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ri M A ISSA0 o VO DE DEU UMA TEOLOGIA BÍBLICA DA MISSÃO DA IGREJA VIDA NOVA

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ri

MA ISSA0 o D° VO

DEDEU UMA TEOLOGIA BÍBLICA

DA MISSÃO DA IGREJA VIDA NOVA

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Neste livro, você terá uma compreensão refinada de alguém que conhece missões e as Escrituras - e por ser um especialista no Antigo Testamento, ele dá a essa porção maior das Escrituras a proeminência que ela merece, mes-mo quando (principalmente?) estamos pensando num assunto como missões, que parece pertencer ao Novo Testamento. Ele não se restringe aos temas das Escrituras, mas nos capacita a penetrar em muitos textos específicos, tudo em pequenos pedaços fáceis de manusear. O que a teologia tem a ver com missões? Este livro responde a essa pergunta de forma poderosa.

— JOHN GOLDINGAY, David Allan Hubbard, Professor de Antigo Testamento no Seminário Teológico Fuller

É extraordinariamente gostoso de ler, escrito por um pregador que sabe se comunicar de modo simples, claro e fascinante. Ele é uma aventura restaura-dora, uma vez que explora o tema de missões em passagens bíblicas onde você não esperaria encontrá-lo. É provocativamente controverso ao discutir questões como a relação entre o cuidado com o planeta e evangelismo, mas sempre de uma maneira pacífica. Ele também é notavelmente prático, preocupado com a sustentação teológica para a ação da igreja no mundo. É surpreendentemente relevante pela forma de se preocupar com a história central da missão de Deus em relação ao mundo, como um molde que deve dar forma à obra da igreja. Ele é extremamente realista ao mostrar como a nossa vida diária deve ser a extensão de nosso chamado missionário. Portanto, ele é grandemente recomendado.

— I. HOWARD MARSHALL, Professor emérito de Novo Testamento, na Universidade de Aberdeen

A missão do povo de Deus é mais do que um livro de teologia bíblica. É uma jornada no chamado que Deus tem dado ao seu povo para impactar o mundo do modo como ele deseja. Lausanne tornou famosa a expressão: A igreja toda deve levar o evangelho todo ao mundo todo. Wright nos oferece a Bíblia toda, com toda a teologia para toda a tarefa de missões ligada à criação, à redenção e à nova criação. A questão: devemos saber onde estamos indo e por quê. Este livro nos leva até esse ponto de forma muito agradável, utilizando plenamente os dois testamentos, e ainda nos fornece perguntas para refletirmos, a fim de começarmos a agir. Muito bom.

— DARRELL L. BOCK, Professor Pesquisador em Estudos do Novo Testamento, no Seminário Teológico de Dallas

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Esta obra não apenas serve como uma agradável continuação e comple-mento de seu tão aclamado livro The mission of God (A missão de Deus), mas também tem colocado nas mãos de pessoas leigas sua interpretação abrangente das Escrituras. Isto é o que de melhor existe em teologia bíblica. Durante muito tempo, estudiosos da Bíblia, teólogos e pastores têm forçado um caminho entre a Bíblia hebraica e o Novo Testamento cristão, focalizando as descontinuidades. Wright tem-nos mostrado outro caminho. Por meio de sua abrangente leitura da Bíblia toda, ele nos oferece um retrato sadio da missão de Israel e da nossa própria missão. Assim como o povo de Israel foi chamado e enviado ao mundo para dar testemunho da graça "do Senhor" (YHWH), nós também somos. Nós que somos "o povo que Deus amou, escolheu, redimiu, moldou e enviou a este mundo, em nome de Cristo". Obrigado, Chris, por nos mostrar que a eleição de Deus não diz respeito a nós, mas ao mundo. Que esta obra inspire a igreja de Deus a ter uma fidelidade maior em dar um testemunho verbal da graça redentora de Deus para o cosmo e a ter uma fidelidade ética maior, visto que encarnamos sua graça no microcosmo em que vivemos.

— DANIEL I. BLOCK, Gunther H. Knoedler Professor de Antigo Testamento no Wheaton College

Como podemos ajudar a comunidade cristã a se levantar pela fé nas con-versas diárias e a promover o evangelho com inteireza de vida? O método mais popular, embora seja menos eficaz, é "ordenar" simplesmente que o nosso povo fale com mais ousadia e viva com maior zelo. Chris Wright nos mostra outra maneira de fazer isso, e creio que esse é o único modo de entusiasmar as pessoas a darem tudo quanto têm para a missão de Deus. De Gênesis a Apocalipse, ele nos conta a história da paixão de Deus para encher a terra e abençoar as nações. Ele o faz de tal modo que, nenhum de nós, seja líder cristão ou novo convertido, poderia deixar de sentir a empolgação, a seriedade e o privilégio de estar envol-vido na missão do povo de Deus.

— JOHN DICKSON, Diretor do Centre for Public Christianity (Centro para o Cristianismo Público); Membro do Conselho e Pesquisador Chefe do departamento de História Antiga na Universidade de Macquarie

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Seguindo o seu livro de referência, The mission of God (A missão de Deus), Christopher Wright nos mostra em A missão do povo de Deus que a prática básica de missões na ação e no plano mais importante de Deus não faz com que a igreja seja estática ou passiva. Neste estudo magistral, Wright demonstra de modo decisivo o que acontece quando toda a igreja começa a ler a Bíblia inteira e a refletir sobre o âmbito global das boas-novas de Deus em toda a nossa vida e testemunho no mundo. Este livro é um roteiro muito aguardado, que retira as missões da prática de uma pequena elite de profissionais e a entrega às fiéis testemunhas dentre todos os filhos de Deus. Se você quer ajudar sua igreja a se tornar uma igreja missionária, não consigo pensar em nenhum outro lugar para começar sua jornada, senão neste livro. Eu lhe garanto que você descobrirá novamente quem você é em Cristo e para que você está aqui!

— TIMOTHY C. TENNENT, Presidente e Professor de Cristianismo Mundial do Seminário Teológico de Asbury

Uma visão bíblica geral e maravilhosamente caleidoscópica do papel privi-legiado entregue a todo o povo de Deus, para cumprir a missio Dei no mundo. Chris Wright demonstra que o tema da missão de Deus e de seu povo é a linha saliente e inconfundível que entrelaça o tapete bordado de toda a Escritura. Ao fazer isso, ele nos proporciona uma afirmação retumbante de que é responsa-bilidade de toda a igreja dar testemunho de Cristo e de seu reino em cada área geográfica do mundo e em cada esfera da sociedade.

— LINDSAY BROWN, Diretor Internacional do Movimento de Lausanne para a Evangelização do Mundo

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MISSÃO D° QVO

DEDEUs

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Wright, Christopher J. H. A missão do povo de Deus : uma teologia bíblica da missão da igreja / Christopher J. H. Wright ; tradução Waléria Coicev. -- São Paulo : Vida Nova : Instituto Betel Brasileiro, 2012.

Título original: The mission of god's people : a biblical theology of the church's mission

ISBN 978-85-275-0493-5 (Vida Nova)

1. Missão da Igreja 2. Missões 3. Obras da igreja 4. Renovação na igreja I. Título.

12-01831 CDD-262

índices para catálogo sistemático: 1. Missão da Igreja : Eclesiologia 262 2. Igreja : Missão : Eclesiologia 262

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CHRISTOPHER J. H. WRIGHT

MISSÃO P 010

DEDEUsVO

TRADUÇÃO

Waléria Coicev

oe VIDA NOVA BETO. BRAS6EJR0

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Copyright © 2010, Langham Partnership International Título original: The Mission of GocE s People Traduzido da edição publicada pela Zondervan, Grand Rapids, Michigan, EUA

Publicado em coedição com Instituto Bíblico Betel Brasileiro

1." edição: 2012

Publicado no Brasil com a devida autorização e com todos os direitos reservados por Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, Caixa Postal 21266, São Paulo, SP, 04602-970. www.vidanova.com.br / e-mail: [email protected]

Proibida a reprodução por quaisquer meios (mecânicos, eletrônicos, xerográficos, fotográficos, gravação, estocagem em banco de dados etc.), a não ser em citações breves com indicação de fonte.

ISBN 978-85-275-0493-5

Impresso no Brasil / Printed in Brazil

COORDENAÇÃO EDITORIAL

Cláudia Mércia Eller Miranda

REVISÃO

Laerte Pereira Lena Aranha

COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO

Sérgio Siqueira Moura

REVISÃO DE PROVAS

Mauro Nogueira

DIAGRAMAÇÃO

Mônica Campello Rangel Rodrigues

IMAGEM DA CAPA

(0:

Ferdinandreus Dreamstime.com

CAPA

Osiris Carezzato Rangel Rodrigues OM Designers Gráficos

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Para Susy e Ed

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SUMÁRIO

Prefácio 19 Prefácio do autor 21 Introdução 25

IDENTIFICANDO AS PERGUNTAS

1. Quem somos e para que estamos aqui? 29

ENCONTRANDO AS RESPOSTAS

2. Pessoas que conhecem a história de que fazem parte 43 3. Pessoas que cuidam da criação 60 4. Pessoas que são uma bênção para as nações 76 5. Pessoas que andam no caminho de Deus 98 6. Pessoas que são redimidas para um estilo de vida redentor 114 7. Pessoas que representam Deus no mundo 136 8. Pessoas que atraem outros para Deus 153

8B. Interlúdio: pausa para reflexão 176

9. Pessoas que conhecem o único Deus vivo e salvador 179 10. Pessoas que dão testemunho do Deus vivo 194 11. Pessoas que proclamam o evangelho de Cristo 213 12. Pessoas que enviam e são enviadas 240 13. Pessoas que vivem e trabalham na esfera pública 265 14. Pessoas que louvam e oram 293

REFLETINDO SOBRE A RELEVÂNCIA

15. A jornada até aqui e daqui em diante 319

Índice de assuntos 347

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SUMÁRIO DETALHADO

Prefácio 19 Prefácio do autor 21 Introdução 25

IDENTIFICANDO AS PERGUNTAS

1. Quem somos e para que estamos aqui? 29 Missão ou missões? 29

O envio de Deus 29 O propósito de Deus 30 Singular e plural 31

O mundo inteiro 33 O mundo inteiro como o alvo da missão de Deus 33 O mundo inteiro e o âmbito da nossa missão 33 O mundo inteiro como a arena da nossa missão 34

Toda a igreja 35 Quem é o povo de Deus? 35 Que tipo de povo somos nós? 36 Quais são as prioridades e os limites da nossa missão? 37

Todo o evangelho 38 Quão abrangente é o seu evangelho? 38 Nenhum outro nome 39

ENCONTRANDO AS RESPOSTAS

2. Pessoas que conhecem a história de que fazem parte 43 A missão mundial e a história da Bíblia 43

Conhecendo a história 45 O Messias e a missão 46

Considerando a história como um todo 47 Criação 49 Queda 49 Redenção 50 Nova criação 53

A missão de Deus 56 Resumo 58 Questões relevantes 58

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Sumário detalhado • 13

3. Pessoas que cuidam da criação 60 Subjugue e governe; sirva e cuide - Gênesis 1-2 62

Reis da criação - Gênesis 1.26-28 62 Servos da criação - Gênesis 2.15 64

Por Deus, por nós, para sempre 66 A glória de Deus é o alvo da criação 66 A vida humana e a criação estão integralmente conectadas 67 A redenção de Deus inclui a criação 69

Por meio de Cristo, para Cristo 71 Todas as coisas foram reconciliadas pela cruz 72 Boas-novas para toda a criação 73

Resumo 75 Questões relevantes 75

4. Pessoas que são uma bênção para as nações 76 A obediência da fé entre todas as nações 76 Abraão no contexto desolador de Gênesis 1-11 78 Abraão e a surpresa de Deus - uma bênção para as nações 79

A bênção e a bondade da criação 80 A bênção e a esperança dentro da história 82 Bênção, salvação e obediência 82

Abraão - A missão de Deus e a nossa 85 A missão universal de Deus - todas as nações 85 O meio específico de Deus - uma nação 86 Eleição para a missão 86 Igreja missionai 87

Ecos de Abraão na teologia bíblica 89 As nações atraídas para o culto e para a salvação de Israel 89 Abraão nos evangelhos 90 Abraão no evangelho de Paulo 91 Missão cumprida no Apocalipse 92

Abraão, um modelo para a nossa missão 93 Deixando e indo 93 Crendo e obedecendo 94

Resumo 96 Questões relevantes 97

5. Pessoas que andam no caminho de Deus 98 Um lembrete de Deus a si mesmo 98 Sodoma: um modelo do nosso 100

A desobediência das nações 100 A obediência entre as nações 102

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14 4' A missão do povo de Deus

Abraão: um modelo da missão de Deus 103 Julgamento imediato: a bênção final 103 Uma promessa para o mundo 103

O caminho do Senhor: um modelo para o povo de Deus 105 Uma educação ética 105 A lógica missional 109

Resumo 111 Questões relevantes 113

6. Pessoas que são redimidas para um estilo de vida redentor 114 Experimentando a redenção de Deus 115

O redentor - o campeão que faz o que é preciso 116 O êxodo - libertação de tudo o que escraviza 118 O êxodo - um modelo holístico 120 A cruz - a vitória de Deus sobre tudo quanto

antagoniza e oprime 122 Respondendo à redenção de Deus 124

Chamados para se regozijar 124 Chamados para imitar 125

Vivendo um estilo de vida redentor na missão 129 Mantendo a cruz no centro 130 A igreja: uma comunidade do êxodo e do jubileu 133

Resumo 133 Questões relevantes 135

7. Pessoas que representam Deus no mundo 136 Lembrando a história 136

A história que oferece uma razão para se viver 136 A história até aqui 138

A graça no passado: a salvação de Deus - Êxodo 19.4 139 A graça no futuro: a missão de Deus - Êxodo 19.5b. 141

Um povo especial, mas não o único 141 Um empreendimento inacabado 142

A graça no presente: o povo de Deus no mundo de Deus - Êxodo 19.6 143

Sacerdotal 144 Santo 147 Obediência pactuai 151

Resumo 151 Questões relevantes 152

8. Pessoas que atraem outros para Deus 153

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Sumário detalhado I, 15

Atraindo a curiosidade - Deuteronômio 4.5-8 155 Disponível para ser visto 155 Disponível para comparações 156 Disponível para desafios 158

Atraindo os que buscam - 1Reis 8.41-43; 60, 61 158 O Deus que cumpre suas promessas (vv. 14-21) 159 O estrangeiro que busca a bênção de Deus (vv. 41-43) 160 O povo que guarda os mandamentos de Deus (vv. 60, 61) 163

Atraindo a admiração - Jeremias 13.1-11 163 Atraindo a adoração - Isaías 60 167

Deus está vindo para o seu povo (vv. 1-2) 167 O mundo está vindo para Deus (vv. 3-16) 169 A paz está vindo ao mundo (vv. 17-22) 170

Atraindo a aprovação 171 Resumo 174 Questões relevantes 175

8B. Interlúdio: pausa para reflexão 176

9. Pessoas que conhecem o único Deus vivo e salvador 179 Contextos desafiadores 181

Atos - vimos um homem ressurreto 183 Deuteronômio - vocês têm visto Deus em ação 184

Reivindicações intransigentes 186 Deuteronômio - nenhum outro Deus 186 Atos - nenhum outro Salvador 188

Absoluta lealdade 190 Atos - não podemos deixar de falar 191 Deuteronômio - "Amarás o Senhor teu Deus" 193

Resumo 193 Questões relevantes 193

10. Pessoas que dão testemunho do Deus vivo 194 Um duplo problema para Deus 196

A ignorância das nações 197 A cegueira de Israel 198

Um duplo papel para Israel 198 Minhas testemunhas 199 Meu servo 200

O duplo propósito de dar testemunho 201 Restaurando a confiança em Deus 201 Estabelecendo a verdade sobre Deus 202

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16 • A missão do povo de Deus

O duplo papel das testemunhas no Novo Testamento 205 As primeiras testemunhas oculares do Jesus histórico 206 O testemunho contínuo do evangelho de Cristo 208

Resumo 211 Questões relevantes 212

11. Pessoas que proclamam o evangelho de Cristo 213 Boas-novas para os exilados 214

Deus reina (Is 52.7) 216 Deus retorna (Is 52.8) 218 Deus redime (Is 52.9, 10) 219

Boas-novas em Jesus 222 Jesus era e é Deus reinando 222 Jesus era e é Deus retornando 223 Jesus era e é Deus redimindo 225

Boas-novas para Paulo 227 O evangelho é a história de Jesus à luz das Escrituras 227 O evangelho é uma nova humanidade redimida,

uma única familia de Deus 228 O evangelho é uma mensagem a ser transmitida

ao mundo todo 230 O evangelho é transformação ética 231 O evangelho é a verdade a ser defendida 235 O evangelho é o poder de Deus transformando o universo 236

Resumo 237 Questões relevantes 239

12. Pessoas que enviam e são enviadas 240 O envio no Antigo Testamento 242

Enviado para salvar 242 Enviado para falar 245 O Espírito e a Palavra 248

O Deus que envia 250 O Pai como aquele que envia o Filho e o Espirito 250 O Filho como aquele que envia o Espírito e os apóstolos 251 O Espírito Santo como aquele que envia Jesus e os apóstolos 251

Os apóstolos 252 Os Doze 252 Apóstolos: os outros 257

Marcas da missão: igrejas que enviam e sustentam 259 3João — A dupla fidelidade 259 Enviando (3Jo 6) 261

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Sumário detalhado • 17

Indo (3Jo 7) 262 Sustentando (3Jo 8) 262

Resumo 263 Questões relevantes 264

13. Pessoas que vivem e trabalham na esfera pública 265 Deus e a esfera pública 266

Deus criou a esfera pública 266 Deus faz auditoria na esfera pública 268 Deus governa a esfera pública 269 Deus redime a esfera pública 271

Engajamento missional na esfera pública 274 Posicionados para servir ao Estado 275 Ordenados a orar pelo governo 276 Ordenados a procurar o bem da cidade 278 Ordenados a ganhar a vida pelo trabalho regular 281

Confronto missional na esfera pública 282 Somos chamados para ser diferentes 283 Somos chamados para resistir à idolatria 284 Somos chamados para sofrer 287

Conclusão - uma mensagem pessoal aos cristãos na esfera pública 290 Questões relevantes 292

14. Pessoas que louvam e oram 293 A adoração como o alvo de missões 293 Louvor missional 297

Criados para louvar 297 Remidos para louvar 298 O testemunho por meio do louvor 303

Oração missional 305 A oração: uma marca distintiva entre as nações 305 A oração feita para que as nações sejam abençoadas 306 A oração feita como subversão à idolatria das nações 308 A oração e o trabalho missionário 309 A oração feita como guerra espiritual 312

Resumo 315 Questões relevantes 316

REFLETINDO SOBRE A RELEVÂNCIA

15. A jornada até aqui e daqui em diante 319

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18 • A missão do povo de Deus

Nossa jornada através da Bíblia 319 O mundo 321

Servindo à criação 321 Servindo à sociedade 325

O evangelho 328 Recuperando a totalidade do evangelho 328 Recuperando nossa humildade como servos do evangelho 334 Recuperando nossa confiança no evangelho 337

A igreja 339 Arrependa-se e volte 339 Vá e faça discípulos 341 Até aos confins da terra 343 Para a glória de Deus 345

Índice de assuntos 347

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PREFÁCIO

A, pergunta "O que a Bíblia diz sobre isto?" é, em essência, o assunto da obra A missão do povo de Deus. Com muita frequência, os livros sobre teologia bíblica têm-se concentrado principalmente nas descrições, dis-

cernindo simplesmente o ensino da literatura bíblica sobre um tópico específi-co; entretanto, o autor desta obra busca explorar tanto o lado do mundo textual quanto o do mundo em que vivemos. Sempre o faz com a pergunta "E daí?" Ela troveja ao redor e exige ser respondida, de modo que seja teologia bíblica para a vida. Isso significa que as descrições da teologia bíblica feitas por ele serão sempre o primeiro passo importante em sua tarefa, a qual não será completa enquanto não extrair dessa teologia implicações práticas para o contexto con-temporâneo. Portanto, ele se empenha em fazer tanto a descrição da teologia bíblica quanto sua contextualização contemporânea, aproximando-se da pers-pectiva do leitor e favorecendo a aplicação, a transformação e o crescimento.

Esperamos que esse discernimento instrutivo da erudição evangélica bíblica se torne encarnado nos sermões e discussões que ocorrem a cada semana nos lugares de adoração, nas salas onde há reuniões de estudos bíblicos e nas salas de aula ao redor do mundo e leve a uma transformação pessoal e a uma aplica-ção prática na vida real das pessoas.

Esta obra possui uma estrutura básica. Na primeira seção, intitulada "Iden-tificando as perguntas"; Christopher Wright introduz as principais perguntas de que trata em seu livro. O levantamento delas permite ver claramente, desde o início, o que a obra traz, convidando você a participar do processo de des-coberta ao longo do caminho. Na segunda seção, "Encontrando as respostas", ele desenvolve a teologia bíblica concentrando a atenção em textos bíblicos específicos, construindo as respostas para as perguntas apresentadas na pri-meira seção. Na seção de conclusão, "Refletindo sobre a relevância", o autor contextualiza suas percepções biblico-teológicas, discutindo formas específi-cas em que a teologia apresentada em seu livro se aplica a situações e assuntos contemporâneos, dando a você oportunidades para compreender como viven-ciá-las no mundo de hoje.

Antes de passar para a seção "Refletindo sobre a relevância", encorajamos você a analisar profundamente as implicações da teologia bíblica que está sendo descrita e considerar as "questões relevantes" que concluem cada capítulo. As frequentes caixas de textos podem tornar sua experiência mais agradável, com-plementando a discussão principal com citações significativas, histórias ilustra-tivas ou dados contemporâneos e explicações mais completas do conteúdo.

Resumindo, diríamos que o alvo desta A missão do povo de Deus é atingido pelo seu próprio título. Por um lado, explora a Bíblia em busca de uma teologia

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20 • A missão do povo de Deus

que trate de um amplo conjunto de tópicos, de modo que você possa conhecer "o único Deus verdadeiro e a Jesus Cristo", o qual Deus enviou (Jo 17.3). Por outro lado, contextualiza sua teologia, de modo que permite a Palavra viva que nos foi dada (Jo 1.4; 20.31) falar e transformar a vida contemporânea.

Jonathan Lund Editor

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PREFÁCIO DO AUTOR

E ntão, esta é a versão simplificada do livro The mission of God (A missão de Deus)?" Este é o comentário que tenho ouvido com frequência ao trabalhar com este livro, o qual tem sido preciso corrigir. Faço-o

novamente aqui. É verdade que, alguns anos atrás, publiquei The mission of God: Unlocking the Bible's grand narrative (A missão de Deus: Desvendando a grande narrativa bíblica)) É verdade, também, que ele é com certeza um livro extenso; no entanto, a diferença entre ele e este livro vai muito além do seu tamanho relativo.

No livro lhe mission of God, eu estava argumentando em prol de uma her- menêutica missional da Bíblia toda. Minha preocupação era perguntar se era possível e justo os cristãos lerem a Bíblia toda, sob a perspectiva da missão de Deus, e saber o que acontece quando eles fazem isso. O argumento daquele livro era afirmar que todas as extensas seções do cânon das Escrituras, todos os grandes episódios da história bíblica e todas as grandes doutrinas da fé cristã estão interligados ao personagem central da Bíblia: o Deus vivo, com seu grandioso plano e propósito para toda a criação. A missão de Deus é o que unifica a Bíblia, desde a criação até o advento da nova criação. Aquele livro lança o fundamento para este.

Neste livro, estou fazendo a pergunta "E daí?" em favor de todos nós, a quem o Deus da Bíblia chamou para um relacionamento de salvação e de aliança com ele mesmo - a igreja, o povo de Deus desde Abraão até os habitantes da cidade celestial em Apocalipse. Quem somos e para que estamos aqui? Se a Bíblia con-fere a nós a grande missão de Deus através das gerações da História, que ela nos diz acerca da missão do povo de Deus em cada geração, inclusive a nossa? Qual é a nossa missão?

Esse foco específico na missão da igreja não significa que investigaremos cada doutrina bíblica que possa ser relevante para missões de modo geral, porque há muitas delas. Por exemplo, a natureza da encarnação, a doutrina da expiação, a grande verdade da ressurreição, a doutrina do julgamento, a dou-trina da providência soberana de Deus, a da Trindade - tudo isso tem vastas implicações numa teologia de missões mais ampla. Não tento tratar de todas elas, com exceção daquelas que surgem naturalmente durante as discussões dos textos que examinaremos em nosso exercício em teologia bíblica.

Nesta obra, nossa preocupação primordial é simplesmente fazer a pergunta: "Que tem a Bíblia toda a nos dizer, nos dois testamentos, a respeito da razão

1. Christopher J. H. Wright, lhe mission of God: Unlocking the bible's grand narrative (Downers Grove, IL: IVP e Nottingham IVP, 2007).

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22 a A missão do povo de Deus

de existir o povo de Deus e a respeito do que se espera que ele seja e faça neste mundo?" Qual é a missão do povo de Deus?

Dessa forma, exploraremos a Bíblia, como é de se esperar num livro de teologia bíblica. Por uma questão de espaço, não é possível imprimir todas as passagens das Escrituras referentes aos capítulos que se seguem, embora sejam impressos os versos-chave que serão sujeitos a um estudo mais extensivo; entretanto, este é o tipo de livro que, de fato, você deve ler com uma Bíblia aberta em mãos. Eu recomendaria que você parasse regularmente para conferir e ler as referências. Se preferir, você pode imitar os bereanos, que, mesmo tendo o apóstolo Paulo a ensiná-los, examinavam "[...] diariamente as Escrituras para ver se as coisas eram de fato assim" (At 17.11).

Uma pequena nota sobre o nome de Deus: tenho seguido a tradução tradi-cional "o Senhor" ou "o SENHOR" para o nome de Deus no Antigo Testamento, mas, quando parece importante assinalar que este Deus tinha um nome pessoal revelado, que o distingue de todos os outros chamados deuses como o Deus vivo, tenho usado as quatro letras hebraicas YHWH. Ninguém parece ter cer-teza do modo de pronunciar este nome, embora a pronúncia Yahweh tenha se tornado comum.

Sou grato a Jonathan Lung (editor) e a Katya Covrett (editora chefe da Zon-dervan) por me convidarem para contribuir para esta nova e empolgante obra.

É particularmente gratificante para mim saber que fui colocado ao lado de Jonathan nos primeiros dois volumes desta série,' pois, talvez, não poderia ha-ver melhor combinação para o meu livro sobre a missão do povo de Deus do que o livro dele sobre a teologia bíblica do discipulado. Afinal, somos discípulos e o somos para fazer mais discípulos, conforme disse Jesus.

Sou grato a InterVarsity Press por ter publicado meu livro The mission of God e por ter concedido a permissão para citar porções significativas desse livro.

Ao ler o que está a seguir, pode-se tornar evidente que muitos textos que vamos analisar são aqueles sobre os quais já preguei. Assim sendo, aquela at-mosfera do sermão geralmente sobrevive na exposição e na aplicação do texto. Não tentei ocultar isso. Afinal, esperamos que esta série seja útil para pastores e pregadores, e certamente esta é uma das paixões do meu ministério: pregar sobre missões com a maior frequência possível — principalmente a partir do Antigo Testamento.

Isso também explica a dedicatória. Nossa filha mais nova, Suzannah, prova-velmente tem ouvido mais sermões meus sobre missões do que qualquer outra pessoa, pois me acompanha com minha esposa Liz em muitas ocasiões, em igrejas de todas as formas e tamanhos, para os "finais de semana missionários". Ela já ouviu alguns desses sermões com tanta frequência que chegava a imitá-los

2. Esta obra faz parte de uma série em inglês que trata de vários temas da teologia bíblica.

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Prefácio do autor • 23

sem compaixão mais tarde. Creio que este livro fará muito mais do que recor-dá-la daquelas imitações nostálgicas, mas também nutrirá seu compromisso missional com Cristo, o qual, agora ela compartilha com Edmund, seu marido. Este livro, concluído em apenas algumas semanas, tarde demais para servir de presente de casamento, é dedicado a eles com amor e oração.

Christopher J. H. Wright Outubro de 2009

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INTRODUÇÃO

pense numa doutrina — qualquer doutrina do período de 200 a 2000 d.C. Multiplique-a pelas confissões históricas. Divida pelas variações denomi-nacionais. Acrescente uma suspeita de heresia. Subtraia a doutrina em que

pensou primeiramente. Que sobrou? Provavelmente, a soma aproximada do que teologia e missões têm em comum na mente do cristão mediano — não muito.

Afinal, teologia está na cabeça — reflexões, argumentos, ensinos, credos e confissões de fé. Pensamos numa biblioteca teológica onde as ideias são estoca-das. Missão ou missões é fazer — resultados práticos, dinâmicos e executáveis. Pensamos no campo missionário como um lugar aonde as pessoas vão e fazem coisas emocionantes. Teologia e missões parecem não ter muita coisa em co-mum; também é fácil termos a impressão de que aqueles que parecem ser mais interessados numa coisa têm menos interesse na outra.

Sou filho de missionários e estudei teologia em Cambridge. Mesmo em meu zelo cristão juvenil, os dois assuntos me pareciam não ter muita conexão entre si. Eles certamente não tinham conexão alguma nos estudos teológicos em Cambridge; pelo que lembro, "missiologia" era uma palavra que não existia naquele tempo. A maioria de meus amigos cristãos interessados em sustentar o trabalho missionário e em orar por ele não se interessava por teologia; seu inte-resse não ia além dos estudos bíblicos semanais. E o departamento de teologia certamente não estava interessado em missões.

Parece que tudo na teologia discorre a respeito de Deus. Ela faz uma busca minuciosa sobre o que as pessoas (a maioria já morta) pensaram e escreveram acerca de Deus, do caráter de Deus e de suas ações, do relacionamento de Deus com o mundo e com a sociedade humana, do envolvimento de Deus no passa-do, presente e futuro e assim por diante. Missões, num contraste feliz, tem tudo a ver conosco, os vivos, com o que cremos (pelo menos alguns de nós) e com o que se espera que façamos no mundo para ajudar a Deus um pouquinho. Mis-sões parecem ser algo sobre como ajudar Deus a vencer as barreiras de culturas estranhas e lugares remotos, as quais ele parece ter dificuldades de cruzar.

Assim, numa desconfiança mútua, os teólogos não se agradam em ver suas teorias ser enlameadas, lançadas por terra pelos fatos, nem ver suas perguntas desafiadoras ser vomitadas pela desorganização das missões práticas. E os prati-cantes das missões, num contragolpe rápido, não querem ver seu compromisso urgente de dar prosseguimento ao trabalho de Cristo, o qual ele nos confiou, atrasado pela introspecção indulgente a respeito de palavras obscuras e longas terminadas em -logia.

O resultado desastroso de tudo isso é que a teologia prossegue sem estímulos nem resultados missionais, enquanto as missões prosseguem sem orientação ou avaliação teológica.

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Minha esperança é que este livro pelo menos ajude a responder à pergunta geral: "Como teologia e missões se relacionam entre si?". Estamos pensando principalmente no ramo da teologia conhecida como "teologia bíblica" - na tentativa de abraçar os temas abrangentes e unificadores da teologia, espa-lhados por toda a Bíblia, mesmo explicados de formas diferentes na grande variedade do cânon.

Bem, não sei qual das frases na capa deste livro levou o leitor a comprá-lo (ou, pelo menos, a lê-lo): A missão do povo de Deus ou Uma teologia bíblica da missão da igreja. Em outros termos: não sei se você está primeiramente em-polgado com missões, talvez, pensando na relação que isso tem com teologia (se é que tem) ou se você está interessado primeiramente em teologia bíblica, talvez, levemente intrigado com o pensamento de que missões poderiam fazer parte desse âmbito: missões não são o que vem depois após a Bíblia? Missões não fazem parte do pacote prático da teologia, juntamente com homilética, pastoreio, evangelismo e outros? De qualquer forma, espero que o resultado principal da leitura deste livro seja que você consiga respostas satisfatórias a essas perguntas e compreenda que teologia bíblica e missões estão integral-mente relacionadas entre si.

Não deveria haver teologias que não se relacionassem com a missão da igreja, que não fossem geradas por causa da missão da igreja ou inspiradas e moldadas por ela. E não deveria haver missões na igreja sendo levadas adiante, sem que haja profundas raízes teológicas firmadas no solo da Bíblia.

Que não haja teologias que não causem impacto missionário; que não haja missões que não tenham fundamentos teológicos.

Essa é a visão que inspira este modesto ensaio.

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PARTE 1

IDENTIFICANDO AS PERGUNTAS

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CAPÍTULO 1

QUEM SOMOS E PARA QUE ESTAMOS AQUI?

MISSÃO OU MISSÕES? O título do livro, A missão do povo de Deus, imediatamente envia uma pergunta para o topo da lista. É uma questão de definição: o que vem à nossa mente quan-do vemos ou ouvimos a palavra "missão"? Talvez estejamos mais habituados com ela sob a forma "missões", o que geralmente traz à mente toda a obra missionária transcultural das igrejas que conhecemos. Pensamos em associações missioná-rias, em missões de evangelização e plantação de igrejas, nos missionários com carreiras de longo prazo ou em missões de curto prazo e nas redes mundiais de agências e indivíduos, como o Movimento de Lausanne.

O envio de Deus Todas essas imagens têm em comum a noção de enviar e ser enviado. Este senti-do, é claro, está na raiz da própria palavra latina missione e é muito apropriado, além de ser muito bíblico. Não há dúvida de que a Bíblia mostra Deus enviando muitas pessoas "para uma missão de Deus". O movimento missionário no livro de Atos começa com uma igreja respondendo a esse impulso divino, pelo envio de Paulo e Barnabé para sua primeira viagem missionária.

Entretanto, reconhecer que a missão tem em seu âmago um senso de enviar e de ser enviado apenas levanta outra questão: enviados para quê? A Bíblia nos diz que Deus, de fato, enviou muitas pessoas. Mas a variedade de coisas para as quais as pessoas foram enviadas é surpreendentemente ampla. A linguagem do "enviar" é usada em todas as histórias a seguir. José foi enviado (no início, de modo involuntário) para estar numa posição de salvar vidas durante uma grande fome (Gn 45.7); Moisés foi enviado (involuntariamente) para libertar o povo da opressão e exploração (Èx 3.10); Elias foi enviado para influenciar o curso da política internacional (1Rs 19.15-18); Jeremias foi enviado para proclamar a Palavra de Deus (por exemplo, Jr 1.7). Jesus reivindicou para si as palavras de Isaías, que foi enviado para evangelizar os pobres: "[...] enviou-me para proclamar libertação aos presos e restauração da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos" (Lc 4.16-19; cf. Is 61.1).

Os discípulos foram enviados para pregar e demonstrar o poder libertador e curador do reino de Deus (Mt 10.5-8). Na função de apóstolos, eles foram

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enviados para fazer discípulos, batizar e ensinar (Mt 28.18-20). Jesus enviou-os ao mundo da mesma forma que o Pai o enviara, o que levanta muitas perguntas e desafios interessantes (Jo 17.18; 20.21). Paulo e Barnabé foram enviados para aliviar a fome dos irmãos que habitavam na Judeia (At 11.27-30); mais tarde, foram enviados para evangelizar e plantar igrejas (At 13.1-3); Tito foi enviado para garantir uma administração financeira de confiança e transparência (2Co 8.16-24); tempos depois, ele foi enviado como alguém qualificado para a admi-nistração de uma igreja (Tt 1.5); Apolo foi enviado como um habilidoso profes-sor de Bíblia para alimentar a igreja (At 18.27, 28). Muitos irmãos e irmãs, cujos nomes não foram mencionados, foram enviados como professores itinerantes, por amor à verdade do evangelho (3Jo 5-8).

Portanto, mesmo que concordemos em que o conceito de enviar e o de ser enviado estejam no cerne da missão, existe uma vasta gama de atividades san-cionadas pela Bíblia, às quais o povo pode ser enviado por Deus para fazer, inclusive o alívio da fome, ações de justiça, pregação, evangelismo, ensino, cura e administração; no entanto, quando usamos as palavras missões e missionários, temos a tendência de pensar principalmente em termos de atividade evangelís-tica. O que nossa teologia bíblica tem a dizer sobre isso? Pensaremos mais sobre isso no capítulo 12.

O propósito de Deus Outro uso comum da palavra missão tem o sentido de propósito ou orientação para o alvo. Mesmo no mundo secular, as organizações têm uma "missão cor-porativa" que pode muito bem ser resumida numa expressiva "declaração da missão". Portanto, fazer a pergunta: "Qual é a missão do povo de Deus?" é, na verdade, perguntar: "Qual é o propósito da existência daqueles que se chamam filhos de Deus? Para que estamos na terra"?

"Não é tanto a questão de Deus ter uma missão para sua igreja no mundo, mas sim o de ter uma igreja para sua

missão no mundo. A missão não foi feita para a igreja, mas

a igreja foi feita para a missão — a missão de Deus")

Chris Wright

1. Wright, lhe mission of God, p. 62.

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Para responder a essa pergunta, temos que dar um passo atrás e perguntar: "De quem é essa missão afinal?" É claro que a resposta para isso deve ser: "É a missão de Deus" O próprio Deus tem uma missão. Deus tem um propósito e um alvo para toda a sua criação. Paulo chamou isso de "todo o propósito de Deus" (At 20.27; cf. Ef 1.9, 10). Como parte dessa missão divina, Deus chamou à existência um povo para participar com ele na realização dessa missão. Toda a nossa missão procede da prévia missão de Deus. E esta, como veremos, é bem ampla, na verdade. "A missão surge do coração do próprio Deus e é transmitida de seu coração para o nosso. A missão é o alcance global de um povo global que pertence ao Deus global."'

Singular e plural Essa definição abrangente nos permite incluir muitas missões diferentes na ca-tegoria de missão. Talvez o modo mais fácil de explicar a diferença que percebo entre falar sobre missão (no singular) e falar sobre missões (no plural) é usar analogias de outras atividades humanas. Podemos falar de ciência (no singular) e teremos um conceito genérico em mente. Ela diz respeito ao desafio da des-coberta, à experimentação e à explicação. Trata de um método, de um etos, de um sistema de valores, de paradigmas que regem a busca do conhecimento, de certo tipo de fé e de um tipo firme de compromisso. A ciência é uma dimensão da vida humana e da civilização.

Mas há também as ciências. Quando usamos a palavra no plural, estamos falando de um vasto conjunto de atividades que têm objetivos científicos, mé-todos, critérios e controles. Há ciências físicas, que se subdividem em muitas áreas na exploração do mundo natural e do nosso universo; há ciências sociais, ciências da vida, ciências econômicas, ciências estatísticas e assim por diante. Mas não vamos nos desviar para a ficção científica.

Minha questão é que ciência é uma palavra genérica para todo um conjunto de esforços humanos que podem ser caracterizados como ciências. Há um sem-número de atividades que podem ser justamente caracterizadas como ciência. De tempos em tempos, os cientistas questionam se esta ou aquela atividade são, afinal, ciências verdadeiras; no entanto (como Paulo faz ao descrever as partes do corpo), uma ciência legítima não pode dizer a outra: "Como você não é física, você não é uma ciência verdadeira': Nem tampouco pode uma ciência verdadeira dizer sobre si mesma: "Como não sou física, não pertenço ao mundo da ciência". Existe um conceito universal, amplamente compreendido, e uma multiplicidade de incorporações desse conceito na vida prática.

2. John Stott, The contemporary Christian: Un urgent plea for double listening, (Leicester: IVP, 1992), p. 335 [Ouça o Espírito, ouça o mundo: Como ser um cristão contemporâneo, São Paulo: ABU, 1997.]

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32 # A missão do povo de Deus

Pode-se construir a mesma analogia em relação à arte e às artes ou ao esporte e aos esportes. Há todo tipo de atividade artística e esportiva, mas sabemos o que queremos dizer quando usamos um conceito genérico, como arte ou esporte, para incluir essa variedade e multiplicidade.

Logo, quando falo de missão, estou pensando em tudo o que Deus está fazen-do em seu grande propósito para toda a criação e em tudo o que ele nos chama a fazermos para cooperar com esse propósito. A palavra "missão", assim como "ciência", possui uma amplitude conceitual genérica e a palavra "missionai" pode ser tão ampla em significado quanto o termo "ciência". E eu sugeriria que a palavra "missionário" tenha o mesmo tipo de amplitude de possibilidades que a palavra "cientista". Assim como esta, ela é uma palavra que devemos preencher com um significado específico, em vez de presumir ou imaginar o que tal pessoa realmente faça.

Mas, quando me refiro a missões, estou pensando nas inúmeras atividades em que o povo de Deus pode se engajar, participando da missão de Deus. Ao que me parece, há inúmeros tipos de missão, assim como há vários tipos de ciência — na verdade, é provável que haja muito mais tipos de missão. Semelhantemen-te, na variedade de missões que Deus confiou à sua igreja, como um todo, não é conveniente que um tipo de missão menospreze outra, por um complexo de superioridade, ou desvalorize a si mesma como uma missão não verdadeira, por complexo de inferioridade. A imagem do corpo tem uma repercussão poderosa nesse caso também.

É por isso que também não gosto daquela velha linha de nocaute que tentou limitar à cerca do ringue a palavra "missão", significando especificamente o envio transcultural de missionários para evangelismo: "Se tudo é missão, logo, nada é missão". Seria mais bíblico dizer: "Se tudo é missão, logo, tudo é missão". É claro que nem tudo é missão evangelística transcultural, mas tudo o que um cristão ou uma igreja cristã é, diz e faz deve ser missionário, numa participação consciente na missão de Deus, no mundo de Deus.

Talvez você tenha ouvido falar desta definição de missão: A evangelização mundial exige que a igreja toda leve o evangelho todo ao mundo todo. Isso vem do Pacto de Lausanne,' é um slogan belo e retumbante, que, na verdade, tem raízes bem remotas,' mas cada uma dessas três frases nos leva a um conjunto de perguntas. Isso fornece uma estrutura conveniente para definirmos algumas das questões de que nossa teologia bíblica tratará — embora não necessariamente nessa ordem específica.

3. O Pacto de Lausanne foi o resultado do primeiro congresso, em Lausanne, sobre a evangelização do mun-do, convocado por Billy Graham, em 1974. O pacto foi escrito por um grupo liderado por John Stott. Pode ser lido na íntegra em http://www.lausanne.org/covenant. A frase citada acima foi extraída do parágrafo 6. 4. Ele foi usado pelo Conselho Mundial de Igrejas, no relatório de Nova Delhi, em 1961, e, antes disso, no relatório da Conferência de Lambeth, em 1958.

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O MUNDO INTEIRO

O mundo inteiro como o alvo da missão de Deus "Onde é que este mundo vai parar?" é o que perguntamos, às vezes, quando as coisas parecem simplesmente estar além da nossa compreensão ou do nosso controle, mas também é uma boa pergunta a se fazer quando estamos pensando sobre a missão do povo de Deus, porque ela nos aponta um futuro que, no final das contas, está nas mãos de Deus. Conforme dissemos acima, nossa missão procede da missão de Deus. Esta é para o bem de todo o seu mundo — na verda-de, de toda a sua criação.

Portanto, temos de começar enxergando a nós mesmos como parte do gran-dioso curso da missão de Deus e devemos ter a certeza de que nossos alvos missionais — imediatos e distantes — sejam consonantes com os alvos de Deus. Para esse fim, precisamos conhecer a história de que fazemos parte: a grandiosa história da Bíblia, que engloba tanto o passado quanto o futuro.

Mas quantas igrejas apaixonadas por missão ou quantas agências missioná-rias que seguem suas agendas com urgência e zelo fazem uma pausa para pensar nessa história grandiosa — até onde ela chegou, que forma ela tem a partir de toda a Bíblia (não apenas em alguns versículos missionários) e para onde ela está caminhando? Ainda que nossos esforços missionários tenham perdido o con-tato com essa história ou estejamos saindo pela tangente, temos de perguntar: "Fazemos parte da missão de quem? Estamos seguindo a agenda de quem?"

Portanto, nossa primeira tarefa na Parte 2 será a de ganhar algumas orienta-ções necessárias, dando atenção à história que integramos, se nos consideramos como o povo de Deus, na missão de Deus. Esse será o nosso foco no capítulo 2.

O mundo inteiro e o âmbito da nossa missão A missão de Deus inclui toda a criação, como descobrimos na Bíblia. Mas para onde essa verdade nos leva, em termos da nossa missão na terra? Principalmente, quais são as implicações para o modo com que tratamos a parte da criação que nos foi confiada — o planeta Terra? É geralmente aceito entre os cristãos, de modo cada vez mais amplo, que devemos ser bons administradores dos recursos da terra. Entretanto, temos nós uma responsabilidade missional que vá além daquele estilo de vida moderadamente responsável? Todos nós estamos cientes dos desafios ecológicos que a raça humana enfrenta. Com razão, podemos nos sentir confusos em meio à desordem dos fatos alegados e das projeções assustadoras, sem saber quanto disso é uma realidade objetiva e quanto é resultado do frenesi da mídia ou de manipulação política. Ninguém pode seriamente duvidar de que enfrentamos enormes problemas globais, mas podemos divergir muito sobre qual seria a me-lhor forma de avançar a partir do ponto a que parecemos haver chegado.

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34 e A missão do povo de Deus

Mas isso é uma questão que deveria estar na agenda da missão cristã? Como a nossa teologia bíblica nos ajuda a lidar com essa questão? No mínimo, pode-ríamos dizer que, se o objetivo da missão de Deus é a nova criação antecipada a partir do clímax da história da Bíblia, então, deve haver algum lugar para a nossa resposta em relação ao que a criação é agora, no meio da história des-sa missão. No entanto, tradicionalmente, o conceito de missão nos círculos cristãos tem sido restringido às necessidades dos seres humanos. Essa é uma preocupação ecológica e missionária, biblicamente legítima ou é, simplesmen-te, uma obsessão contemporânea guiada pela agenda do mundo? Pensaremos nessa pergunta no capítulo 3.

O mundo inteiro como a arena da nossa missão Onde começa e onde termina o trabalho "missionário"? Caímos facilmente no tipo de pensamento categorizado, dividindo o mundo em diferentes zonas. A própria palavra "missão" geralmente anda junto com a noção de "campo missio-nário', que normalmente significa países estrangeiros, mas não aqui em nossa pátria. Essa tem sido uma maneira ocidental de olhar o mundo, mas que também é encontrada em outras partes do mundo, nas quais existem agora fortes igrejas que enviam missionários. Mas, à medida que começamos a pensar seriamente sobre isso, vemos a realidade: o campo missionário está em toda parte, inclusive em nossa própria rua — em qualquer lugar onde se vê ignorância ou rejeição do evangelho de Jesus Cristo.

Outra dicotomia falsa igualmente nociva está nas chamadas esferas sagradas e seculares: "missão" encontra-se firmemente estabelecida na primeira delas. Desse modo, missão é algo que alguns cristãos especialmente comissionados fazem em tempo integral, se puderem ter "sustento" suficiente para isso, ou algo que os outros cristãos (a grande maioria) fazem em momentos ocasionais que eles têm para se distrair da necessidade de ter que trabalhar para ganhar a vida. Talvez eles possam encaixar uma "viagem missionária" em seu período de férias ou ir a uma "missão da igreja" no final de semana.

CCA igre ja ceve ser vista como uma associação de pere-

grinos caminhando para o fim do mundo e para os confins

da terra.”

Lesslie Newbigin

5. Lesslie Newbigin, The household of God: Lectures on the fature of the church (London, SCM, 1953), xi.

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E o restante da vida? E o restante do "mundo" - o mundo do trabalho, a are-na pública, o mundo dos negócios, da educação, da política, da medicina, dos esportes e assim por diante? Em que sentido esse mundo é a arena da missão do povo de Deus e em que consiste essa missão? Consiste apenas em momentos de oportunidades evangelísticas no mundo ou o nosso próprio trabalho pode participar da missão de Deus?

Para instigar ainda mais essa questão: o povo de Deus tem alguma res-ponsabilidade em relação ao restante da sociedade humana, além da ordem para a evangelização? Que conteúdo devemos aplicar às frases bíblicas: "ser uma bênção para as nações" ou "buscar o bem-estar da cidade", ou "ser o sal da terra" ou "a luz do mundo", ou "fazer o bem" (uma das expressões mais comuns utilizadas por Paulo e Pedro)? Esses conceitos fazem parte de nossa teologia bíblica de missão?

Talvez isso soe como o debate familiar, respeitável, acerca da relação entre evangelismo e ação social, mas espero que nosso estudo sobre teologia bíblica, nos capítulos seguintes, nos leve além das tradicionais polarizações e prioriza-ções que, na minha opinião, tanto distorcem e separam aquilo que Deus tinha a intenção de deixar unido.

Assim, até uma expressão simples, como "o mundo inteiro", levanta todos os tipos de questionamento para nós. Essa é uma questão geográfica (toda a terra), mas também é uma questão ecológica, econômica, social e política. Além disso, precisamos nos lembrar de que a Bíblia discorre sobre o fim do mundo - embora isto não seja exatamente um fim, mas sim um novo começo. Portanto, "o mundo inteiro" inclui tanto o tempo quanto o espaço. A igreja precisa se relacionar com ambos. Somos enviados para os confins da terra e continuaremos a fazer isso até o fim do mundo.

TODA A IGREJA

Quem é o povo de Deus? A missão do povo de Deus anuncia o título de nossa capa. Eu não poderia ter utilizado somente o subtítulo do livro "A missão da igreja"? Sim, talvez, mas apenas se tivéssemos obtido nossa teologia bíblica diretamente da igreja, o que seria provavelmente uma suposição bem otimista. Para muitos cristãos, a pala-vra "igreja" apenas leva-os de volta para o seu suposto nascimento no livro de Atos, no dia de Pentecostes. Será que essa é uma percepção válida? Quando e onde o povo de Deus veio à existência e por que razão? Como a existência e a missão desse povo se relacionam com a missão de Deus neste mundo e para o mundo? Quando essa missão começou e quando acabará?

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36 A missão do povo de Deus

Ponhamos a questão de outra maneira: Como a missão da igreja no Novo Testamento se relaciona com a identidade e com a história de Israel no Antigo Testamento? Será que Israel tinha uma "missão"? Se a tinha, que missão era essa? Afinal, o Antigo Testamento possui alguma relevância para a missão cris-tã, com exceção de algumas histórias populares acerca de um chamado, como o de Moisés, o de Isaías e o de Jeremias (tão úteis nos sermões missionários) e da lição objetiva de um missionário relutante, que estava envergonhado e com raiva de seu próprio sucesso (Jonas)?

Quantos sermões você já ouviu, num domingo missionário, num texto do Antigo Testamento? Se você é pastor, quantas vezes você mesmo já pregou um sermão missionário usando o Antigo Testamento? Se sua resposta for "muitas e muitas vezes", eu desejarei ouvi-lo para comparar as notas, visto que tento fazer isso onde quer que eu vá. Se sua resposta for "bem pouco" ou "quase nunca", então o ponto principal da minha pergunta ficará claro. Onde e quando come-çaremos a construir uma teologia bíblica sobre a missão do povo de Deus e que acontecerá, se incluirmos o Antigo Testamento nela?

Assim, precisamos pensar cuidadosamente sobre o que a Bíblia inteira tem a dizer sobre quem é exatamente o povo de Deus e em que sentido ele é (e sempre tem sido) um povo com uma missão. É por essa razão que não me envergonho de incluir muitos textos expositivos do Antigo Testamento nos capítulos que se seguem. Afinal, a igreja do Novo Testamento, na verdade não tinha um Novo Testamento quando lançou-se à sua tarefa de missão mundial. Foram as Escritu-ras do Antigo Testamento que forneceram a motivação e a justificativa para sua prática missionária, as proposições teológicas fundamentais e as expectativas que lhes asseguraram ser bíblico o que eles estavam fazendo (conforme diríamos).

Que tipo de povo somos nós? Que tipo de pessoa é o seu carteiro? A questão raramente parece ter importância num nível funcional. Quem quer que seja que entregue uma carta em seu ende-reço tem um trabalho a fazer. A questão é garantir que o trabalho seja feito, sem preocupação com a moral da pessoa que o faz. O homem pode ter traído a esposa na noite anterior, mas, desde que você tenha a correspondência na manhã seguin-te; contanto que a mensagem lhe seja entregue, isso não importa (para você).

Infelizmente, há o perigo de que a expressão "a igreja toda levando o evangelho todo ao mundo todo" transforme a igreja em nada mais do que um simples me-canismo de entrega da mensagem. A única coisa que importa é "fazer o trabalho" - de preferência, o mais rápido possível. É lamentável, mas existem algumas for-mas de estratégias missionárias e de retórica que fortemente dão essa impressão.

A Bíblia, num contraste total, é apaixonadamente preocupada com o tipo de pessoa que aqueles que alegam ser o povo de Deus são. Se nossa missão é com-partilhar as boas-novas, precisamos ser pessoas de boas-novas. Se pregamos um

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evangelho de transformação, precisamos demonstrar alguma evidência de como é essa transformação. Portanto, há uma série de perguntas que precisamos fazer sobre "toda a igreja", que tem a ver com coisas, como integridade, justiça, unidade, inclusão e semelhança a Cristo. A palavra bíblica para isso é santidade. Ela é parte tanto da nossa identidade missional quanto da nossa santificação pessoal.

Mas devemos incluir a ética nessa maneira de compreender a missão? Isso não leva a obras de justiça e ao legalismo? É certo que devemos nos concentrar exclusivamente em chamar as pessoas à fé? Podemos lutar ao vermos essa ten-são, mas o apóstolo Paulo via somente integração ao descrever a missão de sua própria vida como sendo a missão de chamar todas as nações à obediência da fé. De acordo com Paulo, o evangelho é algo para se obedecer e não apenas para se crer. Isso nos levará a textos e reflexões interessantes. Os capítulos de 5 a 8 desta obra explorarão uma variedade de textos bíblicos que enfatizam as dimensões éticas da missão do povo de Deus.

Quais são as prioridades e os limites da nossa missão? Um carteiro entrega a correspondência em sua casa. Essa é a principal função da vida dele. A descrição de seu trabalho exige que ele faça isso. Entretanto, é claro que ele pode entrar e ajudá-lo a desentupir um cano, se tiver tempo. Ou ele pode se oferecer para levar o lixo para fora ou para alimentar os gatos enquanto você estiver ausente. Ele pode se alegrar em atender às necessidades sociais da comunidade em várias pequenas coisas. Mas isso não é o seu trabalho verdadeiro. Algumas pessoas podem inclusive acusá-lo de desperdiçar o tempo de seu empregador nessas coisas secundárias. Ele deveria limitar-se ao que foi enviado a fazer e fazer seu serviço da forma mais rápida e eficiente possível.

CCUm casal de missionários mécicos que eu conhecia

dirigia um nospital na zona rura da Africa navio anos,

quanco receoeu uma comunicação de sua igreja na Aus-

trá ia, dizenco que e es naviam sico reclassificados como

"missionários secundários", pois não estavam diretamente

envolvidos no evangelismo e na plantação de igrejas,

emoora um trazalho frutífero estivesse, de fato, acontecen-

do entre os funcionários e pacientes do hospital. Não é

necessário dizer que isso hes trouxe pouco incentivo. Mas

essa "classificação" era ziblicamente legítima?"

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38 4 A missão do povo de Deus

Por essa razão, surge outra questão em relação à missão da igreja. Que ela é exatamente? Existe algo primordial que torna todo o restante secundário — não importando quão desejáveis e úteis essas demais coisas possam ser? Uma vez mais, a divisão percebida entre evangelismo e ação social vem à tona.

A missão da igreja é primordialmente a entrega da mensagem do evangelho — em que caso o elemento verbal é tudo o que realmente importa? Ou será que a missão da igreja inclui a encarnação da mensagem na vida e nas ações? Às vezes, essa questão se levanta como uma tensão entre a proclamação e a

presença. Ou entre palavras e obras. Em alguns dos capítulos a seguir, explora-remos a integração entre o que se pretende que a igreja seja e o que se pretende

que a igreja diga.

TODO O EVANGELHO

Quão abrangente é o seu evangelho? Essa questão está claramente ligada às anteriores. O que é exatamente o evan-gelho, que se encontra no cerne de nossa missão? É a boa-nova do que Deus fez por meio de Jesus Cristo para a redenção do mundo. Qual é a extensão e o alcance da redenção de Deus? A Bíblia descreve Deus como Redentor desde o princípio.° Que conteúdo se encerra nessa palavra para aqueles que falam de Deus dessa forma e que implicação isso tem para aqueles que estão entre os redimidos? Que tipo de experiência é a redenção e que tipo de vida é esperado dos redimidos? Tais perguntas exploraremos no capítulo 6.

Um dos perigos de uma palavra como "evangelho" é que todos nós o ama-mos muito (o que é justo) e desejamos compartilhá-lo de modo tão apaixona-do (o que também é justo) que não temos tempo para explorar seu conteúdo integral na Bíblia. Por exemplo, quem inventou essa palavra? Que Jesus e Paulo queriam dizer ao utilizá-la, sobretudo uma vez que, como eu já disse, eles não tinham o Novo Testamento para lhes explicar isso? Será que eles encontraram o evangelho no Antigo Testamento? E se o evangelho se reporta ao Antigo Tes-tamento (conforme veremos), que isso faz com nossa compreensão a respeito do que a boa-nova é realmente? Uma vez mais, descobriremos que a própria Bíblia corrigirá nossa tendência de reduzir o evangelho a uma solução para o problema do nosso pecado individual e a um cartão magnético para abrir a porta do céu, de modo que substituiremos essa impressão reducionista por uma mensagem que tem a ver com o reino cósmico de Deus, em Cristo, que, no final, erradicará o mal do universo de Deus e resolverá nosso problema de pecado individual, obviamente.

6. Isso ocorre primeiramente em Gênesis 48.16 (NRSV), mas explode em proeminência em Êxodo (6.8; 15.13).

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Quem somos e para que estamos aqui? * 39

Nenhum outro nome Afinal, missão é uma questão de lealdade. O embaixador deve ter completa lealdade ao governo que ele representa. Um mensageiro confiável entregará fiel-mente a mensagem dita por aquele que o enviou, e não suas próprias opiniões. Da mesma forma, a missão do povo de Deus tem que começar e terminar compro-

metida com Deus, cuja missão somos chamados a compartilhar. Isso, por sua vez, depende de conhecermos o nosso Deus em profundidade, pela experiência de sua revelação e de sua salvação. Então, é exatamente isso que a missão é: co-nhecermos a Deus e continuarmos fiéis a ele? Em ambos os testamentos, o povo de Deus é chamado a uma lealdade inegociável e firme para com a singularidade de Deus — sendo revelado como YHWH no Antigo Testamento e habitando entre nós na encarnação de Jesus de Nazaré, no Novo Testamento.

A missão do povo de Deus decorre da singularidade do Deus da Bíblia, reve-lada a nós de modo supremo na singularidade de Cristo. Essa é tanto a origem

de nossa missão, porque ele é quem nos envia ao mundo em seu nome, como também o conteúdo de nossa missão, porque tudo o que dizemos e fazemos é dar testemunho da verdade: o Senhor é Deus e não há outro; a Jesus foi dado o nome que está acima de todo nome, "E não há salvação em nenhum outro, pois debaixo do céu não há outro nome entre os homens pelo qual devamos ser salvos" (At 4.12).

Quando formos para a Parte 2, em nossa jornada por alguns dos grandiosos textos e temas de uma teologia bíblica da missão do povo de Deus, esse será um exemplo do tipo de perguntas e de assuntos que enfrentaremos. Conforme eu disse anteriormente, não seguiremos necessariamente a mesma ordem do qua-dro que usei para o levantamento dessas questões. É por isso que se trata de uma teologia bíblica, e não sistemática. Minha esperança é que, à medida que nos expusermos à rica variedade de textos bíblicos dos dois testamentos e gastarmos tempo na tarefa de exegese e exposição, encontraremos respostas abrangentes para essas perguntas abrangentes — ou algumas dessas questões desaparecerão na amplidão das perspectivas da própria Bíblia.

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PARTE 2

ENCONTRANDO AS RESPOSTAS

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CAPÍTULO 2

PESSOAS QUE CONHECEM A HISTÓRIA DE QUE FAZEM PARTE

A MISSÃO MUNDIAL E A HISTÓRIA DA BÍBLIA Por onde devemos começar? Um grande número de livros e sermões sobre o tópico da missão cristã começa com a Grande Comissão — as palavras finais de Jesus aos seus discípulos, antes de sua ascensão, enviando-os ao mundo para fa-zerem discípulos de todas as nações. É uma atitude natural começar nesse ponto, porque isso se harmoniza com muitas outras verdades que o Novo Testamento tem a dizer acerca de Jesus, de seus seguidores, de Paulo e dos primeiros cristãos. Somos confrontados com a missão, seja qual for o Evangelho que leiamos para encontrar Jesus. Isso somente se intensifica depois, em Atos e nas epístolas.

O Jesus de Mateus apresenta seus discípulos, que fazem discípulos e bati-zam em todo o mundo. O Jesus de Lucas comissiona seus seguidores para irem a Jerusalém, à Judeia e até aos confins da terra. O Jesus de João diz: "Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio". A história de Atos é a história, ou melhor, uma história da missão cristã primitiva. As cartas [de Paulo] confirmam que não só ele, mas muitos outros cristãos criam ser seu encargo viajar ao redor do mundo conhecido, dizendo às pessoas que havia um outro rei, esse Jesus. Desse modo, a missão mundial é a principal e a mais óbvia característica da praxis cristã primitiva.'

Temos que perguntar: "Por quê? Que fez o cristianismo ser uma fé missionária desde seu início? Que fez os primeiros seguidores de Jesus comprometer-se de forma tão apaixonada, corajosa e insistente a falar ao mundo a respeito dele?"

Talvez você responda: "Porque Jesus disse que eles deveriam fazer isso. Eles tinham a Grande Comissão. Era uma questão de obediência" Isso seria verdade, dadas as palavras finais de Mateus, Lucas e João (as quais acabamos de notar), em-bora devamos nos lembrar que os evangelhos não haviam sido escritos até muitos anos já depois que a missão da igreja estava em andamento; portanto, os registros escritos das palavras de Jesus não estavam nas mãos deles, por assim dizer.

Se a simples obediência à Grande Comissão foi a maior razão na consciência dos cristãos primitivos, é surpreendente que isso nunca tenha sido mencionado

1. N. T. Wright, The New Testament and the people of God (Christian origins and the question of God 1. London: SPCK; Mineapolis: Fortress, 1992), p. 361.

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44 A missão do povo de Deus

em lugar algum do Novo Testamento. Não me interprete mal. Em momento algum estou sugerindo que a Grande Comissão jamais tenha acontecido, mas apenas que ela nunca foi mencionada explicitamente como a força motriz que levou à expansão da igreja no Novo Testamento, após o período de Atos, capítulo 1.

"0 cristianismo não se espa sou por meio de mágica. As

vezes, sugere-se que o munco estava preparado para o

cristianismo: o estoicismo era muito imponente e muito se-

vero; o paganismo popular, metafisicamente inacreditável

e moralmente falido; as re igiões de mistério eram tene-

brosas e proibicas; o Judaísmo era constrangido pela lei

e introvertido; o cristianismo rompe nesse cenário como a

grande resposta às perguntas que todos estavam fazendo.

Há um fundo de verdece nessa cescrição, mas cificilmente

faz jus à rea idace nistórica. O cristianismo intimou pagãos

orgu hosos a enfrentarem a tortura e a morte por causa da

lealdade a um a cego juceu que havia sido executado por

Roma. Defendia um amor que diminui as fronteiras raciais.

Proi Dia severamente a imora idade sexual, a exposição de

crianças e muitas outras práticas que os pagãos tomavam

por certas. Esco ser se tornar cristão não era fácil nem

natural para um pagão comum))

N. T. Wright-'

Algumas pessoas têm argumentado que o mundo estava simplesmente pronto para receber o evangelho cristão, de tal modo que sua mensagem se espalhou como fogo no mato, preenchendo o vácuo, digamos, do fracasso das outras filo-sofias e cosmovisões. Entretanto, essa é uma explicação inadequada, embora haja alguma verdade nela. A mensagem cristã realmente respondeu perguntas que outras religiões e filosofias não conseguiram responder, mas isso não significa que unir-se à desprezada seita cristã fosse opção instantaneamente atraente. Chamar pessoas à conversão era confrontá-las com exigências sérias e custosas.

2. Ibid, p. 360.

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Pessoas que conhecem a história de que fazem parte 45

Portanto, que compeliu os primeiros seguidores de Jesus, judeus, a fazerem do mundo seu campo missionário?

Conhecendo a história Usei o termo "judeus" porque ele é a chave para a resposta. Esses primeiros cristãos conheciam a história da qual faziam parte. E conheciam a história por-que conheciam as Escrituras. Eles eram judeus. Conheciam a história até aquele ponto. Compreendiam que ela havia chegado a um momento decisivo, por meio de Jesus de Nazaré, e sabiam o que o restante dela exigiria.

Na verdade, quando as primeiras viagens missionárias produziram uma afluên-cia repentina de pagãos convertidos ao cristianismo (daqui por diante, eu os chamarei de gentios ou de nações não judaicas) e, em contrapartida, produziram um grande problema teológico para os judeus cristãos. Como isso foi resolvido? Eles se reuniram em Jerusalém, no primeiro concílio da fé cristã — o evento está registrado em Atos 15. Cá para nós: vale a pena notar que o primeiro concílio foi solicitado devido aos problemas causados pela missão cristã extremamente bem-sucedida. Seria maravilhoso que todos os comitês, concílios, conferências e congressos das igrejas fossem realizados pelo mesmo motivo!

O problema não foi resolvido por meio de uma referência à ordem de Jesus. Alguém poderia facilmente imaginar Pedro levantar-se e dizer aos críticos: "Ouçam, amigos, Jesus nos disse que fôssemos e fizéssemos discípulos de todas as nações. É isso que Paulo e Barnabé estão fazendo. Então, vão embora!" Mas, em vez disso, Tiago liquida a questão ao se reportar às Escrituras. Ele cita Amós 9 e afirma que aquilo que o profeta previra estava acontecendo: o tabernáculo de Davi estava sendo restaurado e as nações gentílicas estavam sendo reunidas para levar o nome do Senhor. Foi isso que a história indicou e é isso que está acontecendo agora.

Venha juntamente com Paulo para Antioquia da Pisídia, em Atos 13. Aquela era uma cidade gentílica, mas Paulo foi à sinagoga judaica no sabat, como cos-tumava fazê-lo. Que ele fez? Contou-lhes a própria história deles (a narrativa do Antigo Testamento) como um prelúdio para lhes falar de Jesus, acrescentando as "[...1 boas-novas da promessa feita aos pais, a qual Deus cumpriu para nós, filhos deles, ressuscitando Jesus" (At 13.32, 33). A história levou a Jesus, o Mes-sias crucificado, mas ressurreto. E foi mais além. Mas porque alguns dos judeus rejeitaram a mensagem, ao passo que os gentios tementes a Deus (convertidos à fé judaica) aceitaram-na, Paulo tinha uma passagem do Antigo Testamento para eles também, a fim de justificar seu apelo missionário a eles. Ele cita Isaías 49.6 e aplica-o a si mesmo e a seus colegas missionários:

Porque assim o Senhor nos ordenou: Eu te pus como luz dos gentios, a fim de que sejas para salvação até os confins da terra. Ouvindo isto, os

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46 A missão do povo de Deus

gentios alegravam-se e glorificavam a palavra do Senhor. E todos os que haviam sido destinados para a vida eterna creram. (At 13.47, 48).

Paulo poderia ter dito: "Jesus ordenou que trouxéssemos essas boas-novas aos gentios". Ele poderia até mesmo ter feito referência ao mandamento missio-nário específico que havia recebido pessoalmente em seu encontro de conversão e comissão com o Cristo ressurreto no caminho de Damasco. Em vez disso, Paulo aponta as Escrituras e a história que elas contam — a história que leva ine-vitavelmente ao evangelho estendendo-se às nações. E ele tomou esse aspecto da "história por vir" das palavras do profeta e ouviu nelas um mandamento do próprio Senhor.

Na verdade, até mesmo para o próprio Jesus, essa era a inauguração da Grande Comissão. Lucas nos fornece o mais completo relato acerca da maneira com que Jesus, após a sua ressurreição, comissionou seus discípulos. O impressionante é a ênfase que Jesus, segundo Lucas, dá sobre a compreensão das Escrituras (An-tigo Testamento). Lucas 24 descreve o primeiro dia da vida do Jesus ressurreto. Como o usou? Ensinando as Escrituras. Cá para nós: sendo um professor de Antigo Testamento durante a maior parte da minha vida, acho que esse é meu pensamento tranquilizador preferido: que Jesus gastou a tarde e a noite do dia de sua ressurreição ensinando sistematicamente o Antigo Testamento.

Que não daríamos pelas anotações dessas duas preleções! Na verdade, elas foram as duas "preleções da ressurreição". Eram sutilmente diferentes.

O Messias e a missão A primeira foi no caminho de Emaús, a dois discípulos cujo grande problema era seu desapontamento pelo fato da redenção de Israel, a qual eles esperavam que Jesus realizasse, parecia não ter acontecido. Jesus passou por todo o cânon do Antigo Testamento (Moisés e todos os profetas) para explicar como tudo conduzia a ele, o Messias, e como sua morte e ressurreição eram, na verdade, a maneira de Deus cumprir sua promessa a Israel (Lc 24.13-27). Portanto, a primeira preleção percorreu o Antigo Testamento, para que a história até aquele ponto fizesse sentido — a história que culminava no próprio Jesus, o propósito e o destino final da história.

Logo mais, à noite, com o restante dos discípulos, em Jerusalém, Jesus per-correu o Antigo Testamento pela segunda vez — não porque eles não conheciam as Escrituras (eles provavelmente sabiam de cor porções massivas do Antigo Testamento), mas porque queria ajudá-los a compreender aonde ele ia chegar.

Depois lhes disse: São estas as palavras que vos falei, estando ainda con-vosco: Era necessário que se cumprisse tudo o que estava escrito sobre mim na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos.

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Pessoas que conhecem a história de que fazem parte 47

Então lhes abriu o entendimento para compreenderem as Escrituras, e disse-lhes: Está escrito que o Cristo sofreria, e ao terceiro dia ressuscitaria dentre os mortos; e que em seu nome se pregaria o arrependimento para perdão dos pecados a todas as nações, começando por Jerusalém. Vós sois testemunhas dessas coisas. (Lc 24.44-48; grifo do autor).

Você notou que, dessa vez, ele examina o Antigo Testamento para que a his-tória, até aquele ponto, fizesse sentido — a parte da história em que eles deveriam participar, dando testemunho do poder salvador da morte e da ressurreição de Jesus a todas as nações. Em outras palavras: para Jesus, o "assim está escrito" governava não só o sentido messiânico das Escrituras, mas também o seu sig-nificado missional. O Antigo Testamento conta não apenas a história que leva a Jesus, mas a que leva também à missão a todas as nações.

Jesus falava frequentemente sobre o modo com que o curso de sua vida — seu sofrimento, sua morte e ressurreição — era governado pelas Escrituras. Aqui ele estende esse princípio também ao progresso da missão da igreja. Tudo isso faz parte da grandiosa história que as Escrituras esboçaram. Isso signifi-ca que a Grande Comissão não era uma novidade que Jesus havia inventado posteriormente — algo com que os discípulos pudessem se ocupar quando ele voltasse para o Céu. Não era uma ordem que repousava unicamente em sua autoridade de Senhor ressurreto (embora, ela seja totalmente garantida por isso, conforme a versão de Mateus deixa claro). Ela era o resultado inevitável da história, como as Escrituras a contavam — conduzindo ao Messias e influen-ciando a missão às nações.

Poderíamos dizer, acerca da missão mundial da igreja, que Jesus a ordenou porque as Escrituras exigiam isso. Jesus também conhecia a história. Num outro sentido, poderíamos dizer que foi porque ele a escreveu.

CONSIDERANDO A HISTORIA COMO UM TODO Neste livro, estamos buscando uma teologia bíblica para a missão da igreja. Que exemplo melhor poderíamos seguir do que o de Jesus e Paulo? Precisa-mos prestar atenção a toda a história da Bíblia e ver nossa missão à luz de toda a Escritura.

Certamente precisamos nos perguntar com sinceridade: "Até onde co-nhecemos realmente a história bíblica?" Se Jesus e Paulo acharam necessário examiná-la repetidamente com aqueles que conheciam as Escrituras do Antigo Testamento de trás para frente, quanto mais nós, que precisamos ter a certeza de estarmos familiarizados com o conteúdo de toda a Bíblia. É trágico, embora, mesmo entre os cristãos com grande entusiasmo por missões mundiais, seja comum não apenas uma ignorância para com o grande panorama da revelação

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48 • A missão do povo de Deus

bíblica, mas também uma impaciência em relação aos esforços prolongados necessários para que mergulhemos nesses textos, até que todo o nosso pensa-mento e comportamento sejam moldados pela história que eles contam, pela visão de mundo que essa história cria, pelas exigências que recaem sobre nós e pela esperança que é posta diante de nós. A atitude de alguns é esta: tudo o que necessitamos é a Grande Comissão e o poder do Espírito Santo. O ensino bíblico ou a teologia bíblica só serve para atrasá-los na urgente tarefa. Presumo que posso me confortar no fato de você estar lendo este livro, o que significa que você não compartilha essa atitude.

"Apenas faça" parece ter sido emprestado da Nike para

se tornar o lema de algumas formas de missões cristãs. Eu

estive num grance congresso ce mobilização missionária,

cujo ema era "Apenas vá!" Minha primeira reação foi

dizer: "Apenas espere". Até mesmo Jesus passou três anos

treinanco os discípulos antes de lhes dizer "Ide". Esse tem-

po quase não foi suficiente para reformar o entendimento

deles sobre as Escrituras à luz da própria identidade do

Mestre, para que entendessem para onde a história loi-

b ica estava caminhando em re ação a ele mesmo e ao

futuro de lsrae e do mundo. Quanto mais esse treinamento

é necessário quando sabemos que a leitura ca Bíblia e o

conhecimento entre cristãos evangélicos estão vergonhosa-

mente em decadência."

Acho útil visualizar a história bíblica como uma linha real onde cada um pode marcar pontos-chave. As quatro principais seções da história bíblica são: criação, queda, redenção na história e nova criação. Dentro da seção da redenção na história, por ser de longe a maior porção da história bíblica, são necessárias outras divisões.

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1 2 Criação I Quedai

3 4 Redenção na história 4. Nova criação

Pessoas que conhecem a história de que fazem parte a 49

Chamado de Êxodo: Sinai; Encarnação Morte e Pentecostes, Parousia, Abraão; Redenção Israel do de Deus ressurreição Espírito ressurreição, Eleição Antigo em Cristo de Cristo; Santo, julgamento,

Testamento; Nova aliança missão nova criação lei, história, da igreja monarquia,

exílio e retorno, profetas, salmos,

sabedoria; Aliança

1. Criação A Bíblia não começa em Gênesis 3 nem termina em Apocalipse 20. Isso é o que pensamos quando ouvimos algumas explicações sobre a mensagem e a missão na Bíblia. Isso significa dizer: a Bíblia não diz respeito unicamente à solução do problema do nosso pecado nem ao modo de sobreviver no dia do juízo. Ela começa com a criação e termina com a nova criação. Portanto, nossa teologia bíblica precisa levar a sério esse grande começo e final.

A narrativa da criação provê duas das bases fundamentais para a visão cristã de mundo, porque responde às duas séries de perguntas mais fundamentais que todas as filosofias e religiões respondem de maneiras diferentes. Primeira série: Onde estamos? Quem somos? Isso é o mesmo que dizer primeiramente: Que é o universo em que nos encontramos? De onde ele veio? Por que ele existe? Ele é mesmo real? Segunda série: Que significa ser humano? Somos deuses ou simplesmente animais que se desenvolveram um pouco mais que os outros? A vida humana possui algum valor, significado e propósito?

As respostas distintas que a Bíblia dá a essas questões têm implicações pro-fundas no nosso entendimento da missão no mundo de Deus, em meio aos seres humanos como nós, feitos à imagem de Deus.

2. Queda A desobediência e a rebelião humana para com o Deus Criador trouxeram resul-tados desastrosos (Gn 3-11). O mal e o pecado se entrelaçaram em cada aspecto da criação de Deus e em cada dimensão da personalidade e da vida humana na terra. No plano físico, estamos sujeitos à decadência e morte, vivendo em meio a um ambiente físico que está, em si mesmo, sob a maldição de Deus. No plano intelectual, usamos nosso poder inacreditável de racionalidade para explicar, des-culpar e "normalizar" o nosso próprio mal. No plano social, cada relacionamento

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50 I, A missão do povo de Deus

humano está rompido e interrompido - o sexual, o paterno e o materno, o fami-liar, o social, o étnico, o internacional. Esse efeito é consolidado, horizontalmente, pelo processo de impregnação em todas as culturas humanas, e verticalmente pelo processo de acumulação ao longo das gerações da História. No plano espiritual, estamos alienados de Deus, rejeitando sua bondade e autoridade. Romanos 1.18-32 resume todas essas dimensões em sua análise dos resultados de Gênesis 3.

Se houver alguma boa-nova para essas terríveis realidades, ela precisa ser muito grande. A verdade grandiosa é que a Bíblia nos oferece um evangelho que trata cada dimensão do problema criado pelo pecado. A missão de Deus é a destruição final de todo o mal em toda a sua criação. Nossa missão, portanto, deve ser tão abrangente em seu alcance quanto o evangelho que a Bíblia toda nos oferece.

3. Redenção Deus escolheu não abandonar nem destruir sua criação, mas redimi-la. Ele escolheu fazê-lo dentro da história, por meio de pessoas e acontecimentos que vão desde o chamado de Abraão até à volta de Cristo. Embora cada parte dessa história grandiosa contribua para o todo, precisamos ver cada seção deste curso como uma unidade fundamental - o único grande ato salvador de Deus. Penso que a unidade entre as seções do Antigo Testamento e do Novo Testamento, em relação a esta parte da história bíblica da redenção, é a razão de o Apocalipse re-tratar a humanidade redimida, na nova criação, cantando o cântico de Moisés e o cântico do Cordeiro (Ap 15.3). Isso nos livrará de entendermos erroneamente o Antigo Testamento como o plano de salvação A (falho) e o Novo Testamento como o plano de salvação B (bem-sucedido). Isso é uma séria distorção da his-tória; no entanto, sem cairmos nessa armadilha, ainda podemos traçar as duas partes principais da história no Antigo e no Novo Testamento.

Antigo Testamento No momento que a história chegou a Gênesis 11, a raça humana encontrou dois problemas enormes: a pecaminosidade de cada coração humano e a divisão e confusão nas nações da humanidade. O plano redentor de Deus tratou des-sas duas questões. No chamado de Abraão, Deus pôs em ação uma dinâmica histórica que finalmente não só lida com o problema do pecado humano, mas também cura as divisões das nações.

A eleição de Abraão ocorreu, de forma explícita, para abençoar todas as na-ções da terra. O mandamento e a promessa de Deus dados a Abraão podem ser chamados legitimamente de a primeira Grande Comissão - "Vai... [e] sê tu uma bênção! [...]; em ti serão benditas todas as famílias da terra" (Gn 12.1-3; ARA). Portanto, o plano de Deus era tratar do problema da humanidade - pecado e divisão - por meio de Israel, o povo de Abraão.

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Pessoas que conhecem a história de que fazem parte . 51

O êxodo fornece o primeiro modelo veterotestamentário de Deus agindo como Redentor. É com ele que a redenção se parece quando Deus a faz. Ele é um ato com que Deus demonstra simultaneamente sua fidelidade, justiça e amor, de modo que o povo que se reconhece como o povo redimido desse Deus (agora é revelado como YHWH) é chamado para ser um modelo, diante das nações, do que significa ser redimido e para viver de modo redentor em sua própria sociedade.

No Sinai, Deus entrou numa aliança com o povo de Israel (e com o restante das nações em vista), chamando-o para ser seu representante (sacerdotalmente) e para ser separado (santo). Ele lhe deu sua lei como um dom da graça - não para que eles pudessem merecer sua salvação, uma vez que já haviam sido redi-midos, mas para moldá-los como um povo-modelo, a fim de que fossem uma luz para as nações.

No entanto, à medida que a história de Israel avançava, nos períodos do es-tabelecimento na terra, dos juízes e da monarquia, ficava cada vez mais claro que Israel não podia nem queria viver conforme os padrões da Lei de Deus em resposta à graça salvadora. De fato, demonstraram que não eram diferentes das demais nações. A lei em si, como Paulo percebeu de modo tão claro, expunha o fato de que Israel era tão necessitado de Deus quanto o restante das nações. Não há diferença, pois todos pecaram. Israel, o servo do Senhor, chamado para ser uma luz para as nações, passou a ser um servo fracassado, cego para com as obras de Deus e surdo para com sua Palavra. Eles também precisavam de Deus.

Apesar de tudo, o Antigo Testamento continua, por intermédio dos profetas, a apontar adiante e insistir que Deus guardará sua promessa de trazer bênção a todas as nações e salvação para o mundo todo, e que fará isso por meio de Israel. Em outras palavras: o fracasso do Israel histórico foi previsto por Deus e não representava o fracasso do plano de Deus. No mistério de seu propósito soberano, isso levaria à salvação, alcançando até os confins da terra, conforme Deus planejara. Mas, se o Israel do Antigo Testamento demonstrou-se infiel, como isso poderia acontecer?

Novo Testamento O Novo Testamento nos apresenta a resposta a que os profetas apontavam: aquele que encarnaria a Israel como seu Messias; aquele que seria fiel no que eles haviam falhado, que seria obediente até à morte e que, por meio de sua morte e ressurreição, cumpriria não só a restauração de Israel, mas também a promessa de salvação até aos confins da terra.

Assim, a história de Israel avança, até que, "Vindo, porém, a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher" (Gl 4.4). A encarnação de Deus em Cristo traz dois fatores para a nossa teologia de missão: a presença inaugurada do reino de Deus e o próprio modelo e princípio encarnacional.

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52 A missão do povo de Deus

Em Jesus, o reino de Deus entrou na história humana de modo nunca expe-rimentado - pela expectativa que trazia e por suas implicações éticas totalmente arraigadas no Antigo Testamento. A ação dinâmica do reino de Deus nas palavras e obras de Jesus e na missão de seus discípulos transformou vidas, valores e prio-ridades e apresentou um desafio radical às caídas estruturas de poder da socie-dade. Dizer "Jesus é Senhor" e não César ou um de seus sucessores é o principal mandato missional em si mesmo. Lucas não pôde achar um modo mais missional para terminar seu segundo volume do que deixar Paulo em Roma, onde ele esta-va "[...] pregando o reino de Deus e ensinando as coisas concernentes ao Senhor Jesus Cristo, com toda a liberdade, sem impedimento algum" (At 28.31; grifo do autor). Entretanto, conforme as parábolas de Jesus enfatizavam, Deus inaugurou seu reino de modo secreto e humilde - escolhendo ele mesmo entrar no mundo, enfrentando todas as limitações e frustrações desse ato. Esse é um padrão que Jesus impôs aos seus seguidores, para o envolvimento custoso deles mesmos com o mundo e todos os seus problemas, visto que ele orou ao Pai: "Assim como tu me enviaste ao mundo, eu também os enviei ao mundo" (Jo 17.18; cf. 20.21).

A cruz e a ressurreição de Jesus nos trouxeram ao ponto central da linha com-pleta da história da redenção. Eis aqui a resposta de Deus a cada dimensão do pecado e do mal no cosmo e a seus efeitos destrutivos. O evangelho nos apresenta uma vitória consumada, que será final e universalmente visível e vindicada. Se fo-mos tão radicais quanto o deveríamos ser em nossa análise dos efeitos da Queda, devemos ser igualmente radicais e abrangentes em nossa compreensão acerca de todas as maneiras com que a cruz e a ressurreição revertem e finalmente destroem esses efeitos. A cruz deve ser central para cada dimensão da missão do povo de Deus - desde o evangelismo pessoal entre amigos individuais até aos cuidados ecológicos com a criação, inclusive em tudo o que estiver entre essas coisas.

Assim como a redenção do êxodo levou à criação do povo da aliança, Israel, no Antigo Testamento, a redenção da Páscoa levou ao dom escatológico do Espí-rito Santo no dia de Pentecostes e ao nascimento da igreja. Doutra parte, embora a igreja, como a comunidade dos seguidores de Jesus, tenha nascido no dia de Pentecostes, suas raízes remontam, é claro, ao povo de Deus desde Abraão, por-que a criação dela não foi nada menos do que o cumprimento multinacional da esperança de Israel, para que todas as nações fossem abençoadas através do povo de Abraão. A expansão de Israel para incluir os gentios (note cuidadosamente: não foi o abandono de Israel em favor dos gentios), em Cristo e por meio dele, cumpriu a promessa feita a Abraão e realizou o propósito de Deus de resolver não apenas o problema de Gênesis 3 (o da queda da humanidade e do pecado), mas também o de Gênesis 11 (divisões raciais e confusão). É por essa razão que é tão importante reconhecer que a igreja, por natureza e por sua existência, é parte do evangelho porque, sendo uma comunidade de pecadores de todas as raças recon-ciliados, demonstra o poder transformador do evangelho.

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Pessoas que conhecem a história de que fazem parte 53

Duas verdades desta parte da linha da história informam nossa teologia de missão. A primeira é a presença do Espírito Santo, o qual tornou disponível ao povo de Deus o mesmo poder transformador que agia na vida e no ministério de Jesus e o ressuscitou dentre os mortos. A segunda é a existência da igreja, tida como a comunidade missional daqueles que responderam ao reino de Deus e entraram nele, pelo arrependimento e fé em Cristo, a qual agora busca viver como uma comunidade transformada e transformadora, na reconciliação e na bênção para o mundo.

4. Nova criação A volta de Cristo não só trará ao grande final essa seção da linha da história bí-blica, a qual chamamos de redenção dentro da história, mas também inaugurará o cumprimento final de toda a história - a saber, a redenção e a renovação de toda a criação de Deus.

É lógico que a Bíblia inclui nessa parte culminante da linha da história a realidade do julgamento, cujo dia é algo sobre o que a Bíblia nos adverte, desde a reversão estrondosa do otimismo superficial de Israel sobre "o dia do Senhor", em Amos, passando pelas advertências de Jesus, de Paulo e de Pedro sobre o julgamento a ser feito pelo tribunal de Deus, até às aterrorizantes visões do Apo-calipse. A realidade do julgamento é, em certo nível, parte do evangelho, porque ela é a boa-nova, de que o mal não terá a última palavra, mas será destruído por Deus no final. Em outro nível, ele é a má notícia sobre a ira de Deus, que faz do evangelho essa "boa-nova" perpétua para nosso mundo caído.

"Todos os nossos fi hos agora são adultos. Recentemente

(talvez quando pensaram ser seguro nos contar), eles nos

contaram sopre um jogo que faziam quando eram crian-

ças. E es iam para a sala, quando minha esposa estava na

cozinha ou no jarcim ou quando eu estava no trabalho, e

faziam tudo o que sabiam que era proibido: pular no sofá,

gerar guerra ce a mofadas etc., até que um ce es gritasse:

"A múmia está chegando!" Ora, todos deveriam sentar-se

e ficar quietos e o último a fazer isso estaria fora, porque, se a múmia estivesse chegando, haveria alegria ou tristeza

na hora do julgamento. Eles poceriam claramente dizer:

"Vamos brincar de a múmia está chegando!),

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54 • A missão do povo de Deus

"Deus está chegando", grita toda a criação, repetidas

vezes, de acordo com o final do Sa mo 96, que depois

se rompe em ocas de a egria ao pensar nisso. Porque, se

múmia está chegando" (é uma questão de medo infanti ou de a egria, dependenco do que ela visse ao aorir a

porta), que significa para toca a criação, para você e para mim, saber com certeza que "Deus está chegando"

para pôr as coisas em ordem para sempre?),

Mas a Bíblia não termina com o dia do julgamento. Além do fogo purifica-dor do juízo e da destruição de tudo quanto é mal e contrário ao propósito de Deus, ali se encontrarão novos céus e nova terra, nos quais habitará a justiça e a paz, porque o próprio Deus habitará ali com seu povo redimido de todas as nações. Quando levamos nossa teologia bíblica para o fim da linha da história, assim gera-se uma fé bíblica e uma esperança — aquele otimismo irreprimível que deveria caracterizar todas as ações cristãs no mundo. A missão do povo de Deus não é apenas guiada pelo mandamento de Cristo, mas é também levada adiante por causa da promessa de Deus,

O tabernáculo de Deus está entre os homens, pois habitará com eles. Eles serão o seu povo, e Deus mesmo estará com eles. Ele lhes enxugará dos olhos toda lágrima; e não haverá mais morte, nem pranto, nem lamento, nem dor, porque as primeiras coisas já passaram. O que estava assentado sobre o trono disse: Eu faço novas todas as coisas! (Ap 21.3-5).

Essa é a estrutura da linha da história da própria Bíblia, que molda e dá ener-gia à missão do povo de Deus. Essa é a história que os primeiros seguidores de Jesus conheciam. Foi a confiança deles nessa história e a certeza de que tinham um papel a desempenhar nela que os levaram para uma missão no mundo. Essa é a história de que precisamos saber que fazemos parte, porque nossa missão é nada menos (ou mais) do que participar com Deus desta grandiosa história, até que ele a leve ao seu clímax garantido.

À medida que, à luz dessa história, pensarmos em nossa teologia bíblica da missão da igreja, perceberemos o profundo poder esclarecedor que isso tem.

• A criação provê nossos valores e princípios fundamentais. • A queda nos faz descer às realidades da terra amaldiçoada e aos tentácu-

los penetrantes da perversidade humana e de Satanás.

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Pessoas que conhecem a história de que fazem parte • 55

CCAo acrecitarmos na história, somos atraídos para dentro

da ação e nos percebemos apanhados pelo movimento

salvífico de Deus. Aprendemos a "morar" dentro da his-

tória, como que olhando para fora com novos olhos, a

partir do mundo bíblico, para as nossas vidas e para o

munco pós-moderno: paramos de tentar fazer com que

a Bíblia seja re avante para as nossas vidas e, ao invés,

começamos a nos ver como pessoas que foram feitas

relevantes para a Bíblia. Abandonamos a tentativa desa-

leitaca de ceturpar o sentido do texto antigo para este

se encaixar com o nosso mundo contemporâneo. Em vez

disso, deixamos que nosso mundo entre em colisão com

o estranho novo mundo da Bíblia e seja purificado por

ele. Ao acreditarmos na história, permitimos que nossas

mentes sejam continuamente renovadas pela narrativa

normativa de Deus. [...] Jesus chama seus discípulos para

se afastarem ce uma fé em que Deus está cisponível para

abençoar seus negócios e leva-os a uma fé em que eles

estão disponíveis para Deus, para fazer parte do negócio

dele. E o negócio de Deus é uma companhia multinacio-

nal, com fi iais em todo lugar!))

Philip Greenslade"

• Atuando num contexto histórico e cultural específico, o Antigo Testa-mento nos mostra a abrangência do propósito redentor planejado por Deus e nos dá um modelo maravilhosamente detalhado (a partir da lei, das narrativas, dos profetas, dos livros sapienciais e a da adoração de Is-rael) de respostas práticas que lhe agradam e das que lhe desagradam.

• A encarnação traz Deus para o nosso lado em nossa luta, e nos chama para encarnarmos o reino de Deus e sermos seus agentes por meio de Cristo.

• A cruz e a ressurreição nos capacitam a experimentarmos e a compar-tilharmos o poder da verdadeira reconciliação, do amor, da esperança e

3. Philip Greenslade, A passion for God's story: D scovering your place in God's strategic plan (Carlisle: Paternoster, 2002), p. 42-43.

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56 • A missão do povo de Deus

da paz e a buscarmos a obra expiatória e redentora de Deus, mesmo nas situações humanas que mais parecerem irredimíveis.

• O Espírito Santo na igreja providencia a direção e o poder para esperar-mos mudanças reais na vida das pessoas e na sociedade, enquanto man-tém nossos olhos nas dimensões corporativas, e não apenas individuais, da missão cristã.

• Nossa grande esperança futura da nova criação dá valor e dignidade a tudo quanto fazemos no presente, pois o nosso trabalho não é vão no Senhor; e modela as nossas respostas ao presente, pela forma revelada do futuro.

"Nosso mandato para a evange ização do mundo é a

Bíblia toda. Ele deve ser encontrado ra criação de Deus

(por causa desta criação todos os seres humanos são

responsáveis diante dele); no caráter de Deus (sociável,

amoroso, compassivo, não querendo que nenhum se per-ca, desejando que todos cheguem ao arrepencimento);

nas promessas de Deus (de que todas as nações serão

abençoadas pelo descendente de Aoraão e se tornarão

herança do Messias); no Cristo ce Deus (exaltado com

autoridade universo , para receber ac amação universal); no Espírito de Deus (que convence do pecado, testifica de

Cristo e impe e a igreja a evangelizar) e na igreja de Deus

(que é uma comunidade missionária mu tinacional, sob as

ordens de evangelizar até que Cristo vote).),

Johr Stott'

A MISSÃO DE DEUS A história que acabamos de examinar pode ser vista, por outro ângulo, como a missão de Deus. A história de como Deus, em seu amor soberano, propôs tazer o mundo pecaminoso de sua criação decaída ao mundo redimido de sua nova criação. A missão de Deus é a que estende-se sobre a lacuna entre a maldição so-bre a terra de Gênesis 3 e o fim da maldição na nova criação de Apocalipse 22.

4. John Stott, "The Bible in world evangelizatiod, Perspectives on the world Christian movements (ed. R. D. Winter and S. C. Hawthorne; Passadena: Biblioteca de William Carey, 1981), p. 4 (grifo do autor) [Perspectivas no movimento cristão mundial, São Paulo: Vida Nova, 2009.]

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CCO que impressiona é a total abrangência da mensagem

de Paulo. E e proclamava Deus em sua plenitude como

Criacor, Sustentador, Sooerano, Pai e Juiz. Tudo isso faz

parte do evangelho ou pelo menos do preâmbulo necessá-

rio do evangelho. Muitas pessoas estão rejeitando o nosso

evangelho hoje em cia, não por percebê-lo como falso,

mas por percebê-lo como trivial. Estão buscando uma visão

de mundo integrada, que faça sentido à tota experiência

celas. Aprendemos de Paulo que não podemos pregar o

evangelho sem a doutrina de Deus ou a cruz sem a criação

ou a sa vação sem o juízo e vice-versa. O mundo ce hoje

precisa de um evangelho maior, o evangelho integral das

Escrituras, o qual, mais tarde, em Éfeso, Paulo chamaria

de "todo o propósito de Deus" (At 20.27).))

John Stott (sobre o sermão de Paulo em Atenas, Atos 171'

A missão de Deus é o que traz a humanidade de ser uma cacofonia de nações divididas e espalhadas, em rebelião contra Deus, de Gênesis 11, para ser um coro de nações unidas e reunidas na adoração a Deus, em Apocalipse 7. Em outras palavras: a missão de Deus é o que Paulo provavelmente tinha em mente ao dizer que gastara muitos anos em Éfeso, ensinando à igreja "todo o propó-sito [ou conselho ou plano ou missão] de Deus" (At 20.27). Era um projeto de salvação cósmica vasto e abrangente. Mesmo quando se dirigia a um público não judeu, Paulo encontrava maneiras de comunicar o âmbito universal dessa missão (At 17).

Em meu livro maior: The mission of God: Unlocking the bible's grand narrative (A missão de Deus: descoberta das grandes narrativas bíblicas),6 afirmei que podemos ler toda a Bíblia a partir de uma hermenêutica missional e, depois, explorar algumas dimensões do que acontece quando fazemos isso. Foi nesse ponto que examinei, com mais profundidade, as dimensões missiológicas de temas bíblicos vastos, como monoteísmo (a unicidade de YHWH e Jesus), ido-latria, eleição, redenção, aliança, ética, ecologia e escatologia.

5. John Stott, Through the Bible through the year: Daily relections from Genesis to Apocalipse (Oxford: Candle Books, 2006), p. 334 [A Bíblia toda o ano todo: Leituras diárias de Gênesis a Apocalipse, Viçosa, MG: Ultimato, 2007.] 6. Veja a nota de rodapé 1, no prefácio.

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58 A missão do povo de Deus

Este livro precisa ser lido à luz da exegese substancial e do argumento usado em A missão de Deus (77-w mission of God). É claro que há, inevitavelmente, al-gumas sobreposições (afinal, estamos discorrendo sobre a mesma Bíblia!), mas, considerando que, na referida obra, eu estava explicando o porquê da necessi-dade de termos uma hermenêutica missional de todo o cânon das Escrituras, vendo isso como um crédito e uma testemunha a favor da missão de Deus em toda a criação e em toda a história. Neste livro, estou basicamente tentando res-ponder a uma pergunta mais limitada (apenas superficialmente!): "Para que nós estamos aqui?" Qual é a missão do povo de Deus, enquanto ele vive no mundo de Deus e participa da missão de Deus?"

RESUMO Começamos este capítulo perguntando por que os primeiros cristãos eram invencivelmente apaixonados por missões — determinados a espalhar, a qualquer preço, as boas-novas de Jesus Cristo em todo lugar do mundo que eles conheciam. Vimos que a resposta é que eles compreendiam claramente a propulsão dinâmica da própria linha histórica da Bíblia. Eles viam a história como a história da própria missão de Deus e viam sua própria parte nessa história como participantes de seu último grande ato, como "cooperadores de Deus" (1Co 3.9).

Portanto, nos próximos capítulos, procurei seguir aproximadamente o esbo-ço da história acima, perguntando à medida que caminhamos: "Que desafios e responsabilidades o povo de Deus enfrenta em sua própria missão à luz desta ou daquela parte da história?" Por essa razão, selecionei textos que parecem repre-sentar esses aspectos missionais de nossa vida como povo de Deus. Eles não são, de forma alguma, todos os textos que poderiam servir ao nosso propósito, mas espero que eles demonstrem, pelo menos, dois princípios: primeiro, podemos e devemos extrair de toda a extensão da Bíblia nossa teologia bíblica sobre a missão da igreja; segundo, quando fazemos isso, torna-se evidente que a missão do povo de Deus é vasta e variada.

QUESTÕES RELEVANTES 1. Antes de você ler este capítulo, qual era a relevância das Escrituras do

Antigo Testamento para a sua compreensão acerca da missão da igreja? A sua própria perspectiva foi impactada pelo conteúdo deste capítulo?

2. Temos a tendência de explicar o evangelho na forma de uma série de proposições ou doutrinas. À luz da história de toda a Bíblia, conforme foi resumido neste capítulo, como você resumiria o evangelho na forma de uma narrativa?

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3. Que sugestões você pode dar para ajudar as igrejas, inclusive pastores, líderes, comitês missionários etc., a se tornar mais motivadas para mis-sões, a partir de uma compreensão melhor da "história em que estamos"? Que impacto um ensino melhor nessa área exerceria em sua consciência missionária e em seu comprometimento?

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CAPITULO 3

PESSOAS QUE CUIDAM DA CRIAÇÃO

lgumas pessoas têm grande dificuldade para relacionar sua compreensão da missão cristã ao Antigo Testamento. Isso torna-se ainda mais difícil

tao se começar por Gênesis. Mas realmente devemos começar onde a Bíblia começa, porque, se não o fizermos, perderemos a importância vital de como a Bíblia termina.

A Bíblia começa e termina com a criação. Ela inicia com as palavras: "No princípio, Deus criou os céus e a terra" (Gn 1.1), e a sua grandiosa visão final começa com as palavras: "[...] vi um novo céu e uma nova terra" (Ap 21.1). O problema é que alguns cristãos parecem ter bíblias que começam em Gênesis 3 e terminam em Apocalipse 20. Eles sabem tudo sobre o pecado através da história da Queda e sabem que Deus resolveu esse problema por meio de Cristo e que eles estarão seguros no grande dia do juízo. Para eles, a história da criação não passa de um pano de fundo para a história da salvação. O grande clímax da Bíblia diz respeito somente a ir para o Céu depois que eles morrerem, embora os últimos capítulos da Bíblia não digam coisa alguma sobre nós indo a algum lugar, mas prevê com avidez a vinda de Deus para cá.

Entretanto, uma bíblia desprovida de seu começo e fim produz um conceito de missão igualmente distorcido. Imaginemos que a única preocupação de Deus (consequentemente, a nossa também) é salvar pessoas do pecado e do juízo. É claro que não se pode duvidar que a Bíblia dá uma atenção enorme a esse assunto. Sem dúvida, isso deve estar no cerne de nossa missão em nome de Deus. Mas essa não é a história toda da Bíblia nem deve ser toda a nossa história de missão.

"Redescubramos que o evangeHo, as boas-novas, não começa com o nascimento de Jesus. De começa com a terra boa que Deus fez por meio de Jesus. Vamos novamente ce e-brar a realicace de que a criação, com todas as suas rique-zas, é um maravi hoso presente de um Deus bondoso.),

Dave Bockless

1. Dave Bookless, Planetwise: dare to tare for God's world (Nottingham: IVP, 2008), p. 25. Este livro é um breve e excelente levantamento do ensino bíblico sobre a criação e suas implicações para o nosso discipulado cristão, nossa adoração, nosso estilo de vida e nossa missão.

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Pessoas que cuidam da criação 61

A história da Bíblia é que o Deus que criou o universo, ao vê-lo devastado pelo mal e pelo pecado, comprometeu-se em redimir e restaurar totalmente toda a criação. Ele cumpriu isso antecipadamente pela crucificação e ressurreição de Jesus de Nazaré. Levará essa obra à sua gloriosa completude na nova criação, quando Cristo voltar. Entre esses dois grandes poios - o da criação original e o da nova criação -, a Bíblia tem muito mais a dizer sobre a criação.

Na verdade, a criação é um dos temas principais da teologia bíblica. Logo, seria surpreendente que ela não tivesse uma posição significativa na teologia bíblica de missão. De fato, é surpreendente e lamentável que ela tenha um lugar tão insignifi-cante, virtualmente quase inexistente, na teologia de missão e na prática de muitos cristãos que gostam de alegar que estão sendo "bíblicos" em todas as coisas.

Nós nos recordaremos primeiramente da missão de cuidar da criação. Esta Deus atribuiu à humanidade em Gênesis 1-2, quando no princípio, ele nos criou sobre a terra. Depois, veremos o que mais é dito acerca da criação no An-tigo Testamento no sentido de reforçar a importância dessa tarefa. Mais adiante, passaremos ao Novo Testamento, para ver como a criação está relacionada com Cristo. Afinal, nossa missão deve ser cristocêntrica; do contrário, nem mesmo será bíblica. No final, sugeriremos algumas razões por que as preocupações e ações ecológicas podem ser vistas como uma parte integralmente legítima da missão do povo de Deus.'

"Ser iumano é ter relacionamento adequado com Deus. com

outras pessoas e com o mundo. O pecaco tem desfigurado esses re acionamentos e, por pouco, não os tem destruico, mas em Cristo, o ser humano perfeito, caca um cestes três re acionamentos é restauraco, à mec ida que nos conformamos progressivamente à imagem ce Cristo. Porque ele, senco o ser

humano perfeito, é o único que preencheu completamente os requisitos da imagem de Deus. Quanto mais nos parecemos com ele, mais nos tornamos sumanos... A vice cristã, onge de nos tornar superespirituais, seres quase ange iceis, é, na verca-ce, uma busca pela recuperação ce nossa numanidade.),

Michael Witimer'

2. Uma discussão mais completa sobre as bases bíblicas para a ética ecológica e missão está disponível em Christopher J. H. Wright, Old Testament ethics for the people of God (Leicester: IVP e Downers Grove: IVP, 2004), p. 103-145; e idem, The mission of God, p. 397-420. 3. Michael E. Wittmer, Heaven is a Place on Earth: why everything you do matters to God (Grand Rapids: Zondervan, 2004), p. 83. O livro de Wittmer é um excelente exame de temas bíblicos-chave, que vão desde a criação até a nova criação, o que forma a base do argumento abrangente deste livro.

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62 • A missão do povo de Deus

SUBJUGUE E GOVERNE; SIRVA E CUIDE: GENESIS 1-2 Comecemos, portanto, do começo, relembrando que todos nós fomos criados como seres humanos à própria imagem de Deus. Talvez seja fácil esquecer, mas éramos seres humanos antes de nos tornarmos cristãos e não deixamos de ser seres humanos quando nos tornamos cristãos (embora alguns cristãos nos le-vem a questionar...). Deus nos pedirá contas tanto da nossa humanidade quanto do nosso cristianismo, porque há mandamentos que ele nos ordenou cumprir como criaturas humanas, dos quais nenhum outro texto ou ensino bíblico nos isenta. Ao contrário, o fato de sermos o povo de Deus e de já estarmos entre os que farão parte da humanidade redimida certamente realça e intensifica nossa obrigação de viver o mandato original dado à raça humana. Os seres humanos são pessoas com uma missão.

Reis da criação - Gênesis 1.26-28

E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; domine ele [dominem eles] sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre o gado, sobre os animais selvagens e sobre todo animal rastejante que se arrasta sobre a terra. E Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. Então Deus os abençoou e lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos; enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que rastejam sobre a terra.

A primeira menção aos seres humanos na Bíblia afirma dois fatos funda-mentais a respeito de nós, que são colocados tão próximos um do outro que, obviamente, estão ligados entre si: (1) Deus nos criou à sua imagem (homem e mulher); (2) Deus quis que nós exercêssemos domínio dentro da criação. Ter domínio não é o que constitui a imagem de Deus, mas o fato de termos sido feitos à imagem de Deus nos capacita e nos dá o direito de exercer esse domínio. Nós, humanos, temos uma missão na terra porque Deus tinha um propósito em nos colocar nela.

Portanto, Deus instrui a espécie humana não apenas para povoar a terra (instrução também dada a outras criaturas nos seus hábitats), mas também para subjugar a terra e para governar sobre as demais criaturas. As palavras kabag (sujeitar) e radah (governar) são palavras fortes, com o sentido de impor sua vontade sobre outros. Entretanto, elas não são termos que impliquem necessa-riamente em violência ou abuso, embora alguns críticos do cristianismo lancem a culpa pelo desastre ecológico nas costas dessas duas palavras e da liberdade que elas supostamente nos dão para saquearmos o meio ambiente (uma acusa-ção que tem sido bem refutada).

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Pessoas que cuidam da criação • 63

A primeira palavra, "sujeitar [a terra]'; implica provavelmente não mais do que a tarefa de agricultura, mesmo que agora inclua muitos outros produtos da engenhosidade e dos esforços humanos.

A segunda palavra, "dominar", é mais específica. Descreve a responsabilidade que os seres humanos possuem e não foi dada a nenhuma outra espécie — a tarefa de governar ou exercer domínio sobre o restante da criação. Com essa palavra, Deus está passando às mãos humanas uma forma delegada de sua própria auto-ridade real sobre toda a sua criação. Os reis e imperadores dos tempos antigos (até mesmo ditadores dos tempos modernos) colocavam enormes imagens de si mesmos nos confins mais remotos de seus domínios. Essas estátuas proclama-vam sua soberania sobre aquele território e aquele povo. A imagem representava a autoridade do rei. Semelhantemente, Deus estabelece a espécie humana como sua imagem na criação e autoriza os humanos a exercerem autoridade, mas esta, afinal, é uma autoridade que pertence a Deus, o criador e o dono da terra.

Mas, se os seres humanos foram destinados a ter a função de reis na criação, que tipo de rei é Deus? Como Deus exerce seu reinado na criação? Precisamos saber a resposta para que sejamos capazes de dizer o que significa para a huma-nidade, sendo imagem de Deus, agir como rei na criação.

"Essa compreensão ca imagem de Deus põe o nosso

suprematismo de cabeça para baixo, porque, se nos asse-

melhamos a Deus pelo fato de termos domínio, cevemos

ser chamacos para ser imitadores de Deus /Ef 5.1) no

moco com que exercemos esse comínio. Na verdade,

onge de nos dar total licerdace para agirmos na terra, a

image Dei nos constrange. Devemos ser reis, não tiranos.

Se nos tornarmos tiranos, negaremos e destruiremos a ima-

gem de Deus em nas")

Huw Spanner`

O Salmo 145 é um lugar para encontrar a resposta, porque é dirigido ao "Deus meu e Rei" e chama toda a criação para adorá-lo. Neste trecho, desco-brimos que o reino de Deus na criação é caracterizado pela sabedoria, poder,

4. Huw Spanner, "Tyrants, stewards - or just kings?" em Animal on the Agenda: Question about animais for theology and ethics (eds. Linzey Andrew e Dorothy Yamamoto; Londres: SCM, 1998), p. 222.

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64 • A missão do povo de Deus

bondade, graça, compaixão, fidelidade, generosidade, provisão, proteção, justiça e amor. Se isso é o que significa para Deus agir como rei, as mesmas qualidades devem ser vistas no modo com que nós, que fomos feitos à imagem de Deus, exercemos o domínio do qual Deus nos encarregou. Recebemos a missão de reinar sobre a criação, mas devemos fazê-lo do modo exemplificado no caráter e nos valores do reinado do próprio Deus.

Dessa forma, o domínio humano sobre o restante da criação deve refletir o próprio reinado de Deus. A imagem de Deus não é uma autorização para um abuso arrogante, e sim um padrão dado a nós para refletirmos, humildemente, o caráter de Deus.

Servos da criação — Gênesis 2.15 "Tomou, pois, o SENHOR Deus ao homem e o colocou no jardim do Éden para o cultivar e o guardar." (ARA) Aqui encontramos mais verbos que descrevem a mis-são dos seres humanos. Deus toma a criatura humana que havia feito e a coloca num ambiente especial que ele havia feito na terra - o jardim do Éden - com uma simples tarefa: a de servir e mantê-lo. Esse é o sentido mais simples desses verbos.

O verbo abadsignifica servir, com a conotação de fazer um trabalho árduo no processo de servir. Embora a maioria das traduções interprete esse verso com o sentido de trabalhar nele, lavrá-lo ou cultivá-lo, a essência dessa palavra ainda possui o sentido de servir. Os humanos são servos da criação. É assim que devem exercer seu reinado sobre ela.

A Grande Comissão que Jesus nos deu no Novo Testamento

deve ser mantida lado a lado com a Grande Comissão que

Deus nos deu no início da Bíblia. Em Gênesis 1, as primeiras

palavras ce Deus aos seres humanos são sobre governar a

criação e cuidar de a: os peixes, os pássaros e todas as

criaturas viventes, por amor a Deus. Essa é, se você prefere

assim cizer, uma cescrição universo de cargo do que signi-

fica ser "humano". Em re ação à questão "por que estamos

aqui?", a resposta final deve ser 'Para adorar e servir a

Deus". O primeiro elemento dessa adoração e serviço, do

qual a Bíblia fala, é o cuidado para com a criação.

Dave Bookless`

5. Bookless, Planettwise, p. 136.

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O verbo s''amar significa manter algo em segurança, com proteção, cuidado e vigilância. Significa tratar algo (ou alguém) com seriedade, como se isto fosse digno de uma atenção devotada (assim, no sentido moral, por exemplo, pode significar guardar o caminho do Senhor ou guardar a lei de Deus, estudando-a, compreendendo-a e obedecendo-a).

Portanto, os humanos são colocados num ambiente criado por Deus, para servirem esse ambiente e cuidarem dele. Isso deixa claro que a finalidade principal de nosso reinado sobre a terra é o seu benefício, não o nosso. É claro que a Bíblia diz muita coisa sobre o modo com que a criação serve às nossas necessidades humanas, conforme veremos em breve. Mas antes, precisamos co-meçar neste ponto: Deus nos criou para reinarmos sobre o restante da criação, por meio do serviço e do cuidado para com ela, ou seja, trabalharmos duro, de modo que cuidássemos da criação e protegêssemos seus melhores interesses. Governar e servir à criação é a primeira missão da humanidade sobre a terra e Deus jamais revogou este mandato.

Uma das principais responsabilidades dos reis, no Antigo Testamento, era agir especialmente em favor dos fracos e desamparados. O Salmo 72 é uma oração feita para que Deus dote o rei com justiça, de modo que ele possa de-fender os aflitos e necessitados. A justiça, no Antigo Testamento, não é uma imparcialidade cega, mas uma intervenção para estabelecer o que é certo, de tal forma que os injustiçados sejam defendidos, os oprimidos sejam libertados e aqueles que são fracos tenham sua voz ouvida e sua causa atendida. Eis um conselho desafiador dado a um rei por sua mãe:

Erga a voz em favor dos que não podem defender-se, seja o defensor de todos os desamparados. Erga a voz e julgue com justiça; defenda o direito dos pobres e necessitados. (Pv 31.8, 9; NVI).

Assim, para nós, humanos, governar o restante da criação como reis e agir como imagem de Deus, o Rei, significa fazer justiça bíblica em relação às cria-turas não humanas. E fazer justiça deve incluir uma preocupação especial pelo fraco e o indefeso.

"Fale por aqueles que não podem falar por si mesmos" (tradução a partir da NVI em inglês). Certamente, isso descreve não somente o que um rei deveria fazer por seus súditos, mas o que humanos deveriam fazer pela criação não humana. Ser a voz daqueles que não podem opinar é uma grande parte da moti-vação dos cristãos envolvidos em ações ecológicas, na proteção das espécies e de seus hábitats, na defesa do meio ambiente, e em coisas desse tipo. Na verdade, a preocupação com os animais é uma marca da pessoa justa (Pv 12.10).

Portanto, a primeira dimensão de nossa missão como povo de Deus é aquela que repartimos com o restante da humanidade: governar a criação da forma como Deus planejou, servindo-a e cuidando dela.

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66 A missão do povo de Deus

POR DEUS, POR NÓS, PARA SEMPRE Durante muitos anos, a Sociedade Real Britânica de Proteção aos Pássaros preservou este lema: "Pelos pássaros, pelas pessoas, para sempre". Tal sentença era clara e cativante. Sempre me tocou por ser muito bíblica, apesar da falta da principal expressão: "Por Deus".

À medida que o Antigo Testamento desenvolve o tema da criação, podemos identificar, pelo menos, três fortes ênfases. Cada uma delas serve de apoio para a nossa preocupação com a missão ecológica.

A glória de Deus é o alvo da criação A criação existe para o louvor e glória de Deus, o criador. Nós, humanos, sendo nós mesmos criaturas, compartilhamos dessa razão para existir. Conforme o Breve Catecismo de Westminster afirma: "O fim principal do homem é glo-rificar a Deus e regozijar-se nele para sempre". O nosso fim supremo, o alvo principal de toda a vida humana é trazer glória a Deus e ao fazermos isso, nós nos alegramos em Deus.

Esse alvo teocêntrico da vida humana (glorificar a Deus e regozijar-se nele) não é algo que nos separa do restante da criação. Em vez disso, é algo que par-tilhamos com o restante dela. Ele é o fim supremo de toda a criação. A única diferença é que nós, seres humanos, devemos glorificar a Deus de maneira ex-clusivamente humana. Somos as únicas criaturas feitas à imagem de Deus; por essa razão, o louvor e a glória que lhe damos refletem essa condição. Portanto, como humanos louvamos a Deus com nosso coração, nossas mãos, vozes, en-tendimento, emoções, linguagem, arte, inclusive a música e ofícios, com tudo o que reflete o Deus de quem fomos feitos imagem. O nosso louvor é explicita-mente um louvor humano.

Mas todo o restante da criação — animada e inanimada — já louva a Deus. De fato, na Bíblia, as criaturas são convocadas muitas vezes para louvar a Deus! Apenas leia o Salmo 148 e a linha que encerra o livro dos Salmos: "Todo ser que respira louve o SENHOR. Aleluia!" (S1 150.6; cf. 145.10, 21; 148). Há uma res-posta de gratidão que não é exclusividade dos beneficiários humanos da gene-rosidade de Deus, mas também procede das criaturas não humanas. (Exemplo: Salmo 104.27, 28.)

Devemos ficar perplexos com essa mensagem — o que não se constitui moti-vo para descrermos nela. Uma vez que somos humanos, conhecemos apenas a realidade de nossa pessoalidade humana, "do lado de dentro", e o que significa para nós louvar a Deus. Não podemos nos colocar na "mente" dos animais nem dentro de uma árvore ou de uma montanha nem nos colocar na mente de Deus, o criador, e compreender como ele se relaciona com sua criação não humana; entretanto, a Bíblia nos diz que ele faz isso e recebe o louvor de todas essas coisas. Talvez não sejamos capazes de explicar como a criação louva a quem a formou;

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Pessoas que cuidam da criação 67

isto, porém, não significa que devemos negar este fato, de que a criação louva a Deus, visto que é afirmado por toda a Bíblia com avassaladora convicção.

‘‘Essa resposta de gratidão é um traço funcamental dos

seres criados, que é comparti hado por todas as criaturas

da terra, humanos e animais, paisagens, mares e monta-

nnas, terra, vento, fogo e chuva. O sa mista encarrega

todas as coisas de rea izar o principal dever da criação:

adorar e louvar o Criador. ...] Na perspectiva hebraica,

a numanidace e o cosmo possuem importância mora , e é

exigido que ambos ceem uma resposta moral ao Criador;

uma resposta a Deus que reflita sua glória e ofereça uma

retribuição ce graticão, louvor e adoração [S 50].),

Michael Northcott'

Portanto, quando cuidamos da criação, compartilhamos o seu grande pro-pósito de dar glória a Deus. Por outro lado, quando falhamos em fazer isso ou quando participamos da destruição, poluição e desperdício da criação, estamos reduzindo-lhe até mesmo a capacidade de dar glória a Deus.

A vida humana e a criação estão integralmente conectadas A ligação íntima entre os seres humanos e a terra é clara desde o princípio. A palavra hebraica para "homem" (genericamente) é 'adam. E a palavra para terra ou solo (e, às vezes, para toda a terra) é 'adamah. Logo, realmente somos "cria-turas da terra", formadas do pó da terra, e compartilhamos sua mesma matéria básica — partículas, proteínas, DNAs minerais, principalmente a água, e daí por diante — assim como todas as outras criaturas, inclusive o próprio planeta. "Não dependemos da água; somos água" era a interessante frase inicial de um artigo recente da revista RSPB. Ele destacava o fato de que tudo quanto fizermos às fontes de água do planeta, estamos fazendo a nós mesmos.

O Antigo Testamento continua enfatizando esse relacionamento integral entre os humanos e a terra de duas maneiras:

6. Michael S. Northcott, The env ronment and Christian ethics (Cambridge: Cambridge University Press, 1996), p. 180-181.

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68 • A missão do povo de Deus

A terra provê para nós Primeiramente, Deus nos deu os recursos da terra para nosso alimento e so-brevivência. É lógico que isso também é verdade em relação a todas as espécies de animais; entretanto, uma permissão explícita é dada aos seres humanos em Gênesis 1.29, 30 e 9.3, para que possamos comer do que há ao redor de nós no mundo. A terra nos alimenta, veste-nos e nos abriga. Pense na grama por um momento: ela é, provavelmente, a forma de vegetal mais abundante do planeta, em suas inúmeras variedades em todos os climas. Comemos grama, uma vez que ela se torna a carne de muitos animais que pastam, cuja dieta diária é apenas esta; bebemos grama na forma de leite e coalhadas; vestimos grama nas roupas feitas de lã; calçamos a grama na forma dos sapatos feitos de couro. Milhões de pessoas ainda usam a grama como um abrigo eficiente contra a chuva e o sol, nos telhados de sapé; a grama trançada é usada em cordas, cestos e tapetes; ela, por si só, provê os humanos com benefícios incalculáveis e supre muitas das nossas necessidades; isso antes mesmo de pensarmos em falar nas espécies de grama cultivada, que produz uma vasta variedade de grãos nutritivos, os quais misturamos em nossa tigela de cereais pela manhã. Portanto, é um tanto arrogante continuarmos a discorrer sobre a forma de cuidar do meio ambiente, como se ele fosse apenas um objeto passivo que necessitasse de nossa simpatia. É o meio ambiente que cuida de nós, ministrando-nos, silenciosamente, a graça generosa de Deus, a cada dia que vivemos no planeta, conforme o Salmo 65.9-13 recorda com gratidão.

A terra sofre conosco O Antigo Testamento insiste numa forte ligação moral entre o modo de os hu-manos se comportarem sobre a terra e a própria condição desta — para o bem ou para o mal. Especificamente, a perversidade humana produz um estresse eco-lógico. As pessoas do Antigo Testamento talvez não tivessem compreendido as ligações científicas subjacentes entre a ação humana e os efeitos biológicos, mas puderam observá-las e tiraram conclusões teológicas e éticas sobre tais fatos.

Oseias oferece um exemplo mais direto dessa ligação, quando conclui sua classificação dos males da sociedade com seus sintomas deprimentes para a ordem natural.

Israelitas, ouvi a palavra do SENHOR; pois o SENHOR tem uma acusação contra os habitantes da terra; porque não há verdade, nem bondade, nem conhecimento de Deus na terra. Só prevalecem maldição, mentira, assas-sinato, furto e adultério; há violências e homicídios sobre homicídios. Por isso a terra se lamenta, e todos os seus habitantes desfalecem, juntamente com os animais do campo e com as aves do céu, e até os peixes do mar morrem. (Os 4.1-3).

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Deuteronômio 28 demonstra que a obediência e desobediência do povo terá respectivas consequências nas bênçãos e maldições que operam na ordem natural. Jeremias 4.23-26 retrata o julgamento de Deus sobre o que reverte tene-brosamente os dons da criação.

A questão é que não podemos arrancar a nós mesmos do ambiente natural da terra. Fomos criados como parte dele e fomos criados para cuidar dele. O que quer que façamos na terra, seja bem ou mal, terá um impacto ecológico, devido à integração entre a vida humana e todas as outras vidas da terra. Colhemos as consequências de nossas ações. Uma humanidade gananciosa levará a uma terra sofredora e uma terra sofredora levará a uma humanidade sofredora. Esse é o modo com que Deus a organizou.

A redenção de Deus inclui a criação Como todos nós sabemos muito bem, o efeito cumulativo de nosso descuido, durante gerações, está causando uma crise ambiental com proporções sem pre-cedentes. Não preciso entrar em detalhes, já que os fatos são bem conhecidos e crescentemente perturbadores (apesar de também confusos), nem tampouco pretendo exercer o papel de profeta e fazer predições pavorosas. Não podemos conhecer o futuro, e a combinação entre a graça de Deus e a engenhosidade humana ainda podem encontrar meios de impedir alguns dos piores cenários que nos assaltam seja pela sóbria ciência ou por filmes de ficção. Não obstante, o Antigo Testamento insiste em dizer que nosso futuro não depende da enge-nhosidade humana, por mais brilhante que ela seja (é claro que ela mesma faz parte do dom da criação de Deus em nós). Vivemos numa terra amaldiçoada, conforme Gênesis 3, mas também vivemos na terra da aliança, de acordo com Gênesis 9. Nossa sobrevivência não depende basicamente de nós, mas sim das promessas de Deus feitas a Noé, após o dilúvio, de que o próprio Deus sustenta os meios para a existência da vida no planeta - uma aliança feita não só com os humanos, mas explicitamente com toda carne na terra. Portanto, há uma garantia universal das intenções de Deus, mesmo na presente ordem natural tão estressada e arruinada por nossa ganância e destruição.

Mas, além disso, o Antigo Testamento inclui a criação especificamente na visão dos planos de Deus para a redenção. Deus planeja abençoar as nações. Ele prometeu a Abraão que faria isso. Esse será o tema que ecoará muitas vezes em nossas reflexões nos capítulos seguintes. Mas essa bênção nunca é concebida em termos de uma rápida transferência das nações para longe do planeta, para algu-ma outra abençoada habitação. Pelo contrário, será uma bênção com a criação e dentro da criação, que será finalmente redimida e restaurada para a condição das múltiplas bem-aventuranças que a caracterizavam em Gênesis 1 e 2.

A criação não é apenas um pano de fundo descartável na vida das criaturas hu-manas que na verdade teriam sido criadas para viver em outro lugar, e que um dia

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70 4 A missão do povo de Deus

irão para ele. Nós não somos redimidos para fora da criação, mas sim como uma parte da própria criação redimida — uma criação que novamente será plena e eter-namente para a glória de Deus, para nossa alegria e beneficio, e isso para sempre.

Os compositores dos cânticos de Israel gastaram muito tempo aguardando o dia em que Deus endireitaria todas as coisas. Quando Deus finalmente vier para julgar a terra, isso não será apenas negativo (embora isso signifique que o mal impenitente finalmente será tratado), mas significa que Deus vindicará o opri-mido, restaurará integralmente relacionamentos e trará paz e justiça à terra.

Mas esses compositores israelitas não pensam apenas nas pessoas. Toda a criação se beneficiará com a culminante redenção feita por Deus e exultará com isso. O Salmo 96 chega ao seu clímax, proclamando a vinda do reino de Deus, de modo que o impacto dela sobre a criação será inconfundível. Há um grande "coro de júbilo" vindo de toda a Ordem criada:

Dizei entre as nações: o SENHOR reina; ele firmou o mundo, para que não seja abalado. Ele julgará os povos com justiça. Alegrem-se os céus, e regozije-se a terra; ruja o mar e tudo o que nele existe. Exulte o campo, e tudo o que nele há; então todas as árvores do bosque cantarão de júbilo na presença do SENHOR, porque ele vem, vem julgar a terra, e julgará o mundo com justiça, e os povos, com fidelidade. (S196.10-13; cf. S198.7-9).

Os profetas, principalmente Isaías, compartilham esse entusiasmo. Isaías 11.1-9 retrata o rei justo do futuro reinado messiânico e termina com uma imagem de harmonia e shalom na Ordem criada. Isaías 35 também antevê a transformação da criação, quando Deus finalmente redimir o seu povo. No entanto, o clímax da visão futura acerca da criação, no Antigo Testamento, é encontrado em Isaías 65-66. As palavras "Pois crio novos céus e nova terra" (Is 65.17) introduzem uma maravilhosa seção que tem que ser lida na íntegra.

Pois crio novos céus e nova terra; e as coisas passadas não serão lembra-das, nem serão jamais recordadas. Mas alegrai-vos e regozijai-vos para sempre no que eu crio; porque crio alegria para Jerusalém e júbilo para o seu povo. Exultarei por Jerusalém e me regozijarei pelo meu povo; e ali nunca mais se ouvirá voz de choro nem voz de clamor. Ali não haverá mais criança que viva poucos dias, nem velho que não complete os seus anos; porque morrer aos cem anos será morrer jovem; mas o pecador será amaldiçoado aos cem anos.

Eles edificarão casas e as habitarão; plantarão vinhas e comerão do seu fruto. Não edificarão para que outros habitem; não plantarão para que outros comam; porque os dias do meu povo serão longos como os dias da árvore, e os meus escolhidos desfrutarão das obras das suas mãos

7. O tempo verbal sugere que isso é o que Deus já está fazendo ativamente, e não apenas urna intenção futura.

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Pessoas que cuidam da criação 71

por longo tempo. Não trabalharão em vão, nem terão filhos para cala-midade; porque serão a descendência dos benditos do SENHOR, e os seus descendentes estarão com eles. E acontecerá que responderei antes de clamarem; e os ouvirei quando ainda estiverem falando.

O lobo e o cordeiro pastarão juntos, o leão comerá feno como o boi; e a comida da serpente será o pó. Não farão mal nem dano algum em todo o meu santo monte, diz o SENHOR. (Is 65.17-25).

Esta visão inspiradora retrata a nova criação de Deus como um lugar de alegria, livre de tristeza e lágrimas, com realização na vida, com garantia de satisfação no trabalho, com libertação das maldições do trabalho frustrado e com um meio ambiente seguro! Essa é uma visão que faz da maioria dos sonhos da Nova Era uma caricatura.

Isso nos leva naturalmente a compreender a maneira com que o Novo Tes-tamento vê o cumprimento dessa grande esperança para a criação na redenção realizada por Jesus Cristo. Primeiramente, resumamos o que vimos até aqui.

Deus, quando criou a terra, criou os seres humanos à sua imagem, dando-lhes a expressa missão de dominar a criação por meio do cuidado dela — uma tarefa que tinha como modelo o reinado do próprio Deus. Essa missão humana jamais foi revogada nem foi dada isenção alguma aos cristãos sob a alegação de que temos coisas melhores a fazer.

À medida que participamos nessa tarefa de governar a criação e de cuidar dela, estamos participando da própria glória e louvor que a criação dá ao Criador, o que, por sua vez, é uma resposta ao fato de que ela, pela intenção de Deus, provê, em abundância, as nossas necessidades. Entretanto, mesmo quando fazemos isso, estamos cientes do sofrimento aterrorizante e da profanação da criação, que é consequência de nosso pecado, ganância e violência. Nós olhamos não só para os primórdios da criação, que nos impulsionam para a missão ecológica, mas também olhamos para o futuro, para a redenção da criação, que nos impele para adiante, na esperança e na segurança de que nosso trabalho não é vão no Senhor.

POR MEIO DE CRISTO, PARA CRISTO Talvez, com um suspiro de alívio e alguma impaciência, passemos ao Novo Testamento. Afinal, é aqui que encontramos o Cristo, cuja Grande Comissão dirige nossa missão, o Cristo em cujo nome a nossa missão é autorizada e se torna eficaz. Uma vez que nossa mente se volta para Cristo, uma série de textos conhecidos nos inundam. "Ela dará à luz um filho, a quem darás o nome de Jesus; porque ele salvará seu povo dos seus pecados" (Mt 1.21). "[...] Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores" (1Tm 1.15). Salvar pecadores era a missão de Jesus e o significado da cruz. Certamente, isso também constitui os parâmetros de nossa missão. Se a nossa missão flui da obra redentora feita por

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72 A missão do povo de Deus

Cristo e sua cruz, onde a criação se enquadra? Salvar pecadores e não salvar as baleias ou as árvores — não é com isso que devemos nos preocupar?

Uma vez mais, temos que destacar: embora seja gloriosamente verdade que os pecadores são salvos por meio da cruz de Cristo, esse não é realmente o evangelho todo ou a realização completa da cruz, não conforme o próprio Novo Testamento.

Todas as coisas foram reconciliadas pela cruz Leia Paulo expondo sua grandiosa visão da obra de Cristo numa passagem que parece ser definitivamente a esperança do evangelho. Ela é muito clara e cuida- dosamente construída.

Ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito sobre toda a criação; porque nele foram criadas todas as coisas nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam dominações, sejam principados, sejam poderes; tudo foi criado por ele e para ele. Ele existe antes de todas as coisas, e nele tudo subsiste; ele também é a cabeça do corpo, que é a igreja; é o princípio, o pri-mogênito dentre os mortos, para que em tudo tenha o primeiro lugar. Porque foi da vontade de Deus que nele habitasse toda a plenitude e, havendo feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio dele reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, tanto as que estão na terra como as que estão no céu.

A vós também, que no passado éreis estrangeiros e inimigos no entendi-mento por causa das vossas obras más, agora ele vos reconciliou no corpo da sua carne, pela morte, a fim de vos apresentar santos, inculpáveis e irrepreen-síveis diante dele, se é que permaneceis na fé, fundamentados e firmes, sem vos afastar da esperança do evangelho que ouvistes e que foi pregado a toda criatura debaixo do céu, do qual eu, Paulo, me tornei ministro. (Cl 1.15-23).

Há vários aspectos que devemos notar nesse texto maravilhoso. Paulo está discorrendo sobre toda a criação. Ele primeiro diz "toda a criação"

(v. 15). Em seguida, usa a expressão "todas as coisas nos céus e na terra" (v. 16). Não poderia estar mais claro que Paulo tem em mente a completude do universo

criado e não apenas os seres humanos. Paulo liga Cristo e a criação da forma mais abrangente possível. Cristo estava

lá, naturalmente, como o Filho de Deus, mesmo antes de a criação existir (v. 17). Cristo é a fonte da criação do universo (v. 16). Ele é o beneficiário ou herdeiro de toda a criação (o "primogênito" [v. 15], "nele" [v. 16]). Cristo sustenta a exis-tência da criação (v. 17).

Paulo inclui a criação no poder salvifico da cruz. Cristo redimiu a criação (v. 20). É vital ver aqui que o sangue de Cristo derramado na cruz é o meio de reconciliar a criação com Deus, não apenas os pecadores. "Todas as coisas" que são reconciliadas, no versículo 20, deve ter o mesmo sentido universal de "todas as coisas" que foram criadas, no versículo 16.

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Pessoas que cuidam da criação * 73

A ordem do argumento de Paulo nesse texto também é reveladora e contrária à forma como tendemos a descrever o evangelho. Partimos do outro extremo. Temos a tendência de começar com indivíduos que precisam resolver seu pro-blema de pecado. A cruz é a resposta a esse problema dos indivíduos, para que possam ser salvos e ir para o céu. Nesse meio-tempo, você precisa de comunhão e companhia no caminho para o céu. É para isso que a igreja serve; logo, é melhor que você se una a uma delas. Com relação ao mundo lá fora, temos que viver nele até chegarmos ao céu, mas não devemos ficar muito obcecados por ele, já que é o céu o que realmente importa.

Indivíduos igreja mundo céu. Essa é a nossa trajetória, que é edificada sobre um dualismo.

O evangelho de Paulo, entretanto, opera exatamente na direção oposta. Na verdade, Deus tem um plano muito grandioso. Paulo começa com a criação e a relaciona a Cristo como o seu criador e sustentador. Depois, passa para a igreja (v. 18), que será o povo da nova criação, porque eles estão em Cristo, que é o primogênito da nova criação, assim como é o primogênito da criação original. Em outros termos: a igreja pertence a Cristo, porque todas as coisas pertencem a Cristo, e ela já é, nesta criação, a prefiguração do povo redimido de Deus da nova criação. Assim, tendo falado de toda a criação e de toda a igreja, Paulo resume tudo isso na obra reconciliadora da cruz (v. 20).

Finalmente, após ter esboçado o grandioso plano de Deus para todo o universo e destacado a centralidade da cruz em todos esses aspectos, Paulo acrescenta: "Oh, sim, até mesmo vocês ['a vós também' no início do verso 21, é enfático] passaram a fazer parte disso! Vocês, que eram 'gentios na carne' [con-forme descrito em Efésios 2.11, 12; ARA], podem estar entre os reconciliados pela fé no evangelho, que agora é para todos, em todo lugar" ("pregado a toda criatura debaixo do céu", v. 23, seria melhor traduzido por "proclamado para toda a criação/em toda a criação debaixo do céu". Paulo vê toda a terra criada como a esfera para a proclamação do evangelho).

Boas-novas para toda a criação A visão que Paulo tem do evangelho é tão ampla quanto a da própria criação. Isso se dá porque sua compreensão da cruz inclui toda a criação na obra recon-ciliatória de Cristo. Nossa missão é fundada sobre o evangelho e precisa refletir a altura, a largura e a profundidade do evangelho. Logo, se a cruz de Cristo é uma boa-nova para toda a criação, nossa missão deve incluir ser e trazer uma boa-nova para toda a criação.'

8. No chamado "final prolongado" do Evangelho de Marcos, Jesus disse aos seus discípulos: "Ide por todo o mun-do, e pregai o evangelho a toda criatura" (Mc 16.15). Talvez esse não tenha sido o texto original deixado nas mãos de Marcos, mas ele certamente reflete um discernimento bíblico verdadeiro. O evangelho da morte e da ressurreição de Jesus é realmente uma boa-nova para toda a criação. Sem dúvida, o autor do Salmo 96 concordaria com isso.

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74 • A missão do povo de Deus

Sendo assim, o nosso cuidado para com a criação é motivado não apenas porque ela é obra de Deus nem porque recebemos uma ordem para cuidar dela, mas também porque ela foi redimida por Cristo, de modo que devemos nos erguer como placas de sinalização que indicam seu destino final de completa restauração em Cristo. A missão do Redentor inclui a criação. A nossa missão envolve a participação na obra redentora, por sermos designados agentes das boas-novas para a criação e para as pessoas.

Outros trechos do Novo Testamento continuam discorrendo sobre essa gran-diosa visão do futuro. Paulo relaciona a redenção da criação com a redenção e a ressurreição de nossos corpos, em Romanos 8, uma passagem extremamente significativa.

[...Ia criação aguarda ansiosamente a revelação dos filhos de Deus. Porque a criação ficou sujeita à inutilidade, não por sua vontade, mas por causa daquele que a sujeitou, na esperança de que também a própria criação seja libertada do cativeiro da degeneração, para a liberdade da glória dos filhos de Deus. Pois sabemos que toda a criação geme e agoniza até agora, como se sofresse dores de parto; e não somente ela, mas também nós, que temos os primeiros frutos do Espírito, também gememos em nosso íntimo, aguardando ansiosamente nossa adoção, a redenção do nosso corpo. (Rm 8.19-23).

Pedro também aguarda o que vem além do juízo de Deus purificador, que destruirá todo o mal na presente ordem do mundo natural, para que haja uma nova criação, redimida.

Nós, porém, segundo sua promessa, aguardamos novos céus e nova terra, nos quais habita a justiça. (2Pe 3.13).

A linguagem de fogo e destruição não significa que toda a criação será elimi-nada. Pelo contrário, ela é paralela aos mesmos termos utilizados para descrever a forma com que o mundo pecaminoso foi destruído pela água no dilúvio (2Pe 3.6, 7). O que foi destruído no dilúvio não foi todo o planeta, mas o mundo de pecado e rebelião. Da mesma forma, o que será destruído no juízo final não é o universo, mas o pecado da humanidade e a devastação que ela causou. Ocorrerá um incêndio que limpa e purifica, para que a nova criação seja um lugar desti-tuído do pecado e cheio de justiça, porque o próprio Deus habitará lá entre o seu povo redimido (Ap 21.1-4).9

Consequentemente, nossa missão de seres humanos criados é cuidar da terra que Deus criou. Essa missão é ainda mais intensa para nós, redimidos, porque

9. Veja Wittmer, Heaven is a place on Earth, p. 201-203.

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também aguardamos ansiosamente a redenção da criação. Como cristãos pos-suímos, em nossa atividade ecológica, uma dimensão criadora e redentora, que é uma resposta missional ao que a nossa teologia bíblica nos ensina acerca do propósito de Deus para a criação, desde o início até o fim da Bíblia.

RESUMO Espero que meu breve estudo sobre a teologia bíblica da criação tenha oferecido justificativas suficientes para dizer que os cristãos devem estar na vanguarda do cuidado para com a criação. Temos, para fazer isso, razões muito mais profun-das provenientes de nossa fé e de nossa visão de mundo do que simplesmente a prudência ou servir aos nossos próprios interesses (é melhor fazermos o bem ou estaremos fritos). Portanto, os cristãos devem procurar viver bem neste pla-neta, evitando o desperdício de energia, reduzindo nossos rastros de carbono, reciclando produtos em vez de jogá-los fora, prevenindo a poluição e apoiando iniciativas políticas e econômicas que protejam o meio ambiente contra uma destruição maior desnecessária.

Há algo mais? Que dizer da missão ecológica? É legítimo aplicar nossa teo-logia bíblica para a vida nessa questão, afirmando que algumas pessoas são chamadas e enviadas por Deus com a missão específica de cuidar da criação, fazer investigações científicas na esfera ecológica, conservar o hábitat e assim por diante? Creio que a resposta seja sim. Sugerirei algumas razões para isso quando, no capítulo 15, chegarmos a refletir na relevância.

QUESTÕES RELEVANTES 1. Se a história da Bíblia vai da criação para a nova criação, que deveria isso

significar para a agenda de missão da sua igreja, se ela deseja ser total-mente bíblica?

2. De que forma este capítulo enriqueceu o seu entendimento acerca de Jesus, principalmente em relação ao significado e alcance de sua missão por meio da cruz e da ressurreição?

3. Como a inclusão do cuidado com a terra na missão da igreja afeta sua percepção da responsabilidade dos cristãos e da igreja nas questões ambientais?

4. Existem determinados padrões de comportamento e de mordomia que você sente que deveriam mudar em sua própria vida como resultado des-sa perspectiva?

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CAPITULO 4

PESSOAS QUE SÃO UMA BÊNÇÃO PARA AS NAÇÕES

Quem foi o maior missionário na Bíblia? Alguns podem dizer que foi Jesus, mas a maioria provavelmente responderia que foi Paulo. Este certamente permanece como aquele que, sendo o "apóstolo das nações",

anteviu e realizou a grande transição do evangelho para além da divisão entre judeus e gentios e, assim, pôs em ação o movimento que veria a propagação do evangelho para cada canto do mundo.

Como Paulo entendia sua própria vida e obra missionária? Que ele estava tentando realizar? Que o fazia continuar, apesar de todas as críticas e espanca-mentos (literalmente) em sua carreira missionária?

• A OBEDIENCIA DA FE ENTRE TODAS AS NAÇOES Paulo nos diz isso numa frase que surge no início e ressurge no final de sua maior carta. Ele afirma que seu chamado para apóstolo era feito "para [realizar] a obediência da fé, entre todos os gentios [todas as nações]", por amor ao nome de Cristo (Rm 1.5; repetido em 16.26).

Essa é uma ambição que ressoa com os fortes ecos de Abraão, o personagem do Antigo Testamento que, por excelência, foi o modelo de fé e de obediência, conforme Paulo, Tiago e o autor de Hebreus testemunham. O horizonte de "todas as nações" remonta à promessa de Deus feita a Abraão de que, por meio deste, todas as nações da terra seriam abençoadas.

Desse modo, Paulo está indicando, através dessa frase proeminentemente colocada, que o serviço do evangelho de toda a sua vida era produzir comu-nidades sósias de Abraão em todas as nações, e não só naquela que descendia de Abraão. Trata-se de uma meta ambiciosa, com certeza, mas profundamente arraigada em sua leitura da missão de Deus, conforme foi expresso na promessa feita a Abraão.

Mas há algo mais profundo aqui. Paulo não queria apenas dizer que Abraão era um ótimo exemplo que ele poderia utilizar para ilustrar a doutrina da justi-ficação, a qual ele estava para expor no restante da carta. A promessa de Deus a Abraão não era simplesmente uma ilustração ao acaso sobre outro fato qualquer. Ela era o próprio fato - a própria agenda de Deus para salvar o mundo. A pro-messa de Deus a Abraão, resumindo, era o evangelho. De fato, as boas-novas.

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Pessoas que são uma bênção para as nações • 77

Paulo descreve tal promessa, em Gálatas, da seguinte forma:

Ora, tendo a Escritura previsto que Deus justificaria pela fé os gentios [as nações], preanunciou o evangelho a Abraão: 'Em ti, serão abençoados todos os povos' (Gl 3.8; ARA, grifo do autor).

Portanto, o evangelho, as boas novas que saem da própria boca de Deus, é que Deus quer abençoar todas as nações e deseja fazer isso por meio de Abraão e seus descendentes.

Quem somos nós, afinal? Somos como os gálatas a quem Paulo estava es-crevendo. Se estamos entre as nações gentílicas e viemos a crer em Jesus como o Messias de Israel e salvador do mundo, entramos na bênção de Abraão. Na verdade, tornamo-nos parte do povo de Abraão. De acordo com Paulo, estar em Cristo é estar em Abraão, não importa qual seja nossa identidade étnica, social ou de gênero.

Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre; não há homem nem mulher, porque todos vós sois um em Cristo Jesus. E, se sois de Cristo, então sois descendência de Abraão e herdeiros conforme a promessa. (Gl 3.28, 29).

Que significa isso para a nossa missão? Se agora somos o povo de Deus e, consequentemente, também de Abraão, como isso afetará nossa compreensão sobre quem somos e para que estamos aqui? Antes de tudo, precisamos ver como foi importante a escolha que Deus fez de Abraão para a implantação da própria missão de Deus de conceder bênçãos redentoras. Depois, precisamos examinar minuciosamente alguns dos ecos de Abraão, ao longo do Antigo e do Novo Testamento. Esses ecos demonstram que isso é, na verdade, um dos temas mais importantes da teologia bíblica. Finalmente, poderemos aplicar tudo isso à nossa própria prática de missão. De que forma devemos ter a fé e a obediência de Abraão como o modelo de nossa missão prática? Que significa dizer que somos o povo escolhido para abençoar as nações?'

Mas, primeiro precisamos ver a relação que isso tem com o capítulo anterior. Ali exploramos o grande arco bíblico que vai desde a criação até à nova criação. Foi a rebelião humana que arruinou a boa criação de Deus e levou ao projeto de restauração de Deus, que agora começa com Abraão. E a história que aqui começa é o primeiro passo no caminho que leva à nova criação propriamente dita. Estamos diante de um momento-chave na história da Bíblia.

1. Para um estudo mais completo sobre o tema da eleição de Abraão e suas implicações para a missão, veja em The mission of God, os capítulos 6 e 7. Algumas das seções que se seguirão no presente capítulo são exten-sivamente extraídas dessa pesquisa.

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78 A missão do povo de Deus

ABRAÃO NO CONTEXTO DESOLADOR DE GÊNESIS 1-11 A grande promessa de Deus a Abraão, geralmente chamada de aliança abraâ-mica, aparece em Gênesis 12.1-3. Mas Gênesis 12 vem depois de Gênesis 1-11. Isso pode parecer óbvio, mas é crucialmente importante, porque toda a questão sobre aquilo que Deus inicia com sua promessa a Abraão só se torna clara quan-do a vemos em contraste com o contexto tenebroso daqueles capítulos.

Após os grandiosos capítulos iniciais da criação, a história bíblica entra em desordem em Gênesis 3, quando as criaturas humanas de Deus escolhem se rebelar contra seu criador, desacreditando sua benevolência, desobedecendo à sua autoridade e desrespeitando os limites que ele havia prescrito para a li-berdade deles em seu mundo. Isso produz uma ruptura radical em todos os relacionamentos estabelecidos na criação. Os seres humanos se esconderam de Deus com temor, cientes de que eram culpados. Homens e mulheres já não podem mais encarar um ao outro sem vergonha nem culpa. O solo passa a estar sob a maldição de Deus e a terra já não responde ao toque do ser humano como deveria fazê-lo.

Os capítulos seguintes (do capítulo 4 ao 11), portanto, combinam uma esca-lada crescente do pecado humano paralelamente aos repetidos sinais da graça de Deus. A cabeça da serpente será esmagada. Adão e Eva são vestidos. Caim é protegido. Noé e sua família são salvos. A vida continua e a criação é preservada, protegida pela aliança. O grandioso projeto da criação ainda está progredindo, mas prossegue manquejando sob o peso incapacitante do pecado humano.

Após o dilúvio, Deus renova sua promessa à criação e os seres humanos são novamente enviados, debaixo da bênção de Deus, para se multiplicarem e encher a terra (Gn 9.1); no entanto, a história entra em apuros mais uma vez, no capítulo 11. A decisão humana de estabelecer e construir uma cidade com uma torre, na terra de Sinar, parece combinar arrogância (no desejo de fazer o próprio nome) e insegurança (na ânsia de não serem espalhados sobre toda a terra, conforme Deus planejou). A história de Babel nos apresenta a um povo que parece ter a intenção de invadir os céus, embora resistam à vontade de Deus para eles na terra.

O resultado disso é uma divisão caótica. Gênesis 3-11 nos revela como cada dimensão da vida é tragicamente desvirtuada da bondade original do propósito de Deus. A terra se encontra debaixo da sentença de maldição de Deus, por causa do pecado humano. Os seres humanos acrescentam mais coisas ao seu catálogo de maldades, conforme as listas das gerações passadas - ciúme, ira, homicídio, vingança, corrupção, violência, embriaguez, distúrbio sexual, arro-gância. Os animais estão sendo mortos para alimentação, com a permissão de Deus, mas dificilmente com o maior prazer do criador. As mulheres desfrutam a dádiva do parto juntamente com sofrimento e dor. Os homens encontram

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satisfação em dominar a terra; entretanto, com suor e frustração. Ambos gozam da complementaridade sexual e da intimidade, mas com luxúria e dominação. Cada inclinação do coração humano é contaminada com a maldade. A tecno-logia e a cultura estão progredindo, mas a habilidade que pode confeccionar instrumentos para a música e para a agricultura também pode forjar armas para mortes violentas. As nações experimentam as riquezas de sua diversidade étni-ca, linguística e geográfica, juntamente com confusão, dispersão e rivalidade.

A partir disso, para onde a missão de Deus pode seguir? Que pode Deus fazer a seguir? Seja o que for, terá que lidar com uma ampla agenda de reden-ção. Gênesis 1-11 propõe uma pergunta cósmica para a qual Deus deve dar uma resposta cósmica. Os problemas colocados de forma tão chocante diante do leitor de Gênesis 1-11 não serão resolvidos apenas se encontrando uma maneira de levar os seres humanos para o céu quando morrerem. A própria morte deve ser destruída para que a maldição seja removida e o caminho para a árvore da vida, aberto. O amor e o poder de Deus devem tratar não apenas do pecado dos indivíduos, mas da rivalidade e das contendas das nações; não só das necessidades dos seres humanos, mas também do sofrimento dos ani-mais e da maldição do solo.

Para que isso seja realizado vai ser necessário usar todo o resto da história bíblica, de Gênesis 12 a Apocalipse 21-22. A teologia bíblica engloba essa ampla extensão de problema e solução. Portanto, nossa teologia bíblica de missão deve cobrir essa mesma extensão.

Que pode Deus fazer a seguir? Algo que somente Deus poderia ter pensado. Deus vê um casal de idosos, sem filhos, na própria terra de Babel, e decide fazer deles uma plataforma de lançamento para toda a sua missão de redenção cós-mica. Quase se poderia ouvir a respiração intensa dos anjos quando esse plano surpreendente foi revelado. Eles conheciam, assim como o leitor de Gênesis 1-11 agora conhece, a completa sequência de devastação que a malignidade da serpente e a recalcitrância dos humanos causaram na criação de Deus. Que tipo de resposta Deus pode oferecer por intermédio de Abrão e Sarai? Contudo, esse é precisamente o próximo seguimento.

O chamado de Abrão é o começo da resposta de Deus à maldade dos co-rações humanos, à rivalidade das nações e à fraqueza lamuriosa de toda a sua criação. É o início da missão de Deus e da missão do povo de Deus.

ABRAÃO E A SURPRESA DE DEUS -UMA BÊNÇÃO PARA AS NAÇÕES

Ora, disse o SENHOR a Abrão: Sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai

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80 • A missão do povo de Deus

e vai para a terra que te mostrarei; de ti farei uma grande nação, e te abençoarei, e te engrandecerei o nome. Sê tu uma bênção! Abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; em ti serão benditas todas as famílias da terra. (Gn 12.1-3; ARA).

Não é difícil ver qual é o tema central desses versículos. As palavras aben-

çoar e bênção resplandecem nele como um fio de ouro. Na verdade, &Irak,

ocorre cinco vezes nos três versos - o que é uma súbita e surpreendente boa-nova!

À parte das palavras de Deus a Noé imediatamente após o dilúvio, não ou-vimos muito sobre bênção, como nos capítulos iniciais de Gênesis, quando as bênçãos de Deus banharam toda a criação. Por meio do pecado e da rebelião, a história vai bruscamente para o juízo e para a maldição. Mas agora, Deus fala novamente, do mesmo modo como falou na criação, com palavras de bênção, primeiro a Abraão, mas, depois, a todas as nações da terra, por meio de Abraão.

Não admira que Paulo leu este texto como um prenúncio do evangelho (Gl 3.8). Essa é a gloriosa surpresa de Deus. Apesar de tudo o que aconteceu nos capítulos anteriores, Deus ainda pretende abençoar as nações. Ele começará essa grande missão de bênção por meio de Abraão.

Mas que significa "bênção"? Muito facilmente nossas mentes como cris-tãos deslizam rapidamente para o modo espiritual, e versos como Efésios 1.3 saltam: "Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos tem abençoado com toda sorte de bênção espiritual nas regiões celestiais em Cristo" (ARA). Podemos ser tentados a pensar que somente bênçãos espiri-tuais estão contidas na promessa de Deus a Abraão, mas, é claro, devemos tomar as palavras em seu contexto mais amplo e completo. Ao fazermos isso, descobrimos que existem vários ingredientes valiosos e complementares no conceito bíblico de "bênção".

A bênção e a bondade da criação No majestoso relato da criação em Gênesis 1, a bênção de Deus é pronunciada três vezes: no quinto dia, Deus abençoou os peixes e as aves; no sexto dia, aben-çoou os seres humanos; no sétimo, abençoou o sabat. As duas primeiras bên-çãos foram imediatamente seguidas da instrução para se multiplicar e encher os mares e a terra. A terceira é seguida por palavras de santificação e do repouso que definem o sábado.

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Bênção, portanto, no início de nossa Bíblia, por um lado, é constituída de fer-tilidade, abundância e plenitude; por outro, do desfrute do descanso na criação, num relacionamento santo e harmonioso com o nosso Deus Criador. A bênção é dada para se começar bem. Encontramos os mesmos temas nas palavras de bênção que Deus dá a Noé, em Gênesis 9 (vv. 1-3, 9-17).

Logo, quando chegamos ao capítulo 12.1-3, a palavra de bênção deve, pelo contexto até então, incluir pelo menos o conceito de fertilidade, multiplicação, propagação, satisfação e abundância. Essa é uma palavra rica de afirmação da vida. É isso o que Deus deseja para as nações da humanidade.

Entretanto, não há nada de mecânico em ser abençoado dessa maneira. A bênção é estabelecida nos relacionamentos que são tanto verticais quanto hori-zontais, ou seja, a bênção é dependente do relacionamento com Deus e também é algo para ser compartilhado nos relacionamentos com outros seres humanos.

Por um lado, verticalmente, aqueles que são abençoados conhecem o Deus que os está abençoando e procuram viver num relacionamento fiel para com seu Deus. Os patriarcas sabiam que as bênçãos que os acompanharam durante todas as suas vidas estavam intimamente vinculadas ao seu relacionamento com Deus. Quando o idoso e cego Jacó abençoa os dois filhos de José ele reconhece isto. Jacó sabia de quem sua bênção viera:

E abençoou a José, dizendo: O Deus em cuja presença andaram meus pais Abraão e Isaque, o Deus que me sustentou durante a minha vida até este dia, o Anjo que me tem livrado de todo mal, abençoe estes rapazes [...] (Gn 48.15, 16; ARA)

Por outro lado, horizontalmente, o elemento relacional da bênção alcança aqueles que estão ao redor. Gênesis tem vários exemplos de outras pessoas sen-do abençoadas mediante o contato com aqueles a quem Deus abençoou. Aque-les que herdam a bênção familiar abraâmica descobrem que devem cumprir o propósito de Deus, que sejam uma bênção para os outros.

• Labão é enriquecido pela bênção de Deus a Jacó (30.27-30). • Potifar é abençoado pela presença de José (39.5). • Faraó é abençoado por Jacó (47.7, 10).

Assim, a bênção de Abraão se torna automultiplicadora. Aqueles que são abençoados são chamados para ser uma bênção para além de si mesmo — essa é uma característica que a torna tão profundamente missional. Isto, porque, se vemos a nós mesmos (como deveríamos, de acordo com Paulo em Gálatas) como aqueles que entraram na bênção de Abraão pela fé em Cristo, a comissão abraâmica também se torna nossa: "Seja uma bênção".

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82 ti, A missão do povo de Deus

A bênção e a esperança dentro da história Quando combinamos o quadro tenebroso de Gênesis 3 a 11 com a promessa de bênção do capítulo 12, podemos prever que a história a seguir envolverá ambas as realidades. Sabemos que estaremos assistindo a dois cenários desenrolando-se simultaneamente, conforme Jesus declarou, em sua parábola, que o trigo e o joio crescem no mesmo campo. Por um lado, sabemos que a história será a arena onde o pecado humano ficará ainda pior; por outro, estaremos observando as pega-das da bênção de Deus e olhando adiante para ver como ele manterá sua ampla promessa de levar a bênção para todas as nações através da nação que emergirá dos lombos de Abraão. A bênção tomará uma dimensão histórica, introduzindo esperança e fé numa narrativa que, doutra forma, seria tenebrosa e deprimente.

Isso também significa que a bênção será missional, porque é precisamente essa promessa de que todas as nações da terra serão abençoadas por meio da eleição que Deus fez de Abraão, que impulsiona a missão de Deus e a missão do povo de Deus, que flui da missão de Deus.

Num nível mais básico, quem era esse povo chamado Israel no Antigo Testa-mento e para que ele existia? Para ser o veículo da missão de Deus de estender sua bênção às nações.

Quem somos e para que estamos aqui? A mesma resposta tem que ser dada. De fato, ela é dada no Novo Testamento, conforme veremos no final. Nós também devemos ser um povo por meio do qual as nações são abençoadas. A história da missão é a história da disseminação da bênção de Deus, a história de Deus mantendo sua promessa a Abraão.

Bênção, salvação e obediência

"A bênção é o modo de Deus capacitar a criação a ser

fértil e frutífera, a crescer e florescer. Esse é o sentido mais

abrangente do propósito de Deus para a sua criação.

Onde quer que a vida humana desfrute as coisas coas da

criação e produza frutos bons da atividade humana Deus

está derramando sua bênção. Onde quer que as pessoas

bendigam a Deus por suas bênçãos, nesse ponto Deus é

connecido como o com Criador, que provê para o cesen-volvimento humano. A cênção de Deus é universo . E a

bondade de Deus na criação, a qual não é separada de

sua boncade na salvação, como às vezes se propõe ,)

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Pessoas que são urna bênção para as nações • 83

Deus prometeu abençoar Abraão num relacionamento de aliança, no qual Abraão respondeu com fé e obediência. Isso permaneceu como o padrão tam-bém para Israel.

A sa vação também é aênção de Deus, já que é o cum-

primento dos bons propósitos de Deus para a criação — pro-

pósitos já expressos nela. Mas a salvação é o cumprimento

dos propósitos de Deus apesar do dano que o mal causa

à criação de Deus. A dênção abraâmica é mais co que

a bênção da criação, porque ela foi designaca para com

bater e vencer o seu oposto: a malcição de Deus. [.

A bênção não era automática ou mecânica. Fluía de tudo o que Deus já havia feito por Israel na graça da redenção, provisão e proteção. E a bênção fluía ape-nas à medida que Israel respondia à graça de Deus numa obediência pactual. A bênção da salvação exigia uma resposta de obediência pactual, para que a bênção continuasse a ser desfrutada.

"O alvo supremo da promessa de Deus a Abraão é que

a denção prevaleça sopre a malcição. Isso aconteceu

quando a semente de Abraão, o descencente escolhido de

Abraão (o Messias), '[...] fazendo-se ele próprio malcição

em nosso lugar [...1 para que a bênção de Abraão cnegas-

se aos gentios" (GI 3.13, 14; ARA). E à luz desse fato que

Paulo cnama ce evangelho a promessa feita a Abraão, de

que tocas as nações seriam a ençoadas. _...] O evangelho

é este: em Cristo Jesus a maldição foi posta de lado e o

propósito criador ce Deus para abençoar sua criação está estaaelecico sem qua quer possibilidade de ser revertido.),

Richard Bauckliam'

2. Richard Bauckham, Bible and mission: Christian mission in a post modern world (Carlisle: Paternoster; Grand Rapids: Baker Academic, 2003), p. 34-36.

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84 • A missão do povo de Deus

Deuteronômio chega ao seu clímax com um poderoso apelo para que Israel "escolha a vida", ou seja, mantenha seu desfrutar da bênção de Deus (na qual eles já permaneciam pela graça redentora de Deus). Eles só poderiam fazer isso por meio de um relacionamento de amor, confiança e obediência a seu Deus (Dt 30). Isso não significa, é claro, que Israel tenha escolhido a vida ou merecido dele a bênção ou qualquer um de seus atos grandiosos de salvação. É um erro básico pensar que, no Antigo Testamento, a bênção ou a salvação era obtida por meio da obediência (esse é um modo equivocado de ler Deuteronômio 28.1-14). Ao contrário, a bênção é intrínseca ao relacionamento da aliança estabelecido pela graça salvadora. O padrão é claro em Deuteronômio 26: a bênção redentora inicial de Deus foi experimentada como uma questão de grata alegria (vv. 1-11). Isso leva a uma obediência que reage (vv. 1-14). Por sua vez, é o contexto em que mais bênçãos podem ser previstas (v. 15), na estrutura de um compromisso pactual mútuo (vv. 16-19).

"Afirmamos que há uma visão 3íblica de prosperidace

humana e que a Bicha inclui o cem-estar material (saúde

e riqueza) no seu ensino acerca da bênção de Deus. Isso

necessita de mais estudos e explicações ao longo ce

toda a Bi3lia, em ambos os testamentos. Não devemos

dicotomizar o material e o espiritual num cualismo não

bíblico. Entretanto, rejeitamos a noção antibíblica so3re

a possibilidade de o bem-estar espiritua ser medido em

termos ce bem-estar material ou a noção sobre a riqueza,

sendo esta sempre um sinal da bênção ce Deus, visto que

pode ser obtida por opressão, engano e corrupção, ou

sobre a pobreza, a doença ou a morte precoce, sempre

como sinais da malcição ce Deus ou da falta de fé, já que

a Bíblia nega explicitamente que o seja")

Grupo de Trabalhos Teológicos de Lausanne

3. "A statement of the prosperity gosper; por Africa Chapter on the Lausane Theology Working Group [parágrafo 2, grifos no original]. A afirmação completa pode ser lida em <www.lausanne.org/all-documents/ a-statement-on-the-properity-gospel.html.

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Pessoas que são uma bênção para as nações 4, 85

Obediência é, portanto, o meio de se viver dentro da esfera da bênção, des-frutando-a; obediência nunca é o meio de se ganhar ou merecer a bênção. Israel já havia sido redimido por Deus (no êxodo), de modo que sua obediência jamais poderia obter isso, que já havia sido realizado; no entanto, sua obediência era necessária para que Israel continuasse a usufruir os benefícios de sua salvação. Doutro modo, pela desobediência, eles seriam lançados fora da terra, fora do lugar da bênção de Deus.

Essa dimensão ética da bênção no relacionamento da aliança é outro aspecto que protege a bênção bíblica de se degenerar na paródia ostentada pela Teologia da Prosperidade. A bênção não é apenas um reflexo automático, aquinhoado rotineiramente em resposta a certas ações — orações ou fé ou dinheiro. A bênção não é como um cofre celestial de milagres, armazenado para você, só esperando que você o reivindique. Teremos mais a dizer sobre o Evangelho da Prosperida-de, no capítulo 15.

ABRAÃO — A MISSÃO DE DEUS E A NOSSA

A missão universal de Deus — todas as nações Gênesis 10 e a primeira parte do capítulo 11 concentram-se nas nações da hu-manidade. Em Gênesis 10, elas são espalhadas por toda a terra, a fim de enchê-la, conforme lhes fora dito que o fizessem. Em Gênesis 11, elas são espalhadas, mas num estado de confusão e divisão que frustra sua tentativa arrogante de uma unificação edificada por elas mesmas. Portanto, é natural e adequado para a grande promessa de Deus e para o plano anunciado no capítulo 12 terem em vista todas as nações, embora estes aspectos envolvam apenas um homem ini-cialmente. A promessa de Deus a Abraão, em Gênesis 12, é a resposta para o problema das nações em Gênesis 10 e 11.

O resultado final (literal e metafórico) da aliança abraâmica é que "[...I todos os povos da terra serão abençoados por meio de ti" (Gn 12.3). Há alguma con-trovérsia sobre a exegese precisa do verbo,' mas não pode haver dúvida sobre a

4. A forma do verbo no hebraico é conhecida como niphal, que pode ser reflexiva ou passiva. As traduções variam, portanto, entre "em ti, as famílias da terra abençoarão a si mesmas" (reflexivo) ou "por meio de ti serão benditas (passivo) todas as famílias da terra". O significado da primeira é que as nações veriam em Abraão e em seu povo tamanho sinal da demonstração da bênção de Deus que usariam Abraão ou Israel como um modelo para abençoar uns aos outros: "Que você seja abençoado como Abraão". Nesse caso, "em ti serão abençoadas" (no final do versículo 2) significa que Abraão se tornaria o nome nos lábios das pessoas quando elas proferissem bênçãos. Isso certamente é possível e combina com outros casos em que há essa prática (por exemplo, Gn 48.20; Rute 4.11, 12; SI 72.17; Zc 8.13). No entanto, as traduções antigas, inclusive a Septuaginta grega (LXX), e o apóstolo Paulo (GI 3.8) interpretam esse verbo com o sentido passivo. Em todo caso, se o sentido for reflexivo ("em ti, as famílias da terra abençoarão a si mesmas"), isso significa que as nações devem chegar ao conhecimento de Abraão e de seu Deus e buscar receber bênção dessa fonte. Deus promete abençoar essas pessoas na primeira linha de Gênesis 12.3; portanto, em última análise, um sentido reflexivo passa a incluir o passivo e expressá-lo: "serão abençoadas'

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86 A missão do povo de Deus

extensão da intenção de Deus - "todos os povos". A palavra varia entre "todos os grupos de parentesco" (miSpehot) e "todas as nações" (goyim), mas a intenção é clara e enfática.

Essa promessa é, de fato, tão enfática que é repetida cinco vezes em Gênesis (12.3; 18.18; 22.18; 26.4; 28.14). Há um objetivo universal em vista. Se a huma-nidade como um todo é sujeita à maldição de Deus, logo, a humanidade como um todo deve ser alcançada pela bênção de Deus. E nisso reside o grandioso tema da missão de Deus e da missão do povo de Deus.

A partir da perspectiva da teologia bíblica, podemos traçar uma grande trajetória, desde as "tribos, línguas e nações", de Gênesis 10, que precisavam de uma bênção redentora, até a "grande multidão que ninguém podia enumerar, de todas as nações, tribos, povos e línguas", a qual constituirá a humanidade redimida na nova criação (Ap 7.9).

A aliança abraâmica é, portanto, um dos fios-chave que une toda a Bíblia. Conforme eu disse anteriormente, não é de admirar que Paulo pudesse sim-plesmente chamá-la de um "prenúncio do evangelho". O que poderia ser mais evangelho" - mais boas-novas - à luz de Gênesis 3-11, do que o fato de Deus

ter se comprometido a abençoar todos os povos da terra?

O meio especifico de Deus — uma nação Esse mesmo texto que termina com tamanha universalidade começa com uma particularidade singular. Deus se dirige a um homem, Abraão, e pro-mete trazer sua bênção para a humanidade através de uma nação - os seus descendentes. Em Gênesis 12.1-3, estamos na nascente da autoconsciência de Israel, no Antigo Testamento, como o povo eleito de Deus, ou seja: eles acreditavam ser um povo exclusivamente escolhido por Deus, para ter um relacionamento com ele mesmo, que mais tarde seria consolidado na forma da aliança do Sinai. É absolutamente crucial ver que essa eleição divina de um homem e de um povo acontece no contexto e no cenário global das relações de Deus com todas as nações, as quais têm sido o foco principal da narrativa dos capítulos 10 e 11.

Uma nação é escolhida, mas todas as nações devem ser as beneficiárias dessa escolha. Sabemos, é claro, que em nossa teologia bíblica, no final, uma nação seria representada por um homem, o Messias Jesus, por meio de quem a bênção redentora tornar-se-ia disponível a todas as nações. Foi por esse motivo que Paulo, em Gálatas 3, compreendeu a missão de Deus por meio de Cristo e a pro-pagação do evangelho como o cumprimento da promessa de Deus a Abraão.

Eleição para a missão Isso afeta a maneira com que entendemos toda a doutrina bíblica da eleição. Há uma tendência para se discorrer sobre isso apenas como uma doutrina da

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salvação, isto é, os eleitos são aqueles que se salvam. Tal fato leva a todo tipo de controvérsia através dos séculos. Por exemplo: o fato de Deus ser justo em escolher só alguns para serem salvos. Não quero ficar empacado nesse debate antigo, mas ainda intenso. Tudo o que quero destacar aqui é que a primeira vez que realmente vemos Deus escolher e chamar alguém, ou seja, colocar a eleição em ação, não ocorre exatamente quando Abraão e sua família apenas se salvam, mas sim quando ele, por ter sido abençoado, deve se tornar o agente de bênção para outros.

A eleição de um não é a rejeição do restante dos outros, mas, afinal, é feita para o benefício deles. É como se um grupo de exploradores de caverna estivesse preso e escolhesse um deles para se espremer através de uma passagem estreita e inundada para chegar à superfície e pedir ajuda. A questão da escolha não é que apenas ele seria salvo, mas que ele seria capaz de trazer ajuda e equipamento para garantir que o restante fosse resgatado. "Eleição", nesse caso, é uma escolha útil de um para o bem de muitos.

Semelhantemente, a eleição de Israel feita por Deus é um instrumento na missão de Deus para todas as nações. A eleição precisa ser vista como uma doutrina de missão, não como um cálculo para a aritmética da salvação. Falar de sermos escolhidos, de estarmos entre eleitos de Deus, é dizer como Abraão que somos escolhidos por causa do plano de Deus. Segundo o qual, as nações do mundo venham a desfrutar a bênção de Abraão (este é exatamente o modo com que Paulo descreve o efeito da redenção de Israel, feita por Deus, por meio de Cristo, em Gálatas 3.14).

Igreja missionai Tudo começou com um homem, Abraão. Mas a promessa era para ele e seus descendentes. Quem são os descendentes de Abraão hoje? Paulo é totalmente explícito nesta questão: as pessoas de qualquer nação que creem em Jesus como Messias e Salvador estão incluídas na semente de Abraão e são herdeiras da promessa feita a Abraão. Abraão, como Deus prometeu, tornou-se o pai de muitas nações — em Jesus Cristo e por meio dele. Resumindo, diríamos: Abraão é "o pai de todos nós" que compartilhamos sua fé (Rm 4.16, 17). Logo, a igreja — esta comunidade multinacional que inclui crentes judeus e gentios — é o povo escolhido e chamado em Abraão para ser o povo de Deus.

Se a ideia é esta e se eu não posso ler o Novo Testamento de qualquer ou-tra forma, senão afirmar que ela é assim, uma conclusão importante se segue. Se estamos em Cristo, não só partilhamos da bênção de Abraão, mas somos comissionados para espalhar a bênção de Abraão. A última frase de Gênesis 12.2 é, na verdade, um imperativo em hebraico: "Sê tu uma bênção", embora seja geralmente traduzido simplesmente como uma consequência das frases anteriores: "de modo que você será uma bênção". Minha própria compreensão

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88 A missão do povo de Deus

exegética da estrutura de Gênesis 12.1-3 vê essas mensagens como duas ordens fundamentais. Cada uma delas é seguida por três orações, com seu clímax na última linha do verso 3.

O esqueleto da mensagem de Gênesis 12.1-3 é o seguinte:

"Vá... e seja uma bênção... e todas as nações serão abençoadas através de você."

Não é essa uma "grande comissão"? Esse não é, de fato, o alicerce sobre o qual se fundamenta todo o tema da missão de Deus, inclusive o que geral-mente chamamos de "A Grande Comissão" em Mateus 28? Se assim o for, isso terá graves consequências para a nossa compreensão acerca da igreja e da missão.

Deus, quando começou seu grande projeto de redenção do mundo no encalço de Genesis 12, escolheu fazê-lo não transportando indivíduos rapida-mente para o Céu, mas chamando à existência uma comunidade de bênção. Começando com um homem e sua mulher estéril, transformando-os mila-grosamente numa grande família ao longo de várias gerações, depois, numa nação chamada Israel e, a seguir, por meio de Cristo, numa comunidade mul-tinacional de crentes de todas as nações - através de toda a história, Deus tem moldado um povo para si mesmo. Mas também um povo para os outros. "Em ti... todas as nações".

Em outras palavras, o impulso missional de Gênesis 12.1-3 é também ecle-siológico. As origens da igreja remontam, não apenas ao Pentecostes, mas a Abraão. E o tema missionário que encontramos em Atos não foi uma mudança súbita, mas a realização da lógica da fé bíblica e da história. A ordem de Jesus e a liderança do Espírito Santo combinadas para enviar a igreja em missão até os confins da terra, como aqueles que, tendo recebido a bênção de Abraão, devem agora ser o meio de passá-la adiante. Foi assim que a história operou. Essa era a história da qual eles sabiam que faziam parte.

Portanto, a ideia de "igreja missional" está longe de ser nova. Ela pode ter tomado uma forma cultural específica nos últimos anos, em reação a uma igreja institucionalizada, que perdeu o contato com a sua própria razão de ser. Mas, se nós, de fato, entendemos a igreja a partir de nossa teologia bíblica, como a comunidade do povo escolhido e chamado, desde Abraão, para ser o veículo da bênção de Deus para as nações, o que mais a igreja poderia ser, senão missional? É isso o que somos e é para isso que estamos aqui.

Disse um amigo meu recentemente: "Para mim, toda essa conversa sobre `igreja missional' soa como falar sobre 'mulher do sexo feminino'. Se não é mis-sional, não é igreja:'

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Pessoas que são uma bênção para as nações * 89

, ECOS DE ABRAÃO NA TEOLOGIA BÍBLICA Estamos tentando fazer uma teologia bíblica neste livro; por essa razão, precisa-mos mostrar que um tema em que estamos colocando tanto peso, na verdade, encontra apoio numa grande variedade de textos bíblicos, tanto do Antigo Tes-tamento quanto do Novo. Mais uma vez, uma exposição mais completa de todos os textos a seguir e de muitos outros pode ser encontrada em The mission of God (leia principalmente os capítulos 6, 7 e 14), mas a seleção de alguns dos mais reveladores deve tornar clara a nossa questão. Separe um tempo para ler esses textos. Seu efeito cumulativo fortalecerá grandemente nossa teologia bíblica de missão nesse momento.

As nações atraídas para o culto e para a salvação de Israel

Os Salmos são canções do conceito de fé manifestada por Israel, colocadas em adoração. Eles não apenas sobem à presença de Deus em adoração, confissão, ações de graças, louvor e protesto, mas também ganham asas, voam até aos con-fins da terra e trazem as nações do mundo para o alcance de sua visão. Seja o que for que Deus esteja fazendo em Israel e através dele, sua ação deve causar impacto nas nações no final, pois essa é a razão principal para a existência de Israel.

Valeria a pena ler cuidadosamente as passagens seguintes, observando os ecos da promessa abraâmica nas referências que elas fazem a respeito de todas as nações do mundo, as quais vêm finalmente para adorar YHWH, o Deus de Israel, ou sendo os cenários onde os louvores a Deus são cantados. Estas são algumas das passagens do livro dos Salmos nas quais vemos a universalidade da fé cultivada por Israel, em relação às nações. Alguns versos parecem clara-mente ser ecos da aliança abraâmica. Mesmo quando não aludem diretamente a ela, extraem de sua fonte profunda uma mensagem poderosa da missão totalmente abrangente da bênção de Deus, que se estende muito além das fronteiras de Israel.

• Salmo 22.27, 28 • Salmo 47.9 • Salmo 67 • Salmo 72.17 • Salmo 86.9 • Salmo 87 • Salmo 96 • Salmo 102.15, 21, 22 • Salmo 117

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90 • A missão do povo de Deus

Os profetas, assim como os historiadores e os salmistas, concentram-se, a maior parte do tempo, na relação de Israel com Deus, mas quando a visão deles se amplia para as nações e para a terra, os resultados são por vezes impressio-nantes e os ecos de Abraão são inconfundíveis.

Mais uma vez, separe um tempo para ler essas passagens, saboreando a uni-versalidade da visão dos profetas. Estes são os tipos de texto que alimentam a teologia do Novo Testamento a respeito de missão às nações.

• Isaías 19.19-25 (principalmente os versículos 24 e 25) • Isaías 45.22, 23 • Isaías 56.3-8 • Isaías 60 • Jeremias 4.1, 2 • Amos 9.11-12 • Zacarias 2.10, 11

Abraão nos evangelhos Mateus geralmente é retratado como o evangelho para os judeus. Mas Mateus vê claramente que a própria existência dos judeus, como o povo de Abraão, é por causa de todas as nações. Mateus demonstra isso pelo modo como começa com "Abraão" e termina com "todas as nações".

"Mateus constrói a história de Jesus entre sua identificação

como o descendente ce Abraão, no versículo inicial desse

evangelho, e as últimas palavras de Jesus no final do livro: a

comissão aos discípulos ce Jesus para fazerem discípulos de

todas as nações. A genealogia ce Jesus começa com Abraão

(1 .1 , 2), não com Adão, conforme Lucas o faz (3.38), nem

com Davi, o que teria sido suficiente para retratar Jesus, o

Messias filho de Davi, o que certamente é um tema importan-

te no Evangelho ce Mateus. Entretanto, para Mateus, Jesus é

o Messias não apenas dos judeus, mas também dos gentios.

E e é o descendente de Abraão, por meio de quem a dênção

de Deus alcançará as nações no fina "3'

Rchard Bauckham'

5. Bauckham, Bible and mission, p. 33.

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Lucas também coloca um invólucro abraâmico em torno de seu Evangelho, vendo a vinda de Jesus como o cumprimento dessa promessa, com sua relevân-cia para Israel e para todas as nações. Ele começa e termina com essa nota sobre o cumprimento das Escrituras (Lc 1.55, 73; 2.29-32; 24.46, 47).

Mas Lucas também menciona Abraão pelo nome em sua narrativa, em qua-tro breves incidentes, porém significativos — três no evangelho e um em Atos.

• Lucas 13.10-16 — a mulher aleijada • Lucas 16.19-31— o mendigo Lázaro • Lucas 19.1-10 — o publicano Zaqueu • Atos 3.1-26 — o homem coxo no templo

O que essas histórias têm em comum é que, em cada uma delas, alguém excluído — seja por escravidão demoníaca, pela pobreza ou injustiça, pelo des-prezo social merecido ou por doença incapacitante — era levado a uma bênção salvadora. Nenhum dos personagens é gentio (embora Lucas tenha muito a dizer sobre eles também). Eles ilustram o poder curador, transformador e restaurador de Deus, que está vinculado ao recebimento da bênção de Abraão.

Abraão no evangelho de Paulo Não seria exagero dizer que Abraão é a figura mais importante na compreensão de Paulo acerca do evangelho — perdendo somente para Jesus Cristo. Pois o que Deus cumpriu em Cristo era nada menos do que aquilo que ele prometera a Abraão: trazer a bênção a todas as nações da terra. Essa esperança universal havia sido, durante séculos, um mistério, conforme expressa Paulo. Não um mistério com relação ao que era esperado, porque isso estava claro no texto em si, mas um mistério referente ao modo de cumprir. Aquilo, afirma Paulo, tem sido revelado agora por meio do evangelho de Cristo, pelo que ele realizou em sua cruz e ressurreição (Ef 3.4-6).

Portanto, conforme vimos no início deste capítulo, a missão pessoal de Paulo era a de replicar a fé e a obediência abraâmica entre todas as nações, para realizar o que Deus havia prometido originalmente a Abraão. Tanto a teologia de Paulo sobre o evangelho como sua teologia de missão são abraâmicas. Em Cristo, a promessa feita a Abraão é cumprida segundo o princípio de que a salvação é agora estendida a todas as pessoas de todas as nações. Na missão, a promessa feita a Abraão é desenvolvida no curso da história da igreja, em sua proclamação das boas-novas.

Sendo assim, embora não possamos estudar as passagens em detalhes agora, o argumento de Paulo, desde Romanos 3.29 até o final de Romanos 4 e mais ainda em Gálatas 3, não é, conforme tem sido sugerido algumas vezes, simples-mente usar Abraão como uma ilustração para a sua doutrina da justificação

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92 A missão do povo de Deus

pela fé, mas constitui precisamente sua exposição do que essa doutrina significa. Deus demonstrou sua justiça e sua lealdade, mantendo sua promessa a Abraão, ao prover em Cristo o meio pelo qual as pessoas de todas as nações, e não so-mente os judeus, possam entrar na bênção de um relacionamento correto com Deus, pela graça de Deus, por meio da fé.6

A doutrina de Paulo sobre a justificação é essencialmente missionai, porque ela estende a bênção do evangelho, sem barreiras nem privilégios étnicos, em princípio, a todas as nações; isso exige, portanto, que ela seja estendida a elas na prática, ou seja, na prática do evangelismo; comunidades discipuladoras e plantadoras de igrejas, que andam na "obediência da fé" em todas as nações.

Missão cumprida no Apocalipse De que outra maneira poderíamos concluir um exame bíblico de um tema de tamanha importância, senão no livro do clímax final da Bíblia, o Apocalipse? Nele, os ecos de Abraão, de fato, ressoam de modo alto e claro.

Apocalipse 5.9-10 Por que Jesus é digno de abrir os selos do livro que está na mão direita do Deus Pai? Porque ele é "o Cordeiro que foi morto". Este é o Cristo crucificado, que detém a chave para revelar o propósito da História e seu destino final. Portanto, os anciãos, quando cantam sua resposta à pergunta acerca de quem é digno de abrir o livro selado com sete selos, celebram a cruz como redentora, universal e vitoriosa. A frase universal "[...1 com o teu sangue compraste para Deus os que procedem de toda tribo, língua, povo e nação" (ARA) é uma alusão instanta-neamente reconhecível ao contexto de Gênesis 10, o mundo das nações, para cuja bênção e salvação Deus havia chamado a Abraão.

Apocalipse 7.9-10 A mesma linguagem emerge novamente aqui, à medida que a grandiosa canção da salvação de Deus é cantada pela "grande multidão que ninguém podia enu-merar, de todas as nações, tribos, povos e línguas".

Apocalipse 22.2 Quem se beneficia com o poder de cura da árvore da vida ao lado do rio da vida na nova criação? As nações. Elas já têm sido retratadas trazendo seu esplendor,

6. A doutrina da justificação é assunto das consideráveis controvérsias recentes entre os defensores e oposi-tores da chamada "Nova perspectiva" sobre Paulo. Não pretendo entrar nessa discussão aqui, mas, para mim, está claro que, para Paulo, aquilo que Deus realizou por meio da morte e da ressurreição do Messias, Jesus, constitui o cumprimento da promessa de Deus feita a Abraão, de tal forma que a inclusão de pessoas de todas as nações nas bênçãos anteriormente desfrutadas apenas pelo Israel do Antigo Testamento está no cerne da compreensão de Paulo acerca do evangelho.

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Pessoas que são uma bênção para as nações • 93

glória e honra para a cidade de Deus - redimidas e purificadas de todo pecado e mal (Ap 21.24-27). O retrato final das nações encontrado na Bíblia é o de cura: "as folhas da árvore são para a cura dos povos". Nações que estavam fun-damentalmente doentes desde Gênesis 3-11 experimentarão, no final, a cura internacional pela qual o mundo anseia. A bênção de Abraão trará todas as nações ao shalom de Cristo, o redentor, salvador e curador de todos. Como uma humanidade redimida, ela se junta a todos os anjos e a todas as criaturas para celebrar essa grande conquista. Imagino Deus voltar-se para Abraão e dizer: "Aí está você. Eu cumpri minha promessa. Eu disse: 'todas as nações, e eis aí todas as nações. Missão cumprida."

ABRAÃO, UM MODELO PARA A NOSSA MISSÃO Espero que tenha sido inspirador ver o maravilhoso panorama bíblico da promes-sa de Deus a Abraão e saber como ele gera a teologia bíblica da missão de Deus para todas as nações. Neste livro, estamos pensando não apenas na missão de Deus, mas na missão do povo de Deus. Portanto, precisamos também perguntar qual a relevância de Abraão para o nosso próprio conceito e prática de missão.

Se somos aqueles que herdaram não só o privilégio da bênção de Abraão, mas também a responsabilidade de ser uma bênção para as nações, então, que é exi-gido de nós? Certamente respondemos como Abraão respondeu à promessa e ao mandamento de Deus. Para Abraão, isso significava deixar e ir, crer e obedecer.

Deixando e indo A palavra inicial de Deus a Abraão foi, em essência: "Levante-se e vá para longe de tua terra.: "Vá" é uma ordem clara para deixar um determinado lugar e ir para outro. Ele tinha que deixar sua terra e seu povo, para que Deus abençoasse todas as terras e povos. Somente a saída de Abraão liberaria a bênção para as nações.

A história de Babel trouxe um fim à esperança e às tentativas da humanida-de de encontrar seus próprios meios de bênção. Esta bênção não virá daquele mundo em si. Abraão deve abandonar tudo o que o liga à terra da Babilônia, antes de poder ser o veículo de bênção para toda a terra. Babel, que é o ápice do problema retratado em Gênesis 3-11, não pode ser a fonte da solução.

Dessa forma, até mesmo os grandes impérios da Mesopotâmia se tornam relativos e são negados. As maiores civilizações humanas não podem resolver os problemas humanos mais profundos. A missão de Deus de abençoar as nações tem que ser um recomeço radical. Ela exige uma ruptura, uma renúncia radical da história até então, não apenas um desenvolvimento evolucionário a partir dali. Assim, Abraão é ordenado a deixar e ir.

A missão de Deus exigiu deixar e ir. E, é claro, ainda é assim.

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94 - A missão do povo de Deus

Agora, em um nível, podemos ver essa ideia como um paralelo óbvio à inau-guração da chamada Grande Comissão: "Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações" (Mt 28.19; ARA). Não obstante, é preciso reconhecer que a primeira palavra não é uma ordem em si, mas um particípio: "Na medida em que vocês vão..." É claro que, se as nações tivessem que ser discipuladas, os discípulos teriam que ir até elas; portanto, podemos detectar, com certeza, na primeira ordem de Deus a Abraão, um prenúncio da dinâmica que finalmente explodiria na força centrífuga missionária do "indo" até aos confins da terra. E que essa seria uma conexão apropriada a se fazer.

Mas, em outro nível, esse "deixar e ir" não precisa necessariamente significar uma viagem real de um ponto geográfico a outro. Os cristãos que se compro-metem com a missão de Deus no mundo devem começar com uma certa saída do mundo, porque ainda vivemos na terra de Babel e de Sodoma. Precisamos reconhecer a natureza idolátrica do mundo e todas as reivindicações e ideolo-gias dessa natureza. Isso não significa que passamos a ser "de outro mundo', pois, conforme veremos no capítulo 13, nossa missão deve acontecer na esfera pública em que Deus nos colocou; entretanto, existe uma forma de deixar e ir que é espiritual, mental e comportamental, mesmo que esta ação não aconteça fisicamente. Pois envolve abandonar a visão de mundo, por meio da qual, o mundo conta sua própria história usurpada, e adotar, em fé e esperança, a visão da história de que fazemos parte - a história bíblica da missão de Deus, a qual nos leva ao próximo ponto.

Crendo e obedecendo Começamos este capítulo com a ambição de Paulo de levar "a obediência da fé a todas as nações", o que na verdade a Bíblia mais enfatiza acerca de Abraão, tanto no Antigo Testamento quanto no Novo Testamento - sua "fé-obediência".

Há uma antiga polêmica entre os teólogos bíblicos sobre o fato de a aliança com Abraão ser incondicional ou condicional. De fato, essa visão é muito simplista porque, em diferentes aspectos, ela envolvia ambos os aspectos. Por um lado, era incondicional, no sentido de não depender de nenhuma condição prévia que Abraão teria cumprido. Deus simplesmente anuncia a escolha de Abraão e a intenção maravilhosa de abençoar as nações por meio dele. Abraão não havia feito nada para merecer ou provocar aquela ação de Deus; no en-tanto, por outro lado, as palavras iniciais de Deus implicam uma condição. Tudo depende da ordem inicial (lit.): "Levanta-te e vai daqui para a terra que te mostrarei". Tudo quanto Deus continua a prometer depois depende dessa obediência. Sem partida, sem bênção. Diríamos francamente que, se Abraão não se tivesse levantado e partido para Canaã, se não tivesse confiado em Deus o suficiente para lhe obedecer, a história teria terminado aí. A Bíblia seria um livro fino, de fato.

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Pessoas que são uma bênção para as nações • 95

"Não queremos dizer que a promessa divina tenha-se

tornaco depencente da oaeciência ce Abraão, mas asse-

guramos que a obediência de Abraão foi incorporada

promessa divina. Dali em diante, Israel deve sua existência

não só a YHWH, mas também a Aaraão. Teologicamente,

isso constitui uma profunda compreensão soare a obediên-

cia humana — e a foi aceita por Deus e tornou-se um fator de

motivação em seu propósito em relação à humanicade.),

Walter Moberly;

A fé e a obediência de Abraão são repetidamente testadas nos capítulos se-guintes. O teste mais severo veio em Gênesis 22, que é realmente o ápice de toda a história de Abraão. Deus ordenou a Abraão que tomasse seu filho Isaque e o sacrificasse. A disposição de Abraão para obedecer, até mesmo nesse ponto, e confiar em Deus, em relação às consequências desse fato, foi edificada com a mais solene confirmação da promessa de Deus a ele e reforçada por um jura-mento acerca de sua própria existência:

E disse: Jurei por mim mesmo, oráculo de YHWH, devido ao fato de teres feito isso, e não me negaste o teu filho, o teu único filho; por isso te aben-çoarei e certamente multiplicarei a tua descendência [semente] como as estrelas dos céus e como a areia na praia do mar e tua descendência pos-suirá a porta dos seus inimigos. Na tua descendência, todas as nações da terra encontrarão bênção, pelo fato de teres me obedecido. (Gn 22.16-18; tradução e grifos do autor)

Este trecho notável une explicitamente, de um lado, as intenções de Deus declaradas às nações e, de outro, a fé e a obediência de Abraão. As respectivas atitudes estão totalmente interligadas. A fala de Deus começa e termina enfati-camente, fazendo da obediência de Abraão a razão de Deus agora se obrigar ir-revogavelmente, sob juramento, a manter sua promessa de abençoar as nações.

É claro que isso não significa de modo algum que Abraão mereceu as pro-messas da aliança de Deus. Nós não estamos entrando aqui na questão das "obras de justiça". Como acabamos de dizer, Abraão não havia praticado ação alguma para merecer a promessa de Deus, que "caiu do céu" — digamos. Mas

7. R. W Moberly, "Christ as the key to Scripture: Genesis 22 reconsidered": He swore an oath: B blical themes from Genesis 12-50 (eds. R. S. Hess at Paternoster and Grand Rapidis: Baker, 1994), p. 161.

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96 • A missão do povo de Deus

a resposta confirmada da fé e da obediência de Abraão não só levou Deus a considerá-lo como justo (Gn 15.6), como também permitiu que a promessa de Deus avançasse em seu horizonte universal.

Quando chegamos ao Novo Testamento, descobrimos que Paulo, Tiago e o escritor aos Hebreus captam os dois poios da resposta de Abraão a Deus.

• Paulo concentra-se na fé que levou Abraão a crer nas promessas de Deus, embora estas parecessem impossíveis. Por essa razão, ela foi-lhe imputa-da para justiça (Rm 4; Gl 3.6-29).

• Tiago focaliza-se na fé que levou Abraão a obedecer a ordem de Deus, demonstrando na prática a autenticidade de sua fé (Tg 2.20-24).

• Hebreus realmente capta as duas dimensões, com as quais Paulo e Tiago teriam obviamente concordado, enfatizando repetidas vezes a fé profes-sada por Abraão e demonstrando, ao mesmo tempo, que ele provou a fé mediante sua obediência, desde a partida inicial da terra natal até o relato clássico de sua obediência, em Gênesis 22 (Hb 11.8-19).

Para nós mesmos, devido à nossa preocupação com uma leitura missiológica desses textos, o ponto mais importante a se observar é o modo com que Deus, na intenção de abençoar as nações, se relaciona com o compromisso humano de obediência, o que nos permite ser o agente dessa bênção.

O evangelho glorioso da aliança abraâmica revela que a missão suprema de Deus é a de abençoar todas as nações. O desafio permanente da aliança abraâmi-ca sugere que Deus planejou fazer isso "através de você e de seus descendentes". A fé e a obediência de Abraão, portanto, não são apenas modelos para a piedade e ética pessoal. Elas são as credenciais imprescindíveis para uma participação eficaz em tudo quanto significa esta ordem: "Sê tu uma bênção".

Não há bênção para nós mesmos nem para os outros sem fé e obediência. Aqueles que Deus chama para participar de sua missão redentora para as nações são aqueles que exercem a fé salvadora, assim como Abraão, e demonstram uma obediência sacrificial, como Abraão.

Portanto, aquilo que Deus prometeu a Abraão passa a ser a agenda suprema da própria missão de Deus (bênção para as nações) e aquilo que Abraão fez em resposta à promessa de Deus passa a ser o modelo histórico para a nossa missão (fé e obediência).

RESUMO Em "Identificando as perguntas" (título da Parte 1 deste livro), fizemos a pergun-ta fundamental sobre a igreja: "Quem somos e para que estamos aqui?" Chegar a uma resposta correta para essa pergunta é essencial se quisermos construir uma teologia bíblica sadia acerca da missão da igreja. Em vez de começarmos

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Pessoas que são uma bênção para as nações 97

com o livro de Atos, voltamos a Abraão, porque é lá que encontramos Deus lançando seu grande projeto redentor e restaurador - sua resposta à situação desoladora apresentada em Gênesis 3-11.

Num mundo onde a maldição de Deus está operando em resposta ao pecado e à rebelião humana, ele lança um programa para trazer bênção. Temos explora-do o conteúdo rico e abrangente que há nesta palavra bíblica "bênção". A bênção de Deus não era apenas para Abraão e sua família. Ele seria o pai de uma nação específica, por meio da qual, a bênção viria universalmente a todas as nações. Nós, portanto, se estivermos em Cristo, faremos parte dessa família de Abraão, não importa de qual nação venhamos.

Mas se em Cristo herdamos a bênção de Abraão, herdamos também a mis-são de Abraão, ou seja, ir e ser uma bênção; ser o meio pelo qual a bênção de Deus chega aos outros. Basicamente, começar bem em Gênesis é saber: "quem nós somos" - os filhos de Abraão e "para que estamos aqui" -, para participar da missão prometida por Deus de levar pessoas de todas as nações da terra para a esfera da bênção redentora de Deus, por meio de Cristo.

No entanto, em "Identificando as perguntas", também perguntamos: "Que tipo de povo somos nós?" Abraão foi chamado não só para confiar em Deus, mas também para lhe obedecer. Há uma dimensão ética no fato de sermos um povo de bênção, o qual provém da grande tradição abraâmica. Essa é a dimen-são da missão do povo de Deus, a qual devemos explorar mais adiante, nos próximos capítulos. No seguinte, veremos que isso estava na mente de Deus, até mesmo quando ele escolheu e chamou Abraão.

QUESTÕES RELEVANTES 1. Que traz geralmente a palavra "bênção" à sua mente? De que modo o seu

conceito mudou à luz deste capítulo? 2. "Ser uma bênção" pode não parecer uma descrição adequada "da missão

do povo de Deus" (de fato, não é por si só), mas que aspectos de nossa missão poderiam ser desafiados ou aperfeiçoados por pensarmos nessa missão em termos abraâmicos?

3. Abraão foi chamado para "deixar e ir". Se você for ou não chamado para deixar fisicamente o seu país e ir como missionário para o exterior, quais os elementos de seu presente contexto cultural e social você precisa "dei-xar", se quiser seguir a fé-obediência de Abraão?

4. Exigir obediência à missão da igreja soa como legalismo para você? Como essa noção não bíblica pode ser refutada biblicamente?

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CAPITULO 5

PESSOAS QUE ANDAM NO CAMINHO DE DEUS

UM LEMBRETE DE DEUS A SI MESMO

Porque eu o conheci [escolhi] com o propósito de que ele [Abraão] ins-trua seus filhos e a sua casa depois dele, para que guardem o caminho do SENHOR, executando a justiça e o juízo; com o propósito de que o SENHOR faça vir sobre Abraão o que tem falado [prometido] a ele. (Gn 18.19; tradução do autor).

(Cr [...] em ti serão benditas [ou abençoarão a si mesmas] todas as famílias [nações] da terra" (Gn 12.3; ARA). Esse é o grande alcance e a extensão da promessa de Deus a Abraão. Conforme foi explorado no capítulo 4, se pergun-tarmos qual é a missão do povo de Deus, a primeira resposta que a Bíblia nos dá, quando o povo de Deus não havia ainda sido concebido no ventre de Sara, é que ele seria um povo de bênção para as nações. Na verdade, afirma Paulo, essa é a boa-nova, o evangelho (Gl 3.8). Abençoar as nações é a missão declarada de Deus. É por essa razão que ele chama seu povo à existência, para ser o veículo da missão do Senhor no mundo histórico das nações.

A história da obra divina da salvação começou com o chamado de Abraão e com a promessa de que, através de seus descendentes, a bênção viria a todas as nações da terra.

Mas como? Essa é obviamente a pergunta que responderemos de maneiras diferentes,

à medida que explorarmos as muitas dimensões da tarefa que Deus impôs ao seu povo, conforme a Bíblia. Mas nesse verso específico, numa linguagem hu-mana encantadora, Deus se lembra do que tinha em mente quando escolheu Abraão a priori.

Gênesis 18.19 é um versículo notável, pois reúne numa única sentença a es-colha que Deus fez de Abraão, a exigência moral que Deus fez à comunidade de Abraão e a promessa de Deus a Abraão (que precede imediatamente o versículo anterior, 18, é detalhado mais uma vez: "nele serão benditas todas as nações da terra"). Eleição, ética e missão, tudo em um só versículo — isso é teologia bíblica para a vida! Neste capítulo, veremos como esses três grandes temas bíblicos são inseparáveis — integralmente entrelaçados entre si.

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Pessoas que andam no caminho de Deus 4. 99

Como Abraão seria uma bênção para as nações? Antes de tudo, como vimos na seção final do capítulo 4, apenas confiando no próprio Deus e obedecendo-lhe. Portanto, se consideramos Abraão como pai do povo de Deus e personificação da missão do povo de Deus, teremos a dizer que nossa missão deve começar com a justificação pela fé em Deus e com a obediência a Deus na prática. Essa é uma lição importante, mas é apenas o ponto inicial da importância missional de Abraão.

44A acrangência do propósito de Deus, ao contar este

seu plano a Abraão, deve ser cuicadosamente observa-

da. Sua vontade, reve ada a Abraão, estende-se a todos

os cescencentes de Abraão. Certamente Deus não faz

com que sua vontade seja conhecida por nós para que

o conhecimento de sua pessoa morra conosco. Ele exige

que sejamos suas testemunhas para a próxima geração,

para que ela possa, por sua vez, passar adiante o que

receceu ce nós. [...] Desta forma, devemos propagar a

vercade de Deus. Ela não nos foi doca para o nosso

deleite em particular. Devemos mutuamente fortalecer uns

aos outros, ce acorco com nosso c ramado e nossa fé.?)

João Calvino

Afinal, Abraão teve apenas uma vida. Como poderiam, então, sua fé e obediên-cia constituir um meio de bênção para as nações, ou seja, ter um impacto missional, senão por sua história e seu exemplo? Gênesis 18.19 nos dá a resposta. O poder do exemplo pessoal de Abraão deveria ser reforçado e multiplicado por meio da ins-trução direta e da formação moral. A família de Abraão, depois toda a sua casa (isto é, toda a comunidade de seus descendentes, que seria o povo de Deus), deveriam ser ensinados a andar no caminho do Senhor, praticando justiça e juízo.

Ao nível da teologia bíblica, já destacamos que "a comunidade de Abraão" inclui o Israel do Antigo Testamento, juntamente com todos aqueles que estão em Cristo - crentes judeus e gentios (Rm 4; Gl 3). Portanto, a dimensão ética de Gênesis 18.19 é bem ampla e se estende até onde você e eu estamos sentados agora. Pois, se estamos em Cristo, estamos em Abraão, somos herdeiros da pro-

1. João Calvino, Genesis (The crossway classic commentaries; Wheaton. IL: Crossway, 2001), p. 177.

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100 a A missão do povo de Deus

messa que Deus fez a ele e da responsabilidade que Deus colocou sobre ele. E, se herdamos a bênção de Abraão, herdamos também a sua missão.

Então, qual é a missão do povo de Deus? De acordo com esse texto, é ser a comunidade que vive segundo os padrões éticos dos caminhos de Deus, de modo que ele cumpra sua promessa a Abraão, levando a bênção às nações. A nossa ética e a missão de Deus estão integralmente unidas; por isso, em primei-ro lugar, ele nos escolheu.

Entretanto, antes de olharmos mais cuidadosamente para o que isso significa na prática, precisamos prestar atenção ao contexto do nosso texto. A conversa de Deus consigo mesmo aparece no meio da história do julgamento de Deus sobre Sodoma e Gomorra (Gênesis 18 e 19).

Portanto, a promessa universal de Deus de bênção está aninhada na história de uma ocasião particularmente notória desse julgamento histórico do Senhor. Esse é um contexto importante. Isso nos lembra que a missão de Deus opera neste mundo caído, que a promessa mais gloriosa de bênção está ao lado das mais terríveis palavras e ações de julgamento e que o povo de Deus é chamado a viver como Abraão, num mundo como Sodoma.2

SODOMA: UM MODELO DO NOSSO MUNDO

A desobediência das nações Sodoma representa o caminho do mundo caído. Ela permanece nas Escritu-ras como um protótipo proverbial da perversidade humana e do julgamento de Deus que, no final, recai sobre os malfeitores. Com Sodoma, parece que chegamos novamente a uma história como a da Torre de Babel — histórias que ilustram a horrenda capacidade das sociedades humanas para o mal, no encalço de Gênesis 3. É a desobediência de Adão, Eva, Caim e de seus descendentes multiplicada num âmbito nacional.

Para que isso fique mais claro, façamos uma "teologia bíblica condensada sobre Sodoma" e tracemos seu tema por meio de vários textos.

Começando com Gênesis 18.20, ouvimos o "clamor" (ze`ciqah) que chega a Deus, vindo de Sodoma — uma palavra que nos diz imediatamente que cruelda-de e opressão estavam acontecendo ali.

Disse mais o SENHOR: Com efeito, o clamor de Sodoma e Gomorra tem-se multiplicado e o seu pecado se tem agravado muito. Descerei e verei se, de fato, o que têm praticado corresponde a esse clamor que é vindo até mim. (Gn 18.20-21; ARA).

2. A exposição que se segue de Gênesis 18.19 é breve, devido a uma discussão mais completa em The mission of God, p. 358-369. Usada e citada com permissão.

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Pessoas que andam no caminho de Deus 4' 1 0 1.

O termo ze ` aqah ou s eaqah é uma expressão técnica para o grito de dor ou para o grito de socorro daqueles que estão sendo oprimidos ou violentados.' É usado para o clamor dos israelitas sob a escravidão no Egito (Êx 2.23). Os salmistas utilizam-no quando apelam para que Deus ouça o seu clamor contra o tratamento injusto (por exemplo, SI 34.17). E o mais descritivo de todos é o grito por socorro de uma mulher que está sendo estuprada (Dt 22.24, 27). Já em Gênesis 13.13 somos informados: "Os homens de Sodoma eram maus e grandes pecadores contra o SENHOR". Nesse trecho, o pecado é identificado como opressão, porque é isso que a palavra "clamor" indica imediatamente. Algumas pessoas em Sodoma ou em suas proximidades estavam sofrendo, de modo que clamavam contra a opressão e a crueldade que ali reinava.

Em Gênesis 19, lemos mais sobre a imoralidade sexual violenta, perversa e hostil, que caracterizava "[...1 os homens de Sodoma, desde os moços até os velhos, sim, gente de todos os lados" (19.4).

Em Deuteronômio 29.23, o destino futuro de Israel, sob a ira e o julgamento de Deus pela idolatria daquele povo, é comparado ao de Sodoma e Gomorra, o que sugere que parte do pecado destas duas cidades era a idolatria desen-freada, juntamente com os seus males sociais (cf. Lm 4.6).

Isaías retrata a Jerusalém de seus próprios dias nas cores de Sodoma e Gomorra, quando estas foram condenadas por carnificina, corrupção e injustiça (Is 1.9-23). Ele também retrata o futuro julgamento de Deus contra a Babilônia (outra cidade prototípica) por causa do orgulho, como se fosse um replay da destruição que Deus trouxe a Sodoma e Gomorra (Is 13.19, 20).

Ezequiel, ainda mais cáustico, compara Judá com Sodoma de modo desfavo-rável, descrevendo os pecados dos sodomitas (Ez 16.48 e seguintes).

Assim, a partir desse testemunho mais amplo do Antigo Testamento, fica claro que Sodoma era utilizada como um paradigma - um modelo do que há de pior na sociedade humana. Ao mesmo tempo, o nome de Sodoma falava do julgamento inevitável e abrangente de Deus sobre tamanha perversidade. Ela era um lugar cheio de opressão, crueldade, violência, sexualidade pervertida, idolatria, orgulho e consumo ganancioso; e era um lugar vazio de compaixão ou cuidado para com os necessitados. De fato, um modelo do mundo caído, no qual ainda vivemos.

Quando trazemos este tema para dentro do Novo Testamento, encontramos um "catálogo sodomita" semelhante na interpretação que Paulo faz da perver-sidade humana em Romanos 1.18-32. Embora Paulo não mencione o nome de Sodoma, sua lista de pecados humanos reflete todos os itens acima referentes ao pecado de Sodoma. Provavelmente, era isso o que estava por detrás de sua

3. Veja Richard Nelson Boyce, The cry to God in the Old Testament (Atlanta: Scholars Press, 1988).

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102 * A missão do povo de Deus

mente oriunda das tradições judaicas.' De modo importante, Paulo começa sua lista afirmando que "a ira de Deus se revela do céu contra" todo comportamento como esse; termina com a declaração: "[...] são passíveis de morte os que tais coisas praticam" (ARA). Foi realmente do céu que choveu fogo e enxofre sobre Sodoma e Gomorra (Gn 19.24).

Ora, se esse era o mundo, conforme a visão de Paulo em seu tempo - um mundo de nações tipificadas por Sodoma -, esse era também o mundo para o qual ele foi chamado a se envolver em uma missão. Que mundo de maldades! Então, como Paulo via sua missão em um mundo como esse? Ele nos diz isso duas vezes, no início e no final de Romanos: sua missão não era nada menos do que produzir a "obediência da fé" entre todas as nações (Rm 1.5; 16.26).

A obediência entre as nações Já não ouvimos essa linguagem? Conforme destacamos no capítulo 4, Paulo via sua missão em termos abraâmicos. Sua missão era a de levar adiante o que Deus ordenou a Abraão - criar comunidades de fé e obediência, co-munidades comprometidas a andar nos caminhos do Senhor (num mundo de nações que estavam andando nos caminhos de Sodoma), comunidades transformadas, que apresentariam um contraste total com a Sodoma, ao redor dela.

A missão de Paulo, portanto, tinha um conteúdo intensamente ético. Havia uma missão além do evangelismo. Era a missão de ensinar as novas comuni-dades, a missão de uma transformação moral de acordo com os caminhos de Deus. Isso era fundamentalmente abraâmico. Harmoniza-se com nosso texto neste capítulo.

Nossa missão, em conformidade com a missão de Paulo e com a de Abraão, é a mesma e requer nada menos que a graça transformadora e mi-lagrosa de Deus no evangelho, até mesmo para contemplarmos o que nossa missão significa.

O mundo atual não está muito diferente do mundo de Sodoma. Por essa razão, a missão do povo de Deus também não mudou. Ainda somos chamados para ser aqueles que são ensinados pelo exemplo de Abraão e que estão compro-metidos a "andar nos caminhos do Senhor", "praticando justiça e juízo". Chega-remos ao significado dessas frases logo adiante. Mas por hora está obviamente claro, no presente texto, que a distinção ética do povo de Deus é parte integrante do papel que ele é chamado a desempenhar na missão de Deus de abençoar um mundo que, de outra forma, estaria sob seu julgamento, assim como Sodoma.

4. Philip Esler ("The sodom tradition in Romans 1.18-32", Biblical'heology Bulletim 34 [2004): 4-16) sugere que esse catálogo de vícios e maldades, os quais caracterizavam Sodoma, havia moldado a mente dos judeus em relação ao pecado e ao julgamento e era bem conhecido por Paulo.

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Pessoas que andam no caminho de Deus • 103

Na verdade, de acordo com Gênesis 18.19, essa qualidade ética da vida faz parte do propósito da nossa eleição em Abraão.

Se as nações devem ser abençoadas, o povo de Deus deve andar nos cami-nhos de Deus.

ABRAÃO: UM MODELO DA MISSÃO DE DEUS A conversa de Deus consigo mesmo e com Abraão, em Gênesis 18, se estabelece no contexto da perversidade de Sodoma. Foi essa perversidade que culminou em uma investigação conduzida por Deus, com seus dois anjos, uma investiga-ção que parecia que certamente terminaria em julgamento. A conversa de Deus consigo mesmo começa em Gênesis 18.18, com uma recapitulação da promessa original da aliança: "Abraão certamente virá a ser uma grande e poderosa nação; nele serão benditas todas as nações da terra".

Julgamento imediato: a bênção final Repetindo esse alvo missional global para o mundo, Deus explica por que havia acabado de renovar sua promessa com Abraão e Sara, de que eles teriam um filho, o que fizera momentos antes, durante a refeição (Gn 18.10, 14). Tudo o que Deus está prestes a fazer — o julgamento de Sodoma e Gomorra ou o nascimento de um filho para Abraão e Sara — deve ser visto à luz desse propósito. Deus, embora esteja pretendendo realizar um juízo imediato sobre uma determinada sociedade má, detém-se para se lembrar de seu propósito supremo de dar uma bênção uni-versal a todas as nações, quase como se Deus não pudesse realizar um julgamento sem colocá-lo no contexto da redenção. A necessidade imediata específica era o julgamento. O supremo alvo universal era (como sempre o foi) a bênção. Essa é uma parte importante de nossa teologia bíblica de missão. Nunca se esqueça da definição de Paulo acerca do evangelho em Gaiatas 3.8 — a vontade de Deus é que as nações da terra sejam abençoadas. Essa é a boa-nova que devemos ter em mente, mesmo no contexto de um julgamento aterrorizante como esse.

Uma promessa para o mundo Então, Deus se detém para fazer uma refeição com Abraão e Sara. Deus não precisava ter feito isso, é claro, assim como não precisava "ter descido" para descobrir o que estava acontecendo em Sodoma. A razão por que Deus e seus dois anjos decidem-se por parar e fazer uma refeição com Abraão, como se fos-sem três viajantes (conforme Abraão pensou que o fossem, 18.2) não é que eles sabiam que Sara era uma boa cozinheira. É que Deus viu nesse casal de idosos sem filhos acampados nas colinas, acima das cidades da planície, a chave para todo o seu propósito missional para a história e para a humanidade.

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104 • A missão do povo de Deus

A história relembra o leitor (assim como Deus relembra a si mesmo, vv. 17-19) da centralidade de Abraão na teologia bíblica da missão de Deus. Abraão e Sara iam ter um filho, essa foi a promessa de Deus. Por quê? Não apenas para lhes dar um tratamento especial, quando eles pensavam que era um tanto tarde para esse tipo de milagre (Gn 18.10-13 parece deliberadamente humorístico). Não. Eles deviam ter e tiveram um filho, porque todo o plano de Deus para a evangelização do mundo, para trazer bênção para todas as nações, dependia disso. Afinal, a ideia de que o povo de Deus deve ter a missão de ser uma bênção para as nações depende, com certeza, da existência de tal povo. Isso não pôde nem sequer começar até que Abraão e Sara fossem abençoados com o filho prometido.

Portanto, precisamos dar total atenção à amplitude global dos versículos 17 a 19. A promessa de Deus a Abraão foi a pedra fundamental ou o principal motivo de toda a missão do povo de Deus ao longo da história.

• Quando os indivíduos chegaram à fé salvadora no Deus de Israel, no pró-prio Antigo Testamento (como Rute, Naamã, a viúva de Sarepta), Deus estava mantendo sua promessa a Abraão.

• Quando Salomão orou para que as pessoas dos confins do mundo pudes-sem vir e ter suas orações respondidas por Deus no templo, estava orando para que Deus cumprisse a promessa feita a Abraão.

• Quando os salmistas, os profetas, os apóstolos e os autores dos evange-lhos perceberam a extensão das boas-novas do amor salvífico de Deus aos gentios, sabiam que Deus estava mantendo sua promessa a Abraão.

• Quando o evangelho avançou para o norte, para a Ásia Menor, para o oeste da Europa, para o sul da África e para o oriente, nas Arábias (no próprio período neotestamentário), Deus estava cumprindo sua promes-sa a Abraão.

• Quando o evangelho se estendeu ainda mais, ao longo dos séculos, atin-gindo até os confins da terra, do ponto de vista de Israel, Deus estava cumprindo sua promessa a Abraão.

• Quando o evangelho chega até nós e nos abraça nessa grande comunida-de multinacional da fé e da obediência de Abraão, Deus ainda está man-tendo sua promessa.

É nisto que consiste a missão do povo de Deus: sermos aqueles que, tendo recebido a bênção de Abraão, continuam a tarefa de alcançar aqueles que ainda não foram tocados por ela.

Abraão e Sara talvez não tenham visto muito além da porta de sua tenda e de seu anseio por um filho, mas Deus tinha em mente uma visão de longo alcance naquela hora de almoço.

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Pessoas que andam no caminho de Deus • 105

O CAMINHO DO SENHOR: UM MODELO PARA O POVO DE DEUS Voltando ao versículo-chave central (Gn 18.19), encontramos nele, de um lado, a ética com a eleição (Deus escolheu Abraão) e, de outro, a missão (a promessa de Deus a Abraão). Primeiramente, examinaremos o real significado das fra-ses-chave "o caminho do SENHOR" e "praticar justiça e juízo". Em seguida, tomaremos nota da convincente lógica missional que percorre esse versículo. Terminaremos com algumas reflexões desafiadoras e práticas.

Uma educação ética Deus disse que havia escolhido Abraão para ser um professor, especificamente um professor do caminho do Senhor, um professor de justiça e de juízo. Essa educação ética começará com seus filhos e se estenderá à "sua casa depois dele". Isso significa que haverá uma transmissão de ensinamentos através das gerações - o que exatamente encontramos mais tarde no Israel do Antigo Testamento (por exemplo, Dt 6.7-9). Duas frases resumem o conteúdo do currículo da fa-mília de Abraão:

"O caminho do Senhor" A expressão "guardar o caminho do SENHOR" ou "andar no caminho do SENHOR" era a metáfora preferida utilizada no Antigo Testamento para descrever um aspecto específico da ética de Israel. Um contraste está implícito nessa ideia: andar no caminho de YHWH, de forma distinta dos caminhos de outros deuses, dos caminhos de outras nações, do próprio caminho, dos pró-prios caminhos de alguém ou dos caminhos dos pecadores. Nesse versículo, o contraste é claro entre o caminho de YHWH e o caminho de Sodoma, que se segue imediatamente. Como metáfora, "andar no caminho do Senhor" parece trazer duas imagens possíveis à mente.

Uma imagem é a de seguirmos alguém num caminho, observando suas pe-gadas e seguindo cuidadosamente o caminho por onde ele está passando. Nesse sentido, a metáfora sugere uma imitação de Deus: você observa como Deus age e tenta seguir seu exemplo, assim como diz o hino sobre seguir Jesus: "Oh, deixe-me seguir suas pegadas para pôr nelas os meus pés". Esta é uma maneira de falar sobre imitar Deus, ou melhor, sobre refletir seu caráter.

A outra imagem é a de começar a andar por um caminho, seguindo as ins-truções que alguém lhe deu - talvez um esboço de um mapa (se for esse o caso, não é muito anacrônico com o antigo Israel) ou de um conjunto de direções para se garantir que você continue no caminho certo, para não vaguear em caminhos perigosos. Esse uso da metáfora é mais comumente associado à obediência aos mandamentos de Deus, a qual é uma extensão do reflexo do próprio Deus.

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106 • A missão do povo de Deus

Os mandamentos de Deus não são apenas regras arbitrárias. Eles geralmente se relacionam com o caráter ou com os valores ou desejos de Deus. Logo, obe-decer-lhe aos mandamentos é refletir-lhe o caráter na vida humana.

Um dos exemplos mais claros dessa dinâmica em ação é Deuteronômio 10.12-19. Ele começa com prelúdio retórico, parecido com Miqueias 6.8, resu-mindo toda a Lei em um único acorde de cinco notas: temer, andar, amar, servir e obedecer:

Agora, pois, ó Israel, que é que o SENHOR requer de ti? Não é que temas o SENHOR, teu Deus, e andes em todos os seus caminhos, e o ames, e sirvas ao SENHOR, teu Deus, de todo o teu coração e de toda a tua alma, para guardares os mandamentos do SENHOR e os seus estatutos que hoje te ordeno, para o teu bem? (Dt 10.12, 13; ARA).

Quais eram os caminhos de YHWH nos quais Israel devia andar? A resposta é dada primeiramente em termos gerais. Os seus caminhos eram os do amor condescendente na escolha de Abraão e descendentes (vv. 14, 15), para que Israel respondesse com arrependimento e humildade (v. 16).

Mas a passagem, quando prossegue, definindo especificamente os caminhos de YHWH, concentra-se em seu caráter e ações.

[Ele] não faz acepção de pessoas, nem aceita suborno; que faz justiça ao órfão e à viúva e ama o estrangeiro, dando-lhe pão e vestes. Amai, pois, o estrangeiro, porque fostes estrangeiros na terra do Egito. (vv. 17-19; ARA).

Andar nos caminhos do SENHOR, então, significa fazer pelos outros o que Deus desejaria fazer por eles. No caso de Israel, fazer aos outros aquilo que Deus já fez aos israelitas: libertar da condição de alienação no Egito e prover alimentos e roupas no deserto. Ou seja, você sabe como Deus age porque você já tem experimentado a ação dele em seu favor. Agora vá e faça o mesmo!

O contraste com Sodoma sobressai agora de modo ainda mais claro, porque essas coisas eram exatamente aquelas que o povo de Sodoma estava deixan-do de fazer, em sua opressão insensível e em sua falta de cuidado para com os necessitados. Portanto, Abraão devia ensinar seu povo a ser principalmente diferente. "Andar nos caminhos do SENHOR" significava renunciar ao caminho de Sodoma. Hoje ainda significa isso. Fazer isso é parte fundamental da missão do povo de Deus.

A expressão "andar nos caminhos do SENHOR" teria sido suficiente para que qualquer leitor do Antigo Testamento experiente compreendesse a total e valiosa importância da intenção de Deus nesse texto, mas, para termos certeza absoluta de que entenderíamos a mensagem, o nosso texto a explica ainda mais, com mais estas palavras.

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Pessoas que andam no caminho de Deus 107

A prática da justiça e do juízo Aqui está um par de palavras que permanece bem no topo do vocabulário ético do Antigo Testamento. Cada uma delas, em variadas formas verbais, adjetivas e nominais, ocorre centenas de vezes. Geralmente são encontradas juntas, como neste caso. Olhemos para a raiz dessas duas palavras.'

(1) A primeira é a raiz sc4, que é encontrada em duas formas de substantivo comum: sedeq e sedaqah. Essas palavras são normalmente traduzidas por "justiça" na Bíblia, mas, com seu teor um tanto religioso, não transmite toda a gama de significado no hebraico. O significado da raiz é provavelmente "reto": algo que é estável e é plenamente o que deveria ser. Portanto, pode significar uma norma ou padrão - algo utilizado para medir as outras coisas. Ela é usada literalmen-te para objetos reais, quando eles são ou fazem o que supostamente deveriam ser ou fazer. Por exemplo, pesos e medidas precisas são "medidas de sedeq" (Lv 19.36; Dt 25.15). Os caminhos seguros para as ovelhas são "caminhos de sedeq" (S1 23.3). Logo, passam a significar "retidão", aquilo que é o que deveria ser, o que se equipara ao padrão.

Quando é aplicada às ações e aos relacionamentos humanos, refere-se à conformidade com aquilo que é correto ou esperado, mas não de um modo abstrato ou absoluto, mas de acordo com as exigências de um relacionamento ou de uma situação específica de alguém. Significa fazer o que é correto nesses relacionamentos ou de acordo com as prioridades e expectativas dessa situação. Não é uma norma abstrata, mas um senso particular do que significa fazer a coi-sa certa como pai, criança, juiz, rei, irmão, agricultor, amigo, cônjuge, adorador e assim por diante. Retidão é fazer tudo o que se deve fazer em favor do outro, em determinadas circunstâncias e relacionamentos.

(2) A segunda é a raiz s'pt, que tem a ver com a atividade judicial em todos os níveis. Um verbo e um substantivo comum derivam dela. O verbo sapat refere-se à ação legal, num âmbito mais amplo. Pode significar: atuar como um legislador; atuar como um juiz, arbitrando entre duas partes em litígio; pronunciar o julga-mento, declarando quem é culpado e quem é inocente respectivamente; e exer-cer o juízo no cumprimento das consequências legais de tal veredicto. Em seu sentido mais amplo, significa "endireitar as coisas", intervir numa situação que é errada, opressiva ou que está fora de controle e consertá-la. Portanto, quando os salmistas aguardavam a vinda de Deus "para julgar a terra", eles não estavam pen-sando apenas em sua condenação para o ímpio, mas em Deus endireitando todas as coisas que têm estado perversamente erradas na sociedade e na criação.

O substantivo derivado mispat pode descrever todo o processo de litígio (um caso) ou seu resultado final (a sentença e sua execução). Pode significar um

5. Uma análise e discussão bem mais completas desses termos, com uma bibliografia relevante, podem ser encontradas em meu livro Old Testament ethics for the people o f God, p. 253-280.

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108 • A missão do povo de Deus

decreto jurídico, normalmente uma jurisprudência com base em precedentes. Êxodo 21-23, conhecido como o Código da Aliança ou Livro da Aliança, é sim-plesmente chamado em hebraico de migpatim.

Mas mipat também pode ser usado com um sentido mais pessoal, como um direito legal, uma causa ou um caso que alguém esteja movendo contra outra pessoa, diante dos anciãos. A expressão comum "o migpat do órfão e da viúva" significa o caso legítimo deles contra aqueles que os estariam explorando; sua justa causa num mundo injusto. É a partir desse último sentido, em especial, que migpat passou a ter o sentido mais amplo de "justiça", numa forma mais ativa, enquanto sedeq/sedaqah tem um teor um tanto mais estático.

Há um grande número de sobreposições e intercambialidade entre essas duas palavras, mas, se houver alguma distinção, podemos colocá-la desta maneira: mdpat é o que precisa ser feito numa determinada situação se quisermos que as pessoas e circunstâncias sejam restauradas, para estarem em conformidade com sedeq/sedaqah. ~pai é um conjunto de ações — algo que você faz. Sedeq/sedaqah é um estado dos acontecimentos — algo que você procura alcançar. Mas, na verda-de, as duas palavras podem ser utilizadas para ações práticas.

Em Gênesis 18.19, as duas palavras estão emparelhadas, como costumam estar, para formar uma frase abrangente. Esse emparelhamento é o que tecnica-mente chamamos de hendíade — que é uma única ideia complexa expressa por meio do uso de duas palavras emparelhadas (como "lei e ordem"). Possivelmente, a expressão mais próxima para essa frase hebraica de duas palavras seja "justiça social"; no entanto, até mesmo este conjunto binário é um tanto abstrato para a natureza dinâmica desse par de palavras hebraicas. Porque sedaqah e mi:spat são substantivos concretos, ao contrário dos substantivos abstratos usados para traduzi-los. Em outros termos: no pensamento do Antigo Testamento, justiça e juízo são ações reais que praticamos, e não conceitos em que refletimos ou um ideal com que sonhamos.

Abraão, portanto, deveria ensinar o caminho do Senhor para a sua casa e o modo de praticar a retidão e a justiça. Essa educação ética deveria ser transmiti-da através das gerações. Para isso, diz Deus, é que eu o escolhi.

Como o próprio Abraão aprenderia aquilo que deveria ensinar? Ele recebe sua primeira lição de Deus em Gênesis 18. Quem melhor do que o próprio Deus para ensinar o caminho do Senhor e o que ele significa?

O primeiro ponto a que YHWH chama a atenção de Abraão é a sua preo-cupação com o sofrimento dos oprimidos nas regiões de Sodoma e Gomorra. O relato cuidadoso dessa conversa, em Gênesis 18.17-19, é um solilóquio — isto é, Deus fala consigo mesmo. Mas no versículo 20, Deus fala novamente com Abraão. Sua primeira palavra é: ze`aqah ("grito por socorro"). O que provoca a investigação e a ação de Deus não é apenas o terrível pecado de Sodoma, mas principalmente os protestos e os gritos de suas vítimas.

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Pessoas que andam no caminho de Deus e' 109

Isso é um prenúncio exato daquilo que motivou Deus nos primeiros capítulos de Êxodo (veja Êx 2.23-25; 3.7). Deus ouve o grito por socorro dos israelitas sob a escravidão. Na verdade, esse incidente em Gênesis é altamente organizado na forma com que se define o caráter, as ações e as exigências de Deus. Quando age na história do êxodo, ele o faz do mesmo modo como disse a Abraão que estava prestes a agir em Sodoma e Gomorra, pelas mesmas razões: sua compaixão pelo sofrimento e sua ira contra a injustiça.

Logo, o caminho do Senhor, o qual Abraão está prestes a testemunhar e, depois, a ensinar, é praticar justiça e juízo em favor dos oprimidos e contra o opressor. O salmista diz que Deus ensinou isso a Moisés. Ele poderia facilmente ter acrescentado: "e a Abraão".

O SENHOR faz justiça e juízo a todos os oprimidos. Fez notórios os seus caminhos a Moisés, e os seus feitos aos filhos de Israel. (Si 103.6, 7; ARC, grifo do autor).

A lógica missionai Voltando novamente ao nosso texto-chave, devemos também dar atenção à sua estrutura gramatical e lógica. Gênesis 18.19 é uma declaração compacta. A ordem das orações e as conexões entre elas são importantes. Vamos trabalhar com elas pela ordem:

Gênesis 18.19 é formado por três orações, unidas por duas expressões de finalidade "para que..."

Eu o conheci — Esta oração é geralmente usada para a escolha de Deus de trazer uma pessoa ou pessoas para um relacionamento íntimo com ele mesmo (por exemplo, também Am 3.2). É por isso que ela é geralmente traduzida por Eu o escolhi.

Depois, Deus afirma o propósito da escolha de Abraão: "UI para que or-dene a seus filhos e a sua casa depois dele, a fim de que guardem o caminho do SENHOR e pratiquem a justiça e o juízo" (ARA).6 Isso é o que temos explorado na última seção.

Essa, por sua vez, é seguida por outra oração adverbial final: '1.4 para que o SENHOR faça vir sobre Abraão o que tem falado a seu respeito" (ARA). Termina com essa oração, expressando a meta a longo prazo para ambas as orações anteriores. Deus pretende manter sua promessa de abençoar as na-ções através dos descendentes de Israel (mencionados no versículo 18). É por isso que ele escolheu Abraão, que deve ensinar seus descendentes a viverem no caminho do Senhor.

6. A expressão de finalidade é enfática, visto que as orações não estão simplesmente unidas (como poderiam facilmente ser no hebraico) pela conjunção ubíqua, mas sim pela conjunção subordinativa final, Cema'an, que significa "a fim de que..?' ou "com a finalidade de..."

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1 1 O • A missão do povo de Deus

Nos termos de nossa teologia bíblica, conforme dissemos acima, esse versí-culo liga eleição, ética e missão numa única sequência, estabelecida na vontade, na ação e no desejo de Deus. Ele é basicamente uma declaração missional, que explica a razão para a eleição e explica o propósito para uma vida ética. Ele é extremamente rico e significativo.

Devemos notar particularmente o modo com que a ética permanece como um meio-termo entre eleição e missão. A ética é o propósito da eleição e a base da missão. Isso quer dizer: a eleição que Deus fez de Abraão (linha 1) se destina a produzir uma comunidade que é ensinada a refletir o caráter ético de Deus e a ser comprometida com ele (linha 2). O resultado da existência real dessa comu-nidade será o cumprimento da missão de Deus: abençoar as nações (linha 3).

Esse cumprimento da missão baseia-se na ligação, conforme a vimos no capítulo 4, entre a eleição de Abraão para abençoar outros e a sua própria obe-diência pessoal à ordem de Deus. Tanto Gênesis 22.18 quanto 26.4, 5 fazem essa ligação, conectando a intenção de Deus de abençoar as nações com a obediência testada de Abraão. A obediência pessoal de Abraão deveria ser o modelo para os seus descendentes, já que a promessa de Deus continuaria sendo cumprida. Mas, nesse texto, tal obediência deve ser transmitida pelo ensino a toda a sua comunidade. Eles se tornarão uma comunidade-modelo, ensinada pelo modelo do próprio Abraão.

Outra forma de deixar clara esta ideia é abordar a lógica missional de Gênesis 18.19 a partir do final do versículo. Seja qual for a forma, você leia o versículo; a ética permanece no meio dele.

Lendo do fim para o começo:

• Qual é a missão suprema de Deus? Trazer a bênção às nações, como ele prometeu a Abraão (missão).

• Como isso será conseguido? Pela existência de uma comunidade no mun-do, que será ensinada a viver de acordo com o caminho do Senhor, em retidão e justiça (ética).

• Como tal comunidade passará a existir? Deus escolheu Abraão para ser o seu pai fundador (eleição).

Ou lendo a partir do começo:

• Quem é Abraão? Aquele que Deus escolheu e passou a conhecer num relacionamento pessoal (eleição).

• Por que Deus escolheu Abraão? Porque quis dar início a um povo com-prometido com o caminho do Senhor e com sua retidão e justiça, num mundo que seguia o caminho de Sodoma (ética).

• Com que finalidade o povo de Abraão deveria viver de acordo com esse padrão ético elevado? Para que Deus pudesse cumprir sua missão de le-var bênção às nações (missão).

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Essa é, então, outra passagem que nos mostra essa ligação importante na nossa teologia bíblica, entre nossa eclesiologia e nossa missiologia. Já des-tacamos a grande importância de vermos a razão missionai para a própria existência da igreja - o povo de Deus. Nesta era, se a igreja não for missionai, não é igreja.

Mas agora vemos com mais clareza que essa ligação entre igreja e missão também é ética. A comunidade que Deus procura para cumprir sua missão deve ser moldada pelo seu próprio caráter ético, com especial atenção para a retidão e justiça, num mundo cheio de opressão e injustiça. Só uma comuni-dade como essa pode ser uma bênção para as nações.

Com essa ligação bíblica tão forte, não é de admirar que Jesus tenha gas-tado tanto tempo treinando sua comunidade de discípulos em relação ao que significava segui-lo em todas as escolhas éticas exigidas pela vida, afastar-se dos caminhos da cultura ao seu redor (arrependimento), exercendo fé nele e obedecendo a seus ensinamentos.

Assim, quando ele os enviou às nações, recomendou com a mesma ênfase a obediência do discipulado: "[...] ensinando-os a obedecer a tudo o que eu lhes ordenei" (NVI). A missão às nações é ética em sua essência, pois exige vidas comprometidas a obedecer ao Senhor e se torna automultiplicadora, por meio da obra evangelística (batismo) e do discipulado (ensino).

O duplo aspecto missional e ético da Grande Comissão é totalmente con-sistente com o que temos visto nesse único versículo de Gênesis. De acordo com Gênesis 18.19, a qualidade ética na vida do povo de Deus é a ligação vital entre o seu chamado e sua missão. A intenção de Deus de abençoar as nações é inseparável da exigência ética que Deus faz ao povo que ele criou para ser o agente dessa bênção.

Não há missão bíblica sem ética bíblica.

RESUMO Não haveria nada de novo em reclamar contra o estado da igreja ao redor do mundo. Todo o mundo faz isso. Todos nós estamos dolorosamente cientes de que os cristãos, em toda parte, e as formas institucionais de cristianismo, em todo o mundo, estão muito aquém até mesmo dos nossos próprios ideais. Que se dirá das exigências de Deus? Mas o que a exegese e os padrões desse texto deixam ainda mais dolorosamente claro para nós é que esse é o estado moral daqueles que alegam ser o povo de Deus, o que é um grande obstáculo para a missão que afirmam ter em nome de Deus.

Enquanto morei na Índia, os cristãos indianos geralmente me diziam que o maior obstáculo para a evangelização daquele país não era o estado da nação ou a resistência do hinduísmo, mas o estado da própria igreja.

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1 1 2 • A missão do povo de Deus

Nosso texto nos diz que Deus julgou Sodoma. Sim, e ainda podemos ver as marcas de Sodoma ao nosso redor. Mas Deus chamou Abraão e seu povo para serem diferentes, para viverem de acordo com padrões diferentes, para refletir o Deus que é radicalmente diferente de todos os deuses falhos das nações. Nosso problema é que geralmente a igreja não é diferente do mundo e, em alguns as-pectos, é ainda pior.

Uma igreja dividida, facciosa e contenciosa não tem nada a dizer ou a ofe-recer a um mundo dividido, arruinado e violento. Uma igreja imoral não tem nada a dizer a um mundo imoral. Uma igreja cheia de corrupção, discriminação de classes sociais e com outras formas de opressão social, étnica ou sexual não tem nada a dizer a um mundo onde essas coisas são desenfreadas. Uma igreja com líderes aparentemente obcecados por riqueza e poder não tem nada a dizer a um mundo de tiranos gananciosos. Uma igreja que é de tal maneira uma má notícia não tem boas-novas para partilhar ou, de qualquer forma, tem-nas, mas suas palavras são abafadas por sua vida.

Isso é o que torna tão importante levar a sério o que Deus disse a Abraão na primeira Grande Comissão, e que Jesus disse aos seus discípulos, na versão mais atualizada dessa Grande Comissão. O povo de Deus deve ser ensinado e deve passar adiante o ensino sobre o que significa andar nos caminhos de Deus e demonstrar retidão e justiça. Há uma dimensão ética irrevogável para a missão desse povo.

É isso que está em jogo em todas as escolhas éticas que temos que fazer na vida - seja no nível individual ou como comunidades do povo de Deus. Isso sempre está ligado à eficácia da nossa missão. Esta nunca é só uma questão minha e da minha consciência diante de Deus. No momento que fracassamos em andar no caminho do Senhor ou de viver em integridade, honestidade e justiça, nós não apenas arruinamos o nosso relacionamento pessoal com Deus, mas estamos, na verdade, atrapalhando Deus de manter sua promessa a Abraão. Nós não somos mais o povo de bênção para as nações.

Não podemos nos encaixar na última linha de Gênesis 18.19, a menos que nos encaixemos na linha do meio. Não podemos cumprir a linha 1 da Grande Comissão, a menos que também obedeçamos à linha 3.

É claro que isso não significa que a igreja tem que ser moralmente perfeita (não estou sugerindo isso) antes que alguém possa se envolver com missão. Se assim o fosse, missão alguma jamais teria acontecido, pois até mesmo a igreja do Novo Testamento era demasiadamente humana e falha. As questões são estas: Qual é o nosso alvo? Onde está o nosso coração? Estamos obcecados apenas por fazer novos convertidos ou estamos empenhados em ensinar o povo de Deus a andar nos seus caminhos, para que as nações sejam abençoadas?

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Pessoas que andam no caminho de Deus • 1 13

QUESTÕES RELEVANTES 1. Qual o impacto que o paralelo entre Sodoma e a sociedade moderna tem

na sua percepção da necessidade do mundo? 2. Como a ligação entre a missão da igreja e a ética piedosa desafia sua pró-

pria vida e a vida da igreja? 3. Abraão foi chamado para "ensinar" sua família e sua comunidade a guar-

dar o caminho do Senhor, praticando a justiça e o juízo. Até que ponto o ensino ético em sua igreja está ligado com a percepção que a igreja tem acerca de chamado e missão?

4. Se a ética é o termo do meio, que está entre o nosso chamado e a nossa missão (Gn 18.19), que diferença isso deve fazer à medida que encaramos nossa vida diária no mundo, em nossas escolhas, ações, atitudes e relacio-namentos?

5. Até onde poderia ser diferente a história da missão cristã se a igreja tives-se sido tão preocupada com a seção do meio do versículo (praticar justiça e juízo: a ética) como tem sido com a seção final (cumprir a promessa de Deus de abençoar todas as nações: o evangelismo)?

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CAPÍTULO 6

PESSOAS QUE SÃO REDIMIDAS PARA UM ESTILO DE VIDA REDENTOR

\locê é redimido?", era uma pergunta que "obreiros" sinceros fariam às pes-soas completamente desconhecidas, nas ruas de Belfast ou nos ônibus. Na Irlanda do Norte, da minha juventude, o que era mais surpreendente

é que a maioria das pessoas saberia que você estava falando sobre o evangelho, sobre a necessidade de salvação pessoal, sobre como ser salvo e ir para o céu. Aqueles eram dias em que "redimir" ainda era uma palavra cristã, e não algo que você consegue fazer com pontos de recompensa no seu cartão de fidelidade ao supermercado ou com milhas de voos frequentes.

Mas, mesmo naquela época, pensávamos na igreja como o povo redimido de Deus. Ela era basicamente vista como um grande ajuntamento de indivíduos redimidos, não como uma comunidade toda redimida para um propósito, redi-mida para missão. Missão significava ajudar os outros a serem redimidos e, para o povo de Deus, ela não estava intrinsecamente ligada ao propósito completo da redenção em si.

Entretanto, biblicamente, quando encontramos a linguagem da redenção pela primeira vez,' ela está na boca de Deus, proferida como uma promessa a toda a comunidade de Israel cativa no Egito (Êx 6.6). Depois a encontramos nos lábios de Moisés celebrando redenção de todo o povo pelo próprio Deus (Êx 15.13). Essa redenção é inequivocamente corporativa - Deus redimiu toda a nação israelita, tirando-a do Egito. E Deus assim o fez com um propósito claro - para que eles fos-sem seu povo, comprometidos com ele por meio de uma aliança, conhecendo-o como YHWH, e servindo-o como sacerdócio santo no meio das nações. Israel foi redimido para cumprir a promessa que Deus havia feito a Abraão, de que todas as nações da terra encontrariam bênção por intermédio de seus descendentes. Israel foi redimido por uma razão. Ele tinha uma missão no mundo como o povo que Deus redimira para si mesmo, para sua glória e para a sua missão.

Portanto, neste capítulo, pensaremos no que significa ser esse povo redimido de Deus. Veremos que a ideia de Deus acerca da redenção é moldada pelo êxodo. Logo, precisamos perguntar o que a experiência da redenção significava para Israel, e como a grandiosa história do Antigo Testamento é construída sobre os fundamentos da teologia bíblica da cruz, o que deve, portanto, afetar o que significa para nós, como cristãos, dizer que somos redimidos.

1. Com a única exceção de Gênesis 48.16, em que Jacó relembra a proteção de Deus em sua vida.

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Pessoas que são redimidas para um estilo de vida redentor 115

Segundo, precisamos observar quão profunda e ampla foi a influência do êxodo para a vida e a fé de Israel. Redenção não era apenas um evento passado, mas uma realidade que requeria uma resposta prática no presente. Devemos lembrar que o êxodo não estava confinado aos rituais anuais da Páscoa, mas que desempenhou algumas funções poderosas na fé de Israel - algumas vezes para reprová-la, mas também para dar encorajamento e esperança.

Finalmente, devemos nos perguntar o que significa viver de modo redentor na missão. Para que fomos redimidos?

EXPERIMENTANDO A REDENÇÃO DE DEUS Se nosso evangelista sincero da Irlanda do Norte tivesse perguntado a um israe-lita do Antigo Testamento: "Você foi redimido?", a resposta teria sido imediata: "Fui". E se nosso homem ou mulher de Ulster (Irlanda do Norte) tivesse per-sistido: "Como você sabe?", a resposta provavelmente não seria um testemunho pessoal (se os israelitas tivessem escrito um salmo nessa época, isso poderia acontecer), mas sim um épico nacional - a história do êxodo. Pois, conforme mencionado acima, o primeiro e mais substancial uso da linguagem da reden-ção na Bíblia é aplicado ao êxodo.

"A refeição em si [a ú timo ceia] comunicou cuas coisas cem específicas. Primeiro, assim como em toda refeição ju-daica, esse acontecimento, na Páscoa, falava da saída do Egito. Para um juceu do século I, ela apontava o retorno do exílio, o novo êxodo, a grandiosa renovação da aliança anunciaca pelos profetas. [...] Segundo, a refeição trouxe o próprio movimento do reino de Jesus ao seu ápice. Ela indicava que o novo êxodo e tuco o que e e significava estava acontecendo em Jesus e por meio dele. [...] Jesus queria que essa refeição simbolizasse o novo êxodo, a chegaca do reino, por meio de sua própria morte. A re-feição foca izou as ações de Jesus com o pão e o cálice, contou a história da Páscoa e a história do próprio Jesus, entrelaçando-as em uma Unica história")

N. T. Wright

2. N. T. Wright, Jesus and the victory of God (Londres: SPCK, 1996), p. 557-559.

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116 • A missão do povo de Deus

No êxodo, Deus agiu como redentor, e esse evento por si só é chamado de ato de redenção. Nos dois aspectos (o que ele fala sobre Deus e o que a redenção, de fato, foi para Israel), o êxodo fornece uma das maneiras-chave de como o Novo Testamento interpreta a realização da cruz de Cristo - o que se torna mais signifi-cativo ainda, pelas ações do próprio Jesus na última refeição com seus discípulos, antes de sua crucificação, refeição essa que todos os evangelhos ligam de alguma forma à Páscoa - a celebração do grandioso ato da redenção de Deus.

Portanto, a redenção do êxodo é claramente um dos temas mais importantes para a nossa teologia bíblica para a vida e certamente causa impacto na missão do povo de Deus. Porque aqueles que foram redimidos são chamados a viver de forma redentora, em resposta à redenção. Esse é outro modo pelo qual a linha da história bíblica que estamos seguindo impacta nossa compreensão acerca da missão do povo de Deus. Quem somos nós e para que estamos aqui? Somos o povo a quem Deus redimiu, e fomos redimidos com um propósito.

O redentor - o campeão que faz o que é preciso Precisamos primeiro perguntar o que as palavras significam. Ao aplicar a palavra "redimir" para a ação de Deus no êxodo, Israel recorreu a um conceito e a uma prática que eram parte integrante de sua cultura, usados como uma metáfora para o que Deus havia feito por Israel. A palavra "redimir", a partir de sua raiz latina, significa "comprar algo ou alguém de volta". Em Israel, a prática poderia envolver essa ideia, mas tinha um significado cultural mais amplo.

O verbo hebraico é gda4 e o substantivo para uma pessoa que executa essa ação é go'd Em Israel, alguém agia como um go'efsempre que assumia a tarefa de defender outro membro da própria família que estivesse sendo injustiçado ou es-tivesse enfrentando algum perigo ou ameaça. Por essa razão, essa palavra às vezes é traduzida por "parente resgatador" ou "guardião da família". Eis três exemplos de como alguém, no Antigo Testamento, poderia agir como um go'd em Israel:

Trazendo um assassino à justiça Se alguém fosse assassinado, era dever de algum membro da parentela da famí-lia procurar o culpado e trazê-lo à justiça, diante dos anciãos. Isso não dava livre curso à vingança e rixas sangrentas, mas baseava-se em um cuidadoso sistema de processo judicial, que levava em conta se a morte havia sido acidental e se havia necessidade de uma corte para decidir, em caso de dúvidas (cf. Nm 35.6-34, em que go'e( é descrito como "o vingador do sangue").

Ajudando um membro da família a livrar-se da dívida ou da escravidão Se alguém estivesse lutando contra circunstâncias econômicas adversas e não tivesse opção, senão vender algum terreno ou mesmo vender seus dependentes

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para o trabalho escravo, para pagar as dívidas, era dever de algum membro da família comprar aquela terra, a fim de preservá-la para a família; ou pagar a dívida, de modo que o membro escravizado da família pudesse ser libertado. Os graus de decrescência desse empobrecimento e as regras para lidar com eles estão estabelecidas em Levítico 25, e ali encontramos a linguagem da redenção em seu sentido mais literal. Era necessário alguém para pagar o custo da reinte-gração da terra de um irmão ou da liberdade da família.'

Mantendo vivo o nome da família de um irmão Se um homem morresse sem ter um filho que herdasse seu nome e sua proprie-dade, havia uma firme obrigação moral (embora não parecesse ser obrigatória por lei) de um irmão ou algum outro parente do sexo masculino trazer a viúva para a sua própria família e de tentar ter um filho com ela. Assim, aquele filho herdaria o nome e a propriedade do irmão falecido.

Deuteronômio 25.5-10 refere-se a essa prática (embora o termo ga'at não seja utilizado) e indica que ela era provavelmente uma obrigação impopular. A história de Rute, em contrapartida, mostra Boaz exercendo "fidelidade" ao agir como go'er de Rute e Noemi, enquanto um parente mais próximo exercia o que poderíamos chamar de "direito de primeira recusa". A atitude do outro homem indica que assumir o papel de go'd envolvia um custo pessoal considerável e riscos (Rt 3.9-13; 4.1-8).

Portanto, quando Deus prometeu que iria ga'af(redimir) seu povo (Êx 6.6), e quando Moisés celebrou a redenção que ele fizera (Êx 15.13), isso fala poderosa-mente de YHWH adotando um importante papel em relação a Israel. Significa que Deus é tão comprometido com o seu povo quanto qualquer membro de uma família é com o outro. Ele aceita uma relação de parentesco, com todas as suas obrigações. Deus está preparado para fazer o que for preciso, pagar o que custar, a fim de proteger, defender e libertar o seu povo.

Estão sendo assassinados (como o foram no genocídio egípcio)? Ele os vin-gará e verá a justiça ser feita. Estão abatidos com a escravidão econômica, sem terra ou liberdade? Ele lhes restaurará essas coisas. Correm o risco de morrer sem descendentes (como a matança egípcia de todos os meninos ameaçou fa-zer)? Ele os tomará para si mesmo, em um laço de aliança que garantirá em to-das as gerações futuras que os filhos primogênitos pertençam a ele pelo direito da redenção (Êx 13.1-16).

Essas são as ricas dimensões do significado que encheu a mente de Israel, quando eles falaram de YHWH como "redentor". Deus era o seu campeão, pro-

3. Para uma discussão detalhada sobre Levítico 25, sobre suas prescrições diversas e seu contexto mais amplo na organização do Antigo Testamento e na ética cristã, veja Christopher J. H. Wright, God's people in the God's land: Family, land and property in the Old Testament (Grand Rapids: Eerdmans e Carlisle: Paternoster, 1990) e Old Testament ethics for the people of God, p. 146-181.

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118 • A missão do povo de Deus

tetor, libertador, vingador e defensor. Isso foi a base para as orações e os louvores nos salmos (por exemplo, Si 19.14; 69.18; 72.14; 74.2; 77.15; 78.35; 103.4; 106.10; 107.2; 119.154). Isso atinge seu auge na poesia de Isaías (por exemplo: Is 41.14; 43.1, 14; 44.6; 22-24; 48.20; 52.9; 62.12; 63.9).

Mas exatamente o que esse Deus fez quando escolheu agir como redentor? Ele fez o êxodo.

Por isso, precisamos olhar com cuidado para esse acontecimento, para per-ceber a proporção e a amplitude da ideia de Deus acerca da redenção em ação. Lembre-se, a razão por que precisamos fazer isso é porque, se nossa missão está relacionada com a redenção divina, precisamos entender o ensino bíblico sobre o que a redenção realmente significa. Isso influenciará o modo como entende-mos o que significa viver de forma redentora, em resposta à redenção de Deus.

O êxodo - libertação de tudo o que escraviza É difícil imaginar uma sequência de acontecimentos mais abrangente em seus efeitos do que a história do êxodo, conforme nos é apresentada no livro que possui esse nome. Os textos retratam pelo menos quatro dimensões da escra-vidão que Israel sofreu no Egito — política, econômica, social e espiritual — e demonstram como Deus os redimiu em cada uma dessas dimensões.

Dimensão política Os israelitas eram imigrantes, uma minoria étnica em um grande estado imperial. Eles haviam chegado originariamente como refugiados da fome e encontraram uma acolhida (conforme lembraram; Dt 23.7-8). Mas a política governamental deu uma virada de 180° na geração seguinte, e o abrigo econô-mico se transformou em uma prisão domiciliar de uma política de ódio, medos infundados, exploração e discriminação. Êxodo 1 ecoa através da história de muitas dessas minorias étnicas na era moderna, que sofrem a desconfiança e a opressão sistemática do país que as acolhe.

A obra redentora de Deus incluía acabar com essa escravidão política, permitindo que, finalmente, Israel se estabelecesse como um povo livre. Um abrigo provisório para uma sobrevivência temporária manteve a continuidade da promessa a Abraão. Mas a escravidão permanente sob a opressão política era intolerável, uma vez que impedia que a promessa feita a Abraão se prolongasse. Assim, para libertá-los, Deus confrontou o poder estatal de um império.

A redenção operou no cenário político.

Dimensão econômica A dor mais aguda dessa opressão era econômica. Os israelitas estavam sendo explorados no trabalho escravo, em uma terra a qual não possuíam, para o be-nefício econômico do país anfitrião, em seus projetos agrícolas e de construção

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(Êx 1.11-14). Foi o clamor deles (s e`aqah) contra isso que precipitou a interven-ção do Deus compassivo como seu go'eC

Mas não foi suficiente apenas tirar Israel do Egito, para algum tipo de liberda-de sem importância no deserto. O objetivo da redenção deles (também indicado em Êx 6.6-8) era dar-lhes a própria terra; junto com um sistema econômico que tinha a intenção de banir tal opressão em Israel. Conforme veremos em breve, era justamente na área econômica que os próprios israelitas deveriam viver de forma redentora, em resposta ao que Deus havia feito por eles.

A redenção foi extremamente econômica em sua essência.

Dimensão social A história de horror de Êxodo 1 passa da exploração econômica (o que fa-lhou como ferramenta de controle da população) à tentativa de subversão por parte dos israelitas (por intermédio das parteiras hebreias) e, por fim, a um genocídio patrocinado pelo Estado (extermínio de todos os bebês meninos, por ordem do governo; Êx 1.22). Assim, a falta de liberdade política e a per-sistência da opressão econômica são agora agravadas pela viciosa invasão da vida familiar normal e pela negação dos direitos humanos fundamentais. Mais uma vez, não precisamos ir muito longe para ver Êxodo 1 florescendo em nosso mundo moderno.

Portanto, quando Deus redimiu seu povo desse intolerável inferno de sofri-mentos, isso levou à inauguração de uma sociedade na qual a limitação do po-der governamental, o respeito pela vida humana e pelos direitos fundamentais e a paixão pela justiça social fossem feitos com base em documentos - embora infelizmente sua história pós-êxodo fosse mostrar um rápido declínio dos ideais da aliança do Sinai. A redenção foi uma transformação social.

Dimensão espiritual O hebraico usa a mesma palavra, `aboclah, para o trabalho escravo e para a ado-ração. A palavra ocorre com frequência em Êxodo 1-2, relacionada aos escravos hebreus que serviam Faraó. Mas quando Deus diz a Faraó: "Israel é meu filho, meu primogênito; e eu te disse: Deixa meu filho ir, para que me cultue. Mas re- cusaste deixá-lo (Êx 4.22, 23), a ambiguidade é evidente, conforme mostram muitas versões: algumas traduzem a última palavra por "servir-me", outras, por "adorar-me". Porque, de fato, a escravidão dos israelitas ao Faraó era um enorme obstáculo para a adoração ao Deus de seus pais. A escravidão de Israel tinha uma dimensão espiritual, não apenas política, econômica e social.

De fato, o pedido específico de Moisés a Faraó era para que os israelitas fos-sem autorizados a sair e a adorar o seu Deus, e Deus já havia dito a Moisés que eles deveriam fazê-lo na mesma montanha que ele recebera sua comissão, no lugar da sarça ardente.

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120 • A missão do povo de Deus

À medida que a história se desenvolve, isso se torna um grande e poderoso duelo entre YHWH e Faraó - este, aclamado entre os deuses do Egito. Desse modo, a vitória sobre o Egito não era apenas na esfera socioeconômica e políti-ca, mas era o julgamento de Deus sobre "todos os deuses do Egito" (Êx 12.12). Assim, o momento supremo vem quando Moisés proclama, no ápice de seu cântico, após a travessia do mar Vermelho: "O SENHOR [YHWH] reinará por todo o sempre" (Êx 15.18; ARA) - com esta clara implicação: "e não Faraó".

Portanto, quando Deus redimiu Israel no êxodo, não foi apenas para tirá-los das várias dimensões de sua escravidão, mas também para um relacionamento de aliança com o próprio Deus. Não era o caso de Israel estar fisicamente escra-vizado, precisando ser libertado (se fosse assim, Deus poderia tê-los levado para fora e dito adeus, enquanto eles fugiam para qualquer destino que pudessem escolher em sua liberdade). O problema não era só que os hebreus eram escra-vos, mas que eles eram escravos do senhor errado e precisavam ser transferidos para o serviço do Deus vivo.

O êxodo não foi um movimento da escravidão para a liberdade, mas da es-cravidão para a aliança. A redenção foi feita para que houvesse uma relação com o redentor, para servir os interesses e os propósitos de Deus no mundo.

A redenção teve intenção e resultados espirituais claros.

O êxodo - um modelo holístico Política, econômica, social, espiritual - todas essas dimensões são essenciais para o primeiro grande ato de redenção da Bíblia. Deus fez tudo o que era pre-ciso para resgatar Israel de toda forma de escravidão.

Assim, a narrativa do êxodo nos conta de modo abrangente o que Deus fez quando redimiu Israel. Mas também nos diz as razões pelas quais ele fez isso.

A motivação clara para o êxodo, explicada em Êxodo 1-2, era dupla. Primei-ro, foi por causa da preocupação compassiva de Deus para com as pessoas que sofrem opressão cruel - a paixão de Deus por justiça. Segundo, foi por causa da fidelidade de Deus às promessas da aliança, feitas a Abraão. Em outras palavras, esse é simplesmente o Deus da Bíblia agindo em missão e segundo seu caráter.

Mas, se a missão do povo de Deus flui da missão de Deus, o que podemos aprender com a primeira história da redenção na Bíblia a respeito da forma que nossa própria missão deve ter no mundo de Deus?

Se o primeiro exemplo de redenção é definido pelo êxodo, e se o propósito redentor de Deus está no cerne de sua missão, o que isso nos diz sobre a missão da qual somos chamados a participar? A conclusão inevitável certamente é: uma redenção moldada pelo êxodo exige uma missão moldada pelo êxodo. Isso signi-fica que o nosso compromisso com a missão deve demonstrar a mesma ampla e total preocupação para com a necessidade humana que Deus demonstrou naquilo que ele fez por Israel. E também deve significar que a nossa motivação

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Pessoas que são redimidas para um estilo de vida redentor • 121

e nosso objetivo geral na missão devem ser consistentes com a motivação e o propósito de Deus, conforme declarado na narrativa do êxodo.4

Por essa razão, como um modelo de redenção, o êxodo é parte da base bíbli-ca para a compreensão da missão total, o que me parece ser exigido com uma leitura da Bíblia toda.

"No êxodo, Deus respondeu a todas as dimensões da ne-

cessidade de Israel. Esse ato importantíssimo de redenção

feito por Deus não se limitou apenas a resgatar Israel da

opressão política, econômica e social e depois deixá-los

a sua própria sorte, para acorar a quem quisessem. Nem

tampouco lhes ofereceu simplesmente conforto espiritual ou

a esperança de um futuro melhor em uma casa no céu,

deixando sua condição histórica inalterada. Não, o êxo-

do realizou uma mudança rea na situação histórica real

do povo e, ao mesmo tempo, chamou-os para um novo

e verdadeiro relacionamento com o Deus vivo. Essa foi a

resposta total de Deus às necessidades totais de Israel. [...]

Portanto, temos aqui o principal, inicial e definitivo caso de

estudo do Deus Redentor agindo na história por sua própria

motivação, atingindo alvos abrangentes e atribuinco sua

própria identicace e caráter à narrativa, como uma defini-

ção permanente do significac o de seu nome: YHWH.),

Chris Wright'

Não devemos pender para uma interpretação desequilibrada do êxodo. Podemos ser tentados, por exemplo, a espiritualizar seu significado como ape-nas uma "figura" veterotestamentária de nossa libertação pessoal do poder do pecado. Ou podemos tender a politizá-lo como apenas um retrato de uma ação política ou econômica em favor da justiça, sem referência às exigências espiri-tuais de conhecer e servir o Deus vivo, por meio da fé e da obediência dirigida a Jesus como o Senhor!'

4. Ibid., p. 275-276. 5. Wright, The mission of God, p. 271-272. 6. Não há espaço aqui para discutir essas alternativas falhas, mas as explorei, bem como seu impacto no pensamento e na prática da missão cristã em lhe mission of God, p. 253-280.

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1 22 • A missão do povo de Deus

A melhor maneira de evitar tal interpretação desequilibrada é avançando em nossa teologia bíblica para o modo como o Novo Testamento enxerga o êxodo, descobrindo sua correlação suprema com a cruz de Cristo.

A cruz — a vitória de Deus sobre tudo quanto antagoniza e oprime O Novo Testamento apresenta a morte redentora de Jesus, através da lente do êxodo. Tanto a pessoa quanto o acontecimento correspondem à imagem de re-denção do Antigo Testamento. Jesus, como redentor, é o campeão que fará tudo o que for preciso para conquistar o resgate de seu povo. Isso custou a entrega de sua própria vida. E a cruz, como o momento supremo da redenção, foi a vitória de Deus sobre tudo quanto se opõe a ele e escraviza sua criação.

A mais clara referência ao êxodo nos evangelhos aparece quando Jesus se encontra com Moisés e Elias no monte da transfiguração. Segundo Lucas, eles "falavam de seu êxodo, que ele estava para cumprir em Jerusalém" (Lc 9.31; tra-dução do autor). Infelizmente, o significado se perde nas versões que traduzem a palavra grega exodos por "partida" (como você "cumpre" uma partida?). Os dois maiores representantes da Lei e dos Profetas dificilmente estariam conversando sobre a morte de Jesus como uma mera "partida", mas sim sobre o cumprimento das Escrituras na qual eles desempenharam seu papel. Especificamente, eles esta-vam se referindo ao cumprimento do "êxodo", conquistado para a nação de Israel sob a liderança de Moisés, e que agora seria conquistado para o mundo todo, por Jesus. Sua morte iminente e totalmente intencional constituiria o grande ato de redenção de Deus. O Senhor, em Cristo, pagaria o preço da libertação de toda a criação da escravidão do pecado e do mal, levando seu povo para fora da escuridão do cativeiro e para dentro da luz e da liberdade de Deus.

Outros autores dos evangelhos veem o tema do êxodo em outras ocasiões. Mateus vê os acontecimentos da infância de Jesus como a repetição do êxodo (Mt 2.13-15). Marcos utiliza as imagens do novo êxodo de Isaías 40-55 em sua compreensão acerca da vida e obra perfeita de Jesus (Mc 1.3; 4.35-5.13). Lucas faz o mesmo no registro do cântico de Zacarias, com sua alegria pelo prenúncio da redenção do povo de Deus da tirania de seus inimigos (Lc 1.67-79). Jesus morreu na época da Páscoa, a celebração que servia para rememorar a histórica libertação do êxodo e para esperar que Deus libertasse seu povo novamente.

Paulo, algumas vezes, utiliza a linguagem da redenção em seu sentido mais literal de resgate: a compra da liberdade por aqueles que estão cativos (provavel-mente em relação à prática grega e romana dos escravos ganharem a liberdade ou de prisioneiros de guerra serem resgatados, como, por exemplo, em 1Tm 2.6) e, às vezes, tendo também o êxodo do Antigo Testamento como pano de fundo. Em Romanos, por exemplo, ele aguarda que toda a criação seja libertada do cativeiro da corrupção, assim como esperamos a redenção do nosso corpo

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Pessoas que são redimidas para um estilo de vida redentor • 123

(Rm 8.18-25). A redenção é o que Cristo fez por intermédio da sua morte para o nosso perdão (Ef 1.7; Cl 1.14), mas também é a completa libertação futura pela qual ansiamos (Ef 1.14; 4.30). Do mesmo modo como os israelitas fizeram na Páscoa, os cristãos também olham para o passado, para a cruz da missão histórica de resgate, feita por Deus, e aguardam a sua própria redenção final, bem como a de toda a criação.

"O acontecimento do êxodo é uma das narrativas arquetí-picas ca Bíblia, porque e e informa o início, o meio e o fim do relato cíblico ca história da redenção. Deus inaugura a nação de lsrae no êxodo do Egito. E e estaaelece sua alian-ça com essa nação no monte Sinai, supre as necessidades do povo no ceserto por quarenta anos e finalmente os leva para a Terra Prometida. [...]

No meio do plano da história ce Deus da recenção, encon-tramos a encarnação, a vida, a morte e a ressurreição de Jesus Cristo. [...] Os quatro evangelistas do Novo Testamento constroem partes das narrativas cos evangelhos nos termos e padrões do êxodo. O ensino ce Cristo aos seus discípulos é muitas vezes informado pela experiência do êxoco, e suas ações entre as mu tidões têm nuanças do êxodo; Hl os temas e pacrões co êxodo ajucam a explicar os acontecimentos da vica e da morte de Cristo.

No final da história ca redenção está o Apocalipse. João faz uso de alusões ao êxodo e de seus padrões no Apocalipse, para concluir a narrativa oialica. Os antigos israelitas entra-ram em Canoa, sua Terra Prometica. Os cristãos do Novo Testamento entram no descanso prometido de sua salvação e de sua ibertação dos pecados. No final de tuco, os remicos de todas as eras entrarão na Nova Jerusalém, e seu exílio fina-mente terá acabado. Eles estarão em casa. O êxodo nunca está onge dos leitores do Antigo e Novo Testamentos")

Richa rd Patterson e MIchael Travers'

7. Richard Patterson e Michal Travers, "Contours of exodus motif in Jesus earthly ministry; Westminster Theological Journal 66 (2004): 25-27 (também 46-47). Esse artigo possui um resumo excelente e abrangente do tema do êxodo, tanto no Antigo Testamento quanto no Novo Testamento.

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124 • A missão do povo de Deus

Assim como Deus, no êxodo, causou uma grande derrota das reivindicações e poder usurpados do Faraó, a cruz foi a vitória do Senhor sobre os principados e po-testades (Cl 2.15). As imagens do êxodo talvez sejam mais fortes em Colossenses.

Ele [Deus Pai] nos tirou do domínio das trevas e nos transportou para o reino do seu Filho amado, em quem temos a redenção, isto é, o perdão dos pecados. (Cl 1.13-14).

Em outras palavras, no Antigo e Novo Testamentos, a redenção é o ato de Deus, no qual ele se levanta como o grande campeão de seu povo, exerce sua força poderosa e paga o preço total para resgatá-lo de quem se opõe a ele e nos oprime. Isso envolve a derrota de todos os poderes opressores e a reversão de todas as dimensões da escravidão que aflige as pessoas. Isso leva seu povo a "livrar-se do problema" e os conduz a um novo relacionamento com Deus. Esse novo relacionamento requer uma resposta prática de viver de forma redentora na missão para Deus no mundo.

RESPONDENDO À REDENÇÃO DE DEUS

Chamados para se regozijar A primeira resposta instintiva à grande libertação do êxodo foi irromper em cânticos de alegria, como o fizeram Moisés e Miriã (Êx 15.1-21). O cântico de Moisés celebra Deus como redentor, enfatizando que ele teve uma grande vi-tória sobre seus inimigos, que está além da comparação com quaisquer outros deuses das nações, que redimiu seu povo e que os outros povos serão afetados pela notícia desse grande acontecimento. A música é uma celebração do reinado de Deus, demonstrado em seu poderoso ato de redenção.

Mas o regozijo na redenção não deveria definhar como a alegria e os aplausos no final de uma vitória desportiva. Deveria tornar-se um hábito pessoal e deveria estar incrustado na cultura israelita. O reinado redentor de Deus, em certo senti-do, continuava sendo colocado em prática na vida de adoração de Israel.

Entronizado sobre [ou habitando em] os louvores de Israel. (S122.3; tra-dução do autor)

A vida de Israel era permeada com tempos de regozijo, todos entremeados ao calendário anual. A Páscoa, na primavera, era, sem dúvida, a celebração mais específica da libertação do êxodo. Mas a colheita do outono oferecia outra opor-tunidade para contar a velha história de YHWH e de seu amor, e para cantar os cânticos da redenção (Dt 26.5 - 11).

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Pessoas que são redimidas para um estilo de vida redentor 4' 125

O regozijo na redenção não era apenas pessoal, mas também coletivo (todos os setores da sociedade deveriam participar dele), além de ser um mandamento. Ele não era um bônus emocional opcional, mas uma responsabilidade comu-nitária com benefícios inestimáveis (Dt 16.11; veja Ne 8.10-12). Os israelitas do Antigo Testamento concordariam com as frases dessa oração eucarística anglicana: "Não é só nosso direito, é nosso dever e nossa alegria dar-lhe graças e louvor em todos os momentos e em todos os lugares [...1".'

Portanto, Pedro está sendo autenticamente bíblico e israelita ao citar o li-vro do Êxodo, para dizer aos seus leitores, provavelmente cristãos gentios, em sua maioria, que eles também têm sua experiência de êxodo. Acrescentando, imediatamente, que sua primeira resposta prática a isso deve ser: viver uma vida de louvor declarado, como no contexto teocêntrico, no qual eles deveriam viver uma vida de piedade prática entre as nações. Louvor e prática juntos são funções missionais, e é para essas coisas que fomos chamados, em resposta ao amor redentor de Deus.

Mas vós sois geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de proprie-dade exclusiva de Deus, para que anuncieis as grandezas daquele que vos chamou das trevas para sua maravilhosa luz. (1Pe 2.9).

Consideraremos a importância missional de tal louvor e oração no capítulo 14.

Chamados para imitar O êxodo permeava as leis e os costumes de Israel. Ele é mencionado muitas vezes como motivação para a obediência a uma série de exigências sociais. É nesse ponto que a experiência da redenção se mistura à prática de um estilo de vida redentor.

O êxodo não é apenas um acontecimento na história. Ele é um modelo de comportamento. Israel, como povo redimido, deve viver demonstrando as mesmas qualidades que motivaram YHWH a agir como seu go'd divino. Parte da missão do povo redimido de Deus é refletir o caráter de seu Redentor na forma como eles se comportam com os outros. Isso significa ter os requisitos principais de qualquer go'el: compaixão sacrificial, compromisso com a justiça, generosidade caridosa e uma ação redentora eficaz. Essas são as coisas que estão envolvidas num estilo de vida redentor.

Libertação da escravidão Por essa razão, não é de surpreender que as primeiras leis dadas a Israel — um bando de escravos fugitivos — imediatamente após os Dez Mandamentos, têm

8. Essa afirmação apreende a ênfase bíblica de que as ações de graças são tanto um mandamento ao qual devemos obedecer (nossa obrigação) quanto um prazer que devemos desfrutar (nossa alegria).

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126 • A missão do povo de Deus

que ver com a maneira como eles deveriam tratar aqueles que, em suas próprias sociedades, estivessem em alguma forma de trabalho escravo (Êx 21.1-11). Os "escravos hebreus" provavelmente não eram da etnia de Israel, mas uma classe de pessoas vulneráveis e sem-terra, das proximidades, que, naquela cultura oriental antiga, vivia da venda de seus serviços como operários, soldados ou qualquer outra atividade disponível. A lei de Israel exigia que após seis anos de serviço, deveria ser lhes dada a opção de liberdade - uma provisão do "êxodo".

O conjunto de leis tornava a experiência de Israel no Egito uma motivação para não expor os estrangeiros em seu meio aos mesmos sofrimentos que tive-ram no Egito (Êx 23.9).

Deuteronômio 15.1-18 é possivelmente o capítulo mais caloroso no Antigo Testamento sobre a política da generosidade. Ele prega compaixão pelos neces-sitados de um modo altamente relacional.

Quando entre ti houver algum pobre de teus irmãos, em alguma das tuas cidades, na tua terra que o SENHOR, teu Deus, te dá, não endure-cerás o teu coração, nem fecharás as mãos a teu irmão pobre; antes, lhe abrirás de todo a mão e lhe emprestarás o que lhe falta [...I. Pois nunca deixará de haver pobres na terra; por isso, eu te ordeno: livremente, abrirás a mão para o teu irmão, para o necessitado, para o pobre na tua terra. (Dt 15.7-11; ARA).

Generosidade Quando o texto de Deuteronômio passa imediatamente para o mandamento so-bre demonstrar generosidade para com os escravos libertados, ele cita o êxodo de modo explícito, como o modelo e a motivação para tal comportamento.

E, quando o libertares, não deixarás que saia de mãos vazias; tu lhe darás generosamente do teu rebanho, do teu trigo e das tuas uvas; darás con-forme o SENHOR, teu Deus, tiver te abençoado. Pois te lembrarás de que foste escravo na terra do Egito e de que o SENHOR, teu Deus, te resgatou; por esta razão te ordeno isso hoje. (Dt 15.13-15; grifo do autor).

Aqueles que sabem o que é ser redimido devem viver de modo redentor em relação aos outros - principalmente em relação aos que agora têm o mesmo tipo de necessidade que Israel tinha quando Deus os redimiu.

A redenção e o jubileu O uso mais literal da linguagem da redenção está em Levítico 25, em que é aplicada à reaquisição de terras que haviam sido (ou estavam prestes a ser) vendidas como uma garantia extra para um empréstimo, e à reaquisição dos membros da família que haviam sido vendidos para pagar dívidas. O ano do jubileu tinha relação com

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Pessoas que são redimidas para um estilo de vida redentor 127

esses procedimentos de resgate, cujo objetivo era a restauração das famílias às terras de seus ancestrais e a participação produtiva na comunidade.9

Todos esses mecanismos, em um amplo sentido econômico e social, eram fundamentalmente redentores e restauradores - planejados para a intervenção e reversão na implacável espiral descendente de endividamento, pobreza e desa-propriação. Mais uma vez, descobrimos que o êxodo, o grandioso ato redentor de Deus permanece como modelo que se repete e motivação para todo esse tipo de comportamento. Teologia e economia não habitam em universos separados, mas caminham juntas na experiência bíblica e na prática da redenção.

Miqueias narra as duas coisas juntas em uma lógica devastadora. Leia Miqueias 6.4-5, 8 e observe como isso funciona ao longo da história da reden-ção, culminando na revelação de Deus sobre suas exigências morais explícitas e universais.

O perdão e as dívidas O mesmo princípio dinâmico de refletirmos nosso redentor por meio de um esti-lo de vida redentor permeia também o Novo Testamento. Quantas vezes podemos fazer a Oração do Pai Nosso sem perceber esse princípio? "Perdoa-nos os nossos pecados, pois também perdoamos a todos os que nos devem" (Lc 11.4; NVI).'

Na versão de Mateus, a palavra é "dívidas", em ambas as partes da petição, embora Jesus a explique em termos de "transgressões", afirmando que o per-dão de Deus para nossas transgressões está ligado à nossa boa-vontade para perdoar as transgressões dos outros. Em uma sociedade em que a pobreza e a dívida eram endêmicas - e uma das principais causas de inquietação social -, a oração pedindo para que Deus perdoe as "nossas dívidas" (Mt 6.12; NVI) tinha uma forte associação com a economia, apontando a realidade dos nossos pecados contra Deus. Não há necessidade de optar por uma interpretação ex-clusivamente espiritual ou financeira dessa oração em relação a essa questão. A ligação entre pecados e dívidas aparece em outros aspectos do ensino de Jesus, conforme veremos.

A questão mais crucial aqui é que a ação do perdão de Deus e a ação com-passiva de quem ora a ele estão integralmente ligadas. Devemos, como aqueles que conhecem o perdão de Deus, comportar-nos de modo semelhante a Deus em relação àqueles que nos ofenderam - principalmente em relação aos que têm dívidas.

9. Para uma análise mais completa dessas medidas econômicas no Israel do Antigo Testamento, veja meu livro Old Testament ethics for the people of God, p. 146-211, e God's people in God's land, e a bibliografia citada nesses livros. 10. Inexplicavelmente, a NVI, que geralmente usa palavras diferentes para a mesma palavra hebraica ou grega, obscurecendo assim as conexões verbais importantes no original, neste texto, opta por usar a mesma palavra, "pecado", em que o texto utiliza deliberadamente palavras diferentes, obscurecendo, desse modo, uma distinção verbal importante no original.

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128 • A missão do povo de Deus

A alegria por termos sido libertados da dívida (um dos significados da reden-ção, conforme vimos) deve também produzir em nós uma vontade de libertar os outros da dívida, um ato que reflete a generosidade do redentor original. Esse é precisamente o assunto da parábola de Jesus em Mateus 18.21-33, na qual ele explica o sentido radical e a abrangência do perdão no reino de Deus.

"Não é que podemos receber o perdão por perdoarmos

os outros. Mas sim que nossa experiência com a grande misericórcia de Deus ceve fazer de nós pessoas miseri-

cordiosas. [...] A experiência da graça nos transforma em pessoas graciosas. Não se trata de um conflito interpes-

soal. E uma questão ce como tratamos as outras pessoas. É uma questão de generosidace econômica. Enquanto

Deus percoa nossos pecados, perdoamos nossos devedo-

res. Lucas poderia ter usado a palavra "pecacon nos dois casos, mas escolheu destacar as implicações econômicas

das palavras de Jesus. [. .]

No Antigo Testamento, no ano co jubileu, as divicas eram

perdoadas, e os escravos, libertos — um modo de celebrar a graça de Deus por ter providenciado a redenção (ver Lv 25

e Dt 15). Agora, o Cordeiro ce Deus que tira os pecados

do mundo é vinco. À luz do perdão de Deus, uma nova era

de relações econômicas e sociais teve inicio entre aqueles

que foram perdoados e libertados pela morte de Cristo. Os

seguidores de Jesus cevem viver tanto como recebedores quanto participantes de um jubileu permanente.),

Tim Chester

A experiência de redenção deve gerar um estilo de vida redentor. Isso é o fluir missionai daquilo que Deus tem feito por nós. A missão do povo de Deus possui essas dimensões intensamente práticas.

11. Tim Chester, Good news to the poor: sharing the gospel through social involvement (Leicester: IVP, 2004), p. 96-97.

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Pessoas que são redimidas para um estilo de vida redentor ',. 1 29

O princípio de refletir nossa experiência de graça redentora na forma como vivemos e principalmente no tratamento que damos aos outros é encontrado em todo o Novo Testamento. Alguns exemplos esclarecem essa questão:

• Sede misericordiosos, como o vosso Pai é misericordioso (Lc 6.36). • O meu mandamento é este: Amai-vos uns aos outros, assim como eu vos

amei (Jo 15.12). • Sede bondosos e tende compaixão uns para com os outros benignos,

perdoando uns aos outros, assim como Deus vos perdoou em Cristo (Ef 4.32).

• Acolhei-vos uns aos outros, como também Cristo nos acolheu, para gló-ria de Deus (Rm 15.7).

• Portanto, assim como tendes abundado em tudo [...], vede que também transbordeis nessa expressão de bondade. [...] Pois conheceis a graça de nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico, tornou-se pobre por vossa causa, para que fôsseis enriquecidos por sua pobreza (2Co 8.7-9).

• Nisto conhecemos o amor: Cristo deu sua vida por nós, e devemos dar nossa vida pelos irmãos. Quem, pois, tiver bens no mundo e, vendo seu irmão em necessidade, fechar-lhe o coração, como o amor de Deus pode permanecer nele? (1Jo 3.16, 17).

VIVENDO UM ESTILO DE VIDA REDENTOR NA MISSÃO Como podemos relacionar esse estudo sobre algumas dimensões da teologia bíblica da redenção — com raízes no êxodo e seu cumprimento na cruz — com a vida na missão do povo de Deus?

Vimos que tanto no Antigo Testamento quanto no Novo, a redenção não era apenas um fato histórico do passado, nem tampouco uma experiência pessoal para ser apreciada no presente, mas um estilo de vida com responsabilidade ética. O povo redimido de Deus é chamado a viver de modo redentor no mundo. Em vista de nossa compreensão, baseada no êxodo, de toda a amplitude do que significa a ação de Deus como redentor, deve haver igualmente implicações amplas para nossa compreensão sobre uma qualidade de missão que responda aos propósitos redentores de Deus, refletindo e, de certa forma, incorporando esses propósitos.

O êxodo tem sido visto como a base bíblica por excelência para as teologias de missão que enfatizam a importância da preocupação social, política e econô-mica, juntamente com as dimensões espirituais do perdão pessoal. Ou melhor, com a maior fidelidade bíblica, ele é a base bíblica para a integração de todas essas dimensões nas boas-novas abrangentes do evangelho bíblico. Essa com-

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1 30 • A missão do povo de Deus

preensão holística ou integral acerca de missão aponta a totalidade do que Deus realizou para Israel no acontecimento paradigmático da redenção - o êxodo. Creio que essa compreensão esteja correta.12

«Era uma vez a guns bancos que, apesar de suas cons-

truções caras, encontravam-se em perigo de colapso, sob

montanhas de dívidas, as quais não podiam pagar. Por

isso, recorreram aos seus governos, e estes tiveram miseri-

córcia ceies, cancelanco as dívidas de oilhões de dólares

e liaras, que foram tiradas dos impostos dos contribuintes.

Mas os bancos cobraram muitos indivícuos — cujos impostos

os havia resgatado — que lhes deviam pequenas quantias,

e não lhes demonstraram piedace alguma, tiraranco-lhes

suas casas, porque e es não lhes pociam pagar. Isso nos

mostra que a redenção em nosso mundo caído parece

funcionar muito bem para os ricos e poderosos, mas é

difícil de ser obtida se você for pobre. A ideia de Jesus

sobre recenção age ce forma ciferente.”

Mantendo a cruz no centro Entretanto, destaco, neste capítulo, que devemos ver o êxodo à luz da cruz, e vice-versa. A redenção de Deus é, na verdade, uma grande façanha de resgate - embora estendida ao longo dos séculos da história humana. Os remidos, na nova criação, cantam o cântico de Moisés e o cântico do Cordeiro (Ap 15.3), porque, em essência, eles são um único cântico de celebração ao grande Reden-tor e à sua grandiosa obra redentora na história.

Por essa razão, quando pensamos na missão do povo de Deus em termos holísticos ou integrais, conforme descrito acima, é vital que mantenhamos a cruz no centro de cada dimensão da missão na qual estamos envolvidos. A seção seguinte é um excerto de The mission of God [A missão de Deus], no qual ex-presso uma preocupação apaixonada por isso; visto que não penso ser capaz de expressá-la de melhor maneira, cito-o aqui.

12. Discuti essa compreensão de missão como um todo, com especial referência ao êxodo e ao jubileu em The mission of God, p. 265-323.

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Pessoas que são redimidas para um estilo de vida redentor 131

((Uma igreja sem uma ética social arraigada na visão

mora das Escrituras, com ênfase na justiça, na misericórdia

e na humi dade diante ce Deus, não está em concisões

de evitar uma desconexão com os grandes problemas

que afetam a humanidade. Na me -ter das hipóteses, ela

se concentrará em um ritualismo vazio e na moralidade

privaca, mas continuará indiferente á situação dos pobres

e à vio ação ca criação de Deus. Na pior das hipóteses,

deixará de reconhecer seu próprio cativeiro ideológico-

cultura de consumismo e será usada pelos poderosos

para legitimar re igiosamente seu sistema socioeconômico

e político injusto, e até mesmo a guerra")

René Padilla

Toda missão cristã flui da cruz - como sua fonte e poder e como aquilo que define sua amplitude. É vital que vejamos a cruz como o centro e a parte integrante de todos os aspectos da missão bíblica holística - ou seja, de tudo quanto fazemos em nome do Jesus crucificado e ressurreto. Na minha opinião, embora a nossa evangelização deva ser centrada na cruz (como é claro que deve ser), é um erro pensar que nosso envolvimento social e outras formas de obra missionária prática têm alguma outra base ou justificativa teológica.

Por que a cruz é tão importante assim em todo o campo de missiões? Porque em todas as formas da missão cristã, em nome de Cristo, estamos enfrentando os poderes do maligno e o reino de Satanás — com todos os seus efeitos sinistros sobre a vida humana e sobre toda a criação. Se tivermos que proclamar e demonstrar a realidade do reino de Deus em Cristo, ou seja, se tivermos que proclamar que Jesus é rei, em um mun-do que ainda gosta desta ladainha "não temos outro rei, senão César" e de seus muitos sucessores, incluindo Mamom - então estaremos em conflito direto com o reino usurpado do mal, com todas suas legiões de manifestações. A realidade tenebrosa dessa batalha contra os poderes do mal é o testemunho unânime daqueles que lutam pela justiça e pelas necessidades dos pobres, oprimidos, doentes e ignorantes e, até mesmo, daqueles que procuram cuidar da criação de Deus a fim de protegê-la

13. René Padilla, The biblical balis for social ethics" em Transforming the world? The gospel and social respon- sibility Jamie A. Grant e Dewi A. Huges; Nottingham: IVP, 2009), p. 187-204 (principalmente 191).

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132 * A missão do povo de Deus

contra os exploradores e poluidores; mais intensa ainda é a experiência daqueles (geralmente os mesmos) que lutam no evangelismo para trazer pessoas à fé em Cristo como Salvador e Senhor e que também plantam igrejas. Em todos esses trabalhos, enfrentamos a realidade do pecado e de Satanás. Em todos esses trabalhos, estamos desafiando as trevas do mundo com a luz e a boa-nova de Jesus Cristo e do reino de Deus, por meio de Cristo.

Mas com que autoridade podemos fazer isso? Com que poder somos competentes para nos envolver com os poderes do mal? Com base em que ousamos desafiar, em palavras e ação, as cadeias de Satanás na vida espiritual, moral, física e social das pessoas? Só por meio da cruz.

• Só na cruz há perdão, justificação e purificação para pecadores culpados.

• Só na cruz está a derrota dos poderes do mal. • Só na cruz há libertação do medo da morte e sua destruição por

completo. • Só na cruz os inimigos mais ferrenhos são reconciliados. • Só na cruz finalmente testemunharemos a cura de toda a criação.

A questão é que o pecado e o mal constituem uma má notícia em cada aspecto da vida neste planeta. A obra redentora de Deus, por meio da cruz de Cristo, é uma boa-nova para todos os aspectos da vida na ter-ra afetados pelo pecado. Honestamente, precisamos de um evangelho holístico porque o mundo está imerso em desordem holística. E, pela extraordinária graça de Deus, temos um evangelho grande o suficiente para redimir tudo o que o pecado e o mal afetaram. Todas as dimensões dessa boa-nova são uma boa-nova completa, só por causa do sangue de Cristo na cruz.

Enfim, tudo o que houver na nova criação redimida estará ali por causa da cruz. E, de modo inverso, tudo o que não houver ali (sofrimento, lágrimas, pecado, Satanás, doença, opressão, corrupção, decadência e morte) não estará lá por ter sido derrotado e destruído pela cruz. Essa é a largura, o comprimento, a altura e a profundidade da redenção de Deus. Essa é uma notícia extremamente boa. Ela é a fonte de nossa missão.

Portanto, a minha convicção apaixonada é que uma missão holística deve conter a teologia holística da cruz. Isso inclui a convicção de que a cruz deve ser tão central em nosso compromisso social quanto o é em nosso evangelismo. Não há nenhum outro poder, nenhum outro recurso, nenhum outro nome por meio do qual possamos oferecer o evangelho todo a toda pessoa e a todo o mundo, senão por meio de Jesus Cristo crucificado e ressurreto.'4

14. Wright, The mission of God, p. 314-316.

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Pessoas que são redimidas para um estilo de vida redentor • 133

A igreja: uma comunidade do êxodo e do jubileu Enquanto mantemos a cruz no centro de tudo o que entendemos por missão do povo de Deus, precisamos vê-la da perspectiva do monte da transfiguração (na conversa com Moisés e Elias), como "o êxodo que Jesus pretendia cumprir". Isso significa dizer que não vemos a cruz como algo que substituiu o êxodo (como se todos os aspectos socioeconômicos e políticos do êxodo simples-mente desaparecessem, sobrando apenas um significado espiritual para eles). Vemos a cruz como o cumprimento do êxodo, incluindo a obra redentora final de libertação de tudo quanto escraviza e oprime a humanidade e a criação. É claro que ainda não vemos a conclusão dessa obra redentora na história presente, mas ansiamos por sua completude final, assim como Paulo o faz em Romanos 8. O "dia da redenção" ainda está adiante, embora a conquista da redenção tenha ocorrido na cruz.

Nossa teologia bíblica para a vida deve construir esse arco de ligação da re-denção que vai desde a Torá até o Apocalipse.

RESUMO Vimos, portanto, que nossa teologia bíblica da redenção retrata Deus como o divino Redentor. Ele é aquele que se compromete a fazer o que for preciso e a pagar o preço, qualquer que seja ele, para libertar seu povo de tudo quanto o oprime. Ele é o grande campeão que conquista a vitória que liberta o seu povo. O êxodo fornece o modelo de redenção do Antigo Testamento e mostra o quão amplo e abrangente algo pode ser quando Deus intervém como redentor. O Novo Testamento apresenta a cruz e a ressurreição de Jesus como o grande êxodo por excelência - a coroação da realização da vontade e do poder de Deus como redentor, sua vitória sobre todos os poderes humanos e satânicos, que se opõem a ele e oprimem o seu povo.

Então, qual é a missão do povo de Deus? Certamente é viver como aqueles que já experimentaram esse poder redentor de Deus e como aqueles cujas vidas - individual e comunitária - são placas que nos direcionam para a libertação definitiva de toda forma de opressão e escravidão, tanto para a criação quanto para a humanidade.

Por essa razão, empenhamo-nos a levar um estilo de vida redentor que visa mostrar as dimensões da redenção de Deus - conforme expressa no êxodo e no ano do jubileu - impedindo todas essas manifestações de opressão que nos cer-cam. É por isso que devemos nos associar a Moisés e Elias, pois são a Lei e os Pro-fetas que nos equipam com todos os recursos necessários para pormos a carne e o sangue no viver de modo redentor; para sermos movidos pela compaixão, justiça e generosidade em um mundo marcado pela crueldade, exploração e ganância.

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1 34 A missão do povo de Deus

É para isso, afinal, que as Escrituras existem, conforme diz Paulo (referindo-se ao Antigo Testamento):

Toda a Escritura é divinamente inspirada e proveitosa para ensinar, para repreender, para corrigir, para instruir na justiça; a fim de que o homem de Deus tenha capacidade e pleno preparo para realizar toda boa obra. (2Tm 3.16, 17)

"A comunidade cristã é tanto o sinal como a promessa

de Deus da libertação futura. Somos a presença do reino

libertador ce Deus em um mundo caído. Somos o lugar

onde essa libertação poce ser encontrada, oferecendo um

ar para pessoas exi ocas. Devemos acolher as pessoas

arruinadas e apresenta-as a uma comunidace de pessoas

quebrantadas. Somos a comunidace na qua a libertação

é uma rea idade presente o povo do jubi eu, que vive um

novo tipo de relacionamento social e econômico. Somos a

luz do mundo, a cidade sobre o monte. Nosso desafio é

falar da mensagem libertacora de Jesus, de modo que isso

esteja igado à experiência das pessoas, e oferecer a elas

um ugar de libertação na comunidade cristã")

Tim Chester

Não estou sugerindo que a igreja deva procurar pôr em vigor êxodos literais ou promover uma legislação para impor um jubileu literal. Em vez disso, pre-cisamos vê-los como modelo de resposta redentora abrangente às necessidades humanas, que o próprio Deus realizou e, depois, exigiu de seu povo.

Onde há injustiça política, exploração econômica, opressão social e escra-vidão espiritual; que ações são apropriadas para aqueles que compartilham da compaixão e da justiça de Deus, demonstradas no êxodo?

Onde as pessoas são deixadas de lado por uma espiral ascendente de endi-vidamento e uma espiral descendente de pobreza, com toda a indignidade hu-mana e exclusão social que as acompanham, quais ações refletem os princípios

15. Chester, Good news to the poor, p. 97.

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Pessoas que são redimidas para um estilo de vida redentor 135

teológicos do jubileu, com sua insistência em que a dívida não deve ter duração eterna e que as falhas de uma geração não devem condenar todas as gerações futuras à pobreza?

Em outras palavras: optaremos por definir nossa própria missão com algum grau de semelhança com a forma como Jesus definia a sua própria, recorrendo a uma reformulação da linguagem e à esperança do êxodo e do jubileu, conforme fizeram os profetas?

O Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar libertação aos presos e restauração da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos e para proclamar o ano aceitável do Senhor. (Lc 4.18, 19; ARA).

Ao fazermos isso, tornamo-nos comunidades que são placas que direcionam para o êxodo e o jubileu, apontando, no passado, a obra redentora de Deus e, no futuro, a única esperança de libertação que nosso mundo poderá ter.

QUESTÕES RELEVANTES 1. A compreensão da cruz e da ressurreição de Jesus como o cumprimento

do padrão do êxodo afeta o modo como você entende a redenção e a mis-são da igreja?

2. Quando pensamos em ser redimidos, tendemos a igualar isso ao simples fato de ter os nossos pecados perdoados - o que é correto e bom. Que outras dimensões da obra redentora de Deus (resgate, libertação), con-forme consideramos neste capítulo, você pode destacar em sua própria experiência de vida?

3. Também tendemos a pensar na redenção em termos individuais (sen-do pessoas redimidas). Mas como a concepção de uma comunidade de redimidos deve mudar sua percepção acerca da igreja? E de que modo sua igreja poderia funcionar, a fim de refletir a compaixão redentora e a justiça de Deus no mundo que a rodeia?

4. Que diferença fará para sua compreensão acerca da missão do povo de Deus se você acreditar que ela não é apenas o envio de missionários para outros países, para que outras pessoas possam ser redimidas, mas sim que ela inclui o povo de Deus, em todo lugar, vivendo de modo redentor no mundo, como refletores e mensageiros de Deus, em Cristo, nosso redentor?

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CAPÍTULO 7

PESSOAS QUE REPRESENTAM DEUS NO MUNDO

LEMBRANDO A HISTÓRIA

A história que oferece uma razão para se viver Quem somos nós e para que estamos aqui? Estas poderiam ser consideradas as perguntas que estamos procurando responder ao longo deste livro: Qual é a missão do povo de Deus? Mas mesmo na esfera pessoal, tais perguntas são desa-fiadoras. Qual é o seu senso de identidade e qual é o propósito de sua existência neste mundo?

A resposta depende de qual história você pensa que faz parte. Todos nós vivemos as pequenas histórias de nossas próprias vidas, na suposição de que haja uma grande história que faça sentido para nós, ou que faça sentido o sufi-ciente para nos permitir pensar que provavelmente, em um balanço geral, vale a pena continuar vivendo. Isso é verdade, mesmo que você tenha que determinar sua história por si só, em vez de ver a si mesmo como parte de uma grande história que transcenda a sua própria vida, e transcenda até mesmo o universo material. Isso é certamente o que os ateus têm que fazer, se bem que podemos nos perguntar se eles conseguem fazer isso com eficiência. Eles não têm muita história para contar.

Se dermos um passo de volta ao Antigo Testamento, poderíamos fazer as mesmas perguntas sobre os israelitas. Quem eram eles e para que estavam lá? E nossa resposta terá que partir da grandiosa história da qual eles faziam parte. Portanto, neste ponto, daremos mais um passo à frente para vermos a impor-tância da grande narrativa bíblica que analisamos no capítulo 2. É por isso que é tão importante entendê-la.

Eis aqui a resposta do próprio Deus a essas perguntas para os israelitas do Antigo Testamento: "Quem somos nós e para que estamos aqui?" Ela surge em um dos mais influentes versículos da Bíblia.

Moisés subiu até Deus, e o SENHOR o chamou do monte, dizendo: Assim falarás à casa de Jacó e anunciarás aos israelitas: Vistes o que fiz aos

egípcios e como vos carreguei sobre asas de águias e vos trouxe a mim. Agora, portanto, se ouvirdes atentamente a minha voz e guardardes

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Pessoas que representam Deus no mundo * 1 37

a minha aliança, sereis minha propriedade exclusiva dentre todos os povos, porque toda a terra é minha; mas vós sereis para mim reino de sacerdotes e nação santa. Essas são as palavras que falarás aos israelitas. (Êx 19.3-6; grifo do autor).

"No início de 2009, apareceu um anúncio na lateral

cos ónibus vermelhos de Londres, patrocinado por socie-

dades humanistas e ateístas e por alguns indivíduos, como

Richarc DawKins — tele-evange isto do fundamentalismo

ateu, em que se lia: "Provavelmente não há Deus. Então

pare ce se preocupar e cesfrute a vida". Um curioso mal

entendido, pensei quando li essas pa avras, pois sugere

que crer em Deus torna as pessoas preocupadas, impe-

dindo sua felicidade. No entanto, todas as pesquisas e

estatísticas mostram que pessoas que abraçam a fé cristã

são menos estressadas que a média e, de forma notável,

têm um maior senso de realização na vida. Mas minha

resposta a essa afirmação foi a seguinte: "Bem, não há

muita história nisso. De fato, história a guma. Isso não dá

a ninguém uma razão positiva para viver (ou morrer)."

Que contraste com o evangelho: "Porque Deus amou tanto

o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que toco

aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna"

(Jo 3.16). Agora temos uma história! Ela tem um assunto,

um problema, uma ação, uma solução e um final feliz")

A história que formou o contexto imediato para essas palavras foi, natu-ralmente, a história do êxodo, como vimos no capítulo 6. Mas ela não é uma história suficientemente grande. Ela era apenas uma parte do grandioso drama de Deus que molda toda a Bíblia, que abrange todo o universo e que inclui o passado, o presente e o futuro. Ela era o primeiro episódio da grande história que contava aos israelitas quem eles eram.

E essa também é a história que nos diz quem nós somos e para que existi-mos, pois essa é parte da história que nos deu Jesus de Nazaré e sua história.

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138 • A missão do povo de Deus

Na verdade, essa era a história que confirmava para Jesus quem ele era, por que estava lá e o que deveria fazer. Como vimos no capítulo 2, essa é a história que impeliu a igreja do Novo Testamento em sua missão para o mundo.

Assim, pensar em nossa identidade como povo de Deus exige que nos en-volvamos em missão; precisamos mais uma vez prestar atenção à história - no modo como Deus a sintetiza nesse texto.

A história até aqui Portanto, à medida que, neste capítulo, voltarmos a estudar Êxodo 19.3-6, lem-bre-se: em todo o trajeto ao longo deste livro, estamos construindo uma teologia bíblica para a vida - o que significa que a teologia que extraímos dessa história e os comentários de Deus sobre ela podem ser aplicados a nossa vida precisa-mente porque isso faz parte da nossa história, parte da grandiosa história que dá sentido e propósito a nossa vida como povo de Deus.

Conhecemos a história até aqui. Os israelitas haviam sido oprimidos como uma minoria étnica no Egito. Deus, por compaixão e fidelidade, enviou Moisés para libertá-los. Após uma série de pragas sobre o Faraó e o Egito, eles escapa-ram, e Deus selou sua libertação com uma miraculosa travessia pelo mar, cele-brada por Moisés e Miriã em Êxodo 15. Depois, Deus os supriu com alimentos, água, proteção contra seus inimigos e um pouco do bom senso organizacional do sogro de Moisés (Êx 16-18).

Finalmente, Deus trouxe os israelitas para si mesmo, por assim dizer, reu-nindo-os no sopé do monte Sinai, como havia prometido a Moisés (Êx 3.12). Era hora de explicar; um tempo para dar sentido à história até ali; tempo para ajudá-los a compreender o porquê de tudo aquilo. Tempo para lhes dizer quem eles eram, como deveriam ser e o que deveriam fazer para Deus nessa nova situação mundial na qual se encontravam.

Esse é o tema de Êxodo 9.1-6. O discurso de Deus, nesse momento, é a ligação crucial entre a grandiosa história da redenção, na primeira metade do livro, com o estabelecimento da aliança, a entrega da lei e a construção do tabernáculo, na segunda metade do livro. Ele é, ao mesmo tempo, um discurso explicativo, encorajador e desafiador.

Mais que tudo, esse texto deu a Israel (e dá a nós, à medida que o desenvol-vermos em nossa teologia bíblica) uma identidade, um papel e uma missão no mundo, junto com os privilégios e responsabilidades que o acompanham.

Em seguida, nos versículos 4 a 6, Deus aponta três direções: o passado recente de Israel; o futuro, a sua visão futura para todas as nações; e as respon-sabilidades presentes de Israel. Em todas essas direções, encontramos a graça de Deus em ação.

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Pessoas que representam Deus no mundo • 139

A GRAÇA NO PASSADO: A SALVAÇÃO DE DEUS - EXODO 19.4 As primeiras palavras que Deus diz a Moisés para falar com os israelitas são um lembrete. "Vistes o que fiz [...]". E, é claro, eles haviam visto. Essa era uma lembrança recente. Apenas três meses antes (v. 1), eles eram escravos no Egito, como uma minoria étnica, suportando um genocídio sistemático patrocinado pelo governo. Mas agora eles estão completamente libertados. Cansados, talvez, e com os pés um pouco doloridos. Quem sabe, já um pouco enjoados do maná. Mas livres, com a opressão egípcia desvanecendo no passado. E tudo isso por-que Deus havia tomado essa iniciativa. Ele agiu por compaixão e amor por seu povo e fidelidade à promessa feita aos antepassados deles.

Portanto, Deus aponta enfaticamente suas palavras iniciais. Mostra sua gra-ça em ação, cuidando deles o suficiente para libertá-los, agindo com sua mão poderosa e seu braço estendido, para derrotar seus opressores e resgatá-los do lugar de escravidão e morte. A graça de Deus tem sido provada na história. A justiça de Deus tem sido feita; o poderoso, abatido; e os pobres, exaltados. Deus era o grande Redentor deles, como vimos no capítulo 6.

O que quer que venha a acontecer a seguir na história (o que o leitor sabe, mas os israelitas da história não sabiam) será, portanto, baseado nessa graça histórica de Deus. Logo estaremos no mundo dos Dez Mandamentos (cap. 20), da lei mais abrangente no Livro da Aliança (cap. 21-23) e do estabelecimento da aliança no Sinai (cap. 24). Mas tudo isso será uma questão de responder à graça da redenção já experimentada.

Enfatizo essa questão por causa da falta de compreensão que ainda é la-mentavelmente comum acerca da diferença entre o Antigo Testamento e o Novo. Muitos cristãos pensam que podem resumi-la dizendo que o povo do Antigo Testamento tentou obter a salvação pela obediência à lei, ao passo que, no Novo Testamento (graças a Deus), sabemos que só podemos ser salvos pela graça mediante a fé. Mas, para começar, essa é uma ideia distor-cida. Alguma forma desse ponto de vista (embora não de modo tão direto) era o que Paulo combatia em seus argumentos contra alguns judeus que não concordavam com sua teologia e prática missionária. No entanto, como o próprio Paulo destacou, a salvação sempre foi, mesmo no Antigo Testamen-to, uma questão da promessa de Deus e da graça, recebida pela fé (como no caso de Abraão).

A graça veio primeiro, a fé, em seguida, e obediência à lei, necessariamente em terceiro lugar, como uma resposta da fé em reação ao que Deus já havia feito.

Portanto, aqui no nosso texto, Deus lembra os israelitas que ele já os havia libertado, e só depois disse algo semelhante: "Agora vamos falar sobre a sua obediência em resposta do que tenho feito". O próprio formato do livro de Êxo-do, como um todo, fundamenta de modo implícito a teologia que está explícita

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140 • A missão do povo de Deus

nesse texto. Temos 18 capítulos de salvação, antes de chegarmos a um único capítulo da lei. A lei é a resposta à graça, não o meio de obtê-la.

«Já em Êxodo 4.31, essas pessoas creram na palavra

co evangelho de Deus, proferida por Moisés, curvaram-

se e adoraram a YHWH. Os elementos da Páscoa dão

prosseguimento a esse tema da adoração (12.27), e ele

ciega ao ápice com a atividade de adoração no capítulo

15.1-21. As pessoas que são libertadas do Egito são o

povo eleito de Deus, uma comunidade de fé que já estava adorando a YHWH. E é como ta povo de Deus que eles

temem o SENHOR e creem ne e (14.31). As ações salvífi-

cas de Deus, empreendidas pela iniciativa divina, atraíram

a comunidade para uma nova órbita de vida e bênção,

à qual o povo respondeu com fé e acoração. Antes que

houvesse qualquer conversa sobre a obediência à lei, o

que Deus havia feito preencheu a vida dessas pessoas.

[...] A a iança no Sinai é uma aliança específica, com

uma aliança já existente (por exemplo: Abraão), com uma

comunidace eleita, redimida, crente e adoradora.),

Terence E. Fretheim

O mesmo princípio básico flui da teologia, da ética e da missão bíblicas. Os mandamentos seguem a graça. A generosidade é ordenada em Deuteronômio, mas a obediência a ela é motivada pela bênção já recebida. "[...] tu lhe darás generosamente do teu rebanho, do teu trigo e das tuas uvas; darás conforme o SENHOR, teu Deus, tiver te abençoado" (Dt 15.14). O amor é ordenado por Jesus, mas a nossa obediência começa com o seu amor por nós: "Nós amamos porque ele nos amou primeiro" (1Jo 4.19). O perdão mútuo é ordenado por Paulo, mas a nossa obediência se baseia no fato de termos sido perdoados: "[...1 perdoando uns aos outros, assim como Deus vos perdoou em Cristo" (Ef 4.32).

1. Terence E. Fretheim, Exodus (Interpretation: A Bible commentary for teaching and preaching; Louisville:

John Knox, 1991), p. 209.

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Pessoas que representam Deus no mundo 141

Somos enviados para a missão pela ordem de Cristo, mas a realidade que antece-deu isso foi anterior à graça de Deus, enviando Jesus ao mundo (Jo 17.18).

Se fôssemos transpor as palavras de Deus a Israel para o contexto teológico do Novo Testamento, seria como se Deus apontasse a cruz de Cristo e dissesse: "Vocês viram o que eu fiz..." Depois disso, qualquer atitude que tenhamos, seja ética seja obediência missionária, será uma questão de resposta de gratidão.

Precisamos, assim como os israelitas, lembrar-nos da graça de Deus no pas-sado, demonstrada na redenção histórica e, depois, compreender nossa identi-dade e missão à luz disso.

A GRAÇA NO FUTURO: A MISSÃO DE DEUS - ÊXODO 19.5B Pergunto-me como seria a vista do topo do monte Sinai. Na linguagem pictórica e metafórica da história, ali era onde Deus "estava" e falava. Ali era o lugar onde Moisés e, mais tarde, os anciãos tinham de ir para se encontrarem com Deus (Êx 24.9-11).

No sopé da montanha, as únicas pessoas que a rodeavam eram os israelitas. Os amalequitas haviam sido derrotados e espalhados. Talvez fosse fácil para Israel imaginar que eles eram o único povo no qual Deus estava interessado. Eles haviam sido resgatados, alimentados, dessedentados, protegidos e trazidos a esse lugar para ter um impressionante encontro com o Deus vivo. E, claro, em certa medida, eles estavam certos.

Um povo especial, mas não o único Na verdade, havia um relacionamento único e especial entre Deus e esse povo, estabelecido por intermédio de Abraão. Israel, como Deus havia instruído Moi-sés a dizer a Faraó, era o "primogênito" do Senhor (Êx 4.22). E Deus reafirmaria esse relacionamento especial em 19.5 ("minha propriedade") e depois, alguns capítulos mais tarde, a consolidaria na aliança do Sinai. Mas isso estava longe de ser uma exclusividade, ou seja, de que YHWH pudesse ser considerado apenas um deus local de um povo em particular.

YHWH jamais havia sido — e jamais seria — só o Deus de Israel (cf. Rm 3.29). Ao contrário, do alto de sua magnífica montanha, por assim dizer, Deus tem uma vista geral de "toda a terra" e de "todas as nações", e todas elas pertencem a ele. Em outras palavras, esse relacionamento único e especial com Israel deve ser colocado dentro do quadro mais amplo e universal da propriedade global de Deus.

Isto mesmo, Deus havia acabado de salvar da escravidão uma nação em particular. Mas seu alvo supremo era oferecer a salvação a todas as nações. É

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142 g A missão do povo de Deus

verdade, Deus havia acabado de demonstrar seu poder soberano em uma terra em particular, na terra do Egito. Mas, mesmo ao fazer isso, ele, repetidas vezes, explicou seu plano ao Faraó mostrando que sua intenção era provar que toda a terra pertence a ele e que sua soberania não conhece fronteiras (Êx 9.14, 16, 29). Esse é o alcance universal da missão de Deus, conforme vimos reiteradas vezes até este ponto de nossa pesquisa.

É claro que podemos admitir que as referências a todos os povos e a toda a terra, em Êxodo 19.5, servem basicamente para enfatizar a posição, a identida-de e o papel especial que Israel terá em um contexto maior. No entanto, nesse contexto tão importante, em tal conjuntura crucial na peregrinação de Israel, nesse ponto central em relação ao tratamento histórico que Deus dá a eles, a referência dupla a essa dimensão universal ("todos os povos", "toda a terra") é muito reveladora.

A vista no topo do Sinal é de 360 graus - panorâmica. A visão e as intenções de Deus englobam toda a terra e todos os povos. O povo e o lugar são específicos (Israel no Sinai). O Deus que se dirige a eles é impressionantemente universal. A agenda de Deus é global.

Um empreendimento inacabado "Mas é claro que é!" poderíamos exclamar. Quem é esse Deus que está falando, afinal? Esse é o Deus que se apresentou a Moisés, no monte Horebe, na sarça ardente - e também, mais tarde, no monte Sinai -, com estas palavras: "Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó" (Êx 3.6). E sabemos o suficiente sobre o Deus de Abraão para entender que suas intenções incluem todos os povos. Conforme analisamos no capítulo 4, este é o Deus que falou repetidamente em Gênesis sobre sua promessa de abençoar Abraão e, por meio dele, todas as nações da terra.

Portanto, o empreendimento de Deus com Israel é, de fato, um empreendi-mento inacabado com o restante do mundo, como tem sido desde Gênesis 10 e 11. Essa parte da história não é uma exceção, mas sim a continuação desse grande drama. Êxodo 19.5b, mesmo quando se concentra principalmente no papel distintivo de Israel, não deixará a história de Israel continuar sem um lembrete sobre a agenda ampla de Deus e sobre a abrangência supremamente universal de sua soberania salvadora.

Esse, portanto, é o quadro geral, a recordação da grandiosa história, que, a longo prazo, é a história bíblica de Deus trazendo todos os povos para a esfera de sua bênção. Foi isso o que disse aos israelitas quem eles realmente eram. Foi isso o que deu sentido a essa parte da história que eles haviam acabado de viver, e isso era a base para aquilo que Deus agora esperava deles.

Ao pôr nossa primeira e segunda seções principais juntas, vemos aqui a graça futura da suprema missão de Deus aos povos ao lado da graça passada

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do Senhor, no ato histórico da redenção. E toda a história do Israel do Antigo Testamento está suspensa entre esses dois polos.

O mesmo acontece com a história de nossa vida como discípulos de Cristo em cada geração. Isso é o que molda a missão do povo de Deus. Toda a nossa resposta missionai a Deus está colocada entre o passado e o futuro; entre a graça e a glória; entre a salvação histórica e a missão em curso; entre o que Deus tem feito e o que Deus ainda fará; entre o lugar de onde viemos e o lugar para onde estamos indo.

Então, quem somos e para que estamos aqui? Somos o povo (1) a quem Deus redimiu da escravidão e do pecado (passado) e (2) por meio do qual Deus está trabalhando para trazer bênção a todas as nações da terra (futuro).

Pessoalmente falando, essa é a história dentro da qual faz sentido aquela pequena porção de espaço, tempo e matéria à qual chamo de minha vida. Ela dá muito mais sentido e muito mais significado à vida que a filosofia de Richard Dawkins e de seus amigos ateus, estampada nos ônibus de Londres. Ela dá sen-tido e propósito para este pacote minúsculo de DNA inteligente, porque ela põe a minha existência pessoal em uma história em que Deus está presente em seu começo e fim; uma história na qual vale a pena viver. Essa é uma história com um propósito pelo qual vale a pena viver.

Mas e daí? O que essa localização na graça passada e futura de Deus significa para Israel e, por conseguinte, para nós? Entre o passado e o futuro está o pre-sente, e assim passamos para a nossa terceira observação sobre esse texto.

A GRAÇA NO PRESENTE: O POVO DE DEUS NO MUNDO DE DEUS - ÊXODO 19.6 "[...] vós sereis para mim reino de sacerdotes e nação santa."'

Essas frases não são imediatamente óbvias para nós. Primeiro, "reino" e "na-ção" são palavras mais ou menos neutras. Deus está dizendo: "É claro que vocês serão uma nação e, provavelmente, um reino também. Mas a questão é: que tipo de nação e reino?" A ênfase, desse modo, está sobre as palavras descritivas. Israel deveria exercer o sacerdócio e ser santo. Essas são as palavras com as quais precisamos trabalhar para uma compreensão correta.

2. Este foi um texto altamente influente, não só no Antigo Testamento, mas também para o povo judeu em sua diáspora entre as nações, após o exílio. Ele inculcou uma convicção de que eles tinham um mandado ético que seria atraente para os povos não judeus, e de que isso fazia parte de sua "missão". Para uma discussão mais completa sobre esse conceito no judaísmo após a época do Antigo Testamento, veja John P. Dickson, Mission — Commitment in ancient judaism and in the pauline communities: The shape, extent and background of early Christian mission (WUNT 2.159; Tübingen: Mohr Siebeck, 2003), p. 51-60.

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144 • A missão do povo de Deus

Sacerdotal A fim de entendermos o que significava para Israel, como um todo, ser chama-do de sacerdócio de Deus em relação às nações, temos que entender o que os sacerdotes de Israel eram em relação ao restante do povo. Os sacerdotes ficavam no meio, entre Deus, de um lado, e todo o restante do povo, do outro. Nessa posição intermediária, os sacerdotes tinham uma dupla tarefa, um trabalho que significava atuar em duas direções:

Ensinar a lei de Deus para o povo. O trabalho dos sacerdotes era ensinar a lei de Deus para o povo (ver Lv 10.11; Dt 33.10; Jr 18.18). Eles foram designados para tornar conhecidos os caminhos, a palavra e os mandamentos de Deus. Por meio dos sacerdotes, Deus seria conhecido pelo seu povo. Era por essa razão que, quando o povo se desviava demasiadamente, os profetas diziam que era porque não havia conhecimento de Deus na terra. E quem eles culpavam? Os sacerdotes, por falharem no ensino (Os 4.1-9; Ml 2.6, 7).

Trazer os sacrifícios do povo a Deus (Lv 1-7 e outros textos). Os israelitas que cometiam algum pecado traziam seu animal para o santuário, colocavam suas mãos sobre a cabeça dele e o abatiam. O sacerdote levava o sangue e o aspergia sobre o altar, representando Deus. Depois, o sacerdote declarava aos adoradores que seus pecados haviam sido expiados, e que eles poderiam voltar à comunhão da aliança com Deus. Assim, por intermédio dos sacerdotes e do trabalho da expiação, as pessoas poderiam ir a Deus.

O trabalho dos sacerdotes, portanto, era trazer Deus para o povo e o povo para Deus. Então agora, com um rico significado, Deus diz a Israel como um só povo: Vocês serão para mim e para todo o restante das nações, aquilo que os sacerdotes são para vocês. Por intermédio de vocês, tornar-me-ei conhecido no mundo, e por meio de vocês, eu finalmente trarei o mundo a mim.

Isso é o que significava para Israel ser sacerdócio de Deus em meio às nações. Como o povo de YHWH, eles teriam a tarefa histórica de trazer o conhecimento de Deus às nações, e de trazer as nações para os meios de ex-piação para com Deus.

Além dessa dupla tarefa, também era um privilégio e uma responsabilidade primordial dos sacerdotes abençoar o povo em nome de YHWH (Nm 6.22-27). Logo, a tarefa abraâmica de ser um instrumento de bênção para as nações tam-bém compreendia o sacerdócio em meio às nações. Assim como era papel dos sacerdotes abençoar os israelitas, esse também seria o papel de Israel, como um todo: abençoar, enfim, as nações.

Esse movimento duplo no papel sacerdotal (de Deus para as pessoas e das pessoas para Deus) é refletido nas visões proféticas acerca das nações, as quais incluíam tanto a dinâmica centrífuga quanto a centrípeta. Haveria uma saída de Deus e uma vinda para Deus. Por um lado, a lei, a justiça ou a luz de YHWH iria para as nações por intermédio de Israel ou Sião (por exemplo: Is 42.1-4). Por

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Pessoas que representam Deus no mundo ® 145

outro, as nações poderiam ser retratadas como se estivessem vindo a YHWH, ou a Israel ou a Jerusalém/Sião (por exemplo, Is 2.2-5; 60.1-3; Zc 2.11).

"Israe , como um "reino ce sacerdotes" /NVI), fica compro-

metico com a extensão co ministério ca presença de JAVÉ

em todo o mundo — [...] um reino licerado por sacercotes

que dependiam da fé em JAVÉ, uma nação serva; em vez

de uma nação governante liderada por políticos, cujos

atitudes se fundamentam na força e na conivência?)

John Durham'

O sacerdócio do povo de Deus, portanto, é uma função missional, em conti-nuidade com a eleição deles em Abraão, causando impacto nas nações. Assim como os sacerdotes de Israel foram chamados e escolhidos para ser servos de Deus e de seu povo, Israel também, como um todo, é chamado e escolhido para ser servo de Deus e de todos os povos. Êxodo 19.4-6, em relação aos propósitos de Deus para a salvação do mundo, leva adiante a intenção de Gênesis 12.1-3.

Logo, a missão do povo de Deus inclui ser sacerdócio de Deus no mundo. Somos um povo representante. Nossa tarefa é representar o Deus vivo diante do mundo, e levar o mundo a reconhecer o Deus vivo. Isso se encaixa perfeitamente com a forma como o Novo Testamento também apresenta nossa responsabili-dade como cristãos.

Certamente era assim que Paulo via o seu trabalho, como missionário aos gentios — às nações. Ele relembra os romanos sobre a

[...] graça que me foi outorgada por Deus, para que eu seja ministro de Cristo Jesus entre os gentios, no sagrado encargo de anunciar o evangelho de Deus, de modo que a oferta deles seja aceitável, uma vez santificada pelo Espírito Santo. (Rm 15.15, 16; ARA, grifo do autor).

Em outras palavras, Paulo via seu papel como o de levar Deus às nações e trazer as nações a Deus, e, ao fazer isso, ele retrata a si mesmo como sacerdote. É claro que Paulo nunca poderia ter a função de sacerdote em Jerusalém. Ele era da tribo de Benjamin, não da de Levi. Mas ele diz que tinha um trabalho

3. John 1. Durham, Exodus (Word Bible Commentary; Waco, TX: Word, 1987), p. 263.

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146 • A missão do povo de Deus

sacerdotal — não em alguma função profissional ordenada na igreja, mas em seu trabalho de evangelização missionária entre os gentios. Evangelismo é uma tarefa sacerdotal.

"O fato de Êxodo 19.3-8 ser um tipo de reformulação

de Gênesis 12.1-3 nos faz lembrar que essa designação

está ligada ao sen lano de YHWH sobre todo o munco,

operando para a inc usão do mundo, e não para sua

exclusão. A expansão do sacerdócio real para incluir

outros povos (Ap 1.6) está em conformidade com a visão

abraárnica.), John Gold 9°Y

Mas não devemos limitar essa tarefa somente aos missionários trans-culturais. Pedro aplica esse nosso texto (Êx 19.6) a todos os cristãos, escrevendo provavelmente a uma mistura de crentes judeus e gentios, espalhados por várias províncias da Ásia Menor.

"Se alguém lesse na ateral do ônibus ce Londres: "Pro-

vavelmente, não há Deus...", deveria pensar: "Isso não

pode estar certo. Conneço Sa y, ela é cristã, e Deus é

claramente vivo e bom em sua vigia". Somos chamados

para ser uma prova viva do Deus vivo, para evar Deus

às pessoas e trazer as pessoas a Deus. Esse é o nosso

sacerdócio. Isso é parte ca missão do povo de Deus")

Observe, neste rico texto, como Pedro combina várias referências do Antigo Testamento, incluindo Êxodo 19.6, e continua insistindo em dizer que essa é a forma como devemos viver entre as nações.

4. John Goldingay, Old Testament theology: Volume one: Is aers gospel (Downers Grove, IL: IV P, 2003), p. 374.

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Mas vós sois geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de pro-priedade exclusiva de Deus, para que anuncieis as grandezas daquele que vos chamou das trevas para sua maravilhosa luz. Antigamente, não éreis povo; agora, sois povo de Deus; não tínheis recebido misericórdia; agora, recebestes misericórdia. Amados, exorto-vos como a peregrinos e estran-geiros a vos absterdes dos desejos carnais, que combatem contra a alma. Seja correto o vosso procedimento entre os gentios, para que naquilo de que falam contra vós, como se fôsseis praticantes do mal, ao observarem as vossas boas obras, glorifiquem a Deus no dia da visitação. (1Pe 2.9-12; grifo do autor).

"Vós sois [...] sacerdócio real", diz Pedro. Somos representantes de Deus no mundo.

Mas como podemos ter essa função? Que tipo de vida pode produzir esse tipo de efeito? É aí que o segundo de nossos termos se torna crucial. Para ser-mos sacerdócio de Deus, temos de ser santos.

Santo Nos termos do Antigo Testamento, ser santo não significava que os israelitas deveriam ser uma nação especialmente religiosa. No cerne, a palavra "santo" (em hebraico, qacioA significa diferente ou distinto. Algo ou alguém é santo quando são separados para um propósito distinto em relação a Deus e, depois, continuam separados para esse fim. Para Israel, isso significava ser diferente, refletindo o Deus extremamente diferente que o próprio YHWH se revelou ser, em comparação com outros deuses. Israel deveria ser tão diferente das outras nações como YHWH era diferente dos outros deuses.

Havia vários aspectos em relação à santidade de Israel no Antigo Testamen-to que devemos compreender antes de considerar como eles se aplicam a nós, como cristãos, e à nossa missão.'

Santidade - um fato determinado A santidade era um fato determinado para a existência de Israel. Isso significa di-zer que Deus havia separado Israel para si mesmo. Essa foi uma iniciativa e uma escolha de Deus: "Eu sou o SENHOR, vosso Deus, que vos separei dos outros povos" (Lv 20.24) - ou seja, o Deus que vos tornou santos, separados, distintos das demais nações. Assim como a escolha de Abraão e a experiência de redenção do êxodo, a santidade é um dom prévio da graça de Deus. Os próprios sacerdotes de Israel foram separados por Deus como santos em Israel (Lv 21.8, 15, 23). O mesmo também é dito de Israel como um todo em relação às nações:

5. Uma exegese completa e uma discussão sobre as questões da seção seguinte podem ser encontradas em Fie mission of God, capítulo 11, "The Life of Gocrs missionai people", p. 369-375.

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Sereis santos para mim, porque eu, o SENHOR, sou santo, e vos separei dos povos para serdes meus. (Lv 20.26; cf. Lv 22.31-33).

A mesma coisa é dita sobre os cristãos no Novo Testamento. Somos aqueles a quem Deus, na sua graça, escolheu "santificar" (a mesma palavra básica), ou seja, separar para si mesmo. Esse é o significado da palavra "santo" no Novo Testamento. Ela não se refere a pessoas especialmente religiosas nem àqueles que têm alcançado uma posição mais elevada do que os outros, por meio de um grande esforço espiritual ou de uma vida extremamente moral. Significa simplesmente: aqueles a quem Deus identificou como seus.

Santidade - uma tarefa determinada Em segundo lugar, a santidade era um imperativo. Era exigido de Israel que ele, no seu dia a dia, vivesse as implicações práticas de sua condição de povo santo de Deus. "Seja o que você é", era a mensagem. "Seja diferente!" Isso não poderia ser dito de forma tão clara quanto neste texto:

Não imitareis os costumes da terra do Egito, onde habitastes, nem imitareis os costumes da terra de Canaã, para a qual eu vos levo; não andareis se-gundo seus estatutos. Obedecereis aos meus preceitos e guardareis os meus estatutos, para andardes neles. Eu sou o SENHOR vosso Deus. (Lv 18.3, 4).

“Dessa forma, Israel, como "povo santo", representa uma

terceira dimensão do que significa ser comprometido com

a fé em Yahweh [ou seja, além ce ser uma propriedade

de Deus e um reino de sacerdotes]: eles ceveriam ser um

povo separado, diferente de todos os outros povos, por

causa de quem eram e do que estavam se tornando — um

povo-mostruário, uma vitrine para o munco, mostrando que

o fato de ter uma aliança com Yahweh muda um povo")

John H Durham"

As referências aos dois países são mais que geográficas. O Egito era caracte-rizado pela idolatria do poder e do império militar. "Não imitem o mundo do

6. Durham, Exodus, p. 263.

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qual eu os salvei", disse Deus a Israel. "Sejam diferentes dos Egitos deste mundo." Canaã era caracterizada pela idolatria à deusa da fertilidade e por tudo o que Baal supostamente trazia por meio do sexo, do sucesso, da prosperidade e daí por diante. "Não sigam esse caminho. Sejam diferentes das Canaãs deste mun-do:' Essas idolatrias ainda estão entre nós, em formas convincentes e sedutoras, e parte da missão do povo de Deus é ser diferente.

Assim, também no Novo Testamento, a santidade é um chamado. Muitas vezes, os apóstolos dizem a seus leitores para viver o que é verdade acerca deles, demonstrar na prática a santidade de vida que é consistente com a santidade de sua condição como povo de Deus. A primeira carta de Pedro é praticamente um tratado completo exatamente sobre esse assunto.

Santidade - em tudo na vida A intensa exigência ética por santidade no Israel do Antigo Testamento signifi-cava viver com integridade, justiça e compaixão em todos os aspectos - inclusive a vida pessoal, familiar, social, econômica e nacional. O texto mais abrangente que enuncia essa dimensão ética da santidade em Israel é Levítico 19.

Levítico 19 é o melhor comentário que temos de Êxodo 19.6: Sereis santos, porque eu [...] sou santo (Lv 19.2). O versículo inicial expressa a exigência fun-damental de Deus. Ele poderia ser traduzido de forma mais coloquial: "Vocês devem ser um povo diferente, porque YHWH é um Deus diferente". YHWH é absolutamente único e distinto como Deus. YHWH não é simplesmente um dos deuses das nações, e nem mesmo é como eles.

Para Israel, ser santo significava que eles deveriam ser uma comunidade dis-tinta entre as nações. Ou, para ser mais preciso: Israel deveria ser como YHWH, em vez de ser como as nações. Eles deveriam agir como YHWH agia, não con-forme as nações (Lv 18.3, 4). Santidade, para Israel, significava refletir na terra a santidade transcendente do próprio YHWH.

Então, o que esse reflexo de santidade significava para Israel? Que isso signi-ficaria para eles, em suas circunstâncias históricas e culturais, ser santos de uma forma que refletisse a santidade de YHWH? Que conteúdo podemos esperar que esteja apoiado na severa manchete de Levítico 19.2: "Sereis santo"?

Talvez, esperássemos uma lista de rituais religiosos. Mas encontramos poucas leis "religiosas" nesse capítulo. A maior parte de Levítico 19 nos mostra o tipo de santidade que reflete a santidade de Deus: completamente prática, social e muito realista. Uma simples listagem de seu conteúdo destaca esta nota predominante:

A santidade, em Levítico 19, envolve:

• Respeito dentro da família e da comunidade (vv. 3a, 32). • Lealdade exclusiva a YHWH como Deus; tratar os sacrifícios de modo

adequado (vv. 4-8). • Generosidade econômica na agricultura (vv. 9, 10).

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150 • A missão do povo de Deus

• Observância dos mandamentos concernentes aos relacionamentos sociais (vv. 11, 12).

• Justiça econômica nos direitos trabalhistas (v. 13). • Compaixão social para com os deficientes (v. 14). • Integridade judicial no sistema legal (vv. 12, 15).

• Atitudes e comportamentos amáveis; amar o próximo como a si mesmo (vv. 16-18).

• Preservação dos testemunhos simbólicos de distinção religiosa (v. 19). • Integridade sexual (vv. 20-22, 29). • Rejeição de práticas relacionadas à idolatria ou ocultismo (vv. 26-31). • Rejeição ao tratamento cruel às minorias étnicas, mas demonstração de

igualdade racial perante a lei e amor prático para com o estrangeiro, como a si mesmo (vv. 33, 34).

• Honestidade comercial em todas as transações comerciais (vv. 35, 36).

Este refrão percorre todo o capítulo: "Eu sou o SENHOR", como se dissesse: "Sua qualidade de vida deve refletir o meu caráter. Isso é o que eu exijo de você, porque é isso o que reflete a mim. Isso é o que eu mesmo faria."

Era isso, então, que faria com que Israel fosse visto como diferente das outras nações. Não era só o fato de adorarem um deus diferente dos deuses delas, mas que eles realmente viviam e se comportavam de maneira diferente em cada di-mensão da vida pessoal e social.

O chamado para essa distinção é ouvido fortemente também no Novo Tes-tamento. Talvez, o exemplo mais claro e simples disso é o de Jesus, dizendo aos seus discípulos que eles deveriam ser sal e luz.

Vós sois o sal da terra; mas se o sal perder suas qualidades, como restau-rá-lo? Para nada mais presta, senão para ser jogado fora e pisado pelos homens. Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade situada sobre um monte; nem os que acendem uma candeia a colocam debaixo de um cesto, mas no velador, e assim ilumina a todos que estão na casa. Assim resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai, que está no céu. (Mt 5.13-16).

Sal e luz são distintos, penetrantes, transformadores — contrastes com a cor-rupção e a escuridão. É isso o que os cristãos são chamados a ser, assim como Israel foi chamado para ser santo. Mais uma vez, descobrimos que uma parte essencial da missão do povo de Deus não é nada além do que ser o que eles são — viver a santidade de Deus na vida prática do dia a dia. Missão não é algo que acontece quando você vai a outro lugar. Ela começa em sua própria casa e vizinhança. É aí que somos chamados a ser santos.

Uma vez mais perguntamos: Como? Como podemos ser esse povo santo?

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Pessoas que representam Deus no mundo • 151

Isso nos leva de volta ao nosso texto, desta vez para o verso 5a: "Agora, pois, se diligentemente ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança..." (Êx 19.5a). Obediência é a chave para ser sacerdotal e santo.

Obediência pactuai No contexto do Antigo Testamento, é claro, Êxodo 19.5 significa obediência à lei de Deus que vem logo a seguir (no Decálogo e no Livro da Aliança). Essa lei surge no contexto da cerimônia da aliança de Êxodo 24 (na qual os israelitas se comprometem, de fato, a fazer tudo o que o Senhor lhes ordenou, o que foi feito com certa ironia, em vista da história que se seguiu).

Mas, nesse ponto, é vital que nos lembremos novamente do duplo contexto da graça, que estabelecemos nas duas primeiras e principais seções - a graça de Deus em seu ato passado da salvação, e a graça da preocupação de Deus em relação a todas as nações. Esse é o contexto de vital importância no qual há o chamado para a obediência. Somos chamados à obediência por causa do que Deus deseja fazer em nós e por meio de nós.

Acima de tudo, devemos ler os versículos 5 e 6 com cuidado e perceber que a obediência não é tida como uma condição para a salvação. Ou seja, Deus não disse: "Se vocês me obedecerem e guardarem a minha aliança, eu os salvarei e vocês serão meu povo". Ele já os havia salvado e eles já eram o seu povo. A obediência à aliança não era uma condição para a salvação, mas uma condição para a missão deles.

Somente por meio de uma aliança de obediência e da santidade comunitária é que Israel poderia reivindicar e cumprir a identidade e o papel oferecidos a ele nesse texto. A missão do sacerdócio entre as nações era baseada na aliança, e assim como a aliança em si, o seu cumprimento e a alegria proveniente dela eram inseparáveis da obediência ética. Deus estava dizendo: "Se vocês viverem dessa forma, poderão cumprir esse papel". Em outras palavras, para Israel (e também para nós), a obediência era uma questão de graça e de resposta.

O que temos nesses versículos é a graça da obediência respondendo à graça da salvação e vivendo na graça da missão. Obediência, nesse texto, assim como em toda a Bíblia, existe basicamente por causa do propósito de Deus de levar salvação e bênção para o mundo formado por muitas nações.

Não há missão bíblica sem santidade bíblica.

RESUMO Quem somos nós e para que estamos aqui? Essas são as perguntas com as quais começamos. A resposta, a partir dos textos que estudamos neste capítulo, já deve estar clara. Assim como o Israel do Antigo Testamento, somos pessoas que experimentaram a graça passada - os atos históricos da redenção de Deus no êxodo e, de forma suprema, na cruz.

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152 • A missão do povo de Deus

Assim como o Israel do Antigo Testamento, somos pessoas a quem Deus quer usar para a missão impulsionada por sua graça futura — trazer pessoas de todas as nações, de toda a terra, para a família multinacional daqueles que conhecem, amam e adoram somente a ele.

Assim como o Israel do Antigo Testamento, somos as pessoas chamadas para viver em resposta a essa graça, com vidas que representam Deus no mundo e mostram a diferença entre a santidade do Deus vivo, vista especialmente na face de Jesus Cristo, e a feiura degradante e a impotência de todos os falsos deuses que nos cercam.

Em outras palavras, somos exatamente aquilo que Pedro nos descreve, com a mesma identidade, a mesma missão e a mesma responsabilidade ética:

Mas vós sois geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de proprie-dade exclusiva de Deus, para que anuncieis as grandezas daquele que vos chamou das trevas para sua maravilhosa luz. Antigamente, não éreis povo; agora, sois povo de Deus; não tínheis recebido misericórdia; agora, rece-bestes misericórdia. Amados, exorto-vos como a peregrinos e estrangeiros a vos absterdes dos desejos carnais, que combatem contra a alma. Seja correto o vosso procedimento entre os gentios, para que naquilo de que falam contra vós, como se fôsseis praticantes do mal, ao observarem as vossas boas obras, glorifiquem a Deus no dia da visitação. (1Pe 2.9-12).

Pedro aplica Êxodo 19.4-6 diretamente aos cristãos: "Vocês tiveram a sua experiência de êxodo [das trevasl", diz ele. "Vocês provaram a graça e a mise-ricórdia de Deus. Vocês são sua propriedade exclusiva e valiosa, o seu próprio povo. Agora, portanto, vivam essa história. Vivam essa identidade. E vivam-na na obediência atraente de uma "vida exemplar", para que as pessoas sejam atraí-das para o Deus que vocês adoram, e tudo o que elas disserem sobre vocês venha a glorificar a ele:'

QUESTÕES RELEVANTES 1. "Seja correto o vosso procedimento entre os gentios", disse Pedro, ecoando

Êxodo 19.4-6. Que isso significa no seu contexto? Como podemos evitar cair no farisaísmo ou legalismo?

2. Este capítulo salientou a obediência ética, e a palavra-chave foi "graça". Isso o surpreendeu? Como você agora expressa e vive a dupla verdade que, por um lado, a graça vem antes da resposta de obediência, e que, por outro lado, a obediência, como uma resposta necessária, é inseparável da graça recebida pela fé?

3. O resumo sobre santidade, em Levítico 19, informa que a missão deve ser realizada como? Quais os itens da lista de instruções desse capítulo você considera mais desafiadores e relevantes para o seu próprio contexto?

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CAPÍTULO 8

PESSOAS QUE ATRAEM OUTROS PARA DEUS

S e eu fosse propor que a missão do povo de Deus é cosmética, poderia causar sérios mal-entendidos. Conforme o modo como se usa a palavra hoje, ela passou a significar algo simplesmente externo e superficial, algo

apenas para melhorar a aparência, retocando a imagem. Mas o significado original da palavra em grego, de onde ela se origina

(kosmeo), significa enfeitar algo ou alguém, a fim de que seja visto como belo e atraente. Esse foi o sentido dado por Paulo, quando disse aos escravos cristãos para se comportarem bem, de modo que pudessem tornar atraente o ensino sobre a salvação de Deus. Isso pressupõe que os escravos queriam que seus se-nhores fossem salvos e, por isso, Paulo diz: "Eis aqui está uma maneira de tornar isso mais provável de acontecer".

Ensine os escravos a se submeterem em tudo a seus senhores, a procura-rem agradá-los, a não ser respondões e a não roubá-los, mas a mostrarem que são inteiramente dignos de confiança, para que assim tornem atraen-te, em tudo, o ensino de Deus, nosso Salvador. (Tt 2.9, 10; NVI, grifo do autor; literalmente: "a fim de ornar [kosmosin] o ensino").

Nos capítulos anteriores, ponderamos muito sobre a dimensão ética da missão do povo de Deus. Devemos ser um povo comprometido a abençoar os outros (cap. 4); andar no caminho do Senhor; exercer retidão e justiça (cap. 5);

trabalhar para a bênção global da redenção, em prol dos oprimidos (cap. 6); e representar Deus, vivendo uma vida de santidade prática enquanto estivermos neste mundo (cap. 7).

É lógico que isso não significa excluir a importância do testemunho verbal, da mensagem que temos de proclamar. Chegaremos a esse ponto em breve (no cap. 10). Mas até aqui, temos seguido a ênfase própria da Bíblia sobre o tipo de pessoas que o povo de Deus deve ser, em vez do tipo de coisas que eles devem dizer. Todas essas exigências práticas, conforme temos visto, fazem parte da missão que Deus tem para nós, seu povo no mundo.

Mas por quê? Bem, uma grande razão é por essa qualidade de vida ser atraente. Na verdade,

em outro sentido, ela também afasta as pessoas e traz perseguição e sofrimento,

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154 A missão do povo de Deus

mas isso é um assunto para outro capítulo (cap. 13). Nosso ponto principal neste capítulo é explorar, utilizando uma variedade de textos, o tema de que o povo de Deus deve viver de tal maneira que atraia a atenção - para o Deus que ele adora, e não para si mesmo.

‘‘Que Deus se compadeça de nós e nos abençoe" [5

67.1]. Quem dera a bênção de Arão se tornasse real!

Quem dera Deus os abençoasse de forma especial, e a

luz de seu sorriso estivesse sobre eles e com e es para sem-

pre! Será que as nações veriam com seus próprios ollos e

teriam uma prova visível da existência, da ativicade e da

graça de Deus? Assim, elas conheceriam os caminhos e a

salvação do Senhor.

O mesmo principio opera hoje. As pessoas não-cristãs

estão nos ooservando. Alegamos que conhecemos, ama-

mos e seguimos Jesus Cristo. Dizemos que ele é o nosso

Salvador, nosso Senhor e nosso Amigo. "Que diferença

e e faz para esses cristãos?", o mundo pergunta diligen-

temente. "Once está o Deus celes?" Podemos dizer, sem

o menor temor de contradição, que o maior impedimento

para a evangelização do mundo hoje é a falha da igreja

em prover evidência do poder salvador de Deus em sua

própria vica e trabalho. Certamente pocemos orar por nós

mesmos, para que tenhamos a bênção e a misericórdia de

Deus, e a luz de seu rosto — não para que possamos mono-

polizar sua graça e nos aquecer sob os raios de seu favor,

mas para que outros vejam a bênção e beleza dele em

nós, e sejam atraídos para ele por nosso intermédio.), John Stott

1. John Stott, Favourite Psalms (Londres: Candle Books, 1988), p. 68, comentário do Salmo, p. 67.

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Pessoas que atraem outros para Deus 155

Deus deseja atrair pessoas para si mesmo. Deus busca os perdidos, convida o estranho para entrar em sua casa. Mas o principal meio pelo qual ele faz isso é vivendo no meio de seu próprio povo, de tal forma que ele atraia os outros.

Isso pode acontecer de várias maneiras, e nossa seleção de textos ilustrará essa variedade. Mas o que todos esses textos mostrarão é que parte da missão do povo de Deus é ter Deus bem no centro de quem eles são e do que eles fazem, de modo que haja uma força centrípeta, a força gravitacional do próprio Deus, atraindo as pessoas para sua esfera de bênção.

Magnetismo missionário é o tema deste capítulo.

ATRAINDO A CURIOSIDADE — DEUTERONÔMIO 4.5-82 Deuteronômio apresenta Moisés como um pregador interessado em motivar os israelitas, que estavam na divisa, prestes a atravessar para Canaã, para ser fiéis a Deus quando chegassem lá, guardando a lei da aliança. O livro tem uma grande variedade do que chamamos de "cláusulas de motivo" para a obediência. A maioria dessas motivações dizia respeito tanto ao benefício de Israel ("para o nosso bem") quanto a algum aspecto da atividade de Deus (para bênção ou punição), de modo que Israel precisava levá-las em consideração.

Em Deuteronômio 4, encontramos uma motivação que é notável por sua perspectiva abrangente. Ela coloca a obediência de Israel em um palco aberto e convida o povo a imaginar o que as nações pensariam à medida que observassem a vida nacional do povo cujo Deus é YHWH.

Eu vos ensinei estatutos e preceitos, conforme o SENHOR, meu Deus, me ordenou, para que lhes obedeçais na terra em que estais entrando para tomar posse. Guardai-os e obedecei a eles. Assim, a vossa sabedo-ria e o vosso entendimento serão vistos pelos povos, que ouvirão todos estes estatutos e dirão: Esta grande nação é realmente um povo sábio e inteligente. Pois que grande nação tem deuses tão próximos quanto o SENHOR está de nós, todas as vezes que o invocamos? E que grande nação há que tenha estatutos e preceitos tão justos quanto toda esta lei que hoje ponho diante de vós? (Dt 4.5-8)

Disponível para ser visto O Israel do Antigo Testamento vivia em um palco público. Tudo o que acontecia em sua história estava aberto à observação e à reação dos povos circunvizinhos,

2. Uma discussão bem mais completa sobre todo o capítulo 4 de Deuteronômio, do qual a seção abaixo é uma adaptação, encontra-se em The mission of God, p. 378-380.

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156 • A missão do povo de Deus

como também de qualquer comunidade internacional vibrante do Oriente Pró-ximo. Em certo sentido, isso era apenas uma questão de geografia, já que eles viviam em um istmo entre três continentes (África, Ásia e Europa), no cruza-mento entre as grandes potências do Oeste e do Leste, rodeado por outras nações menores como eles. Mas no sentido teológico, isso era ainda mais relevante. Na posição de sacerdócio de Deus entre as nações, eles estavam ainda mais "em ex-posição" em relação a tudo o que acontecia entre eles e Deus.

Essa visibilidade diante das nações poderia ser positiva ou negativa. Nessa passagem, esperava-se que ela fosse positiva. Mas de forma mais realista, Deu-teronômio previu que as nações ficariam chocadas com a severidade do juízo de Deus sobre Israel, quando eles abandonassem seus caminhos e caíssem em idolatria (Dt 28.37; 29.22-28). De qualquer forma, fiel ou infiel, o povo de Deus era um livro aberto para o mundo.

As nações são retratadas como tendo um interesse no fenômeno de Israel como sociedade, com todas as dimensões sociais, econômicas, legais, políticas e religiosas da Torá. Esse sistema social levaria as nações à conclusão de que Israel, como um povo, qualificava-se como uma "grande nação",' como um povo considerado "sábio e inteligente".

Mas em que essa reputação se baseia? Primeiro (v. 7), baseia-se na proximi-dade de Deus com seu povo. Segundo (v. 8), fundamenta-se na justiça da Torá. Israel deveria ter a seu favor a intimidade com Deus e tal qualidade na justiça social, aspectos com os quais nenhuma outra nação conseguiria se igualar. Esses eram os fatores internos que produziriam a reputação externa. Tudo o que as nações podiam observar era a única coisa diferente em Israel — simplesmente a sabedoria de seu sistema social. A realidade interior era a presença de Deus e a justiça da Torá de Deus.

O ponto-chave era que algo deveria ser visto por aqueles que estavam além das fronteiras do povo de Deus. Isso, por si só, era uma perspectiva missional. Invisibilidade não ajuda muito na missão. É claro que missão representa levar uma mensagem (como veremos no devido tempo). Mas aqueles que levam a mensagem devem ser, eles mesmos, transformados por ela. Não basta apenas sermos ouvidos, é preciso também sermos vistos.

Disponível para comparações A força das duas perguntas retóricas nos versículos 7 e 8 devem nos incitar a uma comparação. Mas Moisés não teme que algo possa invalidar a afirmação

3. A NVI distorce de certa maneira esse sentido com a tradução: "De fato esta grande nação é um povo sábio e inteligente.: O texto, na verdade diz: "que outra grande nação tem.: A questão não é que nenhuma outra nação seja maior que Israel. Em vez disso, o texto assume que Israel é uma grande nação como as outras e, depois, define essa grandeza em termos surpreendentes — não em termos de poder militar, geográfico ou de extensão, mas essa grandeza está na proximidade do Deus vivo nas orações e na justiça social de sua constituição e de suas leis.

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Pessoas que atraem outros para Deus • 157

que ele está fazendo acerca de Deus e da lei de Israel. Nenhuma nação tem um Deus ou um sistema social como esse, afirma ele.

"—ouve uma reunião do Comitê de Lausanne sobre

Evangelização Mundial, em Pattaya, na Tailândia, em

1980, com o tema: "Como ouvirão?" Um comentário sur-

giu entre aqueles que eram comprometicos com o papel

da igreja em questões como justiça e compaixão, junto

com a proclamação evangelistica, sugerindo que a con-

ferência também precisava perguntar: "Que e es veem?"

A necessicade de sermos vistos e de sermos ciferentes,

entretanto, foi expressa na declaração fina , em um apelo

por integricade — uma preocupação com [...] o caráter e

a concuta co portador da mensagem. Nosso testemunho

perce crecibilicace quando o contradizemos com nossa

vida ou estilo de vica. Nossa luz somente brilhará quando

outros pucerem ver nossas boas ODFCIS (Mt 5.16). Resu-

mindo, se quisermos falar de Jesus com integridace, temos

que nos parecer com ele.))4

Essa afirmação ousada sobre a singularidade social de Israel estava sendo feita em um palco lotado. No mundo daquela época, havia muitos reivindica-dores de outros sistemas de lei admiráveis. O próprio Israel conhecia a tradição jurídica antiga e aclamada da Mesopotâmia, como o Código de Hamurabi. Na verdade, eles tomaram emprestados e adaptaram alguns desses códigos. No en-tanto, essa reivindicação acerca da lei do Antigo Testamento é superior: "Vocês não encontrarão nada melhor do que isso".

A lei do Antigo Testamento incita explicitamente — e até considera bem-vinda — a inspeção e a comparação públicas. Mas o resultado esperado dessa comparação é que a lei de Israel seja considerada superior em sabedoria e jus-tiça. Essa é uma afirmação monumental. Ela oferece às nações e aos leitores desse texto, incluindo nós mesmos, a liberdade para analisar a lei do Antigo

4. "lhe Thailand Statemenf; Making Christ known: Historic mission documents from the Lausanne Move-

ment, 1974-1989 (Ed. John Stott; Grand Rapids: Eardmans, 1996), p. 160-161.

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158 • A missão do povo de Deus

Testamento em comparação com outros sistemas sociais, antigos e modernos, e avaliar suas afirmações.

De fato, a humanidade e a justiça de todo o sistema social e legal de Israel foram comentadas, de modo favorável, por muitos estudiosos que olharam para ele detalhadamente, em comparação com outros códigos legais antigos, do mundo contemporâneo e dos tempos do Antigo Testamento. E até mesmo como cristãos, ainda continuamos percebendo a relevância social da lei do Antigo Testamento para hoje.

Disponível para desafios A questão é: se Israel vivesse do modo como Deus planejou, as nações notariam isso. O desafio missional, portanto, como vimos nos capítulos anteriores, é que a qualidade ética da vida do povo de Deus (sua obediência à lei, nesse contexto) é um fator vital para atrair as nações para o Deus vivo — mesmo que, a princípio, seja por curiosidade.

Mas, então, o desafio naturalmente seria: o povo de Deus viveria dessa ma-neira? Infelizmente, sabemos, pelo resto da história, que Israel falhou lamenta-velmente nesse papel. Eles não somente não mostraram às nações as leis justas que Deus lhes havia dado, como nem mesmo conseguiram viver de acordo com os padrões das outras nações — conforme Ezequiel (veja Ez 5.5-7).

O povo de Deus ainda enfrenta o mesmo desafio hoje. Nossa missão é, no mínimo, fazer com que aqueles que nos rodeiam fiquem curiosos a respeito do Deus que adoramos e de nosso estilo de vida. Mas note que é o segundo elemen-to (nosso estilo de vida) que leva ao primeiro (curiosidade a respeito de Deus).

Afinal, o que as nações realmente veriam? A proximidade de Deus, por definição, é invisível. Que, então, seria visível? Apenas as evidências práticas do tipo de sociedade construída sobre as leis justas de Deus. O mundo estará interessado em nossas reivindicações acerca de Deus (e no quanto ele está perto quando oramos a ele) apenas quando enxergarem a evidência visível de um modo de viver bem diferente. Ou, falando de outro modo, o mundo não verá razão alguma para prestar qualquer atenção às nossas declarações a respeito do nosso Deus invisível se não perceberem nenhuma diferença visível entre a vida daqueles que fazem tais declarações e a daqueles que não as fazem.

ATRAINDO OS QUE BUSCAM — IREIS 8.41-43, 60, 61 O grande dia havia chegado. Levou sete anos para ser construído, mas agora es-tava completo. O templo de Salomão era, no mínimo, uma realidade esplêndida e, agora, deveria ser dedicado ao Senhor, para que ele pudesse ser convidado a permitir que pelo menos o seu nome habitasse ali. O capítulo 8 do livro de 1Reis

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registra as celebrações decorrentes da chegada da arca da aliança, seguidas pelas grandiosas orações de dedicação, de Salomão, e de suas exortações ao povo.

De muitas maneiras, esse é o ápice dos reinados de Davi e Salomão. Esse se-ria o lugar que substituiria o tabernáculo no deserto e o santuário em Siló. Esse seria o lugar que simbolizaria a presença do Deus vivo no meio do seu povo; o lugar onde eles poderiam estar diante do Senhor em adoração e oração; e tam-bém vir para a obra de purificação e retificação dos sacrifícios e do ministério dos sacerdotes. Esse edifício geraria uma teologia e uma torrente de poesias de adoração, de afeto e de esperança nos séculos vindouros. Ele seria o batimento cardíaco da fé singular de Israel em YHWH, seu Deus.

Então, o que a oração de Salomão expressava nessa importante ocasião de dedicação do templo?

O Deus que cumpre suas promessas (w. 14-21) Salomão começa no mesmo ponto em que muitas das orações da Bíblia come-çam, reconhecendo algo do caráter de Deus, pelo qual o Senhor deve ser elogia-do. Nesse caso, Salomão se concentra em como Deus havia mantido a promessa que fez a Davi, de que um de seus filhos o sucederia como rei e construiria o templo de YHWH. Primeiro, ele registra isso como uma espécie de testemunho ou afirmação pública (vv. 14-21).

Depois, Salomão continua como havia começado, dirigindo-se diretamente a Deus em oração, a fim de transformar essa verdade acerca do Senhor em uma característica da singularidade de YHWH, o Deus de Israel. Na linguagem de Deuteronômio (cf. Dt 4.35, 39), ele afirma:

SENHOR, Deus de Israel, não há Deus como tu em cima nos céus nem embaixo na terra! Tu que guardas a tua aliança de amor com os teus servos que, de todo o coração, andam segundo a tua vontade. (1Rs 8.23; NVI).

É claro que, nesse contexto, Salomão tem particularmente em mente a fideli-dade de Deus à sua aliança com Davi, mas suas palavras ressoam de modo mais amplo. Se pudéssemos ter ficado ao lado de Salomão, no banquete que se seguiu, e pedíssemos que desse mais alguns exemplos de Deus guardando a "aliança de amor", esse sábio rei de Israel, sem dúvida, teria apontado a aliança no Sinai e, acima de tudo, a aliança com Abraão.

Três elementos da promessa de Deus a Abraão haviam sido espetacularmen-te cumpridos na época do reinado de Salomão, e o relato do reinado de seu pai, Davi, serviu para destacá-los. Israel havia se tornado uma grande nação, como Deus prometera. Deus os havia abençoado abundantemente, conforme seus amigos e, até mesmo os inimigos, reconheciam. E Deus lhes havia dado segurança na terra que lhes havia prometido.

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160 • A missão do povo de Deus

Mas, como temos sido lembrados repetidamente, a promessa a Abraão in-cluía a promessa de Deus de que a bênção de Abraão seria uma bênção compar-tilhada, enfim, com todas as nações — de alguma forma ainda imprevisível. Teria essa perspectiva mais ampla da promessa da aliança de Deus encontrado lugar na oração de Salomão? Notavelmente, sim.

O estrangeiro que busca a bênção de Deus (w. 41-43) A oração de Salomão relaciona uma série de situações em que os israelitas pre-cisariam vir ao templo orar, pedindo ajuda de Deus: em disputas, após derrotas nas batalhas, na seca, na fome, na doença ou quando estivessem cercados. E em cada caso, ele pede para que Deus ouça suas orações e responda.

Mas então vêm as palavras: "Quanto ao estrangeiro [o termo está no genérico singular], que não pertence a Israel, o teu povo" (NVI). Poderíamos esperar algo como o seguinte: "Leve-o e mantenha-o longe de seu santuário puro e santo". Mas não. O pedido de Salomão em favor do estrangeiro é mais surpreendente. Bem, seria surpreendente por causa das falsas suposições que em geral fazemos em relação ao Antigo Testamento, mas talvez não tão surpreendentes depois de termos trabalhado ao longo dos últimos capítulos deste livro.

Quanto ao estrangeiro, que não pertence a Israel, o teu povo, e que veio de uma terra distante por causa do teu nome, pois ouvirão acerca do teu grande nome, da tua mão poderosa e do teu braço forte quando ele vier e orar voltado para este templo, ouve dos céus, lugar da tua habitação, e atende o pedido do estrangeiro, a fim de que todos os povos da terra conheçam o teu nome e te temam, como faz Israel, o teu povo, e saibam que este templo que construí traz o teu nome. (1Rs 8.41-43; NVI).

Há uma sinceridade, uma compaixão e uma visão incríveis nessa oração. Certo comentarista iria mais longe e diria (embora eu ache que Isaías discorda-ria) que essa é "possivelmente a passagem mais maravilhosamente universalista do Antigo Testamento".s Aqui, no ponto mais focalizado do sentimento da par-ticularidade ímpar de Israel em relação a Deus, a uma pequena distância do templo, a oração de Salomão antevê as nações sendo abençoadas pelo Deus de Israel, e a fama de seu Deus se espalhando por toda parte.

Nosso pequeno trecho é digno de nota por seus pressupostos, conteúdo e motivação.

Os pressupostos Ao perguntarmos o que ele faz, Salomão faz algumas pressuposições que são sig-nificativas do ponto de vista missiológico. Ele pressupõe que os povos de outras

5. Simon J. DeVries, 1 Kings (Word Biblical Commentary 1Waco, TX: Word, 19851), p. 126.

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Pessoas que atraem outros para Deus t, 161

terras ouvirão sobre a reputação de YHWH, o Deus de Israel ("o seu grandioso nome"). Ele pressupõe que os povos de longe serão atraídos para vir e adorar o Deus de Israel por si mesmos e para buscar as respostas de oração desse Deus. Ele pressupõe que o Deus de Israel pode ouvir as orações desses estrangeiros e que, na verdade, ele deseja responder a elas.

Essas pressuposições provaram ser verdadeiras na história bíblica. Além do fato de Jerusalém ser uma cidade cosmopolita dos dias de Salomão, com mui-tos estrangeiros, que, por razões comerciais ou políticas, estavam, sem dúvida, curiosos para testemunhar o que se passava no novo templo de Salomão (a rainha de Sabá foi a turista mais celebrada de Salomão). No Antigo Testamento, temos histórias de pessoas atraídas para o Deus de Israel (como Rute e Naamã). E, pos-teriormente, houve um fenômeno difundido pelo grupo dos chamados "tementes a Deus", espalhados por todo o mundo do século I, os quais se associavam às sina-gogas judaicas. Esses eram os gentios que foram atraídos para o Deus dos judeus e vieram adorá-lo — pessoas como o centurião romano, em Lucas 7.1-5; Cornélio, em Atos 10; ou aqueles que ouviram Paulo com alegria, em Atos 13.16, 46-48.

Quando pensamos na missão do povo de Deus, essas pressuposições preci-sam também nos encorajar. O Deus vivo a quem adoramos pode atrair pessoas dos confins da terra para si mesmo. Deus atrai adoração e orações, até mesmo daqueles que ainda não o conhecem completamente em toda a sua revelação bíblica. E Deus ouve e responde às orações daqueles que ainda não pertencem ao seu povo da aliança. Se não fosse assim, Salomão não poderia ter orado dessa maneira, sem temer repreensão ou contestação.

A pergunta é: vemos como parte de nossa missão o fato de sermos a face viva dessa atratividade de Deus, atraindo as pessoas para, por si mesmas, vir ao Senhor e se encontrar com ele? Esse é um desafio ao qual voltaremos a seguir.

O conteúdo O que Salomão, de fato, pediu a Deus que fizesse não é menos surpreendente. Os israelitas sabiam que Deus ouvia as orações e respondia a elas. Na verdade, essa era uma marca da distinção deles, conforme vimos acima (Dt 4.7). Mas Deus, em momento algum na era do Antigo Testamento, prometeu, exatamente com essas palavras, fazer tudo o que Israel lhe pedisse. Quando Jesus falou dessa maneira aos seus discípulos, havia algo novo e recente sobre a promessa dele justamente por isso (Jo 15.7; 16.24).

No entanto, nesse trecho, Salomão, muito antes de Jesus habitar entre nós, pede exatamente isso, mas por pessoas que nem mesmo pertenciam a Israel. Salomão pede que Deus faça pelos estrangeiros aquilo que ele nem mesmo havia garantido fazer por Israel. E quem sabe o que os estrangeiros poderiam pedir! Quem controlaria a caixa de pedidos? Essa era uma oração de fato ilimitada a um Deus totalmente ilimitado.

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162 * A missão do povo de Deus

A motivação E por que Deus deveria responder à oração de Salomão? Essa é uma das caracte-rísticas das orações do Antigo Testamento (em geral, encontradas nos Salmos), que as pessoas gostavam de sugerir a Deus algumas razões pelas quais seria do interesse do próprio Deus se apressar em responder o que havia sido solicitado — no caso dessa oração parecer um pouco egoísta, você entende. Nesse caso, Salomão propõe que, se Deus responder a sua oração, respondendo às orações dos estrangeiros, então, a reputação do próprio Deus se espalharia ainda mais — a razão principal pela qual as pessoas vinham ao templo.

O empreendedor Salomão reconhece uma oportunidade para a multiplica-ção. Deus não deveria se contentar com apenas alguns estrangeiros, mesmo que fossem de terras distantes, quando existia um alcance ilimitado para expansão, até que "todos os povos da terra conheçam o teu nome" (NVI). Afinal, não era isso o que Deus havia prometido a Abraão?

Essa é uma oração missionária, ou o quê? Não que eu esteja sugerindo que Salomão fosse um "missionário", no nosso sentido da palavra. Seus acordos ma-trimoniais o teriam desqualificado para seleção em qualquer junta missionária. Mas o alcance da visão que motivou sua oração é excepcionalmente missional em suas implicações. Ele quer que todo o mundo conheça o nome do único Deus vivo verdadeiro.

E a missão do povo de Deus é menor do que isso? Ou feita por qualquer motivo menor do que esse?

Certamente, a maior motivação para a nossa missão tem que ser que o nome do Senhor, que para nós significa o nome do Senhor Jesus Cristo, seja conhecido até os confins da terra; que ele seja o único a quem as pessoas vêm em oração e de quem recebem a bênção das orações respondidas, especialmente da oração por perdão e salvação.

Mas se essa é a nossa motivação, então as nossas atitudes e práticas pre-cisam corresponder a ela. Infelizmente, Israel nem sempre correspondeu, na prática, ao espírito aberto dessa oração de Salomão, mas tornou-se negativo, hostilizando e excluindo os estrangeiros. Alguns pensam que livros como Rute e lonas foram escritos, pelo menos em parte, para combater tais atitudes e revelar o coração de Deus com mais clareza. Da mesma forma, nem sempre, para nós, é fácil abraçar a aceitação de Deus em relação aos de fora. Até Jesus teve problemas em sua cidade natal por sugerir coisa semelhante, atitude com precedentes bíblicos (Lc 4.23-30).

Talvez, precisemos lembrar que todos nós começamos como "os de fora", que foram aproximados e acolhidos por Deus, conforme Paulo disse aos cristãos gentios e sofisticados de Éfeso (Ef 2.11-13). Portanto, precisamos encontrar maneiras de fazer para os outros aquilo que Deus fez por nós, atraindo outros para o seu campo magnético, em vez de repeli-los ainda mais.

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Pessoas que atraem outros para Deus .* 163

O povo que guarda os mandamentos de Deus (w. 60, 61) E eis para onde voltamos, como fizemos tantas vezes: à resposta ética necessária, se quisermos que o mundo veja essa atratividade de Deus.

Salomão terminou sua oração e, em seguida, dirigiu-se aos israelitas mais uma vez. Ele repete o que havia dito a respeito de Deus e depois exorta o povo a andar nos caminhos de Deus, pela mesma razão missional:

Assim todos os povos da terra saberão que o SENHOR é Deus e que não há nenhum outro. Mas vocês, tenham coração íntegro para com o SENHOR, o nosso Deus, para viverem por seus decretos e obedecerem aos seus mandamentos, como acontece hoje. (1Rs 8.60, 61; NVI).

Se ao menos o que Salomão pediu pelo seu povo continuasse sendo verdade para o próprio Salomão... Infelizmente, como sabemos, isso não aconteceu; e a opressão social e econômica acumulada em seu reinado, mais tarde, custou, a seu filho Roboão, mais da metade de seu reino, na grande rebelião sob a lide-rança de Jeroboão. Mas o registro coloca-se contra ele de antemão, vindo de sua própria boca, por assim dizer.

A combinação entre missão (v. 60) e ética (v. 61) é clara — tão clara quanto em Gênesis 18.19. Se o mundo deve saber quem Deus é, então, o caráter do Deus vivo deve ser visto no comportamento de seu povo vivo. Só quando refle-timos o caráter e os caminhos de Deus é que podemos atrair outros para desejar conhecê-lo e para vir a ele em oração.

Deus cumprirá suas promessas; e, de fato, tem feito isso desde antes de Salomão. Os de fora procurarão a bênção de Deus, e todos ao nosso redor já estão fazendo isso neste momento. A questão é se poderíamos perder a emoção e a alegria de participar dessa atração de Deus, por não termos o coração totalmente compro-metido com o Senhor Deus na vida prática diária, de acordo com seus caminhos e padrões. Porque a nossa missão começa quando procuramos viver dessa maneira — de uma maneira que permita que Deus atraia as pessoas de fora para si mesmo.

ATRAINDO A ADMIRAÇÃO — JEREMIAS 13.1-11 Era dia de compras novamente para Jeremias. Não para fazer compras na olaria (cap. 18), mas na alfaiataria. Ele precisava de um cinto novo, e Deus lhe disse de que tipo deveria comprar.

Assim me disse o SENHOR: Vai, compra para ti um cinto de linho e põe na tua cintura, mas não o ponhas na água. Comprei o cinto, conforme a palavra do SENHOR, e o pus em minha cintura. (Jr 13.1, 2).

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164 • A missão do povo de Deus

A palavra "cinto" na NVI realmente não descreve a peça de roupa em ques-tão. Essa peça seria um pedaço considerável de tecido, usado ao redor da cintura e quadris, sobre a roupa de baixo.6 Feita de linho branco viçoso e cintilante, essa teria sido uma peça de alfaiataria muito bonita e elegante, e provavelmente não combinava com Jeremias. Caminhar por Jerusalém vestido com aquele traje teria despertado a atenção e, talvez, alguma admiração invejosa.

Mas, a seguir, Deus lhe disse para ir e pô-lo na fenda de uma rocha às mar-gens de um rio, o que ele, em obediência, o fez mas, sem dúvida, com relutância! Meses depois, Deus o manda desenterrá-lo novamente e, o que não é de sur-preender, o pedaço de tecido, outrora tão decorativo, tornou-se um trapo sujo e podre, "arruinado e completamente inútil". Ele não poderia ser visto ao redor da cidade vestindo aquilo - embora provavelmente a mensagem que ele agora teria que dar envolvesse carregar e mostrar aquela coisa repugnante para as pessoas que outrora a admiraram quando era nova (vv. 3-8).

E qual era a questão?

Este povo perverso, que se recusa a ouvir as minhas palavras, que cami-nha segundo a teimosia do seu coração e que segue outros deuses, a fim de servi-los e adorá-los, ficará como este cinto, que não presta para nada. Pois, assim como o cinto se apega à cintura do homem, assim eu fiz com que toda a casa de Israel e toda a casa de Judá se apegasse a mim, diz o SENHOR, para que fossem para mim povo, nome, louvor e glória; mas não quiseram ouvir. (Jr 13.10, 11).

A imagem é impressionante. Deus compara a sua aliança com Israel com um homem amarrando uma peça de roupa em torno de si.

Deus quer vestir o seu povo! Mas a imagem vai ainda mais longe. Não era apenas uma roupa íntima

ou um macacão de fábrica. Era uma roupa usada para ser exibida. Deus usa três palavras aqui - fama, louvor e glória - que aparecem juntas como um trio em outro versículo, a respeito de Israel. Este era o propósito pactual de Deus para Israel:

[...1 para assim te exaltar em honra, fama e glória sobre todas as nações que criou; e para que sejas povo santo ao SENHOR, teu Deus, como ele disse. (Dt 26.19).

6. Essa é uma palavra muito rara ( 'czar); em algumas passagens, ela pode se referir à roupa de baixo enrolada ao redor dos quadris. Mas a implicação do versículo 11, em que Israel é comparado a tal peça de vestuário como algo com um "nome, louvor e glória" (A21) sugere que, neste contexto, o seu significado seja uma faixa externa. Uma linguagem metafórica similar é usada em Is 11.5, em que Deus se veste de justiça como um cinto e de "fidelidade, o cinto ( 'Czar) de sua cintura" (A21).

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Pessoas que atraem outros para Deus ,t 165

Nesse trecho, a fama era de Israel, mas está claro que o supremo beneficiário dessa fama era o próprio Deus. Seja qual fosse essa fama, louvor e glória que pu-desse surgir no caminho de Israel entre as nações, era na verdade para YHWH, o Deus que os escolhera como seu povo da aliança e que, por assim dizer, queria que eles andassem bem vestidos em público. A imagem da parábola encenada por Jeremias, em Jeremias 13, expressa bem isso. O cinto novo era belo em si mesmo, mas o objetivo de seu uso era trazer satisfação e elogios para quem o usava.

(CQuanco minha esposa coloca um vestido novo e boni-

to, posso muito bem dizer quanto ele é bonito, mas meu

elogio é realmente para ela, cuja beleza o vestico realça

ainda mais. Se elogiar o vestido, na verdade, é a ela que

estarei e ogiando. Assim, se as nações vinham e e ogiavam

Israel, era, de fato, YHWH quem estava sendo elogiaco.

Israel é apenas a roupa decorativa que Deus está usanco

para exibir sua própria glória e beleza")

Isso traz uma outra perspectiva interessante sobre a eleição. Deus havia sim escolhido Israel. Mas ele o fizera de tal modo que a pessoa pudesse escolher uma determinada peça de roupa para uma ocasião especial. A escolha da roupa não é um privilégio tão importante quanto o propósito por detrás dessa escolha — fazer com que aquele que a usa pareça bem vestido. Quando escolho uma determinada camisa, em vez de outra, a questão não é privilegiar essa camisa acima de todas, mas é que essa camisa é a aquela na qual me parecerei melhor, de acordo com a finalidade para a qual a usarei. Ao escolher usar Israel, Deus tinha um plano mais amplo, ou seja, a exaltação de seu próprio nome entre as nações, o que ele enfim cumpriria "vestindo" Israel.

Esse era o propósito mais abrangente de Deus que os israelitas, por sua desobediência, estavam frustrando. Eles haviam se tornado tão corrompidos quanto o cinto novo que permaneceu no solo úmido por muitos meses — vol-tando à parábola representativa encenada por Jeremias. Deus simplesmente não poderia mais usá-los. Longe de lhe trazer louvor e honra, eles lhe trouxeram vergonha e desgraça.' Como Deus poderia atrair admiradores vestido com os trapos imundos de tal povo? A podridão deles lhe traria desprezo.

7. Isso é o que Ezequiel quer dizer em Ezequiel 36, quando discorre que Israel "profanou o santo nome do SENHOR" (A21), ou seja, má reputação ao nome de Deus.

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1 66 A missão do povo de Deus

Por essa razão, se o propósito de Deus para as nações tivesse que prosseguir, Deus teria que lidar com Israel em primeiro lugar. E é bem significativo que a vez seguinte em que encontramos esse pequeno trio de palavras, ele está em uma promessa - a promessa de que Deus tornaria novamente seu povo apto para lhe trazer admiração e louvor.

E os purificarei de todas as maldades com as quais pecaram contra mim; perdoarei todas as suas maldades que cometeram, pecando e se rebelando contra mim. Então esta cidade terá um nome que me trará alegria, louvor e glória, diante de todas as nações da terra que ouvirem de todo o bem que lhe faço. Tremerão espantadas por causa de todo o bem e da paz que lhe dou. (Jr 33.8, 9, grifo do autor; observe que a palavra "alegria" foi acrescentada ao trio original "nome, louvor e glória").

Portanto, temos de perguntar o seguinte: de que forma a nossa missão como povo de Deus se encaixa nessa metáfora? Estamos vivendo de tal maneira que o Deus a quem alegamos adorar atraia a admiração daqueles que nos rodeiam? Ou será que Deus olha para nós e pensa: "Não posso ser visto vestindo um povo assim!"

"Atrair admiração" - espero que esteja claro que a admiração é para Deus, não para nós. Mas ainda é preciso dizer que, se não houver basicamente nada que seja no mínimo admirável na vida dos cristãos individualmente ou no testemunho coletivo da igreja, então haverá pouca esperança de que o mundo encontre algo para admirar no Deus a quem representamos.

((Eu costumava morar no AH Nations Christian College

[Faculdade Cristã Tocas as Nações], em uma casa do

compus, construída em um bosque. Toda vez que voltava

para casa à noite, depois de alguma viagem, meu cora-

ção acelerava enquanto fazia a curva de onde eu podia

ver as luzes de minsa casa cinti ando entre as árvores,

dizendo-me que minha esposa e familia estavam em casa

e que uma recepção me aguardava a i. A luz atrai. E a nos

tira das trevas. Pergunte a nua quer mariposa. Felizmente,

a luz missionai de Deus atrai as pessoas das trevas para

um destino muito diferente do das mariposas.),

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ATRAINDO A ADORAÇÃO — ISAÍAS 60 Isaías 60 é um capítulo que começa (vv. 1-3) e termina (vv. 19, 20) com luz. E essa é uma luz poderosamente atraente, pois acolhe em casa não apenas um viajante cansado, mas as nações do mundo. Esse é um capítulo rico, que fala das intenções de Deus para com seu próprio povo, e das implicações universais que isso tem para o mundo todo. A motivação geral dessa passagem é que, quando Deus vier para resgatar seu povo, as nações virão adorar a Deus, e o mundo conhecerá a paz e a justiça.

Isaías 60 tem uma mensagem intensamente missional, interligando a luz do próprio Deus com a luz do povo de Deus no mundo e com a luz na qual o mundo viverá e andará.

Essa é a luz missional. É a luz de Deus atraindo a adoração do mundo.

Deus está vindo para o seu povo (vv. 1, 2) A fim de apreciarmos a proporção e a amplitude desse importante capítulo de Isaías, precisamos voltar um pouco e recordar o fluxo do livro de Isaías até este ponto.

Dos capítulos 1-39, o livro destaca a exigência de Deus por retidão, o fra-casso total de Israel em demonstrá-la e o consequente julgamento de Deus, culminando no exílio.

Dos capítulos 40-55, ficamos tomados de espanto com o grandioso ato de Deus, de redenção e de restauração de seu povo, retratado como um novo êxo-do, que prometia trazê-los de volta do exílio na Babilônia.

A partir do capítulo 56, descobrimos que, mesmo após o retorno do exílio, o povo de Israel ainda está vivendo em uma condição de pecado e fracasso. Essa situação atingiu o seu ápice na trágica descrição do povo, feita pelo pro-feta em 59.12-15a:

Porque as nossas transgressões se multiplicaram diante de ti, e os nos-sos pecados dão testemunho contra nós; pois as nossas transgressões estão conosco, e conhecemos as nossas maldades. Transgredimos, negamos o SENHOR e nos desviamos de seguir o nosso Deus; pre-gamos a opressão e a rebeldia, concebemos e proferimos do coração palavras de falsidade. Por isso o direito retrocedeu, e a justiça ficou distante; porque a verdade anda tropeçando pelas ruas, e a integridade não pode entrar. Sim, a verdade desfalece; e quem se desvia do mal arrisca-se a ser despojado.

Que esperança poderá haver? Somente em Deus. Apenas se o próprio Deus agir de modo decisivo em retidão, para julgar e salvar. É exatamente isso que Deus diz que fará, em 59.15b-20:

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168 • A missão do povo de Deus

E virá um Redentor a Sião e aos que se desviarem da transgressão em Jacó, diz o SENHOR. (Is 59.20).

Deus virá e trará a redenção a um povo que certamente não a merece, mas que está disposto a arrepender-se e recebê-la.

É isso o que Isaías 60.1 anuncia - finalmente a volta do próprio Deus. Na visão do profeta, Deus veio, a luz raiou, o sol nasceu, e a glória de Deus está sendo compartilhada com o seu povo, Israel.

Levanta-te, resplandece, porque é chegada a tua luz, e a glória do SENHOR nasceu sobre ti.

O oposto de luz é escuridão; portanto, se Deus veio como a luz da revelação

e da redenção de Israel, logo o restante do mundo ainda deve estar na escuridão da ignorância em relação ao pecado. Mas em sua situação atual, Israel precisa lembrar que eles também estavam na escuridão naquela época; disso, todos ficaram cientes quando encaram realidade.

Por isso a justiça está longe e a retidão não nos alcança; esperamos pela luz e encontramos somente trevas; pelo resplendor, mas andamos em es-curidão. Apalpamos as paredes como cegos; andamos apalpando como os que não têm visão; tropeçamos ao meio-dia como no crepúsculo e somos considerados mortos entre os vivos. (Is 59.9, 10).

Israel não era melhor do que as nações gentílicas ao seu redor. Não havia dife-rença alguma; todos pecaram, como Paulo mais tarde afirmou (Rm 3.22, 23).

Portanto, a única esperança para Israel e para o mundo seria Deus vindo como Redentor e Salvador, trazendo luz às trevas, para ambos, igualmente. E é exatamente isso o que o profeta antevê:

Pois as trevas cobrirão a terra, e a escuridão cobrirá os povos; mas o SENHOR resplandecerá sobre ti, e sobre ti se verá a sua glória. (Is 60.2).

É claro que, como cristãos, lemos esse texto à luz da volta do Senhor Jesus Cristo. Na verdade, esse é um dos textos do Antigo Testamento geralmente lido no Natal e, ainda mais, na epifania (a revelação de Cristo aos gentios, com a vinda dos magos).

Em Jesus de Nazaré, o próprio Deus veio em carne, para ser o salvador do seu povo. Os "braços" do Senhor foram revelados (Is 51.5, 9; 52.10; 53.1; 59.16) na pessoa do Servo e Filho de Deus. "Hoje', disse Jesus, citando uma passagem não muito distante de nosso texto, "se cumpriu esta passagem da Escritura que acabais de ouvir" (Lc 4.21; citando Is 61.1-3).

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E isso, lembrando-nos do capítulo 2, é a história. Essa era a história de Israel. Essa é a nossa história. A história da missão de Deus e do povo de Deus até o fim do mundo. Essa é a história da volta prometida de Deus, trazendo a luz da salvação.

O mundo está vindo para Deus (vv. 3-16) A seguir, o profeta passa para o fato mais lógico. Se Deus voltou para salvar o seu povo, as nações virão a esse Deus salvador. Porque, quando a luz chegar a Israel, aqueles que ainda estiverem nas trevas serão atraídos para vir à luz, ou seja, para a obra de salvação que Deus realizou em Israel.

Nações caminharão para a tua luz, e reis, para o resplendor da tua aurora. (Is 60.3).

Isso ecoa duas profecias do início de Isaías: as nações fluindo para o mon-te do Senhor (Is 2.1-5) e o raiar da luz sobre aqueles que viviam nas trevas (Is 9.2). Mas aqui elas são cumpridas de três maneiras. As nações, quando vierem para a luz de Deus, virão trazendo consigo os filhos de Israel, trazendo presentes e adoração.

Vindo com os filhos de Israel de entre as nações (vv. 4, 9a) Lembre-se, Israel havia experimentado o exílio e a dispersão entre as nações, de modo que o profeta retrata as nações trazendo seus filhos (a geração seguinte) de volta para casa — na verdade, quase não haverá espaço para eles (Is 49.19-22).

Na perspectiva mais ampla do Antigo Testamento, quem são esses filhos de Israel, que retornam para Sião? Não apenas os israelitas étnicos, mas as pessoas de todas as nações, conforme Deus havia prometido a Abraão. Assim, o salmo 87, por exemplo, vê pessoas de muitas nações registradas como cidadãos nativos de Sião. Essa reunião das nações acontece, naturalmente, no Novo Testamento, à medida que o evangelho chega às nações e as une, por meio da fé em Jesus, à família de Abraão (G13.26-28).

Vindo com os presentes das nações (w. 5, 9, 11) O profeta retrata as nações de todos os pontos da bússola, trazendo suas riquezas mais preciosas, em gratidão a Deus pela salvação que chegou até eles — do Norte e do Oeste (o comércio marítimo da Fenícia, v. 5); do Sul e do Leste (Midiã e Arábia, vv. 6, 7) e dos confins da terra (as ilhas além de Társis [Atlântico?' — provavelmente a Espanha, v. 9). Essa era a visão que os magos simbolizavam quando trouxeram seus presentes a Jesus, um protótipo dos presentes de todas as nações. Paulo pode também ter visto sua coleta entre os gentios como um símbolo do cumprimento dessa profecia (Rm 15.25-29).

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170 • A missão do povo de Deus

Enfim, a riqueza do mundo inteiro pertence a Deus, e, um dia, ela embeleza-rá a morada de Deus, com seu povo redimido. Portanto, além do julgamento e da purificação das nações, está a perspectiva da redenção (e não do extermínio) de tudo o que a civilização humana, o trabalho, a cultura e o comércio terão produzido. Essas coisas serão trazidas como presentes purificados para a cidade de Deus. Apocalipse desenvolve essas imagens de Isaías em sua própria visão do mesmo fato (Ap 21.23-27).

Vindo com a adoração das nações (w. 6, 7, 9b, 13) Precisamos ler esses versículos observando a ênfase na adoração a Deus, o Deus de Israel. As nações estão vindo não para bajular Israel, nem para enriquecê-lo e, tampouco, para ser escravizadas por Israel. A linguagem poderia dar essa impres-são, mas devemos nos lembrar do contexto - longos anos de exílio, opressão e sofrimento. Tudo isso mudará radicalmente, diz o profeta. Mas o ponto principal é este: uma vez que foi o Deus de Israel quem trouxe salvação e luz para as nações, será esse mesmo Deus de Israel a quem o mundo virá em louvor e adoração.

E, acima de tudo, a consequência disso será que o mundo inteiro saberá quem é o Deus vivo - o alvo de toda a missão de Deus.

Assim saberás que eu sou o SENHOR, o teu Salvador, e o teu Redentor, o Poderoso de Jacó. (Is 60.16b).

Portanto, quando a luz da salvação resplandecer, como aconteceu na vinda de Jesus, na visão do profeta, as nações serão atraídas para essa luz como uma grande comunidade multinacional, trazendo seu louvor e adoração ao Deus vivo. E isso é exatamente o que tem acontecido por dois mil anos, desde o Pen-tecostes, por meio da missão do povo de Deus até os confins da terra.

A paz está vindo ao mundo (w. 17-22) Mas a visão ainda não está completa. De fato, há um elemento dela que ainda está adiante de nós. Se Deus veio para redimir o seu povo, e se as nações estão vindo a Deus, então a transformação está vindo ao mundo. Assim como nas visões de Isaías 9, 11 e 32, ouvimos o que acontecerá quando Deus vier para reinar. Essa é uma gloriosa imagem de paz com justiça (60.17b), do fim da vio-lência e da guerra (v. 18), da presença de Deus embelezadora (vv. 19, 20) e da bondade moral do povo de Deus (v. 21).

Esse é um retrato da realidade da nova criação, que, como sabemos, ainda não existe. Conforme Deus diz em Isaías 60.22: "[...1 executarei isso depressa e a seu tempo". Essa é a garantia com a qual aguardamos com fé e esperança.

Há um sentimento intrigante com o qual Isaías 60 abrange todos os horizon-tes do Novo Testamento:

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• Os versículos 1 e 2 nos levam aos evangelhos, ao Natal e à Páscoa: Deus veio, a luz raiou, a salvação foi realizada em Cristo.

• Os versículos 3 a 16 nos levam para Atos e para as epístolas; para a missão da igreja; para o evangelho alcançando todas as nações com a luz, atrain-do-as para fora da escuridão e trazendo a adoração dessas nações para o Deus vivo e salvador.

• Os versículos 17 a 22 nos levam a Apocalipse 21-22, o fim do mundo natural atual (cheio de perversidade, violência, maldade e injustiça) e a nova criação de perfeita paz e justiça.

Mas onde é que isso nos levará? Que isso nos diz sobre a nossa missão como povo de Deus? Devemos brilhar como a luz de Deus para as nações.

Voltamos ao início, leia o primeiro versículo de novo (Is 60.1). Isso não é apenas uma previsão, mas uma convocação — Levanta-te, resplandece! O povo de Deus deve brilhar com a luz de Deus, viver o magnetismo da luz salvadora de Deus, em vidas sendo transformadas no presente. Deus trouxe a luz; nós de-vemos fazê-la brilhar. Cantamos com frequência: "Brilha, Jesus". Às vezes, ouço uma voz do céu murmurando: "Brilhem vocês! Por que vocês não brilham?"

A luz com a qual devemos brilhar não é apenas a luz de uma proclamação verbal do evangelho (embora inclua isso também, conforme veremos), mas também a luz da justiça e da compaixão comprovadas — conforme Isaías 58.8-10 deixa muito claro.

Então a tua luz romperá como a alva, e a tua cura logo chegará; a tua jus-tiça irá adiante de ti, e a glória do SENHOR será a tua retaguarda. Então clamarás, e o SENHOR te responderá; gritarás, e ele dirá: Aqui estou. Se tirares o jugo, o dedo acusador e o falar com falsidade do meio de ti; e se abrires a alma ao faminto, e fartares o aflito, a tua luz nascerá nas trevas e a tua escuridão será como o meio-dia. (Is 58.9, 10; grifo do autor).

Isso é o que significa sermos pessoas que atraem outros para adorar a Deus. Isso é parte da missão do povo de Deus.

ATRAINDO A APROVAÇÃO De Isaías 60 para o Novo Testamento é um pequeno passo. Ali também vemos que, parte da missão do povo de Deus é viver de tal maneira que atraia as pessoas do mundo e as leve para se encontrarem com Deus.

"Vocês", disse Jesus um dia, a um bando de discípulos desajeitados e pro-vavelmente um tanto atônitos: "Vocês são a luz do mundo". Imagine a sur-presa de tal declaração para pessoas que conheciam bem as Escrituras, como

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172 • A missão do povo de Deus

Isaías 58 e 60 — sem mencionar o que Deus havia dito ao seu Servo, que perso-nificaria a própria missão de Israel:

[...] Também te porei para luz das nações, para seres a minha salvação até a extremidade da terra. (Is 49.6).

Então Jesus passou a explicar exatamente o que ele quis dizer com "ser essa luz". Eis uma afirmação tão missionai quanto todas as outras:

Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade situada sobre um monte; nem se acendem uma candeia e a colocam debaixo de um cesto, mas no velador, e assim ilumina a todos que estão na casa. Assim resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai, que está no céu. (Mt 5.14-16).

Os discípulos de Cristo devem brilhar com uma luz que seja visível e atraente, e essa luz consiste em "boas obras". Essa luz deve ter tamanha qualidade que atraia as pessoas para Deus no final, para que ele seja glorificado. Essa é a mesma dinâmica que observamos nas passagens do Antigo Testamento. E é a mesma dinâmica que Pedro, que ouviu o ensino de Jesus, passou adiante em sua própria carta (1Pe 2.12).

No mesmo capítulo, Jesus alertou seus discípulos que se eles vivessem a vida do reino de Deus, também sofreriam perseguição. Mas, paralelamente a essa realidade de perseguição, devemos considerar esse ensinamento sobre a atratividade missional, sobre brilhar no mundo com a ética da semelhança

de Cristo. A igreja em Atos certamente foi perseguida. Mas Lucas registra que ela

também atraiu a aprovação e o favor de muitos. Ele faz essa observação es-pecífica após comentar sobre a qualidade da vida social e econômica dessa igreja. Ao cuidarem uns dos outros, garantindo que não houvesse pessoas necessitadas entre eles, os primeiros cristãos demonstraram uma nova qua-lidade de vida, bastante atraente. E foi essa qualidade de vida que reforçou a pregação evangelística dos apóstolos, de modo que um grande número de pessoas se uniu à igreja.

Todos os que criam estavam unidos e tinham tudo em comum. Vendiam suas propriedades e bens, e os repartiam com todos, segundo a neces-sidade de cada um. E perseverando de comum acordo todos os dias no templo, e partindo o pão em casa, comiam com alegria e simplicidade de coração, louvando a Deus e contando com o favor de todo o povo. E o Senhor lhes acrescentava a cada dia os que iam sendo salvos. (At 2.44-47;

grifo do autor).

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"Somos enviados ao mundo, como Jesus, para servir.

Porque essa é a expressão natural de nosso amor pelo

próximo. Amamos. Vamos. Servimos. E nisso não temos

(ou não devemos ter) nenhum motivo oculto. É verdade que

o evangelho perde visiailidace se apenas o pregarmos, e

perde credibilidade se nós, que o pregamos, estivermos

interessados apenas na alma, sem nos preocuparmos com

o bem-estar do corpo, as cone içoes de vida e as comuni-

dades cas pessoas. No entanto, a razão para aceitarmos

nossa responsabilidade social não é primordialmente dar

ao evangelho a visioilidade ou a crecibilidace que, de ou-

tra forma, faltaria a ele, mas é viver a compaixão de forma

simples e descomp icada. O amor não tem necessidace

de se justificar. Ele simplesmente se expressa por meio do

serviço, sempre que vê a necessicade.”

John Stott`

Paulo também via o comportamento cristão como uma luz brilhando em um mundo escuro, lembrando, possivelmente, o que Daniel havia dito sobre os crentes sábios que levavam muitos à justiça (Dn 12.3).

Fazei todas as coisas sem queixas nem discórdias; para que vos torneis fi-lhos de Deus irrepreensíveis, sinceros e íntegros no meio de uma geração corrupta e perversa, na qual resplandeceis como luminares no mundo, retendo a palavra da vida, para que, no dia de Cristo, eu tenha motivo de me orgulhar do fato de que não foi em vão que corri ou trabalhei. (Fp 2.14-16; grifo do autor).

Pedro não estava sugerindo que as esposas de maridos descrentes deveriam ser sem atrativos, quando lhes disse para não permitir que a beleza fosse apenas uma questão de cabelo frisado e adereços de ouro. Em vez disso, ele queria que a beleza delas (e ele declara que isso é belo) brilhasse por meio de seu caráter e comportamento, para que elas pudessem "ganhar" o marido para a fé em Cristo (1Pe 3.1-4). Esse seria o seu atrativo mais importante.

8. John Stott, Christian mission in the modern world (London: Falcon, 1975), p. 30 [A missão cristã no mundo moderno, Viçosa, MG: Ultimato, 2010].

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174 • A missão do povo de Deus

RESUMO Terminemos o capítulo no ponto em que começamos, com os escravos e com

o notável poder que eles tinham, segundo Paulo, de aplicar algum atrativo cos-

mético à doutrina da salvação (Tt 2.9, 10). Que privilégio impressionante! O

trabalho evangelístico da igreja estava ensinando o mundo sobre um Deus sal-

vador - não o imperador romano (que reivindicou exatamente esse título), mas

Jesus, o Messias crucificado de Israel. Que piada! Tudo isso era ridículo para os

sofisticados cidadãos gregos, até que eles notaram a mudança que sobreveio aos

seus escravos (muitos dos quais foram convertidos no início do cristianismo).

Afinal, se os escravos tiveram seu comportamento transformado, talvez houves-

se algo interessante nesse ensinamento.

Assim, Paulo continua com uma exortação geral para que todos os crentes

vivessem de uma forma que respondesse à graça salvadora de Deus, já que vi-

vemos entre duas "epifanias" - entre a primeira "manifestação" de Cristo, para a

salvação, e sua segunda "manifestação", em glória.

Porque a graça de Deus se manifestou, trazendo salvação a todos os ho-mens e ensinando-nos para que, renunciando à impiedade e às paixões mundanas, vivamos neste mundo de maneira sóbria, justa e piedosa, aguardando a bendita esperança e o aparecimento da glória do nosso grande Deus e Salvador, Cristo Jesus, que se entregou a si mesmo por nós para nos remir de toda a maldade e purificar para si um povo todo seu, consagrado às boas obras. (Tt 2.11-14).

Isso funcionaria? Fazer boas obras tem um poder suficientemente transforma-

dor e atrativo, conforme Jesus, Lucas, Paulo e Pedro nos dizem? Será que elas real-

mente contribuem e até mesmo constituem a missão? Eis a opinião John Dickson:

Humanamente falando, ninguém poderia imaginar que fosse possível trazer as nações para adorar a Deus por intermédio de simples boas obras. Como seria possível que as "boas obras" mudassem um império como o poderoso Império Romano, e também o mundo todo? Por mais imprová-vel que isso parecesse naquele tempo, o chamado de Jesus para ser a luz do mundo foi levado a sério por seus discípulos. Eles se dedicaram a atos quase heroicos de piedade. Eles amavam seus inimigos, oravam pelos seus perseguidores e cuidavam dos pobres onde quer que os encontrassem.

Sabemos que a igreja de Jerusalém tinha uma imensa lista diária para alimentar os desprovidos no meio deles - nada menos que sete líderes cristãos foram designados para o gerenciamento desse programa (At 6.1-7). O apóstolo Paulo, talvez o maior missionário evangelista que já existiu, era totalmente dedicado a esse tipo de boas obras. Em resposta a uma fome que devastou a Palestina entre 46-48 d.C., Paulo conduziu, por quase uma década, seu próprio programa de ajuda internacional,

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destinado aos palestinos afetados pela pobreza. Onde quer que fosse, ele pedia para que as igrejas dos gentios contribuíssem com o que pudessem para os pobres de Jerusalém.

As "boas obras" cristãs continuaram muito tempo depois da era do Novo Testamento. Sabemos, por exemplo, que por volta do ano 250 d.C., a comunidade cristã em Roma estava sustentando 1.500 pessoas carentes todos os dias. Igrejas em todo o Mediterrâneo estabeleceram programas de alimentação, hospitais e orfanatos. Estes estavam disponíveis para cris-tãos e não cristãos. Isso foi uma inovação. Os historiadores apontam a na-ção de Israel da Antiguidade como a primeira sociedade a introduzir um sistema de bem-estar abrangente, cuidando dos pobres e marginalizados de sua comunidade. Os cristãos herdaram essa tradição, mas estenderam-na, igualmente aos judeus e gentios, aos crentes e incrédulos.

E qual foi resultado disso? Bem, em dois séculos e meio, os cristãos passaram de um pequeno grupo de algumas centenas de judeus da Pales-tina para a maior força social na história do mundo. Na verdade, a influên-cia das boas obras cristãs foi tão grande que, no século IV, o imperador Juliano (331-363 d.C.) temeu que o cristianismo assumisse a direção do mundo todo, para sempre, por meio de boas obras secretas.9

Infelizmente, os temores do imperador Juliano revelaram-se infundados. Mas e se ele estivesse certo?

QUESTÕES RELEVANTES 1. Alguém já disse que enquanto Deus queria que a vida de seu povo des-

pertasse perguntas, a igreja de hoje só desperta suspeita. Que tipo de per-gunta você acha que as pessoas estão fazendo enquanto observam sua vida ou a vida de sua igreja?

2. Quem são os "de fora" em relação à sua comunidade? De que forma você acha que eles estão "buscando a Deus"? De modo consciente ou não? O que a oração de Salomão nos ensina sobre como devemos orar por eles e viver em relação a eles?

3. De que maneira a imagem de Deus "vestindo" Israel, como se essa nação fosse uma veste, afeta sua compreensão, como cristão, sobre a importân-cia da fidelidade pactual?

4. Jesus provavelmente tinha Isaías 58-60 em mente quando descreveu os seus discípulos como "luz do mundo" e disse "resplandeça a vossa luz" (A21). Leia Isaías 58 (como um todo, mas observe os versículos 8 e 10) e reflita na natureza radical do que isso significa hoje.

9. John Dickson, The best kept secret of Christian m ssion: Promoting the gospel with more than our lips (Grand Rapids: Zondervan, 2010), p. 92-93.

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CAPÍTULO 8B

INTERLÚDIO - PAUSA PARA REFLEXÃO

C hegamos à metade do caminho em nossa jornada ao longo desse livro, de modo que parece apropriado fazer uma pausa para analisar o caminho que percorremos, lembrar a paisagem que temos visto e nos preparar

para a estrada adiante. Temos utilizado o título A missão do povo de Deus, bem como feito duas per-

guntas fundamentais sobre nós mesmos: "Quem somos nós e para que estamos aqui?" Até agora, a principal ênfase que encontramos, em uma vasta gama de textos que falam sobre o povo de Deus, é que esse povo foi criado e chamado para viver de determinadas maneiras em seu relacionamento com Deus, com o mundo e com os outros.

Que aprendemos até agora? Começamos, no capítulo 2, reconhecendo o quanto é importante ler toda

Bíblia como a história da missão de Deus, desde a criação até a nova criação, e ver que existimos como povo de Deus nessa grandiosa história, para servir o propósito de Deus na própria criação e em meio às nações. Não é que Deus tenha uma missão para a sua igreja, e sim que ele tem uma igreja para sua mis-são. Existimos para servir a missão de Deus. É por isso que é tão importante sabermos qual é essa missão, fundamentados na Bíblia toda que ele nos deu.

Depois, no capítulo 3, prestamos atenção ao modo como a Bíblia começa e termina - com a própria criação. Mesmo sendo o povo de Deus, continuamos sendo seres humanos, encarregados de servir a terra na qual ele nos colocou e de cuidar dela. Essa é uma parte da nossa missão que provém de nossa própria humanidade. Isso aponta a redenção passada e futura de todas as coisas. Não fomos salvos para fora da criação, mas a própria criação será redimida conosco.

Por meio de nossa exploração da aliança de Deus com Abraão, no capítulo 4, ficamos sabendo que o principal agente da missão de Deus é o povo de Deus. A fim de trazer bênção a todas as nações, Deus criou o povo de Abraão, e, em Cristo, pertencemos a esse povo. A razão da nossa existência e da missão confia-da a nós, em princípio, é a mesma para nós, os cristãos, como o foi para o Israel do Antigo Testamento.

No capítulo 5, partindo de Gênesis 18.19, aprendemos que as exigências de Deus para o povo de Abraão (que inclui todos os que estão em Cristo) é que eles devem guardar o caminho do Senhor, praticando justiça e juízo, para que Deus mantenha sua promessa de abençoar as nações. O modo como vivemos (ética) é o conector entre a nossa eleição e a nossa participação na missão de Deus.

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Interlúdio - pausa para reflexão 4. 177

Pela história do próprio êxodo, no capítulo 6, entendemos de um modo mais abrangente a ideia de Deus sobre redenção e que não devemos perder de vista essas dimensões ao vermos Deus, o Redentor, realizando nossa total libertação por meio da cruz e da ressurreição de Cristo. Portanto, aqueles a quem Deus redimiu são chamados para refletir as ações dele, bem como a motivação que está por trás dessas ações, vivendo de forma redentora no mundo, na maneira como nos comportamos em relação aos outros.

Conforme Êxodo 19 e Levítico 19, vimos no capítulo 7 que a identidade de Israel (ser um reino sacerdotal) constituía a missão (abençoar as nações, trazen-do-as até Deus, e trazendo Deus às nações). Esta continua sendo a missão do povo de Deus, em Cristo: ser uma prova viva do Deus vivo. A missão de Israel exigia uma ética (ser uma nação santa, ou seja, ser basicamente diferente das nações circunvizinhas). A mesma exigência é a base de nossa missão. Somos chamados para ser diferentes. Não há missão bíblica sem uma ética bíblica.

Refletir o caráter de Deus em nossa vida deve tornar o povo de Deus tão atraente quanto o próprio Deus. Assim, no capítulo 8, exploramos diversas pas-sagens bíblicas nas quais o povo de Deus tem a tarefa de atrair outros a Deus, a fim de que encontrem bênção e salvação. A metáfora mais poderosa para isso é a da luz, usada tanto para significar a alegre boa-nova da salvação, que Deus traz quando vem a nós, quanto para retratar a qualidade transformadora do mundo, da vida e das obras daqueles que chegam a essa luz e vivem por ela.

Portanto, agora deve estar extremamente claro que a missão do povo de Deus na Bíblia é ser o povo que Deus criou para ser e fazer as coisas que Deus nos chama a ser e a fazer. Temos uma vida a viver, e se não estamos vivendo como povo de Deus, não há razão para dizer coisa alguma.

No entanto, somos naturalmente chamados para falar e falar livremente. Há uma mensagem a ser transmitida. Há uma palavra a ser ouvida. Há uma verdade a ser conhecida e passada adiante. Há boas-novas a ser compartilhadas!

E assim, chegamos à segunda metade do livro, em que isso se torna um dos nossos temas-chave. Exploraremos os grandiosos temas missionais a respeito de "dar testemunho" (capítulo 10) e "proclamar o evangelho" (capítulo 11), e descobriremos (talvez para nossa surpresa) que esses dois temas se originaram no Antigo Testamento (esse é o valor de fazer uma teologia bíblica para a vida). As pessoas da Bíblia foram "enviadas" para fazer essas duas tarefas, junto com uma vasta gama de outras "missões" — quer tenham sido enviadas diretamente por Deus, quer pela igreja.

Visto que a palavra missão vem da palavra latina usada para "envio", inves-tigaremos também esse tema (capítulo 12). Mas no caso de ainda estarmos imaginando que missão é apenas para missionários (pessoas enviadas lite-ralmente para além das fronteiras culturais), pensaremos também na missão de todos (ou seja, da maioria de nós) quantos vivem e trabalham na esfera

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comum da vida pública e do trabalho (capítulo 13). Finalmente, nessa parte do livro, recordaremos a nós mesmos que a meta de toda missão é a glória de Deus; assim, no capítulo 14, veremos como o louvor e a oração são também ações missionais do povo de Deus.

No entanto, o fundamental em todas essas dimensões de nossa missão é que devemos conhecer o Deus de quem falamos e estar totalmente compro-metidos com nossa lealdade inegociável a ele. Isso, conforme veremos no pró-ximo capítulo, foi exigido do Israel do Antigo Testamento e triunfantemente demonstrado pelo testemunho corajoso dos apóstolos sobre a singularidade do Senhor Jesus Cristo.

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CAPÍTULO 9

PESSOAS QUE CONHECEM O ÚNICO DEUS VIVO E SALVADOR

C onhecer a Deus é um dos temas mais difundidos na teologia bíblica. Algumas pessoas escreveram livros inteiros sobre esse tema.' Mas alguém pode ser tentado a perguntar o que isso tem que ver com a mis-

são do povo de Deus. Conhecer a Deus parece dizer mais respeito à devoção pessoal e experiência espiritual que com missão. Mas quando pensamos assim, isso apenas mostra o quanto temos individualizado e privatizado nossa fé cristã, e o quanto precisamos do corretivo da teologia bíblica — principalmente o da teologia bíblica aplicada à missão do povo de Deus.

É verdade que, na Bíblia, conhecer a Deus era uma experiência profun-damente pessoal, mas nunca foi simplesmente particular nem simplesmente espiritual. Chegar a conhecer a Deus poderia ser encorajador ou devastador, dependendo do estado da vida da pessoa quando esse encontro acontecesse. Quando toda uma comunidade era chamada para conhecer Deus, como o Israel do Antigo Testamento o foi, isso significava ter uma agenda social abrangente, não apenas ter um emblema de uma religião nacional nominal.

Acima de tudo, conhecer a Deus era uma responsabilidade. E isso gerava uma agenda, uma missão.

Há um fato em toda a experiência bíblica com Deus: ela nunca é somente "intransitiva" (algo que acontece com você e termina em você). Ela é sempre "transitiva", dinâmica (tem que afetar alguém ou algo mais). Temos visto isso em alguns dos nossos capítulos anteriores. Se Deus o abençoa, é para que você possa abençoar os outros. Se Deus o redime, é para que você possa demons-trar a graça redentora aos outros. Se Deus o ama, alimenta e veste, você deve ir e fazer o mesmo com os outros. Se Deus o traz para a luz da salvação, é para que você possa brilhar com uma luz que atraia outros para esse mesmo lugar. Se você desfruta o perdão de Deus, então, certifique-se de perdoar os outros. E assim por diante.

1. O clássico, é claro, é J. I. Packer, O conhecimento de Deus (São Paulo: Mundo Cristão, 2005). Veja também Christopher J. H. Wright, Knowing Jesus through the Old Testament (Oxford: Monarch e Downers Grove, IL: IVP, 1992); idem, Knowing the Holy Spirit through the Old Testament (Oxford: Monarch e Downers Grove, IL: IVP, 2006), e idem, Knowing God the Father through the Old Testament (Oxford: Monarch e Downers Grove, IL: IVP, 2007).

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Nesse sentido, toda a nossa teologia bíblica é, ou deveria ser, missional. A teologia bíblica é, por definição, "teologia para a vida".

Da mesma forma, conhecer a Deus é ser desafiado a torná-lo conhecido. É ser encarregado do conhecimento que Deus quer que seja compartilhado. É isso que torna esse conhecimento missional, pois, por trás de toda nossa missão, está a determinação inabalável de Deus de ser conhecido em toda a sua criação como o Deus vivo. A vontade de Deus de ser conhecido é o que torna nossa missão não apenas um imperativo, mas também possível.'

«Todos os esforços missionais para fazer Deus conhecido

devem ser colocados dentro do quadro prévio da própria

vontade de Deus em ser conhecido. Estamos buscando

realizar aquilo que Deus deseja que aconteça. Isso é tanto

humilhante como tranquilizador. É humilhante à mecida

que nos lembra que todos os esforços seriam em vão, não

fosse a determinação de Deus de ser conhecido. Nem

somos os iniciadores da missão de tornar Deus conheci-

do perante as nações; nem está em nosso poder decidir

como isso será plenamente realizado ou julgar quando

essa obra estará completa. Mas isso também é reconfor-

tante, porque sabemos que por detrás de nossos esforços

desajeitados e comunicação inadequada, permanece a

suprema vontade do Deus vivo, estendendo a mão em

amorosa autorrevelação, inacreditavelmente disposto a

abrir os olhos cegos e a revelar sua glória por meio dos

tesouros do evangelho, entregues em vasos de barro, por intermédio de suas testemunhas")

Christopher Wright'

2. Essa determinação do único Deus vivo, de que ele seja conhecido em toda a sua criação, é a principal roda motriz da missão bíblica. Discuti esse assunto com profundidade em The mission of God, p. 75-135. 3. Ibid., p. 129-130.

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Portanto, neste capítulo, veremos dois textos em que aqueles que vieram a Deus ou a conhecer algo único e empolgante sobre Deus foram confrontados com o desafio desse conhecimento e com as implicações missionais de ser mordomos dele. Também divergiremos da prática que temos utilizado até o momento, de olhar primeiro para um texto do Antigo Testamento e depois passar ao Novo Testamento. Desta vez, passaremos de um texto para o outro, observando as ligações e os ecos entre eles, construindo nossa teologia bíblica a partir de ambos.

Nossos dois textos são Atos 4.1-22 e Deuteronômio 4.32-39. Seria útil lermos os dois textos, um após o outro, e depois mantermos ambos abertos.

CONTEXTOS DESAFIADORES Poderíamos perguntar o que os dois textos têm em comum, um com o outro e com a missão do povo de Deus — naquela época ou agora. Resposta: o contexto, em ambos os casos, era conflitante e desafiador. Havia um choque de ideias, de cosmovisões e de zelo religioso.

Em Atos, o conflito era entre aqueles que, por um lado, declaravam que Jesus de Nazaré era o Messias e que, embora tivesse sido crucificado havia poucas semanas, agora era o Senhor ressurreto e exaltado; e aqueles que, por outro lado, rejeitavam essa ideia como um perigoso contrassenso.

Em Deuteronômio, o conflito era entre a fé de Israel em YHWH, como seu único Deus e Senhor da aliança, e a religião politeísta e a cultura de Canaã que estavam à sua frente.

Em ambos os casos, os autores se referem a acontecimentos únicos, que haviam sido testemunhados e que os levaram a certas conclusões sobre Deus — coisas que devem ser conhecidas e divulgadas. Em ambos os casos, são feitas declarações, quer a respeito de Jesus, quer acerca do Deus de Israel, as quais são apresentadas como inegociáveis em seu conteúdo e universais em sua importância.

No mundo de hoje, o contexto de nossa missão é igualmente desafiador. Exige-se que a fé cristã expresse sua identidade e sua distinção em face de todos os tipos de reivindicações e lealdades antagônicas, quer sejam de outras confissões religiosas quer do ateísmo ressurgente.

Assim como nos dias dos apóstolos, há muitos hoje que não aceitam que Jesus seja o único salvador e Senhor. Há ainda muitos outros que jamais ouviram falar de Jesus nem tiveram a chance de tomar uma decisão acerca das suas declara-ções. E o povo de Deus, assim como nos dias de Deuteronômio, vive cercado por múltiplas culturas que manifestam todos os tipos de idolatrias das quais os seres humanos são capazes. O poder sedutor absoluto do mundo que nos rodeia torna a lealdade ao único Deus vivo um imenso desafio. Como os israelitas do

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passado, nós não reconhecemos o sincretismo no qual facilmente caímos nem reconhecemos o quanto é fácil adorar os deuses dos povos ao nosso redor.

Em tais contextos, somos ordenados a reconhecer o que conhecemos e a quem conhecemos, e a testemunhar sobre isso. Conhecer a Deus e, para nós, conhecer o Senhor Jesus Cristo, torna profunda a realidade missional que experimentamos.

"Eu gostaria ter levado aqui o ao caixa, pago por e e e

tê-lo esmagado sob meus pés antes de sair ca ivraria da

igreja cristã na qual o vi. Aquilo me norrorizou como um

exemp o de um sincretismo b asfemo. Era urna pequena

estátua de uma cruz, envo ta na bandeira dos Estados Uni-

dos. Em que seu fabricante estava pensando? Que men-

sagem se esperava que qualquer comprador entendesse

com aquilo? Ela parecia dizer: "Você pode ter a cruz de

Jesus, ter todos os seus pecados perdoacos e ter também o

patriotismo envolvendo tudo isso. Você nem precisa pensar

que a cruz poderia ser contrária aquilo que seu patriotismo

idolatra ou que a cruz era o lugar onde os patriotas dos

dias ce Jesus punham os traidores e terroristas."

Ou será que aqui o estava dizendo: "Jesus morreu pelos

americanos". Isso é verdade, mas ele não morreu também

por pessoas de tocas as nações, de todas as bandeiras ou

sem bandeira? Em outras palavras, até mesmo a interpre-

tação mais amorosa desse simbolismo era confusa. Isto é sincretismo: misturar a suposta adoração ao Deus vivo da

Bíblia com todos os tipos de outros amores e lealdades.

Isso não é algo que acontece só nos países estrangeiros

com "outras religiões" )).

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Pessoas que conhecem o único Deus vivo e salvador 183

Atos — vimos um homem ressurreto Em Atos 3, Lucas nos conta a história de como um homem, que havia sido coxo a vida toda e sobrevivia das esmolas dos adoradores do templo, foi curado por Pedro e João em nome de Jesus. Tirando imediatamente uma vantagem evan-gelística da perplexidade da multidão, Pedro rejeita todo o crédito dado a João e a si mesmo e explica que Jesus de Nazaré (aquele que eles tinham crucificado havia algumas semanas antes) era, de fato, o Messias que Deus prometera aos seus antepassados. Mas agora, Deus o havia vindicado, ressuscitando-o dentre os mortos, mantendo assim sua promessa a Abraão. A cura do coxo era um sinal do que Deus agora poderia fazer espiritualmente por suas almas. Mesmo como israelitas, a bênção de Abraão só viria a eles por meio do arrependimento e da fé em Jesus.4

Atos 4 descreve o transtorno que isso trouxe às autoridades religiosas e po-líticas judaicas, as quais estavam certas de que haviam tratado daquele encren-queiro de modo brutal, mas definitivamente eficaz. Por essa razão, eles chamam a Pedro e João para prestarem contas por suas ações, o que dá a Pedro uma segunda oportunidade para pregar o evangelho da salvação em Jesus Cristo (ao qual retornaremos).

Mas a única coisa que as autoridades não podiam fazer era negar a evidência diante de seus próprios olhos e dos olhos dos cidadãos de toda a Jerusalém. O sujeito do portão, por quem todos eles passaram durante anos, estava correndo e pulando pelas ruas, e agora ele estava ali em pé (uma postura que ele não havia conseguido por toda sua vida) no tribunal!

Uma vez que podiam ver o homem que havia sido curado, ali com Pedro e João, não havia nada que pudessem dizer. Por essa razão, ordenaram que eles se retirassem do Sinédrio e deliberam juntamente: "Que faremos a estes homens? Porque todos os que habitam em Jerusalém sabem que foi feito um sinal eviden-te por meio deles, e não o podemos negar" (At 4.16; grifo do autor).

E o que é significativo na narrativa é que Pedro proclama a ressurreição de Jesus exatamente na mesma base da cura do coxo - ou seja, em um teste-munho real de um acontecimento inegável. Para Pedro, o fato de que Jesus havia ressuscitado era uma questão de testemunho ocular, semelhante ao fato do homem que havia sido curado: "Matastes o Autor da vida, a quem Deus ressuscitou dentre os mortos, e somos testemunhas disso" (At 3.15; cf 4.2, 9, 10; grifo do autor).

"Vocês viram um homem curado de uma doença e não podem negar isso. Nós vimos um homem ressurreto dentre os mortos e também não podemos negar

4. Atos 3.25, 26 é um texto importante na debatida questão sobre quem são os descendentes de Abraão hoje. Pedro toma como ponto-chave o fato de que a promessa abençoadora feita a Abraão alcança até mesmo aos israelitas étnicos (seus compatriotas judeus) por meio do arrependimento e da fé em Jesus. Os descendentes físicos de Abraão não liberam a promessa, mas a submissão a Jesus o faz.

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isso." Em outras palavras, foi o que Pedro e João disseram. "Pois não podemos deixar de falar das coisas que vimos e ouvimos" (At 4.20).'

É importante lembrar que toda a nossa fé cristã está pautada em teste-munhas que testificaram publicamente a experiência histórica, e não em especulações ou teorizações religiosas, ainda que espirituais. O evangelho é a boa-nova sobre algo que aconteceu; ele não é uma boa ideia ou um bom conselho. Voltaremos ao conteúdo de toda a Bíblia e à dinâmica do evangelho como boa-nova no capítulo 11.

Deuteronômio — vocês têm visto Deus em ação Deuteronômio apresenta Moisés se dirigindo ao povo de Israel quando estava prestes a entrar na Terra Prometida, relembrando-os os acontecimentos teste-munhados por eles em sua história:

Agora, perguntai aos tempos passados desde o dia em que Deus criou o homem sobre a terra, perguntai de uma extremidade do céu até a ou-tra, se alguma vez aconteceu coisa tão grande como esta, ou se já ouviu coisa semelhante. Ou se algum povo ouviu a voz de Deus falar do meio do fogo, como a ouvistes, e ficou vivo. Ou se algum deus decidiu tomar para si uma nação do meio de outra nação, por meio de provas, sinais, maravilhas, guerras, com mão poderosa, braço estendido e com grandes prodígios, assim como o SENHOR, vosso Deus, fez convosco no Egito, diante dos vossos olhos.6 (Dt 4.32-34; grifo do autor).

Um projeto de pesquisa de escala verdadeiramente cósmica é imaginado no versículo 32, abrangendo a totalidade da história humana e todo o espaço uni-versal até aquele ponto. A confiança que Moisés tem de que as questões - que ele está prestes a apresentar nos versículos 33 e 34 - não encontram resposta alguma é tamanha. Moisés se refere tanto à teofania no Sinai quanto à libertação do êxodo, e sua alegação é que nada como isso havia acontecido antes. O que Deus fizera nos acontecimentos do êxodo e do Sinai era sem precedentes (Deus jamais havia feito coisa semelhante em lugar algum, por nenhuma outra nação).

Portanto, Moisés está insistindo em que a experiência de Israel é absoluta-mente única. YHWH falou a Israel de uma maneira que nenhum outro povo havia experimentado (cf. S1 147.19, 20), e YHWH redimiu Israel de um modo que nenhum outro povo havia conhecido até aquele momento (cf. Am 3.1, 2).

5. Talvez, nesse momento, essa fosse a fala de João e não a de Pedro, visto que "o que ouvimos, o que vimos com nossos olhos" é uma frase típica do testemunho de João (1Jo 1.1, 3). 6. No sentido exato da palavra, é claro, isso não havia acontecido diante dos olhos daqueles a quem Moisés se dirigia (a menos que eles fossem crianças pequenas naquele tempo), uma vez que essa era a geração seguinte àquela que havia saído do Egito. Mas o Antigo Testamento vê as gerações unidas na memória histórica, e aqui-lo que havia sido presenciado por seus pais agora era tido como um testemunho público de acontecimentos, sobre o qual eles deveriam refletir.

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Os dois acontecimentos aos quais Moisés se refere são naturalmente a base da posição de Israel como o povo da aliança, redimido por Deus. São aconteci-mentos de salvação e de revelação combinados.

Salvação O êxodo foi inegavelmente a maior de todas as experiências. Ainda que eles houvessem sido escravos no Egito, agora era um povo livre, nos limites da Terra Prometida. Tudo o que sabiam sobre YHWH como um Deus poderoso para salvar, eles o sabiam com base nesse fato.

Revelação O Sinai havia sido a experiência avassaladora da autorrevelação de Deus. No Sinai, YHWH havia revelado seu nome, seu caráter pessoal, suas exigências morais e seu compromisso com a aliança. Tudo isso era uma questão de memorial, e havia uma caixa bem importante, coberta de ouro, carregada ao redor pelos levitas, e na qual havia umas tábuas de pedra — a arca da aliança — uma prova física e uma evidência do que havia transcorrido naquela ocasião impressionante.

Portanto, ambos os nossos textos apelam aos fatos, às experiências que foram publicamente testemunhadas e a acontecimentos inegáveis como base para as asseverações e desafios que se seguem. O que os discípulos agora sabem sobre Jesus, o que os israelitas agora sabem sobre YHWH, tudo isso surgiu a partir da experiência histórica.

Logo, quando falamos que parte da missão do povo de Deus é compartilhar aquilo que ele sabe sobre Deus, isso não é algum tipo de opinião esotérica ou especulativa sobre Deus, nem o resultado de uma prolongada peregrinação espiritual ou fruto de eras de reflexões religiosas. Tudo o que sabemos é com base nas coisas que têm acontecido e no entendimento que nos é dado nas Escrituras acerca dessas coisas.

O evangelho que compartilhamos é uma boa-nova sobre acontecimentos reais. Há um "já aconteceu" na essência do evangelho. Existe uma história para contar, sobre pessoas reais, e acima de tudo, sobre a pessoa real de Jesus de Nazaré.

Essa é uma das razões por que a confiança na Bíblia também é muito im-portante, porque é nela que temos o testemunho registrado daqueles que experimentaram esses acontecimentos em primeira mão. Pedro e João podiam falar sobre as "coisas que vimos e ouvimos" (A21), porque eles estavam lá. Não podemos falar exatamente da mesma maneira. Por essa razão, dependemos do testemunho deles, e esse testemunho está na Bíblia — e, na verdade, essa foi exatamente a razão pela qual João diz ter escrito seu evangelho (Jo 20.30, 31; 21.24).

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186 A missão do povo de Deus

REIVINDICAÇÕES INTRANSIGENTES Ambos os nossos textos partem do acontecimento histórico inegável que fundamenta cada um deles em uma reivindicação intransigente, feita em uma linguagem inequívoca. A expressão "não há outro..." é mais uma característica que ambos os textos têm em comum. E, como se vê, embora esses textos estejam separados por séculos, em termos de teologia bíblica, eles tratam basicamente da mesma pessoa.

Deuteronômio — nenhum outro Deus As grandiosas perguntas retóricas de Moisés que haviam afirmado a singula-ridade da experiência de Israel, em Deuteronômio 4.33, 34, não foram feitas por nostalgia ou para se sentir confortável. Elas tinham uma mensagem clara. Havia algo que Israel deveria conhecer enfaticamente agora. De certo modo, eles deveriam reconhecê-lo ativamente, estabelecendo-o em seu coração e em sua vida:

E isso vos foi mostrado para que soubésseis que o SENHOR é Deus; não há outro, senão ele. (Dt 4.35; grifo do autor).

Por isso, hoje, deveis saber e considerar no coração que só o SENHOR é Deus, em cima no céu e embaixo na terra; não há nenhum outro. (Dt 4.39; grifo do autor).

Tudo o que Israel havia experimentado de forma tão singular aconteceu para que eles pudessem aprender algo absolutamente vital: a identidade do Deus vivo. YHWH, e somente YHWH, é Deus, e não há outro em lugar algum no universo. Essa é a carga teológica que a transportadora da retórica está carregando.

Em razão de apenas Israel haver experimentado os atos únicos da redenção feita por Deus (êxodo) e da revelação de Deus (Sinai), Israel tinha um conheci-mento de Deus que era igualmente único: "E isso vos [o pronome é enfático] foi mostrado para que soubésseis". Em um mundo de nações que não conheciam YHWH como Deus, Israel era agora a única nação que havia sido encarregada desse conhecimento essencial.

O Israel do Antigo Testamento conheceu a Deus como nenhuma outra nação havia conhecido, porque eles tiveram experiências com Deus de um modo que nenhuma outra nação daquele tempo teve.

Embora a linguagem "não há outro Deus" nos diga imediatamente que estamos no campo do que é geralmente chamado de "monoteísmo do Antigo Testamento", é importante vermos claramente que o texto não está simplesmen-te afirmando o monoteísmo por si só. Moisés não diz: "E isso vos foi mostrado para que soubésseis que existe só um". A questão não era simplesmente de aritmética (quantos deuses há?), mas de identidade (quem é verdadeiramente o

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Deus vivo?). Crer simplesmente que existe só um Deus é bom, mas isso não iria além da crença dos demônios, conforme Tiago diria (Tg 2.19).

O Deus vivo e verdadeiro é o Deus que foi revelado como YHWH, por meio da experiência da narrativa. "Isso vos foi mostrado" (os acontecimentos do êxo-do e do Sinai) mostram Deus como YHWH, Deus de compaixão e justiça; o Deus da salvação e da revelação, o Deus que redimiu Israel por sua graça e agora os chama para amá-lo e servi-lo exclusivamente. Portanto, a história mostra não apenas quem é realmente Deus, mas também como Deus é de fato. Ela revela não só sua existência e identidade, como também o seu caráter. Esse Deus é assim, como nenhum outro deus o é. Como sabemos disso? Por causa do que esse Deus (e nenhum outro) fez em sua história publicamente testemunhada.

A ideia desses versículos de Deuteronômio 4 é complementada em muitas outras passagens do Antigo Testamento, em que encontramos uma combina-ção da afirmação de que YHWH é incomparável (não há outro deus como ele) com a afirmação de que YHWH é único (na verdade, não há outro deus além dele, levando em conta sua divindade transcendente). Por causa de nossa teo-logia bíblica, e também para sentirmos o pleno impacto daquilo que Pedro e João alegaram calmamente acerca de Jesus, em Atos 4, vale a pena pararmos para ler os textos a seguir, deixando que suas afirmações surpreendentes pe-netrem em nossa mente.

Moisés afirma a singularidade de YHWH simplesmente fazendo a pergunta: "quem [...] é como tu?"

Quem entre os deuses é como tu, ó SENHOR? Quem é como tu, poderoso em santidade, admirável em louvores, capaz de maravilhas? (Êx 15.11).

Em outras partes do Antigo Testamento, a mesma pergunta retórica é feita para expressar surpresa e admiração por YHWH, um Deus diferente de todos os outros. YHWH está além de todas as comparações (não existe ninguém como ele):

• Em manter as promessas e cumprir sua palavra (2Sm 7.22). • Em poder e sabedoria, principalmente na que é vista na criação (Jr 10.6,

7, 11, 12). • Em prover a assembleia celestial (Si 89.6-8). • Em governar as nações (Jr 49.19; 50.44). • Em perdoar o pecado e absolver da transgressão (Mq 7.18). • Em enviar seu poder salvador em favor de seu povo (Is 64.4).

E porque não há ninguém como YHWH, no final, as nações virão e o ado-rarão como o único Deus verdadeiro (SI 86.8, 9). No entanto, há uma dimensão missionai dessa grande verdade. O que veremos Pedro e João afirmar sobre

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188 • A missão do povo de Deus

Jesus já estava sendo dito sobre YHWH nos séculos anteriores e com a mesma relevância missional. Aqui, em YHWH e em Jesus, está a única fonte de salvação e o único foco de adoração — para todas as nações do mundo.

Mas o Antigo Testamento vai além, dizendo simplesmente que YHWH não é como qualquer outro deus. Enfim, a simples razão de YHWH ser incompa-rável é porque não há coisa alguma na realidade que possa ser comparada a ele. YHWH está em uma categoria sem paralelos. Ele não é apenas mais um de uma categoria genérica — "deuses". Ele é o único que ocupa o lugar da deidade transcendente — o único Deus.'

Além de Deuteronômio 4.35 e 39, essa verdade é afirmada em várias outras passagens e, é claro, ela é a base para toda a adoração e para as profecias de Israel.

Não há ninguém santo como o SENHOR; não há outro além de ti; não há rocha como o nosso Deus. (1Sm 2.2).

[...] para que todos os povos da terra saibam que o SENHOR é Deus e que não há outro. (1Rs 8.60).

Eu sou o SENHOR, e não há outro; além de mim não há Deus. (Is 45.5 e 18c).

Vós sabereis que estou no meio de Israel e que eu sou o SENHOR, vosso Deus, e não há outro. (Jl 2.27).

Atos - nenhum outro Salvador Se Moisés exorta Israel a respeito do que eles devem "saber", com base naquilo que eles experimentaram do poder milagroso de Deus, Pedro, mais tarde, faz exatamente o mesmo, com quase as mesmas palavras. Acerca do milagre da cura, Lucas escreve:

Então, Pedro, cheio do Espírito Santo, lhes disse: Autoridades do povo e vós, líderes religiosos, se hoje somos questionados acerca do benefício feito a um doente, e pelo modo como foi curado, seja do conhecimento de todos vós e de todo o povo de Israel que, em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, aquele a quem crucificastes e a quem Deus ressuscitou dentre os mortos, sim, por meio desse nome, este homem está aqui com boa saúde diante de vós. (At 4.8-10; grifo do autor).

7. Para discussões extras sobre o fato de "os deuses" do Antigo Testamento serem considerados alguma coisa ou nada, e em quais sentidos, veja uma análise mais completa em The mission of God, p. 75-104, 136-190.

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Pessoas que conhecem o único Deus vivo e salvador * 189

A partir disso, ele continua deduzindo sua grande conclusão evangelística:

E não há salvação em nenhum outro, pois debaixo do céu não há outro nome, entre os homens pelo qual devamos ser salvos. (At 4.12; grifo do autor).

Neste texto [Sa mo 96] cnegamos à equação fundamen-

tal da missão, a força motriz por detrás de todos os nossos

esforços para levar as coas-novas do único e verdadeiro

Senhor aos nossos amigos e ao nosso próximo: Se há

um Senhor a quem todas as pessoas pertencem e devem

ficelidade, o povo desse Senhor ceve promover essa ver-

dade em todos os lugares. Monoteísmo e missão estão

intimamente relacionados. A existência de um Deus único

torna a nossa missão a muitos totalmente essencial.),

John Dicksonb

Esse é um versículo famoso e com razão. Mas o que o torna tão espantoso é que Pedro estava falando de Jesus. Porque está claro que se "o nome" que ele tinha em mente fosse o nome de YHWH, Atos 4.12 poderia facilmente ser um versículo do Antigo Testamento. Apenas leia o versículo novamente, sem pensar na história na qual ele é colocado. Você não acha que poderia estar facilmente lendo Isaías? Na verdade, isso é quase exatamente o que Isaías disse sobre YHWH (ou melhor, o que YHWH diz sobre si mesmo por intermédio de Isaías):

Anunciai e apresentai as razões: Tomai conselho todos juntos. Quem mostrou isso desde a antiguidade? Quem o anunciou há muito tempo? Por acaso não fui eu, o Senhor? Não há outro Deus senão eu; Deus justo e Salvador, não há outro além de mim. Olhai para mim e sereis salvos, vós, todos os confins da terra; porque eu sou Deus, e não há outro. (Is 45.21, 22).

Cada um dos juízes de Pedro no Sinédrio teria concordado com a declaração de Pedro se isto fosse o que ele estava querendo dizer: "E não há salvação em nenhum outro, pois debaixo do céu não há outro nome entre os homens pelo

8. Dickson, Best kept secret, p. 31.

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1 90 a A missão do povo de Deus

qual devamos ser salvos, a não ser o nome de YHWH, o Deus de Israel." "Absolutamente. Não há dúvidas sobre isso. Nós todos conhecemos as Escri-

turas. Pregue-a, pescador:' Mas, é óbvio que o choque e a ofensa da afirmação de Pedro é que ele não

estava falando de YHWH. Ou estava? Ele estava falando de Jesus de Nazaré. Mas Pedro também conhecia as Escrituras, e ele não poderia ter usado uma lin-guagem como essa, a de Atos 4.12, sem saber exatamente o que estava fazendo. Ele estava tomando as verdades que ele e todos naquele salão criam a respeito de YHWH, e estava aplicando-as com tranquilidade a Jesus - Jesus agora ocupa o lugar de único salvador de todos. "Jesus" é agora o nome que carrega o mesmo poder único, divino e salvador, assim como o nome do "Senhor dos Exércitos':

Pedro já havia feito afirmações semelhantes a essa. Em sua mensagem no dia de Pentecostes, ele afirmou: "[...] de que esse mesmo Jesus, a quem vós crucifi-castes, Deus o fez Senhor e Cristo" (At 2.36). Paulo, mais tarde, tomou textos do Antigo Testamento sobre YHWH e os aplicou a Jesus. Em 1Coríntios 8.4-6, ele eleva a Jesus Cristo utilizando o texto mais monoteísta do Antigo Testamento, o Shemá de Deuteronômio 6.4. Em Filipenses 2.9-11, ele cita provavelmente um hino cristão primitivo, no qual as palavras originalmente ditas por YHWH acerca de si mesmo (em Is 45.23) foram cantadas sobre Jesus, como aquele a quem "todo joelho se dobrará e toda língua confessará" que ele é o Senhor, para a glória de Deus Pai.

ABSOLUTA LEALDADE Assim, portanto, colocando nossos dois textos principais juntos, descobrimos que o Antigo Testamento afirma a singularidade da experiência histórica de Israel como a base para que Israel venha a conhecer quem é o Deus vivo, e conhecer a YHWH como o Deus único e universal que ele é. Do mesmo modo, utilizando o mesmo tipo de linguagem, o Novo Testamento afirma que Jesus de Nazaré é aquele que incorporou tanto a singularidade de Israel (a quem ele encarnou como o Messias) quanto a unicidade de YHWH (a quem ele encarnou como Senhor). Para conhecer e tornar isso conhecido, é que fomos chamados.

Esse é o conhecimento ao qual somos chamados para ser leais - apegando-nos a ele e tornando-o conhecido aos outros, sem comprometer sua mensagem. Nossa missão é um reflexo inevitável da verdade do monoteísmo bíblico - a unicidade de YHWH no Antigo Testamento e a unicidade de Jesus no Novo Testamento (estamos falando, é claro, de uma mesma realidade divina).

Há, portanto, uma declaração intransigente no cerne da proclamação e do testemunho bíblicos. Mas não é uma declaração sobre os cristãos ou sobre o cristianismo como uma religião. Quando saímos pelo mundo afirmando que Jesus é Senhor, Cristo e Salvador, essa não é uma declaração arrogante sobre

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Pessoas que conhecem o único Deus vivo e salvador • 191

nós mesmos ou sobre a religião maravilhosa que temos. Ela representa apenas a nossa aceitação do testemunho tanto do Antigo Testamento quanto do Novo sobre o único e verdadeiro Deus vivo, e sobre como, onde e por meio de quem esse único Deus agiu para trazer salvação para nós e para o mundo todo. Esse testemunho, em ambos os testamentos, é fundamentado em acontecimentos históricos e em uma pessoa histórica.

440 monoteísmo permanece como a case essencial para

a missão. A suprema razão por que Deus "deseja que to-

cos os nomens sejam sa vos e cheguem ao conhecimento

da verdade" é que "há um só Deus e um só mediacor

entre Deus e os iomens: o homem Cristo Jesus, o qual se

entregou a si mesmo em resgate por todos" (1Tm 2.4-6;

NVI). A lógica dessa passagem repousa sogre a relação

entre "todos os nomens" e "um só Deus". Nossa justificati-

va para custar a fide idade de "tocos os homens" é que

existe "um só Deus" e um só "mediador" entre ele e os

homens. Sem a unicace de Deus e a singularidade de

Cristo, não poceria haver missão cristã")

John Stor

Para aqueles que chegaram a compartilhar da experiência inegável da sal-vação e da revelação de Deus, com sua declaração intransigente e explícita a respeito de Deus e de Jesus, a consequência natural é uma completa lealdade ao Senhor. Isso é encontrado em ambos os textos que temos analisado. Essa é uma lealdade que estimula a missão do povo de Deus. Pois o conhecimento de que não há outro Deus e nenhum outro nome não deixa outra escolha senão torná-lo conhecido.

Atos - não podemos deixar de falar Não é de surpreender que as autoridades religiosas dissessem a Pedro e João para se calarem acerca de Jesus. Porque se aquilo que eles estavam dizendo era verdade, isso mudaria tudo no mundo delas. Isso significaria o fim de todo o

9. John Stott, Our guilty silente (London: Hodder e Stoughton, 1967), p. 23.

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192 • A missão do povo de Deus

sistema no qual o poder e a autoridade delas se apoiavam. Mas Pedro e João não trairiam nem negariam a verdade daquilo que haviam experimentado. E, por essa razão, deram sua resposta majestosa: "Julgai se é justo diante de Deus dar ouvidos a vós e não a Deus, pois nós não podemos deixar de falar das coisas que vimos e ouvimos" (At 4.19, 20).

Se Cristo foi crucificado por nós, se Cristo ressuscitou dentre os mortos, se Deus estava em Cristo, reconciliando consigo o mundo, então essas verdades transformadoras do mundo não poderiam ser silenciadas.

Ou Jesus é o único salvador e Senhor, ou não é. E se ele é, logo, junto com Pedro e João, somos chamados a defendê-lo com total lealdade e testemunho inabalável.

((Note a razão que Jesus dá para se envolver nessa mis-são. Essa razão fica cara pe a extremamente importante conjunção "portanto": "Foi-me dada toda a autoridade nos céus e na 'erra. Portanto, vão e façam discípulos..." (Mt 28.18, 19; NVI). A referência a "nos céus e na terra" obviamente lembra Gênesis 1 .1 e se refere a cada parte da criação. O único Deus verdadeiro ceu uma autoridade universal ao único Senhor e, por essa razão, temos que fa-zer discípulos em todo o mundo. Com o risco de soar como um CD arraniaco, deixe-me repetir a equação da missão: se há um Senhor a quem todas as pessoas pertencem e de-vem fidelidade, o povo desse Senhor deve promover essa verdade em todos os lugares.

Devemos promover a glória de Deus até os confins da terra, não devido ó necessidade de algum ser humano, mas por causa do mérito exclusivo de Deus/Cristo, como o Senhor do céu e da terra. Promover o evangelho para o mundo é mais que uma missão de resgate (embora certamente seja isso também); é uma missão vercadeira. E a nossa justificativa para que todos reconheçam que pertencem a um único Senhor.))

John Dickson

10. Dickson, Best kept secret, p. 34-35.

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Pessoas que conhecem o único Deus vivo e salvador 193

Deuteronômio — "Amarás o Senhor teu Deus" As grandes verdades de Deuteronômio 4, as quais Israel deveria "conhecer e levar a sério", são combinadas na afirmação conclusiva de Deuteronômio 6.4, 5 — o Shemá:

Ouve, ó Israel: O SENHOR, nosso Deus, é o único SENHOR. Amarás o SENHOR, teu Deus, de todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças.

Esse amor é um compromisso total do intelecto, da vontade, das emoções e das energias.

Um só Senhor, um só amor, uma só lealdade — é o desafio de Deuteronômio. Um só Senhor, um só nome, um só salvador — é o desafio de Atos.

RESUMO O evangelho bíblico transmite-nos a história das experiências inegáveis, de acontecimentos únicos, culminando na vida, morte e ressurreição de Jesus de Nazaré. Esse evangelho prossegue fazendo a declaração intransigente de que nesses acontecimentos, o Deus vivo agiu para salvar a humanidade e redimir toda a criação, e que não há outro Deus nem outra fonte de salvação. Isso, por-tanto, exige uma total lealdade de coração, mente e vida daqueles que conhecem essas coisas.

O que mais é a missão de Deus senão dar testemunho dessas realidades cós-micas? É aí que chegaremos ao próximo capítulo.

.... QUESTÕES RELEVANTES

1. Total lealdade. Quais são as coisas no seu contexto cultural que ameaçam sua lealdade ao único e verdadeiro Deus vivo e à singularidade de Jesus Cristo? Que você reconhece agora como formas sutis de sincretismo?

2. Este capítulo exige que jamais renunciemos às reivindicações de Cristo, mesmo que estejamos sob ameaça. Quais são as pressões — culturais, seculares ou religiosas — que poderiam tentá-lo a renunciá-las? De que modo os textos estudados neste capítulo podem ajudá-lo a resistir?

3. Como você liga o desafio deste capítulo — o de sermos leais à singularida-de de Cristo em face de outras religiões — com o chamado dos capítulos iniciais para sermos um povo de bênção, amor e compaixão para todas as pessoas, incluindo as pessoas de outros credos? Nos contextos de plu-ralismo religioso, como podemos simultaneamente manter o amor pelas pessoas junto com a lealdade à verdade?

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CAPÍTULO 10

PESSOAS QUE DÃO TESTEMUNHO DO DEUS VIVO

inalmente!" Você deve estar pensando. "Por que tivemos que esperar tan-to antes de chegar a um capítulo que aborda a principal tarefa da missão — pregar o evangelho? Com certeza, a verdadeira missão do povo de Deus

é sair, disseminar a Palavra, testemunhar, evangelizar, falar de Jesus para pessoas e apresentar o que é preciso fazer para ser salvo."

Nossa missão certamente inclui isso, e este capítulo mostrará a posição importante que esse testemunho verbal tem na Bíblia. Mas nem mesmo a pró-pria Grande Comissão se concentra exclusiva ou principalmente na tarefa da proclamação. "Ide, fazei discípulos de todas as nações", disse Jesus, explicando de imediato o que esse discipulado incluía: "batizando-os [...]; ensinando-lhes a obedecer a todas as coisas que vos ordenei [...]" (Mt 28.19, 20; grifo do autor).

É preciso discípulos para fazer discípulos, e Jesus passou três anos ensinando seus discípulos o que significava ser um discípulo. Isso envolveu lições práticas e objetivas sobre a vida, atitudes, comportamento, confiança, perdão, amor, gene-rosidade, obediência a Jesus e ações contraculturais em relação aos outros. Isso era o que significava viver no reino de Deus aqui. Em suma, você tinha que viver em sujeição ao reino de Deus se quisesse pregar sobre o reino de Deus.

O mesmo se percebe na estratégia de Paulo de plantar e alimentar as igrejas. A paixão de Paulo era pregar o evangelho (veremos isso em detalhes no capítulo 11), mas em suas cartas às igrejas que fundou, há relativamente pouca coisa sobre a tarefa delas de pregar o evangelho às pessoas de fora, em missão evangelística. Isso não sugere que Paulo não queria que eles fizessem isso; está claro que Paulo es-perava que suas igrejas fossem centros de testemunho evangelístico. Antes, Paulo também sabia que a mensagem do evangelho precisava ser encarnada em pessoas cujas vidas foram radicalmente transformadas por ele. Portanto, todo o ensino de Paulo sobre como os cristãos devem viver não era apenas "uma restrição ética no final", mas uma parte essencial da obra de transformação do próprio evangelho. O testemunho do evangelho tinha de fluir da transformação feita pelo evangelho.

Voltando à organização deste livro, no entanto, venho tentando seguir a própria sequência da Bíblia para responder às perguntas: Como cristãos, por que estamos aqui? Qual é a missão do povo de Deus? À medida que investigamos isso até agora, ao longo da história da própria Bíblia, temos encontrado uma vasta lista de respostas:

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Pessoas que dão testemunho do Deus vivo 195

• Estamos aqui, como seres humanos, para cuidar da criação de Deus. • Fomos escolhidos em Abraão para ser um povo por meio do qual a bên-

ção de Deus alcança todas as nações. • Somos chamados para andar nos caminhos de Deus, com justiça e reti-

dão, em um mundo corrupto. • Devemos viver a dinâmica de nossa redenção em nosso tratamento com-

passivo em relação aos outros. • Devemos representar Deus diante do mundo e atrair o mundo para

Deus. • Devemos ser pessoas cujas vidas demonstram o caráter de Deus e atrair

outros para a fé nele. • Devemos, acima de tudo, conhecer o Deus vivo e ser intransigentemente

leais ao Senhor Jesus Cristo em nossa adoração e testemunho.

Ah, e finalmente, devemos testemunhar! É fato. Pois, conforme destacamos no capítulo anterior, é necessário que aqueles que conhecem a Deus o tornem conhecido. Isso requer um equilíbrio entre palavras e obras. Há coisas a ser ditas; há histórias a ser contadas; há afirmações e declarações da verdade, advertências e desafios, proclamações e apelos.

E assim chegamos a este capítulo e ao próximo, para considerar essa dimen-são verbal da missão do povo de Deus. E faremos isso, levando em conta os dois termos principais utilizados pela Bíblia para a tal missão centralizada na palavra como: dar testemunho (cap. 10) e anunciar as boas-novas (cap. 11). Iniciaremos nosso estudo com um exame cuidadoso dos textos do Antigo Testamento que possuem seus principais ecos no Novo Testamento.

"Não somos todos chamados para ser evangelistas, mas todos somos cha-mados para ser testemunhas." Quando era ainda um jovem cristão, ouvi algo semelhante a isso muitas vezes. A questão é que, alguns cristãos são dotados especialmente para o ministério evangelístico, mas não todos (conforme Paulo afirma em Ef 4.11 e, por implicação, 1Co 12.29, 30). No entanto, mesmo aque-les de nós que não são chamados para ser evangelistas, são chamados para ser testemunhas fiéis do Senhor Jesus Cristo e para estar dispostos a falar por ele, quando as oportunidades surgirem.

As instruções de Jesus aos seus discípulos no monte da ascensão oferecem uma confirmação inicial para essa interpretação: "[...] e sereis minhas testemunhas, tanto em Jerusalém como em toda a Judeia e Samaria, e até os confins da terra" (At 1.8). Conforme o seu versículo correspondente em Lucas 24.48, este provavelmente esteja se referindo primeiramente à posição especial que os discípulos/apóstolos originais tinham como testemunhas oculares da vida, morte e ressurreição de Jesus.'

1. É assim que esse termo é usado na primeira parte do livro de Atos. Veja Atos 1.22; 2.32; 3.15; 4.33; 5.32; 10.39-41; 13.31.

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196 A missão do povo de Deus

Entretanto, fui ensinado (creio que corretamente) que embora o testemunho apostólico tivesse uma função exclusiva na autenticação do cristianismo do Novo Testamento, testemunhar de Cristo era algo que ia além dos apóstolos. To-das as gerações de cristãos seguintes foram recrutadas para a tarefa contínua de dar testemunho do mesmo Senhor Jesus Cristo, em quem eles haviam chegado a crer por intermédio do testemunho apostólico. Poderíamos ter citado 2Timóteo 1.8 para apoiar isso, e é claro (como jovens bem ensinados), sabíamos que a palavra para "mártires" em Apocalipse é a mesma usada para "testemunhas" (isso poderia soar um tanto severo).

O que eu não aprendi nos dias da juventude foi a ligação (creio que isso foi intencional) entre as palavras de Jesus aos seus discípulos em ambas as ocasiões, em Lucas 24 e Atos 1, e as palavras de YHWH a Israel, no livro de Isaías (Is 43.10, 12; 44.8). Mas fazer uma teologia bíblica para a vida nos capacita a perce-ber essa ligação imediatamente e a extrair suas implicações para a nossa missão de testemunhar. Afinal, que mais Jesus estava fazendo, de acordo com Lucas (Lc 24.27, 45-47), senão uma teologia bíblica para a vida — a vida contínua de seus discípulos em todas as gerações por vir?

Voltemos nossas mentes para a época desde a ressurreição do Messias até o mundo do livro de Isaías e estudemos um texto-chave no qual o conceito de povo de Deus como testemunhas dele é encontrado, a saber, Isaías 43.8-13:

Traga o povo que tem olhos, mas é cego, que tem ouvidos, mas é surdo. Todas as nações se reúnem, e os povos se ajuntam. Qual deles predisse isto e anunciou as coisas passadas? Que eles façam entrar suas teste-munhas, para provarem que estavam certos, para que outros ouçam e digam: "É verdade". "Vocês são minhas testemunhas", declara o SENHOR, "e meu servo, a quem escolhi, para que vocês saibam e creiam em mim e entendam que eu sou Deus. Antes de mim nenhum deus se formou, nem haverá algum depois de mim. Eu, eu mesmo, sou o SENHOR, e além de mim não há salvador algum. Eu revelei, salvei e anunciei; eu, e não um deus estrangeiro entre vocês. Vocês são testemunhas de que eu sou Deus", declara o SENHOR. "Desde os dias mais antigos eu o sou. Não há quem possa livrar alguém de minha mão. Agindo eu, quem o pode desfazer?" (Is 43.8-13; NVI, grifo do autor).

Devemos colocar essas palavras em seu contexto histórico.

UM DUPLO PROBLEMA PARA DEUS A história do Israel do Antigo Testamento havia chegado ao seu ponto mais degradante — o exílio na Babilônia. Após séculos de sucessivas gerações de rebe-lião contra YHWH, deslealdade para com a aliança entre Deus e Israel, desobe-

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Pessoas que dão testemunho do Deus vivo 197

diência às leis de Deus e desrespeito para com as advertências de profeta após profeta; a paciência de Deus havia chegado ao fim. No trauma de 587 a.C., os babilônios capturaram e destruíram Jerusalém, queimaram o templo de YHWH e levaram a maioria da população israelita para o exílio na Babilônia.

Duas gerações se passaram. Parecia que toda a esperança havia ido embora. Mas essas palavras na porção central de Isaías (principalmente nos capítulos 40-55) se dirigem aos exilados com uma mensagem de graça maravilhosa. YHWH está a caminho novamente. O período na Babilônia está quase acaban-do. Haverá um novo êxodo, já que mais uma vez Deus livra seu povo da escra-vidão, e a missão de Deus de levar bênção para o mundo todo, por intermédio desses descendentes de Abraão, avança para o seu grandioso ápice.

No entanto, existem dois grandes problemas que se interpõem no caminho do grandioso plano Deus.

A ignorância das nações Ao longo de todos esses capítulos, YHWH se engaja em um debate contínuo com as nações e seus deuses. De acordo com os pressupostos culturais do dia, os deuses das nações grandes e poderosas eram maiores e mais poderosos do que os deuses das nações menores que eles derrotavam. A suposição natural, por-tanto, era que se a Babilônia havia derrotado e capturado Israel, então YHWH, o Deus de Israel, estava igualmente derrotado e extinto.

De forma alguma, diz o profeta. YHWH é o único Deus vivo e soberano, e ele tem estado no controle tanto dos acontecimentos que levaram ao exílio quanto no controle dos que o levariam ao fim. Os deuses dos povos são nulos, com ilusões de poder e grandeza, criadas por seus adoradores, mas, no final, impotentes para fazer qualquer bem ou mal, muito menos para agir em salvação soberana, conforme YHWH estava para fazer (Is 41.21-24).

Agora sabemos que o Deus de Abraão trará bênção a todas as nações. Esses capítulos se elevam para grandes alturas na antecipação que fazem de toda a humanidade (lit. "toda carne") vindo para ver a glória de Deus (Is 40.5), para conhecer a Deus (45.6) e para ser salva por Deus (45.22). Mas a devoção cega das nações aos seus falsos deuses se interpõe no caminho desse acontecimento (44.9-20). Há uma ignorância (44.18) que tem que ser transposta. Os deuses precisam ser radicalmente desmascarados e destronados, e aqueles cujo poder opressivo repousa sobre eles precisam ser abatidos (Is 46-47). As nações preci-sam ver e ouvir a verdade. Mas como poderão fazê-lo?

É aí que entra Israel, pois, desde o princípio, a intenção de Deus era que ele se tornasse conhecido entre as nações por intermédio de Israel, para a bênção e salvação delas. Aliás, foi por essa razão que ele havia escolhido e chamado Israel para ser seu servo (Is 41.8-10), um servo cuja missão incluiria ser "luz para as nações" — ou seja, para os gentios (Is 42.6; 49.6).

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198 A missão do povo de Deus

Mas essa solução, que era nada menos do que a missão de Deus a longo prazo, desde sua promessa a Abraão, parecia ter ido por água abaixo. E esse foi o segundo grande problema de Deus: o próprio Israel não parecia ser melhor do que as nações.

A cegueira de Israel Isaías 42, o prelúdio imediato às palavras de nosso texto nesta seção, apresenta um terrível paradoxo. Observe atentamente o nítido contraste entre a seção ini-cial (vv. 1-9) e a seção final (vv. 18-25). O Servo de YHWH, que deve encarnar a identidade e a missão de Israel (Is 41.8), é descrito nos versículos 42.1-9 como aquele que tem uma missão maravilhosa de justiça, compaixão, iluminação e libertação. Mas o verdadeiro servo de YHWH naquela época, a saber, o Israel histórico no exílio, é cego e surdo!

Isaías 42.18-25 retrata a terrível realidade: Israel estava no exílio, "espoliado e saqueado", por causa do julgamento de Deus sobre eles, devido à sua desobe-diência. Deus lhes havia dado muitas coisas para ver (todos os grandiosos atos passados de salvação), mas eles foram deliberadamente cegos. Deus lhes havia dado muitas coisas para ouvir (todo o seu grandioso ensino revelado e a lei da aliança), mas eles foram deliberadamente surdos. Aqui há um forte eco da visão do chamado de Isaías, do capítulo 6.9-13. Toda a pregação dos profetas pré-exíli-cos havia sido ignorada, e até mesmo no exílio sua condição parecia inalterada.

Portanto, qualquer esperança para as nações não dependeria da capacidade natural de Israel de responder e obedecer, mas de um milagre da graça de Deus e de seu poder transformador de cura. Mas tamanho milagre, de fato, era o que fora previsto quando o próprio Deus voltasse e fizesse um novo ato grandioso com poder salvador:

[...] o vosso Deus virá com vingança; sim, ele virá com divina recompensa e vos salvará. Então os olhos dos cegos serão abertos, e os ouvidos dos surdos se desobstruirão. (Is 35.4, 5).

Isso parece ser exatamente o que acontece a seguir. Deus convoca os cegos e surdos para um tribunal (Is 43.8) — como testemunhas!

UM DUPLO PAPEL PARA ISRAEL Pois, na verdade, é uma cena de tribunal a que é vislumbrada em Isaías 43.8-13 (como várias vezes nesses capítulos). Ela é uma metáfora pela qual o profeta retrata a realidade de que há um conflito entre YHWH e os deuses das nações.

Uma grande assembleia de nações é retratada no versículo 9. Essas nações tinham muitos deuses. Mas como o tribunal poderia decidir qual deus era o "ver-

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Pessoas que dão testemunho do Deus vivo 199

dadeiro" ou o "de direito"? YHWH escolhe sua defesa, a mesma do caso anterior, no tribunal de Isaías 41.21-24, ou seja, a capacidade de prever o futuro, interpretar o passado e explicar o presente com detalhes soberanos e através dos séculos.

Assim, os outros deuses são convidados a trazer suas testemunhas, se tive-rem alguma, para dar provas de seu poder; a fazer as mesmas coisas e, depois, "provarem que estavam certos" (43.9; NVI, lit. "justificar-se"). As testemunhas dos deuses das nações são as próprias nações, mas elas não têm nada a dizer, porque é óbvio que os deuses que elas defenderão são "nada" (Is 41.24).

Portanto, quem falará por YHWH nesse grande tribunal internacional de nações e supostos deuses? Quem testemunhará de sua veracidade e poder? O choque da palavra seguinte é impressionante. YHWH se volta para o povo a quem ele acaba de descrever como cego e surdo e diz: "Vós"! [essa palavra é enfa-ticamente colocada em primeiro lugar], "sois as minhas testemunhas" (43.10).

Minhas testemunhas Ser uma testemunha era um assunto sério em Israel, no Antigo Testamento. Muito é dito sobre essa responsabilidade. Na verdade, era considerado um pe-cado deixar de falar e testemunhar sobre qualquer fato que você tivesse visto ou ouvido, se isso fosse uma questão diante de um tribunal (Lv 5.1). Os deveres das testemunhas foram estabelecidos solenemente (Êx 23.1-3). As testemunhas de-vem assumir a responsabilidade primária na execução do veredicto do tribunal (Dt 17.7), e o perjúrio pode lhes custar a vida (Dt 19.16-21) — duas leis que aca-bariam com as falsas acusações frívolas. Dar um falso testemunho era uma das transgressões mais graves da aliança — e era proibido no nono mandamento (Êx 20.16). A testemunha falsa é uma das coisas que Deus mais odeia (Pv 6.19).

Mesmo fora dos casos legais dos tribunais, as testemunhas eram de máxima importância para estabelecer a verdade de declarações ou reivindicações, de modo que tais reivindicações jamais pudessem ser levadas a litígio (por exem-plo, Rt 4.9-11; Jr 32.10-12). Anteriormente, em Isaías, o próprio profeta havia utilizado testemunhas que pudessem mais tarde verificar a verdade acerca de quando o nome significativo de seu filho havia sido dado profeticamente, o que serviria de testemunho para sua mensagem, no período em que ela se cumprisse posteriormente (Is 8.1, 2, 16-18).

Desse modo, Deus está convocando Israel como nação, no tribunal inter-nacional das nações e deuses, para exercer uma responsabilidade que estava profunda e reverentemente arraigada em sua própria cultura social — a tarefa de dar testemunho.

Não há apenas um choque nesse momento, mas uma ironia. Porque um dos principais motivos de Israel ter sido exilado sob o julgamento de Deus era exa-tamente seu fracasso social coletivo em manter os padrões de justiça no tribunal que a própria lei da aliança exigia. Em vez disso, seu sistema judiciário se tornou

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200 A missão do povo de Deus

um parque de diversões para testemunhas mentirosas - a ponto de Amós afir-mar furiosamente: "Os israelitas odeiam o que os repreende na porta e odeiam o que fala a verdade" (Am 5.10).

E agora YHWH chama os descendentes desses mentirosos para ser suas tes-temunhas? O milagre da misericórdia só é equiparado ao risco que Deus corre por confiar em tais pessoas. Mas não há plano B, conforme observamos por outra coisa que se diz sobre Israel em Isaías 43.10.

Meu servo "[...] e o meu servo a quem escolhi." A frase que está no meio de Isaías 43.10 ecoa deliberadamente o que Deus havia dito sobre Israel no capítulo 41.8-10. Todo o conteúdo desses versículos é reafirmado nesse texto. Israel, como o servo de Deus, havia sido escolhido em Abraão, e Deus não estava voltando atrás em todas as promessas e compromissos desse passado. Por-tanto, a repetição da palavra-chave "servo" enfatiza que, apesar de todas as realidades negativas descritas no capítulo 42.18-25, a comissão original de Deus permanece.

Israel é o servo de Deus, para o propósito de Deus, para o futuro de Deus, para a glória de Deus. A missão de Deus continua. Desse modo, a missão de Israel também tem que continuar.

A missão do povo de Deus não é uma questão do quanto somos ótimos para fazer coisas para Deus, mas é uma questão do quanto Deus é paciente e persistente para fazer as coisas por intermédio de nós.

O paralelismo marcante em Isaías 43.10, no entanto, significa que ser servo de Deus e ser testemunha de Deus são coisas que agora estão integradas. Ou, em outras palavras, a razão de Deus ter escolhido e chamado os israelitas para ser seus servos era para que eles fossem suas testemunhas.

Testemunhar a verdade sobre YHWH como o único e verdadeiro Deus vivo está no cerne do papel e da missão do servo - sempre esteve e sempre estará.

Esse servo é o povo de Deus - Israel/Jacó, descendentes de Abraão. Logo, a missão do povo de Deus, de acordo com essa passagem, é ser testemunha do Deus vivo, em um mundo de reivindicações concorrentes e feitas por múltiplos deuses. Essa função de testemunha está no cerne da eleição de seu povo. Fomos escolhidos para ser servos que testemunham do Deus vivo.

No entanto, o tema de Isaías 43.10, servidão exercida por meio do testemu-nho, não apenas fornece o conteúdo do papel do servo, como também descreve a qualidade do testemunho. O testemunho de YHWH deve ser dado não por aqueles que exercem poder imperial e reivindicam apoio (em outras palavras, não como a Babilônia ou Ciro), mas pela natureza gentil e não coerciva do ser-vo, do modo contracultural descrito em Isaías 42.2, 3. Logo, aceitar o papel de servo de Deus envolve necessariamente dar testemunho dele. E a tarefa de dar

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Pessoas que dão testemunho do Deus vivo • 201

testemunho deve ser realizada com espírito de servidão — como servos de Deus, do povo de Deus e do mundo que espera por Deus.

Essa foi uma combinação que o apóstolo Paulo percebeu claramente e de-monstrou em sua missão e ministério. Na verdade, ele registra que essas foram exatamente as duas palavras que Jesus usou para resumir a missão que vinha pela frente: "Agora, levante-se, fique em pé. Eu lhe apareci para constituí-lo servo e testemunha, do que você viu a meu respeito e do que lhe mostrarei" (At 26.16; NIV, grifo do autor). A relevância dessas duas palavras para a nossa própria prática de missão precisa ser radical e penetrante, e isso aponta algo que precisamos discutir mais na Parte 3.

O DUPLO PROPÓSITO DE DAR TESTEMUNHO Israel é chamado para ser o servo de Deus a fim de dar seu testemunho em favor de Deus. Mas os paradoxos continuam. Pode-se pensar que o propósito de dar testemunho seria convencer as nações da verdade sobre YHWH como Deus. Isso é verdade, mas há um propósito anterior.

Restaurando a confiança em Deus As próprias testemunhas também precisam ser convencidas, e o ato de testemu-nhar gerará essa convicção nas testemunhas:

[...] para que vocês saibam e creiam em mim e entendam que eu sou Deus. (Is 43.10; NVI).

Os três verbos da sentença são importantes e têm muitos ecos no livro de Isaías. A queixa de Deus contra Israel era exatamente que eles haviam fracassado em reconhecer a ele, quer fosse nos dons da graça (Is 42.20, 21) quer fosse pela experiência de sua punição (42.23-25). Desde o início, o profeta, com alguma surpresa, tem relembrado Israel de coisas que eles já deveriam saber, mas que precisavam ser ditas novamente (40.21, 28). E, por todo o livro, o fracasso de Israel em confiar em Deus era a principal fonte de sofrimento para Deus e seu profeta (7.9; 30.1-5, 15-18; 31.1-3). Sua falta de entendimento sobre Deus fazia até mesmo os animais mais estúpidos parecerem sábios (1.3).

Esse fracasso, no entanto, foi exatamente o que o ministério de Isaías havia antecipado. Na enigmática visão do chamado de Isaías, que se seguiu em Isaías 6, Deus salientou que o povo estava em um estado tão avançado de rebelião que a presença de um profeta no meio deles serviria apenas para realçar sua recusa em reconhecer ou entender Deus (os mesmos verbos de Is 43.10 são usados em 6.9, 10). Esse estado continuaria ao longo do julgamento destruidor e terrível do exílio (6.11, 12).

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202 A missão do povo de Deus

Mas agora, Deus diz em Isaías 43.10, uma coisa nova está acontecendo. Há uma nova alvorada e uma convocação renovada para Israel. Eles são chamados novamente para a sua missão original de ser testemunhas de YHWH; nessa tarefa, eles mesmos serão restaurados para reconhecer o seu Deus, colocar a sua confiança nele e compreendê-lo. Deus os chama de volta à sua tarefa como uma forma de chamá-los de volta para si mesmo.

A ideia desse versículo é que o poder do testemunho não está apenas naquilo que ele produz no coração de quem o ouve, mas também no que ele faz pela fé daquele que testemunha. A tarefa de convencer os outros reforça as convicções da testemunha.

Estabelecendo a verdade sobre Deus O que, então, é a essência do testemunho que o povo de Deus deve dar diante das nações? Três verdades-chaves são incorporadas nas grandiosas declarações que YHWH faz em Isaías 43.10b-12. Certifique-se de que esses versículos este-jam abertos em sua frente à medida que você continuar a ler.

Que YHWH é o único Deus, transcendente e eterno „, [...] que eu sou Deus" (v. 10; NVI) — "Eu sou Deus" (v. 12; NVI). Essa é a gran- de afirmação do monoteísmo do Antigo Testamento: não apenas a concepção abstrata de que há somente uma divindade, mas de que só YHWH é Deus. Ele é eterno, porque antes dele não havia nenhum deus, nem haverá outro deus depois dele. A expressão: "Antes de mim nenhum deus se formou", é irônica, pois reconhece o fato de que na cultura em torno da Babilônia, os deuses eram, de fato, "formados", ou seja, construídos.

"[Isaías retrata] YHWH tem a intenção de que Jacá/lsrael

exerça a função de testemunnas para o munco. Isso, por amor ao mundo, a fim de que ele veia a verdade; por amor a YHWH, para que e e posso ser reconhecido como a única divindade; mas tam3éM por amor a jacá/lsrael, para que sejam convencicos de que eles mesmos foram esto ricos para festemunnor. Paradoxo mente, e es não estão conven-cidos de que podem testemunnar. E es são esto eidos para testemunhar a fim de serem convencidos disso.),

joHn

2. John Goldingay, The message of Isaiah 40-55: A literary-theolog cal commentary (Londres, Nova Iorque: T&T Clark, 2005), p. 201.

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Pessoas que dão testemunho do Deus vivo ç. 203

Obviamente, esse não foi o caso apenas dos ídolos e estátuas dos deuses, mas de sua própria origem como deuses. As mitologias antigas são ricas em histórias sobre as origens dos deuses, surgindo de uma forma ou de outra. Portanto, o desígnio de YHWH tem duplo sentido. Apenas ele não foi formado. "Formar" é um verbo que não pode ter YHWH como seu sujeito (assim como na narrativa da criação e dos salmos, repetidamente) e nunca pode tê-lo como seu objeto. E também, antes que todos os outros deuses fossem formados (já que são constru-ções humanas), YHWH existia - Deus antes de todos os deuses.

Que só YHWH tem o controle soberano da história A afirmação de Isaías 43.9 - de que só YHWH havia interpretado o passado e proclamado o futuro - é repetida no versículo 12, mas é acrescentada a ênfase de que nenhum deus estranho no meio deles havia dado tamanha revelação histórica a Israel. A sequência: "Eu revelei, salvei e anunciei" (NVI) reflete a grandiosa narrativa paradigmática da salvação de Israel, o êxodo. Naquela época, Deus revelou primeiramente o que pretendia fazer e o fez; depois disso, ele interpretou, explicou e ensinou seu povo baseado tanto em sua fidelidade para com sua promessa quanto no cumprimento real e salvador da mesma. Só o Deus que está realmente no controle dos acontecimentos, do início ao fim, poderia declarar esse domínio abrangente da história e de seu significado. A história é a história de Deus, porque ela é a história que ele está escrevendo. O autor controla a história.

Que somente YHWH é Salvador É claro que o poder salvador de YHWH já foi comprovado na história passada de Israel, mas ele poderia ser confiável em relação ao futuro, em vista da apa-rente derrota de 587 a.C. e do exílio? O futuro repousa unicamente no poder salvador de YHWH no passado. É por isso que a afirmação "e além de mim não há salvador algum" (v.11; NVI) vem imediatamente após a declaração "nem haverá algum [outro deus] depois de mim".

Em outras palavras, essa não é uma questão de esperança de que algum ou-tro Deus (ou fosse quem fosse) viria, depois de YHWH, para resgatar Israel da confusão em que seu pecado os havia colocado. Não, o Deus cuja justiça os levou ao exílio é o mesmo Deus (e único) que os livrará dele. Não há outro Deus salva-dor, porque não há outro Deus, e ponto final. Essa verdade que Israel precisava aprender se aplicava igualmente a todas as nações, a quem o profeta em breve as convida a se converter, abandonar os falsos deuses que não podem salvar e se voltar para o único Deus que pode salvá-las e as salvará (Is 45.20-22).

Essas, portanto, são as grandes verdades sobre YHWH, as quais Israel deve testemunhar. Na verdade, elas são as maiores verdades do universo. O que é mais importante do que a identidade, a soberania e o poder salvador do Deus vivo?

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204 A missão do povo de Deus

E ainda — o maior paradoxo de todos — este Deus confia essa imensa verdade cósmica à boca de testemunhas humanas, testemunhas cuja deslealdade ele ha-via tolerado por milhares de anos. Há vulnerabilidade e riscos tremendos nisso, não em relação ao ser de Deus ou a sua sobrevivência, mas em relação ao grande projeto de tornar essas verdades conhecidas para o mundo.

((Deus insiste no fato de que Israel testemunha a evidência

de que só ele é Deus. Qua era essa evidência? A promes-

sa de fazer de Agrego uma grande nação; a promessa

de libertar seus descencentes do Egito; a promessa de

dar-lhes a terra de Cancã; a promessa de garantir que a

dinastia de Davi permanecesse no trono de Jerusa ém e

assim por ciente. Que exigia o cumprimento cessas pro-

messas geralmente? Lidertação -- frequentemente diante

de chances impossíveis. No processo de demonstrar seu

caráter a seu povo, como javé, ele cemonstrou, vez após

vez, sua inc inação e sua capacicade para salvar. O que

Israel testemunhou e não poceria escapar de testemunhar

foi a compreensão de que lave" significa "Salvador'.

E que Javé era o único Deus; ele era o único salvador.

Na primeira parte de seu livro, Isaías navio demonstrado

que só se podia confiar em Deus, e que todos os outros

recursos, principalmente as nações, falhariam. Agora ele

está mostranco que quando nos recusamos a confiar e co-

hemos os resultares evidentes de nossa falsa segurança,

apenas Deus poce nos sa var.', John N. Oswalt'

Como as nações virão a conhecer o Deus vivo, revelador e salvador, aquele que é seu criador, soberano, juiz e salvador? Vós sois minhas testemunhas, diz Deus, a uma comunidade espiritualmente cega e surda, definhando no exílio.

3. John N. Oswalt, The book of Isaiah chapter 40-66 (New International Commentary on the Old Testament; Grand Rapids: Eardmans, 1998), p. 148 [Isaías: Comentário do Antigo Testamento, São Paulo: Cultura Cristã, 2001.1

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Pessoas que dão testemunho do Deus vivo 205

Afinal, só o poder transformador, vivificador e miraculoso do Espírito de Deus poderia dar a esse povo alguma esperança de futuro, isso sem falar da renovação do chamado para que fossem as testemunhas e os servos escolhidos por Deus. Mas é exatamente isso o que Deus prometeu (Is 42.1; 44.3). E quando o Espírito viesse, haveria nada menos do que uma ressurreição; uma ressurreição para um convicto conhecimento de Deus (Ez 37.1-14).

O DUPLO PAPEL DAS TESTEMUNHAS NO NOVO TESTAMENTO "Sereis minhas testemunhas" (At 1.8), disse o Jesus ressuscitado a um grupo de pessoas pouco promissor, com cujas falhas e fracassos ele conviveu por mais de três anos, tolerando-os de modo mais doloroso em sua morte. Aliás, uma das pessoas que Jesus havia escolhido como testemunha negara conhecê-lo! O restante delas fugira para se esconder. Apesar disso, elas foram escolhidas e chamadas por Cristo exatamente para esse propósito, para cumprirem o papel de Israel, de servo; para ser uma luz para as nações, a fim de que a salvação de Deus chegasse aos confins da terra. E essa era uma eleição para uma missão que Jesus não havia revogado, do mesmo modo como Deus não havia revogado a eleição de Israel por causa de seu fracasso. Ao contrário, assim como aconteceu no Antigo Testamento, Jesus a reafirmou com a dupla promessa do dom e do poder do Espírito de Deus para capacitá-los (Lc 24.49; At 1.8).

Pois que verdades mais grandiosas existem no universo que a identidade, a soberania e o poder salvador do Senhor Jesus Cristo?

Ali, no monte da ascensão, Jesus assumiu a posição de YHWH, com pa-lavras tiradas diretamente de Deuteronômio 4.39: "Toda autoridade me foi concedida no céu e na terra. Portanto, ide [...1" (Mt 28.18, 19). Jesus, em ou-tras palavras, falou:

Agora vocês sabem quem eu sou; vocês conhecem minha identidade como aquele que veio (conforme YHWH disse que ele viria) e realizou tudo o que somente YHWH poderia realizar. Vocês sabem que eu sou ele. E vocês são testemunhas dos acontecimentos que demonstram essas coisas: minha vida, morte e ressurreição.

Logo, como todas as nações a quem Deus prometeu abençoar des-de Abraão chegarão ao conhecimento salvífico dessas verdades a meu respeito? Vocês são minhas testemunhas. Estão no lugar de Israel, teste-munhando sobre YHWH, testemunhando daquele que encarna YHWH como soberano e salvador.

Desse modo, à medida que o Novo Testamento desenvolve o valioso tema do Antigo Testamento, o povo de Deus como as testemunhas de YHWH, ele o

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206 A missão do povo de Deus

faz de duas maneiras, ambas continuam sendo crucialmente importantes para a nossa própria missão como povo de Deus hoje.

As primeiras testemunhas oculares do Jesus histórico "Vós sois testemunhas dessas coisas", disse Jesus (Lc 24.48). Que coisas?'

Os acontecimentos que haviam acabado de ser descritos — a vinda do Messias, seu sofrimento, morte e ressurreição. Um dos principais privilégios e responsabilidades do apostolado era exatamente esta: ter conhecido Jesus de Nazaré em sua vida e ministério terrenos e ter sido testemunha de sua morte e ressurreição. Assim, quando os discípulos precisaram substituir Judas Iscariotes após a ressurreição, eles deixaram bem explícito que os candidatos para a sele-ção precisavam ter esta qualificação básica:

Assim, é necessário que dentre os homens que conviveram conosco todo o tempo em que o Senhor Jesus andou entre nós, começando des-de o batismo de João até o dia em que dentre nós ele foi elevado ao céu, um deles se torne conosco testemunha da sua ressurreição. (At 1.21, 22; grifo do autor).

No capítulo 9, vimos o quão vital era esse testemunho ocular pessoal nas pregações iniciais dos apóstolos. Eles se referem a ele repetidamente:

Matastes o Autor da vida, a quem Deus ressuscitou dentre os mortos, e somos testemunhas disso. (At 3.15).

[...I pois não podemos deixar de falar das coisas que vimos e ouvimos. (At 4.20).'

Pedro e João, que apresentaram suas credenciais como testemunhas oculares no início de sua vida de ministério apostólico, nunca perderam a admiração por esse privilégio. Pedro descreve a si mesmo não apenas como um amigo "presbítero" (o que fala daquilo que ele compartilhava com seus leitores), mas também como "testemunha dos sofrimentos de Cristo" (o que o distinguia dos outros, por ser apóstolo, sem afirmar isso como uma questão de posição; 1Pe

5.1; cf. também 2Pe 1.16-18). João enfatiza a natureza visual, audível e tangível de seu testemunho de Cristo:

4. Assim como Jesus perguntou inocentemente aos dois discípulos no caminho de Emaús, provavelmente uma das linhas da Bíblia mais ricamente irônicas ou mesmo uma das mais cômicas: Jesus, o principal foco de tudo o que havia acontecido em Jerusalém naquele fim de semana, finge que nem sequer sabe do que eles estào falando. "Que coisas?", afinal! (Lc 24.19; NVI). 5. Veja também: Atos: 1.22; 2.32; 4.33; 5.32; 10.39-41; 13.31.

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Pessoas que dão testemunho do Deus vivo 207

O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com nossos olhos, o que contemplamos e nossas mãos apalparam, a respeito do Verbo da vida (pois a vida foi manifestada, nós a vimos, damos testemunho dela e vos anunciamos a vida eterna que estava com o Pai e a nós foi manifestada). Sim, o que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que também tenhais comunhão conosco; e a nossa comunhão é com o Pai e com o Filho Jesus Cristo. (1Jo 1.1-3).

Bem, poderíamos pensar, isso era claramente importante para os primeiros missionários evangélicos de Jesus Cristo. Eles podiam se levantar e dizer: "Nós estávamos lá. Nós o conhecemos e o vimos morrer. Nós o vimos ser ressusci-tado por Deus. Somos testemunhas dessas coisas." Mas nós não podemos dizer isso. Então, que relevância essa questão tem para a missão do povo de Deus hoje em dia?

Isso é de vital importância, pois, onde é que todos esses testemunhos oculares sobre Jesus acabam? Na Bíblia, é claro! Nos documentos do Novo Testamento, que seguem suas origens e sua autenticidade até aquelas primeiras testemunhas oculares. E uma vez que todo o nosso testemunho do evangelho é fundamen-tado na Bíblia, é vital que sejamos capazes de confiar na fidedignidade de tais documentos.

De fato, podemos ter essa confiança. Lucas nos diz que ele fez sua pesquisa cuidadosamente e que verificou as fontes desses testemunhos oculares, precisa-mente para que possamos ter confiança na infalibilidade do que cremos:

Visto que muitos têm empreendido uma narração coordenada dos fatos que se realizaram entre nós, transmitidos pelos que desde o princípio fo-ram suas testemunhas oculares e ministros da palavra, pareceu adequado também a mim, excelentíssimo Teófilo, depois de investigar tudo cuida-dosamente desde o começo, escrever-te uma narrativa em ordem, para que tenhas certeza da verdade das coisas em que foste instruído. (Lc 1.1-4; grifo do autor).

O que era verdade para Lucas, sem dúvida, era verdade para os outros que compilaram o que nós agora temos em nossas mãos no Novo Testamento. Na verdade, Richard Bauckham argumentou, com uma pesquisa acadêmica colos-sal e muita convicção, que o impacto das testemunhas oculares contemporâneas sobre os documentos do Novo Testamento é muito maior do que muitos ima-ginam. Ele certamente destrói a caricatura popular de que todas as histórias sobre a vida e as palavras de Jesus foram elaboradas por anos de ideias orais que fluíam livremente, antes de chegar a ser registradas.'

6. Richard Bauckham, Jesus and the eyewitnesses: The gospel as eyewitnesses testimony (Grand Rapids: Eardmans, 2008) [Jesus e as testemunhas oculares: Os evangelhos como testemunhas de testemunhas oculares, Editora Paulus.]

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208 A missão do povo de Deus

Todo o nosso testemunho do Senhor Jesus Cristo e do poder salvador do evangelho dependem da fidedignidade da Bíblia. As Escrituras apontam para ele. De fato, o próprio Jesus usou a linguagem do testemunho para falar das Escrituras que agora chamamos de Antigo Testamento: "Vós examinais as Escrituras, pois julgais ter nelas a vida eterna; e são elas que dão testemunho de mim" (Jo 5.39; A21). O Antigo Testamento deu seu testemunho daquele que viria para cumprir a promessa de Deus. O Novo Testamento dá testemunho dele por intermédio daqueles que foram, conforme disse Pedro, "as testemunhas predeterminadas por Deus, a nós, que comemos e bebemos com ele, depois que ressuscitou dentre os mortos" (At 10.41).

A missão do povo de Deus, portanto, é uma missão de testemunho - dar testemunho do Senhor Jesus Cristo. Mas todo o nosso testemunho é autentica-do pelo testemunho daqueles que foram testemunhas oculares escolhidas pelo próprio Deus. E o testemunho deles está em nossas mãos - a Palavra de Deus por intermédio das palavras deles - a nossa Bíblia.

O testemunho contínuo do evangelho de Cristo Desse modo, as primeiras testemunhas eram aquelas que haviam visto e ouvido o Jesus terreno. Entretanto, como Jesus disse a Tomé: "Bem-aventurados os que não viram e creram" (Jo 20.29). Jesus orou não apenas pelos seus primeiros dis-cípulos, mas por "aqueles que virão a crer em mim pela palavra deles" (17.20). Portanto, Jesus claramente anteviu que o trabalho de testemunhar de sua comu-nidade continuaria além da primeira geração de testemunhas oculares, com o testemunho constante daqueles que viriam à fé. A fé vem pelo ouvir o testemu-nho daqueles que viram e ouviram; mas a fé exige também ser transmitida por intermédio do testemunho contínuo.

Jesus havia advertido seus discípulos que eles enfrentariam perseguição e prisão por parte das autoridades religiosas e políticas, mas que isso lhes propor-cionaria mais oportunidades para testemunhar sobre Jesus na esfera pública. Ou melhor, essa seria uma das maneiras pelas quais o Espírito Santo daria testemu-nho de Jesus por intermédio das palavras de seus seguidores em tribulações. Na verdade, seria um meio pelo qual o evangelho se espalharia por todas as nações (Mc 13.9-11; cf. também com Mt 10.17-20; Lc 21.12-15). Assim, Jesus enxergou claramente isto como um testemunho contínuo realizado pela comunidade dos crentes, que iria extrapolar o tempo em que viveram os primeiros discípulos, aqueles que viram Jesus fisicamente.

O ministério do apóstolo Paulo se encontra, de certo modo, nas duas catego-rias. Ele sabia muito bem que não havia estado entre os primeiros discípulos de Jesus durante seu ministério terreno, nem havia estado presente na crucificação ou no dia da ressurreição. Portanto, sua inclusão no grupo original de apóstolos deveria ser confirmada pelo encontro pessoal, direto e impressionante com o

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Pessoas que dão testemunho do Deus vivo • 209

Cristo ressuscitado, no caminho de Damasco. Ele viu esse acontecimento como a autenticação de seu apostolado junto daqueles que estavam lá quando tudo havia acontecido.

Mas Paulo também estava ciente de seu dever de testemunhar de Jesus. É assim que ele descreve a comissão que recebeu em sua conversão (At 22.14, 15; 26.16) e como ele resumiu a ambição de sua vida: "Todavia, não me importo, nem considero a minha vida de valor algum para mim mesmo, se tão somente puder terminar a corrida e completar o ministério que o Senhor Jesus me con-fiou, de testemunhar' do evangelho da graça de Deus" (At 20.24; NVI).

João tem predileção pelo conceito de testemunho. Seu evangelho é todo escrito como o testemunho de alguém que esteve presente à cruz e ao túmulo vazio, e que dá testemunho a fim de que outros possam vir a crer (Jo 19.35; 20.8; 21.24). Ele enfatiza o papel de João Batista, dando testemunho da identidade de Jesus como o Messias (Jo 1.7, 8, 15, 19, 32, 34). E retrata Jesus envolvido em um longo debate com os líderes judeus acerca da quantidade de testemunhas de sua identidade (João, o Pai, as obras, as Escrituras e Jesus mesmo). João também fornece duas passagens "testemunhas", que nos dão um modelo e um encoraja-mento: a da mulher samaritana e a do Espírito Santo.

Geralmente se diz que a mulher samaritana junto ao poço, em João 4, foi a primeira evangelista. Isso é ainda mais surpreendente pelo fato de que ela pare-cia ser triplamente desqualificada para esse papel: era estrangeira e mulher (cujo depoimento não era considerado válido nos tribunais judaicos naquela época), além dos sérios questionamentos morais e sociais pairando sobre sua situação familiar.8 Mas ela fez o que qualquer testemunha deveria fazer, nada mais, nada menos. Ela foi e falou para o povo de sua cidade sobre Jesus. E o poder de seu testemunho tornou-se uma força evangelística automultiplicadora. Parece claro que João pretendia que esse fosse um modelo para todos os que vêm à fé:

E muitos samaritanos daquela cidade creram nele, por causa da palavra da mulher, que testemunhava: Ele me disse tudo quanto tenho feito. En-tão os samaritanos foram até ele e pediram-lhe que ficasse; e ele ficou ali dois dias. E muitos outros creram por causa da sua palavra. E diziam à mulher: Já não é pela tua palavra que cremos; pois agora nós mesmos te-rnos ouvido e sabemos que este é verdadeiramente o Salvador do mundo. (Jo 4.39-42; grifo do autor).

7. "Testemunhar" é uma tradução alternativa para "dar testemunho". No grego, palavras similares são utiliza-das com pouca diferença de sentido (martyreo e diamartyromai). 8. Ela é geralmente acusada pelo fato de haver tido cinco maridos e estar vivendo com alguém que não era seu próprio marido. É claro que havia outro modo para uma mulher sobreviver, e ela deve ter sofrido por causa desse considerável estigma social. Mas, na cultura da época, com suas práticas de divórcio, é provável que esse fosse tanto um caso de abuso em série por parte de homens infiéis como um caso de promiscuidade em série de uma mulher perdida.

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210 4 A missão do povo de Deus

((Jesus, agora, está sendo ju gaco não diante de Pondo

Pi atos, mas no tribunal da opinião do mundo. O "mundo"

— que, na inguagem bíblica, significa: secular, sem Deus,

sociedade incrédula — está no pape de juiz. O mundo está

ju gando Jesus continuamente, dando seus verecictos va-

riados soare e e. O c iabo o acusa com muitas mentiras

hediondas e reúne centenas de fa sas testemunhas. O

Espírito Santo é o Parakletos, o advogado de defesa; ele

nos chama para ser testemunhas, a fim de servirmos de

provas em seu caso. Pregadores cristãos têm o privilégio ce

testificar de Jesus Cristo e a favor dele, cefendendo-o, elo-

giando-o, trazenco, diante dos jurados, evicências que eles

deverão ouvir e considerar antes de car o seu veredicto.

Como o cristão deve reagir ao enfrentar a oposição do

mundo? De certamente não deve usar medicas de reta-

liação. Nem deve se afundar na autocomiseração. Nem

deve se retirar para um abrigo seguro em reclusão, longe

da inimizade desagradáve do mundo. Não, e e deve,

com ousadia, cor testemunho de Jesus Cristo diante do

mundo, no poder do Espírito Santo. Eis aqui o mundo

— às vezes superficialmente indiferente e apático, mas, por

debaixo, ativamente agressivo e rebe de. Como eles ouvi-

rão, entenderão, arrepencer-se-ão e crerão? Como serão

evados a dar uma sentença em favor ce Jesus, que está ce

pé no tribunal ciente de es? A resposta é: por intermédio

do nosso testemunho. E por causa da oposição do munco

incrédu o a Cristo que é necessário o testemunio da igreja

em favor de Cristo.),

Sto tl

9. John Stott, The preacher's portrait (Grand Rapids: Eardmans, 1961), p. 61-63 10 perfil do pregador, São Paulo: Vida Nova, 2001]. Esse livro descreve o trabalho e o caráter de pregadores, utilizando, é claro, cinco imagens bíblicas. Mas o que ele diz sobre a "A testemunha", no capítulo 3, aplica-se a todos os cristãos. É uma leitura muito proveitosa por sua pesquisa abrangente sobre o período do Novo Testamento e sua nítida rele-vância em relação a esse aspecto de nossa missão cristã.

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Pessoas que dão testemunho do Deus vivo - 21 1

A segunda passagem "testemunha", com intenção evangelística igualmente intensa, é o registro, feito por esse mesmo evangelista, das palavras de Jesus sobre o papel do Espírito Santo:

Quando vier o Consolador, que eu vos enviarei da parte do Pai, o Espírito da verdade, que procede do Pai, esse dará testemunho acerca de mim. E vós também dareis testemunho, porque estais comigo desde o princípio. (Jo 15.26, 27).

O contexto imediato adjacente desse texto é a advertência que Jesus dá sobre o ódio e a perseguição por parte do mundo aos seus seguidores. Portanto, a atmosfera é sombria, com conflitos e acusações. Assim como em Isaías, o pano de fundo metafórico é um tribunal, só que, dessa vez, é o próprio Jesus que está no banco dos réus. Jesus é caluniado, atacado e odiado. Quem se levantará em seu favor? Quem falará em sua defesa? O Espírito Santo; ele testificará de Jesus, porque essa é a sua tarefa principal: testemunhar de Jesus.

No capítulo seguinte, Jesus retratará o Espírito Santo no papel de promotor, tendo o mundo no banco dos réus, sendo convencido de sua culpa e pecado diante do justo juízo de Deus (Jo 16.8-11). Mas, em João 15, ele se limita a dar testemunho de Jesus por meio do testemunho de seus discípulos. Mais uma vez, ve-mos que a principal referência é feita àqueles que foram testemunhas oculares da vida terrena de Jesus ("comigo desde o princípio"), mas não há dúvida de que tal testemunho da verdade sobre Jesus, no poder do Espírito Santo, é o privilégio e a responsabilidade contínua de todos os seus seguidores fiéis através das gerações.

RESUMO No capítulo 9, vimos que parte da missão do povo de Deus é ter completa lealda-de para com o Deus que conhecemos, em Cristo, como Senhor e Salvador. Parte dessa lealdade inclui estarmos dispostos, como os apóstolos, a nos levantar em favor dele em uma audiência pública, por assim dizer. Neste capítulo, explora-mos o que isso significa, por intermédio do conceito bíblico de testemunhar. Jesus põe essa responsabilidade sobre seus discípulos, mas ele extraiu a ideia e o conteúdo dela de suas Escrituras — o nosso Antigo Testamento.

Em um mundo onde as nações da humanidade construíram deuses para si mesmas e não conhecem o Deus vivo, o povo de Deus é convocado para dar testemunho de sua singularidade, soberania e obra salvadora. Essa é a razão fundamental de nossa eleição e parte do que significa sermos servos de Deus. Mas a tarefa de dar testemunho não é apenas para o benefício daqueles que ainda não conhecem a Deus, ela também fortalece a fé e o entendimento das próprias testemunhas.

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212 # A missão do povo de Deus

A missão do povo de Deus inclui, portanto, o testemunho verbal; levantar-se para falar a verdade sobre quem é verdadeiramente Deus e sobre o que Deus fez por intermédio do Senhor Jesus Cristo, para trazer salvação às nações. A tarefa de sermos "servos e testemunhas" continua definindo nossa missão, assim como a missão de Israel, de Paulo e de todos aqueles cujo testemunho incluiu até mesmo o martírio "por causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesus" (Ap 1.9).

O conteúdo do nosso testemunho é acima de tudo uma boa-nova. Isso nos leva ao próximo capítulo e a perguntar o que é essa boa-nova e o que significa ser um mensageiro dela.

QUESTÕES RELEVANTES 1. O que a expressão "dar o seu testemunho" lhe traz à mente? Como a prá-

tica popular se relaciona com o que a Bíblia quer dizer sobre dar testemu-nho? Como podemos resistir à tendência de fazer com que "o nosso tes-temunho" seja principalmente sobre nós, em vez de ser sobre as grandes verdades de Deus em Cristo?

2. Você pode destacar duas maneiras em que a tarefa de testemunhar resul-tou no fortalecimento de sua própria fé cristã e de seu entendimento?

3. Por vezes, os tribunais se referem a alguém como "uma testemunha crí-vel" (ou não, conforme o caso). Que constitui uma "testemunha crível" para Cristo?

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CAPITULO 11

PESSOAS QUE PROCLAMAM O EVANGELHO DE CRISTO

vangelismo, evangelistas, evangélico, evangelístico, evangelização - são palavras familiares no vocabulário de muitos cristãos, mas mal interpreta-

. das e mal usadas no mundo em geral. A maioria de nós está ciente de que a velha palavra "evangelho" significa boas-novas, o que é também o núcleo de todas as palavras gregas com "evangel-" no Novo Testamento.

Compartilhar o evangelho de todas as formas possíveis é a essência da mis-são do povo de Deus. A missão do povo de Deus é levar as boas-novas a um mundo no qual as más notícias são deprimentemente endêmicas.

""Evangelho" é uma daquelas palavras tão básicas, tão

funcamentais para a vida cristã, que pode passar des-

percebida. Ela tem se constituíco um termo para quase

qua quer coisa na fé cristã. A palavra "evangelho" poce

se tornar tão cheia de senticos, que praticamente acaba

se esvaziando de sentido. Assim como a pa avra "amor"

nas músicas populares, "evangelho" poce significar tuco

e naco ao mesmo tempo. Termo ouvido pessoas des-

creverem congregações como "igrejas evangélicas" e

ministros como "homens evangélicos", quando tudo que

essas coisas realmente significam é: "baseado na Bíblia"

ou "gostamos deles" ))

John Dickson'

Agora poderíamos partir imediatamente para um levantamento do uso da raiz c, evangel-" no Novo Testamento, em que ela ocorre cerca de uma centena de vezes

como verbo e substantivo, retratando de forma bem convincente nosso mandato e método evangelístico. No entanto, estamos fazendo uma teologia bíblica para a

1. Dickson, The best kept secret, p. 111-112.

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vida e, portanto, seguiremos a prática estabelecida até agora, e voltaremos primei-ro ao Antigo Testamento. E há duas boas razões para fazermos isso.

A primeira razão é que Paulo nos diz que o evangelho é "segundo as Escritu-ras" (1Co 15.1-4); o que significa dizer que a mensagem do evangelho da morte e da ressurreição de Jesus deve ser compreendida à luz do Antigo Testamento. Paulo pode até mesmo dizer que o evangelho foi pregado no Antigo Testamento. A Escritura, diz ele, "anunciou com antecedência a boa notícia a Abraão", quan-do Deus lhe prometeu que todas as nações seriam abençoadas por intermédio dele (G1 3.8). O evangelho bíblico começa em Gênesis, e não em Mateus. Isso certamente coloca "o evangelho" em nossa estrutura da teologia bíblica.

A segunda razão é que parece provável que o vocabulário do Novo Testa-mento para evangelho e evangelismo tenha, na verdade, suas raízes no Antigo Testamento, principalmente no livro de Isaías (e em alguns salmos, conforme veremos). De fato, as palavras do "evangelho" remontam às boas-novas que chegaram aos exilados na Babilônia.

BOAS-NOVAS PARA OS EXILADOS Conforme vimos no capítulo 10, precisamos voltar àquele tempo na história de Israel em que o inimaginável aconteceu — o exílio, com a perda da terra, da cidade, do templo e da esperança. Israel nunca precisou tanto ouvir algumas boas-novas. E foi isso o que eles realmente ouviram nas palavras sublimes regis-tradas em Isaías, dos capítulos 40 a 55.

No decurso desses capítulos, ouvimos falar quatro vezes sobre as "boas-no-vas". Verifique-os, visto que eles são a origem de nossa linguagem evangélica: Isaías 40.9; 41.27; 52.7; e 61.1. Em todos os casos, a palavra hebraica é 6(úar e, em três dos casos, os tradutores gregos, na Septuaginta, escolheram usar o verbo evangefizomai. Essa, é claro, é a palavra que entrou em uso do Novo Testamento, principalmente quando esses textos eram citados por Jesus ou pelos apóstolos. A boa-nova aguardada pelo profeta, na verdade, chegou com a vinda de Jesus. Logo, os termos "boa-nova" ou "evangelho" utilizam o verbo da Septuaginta, ou seja, o das Escrituras do Antigo Testamento, e nos fornecem toda gama de palavras com "evangel-" no Novo Testamento.

Bagarsignifica trazer ou anunciar boas notícias. Era uma palavra bem comum na vida cotidiana do Israel do Antigo Testamento. É provável que o uso mais emocionante e revelador dessa palavra esteja em 2Samuel 18.19-32 — a história de como a notícia da vitória de Joabe sobre Absalão foi trazida a Davi — uma boa notícia que transformou-se em má para Davi, devido à morte do próprio Absalão.2 O particípio In' bas's'er, portanto, significava alguém que anunciava essas

2. Outros exemplos do uso comuns de 6aÁlr, trazendo boas notícias, incluem: 1Sm 31.9; 2Reis 7. Um ver-

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boas-novas, o mensageiro das boas notícias (bem diferente da palavra comum utilizada para mensageiros em geral, marak).

É exatamente esse mensageiro das boas-novas quem encontramos no ver-sículo inicial da passagem que lança a base para o nosso estudo neste capítulo, Isaías 52.7. Um versículo muito citado nas esperanças do povo judeu na época anterior a Jesus e também no Novo Testamento — com a exceção de que no Novo Testamento não era mais uma esperança futura, mas uma alegre celebração de um acontecimento que finalmente havia chegado.'

Como são belos sobre os montes os pés do que anuncia as boas novas, que proclama a paz, que anuncia coisas boas, que proclama a salvação, que diz a Sião: O teu Deus reina! Escuta! É a voz dos teus sentinelas! Eles levantam a voz; juntos exultam, porque contemplam de perto a volta do SENHOR a Sião. Aclamai cantando, e juntas alegrai-vos, ó ruínas de Jerusalém; porque o SENHOR consolou o seu povo, redimiu Jerusalém. O SENHOR descobriu o seu santo braço à vista de todas as nações; todos os confins da terra verão a salvação do nosso Deus. (Is 52.7-10; no versí-culo 7, o mensageiro está no singular em hebraico).4

Então voltamos aos exilados na Babilônia. Este capítulo, Isaías 52, começou com a convocação de Sião para despertar e crer que seus dias de desolação e ca-tiveiro estavam chegando ao fim. No versículo 7, o profeta conclama os exilados (a nós, seus leitores posteriormente) para exercitar a imaginação. Vemo-nos nas ruínas de Jerusalém, olhando ansiosamente em direção ao Oriente, onde os exi-lados estavam definhando no cativeiro, esperando todos os dias pela notícia de que Deus havia conquistado a vitória que prometera, que os exilados estariam voltando para casa.

Por fim, no versículo 7, vemos os pés de um mensageiro correndo, acelerando pelas cordilheiras, para o leste, na direção de Jerusalém. Um único mensageiro

sículo que deu origem ao ditado de que o evangelismo é uma questão de um mendigo dizendo a outros mendigos onde encontrar pão. Um caso interessante aparece em SI 68.11, que parece falar de uma grande vitória alcançada pela palavra decisiva de Deus, sendo divulgada por aqueles que proclamam essa boa notícia. De fato, "das mensageiras" é o feminino plural de rd bas:4'r, o que sugere a imagem de uma mulher alegre, contando as boas notícias da vitória, após uma batalha ganha pelos homens, seus conhecidos (cf. a versão inglesa English Standart Version lESVI). Essa é uma questão delicada da gramática que parece ter enganado o fervoroso líder da assembleia de irmãos que eu costumava frequentar na época da faculdade. Ele gostava de utilizar esse versículo na tradução do Livro de oração comum: "O Senhor deu a palavra; grande era o exército dos que anunciavam as boas-novas" (ARC), como uma justificativa para a pluralidade de pregadores em seus encontros. Ele deve ter ficado chocado ao descobrir que os "pregadores" no texto eram mulheres. Mas nem ele nem eu sabíamos hebraico naquela época.

3. Para uma discussão completa sobre a influência desse texto para o judaísmo após o período do Antigo Testamento e na compreensão que Paulo tinha do evangelho, veja John P. Dickson, Mission-Commitment in Ancient judaism and in the pauline communities (Tübingen: Mohr Siebeck, 2003), p. 153-177. 4. Conforme o uso anterior da mesma imagem em Naum 1.15, em que a mensagem é a da vitória de Deus sobre os assírios (Nínive).

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correndo, que significará boas notícias de vitória, é melhor do que o restante de um exército derrotado, disperso, mancando de volta para casa. E é assim que acontece.

((Os pés podem não ser uma visão bonita. jeremias, cer-

ta vez, imaginou Raque ve ando seus fi hos, cambaleando

para a sepultura, como cativos. A visão contrastante aqui

é a ce pés trazendo boas notícias, o que deixa imp icito

que eles são admiráveis. O povo havia pecado com seus

pés (Pv 1.16), navio sico punido com os pés Ur 1 3.16)

mas, agora, é confortado com os pés.,,

John Goldingay

A mensagem das boas-novas consiste em três frases do versículo 7, as quais podem ser representadas entre aspas, como as palavras que ele, ofegante, diz à medida que se aproxima: "É de paz!" "É boa!" "Estamos salvos!" Até que fi-nalmente ele chega à cidade em si e grita aos que estão lá dentro: "O teu Deus reina!" (A21)

Deus reina (Isaías 52.7) Essa é a mensagem-chave, e é a verdade que explica todos os outros três itens da boa notícia do mensageiro. Mas o que significa dizer que YHWH, o Senhor Deus de Israel, reina? O que a boa-nova do reino de Deus traz consigo? Signi-fica tudo aquilo que o mensageiro disse, mas com toda a ressonância extra do Antigo Testamento.

O reino de Deus significa shalom Ele será um reino de paz. Significará o fim da violência e do conflito, e de toda ruína e dano que a guerra traz. O reinado de Deus trará completude e plenitude de vida, quando todas as coisas estiverem como Deus as planejou, quando esti-vermos em paz com Deus, com nós mesmos e com o mundo.

Esse era o anseio e a visão do Antigo Testamento,6 os quais expressavam naturalmente um desejo literal para um final de bem-estar físico. Mas que se aprofundava ainda mais, chegando às esferas da paz restaurada e da harmonia

5. Goldingay, The message of Isaiah, p. 452. 6. Cf. Salmo 46.9, 10 e Isaías 9.5-7.

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em todos os relacionamentos; nesse sentido, a imagem do mensageiro que "pro-clama paz" tem suas raízes profundas na esperança judaica e na compreensão da obra de Cristo no Novo Testamento, conforme veremos (At 10.36; Ef 2.7).

((Que implica o governo de Deus? Implica uma con-

dição na qual todas as coisas estejam em uma re ação

acequaca umas com as outras, em que nada é ce xado

em suspense, incomp eto ou não realizado (paz, .§-alom);

implica uma condição em que tocos os propósitos da cria-

ção sejam realizados (bom, tob), implica uma condição

de libertação de toda escravidão resultante co pecado

(salvação, yeãu'ah). Once Deus reina, essas coisas são

consequências. E claro que isso está exatamente em -lar-

monia com o que a fé cristã considera que as boas-novas

sejam (euangelion). Este é o conteúco que Cristo instruiu

seus ciscípu os a pregar ce povoado em povoaco (Mt

10.1-7): aquilo que Isaías 52.7-10 fa ara era agora pre-

sente e estava diante deles. O próprio cristianismo viu a si

mesmo como o assunto ce que Isaías falava, declarando

a boa-nova do governo universal ce Deus no mundo, con-

comitante com a paz, o bem e a salvação?)

John Oswolt

O reino de Deus significa "bom" Quando Deus agir da forma como o profeta vem dizendo, isso será uma boa-nova para toda a criação, porque ela será restaurada àquilo que Deus disse quando a criou: "Tudo [...1 era muito bom". Quando Deus reinar sobre toda a criação e sobre toda a humanidade, isso será bom, porque Deus é bom.

O reino de Deus significa "salvação" A vitória de Deus significa o fim de tudo o que mantém as pessoas na escravi-dão. Será o grande resgate, a grande libertação — do cativeiro literal dos israelitas

7. Oswalt, lhe book oJ Ismail, capítulos 40-66, p. 368.

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exilados a toda forma de opressão, vício e escravidão. O reino de Deus rompe as cadeias do mal, do pecado e de Satanás, e remove os últimos perigos do jul-gamento e da morte. Salvação é uma palavra incrivelmente rica e complexa em toda a Bíblia. Ela era a palavra que definia e distinguia o caráter de YHWH no Antigo Testamento e o nome pessoal de Jesus no Novo.'

Portanto, quando Deus reinar, haverá paz, a vida será boa e seremos salvos. Esse é o conteúdo resumido do evangel conduzido pelos pés formosos do men-sageiro do Senhor. Essa é a verdade do evangelho.

Deus retorna (Isaías 52.8) No versículo 8, a única voz do mensageiro correndo é acompanhada por um conjunto de vigias. Esses são os atalaias imaginários, sobre os muros derrubados de Jerusalém. Eles agora se juntam em um grande coro de alegria. Por quê? Porque agora eles podem ver além do mensageiro e por detrás dele, e o que eles veem é o próprio YHWH.

O Senhor está a caminho de casa! Assim, o Deus que reina é o Deus que retorna. Deus está voltando para a sua cidade - voltando para o seu povo e voltando com seu próprio povo.

Quando Nabucodonosor destruiu Jerusalém e levou seu povo para o cativei-ro, os exilados não foram os únicos a deixar a cidade. Em certo sentido, o próprio Deus também havia partido. Ezequiel, na visão terrível que foi provavelmente o período mais deprimente de todo o seu ministério (perdendo apenas para a morte de sua esposa), havia testemunhado a glória de YHWH deixando o templo e se afastando, abandonando a cidade (Ez 8-11). Deus havia deixado o edifício. Será que ele voltaria?

Isaías já dera a resposta em Isaías 40.3. Deus está a caminho - portanto, pre-parai o caminho. Na verdade, isso já estava sendo anunciado como "boas-novas para Sião" (Is 40.9; A21). Agora as sentinelas em Jerusalém estão cantando, porque o veem a caminho! Deus está voltando para Sião!

Como de fato fez, quando os exilados voltaram em 538 a.C., com a permissão e o patrocínio do novo rei, Ciro, da Pérsia. A cidade foi novamente habitada. O templo foi reconstruído. O culto foi restaurado.

Ele voltaria de novo para Sião, de uma forma mais significativa, quando o Senhor entrasse em seu templo no primeiro Domingo de Ramos.

E ele o fará mais uma vez, quando o Senhor voltar para reivindicar toda a criação como seu templo e para habitar com sua humanidade redimida para sempre. Mas a nossa teologia bíblica está indo à nossa frente. Isso é o que acon-tece quando percebemos essas ressonâncias e conexões na Bíblia.

8. Para urna pesquisa sobre a extensão da compreensão bíblica sobre salvação, veja Christopher J. H. Wright, Salvation belongs to our God (Notingham: IVP e Downers Grove, IL: IVP, 2007).

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Deus redime (Isaías 52.9, 10) Essa música é contagiante. Do evangelho de um único mensageiro ofegante, por estar correndo (v. 7), ela se espalhou para o pequeno coro de atalaias (v. 8). Mas agora, as ruínas de Jerusalém recebem uma voz personificada para cantar sobre sua própria redenção (v. 9); no versículo 10, essa canção ressoará até os confins da terra. E o tema da canção permanece o mesmo: o próprio Senhor Deus, que não apenas reina e retorna, mas também redime.

Que isso significa? Conforto e redenção. Significa ser confortado e libertado. As duas palavras que descrevem o que

Deus fez por seu povo (note que o paralelismo deixa claro que "Jerusalém" não é apenas a cidade em si, mas equivale "ao povo" — o povo redimido de Deus) são repetições de expressões que o profeta tem usado de modo mais enfático, plenas de significado. As primeiras palavras de Isaías 40 repetem "consolai o meu povo, consolai', e expandem a ideia com as palavras "confortai o coração". O conforto traz alívio à dor, ao pesar, às perdas e à tristeza. Os exilados sofreram grandes perdas e traumas por muito tempo. Deus está derramando seu conforto (Is 49.13; 51.3).

Mas o conforto, por si só, pode ser impotente — meras palavras, como cos-tumamos dizer. Portanto, a segunda palavra é crucial. Deus redimiu seu povo. Mais uma vez, essa é uma palavra (ga'al) utilizada anteriormente várias vezes (Is 41.14; 43.1, 14; 44.22, 24; 48.17, 20). Ela é proveniente do mundo da vida econômica de Israel, conforme vimos em detalhes no capítulo 6. Ali vimos que a palavra "redimir", em Israel, falava do compromisso que um membro da fa-mília tinha de se levantar e defender outros membros da família que estivessem em alguma situação de perigo, perda ou ameaça. Isso implicava em uma ação decisiva e poderosa de pagar o quanto fosse necessário (literalmente ou com o sentido de esforço) e de conquistar liberdade, alívio ou restauração.

Essa é a expressão e o papel que YHWH aplica a si mesmo, reiteradas ve-zes, em favor de Israel — principalmente nesses capítulos de Isaías. Essa é uma palavra que tem o sabor do êxodo, uma vez que seu primeiro uso com sentido teológico, tendo YHWH como o sujeito, aparece na declaração de Deus sobre sua intenção de redimir Israel do Egito (Êx 6.6-8) e na celebração desse acon-tecimento com um cântico por Moisés (Êx 15.13). O retorno do exílio será um êxodo recarregado — Deus redimindo seu povo do cativeiro.

Como isso seria realizado? Pelo "santo braço" do Senhor. O versículo 10 sugere como Deus realizará essa grande obra redentora. "O SENHOR Deus virá com poder; dominará com o seu braço". Reconhecemos isso imediatamente como uma metáfora antropomórfica. Para dominar com o braço, arregaçamos as mangas para um trabalho vigoroso. Ou essa imagem pode ter se originado do campo de batalha, já que o soldado se livra da capa, descobrindo seu braço para combater o inimigo.

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220 - A missão do povo de Deus

Sim, mas, na verdade, já encontramos antes o "braço do Senhor" nessa pro-fecia, e há outros sentidos para essa metáfora.

• Em Isaías 40.10, 11, o braço do Senhor é uma combinação do poder soberano com terna compaixão - a compaixão de um pastor que toma os cordeiros cambaleantes em seu braço e os carrega próximo ao seu coração.

• Em Isaías 51.9, o braço do Senhor é identificado com o próprio YHWH em sua grandiosa demonstração de poder salvador ao conduzir os israe-litas para fora do Egito, através do mar.

• Em Isaías 51.5, o braço do Senhor é descrito exatamente nos mesmos termos que haviam sido utilizados para o servo do Senhor, no capítulo 42.1-4, o que sugere que Deus realizará sua obra redentora por meio des-se servo; o servo será o braço personificado do Senhor.

• Em Isaías 53.1, o chamado quarto Cântico do servo, imediatamente após esse nosso texto, essa impressão é fortalecida, visto que o braço do Senhor é identificado com o servo que viveria uma vida de rejeição e teria uma morte horrivelmente injusta, mas que, no final, seria justificado e glorifi-cado por Deus. O Servo é o braço do Senhor.

Portanto, essa é uma figura rica. A boa-nova é que Deus agirá e realizará a re-denção de seu povo. Em certo sentido, ele fará isso sozinho, agindo unicamente pelo poder de seu próprio braço, assim como no êxodo. E, ainda assim, somos levados a esperar que o braço do Senhor seja encarnado no servo cujo chamado, ministério, sofrimento e vitória preenche esses capítulos.

Quem se beneficiará com isso? Todas as nações. Por meio de um único homem correndo até os confins da terra, a boa-nova

se espalha. O versículo 10 mostra o que esse profeta faz de modo tão caracterís-tico, ou seja, ele estende a promessa de Deus que era estritamente direcionada ao seu próprio povo histórico (o Israel do Antigo Testamento, no exílio) e a torna uma palavra com poder e alcance universais. O versículo 10 toma uma palavra que tinha a intenção de trazer esperança para os exilados, séculos antes de Cristo, e a transforma em uma promessa de salvação para o mundo, citan-do-a literalmente como o faz o Salmo 98.3.

Não é de admirar que ela seja descrita como "evangelho". Essa é uma boa-nova para o mundo, não apenas para Israel. O evangelho de Israel é um evangelho para todas as nações - como sempre teve a intenção de ser (um ponto que Paulo desenvolverá na própria essência do evangelho que pregava aos gentios).

Visto que estamos pensando em Isaías 52.7-10 particularmente como uma declaração do "evangelho" (devido ao uso do verbo basare a sua influência sobre

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o vocabulário do evangelho no Novo Testamento, por meio do euangelizomai na LXX), vale a pena destacar o Salmo 96, no qual se utiliza a mesma linguagem. Surpreendentemente, ela é empregada com a mesma intenção universal: procla-mar as boas-novas sobre YHWH e todas suas obras às nações.'

Cantai um cântico novo ao SENHOR. Cantai ao SENHOR todos os moradores da terra. Cantai ao SENHOR, bendizei o seu nome; dia após dia, proclamai a sua salvação. Anunciai sua glória entre as nações, e suas maravilhas, entre todos os povos. (Sl 96.1-3; grifo do autor).

"Proclamai" é baar, e a Septuaginta traduz esse termo por euangelizesthe - proclame isso como boas-novas. A mensagem do nome, da salvação, da glória e das maravilhas de YHWH constitui uma boa-nova, uma mensagem do evan-gelho que as nações precisam ouvir. O Salmo 96 continua expondo a futilidade da idolatria das nações e as convida a abandonar seus falsos deuses e se unir na adoração ao único Deus vivo, na beleza da sua santidade.

E qual é o conteúdo desse "cântico novo" que deve ser cantado entre as na-ções? Nada menos do que a mesma verdade que encontramos em nosso texto de Isaías: "O Senhor reina" (Sl 96.10). Se YHWH reina, então, a velha ordem do mundo é virada de cabeça para baixo, transformando toda a criação em um lugar de fidedignidade, justiça e regozijo (S196.10-13).

A verdade do evangelho é, portanto, gerada nos profetas e nos salmos de Israel. É isso o que descobrimos até agora.

A boa-nova do reino de Deus, que é ir até os confins da terra, para levar conforto e alegria a todas as nações, é a boa-nova do Deus vivo, que reina, que retorna à sua herança por direito e que redime o mundo todo. Todas essas coi-sas, Deus realizará por meio de seu braço poderoso - o seu Braço (seu Servo), estendido em gentil compaixão, estendido em amor sofredor e estendido na vitória cósmica:

O evangelho está a caminho.

9. Muitos salmos utilizam outros verbos, mas possuem o mesmo tema da proclamação universal das obras de YHWH a todas as nações, da celebração de YHWH no meio das nações ou do convite para que todas as nações louvem YHWH; por exemplo: Salmo 9.11 (tratando do julgamento de Deus sobre todas as nações); 22.27, 28; 47.8, 9; 49.1; 57.9, 10; 66.8; 67; 68.32; 87; 98.2; 99.2, 3; 102.21, 22; 105.1, 2; 108.3; 117; 126.2; 138.4, 5; 148.11. A quantidade notável desse material que traz as nações para a esfera dos louvores de Israel merece muito mais atenção do que em geral recebe (infelizmente, até mesmo aqui, tudo o que lhe cabe é uma nota de rodapé. Mas você pode compensar isso lendo com atenção essa lista de referências e absorvendo seu inacreditável escopo universal). Para uma análise mais profunda sobre isso em relação à teologia mais am-pla do Antigo Testamento acerca das nações e da missão de Deus para com elas, veja Wright, The mission of God, p. 454-500.

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222 A missão do povo de Deus

BOAS-NOVAS EM JESUS "Falai pelas montanhas, que Jesus Cristo já nasceu", diz uma música popular natalina, retratando o mensageiro imaginário de nosso texto de Isaías 40.9 sobre as montanhas. E sua inspiração está correta. Porque além do horizonte dos exilados, estava o horizonte da maior vinda que Deus faria a seu povo, na pessoa de Jesus de Nazaré. E todas as três partes do evangelho, segundo o mensageiro de Isaías, em Isaías 52.7-10, são de modo ainda mais glorioso, boas-novas em Cristo.

Jesus era e é Deus reinando O primeiro evangelho escrito começa com "Princípio do evangelho [euange-lion] de Jesus Cristo, o Filho de Deus" (Mc 1.1) e continua com uma citação de Isaías 40. Marcos vê João Batista como o primeiro arauto trazendo boas-novas, mas tanto Marcos como João logo deixam claro que João não era aquele que cumpriu as profecias — ambos assinalaram que esse papel era o de Jesus.

Assim, Jesus, quando começa seu ministério público, assume a função do mensageiro das boas-novas, anunciando que elas chegaram. O reino de Deus está começando com a sua chegada (Mc 1.14, 15).

Lucas registra que um dos primeiros atos de Jesus foi exatamente o de to-mar sobre si o papel do pregador ungido das boas-novas, o qual encontramos em Isaías há apenas alguns capítulos após o nosso texto, utilizando o mesmo verbo (Is 61.1-3).

[Jesus] levantou-se para ler. Então, lhe deram o livro do profeta Isaías, e, abrindo o livro, achou o lugar onde estava escrito:

O Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu para evan-gelizar'° os pobres; enviou-me para proclamar libertação aos cativos e restauração da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos, e apregoar o ano aceitável do Senhor. (Lc 4.16-19; ARA, grifo do autor).

Há quantos anos aquelas Escrituras estavam sendo lidas naquela sinagoga? Quantas vezes o rabino local havia encorajado as pessoas a continuar orando com confiança para que chegasse o dia em que aquele de quem elas falavam viesse e fizesse essas coisas? Que ele venha logo, ó Senhor! Traze-nos essa boa-nova durante a nossa vida. Talvez, amanhã...

Então, em uma manhã de sábado, o filho do carpinteiro local chocou toda a cidade com a palavra eletrizante: Hoje! A espera acabou. Aquilo que vocês têm esperado e desejado por todos esses anos está aqui, em pé, diante de vocês. A voz profética do texto antigo se tornou a voz viva daquele que agora o lê para

10. A palavra no original hebraico é balar - cuangelisasthai, no grego usado por Lucas, seguindo a LXX.

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vocês. "Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabais de ouvir" (Lc

4.21; grifo do autor). As coisas das quais o texto falava eram exatamente aquelas que Jesus desta-

cou como a prova de que o reino de Deus havia de fato chegado. Deus estava reinando em Jesus e por meio de Jesus, por intermédio de suas palavras e obras: "Mas, se é pelo dedo de Deus que eu expulso os demônios, então o reino de Deus chegou a vós" (Lc 11.20; A21). Quando João Batista questionou se talvez tivesse apoiado o messias errado, Jesus destacou as mesmas coisas, dessa vez, baseado em mais um texto de Isaías (Is 35.5, 6), mas acrescentando estas pa-lavras significativas: "e aos pobres é anunciado o evangelho" (A21) (lit.: "e os pobres estão sendo 'evangelizados"; Mt 11.4, 5).

E esse reino de Deus, inaugurado por Jesus e, de fato, encarnado nele, conti-nua operando na história humana da maneira que Jesus disse que aconteceria: crescendo como uma semente; levedando como o fermento; como o peixe sendo pescado. O reino de Deus está em ação na vida daqueles que "entraram" nele e por meio deles, isto é, naqueles em cuja vida Deus está reinando, por intermédio do arrependimento e da fé em Cristo; naqueles comprometidos com os caminhos de Jesus Cristo, submetendo-se a ele como Senhor; naqueles que buscam primeiro o reino de Deus e a sua justiça; naqueles que têm fome e sede de justiça.

Em suma, o reino de Deus é encontrado entre aqueles que entendem a sua missão de trazer a paz, fazer o bem e proclamar a salvação de Deus. Porque essas são as coisas, conforme o mensageiro do evangelho de Isaías proclamava em alta voz, que constituem a boa-nova de que "nosso Deus reina". O evangelho é boas-novas sobre Deus, como a base para tudo o que torna o Senhor boas-novas para nós. Desse modo, o evangelho é basicamente as boas-novas do reino de Deus. Ele era a boa-nova que Israel havia esperado por séculos. Eles sabiam o que o reino de Deus significaria, e a pergunta era: quando ele chegará? Jesus anunciou a boa-nova: "Ele já chegou!"

Também é a boa notícia que o mundo ainda está esperando. "E este evan-gelho do Reino será pregado em todo o mundo como testemunho a todas as nações, e então virá o fim" (Mt 24.14; NVI).

Jesus era e é Deus retornando Nosso texto de Isaías não era o único do Antigo Testamento no qual Deus prometeu vir ou voltar. Esse é um tema encontrado em vários momentos, principalmente no período pós-exílio, quando ainda havia a sensação de que, embora o templo houvesse sido reconstruído, o próprio Deus nunca havia real-mente posto um fim no exílio, retornando ao seu templo e mantendo todas as grandiosas promessas proféticas. Mas ele o faria e enviaria um mensageiro para preparar o caminho para seu retorno (Zc 9.9; Ml 3.1; 4.5).

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224 A missão do povo de Deus

"No cerne da mensagem do evange no (no Antigo e

Novo Testamentos) está a ideia do governo de Deus

como rei, em outras pa avras, a de seu reino. Quando os

primeiros cristãos proc amaram esse evangelho do reino,

eles não estavam copiando o "evange ao" do reinado

romano; ao contrário, expunham o Império Romano

como uma fraude. Era Deus, e não qualquer rei numano,

quem governava sobre tudo. Esse é o tema central co

evangelno cristão.

Qua é a ideia mais importante que norteia a nossa missão

em relação ao mundo? [...] A resposta tem a ver com o

monoteísmo (um só Deus) ou, mais precisamente, com o

monoteísmo cristo ógico — o senhorio do único Deus verca-

deiro por intermécio de seu Messias. [...] Simplificando e

colocando isso em termos práticos, o oajetivo da prega-

ção do evangelno — e ca divu dação co evange ho — é

ajucar o nosso próximo a perceoer o reinado e o senhorio

de Deus soare sua vida e a submeter-se a ele.

[No entanto] o evange no cristão não só anuncia o conceito

de que "Deus reina", mas descreve exatamente como esse

reinado foi revelado ao mundo [...]; o conteúdo centra

do evange ho é a nora do rei ungido de Deus, Jesus. Por

meio de seu nascimento, seus mi agres, seu ensino, sua

morte e ressurreição, o reino de Deus foi manifesto (e será

consumado mediante seu retorno). Fa ar o 'evangelho",

portanto, envo ve falar das obras do Messias Jesus")

John Dickson

O próprio Jesus identifica João Batista como aquele que cumpriu o papel do Elias que viria (Mt 11.14). Mas visto que Elias havia de vir antes da vinda

1 1. Dickson, Best kept secret, p. 114- 115.

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Pessoas que proclamam o evangelho de Cristo 225

de YHWH, e João era Elias, então, quem era Jesus (aquele que todos sabiam que havia chegado depois de João)? O dia do Senhor havia chegado, porque o próprio Senhor estava ali, na pessoa de Jesus.

Consequentemente, em uma peça teatral profética dramática e totalmente deliberada, Jesus vem a Sião montado em um jumento. Tendo caminhado desde a Galileia, ele não tinha necessidade alguma de montar por mais algumas cente-nas de metros. Estava claro que ele poderia estar fazendo isso por todos aqueles que tinham olhos para ver e conheciam as Escrituras. O Rei estava voltando ao lar, trazendo a justiça e a salvação de Deus.

Assim, o horizonte do nosso texto se estende primeiro para o retorno do Senhor para Jerusalém com os exilados, mas, depois, para o retorno do Senhor na pessoa de Jesus Cristo, em sua primeira vinda. É claro que o restante do Novo Testamento aponta um horizonte mais distante, quando esse "Jesus, que dentre vós foi elevado ao céu, virá do mesmo modo como o vistes partir" (At 1.11).

O evangelho é a boa-nova do Deus que veio e voltou, conforme prometera antes, e que um dia voltará novamente, trazendo tanto o julgamento para aque-les que o rejeitam como a salvação para aqueles que atenderam a seu chamado para se arrepender e crer nas boas-novas.

Jesus era e é Deus redimindo O nome Jesus significa "salvação" ou "YHWH é salvação". E os evangelhos ador-nam a história do nascimento e do ministério de Jesus com citações das Escri-turas, para mostrar a plena importância dessa narrativa. Ele era de fato "o que traria a redenção a Israel" (Lc 24.21), embora os dois discípulos no caminho de Emaús pensassem que tais esperanças houvessem sido destruídas no Calvário, quando, na verdade, elas haviam se cumprido naquele lugar.

Porque em Belém, o "braço do Senhor" estava sendo desnudado para o Cal-vário. Finalmente ele foi para o Calvário, e o braço do Senhor estava realmente estendido ali, estendido na cruz, para a redenção do mundo.

Mas Deus o ressuscitou dentre os mortos, proferindo o seu decisivo "Não" à morte e seu decisivo "Sim" para Jesus, "Sim" para a criação e "Sim" a todos aqueles para quem o Cristo ressuscitado é as primícias dos que dormem. Em Cristo, temos "a redenção, isto é, o perdão dos pecados" (Cl 1.14).

Em outras palavras, o evangelho do mensageiro de Isaías torna-se o evange-lho de Cristo, o qual também é, conforme Paulo disse com a mesma facilidade, o evangelho de Deus:2 Em Cristo, a boa-nova de Isaías é realizada.

Jesus Cristo é o Deus que reina, retorna e redime. Deus cumpriu sua promessa.

12. Paulo fala sete vezes do "evangelho de Deus" e oito vezes do "evangelho de Cristo':

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226 A missão do povo de Deus

"Mas o que isso significava para eles? Pensei enquanto

preparava o meu sermão sobre Isaías 52.7-10 e levei

o texto para uma caminhada (como de costume). Estava andando pela rodovia Tottennam Court, perto de minna

casa, e pensei: "E essas mi hares de pessoas nas ruas

de Londres? Que significa para e as o fato de Jesus ser o

Senhor da História, que está reinando, o rei que retornou

à sua criação, o redentor e o salvacor do mundo?"

E a resposta pareceu voltar das paredes dos edifícios: Ab-

solutamente nada. Nada mesmo. Como isso pode signifi-

car algo se elas não sabem cisso, se elas nunca ouviram

sobre Jesus, se ninguém jamais disse isso a e as? E meu

próprio texto pareceu quicar na parece tampem, só que,

dessa vez, por meio das palavras de Paulo, citando Isaías

52.7, em meio a uma ista semelhante de perguntas:

Pois não há cistinção entre judeu e grego; porque o

mesmo é o Senhor de tocos, rico para com todos que

o invocam. Porque: Todo aque e que invocar o nome do

Senhor será salvo. Como, pois, invocarão aque e em

quem não creram? E como crerão naque e de quem não

ouviram falar? E como ouvirão, se não há quem pregue? E

como pregarão, se não forem enviacos? Assim como está

escrito: Como são °e os os pés dos que anunciam coisas

boas! (Rm 10.12-15)

Na verdade, não há nada de formoso em re ação aos

pés. A única coisa que os torna formosos é quando e es estão ca çando os tênis de corrida do evange ho (Ef 6.15).

Assim, eles se tornam pés que pertencem às pessoas que

estão dispostas a

• "Ir e fa ar pe as montannos - às montanhas da arrogân-

cia humana, que Jesus Cristo nasceu e está reinando:

• "Ir e fa ar pe as montarmos - às montanhas do cesespe-

ro humano, oue Jesus Cristo nasceu e está retornando;

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Pessoas que proclamam o evangelho de Cristo 4, 227

• "Ir e fa ar pe as montanhas' — às montanhas da escra-

vidão numana, que Jesus Cristo nasceu e é Redentor,

Salvacor e Senhor")

Christop ler Wright'"

BOAS-NOVAS PARA PAULO Como, então, Paulo pensava e falava acerca do evangelho? E como ele não fazia? É quase impossível resumir de forma concisa as maneiras ricas, vibrantes e dinâ-micas nas quais Paulo utiliza o termo "evangelho" em contextos bem variados. Mas na tentativa de fazê-lo, podemos pelo menos evitar definições simplistas e motos que não lhe façam jus. E, com certeza, teremos uma base melhor para aquilo que entendemos ser a missão do povo de Deus em prol do evangelho.

Na busca de uma resposta para essa pergunta, li todas as cartas de Paulo, ob-servando cada uso da palavra "evangelho". Minha extensa análise sugere que Paulo utilizava "evangelho" como uma abreviação de ao menos seis coisas a seguir:

O evangelho é a história de Jesus à luz das Escrituras Em primeiro lugar, o evangelho de Paulo diz respeito, acima de tudo, a fatos históricos sobre Jesus Nazaré, por meio de quem Deus realizou a salvação. O evangelho é um relato dos acontecimentos da morte e da ressurreição de Jesus, entendido à luz das Escrituras do Antigo Testamento. A boa-nova é o que Deus prometeu na Escritura e, depois, concluiu em Jesus.

Paulo nos diz que ele "recebeu" o evangelho — isso quer dizer que o evangelho não era uma ideia que partiu dele, mas antes, ele passou a ter uma compreensão do significado da vida, morte e ressurreição de Jesus de Nazaré, a qual já havia sido enunciada na comunidade dos primeiros seguidores de Jesus, embora ele afirme tê-la "recebido", não de segunda mão, por assim dizer, por meio deles, mas sim pela revelação direta de Deus, confirmada mais tarde por seus encon-tros com os cristãos em Jerusalém:

Irmãos, lembro-vos do evangelho que vos anunciei, o qual também re-cebestes e no qual estais firmes. Por meio dele também sois salvos, se retiverdes com firmeza a mensagem tal como a anunciei a vós; a não ser que tenhais crido inutilmente. Porque primeiro vos entreguei o que tam-bém recebi: Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras; e foi sepultado; e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras. (1Co 15.1-4; cf. Gl 1.11-2.10).

13. Christopher J. H. Wright, The God 1 don't understand: Reflections on tough questions offaith (Grand Rapi-ds: Zondervan, 2008), p. 180-181. [0 Deus que eu não entendo, Viçosa, MG: Ultimato, 2011.]

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228 x A missão do povo de Deus

O que Paulo quer dizer com "segundo as Escrituras" está resumido nos ver-sículos iniciais de sua carta aos Romanos, o que deixa claro que para Paulo "o evangelho" era essencialmente a identidade, a narrativa e a consumação bíblica (por exemplo: o Antigo Testamento) de Jesus (Rm 1.2-4; cf. 2Tm 2.8)

Basicamente, conforme tudo o que temos visto em nossa pesquisa do Antigo Testamento, Paulo, de fato, declara o seu evangelho como se estivesse dizendo:

O Deus de Israel, o único Deus vivo e verdadeiro, tem sido fiel à sua promessa da aliança, primeiramente feita a Abraão e depois ampliada e testemunhada por toda a Lei e os Profetas (Rm 3.21). No Messias Jesus de Nazaré e por meio dele, Deus agiu de modo decisivo para tratar dos problemas humanos do pecado e da divisão (Gn 3 e 11). Pela morte e ressurreição de Jesus, de acordo com as Escrituras, Deus levou nosso pecado e venceu suas consequências: inimizade e morte. Com a exalta-ção de Cristo à destra de Deus (no lugar de governo), o reino de Deus está agora ativo no mundo, de modo que vivemos sob o senhorio de Cristo, não de César. Jesus, o Messias de Israel, é Senhor, Deus e Sal-vador do mundo. Portanto, convertam-se de seus ídolos inúteis para o Deus vivo, o único que pode salvá-los; arrependam-se dos seus pecados e creiam em Jesus.

O evangelho de Paulo, portanto, está arraigado nas Escrituras e é moldado pelo reino de Deus. Ele é constituído da consumação de Jesus como Messias, cumprindo as Escrituras e encarnando o Messias. A boa-nova é que o reino de Deus, prometido e definido nas Escrituras, agora é chegado na pessoa e na obra do Messias Jesus. Isso é visto não apenas nas cartas de Paulo, mas também na forma como Lucas encerra o livro de Atos, descrevendo o ministério do avanço do evangelho de Paulo como um ministério de proclamação do reino de Deus por meio do ensino sobre o Senhor Jesus Cristo (At 28.23, 30, 31).

O evangelho é uma nova humanidade redimida, uma única família de Deus E onde ele estava fazendo isso, Lucas? Em Roma! No coração do império, no lugar de onde quase todas as nações do mundo conhecido eram governadas. E ali, na sede do reinado mais poderoso do mundo, Paulo estava ensinando alegremente sobre "outro rei, Jesus" (At 17.7; A21). Porque, na verdade, a boa-nova a respeito de Jesus era uma mensagem universal para todas as nações. Isso, conforme vimos de modo tão claro, tinha também raízes profundas no Antigo Testamento. O plano de Deus, anunciado a Abraão, sempre foi o de trazer bên-çãos a todas as nações do mundo por meio de Israel. Mas o grande problema sempre foi: como? Como todas as nações do mundo poderiam entrar na esfera da bênção de Deus por intermédio de Israel?

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Pessoas que proclamam o evangelho de Cristo 229

As nações, ao que parecia, estavam completamente alienadas e fora do cen-tro da família de Deus. Deus havia entrado em aliança com Israel, redimindo-os

e dando-lhes sua Lei, havia lhes dado promessas e esperança, havia descido e feito sua morada entre eles. As nações, ao contrário, poderiam ser precisamente descritas por Paulo da seguinte maneira:

Portanto, lembrai-vos de que, no passado, vós, gentios por natureza, cha-mados incircuncisão pelos que se chamam circuncisão, feita pela mão de homens, estáveis naquele tempo sem Cristo, separados da comunidade de Israel, estranhos às alianças da promessa, sem esperança e sem Deus no mundo. (Ef 2.11, 12).

Mas o estado deprimente de alienação desesperada era exatamente aquilo em que o evangelho havia posto um fim, para todos aqueles de qualquer nação, que colocassem sua fé em Jesus Cristo e em seu sangue:

Mas agora, em Cristo Jesus, vós, que antes estáveis longe, viestes para perto pelo sangue de Cristo, pois ele é a nossa paz. De ambos os povos [judeus e gentios] fez um só e, derrubando a parede de separação, em seu corpo desfez a inimizade, isto é, a lei dos mandamentos contidos em ordenanças, para em si mesmo criar dos dois um novo homem, fazendo assim a paz, e pela cruz reconciliar ambos com Deus em um só corpo, tendo por ela destruído a inimizade. E vindo ele, proclamou [evangeli-zou] a paz [citação de Isaías 52.7] para vós que estáveis longe e também para os que estavam perto; pois por meio dele ambos temos acesso ao Pai no mesmo Espírito. (Ef 2.13-18; grifo e adições do autor).

É importante ver como essa obra "pacificadora" da cruz — reconciliando judeus e gentios e criando uma nova humanidade — não é apenas um subproduto do evan-gelho, mas é o cerne do próprio evangelho (Ef 3.6). Paulo a inclui na obra da cruz. Em outras palavras, Paulo não está apenas dizendo que agora muitos indivíduos pecadores, de diferentes nações, foram salvos e estão a caminho do céu, mas sim que devem, de fato, relacionar-se bem uns com os outros nesse meio-tempo. Ele está dizendo que a criação de uma nova humanidade é a boa-nova que Cristo veio realizar. "Paz" faz parte das boas-novas, exatamente como Isaías 52.7 havia anun-ciado. Paulo diz que Jesus é a nossa paz, que estabeleceu a paz e pregou a paz (o que, de acordo com o contexto, deve se referir à pregação apostólica de Cristo).

Deus tem apenas uma família (Rm 3.29; 4; G1 3.26-29; e possivelmente Ef 3.14). No período do Antigo Testamento, havia somente o Israel étnico, "a casa/a família de Israel". Mas, a partir de agora, por causa da obra de Cristo, essa única família inclui pessoas de todas as nações — conforme Deus havia prometido. E isto é o evangelho: boas-novas para as nações.

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230 A missão do povo de Deus

Portanto, o evangelho é "o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê; primeiro do judeu e também do grego" (Rm 1.16; A21, grifo do autor, re-fletindo o que imagina ser a ênfase de Paulo). Depois, Paulo complementa esse poder salvador do evangelho de inúmeras formas familiares a nós. Pela graça de Deus, por meio da morte e ressurreição de Jesus, os crentes têm a garantia de ter "todas as bênçãos espirituais nas regiões celestiais em Cristo" (Ef 1.3).

• Somos justificados, ou seja, recebemos aqui e agora a declaração de Deus antecipada sobre o veredicto de seu tribunal no dia do juízo, de que esta-mos incluídos entre aqueles a quem ele declarará justo por causa de nossa fé em Jesus e de sua obediência até à morte.

• Somos salvos, ou seja, estamos livres da ira vindoura, resgatados da ira de Deus contra toda impiedade e rebelião.

• Somos reconciliados, ou seja, a inimizade entre nós e Deus foi remo-vida, porque o próprio Deus levou nossos pecados na pessoa de seu Filho, na cruz.

• Somos perdoados, ou seja, Deus escolhe "carregar" (palavra hebraica ge-ralmente traduzida como "perdoar") os nossos pecados, em vez de atri-buí-los a nós, porque eles foram "carregados" por Jesus na cruz. Eles nun-ca serão lançados de novo contra nós.

• Somos redimidos, ou seja, Deus obteve nossa libertação de toda escra-vidão ao pecado, pelo sangue do sacrifício de Cristo, do mesmo modo como resgatou os israelitas do Egito.

• Somos adotados, ou seja, Deus nos inclui entre seus filhos ou, mais espe-cificamente, trata-nos como filhos primogênitos (quer sejamos homem quer sejamos mulher) e como seus herdeiros, participantes da herança que pertence a Cristo.

• Somos vivificados, ou seja, com a morte do pecado, foi-nos dada uma nova vida.

• Temos o Espírito, ou seja, a promessa que Deus fez a Israel, de que realiza-ria a sua renovação, "ressurreição" (assim como no exemplo de Ez 37), é agora derramada em nós, gerando o fruto de vidas transformadas.

O evangelho é uma mensagem a ser transmitida ao mundo todo Essa boa-nova transformadora e abrangente não pode ser ocultada! Na verdade, a própria natureza do evangelho é que ele é uma boa-nova que simplesmente tem que ser anunciada, conforme vimos por intermédio de suas raízes bíblicas em Isaías 52.7. O evangelho, portanto, deve ser ouvido como a "palavra da ver-dade" (Ef 1.13; Cl 1.5, 23) e, ao ser ouvido, precisa ser recebido e acolhido pelo que ele é ( 1 Ts 2.13). Essa mensagem deve ser pregada a todas as nações, pois,

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Pessoas que proclamam o evangelho de Cristo • 231.

conforme temos visto, todas as nações estão em vista no âmbito do que Deus realizou em Cristo, em cumprimento à sua promessa a Abraão.

Logo, "no trabalho do evangelho" (Fp 2.22; NVI) parece se referir princi-palmente a essa tarefa de tornar a boa-nova conhecida por todos os meios de comunicação possíveis, custe o que custar. Existe uma dimensão do evangelho que é intrinsecamente verbal; ele é uma história que precisa ser contada, a fim de que sua verdade e importância possam ser compreendidas.

Na compreensão de Paulo, seu encontro com Jesus na estrada de Damasco não foi simplesmente uma conversão, mas muito mais um comissionamento para pregar o evangelho às nações. Ele se refere aos seus próprios relatos des-se acontecimento (At 22.14, 15; 26.16-18; cf. Gl 1.15, 16; 2.7). Suas primeiras cartas fornecem provas abundantes da paixão e do compromisso que dirigiu Paulo nessa missão de pregação, na qual se sustentou através de seus trabalhos manuais, tendo um custo alto de sofrimento. Isso era algo para a vida toda (Gl 4.13, 14; 1 Ts 2.8, 9).

Paulo claramente também tinha uma perspectiva geográfica em relação ao que significava pregar o evangelho às nações. Sua descrição fascinante da obra missionária até o momento em que escreve sua carta aos Romanos indica que sentia que havia completado a tarefa de pregar o evangelho no quadrante nordeste da bacia do Mediterrâneo e que estava planejando seguir mais para o oeste (e, quem sabe, completar o "círculo das nações", retornando pelo norte da África). Seja qual fosse sua intenção exata, Paulo via a obra do evangelho como um constante ir além, ou seja, a lugares e povos ainda não alcançados pelo conhecimento de Cristo (Rm 15.19-21; citando mais uma vez seu texto favorito de Isaías 52).

O evangelho é transformação ética "Arrependei-vos e crede no evangelho", disse Jesus (Mc 1.15; grifo do autor). Uma mudança radical de vida acompanha a fé e as boas-novas. O arrepen-dimento e a fé não podem ser separados. Quando o povo perguntou a João Batista o que ele entendia por arrependimento, esse profeta foi implacavel-mente prático (Lc 3.7-14). Paulo concorda com ele. O evangelho envolve despir a roupa imunda do velho homem e vestir as roupas que trazem o aroma da semelhança com Cristo. Na verdade, Paulo usa exatamente as mesmas palavras: "novo homem" (kainos anthropos), tanto para a união de judeus e gentios na nova família de Deus, única e multinacional, quanto para o novo modo de vida que essa comunidade deve demonstrar (Ef 4.24).'

14. Um fato que a versão em inglês, a ESV fEnglish Standard Version] obscurece ao traduzir o primeiro texto

como "novo homem" e o segundo como "nova natureza".

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232 s' A missão do povo de Deus

Não que o "evangelho" seja uma coisa e a "ética", outra. Essa maneira comum de resumir as duas "metades" de Efésios é vulnerável à má interpretação — como se pudéssemos separar a parte doutrinária da crença no evangelho da parte do viver ético do evangelho. As duas coisas são intrínsecas ao próprio evangelho, porque o segundo "novo homem" é descrito como "feitura dele", criado para ser semelhante a Deus em verdadeira justiça e santidade, as quais fazem parte da obra do evangelho da graça (cf. Ef 2.10). O evangelho fala de uma salvação que é pela graça e para as boas obras. A graça vem primeiro, recebida pela fé. E a fé demonstra a sua existência por intermédio da obediência.

Assim, o alvo missionário de Paulo não era apenas o evangelismo, com o sentido de comunicar uma mensagem para uma aceitação mental. Ao contrário, seu objetivo era nada menos do que uma transformação ética entre aqueles que receberam essa mensagem e responderam a ela pela fé. Seu resumo para isso aparece na frase surpreendente com a qual ele começa e termina sua carta aos Romanos: "[...] a fim de conduzir todos os gentios para a obediência da fé, entre os quais também sois chamados para ser de Jesus Cristo" (Rm 1.5; 16.26).

A obediência da fé. Essa é uma expressão notável no genitivo singular, que in-felizmente muitas traduções separaram em dois verbos distintos (crer e obede-cer), o que permite a possibilidade de que alguém cumpra, de modo adequado, o primeiro, enquanto falha em cumprir o segundo. A questão de Paulo é mais radical e, na verdade, é essencialmente a mesma que encontramos em Tiago 2. É a obediência que de fato prova a realidade da fé.

"Embora não possamos ser sa vos pe as voos ogros, não

pocemos ser sa vos sem elas. As boas obras não são o

caminno para a sa vação, mas a sua evicência adequada

e necessária. Uma fé que não se expressa por meio ce

obras é morta") John Stott

15. John Stott, Christ the controversialist (London: Tyndale, 1970), p. 127. É claro que Stott aceitaria (assim corno Paulo, sem dúvida, também teria aceitado) que há circunstâncias em que uma pessoa pode se voltar para Cristo em arrependimento e fé, e ser salva mesmo quando não há possibilidade alguma de produzir boas obras - o ladrão arrependido na cruz é uni exemplo claro disso. Mas esse caso excepcional não invalida a integridade e obediência da fé que vemos em Efésios.

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Pessoas que proclamam o evangelho de Cristo 0. 233

Compare isso com a expressão "fôlego de vida". Como sabemos que há vida em alguém? Verificamos se ele está respirando! Sem fôlego, não há vida. Sem obediência, não há fé. A fé sem obras, como diria Tiago, é morta, assim como um corpo sem respiração. Sinta a respiração dos corpos e se regozije porque eles estão vivos. Veja a obediência e se regozije porque eles são cristãos.

Foi exatamente assim que Paulo viu a resposta prática dos cristãos de Corinto, quando eles contribuíram para as necessidades dos crentes de Jerusalém. Isso foi prova de uma fé genuína. O evangelho foi verdadeiramente confessado, porque o evangelho estava sendo obedecido de forma sacrificial (2Co 9.12, 13).

De fato, é impressionante quantas vezes Paulo fala da obediência ao evange-lho, e não apenas da crença nele. Na verdade, essa obediência a Deus era obra do próprio Cristo, feita por intermédio do ministério holístico de Paulo, por palavras, obras e maravilhas. E os crentes de Roma estavam entre aqueles cuja obediência lhe trouxe alegria (Rm 15.18, 19; 16.19).

Por outro lado, a ira de Deus repousa não apenas sobre os descrentes, inte-lectualmente falando, mas sobre os desobedientes - "os que não obedecem ao evangelho de nosso Senhor Jesus" (2Ts 1.8). A dupla condenação deles é um reflexo negativo da dupla exigência do evangelho, fé e obediência: serão julga-dos "todos que não creram na verdade, mas tiveram prazer na injustiça" (2Ts 2.12; grifo do autor).

Essa interpretação intrinsecamente ética do evangelho, como uma questão de obediência e não apenas de fé, é compartilhada por Pedro (At 5.32, 1Pe 4.17), Tiago (Tg 2.14-26), João (1Jo 2.3; 3.21-24; 5.1-3) e pelo escritor aos Hebreus (Hb 5.9), e é claro que ela tem origem com o próprio Jesus (Mt 7.21-27; 28.20, Lc 11.28; Jo 14.23, 24). Valeria a pena parar para ler todas essas passagens. E quando você tiver terminado de ler todas elas, veja se ainda é possível dizer que o evangelho é apenas uma questão de fazer uma oração de fé.

Assim, ao mesmo tempo em que a interpretação integral que Paulo tem do evangelho é que a salvação é totalmente uma obra da graça de Deus, recebida só por intermédio da fé em Cristo, não obtida por meio de nossas obras; ele está igualmente convicto de que a principal razão da graça operar em nós é produzir o fruto de vidas transformadas - transformadas, no lado desfavorável, de renunciar ao mal e, no lado favorável, de fazer o bem de forma incansável (Ef 2.8-10). Paulo vê a transformação ética que o evangelho realiza como obra da graça de Deus - graça que está operando desde a primeira vinda de Cristo, e graça que nos mol-da para viver com ética, à luz escatológica de sua segunda vinda (Tt 2.11-14).

É lógico que a ênfase de Paulo nesses assuntos está precisamente de acordo com o que vimos nos capítulos anteriores acerca do Antigo Testamento. A graça salvadora da obra de Deus em favor de Israel (na eleição e redenção) deveria ser recebida no sistema da aliança de gratidão e obediência, refletindo a resposta de um viver ético.

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234 ®A missão do povo de Deus

"Dado o ensinamento claro de Jesus, de Paulo e de ou-tros autores do Novo Testamento, como alguém poderia

explicar a dicotomia evangelho/ética que tanto tem ca-racterizado o cristianismo?

Como pode ser que em igrejas ao redor do mundo, o Creco de Niceia ou seu equiva ente seja recitado regular

e repetidamente enquanto nenhuma alusão sucessiva seja feita ao Sermão do Monte, o cerne co ensino de nosso Senhor? Como poderiam homens e mu heres ser enviados para o exílio, ançados em prisões, torturados na roda de despedaçamento, queimados na fogueira ou submetidos a outras formas ce mortes agonizantes só por que abraçaram opiniões doutrinárias em desacordo com aque as preferidas

nas sedes do poder? De forma semelhante, como poderiam os "cristãos" ser caracterizacos principalmente pela ganân-cia insaciável do ouro e prata cos outros; por homicídios, genocídios e por roubar continentes inteiros em nome ce Cristo, na busca de uma obsessão idólatra? E como tudo isso pode ser evoco a cabo pelo comando de lideres cris-tãos entusiastas e com a bênção ceies? Aque es que se identificavam como cristãos, como poderiam devotar tais pensamentos extraordinários a quem Jesus era como Divin-dade; reverenciá-lo na Eucaristia e ainda dar tão pouca atenção ao que ele rea mente disse que eles deveriam fa-zer? Como poce se tornar um costume para os evangélicos

dizer: "Senhor, Senhorr, e ignorar a vontade do Senhor na vida cotidiana de seus seguidores (Mt 7.21)?

jonarllor- Bonk

O evangelho, intrinsecamente verbal, é da mesma forma intrinsecamente ético. Essas coisas estão tão integradas quanto a vida e a respiração.

Não há evangelho onde não há mudança.

16. Jonathan Bonk, "The Gospel and Ethics" (um ensaio apresentado no Grupo de Trabalhos Teológicos de Lausanne sobre o evangelho integral. Evangelical Review of "Theology 33:1 (2009): 55.

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Pessoas que proclamam o evangelho de Cristo 235

O evangelho é a verdade a ser defendida As boas-novas também podem ser uma má notícia para aqueles cujos interesses pessoais sejam ameaçados por elas. Por essa razão, há uma batalha a ser travada, a fim de garantirmos que a verdade do evangelho seja preservada, esclarecida e defendida contra negações, distorções e traições.

• O fato de o evangelho de Cristo ser para todas as pessoas, e não apenas um privilégio de uma única comunidade étnica, ameaça aqueles que rei-vindicam para si o direito de pertencer ao "povo certo".

• O fato de o evangelho ser absolutamente um dom da graça de Deus ofen-de aqueles que se orgulham de suas próprias realizações.

• O fato de o evangelho depositar a salvação gloriosa do Deus vivo na pessoa de alguém que viveu em uma condição humilde e morreu em uma situação de vergonha excruciante é motivo de chacota para aque-les que desejam que sua salvação venha de um mercado religioso mais respeitável.

• O fato de o evangelho convocar as pessoas ao arrependimento e a mudar radicalmente sua ética pessoal e social irrita àqueles que querem os bene-fícios do evangelho, mas resistem às suas exigências.

Portanto, há uma dimensão polêmica no evangelho. O evangelho confronta as coisas que o contradizem ou as pessoas que o negam ou rejeitam. Ele existe em um explicito contraste e conflita com outras cosmovisões e com as principais convicções que as pessoas têm. Por essa razão, ser um servo do evangelho envolve necessariamente um esforço sacrificial e uma batalha espiritual (2Co 10.4, 5).

Paulo experimentou isso desde o início de seus dias missionários e faz uma reflexão sobre isso em Gálatas, em que a frase "a verdade do evangelho" aparece duas vezes (Gl 2.5, 14; cf. 1.6-9). A percepção de que a verdade do evangelho esta-va em jogo podia transformar o que, para nós, pode parecer uma coisa secundária (com quem cearíamos ou não, como na ocasião em que Pedro, sendo pressionado, voltou a cear só com os judeus) em um gatilho para a mais importante defesa e ex-plicação do significado da justificação pela fé, em vez de a justificação pelas obras da lei. Se a verdade do evangelho era que, em Cristo, não havia judeu nem gentio, mas uma única família da fé no Messias, logo, agir de forma a erigir mais uma vez a barreira da lei entre eles, pelo fato de alguém se recusar a cear com os gentios, era negar o evangelho, não apenas ofender outros cristãos. Pedro precisava ser repreendido (e essa não era a primeira vez em sua vida).

Aquilo que Paulo tomou para si como uma ordem (Fp 1.7), ele insistiu para que fosse um desafio para o comportamento e para o testemunho dos cristãos (Fp 1.27). Ele elogiou duas mulheres de Filipos, entre seus colegas obreiros de lá, por terem lutado ao seu lado pela causa do evangelho (Fp 4.3) — mesmo que

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236 • A missão do povo de Deus

agora elas precisassem de ajuda para se entender uma com a outra. Timóteo precisava de um incentivo semelhante (2Tm 1.8). O evangelho clama por uma defesa corajosa.

O evangelho é o poder de Deus transformando o universo Finalmente, o evangelho é o poder de Deus em ação na história e na criação. Para Paulo, isso era algo para celebrarmos e com o que deveríamos nos maravilhar. O evangelho parecia ter vida própria, de modo que Paulo podia personificá-lo como algo que estava em ação, ativo, espalhando-se e dando frutos ao redor do mundo (Cl 1.6). O grande paradoxo da cruz, uma coisa vergonhosa e absurda para os judeus e gregos, não era algo do qual alguém devesse se envergonhar, porque ele era o poder salvador de Deus (Rm 1.16) que estava transformando a história e redimindo a criação.

Na verdade, poderíamos ter começado nossa pesquisa pela interpretação que Paulo faz do evangelho, em vez de terminarmos com ela. A compreensão cósmica que Paulo tem da mente e do plano de Deus é tão grande que ele pode encerrar todas as coisas, desde a criação até a nova criação, no âmbito do evangelho. Ele pode fazer isso em razão de o evangelho ser basicamente o próprio Cristo.

Cristo não é apenas o mensageiro das boas-novas (cf. Is 52.7); Cristo é a boa-nova, no sentido de que o evangelho proclama que Jesus de Nazaré é o Messias - Rei e Salvador - para cumprir as promessas de Deus em toda a Escritura, desde Gênesis.

Assim, naquele que é indiscutivelmente o mais eloquente resumo de Paulo sobre a identidade de Cristo e a amplitude do evangelho, ele proclama que todas as coisas no universo foram criadas por Cristo, estão sendo sustentadas por Cristo e serão reconciliadas com Deus por meio de Cristo, por meio do sangue de sua cruz. Essa é a abrangência empolgante e universal do reino de Deus por intermédio de Cristo. E isso, afirma Paulo, é o evangelho (Cl 1.15-23; leia e se delicie com essa grandiosa passagem de novo!).

E só após a análise da importância cósmica de Cristo, de sua igreja e de sua cruz é que Paulo passa para a reconciliação pessoal dos cristãos. Os cristãos em Colossos poderiam ficar firmes em sua fé e esperança (v. 23), porque a sua sal-vação estava atrelada à agenda do evangelho, a qual possui um alcance cósmico, englobando todo o espaço e o tempo. Não é de admirar que Paulo diga que ele está sendo proclamado "a toda criatura debaixo do céu" (v. 23).'7

A extensão da proclamação do evangelho deveria ser a mesma que a do al-cance do poder do evangelho - ele é uma boa-nova para toda a criação.

17. Penso que "em toda a criação" é preferível a "a toda criatura" como tradução de "em pasei ktisei".

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Pessoas que proclamam o evangelho de Cristo • 237

RESUMO Devemos deixar algumas reflexões práticas até o nosso capítulo final, mas espero que essa análise sobre a interpretação que Paulo fazia do evangelho ajude a apro-fundar e enriquecer sua compreensão sobre o que significa dizer que a missão do povo de Deus é proclamar o evangelho. Então, que é o evangelho para Paulo?

• Ele é histórico e também eclesiástico, ou seja, inclui fatos da história de Cristo e a realidade de uma nova humanidade em Cristo.

• Ele é fé e obediência. • Ele é uma mensagem que deve ser ouvida e uma vida que deve ser vista. • Ele é pessoal e cósmico. • Ele é acima de tudo "o evangelho de Deus" - a graça de Deus, a promessa

de Deus, a fidelidade de Deus, a salvação vinda de Deus, o Filho de Deus, o povo de Deus e a glória de Deus.

Ao nos exortar para compreendermos todas essas dimensões, Paulo nos conduz de volta para o que ele conhecia simplesmente como "Escrituras" - o nosso Antigo Testamento, porque foi segundo "as Escrituras" que Jesus morreu e ressuscitou para nossa salvação. E é a partir delas que o Novo Testamento extrai a própria palavra "evangelho", conforme vimos no início deste capítulo.

Portanto, o nosso evangelho integral deve ser extraído da fonte profunda da Bíblia toda. E a nossa missão deve ser devidamente integrada à sua grandiosa e retumbante narrativa da graça salvadora, à sua exigência transformadora por obediência e lealdade pactual e à sua vibrante esperança e visão de uma nova criação, na qual habita a justiça, porque Deus habitará nela, com sua humanida-de redimida de cada nação.

Uma consequência final do fato de extrairmos nossa compreensão do evan-gelho de toda a Bíblia é que ele gera uma avaliação mais humilde e moderada do nosso próprio papel missional de proclamadores do evangelho. Não somos nem os primeiros nem os únicos representantes da proclamação do evangelho. Por-tanto, não negligenciemos (por um extremo) nossa responsabilidade evangelís-tica, esquecendo-nos da importância vital que Deus dá ao papel de testemunha que a igreja tem como povo de Deus, nem inflemos (por outro extremo) nosso egocentrismo evangelístico, imaginando que Deus não tenha outros meios para comunicar suas boas-novas.

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238 A missão do povo de Deus

c(Quem ceve ser o mensageiro?

A primeira e principal resposta a essa pergunta é: "O

próprio Deus". O evangelho é o evangelho ce Deus. E e

o concebeu. E e forneceu seu conteúdo. E e o divu ga. O

Fato de e e ter nos confiado tanto o "ministério da recon-

ci loção' quanto "a mensagem da reconciliação"' (2Co

5.8-19) não a tera isso. E e agiu 'em Cristo" para obter a

reconci iação e agora age por nosso intermecio', para

anunciá-la. Mas ele mesmo ainda continua sendo tanto o

reconciliador como o pregador.

Ele usou outros representantes muito mais nobres, por

meio ce quem divulgou a sa vacão antes ce delegar

parda mente essa obra para a igreja. Alem cos profetas

do Antigo Testamento, o primeiro arauto do evangeho

era um anjo, e o primeiro anúncio sobre o evangelho

foi acompanhado por uma cemonstração da g ória co

Senhor e saudaco pe a adoração das hostes ce estiais.

Depois, Deus enviou seu Fi ho, que era tanto o mensagei-

ro quanto a própria mensagem. Porque Deus enviou

palavra aos israelitas, anunciando o evange no da paz

por meio de Jesus Cristo" (At 10.36). Assim, Jesus não só

"é a paz" entre Deus e o homem, judeus e gentios, mas

também 'proclamou a paz' (Ef 2.14-17). Ele andou pe a

Pa estina anunciando as Doas-novas do reino.

Mais tarde, Deus enviou seu Espírito paro dar testemunho

de Cristo Lo 15.26). Assim, o próprio Pai dá testemunho

do Fi ho, por meio do Espírito. E só agora ele dá à igreja

o privi(egio de participar desse testemunho: 'E vós tam-

bém dareis testemunho' ha 15.27, Ft.j, E fundamente nos

lembrarmos dessas vercades nurnilhantes. O evangelista

principal é Deus Pai, e e e proclamou o evange ha por inter-

médio de seu anjo, de seu Filha e de seu Espírito antes de

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Pessoas que proclamam o evangelho de Cristo 239

confiar qualquer parte cessa tarefa aos homens. Essa foi a

ordem. A igreja aparece no final da lista. E as testemunhas

da igreja sempre estarão suborc nadas ao Espírito")

John Stott

QUESTÕES RELEVANTES 1. De que modo este capítulo expandiu sua compreensão acerca do evan-

gelho bíblico? Que diferença isso fará na maneira como você expressa e compartilha o evangelho?

2. Quais os elementos do evangelho, conforme a palavra usada por Paulo, você acha que são mais negligenciados na igreja de hoje? Que você pode fazer para ajudá-la a ajustar o foco?

3. Se a essência do evangelho é "boas-novas", como elas podem ser ouvidas em sua comunidade realmente como boas-novas?

18. Stott, Our guilty silerzce, p. 57.

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CAPITULO 12

PESSOAS QUE ENVIAM E SÃO ENVIADAS

Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo. Como, pois, invo-carão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem não ouviram falar? E como ouvirão, se não há quem pregue? E como pregarão,

se não forem enviados? Assim como está escrito: Como são belos os pés dos que anunciam coisas boas!" (Rm 10.13-15; grifo do autor).

Esta maravilhosa peça de lógica retórica precisa é o perfeito conector entre o capítulo anterior e este. No capítulo 11, vimos como a grandiosa visão de Isaías, de um mensageiro trazendo as boas-novas do reino de Deus — proclamando paz, bondade e salvação (Is 52.7, citado aqui por Paulo) — flui adiante na pregação do evangelho de Cristo no Novo Testamento (tanto em seu vocabulário quanto no seu conteúdo). E argumentamos que uma parte essencial da missão do povo de Deus é cumprir o papel daquele mensageiro, ser o portador e a personificação das boas-novas. Nossa missão é sermos "pessoas-evangelho".

Mas na vida cotidiana, não damos crédito a qualquer mensagem ou mensa-geiro que cruze o nosso caminho. Queremos saber de onde ele vem. Pedimos o RG. Tentamos verificar a fonte da informação. Em nossa época saturada e ma-nipulada pela mídia, estamos acostumados a ouvir "relatos não confirmados" passados adiante por "fontes desconhecidas ligadas ao governo", e, com razão, somos céticos. Mas se alguém vem ao microfone como porta-voz oficial, autori-zado a fazer um pronunciamento em nome do presidente, confiamos que tudo o que disser está aprovado, e acatamos a autoridade da pessoa representada. Ele foi enviado para levar uma mensagem em nome daquele a quem queremos ouvir (no mundo ideal) e em quem desejamos confiar.

Essa é a dinâmica do argumento de Paulo nesse texto. As pessoas precisam ser salvas (tanto judeus quanto gentios, conforme Paulo

tem argumentando até então). Isso só é possível mediante Jesus Cristo. Portan-to, as pessoas devem invocá-lo para a salvação, como Deus já havia prometido a Israel (de modo significativo, "o Senhor" da citação que Paulo faz de Joel 2.32 era YHWH, mas agora está claro que significa Jesus). Para invocá-lo, elas devem crer nele. E para crer nele, devem ouvi-lo (na verdade, é isso o que Paulo diz, não apenas "ouvir sobre ele", mas "ouvir a ele"). E como ouvirão a Cristo? Por intermédio de alguns "arautos" que vêm em nome dele. Mas um arauto tem que

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Pessoas que enviam e são enviadas 241

ser autorizado e enviado por aquele cuja mensagem ele leva — ou seja, o próprio Cristo. Assim, Paulo conclui que a fé salvadora vem pelo ouvir, e o que é ouvido é, de fato, "a palavra de Cristo" (v. 17).

Assim, Cristo está em ambas as extremidades do processo. Ele é o objeto da fé salvadora — aquele a quem devemos invocar para a salvação — e o sujeito, que en-via o mensageiro autorizado com as boas-novas pelas quais podemos ser salvos. O envio de Cristo é o primeiro elo na progressão da sua obra salvadora. Toda a obra da salvação é de Deus, do começo ao fim; isso inclui o envio proposital, por Deus, dos mensageiros com as boas-novas de que a salvação está disponível por intermédio de Cristo. A ênfase do último verbo, "se não forem enviados", está na intencionalidade de Deus de fazer isso. As pessoas não são salvas por acidente ou por acaso, mas por um processo que começa com uma ação de autorização, de comissionamento e de envio do Deus Salvador.

((Paulo está querendo dizer que quando uma nação é fa-

vorecida com a pregação do evangelho, isso é um pensar

e uma prova do amor divino. Não na pregador a gum

do evangelho que não tenha sido levantado por Deus em

sua providência especia . No entanto, é certo que Deus

[ou seja, o próprio Deus, não apenas o pregador] visita a

nação em que o evangelho é anunciado. [...] O evange-

ho não cai do céu como a chuva, por acaso, mas, pelas

mãos dos nomens, é trazido para onde Deus o enviar.,,

João Calvino '

A citação que Paulo faz aqui de Isaías 52.7 não deve ser vista apenas como uma imagem vívida convenientemente acrescentada ao texto, para ilustrar uma questão já mencionada. Ela é o ápice deliberado de seu argumento. A questão de Paulo é esta: o fato de que agora as pessoas estão sendo "enviadas" para "pregar", a fim de que outros possam "ouvir", "crer", "invocar" e "ser sal-vos" é, por si só, o cumprimento exato dessa Escritura profética, já considerada messiânica em seus dias.

1. João Calvino, The Epistles of Paul the Apostle to Romans and Thessalonians (tradução de Ross Mackenzie; Grand Rapids: Eardmans e Carlislie: Paternoster, 1960), p. 231 [Romanos, Editora FIEL (o volume de Roma-nos foi separado do de Tessalonicenses, ainda não publicado).]

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242 • A missão do povo de Deus

Algo que cumpre as Escrituras é de fato autorizado pelo Deus das Escrituras. Enviar e pregar, portanto, são atividades que têm a aprovação de Deus e a auto-rização bíblica. A missão de Deus requer as realidades de enviar e ser enviado como parte da missão do povo de Deus.

Qual é, portanto, a essência do enviar e ser enviado? Mais uma vez, a fim de fazer nossa teologia bíblica para a vida de modo completo, devemos começar com algum uso significativo da linguagem sobre "enviar" no Antigo Testamen-to, antes de retornarmos para o Novo. Na verdade, em toda a Bíblia há um veio muito rico de teologia bíblica em torno do conceito de "enviar" para escavarmos acerca da missão do povo de Deus.

O ENVIO NO ANTIGO TESTAMENTO O verbo hebraico satah significa enviar, sendo utilizado com a mais ampla gama de significados comuns, assim como na nossa língua. Todo tipo de pessoas e coisas são enviados pelos mais variados motivos. Mas o que estamos procuran-do, em particular, são os casos em que Deus envia, e nos quais há uma dimensão teológica clara em relação à ação, seu propósito e resultados. Estamos procuran-do discernir para onde Deus envia os seres humanos como representantes de sua missão no mundo, e que série de coisas ele os envia a fazer.

De um modo geral, havendo analisado textos do Antigo Testamento que se referem ao envio que Deus faz, parece-me que dois objetivos principais se des-tacam. Quando Deus envia pessoas, na maioria das vezes, ou é para elas agirem como representantes de sua libertação e salvação ou é para elas declararem uma mensagem que alguém precisa ouvir (quer queiram eles ouvir quer não). Às vezes, Deus envia alguém como Moisés para fazer as duas coisas.

Em outras palavras, o envio que Deus faz está intimamente ligado à duas ações grandiosas no Israel do Antigo Testamento e em favor de Israel: salvação e revelação. E para ser franco, é só porque Deus enviou libertadores para seu povo e porque enviou porta-vozes de sua Palavra que, afinal, temos as Escrituras, incluindo a história deles sobre a salvação oferecida por Deus e a transmissão que eles fizeram dessa revelação do Senhor. Se Deus não fosse um Deus que envia, a Bíblia seria um livro muito diferente.

Vejamos alguns exemplos famosos.

Enviado para salvar José A primeira descrição relevante de uma pessoa sendo enviada por Deus é encon-trada na boca de José, em Gênesis 45. Ela aparece em um momento que deixa qualquer um com o queixo caído, quando José, no Egito, revela sua identidade

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Pessoas que enviam e são enviadas 243

a seus irmãos, os quais o haviam vendido como escravo anos antes e, provavel-mente, achavam que ele estivesse morto havia muito tempo.

E José disse mais a seus irmãos: Aproximai-vos. E eles se aproximaram. Então prosseguiu: Eu sou José, vosso irmão, a quem vendestes para o Egito. Agora, não vos entristeçais, nem guardeis remorso por me terdes vendido para cá; pois foi para preservar vidas que Deus me enviou adiante de vós. Porque já houve dois anos de fome na terra, e ainda restam cinco anos sem lavoura e sem colheita. Deus enviou-me adiante de vós, para vos conservar a descendência na terra e para vos preservar a vida com um grande livramento. Assim, não fostes vós que me enviastes para cá, mas sim Deus [...J. (Gn 45.4-8; grifo do autor; cf. Sl 105.17).

A tripla repetição de "Deus me enviou" expressa enfaticamente a mesma teo-logia que encerra o livro de Gênesis, ou seja, mais uma vez, pela boca de José, a ideia de que a soberania de Deus governa e opera por meio das ações (incluindo as más ações) de homens e mulheres (Gn 50.20). Mas igualmente enfático é o propósito expresso desse envio: "salvar vidas" (salvar muitas vidas; 50.20).

Deus envia porque Deus salva. O que também deixa isso interessante é que um conjunto de circunstâncias,

em que uma pessoa é completamente vítima passiva das ações ímpias de ou-tras pessoas, pode ser descrito como "Deus enviou". José dificilmente seria um missionário voluntário. No entanto, ele interpretou sua notável jornada de vida como um envio divino, ao considerar o passado. A mesma perspectiva aparece em outro extremo da história de Israel, quando os israelitas foram levados para o exílio pelo exército de Nabucodonosor, que descarregou seu ódio cruel sobre Jerusalém e seus cidadãos rebeldes.

Como Deus interpreta isso? Os exilados, afirma Deus, são aqueles a quem Deus levou para o exílio (Jr 29.4, 7, 14); na verdade, aqueles a quem Deus enviou para lá (Jr 29.20). Definitivamente, o exílio era um envio sob julgamento, mas era também um envio que poderia levar a uma missão surpreendente para o bem-estar da cidade de Babilônia (Jr 29.7; veja o cap. 13 deste livro). Uma re-flexão similar se aplica aos primeiros cristãos de Jerusalém. Com efeito, foi por intermédio da dispersão por causa da perseguição que Deus os "enviou" para além dos limites da Judeia e do judaísmo.

Moisés Com ironia considerável, a narrativa bíblica que nos mostrou que José foi en-viado por Deus para salvar seus irmãos, levando-os para o Egito, continua nos mostrando Moisés sendo enviado por Deus para salvar seu povo, tirando-os do Egito. José salva seu povo ao não permitir a morte por causa da fome. Moisés os salva da morte por meio de um genocídio.

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244 A missão do povo de Deus

Nessa ocasião não há nada apenas passivo nem retrospectivo no envio de Moisés. Desde o início isso era claramente tão desconfortável para Moisés que, no clássico pavor missionário, implorou para que Deus enviasse outra pessoa em vez dele (Êx 4.13).

A linguagem do "envio" permeia a narrativa de Êxodo 3 e está ligada, por um extremo, à compaixão de Deus e, por outro, à identidade do Senhor como o Deus que guarda a aliança. Leia Êxodo 3.10 a 15, anote o número de vezes que o verbo "enviar" aparece e as razões dadas para isso.

"0 acontecimento que se deu em Jerusalém, em 587 a.C. — a derrota e o cativeiro de seu povo, a destruição da cidade e, por fim, do templo —, do ponto ce vista da nistória não foi nada mais do que o destino tão comum ce muitos outros pequenos governos, à medida que eles eram submetidos à autoridade cas potências maiores. Mas o fato real era a go bem diferente, porque por meio ce Israel, o Rei dos reis estava preparando o caminho pelo qual seu povo seria mais que vencedor, e o mundo poderia compartilhar dessa vitória")

RicHard R. Ridder

Deus envia, porque Deus salva e porque prometeu. Essa era uma comissão na qual Moisés confiava (Êx 7.16), embora tenha

questionado sua eficácia no início (5.22). Parte da humildade lendária e da au-todefesa de Moisés estava em reconhecer que tudo o que ele havia dito e feito era resultado de Deus tê-lo enviado, e não de suas próprias afirmações (Nm 16.28). De fato, Moisés poderia se retirar de forma absoluta da narrativa e atribuir a grandiosa libertação do êxodo ao fato de Deus ter enviado um anjo (Nm 20.16), o que provavelmente não era o modo como Miriã descreveria seu irmão mais novo. O Antigo e o Novo Testamentos concordam que Moisés não era um líder autodesignado nem um campeão eleito e, tampouco, um super-herói fortuita-mente disponível. Moisés foi enviado por Deus. E foi enviado para realizar a salvação que vinha de Deus.' Por essa razão, aquilo que Moisés fez foi Deus quem o fez. Isso faz parte da essência do relacionamento do envio.

2. Richard R. De Ridder, Discipling the nations (Grand Rapids: Baker, 1971), p. 77. 3. Veja Josué 24.5; 1Samuel 12.8; Salmos 105.26; Isaías 63.12 e Atos 7.35.

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Pessoas que enviam e são enviadas 245

Juizes Os juízes também foram homens e mulheres que agiram para trazer a liberta-ção de Deus para Israel. A linguagem mais comum nesse livro é "o SENHOR levantou juízes" (Jz 2.16). O propósito era o mesmo: "salvar". Assim, na descri-ção trivial sobre Otniel, o primeiro juiz, ele foi "levantado", "salvou" os israelitas da opressão e foi capacitado pelo Espírito de YHWH — outra característica do envio divino, que observaremos mais tarde. No entanto, a linguagem do envio é usada acerca de Gideão, com um propósito (libertação) e uma promessa ("Não sou eu que estou te enviando?"), o que ecoa intensamente o envio de Moisés (Jz 6.14).

Um Salvador vindouro Tirar os israelitas do Egito foi obra de um salvador: Moisés. Mas e se os egíp-cios se voltassem para Deus e clamassem ao Senhor por causa das aflições de seu julgamento? Em uma das visões escatológicas mais espetaculares da Bíblia, Isaías prevê exatamente isso — o dia em que o Egito (que, sem dúvida, representa todas as nações) se voltará para Deus. Naquele tempo, em meio a um texto repleto de lembretes do êxodo — com a diferença de que agora são os egípcios que necessitam de libertação — Deus promete:

[...] ao SENHOR [os egípcios] clamarão por causa dos opressores, e ele lhes enviará um salvador e defensor que os há de livrar. O SENHOR se dará a conhecer ao Egito, e os egípcios conhecerão o SENHOR naquele dia. (Is 19.20, 21; ARA, grifo do autor).

O salvador previsto nesse texto, obviamente, não é outro senão o Senhor Jesus Cristo, aquele a quem Deus enviou para buscar e salvar o perdido.

Enviado para falar Mensageiros, pela própria natureza, são enviados. Falam em nome daquele que os envia. No mundo antigo, sem os meios de comunicação de massa com os quais estamos acostumados, o meio comum para a divulgação de uma mensa-gem era a proclamação oral. O papel dos arautos e embaixadores tinha grande importância social e política. É nesse contexto cultural que os profetas de Israel exerceram sua função. Eles afirmavam falar por YHWH, porque haviam sido enviados por YHWH, com sua autoridade.

Moisés Apesar de termos visto que o propósito principal de Deus, ao enviar Moisés, era li-bertar seu povo, ele também foi enviado com a tarefa de comunicar a revelação de Deus; tarefa para a qual ele se sentiu incapaz, necessitando não só da confirmação

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do Senhor, bem como da ajuda de Arão (Êx 4.10-17). Portanto, Moisés foi tam-bém um profeta. Na verdade, ele foi um profeta modelo. Deus prometeu que nas gerações seguintes, após a morte de Moisés, levantaria "um profeta semelhante a ti [a Moisés]', que teria a autoridade de Deus e falaria as palavras de Deus (Dt 18.17-20). Em um aspecto, isso é um singular genérico (como "o rei" ou "a viúva"), referindo-se a toda a linhagem de profetas que traria a Palavra de Deus a Israel. Mas, em outro aspecto, era também entendido como uma profecia que se cumpriu plenamente em Jesus; aquele que, como Moisés, foi o representante tanto da salvação quanto da revelação de Deus (At 7.37, em que, em algumas traduções, lê-se "enviará" [BUI], em vez de "levantará" [A211.

Isaías Muitos dos sermões missionários têm sido pregados sobre as famosas palavras de Isaías: "Aqui estou eu, envia-me" (A21). Muitos dos missionários reconhecem seu chamado no momento em que ecoaram essas palavras diante do Senhor. No entanto, penso que se tomarmos a cena do chamado e do envio de Isaías, pondo Isaías no centro do palco, perderemos a perspectiva, como se ele fosse o principal foco de atenção, o heroico missionário voluntário.

Entretanto, toda a descrição de Isaías 6.1-7 até esse momento é a da su-blimidade excelsa da elevação do trono de Deus. Isaías foi adorar no templo, quando, de modo impressionante, foi confrontado com a realidade do Deus de Israel e de sua santidade transcendente. Isso o derrubou, graças à consciência aterradora de seu próprio pecado. Isaías 6.5 é uma confissão notável, uma vez que se segue aos capítulos nos quais Isaías havia criticado duramente as pes-soas a sua volta por causa de seus pecados. Agora, em uma explosão de intensa autoconsciência, ele reconhece que não é melhor que aqueles a quem havia condenado. A humilhação daquele momento, a purificação de sua boca e o que vem a seguir (vv. 6, 7) são elementos vitais em seu envio.

É a partir dessa postura que Isaías ouve secretamente o que está acontecendo ao redor do trono de Deus. Pois esse é o governo e o centro de controle do universo. Essa é a sede do governo da história humana, e o governo está em ação. Há um mundo a ser administrado; estratégias a ser planejadas; decisões a ser tomadas; e mensagens a ser enviadas. Esse governo é Deus no controle, Deus no centro, Deus em missão, Deus cuidando de seus próprios negócios. E em meio a isso, Isaías ouve a pergunta: "Ok! Quem vai entregar esta mensagem? A quem enviaremos nesta missão?" E Isaías, no chão, levanta uma das mãos, do outro canto da cena: "Com licença... sim, aqui... estou disponível, vocês podem me enviar se quiserem..." Isaías não é o centro da cena; o centro continua sendo o trono de Deus.

O que está acontecendo nesse texto é uma redefinição do centro da vida e do ministério de Isaías em Deus, nos planos de Deus e na Palavra de Deus — o que o

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restante do livro mostrará ser misterioso e paradoxal finalmente englobará não só sua própria geração, mas todas as gerações futuras; não apenas Israel, mas o mundo todo. Para o próprio Isaías, essa foi uma experiência de ser terrivelmente confrontado com a realidade de Deus, de se conscientizar, de modo apavorante, de seu próprio pecado e, depois, de renovar a centralização de forma radical na missão de Deus.

Só então, como um pecador humilde, purificado e com a redefinição do centro, ele está pronto para ser enviado. Só então Deus diz: "Vai".

Jeremias Jeremias também sentiu o toque de Deus em sua boca; no seu caso, não foi para purificá-la, mas para enchê-la com as palavras do próprio Deus (Jr 1.9). Se Isaías precisava do toque de Deus porque sentia sua própria pecamino-sidade, Jeremias precisava dele porque sentia a inadequação de sua própria juventude. A explicação de Deus sobre esse gesto cita exatamente aquilo que ele havia prometido a Moisés: "Eis que ponho na tua boca as minhas pala-vras" (cf. Dt 18.18), indicando que Jeremias pertence à autêntica linhagem de profetas que Deus suscitou.

Isso também indica claramente a natureza da inspiração das Escrituras. As palavras que Jeremias falou são dele mesmo — marteladas (concebidas) em seu próprio coração (e ossos) — e diferentes das palavras de um Amós ou de um Ezequiel. Mas em um sentido mais profundo, elas são as palavras de Deus. Isso, obviamente, é a essência de ser um porta-voz ou mensageiro. As palavras do arauto são reconhecidas como as palavras de seu rei. É para isso que ele foi enviado.

Jeremias utiliza a linguagem do envio, realizado por Deus, mais que qual-quer outro profeta, talvez porque o momento de seu comissionamento fosse tão assustadoramente aberto. Deus diz a ele (literalmente): "[...] a todos a quem eu te enviar irás; e tudo quanto eu te mandar falarás" (Jr 1.7; ARA). Desse modo, sua missão e sua mensagem seriam igualmente ilimitadas. Ele não teria livre escolha de seu público, nem livre escolha de mensagem. E conforme vemos, Deus o envia a lugares nos quais ele enfrenta hostilidade e perigo, e lhe dá pa-lavras que são interpretadas como traição pelo governo e como blasfêmia pelas autoridades religiosas. O envio de Jeremias foi um envio solitário, perigoso e desolador. Às vezes, o fato de ter sido enviado por Deus era a única coisa para a qual ele poderia apelar para salvar a própria vida (Jr 26.15).

Qualquer hermenêutica missional do livro de Jeremias precisa prestar aten-ção ao custo missional para o mensageiro.

Jeremias estava cercado por falsos profetas. É claro que esse é um termo que podemos aplicar agora de modo retrospectivo. A realidade de seu contexto deve ter sido confusa. Alguém como Hananias não usava um crachá escrito: Hana-

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vias, falso profeta. No entanto, Jeremias sabia que muitos que falavam em nome de YHWH nunca estiveram na presença do Senhor nem foram enviados por YHWH, e ele condenou esse fato de modo implacável (Jr 14.15; 23.21; 28.9, 15; 29.9). Isso era um crime grave, digno de morte, conforme Deuteronômio 13.1 a 5 — que ilustrava um sinal da morte de Hananias (Jr 28.15-17).

Mais preocupante que os falsos profetas não enviados por Deus, a quem o povo dava ouvidos, era a longa linhagem de profetas verdadeiros, enviados por Deus, a quem o povo se recusava ouvir. Isso incomodava muito Jeremias (Jr 7.25, 26; 25.4; 26.5; 35.15). Isso incomodava Jesus ainda mais. Na verda-de, Jesus transformou esse fato em uma parábola que retrata toda a história de Israel, bem como sua rejeição a todos os servos/profetas a quem Deus enviara — culminando, é claro, na prevista rejeição do próprio Filho de Deus (Mc 12.1-12).

A lição evidente de Jesus, de Jeremias e da maioria dos profetas é, portanto, que o simples fato de alguém ser enviado por Deus não é uma garantia de acei-tação popular ou de sucesso evidente para o mensageiro humano enviado. Eles, em geral, podem esperar o contrário disso (Jr 1.17-19; Ez 2.3-6; 3.4-9). Embora ainda haja grande tristeza e ira (humana e divina) em resposta a esse fato, não há desespero no final. Porque, no final, aquele a quem Deus envia cumprirá o propósito do Senhor. Pois é Deus, não o mensageiro, quem está no controle dos resultados. Essa grande esperança está fundamentada em duas outras realidades às quais o Antigo Testamento se refere como enviadas por Deus: o Espírito de Deus e a Palavra de Deus.

O Espírito e a Palavra O Espírito de YHWH tem um papel importante no Antigo Testamento, mais que muitas pessoas imaginam, principalmente aquelas cuja ligação mental feita entre o Espírito Santo e a missão é completamente regida pelo dia de Pentecos-tes e pelo livro de Atos. Temos observado pessoas a quem Deus enviou com relação à sua obra de salvação e de revelação. O Espírito está explicitamente ligado às duas.'

No entanto, no Antigo Testamento, afirma-se apenas uma vez que Deus "manda" seu Espírito, com relação ao poder vivificador de Deus, à natureza criada (S1 104.30). Ezequiel se aproxima desse tipo de linguagem quando é orde-nado a profetizar que o sopro/Espírito de Deus trouxesse ressurreição ao povo de Deus. É Jesus, especificamente o Jesus ressuscitado, quem ordena o Espírito, sopra o Espírito e envia o Espírito para capacitar seus discípulos para a missão (Lc 24.49, Jo 20.21, 22; At 1.8).

4. Para uma pesquisa mais abrangente sobre o Espírito de Deus no Antigo Testamento, veja Wright, Knowing the Holy Spirit through the Oldt Testament (Downers Grove: InterVarsity Press, 2006).

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Os missionários vêm e vão, e eles podem ou não alcançar o alvo para o qual foram enviados. A Palavra de Deus, no entanto, enviada por Deus por intermé-dio daqueles a quem ele comissiona para pregá-la, não possui essa incerteza.

A palavra de Deus é o perfeito missionário e produz frutos em total confor-midade com os planos de Deus. Aqui está o envio que Deus faz intencionalmen-te, cumprindo o desejo supremo dele mesmo:

Porque, assim como a chuva e a neve descem dos céus e não voltam para lá, mas regam a terra e a fazem produzir, para que dê semente ao semea-dor e pão ao que come, assim será a palavra que sair da minha boca; não voltará para mim vazia, mas fará o que me agrada e cumprirá com êxito o propósito da sua missão. (Is 55.10, 11; grifo do autor).

Portanto, o seguimento de nossa jornada na teologia bíblica sobre o tema "enviar" no Antigo Testamento nos forneceu três elementos principais a ser considerados:

Envio para a salvação e revelação Em primeiro lugar, Deus pode enviar qualquer um para uma missão, mas, em geral, sempre envia alguém para ser um agente da libertação que ele oferece ao mundo ou para ser porta-voz de sua mensagem, ou ambas as coisas. O envio que Deus faz é parte integrante de seu salvar e de seu falar — da salvação e da revelação de Deus.

Visto que sabemos que a missão de Deus é basicamente a redenção de toda a sua criação e a propagação do conhecimento de sua glória até os confins da terra, o fato de Deus escolher agentes humanos para enviar, usando-os para cumprir essa missão, é de grande importância. A missão do povo de Deus deve incluir a provisão de uma reserva daqueles a quem Deus pode enviar, para sus-tentar esse objetivo abrangente. Portanto, pertencer ao povo de Deus é estar, no mínimo, disponível para ser enviado.

Envio com autoridade Em segundo lugar, a pessoa enviada encarna a presença e a autoridade da pessoa que o envia. Isso era verdade mesmo no envio comum feito pelos seres huma-nos. Tratar os mensageiros com respeito ou humilhação era, com efeito, honrar ou envergonhar a pessoa que os enviou. A maneira como alguém respondia aos mensageiros era tomada como sua resposta àquele que o enviara, sendo tratado como tal (1Sm 25.39-41; compare com 2Sm 10.1-5).

Da mesma forma, rejeitar a autoridade de Moisés (Nm 12.8) ou o ministério de Samuel (1Sm 8.7) era rejeitar o próprio Deus. Jesus afirmou o mesmo em relação a

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250 a A missão do povo de Deus

como as pessoas reagiam a ele como o enviado do Pai (Jo 5.23) e como reagiriam aos seus discípulos enviados por ele (Mt 10.40, 41; Jo 13.16, 20; 15.18-21).

Envio e sofrimento Em terceiro lugar, ser escolhido por Deus para ser enviado pode parecer algo que traz grande honra e responsabilidade, mas a realidade mais contundente é que isso normalmente envolve sofrimento, rejeição, perseguição e às vezes morte. A missão de Deus envolveu uma série de enviados, libertadores e men-sageiros, mas o cumprimento da missão de Deus não depende de tais agentes humanos, mas do poder soberano do próprio Deus, por meio de seu Espírito e de sua Palavra.

A única exceção dessa última frase foi aquele que realmente incorporou todos três aspectos acima — o Servo do Senhor. Porque ele certamente é retratado como o agente da salvação e da revelação de Deus; ele encarna a presença e autoridade do próprio Deus e sofre rejeição, violência e morte. Mas, acima de tudo, ele cum-prirá a missão de Deus e será exaltado por cumpri-la (Is 42.1, 4; 53.10).

E, partir daí, estaremos a um pequeno passo do Novo Testamento.

O DEUS QUE ENVIA O envio, na verdade, é uma atividade de todas as três Pessoas da Trindade. Há uma dinâmica missional no próprio Deus em relação ao mundo. E de acordo com o que vimos no Antigo Testamento, ela se refere principalmente à salvação e à revelação.

O Pai como aquele que envia o Filho e o Espírito Jesus não apenas veio, ele foi enviado. Essa é uma das dimensões mais notáveis de sua autoconsciência — a consciência norteadora de que ele havia sido en-viado por seu Pai, para fazer a vontade dele. Isso é certamente um dos temas dominantes da apresentação que João faz de Jesus. Cerca de quarenta vezes no Evangelho de João, lemos sobre o fato de Jesus ter sido enviado — quer seja pelos lábios do evangelista quer pelo próprio Jesus (por exemplo: Jo 3.17, 34; 4.34; em vários trechos dos caps. 5 a 8; 11.42; 17.18, cf. também com 1Jo 4.9, 14). Na verdade, o propósito expresso de João para seus leitores é que eles cheguem a crer que Jesus é aquele a quem Deus enviou, porque crendo nisso, eles chegarão à salvação e à vida eterna.

Os sinópticos usam menos essa palavra, mas ela não está ausente (por exemplo, Mt 15.24; Lc 4.18, 43 = Mc 1.38, cf. At 3.20 para a expectativa de que Deus enviaria Jesus de volta para reinar como o Messias). Paulo se une ao coro da convicção de que a vinda do Messias Jesus não foi um acidente,

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mas sim o bem cronometrado envio do Filho pelo Pai (Rm 8.3; Gl 4.4). E o escritor aos Hebreus pôde falar de Jesus como "nosso apóstolo" (Hb 3.1), enfatizando que ele foi enviado e designado por Deus, assim como Moisés, porém maior que este.

Visto que Deus envia o seu Espírito no Antigo Testamento, não é de admirar que se fale que Deus, o Pai, faz isso no Novo Testamento (Jo 14.16, 26; 15.26) ou que Jesus fará o mesmo, de acordo com a promessa do Pai (Lc 24.49).

O Filho como aquele que envia o Espírito e os apóstolos Jesus envia o Espírito com as tarefas missionais específicas relacionadas à salva-ção e à revelação (Jo 15.26; 16.7-15; 20.22, 23).

E Jesus também, naturalmente, envia seus discípulos. Ele os enviou em mis-sões por duas vezes durante sua vida terrena, e depois, após sua ressurreição, em variadas formas da Grande Comissão. De modo notável, é João quem registra que Jesus teve seu próprio envio pelo Pai como um modelo para o envio de seus discípulos — algo que ele enfatizou repetidamente ao longo de todo o seu evangelho (Jo 20.21).

O Espírito Santo como aquele que envia Jesus

e os apóstolos O Espírito Santo está envolvido no envio de Jesus. Isso nunca é expresso na forma: o Espírito "enviou" Jesus, mas certamente Jesus é enviado com o Espírito ou no poder do Espírito. Sua missão é exatamente uma missão que foi confiada a ele pela unção do Espírito (Lc 4.18, 19). Lucas enfatiza, em vários pontos, que tudo quanto Jesus fez foi feito na plenitude do Espírito ou guiado pelo Espírito. Mais adiante, Lucas ainda registra Pedro dizendo a mesma coisa a Cornélio (At 10.38). Paulo percebe a instrumentalidade do Espírito na ressurreição de Jesus (Rm 1.4) enquanto Hebreus liga "o Espírito eterno" ao fato de Cristo oferecer a si mesmo numa morte sacrificial (Hb 9.14).

Além disso, o Espírito Santo, junto com Jesus, é quem envia os apóstolos. Foi o Espírito Santo quem expressamente escolheu e nomeou os primeiros missionários de Antioquia e os enviou em seu caminho (At 13.1-4). E foi o Espírito Santo quem guiou suas viagens, algumas vezes impedindo-as, outras vezes dirigindo-as (At 16.6, 7).

Há, portanto, uma maravilhosa rede interligada de envios na apresentação que o Novo Testamento faz sobre o envolvimento de Deus na missão de Jesus e da igreja. Deus, o Filho, é enviado por Deus Pai e pelo Deus Espírito. Deus, o Espírito, é enviado pelo Deus Filho e por Deus Pai. Os apóstolos são enviados por Deus Filho e por Deus, o Espírito. Só Deus, o Pai, é aquele que envia sem ser enviado. Ele envia o Filho e o Espírito, mas ele mesmo nunca é "enviado".

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252 A missão do povo de Deus

Portanto, a missão do povo de Deus não é uma estrutura externa, cons-truída pela própria igreja — um programa ou uma estratégia desenvolvida por uma instituição. O envio para a missão é uma participação na vida de Deus. A missão do povo de Deus nessa dimensão de "enviar e ser enviado" deve ser alcançada dentro da dinâmica do "envio e do enviar" que Deus, a Santíssima Trindade, fez e continua fazendo para a salvação do mundo e para a revelação de sua verdade.

OS APÓSTOLOS

Os Doze A própria palavra apóstolos significa enviados. Duas palavras gregas poderiam ser utilizadas para "enviar", pempo e apostello, e ambas são encontradas no Novo Testamento, com pouca diferença entre elas. Entretanto, quando aplicadas aos primeiros doze discípulos a quem Jesus chamou para si, a forma substantiva, apostolos, adquire um significado especial em relação àquele grupo (embora, con-forme veremos em breve, ela pudesse ser também usada de modo mais vago).

ttMateus 10 mostra claramente que o ministério dos após-

to os é uma continuação da cora co próprio Jesus. A men-

sagem deles é uma repetição exata das palavras de João

Batista e de Jesus: "O reino co céu chegou" )v. 7). O minis-

tério ce cura deles também é uma continuação das curas

miracu osas que Jesus já navio rea izado. Eles saíram para

curar os enfermos, ressuscitar os mortos, purificar os leprosos

e expulsar demônios [...]. Jesus está preparando o terreno

para o período da história pós-ascensão, quando sua tarefa

missionária será confiada aos seus seguidores. Essa missão

estará sob seu comando e autoridade, mas ele passará o

bastão da responsa ai idade ativa para seus ciscípulos.),

Martin GoldsmiTH

5. Martin Goldsmith, Matthew and mission: The gospel through jewish eyes (Carlisle: Paternoster, 2001), p. 92-93.

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Pessoas que enviam e são enviadas * 253

Ser enviado era a essência do apostolado, embora o envio fosse considerado mais como um comissionamento ou uma autorização para uma tarefa do que necessariamente algo que envolvesse viagens geográficas. Os discípulos foram apóstolos na própria Jerusalém antes que alguns deles se engajassem no mi-nistério itinerante. E alguns dos que se tornaram pregadores itinerantes (como Filipe) não eram necessariamente apóstolos.

Os primeiros discípulos Os relatos dos evangelhos sobre o chamado dos primeiros doze são reveladores e dignos de uma pausa para lermos na íntegra aquilo que eles dizem sobre as intenções de Jesus nessa ação decisiva (Mt 10.1, 2, 5; Mc 3.13-15, Lc 6.12, 13).

Que aprendemos? Jesus escolhe os doze. O número é, sem dúvida, significa-tivo, refletindo as doze tribos de Israel. Esses apóstolos serão o núcleo de Israel no Messias, encarnando o papel e a missão de Israel conforme temos visto ao longo deste livro.

Eles eram discípulos que se tornaram apóstolos, mas continuavam sendo discípulos (como são ainda mencionados em Mateus 28, no momento da Gran-de Comissão). Ou seja, era apenas como humildes seguidores e aprendizes de Jesus, seu Senhor e Mestre, que poderiam exercer a função de apóstolos. Foram escolhidos e chamados por Jesus, não autodesignados nem eleitos pelo restante dos discípulos (os quais, de modo geral, sabemos que eram muitos). Seja qual fosse sua autoridade, função e ministério, isso provinha de Cristo somente.

Eles deveriam estar com ele. Ou seja, eles simplesmente deveriam passar tempo com Jesus; aprendendo dele; sendo treinados por ele; entendendo sua identidade e missão; pagando o preço do discipulado radical; testemunhando sua vida, seu ensino, sua morte e, acima de tudo, sua ressurreição. Isso, por si só, tornou esse grupo de doze um grupo único, tanto que quando Judas saiu, o critério que eles estabeleceram para substituí-lo incluía os mesmos elementos: ter sido testemunha de Jesus desde os dias de João Batista até a ressurreição (At 1.21, 22).

Os apóstolos deveriam oficialmente replicar e ampliar o ministério do próprio Jesus. Ele os enviou. Deu-lhes autoridade. E com essa autoridade, eles deveriam fazer o que Jesus estava fazendo — pregando as boas-novas do reino de Deus, expulsando demônios e curando os enfermos.

Mateus prefacia seu relato sobre o envio dos doze com um relatório re-sumido de tudo quanto Jesus estava fazendo (Mt 9.35, 36) antes de dizer aos discípulos para orarem para que Deus enviasse trabalhadores e de comissio-ná-los para ser a resposta de suas próprias orações, ao realizarem exatamente as mesmas coisas que Jesus fez. É por essa razão que Lucas pôde descrever seu primeiro volume como uma narração de "tudo quanto Jesus começou a fazer e ensinar", com a implicação de que o segundo volume, o que chamamos de

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254 A missão do povo de Deus

Atos dos Apóstolos, era o que Jesus continuou a fazer e a ensinar por meio desses representantes autorizados.

O apóstolo Paulo Exceto pelo fato de não ter sido um companheiro de Jesus antes da crucifica-ção, todos os pontos acima são destacados pelo chamado e envio de Saulo de Tarso, como o apóstolo Paulo. Foi-lhe concedido um encontro especial com o Cristo ressurreto e ele pôde descrever a si mesmo como uma testemunha da ressurreição. Ele sabia que fora enviado por Cristo para a missão que ocupou o resto de sua vida. E afirmava, sem se vangloriar, a sua autoridade para pregar o evangelho, confirmada com obras de poder, cura e expulsão de demônios, a qual vinha unicamente de Cristo (veja At 22.14-21; 26.15-18; Rm 1.1; Gl 1.1, 15, 16, é curioso o fato de Paulo reconhecer que seu chamado foi feito antes de seu nascimento, assim como o de Jeremias).

Paulo também reflete os demais apóstolos, nos primeiros capítulos de Atos, por intermédio de seu compromisso sincero com a pregação do evangelho (com acompanhamento de "sinais e prodígios"). Ele não considerava sua vida preciosa para si mesmo se não pudesse completar sua carreira e o ministério que recebeu do Senhor Jesus, "para dar testemunho do evangelho da graça de Deus" (At 20.24). Seu "dever sacerdotal" era "proclamar o evangelho de Deus" (Rm 15.16-21; NVI).

Em outras palavras, toda a vida de Paulo foi dedicada a ser um cumprimento vivo de Isaías 52.7, como um mensageiro das boas-novas do reino de Deus para as nações (At 20.25). Era isso o que significava ser um apóstolo, em pé de igual-dade com Pedro e os demais (G12.8-10).

Prioridades apostólicas Encontramos a mesma ênfase sobre a importância crucial da comunicação da mensagem no início de Atos. Os apóstolos não poderiam deixar de falar sobre o que tinham visto e ouvido (At 4.20), e sua determinação em pregar o evangelho sobreviveu às proibições e ameaças (4.18, 21), à prisão (5.17-42), ao martírio e às perseguições (6.8-8.4). Não há dúvida de que a tarefa de proclamar a men-sagem do evangelho de Jesus Cristo era persistentemente a prioridade máxima dos apóstolos, embora isso não excluísse outras tarefas-chave, as quais eram partes integrantes do evangelho, conforme veremos em breve.

Essa prioridade apostólica de pregar também sobreviveu à complexidade crescente do movimento de Jesus e à sua necessidade de organização prática e logística. Atos 6.1-7 é bem conhecido como o momento em que os apóstolos preservaram a sua principal responsabilidade de dar testemunho de Cristo por intermédio da pregação da Palavra, sem que fossem engolidos pelas tarefas de assistência social e pelas tensões de discriminação étnica que foram surgindo à medida que a comunidade crescia.

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Pessoas que enviam e são enviadas • 255

A resposta dos apóstolos demonstra grande sabedoria em reconhecer a prioridade do que eles, como apóstolos, foram chamados e enviados por Cristo para fazer, garantindo, ao mesmo tempo, que outras tarefas necessárias fossem confiadas a pessoas piedosas e competentes. A relevância dessa passagem para a missão, no entanto, merece um tratamento cuidadoso.

((É certo que foi intencional o fato de o trabalho cos

Doze e o tropa ho cos Sete serem igualmente chamados

de diakonia (vv. 1, 4), ministério ou serviço. O primeiro

é o "ministério da palavra" (v. 4) ou trabalho pastoral; o

ú timo, "o ministério ce servir às mesas" (v. 2) ou trabalho

social. Nenhum dos ministérios é superior ao outro. Ao

contrário, ambos são ministérios cristãos, ou seja, maneiras

ce servir a Deus e a seu povo. Ambos requerem pessoas

espirituais, "cheias co Espírito", para exercê-los. E ambos

podem ser ministérios cristãos de tempo integral. A única

diferença entre eles está na forma que o ministério tem,

exigindo dons diferentes e chamados diferentes.),

John Stott

As palavras dos apóstolos em Atos 6.2 podem ser facilmente mal interpre-tadas. "Em razão disso, os Doze convocaram a multidão dos discípulos e disse-ram: Não faz sentido que deixemos a palavra de Deus e sirvamos às mesas." Isso pode soar como se os apóstolos considerassem a tarefa de servir comida para as mesas das viúvas algo que estivesse aquém deles. A NVI dá essa impressão ao inserir "o ministério da" (que não está no grego) antes de "palavra de Deus", o que obscurece o fato de que o que estava acontecendo nas mesas também era "servir/ministrar", e ao traduzir o verbo diakonein (que está no grego) apenas como "servir às mesas". A impressão que isso dá é que é muito mais importante ser um pregador ("ministro") que um garçom.

6. John Stott, lhe message of Acts (lhe Bible speaks today; Leicester: IVP e Downers Grove, IVP, 1990), p. 122 [Série: A Bíblia fala hoje: A mensagem de Atos, São Paulo: ABU.] Veja também John Stott, The living church: Convictions of a lifelong pastor (Nottingham, IVP e Downers Grove. IL: IVP, 2007) cap. 4, "Ministry: The twelve and the seven" [Sinais de uma igreja viva, São Paulo: ABU, 2005.]

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256 - A missão do povo de Deus

No entanto, o termo usado para servir ou ministrar (diakonia, diakonein) é utilizado tanto para o que estava sendo feito em termos do fornecimento de alimentos para os necessitados (At 6.2) quanto para a pregação da palavra ("mi-nistério da palavra", no versículo 4). As duas coisas eram ministérios da igreja, e ambas eram bastante importantes e precisavam de pessoas cheias do Espírito Santo (v. 3). A questão dos apóstolos era simplesmente que a distribuição de alimentos para os necessitados não era a função para a qual eles, os Doze, foram chamados e enviados primeiramente (embora isso tivesse sido parte de seu treinamento com Jesus). Entretanto, isso deveria ser feito, e deveria ser feito por pessoas selecionadas e designadas para esse ministério.

Portanto, é uma distorção do texto usá-lo para sugerir que a pregação da Palavra tem primazia e prioridade na igreja como um todo em sua missão, como se isso estivesse em oposição a todas as formas de serviço social ou à compaixão pelos necessitados. No versículo 2, Lucas tem o cuidado de distinguir "os Doze" dos "demais discípulos" e de registrar que eles disseram: "Não faz sentido que deixemos", o que significa que eles estavam falando da principal prioridade do ministério que eles mesmos tinham como apóstolos comissionados por Cristo, não que isso devesse ser ignorado como prioridade por todo o corpo de discípulos.

Lucas já havia deixado claro que a preocupação social e econômica da igreja para com os necessitados estava ligada ao ensino dos apóstolos, e que o rápido crescimento da igreja era o resultado tanto do ensino e do evangelismo feito pelos apóstolos quanto da qualidade do amor e do cuidado na comunidade dos seguidores de Jesus (At 2.42-47; 4.32-35).

Além disso, enquanto o ministério da Palavra continuou sendo a prioridade urgente dos apóstolos, o "ministério de servir às mesas" tornou-se a prioridade daqueles que foram designados para essa tarefa como seu ministério. No entanto, podemos ver também que essas prioridades não excluíam uma a outra. Aqueles que ministravam às mesas também podiam pregar e evangelizar (como Estevão e Filipe). Aqueles que eram apóstolos também podiam levar alívio aos necessi-tados (At 11.27-29; cf. a importante coleta feita por Paulo em favor dos pobres de Jerusalém, Rm 15.25-33; 1Co 16.1-4; 2Co 8, 9). Na verdade, lembrar-se dos pobres era um critério de aceitação na comunhão dos apóstolos (G12.9, 10).

De fato, é notável quão pouca atenção é dada à coleta que Paulo fez para os pobres de Jerusalém nas pesquisas sobre a teologia de Paulo ou sua missão. No entanto, isso ocupou anos de sua vida, e ele se refere a isso em três das suas maiores cartas, dedicando dois capítulos inteiros de 2Coríntios a isso. Jason Hood, que fala da grande "paixão que Paulo tinha pelos pobres", destacou que a "coleta" feita por Paulo e outros ensinamentos sobre posses e generosidade ocupam mais espaço em suas cartas do que seu ensino sobre a justificação pela fé. No entanto, os estudiosos de Paulo e líderes da igreja contemporânea geral-mente falham em dar a devida atenção a essa coleta.

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Pessoas que enviam e são enviadas • 257

((Para Paulo, o cuicado para com os pobres não se opõe

ao "ministério do evangelho". O retorno para a Judeia

para entregar a co eta tem prioridace sobre a visita ce

Paulo a Roma. Conforme ele explica em Romanos (Rm 15),

essa visita seria um grande encaminhamento do ministério

do evangelho para a metade ocicental do Império até a

Espanha. Não sabemos se Paulo concluiu essa missão,

mas sabemos que ele entregou a coleta. A coleta era tão importante que sua entrega, naquele momento, era uma

questão mais urgente para Paulo que seu desejo de evan-

gelizar e plantar igrejas na fronteira missionária")

Jason Hood7

Hood continua, com um argumento que deveria ser notado por aqueles que alegam que a única prioridade legítima dos apóstolos (e de seus sucessores evangelistas) era a proclamação e a plantação de igrejas. No final de Romanos, Paulo adia seu plano de se engajar nesse ministério no Mediterrâneo Ocidental, a fim de dar prioridade, naquele momento, à entrega da coleta para os pobres em Jerusalém. Longe de considerar isso uma interrupção ou negligência no "ministério do evangelho", Paulo, na verdade, via isso como uma demonstração crucial do evangelho em ação.

Apóstolos: os outros Então havia doze apóstolos. Ou não?

Sem dúvida, os primeiros doze apóstolos tinham uma posição e um papel únicos na Igreja Primitiva. Eles eram a fonte do testemunho oficial da vida, morte e ressurreição de Jesus; por isso, era essencial que sua voz e, mais tarde, os escritos de alguns deles fossem ouvidos e considerados concludentes. Eles desempenharam um papel fundamental na igreja de Jerusalém, sendo geral-mente mencionados por Lucas como os líderes dela, mesmo quando a perse-guição dispersou muitos cristãos para outros lugares e, até mesmo, quando os movimentos missionários estavam em andamento em outros centros, como Antioquia (At 5.27-32; 8.1, 14; 9.27; 11.1; 15.1-6, 22; 16.4).

7. Jason Hood, "lheology in action: Paul and Christian social card' em Transforming the world: The gospel and social responsibility (eds, Jamie A. Grant e Dewi A. Hughes, Nottingham: Apollos, 2009), p. 129-146. Citação extraída da p. 134; itálico original.

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258 a A missão do povo de Deus

Mais tarde, ouvimos falar sobre um grande número de outras pessoas que também são descritas como "apóstolos", com o sentido geral de pessoas enviadas para fazer variadas tarefas. Eis uma lista de textos em que são mencionados após-tolos que não estavam no grupo oficial inicial de apóstolos, os Doze + Paulo.

,

, .

": '

Paulo diz que Jesus apareceu aos "apóstolos" após a ressurreição dele. Mas ele acabara de listar Pedro e os Doze no versículo 5, o que sugere que ele estava se referindo a um grupo mais amplo de pessoas com algum tipo de ministério apostólico.

Barnabé é chamado apóstolo juntamente com Paulo, provavelmente com o sentido de um "missionário" comissionado. Barnabé, embora fosse uma figura importante na Igreja Primitiva, não estava entre os Doze. Mas foi designado, comissionado e enviado pela igreja de Antioquia.

-P,

,

'.

Paulo descreveu o papel de Tito como seu representante de confiança na matéria de administrar as doações financeiras que as igrejas na Grécia estavam fazendo para a igreja em Jerusalém (8.16-24). Mas havia outros que o acompanharam, a quem Paulo descreve literalmente como "apóstolos das igrejas", que normalmente é traduzido como "representantes" ou "mensageiros". Eles também têm a aprovação de Paulo como "uma honra a Cristo".

=

..,

Paulo fala calorosamente de Epafrodito como "meu irmão, cooperador e companheiro de lutas", que também é "vosso mensageiro" [lit. vosso apóstolo], a quem vós enviastes "para me socorrer nas minhas necessidades". Isso é quase idêntico ao papel de Tito. Epafrodito havia sido enviado pela igreja de Filipos, como seu representante e mensageiro, com ajuda financeira para a obra missionária de Paulo.

Rm MO

I-

Andrônico e Júnias, provavelmente marido e mulher, são recebidos por Paulo como "notáveis entre os apóstolos" (NVI). Isso quase certamente significa que ele os via como apóstolos notáveis, e que eles haviam sido considerados como notáveis pelos apóstolos (ou apenas "apóstolos eminentes", TEB). Não nos é dito o que o seu apostolado envolvia, mas eles podem ter sido evangelistas itinerantes ou exercido a função de mestres, semelhantes à Priscila e Aguda, que haviam servido "todas as igrejas dos gentios" (16.3, 4; NVI). Talvez, Filólogo e Júlia (v. 15) fossem outra equipe de marido e mulher, mas não sabemos.

i CO 12.28, 29; BE 4,11

Paulo inclui apóstolos junto com profetas, pastores, mestres, evangelistas, pessoas com dom de cura, administradores etc. nos dons de ministério que Deus deu à igreja. Talvez ele estivesse se referindo à posição única e insubstituível dos Doze, os pilares da fundação da igreja. Mas em vista da amplitude, pluralidade e diversidade de outros ministérios, ele poderia muito bem estar se referindo ao papel apostólico (missionário) mais amplo, principalmente na plantação e instrução das igrejas, em primeiro lugar.

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Pessoas que enviam e são enviadas 259

MARCAS DA MISSÃO: IGREJAS QUE ENVIAM E SUSTENTAM O Novo Testamento nos fala não só sobre indivíduos como aqueles menciona-dos acima — indivíduos que viajaram em todas as direções em variadas missões. Ele também nos dá exemplos de igrejas que foram notáveis em missão. Havia, naturalmente, a "igreja-mãe" em Jerusalém, onde o poder da pregação dos após-tolos — combinado com a comunhão espiritual, a comunidade social e a compai-xão econômica dos primeiros crentes — levou-a a esse crescimento notável. Mas Jerusalém não permaneceu como o único centro de propagação da igreja.

Antioquia se tornou o centro de missão para o norte e o oeste. E a base para essa expansão missionária é igualmente clara: a igreja de Antioquia era etnica-mente bem mista (e, portanto, já estava aberta à visão internacional e ao poder do evangelho), bem ensinada por Paulo e Barnabé (e, assim, entendia "todo o conselho de Deus", conforme Paulo, mais tarde, ensinaria à igreja de Éfeso) e bem dirigida por pessoas que eram abertas ao Espírito Santo e exercitavam dons de profecia, ensino e discernimento (At 11.19-26; 13.1-3).

Tempos depois, a igreja de Filipos, a primeira base de operações do evan-gelho na Europa, torna-se o centro de apoio para o trabalho missionário de Paulo mais ao sul. Paulo também fala calorosamente da mensagem irradiante do evangelho, que repercutiu da igreja vizinha, de Tessalônica (lTs 1.7, 8), mas só os cristãos de Filipos, afirma ele, haviam firmado parceria (koinonia) com ele no evangelho, enviando apoio financeiro vez após vez. A carta aos Filipenses é essencialmente uma carta "de agradecimento" e um recibo de uma doação generosa passada às mãos do seu "apóstolo", Epafrodito (Fp 4.14-20).

3João - A dupla fidelidade No entanto, há outro exemplo bastante negligenciado de uma igreja que enviava pessoas e sustentava missão, deixado de lado no final da Bíblia: a comunidade a quem a terceira carta de João se dirigia.

Muito provavelmente, essa era uma das igrejas de Éfeso, ou em suas imedia-ções, que se associou com João de alguma forma. "O presbítero", quem escreve a carta, pode ser um dos discípulos de João, mas visto que seu nome é mencionado na carta, nós nos referiremos ao autor apenas como João. Parecia haver proble-mas e divisões na igreja. João havia enviado mensageiros, "os irmãos", mas eles se depararam com uma recepção mista. Alguns, como Gaio, os acolheram e os apoiaram (vv. 1-8). Outros os evitaram e expulsaram, assim como Diótrefes (vv. 9, 10). Aquilo que João diz para Gaio é instrutivo e estabelece um modelo para nós de como deve ser uma igreja que envia pessoas e sustenta a missão.

João elogia Gaio por sua fidelidade em duas áreas: fidelidade à verdade (vv. 3, 4) e fidelidade aos irmãos e irmãs (vv. 5-8). As duas coisas são essenciais para igrejas comprometidas com a missão.

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260 - A missão do povo de Deus

Fidelidade à verdade Fidelidade à verdade é uma expressão abreviada; o que é compreensível, visto que o autor está aparentemente com pouco papel e tinta (v. 13), mas pelo restan-te dos escritos de João, sabemos o que isso incluía:

• A verdade da encarnação (que Jesus era verdadeiramente Deus em carne humana).

• A verdade que Jesus era o Messias (que ele cumpriu a história e a promes-sa do Antigo Testamento).

• A verdade da cruz e da morte expiatória de Jesus por nossos pecados. • A verdade de sua ressurreição corporal. • A verdade de sua singularidade como Salvador e Senhor.

Tudo isso é parte da verdade essencial do evangelho. Gaio acreditava nisso, vivia isso, "andava nisso" e apoiava aqueles que faziam o mesmo. Naturalmente, portanto, ele e aqueles na igreja que pensavam e viviam como eles apoiavam a missão daqueles que iam e vinham em nome de Cristo.

Para a missão, isso é o transbordar inevitável do compromisso total com a verdade. Assim como a igreja de Antioquia sustentava a missão após o ensino fiel de Paulo e Barnabé, a igreja de 3João sustentava a missão com base no fiel "andar na verdade" de Gaio. Igrejas que enviam pessoas para a missão são igrejas que andam na verdade. Infelizmente, o oposto disso também é verdade.

Fidelidade aos missionários "Amado", escreve João a Gaio, "tu procedes com fidelidade em tudo o que fazes para os irmãos, principalmente os que te são estranhos" (v. 5). Adelphoi é um termo grego genérico que incluía homens e mulheres. Algumas traduções dizem "os amigos" ou "nossos colegas". Mas quem eram eles?

É bem provável que eles fossem o tipo de missionários itinerantes que vimos na tabela acima, pessoas envolvidas em ministérios de viagens de evangelismo, de plantação de igrejas e de tudo o que se seguiu a isso: contato entre as igrejas locais, ensino, edificação das estruturas de liderança local, redes de contato, trans-porte de cartas e notícias, compartilhamento de recursos, trazer perguntas e levar respostas, correção de falsos ensinos, incentivo à perseverança. Na vida de Paulo, encontramos muitos desses homens e mulheres que viajavam com esses propósi-tos — particularmente pessoas como Apolo, Febe, Priscila e Muita, Timóteo e Tito (por exemplo: Rm 16.1, 2; 1Co 3.6; Ef 6.21, 22; 1Ts 3.2; Tt 1.5; 2Tm 4.12).

Desse modo, 3João, em nossos termos, fala do relacionamento entre uma igreja local e os missionários itinerantes. João descreve basicamente esse rela-cionamento como uma relação de "amor" (v. 6a). Mas era um amor que tomava uma forma prática, de três maneiras distintas: enviando, indo e sustentando.

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Pessoas que enviam e são enviadas 261

Enviando (3João 6) "Tu farás bem se os encaminhares na sua viagem de modo digno de Deus" — es-creve João a Gaio e aos membros de sua igreja. Ir é uma responsabilidade desa-fiadora. Encaminhá-los em sua jornada significava mais do que dar-lhes adeus. O verbo propempo é quase um termo técnico em outras passagens do Novo Testamento, que significava tomar todas as providências necessárias e provisões para a jornada de alguém (At 15.3; 21.5; Rm 15.24; 1Co 16.6, 10, 11; 2Co 1.16, Tt 3.13). Isso poderia incluir providenciar alimento, dinheiro para as passagens ou para hospedagem durante a noite, talvez companheiros para a segurança e cartas de apresentação e recomendação para aqueles que estivessem no destino.

Uma vez preguei sobre 3,João 6 a toca a equipe da

A I Nations Christian Co ege [Facu doce Cristã Todas as

Nações], em nosso encontro no início co ano acadêmico.

Enfatizei que embora fôssemos uma instituição de treina-

mento, e não de envio, em um certo sentido, o cesafio

desse versicu o se aplicava a todo nosso traba ho em favor

dos alunos, enquanto e es estivessem conosco — quer esti-

véssemos ensinanco, cozinhando, limpando, icanco com

seu dinheiro, mantenco a faculdace, imprimindo folnetos

ou o que fosse. Tudo precisava ser feito ce "modo digno

de Deus" por amor aque es que estaríamos enviando dali

em ciante. No dia seguinte, fiquei encantado ao ver que

minha secretária navio imprimido esse texto em um car-

tãozinho e fixado no topo ca tela ce seu computador: "Tu

farás bem se os encaminhares na sua viagem ce modo

cigno ce Deus". A mensagem havia sido ap icada.),

Além disso, diz João, todas essas coisas devem ser feitas aos missionários de "modo digno de Deus". O que significa: de tal forma que alguém possa olhar para Deus e esperar sua aprovação. Ou, de tal modo como se estivéssemos enviando o próprio Jesus em sua jornada. Que não faríamos por ele? Será que essa perspectiva e esse ideal não transformaria a maneira como faríamos as provisões para o envio de parceiros na missão, seja como igrejas seja como agências missionárias?

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262 A nnissdo do povo de Deus

O texto de 3João 6 deveria ser escrito como um lema nas paredes, nos calen-dários de mesa ou nas telas dos computadores de todos quantos têm a respon-sabilidade de enviar pessoas em missão, nas igrejas ou agências missionárias, ou nas instituições de treinamento.

Indo (3João 7) João passa daqueles que enviam para aqueles que vão, e ele faz duas observações sobre eles.

Primeiro, eles não são turistas. Eles saem "por causa do Nome" (v. 7) — o qual, é claro, só pode estar se referindo ao nome do Senhor Jesus Cristo. Assim como no Antigo Testamento, o nome de YHWH era o poder e autoridade pelos quais as vitórias eram conquistadas, os sacerdotes eram abençoados e os profetas falavam; do mesmo modo, no Novo Testamento, o nome de Jesus significa sua presença, seu poder e sua autoridade. Os missionários saíam pelo mundo por causa do nome de Cristo. Ou seja, com a autoridade de Cristo, com a presença de Cristo, para a glória de Cristo.

Segundo, eles não são mercadores, que vivem daquilo que podem vender, incluindo suas habilidades como oradores. O mundo do Mediterrâneo do primeiro século estava inundado de professores itinerantes — como se fossem os tele-evangelistas daquele tempo, que competiam pelos ouvidos e bolsas do povo. Paulo teve que se distinguir desses charlatães (2Co 2.17). João lembra à igreja que esses missionários cristãos não possuíam sustento financeiro de fontes seculares. A saída deles era um ato de fé no povo de Deus, bem como na lealdade desse povo ao nome de Deus.

Sustentando (3João 8) A conclusão de João segue enfaticamente. "Portanto, devemos acolher esses irmãos, para nos tornarmos cooperadores da verdade" (ARA). "Devemos" é fraco, isso seria mais bem traduzido assim: "somos obrigados a", "temos essa dívida com eles".

As comunidades cristãs têm o dever de sustentar aqueles que são enviados em nome de Cristo. Paulo argumenta sobre isso com intensidade em 1Corín-tios 9, com uma gama de argumentos extraídos da humanidade comum, dos exemplos do Antigo Testamento e dos ensinamentos de Jesus. Igrejas que não proveem adequadamente para as necessidades de seus parceiros de missão po-dem falar quão maravilhosamente seus missionários estão "vivendo da fé". Isso será uma hipocrisia se a igreja, em si, estiver vivendo em desobediência a esse mandamento explícito do Novo Testamento. Porque, na verdade, essa provisão financeira é, conforme Paulo expressou, uma questão de obediência ao evange-lho de Cristo (2Co 9.12-14).

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Pessoas que enviam e são enviadas 263

"A graça ce dar é um dom espiritual (Rm 12.8). Muitos

dos dons de Deus são generosamente concecidos, em

alguma metida, a todos os cristãos, e dados em metida

especial para alguns. Por exemplo, todos os cristãos são

chamados para comparti har o evangelho com os outros,

mas alguns têm o dom de evange ista. Todos os cristãos

são chamados a exercer cuidado pastoral para com os

outros, mas alguns são chamacos para ser pastor. Do

mesmo moco, tocos os cristãos são chamados para ser

generosos, mas alguns recebem especificamente o "dom

ce contribuição". Aqueles a quem foram confiados recur-

sos financeiros significativos têm uma responsabilidade

especial ce ser bons morcomos desses recursos.),

John StottR

Sustento inclui generosidade em dar, e isso é, sem dúvida, uma parte impor-tante da missão do povo de Deus. Isso é, como disse Paulo com gratidão aos crentes de Filipos, uma questão de "cooperação no evangelho".

Assim, finalmente, João encerra o círculo de raciocínio de todo o seu argu-mento voltando à ideia inicial, com a frase: "para nos tornarmos cooperadores da verdade". Não para que eles, os missionários, cooperem com a verdade; en-quanto nós, mantenedores, pagamos as contas. Todos nós, os enviados e os que enviamos, estamos trabalhando juntos pela verdade. Essa é a responsabilidade e o privilégio da missão cristã.

RESUMO A missão do povo de Deus, portanto, chama-os a participar de uma longa e rica tradição de enviar e ser enviado, a qual se origina na Santa Trindade de Deus. O Deus da Bíblia é o Deus que envia - até mesmo nos relacionamentos entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

Essa dinâmica de envio flui primeiramente por intermédio de muitos exem-plos de pessoas a quem Deus enviou no Israel do Antigo Testamento, como agentes da salvação e mensageiros da revelação. Ser enviado por Deus, com

8. John Stott, The living church: Convictions of a lifelong pastor, p. 122.

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264 A missão do povo de Deus

qualquer propósito, significava levar a autoridade de Deus (por exemplo, para obter a libertação ou para falar em nome dele), mas isso geralmente também envolvia sofrimento e rejeição.

A longa história de envios feitos por Deus atinge o seu ápice com aquele a quem Deus enviou ao mundo para que o mundo fosse salvo por ele. Jesus encarna todas as dimensões dos envios do Antigo Testamento, porém com a distinção suprema de que ele enfim cumpriu completamente o propósito para o qual fora enviado, conforme vemos em sua oração, em João 17, e no ápice de seu clamor: "Está consumado!"

E de Jesus, flui a missão da igreja até que ele venha novamente. Suas palavras finais aos seus discípulos e suas ações formam um envio, uma comissão, um mandado. Aqueles que são discípulos de Jesus hoje devem ser como os discípu-los de Jesus nos evangelhos: chamados para estar com ele e para ir em seu nome; para fazer a obra dele, até os confins da terra e até o fim do mundo.

Portanto as igrejas devem ser comunidades ao redor do mundo, plantadas, instruídas e conectadas pelos ministérios de enviar, ir e sustentar, por causa do nome de Cristo e da verdade do evangelho.

Para onde fomos enviados? Para o mundo, disse Jesus, assim como o Pai o havia enviado ao mundo. Desse modo, devemos estar "no mundo" e, apesar disso, em um outro sentido, não pertencemos ao mundo. Como levaremos a cabo a nossa missão na esfera pública do mundo sem sermos engolidos pelo próprio mundo? Voltaremos a isso no nosso próximo capítulo.

QUESTÕES RELEVANTES 1. Em que sentido você vê a si mesmo como alguém "enviado" por Deus

— não necessariamente em termos geográficos ou físicos, mas vivendo sob suas ordens e fazendo sua vontade?

2. Como você distinguiria entre os Doze apóstolos, em sua posição e pa-pel únicos, e o quadro mais amplo de apóstolos ("enviados") que o Novo Testamento nos mostra? Existem apóstolos hoje? Se existem, como eles devem e não devem ser?

3. Como sua igreja pode ficar à altura do retrato da igreja missional de 3João? Pense especificamente no duplo desafio da "fidelidade à verdade" e "fidelidade aos irmãos e irmãs" (na missão).

4. Se a sua igreja está envolvida no envio de pessoas para a missão, que di-ferença faria se você almejasse conscientemente enviá-las em sua jornada por modo digno de Deus (3Jo 6)?

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CAPITULO 13

PESSOAS QUE VIVEM E TRABALHAM NA ESFERA PÚBLICA

erminamos o capítulo anterior pensando sobre aqueles que são enviados e recebidos como missionários cristãos itinerantes - aqueles que viajam além das fronteiras por causa do nome de Cristo e são sustentados pelas doações

e pela hospitalidade das igrejas cristãs. Mas a missão do povo de Deus é muito grande para ser deixada apenas aos missionários (assim como o ministério da igreja é muito grande para ser deixado somente para aqueles que geralmente chamamos de "ministros").

A grande maioria dos cristãos não são enviados como missionários itineran-tes, no sentido tradicional. Isso parece ter sido tão verdadeiro na igreja do Novo Testamento como o é na de hoje. A maioria dos cristãos vive no cotidiano do mundo comum, trabalhando, ganhando a vida, cuidando das famílias, pagando impostos, contribuindo para a sociedade e para a cultura, progredindo, fazendo a sua parte. Em que sentido, se houver algum, a vida dos cristãos nesse domínio, o qual denominaremos esfera pública, faz parte da missão do povo de Deus? Essa vida de rotina comum tem algum propósito além de nos dar oportunidades de testemunhar nossa fé e ganhar dinheiro suficiente a fim de termos alguma sobra para dar aos missionários e à "missão real"?

É sobre essa pergunta que pensaremos neste capítulo - a missão do povo de Deus na esfera pública. Estou utilizando esta expressão em seu sentido mais amplo. Outro termo poderia ser "no mercado", de novo num sentido mais am-plo, não apenas "no mercado" como um mecanismo puramente econômico ou financeiro, mas como todo o mundo dos esforços humanos cooperativos nos projetos produtivos e nas atividades criativas: trabalho, comércio, profissão, direito, indústria, agricultura, engenharia, educação, medicina, mídia, política e governo - até mesmo lazer, esporte, artes e entretenimento.

A palavra do Antigo Testamento para tudo isso era "à porta" - a praça pública em todas as cidades ou aldeias, onde as pessoas se encontravam e faziam negó-cios de todo tipo em conjunto. Esse é o mundo dos compromissos sociais e das atividades humanas, no qual a maioria de nós gasta a maior parte do tempo.

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266 A missão do povo de Deus

DEUS E A ESFERA PUBLICA Deus está interessado na esfera pública? Muitos cristãos parecem agir baseados no pressuposto de que Deus não está ou supõem que ele não esteja interessado no mundo do trabalho diário pelo trabalho em si, de modo distinto de estar interessado nele como um contexto para o evangelismo. Deus, ao que parece, preocupa-se com a igreja e seus assuntos, com as missões e missionários, em levar as pessoas para o céu, mas não com o modo de a sociedade e seus espaços públicos serem conduzidos na terra.

O resultado desse pensamento dicotômico é uma vida cristã igualmente dicotomizada. Na verdade, essa é uma dicotomia que dá a muitos cristãos um grande desconforto interior, causado pela evidente falta de ligação entre o que eles pensam que Deus mais deseja e aquilo que eles têm a fazer na maior parte do tempo. Muitos de nós investimos a maior parte de nosso tempo significativo disponível (nossa vida no trabalho) em um lugar e em uma tarefa em que temos sido levados a acreditar que realmente não importam muito a Deus — o consi-derado mundo secular do trabalho — enquanto lutamos para encontrar oportu-nidades para dar algum tempo que sobra para a única coisa que nos dizem que realmente importa a Deus: o evangelismo.'

Sim, a Bíblia retrata, de forma clara e abrangente, no Antigo e Novo Testa-mentos, Deus como alguém intensamente interessado na esfera pública da vida social e econômica humana — interessado, envolvido, no comando dela e cheio de planos para ela.

Pensemos sobre algumas afirmações-chave que a Bíblia faz acerca do en-volvimento de Deus na esfera pública humana. Em cada caso, pensaremos em algumas perguntas que essas afirmações levantam para os cristãos que vivem e trabalham nessa esfera. Isso nos dará uma diretriz bíblica para refletirmos na missão do povo de Deus nesse contexto, no que concerne ao nosso compromis-so na esfera pública e ao nosso confronto com as forças contrárias a Deus, em ação nessa esfera.

Então, que diz a Bíblia sobre Deus e a esfera pública — este mundo de todo o trabalho humano, em sua incrível diversidade?

Deus criou a esfera pública O trabalho é ideia de Deus. Gênesis 1 e 2 nos oferece nosso primeiro retrato do Deus bíblico, mostrando-o como um trabalhador — pensando, escolhendo, planejando, executando, avaliando. Assim, quando Deus se decidiu a criar a humanidade à sua imagem e semelhança, que mais os seres humanos po-

1. Darrel Cosden, The heavenly good of eartly work (London: Paternoster e Peabody, MA: Hendrickson, 2006), oferece uma crítica excelente desse ponto de vista dicotomizado e, francamente, antibíblico, bem como uma ótima teologia sobre o trabalho no decorrer dela.

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Pessoas que vivem e trabalham na esfera pública 267

deriam ser, senão trabalhadores, refletindo em sua vida profissional algo da natureza de Deus?

Especificamente, Deus impôs aos seres humanos a tarefa de governar (Gn 1), de servir e de manter (Gn 2) a terra, o que já exploramos no capítulo 3. Essa enorme tarefa exigia não só a complementaridade e ajuda mútua de nossas identidades de gênero, homens e mulher, como também implicava outras di-mensões econômicas e ecológicas fundamentais da vida humana. Deus nos deu um planeta com uma grande diversidade de recursos espalhados por toda a sua superfície. Alguns lugares possuem muito solo fértil; outros contêm grandes depósitos de minerais; no entanto, há uma necessidade natural de comércio e de troca entre os grupos que vivem em lugares diferentes, a fim de satisfazerem às necessidades comuns.

Essa tarefa, por sua vez, requer relações econômicas; por isso, é necessário haver igualdade e justiça em todo o âmbito social e econômico. Deve haver justiça tanto na partilha das matérias-primas com que trabalhamos quanto na distribuição dos produtos do nosso trabalho. O testemunho bíblico revela que todo esse grande esforço econômico humano é uma parte essencial do propó-sito de Deus para com a vida humana na terra. O trabalho é importante porque faz parte da intenção de Deus para conosco; ele era o que Deus tinha em mente quando nos fez. O trabalho é a nossa participação em sua criação. Conforme vimos no capítulo 3, ele é parte da nossa missão como seres humanos.

"A primeira pergunta que precisamos fazer aos que pro-

curam seguir Jesus no mercado é: Você vê seu trabalho

como nada além de um mal necessário ou apenas como

o contexto para oportunidades evange isticas? Ou você

vê seu trabalho como um meio de glorificar a Deus, por

participar de seus propósitos para com a criação e, por

isso, com um va or intrínseco? Como você relaciona o que

faz no seu trabaho ciaria com o ensino bac, ico sobre a

responsabi icace humana na criação e na sociecade?))

Logo, o trabalho não é o resultado "da maldição". É claro que todo o nosso trabalho agora é afetado de inúmeras maneiras prejudiciais, devido à nossa que-da. Mas o trabalho em si faz parte da essência de nossa natureza humana. Fomos

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268 A missão do povo de Deus

criados para ser trabalhadores, assim como Deus, o trabalhador. Isso tem sido chamado de "mandato cultural". Tudo o que somos e fazemos na esfera pública do trabalho, seja no nível profissional individual, familiar ou comunitário ou até no nível das culturas e civilizações inteiras ao longo da história, está ligado à nossa criação e, portanto, é de interesse do nosso Criador. Evidentemente, a esfera pública e o mercado estão contaminados e distorcidos pela nossa pecami-nosidade. Mas isso é verdade em todas as esferas da existência humana. Nossa queda não é motivo para nos esquivarmos da arena pública, assim como o fato de enfrentarmos enfermidades e morte, que, em última análise, são resultados do pecado, não são razões para os cristãos se eximirem de ser médicos ou de realizar funerais.

Deus faz auditoria na esfera pública Todos estamos familiarizados com a função de um auditor. Ele oferece um es-crutínio independente, imparcial e objetivo das atividades e direitos de uma empresa. O auditor tem acesso a todos os documentos e provas. Todos os livros são abertos ao auditor e todas as decisões, conhecidas dele e, pelo menos em tese, nenhum segredo é escondido dele.

Segundo a Bíblia, Deus é o juiz independente de tudo quanto acontece na esfera pública. O Antigo Testamento discorre repetidamente sobre YHWH como o Deus que vê, sabe e avalia. Isso é verdade no sentido mais universal e diz respeito a cada indivíduo (SI 33.13-15). Mas isso é especificamente ver-dadeiro na esfera pública. Israel foi lembrado várias vezes que Deus clama por "justiça à porta", o que é, em termos contemporâneos, o mercado, a arena pública. Amós provavelmente surpreendeu seus ouvintes ao insistir em que Deus estava bem mais interessado no que acontecia "na porta" do que no que acontecia no santuário (Am 5.12-15).

"A segunda pergunta que precisamos fazer àqueles que buscam seguir Jesus no mercado é: Onde, em todas as

suas atividades, está o reconuecimento intenciona de um

auditor divino e sua submissão a ele? De que moco o fato

de prestar contas a Deus interfere em seu trabalho diário?))

Além disso, Deus ouve o tipo de conversa que se dá tanto no recôndito do coração ganancioso quanto na confidência de uma transação de negócios. Amós

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Pessoas que vivem e trabalham na esfera pública 269

retrata mais uma vez o auditor divino ouvindo os murmúrios das intenções se-cretas das pessoas de negócios corruptas de sua época (Am 8.4-7). Para aqueles que pensam que Deus está confinado ao seu templo e vê somente o que acontece nos ritos religiosos, vem o choque de saberem que ele tem observado tudo o que se passa no restante da semana, em público (Jr 7.9, 10).

Deus é o auditor — o inspetor independente de tudo o que acontece na are-na pública. Portanto, o que Deus exige, como qualquer auditor deve exigir, é completa integridade e transparência. Esse é o padrão que se espera dos juízes humanos em seu exercício do cargo público. O caso de Samuel é bem instrutivo, visto que ele defende seu memorial público e chama Deus como sua testemunha — como seu auditor divino (1Sm 12.1-5).

Deus governa a esfera pública Falamos com frequência de "forças de mercado" e de todo o ramo dos negócios e da política como se eles fossem totalmente independentes, como se "tivessem suas próprias leis". O Mercado (geralmente com M maiúsculo) é materializado e recebe um tipo de poder autônomo divino. De qualquer forma, no nível pessoal, sentimos que estamos à mercê de forças que estão além do nosso controle indi-vidual, forças determinadas por milhões de escolhas de outras pessoas. Ou em alguns casos, como demonstrou a crise financeira de 2008-2009, milhões de pes-soas pareciam estar à mercê das escolhas selvagens e irresponsáveis de poucos, o que também parece ter deixado todo o "Mercado" fora de controle e em pânico.

A Bíblia tem uma visão mais sutil. Sim, a vida pública humana é feita de es-colhas humanas, pelas quais os seres humanos são responsáveis. Assim, nesse sentido, tudo o que acontece no mercado é uma questão da ação, da escolha e da responsabilidade moral humana. No entanto, ao mesmo tempo, a Bíblia coloca tudo isso sob o governo soberano de Deus. Ao enfatizar o primeiro (escolhas humanas) e o segundo (o controle supremo de Deus), a Bíblia evita cair no fata-lismo ou determinismo. Ela afirma os dois lados do paradoxo: os seres humanos são moralmente responsáveis por suas escolhas, ações e consequências públicas delas; todavia, Deus mantém o controle soberano sobre os resultados finais e sobre o destino.

Muitas histórias da Bíblia ilustram isso. A história de José oscila entre a esfera familiar e pública, no mais alto cargo do poder estatal. José está envolvido em as-suntos políticos, jurídicos, agrícolas, econômicos e internacionais. Todos os atores dessas histórias são responsáveis por suas próprias motivações, palavras e ações — quer sejam estas boas ou más. Mas a perspectiva do autor de Gênesis, através das palavras de José é muito clara (embora oculte um mistério intrigante):

José lhes respondeu: Não temais. Por acaso estou no lugar de Deus? Cer- tamente planejastes o mal contra mim. Porém Deus o transformou em

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270 A missão do povo de Deus

bem, para fazer o que se vê neste dia, ou seja, conservar muita gente com vida. (Gn 50.19, 20).

Passando para textos proféticos, é significativo que os profetas, quando vol-tam sua atenção para os grandes impérios de sua época, afirmam que o governo de YHWH está muito acima deles e acima do povo da aliança, Israel. Além dis-so, todas as suas obras públicas estão incluídas nesse governo, tanto o mercado como o exército.

((A terceira pergunta que temos que fazer àqueles que

seguem Jesus no mercado é: Como você percebe o

governo ce Deus no mercado (o que é outra forma de

buscar o reino ce Deus e a sua iustiça) e que diferença faz

quando você o percebe? Ou será que "o céu governa"

aos domingos, mas o Mercaco governa da segunca

sexta-feira (senco que o sábado é o cia de foga para

deuses e numanos)?),

Isaías 19.1-15 põe todo o Egito debaixo do julgamento de Deus, incluindo a religião, irrigação, agricultura, pesca, indústria têxtil, política e universidades.

Ezequiel 26 a 28 é um lamento contínuo pela grande metrópole de Tiro, ao mesmo tempo que os capítulos 29 a 32 emitem uma condenação semelhante à grande cultura imperial do Egito. Em ambos os casos, o mercado público do poder econômico e político é o foco da atividade soberana de Deus.

Daniel 4 retrata a arrogância de Nabucodonosor, que se gaba por causa de sua cidade: "Não é esta a grande Babilônia que eu edifiquei para a casa real, com o meu grandioso poder e para glória da minha majestade?" (Dn 4.30). Mas o veredicto de Deus é que todo o seu projeto de construção foi conduzido à custa dos pobres e oprimidos, conforme Daniel ressalta: "Portanto, aceita o meu conselho, ó rei: Abandona teus pecados, praticando a justiça, e renuncia às tuas maldades, usando de misericórdia com os pobres, se quiseres prolongar a tua tranquilidade" (Dn 4.27).

A lição que Nabucodonosor tinha de aprender é o que estamos enfatizando aqui: Deus governa a esfera pública, juntamente com todas as outras. Ou, nas palavras mais incisivas de Daniel: "[...] o céu reina. [...] o Altíssimo tem domínio sobre o reino dos homens e o dá a quem quer" (Dn 4.26, 32).

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Pessoas que vivem e trabalham na esfera pública 271

Deus redime a esfera pública Uma suposição cristã comum é a de que tudo o que acontece aqui na terra é temporário e transitório; a história humana é nada mais do que a sala de espe-ra da eternidade. Por isso, realmente não importa muito. A essa comparação negativa acrescenta-se a ideia extraída de uma interpretação equivocada da linguagem de 2Pedro 2, segundo a qual, estamos caminhando para a destruição total de toda a terra e certamente de toda a criação física. Com tal perspectiva, que valor eterno pode estar ligado ao trabalho que fazemos na esfera pública globalizada aqui e agora?'

Mas a Bíblia apresenta uma perspectiva diferente. Deus planeja redimir tudo o que ele fez: "[...] as suas ternas misericórdias permeiam todas as suas obras" (S1 145.9). Incluída nisso está a redenção de tudo quanto fizemos com aquilo que Deus fez no princípio, ou seja, o nosso uso da criação no grande mandato cultural. É claro que tudo o que temos feito tem sido manchado e distorcido pela nossa natureza humana decaída e pecaminosa. Tudo o que flui dessa má fonte terá de ser expiado e purificado por Deus. Esse é exatamente o quadro que temos tanto no Antigo quanto no Novo Testamento. É uma visão de redenção, não de destruição; de restauração e renovação da criação, não de substituição por qualquer outra coisa.

É claro que a Bíblia apresenta a esfera pública, a vida humana vivida na so-ciedade e no mercado, permeada pelo pecado, corrupção, ganância, injustiça e violência. Isso pode ser visto em dimensões locais e globais, desde as práticas inescrupulosas, na banca do mercado ou na loja da esquina, até as distorções enormes e desigualdades no comércio internacional. Como cristãos precisamos de uma compreensão radical acerca do pecado em suas dimensões públicas. Precisamos ver como parte da nossa missão o fato de sermos chamados para confrontarmos o pecado de modo profético, em nome de Cristo, conforme ve-remos abaixo. Para Deus, a esfera pública não precisa ser extinta por causa da corrupção, mas sim, precisa ser expiada e resgatada.

Isaías 65.17-25 é um retrato glorioso da nova criação - novos céus e uma nova terra. Ele aguarda o dia em que a vida humana não estará mais sujeita ao cansaço e à decadência; o dia em que haverá realização na família e no trabalho; em que as maldições da frustração e da injustiça desaparecerão para sempre; em que haverá urna comunhão íntima e alegre com Deus e uma harmonia am-biental, com segurança. A totalidade da vida - vida pessoal, vida familiar, vida pública, vida animal - será resgatada e restaurada à produtividade que glorifica a Deus e à alegria da realização humana.

2. Darrel Cosden, The heavenly good of eartly work é um livro particularmente útil, no que se refere ao signi-ficado eterno do trabalho humano realizado no tempo. Veja também Michael E. Wittmer, Heaven is a place on Barth; N. T. Wright, Surpreendido pela esperança (Viçosa, MG: Ultimato, 2009).

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272 s= A missão do povo de Deus

O Novo Testamento leva essa visão adiante, à luz da redenção alcançada por Cristo através da cruz e, principalmente, à luz da ressurreição. Paulo, de modo abrangente e repetitivo, inclui todas as coisas, não só as coisas que Deus criou por meio de Cristo, mas naquilo que ele pretende redimir através de Cristo. Nesse texto está claro que a expressão "todas as coisas" significa toda a criação nas duas descrições da obra de Cristo (Cl 1.16-20). Devido a esse plano de re-denção cósmica, toda a criação pode olhar para o futuro como um tempo de libertação da frustração (Rm 8.19-21).

Até mesmo o texto que é geralmente usado para aludir à destruição do cosmo (quando na verdade, na minha opinião, está retratando a purificação redentora),' imediatamente passa para a expectativa de uma criação repleta de justiça (2Pe 3.13).

E a visão final de toda a Bíblia não é a do nosso escape do mundo para algum paraíso etéreo, mas sim a de Deus descendo para viver conosco mais uma vez, numa criação purificada e restaurada, na qual todo o produto da civilização humana será trazido à cidade de Deus (Ap 21.24-27, com base em Is 60).

O "esplendor", a "glória" e a "honra" dos reis e das nações é a soma do pro-duto de várias gerações de seres humanos, cujas vidas e esforços terão gerado a imensa quantidade de culturas e civilizações humanas. Em outras palavras: o que será trazido à grandiosa cidade de Deus, na nova criação, será o grande acúmulo do produto do trabalho humano através dos tempos. Tudo isso será purificado, redimido e colocado aos pés de Cristo, para a melhoria da vida na eternidade, na nova criação.

Será que isso não transforma nossa perspectiva sobre uma manhã de segun-da-feira?

Aqui está o que eu escrevi sobre esse tema em outro lugar:

Tudo o que tem enriquecido e honrado a vida de todas as nações em toda a história será levado para enriquecer a nova criação. A nova criação não será uma página em branco, como se Deus simplesmente amassasse o todo da vida humana histórica nesta criação e jogasse num cesto de lixo cósmico e, então, nos desse uma nova página para começar tudo outra vez. A nova criação começará com o estoque inimaginável de tudo quanto a civilização humana tem realizado na antiga criação, mas expiado, puri-ficado, desinfetado, santificado e abençoado. E teremos a eternidade para apreciar essas coisas, construir sobre elas, de maneira que nem podemos sonhar agora, visto que exercitaremos os poderes de criatividade da nossa humanidade redimida.

3. Em 2Pedro 3, a "destruição" mencionada no v. 12 deve ser lida à luz da "destruição" (mesma palavra) pelo di-lúvio nos vv. 6, 7.O que foi destruído no dilúvio não foi o Planeta em si, mas o "mundo" da maldade e da rebelião humana. Da mesma forma, a "destruição" final não será um extermínio de toda a criação, mas um julgamento de purificação, que remove toda impiedade, maldade e oposição a Deus desde a criação e para todo o sempre.

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Pessoas que vivem e trabalham na esfera pública .w 273

"Os antigos [eis serviram como as primeiras autoridades sobre os vastos padrões da vida cultural ce suas nações. Quanco eles estavam ciante de outras nações, eram os portacores, os representantes de suas respectivas culturas. Ajuntar os reis, portanto, era num sentido importante, reunir suas culturas nacionais. O rei de uma determinaca nação poderia possuir sozinho uma autoricace bem aorangente, que hoje é divicida entre muitos diferenciados tipos de der: os chefes da indústria; os formadores ce opinião pública nas artes, no entretenimento e na sexualidace; os líderes ecucacionais; os representantes dos interesses familiares e assim por diante. E por isso que Isaías e João relacionam a entrada cos reis na cidade com o ajunta-mento das riquezas cas nações“.“

Richard j. Mouw

Não entendo como Deus possibilitará que a riqueza da civilização hu-mana seja redimida e purificada para ser levada à cidade de Deus na nova criação, do modo como a Bíblia diz que acontecerá... Mas sei que estarei lá, na glória de um corpo ressurreto, como a pessoa que sou e tenho sido - porém redimido, livre de todo pecado e ansioso para recomeçar. Por essa razão, acredito que haverá alguma glória comparável à da ressurrei-ção para tudo quanto os seres humanos tiverem realizado em cumpri-mento à ordenança da criação - tudo redimido, mas real. Lamentamos as "civilizações perdidas" do último milênio, civilizações que podemos reconstruir apenas parcialmente, a partir de achados arqueológicos ou nos filmes épicos, mas, se levarmos a sério Apocalipse 21, elas não estão "perdidas" para sempre. Os reis e as nações que trouxerem sua honra à cidade de Deus não se limitam presumivelmente àqueles que estiverem vivos na geração do retorno de Cristo.

Quem poderá dizer quais nações se levantarão ou cairão ou quais civilizações se tornarão "perdidas" até lá, como as civilizações perdidas do milênio anterior? Não, a promessa se estende a todas as eras, a todos os continentes e a todas as gerações da história humana. A oração do salmista será respondida um dia, em favor de toda a história passada, presente e futura:

4. Richard J. Mouw, When the kings come marching in: Isaiah and the New Jerusalem (Grand Rapids: Eardmans, 1983), p. 26.

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274 A missão do povo de Deus

Render-te-ão graças, ó SENHOR, todos os reis da terra, quando ouvirem as palavras da tua boca, e cantarão os caminhos do SENHOR, pois grande é a glória do SENHOR. (Si 138.4, 5; ARA).

Pense nessa perspectiva! Toda a cultura humana, língua, literatura, arte, música, ciência, negócios, esportes, realizações tecnológicas - reais e potenciais - tudo disponível a nós. Todas essas coisas, mas com o vene-no do mal e do pecado extraído delas para sempre. Tudo glorificando a Deus. Tudo isso sob o seu sorriso amoroso e de aprovação. Tudo isso para desfrutarmos com Deus e para ser desfrutado por Deus, tendo toda a eternidade para explorar, compreender, apreciar e expandir essas coisas.'

Toda a história humana, que ocorre na esfera pública da interação pública humana, será redimida e consumada na nova criação, não apenas abandonada ou destruída. Todo trabalho humano produtivo, portanto, tem seu próprio valor e significado eterno, não apenas por causa da nossa compreensão sobre a criação e do mandato que ela nos impôs, mas também por causa da nova criação e da esperança escatológica que é colocada diante de nós. Com uma esperança assim, podemos seguir a exortação de Paulo de coração: "Portanto, meus amados ir-mãos, sede firmes e constantes, sempre abundantes na obra do Senhor, sabendo que nele o vosso trabalho não é inútil" (1Co 15.58). Sabemos que o trabalho no Senhor não significa apenas trabalhos "religiosos", mas todo o trabalho feito "como ao Senhor", incluindo o trabalho braçal dos escravos (Cl 3.22-24).

Se essa é então a visão de Deus sobre a vida e o trabalho públicos no merca-do, qual deve ser a atitude, o papel e a missão do povo de Deus nessa esfera?

Isso deve ser respondido em dois níveis. Por um lado, somos chamados para ter um engajamento construtivo no mundo, porque este é o mundo de Deus, criado, amado, valorizado e redimido por ele. Por outro lado, somos chamados para um confronto corajoso com o mundo, porque ele é um mundo em rebelião contra Deus, o parque de diversões de diversos outros deuses, que se encontram sob a condenação e o juízo final de Deus.

O desafio da missão do povo de Deus é viver com a constante tensão de ter que fazer as duas coisas com a mesma convicção bíblica. É, em essência, o desafio de "estar no mundo sem ser do mundo". Felizmente, a Bíblia, como sempre, vem em nosso auxílio, dando-nos inúmeros exemplos do que isso significa.

ENGAJAMENTO MISSIONAL NA ESFERA PÚBLICA O povo de Deus é chamado para se engajar no mundo criado. A Bíblia nos ensina várias maneiras em que o envolvimento dos crentes na esfera pública

5. Wright, Ihe God 1 don't understand. p. 202-203.10 Deus que eu não entendo, Viçosa, MG: Ultimato, 2011.]

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Pessoas que vivem e trabalham na esfera pública 275

"secular" é totalmente coerente com o chamado de Deus e com a missão de Deus para seu povo.

Posicionados para servir ao Estado Existem algumas coisas que podem dar a uma pessoa uma vantagem na busca de um alto cargo político. Há outras que não poderíamos recomendar. Ser trafi-cado como um escravo para um país estrangeiro, relatado como "desaparecido e declarado morto" e voltar para casa? Isto não é um bom começo. Ser feito prisioneiro por um invasor e acabar, junto com outras crianças, como parte de uma minoria étnica desprezada, numa terra inimiga? Improvável. E que dizer sobre ser raptada para ser escrava sexual de um déspota oriental? Dificilmente.

No entanto, é assim que começam as histórias de José, Daniel e Ester. E todos estes acabaram servindo no mais alto escalão dos governos imperiais pagãos e provando que, mesmo em tais posições, eles poderiam servir a Deus e ao povo de Deus. O contraste entre o início de suas histórias e as posições em que se encontraram mais tarde aponta um fator comum — a mão de Deus. Nenhum deles escolheu o posto que ocupava, mas é certo que tanto José quanto Daniel reconheceram que foi Deus quem os colocou lá por algum propósito. Então, que podemos aprender com eles?

Primeiro, eles aceitaram as realidades da esfera pública de que se tornaram partes, apesar de toda a sua ambiguidade. Daniel e seus três amigos aceitaram um grau enorme de adaptação cultural antes de chegar a um ponto que não podiam ultrapassar (Dn 1). Eles aceitaram nomes babilônicos, a educação ba-bilônica na língua babilônica e ocuparam cargos babilônicos. José, obviamente, aprendeu a língua do Egito de modo tão fluente que seus próprios irmãos ti-nham-no como um nativo (Gn 42.23). Ester, embora tivesse pouca escolha na questão, a não ser o martírio pela recusa, aceitou uma prática cultural que deve ter sido profundamente desagradável. Com a ajuda de Mordecai, chegou a vê-la como uma oportunidade para salvar vidas.

Segundo, eles trabalharam de forma construtiva e cuidadosa para o governo e para o benefício social. Até os inimigos políticos de Daniel não puderam acusá-lo nessa questão:

[...] os superiores e os sátrapas procuravam um motivo para acusar Daniel em sua administração do reino, mas não conseguiam encontrar motivo ou falta alguma, porque ele era fiel e não havia nenhum erro nem falta nele. (Dn 6.4).

Pode-se imaginar que a vida comum dos babilônios foi melhor quando Daniel estava encarregado dos assuntos civis. No caso de José, sabemos que muitas vidas dos egípcios foram salvas por sua administração sábia, antes mesmo

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276 A missão do povo de Deus

que qualquer pessoa de sua própria família fosse salva da fome (Gn 41). As rea-lizações de Ester foram em favor de seu próprio povo, é óbvio, mas o princípio do uso do ofício para fins benignos fica claro.

Terceiro, eles preservaram sua integridade. No caso de José, foi a sua integri-dade moral, embora a confiança de seu patrão também fosse um fator-chave (Gn 39.7-10). No de Daniel e seus amigos, sua lealdade ao Deus da aliança e a recusa em ceder a total lealdade ao rei (como provavelmente significava o fato de comer de sua mesa) foram as questões de impasse. Mais tarde, passaram a ser as questões de idolatria declarada, mas novamente a integridade deles per-maneceu firme.

No Novo Testamento, as provas para crentes em cargos políticos são mais escassas, mas, se alguém quiser construir um argumento por inferência, parece provável que uma vez que Paulo fala das autoridades romanas do governo, con-siderando-as como "servos de Deus", utilizando palavras que doutra forma eram aplicadas ao ministério cristão (diákonos aparece duas vezes em Romanos 13.4, e leitourgós, no v. 6), ele não teria desaprovado o fato de os cristãos servirem em cargos políticos. Tanto o serviço político quanto o judicial podem ser um serviço a Deus. Erasto é um bom exemplo disso, conforme veremos em breve.

Ordenados a orar pelo governo No próximo capítulo, consideraremos a oração como um elemento da missão do povo de Deus; entretanto, nesse momento é apropriado assinalar que o povo de Deus, em ambos os Testamentos, é ordenado a orar pelo governo do lugar onde estão, não só pelos outros crentes, quer sejam israelitas ou cristãos.

O primeiro exemplo disso vem da carta espantosa de Jeremias aos exilados na Babilônia.

Procurai a paz [galom] da cidade para onde vos desterrei e orai por ela ao SENHOR, porque na sua paz vós tereis paz [lit., o seu .s'arom será s''aCom

para vocês]. (Jr 29.7; ARA)

É provável que tenha sido muito difícil para os exilados imaginar que fosse possível até mesmo orar a YHWH na Babilônia, muito menos que devessem orar a ele em favor da Babilônia. Eles sabiam exatamente o que desejavam para a Babilônia (Sl 137.8, 9) e sabiam pelo .}-"aCom de quem deve-riam orar (Sl 122.6).

Entretanto, Jeremias diz: "Não. Uma vez que vocês aceitaram que estão aí porque Deus os colocou aí (então, parem de pensar em si mesmos como se estivessem de passagem e tornem-se residentes; vv. 4-6), vocês têm uma missão em andamento - a missão abraâmica de ser uma bênção para as nações. Isso inclui orar por eles, como Abraão orou por Sodoma e Gomorra."

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Pessoas que vivem e trabalham na esfera pública 4 277

"Ao escrever sobre o ministério do Estado [em Rm 1 3.4-

6], Paulo usa duas vezes a mesma palavra que usou em

outras passagens para os ministros da igreja. [...] Diaconia

é um teimo genérico que pode envolver uma grande varie-

cace de ministérios. Aqueles que servem ao Estado como

egisladores, funcionários públicos, magistrados, po leiais,

assistentes sociais, fiscais da Receita são tão "ministros ce

Deus" quanto aqueles que servem na igreja como pasto-

res, mestres, evange istas e acministradores.”

John Stott'

Eu não tenho como provar, mas gosto de pensar que Daniel estava entre aqueles que ouviram sobre essa carta de Jeremias e fizeram o que ela dizia:' "Daniel era um homem de oração; orava três vezes ao dia" (mais uma canção que recordo de minha infância; cf. Dn 6.10). Que estava no topo de sua lista de oração? Nabucodonosor; você acreditaria? Como poderíamos explicar o fato de que Daniel, quando soube que Nabucodonosor (o homem que destruíra sua cidade e massacrara seus compatriotas) estava para ser cortado do reino, não tripudiou, mas ficou tão chateado que até relutou para dizer a verdade ao rei. Mas ele a disse, juntamente com alguns conselhos cuidadosos sobre como o rei poderia evitar o seu destino (Dn 4.19-27). De onde viria tanta preocupação com o arqui-inimigo de seu povo se não fosse da oração? É difícil continuar odiando alguém (sem falar da oração do final do Salmo 137) se você estiver orando por ele todos os dias.

No Novo Testamento, o texto correlato a esse especifica a oração por todas as formas de autoridades governamentais, as quais, nos dias de Paulo, eram quase totalmente descrentes; homens e mulheres pagãos (com raras exceções, como Erasto, conforme veremos abaixo).

Antes de tudo, exorto que se façam súplicas, orações, intercessões e ações de graças por todos os homens, pelos reis e por todos os que exercem autoridade, para que tenhamos uma vida tranquila e serena, em toda piedade e honestidade. Isso é bom e agradável diante de Deus, nosso

6. John Stott, lhe message of Romans (The Bible speaks today; Leicester: IVP e Downers Grove, IL: IVP) p. 343-344 [Série: A Bíblia fala hoje: A mensagem de Romanos, São Paulo: ABU.] 7. Sabemos que ele estava familiarizado com as Escrituras de Jeremias (Dn 9.2); portanto, ele deve ter ficado com uma cópia de sua carta.

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278 A missão do povo de Deus

Salvador, que deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade. (1Tm 2.1-4).

Do ponto de vista missional, devemos observar como Paulo passa dire-tamente do assunto sobre a oração pelas autoridades políticas, para o poder salvador do evangelho e para sua expansão.

Ordenados a procurar o bem da cidade

"Enquanto ensinava os pastores em treinamento na índia,

evei um grupo a igrejas diferentes em Pune, a cada domin-

go, e pedi que fizessem reflexões sobre as suas opservações,

mais tarde, de volta à classe. Comparamos os períodos de

oração. Em uma igreja de tradição anglicana, as orações

eram principalmente formais e litúrgicas, opjetivas e pouco

prolongadas. Em uma comunicade carismática, as orações

eram altas, espontâneas e muito ondas; no entanto, foi

perceptível que, no primeiro caso, as orações cobriam o

munco e citavam os iceres estaduais e os governos na-

cionais; no segunco, as orações eram quase totalmente

centradas neles mesmos, nos mem 3ros da igreja. Salientei

que, em relação a 1 Timóteo 2, uma igreja evitava qual-

quer "levantar de mãos santas" (v. 8), mas obedecia aos

versicu os 1 e 2, enquanto outra igreja levantava as mãos

até os braços doerem, mas não havia oração a guma "em

favor dos reis e de todos os que se acuam investidos de

autoridade". Qual de as estava sendo mais biolica?),

Retornando à carta de Jeremias aos exilados, a primeira frase exige um olhar mais atento: "Procurai o salom da cidade para onde vos desterrei" (Jr 29.7a).

Salom, como bem se sabe, é uma palavra maravilhosamente abrangente. Seu sentido vai além da paz como ausência de conflito ou de guerra, significando também o conforto ou bem-estar de todos. Ela diz respeito à totalidade da vida

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Pessoas que vivem e trabalham na esfera pública 4. 279

e ao tipo de prosperidade que o Antigo Testamento incluía na bênção de Deus como fruto da fidelidade da aliança.

É realmente impressionante que Jeremias instigue os exilados a buscarem essa bênção para os seus vizinhos babilônios.

"Mas eles são nossos inimigos!" "O quê? Orar por eles? Procurar o bem-estar deles?" Essa instrução maravilhosa que Jeremias deu aos exilados está a um

passo da missão também surpreendente que Jesus impõe aos seus discípu-los: "Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem" (Mt 5.44). Deve ter sido um conselho como esse que deu a liberdade que Daniel e seus amigos sentiram para se estabelecerem na Babilônia e aceitarem empregos a serviço do governo. Está claro que seus ofícios não eram "somente um tra-balho" nem somos informados de que eram algum modo de "fazer tendas" para ajudá-los a ganhar a vida, enquanto eles realizavam estudos bíblicos no escritório ou reuniões evangelísticas em suas casas. Pelo que eu sei, eles podem ter feito isso — eles não guardaram segredo de sua fé, como o restante da história revela.

Mas o texto enfatiza que eles eram os primeiros alunos da classe, cida-dãos-modelo e funcionários públicos que trabalhavam muito. Destacavam-se por ser confiáveis e íntegros. Até o rei reconheceu que essas pessoas estavam servindo seus interesses pessoais. O "bem-estar da cidade" era o que eles buscavam, conforme Jeremias disse que deveriam fazê-lo. Ao faze-rem isso por toda a sua vida, apareciam oportunidades para dar testemunho do Deus a quem serviam, de suas exigências morais e de seu julgamento e misericórdia em momentos-chave — de fato, uma em cada um dos primeiros seis capítulos.

No Novo Testamento, há uma pessoa que provavelmente ocupava um cargo público elevado. Também era cristão. Essa pessoa era Erasto, um dos ajudantes de Paulo no ministério de plantação de igrejas (At 19.22). Quando Paulo es-creveu, de Corinto, sua carta a Roma, Erasto foi incluído nas saudações finais, como o diretor municipal de obras públicas (ou "tesoureiro da cidade" — cf. Rm 16.23; A21). A frase dá fortemente a entender que Erasto ocupava o cargo de edil nessa importante cidade romana: um ofício político na administração ro-mana que possuía grandes responsabilidades, que requeria uma prosperidade pessoal considerável e uma intensa generosidade cívica.

Servir a Deus e servir à comunidade num cargo público não era incompatível de modo algum. De fato, esse serviço e benefício públicos faziam parte daquilo em que Paulo incentivou os crentes a se engajarem, por meio de sua ênfase repe-titiva com que recomendava "fazer o bem" — um único verbo (agathopoíein) que tinha exatamente este significado técnico no Império Romano: serviço público prestado como um benfeitor civil.

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280 A missão do povo de Deus

"Paulo não cita geralmente a ocupação secular de outros

cristãos que são mencionados em suas cartas. Ele, no caso

de Erasto, foi capaz de fornecer a seus leitores um exemplo

do pape que um cristão abastado podia desempenhar em

busca do bem-estar da cicade. A ocupação desse cargo

público por meio de Erasto era c desempenho do papel

do cristão na posição de um benfeitor público, conforme

foi mencionado em Romanos 1 3.3, 4 e em 1 Pecro 2.14,

15. Ele estava engajado num cemorado serviço de edil

durante o ano em que a carta aos Romanos foi escrita.

Erasto era urn cristão de muitos recursos, ativo nas

duas esferas. Ele, após 'ministrar a Paulo", em Efeso, como

parte ca equipe ce apóstolos, foi enviado às igrejas da

Macedônia. Posteriormente, e e se engajou nos ceveres

cívicos em Corinto. [...] O ofício desempenhaco por Erasto

durante o ano em Corinto exigia compromisso e muita

responsabilidade, pois não era sinecura, conforme suas

obrigações demonstravam.

Se isso estava correto, então não havia dicotomia alguma

no pensamento da Igreja Primitiva entre o ministério do

evange no/igreja e o de buscar o bem-estar de Corinto.

Essa conclusão parece confirmar-se na pessoa de Erasto.

[...] Paulo escreveu de um modo que parece dizer que o

cem-estar secu ar e espiritual da cidade estava nos dois a-

dos de uma mesma moeca e não em esferas separadas. A

combinação dessas atividades feita por esse proeminente

cicadão cristão nunca foi percebida por ele como coisas

incompatíveis ou pelos cristãos como coisas independen-

tes. Ambos os papéis estavam preocupados com o bem-

estar daqueles que viviam na cidade. Esses papéis eram

aquilo que Paulo via como uma imitação do ministério de

8. Sinecura: cargo ou emprego rendoso e de pouco trabalho; emprego que só dá utilidade a quem o tem. Emprego cujas funções não se exercem.

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Pessoas que vivem e trabalham na esfera pública 281

Cristo, que, em Atos 10.38, foi relembraco como alguém

que "andou por toda parte, fazendo o bem".))

Bruce Winter'

Ordenados a ganhar a vida pelo trabalho regular Parece que algumas pessoas nas igrejas plantadas por Paulo haviam chegado a ter a visão de que o trabalho regular não possuía mais nenhum valor e, assim, tornaram-se preguiçosas e depois espiritualizavam sua ociosidade com expecta-tivas fervorosas da volta de Cristo. Paulo compartilhava dessas convicções sobre a volta de Cristo, mas não dessa aversão ao trabalho, que opta por fugir das responsabilidades humanas normais:

[...] procurando viver em paz, tratando dos vossos assuntos e trabalhando com as próprias mãos, como já vos ordenamos, a fim de que andeis com dignidade diante dos de fora e não necessiteis de coisa alguma da parte deles. H vos exortamos a aconselhar os indisciplinados [...J. (1 Ts 4.11, 12; 5.14).

Paulo não hesitou em apelar para o seu próprio exemplo a respeito disso, como alguém que se havia sustentado do próprio trabalho no mercado. Sua longa exortação em 2Tessalonicenses 3.6-13 é digna de ser lida na íntegra. Ele trata com clareza de uma questão que lhe interessava muito: os cristãos devem ser trabalhadores diligentes.

As frequentes exortações de Paulo para "fazer o bem" não devem ser in-terpretadas apenas como "ser legal". Conforme mencionamos acima, essa expressão também possuía uma conotação social comum em serviço público e beneficência.'" Os cristãos devem estar entre aqueles que trazem o maior be-nefício público na esfera pública e devem trazer elogios ao evangelho bíblico por meio disso.

Os cristãos devem ser bons cidadãos e bons trabalhadores e, através disso, ser boas testemunhas. O trabalho ainda é um bem da criação. É bom trabalhar e é bom fazer o bem trabalhando. Tudo isso também faz parte da missão do povo de Deus.

Nas cartas de Paulo, não se tem a impressão de que se esperasse que os novos convertidos deixassem as ocupações que tinham no mundo secular e saíssem

9. Bruce W Winter, Seek the welfare of the city: Christians as benefactors and c tzens (Grand Rapids e Carlisle: Eerdmans e Paternoster, 1994), p. 195-197. 10. Bruce Winter (Seek the welfare of the city) desenvolve esse tema com profundidade, utilizando um pano de fundo amplo, baseado em testemunhos do mundo greco-romano da época de Paulo.

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282 • A missão do povo de Deus

como missionários, embora alguns o fizessem obviamente. Pelo contrário, Pau-lo parece desejar que a maioria deles continuasse trabalhando, ganhando seu dinheiro, pagando seus impostos (Rm 13.6-8) e fazendo o bem na comunidade. Podemos imaginar o carcereiro de Filipos voltando a seu posto, Lídia levando adiante sua empresa têxtil e Erasto, de alguma forma, combinando seu ministé-rio como "prefeito de Corinto" com a ajuda ao ministério de Paulo.

"Eu estava icerando um seminário no Langham Prea-

ching, na Argentina. Durante o café da manhã, conversa-

va com o principal organizador caquele evento — o líder

do movimento naciona . E ogiei três homens, em particular,

que estavam ajudando a liderar e a ensinar curante o se-

minário. Tocos eles eram cristãos argentinos com profissões

seculares, mas comprometidos com o ensino da Bíblia.

Meu amigo disse imeciatamente: "Sim, eles são dons

pregadores, mas isso não é tudo. Eles são bons maridos,

bons pais e bons cidadãos". Perguntei por que ele incluiu o

Ultimo item. Disse ele: "Porque eles estão empenhados em

ficar aqui na Argentina, não em tentar chegar aos Estados

Unidos. Eles são nonestos, traba ham duro e pagam seus

impostos. Eles são urna bênção para o nosso país." Essa

é a missão autêntica, oíblica, abraámica, paulina e inte-

gral na esfera pública. Isso abençoou o meu coração")

Essas pessoas tinham um engajamento missional na esfera pública, vivendo o evangelho nessa esfera. Esse tipo de pessoa é tão necessário no século XXI quanto o era no mundo do primeiro século.

CONFRONTO MISSIONAL NA ESFERA PÚBLICA Viver o evangelho e, ao mesmo tempo, fazê-lo de modo que se esteja envolvido com o mundo trará, inevitavelmente, conflitos com o mundo. A esfera pública é a arena para esse confronto. A missão do povo de Deus envolve a entrada nesse confronto com olhos abertos, mente envolvida e com nossa armadura espiritual a postos.

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Pessoas que vivem e trabalham na esfera pública 283

Somos chamados para ser diferentes Devemos, portanto, estar envolvidos na esfera pública, no mercado local e glo-bal, mas devemos fazê-lo como santos no mercado. Somos chamados para ser santos, o que significa ser diferentes ou distintos. No capítulo 7, exploramos com certa profundidade o tema dessa distinção na teologia bíblica, partindo do chamado inicial de Israel para ser diferente das culturas do Egito ou de Canaã:

Não imitareis os costumes da terra do Egito, onde habitastes, nem imita-reis os costumes da terra de Canaã, para a qual eu vos levo; não andareis segundo seus estatutos. Obedecereis aos meus preceitos e guardareis os meus estatutos, para andardes neles. Eu sou o SENHOR vosso Deus. Guardareis os meus estatutos e as minhas normas, pelas quais o homem viverá, se obedecer a eles. Eu sou o SENHOR. (Lv 18.3-5).

Vimos que essa distinção essencial é, de fato, o que a santidade significava para Israel. Essa distinção era fundamentada na santidade (na diferença distin-ta) de YHWH, e deveria ser praticada com ética tanto na vida social comum e cotidiana — a esfera pública — quanto na vida particular do lar. Levítico 19, começando pela exigência com Israel, que deveria ser santo como o Senhor seu Deus é santo, continua enunciando toda uma gama de contextos em que essa diferença santa deve ser vista — contextos que incluem as rotinas pessoais, familiares, sociais, judiciais, agrícolas e comerciais.

A peculiaridade do povo de Deus na Bíblia não é simplesmente religiosa (passamos a adorar um deus diferente do deus da maioria das pessoas), mas também ética (somos chamados para viver de acordo com padrões diferentes). Isso inclui tanto a moralidade pública quanto a privada, embora elas não pos-sam realmente ser separadas.

A frase dupla de Jesus sobre sermos o "sal" e a "luz" do mundo (Mt 5.13-16) ainda são critérios cruciais sobre o que significa ter um envolvimento missional no mundo."

Um forte contraste está implícito neste argumento: se os discípulos devem ser sal e luz, é porque o mundo é corrupto e escuro. O ponto central das metáforas depende desse contraste. Jesus compara o mundo à carne ou ao peixe, que, deixa-dos à mercê de si mesmos, logo se tornarão podres. A principal função do sal em sua época era preservar a carne ou o peixe, com a imersão em salmoura ou com a salga. Jesus compara o mundo a um cômodo de uma casa depois que o sol se põe. Ele fica escuro. As lâmpadas devem ser acesas para evitar danos e perigos. Assim,

11. Devo os pontos abaixo a John Stott, por tê-lo ouvido pregar nesse texto em muitas ocasiões. Sua rica exposição pode ser saboreada em John R. W. Stott, The message on the Sermon on the Mount (The Bible spkeaks today; Leicester, IVP e Downers Grove, IL: IVP, 1978) p. 57-68 [Série: A Bíblia fala hoje: A mensagem do Sermão do Monte, São Paulo: ABU.] Veja também John Stott, The living church, chapter 8, "Impact: Salt and Light", p. 137-152.

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284 A missão do povo de Deus

o mundo em que vivemos - a esfera pública - é um lugar corrupto e escuro. Nesse sentido, o sal e a luz são tanto uma missão (são utilizados para um fim) quanto um confronto (desafiam a decadência e a escuridão e transformam ambos).

Se um pedaço de carne apodrece, não adianta culpar a carne. É isso que aconte-ce quando a carne é deixada por conta própria. A pergunta a se fazer é esta: Onde está o sal? Se uma casa fica escura à noite, não adianta culpar a casa. Isso é o que acontece quando o sol se põe. A pergunta a se fazer é esta: Onde está a luz? Se a sociedade se torna mais corrupta e mais tenebrosa, não adianta culpar a sociedade. Isso é o que a natureza humana decaída faz quando é deixada sem controle nem confrontação. A pergunta a se fazer é esta: Onde estão os cristãos? Onde estão os santos que realmente viverão como santos - o diferente povo de Deus, a contracul-tura de Deus - na esfera pública? Onde estão aqueles que percebem sua missão de viver, trabalhar e dar testemunho no mercado e pagar o preço de fazer isso?

A integridade moral é indispensável à identidade cristã, que, por sua vez, é essencial para a missão cristã na esfera pública. Integridade significa ausência de dicotomia entre nossa "cara" pública e a privada; entre o sagrado e o secular em nossas vidas; entre a pessoa que sou no trabalho e a que sou na igreja; entre o que dizemos e o que fazemos; entre o que afirmamos crer e o que realmente pra-ticamos. Esse é o principal desafio para todos os cristãos que vivem e trabalham no mundo descrente. Isso levanta intermináveis dilemas éticos e muitas crises de consciência violentas. Esse é realmente um campo de batalhas internas e externas, mas essa é uma luta que não pode ser evitada se quisermos ter eficácia em nossa função de sal e luz na sociedade.

Somos chamados para resistir à idolatria Por que os cristãos são chamados para ser eticamente diferentes na esfera pú-blica? A resposta é esta: temos uma visão diferente do mundo em si. Dançamos uma música diferente, marchamos num compasso diferente ou, retornando ao capítulo 2, estamos vivendo numa história diferente.

Vemos o mundo como a criação do Deus único e transcendente da Bíblia. Assim, rejeitamos os deuses sedutores que enchem a arena pública de hoje, do mesmo modo como enchiam a ágora ateniense na época de Paulo. Na verdade, vemos o mundo por duas perspectivas, ambas bíblicas, mas, às vezes, difíceis de serem unidas (embora seja isso o que estamos procurando fazer neste capítulo).

Por um lado, vemos o mundo à luz de Colossenses 1.15-23. Este é o mundo criado por Cristo, sustentado por Cristo, redimido por Cristo. É o mundo de Deus, a herança de Cristo e nosso lar. É o lugar onde Deus nos colocou para vivermos para a sua glória, para testemunharmos de sua identidade, para nos envolvermos no cuidado com a criação e em todo trabalho produtivo que melhore o mundo e agrade a Deus. Assim vivemos neste mundo pela história bíblica recapitulada no capítulo 2, a qual define o todo da vida humana, do

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Pessoas que vivem e trabalham na esfera pública 4- 285

trabalho, das ambições e das realizações no contexto da criação, da redenção e dos planos futuros de Deus. A esfera pública é parte deste mundo; nela nos engajamos submissos a Deus e para Deus.

Por outro lado,

Sabemos que somos de Deus e que o mundo inteiro jaz no Maligno. Sa-bemos também que o Filho de Deus já veio e nos deu entendimento, para conhecermos aquele que é verdadeiro; e estamos naquele que é verda-deiro, isto é, em seu Filho, Jesus Cristo. Este é o verdadeiro Deus e a vida eterna. Filhinhos, guardai-vos dos ídolos. (1Jo 5.19-21).

Essa é a forma com que João geralmente vê o mundo de rebelião humana e satânica contra Deus, o mundo que odeia Cristo e o povo de Deus. A esfera pública também faz parte deste mundo e exibe toda a sua feiura - a feiura do pecado humano, do mal demoníaco e da combinação profana dessas duas coi-sas nos deuses e ídolos, que usurpam o lugar do Deus vivo. Esse é o mundo que não devemos amar, por causa de seus desejos pecaminosos, que nos afastam de nosso amor por Deus e nos levam à base da idolatria (1Jo 2.15-17).

É por isso que João, após nos garantir que, em Cristo, conhecemos o Deus vivo e verdadeiro e que "[...] a razão pela qual o Filho de Deus se manifestou foi para destruir as obras do diabo" (1Jo 3.8), conclui com sua advertência para nos guardarmos dos ídolos, porque estes estão ao nosso redor, na esfera pública, no mercado, no mundo do trabalho.

O trabalho é um bem da criação, mas a Bíblia está ciente da tentação de transformá-lo num ídolo quando vivemos para aquilo que podemos fazer e conquistar e depois obtemos nossa identidade e realização mediante essas coi-sas. Isso é ainda mais real quando o trabalho é movido pela ganância. Paulo equipara a cobiça à idolatria: quebre o décimo mandamento e estará quebrando o primeiro (Cl 3.5; cf. Dt 8, principalmente os vv. 17, 18).

A idolatria da carreira, da posição social e do sucesso está ligada a um dos deuses mais dominantes da esfera pública (pelo menos no Ocidente e onde quer que ele estenda seus tentáculos culturais): o consumismo. É claro que outros ídolos também são abundantes, os quais não podemos, aqui, analisar com pro-fundidade - ídolos da superioridade étnica, do orgulho nacional e patriótico, da liberdade individual, da segurança militar, da saúde e longevidade, da beleza, da celebridade. Alguns desses ídolos habitam a mídia ou a propaganda estatal, outros permeiam o mundo da publicidade; muitos passam despercebidos e sem contestação nas suposições e conversas que enchem a esfera pública vinte e qua-tro horas por dia, sete dias por semana. Seu poder é bem maior nesse níve1.12

12. Tentei oferecer uma análise bíblica mais extensa sobre a idolatria em relação a missões — suas variedades,

causas, resultados e as maneiras com que o povo de Deus reage a ela no livro The mission of God, p. 136-190.

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286 A missão do povo de Deus

Viver para Deus no mundo dos deuses é, inevitavelmente, enfrentar confli-tos. A missão do povo de Deus na esfera pública é, portanto, um chamado para uma guerra espiritual incessante. A primeira ação numa guerra é reconhecer o inimigo — existe mesmo um inimigo. O problema está no fato de os cristãos serem também filhos de sua cultura — onde quer que essa cultura esteja — e eles poderem estar alegremente inconscientes da intensidade em que a esfera públi-ca de seu hábitat diário está infestada com as realidades espirituais em oposição a Deus e ao evangelho.

Discernir os deuses da esfera pública é a primeira crucial tarefa missional. Estar equipado para resistir a eles é a segunda.

É interessante que a clássica exposição de Paulo sobre guerra espiritual venha imediatamente após suas instruções acerca da vida dos cristãos no casamento, na família e no local de trabalho. Em todos esses âmbitos, há uma batalha a ser travada, se quisermos ser capazes de "resistir" (em vez de afun-dar ou nadar conforme a maré) e cumprir o nosso papel como mensageiros do "evangelho da paz" (Ef 6.15, relacionado com Is 52.7). É na totalidade da vida, inclusive a esfera pública, que "nossa luta [lit. "nossa luta" livre] não é contra o sangue e a carne, e sim contra os principados e potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal, nas regiões celestes" (Ef 6.12).

Essa não é a hora para uma análise detalhada sobre "principados, potestades e dominadores". Há muitos outros escritos sobre esse assunto.' Pessoalmente, eu rejeito dois extremos opostos: aquele que os "desmitologizam" como um sim-ples símbolo para as estruturas humanas, poderes políticos, forças econômicas ou convenções sociais e aquele que os veem exclusivamente como espirituais, seres demoníacos, sem conexão com o mundo dos poderes políticos ou das forças econômicas. Parece-me que ambos os aspectos são biblicamente válidos.

Há uma realidade da presença e da obra satânica e demoníaca no mundo, operando nos agentes humanos e através deles. Isso é especialmente verda-deiro nos arranjos coletivos humanos, onde parece que algumas estruturas ou forças assumem "uma vida própria", maior que a soma das vontades hu-manas envolvidas.

É nessa arena pública, onde os poderes espirituais e humanos se combinam, que os cristãos são chamados a viver e a trabalhar; a reconhecer a idolatria que

13. A trilogia de Walter Wink é uma pesquisa clássica, embora seja muito criticada por sua interpretação excessivamente "desmistificada": Naming the powers: 'The language of power in the New Testment (Filadélfia: Fortress, 1984); Unmasking the powers: lhe invisible forces that determine human existente (Filadélfia: For-tress, 1986); Engaging the powers: Discernment and resitance in a world of donsination (Mineapólis: Fortress, 1992). Uma abordagem mais curta e biblicamente mais conservadora é Clinton Arnold, Powers of darkness: A thoughtful, biblical look at an urgent challenge facing the church (Leicester: 1VP e Downers Grove, II.: IVP, 1992). Veja também Nigel G. Wright, A theology of the dark side: Putting the power of evil in its Place (Carlisle: Paternoster, 2003).

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Pessoas que vivem e trabalham na esfera pública 287

os rodeia, a resistir a ela e a se levantar contra ela, oferecendo um testemunho e uma sinalização para as boas-novas do reino de Deus, através do qual, pelo poder da cruz (veja cap. 6), os poderes idólatras foram derrotados.

Somos chamados para sofrer Guerras provocam sofrimento, e a guerra espiritual não é uma exceção. Aqueles que se ocupam da missão do povo de Deus simplesmente vivendo, trabalhando e testemunhando na esfera pública, tão dominada pelos deuses deste mundo, e escolhem viver nos padrões éticos distintos que fluem de sua cosmovisão bíbli-ca, confessando Jesus como Senhor, e não César ou Mamom, sofrerão de uma forma ou de outra.

O material bíblico relacionado com o sofrimento individual e coletivo do povo de Deus é vasto. O que está claro é que o sofrimento é parte integrante da vida das multidões de pessoas na Bíblia que foram fiéis ao chamado de Deus e à sua missão. Digo isso porque há uma teologia popular distorcida, que considera o sofrimento como um sinal de falta de fé ou resultado de alguma desobediên-cia. Os amigos de Jó continuam vivos, saudáveis e sonantes em algumas formas de doutrina da prosperidade e da piedade evangélica. É claro que o povo de Deus sofreu quando pecou, mas muitos sofreram por serem fiéis.

Jesus nos advertiu que seria assim e, em mais um daqueles seus pronuncia-mentos chocantes, ele disse a seus discípulos que se alegrassem com isso, visto que eles poderiam olhar para trás, para bons precedentes bíblicos, e olhar para o futuro, para a aprovação de Deus:

Bem-aventurados sois, quando vos insultarem, perseguirem e, mentindo, disserem todo mal contra vós por minha causa. Alegrai-vos e exultai, pois a vossa recompensa no céu é grande; porque assim perseguiram os profetas que viveram antes de vós. (Mt 5.11, 12).

Atos registra que o sofrimento se levantou rapidamente entre os primeiros crentes, mas eles fizeram exatamente o que Jesus disse, regozijaram-se no privi-légio de testemunhar e continuar testemunhando (At 5.40-42). Desde aqueles primeiros dias, a história registra que a perseguição continuou a piorar, mas a igreja continuou crescendo — dois fatos que não temos dúvidas de que devem ser vistos como integralmente relacionados.

Para Paulo, a expectativa do sofrimento foi incluída no seu comissionamento (At 9.16). Ele, uma vez que havia sido um daqueles que infligia sofrimento sobre os cristãos, sabia o que o aguardava, conforme se viu; no entanto, isso era mais do que um efeito colateral incidental de seu chamado missionário num mundo hostil. Para Paulo, a meu ver, seu sofrimento era, de fato, parte da prova da validez de seu apostolado e da veracidade do evangelho que ele pregava.

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288 A missão do povo de Deus

Suas afirmações paradoxais nos capítulos 11 e 12 de 2Coríntios chegam ao clímax em suas famosas palavras: "Pelo que sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias, por amor de Cristo. Porque, quando estou fraco, então, sou forte" (12.10). Essas afirmações não são masoquistas ou bravateadoras, mas um testemunho de autenticação do poder do evangelho.

Pedro, que era experiente em sofrer por Jesus, escreve mais sobre esse tema do que sobre outro em sua carta. A ideia das suas palavras de encorajamento, em 1Pedro, àqueles que estavam sofrendo por sua fé pode ser resumida em três frases: não estranhar (4.12), não retaliar (2.21, 22) e não desistir (3.13-17; 4.19). Acima de tudo, seus leitores deveriam ser inspirados pelo exemplo do Senhor Jesus Cristo, por quem eles estavam sofrendo.

"A co a que unia o pensamento e a vida de Paulo com

a mensagem que e e pregava e/ou missão que ele con-

duzia consistia em sofrer como apóstolo de Jesus Cristo. O

sofrimento de Pau o era o meio de tornar-se conhecido no

mundo o pocer sa vador de Deus, reve ado em seu clímax

com Cristo. Rejeitar o sofrimento de Pau o era, portanto,

rejeitar o Cristo; identificar-se com Paulo em seu sofrimento

era um sina evidente de que a guém estava sendo sa vo

pela "loucura" e pe a "pedra de escândalo" da cruz")

Scou Hafemann '

O tipo de sofrimento a que Paulo e Pedro se referem certamente teve lugar na esfera pública, mas Apocalipse deixa ainda mais claro que o mercado global estará entre os principais contextos para a batalha entre Deus e as forças idóla-tras da besta, que se opõem a Deus e ao povo de Deus. A palavra notória sobre o "número da besta", em Apocalipse 13.16-18, não é um pesadelo apocalíptico envolvendo tatuagens, códigos de barras ou números de cartões de crédito, mas uma exposição fria ao tipo de exclusão do mercado que pode ser esperada por aqueles que se recusam a se curvar diante da idolatria que o controla.

14. Scott Hatemann, "The role ot suffering in the mission ot Paul" in lhe gospel to the nations: Perspectives on

Paul mission. Peter Bolt e Mark Thompson (Leicester: Apollos e Downers Grove, IL: IVP, 2000), p. 131-146 (principalmente 140).

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Pessoas que vivem e trabalham na esfera pública 289

Mas há uma dimensão em tudo isso, que geralmente não é destacada. Muitos livros sobre missão alertam sobre os sofrimentos necessários ao povo de Deus, inevitáveis para aqueles que são fiéis à sua confissão de Cristo. Perseguição e martírio fazem parte da história da missão e da experiência de missão nos dias de hoje. O elemento negligenciado é o sofrimento de Deus.

(40 lugar do sofrimento no serviço e o da paixão na missão

é raramente ensinado hoje em dia. Mas o maior segredo

da eficácia evangelística ou missionária é a disposição

para sofrer e morrer. Pode ser uma morte da popularidace,

por se pregar fielmente o evange ho bíblico impopu ar; co

orgu io, pelo uso de métodos modestos, na cepencência

do Espírito Santo; do preconceito racial e nacional, pela

icentificação com outra cultura, ou do conforto material,

por se adotar um estilo de vice mais simples. Apesar de

tuco isso, o servo deve sofrer se quiser levar luz às nações;

a semente deve morrer se quiser multiplicar-se.))

John Stott'

A missão do povo de Deus é a nossa participação na missão de Deus; portan-to, o sofrimento do povo de Deus na missão é uma participação no sofrimento de Deus na missão. A missão de Deus é a determinação de Deus, ao longo de toda a narrativa bíblica, para trazer a redenção de toda a sua criação a partir da destruição do pecado e do mal. Para Deus, isso envolve a longa jornada através dos séculos da incredulidade e da rebelião de Israel, aguentando-as, julgando-as, consertando-as. Depois, isso levou ao sofrimento supremo, quando Deus, em Cristo, carregou o pecado do mundo na cruz. Desde então, Deus tem sofrido com seu povo, visto que eles têm suportado o preço de ser mensageiros do reino até os confins da terra.

Em outros textos, tenho escrito a frase: "A cruz foi o preço inevitável da missão de Deus". Como aquele que carregou a cruz nos disse que tomássemos nossas próprias cruzes para segui-lo, há um custo inevitável para quem se iden-tifica com a missão sofredora do Deus sofredor — um custo que um dia será

15. John Stott, The cross of Christ (Leicester: IVP, e Downers Grove, IL: IVP, 1986) p. 322 [A cruz de Cristo, São Paulo: Vida, 2006.1

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290 A missão do povo de Deus

justificado pela vitória final daquele que "[...] por causa da alegria que lhe estava proposta, suportou a cruz, não fazendo caso da vergonha que sofreu, e está assentado à direita do trono de Deus. Assim, considerai aquele que suportou tal oposição dos pecadores contra si mesmo, para que não vos canseis e fiqueis desanimados." (Hb 12.2, 3).

((Notamos que Deus, a fim de capacitar a nova cria-

ção, que transcende a presente natureza de sofrimento

e morte, engajou-se numa tamanha doação ce si mesmo

que somente a dor numana mais intensa que se conhece

poderia retratar adequadamente o que estava envolvido

nisso para Deus. Mas esse sofrimento não é somente em

termos ca vida interior ce Deus. O sofrimento de Deus é o

paralelo ce estiai do sofrimento do servo ce Deus terreno.

O Servo sofredor toma sobre si o sofrimento de Deus e faz

o que enfim é necessário para que as forças do mal, neste

mundo, sejam derrotacas: sofrer inclusive a morte")

Terence Fretheim'`'

CONCLUSÃO — UMA MENSAGEM PESSOAL AOS CRISTÃOS NA ESFERA PÚBLICA Esse tem sido o capítulo mais difícil de escrever neste livro, principalmente a última seção sobre o sofrimento. As duas primeiras seções principais do ca-pítulo parecem convincentemente bíblicas para mim. Deus criou o mundo do trabalho e do engajamento social. Ele continua apaixonadamente interessado e envolvido nele. A Bíblia descreve muitas pessoas que serviam a Deus, servindo exatamente em cargos públicos de todos os tipos. Podemos aprender muito com os seus exemplos. No entanto, quando chegamos à parte da batalha e do sofri-mento, não é fácil escrever sobre algo que nada se sabe a respeito. Isto porque a realidade franca é que, assim como muitos crentes do Ocidente relativamente

16. Terence E. Fretheim, The suffering of God: An OldTestament perspective (Filadelfia: Fortress, 1984), p. 148. Este é um livro profundo e comovente, quase inigualável na forma como lida com esse assunto negligenciado, rico de exposição nas Escrituras. Frethein estuda o modo como Deus sofre por causa de seu povo (por ser rejeitado por ele); como sofre coro seu povo (no sofrimento dele sob o julgamento do próprio Deus); e como sofre por seu povo (ao obter a salvação dele). Em todas essas dimensões, o sofrimento dos profetas era uns registro misterioso e uns compartilhamento do sofrimento do próprio Deus.

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Pessoas que vivem e trabalham na esfera pública 291

amigável, não posso falar de qualquer experiência significativa de ter sofrido por minha fé. Apesar disso, sei que, enquanto me sento em privacidade e conforto, olhando para o mar enquanto escrevo essas palavras, tenho irmãs e irmãos do outro lado do oceano e ao redor do mundo que, neste momento, estão sendo torturados, espancados, acusados falsamente, presos e oprimidos de todas as maneiras possíveis, por causa de sua fé em Cristo. A linguagem de Hebreus 11.35-38 ainda se aplica hoje.

Recebo e-mails de amigos que moram em países onde as igrejas são queima-das, os pastores decapitados e a vida dos cristãos comuns tem-se tornado escas-sez e miséria. Às vezes, choro por isso e, muitas vezes, oro por eles. Mas não sei coisa alguma sobre o que é viver assim, a não ser em minha imaginação.

Algumas pessoas que lerão este livro poderão muito bem estar vivendo nes-sas circunstâncias. Tudo o que posso fazer é estender a mão a você, através deste livro, e abraçá-lo com amor e oração. Que o Senhor o conforte, o fortaleça e o mantenha fiel a ele.

Também sei que, no meu próprio país e em outras partes do Ocidente cris-tão, a maré está mudando de modo implacável contra a profissão da fé cristã na esfera pública. As pessoas perdem o emprego simplesmente por se oferecerem para orar com um paciente ou por mencionarem Deus no local de trabalho. A ironia é que os perseguidores são os que dizem ser acusados de perseguição e ódio! Nessas circunstâncias, em várias profissões, os cristãos estão enfrentando dilemas éticos que não têm soluções fáceis ou óbvias. Encontrar "a atitude cristã que se deve ter" pode ser profundamente perturbador e estressante.

Por essa razão, mais uma vez meu coração se volta para os cristãos que estão na linha de frente do viver como cristãos no mundo secular.

Tenho que dizer que, neste tópico específico, sinto que estou discursando como um covarde, porque minha própria vida de trabalho não está sendo gasta no mercado secular. Durante alguns anos, fui um professor de escola antes de ser ordenado para o ministério pastoral; mais tarde, passei para a educação teo-lógica e, no restante de minha vida, tenho trabalhado com liderança cristã or-ganizacional. Quem sou eu para discorrer acerca dessas coisas? Mas tenho uma enorme e sincera admiração e grande preocupação por todos vocês, cristãos que se envolvem todos os dias nos locais de trabalho do mundo.

• Vocês se expõem todas as manhãs na esfera pública, que é tanto o mundo da criação de Deus como o mundo do domínio usurpado (e temporário) de Satanás, além de ser o mundo de sua participação na missão de Deus.

• Vocês são os "Daniéis" do mundo presente ou, pelo menos, vocês podem e devem ser.

• Vocês são os discípulos de Jesus de quem ele disse: "Vocês estão no mundo, mas não são do mundo."

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292 • A missão do povo de Deus

• Vocês vivem e trabalham na esfera pública do mundo, mas extraem seus objetivos e valores supremos da vida de outra fonte — do reino de Deus.

• Vocês são o sal e a luz do mundo.

Como seria o mundo se todos os milhares de cristãos que ganham a vida na esfera pública levassem a sério o que Jesus quis dizer com ser "sal" e "luz"?

Caro leitor, seu trabalho diário é importante porque é importante para Deus e tem seu próprio valor e mérito intrínsecos. Se ele contribui de alguma forma para o suprimento das necessidades sociais, para o serviço dos outros e para a mordomia dos recursos da terra, então tem algum lugar nos planos de Deus para esta criação e para a nova criação. Se você o fizer conscientemente como um discípulo de Jesus, dando testemunho dele, estando sempre preparado para responder a todo aquele que lhe pedir razão de sua fé, e estando disposto a sofrer por Cristo, caso seja chamado a fazê-lo, então ele permitirá que sua vida dê frutos que você jamais concebeu. Você está engajado na missão do povo de Deus.

Que Deus o fortaleça e que seu grupo progrida.

QUESTÕES RELEVANTES 1. Volte para as perguntas nas caixas de texto da primeira seção deste capí-

tulo e reveja a forma com que você as responderia agora. Que diferença isso fará quando você voltar ao seu trabalho na próxima semana?

2. De que forma a gama de material bíblico que temos pesquisado, neste capítulo, a respeito dos crentes que atuam em cargos públicos afetou sua visão da vida cristã no mundo secular?

3. Você esperava que um livro sobre missão tivesse um capítulo sobre o tra-balho comum no mundo cotidiano? Agora, você que o leu, considera que foi correto incluí-lo? De que modo isso influenciou sua concepção sobre o que a missão do povo de Deus inclui?

4. "Se tudo é missão, logo, nada é missão." Após ter lido este capítulo, como você responderia, de modo bíblico, a este "balde de água fria"?

5. Como procuraria ter mais discernimento sobre as realidades do mal sa-tânico e da guerra espiritual na esfera pública em que você gasta sua vida profissional?

6. Que sua igreja poderia estar fazendo, para tratar dessas questões de for-ma mais bíblica e apoiar aqueles que lutam e sofrem no meio secular por causa de sua fé ou de sua postura ética?

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CAPÍTULO 14

PESSOAS QUE LOUVAM E ORAM

issões existem para existir adoração." Essas palavras marcantes no pa-rágrafo de abertura do livro de John Piper, "Alegrem-se os povos", nos levam de modo dramático ao capítulo final de nossa pesquisa sobre te-

mas bíblicos. Piper assinala corretamente que a principal razão para a existência da igreja é glorificar a Deus, adorando-o e desfrutando-o por toda a eternidade. Uma vez que o mundo ainda está cheio de pessoas que não estão adorando e desfrutando o Deus vivo, a missão da igreja é trazê-las para o rebanho daqueles que o fazem. Há uma verdade autoevidente a respeito disso, que precisa ser defendida aqui, antes de prosseguirmos.

A ADORAÇÃO COMO O ALVO DE MISSOES O objetivo de toda a nossa missão é a adoração e a glória do Deus vivo e verda-deiro. Isso porque o objetivo de toda vida humana é amar, adorar, glorificar a Deus e desfrutá-lo. É nisso que repousa nossa mais profunda satisfação e pros-peridade. A satisfação de nosso potencial humano supremo, sendo nós criaturas feitas à imagem de Deus, está inteiramente na adoração e na glória de Deus.

"As missões não são o alvo supremo da igreja. A adora-

ção o é. As missões existem para existir adoração, porque

Deus é o fim, não o homem. Quando esta era acabar e

os incontáveis milhões ce redimidos se prostrarem diante

do trono de Deus, as missões não existirão mais. Elas são

uma necessidade tempora , mas a adoração permanece

para sempre. A adoração é, portanto, o combustível e o

alvo das missões.), John Piper'

1. John Piper, Let the nation be glad: The supremacy of God in missions (ed. rev., Grand Rapids: Baker e Leicester: IVP, 2003), p. 17 [Alegrem-se os povos, São Paulo: Cultura Cristã, 2001.]

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294 A missão do povo de Deus

Diríamos de outro modo: nós, seres humanos, ficamos mais satisfeitos em nós mesmos, quando estamos num relacionamento com Deus, no qual Deus é glorificado mediante a alegria que temos nesse relacionamento. É por isso que o retrato bíblico da nova criação pode combinar de forma tão direta as descrições da vida humana em sua mais valiosa perfeição com a adoração a Deus em todo o seu esplendor, porque uma coisa faz parte da essência da outra (Is 65.17-25; Ap 21-22).

Portanto, a missão de Deus é esse amor divino dinâmico que o leva a buscar o máximo bem-estar e a bênção para os seres humanos, chamando-os a um rela-cionamento com ele mesmo, no qual eles amam, adoram e glorificam ao Senhor, encontrando maior alegria ao fazerem isso. Assim, a missão do povo de Deus é também sermos agentes do seu amor redentor. Vivemos para levar outros a adorar e glorificar o Deus vivo, porque é nele que eles encontrarão sua maior sa-tisfação e alegria eternas. Por essa razão, não devemos ver o evangelismo como algo que impomos aos outros, mas como a melhor obra que poderíamos fazer por eles a longo prazo.

É assim que Paulo via não só a meta final de sua própria missão, mas, na ver-dade, a missão de Jesus Cristo. No final de sua carta aos Romanos, ele resume toda a sua argumentação no livro e a relaciona com o trabalho de sua própria vida. A grande missão de Deus, como ele havia dito nos versículos iniciais da carta, é levar todas as nações à obediência da fé (Rm 1.5). Em outros termos: no cumprimento de sua promessa a Abraão e por intermédio da obra do Senhor Jesus Cristo, Deus está trazendo pessoas de todas as nações para aquele lugar da bênção redentora, o qual é constituído, como ocorreu com Abraão, da confiança em Deus e da de-monstração dessa confiança por meio de uma vida obediente. O evangelho é a mensagem que torna possível esses fatos e é o poder que os realiza.

Havendo dito isso no início da carta, Paulo retorna a essa ideia no final (Rm 16.26),2 mas com uma ênfase maior no modo com que essa obra do evangelho, de levar todas as nações à obediência da fé, é realizada, enfim, para a glória de Deus e é também um motivo de alegria para as nações.

Vale a pena conhecer a empolgação do próprio Paulo, quando reúne textos das Escrituras do Antigo Testamento para apoiar essa grandiosa perspectiva. É importante ver como ele relaciona a abnegada servidão do Messias Jesus com a realização de seu próprio apostolado missionário. Tenha em mente enquanto estiver lendo essa passagem, que os "gentios" são as "nações" — essa é a mesma palavra grega tà éthne. A variação na tradução na maioria das versões pode obscurecer esse ponto importante na teologia de Paulo e na prática da missão. Paulo via sua missão em termos completamente abraâmicos: a bênção a todas as nações da terra. Que poderia gerar mais alegria do que isso?

2. Observe como a Epístola aos Romanos 1.1-5 e 16.25-27 utiliza frases emparelhadas de modo que tal pro-cedimento deve ser intencional.

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Pessoas que louvam e oram 295

Digo, pois, que Cristo foi constituído ministro da circuncisão, em prol da verdade de Deus, para confirmar as promessas feitas aos nossos pais; e para que os gentios [nações] glorifiquem a Deus por causa da sua miseri-córdia, como está escrito:

Por isso, eu te glorificarei entre os gentios [nações] e cantarei louvores ao teu nome.'

Diz também: Alegrai-vos, ó gentios [nações], com o seu povo.4

Ainda: Louvai o Senhor vós todos os gentios [nações] e todos os povos o

louvem.'

Também Isaías diz: Haverá a raiz de Jessé, aquele que se levanta para governar os gentios

[nações]; nele os gentios [nações] esperarão.6

[...] vos escrevi em parte mais ousadamente, como para vos trazer isto de novo à memória, por causa da graça que me foi outorgada por Deus, para que eu seja ministro de Cristo Jesus entre os gentios [nações], no sagrado encargo de anunciar o evangelho de Deus, de modo que a oferta deles seja aceitável, uma vez santificada pelo Espírito Santo. Tenho, pois, motivo de gloriar-me em Cristo Jesus nas coisas concernentes a Deus. Porque não ousarei discorrer sobre coisa alguma, senão sobre aquelas que Cristo fez por meu intermédio, para conduzir os gentios [nações] à obediência, por palavra e por obras, por força de sinais e prodígios, pelo poder do Espírito Santo [...]. (Rm 15.8-12, 15-19; ARA; inserções do autor).

Ora, àquele que é poderoso para vos confirmar segundo o meu evangelho e a pregação de Jesus Cristo, conforme a revelação do mistério guardado em silêncio nos tempos eternos, e que, agora, se tornou mani-festo e foi dado a conhecer por meio das Escrituras proféticas, segundo o mandamento do Deus eterno, para a obediência por fé, entre todas as nações, ao Deus único e sábio seja dada glória, por meio de Jesus Cristo, pelos séculos dos séculos. Amém! (Rm 16.25-27; ARA).

A grandiosa visão final da Bíblia, em Apocalipse, vai ainda mais longe, ao verem-se não só todas as nações da humanidade unidas em louvor a Deus, mas toda criatura em toda a criação, trazendo glória a Deus.

3. 2Samuel 22.50. 4. Salmo 18.49. 5. Deuteronomio 32.43.

6. Isaías 11.10

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296 A missão do povo de Deus

"Se Deus deseja que todo joe ho se dobre a Jesus e

que toda língua o confesse ; ogo, nós devemos fazê- o.

Devemos ter "ciúmes" (como as Escrituras às vezes ex-

pressam) da nonra de seu nome — ficando preocupados

quando e e permanece cesconhecido; feridos quando e e

é ignorado; indignados quando e e é blasfemado; em

toc o o tempo, ansiosos e determinados para que sejam

c adas devidamente honra e g ória a e e. A mais elevaca

c e todas as motivações missionárias não é a obediência

à Grande Comissão, embora isso seja importante, nem o

amor pelos pecadores que estão alienados e perecendo,

embora isso seja um forte incentivo, principalmente ao

contemp ermos a ira de Deus, mas um zelo ardente e

apaixonado pela g ória de Jesus Cristo. [...] Diante desse

alvo supremo ca missão cristã, todos os outros motivos

indignos murcham e morrem")

John Stott'

Também ouvi todas as criaturas que estão no céu, na terra, debaixo da terra, no mar e tudo que neles existem, dizer: Ao que está assentado no trono e ao Cordeiro sejam o louvor, a honra, a glória e o domínio, pelos séculos dos séculos! (Ap 5.13)

Entretanto, não é suficiente reconhecer que a adoração é o alvo supremo da missão, no sentido de levar todas as nações a glorificarem a Deus por meio da adoração, da confiança e da obediência a ele por meio do evangelho de Jesus Cristo. Precisamos também ver como a adoração faz parte dos meios da missdo.

Há uma razão pragmática óbvia para isso, a qual podemos mencionar em primeiro lugar. Aqueles cuja razão de existir na terra é levar outros a louvarem o Deus vivo e a orarem a ele precisam estar fazendo isso em suas vidas, ou toda a sua missão será uma impossibilidade hipócrita. No entanto, uma razão mais profunda para isso é que, uma vez que glorificar a Deus e desfrutá-lo para sempre será o privilégio da humanidade redimida na nova criação, por toda

7. John Stott, Me message of Romans (The Bible Speaks Today; Leicester: IVP e Downers Grove, IL: IVP) p. 53 [Série: A Bíblia fala hoje: A mensagem de Romanos, São Paulo: ABU.]

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Pessoas que louvam e oram 297

a eternidade, engajar-nos nesse louvor e nessa oração, aqui e agora, é um ato de antecipação, uma placa de sinalização para o futuro. Quando fazemos isso com ousadia e certeza, convidamos os outros não só para a atual experiência de adoração, mas também para a glória futura de uma eternidade redimida.

"A própria natureza, a majestade e a dondade de Deus

evocam adoração e gratidão. Essa resposta serve para

sonrar a Deus e, ao mesmo tempo, para proclamar a

todos quantos a ouvem que esse Deus YHWH é digno

de nosso amor e fidelidade. Por essa razão, o ouvor não

é apenas devoção, mas tampem um testemunho; é tanto

uma exaltação a Deus como uma proclamação que busca

atrair outros para a adoração a Deus)) (grifos co autor).

Samuel E. Baientine'

Por essa razão, observemos alguns tópicos em nossa teologia bíblica, nos quais o louvor e a oração podem ser vistos com dimensões missionais.

LOUVOR MISSIONAL

Criados para louvar Ao longo deste livro, temos encontrado respostas para a pergunta: "Por que o povo de Deus existe?" Pensando em "povo de Deus" nos termos do Antigo Testamento, temos visto a importância crucial da promessa de Deus a Abraão de que, por meio dele e de seus descendentes, todas as nações da terra seriam abençoadas. O Israel do Antigo Testamento, portanto, foi criado em prol da bênção para todas as nações da humanidade. Foi uma nação que existiu por causa das outras nações.

Entretanto, outros textos apresentam um propósito divino diferente para a criação de Israel:

8. Samuel E. Balentine, Prayer in the Hebrew Bible: The drama of divine-human dialogue (Mineapolis: Aus-burg Fortress, 1993), p. 199.

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298 • A missão do povo de Deus

[...1 a todos os que são chamados pelo meu nome, e aos que criei para minha glória, e que formei, e fiz. (Is 43.7; ARA, grifo do autor)

[...1 ao meu povo, ao meu escolhido, ao povo que formei para mim, para celebrar o meu louvor. (Is 43.20b-21; ARA, grifos do autor)

Pois, assim como o cinto se apega à cintura do homem, assim eu fiz com que toda a casa de Israel e toda a casa de Judá se apegasse a mim, diz o SENHOR, para que fossem para mim povo, nome, louvor e glória. (Jr 13.11; grifo do autor).

Esses textos afirmam que Deus criou Israel por causa de sua própria glória, para trazer-lhe louvor. Então, há uma contradição nisso? Israel foi criado por causa das nações ou por causa da glória e do louvor a Deus? Claro que a resposta é: com as duas finalidades, porque, conforme vimos, o supremo propósito de Deus para a bênção das nações é que elas venham a conhecê-lo e glorificá-lo como seu bem maior. Assim, a existência de Israel para esse propósito global está ligada à exigência de eles mesmos serem um povo que incorpore esse co-nhecimento e adoração.

Isso é visto de forma mais sucinta no Salmo 100, que expressa o fato de ser Israel um povo criado por Deus e pertencente a ele (v. 3), exatamente em meio à convo-cação para que o adorem e louvem, que é encontrada no versículo anterior e no posterior a essa convocação (vv. 2 e 4). Isso é tornado horizontalmente universal: a "toda a terra" (v. 1) e verticalmente: a "todas as gerações" (v. 5). Em outras palavras: a existência de Israel como um povo criado para o louvor a Deus (vv. 2-4) está ligada à glória de Deus, que preenche todo o espaço e toda a história (vv. 1 e 5).

A missão do povo de Deus, então, provém do fato de ele ter sido criado para trazer louvor e glória a Deus, e para trazer as nações do mundo para a mesma orquestra de doxologia.

Redimidos para louvar A linguagem da criação e da redenção se combinam perfeitamente, principal-mente em Isaías. Quando chegamos ao Novo Testamento, a obra redentora de Deus está ligada à responsabilidade de trazer louvor e glória a ele, em dois textos-chave: um de Paulo e outro de Pedro.

Efésios 1.3-14 Nesta passagem impressionante (que é incrivelmente uma única frase no grego), Paulo utiliza a expressão "louvor da glória" três vezes, nos versículos 6 (com a adição da expressão "de sua graça"), 12 e 14.

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Pessoas que louvam e oram 4, 299

No versículo 6, Paulo está discorrendo sobre o amor de Deus, que nos esco-lheu desde toda a eternidade para pertencermos a ele, "para o louvor da glória da sua graça" (ARA).

No versículo 12, é quase certo que ele está aludindo ao Israel do Antigo Testamento, nação de onde vieram as primeiras pessoas que conheceram e pu-seram sua fé no Messias Jesus. Eles haviam sido chamados "para o louvor da sua glória", conforme textos do Antigo Testamento, já mencionados.

No versículo 14, ele resume toda a obra da salvação, que agora inclui tanto os gentios quanto os judeus ("também vós"; v. 13), criados "para o louvor da sua glória".

A glória de Deus é a sua revelação, e a g ória ca sua

graça é a sua autorrevelação de um Deus gracioso. Viver

para o louvor da glória ca sua graça é, ao mesmo tempo,

acorá-lo, pelas nossas pa avras e ações, como o Deus

gracioso que ele é e fazer que outros também o vejam e o

adorem. Essa era a vontade de Deus para Israel nos cias

do Antigo Testamento (Is 43.21; Jr 1 3.1 1). E hoje também

o seu propósito para o seu povo)) (grifos do autor).

John Stott'

Essa ênfase tripla demonstra quão profundamente Paulo havia bebido na fonte da eclesiologia do Antigo Testamento — a autocompreensão de Israel acerca de seu papel e identidade firmada como o povo de Deus. Israel havia sido criado e redimido para trazer louvor e glória ao Deus vivo; tudo o que era verdade para eles era, de forma incontestável, verdade para os cristãos — aqueles que foram trazidos de todas as nações para o povo da aliança de Deus, por meio de Jesus Cristo.

Desse modo, a vida de adoração do povo de Deus e sua função missional de estender essa adoração entre as nações (como as comunidades cosmopolitas e multiétnicas de Éfeso) são partes integrantes, uma da outra.

9. John Stott, The message of Ephesians: God's new society (lhe Bible speaks today; Leicester: IVP e Downers trove, IL: IVP, 1979), p. 50 [Série: A Bíblia fala hoje: A mensagem de Efésios (A nova sociedade de Deus), São Paulo: ABU.[

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300 • A missão do povo de Deus

1 Pedro 2.9-12 Pedro desenvolve o mesmo argumento por um caminho diferente e com ainda mais ecos do Antigo Testamento. No início do capítulo, ele havia comparado o povo de Deus, em Cristo, ao templo do Antigo Testamento (como "pedras vivas", assim como Paulo fez em Ef 2.21, 22) e aos sacerdotes que ofereciam sacrifícios (1Pe 2.5). Que são esses "sacrifícios espirituais" que os cristãos, "sa-cerdócio real" de Deus (v. 9), devem oferecer agora? São a adoração e o louvor que eles "declaram" como parte da "vida piedosa" que vivem no meio das na-ções. Precisamos colocar as duas coisas lado a lado, a fim de ver como elas estão integradas (infelizmente, muitas traduções da Bíblia inserem uma divisão de parágrafo ou um título antes do versículo 11, obscurecendo o fluxo urgente do argumento de Pedro).

[...1 vós sois geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de proprie-dade exclusiva de Deus, para que anuncieis as grandezas daquele que vos chamou das trevas para sua maravilhosa luz. [...] Seja correto o vosso procedimento entre os gentios [pagãos], para que, naquilo que falam mal de vós, como se fôsseis praticantes do mal, ao observarem as vossas boas obras, glorifiquem a Deus no dia da visitação. (1Pe 2.9, 12; inserção e grifo do autor).

O pensamento de Pedro está tão impregnado das Escrituras que quase todas as frases que ele escreve possuem um ou mais ecos dos textos do Antigo Testa-mento. O propósito de sermos povo de Deus, expresso no versículo 9 — "para que anuncieis as grandezas daquele que vos chamou das trevas para sua maravilhosa luz" — tem uma alusão clara ao êxodo na segunda parte. Os cristãos também sentiram o sabor da redenção de Deus ("para fora de/para dentro de").

Mas a primeira metade da frase, "para que anuncieis as grandezas", tem provavelmente dois textos específicos do Antigo Testamento em mente (isso é teologia bíblica para a vida em ação!).

Isaías 43.21 (já citado) — A palavra que Pedro usa para traduzir "grandezas" (areias) é a mesma da versão da LXX de Isaías 43.21 — "que eles possam procla-mar o meu louvor". Essa não é a palavra mais comum usada para "louvor" em qualquer um dos testamentos. De fato, ela aparece no plural, como nesse caso, apenas quatro vezes no Antigo Testamento — todas em Isaías (Is 42.8, 12; 43.21; 63.7). Fica claro que ela se refere ao louvor não como afirmações gerais de coi-sas agradáveis sobre Deus, mas principalmente como uma celebração por seus grandiosos atos de salvação e misericórdia. Isaías, assim como Pedro, antevê esse louvor como a responsabilidade do povo de Deus, com a clara intenção de atrair outras pessoas para fazerem o mesmo (em Is 42.12, "deem honra ao SENHOR" se refere às nações estrangeiras). Esse é um louvor missionai.

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Pessoas que louvam e oram • 301

Salmo 9.14 — A palavra que Pedro utiliza, traduzida como "proclamar" (exangéllo), é a mesma usada na versão da LXX do Salmo 9.14: "que eu possa declarar seus louvores..." (v. 15 na LXX). Esse termo se refere à declaração dos atos poderosos de Deus (seja seus atos históricos de redenção para com Israel, em seu todo, ou atos pessoais em favor do adorador), no contexto da adoração pública. Essa palavra, onde quer que seja usada nos Salmos, tem esse sentido de declaração pública do que Deus tem feito, como um ato de louvor e alegria (S1 71.15; 73.28; 79.13; 107.22).

Portanto, parece certo que Pedro está fazendo uma dupla argumentação nesse texto. Primeiro, ele insiste em que, assim como os crentes herdam a identi-dade e os títulos do Israel do Antigo Testamento (eleito, sacerdócio, povo santo que pertence a Deus), herdam também o propósito da criação e da redenção de Israel (declarar o louvor de Deus e dar glória a ele). Segundo, ele insiste em que o propósito desse louvor declarado não é um assunto particular entre Deus e os adoradores, mas transbordante para a esfera pública, como fosse um dos meios com que Deus atrai as nações para si mesmo. Em outras palavras: isso é parte do que significa cumprir a comissão abraâmica de ser o povo de Deus para o bem do restante das nações que virão desfrutar a bênção de Deus.

Como já foi dito, o louvor do povo de Deus é missional. A missão do povo de Deus inclui doxologia.

Há um poder evangelístico na adoração pública que declara o louvor a Deus. Esse louvor não pode ser simplesmente equiparado ao evangelismo pessoal, mas certamente o complementa. John Dickson argumenta de forma muito eficaz:

O tema da promoção do evangelho aparece de forma expressiva no meio dos capítulos de 1Pedro. Em 2.12, o apóstolo exorta os crentes a viverem de modo tão exemplar que seus vizinhos pagãos acabem dando glória a Deus (compare com Mt 5.14-16). Em 3.1, Pedro orienta seu argumento, admoestando as esposas para ganharem para a fé seus maridos incrédu-los, por meio de uma conduta piedosa. Depois, apenas alguns parágrafos adiante, em 3.15, ele nos chama para "[...] responder a todo aquele que nos pedir razão da esperança que há em nós" (uma afirmação que explo-raremos no próximo capítulo). Dada a ideia missionária desses capítulos, parece provável que Pedro esteja pensando em algum tipo de evangelis-mo: "[...] que anuncieis as grandezas daquele que vos chamou das trevas para sua maravilhosa luz" (1Pe 2.9).

Mas que tipo de evangelismo Pedro está comentando? Uma vez que entendi (e ensinei) que o apóstolo estava discorrendo sobre o evangelis-mo pessoal, interpretei a frase "declarar as virtudes" com o significado de dizer algo do evangelho para seus amigos e família. Hoje, acho que provavelmente fui precipitado. A expressão "declarar as virtudes" está associada à descrição do louvor público de Israel no Antigo Testamento, com seus credos, orações e com os sempre presentes Salmos cantados.

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302 b A missão do povo de Deus

"A adoração envolve testemunho. O fator que une

adoração e testemunho é o nome de Deus, pois que é a

adoração senão a ória ao seu santo nome", "louvar"

ou "estar em reverência" diante de e? E que é testemunuar

senão 'proclamar o nome co Sennor" aos outros? Essas

expressões são encontradas no Sa teria. E nos Salmos que

a própria combinação entre adoração e testemunno é mais

clara e encontrada em abundância. [...] Acoração — ação

de adorar — é um reconhecimento do mérito do Deus Todo-

Poderoso. [...] Portanto, para mim, é impossível adorar a

Deus e não me importar, nem um pouquinuo, se os outros

também o estão adoranco. [...] A adoração que não gera

testemunho é hipocrisia. Não podemos aclamar a dignida-

de de Deus se não tivermos o desejo ce proc ama- a.),

John Stott

Quando lembramos que o judaísmo bíblico da época de Pedro já havia pensado no louvor público como benéfico para os de fora, parece bem mais provável que o apóstolo estivesse referindo-se, em 1Pedro 2.9, não tanto sobre o evangelismo nas conversas, mas sobre o evangelismo que acontece quando o povo de Deus se reúne para celebrar em palavras e canções, as maravilhas salvadoras do Senhor... As palavras de Pedro são intensamente evangelísticas, sem terem, na verdade, nada a ver com aqui-lo que chamamos de evangelismo pessoal...

Declarar conjuntamente as virtudes de Deus, em nossas leituras, cre-dos, pregações, salmos, hinos e cânticos espirituais, é uma das nossas ações centrais de adoração, as quais praticamos como povo de Deus. Uma razão para a importância central do louvor é o merecimento absoluto de Deus. Não precisamos de nenhuma outra razão para enxergar o louvor como uma atividade elevada e santa. Porém, dado o poderoso tema de missão em 1Pedro, combinado com a tradição igualmente poderosa do evange-lismo doxológico, é provável que estejamos certos em detectar uma razão secundária para a grande importância do louvor público. Por meio dele, anunciamos a misericórdia e o poder de Deus àqueles que nos ouvem e ainda não foram chamados das trevas para a sua maravilhosa luz."

10. Stott, Our guilty silente, p. 27-28. 11. Dickson, Best kept secret, p. 160, 161, 163.

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Pessoas que louvam e oram *. 303

O testemunho por meio do louvor Logo, fomos criados para dar glória a Deus, nosso Criador. Somos redimidos para declarar os louvores de Deus, nosso redentor. O que torna missionais essas ações é o fato de devermos praticá-las em meio às nações que ainda não conhecem Deus como Criador e redentor. Adoração e testemunho estão intimamente interligados.

Esse é exatamente o tema do Salmo 96, o qual considero como uma das mais ricas canções missionais em toda a Bíblia. Seus três primeiros versículos são um notável chamado ao louvor, dirigido a "toda a terra", mas é claramente destinado a ser cantado (pelo menos inicialmente) por aqueles que já experimentaram as grandes realidades de que ele fala:

Cantai ao SENHOR um cântico novo, cantai ao SENHOR, todas as terras. Cantai ao SENHOR, bendizei o seu nome; proclamai a sua salvação, dia após dia. Anunciai entre as nações a sua glória, entre todos os povos, as suas maravilhas. (5196.1-3; ARA)

"Cantai ao SENHOR um cântico novor, clama o compositor. "Claro, quais são os versos?", respondemos. "Cantemos sobre o nome de YHWH, sobre a salvação de YHWH, sobre a

glória de YHWH e sobre os maravilhosos feitos de YHWH." "Mas essas são canções antigas!', protestamos. "Essas são as letras de nossas

grandiosas canções desde que Israel foi redimido do Egito; aprendemos o nome de YHWH no Sinai; vimos a sua glória no tabernáculo e experimentamos repe-tidos atos de salvação de suas mãos. Que torna isso um cântico novo?"

O salmista expressa: "Pode ser uma canção antiga para nós, mas será um cântico novo 'entre as nações', 'entre todos os povos:"

Esse parece ser o tema dessa grande convocação. A adoração de celebração de Israel constitui um testemunho para as nações. As canções antigas de Israel se tornam o cântico novo das nações.

"Mas como as nações ouviriam?" — podemos nos perguntar. Não costuma-mos pensar nos israelitas do Antigo Testamento como pessoas envolvidas no evangelismo transcultural missionário. Não, de fato. Até mesmo lonas só se encaixa nessa descrição de um modo bem relutante. Mas havia pelo menos duas maneiras de expor as nações à adoração por meio do testemunho dos israelitas.

Em primeiro lugar, a própria Jerusalém era uma cidade cosmopolita des-de os dias de Salomão, com pessoas de muitas nações vizinhas indo e vindo — no comércio, nas atividades culturais e políticas. Muitos deles poderiam ter visitado o templo e experimentado a adoração a YHWH, Deus dos israelitas. Salomão previu exatamente isso em sua oração de dedicação do templo (1Rs

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304 - A missão do povo de Deus

8.41-43). A rainha de Sabá, a mãe de todos os turistas, é o exemplo mais ilustre disso (1Rs 10).

Em segundo, a partir do exílio, houve um número substancial de judeus vivendo nas comunidades da diáspora, em toda a Mesopotâmia e nas terras do leste do Mediterrâneo.' Sabemos que a fé, a adoração e as Escrituras dos judeus eram temas das conversas entre os outros povos, muitos dos quais foram atraí-dos e se tornaram o que o Novo Testamento descreve como "tementes a Deus".

John Dickson, que pesquisou toda a prática judaica exercida ao longo desses séculos, destaca como a adoração do povo de Israel teve uma dimensão missio-nal muito tempo antes de a igreja do Novo Testamento embarcar na tarefa da missão evangelística itinerante. Na verdade, fica claro que Paulo, no decurso de seu trabalho missionário, fazia uso eficaz desta periferia dos gentios tementes a Deus, nas sinagogas que ele visitava de forma rotineira.

Você pode se surpreender ao saber que muitos judeus, no período entre o Antigo Testamento e o Novo, levavam a sério a ideia de adoração pública como um ato missionário. Eles sabiam muito bem que o louvor coletivo a Deus, na sinagoga ou no templo, era uma das maneiras de Deus conven-cer os gentios a dobrarem seu joelho diante do Senhor. Em alguns casos, os judeus tiveram grande sucesso. Sabemos que, no primeiro século, inú-meras sinagogas atraíam grandes multidões de pagãos, os quais queriam saber mais sobre o Deus dos judeus...

Acreditava-se que tanto nos salmos cantados do antigo Israel como nos cultos nas sinagogas da época de Jesus, o louvor público ao Deus ver-dadeiro funcionava como uma ação missionária. Esse não era o objetivo das reuniões - não estou sugerindo que esses encontros eram os "cultos evangelísticos dos judeus" - mas eles eram considerados um importante derivado do louvor corporativo a Deus.'

Talvez isso nos ajude a compreender que a conversão do continente europeu começou numa prisão, quando dois judeus que haviam sido "severamente açoi-tados" "[...] oravam e cantavam louvores a Deus, e os demais companheiros de prisão escutavam" (At 16.25). O próprio apóstolo Paulo tinha a certeza de que,

12. Na verdade, a extensão da diáspora dos judeus foi bem maior do que isso. Há evidências do assentamento de judeus e da aceitação da fé judaica entre os povos indígenas na China, na índia, na Arábia e no Iêmen, em todo o nordeste da África em direção ao norte da África e em toda a extensão da Europa dominada pelo Império Romano. Não há dúvida de que igualmente, em muitos desses lugares, a prévia existência de comu-nidades judaicas significativas fornece uma base para a chegada inicial dos cristãos (como vemos na obra de Paulo no Novo Testamento). Uma pesquisa mais detalhada sobre isso pode ser lida em Richard De Ridder, Discipling the nations, p. 58-87. Para uma pesquisa mais exaustiva sobre o impacto da diáspora dos judeus e, principalmente, sobre a adoração nas sinagogas trazer gentios à conversão e à fé no Deus de Israel, veja John

Dickson, Mission commitment in ancient Judaism and in the Pauline communities (Tübingen: Mohr-Siebeck, 2003), p. 74-85, e sobre a influência dela na prática e na expectativa missionária de Paulo, Ibid, p. 293-302. 13. Dickson, Best kept secret, p. 158, 159.

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Pessoas que louvam e oram o, 305

se a igreja de Corinto adorasse a Deus corretamente, qualquer descrente que viesse à sua reunião se prostraria com o rosto em terra e o adoraria, testemu-nhando que Deus estava, de fato, no meio deles (cf. 1Co 14.25).

Isso é louvor missional.

Alguém difici mente poderia imaginar um meio mais

provicencia para a missão cristã alcançar as comunida-

des genti ficas co que a ciáspora dos ¡Liceus. Para once

quer que fosse a comunidade dos cristãos, ela possuía em

mãos as ferramentas necessárias para alcançar as nações:

um povo vivendo cebaixo ca promessa ca a iança e ca

e eição responsável e as Escrituras, a reve ação de Deus

a todo homem. [...] O que o Israel co Antigo Testamento

e as nações não poceriam soder, até que a guém lhes

contasse, era a extraordinária coa-nova do cumprimento

ca aliança ce Deus, em Cristo") Richard R. De Ridder"

ORAÇÃO MISSIONAL

A oração: uma marca distintiva entre as nações Israel foi planejado para ser um modelo visível para as nações. Conforme vimos no capítulo 8, esse era um fator motivador importante para manter a Lei e o viver de Deus do modo como ele havia providenciado para Israel. Em Deuteronômio 4.6-8, Moisés coloca a adoração de Israel lado a lado com a justiça social de sua sociedade, como marcas de distinção que deveriam despertar a curiosidade e a admiração das nações:

Guardai-os [os estatutos de Deus] e obedecei a eles. Assim, a vossa sabe-doria e o vosso entendimento serão vistos pelos povos, que ouvirão todos estes estatutos e dirão: Esta grande nação é realmente um povo sábio e inteligente. Pois que grande nação tem deuses tão próximos quanto o SENHOR está de nós, todas as vezes que o invocamos? E que grande

14. De Ridder, D scipling the nations, p. 87.

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306 • A missão do povo de Deus

nação há que tenha estatutos e preceitos tão justos quanto toda esta lei que hoje ponho diante de vós? (Dt 4.6-8).

Portanto, a vida de oração de Israel foi planejada para ser missional. Ela era uma demonstração da proximidade de Deus. Moisés não estava sugerindo que Israel deveria orar a fim de ser visto e admirado por outros (em conflito com as instruções de Jesus para fazermos o contrário), mas dizia que o exercício normal de seu relacionamento com Deus, na oração, deveria formar uma parte desse testemunho da realidade do Deus vivo, para o qual eles haviam sido criados.

“Esse lugar crucial da oração reafirma o grandioso a vo

de Deus ce cefender e exibir sua glória para a a egria

daqueles que são redimidos dentre todas as nações. [...]

O propósito missionário de Deus é tão invencível quanto

o fato de e e ser Deus. E e a cançará seu objetivo pela

criação de um grupo fervoroso de adoradores de cada

povo, trigo, íngua e nação (Ap 5.9; 7.9). E ele estará

engajado em fazer isso por meio da oração. Portanto, é

quase impossive exagerar na ênfase do lugar incrive que

a oração tem nos propósitos de Deus para o mundo") Jonn Piper

A oração feita para que as nações sejam abençoadas Parece que foi há muito tempo que estávamos almoçando com Abraão e seus três convidados em Gênesis 18 (veja cap. 5). Prestamos mais atenção ao ver-sículo 19, no qual Deus relaciona seu propósito missional de abençoar todas as nações com a eleição que ele fez de Abraão e com o contraste étnico entre a futura comunidade de Abraão e o mundo caracterizado por Sodoma. Foi dito a Abraão que ele deveria ensinar sua própria casa, mas a primeira providência que ele tomou, depois de ter a revelação de Deus, foi orar pela cidade.

A intercessão de Abraão por Sodoma é uma passagem notável (Gn 18.22-33). Ela fornece ainda outro aspecto em que Abraão foi um modelo para seus descendentes físicos e espirituais. Saber que Sodoma estava no caminho do imi-

15. Piper, Let the nations be glad, p. 63.

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nente julgamento de Deus não o fez recuar, mas o fez voltar-se para a oração.

Moisés e Daniel estavam entre aqueles que seguiram o exemplo de Abraão, em favor de Israel, num dilema semelhante (Êx 32-34; Dn 9). A oração intercessória pelas nações é uma parte essencial da missão em relação às nações.

Os israelitas sabiam que podiam orar em qualquer lugar, porque Deus estava em toda parte, conforme sabia Davi, para seu conforto (S1 139). Jonas provou isso no lugar provavelmente mais estranho para se fazer uma oração (Jn 2.1). Acima de tudo, eles oravam no templo porque ali era, por intenção de Deus, uma "casa de oração". Sabemos também, é claro, que era o lugar do sacrifício. É um fato notável que, na ocasião da grande dedicação de Salomão, nenhuma palavra de seu discurso é dita sobre os sacrifícios, naquele dia (embora os sacri-fícios fossem oferecidos), mas muito é dito sobre a oração.

De fato, a oração de Salomão na dedicação do templo é uma oração a respeito da oração! Ele antevê uma variedade de situações, nas quais, Israel oraria parti-cularmente a Deus no templo ou "na direção" dele — situações em que Salomão pede a Deus, em seguida, que ouça e responda às orações do povo (1Rs 8.22-53).

Depois, conforme vimos no capítulo 8, Salomão estende o foco de sua ora-ção aos povos de outras nações, os quais também virão ao templo para orar. Como dissemos, Jerusalém era uma cidade cosmopolita, cheia de estrangeiros, por todo tipo de razão. E se eles se decidissem a trazer seus pedidos a YHWH, o Deus de Israel?

"Faça o que os estrangeiros pedirem ao Senhor", ora Salomão — que faça pelos estrangeiros aquilo que ele nunca havia prometido, nesses termos (fazer por Israel). Esta é uma oração notável para que Deus ouça e responda às orações das nações. A razão que Salomão sugere para apoiar seu pedido vai direto ao coração missional de Deus: "[...] a fim de que todos os povos da terra conheçam o teu nome e te temam como o teu povo Israel" (1Rs 8.43). Aqui está a comissão de Abraão, traduzida numa oração missional. Salomão ora pelas nações, para

que elas venham a orar ao Deus YHWH; e ora a Deus, para que ele responda às

nações, por amor do seu próprio nome. Esse é certamente um dos momentos mais missionais do Antigo Testamento.

Em Jeremias 29, Jeremias não está orando, mas escrevendo uma carta em que ele estimula outras pessoas a orar. Na verdade, ele está escrevendo para os israelitas, que estão numa das situações descritas por Salomão em sua ora-ção: "Quando pecarem contra ti, pois não há homem que não peque, e tu te indignares contra eles e os entregares ao inimigo, de modo que os levem em cativeiro para a terra inimiga, distante ou próxima" (1Rs 8.46). Sim, Israel está no exílio, na Babilônia. Sem dúvida, eles estão orando a Deus, em desespero, por si mesmos e por alguma esperança de retorno futuro, mas não é por isso que Jeremias diz que eles devem orar. De modo espantoso, ele os instrui a orarem pela Babilônia: "Orem por seus inimigos! Procurem o salom deles."

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308 • A missão do povo de Deus

Jeremias 29.7 fornece o capítulo e o versículo (evidentemente, isso não exis-tia naquele tempo) para o ensinamento de Jesus: "Amai os vossos inimigos, fazei o bem aos que vos odeiam, abençoai os que vos amaldiçoam e orai pelos que vos maltratam" (Lc 6.27, 28; grifo do autor).

Conforme vimos no capítulo 13, essa instrução de Jeremias faz parte de uma forte tradição bíblica, segundo a qual, o povo de Deus existe no mundo para trazer a bênção de Deus, a presença de Deus e o poder de Deus para a esfera pública, mesmo no centro do território inimigo. A oração é um meio poderoso de fazer isso.

Assim, Salomão ora para que os estrangeiros venham a orar a Deus por si mesmos, enquanto Jeremias pede a Israel que ore a Deus pelos estrangeiros. Ambos acreditavam que Deus responderia a essas orações para a glória do seu nome e pelo salom tanto daqueles que oravam quanto daqueles que recebiam as orações.

Isso é oração missional.

A oração feita como subversão à idolatria das nações Gosto de pensar, como disse, que Daniel ouviu a carta de Jeremias, quando ela foi lida para a primeira leva de exilados (porque ele e seus jovens amigos esta-vam no primeiro grupo de exilados). Gosto de pensar que ele a levou a sério e incluiu a oração pela Babilônia em seu hábito de orar três vezes ao dia. Acho que tal conjectura pelo menos é uma explicação razoável para sua aparente afeição por Nabucodonosor e para o seu desejo de ajudá-lo a evitar o julgamento de Deus (Dn 4; veja cap. 13); no entanto, há um elemento ainda mais forte para a oração de Daniel (Dn 6). Ela frustra a insolência idólatra do rei. Você lembra que Dario, cedendo à bajulação daqueles que estavam em seu governo e que simplesmente queriam tirar Daniel do caminho, para que a integridade e dili-gência deste não lhes atrapalhassem as próprias ambições corruptas, aprovou um decreto que dizia que, durante um mês, ninguém em seu reino deveria orar a outro deus, senão a ele próprio. Quando paramos para pensar, vemos que esse era um decreto absurdo. Em primeiro lugar, ele reivindicava divindade para si próprio. Isso sempre foi um projeto perigoso, conforme sabemos, desde que Faraó tentou implantá-lo no Egito.

Em segundo lugar, ele é um sintoma de uma visão diluída do que significa ser "deus", como se os deuses que existiam ao redor da pluralidade religiosa multiétnica do Império Persa pudessem, educadamente, ter moratória sobre suas próprias credenciais de respostas de oração por algumas semanas, permi-tindo que todos os pedidos fossem desviados para esse rei humano emergente que achava que era deus. No entanto, apesar de todos esses absurdos, isso é algo típico da arrogância do poder estatal. Os governos gostam de se exibir como a única fonte de todos os benefícios para seus cidadãos e de exigir lealdade total

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Pessoas que louvam e oram ,* 309

em troca disso. Nós não podemos quase endeusar nossos reis ou presidentes, mas transformamos facilmente o patriotismo em um credo e alegamos que a falta dele é uma heresia.

Que fez Daniel diante dessa exigência para não se reconhecer deus algum, senão o rei, a quem, por outro lado, ele servia de modo tão eficiente? Ele a subverteu. Continuou orando àquele que ele sabia ser o único Deus vivo. Quer esse conhecimento o levasse ou não a entrar em apuros, ele não fez nenhum esforço para escondê-lo (Dn 6.10). Tudo o que tinha que fazer, afinal das contas, era fechar as janelas!

Nem Dario nem o Império Persa era Deus. Só YHWH era Deus. O ato de oração relativizava e subvertia toda autoridade política humana.

Orar é dizer: "Existe um trono mais elevado". A oração apela a uma autori-dade maior. É, em suma, um ato político. Ela afirma que todo poder político humano é subalterno, não supremo; é relativo, não absoluto. Deve obedecer-lhe, contanto que ele seja coerente com a obediência ao Deus vivo (como estava claro para Daniel até então). Deve desobedecer-lhe sempre que ele tiver a presunção de ordenar aquilo que Deus proíbe ou proibir aquilo que Deus ordena.

A resposta de Daniel se refletiu na resposta dos primeiros seguidores de Jesus (embora ainda não fossem chamados de "cristãos"), quando eles depara-ram com a ordem explícita das autoridades para deixarem de falar sobre Jesus. Eles se voltaram para a oração, afirmando com vigor a soberania de Deus sobre o céu e a terra e sobre todas as nações e seus governantes, e oraram pedindo coragem para desobedecer ao Estado e obedecer a Jesus (At 4.23-31).

Essa é também uma oração missional.

A oração e o trabalho missionário Quando nos voltamos para o Novo Testamento, encontramos a oração como um instrumento que saturava a missão de Jesus, a da igreja em Atos e as instruções de Paulo para as igrejas em relação ao seu próprio trabalho missionário.

Jesus Poucos fatos confirmam e ilustram tanto a humanidade encarnada do Filho de Deus, na pessoa de Jesus de Nazaré, como sua vida de oração. Ele podia dizer: "Eu e o Pai somos um", embora isso não dissolvesse a realidade de sua depen-dência humana do Pai e sua necessidade de oração.

Sua missão terrena começou no seu batismo. Foi quando ele estava orando que aquele maravilhoso momento trinitário de afirmação da sua identidade ocorreu (Lc 3.21). Se ele estava. em jejum no deserto, no momento de sua luta e teste, é certo que ele também estava orando. A pressão de seu ministério de cura não removeu seus momentos de oração (Mc 1.35). A escolha dos doze discípulos para a sua missão foi feita após uma noite de oração (Lc 6.12-14). O

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310 • A missão do povo de Deus

treinamento missionário deles foi realizado com o envolvimento de Jesus em uma guerra espiritual em favor deles (Lc 10.17-21). A fé de Pedro sobreviveu ao desfalecimento de sua coragem porque Jesus orou por ele, para que sua missão pudesse continuar depois de seu arrependimento (Lc 22.31, 32). Sua última noite com os discípulos, antes de sua morte, incluiu oração por eles e pela missão contínua da igreja no mundo (Jo 17). O Getsêmani foi, acima de tudo, uma agonia de oração. Nem mesmo a crueldade da crucificação podia impedi-lo de orar.

"Por que a oração é tão crucia para a missão? Colos-

senses 4.2-4 nos dá a resposta. Na oração, elevamos a

obra do evange ho acima das meras circunstâncias e a co-

locamos nas mãos daquele que governa todas as coisas...

[aquele que poce prover] uma 'porta aberta", mesmo que

o mensageiro atua esteja trancado "com algemas".”

John Dickson

Jesus, é claro, ensinou seus discípulos a orar. Embora fosse instrutivo racio-cinar sobre a oração do Senhor como uma oração basicamente missional, po-deríamos tomar nota daquilo que meu colega Hugh Palmer'7 chama de "a outra oração do Senhor". Na verdade, como ele destaca, essa é a "outra única vez", nos evangelhos, em que Jesus explicitamente diz aos discípulos sobre o que é orar. Esse momento é inconfundivelmente missional em seu contexto e conteúdo:

Vendo as multidões, compadeceu-se delas, porque andavam atribula-das e abatidas, como ovelhas que não têm pastor. Então disse a seus discípulos: Na verdade, a colheita é grande, mas os trabalhadores são poucos; rogai ao Senhor da colheita que mande trabalhadores para a sua colheita. (Mt 9.36-38).

Por que, pergunta Hugh Palmer, usamos a oração do "Pai Nosso" regular-mente na liturgia cristã e essa "outra oração do Senhor" de modo tão espasmó-dico? Como poderia ter sido a história da missão cristã se essa oração se tivesse tornado aquela que teríamos memorizado e repetido (e desejado) ao longo dos

16. Dickson, The best kept secret, p. 76. 17. Reitor da Igreja All Souls, em Langham Place, Londres.

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Pessoas que louvam e oram • 311

séculos? Obviamente, essa é uma oração perigosa para se orar. Ela tende a se tornar autorrespondida, conforme os discípulos descobriram, porque, se eles fi-zessem como Jesus havia dito, o fato seguinte a acontecer é que eles se tornariam a resposta de sua própria oração, visto que Jesus os enviou (Mt 10).

Atos Listar aqui todas as ocorrências de orações no livro de Atos consumiria muito mais espaço do que podemos nos dar ao luxo de utilizar, mas seria um estudo pessoal bem instrutivo passar pelo livro tomando nota de todas as ocasiões, observando de forma especial o modo de a oração estar intimamente ligada à missão da igreja. Alguns exemplos dão essa ideia.

Mesmo antes do Pentecostes, após serem instruídos pelo Cristo ressurre-to para testemunhar dele até os confins da terra, a primeira reação dos discí-pulos foi se reunirem para oração (At 1.12-14). A oração era um ingrediente fundamental no número crescente de crentes (2.42). Ela era a resposta deles à oposição e perseguição (4.23-31; 12.12) e sua primeira ação em situações de novo evangelismo (8.14, 15). Foi num contexto de adoração, oração e jejum que a igreja em Antioquia foi conduzida pelo Espírito Santo para ini-ciar a primeira missão intencionalmente centrífuga aos gentios (13.1-3). A oração foi a primeira ação evangelística no solo europeu (16.13) e uma ação miraculosamente eficaz, quando foi combinada com cânticos até tarde da noite (13.25).

Paulo Paulo, além de ter fé ilimitada no poder de Deus e no poder do evangelho, co-nhecia o poder da oração. Sabia que os três juntos agiam de forma misteriosa na realização da missão de Deus. "Ajudado", conforme dizia, pelas orações de outras pessoas, sua sobrevivência pessoal dependia do livramento de Deus. Todos nós sabemos o que é pedir aos outros que orem por nós em momentos de dificuldade ou perigo, mas para Paulo o pedido estava especialmente focado em seu desejo de estar livre, para que pudesse continuar a tarefa missionária de proclamar o evangelho (2Co 1.9-11; Fl 1.19-26).

Até as suas orações por libertação estavam ligadas ao pedido que fazia às igrejas para que orassem para ele ter ousadia na proclamação evangelística. Mais uma vez, diríamos que separar um tempo para ler as três orações seguin-tes seria um bom investimento: 2Tessalonicenses 3.1, 2; Colossenses 4.2, 3 e Efésios 6.18-20.

As instruções de Paulo sobre oração não constituíram um chamado especí-fico para a oração pela missão evangelística com mais frequência. Têm ocorrido alguns debates a respeito disso. Seria porque Paulo não esperava que suas igrejas se engajassem no testemunho evangelístico? Isso tem sido discutido, mas refutado

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312 A missão do povo de Deus

de modo decisivo a meu ver.'8 A visão de D. A. Carson é a mais provável, de

que, para Paulo, missão e oração eram duas realidades igualmente abrangentes.

Deveria haver todos os tipos de oração para todos os tipos de missão.

Nossa tendência é a de subdividir as várias tarefas que Deus confiou a toda a

igreja, rotular como "missão" algumas delas e dar outros nomes às outras tarefas,

e depois prescrever uma oração especial para umas e outra oração especial para

as outras. Entretanto, isto não reflete as verdades do Novo Testamento:

Temos a tendência de pensar em missão como um projeto distinto (ou projetos distintos), geralmente do tipo transcultural, e concluir que se exige uma oração especial para essa função isolada. A par do chamado especial em sua própria vida de apóstolo (na verdade, como apóstolo dos gentios), Paulo vê sua missão em termos holísticos ou até mesmo cósmicos.

A glória de Deus, o reino de Cristo, a declaração do mistério do evan-gelho, a conversão de homens e mulheres, o crescimento e a edificação da igreja, a derrota dos poderes cósmicos, a busca da santidade, a paixão pela comunhão piedosa e pela unidade na igreja, a união entre judeus e gentios, fazer o bem a todos, especialmente aos que professam a fé — tudo isso está entrelaçado numa veste sem costuras. Todos esses elementos são mantidos juntos por uma visão em que Deus está no centro, e Jesus Cristo realiza as mudanças, para a sua glória e para o bem de seu povo. Isso significa que as ações de graças e a oração intercessória, embora arrastem uma gama de tópicos, são mantidas juntas por uma visão em cujo centro Deus está presente. Nossa abordagem mais fragmentada procura por certos tipos de conexão que, para o apóstolo, estavam embutidas numa visão abrangente.I'

Essa é uma ótima afirmação de alguns elementos-chave da missão holística

do povo de Deus, sobre os quais venho argumentando ao longo deste livro,

seguindo os contornos da linha histórica da Bíblia. A oração acompanha toda

a história da Bíblia, desde a oração de Abraão por Sodoma, em Gênesis, até às

orações dos santos e mártires em Apocalipse.

A oração feita como guerra espiritual A oração acompanha a história da Bíblia, exatamente por se tratar de uma

história de guerra - a grande batalha ao longo da história, em que Deus, incan-

savelmente, rechaça as forças do mal e das trevas, derrota-as definitivamente na

18. A discussão da refutação final da visão de que Paulo não esperava que suas igrejas se envolvessem no evangelismo (pela falta de instruções explícitas para fazê-lo) é fornecida por Peter T. O'Brien, Gospel and

mission in the writings of Paul (Grand Rapids: Baker, 1993; Carlisle: Paternoster, 1995).

19. D. A. Carson, "Paul's mission and prayer" em Thegospel to the nations: Perspectives on Paul's mission. Eds. Peter

Bold e Mark Thompson (Downers Grove: IVP e Leicester: Apollos, 2000), p. 175-184 (principalmente 182).

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cruz de Cristo e elimina-as no clímax final da história. Essa é uma guerra cujo resultado é garantido pela própria deidade de Deus. Deus terá a vitória.

Deus ordenou que a oração tivesse um lugar funcamen-

tal na missão da igreja. O propósito da oração é o de

deixar claro a tocos os participantes dessa guerra que a

vitória pertence ao Senhor. A oração é o meio designado

por Deus de trazer graça a nós e glória a e e mesmo. [...]

E por isso que o empreendimento missionário avança por

intermécio da oração. O principal propósito de Deus é

g orificar a si mesmo. Ele fará isso no triunfo soberano de

seu propósito missionário ce ser adorado pelas nações. Ele

garantirá esse triunfo, entrando na Detalha e tornando-se o

seu principal combatente. Deixará claro esse compromisso

a tocos os participantes por meio da oração, porque a

oração revela que o poder vem do Senhor...

A oração é o walkie-talkie da igreja no campo de detalha

do mundo a serviço do mundo. Não é o interfone domés-

tico para aumentar o conforto temporal dos santos... Ela

é destinada aos solcados na ativa. Nas mãos deles, ela

prova a supremacia de Deus em busca das nações. A

missão, quanco avança pela oração, magnifica o poder

de Deus; quanco avança pela administração humana,

magnifica o nomem.),

John Pipeé

Orar é participar dessa vitória final e da batalha que conduz a ela, pois essa é a missão de Deus. A missão do povo de Deus deve ser cooperar com ele no campo de batalha, que é o mundo de Deus. Se a batalha é de Deus, então, aque-les que estão envolvidos nela devem estar em comunicação constante com seu comandante. Isso é claro até mesmo no ministério de Jesus, que, do começo ao

20. Piper, Let the nntion be glati, p. 57, 59, 67 (grifos do autor).

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314 • A missão do povo de Deus

fim, travou um combate com o diabo e seus subordinados. A oração era a sua arma mais eficaz e é a nossa também.

"Guerra espiritual não significa dar nomes a espíritos

territoriais, reivindicar o território e amarrar demônios. Diz

respeito totalmente ao evangelho; é viver a vida do evan-

gelho, preservar a unidade do evangelho e proclamar a

verdade do evangelho; é fazer isso diante de um mundo

hostil, de um inimigo enganador e de nossas próprias natu-

rezas pecaminosas; é orar ao Deus soberano para termos

oportunidades evangélicas. O avanço vem por meio da

piedade, da unidade, da proc amação e da oração")

Timothy Chester, sobre Efésios

Portanto, não é de se estranhar que Paulo seguia suas próprias instruções, em Efésios 6, para se revestir da armadura do Senhor para a guerra espiritual, com referência imediata à oração. Na verdade, Efésios 6.10-20 é uma composição daquelas frases maravilhosas e singulares de Paulo, que começam com a lem-brança de que " [...] não é contra pessoas de carne e sangue que temos de lutar, mas sim contra principados e poderios, contra os príncipes deste mundo de trevas, contra os exércitos espirituais da maldade nas regiões celestiais". Ele não termina sua lista de instruções até nos dizer que oremos "[...] com toda oração e súplica, orando em todo tempo no Espírito e, para isso mesmo, vigiando com toda perseverança e súplica por todos os santos."

A oração é tão parte de nossa armadura e armamento quanto a verdade, a justiça, a fé e a salvação. E tal oração é missional em sua essência, porque acompanha a batalha pelo evangelho. Na verdade, Peter O'Brien se refere a esse clímax de Efésios como "A grande comissão paulina":

Nossas circunstâncias podem ser bem diferentes das de Paulo, nossos dons espirituais e oportunidades podem variar dos dele de modo significativo, mas estamos envolvidos na mesma batalha espiritual do apóstolo. Temos o mesmo comando, atribuído a nós, para ficarmos firmes; as mesmas

21. Timothy Chester, The message of prayer (The Bible speaks today; Leiscester, IVP e Downers Grove, 1L: IVP, 2003), p. 231.

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Pessoas que louvam e oram • 315

armas divinas disponíveis para nosso uso (principalmente, a arma espiri-tual essencial da oração); as mesmas posturas defensivas e ofensivas para adotar. Devemos resistir à tentação e dedicar nossas vidas energicamente à divulgação do evangelho. Essas coisas não são opcionais; são deveres. É por isso que as palavras do apóstolo sobre o partilhamento do evangelho, de forma eficaz, no poder do Espírito, onde quer que nos encontremos, podem ser denominadas de "A grande comissão paulina"."

RESUMO Louvor e oração: duas das atividades mais fundamentais do povo de Deus; duas iniciativas com que os cristãos são mais identificados; duas ações com que eles, como povo de Deus, se empenham em sua missão. As demais atividades em que participam, sejam quais forem, também estão incluídas nessa missão, conforme vimos ao longo deste livro.

Neste capítulo, observamos que o fato de termos sido criados e redimidos para o louvor se constitui um tema de nossa teologia bíblica. É nossa tarefa mis-sional compartilhar a vontade de Deus para que todos os povos e toda a criação venham a louvá-lo e adorá-lo, encontrando sua maior alegria em glorificá-lo.

Vimos que a oração tece o seu caminho por toda a Bíblia, como uma marca do povo de Deus, fortalecendo sua missão e, em algumas circunstâncias, até mesmo constituindo uma dimensão de sua missão.

Samuel Balentine tira uma excelente conclusão em sua pesquisa sobre a teo-logia bíblica da oração no Antigo Testamento. Ele afirma que o papel da igreja, assim como uma "casa de oração", que foi uma das principais funções herdadas do templo, é "manter a comunidade e o mundo em Deus" e "manter Deus na comunidade e no mundo". Se nossa missão é, de fato, participar da missão de Deus, que amou o mundo de tal maneira que deu seu próprio Filho para salvá-lo e, finalmente, para habitar novamente nele, então este é um modo desafiador de expressar o propósito da oração. As palavras finais de Balentine se constituem um desafio apropriado para encerrar este capítulo:

E se nós, como comunidade de fé, não exercermos nossa responsabilida-de atribuída por Deus? E se não orarmos para manter a nós mesmos e o nosso mundo em Deus? E se não orarmos e lutarmos para manter Deus no mundo? Eu alego que, se não o fizermos, ou a igreja se tornará um covil de salteadores, onde se congregam para contar os seus roubos e se esconder de Deus, ou ela se tornará um edifício brilhante e esplêndido, apontando os céus, sem servir para nada na terra. Em qualquer um dos casos, Deus estará angustiado e o mundo empobrecido.

22. O'Brien, Gospel and mission, p. 125.

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316 • A missão do povo de Deus

Eu estava pronto para responder, mas ninguém perguntou; pronto para ser encontrado, mas ninguém me buscou. Eu disse: "Eis-me aqui, eis-me aqui" a uma nação que não invocou o meu nome. (Is 65.1)23

QUESTÕES RELEVANTES 1. Que mudanças, na compreensão e na prática, a leitura deste capítulo pode

fazer em sua vida de oração pessoal? 2. Como sua compreensão sobre "oração missional" se expandiu para além

do fato de considerá-la como "oração pelos missionários", embora seja isso vital?

3. As igrejas estão fazendo uma falsa dicotomia ao pensar em "fazer adora-ção" e em "fazer missão"? Como poderíamos fortalecer a dimensão mis-sional da adoração pública em nossa igreja, tanto na forma de entendê-la quanto no modo de fazê-la, sem transformar toda a nossa adoração pú-blica em um culto de "busca dos interessados"?

23. Balentine, Prayer in the Hebrew Bible, p. 295.

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PARTE 3

REFLETINDO SOBRE A RELEVÂNCIA

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CAPITULO 15

A JORNADA ATÉ AQUI E DAQUI EM DIANTE

E daí? No final de qualquer jornada através dos textos bíblicos, temos de fazer essa pergunta, principalmente quando estamos engajados numa teologia

bíblica para a vida, embora alguém questione em que outro tipo de teolo-gia bíblica vale a pena se engajar. Temos perguntado ao longo deste livro: "Para que o povo de Deus está na terra? Que a Bíblia nos diz sobre o que Deus espera de seu povo? Ele existe para que propósito ou missão?"

Que descobrimos em resposta a estas perguntas? Neste último capítulo, tentamos reunir algumas das linhas de pensamento

da Parte 2.

NOSSA JORNADA ATRAVES DA BIBLIA Vimos que temos uma missão tão ampla como a terra, da qual fomos encar-regados de cuidar (cap. 3), e tão extensa quanto todas as nações, para quem devemos ser os agentes da bênção de Deus (cap. 4). Vimos que o anseio de Deus de cumprir sua promessa a Abraão, de que todas as nações sejam realmente abençoadas, está vinculado com o povo de Abraão (que agora inclui todos os que estão em Cristo) vivendo no caminho de Deus, em retidão e justiça (cap. 5). Somos redimidos e chamados para viver um estilo de vida redentor no mundo, de modo que espalhemos a abrangência do próprio ato de redenção de Deus (cap. 6). Representamos Deus para o mundo e estamos destinados a ser aqueles que atraem o mundo para Deus, por intermédio da qualidade de nossas vidas transformadas (caps. 7-8), porque em todas essas dimensões de nosso chamado há uma dimensão radicalmente ética de nossa missão. Devemos viver a nossa

missão. Como costumo dizer, não há missão bíblica sem ética bíblica. Depois, passamos a ver que nossa missão exige uma completa lealdade à

verdade do único Deus vivo, o qual viemos a conhecer por intermédio de seus grandiosos atos históricos de revelação e de salvação, que tiveram seu clímax em Cristo (cap. 9). Devemos conhecer e contar o que temos visto e ouvido sobre o que Deus tem feito. Portanto, o coração de nossa mensagem, a palavra que de-vemos declarar ao longo do caminho em que vivemos, é fundamentalmente uma

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320 A missão do povo de Deus

questão de dar testemunho do Deus vivo, em Cristo (cap. 10). Temos boas-novas extraordinárias para partilhar quando examinamos a amplitude do evangelho bíblico e saímos para dizer ao mundo que Deus estava em Cristo, reconciliando consigo o mundo, e que através da cruz e da ressurreição de Jesus de Nazaré, o reino de Deus é chegado e Jesus é o Senhor (cap. 11).

Assim, em nossa missão, nós nos ajuntamos às fileiras daqueles que, no decorrer da história, Deus tem enviado para cumprir muitos aspectos diferen-tes da própria missão de Deus no mundo. Enviar e ser enviado são dimensões fundamentais da vida e da missão da igreja (cap. 12), mas a igreja que é enviada ao mundo, em outro sentido, já está no mundo, porque todos os crentes vivem na esfera pública da sociedade em que Deus os colocou e a grande maioria de-les trabalha e ganha a vida no grande mercado da interação humana social e econômica. Desse modo, devemos ver nossa missão como algo que acontece no mundo público e para ele, porque ele é o lugar da criação de Deus (mesmo de-sesperadamente caída) e da redenção final de Deus, na nova criação (cap. 13).

Finalmente, vimos que a igreja tem uma razão mais fundamental para exis-tir, uma razão que permanecerá por toda a eternidade, para além da redenção do nosso mundo caído. Essa razão é viver para a adoração, louvor e glória de Deus e trazer pessoas de todas as nações para esse mesmo objetivo. Nossa maior satisfação humana se encontra no fato de Deus ser glorificado e de nos ale-grarmos nele. Louvor e oração, portanto, não são apenas uma música de fundo para o verdadeiro trabalho missional. O louvor e a oração são, em si mesmos, ações missionais e devem ser partes integrantes de tudo o que a missão de Deus requer de nós (cap. 14).

Todos esses aspectos da nossa resposta à pergunta fundamental sobre a mis-são do povo de Deus nos levaram para trás e para frente na Bíblia, fazendo-nos ver repetidas vezes as fortes conexões entre os textos e temas do Antigo e Novo Testamentos. Portanto, logo no início, enfatizamos o quanto é importante para o povo de Deus conhecer sua própria história, ou melhor, conhecer a história de Deus da qual somos chamados a participar — a grandiosa narrativa bíblica desde a criação até à nova criação (cap. 2).

Assim, talvez, a primeira "reflexão sobre a relevância" que devemos trazer à tona seja dizer que, conforme sugerimos no capítulo 1, se a missão tem a ver com a igreja toda, levando o evangelho todo ao mundo todo, isso significa usar toda a Bíblia. Simplesmente não adianta citar um versículo ou dois de nossas porções "missionárias" preferidas da Bíblia e denominar isso de "teo-logia bíblica de missão".

Estou certo de que há muito mais coisas que poderiam ter sido incluídas nes-te livro pela exploração de textos bíblicos e de temas relevantes para a missão do povo de Deus. Por exemplo, não pudemos incluir a discussão sobre a relevância da literatura sapiencial, embora ela tenha muito a nos ensinar como viver no mundo de Deus. Tivemos que ser seletivos. Entretanto, pelo menos, começamos

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A jornada até aqui e daqui em diante =' 321

em Gênesis, com o propósito de Deus para nós, habitantes de sua criação, e acabamos em Apocalipse, com a visão do povo redimido de Deus juntando-se ao louvor e à adoração de toda criatura na nova criação de Deus. Tivemos um panorama da maioria dos cenários espetaculares da Bíblia ao longo do caminho — Abraão; Moisés; o êxodo e o Sinai; os reis; os profetas e salmistas de Israel; a vida, morte e ressurreição de Jesus; a igreja em Atos; as cartas de Paulo e de Pedro; Tiago, João e o livro do Apocalipse. Em todos esses livros, encontramos um alimento bem nutritivo para uma teologia bíblica para a vida em relação à missão do povo de Deus.

Se o argumento básico do meu livro anterior, The mission of God, esclareceu que precisamos ler toda a Bíblia, todas as suas partes, de forma abrangente, a fim de discernir e descrever a grande missão de Deus de uma redenção cósmica, então, o argumento deste livro, A missão do povo de Deus, esclarece, semelhan-temente, que precisamos ler toda a Bíblia, de forma abrangente, para discernir e descrever implicações que ela tem para nós, o povo a quem Deus amou, esco-lheu, chamou, redimiu, moldou e enviou ao mundo em nome de Cristo.

Cada capítulo poderia levar seu próprio fardo de reflexões sobre a relevância dos textos bíblicos estudados neles, mas vou juntar nossas reflexões finais em torno da estrutura tripla que é a mesma do capítulo 1, porque a missão do povo de Deus é feita no mundo e para o mundo; ela é centrada no evangelho de Deus e coloca um privilégio exigente sobre a igreja.

O MUNDO Em muitas partes de nosso estudo, consideramos o mundo em que nossa missão acontece. Duas áreas clamam por uma aplicação mais determinada de nossa parte.

Servindo à criação No capítulo 3, lançamos os alicerces para uma teologia bíblica da criação e de nossa responsabilidade para com ela. Mas isso corresponde a uma teologia bíblica de missão em relação à criação? Creio que sim. Recordemos primei-ramente a distinção que fizemos no capítulo 1 entre missão e missões. Eu certamente diria que, para todos os cristãos, o comportamento ecologicamen-te responsável é correto e bom, tido como parte do discipulado cristão do Senhor da terra. Num sentido mais amplo, isso é parte de nossa "missão".

Mas eu iria mais longe e argumentaria que Deus chama alguns cristãos para "missões" ecológicas como seu principal campo de ministério no mun-do de Deus. Assim como a medicina, a educação, o desenvolvimento das comunidades e muitas outras formas de serviço são vistas como um chama-do de Deus para pessoas diferentes, o qual elas podem pôr à disposição dele, de modo intencionalmente missional, assim também há muitas funções

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322 a A missão do povo de Deus

ecológicas que os cristãos podem assumir como seu chamado missional es-pecífico — pesquisas científicas, conservação de hábitats, advocacia, política etc. O trabalho de "A Rocha International" tem sido uma iniciativa pioneira e profética nessa questão.'

No livro lhe mission of God, expus algumas razões porque eu creio que os cristãos devam considerar esses chamados para tarefas específicas de cuidados com a criação como vocações missionais legítimas. Para continuar a defender a relevância desta dimensão da missão do povo de Deus, cito aqui algumas sele-ções deste livro:

O cuidado com a criação é uma questão urgente no mundo de hoje Será que isso precisa ser repetido? Apenas uma cegueira deliberada, pior do que a proverbial cabeça do avestruz na areia, pode ignorar os fatos da destruição ambiental e de seu ritmo acelerado. A lista é deprimentemente longa:

• A poluição do ar, do mar, dos rios, dos lagos e dos grandes aquíferos. • A destruição das florestas tropicais e muitos outros hábitats, com o efeito

terrível sobre as formas de vida dependentes. • A desertificação e a erosão. • A perda de espécies — animais e plantas — e a enorme redução da biodi-

versidade essencial num planeta que depende dela. • A caça de algumas espécies em extinção. • A diminuição da camada de ozônio. • O aumento dos "gases do efeito estufa" e seu consequente aquecimento

global.

Tudo isso é uma iminente catástrofe, vasta e inter-relacionada de perdas e destruição, que afeta todo o planeta e seus habitantes humanos e não humanos. Viver despreocupado dessas ameaças ou é ser desesperadamente ignorante ou irresponsavelmente insensível.

No passado, os cristãos eram instintivamente preocupados com as ques-tões importantes e urgentes em cada geração. Com razão, eles as incluíam em seu conceito geral de chamado missionário e prática. Isso incluía os males das doenças, da ignorância, da escravidão e de muitas outras formas de brutalidade e exploração. Os cristãos se dedicavam às causas das viúvas, dos órfãos, dos refugiados, dos prisioneiros, dos loucos, dos famintos. Mais recentemente, tem aumentado o número daqueles que estão empenhados em "tornar a pobreza um fato do passado".

1. Veja www.arocha.org.

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A jornada até aqui e daqui em diante 323

Confrontados agora com os fatos horrendos do sofrimento da própria terra, devemos certamente perguntar como o próprio Deus responde a tal abuso de sua criação e devemos buscar alinhar nossos objetivos de missão para incluir o que é importante para ele. Se, como Jesus nos diz, Deus se importa com sua criação a ponto de saber quando um pardal cai no chão, que tipo de cuidado é exigido de nós com o nível de conhecimento que temos? Admitimos que Jesus fez essa afirmação, a fim de compará-la com o cuidado ainda maior que Deus tem por seus filhos, mas seria uma completa distorção das Escrituras afirmar que, como Deus se importa mais conosco do que com os pardais, não precisamos ter cuidado algum pelos pardais ou, como temos maior valor do que eles, eles não têm valor algum.

Entretanto, o nosso cuidado com a criação não deve ser meramente uma rea-ção negativa, cautelosa ou preventiva a um problema crescente. Há uma razão muito mais positiva para isso.

O cuidado para com a criação flui do amor pelo Criador e da obediência à sua ordem "Amarás o Senhor teu Deus" é o primeiro e o maior mandamento. Na experiên-cia humana, amar alguém significa que você se importa com o que pertence a ele. Jogar lixo na propriedade alheia é incompatível com qualquer declaração de amor por outra pessoa. Vimos como a Bíblia afirma enfaticamente que a terra é propriedade de Deus e, mais especificamente, que ela pertence a Cristo, que a criou, redimiu e é o herdeiro dela. Cuidar bem da terra, por amor a Cristo, é certamente uma dimensão fundamental do chamado a todo o povo de Deus para amá-lo. Parece inexplicável para mim que existem alguns cristãos que alegam amar e adorar a Deus, ser discípulos de Jesus e, mesmo assim, não têm preocupação alguma com a terra, que leva o selo de propriedade dele. Eles não se preocupam com o abuso da terra e, de fato, contribuem para isto com seu estilo de vida de desperdício e superconsumismo.

"Se me amardes, obedecereis aos meus mandamentos" (Jo 14.15), disse Jesus, ecoando, como tantas vezes o fazia, a devoção ética prática de Deuteronômio. Os mandamentos do Senhor começam com o mandato fundamental da criação para cuidarmos da terra. A obediência a esse mandamento é parte da nossa missão humana e dever, tanto quanto quaisquer outros deveres e responsabili-dades estabelecidos na criação, como o casamento, a tarefa de encher a terra, o envolvimento no ritmo de trabalho produtivo e descanso.

O fato de sermos cristãos não nos isenta de sermos humanos. Nem uma missão especificamente cristã nega a nossa missão humana, porque Deus nos considera responsáveis tanto por nossa humanidade quanto por nosso cristianismo. Como seres humanos cristãos, portanto, somos duplamente cons-trangidos a ver o cuidado ativo com a criação como parte fundamental do que significa amar e obedecer a Deus.

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324 A missão do povo de Deus

O cuidado com a criação testa nossa motivação para a missão Nosso principal ponto de partida e de encerramento em nossa teologia bí-blica de missão deve ser a missão do próprio Deus. Que é "todo o conselho de Deus"? Qual é a missão global com que Deus se comprometeu e qual é o desdobramento total da história? Não é só a salvação dos seres humanos, mas também a redenção de toda a criação. Deus está ocupado em estabelecer uma nova criação pela transformação e renovação da criação, de forma análoga à da ressurreição de seu Filho, como uma habitação para os corpos ressurretos de seu povo redimido.

Logo, a missão holística não é verdadeiramente holística se incluir apenas os seres humanos (mesmo que os inclua de modo holístico!) e excluir o restante da criação, por cuja reconciliação Cristo derramou seu sangue (Cl 1.20). Aqueles cristãos que responderam ao chamado de Deus para servi-lo por meio do serviço às suas criaturas não humanas, em projetos ecológicos, estão engajados em uma forma especializada de missão que tem o seu lugar legítimo na ampla estrutura de tudo aquilo que a missão de Deus tem como alvo. A motivação deles flui de uma consciência sobre o próprio coração de Deus, em relação à sua criação, e do desejo de responder a ela. Com certeza, isso não significa que os cristãos envolvidos no cuidado com a criação não tenham cuidado semelhante com as necessidades humanas. Ao contrário, o que geralmente me parece, pela minha observação, é que a ternura cristã para com a criação não humana amplifica-se a si mesma na preocupação com as necessidades humanas.

O cuidado com a criação encarna um equilíbrio bíblico entre compaixão e justiça Devemos exercer a compaixão, porque cuidar da criação de Deus é essencial-mente uma forma de amor altruísta, exercido por amor às criaturas que não podem nos agradecer ou nos retribuir. É uma forma de altruísmo realmente bí-blico e piedoso. Nessa questão, reflete a mesma qualidade do amor de Deus, não só no sentido de que Deus ama os seres humanos, apesar da nossa inimizade odiosa para com ele, mas também no sentido mais amplo de que o Senhor tem compaixão, é amoroso em relação a tudo o que fez (cf. Si 145.9, 13, 17).

Mais uma vez, Jesus usou o cuidado amoroso de Deus para com as aves e para com o adorno das gramíneas e das flores como um modelo para o seu amor ainda maior para com seus filhos humanos. Se Deus cuida de sua criação não humana com uma compaixão tão minuciosa, quanto mais deveriam fazer aqueles que desejam imitá-lo? Fiquei especialmente comovido ao testemunhar o cuidado compassivo que é altruisticamente praticado pela equipe de "A Rocha" ao lidarem com cada pássaro em seu programa de anéis de rastreamento. Essa é uma atitude calorosa, caridosa e, na minha opinião, genuinamente cristã para com esses espécimes minúsculos da criação de Deus.

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A jornada até aqui e daqui em diante 325

Devemos exercer a justiça, porque a ação ambiental é uma forma de defen-der os fracos contra os fortes, os indefesos contra os poderosos, os agredidos contra os agressores, os que não têm voz contra a estridência dos gananciosos. Essas coisas também são características do caráter de Deus conforme está ex-presso no exercício de sua justiça. O Salmo 145 inclui a provisão de Deus para todas as suas criaturas na definição da retidão de Deus, bem como de seu amor (Si 145.13-17). De fato, o salmista põe o cuidado de Deus com a criação num paralelo preciso com seus atos libertadores e vindicadores de justiça para com seu povo — colocando juntas, desse modo, numa bela harmonia, as tradições da criação e da redenção do Antigo Testamento.

Portanto, não é de estranhar que o Antigo Testamento, quando define as marcas de uma pessoa justa, não para na preocupação prática com os pobres e seres humanos necessitados (embora essa seja a nota dominante). É verdade que "[...] o justo toma conhecimento da causa dos pobres" (Pv 29.7), mas o sábio faz também a amável observação que "[...] o justo cuida da vida dos seus animais" (12.10).

A missão bíblica é tão holística quanto a retidão bíblica.'

Servindo à sociedade Vimos a forte evidência bíblica do interesse que Deus tem na sociedade humana em todos os níveis — político, econômico, legal, familiar e assim por diante. No capítulo 4, observamos que o conceito de "abençoar as nações" é amplo, visto que a compreensão bíblica sobre bênção é rica e diversificada.

Quem poderá contar as inúmeras maneiras com que os cristãos podem ser uma bênção para as nações? Que diferença isso faria no sentimento íntimo de envolvimento pessoal de cada cristão na missão do povo de Deus, se eles pudes-sem ver cada dia de trabalho regular e de envolvimento na sociedade como uma oportunidade para "ser uma bênção", para "buscar o bem-estar da cidade" onde Deus os colocou? Quanto dano temos causado à missão de Deus, ao restringir a missão aos ministros de tempo integral e missionários remunerados? Tenho a impressão de que o evangelho que deve ser compartilhado pelos nossos lábios seria mais abundante e mais eficaz se fluísse de uma vida que está ressoando com a bênção do evangelho em todos os momentos corriqueiros do viver cris-tão cotidiano em meio ao mundo.

Principalmente no capítulo 13, vimos que Deus nitidamente espera que seu povo esteja engajado na arena pública, no mercado do mundo. Se isso também faz parte de nossa missão bíblica como povo de Deus, a igreja precisa levar isso mais a sério, pelo menos de duas maneiras práticas e relevantes:

2. Wright, lhe m ssion of God, seleção das páginas 412-420.

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326 - A missão do povo de Deus

A tarefa profética Somos chamados para o papel de profeta, não só para o de capelão, ou seja, o papel da igreja não é simplesmente colocar um verniz de bênção indiscriminada em qualquer empreendimento social ou econômico (ou militar) que acontece na arena pública. Essa foi uma das maiores distorções que a cristandade produziu.

O povo de Deus é chamado para manter um distanciamento crítico do mun-do e para falar em nome do Auditor divino independente. Isso não significa que adotamos uma postura de superioridade, pois conhecemos nossa própria pecaminosidade, mas significa, sim, que devemos oferecer a voz de avaliação, de crítica ou de aprovação, de acordo com os padrões que aprendemos na própria revelação de Deus. Devemos renunciar o mal e reter o que é bom; isso requer mentes e corações em sintonia para reconhecer essa diferença.

A igreja, de forma coletiva, ainda pode desempenhar essa função profética na arena pública, embora sempre sofra ao fazer isso - às vezes, por causa dos próprios capelães que se associaram ao mercado. Precisamos recuperar a voz do engajamento bíblico com tudo o que acontece à nossa volta e a coragem neces-sária para prosseguir com ele. Onde quer que os cristãos entrem em profissões que lhes deem voz pública - na política, no jornalismo, na radiodifusão e em outros meios de comunicação -, eles precisam ser apoiados e incentivados pela igreja para entender a natureza de seu chamado missional na linha de frente.

A tarefa pastoral Também é função da igreja apoiar aqueles que vivem sua vida diária como santos no mercado. Paulo nos diz que Deus tem dado à sua igreja pastores e mestres, "[...] com vistas ao aperfeiçoamento dos santos para o desempenho do seu serviço" (Ef 4.12; ARA). Acredito que "desempenho do seu serviço", nesse trecho, não significa apenas atividade cristã (ou seja, ministério baseado na igreja ou no evangelismo), mas qualquer forma de serviço dentro da sociedade como um todo, incluindo a igreja.

Isso vira totalmente, de cabeça para baixo, um dos equívocos mais comuns que, infelizmente, ainda permeiam a igreja e comprometem sua eficácia. Acre-dite ou não, Deus não inventou a igreja para apoiar o clero. Em vez disso, Deus deu pastores e mestres para ela, a fim de equipar os santos.

As pessoas não vão à igreja aos domingos para apoiarem os pastores em seus ministérios. O pastor vai à igreja no domingo para apoiar as pessoas nos ministérios delas. E o ministério delas, o ministério que realmente conta como missão, está do lado de fora dos muros da igreja, no mundo: ser sal e luz no mercado.

Toda igreja deveria ter um aviso em destaque do lado de dentro da porta que as pessoas usam para sair do templo: "Ao sair do tempo você está entrando no campo missionário".

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A jornada até aqui e daqui em diante • 327

O desafio para aqueles de nós que são pastores e para aqueles que treinam pastores, portanto, é:

• Estamos mobilizando, treinando e apoiando nosso povo para a missão — não (somente) enviando alguns ao exterior como "missionários", mas vendo a igreja toda engajada na missão no mundo em cada dia de traba-lho de suas vidas?

• Estamos ajudando os cristãos que têm um trabalho regular a entender o mundo em que vivem e trabalham ou apenas ventilando diante deles uma perspectiva de viver um mundo melhor quando morrerem?

• Estamos ensinando ao povo o que a Bíblia ensina sobre cidadania res-ponsável?

• Estamos incentivando os cristãos a "buscarem o bem-estar da cidade" onde Deus os colocou?

• Estamos construindo uma cosmovisão bíblica para sustentar o testemu-nho ético cristão?

• Estamos ajudando os profissionais cristãos que lutam com as questões éticas enfrentadas por eles no local de trabalho, e incentivando-os na fi-delidade, na integridade, na coragem e na perseverança?

• Estamos cuidando com simpatia daqueles que foram machucados e es-magados em seu conflito diário com um mundo hostil, se é isso que en-frentam em seu trabalho?

A fim de exercer tal ministério de apoio, nós mesmos, que somos pastores e professores na igreja, precisamos conhecer os problemas e as tentações que nosso povo enfrenta no mundo. Precisamos nos manter atualizados com as realidades do mercado e não viver numa bolha espiritual isolada de atividades só religiosas.

Precisamos também nos manter a par do desenvolvimento da compreensão e da prática missionais, tal como ele é representado pelo movimento crescente que leva o nome de "Negócios como missão". Isso é o reconhecimento de que "fazer tendas" não precisa ser, necessariamente, apenas um meio de sustentar o verdadeiro "trabalho" de evangelismo nem um disfarce para obtermos acesso a países que, de outra forma, estariam fechados ao testemunho cristão. Em vez disso, é a convicção de que se engajar num negócio legítimo é intrinsecamente valioso para o bem da sociedade, para o bem-estar humano e para fins sociais e espirituais positivos. Há uma dimensão missional no fato de conduzir negócios idôneos no mundo de Deus, por amor a Deus.'

3. Veja o excelente livro de Mark Russell, lhe missionai entrepreneur: Principies and pract ces for business as mission (Birmingham, AL: New Hope, 2010). Veja também "Business as Mission Manifesto" do Movimento de Lausanne, disponível em: www.lausanne.org/all-documenrs/manifesto.html e o artigo ocasional de Lausanne n" 40, "Marketplace Ministry", o qual pode ser baixado em: www.lausanne.org/2004forum/documents.html.

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328 A missão do povo de Deus

"Lembro-me, com tristeza, do tempo em que fa ei numa

conferência para crentes graduados na índia — todos e es

eram profissionais eigos". No contexto do ensino sobre

a ético do Antigo Testamento, estávamos discutindo os

comp exos e mültip os prob emas éticos e de consciência

com os quais os cristãos deparavam diariamente naquele

país — iam desde suborno e corrupção até à exp oração

e vio ência. Perguntei se poc iam falar sobre essas coisas

com seus pastores. Houve risos irônicos. "Nossos pastores

nunca fa am ou pensam ou pregam soare essas coisas'',

eles c isseram. "Afina , alguns deles mesmos estão envolvidos

com esse tipo de coisas.),

O EVANGELHO

Recuperando a totalidade do evangelho Espero que um dos efeitos deste livro tenha sido levantar os nossos olhos para vermos a riqueza da glória do evangelho de Deus. A Bíblia nos traz a mais in-crível boa-nova de que tem uma mensagem e pode transformar cada área da vida humana que é tocada pelo pecado (em outras palavras: toda a vida huma-na). O problema é que tendemos a nos concentrar em um ou outro aspecto da boa-nova, em detrimento de outros. O que Deus uniu, nós o temos separado. Depois, lutamos para interpretar o modo como essas coisas estão "relacionadas", quando, em primeiro lugar, nunca deveríamos tê-las separado.

Lembremo-nos de alguns dos grandes "todos" que temos observado em nosso estudo. O evangelho integra as seguintes coisas, embora, infelizmente, em geral tenhamos a tendência de dividi-las.

O individual e o cósmico Temos a tendência de separar a dimensão individual das dimensões cósmicas e corporativas do evangelho e, depois, tendemos a priorizar a primeira, ou seja, colocamos a salvação individual e o evangelismo pessoal no centro de todos os nossos esforços (é claro que o evangelismo pessoal é uma parte essencial de nosso compromisso). Mas a ordem em que Paulo coloca a mensagem do evangelho em Efésios e em Colossenses 1.15-26 é: a criação (todas as coisas no céu e na terra,

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A jornada até aqui e daqui em diante 329

criadas por Cristo, sustentadas por Cristo e redimidas por Cristo); a igreja (com Cristo, o cabeça) e, enfim, os cristãos gentios individualmente - "e você também".

Tudo isso, afirma Paulo, tem sido "reconciliado através do sangue de Cristo derramado na cruz". Portanto, não somos salvos para fora da criação, mas como

parte da criação que Deus redimiu por meio de Cristo. A igreja não é apenas um contêiner para as almas até que elas cheguem ao céu, mas a demonstração viva da unidade que é intenção de Deus para toda a criação. O péssimo resultado de fragmentar esse "todo" é que os cristãos que foram evangelizados por essas ver-sões truncadas do evangelho têm pouco interesse no mundo, na esfera pública, no plano de Deus para a sociedade e para as nações, e ainda menos compreensão da intenção de Deus para a própria criação. A amplitude de nossos esforços de missão, portanto, corre o risco de ser bem menor do que o âmbito da missão de Deus.

Crer e viver Temos tendência de separar o crer no evangelho do viver o evangelho. Em se-guida, temos a tendência de priorizar o primeiro, ou seja, parece que pensamos ser possível haver uma crença de fé separada de uma vida de fé e que as pessoas podem ser salvas por algo que se passa em suas cabeças, sem nos preocuparmos muito com o que acontece em suas vidas. Desde que elas tenham feito a oração certa e acreditado na doutrina correta, nada mais importa ou, pelo menos, o que acontecer a seguir é secundário e separado.

Contudo, na Bíblia, a fé e a obediência são inseparáveis, como temos visto repetidamente neste livro. Agora, claro, é importante salientar que somos salvos somente pela obra de Cristo e mediante nossa fé nele, não por causa de nossas boas obras. Mas a fé, pela qual somos unidos a Cristo de modo salvífico, de-monstra inevitavelmente sua existência e autenticidade pela obediência. Paulo realmente define sua vida de trabalho missionário como produzir a obediência

da fé... entre todas as nações (cf. Rm 1.5; 15.18; 16.26). Essas são duas palavras que ecoam Abraão, Jesus, Paulo e Tiago. Não podemos obedecer à Palavra de Deus a menos que creiamos nela, mas não podemos alegar crer na Palavra de Deus, a menos que a obedeçamos. A fé sem obras é morta.

O péssimo resultado de fragmentar esse "todo" é que no mundo inteiro existem pessoas que se dizem crentes e evangélicas, mas suas vidas reais não se distinguem da cultura ao seu redor - seja em termos de padrões morais, precon-ceitos sociais e políticos ou comportamento real. Elas são, no sentido bíblico, um "escândalo" - uma pedra de tropeço que impede os outros de considerarem as reivindicações de Cristo.

Proclamação e demonstração O evangelho é a boa-nova que precisa ser ouvida e vista. Ela precisa de pa-lavras e ações, mensagem e prova. Temos a tendência de separar essas coisas

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330 a A missão do povo de Deus

e de priorizar a primeira. Falamos mais facilmente da missão como "pregar o evangelho". Embora isto seja absolutamente vital (porque as boas-novas têm que

ser comunicadas com palavras), não é o quadro bíblico completo de como o evangelho deve ser comunicado.

(CA Fundação Amity é uma organização chinesa de

desenvolvimento cristão. Com muitos outros cristãos, ela

tem sido ativa no traba no de assistência e reconstrução,

após o terremoto devastador na província de Sichuan. A

pastora Gu Yumei e seu marido estavam entre os primeiros

a ajudar em sua cicade. Muitas pessoas não conneciam

a igreja antes do terremoto'', diz a pastora Gu. Quando

os memoras da congregação tomaram parte nos esforços

de socorro, once quer que fossem capazes de ajudar,

cistricuindo velas, isqueiros ou repelentes de mosquito, a

igreja se tornou mais conhecida entre as pessoas de Mian-

znu. "O trabalno social e o amor de Deus fizeram que

as pessoas percebessem que havia uma igreja", afirma

a pastora Gu. A congregação cresceu pelo menos cinco

vezes desde aque a época. Agora, a igreja rea iza cursos

especiais de licerança para equipes, nos treze novos pontos

de pregação da congregação.'»

Pedro resume o ministério de Jesus: tanto contar a mensagem que Deus enviou para Israel, a boa-nova de paz, quanto "andar por toda parte, fazendo o bem" na unção e capacitação do Santo Espírito (cf. At 10.36-38).

A mesma combinação é encontrada na prática de Paulo. Em Romanos 15, ele faz uma reflexão de todo o seu trabalho missionário e diz: "[...1 não ousarei falar de coisa alguma senão daquilo que Cristo tem feito por meu intermédio, para obediência dos gentios, em palavra e ação, pelo poder de sinais e prodígios, no poder do Espírito Santo" (Rm 15.18, 19; grifos do autor). Palavras, obras e maravilhas, como alguns disseram.

4. Boletim da Amity (abril-junho, 2009), p. 7.

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A jornada até aqui e daqui em diante 331

O péssimo resultado de dividir esse "todo" é que nossos esforços evangelís-ticos às vezes são ridicularizados pelo mundo, porque as pessoas percebem a hipocrisia daqueles que falam muito, mas suas vidas não apoiam o que dizem. A falta de integridade nessa área tem sido identificada por diversas pesquisas como o principal obstáculo para a aceitação da mensagem do evangelho.

Tenho dito que muitos de nós tendem a priorizar o primeiro dos extremos de cada par. Porém, é claro, existem aqueles que priorizam o extremo oposto. Eles salientam a importância da dimensão social da igreja, da necessidade de uma ética social radical e de uma forma de presença cristã na sociedade, que deve ser uma força em prol da justiça, mesmo que o nome de Cristo não seja evangelisticamente proclamado. Além disso, eles são apaixonadamente preocu-pados com o alívio da pobreza e do sofrimento entre os mais necessitados do mundo, mas são bem menos interessados em ver pessoas vindo à fé no Senhor Jesus Cristo e sendo acrescentadas à sua igreja.

Seja o que for que possamos dizer a mais sobre esse tipo de pensamento ou prática, isso certamente não é "missão holística" (do todo), embora esse termo às vezes seja aplicado de forma inadequada a conceitos de missão que enfatizam as ações sociais e econômicas. A ação social sem nenhum interesse evangelístico é não holística tanto quanto o evangelismo sem a preocupação social. Preocu-par-se com os pobres e famintos, mas não se preocupar com o fato de as pessoas ouvirem as boas-novas de Jesus é não seguir o exemplo dele, muito menos ter uma "missão holistica".

Por que temos que continuar polarizando ao redor dessa dicotomia criada artificialmente, quando a Bíblia nos dá uma enorme garantia para mantermos essas duas coisas juntas em uma unidade integrada?

"Primazia?" Essa questão deu origem a algumas divisões no movimento de Lausanne na década posterior ao primeiro Congresso de Lausanne, em 1974. John Stott con-vocou uma consulta para avaliá-la teologicamente — a Consulta sobre a Relação entre Evangelismo e Responsabilidade Social, em Grand Rapids, em 1982. Havia e ainda há aqueles que insistem em apontar que em nosso compromisso com a missão holística o evangelismo precisa ser visto como tendo a primazia. Creio que a forma com que o relatório da consulta respondeu a isso e articulou o que se entende por primazia, com cuidadosas ressalvas, é ainda muito útil, mesmo que, como eu argumentaria, fosse uma tentativa de "conciliar" duas coisas que nunca deveriam ter sido separadas. Vale a pena estudar todo o documento com cuidado, mas o trecho a seguir aborda a essência dessa questão.' As sentenças finais desse trecho demonstram que os redatores estavam cientes de que na prá-tica missionária, essa distinção é pequena, se é que alguma vez existiu:

5. Evangelism and social responsibility: An evangelical commitment. Pode ser baixado como artigo ocasional de I.ausanne no 21, em: www.lausanne.org/all-documents/lop-21.html.

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332 A missão do povo de Deus

Proclamar Jesus como Senhor e Salvador (evangelismo) tem implicações sociais, uma vez que intima as pessoas a se arrependerem tanto dos peca-dos sociais como dos pessoais, e a viver uma nova vida de justiça e paz na nova sociedade que desafia a antiga.

Dar alimento aos famintos (responsabilidade social) tem implicações evangelísticas, já que as boas obras de amor, quando feitas em nome de Cristo, são uma demonstração do evangelho e um elogio a ele.

No entanto, já tem sido dito que o evangelismo, mesmo quando não tem uma intenção primariamente social, possui uma dimensão social; ao passo que a responsabilidade social, mesmo quando não tem uma inten-ção primariamente evangelística, tem uma dimensão evangelística.

Desse modo, a evangelização e a responsabilidade social, apesar de serem coisas distintas, estão integralmente relacionadas com a nossa proclamação e obediência ao evangelho. Essa parceria, na verdade, é um casamento.

Isso nos leva a perguntar se a parceria entre a evangelização e a res-ponsabilidade social é igual ou desigual, ou seja, se elas são igualmente importantes ou se uma tem a primazia sobre a outra. O Pacto de Lausanne afirma que, "na missão da igreja, o serviço evangelístico sacrificial é mais importante (§ 6°). Apesar de alguns de nós terem se sentido desconfortá-veis com essa frase, todavia, para que não quebrássemos essa parceria por causa disso, conseguimos endossá-la e explicá-la de duas maneiras, além das situações e dos chamados particulares já mencionados.

Primeiro, o evangelismo tem certa prioridade. Não estamos nos referindo a uma prioridade invariável temporal, porque em algumas situações, o ministério social terá prioridade, mas uma prioridade lógica. O próprio fato de haver responsabilidade social cristã pressupõe que haja cristãos socialmente responsáveis, e foi somente por meio do evangelismo e do discipulado que eles se tornaram assim. Se a atividade social é uma consequência e um objetivo do evangelismo (como já afirmamos), logo, o evangelismo deve precedê-la. Além disso, em alguns países, o progresso social tem sido dificultado pela cultura religiosa dominante; somente o evangelismo pode mudar isso.

Em segundo lugar, o evangelismo está relacionado com o destino eterno das pessoas e com o fato de trazer as boas-novas da salvação a elas. Os cristãos estão fazendo o que ninguém mais pode fazer. Raramente temos que escolher entre saciar a fome física e a espiritual, ou entre curar os corpos e salvar almas, visto que um amor autêntico para com nosso próximo nos levará a servi-lo como uma pessoa integral. No entanto, se tivermos que escolher, então, temos que dizer que a necessidade suprema e última' de toda a humanidade é a graça salvadora, de Jesus Cristo, e que

6. Essa verdade me levou a dizer em lhe mission of God que eu prefiro falar de "supremacia do evangelismd em vez de sua primazia - não porque ele deva ser a última coisa a ser feita, mas porque é a única coisa, de todas as outras coisas que fazemos de forma correta e bíblica, que lida com o "último inimigo" - a morte. Veja lhe mission of God, p. 439-441.

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A jornada até aqui e daqui em diante 7 333

pelo fato de urna pessoa ser eterna, a salvação espiritual é mais importante do que seu bem-estar temporal e material (cf. 2Co 4.16-18). Conforme a Declaração da Tailândia expressou: "[...] de todas as necessidades trágicas dos seres humanos, nenhuma é maior do que a alienação de seu Criador e a terrível realidade da morte eterna para aqueles que se recusam a se arrepender e crer". Todavia, isso não deve nos tornar indiferentes à degra-dação da pobreza e da opressão do ser humano.

A escolha, nós cremos, é em grande parte conceituai. Na prática, assim como no ministério público de Jesus, as duas coisas são inseparáveis, pelo menos nas sociedades abertas. Em vez de se oporem uma à outra, elas se apoiam e se fortalecem mutuamente, numa espiral ascendente de uma preocupação crescente com ambas as coisas.'

Os cristãos evangélicos gostam de enfatizar a importância de uma vida de devoção diária a Deus, na qual a leitura da Bíblia e a oração são fundamen-tais. Bem, ler a Bíblia e orar são atividades diferentes. Mas você alguma vez já ouviu os evangélicos discutir, criar conselhos, partilhar e publicar coisas e fazer campanha para se apoiar o fato de uma ou outra ter "primazia" na vida do discipulado cristão? A própria pergunta: "Leitura da Bíblia ou oração, o que tem primazia?" não faz muito sentido na vida real. Ambas são vitais, ambas são bíblicas, partes integrantes de um relacionamento vivo com Deus. Por que não podemos adotar a mesma compreensão integrada de missão?

"Missão integral" é o termo preferido atualmente para essa compreensão. Estou biblicamente convencido de sua veracidade e validade. Se a missão é uma realidade viva e dinâmica, precisamos de analogias orgânicas para tudo o que ela engloba. Respirar e beber talvez forneça essa analogia. Mais uma vez: elas são atividades diferentes, mas ambas são completamente necessárias para um corpo humano vivo integrado. Na prática, não faz sentido falar de qualquer uma delas como tendo "primazia", pois se negligenciarmos qualquer uma das duas, morreremos.

Alguns sugerem que "centralidade", em vez de "primazia", pode ser uma pa-lavra melhor para o evangelismo na missão. Isso aplica o modelo de uma roda. A roda é um objeto integrado que deve ter, necessariamente, um círculo central (ligado a um eixo e a um motor) e um aro (ligado à estrada). Sem um aro, o círculo central é apenas uma ponta do eixo rotativo. Sem um círculo central, o aro é apenas uma argola girando em qualquer direção, para logo cair. Um círculo central e um aro são coisas distintas, mas a menos que estejam integral-mente trabalhando juntos, não formam uma roda. Se o evangelismo é como o círculo central, ligado ao motor do poder do evangelho de Deus, então também é necessária a demonstração viva do evangelho no engajamento dos cristãos

7. Evangelisni and social responsibility (grifos do autor).

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334 g A missão do povo de Deus

com o mundo, para dar a conexão com o círculo central (evangelismo) e tração com o contexto - a estrada.

"Missão integra é a proc amação e a demonstração do

evange ho. Não é simp esmente que o evange ismo e o

envolvimento sacia cevem ser feitos um ao lado do outro.

Em vez disso, na missão integra nossa proc amação tem

consequências sociais, visto que chamamos as pessoas

para o amor e para o arrependimento em todas as áreas

da vida. Nosso envo vimento socia possui consequên-

cias evange ísticas, uma vez que camos testemunho da

graça transformadora de Jesus Cristo. Se ignorarmos o

mundo, trairemos a Pa avra de Deus, a qual nos envia

para servirmos ao mundo. Se a ignorarmos a Pa avra de

Deus, não teremos naco para levar ao mundo. Justiça e

justificação pe a fé, acoração e ações políticas, o espi-

ritua e o mataria , a transformação pessoal e a transfor-

mação estrutura , todas essas coisas andam juntas. Assim

como na vida ce Jesus, ser, fazer e dizer são a essência

de nossa tarefa integral")

Declaração de Micah sobre a Missão Integral'

Recuperando nossa humildade como servos do evangelho A missão do povo de Deus é ser o povo do evangelho - compreender a palavra evangelho em sua totalidade, conforme acabamos de esboçar. Mas, o povo do evangelho é, por definição, um povo humilde. É o evangelho que é grandioso e glorioso. Somos apenas seus servos obedientes. Ou, para utilizar algumas das outras metáforas que encontramos na Bíblia, somos mordomos do evangelho (não somos seus donos); somos testemunhas do evangelho (não o inventamos).

Ou como Paulo explicou de forma mais vívida: o evangelho é o tesouro, e nós não somos nada mais do que os vasos de barro onde ele é guardado (2Co 4.7). No mundo bíblico, os vasos de barro eram a forma mais comum de se carregar algo. Eles eram as sacolas de supermercado daquela época. Esta é,

8. Todo o documento pode ser lido em: www.micahnetwork.org/en/integral-mission/micah-declaration.

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A jornada até aqui e daqui em diante » 335

talvez, uma descrição bem humilde para o nosso papel missional: sacolas para o evangelho.

É claro que eu não esqueci o que disse no capítulo 1, sobre o perigo de imagi-nar a igreja apenas como um mecanismo de entrega, sem preocupação alguma com a qualidade da vida do mensageiro. O meu argumento é simplesmente este: o ministério do evangelho tem que ser feito com humildade ou será uma negação do próprio evangelho.

Vieram-me à mente duas maneiras com que isso sugere uma aplicação rele-vante — uma relativamente secundária, e a outra excessivamente séria:

Testemunho de quem e para quem? No capítulo 10, exploramos o tema bíblico do testemunho. Ficamos maravilha-dos com o fato de Deus ter chamado Israel, mesmo em seu estado de aparente paralisia e fracasso (surdo e cego), para testemunhar dele como o Deus vivo. O testemunho deles certamente não era acerca de si mesmos, mas de Deus. Da mesma forma, no Novo Testamento, Jesus diz aos discípulos: "Sereis minhas testemunhas". Toda a questão do testemunho na Bíblia não diz respeito tanto à pessoa que dá o testemunho (por mais interessante que seja sua história), mas à pessoa a respeito de quem ou em nome de quem o testemunho é dado, ou aos acontecimentos sobre os quais o testemunho está sendo dado.

Então, o que deveria significar "dar o nosso testemunho"? Uma tradição tem crescido nos círculos evangélicos, a de que "testemunho" diz respeito àquilo que eu experimentei. O treinamento para o evangelismo inclui "preparar o seu teste-munho", que consiste em dizer a própria história de como você se tornou cristão.

Não quero, nem por um momento, depreciar essa prática. Há uma imensa base bíblica (principalmente nos Salmos) para que eu declare publicamente o bem que Deus tem feito por mim, embora a ênfase esteja no que "Deus fez" e não "em mim". Mas os textos que estudamos no capítulo 10 nos encorajam a nos assegurar que o nosso "testemunho" tenha um elemento mais objetivo: dar o testemunho de Deus, do Senhor Jesus Cristo, da verdade da história bíblica da redenção, com sua advertência sobre o julgamento e sua esperança de glória. Caso contrário, "o período de testemunho" pode se degenerar numa forma sutil de autopromoção, em algo que é a antítese do evangelho que supostamente está sendo elogiado. A humildade do evangelho deve agir de modo diferente. As pes-soas, quando ouvem nosso testemunho, saem pensando: "Que história maravi-lhosa essa pessoa tem! Que experiências incríveis!" ou será que ficarão extasiadas diante da maravilha de Deus, da beleza de Jesus e da glória do evangelho?

O evangelho prostituído Paulo se distinguiu nitidamente daqueles que estavam "mercadejando a palavra de Deus" (2Co 2.17; ARA), ou seja, daqueles que usavam o ministério da pre-

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336 - A missão do povo de Deus

gação ou do evangelismo como um meio de ganhar dinheiro para si. O mundo grego antigo estava inundado de palestrantes itinerantes que competiam para vender suas filosofias às multidões para o entretenimento. Alguns deles se tor-naram famosos e ricos. Eles eram os tele-evangelistas daquele tempo. Paulo se recusou a ser como eles. Infelizmente, eles têm suas duplicatas em alguns dos promotores do ensino do "evangelho da prosperidade". Para essas pessoas, o evangelho se tornou um produto manipulado, embalado e comercializado atra-vés dos meios de comunicação, para apelar às necessidades e aos desejos do consumidor, com enorme enriquecimento dos vendedores.

(CAco he bem cada apóstolo que chegar, como se de fosse

o Sennor, mas de não deve permanecer mais do que um

dia. Em caso de necessicade, no entanto, que permaneça

no dia seguinte também. Se de ficar três dias, será um fa so

profeta. Na partida, um apostolo não ceve aceitar coisa al-

guma, exceto comida suficiente para evá-o até sua próxima

hospecagem. Se ele pedir dinheiro, é um falso profeta...

Todo aque e que vier a ti em nome do Senhor deve ser

bem recebido. Depois, quando o tiveres testado, saberás

mais sobre de, pois tu tens discernimento soare o certo e o

errado. Se e e é um viajante que cnega, ajuda-o em tudo

quanto puderes, mas e e não deve permanecer contigo

mais do que dois dias, ou, se necessário, três. Se de qui-

ser se estabe ecer contigo e for um artesão, ceve trabalhar

para viver. Se, no entanto, ele não tem ofício a gum, usa

teu bom-senso para tomar medidas para que ele viva con-

tigo como um cristão, sem ser ocioso. Se ele se recusar a

fazer isso, estará mercadejando Cristo. Tu deves estar de

guarda contra tais pessoas')

Rcijo g L,a 4-6 e 1 2. 1- tqlf3s do autor)

9. O Didaquê era um manual de ensino e disciplina da igreja do segundo século. Em The library of Christian

classics, Vol. 1, Early Christian fathers (traduzido e editado por Cyril C. Richardson; Londres: SCM, 1953), p. 176-177. Em português, pode ser encontrado em http://www.buscandoluz.org/estudos/121 didaque.pdf.

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A jornada até aqui e daqui em diante .k 337

Sim, estou bem ciente de que há uma realidade válida de prosperidade bí-blica que inclui a bênção material. Sei que os mestres da "prosperidade" levam a sério as promessas da Bíblia e o poder de Deus para superar todo o mal no âmbito espiritual. Sei que Deus ainda é o Deus da Bíblia, o qual opera milagres. Sei que em seus escritos, alguns desses mestres enfatizam o trabalho duro e a necessidade de superar os desafios da pobreza e da falta de oportunidades. Sei que esse ensino tem sucesso em lugares onde a pobreza é endêmica e que ele oferece algum tipo de esperança sobre uma maneira de sair de uma situação que, em si, é dolorosa para Deus e uma vergonha para a comunidade humana, inclusive a igreja.

Mas vamos com calma. Não há dúvida de que o combustível de uma grande parte do ensino acer-

ca da prosperidade é a ganância. Uma boa parte da pregação e da literatura sobre isso apela para o desejo desordenado de riqueza material, contra o qual a Bíblia constantemente nos adverte — desde o décimo mandamento até às ad-vertências de Jesus e à condenação feita por Paulo. O resultado mais gritante e óbvio desse ensino parece ser este: aqueles que se dedicam a ele são os que acabam mais prósperos.

Poderia um "evangelho" que pede dinheiro (geralmente com exigências agressivas) ser, no mínimo, consistente com o evangelho do Novo Testamento, onde tal prática é firmemente condenada? Pode um estilo de vida de fartura, glutonaria, gastos extravagantes com carros e jatos particulares, refletir afinal, de alguma forma, a face do Filho do Homem, do Servo Sofredor, do Cristo crucificado?

Um "evangelho" que vende suas bênçãos não é diferente do escândalo das indulgências na igreja da Pré-Reforma, pelas quais as pessoas eram informadas de que poderiam comprar para si a libertação antecipada dos tormentos do purgatório. Hoje as pessoas são enganadas para comprar a esperança de alívio dos empecilhos desta vida.

Na verdade, um "evangelho" que vende qualquer coisa é um evangelho pros-tituído, uma negação da graça sofredora da cruz.

Minha "reflexão sobre a relevância" nessa questão é realmente um desejo apai-xonado de que a igreja do século XXI chame isso de heresia, que de fato é, e rejeite isso como algo que não tem qualquer parte na missão do povo de Deus.'"

Recuperando nossa confiança no evangelho Ser humilde em relação a si mesmo como servo do evangelho não implica ser inseguro ou tímido em relação ao próprio evangelho. Ao contrário, a maior

10. Uma crítica concisa e poderosa sobre a doutrina da prosperidade foi produzida recentemente por um grupo de teólogos africanos, convocada pelo Grupo de Trabalhos Teológicos de Lausanne. Ela pode ser lida em: www.christianitytoday.comict/2009/decemberweb-only/gc-prosperitys-tatement.html.

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338 • A missão do povo de Deus

alegria do servo é apontar o esplendor de seu mestre. Do mesmo modo, o maior privilégio do servo do evangelho é exaltar o glorioso evangelho de Deus por todo o seu valor, em toda a rica totalidade de sua largura, altura e profundidade.

Poucos aspectos são mais essenciais para a missão do povo de Deus do que recuperar a nossa confiança no evangelho.

A verdade do evangelho Precisamos reafirmar nossa convicção da verdade do evangelho e edificar toda a nossa vida sobre ela. Isso sempre tem sido uma batalha em um mundo de reivindicações de verdade competindo entre si - religiosas ou antirreligiosas. É ainda mais uma batalha da negação pós-moderna da própria possibilidade da verdade existir. O pós-modernismo é, em essência, uma postura de descrença de qualquer narrativa grandiosa. Ele é um grande crente em histórias - a mul-tiplicidade de histórias, com as quais, cada cultura histórica decora seu carro alegórico para o grande carnaval da pluralidade da relatividade humana. Mas nenhuma história que alegue ser uma verdade universal terá permissão para passear ao redor dessas festividades sem contestação.

Em um mundo como este, ainda saímos em nossa missão de declarar que a Bíblia conta a História, a grandiosa narrativa, que dá sentido à vida, ao universo e a tudo mais. Essa história, enfim, é uma boa-nova - é o evangelho - porque nos conta a má notícia do modo como ela realmente é, e declara o que Deus, e somente Deus, fez para a redenção de todas as nossas histórias ruins e de seu terrível final infeliz. Ela nos conta que Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu Filho unigênito; que Deus estava em Cristo, reconciliando consigo o mundo, para si mesmo; que a cruz e a ressurreição de Jesus de Nazaré inaugura-ram uma nova criação e que os reinos deste mundo se tornarão o reino de nosso Deus e de seu Cristo.

A unicidade do evangelho Precisamos reafirmar nossa convicção da unicidade do evangelho, pois essa é a mensagem do único Deus vivo, e da única pessoa humana em que Deus viveu, morreu e ressuscitou. Isso foi um escândalo quando foi proclamado pela pri-meira vez no pluralismo religioso do mundo do primeiro século, e não é menos escandaloso no pluralismo do século XXI.

A relevância de nossa teologia bíblica, principalmente no capítulo 9, está no fato de que devemos afirmar a singularidade de Cristo e a salvação que está somente nele, sobre o firme e amplo fundamento de toda a Bíblia e da história que ela conta sobre um Deus único e de seu plano, desde Abraão, de trazer bênção para todas as nações e redenção para a criação.

Sendo oferecido esse Jesus, tendo-se cumprido sua história, sendo alcançada a redenção feita por esse Deus, nossa afirmação da singularidade de Jesus per-

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A jornada até aqui e daqui em diante 339

manecerá firme. Cristo não é único só porque dizemos isso ou simplesmente porque ele é melhor que a concorrência religiosa. Ele é único, porque somente nele, o Deus da Bíblia cumpriu seu plano biblicamente revelado da redenção biblicamente definida do nosso mundo biblicamente diagnosticado na sua cria-ção biblicamente valorizada.

O poder do evangelho Além disso, precisamos reafirmar nossa convicção do poder do evangelho. Esse era o grande orgulho de Paulo. Ele não era nada em si mesmo, mas pôde ver e provar que o evangelho era o poder de Deus, porque ele podia apontar as vidas transformadas de pessoas de todas as origens raciais, sociais e religiosas. E nós também o podemos.

Entretanto, infelizmente podemos também apontar vidas que afirmam os benefícios do evangelho, mas não dão evidência alguma do seu poder transfor-mador. Isso nos leva à nossa última área de reflexão:

A IGREJA Que reflexão podemos oferecer em relação a essas pessoas, a partir de nossa teologia bíblica sobre a missão do povo de Deus? É muito fácil falar de missão como uma tarefa, um projeto, um ideal, uma estratégia, como toda uma gama de realizações. Mas, se nossa jornada nos capítulos centrais deste livro nos en-sinou algo, esse ensino foi que o povo que Deus chamou para uma parceria em sua grande missão redentora precisa dar uma olhada em si mesmo. Ele precisa do constante desafio que vem do enorme privilégio de ser chamado pelo nome de Deus e de ser encarregado da missão de Deus.

Arrependa-se e volte O primeiro mandamento registrado de Jesus não foi "ide", mas sim "arrepen-dei-vos". Nesse sentido, ele se juntou às fileiras dos grandes profetas do Antigo Testamento, porque essa era sua mensagem unânime ao povo de Deus, ao lon-go de todos os séculos de sua existência. Vimos como algumas das passagens missionais mais profundas do Antigo Testamento aparecem nos contextos de exposição do fracasso de Israel e do chamado para o arrependimento radical.

Assim também deve ser para a igreja. Não podemos sair em missão no mun-do sem observar a nós mesmos. Não estou sugerindo que devamos esperar até sermos perfeitos antes de nos engajar em missão. Jamais teria havido qualquer missão — no Antigo Testamento ou no Novo — se esse fosse o caso. Isso significa que parte de nossa responsabilidade missionai deve ser a de enfrentar as falhas e deficiências da própria igreja — exatamente porque elas são um obstáculo pre-judicial à missão de Deus através de nós.

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340 -+ A missão do povo de Deus

Começar a analisar as falhas da igreja contemporânea seria o mesmo que co-meçar um livro novo. Há muitos que fazem isso muito bem. Mas é certo que eles devem incluir pelo menos as seguintes realidades vergonhosas que arruínam nosso testemunho ao mundo, desfiguram a semelhança com Cristo e negam o evangelho de sua graça transformadora:

• O escândalo de uma pequena fração do corpo global de Cristo vivendo em um nível de riqueza que é inimaginável para a grande maioria dos crentes que experimentam a luta diária e pungente da pobreza.

• O escândalo de múltiplas facções dentro da igreja, em paralelo com os mes-mos limites que dividem o restante da humanidade caída — divisões de et-nia, tribo, cor e casta; violência; injustiça; opressão e crueldade que aconte-cem nas comunidades cristãs e, entre elas, em algumas partes do mundo.

• O escândalo da obsessão pelo prestígio, pela ganância e pelo poder — que pode ser visto em todo canto da igreja global. O ensino de Jesus sobre a servidão, o primeiro e o último, o menor e o maior no reino de Deus são rotineiramente ignorados por aqueles que reivindicam, em alta voz, con-duzir o rebanho de Deus.

• O escândalo do cativeiro ideológico, por meio do qual, as igrejas simples-mente absorvem a cosmovisão cultural e nacional dominante e depois a adornam com uma aparência de piedade e a defendem com tanta paixão e preconceito como qualquer patriota pagão.

• O escândalo do falso ensino, tanto em relação às verdades mais centrais da revelação de Deus nas Escrituras como em relação a questões éticas, nas quais algumas pessoas da igreja parecem mais determinadas a refletir o mundo, em vez de serem regidas pela Bíblia

Todas essas coisas e outras mais desfiguram a imagem de Cristo e negam a puri-ficação e o poder transformador do evangelho da graça de Deus. Todas refletem os mesmos escândalos que, em princípio, são condenados na Bíblia. Não pode haver outra resposta a essas coisas, senão o arrependimento. E não pode haver nenhuma missão eficaz que não inclua esse arrependimento como um constante estado de mente e de coração, porque os antigos ídolos e escândalos rapidamente escorregam de volta para o seu lugar, mesmo depois de já terem sido expulsos antes.

Portanto, precisamos retornar ao caminho do Senhor, pois, como vimos fortemente nos capítulos 5, 7 e 8, a menos que o povo de Deus ande no caminho de Deus, não há uma missão visível para as nações. A necessidade de a igreja ser uma "sociedade contrastante", uma comunidade que atrai o mundo para Deus, por meio do poder puro e surpreendente de uma santidade missionai, continua sendo um dos maiores desafios que a teologia bíblica da missão do povo de Deus põe diante da igreja.

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A jornada até aqui e daqui em diante 341

Vá e faça discípulos À medida que nos arrependemos e voltamos ao caminho do Senhor, ouvimos novamente as palavras duradouras da sua Grande Comissão que nos guiam nesse caminho. Essa não é a primeira grande comissão, conforme tenho tentado mostrar. Coloquei o chamado e a promessa de Deus a Abraão sob essa denomi-nação. Mas, sendo essas as últimas palavras do Senhor ressurreto aos seus discí-pulos, elas exercem uma enorme alavancagem na tarefa de missão mundial.

A versão da Grande Comissão do final do evangelho de Mateus tende a ter uma posição de destaque. Ela com certeza tem funcionado como texto moti-vador no movimento missionário moderno. Infelizmente, nem sempre ele tem sido lido em todo o seu conteúdo.

Em mais uma daquelas dicotomias lamentáveis para ser acrescentada à lista acima, a Grande Comissão tem sido por vezes retratada exclusivamente como um mandamento evangelístico para irmos e pregarmos o evangelho em todos os lugares, quando, na verdade, o único verbo imperativo e central no texto é: "fazei discípulos". É claro que fazer discípulos requer evangelismo e a primeira instrução acrescentada a isso ou o primeiro passo no processo de fazer discí-pulos é batizá-los. O batismo pressupõe que houve a pregação do evangelho e uma resposta a ele, de arrependimento e fé no Senhor Jesus Cristo. A segunda instrução adicional — a Grande Comissão da Linha Três, como poderíamos lhe chamar, é: "ensinando-lhes a obedecer a todas as coisas que vos ordenei" (A21). E tal ensino é a essência do fazer discípulos.

Basicamente, o Novo Testamento foi escrito pelos discípulos, para os dis-cípulos, para fazer discípulos; no entanto, nossa ênfase muitas vezes está em tomar decisões, alegar conversões e fazer cristãos. Na verdade, a palavra "cris-tão" ocorre três vezes no Novo Testamento, ao passo que a palavra "discípulo" aparece 269 vezes.

A Grande Comissão, juntamente com toda a prática da igreja do Novo Testa-mento, nos diz que há uma missão além do evangelismo. Paulo obviamente cria nisso. E se ele tivesse deixado de ser um "missionário" quando passou três anos ensinando todo o conselho de Deus à igreja de Éfeso? Ele afirmou a missão de Apoio (um missionário transcultural: convertido na África, instruído na Ásia e enviado para a Europa), a qual era uma missão de ensino (At 18.24-27). Paulo se recusou a admitir que uma missão era mais importante do que a outra — daquele que plantou ou daquele que regou (1Co 3.5-9).

O evangelismo e o ensino/discipulado são, juntos, partes integrais e essen-ciais da nossa missão. Paulo disse a Timóteo para "fazer o trabalho de um evan-gelista" e também para ensinar a sã doutrina, e para treinar outros a ensinarem outros também. Ele não deixou implícito que uma coisa era mais importante do que outra: todas elas eram parte essencial da missão confiada a Timóteo. Para Paulo, a missão incluía tanto instruir a igreja quanto plantar igrejas.

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342 A missão do povo de Deus

C(A ideia da igreja como uma sociedade contrastante não

significa contradizer o restante ca sociedade simp esmente

por amor à contradição. Menos ainda, que a igreja como

"sociedade contrastante" significa desprezar o restante da

sociedace devido a pensamentos elitistas. A única coisa

que isso significa é um contraste em favor dos outros, por

amor aos outros; uma função contrastante que é insupe-

ravelmente expressa nas imagens de "sal ca terra" e n uz

do mundo", e como "uma cidade sobre um monte" (Mt

5.1 3, 14). Exatamente porque a igreja não existe para si

mesma, mas sim completa e exc usivamente para o mun-

do, é necessário que a igreja não se torne o mundo, mas

mantenua as próprias feições. Se ela perder seus próprios

contornos, se permitir que sua uz se extinga e seu sa se

torne insípido, então, já não poderá mais transformar o

restante da sociedade; nem a atividade missionária nem

o envo vimento social, não importa quão árduos sejam,

servirão para coisa alguma...

O que torna a igreja uma sociedade divina contrastante

não é a santidace autoadquirida nem os esforços enérgi-

cos e conquistas morais, mas a obra salvadora de Deus, o

qual justifica os ímpios, aceita os fracassos e reconcilia-se

com o culpado. Somente esse dom da reconci iação...

é o que faz florescer aqui o que temos cenominaco de

sociedade contrastante.))

Gerhard Lohfink

O péssimo resultado de se separar o evangelismo do discipulado, priorizan-do-se o primeiro, é a pouca profundidade, a imaturidade e a vulnerabilidade do

11. Gerhard Lohfink, Jesus and the community: "lhe social dimension of Christian faith (Londres: SPCK, 1985), p. 146-147 [Corno Jesus queria as comunidades? A dimensão social da fé cristã, Edições Paulinas, 1987]; conforme citado em Eckhard Schnabel, Early Christian mission, Vol. 2, Paul and the Early Chruch (Downers Grove, IL: IVP e Leicester: IVP e Apollos, 2004), p. 1577-1578.

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A jornada até aqui e daqui em diante • 343

falso ensino; a igreja cresce sem profundidade e logo definha (conforme Jesus advertiu na parábola do semeador; Mt 13.20-22).

Não devemos tratar a Grande Comissão como um relógio que está marcando o tempo, apenas esperando que o último grupo "ouça" o evangelho antes que o Senhor tenha, por assim dizer, permissão para voltar. Esse tipo de pensamento a tem transformado em uma "tarefa a ser cumprida", em uma "tarefa inacabada".

"Por sua prática de missões resicenciais (em Corinto

e Éfeso) e instrução das igrejas (lis 2.10-12), por suas

prioridades (lis 2.17-3.13; 2Co 2.12, 13; 10.13-16)

e pela descrição de sua tarefa (Cl 1.24-2.7; Rm 1.1-15;

15.14-16) em relação a admoestar e ensinar os cristãos

para levá-los à plena maturidade em Cristo, fica claro que

Pau o entendia que a instrução das igrejas que estavam

surginco era uma característica integrante ca tarefa mis-

sionária. [...] Para ele, proclamar o evangelho significava

não apenas uma pregação inicial ou, juntamente com isso,

uma co neita ce convertidos; isso inc uía tampem toda uma

gama de instruções e atividaces ce forta ecimento, o que

evou ao firme esta aelecimento de congregações")

Peter T. O'Brien

Mas, com seu mandamento para discípulos fazerem discípulos, a Grande Comissão se torna um mandato autorreplicador que nunca será "completo" - não no sentido de que nunca poderemos alcançar todas as nações (podemos e devemos), mas no sentido de que fazer discípulos e discipular novamente aque-les que foram evangelizados anteriormente são tarefas que continuarão ao longo de múltiplas vidas e gerações.

Até aos confins da terra A Grande Comissão não é um horário marcado para o fim do mundo, mas certamente uma trajetória até aos confins da terra. "Fazei discípulos de to-das as nações", disse Jesus. Como Senhor do céu e da terra, Jesus estava mais consciente da absoluta magnitude do conceito de "todas as nações" do que qualquer um de seus discípulos poderia estar. A partir do Antigo e Novo

12. O'Brien, Gospel and miss on, p. 42-43.

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344 A missão do povo de Deus

Testamentos, sabemos que Deus não ficará satisfeito até que os confins da terra tenham ouvido a boa-nova de sua grandiosa obra de redenção e que Jesus tenha discípulos entre todos os povos.

"Mas recebereis pocer. quando o Espírito Santo descer

soare vós, e sereis minhas testemunnas [...j' (At 1 .8). Embo-

ra a vitória final ainda não tenha sido revelada, o com do

Espírito é um sinal ce sua vindo ou de nossa participação

ne e como um antegozo da era vindoura. O Espírito nos foi

cada para que pudéssemos ser testemunhas, porque ele é a

primeira testemunha de Cristo. que co oca o mundo agora

soa O ju gement° que é o julgamento final, que garante

os sinais ca vi tória escondica e dó ds palavras humanas

dos mensageiros de Cristo o poder do próprio Deus. Pe o

Espírito, homens de todas as nações e línguas são evocas

a reconhecer os poderosos feitos de Deus, em Cristo.

[...1 é o Espírito quem dá ao povo de Cristo a pa avra a ser

dita quando e es são evadas diante dos reis e poderosos,

por sua causa. E o Espírito quem concede sinais e mora-

vi has para acompanhar o ministério dos aposto os, como

fez com o próprio esus. E pelo Espírito que as pa avras da

pregação do evange ho chegam com pocer aos ouvintes

— poder para serem a verdadeiro instrumento da eleição de

Deus (cf. 1 Ts 1.4, é). O dom do Espírito, em si mesmo sina

e antegozo ca era vincoura, é o meio com que a igreja é

capacitada a levar esta preserve era à sua consumação,

pe a pregação do evange ho a todas as nações. ),

NewbigH

Assim, a nossa reflexão (quase) final sobre a relevância tem que ser a con-tínua importância e a urgência da tarefa de tornar isso possível: que homens

13. Nesvbigin, Household of God, p. 138.

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A jornada até aqui e daqui em diante 345

e mulheres, em todos os povos ao redor do mundo, tenham a oportunidade de ouvir o evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo, de maneira que possam entender e responder a ele, em arrependimento, fé e obediência.

Para um livro que foi publicado em 2010, certamente é mais um escândalo acrescentarmos à lista acima, que a proporção da raça humana que pode se chamar cristã, por algum significado dessa palavra, provavelmente não mudou desde 1910 (aproximadamente um terço). Isso significa que, embora a igreja tenha crescido de maneira extraordinária no século passado e criado raízes em mais nações do que as que existiam até 1910, ainda há milhões de indivíduos e milhares de povos que nem sequer ouviram falar do nome do Senhor Jesus Cristo e das boas-novas do que Deus fez, através de sua cruz e ressurreição para a salvação do mundo. Milhões ainda esperam que qualquer porção da Palavra de Deus exista em sua língua materna.

Portanto, permanece o desafio dos povos que ainda não foram alcançados por nenhuma mensagem do evangelho, das línguas em que nenhuma parte da Bíblia foi escrita, dos milhões sem língua escrita que precisam ouvir a Palavra numa forma que não precise se apoiar na Palavra escrita. Permanece o desafio dos povos cuja única exposição à mensagem cristã veio acompanhada com hor-renda violência perpetrada a eles por nações que têm sido chamadas "cristãs" ou com escabrosa imoralidade, de modo que esses povos não conseguem dissociar da mensagem a chamada cultura ocidental...

O desafio missional de alcançar os confins da terra com o evangelho, para que toda a terra possa se encher do conhecimento da glória de Deus, ainda nos confronta com toda a sua diversidade e complexidade. A evangelização do mundo, no sentido completo das palavras dessa frase, continua como uma prio-ridade urgente para a igreja, como o era quando Jesus deu essa ordem aos seus discípulos antes de sua ascensão.

A terra, é claro, é um globo que não tem "confins". Da perspectiva missional, os "confins da terra" podem ser provavelmente encontrados tanto em sua pró-pria rua quanto do outro lado do oceano. A tarefa missional da igreja, de enviar e ser enviado, de cumprir as três funções de 3João 6-8 — enviar, ir e sustentar — é tão necessária para a missão local quanto para a internacional.

Para a glória de Deus É impressionante que três dos relatos da Grande Comissão estejam estrutura-dos na adoração (Mt 28.17; Lc 24.52; Jo 20.28). É com isso que devemos trazer este livro à sua conclusão, assim como encerramos a Parte 2, vendo a adoração e o louvor como partes integrantes da missão do povo de Deus.

Um povo missionário deve ser um povo adorador ou, para que serve a sua missão? Missão é, nas palavras do Salmo 96, uma questão de cantar o novo cântico do Senhor — o novo cântico que celebra o nome, a salvação, a

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346 • A missão do povo de Deus

glória e os poderosos feitos do Senhor - e depois convida as nações para se juntarem a ele.

A adoração faz algo mais: ela nos lembra constantemente a nossa depen-dência do Deus em cuja missão servimos. Isso significa que a missão do povo de Deus deve ser levada a cabo no poder do Espírito de Deus.

Assim terminamos com uma nota de adoração - na forma de um hino que não se dirige tanto a Deus, mas à igreja de Deus, recordando-nos da multi-facetada missão que Deus nos confiou. Seria um exercício fascinante estudar lentamente todo esse hino maravilhoso, escrito por um missionário britânico, e anotar todos os ecos e alusões aos textos bíblicos específicos que ele contém. Embora tenha sido claramente desencadeado por 1Pedro 2.9-12, segue o exem-plo de Pedro, extraindo seus temas e desafios de toda a Bíblia - o que o torna um final apropriado para este livro, que tem procurado fazer o mesmo.

Eis aqui a missão do povo de Deus - em canção:

Igreja de Deus, eleita e gloriosa, nação santa e eleita raça; Povo exclusivo de Deus, sacerdócio real, herdeira da graça, Saiba a razão de seu chamado, mostre os poderosos atos que Deus faz; Fale do amor sem limites, graça que as necessidades humanas satisfaz.

Deus lhe chamou das trevas para a sua maravilhosa luz; Faz sua verdade viver em você, e sua cegueira à visão conduz. Brilhe a luz de Deus ao seu redor, para que seu nome seja glorificado; E todos encontrem esperança e sentido em Jesus Cristo, crucificado.

Você era estrangeira, e do coração amoroso de Deus, desconhecida; Mas, pela misericórdia dele, ó cidadã do céu, ao lar você foi trazida. Que o seu amor flua aos outros; que o cuidado do Pai, eles possam provar; Para conhecerem a acolhida de Deus e das bênçãos incontáveis partilhar.

Igreja de Deus, eleita e santa, seja o povo que ele havia planejado; Forte na fé e pronta a obedecer o que o Mestre lhe tem ordenado; Cumpra o seu chamado pelo seu sacrifício e oração, sacerdócio real; Doe a vida em alegre serviço; cante o seu louvor, declare seu amor leal.

James E. Seddon (1915-1983?)."

14. Letra de: James E. Seddon; n 1982 The Jubilate Group (Admin. Hope Publishing Company, Carol Stream, II. 60188). Todos os direitos reservados. Utilizado com permissão.

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ÍNDICE DE ASSUNTOS

A "A Rocha Internacional", 322, 324 Abraão: a promessa feita a, 78; bênção

por meio de, 80; chamado de, 79; comunidade de, 99; descendentes de, 87; ecos de, 76-77; na teologia bíblica, 89; nos evangelhos, 90; um modelo para, 93-94

adoração: atraindo a, 167; como o alvo de missões, 294; das nações, 170; de Israel, 124, 305-306; estruturados na, 345

agricultura, 63 aliança, 21, 51, 52, 69, 84, 95, 108, 119, 120,

139-141, 151, 159-161, 164, 181, 185, 198-199, 229, 233, 299, 305

aliança abraâmica, 85-86, 96 amor: é ordenado por, 140; não tem

necessidade de,173 Ananias, 247-248 Andrônico e Júnias, 258 animais: preocupação com os, 322 ano do jubileu, 126, 128, 133 Antigo Testamento, o: evangelho no, 38,

221-222; lei do, 157-158; o cânon do, 46; oração no, 307

Antioquia, 45, 251, 257-260, 311 Apocalipse, 21 Apolo, foi enviado, 30 apóstolos, 344 Arnold, Clinton, 286 arrependimento, 235 Atos, o livro de, 29, 35, 195, 311 Auditor, Deus é o, 268-269 autoridade, 244; envio com, 246-247;

exercerem, 63

B Babilônia, exilados na, 196-197; oração

pela, 276-277 Balentine, Samuel E., 297, 315 Barnabé, 258 ; Paulo e, 29-30 batismo, 341 Bauckham, Richard, 83, 90, 207

bênção: conceito de, 80; da salvação, 82-83; e a esperança, 82

Bíblia: jornada através da, 319; leitura da, 48. Veja também Escrituras.

bíblica, história, 47-48 bíblica, justiça, 65 biodiversidade, 322 boas-novas: para os exilados, 214; para

toda a criação, 73; sobre Deus, 222. Veja também evangelho.

Boit, Peter, 288 Bonk, Jonathan, 234 Bookless, Dave, 61, 64

c Calvino, João, 83, 241 campo missionário, 34 Canaã, 148 cântico de Moisés, 124 Carson, D. A., 312 chamado, a natureza do, 326 Chester, Timothy, 128, 314 clero, 326 Código de Hamurabi, 157 compaixão e justiça, equilíbrio bíblico

entre, 324 comunicação, meios de, 231 comunidade, testemunho constante

pela, 208 Conselho Mundial de Igrejas, 32 convicção, nas testemunhas, 201 cósmico, 328 crer e viver, 329 criação: alvo da, 66; Cristo e a criação, 65-

67; cuidar da, 60-61, 65, 322; governar a, 64; redenção inclui a, 69-71; servir à, 321; servos da, 64; toda a, 33; vida humana e a, 67

cristãos, chamados para ser, 150 cristãos evangélicos, 48, 213 cristianismo, 44 Cristo: a identidade de, 236; a imagem de,

61; a volta de, 53; e a criação, 71-75. Veja também Jesus, YHWH.

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348 A missão do povo de Deus

cruz, a: ato de redenção, 122; ponto central, 52; preço inevitável, 289; vitória de Deus, 123

culturas, 273

D Daniel, história de, 275-276 De Ridder, Richard R., 244, 305 decadência e morte, 49 deixando e indo, 93-94 destruição ambiental, 322 Deus: à imagem de, 64-66; como Redentor,

38; conhecer a, 179; e a esfera pública, 266-268; é a missão de, 30-31; retorna, 218-219, 223; identidade do Deus vivo, 186-187; imitação de, 105; ira de, 233; julgamento de, 100; povo de, 143; relacionamento com, 176; reina, 216, 218, 219. Veja também Cristo, Espírito Santo, Jesus e YHWH.

deuses, adoração de, 182 deuses do Egito, 120 Deuteronômio, 184, 193 devoção pessoal, 180 Dez Mandamentos, os, 125, 139 diáspora, 143, 304 Dickson, John, 174, 175, 189, 192, 213, 215,

224, 301, 310 Didaquê, 336 direitos humanos, 119 discipulado: obediência do, 111; separar o

evangelismo do, 343 discípulos: de Cristo, 171; foram enviados,

30; os primeiros, 252-255; para fazer, 194; vá e faça 82-83

dívidas, 116-117, 127-128, 134 dom do Espírito, 344 dons, 170, 255, 258, 263 doutrina, 25 doxologia, 301 Doze, os, 252-258 Durham, John I., 145, 148

E ecologia: preocupação ecológica, 33, 50 Éden, jardim do, 64 educação ética, 105, 108 Éfeso, 259

eleição, 81, 98, 105, 109-110 Elias: foi enviado, 29; que viria, 224 embaixadores, o papel dos arautos e, 245 enviar: de modo digno, 262; noção de, 29 Epafrodito, 258 Erasto, 280 escravidão: dimensões da, 118, 124;

libertação da, 125-127; no Egito, 101, 184

Escrituras: cumprimento das, 122; de trás para frente, 47; do Antigo Testamento, 36, 238; impregnado das, 300. Veja também Bíblia e Palavra de Deus.

esfera pública: confronto missionário na, 282-284; cristãos na, 290-291; engajamento missional na, 274-275; trabalho na, 265. Veja também negócios, mercado.

Espírito Santo, 344; aquele que envia Jesus e os apóstolos, 251; daria testemunho de Jesus, 208; papel do, 210-211; poder do, 48

Estado: servir ao, 276-277 Ester, 275-276 ética, 105, 109-111, 330; e missão, 98 éticos, padrões, 100, 287; problemas, 328 evangelho: a verdade do, 338; cada uso

da palavra, 227; compartilhar o, 213; confiança no, 337-338; confronta as coisas, 235; e transformação ética, 231-234; essência do, 185; integridade do, 328; manipulação do, 336; mensagem do, 37; vocabulário do NT para, 214

evangelhos: Abraão nos, 90-91; Êxodo nos, 122

evangelismo, 132, 213-214; como devemos ver o, 294; e responsabilidade social, 330; impedimento para a evangelização, 154; missão além do, 102; missionários para o, 33; pessoal, 301; separar o, 343-344; viagens de, 260

evangelistas, 213 exilados: boas-novas para os, 214-216;

carta de Jeremias, 276 êxodo, o: a ação de Deus no, 116; a história

do, 118-122; a maior de todas as experiências, 185; influência do, 115; modelo de comportamento, 125,127;

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índice de assuntos - 349

modelo de Deus como Redentor em, 51; nos evangelhos, 122

exploração econômica, 119, 134

F falsos profetas, 247-248, 336 família de Deus, 228-229, 231 Faraó, 120, 141 fé: obediência da fé, 76, 232; objeto da, 241;

resposta confirmada da, 96 Filipos, igreja de, 259 Filólogo e Júlia, 258 Fretheim, Terence E., 140, 280

G generosidade, 126, 140, 263 gentios, 145, 294; boas-novas aos, 45;

incluir os, 52; judeus e, 229-230; nas sinagogas, 304

Gideão, 245 glória de Deus: é o alvo, 66; para a, 343-345 Goldingay, John, 146, 202, 216 Goldsmith, Martin, 252 governo: empregos a serviço do, 279; orar

pelo, 276 graça: contexto da, 151; no presente, 143;

para as boas obras, 232; responder à, 139; sinais da, 78; transforma, 128

Graham, Billy, 32 Grande Comissão, 43-45, 47, 64, 88, 94, 11-

12, 341-343 guerra espiritual: a oração feita como, 312-

313; na esfera pública, 292

H Hafemann, Scott, 288 hipocrisia, perceptível, 331 história: a esperança dentro da, 82; até

aqui, 138; como um todo, 47; contada pela Bíblia, 338-339; controle soberano da, 203; da missão, 82; da redenção, 52; de Israel, 51; de Israel no Antigo Testamento, 36; de Jesus, 227; Deus em ação na, 236; lembrando a, 137-138;

nações em toda a, 272; sala de espera, 271

Hood, Jason, 257 humana: a desobediência e a rebelião, 49

humanidade redimida, 228 humildade, recuperando nossa, 334

idolatria, 101, 149; chamados para resistir à, 284-287; das nações, 308; subversão à, 308

igreja: comunidade do êxodo, 133; deficiências da, 339; dimensão social da, 331; missão da, 36; nascimento da, 52; papel da, 326; papel de testemunha, 237; povo escolhido, 77, 87-88; propagação da, 259; sociedade contrastante, 341-342

igreja missionai, 87-88 imagem, de Deus, 63-64 integridade moral, 276, 284 Isaías: chamado de, 246 Israel: a expansão de, 52; a história de, 51;

aliança com, 51; bênção por meio de, 228; cegueira de, 198; o servo de Deus, 200; sacerdócio de, 144; sofre opressão egípcia, 139; tribos de, 253

J Jeremias, 29, 36, 163-164, 247, 277, 307 Jerusalém: não é apenas a cidade, 219 Jesus: a história de, 227-228; a vida de

oração de, 309; boas-novas em, 222; de Nazaré, 185, 188; encarnação de, 39; envia o Espírito, 251. Veja também Cristo, Deus, Espírito Santo, YHWH.

Jesus histórico, 206 João, tem predileção, 209 Jonas, 36 José: a história de, 269, 276; foi enviado,

29, 242-243 jubileu: a redenção e o, 126-127, 130 judeus: e gentios, 229-230, 240; primeiros

seguidores de Jesus, 45 juizes: o SENHOR levantou, 245 juízo, de Deus, 53-54, 74 julgamento: a realidade do, 100-101 justiça, 66, 107-108, 111, 324 justificação: doutrina da, 92

L Lambeth, Conferência de, 32

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350 s A missão do povo de Deus

Lausanne, Grupo de Trabalhos Teológicos de, 84

Lausanne, movimento de, 331 Lausanne, Pacto de, 32 lealdade: absoluta/completa, 190; uma

questão de, 39 legalismo, 37 lei: a resposta à graça, 140; código da

aliança, 157; como um dom da graça, 51; do Antigo Testamento, 157-8; e os Profetas, 122, 133

Lohfink, Gerhard, 342 louvor: criados para louvar, 67, 297-298;

pessoas que louvam, 294; testemunho por meio do, 303

luz: da salvação, 157; das Escrituras, 227; do mundo, 283; do próprio Deus, 154

M mal: e o pecado, 49; seu catálogo, 78; seus

poderes, 131; sua destruição final, 50; renunciar o, 326

maldição de Deus, foi posta de lado, 83; por causa da, 78

mandamentos de Deus, 105 mandato cultural, 268, 271 martírio, 287 meio ambiente: preocupação ecológica, 64;

que cuida de nós, 68; saquear o, 62 mensageiro: arautos e embaixadores, 245;

preço de ser, 289; trazendo boas-novas, 222

mercado: santos no, 283-284. Veja também negócios e esfera pública.

Messias: e a missão, 46 ministério: da Palavra, 254-5; no mundo de

Deus, 321; ou serviço, 255 missão: a base da, 110; além do

evangelismo, 102; alvo de, 293, 293; da criação, 75; de cuidar eleição para a missão, 86-87; de Deus, 56-57; declaração da, 30; do povo de Deus, 195, 266; ecológica, 66; ética e, 98; história da, 82; igreja redimida para, 114; limites da nossa, 37; modelo para a nossa, 93; na esfera pública, 274; o Messias e a, 46; oração para a, 309

missão mundial: e a história da Bíblia, 43 missionários: fidelidade aos, 260

missões, 25-26, 29, 31 Moberly, Walter, 95 Moisés: foi enviado, 29, 36, 244, 245-246;

subiu até Deus, 136-140 monoteísmo, 57, 202, 224; e missão, 189-

190 monte da transfiguração, 122, 133 monte Sinai, 138 Mouw, Richard J., 273 mundo: como o alvo, 33; confronto

corajoso com, 274; Deus para o, 136; está vindo para Deus, 169; evangelização do, 104;

N nação, uma, 86 nações: a ignorância das, 197; abençoar as,

85, 96, 98; adoração das, 170; alegria para as, 294; atraídas para o culto, 89; desobediência das, 100; obediência entre as, 102; preocupação de Deus em relação a todas, 151; presentes das, 169; reunião das, 169; visibilidade diante das, 156

nações gentílicas, 77 negócios, idôneos, 327. Veja também esfera

pública, mercado Newbigin, Lesslie, 344 Northcott, Michael, 67 nova criação, 5, 272-273 Novo Testamento: apresenta a resposta, 51;

testemunhas no, 205-206

o O'Brien, Peter T., 312, 343 obediência, 84-5; à sua ordem, 323; da fé,

76-77; é a chave para ser sacerdotal e santo, 151; entre as nações, 102; pactual, 151; questão de, 233

obras, 232-233 opressão: opressão política, 121; toda

forma de opressão, 100-101, 118 oração: e o trabalho missionário, 309; feita

como guerra espiritual, 312-313; no livro de Atos, 311; pelo governo, 276-277; uma marca distintiva, 305-306

Oração do Pai Nosso, 127 orar: pessoas que louvam e oram, 293

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índice de assuntos 351

Oswalt, John N., 204, 217 Otniel, o primeiro juiz, 245

P Padilla, René, 131 Pai, como aquele que envia, 250 Palavra de Deus, 248: Veja também Bíblia e

Escrituras. Palmer, Hugh, 310 Páscoa, 115, 124 pastores, 326 patriarcas, 81 Patterson, Richard, 123 Paulo: boas-novas para, 227-228;

em favor dos pobres, 256-257; envio de, 29; maior missionário, 76; ministério de, 208; missão e oração, 312; o apóstolo, 254; teologia de, 91

paulina, grande comissão, 314-315 paz: como bem-estar, 278; está vindo, 170;

faz parte das boas-novas, 229; reino de, 216;

pecado, 49-50; como opressão, 100 pecados: realidade dos nossos, 127 perdão, e as dívidas, 127 perseguição, 208, 287 pés, formosos, 218 pessoas: que atraem, 153; que dão

testemunho 194-196; que proclamam, 213

Piper, John, 293, 306, 313 pobres, coleta em favor dos, 256 pobreza, 126, 134 política: voz pública na, 326 políticos, cargos, 276 pós-modernismo, 338 povo de Deus, 143; missão do 189 povos não alcançados, 343-344 pregar: o evangelho, 330; prioridade

máxima, 253 Priscila e Áquila, 258 proclamar o evangelho, 213 profetas: a Lei e os, 144, 231, 246, 336;

apontam adiante, 51; enviados por Deus, 247; ignorados, 198; o papel de profeta, 326; pregação dos profetas, 198

promessa para o mundo, 103 propósito para toda a criação, 32

prosperidade: a Bíblia inclui o bem-estar material, 84, 336

Q queda, 49-50, 54

R rebelião, 49 redenção: de tudo, 271-272; e o jubileu,

126-127; experimentando a, 115; história bíblica da, 50; inclui a criação, 69-71; o modelo de, 120; respondendo à, 124

redentor, estilo de vida, 114 Redentor, o, 116 reino de Deus, 221, 223 repouso, 80 resgatador: parente, 116 ressurreição: como conciliação, restauração

e salvação, 51-52, 55; do corpo, 74; Pedro proclama a, 183;

revelação: autorrevelação de Deus, 185; envio para a salvação e, 249

riqueza: desejo desordenado de, 337; noção sobre a, 84. Veja também teologia da prosperidade

Rute: a história de, 117

sabat, 80 sacerdócio: a missão do, 144; santo, 114 sacerdotes: ficavam no meio, 144; obra

expiatória, 144 sacrifícios: trazer os, 144 sal, ser luz e, 150, 284, 292 Salomão: a oração de, 159-161; o templo

de, 158-159 salvação, 82; acontecimentos de, 184-185;

doutrina da, 86-87; invocar para a, 241; proclamar a salvação, 223; uma condição para a, 151

somar, significado de, 65 samaritana, mulher, 209 santificação, 80 Satanás, 131 secular, mundo, 281: cristãos no, 291;

do trabalho, 266 secular, significado de, 210

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352 A missão do povo de Deus

Seddon, James E., 346 serviço: o amor se expressa por

meio do, 173 serviço público, 279-280 servidão, 200, 201, 284, 340 Shemá, 190 sinagogas, 304-305 Sinai: aliança no, 139 sinais e maravilhas, 184 sincretismo, 182 singular e plural: definição abrangente, 31 social, ação, 331: evangelismo e, 35 social, ética, 131 social, justiça, 108, 119 social, responsabilidade, 331-332 sociedade: servindo à, 325 Sodoma, 100-102; intercessão de Abraão

por, 306-307 sofrimento: de Deus, 289-290; do povo de

Deus, 289-290; envio e, 250 Spanner, Huw, 63 Stott, John, 32, 57, 154, 173, 191, 210, 232,

238-239, 255, 263, 277, 289, 296, 331

T "tementes a Deus", 161 templo: de Salomão, 158-159; oração no,

307 tendas: fazer, 327 teologia, 25. Veja também teologia bíblica. teologia bíblica, 25-26; Abraão na, 89; da

missão, 49; da missão da igreja, 54; é, por definição, 180;

terra: provê para nós, 68; sofre conosco, 68-69; subjugar a, 62

testemunhas: no Novo Testamento, 205 testemunho: dar seu, 201; dar um falso,

199; de seus discípulos, 211; na Bíblia, 335; por meio do louvor, 303

Thompson, Mark, 288, 312 Tito, 30, 258 Tora, 156 trabalho: ganhar a vida pelo, 281; humano

através dos tempos, 272; na esfera pública, 265-267, 264

transgressões, 127 Travers, Michael Trindade, 250

u última ceia, a, 115

V verdade: a ser defendida, 235-236; de Deus,

218-219, 223-224; do evangelho, 338; fidelidade à, 260

volta: de Cristo, 53

Wink, Walter, 286 Winter, Bruce, 280-281 Wittmer, Michael, 61 Wright, Nigel G., 286 Wright, N. T., 43, 115

Y YHWH: absolutamente único, 149;

aplica a si mesmo, 219; caminho de, 105-106; como "redentor"; 117; é o único Deus, 202; é salvação, 225; em nome de, 144; falar por, 245; no Antigo Testamento, 39; poder salvador de, 203; revelado como, 39. Veja também Cristo, Deus, Jesus e Espírito Santo.

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ISBN 978-85 275-0493-5

0 5 O 4 9 3 5 9 7 8 5 2 7

De VIDA NOVA

www.vidanova.com.br BFEL BRASILEIRO

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E disse-lhes: Vinde a mim, e eu vos farei pescadores

de homens (Mateus 4.19).

O livro pioneiro de Chris Wright, lançado em 2006 — The Mission of God [A Missão de Deus] — revelou que a típica compreensão cristã acerca de "missões" engloba apenas uma pequena porção da abrangente missão de Deus para o mundo. Deus está reivindicando o mundo inteiro para si, de forma implacável. No livro A missão do povo de Deus, Wright demonstra como o plano de Deus, visto de uma perspectiva mais abrangente, dirige os propósitos do povo de Deus, a Igreja.

O autor enfatiza o que o Antigo Testamento ensina aos cristãos sobre ser o povo de Deus. Ele trata também de questões relativas a eclesiologia e missiologia.

Este livro coloca ao alcance de pastores, professores de seminário, líderes eclesiásticos, estudantes e leitores leigos um estudo bíblico primoroso sobre missões, ao mesmo tempo em que trata de questões práticas relacionadas ao ministério no mundo de hoje.

Enfim, é uma obra que promete reavivar e redirecionar o estudo, o ensino e o ministério daqueles que estão verdadeiramente comprometidos a se unir ao trabalho de Deus no mundo.

"Uma leitura extraordinariamente agradável... uma aventura restauradora... excitantemente controverso... notavelmente prático... surpreendentemente relevante... extremamente realista".

1. HOWARD MARSHALL, Professor emérito de Novo Testamento na Universidade de Aberdeen. Autor do livro Teologia do Novo Testamento: diversos testemunhos um só Evangelho, publicado por Edições Vida Nova.

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