revista vulto
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vulto (latim vultus, us) Substantivo masculino 1. Corpo, figura. 2. Rosto, semblante, face. 3. Volume, massa, grandeza. 4. Imagem de escultura, estátua. 5. Importância, notabilidade. 6. Consideração, ponderação. 7. Interesse. 8. Pessoa de grande importância. 9. Pessoa que não se conhece, ou de que não se podem distinguir as feições.TRANSCRIPT
Nascimento emTerra
Estrangeira
Adorno Sensível
VULTO
v u l t o( l a t i m v u l t u s , u s )S u b s t a n t i v o m a s c u l i n o
1 . C o r p o , f i g u r a .2 . R o s t o , s e m b l a n t e , f a c e .3 . V o l u m e , m a s s a , g r a n d e z a .4 . I m a g e m d e e s c u l t u r a , e s t á t u a .5 . I m p o r t â n c i a , n o t a b i l i d a d e .6 . C o n s i d e r a ç ã o , p o n d e r a ç ã o .7 . I n t e r e s s e .8 . P e s s o a d e g r a n d e i m p o r t â n c i a .9 . P e s s o a q u e n ã o s e c o n h e c e , o u d eq u e n ã o s e p o d e m d i s t i n g u i r a sf e i ç õ e s .
SUMÁRIO
NASCIMENTO EM TERRA ESTRANGEIRA 3
O que é o tempo? 5
O marcador de tempo
que não conta às horas 12
ADORNO SENSÍVEL 15
O interior e a Escuridão 17
A performance de Louise 21
Vires ao longe o negrejar de um vulto.. . 28
3
Rafael Massuda em
NASCIMENTO EM
TERRA
ESTRANGEIRA,
trabalho
apresentado em
2014
Nascimento em Terra
Estrangeira
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O que é o tempo?
por Rafael Massuda
A experiência humana do tempo é
penetrante, íntima e imediata. A
vida, a morte e o tempo combinam
se de uma forma intrincada e
intrigante, difícil de ser esclarecida,
porém reconhecida em todas as
grandes filosofias e religiões. O
tempo é um componente de todas as
formas de conhecimento humano, de
todos os modos de expressão e está
associado às funções da mente. É
também um aspecto fundamental do
Universo. Ocorre que nenhuma
faculdade de conhecimento isolada,
por si só, é capaz de explicar a
natureza do tempo. Só o tempo
possui essa qualidade peculiar de nos
fazer sentir por intuição que o
compreendemos perfeitamente,
desde que ninguém nos peça para
explicálo.
A performance Nascimento em
Terra Estrangeira procura investigar
por meio do corpo a noção e
percepção de diferentes
temporalidades. A narrativa que se
desenvolve está enraizada no
processo coletivo de miscigenação.
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Se valores e códigos só fazem
sentido no interior da cultura de
origem, mais do que assinalar uma
linhagem, talvez, a miscigenação
aponte para o instinto humano de
continuidade, para o esquecimento,
para a história das diferenças e
construção de identidades ou para a
simples passagem do tempo.
Contudo, a lógica que permanece é
sempre a mesma: passado, presente
e futuro que se confundem e se
misturam. Misturamse, também,
elementos culturais distintos: a
onipresença de um metrônomo que
impõem seu ritmo sobre o
movimento, a imensidão de um
kimono com seus sete metros de
sutileza e a incerteza de um véu de
contas.
O corpo que se apresenta está longe
da estabilidade, pois se transforma;
movese. Mesmo na lentidão de uma
gestualidade grave, sob a pintura que
cobre o corpo, o desequilíbrio é
constante, como se a velocidade
imposta pela sociedade de consumo
fosse um vício sensorial que embota
a consciência. Aqui, o corpo não se
contenta em submeterse ao espaço e
ao tempo. Por meio do movimento,
ele os assume ativamente. Esse
movimento não é algo isolado, é
parte de um contexto, de uma
tessitura que determina o todo da
ação. Um corpo móvel, ou próprio,
da mobilidade do pensamento e do
espírito.
Mesmo quando a vida secular nos
impõe um calendário, uma rotina,
um cotidiano vazio e repetitivo, a
performance busca contrapor a
concepção de tempo profano à idéia
de tempo sagrado, portanto um
tempo de transcendência ou
imanência. Assim como há
diferentes culturas no interior de
uma nação miscigenada como a
nossa, também há múltiplas
temporalidades. Neste terreno
híbrido, o corpo performático torna
se a matéria plástica que pode
assumir formas imprevisíveis e
temporalidades distintas.
Penso o corpo não como uma
entidade material anatômica e
descritível em sua oposição ao
espírito, mas em sua capacidade de
materializar um processo móvel e
complexo, o do sentir. Entretanto,
colocar e movimentar o corpo
performático no espaço, ao mesmo
tempo, mostrase como uma questão
de desmaterialização. Através do
corpo, imponho o meu ritmo sobre a
sequência de um processo, assim
como, o processo impõe o seu ritmo
sobre mim. Nesse jogo de forças,
sou transportado para um momento
indeterminado no tempo. Nele se
encontram os elementos de culturas
esquecidas, de um tempo
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interrompido, de um tempo que não
segue a medida, de um tempo
genealógico, de um tempo
miscigenado. Para o encantamento,
para o êxtase, é preciso que as
antíteses se contraiam em
ambivalência. Surge então o instante
poético, surge o tempo.
Tempo passado, tempo presente,
tempo futuro, tempo cronológico,
tempo psicológico, tempo sagrado,
tempo profano, tempo histórico,
tempo natural, tempo físico, tempo
social, tempo largo, tempo curto,
tempo rápido, tempo lento, tempo
receptivo, tempo repetitivo, tempo
rítmico, tempo freqüente, tempo
dinâmico, tempo vazio, tempo.
Diante desse processo
descompassado, sigo perplexo e
convicto de incertezas. O que é o
tempo? Quando não me perguntam
sobre o tempo, sei o que ele é.
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[ . . . ]
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O marcador de tempo que não marcava ás horas
por Louise Madalosso
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O marcador de tempo que não marcava ás horas
por Louise Madalosso
Dentro de uma escala que deveria
ser vista das alturas, l ida pelo
divino, o acaso de um cenário
deixado para trás dentro de uma
ampla sala escura, coincidiu a
performance de Rafael Tadashi
Massuda, aluno do sexto semestre
do curso de Artes Visuais, no
Centro Universitário Belas Artes
de São Paulo.
Passando pela porta de entrada, o
ambiente era si lencioso e tomado
somente pelos estalos marcados
de um metrônomo, mais lento
que os próprios segundos. Como
na música, parecia tomar o papel
dos acordes, responsáveis por
inúmeras formas de administrar e
perceber a base temporal da
melodia. A ambientação visual do
espaço performático funde a
narrativa uma forma de compor a
historicidade velada à razão e ao
tempo terreno.
No espaço tomado por
incontáveis grãos de areia, o
metrônomo, em contraponto com
o infinito, demarcava um longo
momento a cada estalo grave
(cerca de 40 batimentos por
minuto). Sob vários planos à
sombra da mesma superfície,
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assim como a cada pauta
sobreposta, a imensidão de um
kimono. Seus aproximados 7
metros, estendiase ao longo do
chão e aludia o caminho da luz da
lua sob o mar, era translúcido.
Nele velava um corpo despido e
esbranquiçado, na posição fetal ,
desajeitado e rastejante. Seu
percurso parecia incerto perante
o espaço que o circundava,
claustrofóbico e limitado.
De dentro para fora a visão se
torna turva, o peso do corpo
separao do céu e o atri to da
areia, est imula um incessante
movimento – um caminho árduo
para a transformação. Da barra
alongada da veste, percebiase na
outra extremidade da sala, um
percurso até uma coroa de contas.
A pele do corpo ficava cada vez
mais desbotada. Todo o resquício
que antes se agregava à superfície
daquele ser, agora aderido ao
lado inverso da veste.
Ao nascer, a criança se depara
com o sol e dele o faz de coroa,
uma coroa que, ao vestir , cai
como um véu sobre o rosto,
transformando e velando a
identidade. Após esse batismo,
percorreu com os pés firmes e
passos lentos, por muito tempo,
toda a transição de um mundo em
suspensão. Guiado agora para
conhecer a gênese, trajado do que
antes fora gerado, sobre tantas
camadas, o ser terreno se
desfigura. A Identidade criada, a
identidade velada, convertese em
entidade.
Ao se aproximar do marcador de
tempo, esse ser, rendese de
joelhos e liberta cada conta, como
se fosse uma oração pronunciada
em um rosário. Nesse eterno
retorno, o corpo em devir
convertese novamente à postura
de origem – não sei se em paz,
mas, provavelmente, descansado.
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Adorno Sensível
Críticas
Luiza Oliveira e Raissa A. Medreiros
Fotografia
Camila de Oliveira
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Adorno Sensível
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Escuri
dão
I
n
t
e
r
i
o
r
Até para os olhares mais desatentos, é de fácil
percepção a linha principal que move os trabalhos
de Louise Madalosso: é a escuridão. A cor preta,
o negro, a ausência de luz está presente em toda a
trajetória da artista. Tal obscuridade é parte
integrante de seu ser, sendo este sempre presente
como assunto nas obras, mesmo que
subjetivamente.
No início da trajetória de produção da artista,
mas presentes até hoje estão pinturas a óleo, que
traduzem bem as ideias da artista. A
minuciosidade da feitura das figuras oníricas, e o
fato de tudo o que é visível nas telas surgir do
negro do fundo, como a artista explicita ao falar
de seu processo de criação, que se dá em
primeiramente dar fundo negro à tela e
posteriormente daí ir dando luz e forma às
figuras.
É inegável fazer aproximações, mesmo que de
forma não limitadora, ao surrealismo e seus
simbolismos. As figuras oníricas parecem vir de
um mundo particular, imaginário e profundo, mas
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Escuri
dão
I
n
t
e
r
i
o
r
apesar de não exist irem no mundo visível, não
deixam de ser reais. São expressões da realidade
interior do sujeito. As telas são em sua maioria
autorretratos não convencionais, com elementos
que fazem parte da memória e da experiência da
própria artista agregados ou miscigenados à
representação naturalista, porém nem sempre
totalmente evidentes, do corpo de Louise.
Percebemse aí questionamentos psicológicos ou a
procura da (in)definição da psique, aproximando
se dos pensamentos do psicanalista Francês
Jacques Lacan.
Já nas produções gráficas, apesar de permanecer
sua ideia do negro na psique, Louise trabalha
bastante o relacionamento entre interiores
arquitetônicos e nosso próprio interior. Há
momentos em que este interior é bem definido,
há momentos em que é menos explícito, mas é
sempre interior. O interior no caso seria nossa
mente, e tudo o que ela carrega, inclusive a
escuridão.
Em continuidade com o pensamento expressão do
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interior obscuro No trabalho Adorno Sensível,
performance realizada em 2014, sentada em cima
de um tecido de tom cru e tendo uma bacia com
nanquim preto a seu lado, a artista puxa o
barbante também cru de um carretel preso acima
dela, t ingindoo de nanquim preto. Não só o fio
absorve o líquido e tornase negro, mas também
parte de seu corpo, que recebe gotas no negro
durante o decorrer do ato performático. Sabese
se que o ato de tingir algo é carregalo de
signif icado, do mesmo modo que lavar algo é
limpar, purif icá lo.
É importante ressaltar que o negro tratado em seu
trabalho não se mostra, como na visão ocidental,
com caráter negativo, de algo destrutivo e sim
criativo. Neste caso, há mais uma visão oriental
da relação entre a escuridão e a luz, o preto e o
branco. Em todos os trabalhos, o a sombra não se
mostra e nem existe sem que haja um
relacionamento com seu oposto, a luz. Há
também que se valorizar então os cinzas, e
também os diversos tons de negro. Mesmo nos
trabalhos em que a presença da escuridão e da
profundidade não é explicitada pela cor preta, tais
característ icas se mostram subjetivamente.
Escrito por Luiza de Oliveira.
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A Performance de LouiseMadalosso
Uma iluminação direta ressalta aquele tecido
branco do tamanho de um lençol. Lonita o nome.
Em cima da Lonita uma vasilha de vidro. Dentro,
um líquido preto que preenche a vasilha quase
que totalmente. Preto é o nanquim, que ao
misturarse com a água expande sua tintura. O
negro prevalece. Em cima disso tudo, no alto,
pendurado ao teto, um rolo de barbante. E dele
cai a l inha até o chão.
Esse cenário é o marco do início da performance
de Louise Madalosso, aluna do sexto semestre de
artes visuais do Centro Universitário Belas Artes
de São Paulo. Em um ambiente pensado e
preparado, nua ela entra em cena contracenando
com esses objetos, fazendo uma pintura com esses
componentes, misturandose com esses
componentes. Realizando um enredo dual com
peso e leveza, com vigor e melancolia, com a
mescla entre o claro e escuro, sombra e luz,
transformando esses adjetivos em um trabalho
sublime e original.
Concentrada, ela entra em cena. De joelhos se
apoia no calcanhar. Cena aparentemente clichê
em performances. Porém, ao agarrar a linha e
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puxálas com as duas mãos contra seu corpo, enquanto a
linha e o tecido são manchados durante esse processo as
suas posições mudam, e o que antes era clichê se torna
natural e espontâneo. Ela se mostra durante a ação cada
vez mais convicta, com mais segurança e desinibição.
É reafirmada então a dualidade, sua pele clara e seu
cabelo escuro, tecido claro, l inha clara, manchas escuras.
Ao molhar a linha com suas mãos, na tinta, essa linha vai
f icando sobrecarregada ao cair sobre seu corpo a cada
“puxar”. O rastro de tinta é derramado sobre a pele e o
tecido branco. Assim, é criada uma obra com volume,
l inha, desenho, claro, escuro, sombra, luz, mancha,
movimento, cor. Uma pintura viva.
O esforço obstinado para atingir algo que está acima dela,
que a performer não alcança, e que a plenitude não se
concretiza faz parte do jogo de cena. Analogias à parte, a
l inha clara com tom de “pureza” puxada até o peito se
edifica em simbolismos. O barbante, já t ingido nesse
momento em tom de preto, se desconstrói. O ser ingênuo
é atenuado e se torna sincero, simbolicamente. A busca
por ideias, o tal empirismo vindo lá de cima, tornase
corrompido, maculado, poluído.
Louise tem seu próprio tempo, variando com rapidez e
pausa, havendo desgaste físico num movimento repetido,
em que, a cada ruído daquele puxar de fio suas mãos se
machucam. Não há tédio durante a performance há, do
ponto de vista do expectador, beleza na dor, procurando
entender o que vem lá de cima que é tão inatingível e que,
incansavelmente, a performer busca sem parar, até a linha
acabar, que no fim deixa para trás o resíduo do que
sobrou. Aquela mancha, aquela linha, aquela pintura.. .
Sobre tela.
Escrito por Raissa A. Medeiros.
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Dentro dessa narrativa, progressiva, houve outro atributo que permitiu
comparti lhar a sinestesia da ação, o silêncio. Dos ruídos que a linha fazia
ao girar e cortar o vento, ecoados na forma cil índrica de papelão do
carretel , das gotas respigarem na poça de nanquim, do aspecto úmido que
ficava nos ruídos dos movimentos corporais junto ao emaranhado do fio
de barbante, t ingido com variações tonais de preto, do corpo, passando
pelo barbante ate o chão, que alternavamse com os tons que compunham
visualmente do meu corpo e os materiais. Ate cair o final da ponta inversa
do barbante, o movimento foi incessante, enquanto fim, o sentido se
perde, tornase emaranhado, num ninho, numa teia pesada e fria. Um
cadáver.
Louise Madalosso
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Louise Madalosso
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" O r a , e s s a c a r n e q u e s e v ê e s e t o c a n ã o é
t o d a a c a r n e , n e m e s s a c o r p o r e i d a d e
m a c i ç a , t o d o o c o r p o . A r e v e r s i b i l i d a d e
q u e d e f i n e a c a r n e e x i s t e e m o u t r o s
c a m p o s , é m e s m o i n c o m p a r a v e l m e n t e
m a i s á g i l , e c a p a z d e e s t a b e l e c e r e n t r e o s
c o r p o s r e l a ç õ e s q u e d e s t a v e z , a l é m d e
a l a r g a r e m , i r ã o d e f i n i t i v a m e n t e u l t r a p a s s a r
o c a m p o d o v i s í v e l . ( . . . ) E s t a n o v a
r e v e r s i b i l i d a d e e a e m e r g ê n c i a d a c a r n e
c o m o e x p r e s s ã o c o n s t i t u e m o p o n t o d e
i n t e r s e c ç ã o d o f a l a r e d o p e n s a r n o
m u n d o d o s i l ê n c i o . "
M a u r i c e M e r l e a u P o n t y ,
e m O V i s í v e l e o I n v i s í v e l .
V i r e s a o l o n g e on e g r e j a r d e u m v u l t o . . .
A p e r f o r m a n c e , c o n c e b i d a c o m o
l i n g u a g e m n o i n i c i o d o s a n o s 1 9 7 0 , f o i
d e s e n v o l v i d a c o m b a s e e m d i s t i n t a s
f o r m a s e n o m e s n o i n t e r i o r d e t o d o o
s é c u l o p a s s a d o . A t e o s d i a s d e h o j e , é
d e s d o b r a d a e x t e n s a m e n t e e m d i v e r s o s
m e i o s e s i t u a ç õ e s , a b r a n g e n d o u m a s é r i e
d e p r o l o n g a m e n t o s o u f o r m a s d e d e v i r
c o n t i d o s e m s e u p r o c e s s o . A s s i m , a
r e v i s t a V u l t o p r o p õ e m a m a t e r i a l i z a ç ã o
d e u m p r o c e d i m e n t o t e m p o r a l o f e r e c i d o à
r e c e p ç ã o .