalígrafo um coração apaixonado; às vezes um nomede mulher vibrante como chocalhar de címbalos. E

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onde estão os covilhetes, duma sílica encarniçadaque nem lava?! O pintor de louça, em geral, animalista, o melhorque sabia representar era o galo, a cabeça do gato ouda raposa, a trutinha brejeira. De todos, nenhum lheestava a carácter como o galo. Revia-se ou desejava-se nele, muito testo nas patas, pimpão das aldeiasnão só pelo arremesso como pelo ar sacripanta,reptador ainda, atirando às fêmeas suas promessasde lascarinho. A feira, “olim”, vendia de tudo muito, e sempresobejava fazenda... Hoje, o rústico bota-se lá, comoacabaram com as romarias que lhe falavam aopaladar, pela mesma razão porque na cidade se vaiao cinema. Um tanto por necessidade, muito porpassatempo. Se não é para vender o bezerro,comprar brochas para os tamancos, dez réis dealhos, uma colher para as migas, fá-lo nada maisque para emborrachar-se ou dar à taramela.Amarrado à enxada ou à rabiça todos os seis dias dasemana, aquele dia é seu. Nos adjuntos discutirátudo, as suas dívidas e as dos vizinhos, o preço docenteio e do surrobeco, a guerra e a política docampanário, ao passo que a caneca anda à roda.Com o saquinho de estopa às costas, o pau ouaguilhada na mão, à porta do taverneiro ou em

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frente da pipa alça-premada nas chedas do carro,fazem uns com os outros longo e nacionalíssimoparlamento, sob o signo de Bertoldo e Cacasseno. Giramos de cá para lá, mais curiosos queinteressados. Adozinda sente que dá nas vistas egoza como uma actriz aos luzeiros da ribalta.gostava de saber que conceito lhe granjeia maissufrágios: menina casadoira ou pêga por conta. Seráconforme a inocência do mirone. Nos mercadores, queda-se a namorar as mantas daserra da Estrela zebradas de escarlate e zarcão sobrefundo castanho. Vejo em seus olhos glaucosacender-se a nostalgia da manta alentejana com seuaconchego voluptuoso tutelando vida e morte damaltesia. - Quanto? - Duzentos mil réis estas de lã de camelo. Umapechincha; cento e cinquenta, aquelas, umpoucochinho abaixo na qualidade: um verdadeiropau por um olho, Vosselência! E, sem esperar resposta, arroja a pilha de mantaspara cima do mostrador que à lufa-lufa se põe logo adesdobrar. Adozinda olha para mim e não sei a queluz entrevê o meu gesto displicente, pois aquelasmantas eram trapo acabado, trapo reles, e oferece: - Cento e cinquenta esta?

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- Não querem lá ver! - exclama o homem com ar degato assanhado. - Uma menina tão elevada desfazerassim na mercadoria! Só por desaforo! Seu paizinho,que pelos vistos é homem do mundo, que seja o juiz!Cento e cinquenta escudos uma manta de lã decamelo! Puxo Adozinda pelo braço com vontade deesbofetear o traste. Mas já o homem matuto saltasobre nós como onça: - Pegue lá a manta! E pegue-a lá por ser a primeiraque me sai do fardo. Não quero que me engalinhe avenda. Perco, mas benzo-me com o prejuízo e,acabou-se, enxota-se a macaca... Levo o cobrejão no braço como um troféu. Cheira asuor, suor dos mil e um mendigos que se rebolaramnele quando agasalho e atafal, dos mil e umcavadores que o trouxeram nas calças e na véstia,dos zagais sem conta que abrigou da neve e do frio,talhado em capucha e gabinardo. E,imprevistamente, sobre a minha confusão e aalgazarra beduína da populaça mesteiral a torrelança o meio-dia. Pausa imediata: tiram-se chapéus ecarapuças. O ferrador deixa o cravo a meio; omagarefe suspende o golpe da faca; o piteireiroestaca com o copo na mão; a mocinha, que “tocava”a panela, pára com o toque; as senhoras e os ociosos

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deixam de peripatetizar; mesmo o “vá ser cigano láfora” fica em suspenso. Tudo, em suma, que era vozarticulada extingue-se por efeito mágico doAngelus. Adozinda, que tem uma costela ignoradade infiel, olha para mim espantada. Um sorriso dedesdém aflora-lhe aos lábios pintados de escarlate,mas não se permite infringir a sideração geral. Ouve-se uma chieira como de incêndio a lavrar nomato; é a ave-maria a passar na glote áspera dasbeatas sem dentes, dos velhos pernósticos, do geraldas criaturas que têm em vista que os santos e,demais, os humanos saibam que rezam com todosos ff e rr. Depois, tão repentinamente como surdiu, fecha-se ohiato. Recomeça o alvoroço tal exame que volta azumbir e panelas a cachoar. Os burros orneiam; ocortador espatifa a rês; a raparigota verifica que abilha não mela. Adozinda aperta-me o braço: - Porque é que rezam? - O beirão é manhoso e jogador: é um cheque adescoberto sobre Deus. É assim que a feira de Lamas, do mesmo modo quetodas as nortenhas, espécie de grande bazar de háséculos, como se encontra descrito por aquelesviajantes que percorreram as sete partidas domundo à cata do Preste. Se excluirmos a camioneta

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que acarreta as mercadorias e até mesmo osfeirantes, sobretudo depois do volfrâmio, tudodecorre como devia ser nessas épocas remotas, demamposteiros de bordão na mão e borracha à cinta,pelo mundo. Abarrotamos o carro com vitualhas e fruta, e ala. Asestradas estão piores que no tempo do rei querabiou. Ligação para o Norte falta. Os povos é queandaram a rapar nos caminhos, a ajeitar umsimulacro de carreteira, tudo por sua diligência ealta recreação. - Por onde hei-de ir para minha casa que fica pordetrás daquele monte? Caramba, quase lhe chego, seestender o braço! – pergunto a um dos senhores daterra, o que adivinho pelo ar, gabardine aos ombros,sorrisos lampeiros à direita e à esquerda,receptividade à cortesia. - Vá por essa estradinha que nós fizemos. Até àCorujeira é um mimo. Depois torce à direita e sobeaos altos carrapitos da Lapa, mas o piso é suave.Simplesmente... simplesmente, para chegar ao pontoque quase toca estendendo o braço, por trás doouteiro, tem mais vinte quilómetros a andar do quepelo caminho por onde veio. Que é isso para oautomóvel?! - Pois à ventura!

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Rompemos pela via agenciada no mato e no capim,como em África, sempre ao norte, direito ao planaltoque liga a serra da Lapa à da Nave. À parte um incidente na Corujeira com o trogloditadum homem que se não distrai da rega do milharalpara nos ensinar o caminho, atirando-nos para umpesperro onde já nem sequer passavam carros debois, à parte esse diabólico transe, que delícia é irdevassando quilómetro a quilómetro a terra virgem,apenas roçada do mato, fofa e direita como a palmada mão! Por cima de nós, abaixo de nuvens muitofroixas, o bandoleiro dum milhafre procura a perdiz,descuidada com seus perdigotos. Voa tão alto queos círculos que descreve mal põem uma sombraligeira na terra hipnótica. Eflúvios suaves levantam-se à nossa passagem. Vêm do sargaço rasteiro, dotojo alvarinho, da esteva, humildes plantas daaltitude, mas que possuem tesoiros secretos deperfumaria. E o ar embriaga como um licor muitofino. Um poviléu, dois, lobrigam-se ao longe, nasdobras baças do terreno, nenúfares num lago. Emdado momento, começam os sinos do Santuário daLapa a repicar para a novena. Planalto fora, desertoe raso, as badaladas ressoam como na nave dumaigreja. A tremulação galga até a extrema dohorizonte e parece manter-se suspensa a todo o céu,

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camada sobreposta a camada, ruflando com suasasas de bronze. O automóvel desliza surdo e veloz, compenetrado,dir-se-ia, da leveza ambiente, não perturbando denada o misticismo da hora. Luz, perfumes, luaceirosde lugares ao largo, os ralos, as rãs nos charcos doVouga, a onda sonora que vem da Senhora da Lapa,o focinho pintarolado de Adozinda compõem umacavatina vesperal, sensorialmente mista, da maisdesconcertadora harmonia. Julho, 24. A cada mês corresponde um signozodiacal e a este um temperamento, considerado oseu influxo sobre os humanos. Por isso compreendo,embora me espante, a sorte de letargo que desde ocrepúsculo da tarde ao da manhã se apodera domundo nesta altura do ano. As noites breves quevão decorrendo, pinceladas dum negro vaporoso,profundíssimas se se olhar no céu a suaconcavidade, parecem concebidas antes de maisnada para dormir. Para dormir dum só jacto, galhoferrado na travesseira, a pé quedo como os anjos nosfrontões dos mausoléus, penetradas as criaturas e ascoisas de etérea imobilidade. Pouco depois de se pôr o Sol, já se não ouve o maisbrando sussurro na amplidão. A natureza caiu emcolapso, varada dos rigores do sol e fatigada da

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exuberante vida diurna. O firmamento, salpicado deestrelas mortiças, cispou-se hermeticamente sobre omundo, como campânula da máquina pneumática.Nem hálito, nem eco. A minha serra, pedregal, lobos e vento, está mudacomo a rabeca dum cego assassinado. E é caso paraquem vem da cidade, habituado ao ruído, crédulode que Julho, em concorrência a Agosto, mês dossantos ao pescoço, seja um arraial, se perguntar,acordando na pétrea serenidade: morreu o mundo? O mundo não morreu, nem é provável que morra.Aplicando o ouvido, apercebe-se a gente dum soproregular e eterno, e é quanto basta para sabermos queexiste. O mundo, simplesmente, transforma-se. Há uns milénios, o que não representa mais que umlapso na duração, do refervedouro agitado dos seresdestacou-se este bicho, que se deu o nome dehomem, e cobrou a prosápia de se julgar feito àimagem e semelhança de Deus, o protos. Nãoobstante aventura tão desconforme, nada autoriza adecretar que nós humanos esse bicho sejamoseternos como a matéria donde provimos. E é deadmitir que numa viragem, avenidas da evoluçãofora, nos aconteça ser desbancados por outro entedotado de faculdades superiores, em condições deadaptação ao meio mais oportunas e fáceis que as

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do homem, para quem a terra foi e continua a ser oVale Maldito. Tal circunstância pode ocorrer no mesmo seiomisterioso de que nos escapa a razão de toda afenomenologia, tanto mais que uma lei deefemeridade parece presidir à existência dos seresorganizados que hoje povoam o planeta. A avaliarpor semelhante craveira, o homem não deve passarde ser transitório e, dada a sua incapacidade para sesobrepor à luta fratricida, é possível augurar da suaextinção como espécie, encarando nada mais que oprospecto da sua decadência quer no individual,quer no étnico, patente a todos os olhos. Oprogresso materialista não deve representar maisque um acidente, alheio, digamos, à vida celular dogénero humano. Que o mundo se transforma e no mundo as formasda vida, di-lo a experiência de qualquerinvestigador medianamente atento ao espectáculoda natureza. Em meio século pude eu verificarmutações, que imagino não sejam o joguete dossentidos ou devaneio da minha fantasia. Para o caso,o homem é um vasto e profundo mar, e tudo nele semostra fugidio e furta-cores, embora na cruezasuicida de que deu provas nestes dois decénios, nafalta de solidariedade, na perda de simpatia e

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anteposição do rancor e da revindita a qualquersentimento generoso e mesmo aos ditames da razão,seja lícito vislumbrar o declínio daqueles dons quefirmavam a sua preponderância. Ao observador a longo prazo dos costumes emanhas de tais e tais viventes, quero crer que sedeparem saltos e variações que abonampragmaticamente a grande lei da evolução. Assimeu tenho a suspeita de que certos animais, que seencontram paredes meias com o homem,melhoraram seus processos de defesa ou porventurarefinaram em discernimento. Abstenho-me comsemelhante rótulo de pôr o problema do instinto ouda inteligência para lá da espécie humana. Tenhonotado, por exemplo, que as perdizes, perseguidas,adquiriram o hábito de se empoleirar nas árvoresem vez de varrer o céu de asa flébil, voo após voo,muitas vezes até acabarem entocadas ou a corricarsem forças, ao alcance do perdigueiro ou docaçarreta do coelho. Alguns insectos, como asmelgas, percorrem as paredes dos mosquiteiros emlinhas paralelas sucessivas, centímetro a centímetro,até toparem o furo por onde se insinuar. Dos animais que o homem avassalou e fez ucha ouservidão, se uns sublimam na estupidez, como ocarneiro, a galinha, o porco, outros, pelo contrário,

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desenvolveram suas faculdades num grauapreciável. O António Pedro tem um cão que responde a centoe cinquenta palavras. Não o levou para Londres,para não ter que contratar um língua. Dizem, maseu só acreditaria fazendo a conta, que certosromancistas não usam muito mais vozes. Seja comofor, há alguém que tenha cão que o não julgueperspicaz e tão inteligente “que só lhe falta falar”!? A par com estes progressos, fantásticos se nãoexplosivos, há mutações inegáveis na vida animaldas espécies. Os climas conformam a fauna. Agora,por exemplo, os camponeses queixam-se do terrívelescaravelho americano que traga a rama dos batataisenquanto o Diabo esfrega um olho. Por isso metrazem a arroba ao preço a que antigamente custavao quintal. Examina-se o malfeitor, e ninguém seriacapaz de dizer que semelhante bestiola viriaprovocar tal carestia e estrago. É no estado de adultoum insecto pouco maior que a joaninha, e vistos emconjunto, no fundo do caco que lhes servirá decrematório, parecem bocadinhos de borracha decâmara de ar. Espalhados no mar de verde, coraisque se soltassem duma gargantilha. Além deste temível coleóptero, outros vãoaparecendo para tormento e desespero do lavrador.

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Um deles é uma larva que rói o caule do milho,partindo da raiz, e de que o meu informador ignorao processus biológico. A par com esses, se abano as minhas jovens tílias àhora do lusco-fusco, saem delas miríades deborboletas e insectos que são para mim novidade.Por outra, se se põe o pé nos campos ou até no mato,o mato destas serranias, que não é mais querabugem vegetal, levanta-se igualmente diante denós uma nuvem de saltantes e alvadias falenas. Donde veio toda esta exótica, difusa e malignabicharada? - É o fim do mundo - exclama aqui o meu Zaranzaque regula o óculo pelas profecias do Apocalipse. Não é o fim do mundo, é o mundo em seu renovadoe perpétuo devenir. Também estas noites, que eu trazia na minhalembrança cheias de serenatas e bailados nupciaisdos seres alados, se me entremostram caladas comoum catafalco. Foram sempre assim neste passo doJulho ardente, com o gentio cansado das ceifas ecarretas, as aves a chocar a última postura ou a criaros filhos ao cibato granjeado a poder de riscos ecanseiras? Creio bem que não. Calou-se o batuqueque as rãs dão nos charcos e me deram nosprimeiros dias das angrazinhas do meu corgo.

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Emudeceram os dois rouxinóis que há semanas, láem baixo nos salgueiros solitários, se entretinham aodesafio, um desafio tão inspirado como de rapsodosnas cortes de amor, e que punham a noite emsuspensão, por cima deles, dionísica de todo. Acasoteriam realizado seus votos, apaziguando a fome deamor? Ou comeu-os a gineta, torceu-lhes o pescoçoalgum gaiato? Porventura, tenham emigrado,nómadas e insatisfeitos, para outras paragens, e nãoprocuremos mais. Nem as cigarras, que lembram caixeiros a rasgar oriscado, se fazem ouvir. Tão-pouco os sapos, tãofúnebres que a sua voz é a cantinela condolente dequem está em visita de pêsames a prantear ummorto; muito menos os ralos que lembram os tubossonoros que descem em cortina musical às portasdos pagodes e dos barbeiros italianos toda essafilarmónica maviosa desertou do coreto. Nadaperturba a calma imponderável da noite. O espaço éfeito de negror, um negror em que flutuam o azuldiáfano da água profunda, duma fluidezmaravilhosa, o aroma feito de mil essências vegetais,e o silêncio. Mas um silêncio absoluto, em que obordão duma mosca faz mais chinfrim em suaestrutura aérea que o sino grande nas naves duma

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catedral. Adozinda entra dentro do meu seio como oluar numa concha de água pura. Nirvana! Ah, mas logo, quando a estrela do Pastor descersobre as ruínas da citânia, nos contrafortes dosCuvos, que cântico da alvorada não rompe da serrae do céu! gorjeia tudo, primeiramente o melro, ummelro preto e bonito como um estudante deCoimbra, que vem saltitar por cima das giestasnegrais do meu condado! Logo a seguir as rolas, aspoupas, os pombos bravos, mestres em solos eacompanhamentos de trompa, lá em baixo no pinhalda Laja dos Lobos, nos bosques e silveirais. Depois,a arraia dos ares, a pardalada, que veio com oZaranza, que veio connosco, desata em tal inferneiraque nem a Senhora da Lapa no dia da sua festa. Deste modo se desforra a natureza dadeliquescência nocturna. E nada mais que pelajovialidade matutina se conclui que o mundo, emconversão para outra coisa, possivelmente para aloucura integral, tem muita guita para dobrar. Agosto, 10. Afinal também aqui chegaramdesgraças. Vêm agarradas à roupa do pessoal, se éque não dispararam para o meu penhasco a tired’aile como os corvos. Esta nossa terra é umachocadeira fabulosa de malefícios e absurdidades.Uma Procópia, irmã desta que tomámos ao serviço,

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rompeu aí em tais prantos que comoveu Adozinda,de resto atreita à lágrima. - Que quer a mulher? pergunto de má catadura. - Queria o filho. - Põe-ma a andar. Aqui não se ouvem queixumes.Para isso é que foram inventados os templos. - Coitada! - Mas que lhe posso eu fazer? Quer dinheiro? Dá-lheumas dezenas de escudos. - Queria aconselhar-se.. que lhe dissesse se osespíritos dos mortos falam com quem cá fica... - Falam, sim, costumam falar ao paladar dosvelhacos ou dos simples. Comigo é que não falam. - Queria saber se falam a dizer sim ou não a isto eàquilo? - É uma questão de disposição. - O filho dela fala com ela e com várias pessoas daterra... - Bem, que o não afugente. Desde pequeno que o filho da Maria Procópiaganhara fama com os bonitos da sua navalhinha depastor. A apascentar as vacas, enquanto elas iamretoiçando a erva dos cerrados e tilintando as suassete campainhas, carpintejava brinquedos, por viade regra alfaias agrícolas em miniatura, muitoapreciadas dos meninos fidalgos, a quem as oferecia

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liberalmente. Esculpia também no castanho-vermelho figurinhas de pessoas e bichos, algumashilariantes no seu talhe caricatural, fora deproporção e medida. Foi crescendo e não houve na aldeia melhor caçadorde pássaros. Com as costelas, em que serve deengodo uma embude, presa por um cabelo, a luzir ea estrebuchar, ou com as esparrelas armadas ondeos tejasmos e tralhões monásticos costumam elegerpúlpito, trazia à noite com que adubar a panela. Notempo dos ninhos não havia loira de coelha ouperdiz na postura que escapasse aos seus cincomandamentos, herdeiro de toda a barbárie e astúciados avós turdetanos para tudo o que erguesse vooou rastejasse. Mas salvo esta rapacidade nata era umexcelente mocinho, afável e esperto, que pusera oramo na vila pela presteza com que respondera àsdifíceis e doutorais perguntas dos senhoresexaminadores nas provas de 2º grau. Tambémderam nas vistas os seus sapatos de bezerra, o bonéde pala aos quadradinhos e a gravata com que amãe caprichou ajoujá-lo, porque era gente de algunsteres e ciosa. Espigou e não iludiu os bons augúrios. Da suaigualha estava para nascer rapaz mais estimado pela

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compostura e agrados naturais. Morria por ele maisduma cachopa. Imprevistamente o Fausto - o padrinho tinha-lheposto este nome de feiticeiro - faleceu. De quê? Naserra vem-se ao mundo e deixa-se o mundo semassistência médica, de modo que construir umdiagnóstico sobre os dados fornecidos pelas pessoasque assistem à doença e passamento é tão fátuocomo lavrar na areia. No poviléu esta morte foicausa de grande paixão e infinita lamúria. E com aturvação que motivou, a ninguém ocorreu que oFausto, por suas boas e leais manhas, agenciaraalgum pecúlio no negócio do volfrâmio, e que nuncase dera fé dele o ter empregado bem ou mal.Semanas decorridas é que vieram com a alçada àmãe lacrimosa: - Tia Maria, o seu Fausto tinha dinheiro. Encontrou-o? Não tinha pensado nisso, o que é compreensível,conhecendo-se-lhe a alma amorável e generosa ecerto desprendimento pela pecúnia, se bem que asua casa mal passasse de remediada. E ela e ohomem e a filha aí se puseram a procurar o pequenotesoiro do defunto, desarrumando-lhe o catre,esforcando com um pauzinho os buracos da parede,pesquisando nos recantos dos lameiros e lojas das

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vacas, e em certas copeiras nos muros do quintal eda casa, que lhe tivessem podido servir deesconderijo. Por muito que rebuscassem, nãoconseguiram pôr a mão num ceitil. Foram consultar a bruxa de Quintela da Lapa. Amulher de virtude, depois de ouvir com grandeatenção a parte toda, declarou em tom peremptórioque o defunto levara o dinheiro consigo. Fossem àsepultura, que lá estava. Foram com a revelação à mãe, que é quem tudo lomanda, o marido sendo apenas o moiro obedienteda casa. Dava licença que desatupissem a campa? Oquê?! Ela consentia lá que fossem bulir na terra quehá semanas estava a comer o seu filhinho?! Nempelo oiro todo do mundo. Se algum cobiçoso oudoido caía na tentação de tocar na cova, saía à rua agritar contra o profanador. Mas na aldeia, de gorra ou não com o coveiro,formou-se uma quadrilha de pilhos. Iriam exumar ocadáver para o despojar do fato que lhe servira demortalha. O baguinho, o rico baguinho apurado nabarganha do volfro devia estar nas entretelas, poisonde havia ele de o ter metido? Como todos os cambões, formados para estasempresas fantásticas à margem do maravilhoso, sejaexplorar as riquezas dos Incas, dos galeões de Vigo

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ou os tesoiros mencionados no Livro de S. Cipriano,tinham que pôr-se em dia com o sobrenatural.Foram ter de novo com a adivinha e corpo aberto. - Tragam-me o maior amigo do defunto. O maior amigo era um primo que teve o bom sensode avisar a tia da diligência. Esta botou-se a casa damezinheira: - Ó sua mulher, que vai vomecê falar? Se se atreve adizer segunda vez que o meu filho levou o dinheiropara a cova, na mesma hora em que mexam nacampa me ponho a caminho da vila a fazer queixaao senhor juiz contra uma desenvergonhada! O maior amigo, com os da malhoada, foi a casa davidente, que pegou num copo de água e lho meteuna mão. Em seguida mandou-lho baldear, baldear,sem verter o líquido, até que, operada aconsubstanciação, exclamou: - Lá está ele! Vêem-no? Era o espírito do finado. - E que diz ele? - inquiriu um dos circunstantes, queacertou ser o cabeça do trancafio, persuadido daestranha presença. A mulheraça caiu em transe e exprimiu-se assim emvoz alada: - O dinheiro levei-o, sim, comigo, mas já não está naterra santa. Quitais de procurá-lo. Foi distribuído

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por uns grandes necessitados. Nosso Senhorperdoou-me, com dois anos de Purgatório. Rezai-mepor alma, que dia e noite as labaredas me queimame requeimam sem que sofra outra quebra além dedor e tormento. Aqui está como repousam em paz, entregues ànatural consumpção, os despojos mortais dotesaurizador infeliz. - Acreditas, Adozinda? - Sempre acreditei nas almas do outro mundo.Algumas andam penadas e nunca mais encontramdescanso à flor da terra. - Só morre o corpo? - Só morre o corpo. Então podia lá ser apagar-se agente como uma candeia e cair na escuridãoperpétua? A mísera não se pode resignar à perda da suainsignificância. Está certo, este sentimento desobrevida coaduna-se admiravelmente com a suanatureza primária. A boa lasca de carne gozadora egozada não havia de ter horror ao nada?! Já dizia minha avó: são poucos os que têm coragemde passar quitação à fatalidade de não ser. Nihil éum conceito mais abstracto e soberano que o deCriação. Como tal não está ao alcance de todos os

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cérebros. E sobretudo é desagradável ao nossoegoísmo. Agosto, 23. Não sei por que linhas retortas, ganheifama de homem milagreiro e omnipotente. O eco domeu valimento ressoa longe como os sinos deToledo. Como foi possível? Mistério das reacçõespopulares. Estou capacitado que se por casualidademe venho a demorar nestes ermos, o meu penedalacaba lugar universalmente consagrado deperegrinação para aflitos e encalacrados, comoDornas, com a sua benta, na serra da gralheira, ou aBoa Vista com o seu fidalgo e par do Reino, notermo da Rua. Não falo de romaria, pois queninguém me vê de camândulas ao peito e a ergueros olhos ou o indicador para o Céu quando falo. Epela ausência em minha pessoa destes ademanes,usitados pelos menigrepos da serra, se espanta deresto o gentio. A verdade é que desde Agosto para cá não medeixam gozar um só instante de sossego. O carreiroque me liga aos dois poviléus, que se lobrigam lá embaixo, no horizonte, está puído do passo dostamancos e sapatos de brocha, ia dizer dasmesnadas, e serpenteia mais largo e branco.Verdade que tanto é cursado por gente de pé comode cavalo. A montada clássica da região é o jumento

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com albarda e cabeçal, ao estilo ainda de Buridan.Às vezes lobrigo através das restevas, no ondulosoda encosta, estas homéricas jericadas. E imagino oque era o orgulho dum nobre Testa-de-Boi quandoavançava para o seu castelo de roca a hoste amigade balsões ao vento, e batendo atabales. Todo o santo dia atravessam a sebe de giestas, quetenho pena não seja fosso insuperável, chusmas depostulantes. Que me pedem eles? O maisinverosímil que se pode pedir a um homemindependente, o seu tanto bravio de carácter,solitário, difícil com os idiotas, nada hábil na lisonja,com verdadeiro horror ao mandarinato. Coitados,apelar para mim é o mesmo que percutir umrochedo com a vara na crença que brote água. O mal é que me custa dizer que não, ainda mais ainfelizes do que a patetas, e todos levam no rostoum lampejo de esperança. A minha cobardia, se nãoé a comodidade, obriga-me a este ludíbrioindecente. Mas vá lá alguém convencê-los de quevêm errados, que não é verdade mover eu o Terreirodo Paço com uma perna às costas, que os políticosestão-se marimbando para quem os não assiste comum sufrágio constante ou os não exalça com o alfa eo ómega da arte de governar. Uma vez que caí nasanta ingenuidade de confessar a minha impotência,

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ia-me saindo caro. Assanharam-se contra mim e osnomes menos feios com que me mimosearam foisoberbo e homem sem Deus, o que no fundo melisonjeou. Não estamos na terra em que mergulhamSanto António no poço quando se demora a fazer omilagre? Realmente ter ou não ter influência e usardela eficazmente não é essencial; o que conta é afixá-la e pô-la de modo teórico e dialéctico à disposiçãode quem precisa. O português prefere ser enganadoa ser desiludido; antes quer morrer esperando,confiado na Virgem, na boa alma, no bom acaso, aser distinguido com o sincero e formal nonpossomus. À minha portela vem toda uma rocegada degrandes e pequenas misérias. Algumas, pelo tomo,são de molde a ser acolhidas e conclusas paraSancho na ilha da Barataria. A senhora mestrapretende ser provida na cidade, porque só lá hámédicos competentes para a tratar do flato; umdemandista vesgo apela para a minha influência nosentido de forçar a mão dum juiz a favor do seupleito; um desordeiro andou à castanha com aguarda e teme ficar sem camisa; uma viúva tem láum menino que é um azougue: não sabia dumlugarzinho de marçano? O galucho aspira a sacudiras correias e o pobre encarcerado a que o deixem

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volver às berças, que já o tocou o lume daregeneração. Toda esta gente vem súplice mas decidida. Muitostrazem a oferenda propiciatória: duas dúzias deovos; uns queijinhos; o junco das trutas; o seu pãode ló; excepcionalmente, para viático dumapretensão taluda, certo ricaço chega a carregar umpresunto. Santo Breve da Marca, teria a casa abastecida seimperativamente não coagisse estes miserandosservos da gleba a reconduzir para suas salgadeiras euchas a peita da subornação. Ah, mas eu tenho aimpressão de que a vasta província cabe toda numretábulo das almas do Purgatório e quão fácil é sermessias ou padroeiro. O pior de tudo não é a farsa que quotidianamente serepresenta da minha importância social; é o meusilêncio, a minha solidão estilhaçadas, comovidraças, pelas vozes guturais: - Ó da casa! Quando eu não saio a atender os infelizes, marramali, impertérritos como granadeiros no seu posto. Ecompreendo porque é que os santos são tãooperosamente milagreiros nesta província. Tantolhes rezam, tanto bradam e chamam por eles, tantolhes matam o bicho do ouvido, que não têm outro

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remédio senão acudir à portaria celeste e despachar.Assim sucedeu com o lenhador de Rabelais: - Sacré cochon de Jupiter, donne-moi ma cogne! Macogne! - Dêem lá o machado àquele golas-de-odre, e que secale, caramba! - urrou finalmente no Olimpo, comos ouvidos a zoar, o pai eterno. Mas eu não tenho o poder dum alcaide, quanto maisduma divindade, e os postulantes tarde ou cedofazem cruzes na boca. De permeio com esta casta dedesventurados, acerta virem uns mariolões que sedirigem apenas ao homem da técnica. Exigem-lhesnas estradas uma plata se querem passar com ocarro de bois para a courela; um alçado na Câmarase se propõem erguer uma taipa para a via pública.A povoação de S. Cucufate morre por ter umfontanário com bicas a correr; o lugar das Barrosasnão tem onde cozer o pão; dêem-lhe um forninho! Todas estas aspirações se reduzem a projectos e osprojectos a papel vegetal. Se o senhor engenheirofizesse o grande favor... sabe, não são precisosgrandes luxos... dois riscos dá Sua Senhoria com osolhos fechados. Numa palavra, sou um homem presumidamentepoderoso e bem aproveitado nos meus méritos.Quem folga com a veneração que me tributam é

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Adozinda. Para uns é a minha menina; para outros,os maloios, a minha esposa; para os invejosos,irreverentes e desenvergonhados, o bom pente dovelhote. Ela toda se espenuja às amabilidades duns eaos galanteios doutros. Uma casquivana! Para comprazer com os idólatras, dá-lhes radiofoniaàs bateladas. O aparelho berra como um possesso,alagando com a estridência das filarmónicasamericanas e vozeirões imensos dos locutores cerroe planura. Aos domingos é aqui um arraial. Vêm depropósito. Desertam da missa e do sermãoencomendado e apinham-se em torno da arribana.Já trazem farnel e desatam-no, sentados sobre oscalcanhares à moirisca. De par com esta casta de ociosos, flamantes comoromeiros, os zagais sobem até os meus domínios apastorear os rebanhos. A serrania humaniza-se. Um brasileiro a quem deu para simpatizar comigo,quando lhe podia dar para melhor, propõe-seconstruir uma xácara ao lado do meu retiro. Já estáem negociações com a Junta da Paróquia para aforaro terreno. E muito lânguido, exclama paraAdozinda: - Sinhazinha vai vê com qui carinho minha mulhétrata você.

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Era o que me faltava. Que mais é preciso para queeu regresse à urbe, ao mesmo turbilhão e barricadadum fabiano? Setembro, 8. Assinala-se de longe: ronron, ronron,alto e invisível. A natureza parece siderada, comseus sete ouvidos à escuta. Esquadrinhamos o céu:ronron, ronron. Onde vem ele? A grande libélula mostra-se finalmente entre duasnuvens; eclipsa-se; ressurge quase por cima de nós,esplêndida e a reluzir com um cristal. Dum galãosupera o planalto e, quando a supomos de rumo àsterras orgulhosas, ei-la que inflecte; convergindosobre a asa esquerda, começa a contornar amontanha. Vai rodando e, depois de descrever umgrande círculo, aperta pouco a pouco os seus orbes.É como um milhafre à caça. Em certos momentos, oseu arcaboiço incende-se de fulgurantes laminaçõesde fogo. Que é que ela procura? Passa segunda vezpor cima da arribana, mas não mostra jeitos de noster descortinado. Os metros de telha moirisca, baçado tempo, escapam-lhe integrados no fulvo do matolambido pela canícula. O Zaranza agita o tabaqueirovermelho. Mas à altitude a que paira, um lenço oumesmo um lençol não passa da asa duma mosca aesvoaçar. Compreende-se: o piloto teme os fojostraiçoeiros, reflectidos na atmosfera pelas gargantas

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e côncavos da montanha, e a salvar-se deles ala-se àsnuvens. Durante um quarto de hora, meia hora, sobrevoou opássaro a serrania e, subitamente, como flecha deprata disparou, alto, incompreensível, através dumamanada de cirros, para o sul. Era dia da Senhora dos Remédios, que tem seusantuário nas faldas do monte que fica atrás danossa serra, e Adozinda rala-me a paciência para alevar à festa. As festas beiroas, com seusatropelamentos larvares, sua truculência beduína,sua derivação eucarística, tornaram-se insuportáveise incolores aluviões de gente. Os padres tantoapuram a disciplina canónica que hão-de acabar porficar sozinhos na nave deserta do templo a entoar omiserere. Para plantar a árvore da Redenção não eraa Igreja antiga que se permitia adubar-lhe as raízescom a alegria franciscana das almas simples. Omundo virou de pele, mas eu é que não estou pelosautos. Recuso-me terminantemente a satisfazer ocapricho da mocinha, tanto mais que me proponho,mal afrouxe a calmaria, bater as lebres. Há oito diasque me encarniço pelo monte com resultado poucolisonjeiro para as minhas fumaças de caçador. Perdio treino ou é a minha vista que falta aos requisitosda pontaria rigorosa? O meu setter, a cada tiro

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falhado, olha para mim com ares atónitos, queequivalem a reprovação. E o pior é que se toma develeidades de independência, que é a mais acerbadas situações para um caçador brioso. Não vamos aos Remédios, mas Adozinda chora;esfrangalha não sei o quê com frenicoques, que eujulgava privilégio das histéricas da boa sociedade, e,julgando que me causa grande arrelia, não se dignaaparecer à mesa do almoço. graças, Senhor, oradiofone está mudo! Pela primeira vez, há muitassemanas, ouço zunir contra a janela os insectos dosertão, particularmente estas moscas metálicas,ascorosas e lindas, que saem da carcaça dos bichosbravos a apodrecer à flor da terra. Engolfo-me naleitura dum livro e, a espaços, na contemplação dacisterna sem fundo do meu eu. À boca da tarde, a Rita Procópia, que chega àvaranda, estende o braço: avança para a arribanauma luzida cavalgada. Pego no binóculo: um, dois,três cavaleiros. Vem à frente uma dona numa horsapreta com cadeirinha, à moda de Sabá, sombreiro aoalto e paramentada como um ídolo. À sua ilharga,trota um homem que se me afigura mancebo e como donaire do bom pajem. Mas não distingo bem. Quem havia de ser? Clemência Canedo e o aviador.A minha amiga de antanho lembra, rubra do sol,

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uma pionia crestada; abafa; espapaça-se na cadeirabamba de embarcadiço e abana-se freneticamentecom o leque. Olindo de Lacerda, levementeafogueado na tez de moreno, sacode a ponta dolenço. Adozinda, que sinto recreada com a visita,sobretudo com a presença do belo rapagão doaviador, prepara em tempo de bombeiro umalimonada. Tinham sido eles que há coisa de duas horas noshaviam dado o gosto de ver sobrevoado o nossoermitério. Mas não só não conseguiram diferençá-lono solo, como não encontraram campo para aterrar.Viram-se obrigados a retroceder para o aeródromoda cidade, onde tomaram um automóvel que ostrouxe à vila; na vila por seu turno alugaramaquelas bestas maviosas que os vieram depor nomeu alcácer. Um respeitável estirão, mais demoradoque da granja do Marquês até Viseu. E o sorriso deLacerda adejava de alto como o aeroplano queguiara, enquanto Clemência, de olhos fechados,sorvia o refresco por uma palha. Que conjuravaaquela cabecinha, que há trinta anos fora tãointeressantemente louca? A pobre, a fugir à esparvonada senectude, arreiara-se como uma boneca. Era grotesca, se não fosse

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miseranda. Mas com o culto do seu físico, pôs-selogo a contemplar-se ao espelho do próprio saco. Asdrogas com o sol tinham escorrido, feito ravinas naface. E, embora mal recobrada da ardentia,entregou-se a recaliçar o maquillage com esmero ediligência. Adozinda admira o seu à-vontade tãodominioso, sua presteza serena, e de quando emquando deita o rabo do olho, furtiva, masinteressadamente, que eu bem vejo, ao aviador. Decorrem dois, três minutos. A gloriosa Clemênciaergue-se, arrisca dois passos sem sentido à direita eà esquerda, e com um gesto que abrange a serra, océu, a casa e Adozinda, declama em tom sardónico: - Então isto é que é a tal vida de asceta? No seubilhete falava-me da Mística Cidade de Deus e... e...das Máximas... Como se chama o autor? Teofrasto,não é? Onde estão esses venerandos cartapácios? Alargo as duas mãos como os sacerdotes no Oratefratres: - Tudo isto é Santo Agostinho e Teofrasto. - O quê, as pedras? - Porque não? Olha depois discretamente para Adozinda e replica: - Mas não há só pedras. Ah! ah! ah! Compreendoporque não quis na sua companhia o pobreDiamantino. Olhe, ele é que ganhou com a sua fuga.

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Foi para Davos Platz e pode considerar-serestabelecido. - As minhas felicitações. Sabia que era essa aestância que mais lhe convinha. Acaso podiaoferecer-lhe aqui o conforto de que necessitava? - Mas por mim?! - A minha excelsa amiga não precisa desta espéciede altitudes e felicito-a também. Ela torce os lábios, penetrando a malícia, que aOlindo passa por inadvertência, sem dúvida, eprofere com acritude: - É feliz neste chavascal? - Felicíssimo. - Sua mulher e seus filhos são bem tolos em o deixarpara aqui à rédea solta... - Minha mulher e meus filhos mandam neles, eumando em mim. - Hum! - e por cima da revista que manuseia lançauma mirada de raspão para Adozinda. Dou-lhe uma casquinadinha mefistofélica. - Farta-se de chuchar com a gente... - volve ela. Rio com os dentes todos, nem sei bem porquê. Acelebrar a grande verdade emitida? Ou antes porqueaquela tola se sente despeitada, julgando-se nodireito de possuir a minha adoração até se converterem real esqueleto? Eu cometera de facto o negro

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pecado de sair da capital sem prevenir. Que meimportava o trânsito dos Canedos ricos, caducos emonocórdicos? Clemência é a página voltada dumlivro. Acabou-se duma vez para sempre. Afivelo um ar impiedoso, que ela conhece bem, ereparo que uma lágrima aflora aos olhos pisados,que foram belos. Sou o lamechas de sempre, e pego-lhe da mão que beijo cortesmente. Ela então sorri,sorri o mais amorável que pode para atenuar omordente que haja nas palavras: - Sim, farta-se de chuchar com os amigos, com Deus,com aquilo que devia merecer-lhe certo respeito, -nesta altura novamente projecta o rabinho do olhopara Adozinda - consigo próprio. Você é ochuchador por excelência. - Esse juízo assenta-me a matar, concordo. Se me dálicença, tomo nota para o passar a pergaminho, e pô-lo no meu escritório à laia de diploma. - É melhor reservá-lo para epitáfio - torna commordacidade. Depois, como se visse as unhas aescorrer sangue e se arrependesse, acrescenta comblandícia: - Mauzão, está aqui há dois meses eapenas se dignou mandar-me aquele postalilustrado. Ingrato! - Ingrato, por quê, minha boa amiguinha?

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- Então não é ingratidão corresponder com o olvidomais absoluto a quem pensa amiúde no senhor, lhequer bem, tem a existência solidária com a sua boaou má disposição!? Não compreendo a última frase do libelo amistoso,mas passo adiante. - Vossências jantam hoje connosco, não é assim? O tenente abre os braços, declinando na vontade deClemência. - De maneira alguma - diz ela. - De resto, o senhorvem hoje connosco para Lisboa. Solto uma tranquila gargalhada. - No avião não há lugar para o nosso amigo? -pergunta intencionalmente para o tenente. - Há lugar para mais duas pessoas - responde ele,com impassível fisionomia. - Daqui só para a sepultura declaro comperemptório. Clemência, enfiando o braço no meu, arrastou-mepara o canto da varanda, onde começavam a acertaras sombras da tarde. E de seus lábios trémulos, ondeo carmim arregoava, ouvi a história pavorosa: seumarido invertera os capitais no negócio arriscadoduma Companhia africana, espécie de empresa naLua. A assembleia geral era dali a dois dias,soubera-o da boca dum amigo, que penetrara o mais

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negro dos cambalachos que se pode imaginar. Unstantos accionistas e dos que dispunham de maiorrepresentação, gente sem escrúpulos, não estavamapostados a tentar uma manobra que, efectuada,equivalia pura e simplesmente a ficarem eles semum vintém? O Diamantino estava longe, mas queestivesse na capital, não possuía ralé para fazerfrente à matilha. Era preciso alguém que peloprestígio, o nome, a direitura no pensar e nas obras,fizesse abortar o conluio. Tinha olhado à direita e àesquerda e não vira mais ninguém que o diabo doseu grande Totó, empoleirado nos penedais daNave. Aqui estava! Olhei para a pobre Clemência, o espectro da doce efragrante amiga de há trinta anos, e compreendi, àlembrança do passado que se levantava naqueleminuto imperioso, que não lhe podia dizer que não. - Porque não me avisou a tempo e horas? - objectei. - Ah, só anteontem é que fui inteirada da cabala. Sóanteontem! A maneira como foi convocada aassembleia geral faz parte do plano. Valeu-me esterapaz, que disse, ao verme chorar, e me é grato - nãodeite maus pensamentos, ele é uma criança, eu souuma velha: “Não se aflija, minha senhora, que eulevo-a à serra de avião e custe o que custar havemosde desanichar o nosso amigo. Custe o que custar!”

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Se não sou eu, tinha descido no coruto da serra. Nãoconsenti e fiz bem. É um herói ali onde o vê. Deito um olhar a Lacerda que dirige qualquergalanteio a Adozinda... Clemência espera a minhadecisão, os lábios pregados, dando-me a entenderque não gastaria mais palavras. Lá se vão as minhas férias de catrâmbias. Virei duaslebres e errei quatro. O melhor cinto que fiz àsperdizes foi na manhã de ontem com cinco bicos, aque vieram ajuntar-se duas rolas, abatidas quandoremontavam de beber no corgo. Acabou-se, seriainsensatez contar com o paraíso depois de se imolaro pomo. A serpente desapareceu de cena, mas ohomem encontra-se perante uma cabotinainsuportável. - Está bem, Clemência, vamos lá. Esta vida é umaaventura. - E que é o homem, o mundo, meu amigo? Setembro, 15. Empandeirei honestamente Adozindapara a Messejana. Surpreendia duas e três vezes atrocar um olhar ardente com o cavalheirescoaviador, e eu quero guardar uma boa recordaçãodela, sem deselegâncias que mareiem o retrato. Ummomento estive tentado a voltar ao meu penedalcom a Eva fortuita. Clemência que também sabefilosofar, reconhecida pelo que fiz e pelos prazeres

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que lhe sacrifiquei, comenta com melancólicafranqueza: - Ah, meu caro, velho amador, inverno em flor;cuidado com as geadas! E ouça: a vida é como asfontes; não se mata a sede novamente na água quecorreu! Cruz Quebrada. Primavera de 1947.