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REVISTA DESAFIOS NÚMERO 1 – NOVEMBRO DE 2013

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REVISTA DESAFIOSNÚMERO 1 – NOVEMBRO DE 2013

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UNIVERSIDADE DE CABO VERDE

Universidade em Rede

www.unicv.edu.cv

Reitor: Paulino Lima Fortes

Vice-Reitora para Pós-Graduações e Investigação: Maria Adriana Sousa Carvalho

Vice-Reitor para Extensão Académica e Desenvolvimento Institucional: Manuel Brito-Semedo

Pró-Reitor para a Graduação, Desenvolvimento Curricular e Qualidade Académica: Bartolomeu Lopes Varela

Administradora-Geral: Elizabeth Coutinho

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REVISTA DESAFIOSNÚMERO 1 – NOVEMBRO DE 2013

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Ficha Técnica

Título

Desafios – Revista Científica da Cátedra Amílcar Cabral

Director

Manuel Veiga

Conselho Editorial

Manuel Veiga

Arlindo Mendes

Crispina Gomes

Dora Pires

Nélida Brito

Paulo Lima

Copyright©

Cátedra Amílcar Cabral | Universidade de Cabo Verde

ISSN

2310 - 2616

Revisão

Crispina Gomes

Manuel Veiga

Nélida Brito

Coordenação Editorial

Márcia Souto

Capa, Layout e Paginação

Ricardo Mendes (editions)

Tiragem

500 exemplares

Impressão

Imprensa Nacional de Cabo Verde

Edições Uni-CV

Praça Dr. António Lereno, s/n - Caixa Postal 379-C | Praia, Santiago, Cabo Verde

Tel (+238) 260 3851 - Fax (+238) 261 2660 | Email: [email protected]

Praia, Novembro de 2013

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Revista Desafios

5

Índice

I PARTE Instalação da Cátedra Amílcar Cabral...................................................................7

Nota de abertura........................................................................................................9

Apresentação...........................................................................................................13

Deliberação Nº 025-CONSU/2012 que cria a Cátedra Amílcar Cabral.......................17

A Cátedra Amílcar Cabral na UniCV: Um espaço para a afirmação e a valorização do humanismo, da caboverdianidade e do legado de Amílcar Cabral............................19

Palavras do Magnífico Reitor, Prof. Doutor Paulino Lima Fortes, no acto de empossamento da Cátedra Amílcar Cabral na Uni-CV..............................................27

Fundação Amílcar Cabral - Mensagem do Presidente Pedro Pires..........................31

Vida e Obra de Amilcar Cabral - Aula Magna proferida pelo Doutor Julião Soares Sousa, por ocasião da instalação da Cátedra Amílcar Cabral....................................37

II PARTE Enquadrada na 1ª Linha de Investigação da Cátedra........................................59

Cabo Verde: Nação Crioula Caldeada num Bilinguismo em Construção

Manuel Veiga.............................................................................................................61

Língua, Modernidade e Libertação: A Linguística Política de Amílcar Cabral

Abel Djassi Amado....................................................................................................83

III PARTE Enquadrada na 2ª Linha de Investigação da Cátedra.....................................111

A educação, o conhecimento e a cultura na práxis de libertação nacional de Amílcar Cabral

Bartolomeu Varela...................................................................................................113

O caso Amílcar Cabral - breves apontamentos críticos

José Luís Hopffer Almada .....................................................................................133

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Revista Desafios

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Índice

Anatomia de uma bem-sucedida guerra revolucionária: exército português versus PAIGC e o assassinato de Amílcar Cabral

Leopoldo Amado.....................................................................................................189

Cátedra Amílcar Cabral na Uni-CV: Porquê, Para quê?

Manuel Veiga...........................................................................................................205

IV PARTE Enquadrada na 3ª Linha de Investigação da Cátedra...................................215

Cabo Verde: Monopólio da terra, disputas partidárias e criação de um centro de civilização (1822-1851)

Eduardo Adilson Camilo Pereira..............................................................................217

Condicionantes institucionales del emprendimiento turístico en pequeños territorios insulares

Jeremias Dias Furtado | Antonia Mercedes García Cabrera | María Gracia García Soto........................................................................................253

Subsídios para um ensino transformador no primeiro curso de e-learning da Universidade de Cabo Verde

Maria Luísa Inocêncio | Maria da Luz Correia..........................................................289

A Globalização: duas dimensões de uma complexidade histórica

Olena Kovtun...........................................................................................................303

ANEXOS .............................................................................................................................317

Regulamento da Cátedra Amílcar Cabral................................................................319

Protocolo de parceria entre a Universidade de Cabo Verde (Uni-CV) e aFundação Amílcar Cabral (FAC)..............................................................................333

Lista dos membros da Cátedra Amílcar Cabral.......................................................337

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I PARTE

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Revista Desafios

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Nota de Abertura

NOTA DE ABERTURA

A Cátedra Amílcar Cabral (CAC-CV) nasceu sob o signo do “desafio”: o de implementar a investigação cultural, com forte incidência sobre “a epistemologia do Sul”, e o de promover um melhor conhecimento e divulgaçãodo legado de Cabral. Esta é a razão por que o nome escolhido para o órgão de difusão de trabalhos, nas três Linhas de Investigação da instituição (Cultura, Línguas e Literatura; Legado de Amílcar Cabral, Ciências Agrárias e ambientais; Património Cultural, Ciências Sociais, Humanas e Pedagógicas), é “DESAFIOS-Revista Científica da Cátedra Amílcar Cabral”.

Houve também a proposta do nome ser “SEMENTE”, já que o que se pretendia fazer era dar início a um período fértil de azágua, no campo da investigação e da promoção do legado de Cabral. E como a azágua começa com a sementeira, achou-se que o nome “SEMENTE” para a revista seria pertinente.

A direcção da CAC-CV, maioritariamente, optou por “DESAFIOS...”, considerando que este nome era mais mobilizador, mais dinâmico e mais ajustado aos objectivos propostos.

Este é o número um de “Desafios...”. Apesar de ser um projecto com alguma consolidação, trata-se ainda de um “desafio” para ganhar mais experiência, sentir o pulsar do espírito de investigação na Uni-CV, conhecer as dificuldades a serem superadas, estudar a estratégia dessa superação, alinhar todos os aspectos normativos a serem explicitados e dados a conhecer aos colaboradores para que a harmonia formal na apresentação dos trabalhos seja cada vez mais rigorosa e mais consolidada.

Sendo o primeiro número, espera-se que haja alguma tolerância face a um ou outro desajuste que, eventualmente, o leitor atento poderá dar-se conta.

Uma outra especificidade deste número é o facto de ele estar organizado em quatro partes e não em três como vão ser os números subsequentes que seguirão as três linhas de investigação acima referidas.

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Revista Desafios

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Nota de Abertura

I PARTE

A mesma começa com a Nota de Abertura e a Apresentação da Revista Desafios. Em seguida, o número dá conta da criação e instalação da CAC-CV, publicando: o diploma de criação; a intervenção do director da CAC-CV falando da Cátedra como “Um Espaço para a Afirmação e a Valorização do Humanismo, da Caboverdianidade e do Legado de Amílcar Cabral”; as intervenções do Magnífico Reitor Paulino Fortes e do Presidente da Fundação A. Cabral, Comandante Pedro Pires, ambos saudando a oportunidade da criação da Cátedra. Finalmente, dá-se à estampa a aula magna proferida por ocasião da instalação da Cátedra pelo Doutor Julião Soares Sousa, sobre “Vida e Obra de Amílcar Cabral”.

Durante a instalação houve ainda palavras encorajadoras do senhor Primeiro Ministro e do Ministro do Ensino Superior, Ciência e Inovação, palavras essas ditas de improviso e, por isso, não chegaram a ser registadas.

II PARTE

Nesta secção, no âmbito da primeira linha de investigação da Cátedra, publicamos dois trabalhos, um do Doutor Manuel Veiga que discorre sobre “Cabo Verde: Nação Crioula Caldeada num Bilinguismo em Construção”, um estudo que prognostica a construção do bilinguismo e a desconstrução da diglossia em Cabo Verde. Outro, da autoria do doutorando Abel Djassi, na Boston University, sobre “Língua, Modernidade e Libertação: A Linguística Política de Amílcar Cabral”, um trabalho que analisa o pensamento linguístico de Amílcar Cabral em contraponto com o de Franz Fanon.

III PARTE

A mesma inclui trabalhos no âmbito da segunda linha de investigação da Cátedra. O primeiro é da autoria do Doutor Bartolomeu Varela, da Uni-CV, versa “A Educação, o Conhecimento e a Cultura na Práxis de Libertação de Amílcar Cabral”. O autor defende que a libertação nacional protagonizada por Cabral não se esgota na simples conquista da Independência, mas abarca também a libertação de todas as forças

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Nota de Abertura

produtivas, sendo esta libertação indissociável da luta contra a ignorância e a promoção do conhecimento e da cultura.

O escritor José Luís Hopffer Almada, um profundo conhecedor das letras caboverdianas, assina um trabalho sobre “O Caso Amílcar Cabral –Breves Apontamentos Críticos”. O mesmo fala do nativismo político de Amílcar Cabral – o da reafricanização dos espíritos – em contraponto com o nativismo telúrico da revista Claridade e o nativismo bipartido dos pré-claridosos.

O Doutor Leopoldo Amado, natural da Guiné, que até bem pouco tempo esteve ligado à Uni-CV, escreve sobre “Anatomia de uma Bem-Sucedida Guerra Revolucionária: Exército Português Versus PAIGC e o assassinato de Amílcar Cabral”, contrapondo a estratégia militar e diplomática vitoriosas de Amílcar Cabral e do PAIGC com a estratégia divisionista e falhada do General Spínola e da PIDE-DGS portuguesa, na luta de libertação da Guiné e Cabo Verde.

O Doutor Manuel Veiga, da Uni-CV, assina um trabalho cujo título é: “Cátedra Amílcar Cabral na Uni-CV:Porquê, Para Quê?” O autor propõe falar das razões que estão na base da escolha do patrono da Cátedra e da finalidade dessa instituição académica.

IV PARTE

Aqui encontramos uma reflexão do Doutor Eduardo Adilson Camilo, da Uni-CV, sobre “Cabo Verde: Monopólio da Terra, Disputas Partidárias e Criação de um centro de Civilização (1822-1851)”. Segundo o autor, o mesmo aborda as disputas partidárias em Cabo Verde onde entram em cena os liberais moderados e os liberais exaltados. O trabalho visa demonstrar a forma como os políticos aproveitam das festas religiosas para a mobilização dos rendeiros da ilha de Santiago à volta do partido pró-Brasil. Aborda ainda o projecto separatista em relação a Portugal, bem como a criação de um centro civilizacional no Mindelo.

O Doutorando Jeremias Furtado, da Uni-CV, e as Professoras Antónia Mercedes Garcia e María Gracia Soto Garcia, ambas da Universidade de Las Palmas de Gran Canária, assinam um texto sobre “Condicionantes

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Nota de Abertura

Institucionales del Emprendimiento Turístico en Pequeños Territorios Insulares”. Dizem os autores que o que “pretendem é identificar os factores institucionais que permitam estimular a actividade turística nas pequenas economias insulares em desenvolvimento, onde a actividade empresarial representa uma oportunidade para se alcançar o crescimento económico”.

As Doutoras Maria Luísa Inocêncio e Maria da Luz Correia, ambas da Uni-CV, escreveram “Subsídios para um ensino transformador no primeiro curso e-learning da Universidade de Cabo Verde”. Trata-se de um estudo exploratório para a formação de professores, com base em práticas de ensino universitário transformador e em tecnologias que a modernidade das TIC permite hoje.

Finalmente, a Doutora Olena Kovtun escreve sobre “A Globalização: Duas Dimensões de uma Complexidade Histórica”. O trabalho, segundo a autora, fala da organização e da promoção de organismos de globalização, articulando abordagens histórico-conceptuais e as estruturas relacionais no terceiro sector e, ainda, a abordagem estratégica relacional com o capitalismo informático.

ANEXO

Este número termina com um anexo que dá conta do Regulamento por que rege a Cátedra Amílcar Cabral, do protocolo assinado com a Fundação Amílcar Cabral, da lista dos membros da Cátedra e respectiva direcção, bem como ainda da direcção da Revista “Desafios”.

Esperamos, vivamente, que o presente número da revista “Desafios...” seja a revitalização de uma caminhada que vai trazer muitas luzes, muita empatia e muito dinamismo à “epistemologia cultural do Sul”, sobretudo a de Cabo Verde, e ao legado de Amílcar Cabral, em particular. Daí o nosso apelo aos académicos para que abracem a causa da revista e da Cátedra.

A Direcção

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Revista Desafios

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Apresentação

APRESENTAÇÃO

1. “Desafios” – Revista Científica da Cátedra Amílcar Cabral (DRC-CAC) é um órgão para a difusão de trabalhos de cariz cultural e científico, enquadrados nas linhas de investigação existentes na CAC-CV, quais sejam: a) Cultura, Línguas e Literaturas; b) Legado de Amílcar Cabral, Ciências Agrárias e Ambientais; c) Ciências Sociais, Humanas e Pedagógicas.

2. A DRC-CAC, numa primeira fase, tem periodicidade anual, devendo a saída da revista coincidir com o aniversário da Uni-CV e da CAC-CV, celebrado a 21 de Novembro de cada ano.

3. A DRC-CAC respeita a lei de imprensa vigente em Cabo Verde, a deontologia no tratamento das matérias, os princípios que regem uma investigação científica, a originalidade dos textos publicados, as linhas de investigação definidas pela Cátedra Amílcar Cabral.

4. Editor: Cátedra Amílcar Cabral

5. Director: Prof. Doutor Manuel Veiga

Atribuição: representa a revista e coordena todas as etapas da sua produção, divulgação e financiamento.

6. Sub-Director: Mestre Paulo Lima

Atribuição: coadjuva e substitui o Director nas suas funções.

7. Conselho Editorial:

Prof. Doutor Manuel Veiga

Prof. Doutor Arlindo Mendes

Doutora Crispina Gomes

Prof. Doutora Dora Pires

Mestre Nélida Brito

Mestre Paulo Lima

Atribuição: avalia a qualidade científica das contribuições, com base nos pareceres do Secretariado e Redacção e, eventualmente, de um ou

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Revista Desafios

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Apresentação

outro membro do Conselho Consultivo; aprova o conteúdo de cada número.

8. Secretariado e Redacção:

Prof. Doutor Manuel Veiga

Doutora Crispina Gomes

Mestre Paulo Lima

Mestre Nélida Brito

Doutoranda Arminda Brito

Atribuição: recebe os trabalhos, organiza-os, em conformidade com as linhas de investigação; faz a primeira revisão; submete o conteúdo ao Conselho Editorial para aprovação, acompanhado do competente parecer. Havendo dúvidas, submete as contribuições à apreciação de um ou mais membros do Conselho Consultivo. Pode recorrer a competências reconhecidas e que não fazem parte do Conselho Consultivo. Deve ainda assegurar o seguimento da impressão junto da gráfica, bem como o marketing de cada número.

9. Conselho Consultivo:

Prof.Doutora Amália de Melo Lopes (sociolinguística e ensino de línguas)

Prof. Doutor Bartolomeu Varela (direito e ciências de educação)

Prof. Doutor Carlos dos Anjos (ciências sociais)

Prof.Doutor Carlos Rodrigues Spínola (ciências de educação)

Prof. Doutor Daniel Medina (língua portuguesa)

Prof. Doutor Eduardo Adilson Camilo Pereira (história)

Prof. Doutor Germano Lima (pedagogia)

Prof. Doutor João Lopes Filho (património cultural)

Prof. Doutor José Esteve Rei (literatura)

Prof. Doutor Lourenço Conceição Gomes (história)

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Apresentação

Prof. Doutora Fátima Fernandes (literatura)

Doutoranda Arminda Brito (cultura e literatura)

Mestre Dejair Dionísio (literatura)

Mestre Emanuel de Pina (língua portuguesa e caboverdiana)

Mestre Maria dos Reis Gomes (pedagogia)

Mestre Paulo Moreno (língua francesa)

Mestre Octávio Cândida Francisca (filosofia)

A Fundação Amílcar Cabral indicou os Combatentes da Liberdade da Pátria Doutor Corsino Tolentino e Carlos Reis para integrarem este Conselho.

Atribuição: sempre que solicitados, individual ou colectivamente, os membros do Conselho Consultivo podem dar pareceres sobre a qualidade cultural, técnica e científica dos trabalhos submetidos para publicação. Por área de competência, os trabalhos serão enviados, para conhecimento, aos membros do Conselho e estes, dentro do prazo fixado, podem, querendo, pronunciar-se sobre o trabalho enviado. O não pronunciamento, no prazo estabelecido, deixa entender que não há nenhuma observação a ser feita.

10. Colaboradores Permanentes:

Todos os membros da CAC-CV e todos os académicos do sistema Uni-CV.

11. Colaboradores Nacionais Potenciais:

Todos os académicos e personalidades de reconhecido mérito.

12. Colaboradores Estrangeiros Potenciais:

Doutor Julião Soares Sousa, Investigador na Universidades de Coimbra; Prof. Doutor Carlos Cardoso (da Codesria); Jornalista Carlos Lopes Pereira; Prof. Doutora Simone Caputo, da Universidade de S.Paulo; Presidente da Cátedra de Estudos Africanos Amílcar Cabral da Universidade de Havana, senhora Maria del Carmen Masedo; Prof. Doutor Leopoldo Amado.

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Revista Desafios

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Apresentação

13. Alguns Aspectos Normativos:

A Cátedra reserva o direito de não publicar os trabalhos que estão fora das linhas de investigação por ela definidas, os trabalhos que merece-rem avaliação negativa (e fundamentada) por parte do Secretariado ou de membros do Conselho Consultivo, ou da Fundação Amílcar Cabral, ou de especialistas de reconhecido mérito que, porventura, forem consultados.

Também pode não publicar os trabalhos cuja extensão não atinge ou extravasa o limite fixado. O limite mínimo são cinco páginas e o máximo 20 páginas, excepto para o primeiro número e os números especiais ou temáticos onde há mais flexibilidade.

As margens à esquerda e à direita devem ser de 2,5cm; o espaça-mento entre as linhas: normal (1cm); o tipo de letra: Arial 12.

Todos os artigos devem, obrigatoriamente, ter um resumo na língua em que os mesmos são escritos. Aconselha-se que o resumo esteja tam-bém numa ou duas outras línguas de grande difusão.

As línguas da Revista são: o caboverdiano, o português, o inglês, o francês e o espanhol. Os autores de artigos em língua estrangeira devem responsabilizar-se pela respectiva revisão.

Cada número da Revista pode ter um mínimo de 100 e um máximo de 500 páginas, com excepção para os números especiais ou temáticos.

A periodicidade é anual, podendo haver números especiais ou te-máticos que fogem à calendarização estabelecida.

A organização de cada número será de acordo com as linhas de in-vestigação da Cátedra, ou seja: 1) Línguas, Cultura e Literatura; 2) Legado de Amílcar Cabral, Ciências Agrárias e Ambientais; 3) Património Cultural, Ciências Sociais, Humanas e Pedagógicas. Poderá haver números temáti-cos sobre uma determinada linha de investigação, se houver conveniência e material para o efeito.

O Director da CAC-CV O Sudirector da CA-CV

Manuel Veiga (PhD) Paulo Lima (Mestre)

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Revista Desafios

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Deliberação Nº 025 - CONSU/2012

DELIBERAÇÃO Nº 025-CONSU/2012

Sumário: Cria a Cátedra Amílcar Cabral e aprova o respectivo regulamento

Considerando que Amílcar Cabral é, a nível de Cabo Verde, da África e do mundo, um dos grandes pensadores e humanistas da época contem-porânea;

Considerando o papel decisivo desempenhado por Amílcar Cabral, enquanto político humanista, diplomata e homem de cultura, na luta pela libertação nacional e emancipação dos povos oprimidos;

Tendo em conta que a promoção do legado político, científico e cultural de Amílcar Cabral implica a assunção do desiderato da afirmação, valorização e desenvolvimento da cultura cabo-verdiana, em particular, da cultura africana e mundial, em geral, constituindo, desiderato que está em conformidade com a missão e os fins estatutários da Universidade de Cabo Verde,

O Conselho da Universidade, reunido em sessão extraordinária no dia 18 de Outubro de 2012, delibera, ao abrigo do disposto da alínea d) do artigo 25º dos Estatutos da Universidade de Cabo Verde, o seguinte:

1.É criada, na Universidade de Cabo Verde, por tempo indetermi-nado, a Cátedra Amílcar Cabral, que se rege pelo regulamento anexo1 à presente deliberação, de que faz parte integrante e baixa assinado pelo Reitor da Uni-CV.

2. A presente deliberação entra imediatamente em vigor.

Praia, 19 de Novembro de 2012.

Conselho da Universidade,

______________________________

Paulino Lima Fortes

Reitor

1 Ver a publicação do Regulamento na secção Anexo.

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A Cátedra Amílcar Cabral na Uni-CV

A Cátedra Amílcar Cabral na Uni-CV: Um Espaço para a Afirmação e a Valorização do Humanismo, da Caboverdianidade e do Legado de Amílcar Cabral

SE. Senhor Primeiro-Ministro

Senhor Ministro do Ensino Superior, Ciência e Inovação

Magnífico Reitor e Altos Dirigentes da Uni-CV

Senhor Presidente da Fundação A. Cabral e Altos Dirigentes da mesma Fundação

Senhora Ana Maria Cabral

Senhoras e Senhores Dirigentes e Coordenadores do Sistema Uni-CV

Senhoras e Senhores Membros da Comissão Instaladora da CAC-CV

Senhor Doutor Julião Sousa Soares – convidado da Uni-CV para proferir a aula magna

Senhores Docentes e Investigadores

Caros Estudantes

Minhas Senhoras, Meus Senhores,

Na qualidade de Presidente da Comissão de Instalação da Cátedra Amílcar Cabral, na Uni-CV, pediram-me que fizesse uma intervenção-balanço do processo que conduziu à criação da instituição e da sua subsequente instalação.

O projecto da criação da Cátedra Amílcar Cabral (CAC-CV) é uma ideia que levou algum tempo a ganhar maturação e que contou com o entusiasmo e a abertura do actual Magnífico Reitor, bem como do seu antecessor, de alguns dirigentes e de docentes da Uni-CV, e ainda do interesse manifestado pela Doutora Crispina Gomes, então Embaixadora de Cabo Verde em Cuba, onde existe uma Cátedra de Estudos Africanos Amílcar Cabral, de que ela é membro honorário.

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Revista Desafios

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A Cátedra Amílcar Cabral na Uni-CV

A primeira declaração pública no sentido da criação da Cátedra Amílcar Cabral aconteceu a 17 de Janeiro de 2012 quando, por determinação do actual Reitor, o então Presidente do Conselho Directivo do Departamento de Ciências Sociais e Humanas, Prof. Doutor Manuel Brito Semedo (hoje Vice-Reitor), foi mandatado a anunciar, durante uma jornada de estudos sobre Amílcar Cabral, que a Cátedra ia ser criada e instalada por ocasião do 88º aniversário natalício de AC, que aconteceria a 12 de Setembro do corrente ano.

Posteriormente, a Direcção da Uni-CV entendeu que a criação da Cátedra poderia ficar ligada, também, a Janeiro de 2013, altura em que se completam 40 anos do assassinato de Amílcar Cabral.

Considerando que a 21 de Novembro celebra-se o VI aniversário da Uni-CV e, ainda, a abertura solene do ano académico 2012-2013, entendeu-se que seria uma data significativa para, no quadro dos dois acontecimentos históricos atrás referidos, proceder à criação e instalação da Cátedra Amílcar Cabral, um espaço para promover a afirmação e a valorização do humanismo, da caboverdianidade e do legado de Amílcar Cabral.

Para dar corpo a este projecto, o Magnífico Reitor, pelo despacho nº067/2012, de 29 de Maio, criou a Comissão Instaladora da Cátedra Amílcar Cabral.

A Comissão, presidida por mim, é integrada por:

• Prof. Doutor Arlindo Mendes (hoje, Presidente do CD do DCSH)

• Prof. Doutor Carlos dos Anjos (Coordenador de Mestrados e Dou-toramentos em Ciências Sociais e Humanas)

• Prof. Doutor Lourenço Gomes (Coordenador de História)

• Mestre Octávio Cândida Francisca (Coordenador de Filosofia)

• Doutoranda Arminda Brito (Professora de Cultura Caboverdiana)

• Doutora Crispina Gomes (Membro e um dos dirigentes da Funda-ção A.C)

De acordo com o despacho reitoral, competia à Comissão propor:

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A Cátedra Amílcar Cabral na Uni-CV

a) Os fundamentos que justificam a criação da Cátedra Amílcar Ca-bral;

b) A estrutura de funcionamento da Cátedra;

c) Os objectivos da Cátedra;

d) O programa de funcionamento a curto prazo e linhas gerais de actuação a médio e longo prazos;

e) O Regulamento de funcionamento da Cátedra;

f) O desenho da cerimónia de instalação;

g) A proposta de membros fundadores.

Não pretendo dar-vos conta de todo o trabalho da Comissão porque isto seria maçador e o tempo de que disponho não me daria para tal. Apenas, gostaria de, resumidamente, falar-vos de alguns dos instrumentos de instalação, preparados pela Comissão, e que considero essenciais para a criação da Cátedra, quais sejam: os fundamentos que justificam a criação da Cátedra e do Patrono escolhido; a estrutura de funcionamento; os objectivos e o programa indicativo; alguns aspectos fundamentais do Regimento.

A Comissão trabalhou num horizonte temporal que vai de Junho-Setembro 2012, em reuniões presenciais, mas também com recurso às novas tecnologias. Tanto durante o período de avaliação como o de férias, a Comissão teve que fazer uma engenharia do tempo para poder corresponder ao fim por que foi criada e, felizmente, conseguiu respeitar os prazos estabelecidos.

Assim, no concernente aos Fundamentos para a criação da Cátedra, com um forte pendor cultural, foi produzido um documento que diz:

É a importância e a abrangência da cultura, em todos os planos do humanismo, que levaram o pensamento arguto de Amílcar Cabral a considerá-la como “síntese dinâmica no plano da consciência” da realidade histórica, material, espiritual, bem como das relações do homem com a natureza e/ou com as categorias sociais (cit.).

Para Amílcar Cabral, a cultura é um modo de ser e de estar que

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A Cátedra Amílcar Cabral na Uni-CV

o homem cria para a satisfação das suas necessidades próprias e as do ambiente em que vive. Pela cultura o homem humaniza a natureza, espiritualiza a humanidade, engendra o desenvolvimento, preserva e valoriza o legado da história, da sua história.

Ora, o que em grande medida justifica a existência de uma Universidade é, sem dúvida, a promoção e a divulgação do conhecimento, em matéria da cultura endógena, humanística, técnica e científica. Daí a pertinência e a importância da criação de uma Cátedra, na Uni-CV. Aliás, numa Universidade onde a formação, a valorização dos recursos humanos, nos mais diversos domínios, bem como a produção, a comunicação, a projecção e a extensão de conhecimentos fazem parte do seu projecto académico, uma Cátedra, com forte pendor cultural e científico, deixa de ser uma medida simplesmente administrativa para ser um dos fundamentos da existência da instituição, e uma exigência do humanismo, da ciência, do conhecimento e do desenvolvimento integral e sustentado.

Assim, a Cátedra vai contribuir para um maior dinamismo cultural e científico na Uni-CV, fazendo com que ela continue a ser uma instituição com ambição académica cada vez mais exigente, mais elevada, mais qualificada e profundamente enraizada nos valores do humanismo, da ciência, da técnica, da arte e do desenvolvimento.

Quanto às razões que justificam o patrono escolhido, a Comissão foi unânime em considerar que, em Cabo Verde, poucos terão teorizado a cultura, de forma tão sábia e tão abrangente, como fizera Amílcar Cabral.

E um homem com a visão cultural de Amílcar Cabral só pode presti-giar uma cátedra que leva o seu nome. Além disso, a Uni-CV, ao escolhê-lo como patrono da Cátedra, não só presta-lhe uma merecida homenagem, como também sufraga as ideias por ele defendidas e reconhece que o seu legado merece ser estudado, interpretado, enriquecido, divulgado e preservado.

Um outro instrumento importante para a instalação da Cátedra é o Regulamento. Vejamos alguns elementos essenciais como a natureza da cátedra (artigo 2º); os objectivos (artigo 5º); os Órgãos (artigo 13º) e os Membros (art. 10º).

Diz o artigo 2º, sobre a Natureza da instituição:

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A Cátedra Amílcar Cabral na Uni-CV

«A Cátedra Amílcar Cabral é um espaço académico com natureza de centro de investigação e extensão de carácter trans, pluri e interdisciplinar que, em estreita colaboração e sintonia com outras estruturas académicas da Uni-CV, promove a investigação, a formação e a extensão do conhecimento, em matéria de cultura, em geral, bem como o resgate e a promoção da história e do património caboverdianos, em particular, e, ainda, do pensamento e da obra Amílcar Cabral, designadamente como humanista, homem de cultura, político e dirigente de libertação nacional, diplomata e agrónomo».

Isto significa que o chão cultural de actuação da Cátedra é plural, é multidisciplinar, é interdisciplinar.

Para cumprir, cabalmente, estes objectivos, o Regulamento prevê, no artigo 13º, a seguinte Estrutura:

a) O Conselho Directivo (formado, nos termos do artigo 14º pelo Director da Cátedra e pelos Coordenadores das Linhas de Investigação e ainda, por dois vogais).

b) O Conselho Consultivo (formado, nos termos do artigo 17º por 10 a 20 membros, designados, por deliberação do Conselho da Universidade, por proposta do Reitor, de entre docentes e in-vestigadores detentores do grau de doutor ou de mestre, ou ainda de personalidades de reconhecido mérito científico, académico ou profissional, pertencente ou não aos quadros de pessoal da Uni-CV.

Desde que tenha um número de membros superior a 25 membros, a Cátedra terá, obrigatoriamente, uma Assembleia-Geral, órgão delibera-tivo constituído por todos os membros da CAC-CV, com competência para deliberar sobre os assuntos mais relevantes da vida da Cátedra, designa-damente:

1. Planos de Actividades anuais ou plurianuais;

2. Relatório anual de gestão e contas;

3. Alteração do regulamento da CAC-CV;

4. Definição da Agenda de Investigação da Cátedra.

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A Cátedra Amílcar Cabral na Uni-CV

Finalmente, um outro instrumento importante para a instalação da CAC-CV é a proposta das linhas mestras de um programa indicativo. A curto prazo, a Comissão Instaladora sugere aos futuros órgãos directivos da CAC-CV:

1. Elaboração do programa anual (2012-2013);

2. Apresentação do Regulamento junto de algumas entidades nacionais e estrangeiras;

3. Promoção do concurso para a criação do logotipo da Cátedra;

4. Seguimento ao programa anual (2012-2013).

Como Proposta Indicativa de Actividades a Médio e Longo Prazos, a Comissão deixa, também, as seguintes sugestões para a Direcção da Cátedra:

1. Promover e estimular, junto das estruturas académicas da Uni-CV, a formação a investigação, em áreas da cultura e da história ca-boverdianas; das ciências sociais e humanas, agrárias e ambientais, bem como ainda do legado e pensamento de Amílcar Cabral;

2. Promover debates, tertúlias, conferências, mesas-redondas, se-minários e colóquios sobre as áreas de intervenção da Cátedra;

3. Celebrar efemérides importantes ligadas à cultura, à história e ao patrono da Cátedra;

4. Identificar as redes e as rotas de investigação, nas áreas cober-tas pela Cátedra e nelas integrar;

5. Propor a atribuição de prémios académicos (bolsas, publicação, diploma de Doctor Honoris Causa);

6. Trabalhar no sentido da criação de um Centro Especializado de Documentação sobre a Cultura Caboverdiana e sobre Amílcar Cabral;

7. Trabalhar no sentido da criação ou da refundação de uma revista cultural e de sites, para divulgação on line.

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A Cátedra Amílcar Cabral na Uni-CV

Devo ainda acrescentar que a Comissão sugeriu alguns nomes para sócios fundadores e para sócios honorários. A proposta de sócios fundadores foi aceite e alargada. A de sócios honorários será, sem dúvida, analisada, futuramente, em instância própria.

Senhores Ministros, Magnífico Reitor, Senhoras e Senhores,

Em traços largos, este é o balanço sobre os instrumentos de instalação da Cátedra Amilcar que a Comissão que tenho a honra de presidir preparou e apresentou, a 24 de Setembro próximo passado, ao Magnífico Reitor. Este, tendo acolhido favoravelmente a proposta da Comissão, submeteu-a à consideração do Conselho da Universidade que, em deliberação (de 18 de Outubro de 2012) aprovou a criação da Cátedra Amílcar Cabral e o respectivo Regulamento, depois de introduzir alguns melhoramentos.

A todos muito obrigado.

Manuel Veiga, Ph.D.

Praia, aos 21 de Novembro de 2012

(Presidente da Comissão para a Instalação da Cátedra Amílcar Cabral)

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Palavras do Reitor

PALAVRAS DO MAGNÍFICO REITOR, PROF. DOUTOR PAULINO LIMA FORTES, NO ACTO DE EMPOSSAMENTO DA CÁTEDRA AMÍLCAR CABRAL NA Uni-CV

PALAVRAS DO MAGNÍFICO REITOR, PROF. DOUTOR PAULINO LIMA FORTES, NO ACTO DE EMPOSSAMENTO

DA CÁTEDRA AMÍLCAR CABRAL NA Uni-CV

Esta sessão tem como culminar um acto importante, a instalação da Cátedra Amílcar Cabral e declaração do ano lectivo sob o signo de Cabral.

Neste ano lectivo, a 20 de Janeiro, Cabo Verde, Guiné-Bissau, África e o mundo completam 40 anos sem Cabral.

É com sentimento de grande orgulho e de bem-estar a cumprir o seu papel, que a Universidade de Cabo Verde dota o país de um Centro de Investigação sobre o pensamento e a acção do fundador da nossa nacionalidade. Um espaço de investigação e de debate académico, sem messianismos nem sebastianismo, aliás de todo desnecessário à dimensão de Amílcar Cabral. Um espaço de digressões científicas pelos axiomas lançados por um académico, humanista, apaixonado pelos voares de igualdade e fraternidade entre os Homens. Lutou, com todas as suas armas, pela dignidade

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Palavras do Reitor

do africano, para que este fosse e seja cidadão de primeira do mundo e nunca cidadão de segunda da Europa, da América ou da Ásia, ou ainda da própria África.

Cada um di nos ê um Cabral – dizia o poeta santacatarinense, Norberto Tavares, no seu definitivo hino “Nos Cabo Verdi di Speransa”. A Cátedra Amílcar Cabral tem como missão fornecer-nos elementos científicos para que, com inspiração cabraliana, realizemos, a todos os níveis, o sonho da independência.

Cabral que, através da arma da poesia, chamou a Mamãi velha – mulher nação, para acompanhá-lo até ao portão (Porton di nos ilha) para ouvir o bater da chuva. Sigamos pois Cabral até ao portão da nossa ilha-arquipélago-nação para ouvir o bater da chuva que não vem apenas do céu mas vem do mar, com os recursos da pesca e da aquacultura, vem do sol e do vento, em forma de energias renováveis, vem da terra com as estradas e barragens e a agricultura com novas técnicas, dos campos, com novas e melhoradas raças de gado e com o tratamento e a certificação dos produtos agro-pecuários; vem com as conexões ao mundo e às nossas comunidades; vem com a nossa infinita morabéza que irradiamos na nossa língua, na nossa música, decalcamos em cada produto das nossas mãos e trazemos no bater dos nossos corações. Sigamos Cabral no desenvolvimento destas.

Um muito obrigado a todos por virem comungar connosco esse tempo da universidade que é de todos.

Ao Presidente Pedro Pires, pelo carinho que tem pela Uni-CV e à Fundação Amílcar Cabral, parceira de primeira hora;

Ao Primeiro-Ministro que, como sempre, distingue a Uni-CV com uma atenção desvelada, mostra da confiança nesta instituição e no papel basilar desta universidade nos sistemas de educação, ciência e tecnologia de Cabo Verde;

Ao Sr. Ministro do Ensino Superior, Ciência e Inovação, pelo constante acompanhamento nas alegrias e nos momentos menos alegres;

Aos nossos ilustres convidados: aniversários celebram-se em

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Palavras do Reitor

família. Um muito obrigado por estarem aqui. Obrigado pela vossa amizade;

Ao Prof. Julião Soares, que aceitou o nosso convite para partilhar connosco a sua experiência científica com Amílcar Cabral, na aula inaugural do presente ano lectivo. Agradeço a vossa amável atenção à mesma;

Ao Prof. Manuel Veiga e colegas da Comissão instaladora da Cátedra, que não pouparam qualquer esforço para que hoje houvesse a sua instalação. Um obrigado especial por ter aceite dirigir a Cátedra;

Um especial obrigado à Doutora Crispina Gomes por ter-nos sugerido a criação da Cátedra;

A Uni-CV agradece, por minha via, à equipa dirigente: vice-reitores, pró-reitores, administradora geral, presidentes e vogais de conselhos directivos de unidades orgânicas, directores de centros e de serviços, coordenadores de curso;

Aos docentes e investigadores, um especial obrigado pelo cumprimento do seu papel de charneira do sistema.

Os estudantes merecem agradecimentos muito especiais. Sabem que são pioneiros num projecto que ainda tem muitas arestas a limar. Isso implica sacrifícios, também da sua parte. E têm sido motivo de orgulho da Uni-CV, interna e externamente.

A Uni-CV não é um sistema isolado: evoluímos graças a uma vasta rede de parcerias públicas e privadas, nacionais e estrangeiras. Não conseguiríamos enumerar todas, pelo que a todos endereçamos um profundo obrigado.

A todos um grande Bem Hajam!

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Fundação Amílcar Cabral-Mensagem do presidente Pedro Pires

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Fundação Amílcar Cabral-Mensagem do presidente Pedro Pires

FUNDAÇÃO AMÍLCAR CABRAL – MENSAGEM DO PRESIDENTE PEDRO PIRES

Senhor Primeiro-Ministro,

Senhor Ministro do Ensino Superior, Ciência e Inovação,

Magnífico Reitor,

Exma. Senhora Ana Maria Cabral,

Senhor Presidente do Conselho Directivo do DCSH,

Senhor Director da Cátedra Amílcar Cabral,

Senhoras e Senhores Membros da Direcção da FAC,

Senhor Professor Dr. Julião Sousa Tavares,

Senhores Professores e Formandos da UNICV,

Ilustres Convidados,

Caros Amigos e Amigas:

Apraz-me, desde logo, agradecer ao Magnífico Reitor, Dr. Paulino Lima Fortes, pelo seu amável convite e pela oportunidade que nos ofereceu para participar nesta cerimónia da instalação da Cátedra Amílcar Cabral, nesta Universidade.

Manifesto, em seguida, o meu reconhecimento à Direção da Fundação Amílcar Cabral, que presido, por esta iniciativa inovadora e oportuna, com a qual se congratula, pois, o objectivo primário da FAC é precisamente difundir o conhecimento e o estudo da obra e da praxis política de Amílcar Cabral, enquanto pensador e líder político, portador de uma visão estratégica e de um desígnio emancipador para o nosso país e para a Nova África.

Tive, pessoalmente, o privilégio de conviver e de aprender com Amílcar Cabral, pois, participei na nossa Luta de Libertação, com ele e sob a sua liderança inteligente, lúcida e de alcance estratégico. Guardo muito dos ensinamentos que aprendi desse relacionamento extremamente fecundo.

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Fundação Amílcar Cabral-Mensagem do presidente Pedro PiresFundação Amílcar Cabral-Mensagem do presidente Pedro Pires

Recorro aqui, a dois conceitos que Amílcar Cabral usava frequentemente, porventura decorrentes da sua própria formação académica de agrónomo: fecundação e fecundo. Assim, auguro que a instalação desta Cátedra seja uma opção e uma ferramenta de pensamento e de formação deveras fecunda.

A Fundação Amílcar Cabral, por sua vez, vem trabalhando na intenção de fazer a recolha de documentação diversa e de testemunhos sobre a vida e obra do seu ilustre patrono. Para este fim, dispõe de um Centro de Documentação, cujo acervo estará à disposição da Cátedra. No mesmo sentido, tem estado a desenvolver actividades de cooperação com instituições homólogas africanas, europeias e americanas. Ainda, tem vindo a desbravar caminhos neste campo de cooperação horizontal, na intenção da constituição de uma ligação em rede com diversas instituições interessadas, o que contribuirá para a diversificação e o enriquecimento do património documental comum.

Na mesma área de cooperação, vejo com muita esperança e simpatia o estabelecimento de relações de cooperação entre a FAC e a UNI-CV, o que pode representar um passo inestimável de apoio à materialização dos objetivos da FAC, uma contribuição para seu maior prestígio e, ainda, uma mais-valia para ajudar a assegurar a continuidade e a sustentabilidade, enquanto instituição depositária da memória e como Centro de Documentação e de Investigação.

Para além da preservação do fecundo legado deixado por Amílcar Cabral, a FAC tem na sua agenda um projeto de Memórias e História, que consiste na recolha, registo e tratamento de depoimentos e testemunhos dos que lutaram pela libertação do nosso país e dos primeiros construtores dos fundamentos do Estado soberano de Cabo Verde.

Estamos, porém, cientes de que não devemos centrar a nossa acção exclusivamente em feitos e glórias do passado, sobretudo num tempo de mudanças sucessivas e de incertezas, em que é imprescindível interrogar-se e antever minimamente o futuro que nos espera. Deste modo, impõe-se-nos que criemos e nos apropriemos de instrumentos e de capacidades essenciais de antevisão e de prospectiva. Aliás, hoje, está mais do que evidente que é imperioso buscar e dispor de uma certa capacidade de previsão e de antecipação, a fim de se evitar desastres maiores nos campos da política, da segurança humana, da economia e

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Fundação Amílcar Cabral-Mensagem do presidente Pedro Pires

das finanças. Impõe-se evitar que se esteja, constantemente, a fazer o papel de bombeiro, obrigado a agir reactivamente, logo, com atraso, para corrigir ou remendar estragos já consumados. É fundamental dispor-se, no mínimo, de uma unidade operativa para estudos estratégicos.

Nos últimos meses, tenho sido solicitado para participar em reflexões e debates no âmbito de actividades preparadas por organismos da União Africana e da ONU. Tenho procurado aproveitar estas oportunidades para introduzir e divulgar alguns dos princípios propostos por Amílcar Cabral. Passo a citar dois de entre eles: a autonomia de acção e de pensamento e a visão, numa perspectiva libertadora, do desenvolvimento institucional, económico, financeiro, social e cultural africano. Tenho interpretado estas duas ideias da seguinte forma:

a) Primeiro, na senda da autonomia de pensamento reivindicada, impõe-se que mudemos da condição de meros “consumidores” despreocupados1, em que geralmente nos colocamos, para a condição de “produtores” empenhados na busca de valores éticos, de ideias, de bens materiais e de tecnologias.

b) Segundo, os processos africanos de desenvolvimento, lato senso, devem estar orientados e projetados numa “perspectiva libertadora” de longo prazo, cientes de que a independência não é o mesmo que a libertação. Com efeito, a independência representa um momento histórico pontual enquanto que a libertação consiste num processo complexo e de longo prazo, cujo objetivo deverá ser a eliminação progressiva dos principais laços de dependência africana nos campos científico, tecnológico, económico, alimentar, financeiro e de gestão.

Estas opções políticas de fundo são obrigatoriamente voluntaristas, árduas e portadoras de muita responsabilidade e de riscos, quer individual, quer colectivamente. Pressupõem políticas públicas orientadas para a sua apropriação mental e a sua realização material. Além do mais, exigem dos cidadãos uma percepção correta da realidade nacional e dos recursos nacionais, bem como, a fixação de prioridades políticas, educacionais, infra-estruturais, económicas e financeiras pertinentes e correctas, tendo como suporte uma governança legítima, competente e eficaz.

1 Estão em causa o mimetismo e a alienação que marcam o comportamento político de muitas elites africanas.

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Fundação Amílcar Cabral-Mensagem do presidente Pedro PiresFundação Amílcar Cabral-Mensagem do presidente Pedro Pires

Atualmente e por todo lado, tem-se estado a falar muito de mudança de mentalidades e de atitudes. Mas, será que nos encontramos face a um momento de rutura com os valores e as regras dominantes? Contudo, não se pode ignorar nem os conflitos e a violência que grassam pelo mundo, nem a irracionalidade e iniquidade na utilização e partilha dos recursos do planeta, que geram enormes desigualdades. De todo modo, esta mudança de postura só pode significar maior solidariedade, mais sobriedade e responsabilidade social e a assunção efectiva, pessoal e colectiva, da unicidade e do destino comum da Humanidade. Ela reclama, ainda, do cidadão, individualmente, e da sociedade, no seu todo, o compromisso sincero com os desígnios do respectivo país, conscientes dos desafios com que este se confronta. Para além disso, deve estar determinado a realizar os esforços, individuais e colectivos, requeridos pela plena consecução dos objectivos legítimos, a que todos aspiramos.

Em tais circunstâncias, o que nos proporia Amílcar Cabral? Evidentemente, não posso responder por ele. Contudo, para Amílcar Cabral, a responsabilidade maior do combate libertador cabia ao colonizado em revolta. Porquanto, o colonizado liberta-se, por esta via, das sujeições, dos complexos e dos medos de que é portador, pela sua própria acção, durante e por superação dos esforços e sacrifícios impostos pela ação libertadora. Neste caso, se o princípio fosse transposto para o Cabo Verde actual, competiria aos cabo-verdianos a assunção das responsabilidades e das tarefas maiores na construção de um porvir de prosperidade e de justiça social, e ainda os encargos subsequentes de fazer o equacionamento e de construir as soluções para os constrangimentos e desafios com que o seu país se confronta. E, o que lhes (nos) restaria seria arregaçar as mangas e pôr as mãos à obra!

Também, estou certo de que exprimo o sentir da Família de Amílcar Cabral, dos seus Companheiros de Luta e do Conselho de Administração da FAC ao declarar, neste momento, que nos sentimos todos altamente honrados e gratificados com a instalação da Cátedra Amílcar Cabral na UNI-CV. E por isso, estamos muito agradecidos.

Aproveito o momento para saudar e felicitar o Professor Dr. Manuel Veiga pela sua escolha para dirigir a Cátedra Amílcar Cabral. Expresso-lhe a nossa plena disponibilidade de cooperação.

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Fundação Amílcar Cabral-Mensagem do presidente Pedro Pires

E, para concluir, reitero, aqui e agora, o compromisso da FAC em colocar à disposição da Cátedra e dos seus investigadores os recursos documentais de que é detentor.

Muito obrigado pela vossa atenção!

Praia, 21 de Novembro de 2012

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Vida e obra de Amílcar Cabral - Aula Magna Doutor Julião Soares Sousa

VIDA E OBRA DE AMÍLCAR CABRAL

(Aula Magna proferida pelo Doutor Julião Soares Sousa12, por ocasião da instalação da Cátedra Amílcar Cabral, na Universidade de Cabo Verde, Cidade da Praia, no dia 21 de novembro de 2012, e Pólo de S. Vicente, Mindelo, no dia 22 de novembro de 2012)

Sua Exª. Senhor Primeiro-Ministro

Sua Exª Sr. Ministro do Ensino Superior, Ciência e Inovação

Senhor Magnífico Reitor da Universidade de Cabo-Verde

Sr. Presidente do Conselho Diretivo do Departamento de Ciências Sociais e Humanas

Exº. Sr. Presidente da Fundação Amílcar Cabral

Sr. Diretor da Cátedra Amílcar Cabral

Distintos membros do Corpo Diplomático acreditados em Cabo Verde

Ex.mo Senhor Coordenador do Sistema das Nações Unidas

Distinto Corpo Docente da UNI-CV

Distintos membros e representantes de outras Universidades caboverdianas

Caros representantes da Fundação Amílcar Cabral

Distintos Combatentes da Liberdade da Pátria e companheiros de Amílcar Cabral

Ex.ma. Senhora Dr. Iva Cabral

Senhora D. Ana Maria Cabral

Distintas autoridades civis, académicas e militares

1 Investigador no CEIS20/Universidade de Coimbra

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Vida e obra de Amílcar Cabral - Aula Magna Doutor Julião Soares Sousa

Minhas Senhores e meus Senhores

Sinto-me, particularmente, honrado por ter sido convidado pela Universidade de Cabo Verde e pela Comissão Instaladora da Cátedra Amílcar Cabral para proferir esta Aula Magna, no âmbito da inauguração da Cátedra, da abertura solene do Ano Académico e, ainda, do dia da Universidade que hoje, dia 21 de novembro de 2012, se celebra.

Não resisto, por isso mesmo, em vos transmitir toda a emoção que me arrebata neste preciso momento em que me é concedida a palavra para falar sobre a vida e a obra de uma das personalidades mais marcantes da história do século XX da Guiné e de Cabo Verde, da África e do mundo – Amílcar Lopes Cabral. E começaria por destacar, antes de mais, que é aos vivos que cabe não só a responsabilidade, mas também o dever de preservar a memória, para que se (re) escreva a História e para que se cumpra o desígnio primordial dos povos e das nações – que é o do direito à História. De resto, foi para isso que o próprio Patrono da Cátedra que, em boa hora, se vai institucionalizar hoje, decidiu abandonar uma carreira de engenheiro agrónomo para enfrentar o colonialismo português.

Pode dizer-se que o dever de memória relativamente a Amílcar Cabral transformou-se praticamente num imperativo moral dos povos da Guiné e de Cabo Verde e de todos quantos, como ele, de forma altruísta, se coloca(ra)m, inteiramente, ao serviço da liberdade e da autodeterminação dos povos.

A Cátedra Amílcar Cabral que hoje se inaugura simboliza, a meu ver, o desejo coletivo de continuar Cabral, sendo, ao mesmo tempo, um sinal de resistência relativamente às alteridades e às ruturas do próprio tempo. Para os povos da Guiné e de Cabo Verde, que Amílcar Cabral serviu sem hesitações, configura, desde logo, um estigma identitário.

Tendo nascido e vivido na Guiné, entre 1924 e 1932, a primeira infância de Amílcar Cabral ficou marcada, como já se disse num outro estudo, por uma grande mobilidade no espaço interior (Guiné) a saber: entre Bafatá (1924-1927) e Geba (1927); uma deslocação a Cabo Verde no ano de 1929, onde teria permanecido com a mãe e os restantes irmãos maternos até 1930. Essa viagem teria sido aproveitada pelos progenitores já separados para batizarem Amílcar Cabral e as irmãs gémeas (Armanda e Arminda) na igreja de N. S.ª. da Graça em Dezembro de 1929; regresso

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à Guiné, designadamente a Bissau, onde Iva Pinhel Évora decidiu fixar residência, entre 1930 e 1932; e, finalmente, pela partida de Amílcar Cabral para Cabo Verde, nesse último ano, acompanhando o regresso definitivo do pai, Juvenal Cabral, depois de este ter apresentado o seu pedido de aposentação como professor primário. Fixaria o seu domicílio em Achada Falcão. É de salientar que a mobilidade também se vai produzir em Cabo Verde: mudança de Achada Falcão, onde o pai tinha levado o Amílcar e as irmãs Armanda e Arminda, depois de terem abandonado a Guiné, para a Cidade da Praia, o que ocorre quando a mãe, Iva Pinhel Évora, regressada da Guiné provavelmente em 1933, pôde obter a custódia dos filhos. Convém assinalar, no entanto, que estas mudanças sistemáticas de lugar e alguns problemas delas decorrentes acabaram por perturbar o início do seu processo de socialização escolar que teria lugar em Cabo Verde, mais concretamente na Cidade da Praia, prosseguindo em S. Vicente. É quase certo, igualmente, que nessa fase não tivesse criado ainda importantes vínculos com o território natal (a Guiné) como terei a oportunidade de assinalar mais adiante.

Talvez valha a pena enfatizar, ainda, que o percurso formativo de Amílcar Cabral também ficou marcado, outrossim, pelas seguintes fases: 1) pela assimilação da cultura portuguesa e da ideologia veiculada pelo regime colonial; 2) por uma fase que consideraria intermédia, isto é, de influências exógenas que estariam na base da sua tomada de consciência, mas que ainda não visavam o derrube do colonialismo português. Antes pelo contrário, é uma fase de ambiguidades, em que pontificam, ainda, três subfases: a) impactos e expetativas da Segunda Guerra Mundial; b) impactos na sua vida das crises e das fomes cíclicas do arquipélago; c) ligações de cumplicidade com o professor e Reitor do Liceu Gil Eanes, José Diogo Luiz Terry; 3) pela “reafricanização dos espíritos” ou se se quiser, negação do processo de assimilação e da subalternidade colonial; 4) pela fase que chamaria de pré-revolucionária – isto é, de constituição, conjuntamente com os colegas de outras colónias de Portugal em África, de organizações políticas unitárias de luta, tais como o Movimento de Libertação Nacional Colónias Portuguesas (MLNCP), Movimento Anticolonialista (MAC) e Frente Revolucionária Africana para a Independência Nacional (FRAIN). Estes movimentos unitários visavam a independência de todas as colónias portuguesas. Esta é também, sobretudo na sua etapa final, a fase da constituição de partidos e/ou de movimentos de libertação nacionais; 5) finalmente, a fase revolucionária e do Estado em construção, também com

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as suas várias subfases: a) preparação para a guerra; b) guerra propriamente dita; c) mudança de estratégia da guerra; d) busca de uma personalidade jurídica internacional.

É evidente que não terei tempo para abordar aqui todas as fases elencadas com a profundidade necessária, pelo que peço já as minhas sinceras desculpas pela abordagem muito sintética que vou adotar.

Assim, no que diz respeito à primeira fase (de assimilação), que abrange a frequência da escola primária e do liceu) direi, em síntese, que é a da interiorização forçada do discurso ideológico colonial e da noção de ser português, como aconteceu com muitos adolescentes e jovens da sua geração. Essa ideologia era veiculada nos programas curriculares, por exemplo, em disciplinas como a História, Português, Educação Cívica e Organização Política e Administrativa do Território.

Uma radiografia das matérias que nessas disciplinas eram ministradas e da frequência (e também da intensidade) com que eram lecionadas revela-nos a importância de duas delas (Português e História) no processo de assimilação e de desenvolvimento do sentimento nacional e orgulho pátrio.

No Decreto-Lei n.º 24 526, publicado no Boletim Oficial de Cabo Verde, a 12 de março de 1935, afirmava-se que o professor não deveria “esquecer que a aula de português” era “uma das aulas do liceu em que melhor” se poderia “desenvolver o sentimento nacional e formação moral do aluno”; o conhecimento ainda que casual e fragmentário de Portugal e da sua civilização (o Continente, as Ilhas e as Colónias) devia ser ministrado sobretudo através da leitura, por forma a gerar no espírito dos alunos o amor pátrio e orgulho de ser português”23.

Portanto, a escola que Amílcar Cabral frequentou, enquanto instituição, foi, ao tempo, mais um espaço privilegiado de assimilação do discurso ideológico colonial, a avaliar não só pelos programas curriculares, mas também pelos manuais escolares, e por um leque variado de atividades culturais que, por exemplo, se organizavam nas escolas. Entre elas, destaque-se: 1) a celebração das datas nacionais; 2) evocação da vida e obra dos grandes vultos da História Portuguesa, acontecimentos que eram aproveitados para a realização de exposições temáticas alusivas

2 Suplemento n,º 3, ao Boletim Oficial de Cabo Verde, n.º 10, de Março de 1935, p. 2.

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e que contavam sempre com a ativa participação de alunos. O objetivo primordial quer dos manuais escolares, quer das evocações das datas nacionais e da vida e obra dos grandes vultos era o de cimentar a ideia da Portugalidade una que ia do Minho a Timor.

Papel importante neste processo tinham os professores como agentes transmissores de uma cultura e de uma ideologia. Por isso mesmo, no tempo em que Amílcar Cabral frequentava o Liceu Gil Eanes eram obrigados a fazerem um juramento de que integravam a “ordem social estabelecida pela Constituição política de 1933, com ativo repúdio pelo Comunismo e de todas as ideias subversivas”3.4 Ou, por outro lado, a declararem que não pertenciam e “nem nunca” pertenceriam“ a associações ou institutos secretos”, conforme era definido no artigo 2º da Lei n.º 1901, de 21 de maio de 1935.

Além da componente científica, o liceu era muito ativo em termos culturais, desportivos e recreativos. Estas atividades também marcavam o processo de socialização e de alienação à cultura portuguesa. Sobre este assunto é importante relevar as visitas de estudo (à Capitania dos Portos, aos submarinos portugueses e ao navio Sagres), as excursões (à Ribeira do Julião, à Ribeira da Vinha e à Baía João d’ Évora) e os tradicionais recitais de poesia, cânticos e jogos de futebol.

Outro aspeto em torno do qual girava o processo de assimilação era a celebração das datas nacionais, como por exemplo o 10 de junho e o 1.º de dezembro (dia da Restauração), ou da vida e obra dos grandes vultos da História portuguesa (Infante D. Henrique, entre outros). Estas ocasiões eram sempre aproveitadas para se cantar o Hino Nacional e o do próprio liceu. Foi, por exemplo, no âmbito das comemorações do 1.º de dezembro de 1942 que Amílcar participou através da leitura do poema intitulado 1.º de Dezembro, alusivo ao dia da Restauração.

O próprio Amílcar Cabral chegou a reportar-se a este processo de assimilação, anos mais tarde (a 2 de Julho de 1966), em pleno fervor da luta armada de libertação nacional. Numa entrevista concedida aos microfones da Voz da Liberdade, emissora da oposição portuguesa sediada em Argel, assegurava que nunca foi português, embora tivesse havido um tempo na sua vida em que esteve convencido de que era português, porque assim

3 AHN (Praia) (A2) - Processo referente ao Liceu Gil Eanes contendo: portarias, notas e outros – novem-bro da 1942 – dezembro de 1943, Caixa n.º 240.

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lhe tinham ensinado quando era menino. “Mas depois aprendi – dizia ele - que não, porque o meu povo, a história da África, até a cor da minha pele... Temos que ter paciência, diabo! Não somos meninos não é? Aprendi que já não era português nada, não era português”4.5.

No capítulo das influências, já no sentido de consciencialização, mas que ainda não visava o derrube do regime colonial (isto é, a segunda fase) devemos destacar, durante a sua passagem pelo liceu, pelo menos três aspetos. O primeiro tem a ver com a própria cidade do Mindelo que, como se sabe, foi também, à época, um importante repositório de cultura. Foi aí que surgiram, de algum modo adstritos ao liceu, dois dos mais importantes movimentos culturais da contemporaneidade cabo-verdiana que atravessaram praticamente os sete anos que Amílcar Cabral passou no Mindelo. Referimo-nos ao movimento dos “Claridosos”, fundado em 1936, e à sua revista Claridade; e à “Academia Cultivar”, fundada em 1944, e à sua revista Certeza. Nos anos finais do liceu Amílcar Cabral teria, inclusivamente, apresentado a sua candidatura a esta última.

Em segundo lugar, a relação de amizade com José Diogo Luiz Terry, licenciado em Direito e Ciências Histórico-Filosóficas e que obteve licença para advogar na colónia em 1940. A sua chegada e tomada de posse do cargo de professor efetivo do 5.º grupo em 1939 é assinalada por vários contemporâneos de Amílcar Cabral como sendo um dos acontecimentos mais marcantes para a vida do liceu e quiçá do próprio Amílcar Cabral. Sobretudo depois de assumir, a 20 de maio de 1940, o cargo de Reitor em substituição interina de Joaquim Jaime Simões que tinha pedido exoneração a 2 de maio de 1940. Foi o próprio Joaquim Jaime Simões quem, de partida para a metrópole em gozo de licença graciosa, propôs o professor de origem goesa para seu substituto. Apesar de ter regressado a S. Vicente e de se ter apresentado no liceu em janeiro de 1941, Terry manteve-se no lugar até ao ano letivo de 1945/46.

De acordo com alguns contemporâneos, a cumplicidade entre Amílcar Cabral e o seu professor e Reitor era muito grande a ponto de no ano em que aquele terminou o 7.º ano com mérito (17 valores), foi o próprio Terry quem sugeriu à repartição dos serviços de Administração Civil da Praia, em agosto de 1944, o nome do seu discente como um dos eventuais estagiários em Portugal na área da agricultura, devendo auferir 4 Excerto de uma entrevista à Rádio Voz da liberdade com Amílcar Cabral dirigindo algumas palavras aos democratas e progressistas portugueses, Argel, 1966.

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um subsídio mensal de 350$00 a ser atribuído pelo próprio liceu. A aposta em enviar bolseiros e estagiários de profissões técnicas e manuais de que o arquipélago tanto carecia parecia ser uma nova estratégia do Liceu Gil Eanes e do seu Reitor. De resto, no ano anterior (1943), num relatório assinado pelo próprio punho de José Diogo Luiz Terry, datado de S. Vicente, 17 de novembro, dava-se conta de que, sensivelmente, um mês antes (outubro) quatro bolseiros com menos de 18 anos tinham sido enviados para a Escola de Capatazes agrícolas D. Diniz de Paiã (Lisboa, Portugal)5.6. Entre os eleitos encontravam-se jovens naturais de S. Antão, S. Nicolau, Fogo e Santiago, “por se tratar de ilhas agrícolas e onde a sua atividade” poderia “ser mais profícua”6.7. A aposta do Reitor Terry passava também pela formação, através de cursos de Preparação Pedagógica e do envio de bolseiros para estágios na área de construção civil, uma área que na colónia não contava com “nenhum artífice”7.8Tudo isso graças ao Fundo Pedagógico e às bolsas de estudo. A ideia era “equipar a Colónia de mesteirais” que promovessem “o desenvolvimento de especialidades técnicas de que tanto se necessita e tragam ao plano de realização [de] riquezas potenciais de que o Arquipélago dispõe”8.9O Reitor também não teve dúvidas em assinalar que, pese embora os magros recursos disponíveis, a sua boa administração poderia “animar um promissor aproveitamento de aptidões naturais que doutra forma se estiolariam por carência de possibilidades económicas”9

10. É neste quadro que, na minha perspetiva, se inscrevem as diligências ulteriores do professor e Reitor Terry junto do Governador, Amadeu Gomes de Figueiredo, relativamente à situação de Amílcar Cabral. Quanto a esta diligência o Governador teria anuído com a condição de Amílcar Cabral frequentar o curso de Medicina Veterinária. Contudo, Cabral não teria obedecido aos caprichos e aos alvitres do então Governador, pelo que simplesmente abandonou S. Vicente com destino à Cidade da Praia, onde se empregou como amanuense na Imprensa Nacional até 1945, ano em que concorreu a uma bolsa de estudo da secção de Cabo Verde da Casa dos Estudantes de império (CEI).

5 RPSAC (A2), 1945 – Divisão 6.ª Liceu Processo n.º 36, Fundo Pedagógico e Bolsas de Estudo, “Relatório”, CX. 241.6 RPSAC (A2), 1945 – Divisão 6.ª Liceu Processo n.º 36, Fundo Pedagógico e Bolsas de Estudo, “Relatório”, CX. 241.7 RPSAC (A2), 1945 – Divisão 6.ª Liceu Processo n.º 36, Fundo Pedagógico e Bolsas de Estudo, “Relatório”, CX. 241.8 RPSAC (A2), 1945 – Divisão 6.ª Liceu Processo n.º 36, Fundo Pedagógico e Bolsas de Estudo, “Relatório”, CX. 241.9 RPSAC (A2), 1945 – Divisão 6.ª Liceu Processo n.º 36, Fundo Pedagógico e Bolsas de Estudo, “Relatório”, CX. 241.

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Ora, a pergunta que se impõe é se Amílcar Cabral seria já nessa altura contra a imposição dos cursos aos candidatos à bolsa sem atender à vocação dos mesmos. Tudo leva a crer que sim, embora só o tivesse manifestado de forma explícita, anos mais tarde (em 1953), num artigo intitulado “O papel do estudante africano”, publicado na Présence Africaine. Nesse artigo insurgia-se contra a política de imposição dos cursos e sublinhava que a vocação apenas interessava, de uma forma geral aos estudantes que tinham condições económicas para custearem “por si próprios as despesas da sua educação”.

Tudo indica, portanto, que por detrás da desistência (ou da recusa, melhor dito) do curso de Medicina Veterinária estaria a questão vocacional. A sua experiência objetiva e subjetiva da situação do arquipélago, onde testemunhou o sofrimento do Homem cabo-verdiano em consequência do fenómeno da erosão, das persistentes secas e, por conseguinte, das fomes e da falta de iniciativas das autoridades coloniais compeliram-no a optar pelo curso de Agronomia. Portanto, uma escolha intencional com um único objetivo em mente: contribuir para minorar o sofrimento do povo cabo-verdiano. Corrobora esta tese o facto de a erosão, que em 1949 era vista pelo próprio Amílcar Cabral como o maior “inimigo do Homem em Cabo Verde” (Em Defesa da Terra”), e as preocupações relativamente aos temas sociais (fome, a miséria e a emigração) terem entrado, desde muito cedo, na trajetória literária e intelectual de Amílcar Cabral. Mormente nos escritos da adolescência (entre 1942 e 1944) e da juventude (1945-1949), acompanhando-o ao longo da sua formação universitária em Portugal e, mais tarde, enquanto profissional.

Embora atribuísse, na fase da adolescência a responsabilidade à natureza (erosão, seca e aridez) e ao Governo colonial, pela sua incapacidade em minorar o sofrimento do povo cabo-verdiano, não se pode inferir que nesses escritos da adolescência a sua revolta visasse já a construção de uma pátria, embora a leitura do conto “Fidemar” (1942) sugerisse essa ideia. No texto revela o desejo de evasão (tema recorrente entre os Claridosos e entre os jovens ligados a Academia Cultivar) que alimentou o protagonista do conto, sem pôr de parte a ansiedade de recobrar forças longe da pátria e de regressar um dia com o intuito de cumprir o desejo sublime de libertar o seu “país”. Mas o facto de o protagonista do conto não ter logrado os seus intentos e de se ter sucumbido tragicamente no decurso de uma “batalha” no mar revela de certa maneira a dificuldade genética nessa fase

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de cumprir o sonho e a promessa que alimentava o jovem que almejava ser o salvador da pátria. De tal maneira que ao retomar o tema da evasão num outro poema (“Eu sou tudo e sou nada”) escrito dois anos mais tarde (1944) Amílcar Cabral apenas suplicava aos “farrapos de nuvens, passarões não alados” que o levassem pois já não queria “esta vida”. Queria partir “nos espaços”, sem saber para onde. Não há dúvida de que, apesar de alguma ambiguidade, estão patentes na mensagem deste texto uma apologia ao pensamento universalista que compelia o jovem Amílcar Cabral para aquilo que Gerard Moser chamou de libertação internacional, “do Homem – preto ou branco, vermelho ou amarelo”, conforme escrevia o próprio Amílcar Cabral em 1944, no texto filosófico “Hoje e amanhã”.

Ainda assim, facto curioso e que merece ser aqui destacado não é a exaltação do binómio Universalidade/humanidade, que Mário de Andrade e Arnaldo França chamaram de “pensamento universalizante”, identificado em pelo menos três poemas (“Eu sou Tudo e sou Nada”, Sim Quero-te” e “Que fazer”), mas da africanidade. No poema “Naus sem rumo” (1943), publicado em boa hora por Osvaldo Osório em 1984 no livro intitulado Emergência da poesia em Amílcar Cabral, no qual reuniu um conjunto significativos de poemas (cerca de 30) inéditos de Amílcar Cabral, a ligação de Cabo Verde ao Continente Africano afigurava-se como uma interessante novidade. É que alguns autores como Gerald Moser, têm sublinhado que a componente africana ou a africanidade em Amílcar Cabral apenas aparece em Portugal mercê dos contatos com os estudantes provenientes de outras colónias africanas de Portugal, com o movimento da negritude e com o pan-africanismo o que não corresponde inteiramente à verdade à luz do poema que acaba de ser referenciado. Como se poderá depreender da sua leitura a componente africanista aparece ainda nos anos finais da sua frequência do liceu. Nele o autor (Amílcar Cabral) afirmava que as “dez caravelas” simbolizando as dez ilhas “em busca do infinito” eram “pedaços do africano / do negro continente” ou “filhas/do ingente/e negro continente”. Quebra, assim, inclusivamente, a ambiguidade imposta pelo sistema colonial e o sentimento de caboverdianidade mais associado à matriz europeia (entenda-se portuguesa) do que à africana, que, como chegou a anotar Dulce Almada Duarte, tendia a ser mesmo desconhecida.

Em Portugal apenas aprofunda essa componente do ponto de vista teórico, através das diferentes influências, para anos mais tarde, no seminário de quadros de 1969 lembrar aos seus correligionários que “muita

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gente” pensava que Cabo Verde era “a Praia ou S. Vicente, mas quem conhece o mato em Cabo Verde sente que Cabo Verde é uma realidade africana tão palpitante como qualquer outro pedaço de África”. E concluía: “A cultura do povo de Cabo Verde é africaníssima” (Alguns princípios do partido).

Em todo o caso, é inegável que a interiorização e a apreensão da realidade do arquipélago farão com que Cabo Verde figurasse não só como espaço do discurso e da identidade, mas também, na linha de Manuel Ferreira, como espaço de “uma adesão coletiva ao destino trágico do seu povo”. É neste espaço que se assinala, por outro lado, a identificação telúrica de Amílcar Cabral especialmente com os lugares onde decorreu o seu processo de socialização (pelo menos escolar): Santiago (Praia e Cidade Velha) e S. Vicente (Mindelo). Veja-se por exemplo os poemas “Ilha” (Ilha de Santiago); Regresso, entre outros.

Seria também a partir de Cabo Verde, tomado como referência primordial, que Amílcar Cabral se vai abrir pouco a pouco ao mundo exterior e identificar-se com os dramas da humanidade, num período, particularmente, marcado pela violência da Segunda Guerra Mundial.

A Guiné, onde nasceu, só vai aparecer mais tarde (praticamente em finais de 1952) nas suas referências. O próprio, como já se disse algures quando abordamos a questão da criação de vínculos com a Guiné na sua primeira infância, confirma este facto numa entrevista concedida à Radiotelevisão Francesa em 1970. Nessa entrevista asseverava que só após o seu regresso como agrónomo ao território natal, entre 1952 e 1955, passou a conhecer melhor as condições intoleráveis em que vivia o seu povo. Vai mesmo mais longe ao afiançar que foi no seio deste povo que viu a miséria, o sofrimento e a opressão a que estava submetido.

Há ainda, no que concerne às influências que não visavam o derrube do regime fascista e colonialista, um terceiro aspeto que influenciou decididamente o percurso de Amílcar Cabral. Trata-se da Segunda Guerra Mundial com todas as suas promessas e expectativas relativamente à independência dos povos colonizados à qual haveria que associar o contexto mundial permissivo e as influências da corrente modernista e neorrealista por via das quais se introduziu o marxismo e as ideias liberais em Cabo Verde. Por exemplo, num texto escrito em 1944, “Hoje e Amanhã”, Cabral já se referia à ideia da transformação do mundo caro ao

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ideário utopista-marxista. Contudo, nessa fase o marxismo que Amílcar Cabral estava a assimilar carecia ainda de um fundamento ideológico-doutrinário suficientemente apelativo ou operativo e não refletia ainda uma sólida e efetiva formação ou aprendizagem política e ideológica. Isso só vai acontecer em Portugal por via da leitura de obras de Dostoievski, Engels, Marx e Harold Laski, entre outras, e do seu envolvimento na luta antifascista ao lado dos movimentos de esquerda portuguesa, mormente do PCP, MUD/Juvenil e do Movimento Nacional Democrático (MND). Recordo que as duas primeiras organizações políticas ainda subordinavam, ao tempo, a independência das colónias à queda do regime fascista em Portugal.

No coração do regime, Amílcar Cabral sofreria, igualmente, no final dos anos 40 do século XX, a mais decisiva das influências que estariam na génese da sua revolta já no sentido anticolonial. Referimo-nos ao contato com o ideário pan-africanista e negritudinista, destacando-se a leitura da Anthologie de la Poésie Négre e Malgache, coordenada por Senghor, e às ligações de cumplicidade com os chamados jovens coloniais (Marcelino dos Santos, Mário de Andrade, Agostinho Neto, entre outros), que a partir de meados da década de 40 começam a chegar a Portugal, provenientes de outras colónias portuguesas de África, para frequentarem as universidades. Todas estas influências confluiriam para a incorporação de um espírito de “reafricanização dos Espíritos” consubstanciado na negação da assimilação, da alienação e da subalternidade coloniais. O desfecho seria a sua autonomização em relação à luta “antifascista” e aos organismos de esquerda portuguesa e a eleição de uma via africana de combate visando já a libertação do Homem Negro, isto é, da África, integrada na libertação da própria humanidade. Neste quadro se inscreveu, por exemplo, a tentativa gorada de controlo da Casa de África (1949) e a subsequente criação do Centro de Estudos Africanos (CEA) em 1951, no âmbito do qual empreenderiam a viagem de regresso às origens (as “fontes”) na linha dos poetas da negritude.

Nesta altura começa a ser percetível que, a partir de 1949, Amílcar já responsabiliza o regime de Salazar pela situação colonial de Cabo Verde, ainda que utilizando metáforas. Por exemplo, em fevereiro de 1949, aquando do desabamento do muro do edifício da Assistência, que provocou a morte de 300 cabo-verdianos indigentes, entre os quais havia uma elevada percentagem de crianças, em Lisboa Amílcar Cabral

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prometia nunca mais esquecer este acontecimento trágico. De resto, o infortúnio estaria na origem de um texto de sua autoria intitulado “Crise, Assistência e Desastre”, publicado no Boletim Mensagem, da Casa dos Estudantes do Império (CEI), em maio de 1949. Com efeito, Amílcar Cabral ficara escandalizado com o silêncio das autoridades pelo que propunha como solução a remoção dos “grãos de areia” que obstavam a resolução dos problemas de Cabo Verde. Com o uso da metáfora “grãos de areia” Cabral certamente referia-se ao reduzido número das autoridades coloniais no arquipélago aos quais passou a imputar responsabilidades pelo destino sinuoso do arquipélago. O futuro revolucionário em formação servia-se assim de uma expressão (“grãos de areia”) que o seu protetor, amigo, antigo professor e reitor dos tempos do Mindelo, havia usado, pouco tempo antes, numa conferência proferida na Casa de Estudantes de Império (CEI) a convite do próprio Amílcar Cabral, ao tempo membro da Comissão Cultural daquela instituição. Nessa conferência, em relação à qual o próprio Amílcar escrevera uma notícia publicada no Boletim Mensagem de 1949, Terry lamentava a “ausência de boa vontade entre os que poderiam (e deveriam) fazer alguma coisa” e a existência de «grãos de areia» que deveriam “ser vencidos”. Em jeito de conclusão Terry rematava: “E lembrar-se a gente de que, por causa desses grãos de areia podem morrer, como tem acontecido, numa só crise, trinta mil pessoas”.

Em virtude das influências determinantes do movimento da negritude e do pan-africanismo ocorridas em Portugal, a África e a ideia do regresso começaram a exercer uma forte atração no jovem engenheiro agrónomo e revolucionário em formação.

Cabral partiria para a Guiné em 1952, cumprindo assim uma velha aspiração de regressar a África.

Esta etapa marcaria também o seu envolvimento na libertação internacional das colónias portuguesas por intermédio da constituição de organizações unitárias de luta como o MLNCP, o MAC, FRAIN e, mais tarde, a CONCP, que caracterizaria toda a sua ação política praticamente ao longo de toda a década de 50.

Pode enfatizar-se ainda o seu papel de primeiro plano nas tentativas de consciencialização dos guineenses e na reivindicação de reformas, aquando da sua segunda passagem pela Guiné, já como Engenheiro Agrónomo. Este movimento, que começou com a tentativa gorada de

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criação de uma agremiação desportiva, culminaria na fundação de um partido binacional, visando a independência da Guiné e de Cabo Verde, cujo fundamento ideológico-estratégico se ancorava no contexto africano das unidades interterritoriais. O passo seguinte seria o da organização e implantação do PAI/PAIGC a nível interno (Guiné portuguesa e Cabo Verde) e externo (República da Guiné Conakry e Senegal) e a divulgação do seu programa político e revolucionário a nível internacional.

Foi contudo na etapa pré-revolucionária que Amílcar Cabral soube demonstrar toda a sua habilidade e espírito de liderança quase genético que o levaram a granjear o carisma e a conquistar uma liderança forte, não só no quadro do movimento de libertação da Guiné e de Cabo Verde e das restantes colónias portuguesas de África, mas também no seio da luta geral dos povos oprimidos pela sua emancipação. Eivado deste carisma e de uma notória habilidade política Amílcar Cabral logrou unir várias classes sociais em torno de um único, eficiente e credível projeto libertador ao qual conferiu legitimidade, ainda que com algumas dificuldades de permeio.

É neste quadro que ordenaria a passagem à ação direta, ainda em abril de 1961, aproveitando, inclusivamente, a periclitante situação interna portuguesa a braços com problemas graves que denotavam alguma fragilidade do regime. Referimo-nos, entre outros, aos seguintes acontecimentos: assalto ao navio transatlântico Santa Maria, a 22 de janeiro de 1961; os sucessos da Baixa de Cassange, de Janeiro de 1961; as ações de 4 e 5 de fevereiro de 1961 em Luanda; o início de ataques da UPA/FNLA no norte de Angola, a 15 de março de 1961; a tentativa de golpe de Estado de Botelho Moniz (abril de 1961) conhecida como a “abrilada”; a revogação do Estatuto do Indígena (6 de setembro de 1961); a perda de Goa em dezembro de 1961.

Perante este clima, na Guiné, o regime tentou a todo o custo reforçar as suas posições incrementando a violência indiscriminada contra grupos e figuras nacionalistas com o fito de obstruir as suas tentativas de organização de núcleos clandestinos nas principais cidades e vilas do território. Assim, entre Fevereiro de 1961 a agosto de 1962 vários nacionalistas foram presos, com especial destaque para Rafael Barbosa, Fernando Fortes e Momo Turé, três influentes dirigentes que animavam esses núcleos. Estas perseguições e a subsequente passagem à clandestinidade das células do interior vieram reforçar a ideia no seio dos nacionalistas de que o regime

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colonial precisava de ser violentamente “esmagado” e radicalmente reorganizado.

A 12 de dezembro de 1962, num discurso perante a IV Comissão da ONU, Amílcar Cabral ainda tenta uma derradeira oportunidade a fim de obrigar Portugal a fazer uma inversão na sua política e a negociar uma saída pacífica. Na ocasião propunha três alternativas para a realização das aspirações dos nacionalistas: 1) uma eventual mudança radical da posição do Governo português que conduzisse à abertura de negociações; 2) uma ação concreta por parte da ONU; 3) lutar pelos próprios meios. Como era de esperar não houve nenhuma alteração na posição portuguesa e, muito menos, por parte das Nações Unidas. Portanto, a única opção que restava a Amílcar Cabral e aos seus correligionários era o recurso à guerra.

Até janeiro de 1963, altura em que, oficialmente, o PAIGC iniciou as hostilidades, a estratégia de Amílcar Cabral para a liquidação do colonialismo amparou-se na ideia do restabelecimento da legalidade internacional, do direito dos povos à autodeterminação e independência consagrados no artigo 73º da Carta das Nações Unidas e nas inúmeras resoluções da Assembleia Geral e do Conselho de Segurança.

Depois da resolução 1514 (XV), de 14 de dezembro de 1960, a anexação das colónias por via da força passou a ser vista pelo líder guineense e cabo-verdiano como uma violação flagrante e ilegal do direito internacional. Os princípios e todo o argumento invocado para essa anexação ilícita, que se fundamentava no direito histórico, na ocupação efetiva e na política assimilacionista também passaram a ser considerados falsos.

A resolução 1514 (XV), de 1960, converteu-se, assim, na primeira vitória política e moral dos movimentos de libertação nacional, embora Amílcar Cabral se tivesse manifestado cético em relação aos resultados práticos que uma simples resolução poderia produzir, mormente no que concerne à alteração da natureza do colonialismo português ou relativamente às possibilidades de uma mudança de atitude do Governo colonialista de Salazar. Ao tempo, Amílcar Cabral ainda defendia a resolução pacífica do problema colonial e a utilização por parte das Nações Unidas de uma base legal (a resolução 1514) para fazer acatar as leis internacionais. Chegou mesmo a assumir que a luta dos povos da Guiné e Cabo Verde também era em defesa da legalidade internacional e dos princípios morais e de justiça

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que regiam a própria ONU.

Ao chegar à triste conclusão de que a “hipótese de modificação da situação” ou da “deterioração do colonialismo” era “apenas um sonho oportunista ou o resultado de “uma análise errada da natureza e da história da colonização portuguesa em África”, Cabral passou a defender a passagem à luta armada e à utilização de meios violentos como um direito legítimo. Aliás, em 1961 não surpreenderam as suas palavras na sessão extraordinária do Conselho de Solidariedade dos Povos Afro-asiáticos realizada no Cairo, ao afirmar, na linha do que defendia o nacionalista angolano, Viriato da Cruz, que o colonialismo português nunca cederia “sem luta” devido ao seu carácter violento.

Mas o líder guineense e cabo-verdiano não concebia a violência de forma leviana como um simples ódio ao colonizador, por isso a opção pela força deveria ser precedida, na linha de Frantz Fanon, da politização das massas e, sobretudo, como defendia Amílcar Cabral na Conferência Tricontinental de Havana em 1966, do conhecimento concreto da realidade antes de a poder transformar. Tornava-se assim, imperioso a análise da estrutura social de modo a avaliar as contradições dos diferentes grupos sociais, a atitude e o grau do seu comprometimento na fase revolucionária e pós-revolucionária.

Gradualmente, através da aplicação crítica do marxismo de que se serviu como arquétipo na interpretação da realidade social e política, Cabral chegou à ditosa conclusão de que a mobilização não podia incidir sobre os mesmos princípios dogmáticos usados na Argélia ou mesmo na China em que slogans como “a terra a quem a trabalha” foram uma bandeira hasteada pelos revolucionários; ou na base dos conceitos dicotómicos colonialismo/imperialismo. Para que a mobilização surtisse os efeitos desejados era fundamental que incidisse sobre os aspetos da realidade inteligíveis às massas urbanas e rurais. Por exemplo, em relação às seguintes situações, entre muitas outras: ao tipo de exploração que as companhias monopolistas praticavam; aos baixos salários; ao baixo preço dos produtos agrícolas quando entravam no circuito comercial; à obrigatoriedade do pagamento de impostos; aos abusos perpetrados pelos funcionários administrativos e soldados.

A guerra de guerrilha iniciada na Guiné em janeiro de 1963 evoluiu muito rapidamente, tendo chegado a uma situação de “impasse” a partir

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de 1967. De tal maneira que Amílcar Cabral foi obrigado a admitir, em fevereiro do ano seguinte (1968) que a luta contra o colonialismo tinha entrado num estado estacionário e que o seu partido se encontrava numa posição defensiva, de falta de dinamismo e de iniciativa, o que, na sua perspetiva, ia ao encontro dos resultados que os portugueses pretendiam alcançar. Isto é, nas suas próprias palavras manter o impasse para que a guerrilha apodrecesse. No que dizia respeito à conjuntura militar a situação na frente sul, nomeadamente em Balane e Quitáfine, serviu de inspiração para o líder do PAIGC medir a temperatura da guerra, concluindo que as forças nacionalistas se encontravam numa atitude defensiva. Ao invés, no norte, os guerrilheiros mostravam-se mais ativos, e no leste Amílcar Cabral considerava que a situação era “normal”.

Face a este quadro difícil era urgente a adoção de medidas para ultrapassar o “impasse” político-militar que se verificava no terreno. Dá-nos a sensação de que, a partir de 1968, o eixo da estratégia de Amílcar Cabral passou doravante a privilegiar vários aspetos de modo a passar à iniciativa e não ser forçado a agir em consequência da ação do inimigo: Em primeiro lugar, trouxe à tona a questão do reconhecimento internacional do seu movimento de libertação em associação com uma outra de não somenos importância que era a da conquista de personalidade jurídica internacional; em segundo lugar reconsiderou a abertura de uma frente de guerra em Cabo Verde, uma matéria que chegou a motivar a realização em Dakar, cinco anos antes (1963), de uma conferência de quadros; em terceiro lugar, pela intensificação da luta armada na Guiné, que incluiria doravante ataques aos centros urbanos; em quarto lugar, pela obtenção de mais apoios junto dos seus aliados históricos em África e no mundo; em quinto lugar, pela prioridade atribuída à via negocial na resolução do conflito com Portugal; Em sexto e último lugar, a reforma das relações externas do PAIGC, que na perspetiva de Amílcar Cabral já não se ajustavam as condições particulares a que a guerra na Guiné tinha chegado.

Em relação ao desencadeamento da luta armada em Cabo Verde o líder do PAIGC mostrou-se sempre muito cauto. Subordinava-a não a um desembarque em grande escala em todas as ilhas, mas a ocupação das mais importantes do ponto de vista estratégico (Santiago, S. Vicente e Santo Antão) e a partir das quais as ações de guerrilha poderiam propagar.

Em bom rigor, na reunião de quadros realizada em Dakar no ano

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de 1963, já se tinha adotado as seguintes medidas tendo em vista o cumprimento deste plano: reforço e consolidação das ligações com Cabo Verde; mobilização e organização nas ilhas e no exterior; recrutamento e preparação político-militar de combatentes; obtenção de meios (humanos e materiais) necessários à ação; intensificação da luta em Cabo Verde, fazendo-a passar da fase política para a ação direta.

Tudo indica, portanto, que em 1964 algumas diligências já estariam a ser feitas relativamente à consolidação destas medidas, a avaliar por uma denúncia feita à PIDE, a 12 de fevereiro de 1964, por Cesário Carvalho Alvarenga, antigo membro do PAIGC e da FLING, que se tinha apresentado, entretanto às autoridades portuguesas.

Podemos, no entanto, asseverar que em 1967 estava em avançado estado de preparação um plano de desembarque em Cabo Verde, inicialmente projetado para o mês de abril de 1968. A detenção de Cabral no aeroporto de Orly (Paris), a 22 de janeiro de 1968, levou à suspensão do plano mas não interrompeu os preparativos, se se tiver em consideração as iniciativas subsequentes. É que três meses volvidos (abril de 1968), Amílcar Cabral elaborou e enviou à URSS uma lista de meios necessários à entrada em ação em Cabo Verde. Entre eles encontravam-se seis unidades navais que deveriam ser escolhidas por especialistas da armada soviética10.11Estas unidades deveriam comportar: 300 a 350 homens no total e ter uma autonomia de 1500 milhas marítimas; um barco médio (civil ou militar) que correspondesse aos objetivos visados. Para isso, um barco de pesca de atum serviria perfeitamente11.12A ideia era utilizá-lo, a partir do porto de Conakry, no treino e formação de quadros cabo-verdianos que já se encontravam ao tempo na URSS.

O plano de desembarque contemplava ainda: concessão de bolsas de estudos para a formação de quadros militares e de combatentes (marinha e infantaria) na União Soviética12;131 hospital de campanha; 6 equipamentos para mergulhadores; 100 minas marítimas; 20 geradores elétricos por explosão; 24 detonadores de minas terrestres; 10 telefones de campanha e acessórios13.14.

A atestar ainda a perseverança de Amílcar Cabral em relação à 10 Liste du matériel et moyens démandés, cont., N.º 2.11 Liste du matériel et moyens démandés, cont., N.º 2.12 Liste du matériel et moyens démandés, cont., N.º 2.13Liste du matériel et moyens démandés, cont., N.º 2.

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abertura de uma frente de guerra em Cabo Verde está uma carta enviada a Pedro Pires, datada de 7 de fevereiro de 1969, na qual Amílcar Cabral afirmava: “Tenho grande notícia para dar-te em relação aos meios para o avanço da luta em C. Verde. Mas darei de viva voz”14.15Cabral tinha acabado de assistir à Conferência da Organização de Solidariedade dos Povos Afro-Asiáticos em Khartoum, depois do qual visitou o Cairo, Argel e Genebra.

O grande dilema que se colocava continuava a ser o facto de se estar perante dez ilhas e não uma como acontece com os casos de Cuba, de Chipre ou de Zanzibar. Por conseguinte, era necessário saber exatamente, reiterava Amílcar Cabral no seminário de quadros de 1969, “onde começar a luta para ela ter a importância desejável”. Este foi quanto a nós, associado aos problemas logísticos e às sucessivas prisões de militantes das células clandestinas, um dos obstáculos que fizeram com que o desembarque tivesse sido adiado sine die por Amílcar Cabral, mas não abandonado. Cabral continuava a acreditar no seu projeto de alargar a luta armada a Cabo Verde certamente animado pelos exemplos de sucesso que conhecia (Cuba, Chipre e Zanzibar). Em 1970, o plano para a passagem a fase seguinte ainda estava a ser equacionado pelo líder do PAIGC. Numa entrevista à revista cubana Pensamiento Crítico (janeiro de 1971) reconhecia que o sucesso da luta no arquipélago dependeria “do trabalho da direção, do grau de mobilização das massas, do apoio que o povo der a luta”.

Fica-nos, no entanto, a sensação de que Amílcar Cabral pretendia que o plano de desembarque fosse posterior a uma eventual proclamação da independência da Guiné ou se se quiser com a aquisição de personalidade jurídica internacional por parte deste território. De resto, isso seria normal devido às diferentes etapas em que se encontravam a Guiné e Cabo Verde na guerra que o movimento de libertação binacional movia contra o colonialismo português. Esta nossa convicção alicerça-se no facto de em fevereiro de 1967, numa escala em Argel a caminho do Cairo, Cabral ter afirmado ao jornal argelino El Moudjahid que estava a aproximar-se o dia em que se deveria pôr termo ao colonialismo português na Guiné. Esta afirmação estava, seguramente, relacionada com uma eventual proclamação da independência que estaria a ser equacionada para aquele ano. Aliás, numa entrevista a um jornal romeno, Cabral tinha fixado a data de 15 de outubro para a referida proclamação unilateral. Contudo, ainda não

14 Carta de Amílcar Cabral para o camarada Pires, Conakry, 7 de Fevereiro de 1969.

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estavam reunidas as condições para isso. Ao constatar que não estavam reunidas essas condições internas e internacionais optou pelo adiamento da proclamação.

Em março do ano seguinte (1968) num relatório intitulado “sobre a situação da nossa luta de libertação nacional” relativo ao ano anterior (1967) escrevia: “Estando certos de não ser possível nem prudente fixar a data da nossa independência, devemos, no entanto, fazer os possíveis para que a nossa ação em 1968 possa levar a resultados importantes e representar um grande passo em frente, rumo à libertação do nosso povo”. No mesmo documento, ao referir-se aos planos para o futuro insistia em “investigar e encontrar a solução mais adequada para a definição” da situação jurídica da Guiné no plano internacional, tendo em “conta a nova realidade” do território. Confessa tratar-se de um “problema difícil e novo”, mas acerca da qual era necessário “investigar a sua resolução, de modo a acelerar a solução política do conflito” contra o Governo Português. Qual era essa nova realidade que Cabral pretendia investigar? Que a Guiné era um “Estado Soberano” com parte do território ocupado por forças estrangeiras. Mas para isso era necessário demonstrar a existência dessa realidade a nível internacional. Era preciso ter um espaço, população sobre controlo, mecanismos de poder e relações internacionais. Internamente, considerava-se que havia um espaço “libertado” e “controlado”, onde estava a ser edificado uma “nova vida” e onde tinham sido criadas as chamadas “hierarquias paralelas” às do Estado colonial.

Cabral pretendia com essa nova estratégia passar para o exterior a imagem de que a guerra dos povos da Guiné e de Cabo Verde era uma guerra defensiva de um povo agredido. Desenha então um plano para sair da situação que ele considerava de “ram-ram da luta”. Uma das saídas que propunha era a aposta na solução política que privilegiasse a componente diplomática.

Em maio de 1968 asseverava aos seus correligionários que era preciso fazer uma profunda reforma nas relações exteriores do PAIGC, pois já não correspondiam às vitórias alcançadas no terreno militar e que a guerra tinha chegado a um ponto de equilíbrio, que tornava imprescindível novas iniciativas no plano exterior. Estas iniciativas visavam contrabalançar a situação de impasse e de inércia e aumentar as iniciativas no plano político-diplomático e também militar.

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Para isso propunha a criação, no seio do Comité Central, de uma comissão, cujo objetivo seria a de proceder a uma inventariação dos quadros e colaboradores disponíveis para esse trabalho externo. A evolução da luta tornava imperativa a extensão dessa frente externa. A suspensão do desembarque em Cabo Verde acabou por contribuir para o aproveitamento dos quadros cabo-verdianos para esta tarefa que o líder guineense e cabo-verdiano considerava extremamente crucial para atingir os objetivos em vista na frente externa, que passariam a ser doravante os seguintes: provar à comunidade internacional a existência de um Estado soberano; procurar apoios políticos, materiais, morais e a solidariedade para com a luta, criação, com outros países, das bases para uma futura colaboração; conquistar amizades, alianças e conseguir ajuda para a luta; diminuir, cortar as alianças e ajudas para o inimigo, isolar o inimigo. Como pretendia Amílcar Cabral atingir este último desiderato? Tentando subtrair a Portugal os seus próprios aliados. Devemos dizer que o conseguiu ainda em 1968, quando, no quadro da nova estratégia, fez com que a Suécia e mais tarde os restantes países escandinavos passassem a apoiar o PAIGC e os outros movimentos de libertação das colónias portuguesas e da África Austral.

No quadro ainda desta nova estratégia o objetivo era manter e, se possível, reforçar as relações com os velhos aliados, no topo dos quais co-locava, sem sombra de dúvida e sem desprimor para os restantes países que também o apoiavam, a União Soviética e a Guiné-Conakry.

A ideia de proclamar unilateralmente o Estado da Guiné a partir de 1968 visava colocar Portugal numa situação difícil. Para isso contaria já com o apoio da União Soviética e da Jugoslávia.

O líder guineense e cabo-verdiano estava convencido de que com passagem da Guiné à situação de Estado agredido obteria o indispensável apoio e o reconhecimento dos países afro-asiáticos e latino-americanos.

Internamente planeava a convocatória de um congresso ainda no decurso daquele ano de 1968 para preparar a proclamação do Estado, cujas decisões seriam ratificadas por uma Assembleia Nacional Popular no final do ano. A esta assembleia caberia a autoridade para delegar à direção do partido a responsabilidade para decidir, já em 1969, a questão da proclamação do Estado. Mas, o congresso que deveria ter lugar em 1968 acabou por não se realizar devido a problemas internos e externos.

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Só a 13 de janeiro de 1969 foram enviadas diretivas às delegações do Bureau Político (BP) com ordens expressas para se constituírem equipas de recenseamento da população nas “áreas libertadas”, o mais tardar até ao mês de abril, com o objetivo de constituir a Assembleia Nacional Popular ainda naquele ano. Os candidatos deveriam ser selecionados no seio das Forças Armadas, nas três frentes, no seio da população civil e entre os militantes exemplares e de prestígio.

As eleições deveriam ter lugar até ao mês de maio, porém, devido a vários contratempos, nem o recenseamento nem a eleição de delegados chegou a ser concretizado, pelo menos durante o período para os quais tinham sido agendados.

Efetivamente, até finais de 1971 não se registaram quaisquer alterações relativamente à projetada proclamação do Estado da Guiné, que Amílcar Cabral vinha anunciando desde 1967.

Só em 1971 o CSL tomou finalmente a decisão de convocar as eleições para a escolha de delegados destinada a constituição da Assembleia Nacional Popular. As eleições acabariam por se realizar entre finais de agosto e princípios de outubro de 1972.

Meses antes (janeiro de 1972) Amílcar Cabral tinha anunciado, numa conferência de imprensa na capital argelina, que a guerra da Guiné e Cabo Verde tinha chegado à sua fase final. Cabral tinha programado a proclamação para o primeiro trimestre de 1973.

Ao longo de todo o ano de 1972 incrementou, com essa finalidade, a atividade diplomática com périplos a várias capitais europeias, africanas e asiáticas (China, Coreia e Japão). No mesmo ano, foi bafejado pela importante visita de uma missão das Nações Unidas às regiões libertadas que marcaria um ponto de viragem muito importante na batalha política que o PAIGC travava de modo a conseguir um estatuto internacional para um estado independente, mas com parte do território ocupado militarmente por um exército estrangeiro.

A passagem de uma situação de colónia para a de um Estado não ia apenas ao encontro das teses e princípios adotados pela Carta das Nações Unidas e das suas diferentes resoluções. Contava já com o apoio substancial de numerosos Estados africanos e de forças “anticolonialistas”

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e “antirracistas” do mundo.

A nova situação jurídica e política da Guiné, esperava-se, abriria as portas para a intensificação da luta em Cabo Verde ao longo do ano de 1973 para a qual Amílcar Cabral prometia um “modificação realista na estrutura da direção do partido” no sentido de “dar a alguns camaradas a possibilidade de dedicarem a sua atenção ao desenvolvimento da luta em Cabo Verde”.

A 14 e a 22 de novembro de 1972, quer as resoluções da Assembleia Geral quer as do Conselho de Segurança reafirmavam o direito inalienável das colónias portugueses à independência e instavam Portugal a entrar em negociações diretas com os movimentos de libertação nacional.

Porém o Governo de Caetano não só não quis negociar com os nacionalistas como decidiu mesmo contrariar os planos independentes de Amílcar Cabral, inicialmente, projetados para finais de 1972 ou o mais tardar para o primeiro trimestre de 1973.

A 15 de dezembro de 1972 promulga o Estatuto Político Administrativo da Província da Guiné que deveria entrar em vigor a 1 de janeiro de 1973. Nas vésperas de Natal de 1972 aprovou ainda o decreto-lei nº 542/72, de 22 de dezembro sobre a autonomia regional em que a Guiné passou a ser uma região autónoma de Portugal. E mais! Marcou as eleições legislativas para os órgãos de Governo da Província precisamente para a mesma altura em que Cabral projetava proclamar a independência, isto é 31 de março de 1973.

Foi neste contexto que uma das figuras mais marcantes do nacionalismo moderno da Guiné e de Cabo Verde e da África do século XX, Amílcar Cabral, foi assassinado em Conakry, a 20 de janeiro de 1973. Não obstante, o crime não impediu a marcha inevitável dos povos da Guiné e Cabo Verde rumo à independência a que tinham direito e para o qual o arquiteto da revolução social na Guiné e Cabo Verde deu a sua vida. Muito obrigado a todos pela atenção dispensada.

Longa vida à Cátedra Amílcar Cabral.

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PARTE II

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Cabo Verde: Nação Crioula Caldeada num Bilinguismo em Construção

Manuel Veiga, Ph.D.

Universidade de Cabo Verde

[email protected]

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Resumo

Trata-se de uma reflexão que procura abordar cinco aspectos relacionados com o processo da afirmação da caboverdianidade, particularmente através da nossa língua materna:

A Hora Zero da Crioulidade (Séc. XV e XVI), onde se ressalta o contexto inicial e alguns constrangimentos históricos da formação do crioulo e da crioulidade;

Os primeiros contornos de uma singularidade em construção (séc. XVII e XVIII);

O discurso de negação da crioulidade (desde o séc. XIX);

O discurso de afirmação da crioulidade, com o contributo das gerações nativista, claridosa e pós-independência;

A estratégia que o autor recomenda para o ensino da língua caboverdiana no contexto de variantes e variedades regionais.

O trabalho aborda, sobretudo, a trajectória histórica da língua caboverdiana, os altos e baixos no seu processo de afirmação, e a visão estratégica para o seu desenvolvimento futuro harmonioso, científico e inclusivo.

Palavras-chave: caboverdianidade; língua caboverdiana; crioulidade.

1. A Hora Zero

Antes de 1460, as dez ilhas que compõem o Arquipélago caboverdiano dormiam num sono profundo, sem sociedade organizada, sem história edificada, sem cultura plasmada.

Retratando a hora inicial das ilhas, o poeta Jorge Barbosa, no poema Panorama, diz: « Destroços de que continente,/ de que cataclismos,/ de que sismos,/ de que mistérios?// Ilhas perdidas no meio do mar,/ esquecidas/ num canto do mundo/ que as ondas embalam,/ maltratam/ abraçam (...) Praias / onde naufragaram/ navios/ aonde aportaram/ caravelas,/ marinheiros queimados,/ corsários, escravos, aventureiros,/ condenados,/ fidalgos, negreiros,/ donatários das ilhas,/ Capitães-Mores...»

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A cosmogonia das ilhas surgiu de uma erupção vulcânica que cuspiu das suas entranhas dez das nove ilhas habitadas. E a cosmologia dessas ilhas começa com a aventura dos descobrimentos portugueses, a partir da segunda metade do século XV.

Com efeito, as naus dos Navegadores Vasco da Gama e António da Noli chegaram em 1460 e encontraram as ilhas desertas ou, pelo menos, sem uma sociedade ou uma comunidade estável.

É ainda o poeta Jorge Barbosa que, no seu poema Prelúdio, afirma: «Quando o descobridor chegou à primeira ilha/ nem homens nus/ nem mulheres nuas/ espreitando/ inocentes e medrosos/ detrás da vegetação... Quando o descobridor chegou/ e saltou da proa do escaler varado na praia/ enterrando/ o pé direito na areia molhada/ e se perseguinou/ receoso ainda e surpreso/ pensando n’El-Rei/ nessa hora então/ nessa hora inicial/ começou a cumprir-se/ este destino ainda de todos nós».

E se as ilhas estavam desertas, era preciso povoá-las. A operação começa dois anos depois, isto é em 1462. Vieram alguns reinóis do sul de Portugal, dos Açores e da Madeira. Estes eram em número insignificante, segundo o historiador António Carreira.

O Infante Fernando que comandava a operação, a partir de Sagres, em Portugal, ordenou que as ilhas fossem habitadas com escravos trazidos do Continente africano. Foi assim que começou uma das maiores tragédias humanas que a história regista.

É ainda J. Barbosa que em Relato na Nau, escreve: «Era antigamente/ a primeira nau de escravos/ no rumo do Arquipélago/rápida navegando/ sob o impulso dos alísios./ (...) E abateu sobre a nau/ a maior tempestade do equinócio. Desmantelada/ o convés varado pela força da procela/ o navio flutuou três dias/ e três noites à deriva/ enquanto o capitão veterano/ dos mares e oceanos/ amarrado ao leme seguia/ insone e atento e defendia/ a nau das avalanches/ e dos abismos súbitos das ondas.// (...) De olhos rígidos/ metálicos/ abertos/ foram com urgência/ lançados ao mar/ os corpus nus putrefactos/ com lastros dos pés/ para o mergulho em vertical.// Não houve orações/ nem foram lidos/ versículos tristemente/ na Bíblia de bordo.// Talvez nem houvesse nenhum temente/ e breve sinal da Cruz.»

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Nem todos os escravos morreram na longa e penosa travessia. Alguns chegaram não tanto para o povoamento, mas sobretudo para um projecto que visava escolher os melhores para alimentar o tráfico negreiro. Assim, dos que chegavam com vida, uma pequena parte era destinada ao serviço doméstico, em casa dos patrões, e a outra parte, bem maior, era submetida ao regime de ladinização (aprendizagem dos rudimentos da língua e da religião), uma espécie de qualificação do contingente para os mercados da escravatura, nas Américas e na Europa.

Para aumentar o interesse dos colonos portugueses por Cabo Verde e pelo tráfico negreiro, o Infante D. Fernando, a quem o rei Afonso V, seu irmão, tinha doado as Ilhas, conseguiu que o mesmo outorgasse, através de uma carta régia, vários privilégios aos moradores e armadores, em termos de direitos sobre os escravos, de mercadorias de troca, de isenção fiscal, de atribuição de vastos domínios para a exploração no Continente (Carreira, 1972: 22 e segs.).

Com esses privilégios, acrescidos da grande corrupção dos beneficiados, estes, rapidamente, começaram a adquirir enormes riquezas, em detrimento dos interesses da coroa. Por isso, seis anos depois, isto é em 1472, o Rei outorga uma nova Carta Régia limitando os privilégios anteriormente atribuídos. De acordo com esta nova Carta, os armadores só podiam iniciar a operação a partir de Cabo Verde e com mercadorias produzidas localmente (novidades da terra).

A Carta régia de 1472 pode ser considerada como documento impulsionador das condições que viriam desembocar no nascimento da Nação Caboverdiana.

Trata-se de uma medida económica que sem que o legislador tivesse tomado consciência viria a transformar-se numa condição fundamental para o surgimento do Povo e da Nação Caboverdiana.

Com efeito, se a compra de escravos tinha que ser feita com produtos da terra ( e não com os que provinham de Portugal – fazenda, trigo, vinho, azeite...), a filosofia de comércio negreiro tinha que mudar. Os escravos não podiam ser destinados apenas à exportação, mas tinham que ser utilizados para cultivar a terra, em Cabo Verde, para a criação de gado e para a criação do artesanato de onde provinham «as novidades da terra» para alimentar o comércio na Costa africana.

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Ora, se uma parte dos escravos tinha que produzir essas « novidades ...», esses mesmos escravos só o podiam fazer, ocupando a terra e trabalhando juntos. E estando juntos, eles se organizam, se comunicam, rezam, criam hábitos e costumes, cantam, dançam, se divertem, reproduzem, enfim, se estruturam em sociedade com alguma organização e criam cultura. É essa organização, é essa cultura que começaram por configurar o povo das ilhas e a nação caboverdiana desde a segunda metade do século XV.

2. Os Primeiros contornos da singularidade caboverdiana

Nós somos mestiços. Assumidamente. De sangue, de cultura, de visão prospectiva. Segundo o ensaísta Gabriel Mariano (1991, p. 54 ),

«não deixa de ser significativo que uma civilização de brancos, criada por brancos, tenha sido apropriada por negros, vindo a desabrochar em nossos dias numa cultura mestiça, onde brancos, negros e mulatos se realizam pelas mesmas vias; participando com igual sinceridade nas efemérides locais; sentindo-se igualmente responsáveis pelos destinos da sua comunidade».

Continuando, o mesmo autor afirma que « o processo de formação social do caboverdiano operou-se mais por uma africanização do europeu do que por uma europeização do africano» (p. cit. p. 69).

Se em 1462 o negro e o branco se encontraram no laboratório da ilha de Santiago, primeiro, e das outras ilhas, depois, os primeiros sinais de uma singularidade visível aconteceriam sobretudo a partir do século XVI. E a língua é o primeiro testemunho mais eloquente dessa singularidade em construção. Esta mesma singularidade é patente em todas as manifestações da identidade caboverdiana como: o imaginário islenho, as tradições orais, os hábitos e costumes, a música, a dança, a relação com o transcendente e a respectiva religiosidade, o ciclo e os rituais da morte, a culinária, o artesanato, a arte de construir abrigo e de cultivar a terra, o associativismo de diversa índole (reconhecido como djunta-mô), etc., etc.

Por eu ser antes linguista do que antropólogo, a minha análise

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sobre os primeiros contornos da singularidade caboverdiana vai incidir sobre o crioulo caboverdiano.

A mestiçagem caboverdiana (em construção) não foi, não é e nem será uma dádiva. Ela foi e é fruto de uma transculturação, de uma síntese que perdura e vai perdurar.

Nessa transculturação, de início, perfilaram o mundo lusitano e o mundo africano, mas hoje, a transculturação é entre a crioulidade caboverdiana e a diversidade mundial, particularmente através da emigração. E o resultado é uma síntese e não um amontoado.

A nossa crioulidade é também resultado da aculturação, mas a transculturação é muito mais significativa. A língua portuguesa, em Cabo Verde, é um produto aculturado, mas o crioulo é resultado da transculturação.

Retomando a questão linguística, os contornos da singularidade islenha começaram a desenhar-se desde meados do século XVI. Diz o historiador António Carreira que a cem anos do achamento das ilhas havia já em Cabo Verde (entenda-se ilhas de Santiago e Fogo, as primeiras habitadas) um proto-crioulo, isto é um instrumento de comunicação com uma estrutura fonética, morfológica e sintáctica ainda pouco diversificada e pouco autónoma, mas que já servia como instrumento de comunicação.

Como se explica que do confronto de mundos tão diferentes - como era o mundo branco e o mundo negro - tivesse sido possível a emergência, em tão pouco tempo, de um instrumento de comunicação que não era nem a do branco, nem a do negro, mas um produto mestiço em construção, fruto da cumplicidade dos dois mundos em presença?

De acordo com a lógica e os constrangimentos do tráfico negreiro, a língua portuguesa deveria pura e simplesmente sobrepor-se como único instrumento de comunicação, como aconteceu em alguns espaços de regime escravocrático, o Brasil, por exemplo.

Em Cabo Verde, foi diferente. Sem que o português desaparecesse, surgiu uma língua mestiça com uma estrutura autónoma e com uma vivacidade, em termos de informalidade comunicativa, que ultrapassa a do português

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Como explicar este fenómeno? É que, como diz o escritor Gabriel Mariano, em Cabo Verde, culturalmente, o negro africanizou o europeu e ambos tiveram que fazer grandes cedências para que a transculturação linguística, mas também a aculturação, a síntese genética e antropológica, acontecessem.

As razões são várias: o número de brancos era extremamente limitado quando comparado com o dos negros (Carreira, 1972); um número considerável de brancos era analfabeto e o seu interesse era mais económico do que cultural;

Os poucos brancos existentes, com a pirataria implantada e com a mudança da rota de escravos, ficam cada vez mais pobres e eram obrigados a conceder alforrias aos cativos para não morrerem de fome. E isto porque a partir da primeira década do século XVII os armadores partiam directamente do continente para os mercados de escravos na Europa e nas Américas, secundarizando a Cidade Velha como placa giratória do comércio negreiro.

Uma outra fragilidade do branco consistia no facto dele viajar sem a companhia da família, por razões de ordem climática e, naturalmente, sentia a necessidade de aproximar-se da escrava negra e, sem dar-se conta, esta ia limando não só as arestas da prepotência do patrão, mas também ia fazendo a ponte entre os dois universos culturais.

O negro nem sempre foi um elemento submisso e dócil. Muitas vezes organizava rebelião, fugia para os lugares mais inacessíveis e, na calada da noite, vinha roubar nas propriedades do branco. A expressão «badiu», como o habitante da ilha de Santiago é conhecido, deriva da palavra «vadio» e esta era a designação dada aos escravos fujões que, recusando a autoridade e a opressão do branco, fugiam para os montes e, pela noite dentro, vinham roubar o seu próprio patrão. Esta situação enfraquecia a autoridade do branco e o tornava mais dialogante.

Se o branco, pelos condicionalismos atrás descritos era forçado a ser tolerante, o negro, pela sua própria condição de escravo, na maior parte das vezes tinha que ser não só tolerante, mas também submisso. Com efeito, o patrão, pela Carta régia de 1466, tinha todos os direitos sobre o escravo. E para enfraquecer a capacidade de reivindicação dos cativos, o patrão nunca juntava os escravos da mesma etnia no mesmo local. Com

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esta separação a comunicação linguística era praticamente nula.

Os escravos não percebiam nem a língua do branco, nem a língua do companheiro de destino. Ora, de acordo com o linguista Noam Chomsky, em situações limites de comunicação como aquelas em que viveu o escravo em Cabo Verde, a faculdade inata de comunicação se desenvolve consideravelmente. E esta é uma das razões por que em tão pouco tempo se formou o crioulo de Cabo Verde.

Nessa formação, há a cumplicidade tanto do branco como a do negro e daí a síntese, daí a transculturação.

Linguisticamente falando, a sintaxe e a morfologia do crioulo são negras, enquanto o léxico é, na sua maioria, português.

De acordo com o linguista alemão Jürgen Lang - docente no mestrado de Crioulística e Língua Caboverdiana em Cabo Verde – a maior parte do material linguístico caboverdiano é português, porém a esse material os caboverdianos insuflaram uma alma nova de tal forma que um português que nunca viveu em Cabo Verde não fala e nem compreende o crioulo caboverdiano.

Hoje fala-se tanto de globalização. A mestiçagem caboverdiana é um exemplo acabado de globalização e de diálogo intercultural, um diálogo que começou por ser uma confrontação e que acabou realizando uma rica síntese. Esta síntese é um processo inacabável. Ontem, ela se processava entre o branco e o negro, nas condições atrás referidas. Hoje, ela ramifica e se diversifica entre Cabo Verde e o mundo, pela ponte da emigração, das tecnologias de comunicação, do conhecimento académico, do diálogo entre as culturas, da leveza da arte e das diversas outras formas de mobilidade social. A nossa crioulidade é o que restou, pois, de positivo, da escravatura e do colonialismo.

3. O Discurso da negação do crioulo caboverdiano

Até ao século XIX, a formação do crioulo caboverdiano se processou sem grandes sobressaltos, para além dos que eram congénitos ao regime escravocrata. Mesmo nessa situação, não houve, ao que sabemos, nenhuma tentativa organizada e deliberada para sufocar o crioulo nascente.

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Os próprios brancos se compraziam em aprender e falar crioulo, o que levou um escritor anónimo a alertar o rei de Portugal, em 1784 dizendo que «Até mesmo os brancos são pouco civilizados, de sorte que são bem raros os que sabem a língua portuguesa com perfeição, e só vão seguindo o estilo da terra, que é uma corruptela tão rústica que se não pode escrever» (Carreira, 1985:27).

Estamos no último quartel do século XVIII. A tentativa deliberada de sufocar o crioulo caboverdiano começa sobretudo no século XIX, estranhamente após a criação do primeiro liceu em 1860 e o surgimento do Seminário Liceu de S. Nicolau em 1866.

Nessa altura, «os zelosos compatriotas» começaram a ver no crioulo um atentado contra a unidade do Império português e que urgia impedir o desenvolvimento e alastramento. Segundo eles:

« O dialecto que fala os habitantes de S. Nicolau e que se chama crioulo, é uma miscelânea de português antigo, de castelhano e francês, sem regras algumas de gramática, nem se podem aplicar, o que torna a sua aprendizagem mais difícil aos europeus, os quais não conseguindo bem falá-lo, ainda assim, em breve e com facilidade o compreendem facilmente» ( Adolfo Coelho, 1886)

« A língua deste gentio toda pela costa é uma: carece de três letras – scilicet , não se acha nela F, nem L, nem R, coisa digna de espanto, porque assim não têm Fé, nem Lei, nem rei, e desta maneira vivem sem justiça e desordenadamente» ( Gandalvo, s/d, apud Manuel Ferreira 1973).

Este discurso de negação ainda hoje existe. Já não se diz que o crioulo quebra a unidade do império português, mas sim a unidade da Nação. É curioso que o estatuto social do crioulo tem sido sempre superior ao político, razão por que em Cabo Verde «a vida decorre sempre em crioulo» e mesmo os brancos se acostumam facilmente ao «estilo da terra».

Temos ainda que convir que a negação da crioulidade, estranhamente, tem contribuído para a sua própria promoção. Com efeito, numa altura

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em que se dizia que ele devia ser proibido porque contribuía para quebrar a unidade do império, tanto os negros, os mestiços como os próprios brancos o privilegiavam na sua comunicação; o mesmo deixou ainda de ser considerado como «estilo da terra» para passar a ter o estatuto de dialecto. Até os anos 70 do século XX era este o estatuto de que gozava. Com a Independência de Cabo Verde, em 1975, as críticas não acabaram, mas o estatuto evolui para língua nacional e materna.

Hoje, 38 anos depois da Independência, o português é língua do poder, mas a língua que efectivamente reina é o crioulo. É essa força do crioulo a razão por que em 1999 e em 2010 o Parlamento caboverdiano analisou a proposta da sua oficialização em paridade com o português. Tanto na primeira como na segunda tentativa a proposta foi chumbada, mas os defensores desta causa estão cada vez mais confiantes e tudo leva a crer que a terceira tentativa vai ser a vez da oficialização. Até porque o crioulo já ocupa espaços da oficialidade no ensino, na arte, administração, na comunicação social... O que falta é sobretudo o reconhecimento jurídico-constitucional e o aumento do seu uso formal, particularmente no ensino.

4. Discurso de afirmação do Crioulo

Se é no século XIX que começou o discurso da negação do crioulo caboverdiano, como atrás ficou demonstrado, é também a partir desse século que o discurso de afirmação começou a ser mais visível.

A primeira tomada de posição mais consistente foi a de António de Paula Brito que, em 1888, publicou «Apontamento para a Gramática do Crioulo que se Fala em Santiago de Cabo Verde».

O filólogo Francisco Adolfo Coelho, no prefácio desta obra, categoricamente, diz:

«O trabalho do Sr. A. de Paula Brito … [sendo] o primeiro sobre o assunto, merece publicidade, porque contém muitos dados novos, sobretudo porque tem por objecto o estudo especial do dialecto de Santiago, que o autor fala desde a infância» (Coelho, 1888, p. 333, apud Jorge Morais Barbosa 1967).

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Outra tomada de posição significativa é a do Cónego António Manuel da Costa Teixeira que em 1903 publicou uma cartilha bilingue português-crioulo.

Por entre os defensores da afirmação do crioulo caboverdiano temos também o professor e escritor Pedro Monteiro Cardoso. O mesmo publicou em 1932 o seu livro Folclore Caboverdiano. E defendeu por várias vezes a causa do crioulo no jornal O Manduco. É o mesmo ainda que em 1933, numa conferência pronunciada no teatro Virgínia Vitorino da Praia, declarou:

« … Todos aprendemos a língua estrangeira tendo por instrumento a língua materna; saibam os professores de instrução primária servir-se do crioulo como veículo para mais rápido e profícuo ensino das matérias do programa a cumprir, principalmente do português».

Continuando, o professor da ilha do Fogo afirma:

« … Em toda a parte estudam-se e cultivam-se os dialectos regionais; só em Cabo Verde é que aparecem uns ilustres pedagogos a denunciar o crioulo como trambolho, e se a mais não se atrevem é porque se podem levantar as pedras das calçadas».

Outro paladino do crioulo é o poeta Eugénio Tavares. Em 1932 publicou Morna – Cantigas Crioulas. Insurgindo-se contra os que na época diziam que o crioulo não tinha regras nem gramática, o poeta da ilha da Brava escreveu em 1924, no jornal O Manduco:

«Desde que não seja possível negar que o Cabo-verdiano pensa; e que dispõe de palavras para dizer o seu pensamento; e que usa de regras para a arrumação dessas palavras; e que, finalmente, tais palavras e regras constituem o resultado de uma colaboração de elementos associados na colonização – fica admitida a utilidade do estudo dessas palavras e regras, como elementos para o estudo da colonização. E se não me ilude a minha incompetência, esse estudo é que constitui a gramática».

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Napoleão Fernandes é outra voz que advogou a causa do crioulo através de uma obra iniciada em 1920, tendo levado mais de vinte anos a escrever, a qual só veio a ser publicada postumamente, em 1991, com o título de Léxico do Dialecto Crioulo do Arquipélago de Cabo Verde.

Em 1923, Elsie Parsons, de nacionalidade americana, publica Folklore from the Cape Verde Island.

A afirmação do crioulo prossegue na revista Claridade, fundada em 1936, com a publicação de poemas e letras do folclore caboverdiano.

Em 1957, Baltasar Lopes publica O Dialecto Crioulo de Cabo Verde e mais tarde, em 1960, Dulce Almada dá à estampa Contribuição do Dialecto Falado no seu Arquipélago, ambas as obras de cunho gramatical.

A partir de 1960, uma plêiade de escritores e compositores, como Kaberdiano Dambará, Ovídio Martins, Luís Romano, Sérgio Fruzoni ... começou a escrever poemas e livros de poemas em crioulo, inscrevendo-se claramente na linha da defesa da nossa língua materna.

Porém, é depois da Independência, ocorrida em 1975, que a defesa da língua materna ganha maior fôlego. Em todos os programas do Governo são inscritas acções de afirmação e valorização do crioulo.

O primeiro Colóquio Internacional sobre a Problemática da Língua e do Ensino do Crioulo acontece em 1979. É desse fórum que surgiu a 2ª proposta de alfabeto para a escrita do crioulo, tendo em conta que a primeira proposta surgiu com A. de Paula Brito, em 1888.

Escritores como Donaldo Macedo, Manuel Veiga, Tomé Varela da Silva, Kaká Barboza, Henrique Lopes Mateus, Eutrópio Lima da Cruz, Eduardo Cardoso …, na década de 80 e 90 do século XX, publicam obras nos domínios da ficção, do ensaio, do teatro e da poesia.

Escritores como Donaldo Macedo, Manuel Veiga, Tomé Varela da Silva, Kaká Barboza, Henrique Lopes Mateus, Eutrópio Lima da Cruz, Eduardo Cardoso …, na década de 80 e 90 do século XX, publicam obras nos domínios da ficção, do ensaio, do teatro e da poesia.

A partir de 2000 várias dissertações de mestrado e teses de doutoramento sobre a problemática do crioulo caboverdiano, foram

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defendidas em Universidades estrangeiras. É nessa década que o linguista alemão Jürgen Lang publicou o Dicionário do Crioulo de Santiago (2002), com 8.000 entradas, e Manuel Veiga, em 2011, publicou também o Dicionário Bilingue Caboverdiano –Português com mais de 16.000 entradas.

É ainda em 2005 que o Governo aprovou as Linhas Estratégicas para a Afirmação da Língua Caboverdiana. E cinco anos mais tarde, em 2010, o Governo institui o ALUPEC como alfabeto caboverdiano.

Seguidamente, em Novembro de 2010, a Universidade de Cabo Verde cria o Mestrado em Crioulística e Língua Caboverdiana.

Se em Cabo Verde o ensino do crioulo, de forma não sistemática, começou desde os anos 80 do século XX, há experiências de ensino do crioulo nos EUA desde os anos de 1970.

Essa experiência não se restringe apenas a Cabo Verde e aos EUA. Também na Holanda e em Portugal há experiências do ensino junto da nossa emigração.

Apesar de todo esse caminho andado, ainda não se atingiu a paridade desejada entre o português e o crioulo caboverdiano. Com efeito, o primeiro continua sendo língua das situações formais de comunicação e o segundo das situações informais. Entretanto, hoje, o crioulo marca presença cada vez mais significativa no ensino, na administração pública, na comunicação social, no Parlamento ...

Aliás é essa dinâmica que levou o Parlamento, desde 1999, a consagrar na Constituição da República (art.º 9º . 2 e 3) que «O Estado promove as condições para a oficialização da língua materna cabo-verdiana, em paridade com a língua portuguesa» (2); que «Todos os cidadão têm o dever de conhecer as línguas oficiais e o direito de usá-las» (3).

Não há dúvidas que o bilinguismo caboverdiano é um projecto em construção. Ainda temos muito caminho para andar, mas o rumo é irreversível e cada dia os passos são mais significativos. Apesar de tudo, o crioulo precisa de conquistar mais espaços de formalidade e o português mais espaços da informalidade.

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5. Projecção da Língua Caboverdiana para o Futuro

O trajecto realizado até agora exige que se dê um novo salto. Fundamentalmente, este salto deve estar ligado à massificação do ensino da língua caboverdiana e da investigação a ela ligada, à padronização de algumas variáveis, ao alargamento do espaço da informalidade e, ainda, à oficialização da língua caboverdiana, em paridade com o português, nos termos do artigo 9º.2 da Constituição.

Toda essa trajectória tem na massificação do ensino e da investigação a chave de todo o segredo. Isto significa que o futuro da língua caboverdiana, em grande medida, depende da estratégia traçada para o seu ensino e para a investigação.

Porém, como ensinar a língua caboverdiana no contexto das variantes e variedades existentes?

O que eu penso, neste momento, sobre este assunto, está plasmado na resposta que dei ao jornalista Orlando Rodrigues, sobre as seguintes questões:

1. “Qual ou quais [...] deve (m) ser a (s) variante (s) que deve (m) ser eleita (s) como padrão? 2. [Quais] os principais argumentos científicos, históricos, culturais e políticos para essa escolha. 3. Qual será o futuro possível das outras variantes menos expressivas em termos de número de falantes? 4. Quais poderão ser as implicações da padronização de uma, ou de um número limitado de variantes para a diversidade cultural existente nas diferentes ilhas?”

Respondendo, digo:

a) Em vez de se falar da escolha da variante padrão, penso ser melhor falar-se de que estratégia para o enriquecimento linguístico orientado e sistematizado do crioulo caboverdiano.

Há que ter uma política linguística que dê oportunidade de desenvolvimento e de afirmação a todas as variantes, e isto dentro do espírito da valorização da diversidade cultural.

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Para que isto seja possível, é necessário a definição de uma estratégia que tenha em conta não só a diversidade linguística, mas também os aspectos práticos, metodológicos e económicos.

Se não é aconselhável a imposição de uma única variante, nem tomar todas as variantes e colocá-las num mesmo saco, julgo ser possível proceder-se da seguinte maneira: Ver os eixos linguísticos existentes, em termos de proximidade gramatical (no sentido estrutural, fonético-fonológico e morfo-sintáctico; ver esses mesmos eixos em termos de intercompreensão e aceitabilidade linguísticas).

Seria desejável a escolha de dois Eixos: O Eixo Norte, a partir de S. Vicente; e o Eixo Sul, a partir de Santiago.

A valorização do Eixo Norte seria em confluência com as outras variantes do Norte do Arquipélago. A oportunidade de enriquecimento linguístico em confluência dá-se em dois sentidos: no da variante de S. Vicente (a grande confluência, com vocação supra-regional); e no de cada uma das variantes do Norte, com imputs de S. Vicente (a pequena confluência, com vocação local).

Na prática, em S. Vicente estuda-se a variante de S. Vicente e faz-se a ponte possível com as riquezas e as particularidades específicas das outras variantes do Norte. Em cada uma das outras ilhas do Norte, estuda-se a respectiva variante e faz-se a ponte possível com as riquezas e especificidades da variedade de S. Vicente, lá onde é possível.

Ao estudante, em S. Vicente, dá-se-lhe a competência na respectiva variante e os conhecimentos básicos do funcionamento das outras variantes do Norte. Se se entender que este procedimento é muito complexo ou muito dispendioso, pode-se optar pela variante que para os sanvicentinos tem mais potencialidades enriquecedoras, melhores possibilidades de intercompreensão e maior dimensão em termos de mercado linguístico (a de Santo Antão, por exemplo).

A sociabilização das diferenças, a partir da competência adquirida, pode ou não dar-se espontaneamente. No caso afirmativo, paulatinamente consolidará uma expressão em S. Vicente muito rica, e com vocação supra-regional, e em cada uma das outras ilhas do Norte, expressões cada vez mais ricas, mas com vocação apenas local. E isto não pontualmente, mas

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num processo que pode durar vários anos.

No Eixo Sul, a partir de Santiago, a estratégia se repete, nos mesmos moldes, possuindo a expressão de Santiago vocação supra–regional e, mesmo, nacional ( já que esteve na origem de todas as outras). As restantes variantes, ao Sul, terão uma vocação local.

Com essa estratégia, cria-se oportunidade para se ter, a nível do Norte e do Sul, duas expressões linguísticas muito fortes (à volta de S. Vicente e de Santiago), e expressões mais ricas que as que hoje existem em cada uma das ilhas do Arquipélago.

O futuro poderá, eventualmente, dar conta da confluência Norte/Sul. E isto devido à mobilidade social, através das ligações aéreas e marítimas, da comunicação social, do ensino, da investigação e da arte, do matrimónio entre pessoas de ilhas diferentes e da globalização do mercado nacional. Esta mobilidade, dizia, poderá ser responsável por essa confluência Norte/Sul. Se ela se der, será bom e teremos uma expressão linguística muito rica. Se não se der, não haverá nenhum drama, e teremos duas expressões linguísticas fortes e expressões mais ricas em cada ilha.

b) Porquê a escolha dos dois Eixos?:

a) A variedade de S. Vicente é o resultado de uma unificação linguística a partir de Fogo, S. Antão, S. Nicolau e Boavista. b) Em todo o Norte há uma larga intercompreensão desta variedade e a sua aceitação é pacífica, depois da respectiva variante local. A variante de S. Vicente nasceu à volta do Porto Grande, mas ela é, seguramente, um património das ilhas que estiveram na base do seu surgimento.

A unificação linguística que emergiu em S. Vicente e a intercompreensão e aceitação da variedade emergente, em todo o Norte do País, são três forças sociolinguísticas muito fortes e que aconselham que o Eixo Norte, em confluência, tenha S. Vicente por palco privilegiado.

A escolha do Eixo Sul, à volta de Santiago, em confluência com as outras variantes do Sul, tem por fundamentos:

A expressão de Santiago constitui a matriz de todas as variantes. Do ponto de vista estrutural é a mais autónoma.

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Mais de metade dos locutores caboverdianos fala ou convive diariamente com esta variedade. Há uma larga intercompreensão a nível do Eixo Sul. Possui um manancial de tradições culturais. A sua autonomia redunda-se numa autenticidade e originalidade muito grandes. Por ser uma variedade que não come vogais, em todos os contextos (no início, no meio e no fim das palavras) faz com que os compositores, mesmo os do Norte, tenham a necessidade de a ela recorrerem muito frequentemente, creio eu que para vincar a acentuação sonora, no final de sílabas, de um trecho musical. É a variante que, até este momento, tem merecido maior atenção de académicos estrangeiros e, mesmo a nível nacional, está melhor estudada.

c) A estratégia proposta dá oportunidade a todas a variantes. Porém, uma coisa é certa: as variantes que mais vão contribuir para o enriquecimento dos dois eixos e que, também, vão ter mais possibilidade de enriquecimento próprio, serão aquelas que forem: objecto de mais estudo científico e de mais investigação, que tiverem mais investigadores e mais professores formados; que for suporte de mais produção cultural e literária; veículo mais usado na comunicação social; objecto de mais tradução, de mais ensino no básico e secundário, na respectiva ilha, mas também de ensino superior no país.

d) A pergunta 4, sobre quais as implicações da padronização de uma variante, pela estratégia que apresentamos, deixa de ter razão de ser. A proposta é de dar oportunidade de desenvolvimento orientado a todas as variantes, num contexto em que sobressaem duas variedades supra-regionais. Por isso, a diversidade cultural e linguística ficam salvaguardadas. Nenhuma variante fica de fora, mas a importância da mesma e consequente contributo na padronização das variantes supra-regionais vai depender do investimento local de que ela for objecto.

Devo dizer que a estratégia proposta não é para ser materializada a curto prazo. É uma estratégia que começa com o primeiro passo (fazer o que de facto podemos fazer em cada momento) e que, progressivamente dará os outros passos a médio e longo prazos. A sabedoria popular diz que “é caminhando que se aprende a caminhar”. O que certamente não é uma boa estratégia é ficar parado à espera que todas as condições se reúnam.

Eis, em poucas palavras [a trajectória histórica da língua caboverdiana, os altos e baixos no seu processo de afirmação e] a visão estratégica para

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um desenvolvimento futuro harmonioso, científico e inclusivo da Língua Caboverdiana.

6. Em jeito de conclusão: Amor à nossa singularidade e Respeito pelas riquezas da humanidade

A Nação caboverdiana pela história, pela vivência e pelo projecto de vida foi, é e será sempre crioula. Uma crioulidade que é ontológica, antropológica, linguística... No começo, essa crioulidade nasceu do confronto/reencontro entre o mundo lusitano e o mundo africano. Hoje e sempre essa mesma crioulidade é e será sempre fruto de uma síntese crítica entre Cabo Verde e o mundo, através dos caminhos da mobilidade social, da intercomunicação, da emigração, do turismo, da ciência e da cultura.

Assim como a humanidade não tem fronteiras, o mesmo se pode dizer em relação à nossa crioulidade. Cabo Verde nasceu da mestiçagem étnica e transcultural. Cabo Verde quer continuar a afirmar-se na mestiçagem transétnica e transcultural. A mestiçagem é o nosso destino, mas também o nosso projecto de vida, sem racismo, sem etnocentrismo, sem diglossia, sem glotofagia. A nossa crioulidade forja-se num diálogo crítico, aberto, respeitador, tolerante. Nesse diálogo, amamos a nossa singularidade e respeitamos, com espírito crítico, as riquezas do mundo global.

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Língua, Modernidade e Libertação: A Linguística Política de Amílcar Cabral1

Abel Djassi Amado

Boston University - Department of Political Science

[email protected]

1 O conceito de linguistica política, como será desenvolvido mais abaixo, pode ser entendido tan-to enquanto uma teoria científica, no campo da ciência política, como também enquanto ideolo-gia política referente à questão da língua. É de notar que linguística política, enquanto uma área de investigação científica, não passa mais do que um espaço de cruzamento das teorias e perspec-tivas da sociolinguística e da ciência política. O campo da linguística política tem sido dominado, quase que completamente, por cientistas políticos e estudiosos do fenómeno do nacionalismo. Já enquanto uma teoria política, o termo refere aos preceitos ideológicos construídos a volta da questão da língua por activistas políticos, estadistas e/ou organizações políticas. O subtítulo do presente ensaio, linguística política de Amílcar Cabral, refere, então, à uma teoria política, proposta por Cabral, à volta da questão da língua. O termo não deve ser confundido com o conceito de política linguística que é um conjunto de normas, prácticas, ideias e orçamentos, devidamente criados e implementados por um poder legitimado (o Esta-do), quer a nível local, nacional ou mesmo internacional. Não é foco deste trabalho a questão da política linguítica, ainda que como se verá mais abaixo, esta é grandemente influenciado pela linguística política.

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Abel Djassi AmadoLíngua, Modernidade e Libertação: A Linguística Política de Amílcar Cabral

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Resumo

O presente artigo centra-se na análise da política linguística cabraliana, isto é, no pensamento político de Amílcar Cabral no que diz respeito à questão da língua. Procura-se, assim, entender os pressupostos teóricos desta política linguística. Dado a existência de uma grave lacuna à nível académico sobre o pensamento linguístico de Cabral, o presente trabalho visa, assim, abordar este problema, e para o efeito assume uma postura comparada. Isto quer dizer que o presente ensaio compara e contrasta as ideias de Cabral com as de Franz Fanon, revolucionário anticolonial argelino, com o intuito de melhor compreender a linguística política cabraliana.

Palavras-chave: linguística cabralina; Cabral e Fanon; política linguística.

Introdução

Amilcar Cabral (1924-1973), caso singular de heroísmo anticolonial bi-nacional, representa uma figura icónica da libertação africana, fundamentalmente no desenrolar do seu papel histórico de comandante-em -chefe e intelectual-mor do Partido Africano para a Independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde (PAIGC), durante o período da chamada luta armada anticolonial (1963-1974).

Dado que Cabral participou, activa e engajadamente, na luta política anticolonial, ele acabou por desenvolver um sistema epistemológico revolucionário, voltado não só para a compreensão da situação colonial (descrição) como também para melhor responder contra as investiduras do colonialismo. Ao mesmo tempo, o sistema ideológico cabraliano, tal como qualquer outra ideologia política, tem também uma componente prescritiva na medida em que um conjunto de receitas foi elaborado com vista a realização de um bem político futuro. Neste sentido, Cabral elaborou um amplo corpus bibliográfico sobre a condição colonial e as prescrições para a ordem pós-colonial. O presente trabalho concentra-se num dos elementos que tinham atraído a sua atenção, embora de forma superficial, nomeadamente a questão da língua.

A literatura sobre o pensamento político-militar de Amílcar Cabral é bem copiosa e rica. A análise e interpretação de temas centrais da ideologia

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política cabraliana tem merecida atenção de estudiosos de vários pontos.2 Outras obras, de cariz biográfico, particularmente as mais recentes, tem permitido maior conhecimento sobre a evolução do activismo político de Cabral ou da evolução do seu pensamento político.3 No entanto, existe uma lacuna muito grave no que diz respeito à análise do que eu chamo de linguística política cabraliana. O presente trabalho visa, assim, abordar esta lacuna, e para o efeito assume uma postura comparativa. Isto quer dizer que o presente ensaio compara e contrasta as ideias de Cabral com as de Franz Fanon, revolucionário anticolonial argelino, com o intuito de melhor compreender a linguística política cabraliana.

Além desta breve introdução, o presente trabalho é ainda constituído por outras quatro partes. Na primeira parte, um tanto quanto teórica, disserta-se sobre o conceito de linguística política cabraliana, a partir de uma exegese das suas obras mais importantes no assunto. Depois, foca-se no contexto que levou à produção do texto da linguística política. Assim, para este efeito, vai-se procurar entender o papel das línguas no contexto da luta armada anticolonial. Na terceira parte do texto, vai-se estudar, de uma forma aprofundada e comparada, as teses cabralianas e as de Franz Fanon, no que diz respeito à questão da língua. Dado que Fanon foi de longe mais radical nesta questão, a comparação permite, assim, melhor entender o pensamento linguístico de Cabral. Por fim, em jeito de conclusão, os pontos mais importantes do texto são re-afirmados numa perspectiva crítica.

Sobre a Linguística Política Cabraliana

Existem, praticamente, duas maneiras de entender o conceito de

2 Por exemplo, Patrick Chabal tem focado muito na questão do Estado e da revolucao. Para Charles Peterson, o interessante é o estudo da questão da liderança política anti-colonial. Para Bernard Magu-bane, a questão sociológica da liberação anti-colonial merece ser estudado a fundo. Sobre estes autores consultar, Chabal, Patrick. Amílcar Cabral: Revolutionary Leadership and People’s War. Cambridge [Cam-bridgeshire]: Cambridge University Press, 1983; Chabal, Patrick. 1981. “The Social and Political Thought of Amilcar Cabral: A Reassessment”. The Journal of Modern African Studies: a Quarterly Survey of Poli-tics, Economics and Related Topics in Contemporary Africa. 19, no. 1: 31-56.; Peterson, Charles. Dubois, Fanon, Cabral: The Margins of Elite Anti-Colonial Leadership. Lanham, MD: Lexington Books, 2007; Magubane, Bernard. 1983. “Toward a Sociology of National Liberation From Colonialism: Cabral’s Lega-cy”. Contemporary Marxism. no. 7: 5-27.3 Por exemplo, Tomás, António. O fazedor de utopias: uma biografia de Amílcar Cabral. Lisboa: Tin-ta-da-China, 2007; Sousa, Julião Soares. Amílcar Cabral (1924-1973): vida e morte de um revolucionário africano. 2011.

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linguística política.4 Primeiro, típico no mundo académico, a expressão tem a ver com a aplicação dos avanços da linguística enquanto instrumento de análise política. Assim, a linguística política é uma área de investigação cientifica, autónoma, com um foco de estudo específico e particularizado. Constitui, assim, um campo de análise dentro da sociolinguística. A sociolinguística, muito mais abrangente, estuda as relações entre as estruturas linguísticas e as estruturas sociais. A linguítica política, por seu turno, foca no entendimento da maneira em que a língua afecta (ou não afecta) o comportamento político dos indivíduos e grupos sociais.5 David Laitin, um dos mais conceituados cientistas políticos e um dos poucos que muito tem trabalhado nesta área, define a linguística política como “o estudo das tentativas do governo e/ou dos grupos linguísticos em influenciar, oficial ou não-oficialmente, as mudanças nas línguas usadas na sociedade.”6

A outra maneira de entender o termo linguística política tem a ver com a construção ideológico-política sobre a questão da língua levada a cabo tanto por organizações políticas ou por certos indíviduos. Sendo que alguns indivíduos conseguem ser aquilo que o historiador Sidney Hook chama de event-making man (“homens fazedores de eventos”), os seus pensamentos acabam sempre por ser politicamente consequentes.7 Dito de uma forma diferente, os pensamentos linguísticos destes indivíduos, dado primeiramente o seu carisma e posição política, conseguem ter força dominante e, por isso, acabam mesmo por influenciar não só o desenvolvimento ideológico na matéria como também as próprias práticas sociais ou mesmo as políticas públicas. Tal foi o caso de Amílcar Cabral.

O termo linguística política cabraliana, assim, pode ser definido

4 O termo não deve ser confundido com o conceito de política linguística que é um conjunto de nor-mas, prácticas, ideias e orçamentos, devidamente criados e implementados por um poder legitimado (o Estado), quer a nível local, nacional ou mesmo internacional. Não é foco deste trabalho a questão da política linguítica, ainda que como se verá mais abaixo, esta é grandemente influenciado pela linguística política. 5 É de notar, no entanto, que a linguística política, enquanto campo de investigação, é relativamente pobre. Poucos são os cientistas políticos que têm aventurado nestas águas. Excepções são os casos de: Weinstein, Brian. The Civic Tongue: Political Consequences of Language Choices. New York: Longman, 1982; Webb, Vic. Language in South Africa: The Role of Language in National Transformation, Recon-struction and Development, Amsterdam [u.a.]: Benjamins, 2002; Laitin, David D. Language Repertoires and State Construction in Africa. Cambridge [England]: Cambridge University Press, 1992; Laitin, David D. 1994. “The Tower of Babel As a Coordination Game: Political Linguistics in Ghana”. The American Political Science Review. 88, no. 3: 622-634.6 Laitin, David D. 1988. “Language Games”. Comparative Politics. 20, no. 3, 289. (tradução minha)7 Sobre o assunto ver Hook, Sidney, “The Eventful-Man and Event-Making Man,” in Kellerman, Bar-bara. Political Leadership: A Source Book. Pittsburgh, Pa: University of Pittsburgh Press, 1986.

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com um conjunto de ideias, ideais e práticas sobre o papel da língua tanto na luta anticolonial como na construção da ordem política pós-colonial. Dito de uma maneira diferente, está-se a falar de uma combinação de pensamentos, discursos e práticas sobre o papel das diferentes línguas no contexto colonial, desenvolvidos por Amilcar Cabral e posta em prática por si mesmo e pela organização sobre a qual ele liderou durante a campanha para a libertação da Guiné-Bissau e Cabo Verde (o PAIGC).

Enquanto o intelectual-mor do anticolonialismo caboverdiano e guineense, Cabral dissertou em quase todos os aspectos da vida socio-política, ainda que uns pontos mais aprofundados do que outros. A questão da língua, em si uma questão de capital importância para todos os que se têm envolvido no processo histórico de criação de Estado não passou despercebida a Cabral. A linguística política cabraliana pode ser resumida em três grandes características. Primeiro, é fragmentada, dado que o pensamento cabraliano sobre a língua é dispersa e pode ser encontrada em vários dos seus escritos, ainda que de forma indirecta. No entanto, o corpus da linguística política cabraliana encontra-se no capítulo sobre a resistência cultural, no âmbito das suas Análises de Alguns Tipos de Resistência.

Uma segunda característica da linguística política cabraliana é o facto de ser subsidiária de outros preceitos ideológicos. Isto quer dizer que um entendimento profundo e claro da mesma implica uma interpretação aprofundada de outros elementos ideológicos fulcrais do pensamento cabraliano, mormente a ontologia cabraliana, o materialismo dialéctico ou a problemática da independência nacional versus libertação nacional.

Por fim, nota-se uma grande semelhança entre a linguística política cabraliana e as ideias e práticas linguísticas dos anticolonialistas oeste-africanos coevos do Cabral (anos 1950 e 1960). Tal como os vários outros projectos nacionalistas anticoloniais das antigas colónias francesas e inglesas no Ocidente Africano, a questão da língua foi relegada para um segundo plano. Ao mesmo tempo, a preocupação maior de um projecto nacional (isto é, a construção da nação num território criado pelo poder colonial) foi a peça central nas políticas anticoloniais destes revolucionários. O essencial e o mais importante era o político, ou, como tinha pronunciado Kwame Nkrumah, o “seek ye first the political kingdom” considerado como o ponto de partida basilar do projecto anticolonial. O nacionalismo político

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cabraliano, tal como os casos de Kwame Nkrumah, Leopold Senghor, Sekou Touré e outros, foi fundamental e essencialmente territorial. O território colonial foi aceite como elemento basilar de construção identitária. Elementos orgânicos particularmente a língua não foram devidamente considerados como factor para uma “imaginação da nação.”8

É de notar que a linguística política cabraliana foi, ironicamente, em parte, influenciada pelo discurso colonial. Cabral assumiu de forma pouco crítica algumas “verdades” da ciência colonial. A título de exemplo, Cabral reconheceu e empregou, de forma clara, termos linguísticos que em nada ajudavam para compreender a realidade linguística colonial. O termo dialecto crioulo foi amplamente usado não só por Cabral mas também nos discursos oficiais do PAIGC. Tal termo, no entanto, não só nega o estatuto de língua de pleno direito para o crioulo como também implica, ainda de forma subtil, uma hierarquia linguística, onde a língua colonial ocuparia o topo da mesma.9

O estudo da linguística política cabraliana é de capital importância por duas razões principais. Em primeiro lugar, para muitos em Cabo Verde e Guiné-Bissau, Cabral é ainda considerado o padrão contra o qual os discurso e as práticas políticas devem ser comparados. Os seus escritos, discursos, palestras e entrevistas, são frequentemente invocados para legitimar argumentos na política contemporânea. Dado a tensão do debate linguístico em Cabo Verde dos últimos 15 anos não foram poucas as menções à política linguística cabraliana. A frase cabraliana de que “a língua portuguesa é o melhor legado do colonialismo português,” nunca foi tão usada e citada. Estudar a linguística política cabraliana permite então fornecer novas perspectivas de análise e de interpretação que poderão aumentar a qualidade do debate linguístico em Cabo Verde.

Em segundo lugar, o estudo crítico do pensamento linguístico

8 O nacionalismo anti-colonial africano, assim, distancia, em muito, do nacionalismo integracional ger-mânico da segunda metade do século XIX, quando a língua foi reconhecida como um dos elementos primários - senão mesmo o elemento primário - de identificação nacional. O assunto irá ser um pouco desenvolvido mais abaixo. 9 A aceitação de uma forma pouco crítica do termo “dialecto-crioulo,” hoje tido como coisa descabida de qualquer sentido científico, não foi só um problema de Cabral. Estudiosos linguistas caboverdianos dos anos 1950 e 1960 também cairam no mesmo erro, aceitando a ideia de que o crioulo não podia ser considerado como uma língua no seu próprio direito, mas antes um dialecto (do português). Os exemplos dos estudos de Baltazar Lopes da Silva (O Dialecto Crioulo de Cabo Verde) ou da Dulce Almada (Cabo Verde: contribuição para o estudo do dialecto falado no seu arquipélago.) ilustram este problema. Sobre o conceito de imaginação da naçao, ver Anderson, Benedict R. O’G. Imagined Communities: Reflections on the Origin and Spread of Nationalism. London: Verso, 1991.

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cabraliano constitui, em si próprio, uma forma de estudar o fenómeno colonial em Cabo Verde e na Guiné-Bissau. A partir dos escritos sobre a língua pode-se, assim, entender, até um certo ponto, a psicologia social dominante. Por outras palavras, o texto cabraliano é, acima de tudo, uma fonte histórica, escrito num dado contexto e período. Analisando-o permite ao pesquisador entender não só os eventos históricos do período como também as reacções psicológicas a estes mesmos eventos.

As Línguas e a Política da Libertação Nacional

A literatura do nacionalismo anticolonial nas antigas colónias portuguesas é deveras rica. Académicos têm trabalhado extensivamente - e com as mais diversas perspectivas - neste tema. Não obstante a abundância bibliográfica, muito ainda precisa ser discutido a fundo pelos historiadores. A questão e o papel das línguas no processo da luta armada constituem um dos vários elementos que deviam ser seriamente analisados. Uma forma de compreender a questão da língua no âmbito da luta anticolonial é a de considerar e analisar o tipo de nacionalismo que caracterizou a dita luta em primeiro lugar. No entanto, antes de se debruçar sobre os tipos de nacionalismo, importa descrever a situação linguística no então Império Português, particularmente durante os últimos cinquenta anos, sob a ditadura do Estado Novo.

O colonialismo, quer na versão inglesa, francesa, belga ou portuguesa, foi fundamentalmente um sistema de dominação. A dominação levou inevitavelmente à bi-dimensionalidade, dado que o sistema acabou por construir dois públicos bastante distintos: a esfera do direito consuetudinário, reservada para o nativo africano e a esfera do direito civil, aplicável aos europeus e afro-europeus.10 Nas colónias, a 10 É de notar que a maneira como as duas esferas foram construídas, fabricadas e imaginadas tem muito a ver com o discurso e as práticas linguísticas dominantes no contexto colonial. A esfera pública colonial, imaginado como o sítio da civilização e modernidade, constituia, assim, domínio reservado da língua europeia. Do outro extremo, a esfera africana, fabricada nas antípodas da esfera europeia, era tida como atrasada e primitiva, onde os vernáculos dominavam. A política tardo-colonial, como se pode notar, era basicamente glotofágica, na medida em que as leis, regulamentos, práticas e discursos políticos e sociais, quase completamente removiam as línguas africanas da esfera convencional (Calvet, 1974). No sistema colonial português, francês e, de um certo modo belga, caracterizado por uma ideologia de assimilação que pretendia fazer do africano um europeu, existia um conjunto de regras jurídicas que definiam o estatuto dos afro-europeus. Estes eram designados de assimlados nos casos do Império Português e évolués nas colónias francesas e belgas. É de notar ainda que o regime de indigenato, em princípio, não era de aplicabilidade em Cabo Verde. No entanto, na práctica, os sectores mais pobres e de pigmentação mais escura não tinham tratamento diferente dos das indígenas no continente africano.

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situação linguística era a seguinte: a esfera da modernidade (administração pública, educação, serviço religioso católico, etc.) constituía espaços de monopólio da língua portuguesa. Sem margens para dúvida que esta língua era a dominante. As línguas nativas eram relegadas para o domínio do privado e do lar, vedado, particularmente aos espaços de autoridade e poder (mormente o espaço escolar).

A situação linguística da Guiné colonial era um pouco complexa. Para além da língua dominante, o português, podia-se observar dois outros grandes tipos de línguas: por um lado, as várias línguas indígenas, usadas pelos “nativos.” Estas correspondem ao que C.M.B. Brann chama de línguas territoriais (ochthonolect), característica de um grupo étnico particular.11 Biafada, falado no sul Central, ou Bidyogo, falado em Roxa e ilhas Bijago, constituem exemplos de ochthonolect. Por outro lado, o crioulo da Guiné (ou Kriol), um crioulo de base lexical portuguesa mutuamente inteligível com o crioulo cabo-verdiano, forma o que o citado linguista designa de “língua-em-comum,”posto que servia de medium de comunicação inter-étnica.12

De regresso à teoria do nacionalismo, o importante aqui é trazer à baila a distinção usualmente feita entre dois grandes tipos de nacionalismos. Enquanto ideologia ou movimento político que visa a construção e/ou manutenção de uma unidade política soberana, o nacionalismo pode ser orgânica ou territorial.13 Os nacionalistas orgânicos consideram a nação como algo facilmente discernível por causa dos seus elementos objectivos, tais como a língua. Os nacionalismos de base territorial (também chamados de cívico), por outro lado, como o nome bem indica, pressupõe que as fronteiras territoriais como o elemento definidor da identidade do grupo. O nacionalismo anticolonial em África sub-sahariana foi essencialmente de base territorial. Os limites do território colonial foram aceites como elemento identitário fundamental sobre o a qual a solidariedade política seria construída. Dito por outras palavras, para estes nacionalistas anticoloniais, o território colonial foi tido como o factor político básico capaz de construir

Sobre o assunto ver Ekeh, Peter P. Colonialism and the Two Publics in Africa A Theoretical Statement. Comparative Studies in Society and History : an International Quarterly. 17, no. 1: 99-112. 1975.11 Brann, C.M.B. 1994. “The National Language Question: Concepts and Terminology.” Logos [Univer-sity of Namibia, Windhoek] Vol 14: 125–13412 Ibid. 13 Ver, por exemplo, Kohn, Hans. The Idea of Nationalism: A Study in Its Origins and Background. New York: Macmillan Co, 1944 e Smith, Anthony D. Nationalism and Modernism: A Critical Survey of Recent Theories of Nations and Nationalism. London: Routledge, 1998.

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as lealdades políticas e emocionais. Com poucas excepções, como o caso da Tanganyika (a actual Tanzânia) onde a mobilização e o discurso político anticolonial foram foi basicamente construídos a com base na língua suaíli, as línguas africanas não foram levadas em consideração como factores críticos para o discurso e a prática anticolonial.14

A análise da questão da língua e da política de libertação nacional pode ser feita em dois níveis: em primeiro lugar, a nível das práticas linguísticas, isto é, o emprego das diferentes línguas no âmbito da luta armada anticolonial. Em segundo lugar, a nível do discurso político, relacionado com o papel que a língua (ou as línguas) podem ter enquanto factores políticos para a construção ou reforço da identidade nacional.

Já que o foco do presente artigo é a linguística política cabraliana, o mesmo vai se incidir, como seria de esperar, na luta política levada a cabo pelo PAIGC. Também vai-se focar na língua crioula por ser a que mais contribuiu para o processo de mobilização política, mas que no entanto nunca foi lhe reconhecida tal papel. A luta de libertação nacional na Guiné-Bissau e em Cabo Verde foi, ao mesmo tempo, uma luta comunicacional, já que a organização política mantinha relações comunicativas com diferentes e diversos públicos, a nível nacional, regional, diaspório e internacional. Durante a guerra de libertação nacional, o PAIGC foi essencialmente uma máquina de comunicação, produzindo grandes quantidades de comunicados, panfletos, jornais, relatórios, discursos, entrevistas e afins, com o intuito de melhor propagar os feitos e as ideias.

As comunicações orais do PAIGC, quando dirigidas às populações locais, eram praticamente com base na língua crioula - variante guineense. As palestras para os quadros do partido e militantes de base eram também conduzidas no idioma crioulo. É de notar que um dos mais profundos textos de Amílcar Cabral, produzido aquando do seminário de quadros de 1969, foi inteiramente conduzido em crioulo - uma prova [não reconhecida por Cabral] de que o crioulo, como qualquer outra língua, pode assumir funções da modernidade.

A guerra de libertação nacional contribuiu grandemente para o desenvolvimento e modernização lexical e morfológica da língua crioula. Primeiro, houve uma considerável expansão em número de utilizadores. O crioulo, deveras, desempenhou um papel fundamental na luta enquanto 14 Calvet, Louis-Jean. Linguistique et colonialisme; petit traité de glottophagie. Paris: Payot, 1974. 133

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uma língua franca que ligou os diferentes grupos étnicos da Guiné-Bissau (e os caboverdianos). O movimento de citadinos, falantes do crioulo, para o campo, como mobilizadores ou líderes de unidades de guerrilha, acabou por levar a penetração linguística entre sectores de população rural que até então quase não tinham contacto com esta língua. Em última análise, isto significou um aumento numérico de falantes do crioulo.

Segundo, dada a complexidade da luta e do fato da mesma ter atraído pessoas de várias classes socioeconómicos e grupos étnicos, o crioulo passou por um processo de desenvolvimento do seu corpus, a partir de uma ampliação qualitativa e quantitativa do seu léxico (ou, aquilo que é chamado de modernização do corpus). Dulce Almada Duarte, linguista cabo-verdiana, escreve que

“No que respeita ao enriquecimento do crioulo, sobretudo do crioulo da Guiné, verificamos que, num espaço de poucos anos, um grande número de vocábulos, num domínio dado, entraram para o seu léxico. Esses vocábulos, ligados, de um modo ou doutro, à luta de libertação, eram antes desconhecidos ou, pelo menos, pouco conhecidos para a maioria da população cabo-verdiana e guineense. Partido, libertação, mobilização, camarada, militante, colonialismo, fascismo, socialismo, democracia, revolução, unidade, independência, crítica, autocrítica, cultura, progresso, congresso, ministro, protocolo, embaixador, etc., etc., passaram a fazer parte do vocabulário comum de grande parte dos cabo-verdianos e guineenses, mesmo quando analfabetos ou semi-analfabetos.”15

Relacionado com os dois supramencionados desenvolvimentos linguísticos, houve a expansão dos domínios de utilização da língua crioula. Até as décadas de 1950 e 1960, tanto em Cabo Verde como na Guiné-Bissau a língua crioula era tida como uma língua fundamentalmente de domínio privado, com pouco ou nenhum uso no contexto das discussões públicas e políticas. O processo da luta armada alterou significativamente este estado das coisas. Doravante, a língua crioula passou a ser usada cada vez mais como uma língua política, isto é, um instrumento de mobilização 15 Duarte, Dulce Almada. Bilinguismo ou diglossia?: as relações de força entre o crioulo e o português na sociedade cabo-verdiana : ensaios. 2a edição. Praia, Cabo Verde: Spleen, 2003.

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e de doutrinação constante e propaganda (mormente através da rádio, palestras e conferências).16

A comunicação escrita, tais como as declarações oficiais, comunicados e notas oficiais, panfletos e jornais do partido eram quase sempre produzidos na língua francesa. Pode-se mesmo argumentar que o uso da língua francesa tem a ver com o fato de: a) o partido ter sido sediado em Conakry, uma ex-colónia francesa, onde o francês era amplamente utilizado pela classe política; b) grande número dos Estados oeste-africanos terem o francês como a sua língua oficial; c) a língua francesa era a principal língua estrangeira ensinada no quadro do sistema de ensino português, o que a torna uma língua familiar para a classe letrada.

Tudo isto para mostrar que, em termos práticos, o PAIGC assumia o multi-lingualismo como a política linguística - não obstante o discurso ir cada vez ao encontro da ideia de que o Estado em construção teria de ser baseado, como os demais Estado africanos ou europeus, naquilo que o sociolinguista nigeriano, Ayo Bamgbose chama de “ideologia de unidade” (ideology of oneness), isto é, a ideia de que o Estado moderno deve ser construído com base numa política linguística onde uma só língua é tida como a oficial e/ou de ensino. Ao mesmo tempo, pode-se notar que, ao contrário do discurso de Cabral ou do PAIGC em geral, havia um uso extensivo da língua crioula que serviu em muito enquanto mediador de grupos sociais e étnicos distintos.

Comparando as Linguísticas Políticas de Fanon e Cabral

Como dito mais acima, o presente ensaio compara os pensamentos sobre a questão da língua em Amílcar Cabral e Franz Fanon como forma de melhor entender a política linguística do primeiro. A escolha de Fanon como elemento de comparação não foi de nada aleatória. Muito pelo contrário, mutatis mutandis, a biografia de Fanon é, até um certo ponto, similar ao de Cabral. Nascido em 1929 numa ilha crioula caribenha sob dependência francesa, Fanon fez os estudos superiores na então metrópole. Findo os cursos de medicina psiquiátrica, foi enviado, enquanto burocrata do império, para Algéria. Aí acaba por optar por fazer parte do grupo dos nacionalistas anticoloniais organizados em Frente de Libertação Nacional,

16 ibid, 111.

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onde acabaria por se tornar o mestre ideólogo da organização. Ele viria a falecer em 1961, um ano antes da declaração formal da independência argelina, e, por isso, como Cabral, não chegou a conhecer o fruto do seu trabalho. Não obstante o curto tempo de vida, Fanon foi deveras prolífico, com uma vasta obra no campo da teoria pós-colonial.

Enquanto ideólogo da FNL, Fanon dissertou sobre inúmeras condições e situações sociais e políticas da vida colonial. A questão da língua foi, nas suas próprias palavras, algo de “importância fundamental.”17 A comparação dos pensamentos linguísticos de Cabral e Fanon vai ser feita em termos de três vectores de análise comparativa: a) a questão do relacionamento entre a língua e a cultura; b) a questão da língua e a alienação colonial; e, por fim, c) a questão da língua, modernidade e libertação.

Língua e Cultura

A cultura foi um tema central tanto em Fanon como em Cabral. Ambos consideraram que a verdadeira compreensão das condições coloniais, anticolonial e pós-colonial devia passar necessariamente pela compreensão da cultura - ou seja o choque de culturas entre as culturas indígenas e a cultura dominante ocidental/europeia. Abordar a cultura, quase que inevitavelmente acaba-se por entrar no campo do seu relacionamento com a língua e a cultura. Como era de se esperar, estes dois grandes nomes da filosofia política africana contemporânea tocaram, com diferentes intensidades e profundidades, no inter-relacionamento entre estas duas variáveis. É importante notar que só a partir de uma leitura “entre as linhas” dos textos fanoniano e cabraliano é que se poder discernir a relação língua-cultura.

No que diz respeito as relações entre a língua e a cultura, Kembo-Sure e Victor Webb construíram a seguinte tipologia de relacionamento: a) a língua determina causalmente o pensamento e a percepção; b) a língua determina o pensamento e a percepção, não de uma maneira causal mas sim de ponto de vista constitutivo; c) a cultura encontra-se numa relação causal e determinista com a língua; d) as mudanças culturais têm grande impacto na língua, mas não de forma causal.18A perspectiva fanoniana sobre 17 Fanon, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008, 33.18 Kembo-Sure e Victor Webb, “Languages in Competition,” in Kembo-Sure, and Victor N. Webb. Afri-

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a língua e cultura encontra-se próxima do primeiro tipo de relacionamento. Isto equivale dizer que a teoria linguística política fanoniana está ligada à chamada tese de weltanschauung linguístico, segundo a qual o uso de uma determinada língua implica, necessariamente, a adopção da cultura de onde a língua é originária.19 Na acepção de Fanon a língua determina o pensamento e a percepção do mundo. Falar, assim, é de algum modo, agir de uma certa maneira. Em traves mestras pode-se, assim, dizer que existe em Fanon uma identificação total entre a língua e a cultura. É neste contexto que Fanon escreveu que “falar é estar em condições de empregar uma certa sintaxe, possuir a morfologia de tal ou qual (sic) língua, mas é sobretudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização.”20 Neste aspecto, é notável que a perspectiva linguística fanoniana foi deveras influenciada e informada pelo chamado relativismo linguístico: a língua determina a nossa visão de mundo.21

A linguística política de Fanon foi influenciada por grandes nomes da filosofia e linguística francesas da primeira metade do século XX. Importa aqui destacar o livro Des mots à la pensée, essai de grammaire de la langue française , escrito por Jacques Damourette e Édouard Pichon, cujo argumento chave é o de que o pensamento deriva da linguagem.22 Esta influência pode ser claramente notada no primeiro capítulo da obra Pele Negra, Mascáras Brancas. Ao dissertar sobre “O Negro e a Linguagem”, Fanon observou que a fala é muito mais do que um processo comunicativo ou uma simples transmissão de informação. Falar é, como citado mais acima, “suportar o peso de uma civilização.”23 Isto significa que usar a língua tem fortes impactos na psicologia do utilizador. Este torna-se um agente da expansão de cultura de onde a língua é originária. Falar a língua francesa, na óptica do Fanon, significa basicamente gaulicizar-se. can Voices: An Introduction to the Languages and Linguistics of Africa. Oxford: Oxford University Press, 2000, 110. 19 Jinadu, 1976, 60720 Fanon, op.cit., 33.21 A a teoria de que a língua determina o mundo-visão dos seus falantes tem uma história bem longa. Está bem longe do escopo deste ensaio desbruçar sobre a história intelectual desta tese linguística. No entanto, vale a pena mencionar que a dita tese fora desenvolvida particularmente por pensadores ger-mânicos da corrente romantista dos séculos XVIII e XIX, com especial referência ao Johannes Herder. Mais recentemente, nos meados do século XX, e no campo da ciência linguística, a tese é quase sempre ligada aos escritos de Edward Sapir e Benjamin Lee Whorff (daí que a tese é também conhecida como a tese Sapir-Whorff). Sobre o assunto ver Graffi, G. “20th-Century Linguistics: Overview of Trends,” in Brown, E.K., and Anne Anderson. Encyclopedia of Language and Linguistics. Boston: Elsevier, 2006. 22 Fanon, Frantz, and Renato da Silveira. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008, 39. 23 Fanon, op.cit., 33.

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Para Fanon a língua determina a cultura. A língua, assim, é mais do que um simples veículo da cultura ou das normas e valores culturais. Muito pelo contrário, a língua estrutura e dá forma à cultura. Assim, Fanon assumiu uma postura construtivista, acreditando que a língua é o que constrói o nosso mundo. A conclusão lógica disso é que o papel social da língua não é de todo neutro: a língua é um elemento activo no processo de como nós vemos a nós mesmos ou como vemos o mundo. Assim sendo, ela corrobora, em grande parte, no processo de auto-escravização mental e legitimação da empresa colonial. O colonialismo cultural, assim, é particularmente o colonialismo linguístico.

Ao contrário de Fanon, que pode ter lido muito sobre a linguística e a filosofia da língua, é pouco provável que Cabral tenha se familiarizado com os grandes debates e teorias da ciência linguística. O seu pensamento sobre a questão da língua deriva fundamentalmente da combinação das suas reflexões sobre a ontologia, que, por sua vez, foi enformada, em parte, pela filosofia marxista. Daí a necessidade de entender a ontologia cabraliana se o objectivo é a compreensão da sua linguística política.

O conceito de realidade constitui uma palavra-chave na ontologia cabraliana. Cabral argumentou que a realidade é autónoma da mente humana. Assim, ele distanciou-se da perspectiva construtivista da realidade, segundo a qual a realidade é socialmente construída. Do ponto de vista do construtivismo, a realidade, seja a natural ou a social, não existe em si, mas, pelo contrário, como algo criado pela mente humana. Contra-argumentando contra esta tese, Cabral escreveu que “o nosso ponto de vista é o seguinte: o homem é parte da realidade, [mas] a realidade existe independentemente da vontade do homem.”24 Isso quer dizer, que “não é o que ele tem na cabeça que define a realidade, mas a própria realidade que define o homem.”25Como a realidade é autónoma da mente, a sua existência real não é alterada ou reproduzida pelos atos da mente, tais como a língua. Em vez disso, a língua é um meio de transmissão desta realidade independente.

A língua, assim, não passa mais do que uma simples ferramenta de comunicação à disposição dos seres humanos. Como ferramenta, a 24 Cabral, Amilcar, and Michael Wolfers. Unity and Struggle. London: Heinemann Educational, 1979, 44. 25 Aqui Cabral foi claramente influenciado pela famosa frase de Karl Marx de que” não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, pelo contrário, o seu ser social que determina sua consciên-cia.” Sobre a teoria marxista, escrita pelo próprio Marx, ver Tucker, Robert C., Karl Marx, and Friedrich Engels. The Marx-Engels Reader. New York: Norton, 1978

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língua é, portanto, ideologicamente neutra. Daí que se pode argumentar que Cabral rejeitou a tese de relativismo linguístico, sustentando que a língua é apenas um veículo à disposição para facilitar a interpretação do mundo, posto que é “um instrumento para que os homens se relacionem entre si, um instrumento, um meio para falar, para expressar as realidades da vida e do mundo.” (Cabral, 1974, 101) A língua, como tal, é o que permite e desenvolve as relações sociais. Como uma ferramenta, a língua pode muito bem ser um portador de uma cultura, mas de modo nenhum constitui, em si, cultura.

Cabral distanciou-se das posições radicais na questão da língua. Ao contrário do radicalismo fanoniano, Cabral optou pela tese de um soft relacionamento entre a cultura e a língua. O uso da língua colonial não poderá ser em si só a adopção da cultura metropolitana. Como se verá mais abaixo quando o fenómeno de alienação colonial é analisado, para Cabral o uso da língua metropolitana em nada deve querer significar que a pele negra intenta mascarar-se de branco. O uso da língua colonial poderá ser, em si próprio, um acto de libertação cultural. A partir do uso da língua colonial, que é de longe mais difusa e com mais recursos à sua disposição, pode-se, assim, alcançar audiências largas transnacionais e internacionais que poderiam ser o sustento da luta cultural.

A Língua Colonial e a Questão da Alienação Colonial

Fanon e Cabral comentaram extensiva e criticamente sobre a condição colonial. Eles entenderam que o colonialismo, em última instância, favorece os interesses metropolitanos e seus aliados locais (aquilo que Fanon chamava de burguesia compradora). O colonialismo, para estes dois exponentes da teoria crítica anti e pós-colonial, constituía um processo contínuo de fabricação e construção de submissão mental e apatia, com vista a limitar, senão mesmo anular, qualquer iniciativa ou agência política por parte da população local. Desta forma, o projeto colonial foi essencialmente hegemónica. É neste contexto que se pode falar do conceito de alienação colonial.

De acordo com a definição proposta por Randy Hodson, a alienação não é mais do que “a separação soció-psicológica entre o ‘eu’

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e as respectivas experiências da vida.”26Assim sendo, falar de alienação é fundamentalmente falar da condição psicológica do agente. Por esta razão Hodson vai mais longe e afirma que ser ou estar alienado, ao fim e ao cabo, “é viver na sociedade mas sem se sentir que se faz parte das suas actividades contínuas.”27O sujeito colonial é de um certo modo alienado porque: a) as actividades usuais na colónia acontecem sem o controlo ou a agência deste; ou b) existe uma tentativa de identificação com o poder dominante, mesmo que tal, em última instância, seja contra os seus interesses privados ou de grupo.

Embora aceitando a base material do fenómeno da alienação (e.g., o controlo da economia colonial pelas forças coloniais), tanto Fanon como Cabral preocuparam-se em desvendar o tipo de alienação não-material dos sujeitos coloniais. A mente torna-se um local importante para compreender criticamente a lógica e o impacto durável do colonialismo. Isso explica o enfoque no estudo da cultura.

Fanon estava particularmente interessado em compreender a alienação colonial. Este é um tema que é transversal à maioria, se não a totalidade, do seu trabalho, mormente na sua opus magnus, Pele negra, Máscaras Brancas - e, em menor escala, numa outra obra de grande valor, Os condenados da Terra. Para Fanon a alienação colonial, em última análise, produz e reproduz um complexo de inferioridade no sujeito colonial. Por outras palavras, o discurso colonial pressupunha uma ordem hierárquica de culturas, onde a cultura do colonizador era tida como a mais avançada, como a civilização, a ordem e o progresso. Ele considerou que o complexo de inferioridade encontrava-se intimamente relacionado com a alienação económica e mental. A alienação económica, de fácil percepção, era o resultado do domínio das infra-estruturas económicas pelo poder colonial, infra-estruturas essas controladas com o objectivo último de facilitar a captura de um mais-valia dos recursos coloniais. A alienação mental, por outro lado, constituía a transposição da subalternidade material para a esfera da mente, ou segundo as palavras do próprio Fanon, a “interiorização, ou melhor, pela epidermização dessa inferioridade.”28 A questão a ser colocada é a de saber como é que se manifesta tal processo de interiorização da alienação colonial.

26 Hodson, Randy. “Alienation.” Blackwell Encyclopedia of Sociology.Ritzer, George (ed). Blackwell Publishing, 2007. Blackwell Reference Online. 21 August 201327 Ibid28 Fanon, Frantz, Renato da Silveira. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008, 28

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Um dos mecanismos através dos quais a alienação colonial era produzida, reproduzida e difusa socialmente, era a própria língua do colonizador (o francês no caso específico das experiências vividas pelo autor sob análise). Fanon acreditava que a língua do colonizador constituía um dos principais veículos através dos quais o complexo de inferioridade se manifestava na medida em que mesmo era tido como o ponto de referencia cultural, determinando, assim, o nível de civilidade e humanidade. Ser-se fluente na língua colonial seria, assim, a máscara branca para a pele negra. Como tal, ele observou que (citando Fanon extensivamente):

“Todo povo o colonizado — isto é, todo o povo no seio do qual nasceu um complexo de inferioridade devido ao sepultamento de sua originalidade cultural - toma posição diante da linguagem da nação civilizadora, isto é, da cultura metropolitana.

Quanto mais assimilar os valores culturais da metrópole, mais o colonizado escapará da sua selva. Quanto mais ele rejeitar sua negridão, seu mato, mais branco será. No Exército colonial, e especialmente nos regimentos senegaleses de infantaria, os oficiais nativos são, antes de mais nada, intérpretes. Servem para transmitir as ordens do senhor aos seus congéneres, desfrutando por isso de uma certa honorabilidade.”29

Este estado de coisas foi sancionado tanto pela sociedade como pelo Estado colonial. A sociedade colonial, essencialmente maniqueísta e privilegiando os colonos brancos, produziu e reproduziu ideologias sociais e linguísticas que mantinham o humanismo em termos de padrões propostos pelo próprio colonizador.30 Já o Estado colonial, através dos seus instrumentos de coerção física e de construção ideológica (entre os quais a escola), criou estruturas duras para a dominação linguística da língua metropolitana. Dito de uma forma diferente, o Estado colonial foi um factor importante na criação e institucionalização da noção de que o domínio da língua colonial é a chave para a civilização. O discurso de assimilação, praticada pela França e Portugal durante grande parte do segundo e terceiro quartéis do século XX, teve como objetivo final a criação de novas “Europas” em África. O projecto colonial era, assim, disseminado como parte da “missão 29 Fanon, Frantz, Renato da Silveira. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008, 3430 Memmi, Albert. The Colonizer and the Colonized. New York: Orion Press, 1965.

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civilizadora” (ou la mission civilisatrice entre os franceses) nas colónias. Através de leis, políticas e regulamentos, o Estado colonial, assim, estabeleceu claramente diferentes grupos sociais entre os africanos: os nativos e os évolués(ou assimilados nas colónias portuguesas). Esta distinção social e jurídica tem muito a ver com a aceitação dos modos de vida europeu, incluindo o domínio da eurofonia.

A política de assimilação colonial considerava as línguas nativas africanas como algo inútil de qualquer valor público. Daí que Louis-Jean Calvet, num estudo já clássico, concluiu que a política linguística colonial foi essencialmente “glotofágica”, na medida em que limitava, drasticamente, o uso das línguas nativas no domínio público formal e oficial.31 A necessidade de provar a sua humanidade perante a sociedade e o Estado colonial é psicologicamente prejudicial para o sujeito colonial. Fanon observou isso na sua leitura sobre as estratégias linguísticas elaboradas pelo sujeito colonial como de demonstrar o domínio da eurofonia. Ele escreveu:

“O negro, chegando na França, vai reagir contra o mito do martinicano que-come-os-RR. Ele vai se reconsiderar e entrar em conflito aberto com tal mito. Ou vai se dedicar, não somente a rolar os RR, mas a urrá-los. Espionando as mínimas reações dos outros, escutando-se falar, desconfiando da língua, órgão infelizmente preguiçoso, vai se enclausurando seu quarto e ler durante horas — perseverando em fazer-se dicção.”32

Cabral, tal como Fanon, teve grandes preocupações em estudar o fenómeno da alienação colonial. Também considerava ele que a alienação colonial manifestava-se a dois níveis: material e cultural-mental. As suas análises das condições sociais nas colónias da Guiné-Bissau e Cabo Verde foram, em parte, sobre a alienação material, isto é sobre como as estruturas económicas impediam o desenvolvimento local. A análise da alienação cultural-mental, no entanto, é um tanto quanto distante da interpretação fanoniana.

Ao contrário de Fanon, que foi extremamente desconfiado da cultura colonial ou sobre qualquer impacto positivo do encontro entre o colonizador e colonizado, Cabral evitou tomar posições dicotómicas neste

31 Calvet, Louis-Jean.Linguistique et colonialisme; petit traité de glottophagie. Paris: Payot, 1974.32 Fanon, 36 (itálico no original)

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assunto. Isto equivale dizer que Cabral optou por não cair na tentação do pensamento binário que muito caracterizou os ideólogos coloniais e anticoloniais. As coisas nunca eram ou branco ou preto, ou bem ou mal. Deste modo, Cabral acreditou que lições positivas podiam ser encontradas no contexto colonial (claro está que isto não equivale dizer que Cabral foi apologético do colonialismo). Para este pensador guineense-caboverdiano, havia uma necessidade de colher essas lições. É assim que, neste contexto, Cabral escreveu que

Um povo que se liberta do domínio estrangeiro não será culturalmente livre a não ser que, sem complexos e sem subestimar a importância dos contributos positivos da cultura do opressor e de outras culturas, retome os caminhos ascendentes da sua própria cultura, que se alimenta da realidade viva do meio e negue tanto as influências nocivas como qualquer espécie de subordinação a culturas estrangeiras.33

A conclusão a ser tirada das palavras acima transcritas é que Cabral partilhava uma noção que o conhecimento e o progresso não tinham pátrias. Estes constituem, usando um certo modismo, património comum da humanidade. Por esta razão, era importante evitar quaisquer tentações de localismo radical (tais como a ideia de que só o que é local/nacional que é certo).

Mas isto não equivale dizer que o fenómeno da alienação mental não existia. Cabral, nas suas análises sobre o fenómeno, acreditava que a alienação era basicamente uma coisa das áreas urbanas coloniais, mormente a nível da pequena burguesia. Esta classe social que matinha relações mais próximas com o colonizador, poderia mais facilmente cair no mimetismo ao colonizador, adoptando o modo de viver e comportar do colonizador.

No entanto, Cabral não reconhecia que a alienação cultural seria reforçada com o uso constante da língua colonial (isto é, a língua portuguesa). A língua, para ele, não passava mais do que uma ferramenta, e que não podia ser confundida com a cultura. Dito de uma forma diferente, a língua não era tida como determinante da cultura, como foi o caso do Fanon. Aliás, Cabral reconhecia que a língua do colonizador como uma das melhores heranças deixadas atrás por este. O uso da língua colonial, na perspectiva

33 Cabral, Amílcar. A cultura nacional: o papel da cultura na luta pela independência. [Portugal?]: Depar-tamento de Informação, Propaganda e Cultura do C.C. do PAIGC, 1984. (itálico adicionado)

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cabraliana, podia ser mesmo liberatório - e não alienatório - na medida em que permitia um acesso a uma fonte inesgotável de conhecimentos filosóficos, técnicos e científicos. O português era tido por Cabral como a chave para a civilização científica, o sine qua non para uma verdadeira libertação. Uma verdadeira revolução liberatória, na perspectiva cabraliana, implicava uma revolução científica. Dado que a ciência moderna fala as línguas europeias, Cabral encorajou mesmo o uso da língua portuguesa como atalho para o progresso.34

A Língua e a Questão da Modernidade/Libertação

Os nacionalistas anticoloniais africanos do século XX preocuparam-se principalmente com a realização de dois grandes objetivos inter-relacionados, nomeadamente o desenvolvimento sócio-económico e a busca de dignidade nacional.35 O caso contra o Estado colonial em particular e o colonialismo em geral foi baseado no facto de tal sistema produzir um sistema económico fechado que reforçava e reproduzia a dependência das colónias, impedindo, assim, qualquer iniciativa local para o desenvolvimento. O anticolonialismo, como tal, seria um projeto económico de libertar o território com vista à realização do desenvolvimento social e económico.

Tanto Cabral como Fanon aceitavam a necessidade de criar atalhos para a modernidade. No entanto, Cabral e Fanon reconheceram que o modelo ocidental da modernidade, fomentando os sistemas de dominação e exploração, bloqueava toda e qualquer aspiração local ao progresso. Portanto, a luta pela libertação é uma luta para criar um caminho diferente para a modernidade. Os dois pensadores visaram, assim, a construção de uma ordem política que deveria substituir a ordem colonial. Aliás seria bem difícil a mobilização popular se o discurso anticolonial não tivesse sido recheado de promessas e práticas de progresso social e económico. Cabral tinha notado este aspecto quando afirmou que o povo luta por realizações concretas e não a troco de ideias como a “libertação nacional, luta contra o colonialismo, a construção da paz, progresso e independência.”36

34 Ironicamente neste campo, Cabral foi fortemente influenciado pelo discurso colonial que, como bem argumentou Calvet (op. Cit.), considerava que a língua local africana seria incapaz de transmitir o conhe-cimento científico. 35 Smith, Anthony D. State and Nation in the Third World: The Western State and African Nationalism. New York: St. Martin’s Press, 1983. (Smith 1983, 97)36 Cabral apud Chabal Chabal, Patrick. Amílcar Cabral: Revolutionary Leadership and People’s War. Cam-bridge [Cambridgeshire]: Cambridge University Press, 1983, 105.

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Para Fanon, a ordem pós-colonial a ser construída teria de ser baseada no campesinato, a classe verdadeiramente revolucionária.37 Em grande medida, tal posição teve muito a ver com o facto de Fanon não nutrir grandes simpatias com a pequena burguesia colonial. As experiências de “independência de bandeira” na antiga África francesa levaram-no a concluir que houve uma traição da burguesia local com a causa da libertação. Esta classe, assumindo o poder com a independência formal, não fez nada mais do que mudar o colonial em neo-colonial, assegurando, assim, os interesses metropolitanos. Assim, prevendo esta situação, mesmo antes do advento da independência formal, Fanon postulou em 1958 que

“True liberation is not that pseudo-independence in which ministers having a limited responsibility hobnob with an economy dominanted by the colonial pact.

Liberation is the total destruction of the colonial system, from the pre-eminence of the langauge of the oppressor and “departamentalization”, to the customs unions that in reality maintains the former colonized in the meshes of the culture, of the fashion, and of the images of the colonialist.” 38

A libertação, como tal, era tida como basicamente uma libertação totalizante. A ideia era de uma ruptura total com a ordem colonial, incluindo como era de se esperar a nível linguístico. A ordem linguística colonial teria de ser completamente derrubada caso se queira que a aspiração de uma libertação política torne uma realidade. Pois, como foi notado mais acima, Fanon via na língua colonial como um “cavalo de Troja,” um tipo de quinta coluna, que poderia desagregar e enfraquecer a força nacionalista anticolonial. O uso da língua colonial acarreta uma identificação com a metrópole. Assim sendo, isto teria consequência políticas negativas no projecto nacionalista. Fanon, portanto, propôs categoricamente a “rejeição” do idioma colonial. A construção do desenvolvimento e libertação pós-colonial só podiam ser realizadas com o abandono total da língua do colonizador. A nível político, a rejeição da língua do colonizador tem a ver com o estabelecimento de uma ordem política verdadeiramente aberta onde as massas populares, urbanas e rurais, poderiam verdadeira e 37 Fanon, Frantz, and Richard Philcox. The wretched of the earth. New York: Grove Press, 2004, capítulo 6.38 Fanon, Frantz. Toward the African Revolution: Political Essays. New York: Grove Press, 1988, 105 (itálico adicionado)

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efectivamente participar nas questões públicas da comunidade.

Cabral, por seu turno e como grande adepto da modernidade (a julgar pelo seu apego à ideia do progresso), teve uma perspectiva diferente do Fanon. O emprego da língua colonial, mormente o português, constituía o caminho mais perto para o progresso. Isto porque ao se empregar a língua colonial está-se a tirar proveitos das experiências históricas do povo de onde a língua veio. Isto, em última instância, significa uma tentativa de economização dos esforços relativos à modernização. É com base nisto que Cabral recomendou aos seus colaboradores que “temos de tirar o máximo proveito da experiência dos outros [...] Mas se quisermos empregar esta experiência para a utilizarmos na nossa terra, temos que utilizar as expressões das outras línguas.”39

Cabral vai mais longe mesmo. A opção pela língua portuguesa tem muito a ver com a evolução da história. Hoje é certo que existe quase que um consenso entre os linguistas que todas as línguas são capazes de transmitir qualquer informação, seja esta coloquial ou técnico-científica. Claro que, à partida, algumas línguas teriam alguma dificuldade dado o limitado corpus lexical. Mas isto é de fácil correção. Muito influenciado pela linguística colonial, ele assumiu uma visão um tanto quanto estático sobre as línguas africanas. Neste sentido, ele argumentou que

“(...) o mundo avançou muito, mas nós não avançamos muito, tanto como o mundo, a nossa língua ficou ao nível daquele mundo a que chegámos que nos vivemos, enquanto o tuga, embora colonialista, vivendo na Europa, a sua língua avançou bastante mais do que a nossa, podendo exprimir verdades concretas, relativas, por exemplo, à ciência.”40

Pode-se notar, portanto, que Cabral reconhecia que a língua portuguesa era um poderoso instrumento para a modernização sócio-económica. A modernidade, produto da história europeia, e representada por técnicas e tecnologias, ciência e sistemas de conhecimento, seria melhor apreendida com recurso às línguas ocidentais.

Dado uma certa inclinação aos preceitos marxistas, Cabral reconhecia

39 Cabral, Análise de Alguns tipos de Resistência, 104. 40 Ibid, 102

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que o desenvolvimento linguístico ser o produto do desenvolvimento das forças materiais. Para este ideólogo, o nível de modernização lexical particularmente é explicado em termos do progresso científico e económico. A posição dominante e hegemónica do português era, assim, incontestável nos domínios da ciência e tecnologias modernas. Com um corpo lexical muito mais vasto, mormente no que diz respeito às áreas de ciência e tecnologia, a predominância da língua portuguesa seria assim natural. Isto porque, como notou ele (erradamente, diga-se de passagem), as línguas nacionais africanas, em especial a língua crioula, não servem para a ciência. 41

Relativamente a questão da libertação nacional, é importante notar que a ideologia política cabraliana rejeita qualquer indícios de nacionalismo étnico. A libertação seria, antes de mais nada, um projecto nacional (ou melhor, bi-nacional) e nunca localizada numa só área ou grupo étnico. Deste modo, Cabral foi particularmente sensível em relação àqueles que a ciência política actual chama de empreendedores étnicos, isto é, os líderes sociais de um determinado grupo étnico que usam a posição de que detêm dentro do grupo para instrumentalizar a identidade étnica com vista a realização de objectivos políticos pessoais - muitas vezes que contrariam o interesse nacional. É contra este pano de fundo que Cabral insurgiu-se extensivamente contra aquilo que chamava de “oportunismo.” Neste aspecto, Cabral fez uma ligação directa entre o orgulho numa língua étnica e o oportunismo político. Dado a diversidade linguística na Guiné-Bissau e em Cabo Verde (lembre-se que o projecto político era o de formar um Estado federado entre estes dois), Cabral não via com bons olhos o orgulho nas línguas étnicas. Tal coisa muito bem poderia levar à uma crise política ou mesmo à política de fratricídio.

A opção pela língua portuguesa tem uma componente política e uma outra pragmática. Cabral, enquanto um filho da modernidade, acreditava seriamente na ordem. Sem a ordem não haveria o progresso (um estudo interessante é o de traçar as influências do positivismo comtiano no pensamento cabraliano). E a questão da ordem é estendida até na questão linguística. A opção pelo português tem a ver com o facto da inexistência de uma certa ordem gramatical codificada e/ou ordem ortográfica das línguas nativas africanas nas colónias de Cabo Verde e Guiné Bissau. Assim, notando a desordem ortográfica, Cabral assumiu que “eu sei escrever [o

41Cabral 1994, 104

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balanta] mas escrever à minha maneira, outra pessoa já escreve à sua maneira.”42

É necessário notar que Cabral estava bem longe de ser considerado um lusófilo. A sua relação com a língua portuguesa foi puramente instrumental - em harmonia com o seu pensamento linguístico. Pode-se, assim, argumentar que Cabral não nutria de um amor cego pela língua portuguesa da mesma maneira que muitos intelectuais africanos, inclusive os que participaram na campanha anticolonial, sofriam em relação a língua do antigo colonizador. Talvez o exemplo mais clássico de tudo isto foi o primeiro presidente do Senegal, Leopold Senghor conhecido defensor da língua francesa. [fotenote explain this and cite the civic tongue]. O importante para o Cabral era o uso de uma língua da modernidade (como ele se calhar a definia). É neste contexto que ele diz que

“Para nós tanto faz usar o português, como o russo, como o francês, como o inglês, desde que nos sirva [sic], como tanto faz usar tractores dos russos, dos ingleses, dos americanos, etc., desde que tomando a nossa independência, nos sirva [sic] para lavrar a terra.”43

Dadas as ligações históricas, o português era o elo mais próximo - daí a opção por esta língua enquanto língua para a educação nas zonas libertadas. A construção da nação bi-territorial constituía um objectivo basilar em Cabral. E isto era aceite como tendo precedência sobre qualquer outras formas identitárias. O Estado-nação imaginado seria uma federação arquipelágica e continental, tal como foi construída por Julius Nyerere na África oriental nos anos sessenta.44 A escolha linguística teria que facilitar o projecto federalista. É neste contexto que se deve entender a escolha da língua portuguesa como a língua de educação e da administração pública. Ainda que o crioulo ser de uso corrente tanto em Cabo Verde, onde é a língua nacional, como na Guiné-Bissau, onde é a língua franca, não houve grandes tentativas de elevar esta língua para a esfera pública. A razão política deste acto é que fazer tal coisa traria uma vantagem comparativa desmesurada aos nativos desta língua - o caboverdiano - que poderia trazer grandes obstáculos ao projecto de unidade. A língua portuguesa, por ser

42 Ibid, ibidem. 43 Ibid, ibidem. 44 Em 1964, sob liderança de Julius Nyerere, os dois antigos territórios coloniais da Grã-Bretanha, a Tan-ganika, no continente, e o arquipélago de Zanzibar, fundiram-se num Estado único, a Tanzânia.

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uma língua neutra, estrangeira aos povos da Guiné-Bissau e Cabo Verde, colocaria todos numa situação idêntica de desvantagem comparativa.

Conclusão

Amílcar Cabral foi deveras um pensador multi-dimensional, formando opiniões e comentários sobre vários aspectos da vida social e política. A língua, ou melhor a questão da língua, foi mais um dos vários aspectos abordados por Cabral com vista a descrever a ordem social colonial como também a prescrever a ordem pós-colonial em construção. Cabral, em traves mestras, assumiu, como era bem comum na altura, que as línguas africanas, em particular a língua crioula, não estavam adequadas para muitas das funções da modernidade. A conclusão chegada por Cabral era de que a língua portuguesa - e, por extensão as línguas ocidentais - constituía a língua da modernidade, isto é, um instrumento de comunicação que melhor consegue transmitir os aspectos e situações da vida moderna, mormente a ciência e a tecnologia.

A estratégia definida neste ensaio é a de que uma melhor compreensão da linguística política cabraliana é possível com base no método comparativo. Com base nisto, procurou-se comparar e contrastar as ideias linguísticas de Cabral com as do Franz Fanon, outro grande nacionalista anticolonial caribenho-africano. Para este fim, as linguísticas políticas destes dois grandes reis da filosofia política africana foram abordadas em termos de três vectores de comparação a saber: primeiro, a nível da relação entre a cultura e a língua. Argumentou-se que enquanto Fanon optou por uma relação de causalidade radical onde a língua determina a mundivisão (e, logo, a cultura), a perspectiva cabraliana era muito menos radical, evitando, assim quaisquer posições deterministas.

Um segundo vector de comparação usado foi a nível da relação entre a língua (colonial, claro está) e o fenómeno da alienação colonial. Fanon acreditava que o uso da língua francesa, a língua do colonizador, traria graves consequências na psicologia do colonizado. A língua traria e reforçaria o estado alienado do sujeito colonial, dado que o uso da língua colonial significa não só uma total identificação com a cultura metropolitana como também uma rejeição - ou mesmo ridicularização - da cultura nativa, como prega o discurso colonial.

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Abel Djassi AmadoLíngua, Modernidade e Libertação: A Linguística Política de Amílcar Cabral

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Por fim, tentou-se entender Cabral e Fanon em termos dos seus pensamentos sobre a relação existente entre a língua e a modernidade/libertação. Fanon propôs a ideia de uma libertação total, isto é, a todos os níveis. Uma verdadeira libertação das garras coloniais deveria ser totalizante, onde a ruptura com o colonial deveria ser generalizado. Neste aspecto, e, fundamentalmente, a descolonização teria de ser uma descolonização linguística. A língua do colonizador teria de ser completamente abandonada sob pena de o seu contínuo uso minar as aspirações liberatórias do colonizado. A perspectiva cabraliana encontra-se no outro extremo do continuum. Cabral manteve que a língua do colonizador poderia, na verdade, ser um verdadeiro instrumento de libertação. Sendo um homem que tinha grande apego pelo progresso e modernidade, Cabral acreditava que a língua portuguesa, e não as línguas africanas, poderia facilitar o longo caminho à libertação e progresso.

Este ensaio é apenas uma das primeiras reflexões sobre o pensamento linguístico de Cabral. Pouco ou quase nada sobre isso tem merecido atenção dos estudiosos de Cabral ou dos que focam na questão da língua no pós-colonial Cabo Verde ou Guiné-Bissau. Este artigo então permite dar um ponta pé de saída para um debate mais alargado e profundo sobre a política linguística cabraliana, com vista a uma melhor compreensão da totalidade do pensamento de Cabral. Ao mesmo tempo, dado o estado de debate linguístico contínuo em Cabo Verde, particularmente nos últimos 15 anos, um estudo sobre a linguística cabraliana permite desmistificar grandes inverdades que têm sido imputados a Cabral. Um estudo sério sobre o pensamento linguístico de Cabral tem de ser feito em função do contexto e em relação aos temas centrais do seu pensamento político - mormente a questão da cultura, da diferença entre a independência nacional e libertação nacional, a questão da dignidade, entre ouros.

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III PARTE

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A educação, o conhecimento e a cultura na práxis de libertação nacional de Amílcar Cabral

Bartolomeu Varela

Universidade de Cabo Verde

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Resumo

A concepção de libertação nacional de Amílcar Cabral, que ultrapassa os marcos da conquista formal da Independência e implica a remoção de todos os obstáculos ao livre desenvolvimento das forças produtivas e de todas as formas de subjugação da pessoa humana, é indissociável da luta contra a ignorância e pela promoção do conhecimento e da cultura.

Encarada, de resto, como manifestação genuína da cultura e como acto de cultura, a luta de libertação nacional não só se fundamenta e se inspira na cultura como influencia esta última (Cabral, 1972), orientando-se para a construção de uma sociedade nova, livre e de progresso, em que o poder esteja nas mãos e ao serviço do povo. Para ser vitoriosa, a gesta libertadora exige, pois, a par do recurso ao “poder das armas”, que se mostrou inevitável para fazer face à repressão colonial, a utilização da “arma da teoria” ou do conhecimento.

No contexto da libertação nacional, Cabral não só delineia como enceta a implementação das bases de um novo paradigma educacional que, pelo seu carácter emancipatório, humanista e progressista, contraria os pressupostos do ensino colonial e, no essencial, mantém toda a sua actualidade.

Palavras-chave: libertação nacional; educação; conhecimento; cultura.

1. Da pedagogia da revolução à aposta na educação e na formação

Nos conturbados tempos de hoje, a obsessão pelo mercado continua a ser tendência dominante no referencial das políticas educativas e das prescrições curriculares à escala global, não obstante as evidências de que a actual crise internacional é largamente tributária do falhanço das políticas ultraliberais de crença cega nas alegadas virtudes da desregulação da economia

No actual contexto, em que se propugnam processos amplos de convergência e uniformização da educação e do currículo, na base da ideia de que “tudo se torna igual, independentemente dos contextos nacionais” (Pacheco, 2011, p. 15), subvalorizando-se quer a natureza emancipadora da educação quer a sua função de promoção da diversidade cultural e

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identitária dos povos, afigura-se oportuno invocar o contributo de homens que, como Amílcar Cabral, lutaram em prol de uma sociedade assente no ideário da liberdade e da dignidade da pessoa humana, do progresso solidário e da justiça social, para cuja construção concorrem, de forma decisiva, a educação e a formação.

Amílcar Cabral, filho de cabo-verdianos e nascido na então Guiné Portuguesa, em 1924, era um agrónomo de formação e não um especialista das ciências da educação, mas, pelo modo peculiar como concebeu e empreendeu a luta de libertação nacional, não só se tornou num “pedagogo da revolução”1, que “encarnou perfeitamente o sonho de libertação de seu povo e os procedimentos políticos pedagógicos para a realização desse sonho” (Freire, 2008, p.5), como encontrou na educação uma das “armas” mais poderosas para lograr esse desiderato.

Com efeito, Cabral sempre se apercebeu de que a educação era uma garantia do sucesso da própria luta de libertação nacional, razão porque não só promoveu a formação militar, académica e cultural de quadros, no estrangeiro e no terreno da luta, ministrando, ele próprio, vários seminários de quadros, de que temos eco através de diversos textos de sua autoria, como empreendeu uma importante actividade de educação das crianças que, com as suas famílias, iam sendo subtraídas ao jugo colonial na Guiné-Bissau, sendo disso exemplo a criação da escola-piloto, em Dezembro de 1964, no bairro de Ratoma, nos subúrbios de Conakry, que funcionava em regime de internato, à qual se seguiriam, mais tarde, várias escolas nas regiões libertadas, conforme nos dá conta Luís Cabral, irmão de Amílcar, na sua “Crónica da Libertação” (1984).

Referindo-se a uma destas facetas do labor pedagógico de Cabral, diz Freire (Ibid. p. 7): “os seus textos na sua maioria são resultados exactamente de extraordinários seminários, muitos dos quais feitos em plena selva, como avaliação do processo de luta, de luta armada etc.”

O próprio Amílcar refere-se a uma das suas primeiras iniciativas de formação dos militantes que foi a criação, em Conackry, em 1960, ainda que em “condições miseráveis”, de “uma escola política” para onde foram enviados, em primeiro lugar, os militantes das cidades, mas 1 Cf. Freire, P. (2008). Amílcar Cabral, o pedagogo da revolução. Brasília: Universidade de Brasília. Este trabalho foi organizado por Laura Maria Coutinho e outros, com base numa Palestra gravada de Paulo Freire no Curso de Mestrado da Faculdade de Educação Universidade de Brasília, em 8 de Novembro de 1985.

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depois os camponeses e os jovens mobilizados, aos quais era ministrada uma “formação intensiva, durante um ou dois meses, “para os preparar politicamente e para que fossem treinados e soubessem mobilizar o povo para a luta” (Cabral, 1974a, pp. 87-88).

Em relação à estratégia e à práxis de formação de Cabral, vale a pena transcrever aqui alguns excertos do já citado trabalho de Paulo Freire, que viria a ser publicado postumamente sob o título “Amílcar Cabral, pedagogo da revolução”, o mesmo que o pedagogo brasileiro havia escolhido para um projeto de obra sobre a “biografia da práxis de Cabral”, mas que não chegou a levar a efeito por ter perdido uma dezena de cassetes com entrevistas a vários guineenses e cabo-verdianos que lidaram de perto com o fundador do PAIGC2 (Freire, Ibid. p. 3). No extrato da palestra, que se segue, Paulo Freire dá conta de um dos testemunhos que pôde preservar. Vejamos:

“Amílcar conversava, avaliava o processo de luta, e em certo momento disse: “Eu preciso retirar duzentos de vocês da frente da luta, para mandar para outra frente de luta. Eu preciso de duzentos de vocês para mandar para Conacri, para Instituto de Capacitação, para capacitar os duzentos e depois trazê-los para o interior do país para as zonas libertadas, no sentido de trabalhar como professores”.

E aí o jovem olha para mim e diz, vejam como é um raciocínio assim muito imediato. Muito parecido com milhares de raciocínios nossos no Brasil e na América Latina. Disse: “Como é que eu, que estava com um fuzil na mão, vendo o meu companheiro cair morto junto de mim, os tugas matando a gente, como é que eu podia naquela hora pensar que pudesse haver a possibilidade de duzentos de nós saírem da frente de luta para ir estudar.” Então a minha reação foi a seguinte: Mas, camarada Amílcar, esse negócio de educação fica para depois.

Você veja que essa reflexão é extraordinariamente igual à de milhares de nós aqui na América Latina, para não falar

2 PAIGC é a sigla de Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde, fundado por Amílcar Cabral e um grupo de companheiros em 19 de Setembro de 1956, na Guiné-Bissau, que conduziu vitori-osamente a luta de libertação nacional na Guiné e Cabo Verde.

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só no Brasil. “– Então camarada Cabral, esse negócio de educação, fica pra quando a gente botar os tugas para fora, aí agente pensa na educação, e aí a gente se forma, se capacita. Eu pensava que o camarada Cabral ia trazer para cá mais duzentos guerrilheiros, e não tirar duzentos de cá”. E Cabral vai e diz a ele: “E por que você acha que não está certo isso?” E o moço diz: “Porque a gente não pode perder essa guerra”. Cabral então diz: “Mas é exatamente para não perder a guerra, que eu preciso de duzentos de vocês”.Isso é um diálogo lindo. Isso é um negócio, para mim, extraordinário! E o moço continuava sem acreditar e sem entender, sobretudo.” (Freire, Ibid., p. 8)

No seguinte extrato da sua palestra, Paulo Freire retoma o testemunho desse entrevistado sobre a estratégia de formação concebida por Cabral:

“… E aí dizia Amílcar: “– E o que acontece é que daqui a cinco anos por aí, seis, quando essa geração que está aí jovenzinha, chegar ao momento da luta definitiva, vai precisar de instrumentos de guerra, que não são os que vocês estão usando, mas instrumentos de guerra que vão exigir conhecimento matemático que vocês não tiveram e nem têm, são acontecimentos científicos de que a geração outra vai precisar.

Aí disse ele: “- E o que nós precisamos no momento é exatamente levar duzentos de vocês, para serem formados no sentido de voltar a formar cá”. O moço me olha e me diz: “- Camarada Paulo, eu fui então para Conacri. Confesso ao senhor que eu fui sem entender muito, mas fui. Estudei, capacitei-me e voltei. Formei quadros aqui que eram realmente os quadros da geração que tinha que ganhar, e vi alunos que estudaram comigo derrubando aviões tugas, com foguetes, esses foguetes soviéticos”. Parou, olhou para mim e disse:

“Camarada Paulo Freire, foi por isso que no começo eu disse ao senhor que eu sou capaz de pensar seiscentos

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metros em torno de mim, e que o camarada Cabral pensava seis anos na frente dele” (Freire, Ibid., pág.10).

2. A ligação da teoria à prática como pressuposto da transformação da realidade

Partindo de uma concepção de libertação nacional que não se limita à conquista da Independência, com o içar da bandeira nacional, mas implica a plena emancipação do homem e, designadamente, a “libertação das forças produtivas humanas e materiais da nossa terra, no sentido delas se poderem desenvolver plenamente de acordo com as condições históricas que a gente está vivendo hoje em dia” (Cabral, 1974a, p. 111), Amílcar Cabral patenteia o contributo decisivo da “arma da teoria”, isto é, do conhecimento científico, para o sucesso das revoluções de libertação nacional, lembrando que:

“Se é verdade que uma revolução pode falhar mesmo alimentada por teorias perfeitamente concebidas, ainda ninguém realizou uma revolução vitoriosa sem teoria revolucionária” (Cabral, 1974a, p. 41).

A ligação teoria-prática em Amílcar Cabral evidencia-se na sua própria actuação como líder, que aliava o discurso esclarecido ao imperativo de o levar à prática, exortando, do mesmo passo, cada combatente no sentido de “pensar para agir e agir para melhor pensar” (Cabral, 1974b, p. 15).

Dele dizia Paulo Freire, referindo-se à iniciativa de levar os quadros combatentes para os seminários: “no fundo, Amílcar foi um extraordinário teórico, por isso foi um excelente prático, praticista” (Freire, Ibid., pág. 8).

Uma das principais fraquezas que Cabral procurava desvanecer no pensamento e na acção dos combatentes tinha a ver, precisamente, com a dificuldade de aliar a tomada das decisões à acção concreta para a sua operacionalização, o que ficava a dever-se à “interpretação mágica da realidade”, fenómeno que explicava nestes termos:

“Se nos sentarmos e discutirmos muito bem um assunto, em que todos estão de acordo, pensamos que a coisa já está feita, ficamos contentes e se for preciso até fazemos

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uma festa, porque a discussão foi muito boa. Mas acaba a discussão, cada um sai satisfeito da vida, porque vai fazer um bom trabalho, mas não trata de fazê-lo porque está-lhe já feito na cabeça” (Cabral, 1974b, p. 206).

Por outro lado, a relevância do conhecimento científico da realidade política, económica, social e cultural, como pressuposto da sua transformação, foi salientada por Cabral, ao observar que “a nossa própria realidade não pode ser transformada a não ser pelo seu conhecimento concreto” (Cabral, 1974a, p. 39).

Com efeito, a libertação nacional e a revolução social “não são mercadorias de exportação”, mas “produto duma elaboração local, nacional, mais ou menos influenciadas por factores externos favoráveis e desfavoráveis, mas essencialmente determinadas e condicionadas pela realidade histórica de cada povo” (Ibid. p. 39). Fica, deste modo, evidente que, para Cabral, a produção autóctone do conhecimento, através da investigação, era de grande relevância para o sucesso da gesta libertadora.

De resto, o próprio Cabral só desencadeou a luta armada de libertação na Guiné depois de ter realizado, enquanto agrónomo, o “Recenseamento Agrícola da Guiné” (Cabral, 1956), que lhe permitiu “conhecer mais de perto as populações e os seus problemas” (Pereira, 2002, p. 83), munindo-se, assim, de um referencial de conhecimento científico que viria a mostrar-se fundamental para o trabalho de “mobilização urbana que se lhe seguiu” (Ibid., p. 83) e, em geral, para a liderança de todo o processo libertador.

Fazendo jus à importância que atribuía ao conhecimento no processo de libertação nacional, Cabral instava os responsáveis a dedicarem-se seriamente ao estudo e a “melhorar dia a dia os seus conhecimentos, a sua cultura e a sua formação política”, lembrando que “ninguém pode saber sem aprender e que a pessoa mais ignorante é aquela que sabe sem ter aprendido” (Cabral, 1974b, p. 52).

3. Por uma aprendizagem multifacetada e permanente

A concepção multifacetada de aprendizagem defendida por Cabral, há cerca de quatro décadas, mantém a sua atualidade, ao pôr em relevo o imperativo de aliar o conhecimento experiencial, à aprendizagem social, ao saber científico e à aprendizagem ao longo da vida. Formulou esta

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concepção em termos simples, como era, de resto, o estilo discursivo de Cabral, de modo a fazer-se compreender pelos combatentes:

“Aprender na vida, aprender junto do nosso povo, aprender nos livros e nas experiências dos outros. Aprender sempre”. (Ibid., p. 52).

A ideia cabralista de “aprender sempre” corresponde ao slogan, muito em voga, hoje em dia, nos discursos educacionais, de “aprendizagem ao longo da vida”, entendida como “toda a atividade de aprendizagem em qualquer momento da vida, com o objectivo de melhorar os conhecimentos, as aptidões e competências, no quadro de uma perspectiva pessoal, cívica, social e/ou relacionada com o emprego”3.

Não sendo esta uma concepção nova, as proposições de aprendizagem ao longo da vida, como bem salienta Kallen (1996), estiveram longe de ser bem sucedidas, facto que, na nossa perspectiva, tem muito a ver com as tergiversações que, amiúde, acompanham a utilização desta expressão, que tanto serve para fundamentar o empowerment das pessoas através de uma proposta de educação emancipadora, que as prepare para enfrentar os desafios da vida política, cultural, económica, social e profissional, como para o afunilamento do acto educativo na perspectiva redutora da inserção e adaptação no mercado de trabalho.

Ao longo dos textos de Cabral, não só perpassa a ideia de que a luta para a independência e o progresso só pode ter sucesso mediante a aposta na educação e na aprendizagem como se evidencia uma práxis consequente. Assim, Amílcar Cabral procurava criar condições para que a cultura e o saber fossem acessíveis a todos, nomeadamente através do cultivo da leitura:

“Criar, a pouco e pouco, bibliotecas simples nas zonas e regiões libertadas, emprestar aos outros os livros de que dispomos, ajudar os outros a aprender a ler um livro, o jornal e a compreender aquilo que se lê (…) Levar os que lêem a discutir e a dar opinião sobre o que leram” (Cabral, 1974b, p. 53).

3 Cf. Documento de trabalho dos serviços da Comissão Europeia apresentado em Novembro de 2000, citado por Sitoe, R. M. (Org.) (2006). “Aprendizagem ao Longo da Vida: Um conceito utópico? In COM-PORTAMENTO ORGANIZACIONAL E GESTÃO, 2006, VOL. 12, N.º 2, 283-290

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Como se sabe, esta é, atualmente, uma das medidas de política educativa e cultural que visa a promoção do alfabetismo funcional, entendido como “a capacidade de utilizar a leitura e a escrita para fins pragmáticos, em contextos quotidianos, domésticos ou de trabalho, muitas vezes colocado em contraposição a uma concepção mais tradicional e académica, fortemente referida a práticas de leitura com fins estéticos e à erudição (Ribeiro, 1997, p. 145), em contraponto com o chamado analfabetismo funcional, que, a contrario sensu, ocorre quando não se verifica a “adequação dos currículos escolares com relação às demandas da sociedade” (Ibid. p.146)

Cabe lembrar, a propósito do analfabetismo funcional, uma experiência feita por Cabral, em 1949, quando, ainda estudante de agronomia, foi gozar as férias em Cabo Verde: em algumas localidades, dava-se a ler o jornal a indivíduos que haviam feito o 2º grau (antigo 4º ano de escolaridade), há 4 ou 5 anos, e o resultado era que “não sabiam ler nada, porque lêem, mas não sabem o que estão a ler”, pelo que os considerava “analfabetos que conheciam as letras”, remarcando, todavia, que isso não acontecia apenas ali, pois “há muita gente assim e até, às vezes, doutores” (Cabral, 1974b, p. 116).

4. A práxis educativa: do discurso aos actos, por mais e melhor educação

Procurando aliar o discurso político à prática, Cabral e os seus companheiros de luta tratam de edificar uma vida nova nas regiões libertadas, em diversos domínios, de entre os quais se destaca a educação, que contribuía, assim, para o surgimento de um homem novo e uma mulher nova na Guiné-Bissau (Cabral, 1969, p. 31). E é assim que, em Outubro de 1972, quando fazia o balanço da luta da independência perante a IV Comissão da XXVII Assembleia Geral das Nações Unidas, numa das últimas intervenções que fez antes do seu assassinato, em 20 de Janeiro de 1973, Cabral não deixa de exprimir o seu orgulho pelos resultados da luta, destacando, de entre outros: o desabrochar das escolas, “que funcionam em pleno dia apesar dos bombardeamentos”; os “milhares de adultos alfabetizados”; os “497 quadros superiores, médios e profissionais” formados durante a luta; o facto de, nessa altura, “495 rapazes e raparigas frequentarem escolas superiores, médias e profissionais em países da

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Europa, enquanto 15.000 crianças escolarizadas frequentam 156 escolas primárias e 5 escolas secundárias (…), onde o ensino lhes é ministrado por 251 professores e professoras” (Cabral, 1974a, p. 151).

Mas, para Cabral, é evidente que a obra educativa não deve ser avaliada apenas em termos estatísticos. Tal é o que se pode descortinar nas “palavras de ordem” dirigidas aos quadros e combatentes, mormente quando chama a atenção para a necessidade de melhorar o conhecimento, através da educação e da formação, preconizando um conjunto de medidas de política que, além da criação de escolas e cursos de alfabetização e da formação de quadros, incluíam a promoção da qualidade do ensino, assim como a valorização da cultura e das manifestações culturais.

Assim, a directiva de “melhorar o trabalho nas escolas” é acompanhada de recomendações no sentido de: “evitar um número elevado de alunos”, susceptível de prejudicar o seu aproveitamento escolar; criar escolas de acordo com as “possibilidades reais” existentes, para que não se tenha de fechá-las posteriormente; “controlar frequentemente o trabalho dos professores e os métodos que empregam”; desencorajar a aplicação dos “castigos corporais” aos alunos; “cumprir rigorosamente os programas” de ensino; “criar cursos especiais para a formação e aperfeiçoamento de professores”; aplicar sanções a “todos os professores que não cumprem os seus deveres” (Cabral, 1974b, pp. 49-50).

Ciente do papel das famílias na educação, o líder instava à colaboração dos pais, sem deixar de reconhecer que as crianças escolarizadas devem ajudar as suas famílias, numa postura de responsabilização dos alunos que, obviamente, nada tem a ver com a exploração do trabalho infantil:

“Convencer os pais da necessidade absoluta de os seus filhos e filhas frequentarem as escolas, mas organizar a actividade dos alunos de maneira a também serem úteis nas suas casas, a ajudarem a família”.

A estratégia de alfabetização de adultos concebida por Cabral deveria ser implementada mediante a criação de uma ampla rede colaborativa, tal como se pode extrair da “palavra de ordem” de que “todos os que sabem devem ensinar aos que não sabem” (Ibid., p. 50).

De resto, a acção educativa, em particular, a actividade do ensino,

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não constitui tarefa ou obrigação exclusiva do professor. “Não devemos deixar o trabalho de ensinar só aos professores”- dizia Cabral, apelando no sentido de se fazer de “cada conversa de um camarada (…), seja de que nível for (…), “um estudo, uma lição” (Ibid., p. 212).

Ciente da importância da formação no estrangeiro, no âmbito da batalha “para garantir os quadros necessários para o desenvolvimento”, Cabral alertava, entretanto, para “a mania de deixar o país para ir estudar” e “a ambição cega de ser doutor”, assim como para “o complexo de inferioridade e a ideia errada de que os que estudam e tiram cursos terão privilégios”, reprovando, do mesmo passo, a “má vontade” de responsáveis “contra os que estudam ou desejam estudar” (Ibid., p. 51) ”.

Insistindo na necessidade de “evitar o complexo de superioridade da parte dos que sabem alguma coisa e o complexo de inferioridade da parte dos que não sabem”, Cabral salientava, em particular, que “uma pessoa que é capaz de ensinar não deve afastar-se de ninguém, quanto mais agora do nosso povo” (Ibid., p. 212).

Se Amílcar Cabral recomendava o estreitamento da ligação dos quadros com o povo, “o pedagogo da revolução” alertava, no entanto, para duas tendências negativas: a daquele que vai estudar e, ao regressar, “confunde-se tanto com a nossa gente que só faz os erros próprios da nossa gente” e a de outros que “vêm, engenheiros formados, e querem logo ser dirigentes” (Cabral, 1974b, pp. 212). Posicionando-se contra estes dois extremos, diz Cabral: “o que nós queremos é que aqueles que foram estudar, que adquiriram mais conhecimentos (…), respeitem os nossos dirigentes” (Ibid., p. 212) e, caso constatarem alguma deficiência, ajudem “a levantar cada vez mais, a melhorar o nível das nossas coisas” Ibid., p. 213).

5. A educação, o humanismo e a igualdade dos géneros

O carácter humanista da visão de educação em Amílcar Cabral está bem patente na atenção especial que, segundo ele, deve ser dada, nomeadamente, às crianças e às mulheres. Referindo-se às primeiras, defendia, nas suas “palavras de ordem”, que se deve “dar atenção especial à vida das crianças, desenvolver a sua personalidade e protegê-las contra os abusos, mesmo da parte dos pais e parentes” (Cabral, 1974b, p. 51).

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Dizia, ainda, Cabral:

“Não queremos na nossa terra amanhã (…) que os filhos tenham medo dos pais, não, eles devem ter respeito, não medo. Não queremos mais na nossa terra que se amarrem as crianças para lhes baterem. (…) que se amarre ninguém para lhe bater” (Ibid., p 139).

“O mais maravilhoso, o mais delicado que há no mundo, são as crianças. Às crianças devemos dar o melhor que temos. Devemos educá-las para se levantarem com o espírito aberto, para entenderem as coisas, para serem boas, boas, para evitarem toda a espécie de maldade. Portanto nunca devemos fazer-lhes mal algum …” (Ibid., p. 189).

Não é de estranhar, pois, a indignação que se descortina na seguinte frase do líder da luta de libertação dos povos guineense e cabo-verdiano: “é medonha a maneira como se bate nas crianças da nossa terra” (Ibid., p. 201).

Referimo-nos, atrás, ao facto de Cabral aludir à necessidade de frequência escolar por parte dos “filhos e filhas”, questão da maior relevância, posto que, como se sabe, as crianças do sexo feminino foram, ao longo dos tempos, discriminadas na frequência dos estabelecimentos de ensino e, ainda hoje, a igualdade de acesso à educação por parte das crianças de ambos os sexos é um problema que se procura resolver, constituindo um dos objectivos do desenvolvimento do milénio, a alcançar até 2015, de acordo com uma Resolução adoptada pelas Nações Unidas:

“Velar por que, até esse mesmo ano, as crianças de todo o mundo – rapazes e raparigas – possam concluir um ciclo completo de ensino primário e por que as crianças de ambos os sexos tenham acesso igual a todos os níveis de ensino” (Nações Unidas, 2000, p. 9).

Em relação às mulheres, importa realçar que, nas suas palavras de ordem, Cabral não só formula a directiva de “defender os direitos da mulher, respeitar e fazer respeitar as mulheres”, mas também a necessidade de “convencer as mulheres da nossa terra de que a sua libertação deve ser

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obra delas mesmas, pelo seu trabalho (…), respeito próprio, personalidade e firmeza diante de tudo quanto possa ser contra a sua dignidade” (Cabral, 1974b, pp. 51-52).

De notar que a postura de defesa intransigente dos direitos da criança e da mulher por parte de Amílcar Cabral tem lugar cerca de duas décadas antes de terem sido aprovadas pelas Nações Unidas a “Convenção dos Direitos da Criança” (1989) e a “Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres (1984) e no contexto particular de uma luta armada de libertação nacional, em que a dureza dos sacrifícios e as inevitáveis mortes no campo das batalhas travadas poderiam, eventualmente, tolher a sensibilidade de um dirigente face aos direitos da criança e da mulher.

Tal posicionamento de Cabral é coerente com a sua visão estratégica da luta de libertação, que deve substituir o poder colonial por um poder de novo tipo, um poder “que vem do povo, da maioria” (Cabral, 1974b, p. 64) e que permita a “toda a gente ter possibilidade de avançar, homens ou mulheres” (Ibid. p. 142).

6. A educação, a cultura e as línguas de ensino

Referindo-se ao ensino colonial, Cabral assinalava alguns dos seus traços característicos, que evidenciavam a necessidade de sua substituição por uma educação de novo tipo:

“Toda a educação portuguesa deprecia a cultura e a civilização do africano. As línguas africanas estão proibidas nas escolas. O homem branco é sempre apresentado como um ser superior e o africano como um inferior. As crianças africanas adquirem um complexo de inferioridade ao entrarem na escola primária. Aprendem a temer o homem branco e a terem vergonha de serem africanos. A geografia, a história e a cultura de África não são mencionadas, ou são adulteradas, e a criança é obrigada a estudar a geografia e a história portuguesa“ (Cabral, 1978, p. 64).

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Ora, “uma sociedade que se liberta verdadeiramente do jugo estrangeiro retoma os caminhos ascendentes da sua própria cultura que se alimenta da realidade do meio e nega tanto as influências nocivas como qualquer espécie de sujeição a culturas estrangeiras”, razão por que “a luta de libertação nacional é, antes de tudo, um acto de cultura (Cabral, 1975, apud Andrade 1984, p. 280). Dito de outro modo, “se o domínio imperialista tem como necessidade vital praticar a opressão cultural, a libertação nacional é, necessariamente, um acto de cultura” (Cabral, 1999, p. 7). Por seu turno, “ao nível individual e colectivo, a identidade é (…) expressão da cultura” (Cabral, 1977, apud Andrade, Ibid., p. 284), sem deixar de ser influenciada por outros fatores.

Se o triunfo da luta exige uma forte aposta na cultura, a pedagogia da cultura é uma das dimensões da práxis de libertação nacional de Amílcar Cabral. Assim, este defende a promoção da cultura, nas suas diversas manifestações, sem deixar, contudo, de advertir que os “usos, costumes e tradições” populares devem ser respeitados “desde que não sejam contra a dignidade humana, contra o respeito que devemos ter para cada homem, mulher ou criança” (Cabral, 1974b, p. 51). Por outro lado, o líder da luta de libertação nacional chama a atenção para a necessidade de se acabar com a atitude de “indiferença da nossa gente em matéria de cultura” (Ibid., p. 217)

Se a pedagogia da libertação de Cabral repousava, fortemente, na defesa da identidade e da cultura nacional, esta posição não significava desprezar a cultura dos outros, implicando, antes, o seu aproveitamento “em tudo quanto é bom para nós, tudo quanto possa ser adaptado às nossas condições de vida”, pois que “a nossa cultura deve desenvolver-se numa base de ciência, deve ser científica” (Cabral, 1974b, pp. 198-199).

Assim, Cabral combatia tanto a aceitação acrítica como a negação absoluta de tudo quanto é do estrangeiro, insistindo que “devemos saber, diante das coisas do estrangeiro aceitar aquilo que é aceitável e recusar o que não presta”, o que exige a capacidade “assimilação crítica” (Ibid. p. 217).

A visão de Amílcar Cabral sobre a cultura tende, pois, para a “multiculturalidade” que, na acepção de Paulo Freire (2003, p. 156), “não se constitui na justaposição de culturas”, nem muito menos na sobreposição de uma cultura sobre as outras, mas na “liberdade conquistada” de cada

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uma delas se mover no respeito pela outra, correndo, livremente, “o risco de ser diferente, sem medo de se se diferente”

Defensor consequente da cultura e da identidade dos povos guineense e cabo-verdiano, Cabral posicionava-se, entretanto, contra qualquer tipo de oportunismo, referindo-se, nomeadamente, aos “camaradas que pensam que, para ensinar na nossa terra, é fundamental ensinar em crioulo já”, ou então “em fula, em mandinga, em balanta” (Cabral, 1974b, p. 213).

Apologista do ensino em crioulo, mas só depois de o mesmo ser bem estudado, Cabral sustenta que, antes disso, “a nossa língua para escrever é o português” (1974a, p. 213). Apelando ao sentido de realismo, e sem proibir que ninguém escreva em crioulo, sustenta que “o português (língua) é uma das melhores coisas que os tugas nos deixaram” (p. 214) e que, “se queremos levar para a frente o nosso povo, durante muito tempo ainda, para escrevermos, para avançarmos na ciência, a nossa língua tem que ser o português” (Ibid., pp. 215-216), “até um dia em que, tendo estudado profundamente o crioulo, encontrando todas as regras de fonética boas para o crioulo, possamos passar a escrever o crioulo” (Ibid., p. 216).

Cerca de quatro décadas depois, constata-se que as palavras de Cabral não deixaram de ser boas conselheiras, designadamente para os governantes cabo-verdianos, que vêm procurando criar as condições necessárias à utilização do crioulo cabo-verdiano como língua oficial e de ensino, sem prejuízo do estatuto da língua portuguesa, cujo ensino deve ser, entretanto, aprimorado mediante a utilização de uma metodologia mais apropriada, em coerência, aliás, com as opções consagradas na artº 9º da Constituição da República:

“1. É língua oficial, o Português.

2. O Estado promove as condições para a oficialização da língua materna cabo-verdiana, em paridade com a língua portuguesa.

3. Todos os cidadãos nacionais têm o dever de conhecer as línguas oficiais e o direito de usá-las”.

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7. A capacidade comunicativa como grande esteio da pedagogia cabralista

Qualquer estudioso da obra escrita de Cabral - não tão extensa como poderia ter sido caso a sua vida não tivesse sido ceifada, tão prematuramente, a 20 de Janeiro de 1973 - fica surpreendido com a sua extraordinária capacidade de explicar questões de grande complexidade teórica através de uma linguagem simples e acessível aos combatentes, na sua maioria com baixo nível de instrução, o que faz dele um pedagogo nato.

Paulo Freire alude a esta capacidade comunicativa, própria de educadores de grande estirpe, com estas palavras:

“Uma coisa que eu aprendi muito com Cabral, foi como um educador progressista precisa fazer-se simples, sem, porém, jamais virar simplista. Isso me parece fantástico. Pegue os textos de Cabral, e eles são realmente simples, mas não simplistas. Para mim o simplismo, é uma expressão fantástica, contundente do elitismo, é pior até do que o populismo, mas coincide muito com certas vocações populistas. Quer dizer, no fundo o simplismo é autoritário.

O simplista é aquele que diz: como vou falar a essa gente que não é capaz de me entender. Então ele fala meias verdades, quartos de verdade, não são nem meias verdade, são pitadas de verdades. O simplista é aquele que diz: como vou falar a essa gente que não é capaz de me entender. Então ele fala meias verdades, quartos de verdade, não são nem meias verdade, são pitadas de verdades.

Em Cabral a gente vê o contrário disso, o que Cabral faz é buscar, com simplicidade, falar do concreto seriamente” (Freire, Ibid., p. 15).

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À laia de conclusão

O principal arquiteto da Independência da Guiné e Cabo Verde atribuía grande relevância à arma do conhecimento para a compreensão e a transformação da realidade política, social e cultural dos dois povos, no quadro de uma luta de libertação que, iniciada em 1956, não culminaria com a mera proclamação formal da Independência, mas deveria prosseguir com vista à plena emancipação do homem, com a remoção de todos os obstáculos ao seu livre desabrochar e desenvolvimento.

Consequentemente, Cabral não só empreendeu uma importante ação educativa e formativa, como se baseou nas armas da teoria, da educação e da cultura para potenciar o sucesso da gesta libertadora e criar uma vida nova na sociedade que ia sendo libertada do jugo colonial.

Não satisfeito com a mera garantia do acesso à educação, Cabral almejava e, de modo coerente, defendia a melhoria do trabalho nas escolas, ciente de que a tarefa da educação não é responsabilidade exclusiva destas. Outrossim, defendia um paradigma educacional impregnado de profundo humanismo, assente nos valores da cultura nacional, mas aberto à cultura universal e ao conhecimento científico.

Não sendo Cabral um especialista das Ciências da Educação, suas contribuições em matéria da educação devem ser analisadas tendo em conta o contexto da sua época e os condicionalismos próprios de uma luta de libertação. Todavia, as opções por ele defendidas no campo educativo continuam, de um modo geral, de manifesta pertinência, mormente quando se constata que, na falta de dominação colonialista clássica, os povos fazem face a novas e subtis formas ou tentativas de subjugação e domínio, através da educação.

Hoje, como no passado, a educação não é “um empreendimento neutro” (Apple, 1999, p. 21), nem a escola é um “espelho passivo” (Ibid., p. 80), A educação continua, assim, a ser terreno de controvérsias e lutas, envolvendo, de um lado, os que dela procuram servir-se para a consecução de propósitos de dominação e, de outro lado, os que a encaram na perspectiva da emancipação e da promoção integral do homem. Estes últimos encontram nas ideias de Amílcar Cabral, como nas de Paulo Freire, entre outros, fonte de inspiração e encorajamento.

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José Luís Hopffer Almada

Academia Caboverdiana de Letras

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Resumo

Este artigo faz o contraponto entre as diversas sensibilidades do nativismo caboverdiano: o nativismo bipartido da geração pré-claridosa; o nativismo telúrico da geração claridosa; e o nativismo da reafricanização dos espíritos, protagonizado por Amílcar Cabral. O trabalho pretende, ainda, reflectir sobre o pensamento de Amílcar Cabral sobretudo no que tange ao sentido de “pátria africana”, projecto correlato ao princípio da unidade Guiné/Cabo Verde. Também se discute sobre os desdobramentos desse princípio na conquista das soberanias nacionais ocorridas no período pós-25 de Abril e a construção do sentimento nacionalista cabo-verdiano.

Palavras-chave:Unidade Guiné/Cabo Verde; Amílcar Cabral; nacionalismo.

Breve nota introdutória

Segundo escreve Onésimo Silveira no ensaio “O Nativismo Cabo-Verdiano: O Caso Amílcar Cabral” (A Democracia Cabo-Verdiana, Edições Colibri, Lisboa, 2005), à “deriva literária do nativismo” que teria sido o movimento claridoso ter-se-lhe-ia seguido uma nova fase do nativismo de conteúdo essencialmente político e encabeçado por Amílcar Cabral.

Esta derradeira manifestação do nativismo cabo-verdiano transportaria, em si, os gérmenes do antinativismo, na medida em que seria de natureza nacionalista e projetada num quadro pan-africanista de unidade Guiné-Cabo Verde. Por esta última razão, ela estaria também pejada das ambiguidades advenientes da teoria cabraliana da “reafricanização dos espíritos”, alegadamente inoperante para o caso de um povo mestiço, como o é o povo cabo-verdiano.

Assevera Onésimo Silveira que falida a teoria, ganhava-se uma praxis política fundada na unidade de acção entre cabo-verdianos e guineenses e materialmente consubstanciada na obtenção da independência nacional. Os nativistas teriam assim visto “duas pátrias virtuais a voar”, mas obtiveram, finalmente, a pátria cabo-verdiana, livre e soberana, conclui Onésimo Silveira.

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Lealdade bipartida e “pátria africana”

Infelizmente omissa, ou, pelo menos, insuficiente, no contexto da problematização dos pressupostos políticos e culturais originários do nativismo, pareceu-nos ter ficado a análise da problemática da unidade Guiné-Cabo Verde e do projeto nela ínsito de construção progressiva de “uma pátria africana una e liberta da exploração do homem pelo homem”.

Se nos ativermos tão-somente à problemática da “lealdade bipartida”, da qual, como desde já admitimos, o pensamento emancipalista de Cabral também era incontestavelmente portador, designadamente na sua teorização do projeto da unidade Guiné-Cabo Verde, podemos, sem grandes dificuldades, partilhar da opinião do ensaísta, segundo a qual o mesmo projeto se aproximava do nativismo histórico, se bem que somente em determinada medida. Na nossa opinião, a lealdade bipartida professada por Amílcar Cabral, além de fundada nas suas vivências individuais, experienciadas como dupla pertença biográfica e pessoal (por isso, transmissível somente àqueles que com ele partilhavam uma história pessoal similar), foi, por outro lado, amplamente subvertida nos termos anteriormente postos pelo nativismo proto (ou pré) nacionalista, porque agora inundada de um pan-africanismo, severamente anti-assimilacionista e anticolonialista, e projetada para uma versão ressureta, insurreta e libertária das ilhas de Cabo Verde e da parte dos antigos “Rios da Guiné do Cabo Verde” que viria a constituir a Guiné portuguesa e, mais tarde, a Guiné-Bissau. Referimo-nos, neste último caso, àquela parcela da terra firme africana que era considerada “colónia da colónia” cabo-verdiana, porque governada directamente das ilhas então portuguesas de Cabo Verde como um seu distrito ou uma sua circunscrição. Os territórios da Guiné portuguesa e das ilhas de Cabo Verde são agora, politicamente, transfigurados pelo pensamento cabraliano e projetados numa futura “pátria africana” integradora das “nossas terras da Guiné e de Cabo Verde”. Deste modo, isto é, pela sua projeção num futuro indeterminado e condicionado pela actualidade da unidade de ação política entre guineenses e cabo-verdianos na luta anti-colonial, o projeto da unidade Guiné-Cabo Verde diferenciava-se, substancialmente, da lealdade bipartida comungada pelos nativistas. Esta tinha como objeto uma comunidade política efetivamente existente, a chamada nação lusitana ancorada no Portugal imperial, e uma comunidade humana, considerada politicamente menor, mas também efetivamente existente, o povo habitante da terra cabo-verdiana. A lealdade bipartida

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dos nativistas alicerçava-se, assim, na autenticidade possível de “seres-de-dois-mundos” (para utilizar uma terminologia cara a Manuel Ferreira (“Introdução” a No Reino de Caliban (volume I, Cabo Verde e Guiné-Bissau, Lisboa, 1977, e O Discurso no Percurso Africano, Edições ALAC, ALAC, 1985) que efetivamente eram ou se consideravam, um perceptivelmente real porque fundado no chão islenho e na vivência quotidiana da cultura matricial cabo-verdiana (mesmo que na sua vertente mais elitista) e outro, também vivenciado, mas largamente imaginado e nutrido na sua cultura escolar, propiciadora daquilo que Gabriel Fernandes denomina o “mínimo cultural compartilhado” com os portugueses (A Diluição de África- Uma Interpretação da Saga Identitária Cabo-Verdiana no Panorama Político Pós-Colonial).

O princípio da unidade Guiné/Cabo Verde e o correlativo projeto de “pátria africana” de Amílcar Cabral parecem ter sido pensados para servirem, no presente histórico colonial, como instrumentos estratégicos de libertação política dos “nossos povos africanos da Guiné e de Cabo Verde”, que, a seu tempo, poderiam constituir-se em Estados-nação soberanos e, depois, se pronunciariam sobre a união orgânica entre os respectivos países para a constituição da futura “pátria africana”. Essa futura “pátria africana” divisava-se, por seu lado, como uma entidade política de contornos jurídico-constitucionais nunca clara e definitivamente definidos por comparação com os modelos disponíveis (confederação, federação, estado unitário, estado unitário parcial ou integralmente regional, formas de integração política próximas do modelo da União Europeia, etc.). Por sua vez, a união orgânica entre a Guiné e Cabo Verde deveria funcionar como empecilho aos apetites hegemónicos de certos países, sobretudo em relação à Guiné-Bissau, bem como de antecâmara para a futura unidade política de parte ou do todo do continente africano. Antecâmara que deveria ser exemplar nos seus efeitos progressistas, desenvolvimentistas e anti-neocoloniais, mesmo que de forma remota e tendo sempre em conta e devidamente salvaguardados os legítimos interesses e as justas aspirações dos povos da Guiné e de Cabo Verde ao desenvolvimento, à paz e ao progresso social. A salvaguarda da dignidade e dos interesses dos povos da Guiné e de Cabo Verde e das suas aspirações ao progresso, à paz e ao desenvolvimento parecem ser, aliás, os únicos limites impostos por Amílcar Cabral para a inserção desses povos em quadros mais vastos de integração económica e, sobretudo, de integração política africana.

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Deste modo, a lealdade bipartida ínsita no projecto de pátria africana de Amílcar Cabral é largamente tributária dos futuros desenvolvimentos que a História pudesse proporcionar.

Nativismo, pan-africanismo e nacionalismo cabo-verdiano

Amílcar Cabral pôde desenvolver as suas teses relativas à alienação e à marginalização da pequena burguesia intelectual e burocrática no quadro do sistema colonial em múltiplas ocasiões e em vários escritos, em especial nos ensaios teóricos “A Arma da Teoria” e “O Papel da Cultura na Luta de Libertação Nacional” (insertos nas suas Obras Escolhidas, Primeiro Volume, A Arma da Teoria) bem como nos textos “Análise de alguns Tipos de Resistência” e “Alguns Princípios do Partido” (de recolha da sua explanação oral sobre a ideologia e a praxis política do PAIGC feita no célebre Seminário de Quadros de Novembro de 1969, em Conacry, e organizados por Mário Pinto de Andrade).

Ainda que não se tivesse referido de forma expressa e exclusiva ao caso específico de Cabo Verde, pode-se deduzir das conclusões de Amílcar Cabral referentes às problemáticas acabadas de referenciar que são fulcrais na sua tese da reafricanização dos espíritos e do seu projeto pan-africanista de unidade orgânica entre a Guiné e Cabo Verde os seguintes e relevantes fatores e elementos de análise:

i) A tipificação das situações coloniais como essencialmente caracterizadas pela usurpação da liberdade de desenvolvimento das forças produtivas do país dominado e, assim, do processo histórico do povo colonizado, que, como uma carruagem, é atrelado à locomotiva da história da potência colonial. Deste modo, vê-se o povo colonizado também ultrajado na sua cultura, lugar onde, mediante a sua apreensão crítica pela consciência individual e colectiva, se sintetizam o processo histórico e as suas condições ambientais, se procede à reelaboração das relações dos seres humanos entre si e com a natureza, se focalizam as suas energias criadoras bem como os seus constrangimentos, isto é, as dinâmicas, subjetivamente pensadas ou imaginadas, para o progresso ou o retrocesso sociais. É dessas dinâmicas, subjetivamente reconstruídas ou imaginadas, que adviriam os aspetos positivos e negativos de uma dada cultura. Por isso, que a libertação nacional, a genuína, implicaria, necessariamente, a

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libertação das forças produtivas e da cultura do povo colonizado. Por isso que seria na cultura que residiria a capacidade de resistência do povo colonizado e a sua força anímica para se desenvencilhar da dominação estrangeira. Por isso que a libertação nacional seria simultânea e necessariamente um ato de cultura e um fator de desenvolvimento cultural.

ii) Os constrangimentos resultantes das vulnerabilidades geoestratégicas e das fragilidades económicas e climatéricas de Cabo Verde, arquipélago desde sempre acossado pelas estiagens cíclicas e que, também por isso, viveu longamente sob a ameaça do colapso pela fome e se achava destituído de uma retaguarda logística que lhe permitisse enveredar sozinho pelos caminhos da busca por meios violentos de um destino próprio e autodeterminado. Paradoxalmente, e tirando partido da pobreza de recursos naturais e dos correlativos abandono administrativo e desinteresse dos colonos brancos em se radicar no famigerado arquipélago meso-atlântico e saheliano de forma maciça e definitiva, esse mesmo arquipélago pôde forjar as estruturas que socio-antropologicamente o autonomizaram e fizeram emergir como uma entidade culturalmente distinta tanto da metrópole colonial como da terra firme continental vizinha e singular na sua unidade e diversidade arquipelágica, ou, como prefere Gabriel Mariano, como “uma nação que saiu pela culatra do colonialismo”. Paradoxo tanto maior quando se tem em conta que ao abandono, à incúria e ao desinteresse coloniais, patente na existência, especialmente no período pós-colonial, de um “colonialismo sem colonos”, na feliz expressão de Onésimo Silveira, se ajuntava a espoliação colonial-escravocrata dos escassos recursos disponíveis, a sobre-exploração colonial-mercantil da mão-de-obra escrava, servil ou assalariada e um geral bloqueamento metropolitano a todas as vias e iniciativas que pudessem sustentar a emancipação económica e socio -política do arquipélago, como, aliás, e tal como foi apontado por Cabral, é característico e típico das situações coloniais.

iii) Os constrangimentos paralisantes, provenientes tanto da emergência nas ilhas de uma cultura crioula, peri-ocidental e peri-africana, e consolidada em toda a extensão arquipelágica da colónia/província ultramarina na diversidade das suas manifestações materiais e espirituais, como também da ascensão social e cultural e da aristocratização intelectual do negro e do mulato cabo-verdianos, para utilizar uma expressão muito cara à doutrina instituída por Baltasar Lopes da Silva e retomada por

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outros ensaístas cabo-verdianos para significar a precoce emergência de elites económicas, sociais e culturais no quadro colonial cabo-verdiano, isto é, daquilo que Iva Cabral e outros estudiosos da Equipa da História Geral de Cabo Verde denominam “pretos brancos “ou “brancos pretos”. A emergência das elites económicas, sociais e culturais cabo-verdianas é muito marcada por especificidades resultantes tanto do processo de povoamento do arquipélago como da “pobreza franciscana” que desde sempre caracterizaram as ilhas. A existência de um “colonialismo sem colonos” condicionará, por outro lado, e sobremaneira, o papel da pequena burguesia cabo-verdiana no quadro do sistema colonial. A ausência, ou melhor dizendo, a insignificância numérica de colonos brancos facilitará e, até certo ponto, acelerará a dantes referida ascensão económica e social do cabo-verdiano, maioritariamente negro e mulato, e a sua aristocratização intelectual, como assertivamente defendem Baltasar Lopes da Silva, Teixeira de Sousa e Gabriel Mariano; e Iva Cabral e Zelinda Cohen sustentam e comprovam com dados historicamente documentados. Deste modo, essas elites nativas transformar-se-ão no principal intermediário na veiculação no chão de Cabo Verde dos valores coloniais e de importantes componentes da cultura lusitana, incluindo da língua portuguesa, ao mesmo tempo que potenciarão a nobilitação da cultura cabo-verdiana quer investindo na sua matriz euro-ocidental, muito sobrevalorizada, quer operacionalizando a sua disseminação, incluindo o idioma materno crioulo, pelas esferas consideradas mais nobres da sociedade colonial, e, assim, condicionando e, de certo modo, restringindo os processos de assimilação colonial. Elites formadas por “seres-de-dois-mundos” (na muito adequada expressão também utilizada por Manuel Ferreira (in “Introdução” a No Reino de Caliban, Primeiro Volume relativo a Cabo Verde e à Guiné-Bissau), compartilhados entre as mundividências incutidas pela cultura escolar de matriz portuguesa colonial e as vivências transmitidas pela cultura popular cabo-verdiana, em cujo resgate a pretensão da sua especificidade cultural e a legitimidade do seu papel de intermediação colonial encontrava sustento, a sua alienação colonial, irrefutável, apesar de traços muito próprios provenientes de vivências pessoalmente experienciadas como autênticas, não pôde obliterar o sentimento de marginalidade, típica dessa alienação e patente quer no ideário de igualdade e de cidadania plena de “todos os portugueses de lei” (na sagaz terminologia dos nativistas), independentemente de serem metropolitanos (ou reinóis) ou coloniais, quer nos propósitos regionalistas e luso-adjacentistas claridosos. Muito

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ciosas da sua autonomia de iniciativa no solo das ilhas, autonomia essa historicamente conquistada e adubada em raízes de suor, sangue e persistência, mas assoladas pelas suas vulnerabilidades intrínsecas e pelas fragilidades das ilhas pobres que as viram nascer, as elites cabo-verdianas eram também muito dependentes da tutela colonial para a manutenção do seu estatuto de pequena burguesia de serviços, isto é, das suas funções de intermediário social, económico e cultural entre o poder colonial e as populações não só no chão das ilhas como também no quadro do império colonial português. Essas funções de intermediário surgiam, aliás, em plena congruência com o papel de plataforma transatlântica e entreposto intercontinental que Cabo Verde desde muito cedo desempenhou, tanto no contexto do tráfico negreiro e do comércio triangular transatlântico como no quadro ultramarino do império colonial português, e com a reivindicação de uma legitimidade luso-crioula que assentava no seu secular colaboracionismo, com a mãe-pátria lusitana, como defende José Carlos Gomes dos Anjos (em Intelectuais, Literatura e Poder), mesmo se, por vezes, rebelde, como, aliás, complementa Gabriel Fernandes na obra da sua lavra acima citada.

Enfatize-se, pois e de novo, que foram os constrangimentos estruturais da sociedade cabo-verdiana que forjaram, a um tempo, a sua independência identitária e o seu crónico défice de crença ou de confiança nas suas capacidades autónomas de sobrevivência. Releve-se ainda que são esses constrangimentos que induziram tanto os nativistas como os claridosos à pugna pela autonomia e/ou pela adjacência no quadro político-institucional do império colonial (ou, mais restritamente, do Estado-nação) português, numa óptica obsessivamente pragmática de plena valorização não só da sua outorgada/conquistada cidadania lusitana como também do “mínimo cultural compartilhado” (segundo a inovadora expressão de Gabriel Fernandes) entre todos “os cidadãos portugueses de lei”, como também se autorrepresentavam enquanto “portugueses africanos” ou ultramarinos, e os “portugueses metropolitanos”. É assim que, depois de no jornal Alvorada que fundara nos fins do século XIX durante o seu exílio nos Estados Unidos da América e no contexto eufórico da desagregação do império colonial espanhol e do separatismo bóer na África do Sul ter reivindicado a autonomia para as ilhas de Cabo Verde, Eugénio Tavares viria a clamar depois na segunda década do século XX nas páginas do jornal praiense A Voz de Cabo Verde, dando mostras de uma pragmática contenção, contra o que considerava o irrealismo delirante de uma reivindicação

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independentista: ”Independência para essas pobres ilhas rochosas? Nem para hoje, nem para nunca!”. Como é sabido e conforme nos elucida de forma mais aprofundada a monumental obra A Imprensa Cabo-Verdiana, de João Manuel Nobre de Oliveira, Eugénio Tavares passou a concentrar-se, a par da continuidade da pugna na reivindicação da autonomia política para as ilhas, na obtenção de um estatuto de plena igualdade que fizesse jus à expressão por ele cunhada como sua preocupação maior, enquanto cabo-verdiano: “Portugueses irmãos sim! Portugueses escravos nunca!”.

Relembre-se que um primeiro fervor anticolonialista e mais vincadamente nacionalista cabo -verdIano se tinha rapidamente desvanecido em face da voracidade de novas potências (neo)coloniais emergentes em relação a alguns países das Américas e da Ásia, como Cuba, Porto Rico ou as Filipinas, aos quais essas mesmas potências tinham prestado ajuda com o fito da sua libertação do jugo colonial espanhol, usando, entre os outros, o slogan “A América aos Americanos”. É esse slogan, criado por Monroe, que inspiraria Eugénio Tavares no seu slogan “A África aos Africanos” na expressão, a partir do seu exílio americano, da sua inusitada veia nacionalista cabo-verdiana ou luso-ultramarina consubstanciada na sua reivindicação de autonomia política para Cabo Verde. O desvanecimento desse fervor encontra outrossim sustentáculo na subjugação das reivindicações do povo bóer da África do Sul pelo Império Britânico, numa época em que, salvo o caso exemplar mas trágico do Haiti e o caso falhado das Filipinas, o papel determinante, dirigente ou preponderante na desagregação dos impérios coloniais cabe às elites brancas crioulas nativizadas nas terras colonizadas das Américas, da Ásia e da África.

Num outro contexto e em face da moda da venda das colónias para saldar dívidas reinóis/metropolitanas ou satisfazer os interesses de potências ocidentais mais poderosas, apela Luís Loff de Vasconcelos à metrópole portuguesa ao “abandono” de jure das colónias à sua sorte (in João Nobre de Oliveira, obra citada), que é como dizer, ao seu próprio destino, tanto mais que a ligação às metrópoles só subsistiria por livre consentimento dos povos coloniais e o descaso no tratamento das questões cabo-verdianas era de há muito uma caraterística imputada negativamente à administração colonial portuguesa. Pese embora o seu amor filial a um pai severo e ingrato e, demasiadas vezes, negligente, Pedro Cardoso expressou, como é sabido (in João Nobre de Oliveira, obra citada), a sua preferência colonial pela albarda portuguesa em lugar da pata

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tectónica, pois que, para além do mais, seria mais fácil para os coloniais desenvencilhar-se dessa leve, conquanto ofensiva, sela lusa, quer num quadro ideal de plena igualdade entre metropolitanos e coloniais, quer numa mais longínqua e indesejada separação entre irmãos euro-africanos alegadamente uterinos, porque supostamente compartilhando da mesma cultura pátria e descendentes tanto dos antigos e bravos lusitanos como dos intrépidos navegadores quatrocentistas.

José Lopes, por seu lado, disse almejar ver independentes as nossas ilhas como já o eram as pequenas Andorra e San Marino, para, já no crepúsculo da sua longa e poeticamente muito produtiva vida, preferir vê-las afundar-se no Atlântico a deixarem de “ser portuguesas” (in João Nobre de Oliveira, obra supra citada).

iv) Um novo entendimento do papel de mediação político-intelectual (para utilizar uma expressão e conceito operatório recorrentes nos livros Intelectuais, Literatura e Poder, de José Carlos Gomes dos Anjos, e A Diluição de África (…), de Gabriel Fernandes) a ser desempenhado por parte do denominado sector revolucionário da pequena burguesia cabo-verdIana. Esse sector da pequena burguesia colonial foi instado a embrenhar-se num processo de suicídio de classe, enquanto categoria social duplamente marginalizada porque duplamente assimilada. Ainda que primacialmente pensado para um momento ulterior às independências nacionais e, assim, à emergência da candente questão das vias políticas por que enveredar e dos modelos de sociedade a escolher pela pequena burguesia que viria a ter a oportunidade histórica de dirigir as lutas pela independência, a problemática do suicídio de classe do chamado sector revolucionário dessa pequena burguesia releva em toda a sua acuidade desde os alvores da luta pela libertação nacional.

Dupla assimilação cultural, suicídio de classe e reafricanização dos espíritos

Conceito operatório chave no seu pensamento, por suicídio de classe entendia Cabral a plena identificação do sector revolucionário da pequena burguesia intelectual com os interesses das classes trabalhadoras e das categorias sociais mais humildes do povo e o seu consequente empenhamento nacionalista e revolucionário na respectiva defesa. Fim

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essencial do suicídio de classe seria coarctar as naturais tendências da classe intelectual e burocrática de serviços para o emburguesamento e para a concomitante construção de laços económico-sociais, políticos e culturais de dependência neo-colonial em relação às classes dominantes do centro desenvolvido e imperialista.

Considerado como resultando de um processo complexo e muito pouco linear, o suicídio de classe teria várias componentes (culturais, políticas e económico-sociais) e integraria várias etapas, mas teria sempre como pressuposto um essencial momento de consciencialização político-cultural que levaria necessariamente à ruptura com o sistema de dominação colonial, com os seus valores e os seus símbolos integrados na cultura colonial dominante.

Significando o colonialismo invariavelmente o bloqueio da identidade cultural do povo colonizado e a alienação assimilacionista das suas elites letradas bem assim da sua pequena burguesia burocrática de serviços, a consciencialização anticolonial dos membros dessas mesmas elites letradas e pequeno-burguesas deveria necessariamente implicar um regresso (ou um retorno) às fontes autóctones da cultura nacional e a negação política global do estatuto dominante da cultura colonial.

Nesta óptica, considerava Cabral que, embora historicamente pertinentes e, até, admiráveis, enquanto fases necessárias no processo de consciencialização político-cultural das elites africanas e afrodescendentes, os movimentos intelectuais de regresso (ou retorno) às fontes, como, por exemplo, a negritude e o pan-africanismo, deveriam ser superados mediante a cabal reivindicação da libertação nacional, social e cultural dos povos colonizados, sob pena de inconsequência cultural e de oportunismo político dos seus promotores e protagonistas, os quais não deixariam “de ser alienados culturais, mesmo se muito célebres” (“O Papel da Cultura na Luta pela Independência”, in Obras Escolhidas de Amílcar Cabral, Primeiro Volume, A Arma da Teoria)). Se tornarmos as lições teóricas de Amílcar Cabral extensivas ao caso cabo-verdiano (como referido, não particularmente focado pelo estratega e teórico nas suas obras conhecidas) poder-se-ia concluir que em Cabo Verde se teria assistido a um fenómeno complexo de dupla assimilação das elites letradas e da pequena burguesia cabo-verdiana em geral.

Assim, a dupla assimilação da pequena burguesia cabo-verdiana

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residiria:

1) Por um lado, na sua condição de elite letrada e burocrática, isto é, de classe colonial de serviços, de postura largamente mimética em relação à cultura colonial portuguesa, dominante, e aos padrões comportamentais e simbólicos inculcados pela Escola e por outros aparelhos ideológicos do sistema colonial, em especial, pela Igreja Católica. Essa faceta da pequena burguesia cabo-verdiana, ou de uma sua influente fracção, foi particularmente diagnosticada e vituperada por A. Punói (pseudónimo de Manuel Duarte) no panfleto político intitulado “Cabo Verde e a Revolução Africana”, constante do livro póstumo Cabo-Verdianidade e Africanidade, e outros Textos.

2) Por outro lado, na sua condição de pequena burguesia intelectual emanada de um povo também, ele próprio, sujeito durante toda a sua multissecular e, por vezes, trágica história à assimilação e à despersonalização culturais, primacialmente consubstanciadas nos reiterados intuitos e práticas visando primeiramente a ladinização dos escravos negro-africanos recém-desembarcados e depois o aportuguesamento da cultura cabo-verdiana entretanto estoicamente erigida no solo madrasta das ilhas e a obliteração da dimensão africana da sua identidade (como logra fundamentar Dulce Almada Duarte na comunicação “Os Fundamentos Culturais da Unidade”, apresentada ao Simpósio Amílcar Cabral, de 1983).

No caso de Cabo Verde e tendo em grande conta as suas especificidades histórico-culturais, o suicídio cultural de classe visaria prioritariamente a superação do estado de alienação resultante da condição de “ser-de-dois-mundos” das elites letradas e da correlativa dupla assimilação da pequena burguesia intelectual cabo-verdiana. Sublinhe-se que, por isso, a superação da dupla assimilação não deveria, em caso algum, ser confundida com uma qualquer perda da integridade, da originalidade e da singularidade crioulas da cultura cabo-verdiana, situada, enquanto síntese antropológica e diaspórica das matrizes continentais afro-negras e euro-ocidentais iniciais, “entre-dois-mundos” (ainda segundo a expressão cunhada por Manuel Ferreira na obra acima citada).

Assim, a superação da dupla assimilação da pequena burguesia intelectual e burocrática (ou de uma sua importante fracção) não poderia significar uma qualquer diluição da cultura cabo-verdiana em culturas continentais negro-africanas ou euro-ocidentais. Dito de outro modo: essa

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superação não poderia, por qualquer forma, implicar quer o seu retrocesso à primordial co-matriz afro-negra chegada às ilhas e, depois, renovada por sucessivos apports de novos escravos negro-africanos, bem como à inicial co-matriz cristã euro-ocidental e, assim, ao estado em que a cultura cabo-verdiana (ou, melhor, proto-cabo-verdiana) se encontrava nos períodos iniciais do já remoto passado escravocrata, quer a “aceitação” da matriz euro-ocidental, no sentido da capitulação da cultura cabo-verdiana perante a cultura colonial dominante, inicialmente imposta a escravos despidos de retaguarda social e, depois, sucessivamente actualizada e tornada dominante durante todo o tempo de duração da dominação estrangeira mediante a prática reiterada das políticas coloniais de assimilação cultural. É essa cultura colonial dominante que é, aliás, objecto principal da pugna anti-assimilacionista e, assim, da contestação cultural anticolonial. Como é sabido, tanto a inicial matriz afro-negra e a sua realimentação étnico-cultural e étnico-racial, frequentemente ocorrida durante todo o período do tráfico negreiro, como também a primordial matriz euro-ocidental foram reelaboradas, ambas, na medida em que foram expurgadas do seu carácter estranho e estrangeiro e interiorizadas pelos actores sociais cabo-verdianos mediante os processos antropológicos e sociológicos que perfizeram a sua mútua diluição numa nova identidade cultural e conduziram à emergência e à plena consolidação de uma crioulidade historicamente constituída e insularmente diferenciada.

No plano da identidade cultural, o processo de suicídio de classe deveria ser pois entendido sobretudo como processo de catarse e des-alienação culturais, primacialmente dirigido contra as políticas de assimilação cultural. Para o caso particular de Cabo Verde, o mesmo processo visaria, antes de mais, a assunção consciente e deliberadamente pensada da cultura cabo-verdiana na integridade da sua historicidade e da sua completude crioula, incluindo a sua dupla matricidade afro-europeia e, assim e também necessariamente, as suas manifestações radicadas na co-matriz afro-negra, bem como a superação do mimetismo colonial eurocêntrico, patente com particular evidência em certos sectores mais lusitanizados das elites letradas.

Referindo-se aos objectivos da luta de libertação (bi)nacional da Guiné e de Cabo Verde escreve Cabral que o seu essencial fundamento residiria na vontade dos dominados em demonstrar que “não éramos portugueses, mas africanos da Guiné e de Cabo Verde” (in Amílcar Cabral,

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Análise de Alguns Tipos de Resistência).

Deste modo, essa primeira expressão do complexo e controverso processo do suicídio de classe visaria fundamentalmente a subjectivização por parte dos sectores nacionalista e revolucionário da pequena burguesia de serviços da sua inaceitável condição de colonizados e da sua correlativa marginalização histórica, e, assim, a superação da dupla assimilação, ainda e essencialmente por via da consciencialização política e cultural.

Sequente a esse processo de consciencialização, essa fracção da pequena burguesia e da sociedade cabo-verdiana poderia, livre da alienação assimilacionista inculcada pelo conjunto totalizante do sistema colonial, ressuscitar como trabalhador intelectual e actor social nacionalista e/ou revolucionário largamente identificado com o povo e com as suas aspirações à felicidade e ao resgate da liberdade do seu processo histórico, da integridade da sua cultura e da sua dignidade humana espezinhada, contra as chagas maiores do sistema colonial que, segundo Amílcar Cabral, seriam a quotidiana humilhação, a pobreza, a miséria, a ignorância e o medo generalizados.

Armados com as lições leninistas sobre a questão nacional e a questão colonial, o pan-africanismo político saído do Congresso de Manchester de 1945 pela voz de Kwame Nkrumah, o anticolonialismo de Bandung, as experiências chinesa, vietnamita, argelina e cubana sobre a condução de guerras de libertação nacional e social de longa duração, os modernos nacionalistas cabo-verdianos viriam a despir o slogan A África aos Africanos, proclamado por Eugénio Tavares para a conclamação dos seus conterrâneos em torno dos interesses maiores da sua terra, dos contornos que remetiam o termo “africano” para uma regionalidade geográfica e cultural luso-ultramarina radicada nas ilhas e/ou terras firmes do império português situadas em África. A conclamação/proclamação nativista será plenamente assumida pelos nacionalistas pan-africanistas cabo-verdianos e revestida de propósitos de inequívoca ruptura anticolonial e de integral reivindicação da identidade, incluindo das suas matrizes afro-negras e de todas as suas facetas afro-crioulas, numa coerência que também avassalará, já no período pós-25 de Abril de 1974, as últimas reminiscências do regionalismo político claridoso, constante no texto Cabo Verde e o seu Destino Político, de Henrique Teixeira de Sousa. A identidade cabo-verdiana é, por sua vez, entendida como emanando

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de uma cultura nacional, autorreferente, conquanto dominada, porque dominado o processo histórico do povo que a inventou, e sufocada nas potencialidades do seu pleno desenvolvimento porque sufocadas as suas forças produtivas e motrizes nas suas energias criadoras.

A reivindicação da liberdade de se apossar soberanamente do processo histórico, como realça o discurso cabraliano, será doravante entendida como sinónima tanto do resgate da dignidade africana do colonizado, por demais vilipendiada no seu direito básico de existir segundo os seus próprios modelos culturais e a sua própria historicidade identitária, como também de todos os pressupostos políticos e culturais da produção desalienada das condições de emergência de um ser humano reconciliado com a sua história e com a sua cultura e liberto do estado de subjugação provocado pela dominação colonial e pelo subdesenvolvimento crónico.

Segunda Parte

Embora defensor e advogado convicto do princípio da unidade Guiné/Cabo Verde, a postura de Amílcar Cabral sobre esta candente questão distinguia-se da de muitos africanos e, até, de alguns guineenses, em cuja óptica Cabo Verde quiçá mais não seria, por assim dizer, do que um prolongamento meso-atlântico e árido das opulentas ilhas dos Bijagós.

A complementaridade (económica, política e cultural) entre a Guiné e Cabo Verde parece ser o principal argumento arrolado por Amílcar Cabral para justificar a futura unidade entre os povos dos dois territórios. Esse argumento encontrava, outrossim, legitimidade na unidade histórica efectivamente existente entre os dois territórios coloniais portugueses até 1879, data na qual se procedeu à desanexação administrativa da Guiné portuguesa em relação às ilhas de Cabo Verde e à instituição de uma nova província ultramarina directamente dependente de Lisboa, bem como nos laços de sangue e nas afinidades, mesmo difusas, entre as suas populações, certamente derivadas da circunstância de a maior parte dos contingentes de escravos trazidos para o cativeiro insular cabo-verdiano terem tido origem na Costa da África Ocidental, na altura comummente conhecida como Senegâmbia ou Rios da Guiné do Cabo Verde, onde se viria a constituir a Guiné portuguesa. A isso acresce ainda o facto de na antiga Guiné portuguesa encontrar-se radicada uma importante minoria

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crioula de origem cabo-verdiana, cuja história remonta aos primórdios da colonização da Guiné e entronca-se na radicação dos tangomaos e lançados originários das ilhas nos supra-referenciados Rios da Guiné do Cabo Verde (vide a propósito António Carreira, Formação e Extinção de uma Sociedade Escravocrata e Os Cabo-Verdianos nos Rios da Guiné)

Tendo consciência que a luta armada era (como, aliás, veio a demonstrar-se) a única via possível para liquidar um colonialismo português absolutamente avesso a cedências, compromissos e negociações para a obtenção pacífica da independência, Amílcar Cabral sentiu-se e viu-se, efectivamente, confrontado com duas realidades incontornáveis, designadamente:

a) Os constrangimentos estruturais do arquipélago cabo-verdiano, os quais tornavam praticamente inviável a condução solitária de uma luta político-militar de longa duração para a obtenção da independência política.

b) A quase inexistência ou, melhor, a flagrante insignificância na Guiné dita portuguesa de uma pequena burguesia intelectual e burocrática nativa que pudesse conduzir o povo guineense com sucesso nos caminhos de uma moderna luta político-armada de longa duração.

Pelo contrário, o que se verificava era a existência nesse território africano continental de uma pequena burguesia maioritariamente originária das ilhas de Cabo Verde (e/ou constituída e/ou acrescida de descendentes originários das ilhas meso-atlânticas), a qual exercia uma fortíssima influência na vida político-administrativa, económica, social e cultural da colónia portuguesa, que, no passado, foi considerada “colónia da colónia” insular porque administrativamente dependente do arquipélago peri-africano. Sintomático desse estado das coisas e da preponderância islenha na Guiné dita portuguesa é o facto de os primeiros romances de temática guineense terem sido escritos pelos cabo-verdianos Fausto Duarte (com destaque para Auá e O Negro sem Alma) e Belmiro Augusto Duarte (Taibatá), bem como de muitos estudos de história, antropologia cultural e sobre os usos e costumes (incluindo de direito consuetudinário) relativos aos povos guineenses serem da autoria de cabo-verdianos, designadamente de André Álvares de Almada, André Donelha (ou Dornelhas), João Frederico Hopffer, João José António Frederico, António Barbosa Carreira, António Silva Duarte(….).

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Deste modo, ter-se-á afigurado a Cabral que só a unidade de acção entre, por um lado, o sector nacionalista da pequena burguesia cabo-verdiana e, por outro lado, a incipiente pequena burguesia e as grandes “massas populares” guineenses tornaria possível a condução de uma luta armada de longa duração para a obtenção da independência dos dois territórios. Outrossim e se levarmos em conta que mesmo quando encarou a possibilidade da obtenção da independência dos dois territórios por via negocial e pacífica, Cabral pugnou pela unidade entre os dois futuros Estados soberanos, tendo certamente em conta o seu passado histórico comum e a necessidades de optimização das suas possibilidades de sobrevivência como nações independentes, dir-se-ia que, para o caso de Cabo Verde, Cabral não teria integralmente ultrapassado a tradicional e muito arreigada descrença nas capacidades de sobrevivência do “arquipélago da fome“ sem uma qualquer ancoragem externa, agora procurada na terra firme africana de onde proveio parte importante dos antepassados escravizados dos cabo-verdianos.

Dissemos “integralmente ultrapassado”, na medida em que, por outro lado, o grande estratega africano admitiu, Igualmente, a possibilidade de uma independência solitária das ilhas, caso o seu povo assim o entendesse, quer numa perspectiva pacífica e por via negocial quer como resultado da unidade de acção entre guineenses e cabo-verdianos na luta político-armada na terra firme africana e nas ilhas.

Deste modo, a reafricanização dos espíritos propugnada por Amílcar e germinada e cultivada desde os tempos das suas vivências lisboetas pelos seus antigos companheiros do Centro de Estudos Africanos (Mário Pinto de Andrade, Marcelino dos Santos, Alda do Espírito Santo, Agostinho Neto e Noémia de Sousa), e, já nessa época, também defendida por Manuel Duarte deixava de se restringir somente ao campo espiritual da desalienação cultural anti-assimilacionista e da valorização das manifestações culturais ancoradas na co-matriz afro-negra da crioulidade cabo-verdiana, isto é, naquilo que Dulce Almada Duarte denomina a dimensão africana da cultura cabo-verdiana. Doravante e mediante a unidade de acção dos nacionalistas dos dois países e em torno do projeto de unidade orgânica dos dois territórios numa futura pátria africana, a pugna pela reafricanização dos espíritos alarga-se à busca e à recuperação da margem africana da história e da identidade política de Cabo Verde.

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Pode-se, pois, concluir que não subsistia em Cabral qualquer confusão entre, por outro lado, a necessidade e a exigência estratégicas da unidade de acção político-militar entre guineenses e cabo-verdianos, numa primeira fase, e da sua futura unificação numa pátria africana, numa segunda fase, com, por outro lado, o amalgamento das identidades nacionais dos dois países africanos emergentes. Pelo contrário, as duas entidades são sempre distinguidas quer no plano da nomeação (“Guiné e Cabo Verde”), quer ainda nos planos programático e estratégico da concepção do seu processo de luta para a independência, quer ainda no que respeita à sua caracterização socio - política, económica e cultural, da dissecação das suas estruturas sociais e da singularidade das suas dinâmicas próprias, apesar da sua irmanação pela sua comum condição colonial, pelo seu comum estado de subdesenvolvimento e pelo seu almejado e comum destino africano. Uma breve incursão por textos cabralianos como aquele em que empreende uma breve análise da estrutura social da Guiné e de Cabo Verde ou em que faz a análise de alguns tipos de resistência permitem tirar essas conclusões.

Por outro lado, o programa (mínimo e maior do PAIGC) é muito elucidativo a este respeito, na medida em que são nele claramente perceptíveis:

a) Uma clara distinção entre os dois países quanto ao objectivo imediato das várias formas de luta elencadas, designadamente a obtenção da independência de cada um dos países separadamente com base, essencialmente, na mobilização das respectivas forças e energias nacionalistas e patrióticas e alavancada na respectiva unidade nacional.

b) A projecção da construção de uma “pátria africana” que pudesse unir os dois países e pudesse optimizar os seus recursos e sinergias para uma fase ulterior à conquista das independências nacionais e à constituição dos dois povos em Estados soberanos.

A pátria africana é, assim, pensada como uma comunidade política sempre situada num tempo posterior à emergência dos Estados nacionais e um seu resultado jurídico-constitucional, pois que produto da vontade popular dos respectivos povos escrutinada em consulta (referendo) popular e/ou ratificada pelos respectivos órgãos máximos de soberania política.

Impressiona, neste contexto, o cuidado posto pelo programa do

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PAIGC à volta da questão nacional e das especificidades de cada um dos povos.

Para Cabo Verde é defendido um conceito de unidade nacional que preserva a autonomia administrativa de cada ilha e as suas peculiaridades no quadro da integridade da nação cabo-verdiana, etnicamente homogénea. É essa homogeneidade étnica que é, aliás, considerada como primacialmente plasmada no crioulo (na altura ainda designado por dialecto crioulo), cujas defesa e preservação como condição do seu desenvolvimento também se propugna.

Mesmo no caso da Guiné, ressalta a defesa da preservação das especificidades culturais e sociais de cada uma das suas etnias (ou povos), contra quaisquer pruridos alegadamente anti-tribalistas, salvo no que respeita às suas eventuais propensões para a discriminação e/ou o separatismo políticos.

Circunstâncias relativas à necessidade de afirmação no plano internacional da luta conduzida pelo PAIGC e de reafirmação da correcção do princípio da unidade Guiné-Cabo Verde bem como à antecipação da futura pátria africana unida terão levado a que, por vezes, Cabral, quiçá extasiado pela prova mais convincente da pertinência do princípio da unidade que seriam os sucessos práticos da luta político-armada, se referisse a “nosso povo da Guiné e Cabo Verde”, “a nossa terra da Guiné e Cabo Verde” e, mais raras vezes, “a nossa nação africana”, sem que ficassem distinguidas as duas entidades nacionais de forma clara, suficiente e inequívoca.

No entanto, cabe realçar que a concepção da unidade em Amílcar Cabral é profunda e assumidamente dialéctica-materialista porque dinâmica e concebida em função da realidade que se pretende transformar. Ela pressupõe a luta de contrários e, assim, o reconhecimento da identidade originária dos seres em interacção e transformação dialéctica. Escreve Cabral no texto paradigmático da sua argumentação a favor do projecto da unidade entre a Guiné e Cabo Verde (“unidade e luta”) que se as coisas fossem iguais ou homogéneas nunca se poria a questão de unidade. “Só se une o que é diferente”, escreve o estratega político.

Simultaneamente, e querendo fundamentar o projeto da unidade com argumentos de natureza histórica colhidos na existência da antiga unidade administrativa que a Guiné e Cabo Verde constituíram desde o século XVII

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primeiramente no âmbito da Capitania Geral de Cabo Verde, depois no quadro da Província (por um curto período, também designada Prefeitura) de Cabo Verde e Dependências, até às consequências desagregadoras do Desastre de Bolor de 1878 (vide a propósito João Manuel Nobre de Oliveira, obra citada), e, quiçá, reportando-se à configuração étnica da base social de mobilização do PAIGC, constituída pelos grupos étnicos guineenses (incluindo o de origem e configuração crioulas) e dos cabo-verdianos de todas as ilhas e diásporas, escreve o líder histórico que, na verdade, não se colocaria um problema de unidade entre a Guiné e Cabo Verde na medida em que a Guiné e Cabo Verde seriam “um só”, do ponto de vista histórico, das origens humanas essenciais das populações e até, dos laços de sangue...

Não deixa, todavia, o “simples africano que quis saldar a sua dívida com o seu povo e viver a sua época” de salientar que os eventuais conflitos existentes entre cabo-verdianos e guineenses não teriam o seu núcleo essencial nos verdadeiros e genuínos interesses das populações dos dois países mas radicariam entre as pequenas burguesia cabo-verdiana e guineense em disputa de privilégios e posições sociais no quadro da administração colonial estabelecida na Guiné.

Não deixam, assim, de chamar a atenção os esforços do líder carismático do PAIGC em minimizar os problemas de carácter étnico-político no seio do partido que fundou e conduziu à notoriedade internacional.

Ainda assim, aquando da apresentação aos órgãos dirigentes do PAIGC, em Março de 1972, do plano colonialista para o seu assassinato, Cabral não se ilude, nem a si próprio, nem aos outros. Nos termos exarados no famigerado (e macabro) plano (postumamente publicado em AmÍlcar Cabral, Nação Africana Forjada na Luta), “os guineenses autênticos” foram instados a não só se desfazer do princípio da unidade Guiné-Cabo Verde, como também dos próprios cabo-verdianos presentes na luta político-militar conduzida na Guiné-Bissau. Em lugar disso, deveriam os novos dirigentes do partido, doravante exclusivamente guineense, encetar conversações com as autoridades portuguesas no sentido da obtenção de uma autonomia interna progressiva que, posteriormente, poderia levar a Guiné a uma independência nominal no quadro de uma “comunidade lusíada” a constituir.

Na óptica dos seus detractores guineenses (e, curiosamente,

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também dos seus adversários cabo-verdianos, como no caso de José Leitão da Graça), o princípio da unidade Guiné-Cabo Verde mais não seria do que uma forma moderna de reciclagem e de reformulação da antiga hegemonia cabo-verdiana sobre os povos guineenses e os seus recursos e um subterfúgio elaborado para perpetuar a sede de expansionismo para os antigos Rios da Guiné do Cabo Verde da pequena burguesia crioula, a qual se sentiria alegadamente estrangulada na exiguidade do território cabo-verdiano. Tal como viriam a argumentar os protagonistas do “movimento de reajustamento” (isto é, do golpe de estado) de 14 de Novembro de 1980, a unidade Guiné-Cabo Verde representaria, pois, uma autêntica unidade do cavalo e do cavaleiro. Nesse contexto pejado de controvérsias, os dirigentes do PAIGC preferiram cultivar a flexibilidade terminológica junto dos seus aliados africanos e progressistas, numa óptica em que interessava sobremaneira valorizar a unidade de acção no terreno da luta. Relembre-se que, por essa altura, a África se debatia com graves problemas e inéditos desafios na construção de Estados-Nação a partir de conglomerados territoriais etnicamente diversos, senão díspares. Para os africanos, a questão parecia ser, por assim dizer, irrelevante. Tanto mais que o caso do PAIGC de união de um território continental africano a um território insular peri-africano acrescia ao conhecido caso da Tanzânia, cujo líder, Julius Nyerere, gozava de grande prestígio interno e de muita credibilidade internacional. Para muitos africanos, a união dos dois territórios parecia uma via imprescindível para colmatar as fraquezas advenientes da sua exiguidade territorial ao mesmo tempo que pareciam complementar-se, pelo menos nos tempos imediatamente pós-coloniais, os recursos naturais e demográficos da Guiné e as capacidades técnicas e administrativas dos quadros cabo-verdianos. Por outro lado, porque ainda destituída de uma configuração claramente delineada, a projetada pátria africana e as suas componentes nacionais foram envolvidas num espesso nevoeiro terminológico (quase de “teor metafísico”) por forma a ultrapassar a contradição entre a adesão ao princípio da unidade Guiné-Cabo Verde como condição de militância nacionalista no PAIGC, o único movimento de libertação verdadeiramente activo no terreno, e o carácter muito nebuloso da futura pátria africana binacional.

No caso da Guiné, a ambiguidade terminológica do PAIGC deveria fazer face quer às políticas divisionistas das autoridades coloniais que, no quadro da política spinolista da Guiné Melhor, investiam no passado histórico comum dos dois países para ressaltar os ressentimentos dos

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“guinéus” contra o papel desempenhado pelos cabo-verdianos nas guerras de pacificação (isto é, de subjugação e ocupação efetiva) e na administração colonial da Guiné dita portuguesa. A tanto acrescia a emergência de uma minoria guineense crioula, de origem cabo-verdiana e, colocada, em regra numa situação de privilégio adveniente da sua condição histórica de “elite do poder”. Essa minoria emergente parecia debater-se com vários problemas identitários, os quais oscilavam entre ser luso-ultramarino no status quo colonial vigente, considerar-se cabo-verdiano tal como os pais ou ascendentes nascidos nas ilhas ou assumir-se como um grupo étnico-cultural guineense, que, apesar de se distinguir pela sua identidade crioula e “conduta civilizada” (“de praça”) dos demais grupos étnicos guineenses, maioritariamente negro-africanos, e, por isso merecer a popular denominação “cabrianos”, estaria integralmente empenhado com a terra guineense de que era natural e em que se encontrava plenamente radicada. Nesta óptica, o projeto de unidade Guiné-Cabo Verde surgia quase como uma “tábua ontológica de salvação” para esses importantes sectores dos crioulos guineenses, comummente denominados “burmedjos”, tanto mais que a sua posição social de categoria social essencialmente de serviços e a sua origem e identidade culturais estariam primacialmente salvaguardadas nesse quadro unitário.

Anote-se que os “cabrianos” (guineenses de origem cabo-verdiana ou, se se quiser, cabo-verdianos da Guiné) são um caso muito específico de descendentes de cabo-verdianos nascidos em terras estrangeiras, especialmente africanas. Dotados historicamente e na atualidade de um forte sentido identitário que alguns consideram, por vezes, como liderante na construção de uma moderna identidade nacional guineense, não só pelos efeitos indutores advenientes da sua radicação essencialmente pequeno-burguesa e urbana, como também pelo seu papel na estruturação da unidade nacional da Guiné-Bissau, essa minoria nacional guineense é a única “comunidade diaspórica cabo-verdiana” que, dominando como quase todas as outras, a língua oficial ou dominante de comunicação do território de que é natural, conservou a língua materna dos antepassados cabo-verdianos para dotá-las de características próprias, autonomizantes de uma variante que, em condições propícias, pôde ascender ao estatuto de língua franca e, depois, de língua de unidade nacional da Guiné-Bissau. Esse papel do crioulo guineense ter-se-ia mantido intacto, independentemente das controvérsias sobre se a sua origem seria insular ou genuinamente guineense, isto é, situada na antiga praça de Cacheu,

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como defendia, por exemplo, o malogrado Professor Pinto Bull. Mesmo se se considerar a sua ligação genética às ilhas, o circunstancialismo de ser locutor nativo de um crioulo próprio da Guiné, porque língua materna de um agrupamento humano moldado por circunstâncias históricas específicas da Guiné, também radica o “cabriano” definitivamente na sua terra de nascimento, permitindo-lhe reivindicar uma identidade própria, originariamente guineense, diferenciada daquela representada pelos seus antepassados cabo-verdianos. Deste modo, a sua eventual dupla pertença adquire contornos próprios: de integrante do Estado-nação guineense e de um grupo étnico guineense (os “burmedjus” ou “crioulos”), de que ele constitui a matriz e a componente principal.

Deste modo, pôde a denominação por que é conhecida (“cabrianos”) tornar-se susceptível de os distinguir tanto dos cabo-verdianos das ilhas e das demais diásporas (por eles próprios chamados “cabuncas” ou “badios”) como dos demais guineenses. Estes continuam a denominar todos os “cabo-verdianos de cultura” como “cabrianos” (na tradução literal para crioulo do termo “cabo-verdiano”).

A fase anticolonial do panafricanismo cabo-verdiano. As opções cabo-verdianas

Ante esse quadro complexo em que era notória a especificidade insular e histórico-cultural da identidade cabo-verdiana, os quadros e combatentes cabo-verdianos do PAIGC preferiram optar por uma clarificação do ambiente político-institucional que fosse considerada suficientemente capaz de ter, minimamente, em conta tanto as particularidades do caso cabo-verdiano como o necessário pragmatismo da luta com vista à liquidação urgente da dominação colonial, e, assim, lhes permitisse o almejado regresso à futura casa soberana cabo-verdiana. Mesmo que fosse por via da participação directa e plena na luta político-armada da Guiné-Bissau, abortado que fora o projetado desembarque em Cabo Verde do “Grupo de Cuba” para a concretização da “Operação Esperança”, muito devido às infiltrações da PIDE.

Nesta óptica, a vertente pan-africanista do pensamento cabraliano e de um sector tornado preponderante do nacionalismo cabo-verdiano percorre duas fases sucessivas:

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1)Uma primeira fase em que a profissão de fé no projeto da unidade Guiné-Cabo Verde parece ser o único esteio e o extremo recurso estratégico para a obtenção da libertação de um território, o cabo-verdiano, no qual radica um povo culturalmente constituído em nação, mas gravemente enrodilhado nas suas próprias debilidades estruturais crónicas. Essa profissão de fé ocorre, ademais, num tempo de crença generalizada nos benefícios da unidade dos povos africanos entre si e dos povos do terceiro mundo, em geral, na sua luta contra a dominação imperialista.

Neste contexto e tal como assinala Amílcar Cabral, o surgimento de um campo socialista solidário, ainda que enredado em disputas político-ideológicas internas e em lutas pela hegemonia internacional contra os aliados ocidentais do obsoleto colonialismo lusitano, demonstra-se como um factor historicamente determinante, completamente desconhecido no tempo dos nativistas históricos e largamente ignorado pelos regionalistas e adjacentistas de matriz claridosa.

Ainda que essencialmente sedeados no território das duas Guinés e apoiados nas capacidades logísticas e humanas do povo da Guiné-Bissau para a condução de uma longa e vitoriosa luta armada de libertação (bi) nacional, os nacionalistas cabo-verdianos não descuraram o objectivo da obtenção da soberania nacional para o povo cabo-verdiano, sua principal motivação para a sua adesão ao PAIGC, partido que, a pouco e pouco , e apesar dos severos golpes da polícia política portuguesa, se ia credibilizando no seio da juventude estudantil, do operariado, dos camponeses e das comunidades emigradas.

Essa credibilização deve muito ao carisma de Amílcar Cabral, desde sempre gozando de grande reputação em Cabo Verde, quer devido às suas origens familiares “aristocráticas” pelo lado paterno, quer devido às suas performances como estudante liceal e universitário, às suas competências profissionais como engenheiro agrónomo e às suas preocupações humanistas. A reputação de humanista e de técnico competente reconhecida a Amílcar Cabral e a cultura cabo-verdiana de que era inegavelmente portador foram decisivas para a mobilização dos nacionalistas cabo-verdianos e, assim, para a perspectivação de uma via independentista para Cabo Verde, tida agora por viável e historicamente realizável, depois da descrença dos nativistas, dos claridosos bem como de alguns sinais de mobilização, à volta de José Leitão da Graça, de um

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nacionalismo cabo-verdiano, estritamente insular, ainda que nominal e doutrinariamente inspirado no pan-africanismo político e cultural. Esses sinais de engendramento de uma via estritamente insular do nacionalismo cabo-verdiano tiveram um grande impacto na sociedade cabo-verdiana dos fins dos anos cinquenta e dos inícios dos anos sessenta devido ao corajoso labor de mobilização política e à posterior fuga de José Leitão da Graça para Dakar, em circunstâncias assaz aventurosas, bem como à prisão na Cadeia Civil da Praia e posteriores julgamento e absolvição dos seus companheiros políticos de aventura e de infortúnio. Ademais, esses companheiros de José Leitão da Graça eram, em regra, portadores de uma formação intelectual considerada sólida na altura, sendo alguns socialmente bem colocados no quadro da cidade-repartição da Praia ou oriundos de “boas e conhecidas famílias” pequeno-burguesas, como era o caso do próprio José Leitão da Graça, cujo pai, Álvaro Leitão da Graça, era proprietário da tipografia Minerva de Cabo Verde, da cidade da Praia (vide biografia do mesmo em João Manuel Nobre de Oliveira in obra citada anteriormente).

A via nacionalista propugnada por José Leitão da Graça viria a perder impacto socio - político devido a circunstâncias de diferente teor, tais como:

a) A sua submersão na via pan-africanista defendida pelo PAIGC e difundida em Cabo Verde em primeira mão por Abílio Duarte, enviado de Amílcar Cabral e do PAIGC em 1958 para a mobilização política nas ilhas a pretexto da conclusão dos estudos liceais. As acções políticas de Abílio Duarte tiveram amplos efeitos mobilizadores como comprovam quer o recrutamento dos estudantes do terceiro ciclo do Liceu Gil Eanes, vindo muitos deles a ser, depois, destacados quadros político-militares e militantes da luta clandestina, quer a posterior adesão ao PAIGC de grande parte dos antigos companheiros de José Leitão da Graça, como foram, por exemplo, os casos de Osvaldo Azevedo e Mário Fonseca, os quais se foram juntar ao PAIGC ou ainda de Oswaldo Osório (Alcântara Medina Custódio) e Arménio Vieira, militantes do PAIGC na clandestinidade das ilhas.

b) Os sucessos militares e político-diplomáticos que o PAIGC ia averbando nos campos de batalha guineenses e no mundo tornaram cada vez menos relevantes outros eventuais caminhos conducentes à obtenção

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da independência, defendidos sobretudo por exilados caboverdianos radicados em Dakar. Os esforços de José Leitão da Graça no sentido da denúncia junto de diversas instâncias internacionais, com destaque para a ONU, do projeto da unidade Guiné-Cabo Verde, por ele entendido como uma forma encapotada de postergar o direito à autodeterminação do povo cabo-verdiano, “comunidade nacional distinta do povo guineense em luta”, e de reedição da antiga hegemonia da classe e comunidade dominantes cabo-verdianas sobre o território e os povos da Guiné, não surtiram quaisquer efeitos significativos, em face dos resultados práticos da liderança carismática de Amílcar Cabral e da congregação de guineenses e cabo-verdianos à volta do comum objectivo de liquidação do colonialismo português nos dois territórios, já então considerado uma chaga sobre o corpo de África tão perniciosa como os regimes racistas das minorias brancas da África Austral.

De todo o modo, os cabo-verdianos apanhados nos complexos caminhos da reafricanização dos espíritos puderam encetar um “regresso às fontes africanas” que se distinguia quer do regresso escravocrata e colonialista dos crioulos afro-brasileiros, afro-caribenhos e afro-americanos quer do regresso dos lançados e tangomaos no período escravocrata, quer ainda do regresso siónico (ou, melhor dito, negro-sionista) do garveyismo e do regresso mítico-cultural e onírico-ideológico do rastafarismo. O mesmo distinguia-se também do regresso colonial-ultramarino encetado, no quadro da divisão colonial de trabalho, pelos funcionários e técnicos cabo-verdianos integrados na administração do império colonial português bem como pelos serviçais “contratados” para as roças do Sul-Abaixo, mesmo se não se deva ignorar que uma parte dos quadros cabo-verdianos do PAIGC foi recrutada mais latamente na emigração e mais restritamente no seio dos funcionários e quadros colocados na administração colonial da Guiné. É, aliás, esse facto que induziu José Leitão da Graça a classificar, a partir de um olhar estritamente insular, o PAIGC (ou a ala cabo-verdiana dos seus dirigentes históricos) como um partido de emigrantes cabo-verdianos na Guiné.

Mais imediata e simbolicamente, o regresso africano dos combatentes cabo-verdianos do PAIGC contrapunha-se ao regresso de centenas (quiçá milhares) de militares cabo-verdianos mobilizados por força do serviço militar obrigatório então vigente para as guerras coloniais de subjugação e pacificação dos povos africanos ocorridas no século XIX

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ou para as modernas guerras coloniais contra os combatentes das lutas das independências dos povos africanos. Paradigmáticos do percurso cabo-verdiano pelos trilhos da reafricanização dos espíritos são alguns poemas de Ovídio Martins, os poemas “Eis-me aqui, África” e “Son de Negro no Exílio”, de Mário Fonseca, bem como o “Discurso V” de O Primeiro Livro de Notcha, de T. T. Tiofe. Por seu lado, o livro Noti, de Kaoberdiano Dambará (pseudónimo literário de Felisberto Vieira Lopes), representa um regresso à África num plano místico-político de identificação com o tempo eminentemente negro-africano das independências, e, por outro lado, no plano interno cabo-verdiano, de catarse cultural mediante a revalorização das tradições e manifestações culturais afro-crioulas, como o batuco, e a exaltação das tradições e das figuras, por vezes lendárias, de resistência contra a opressão colonial e a exploração das classes possidentes “brancas”. Em Noti, os termos branco e gentis branku (gentes brancas) são explorados na totalidade da sua dupla significação racial e classista, tornando plenamente visível a pertinência de uma literatura de negritude crioula ou de afro-crioulitude.

No que se refere ao impacto da participação cabo-verdiana na luta político-armada conduzida pelo PAIGC foi imenso o seu significado simbólico. Pela primeira vez na época do moderno nacionalismo africano e, de alguma forma reavivando a memória das inúmeras revoltas e de outros actos de resistência armada de escravos, de negros forros, camponeses e dos flagelados pelas fomes das ilhas, podiam os cabo-verdianos rever-se em actos heróicos e de rebeldia colectiva em que a sua participação, político-intelectual e/ou militar, era de grande importância. Nesses tempos eram já comuns as aparições míticas de Amílcar Cabral nos mais variados pontos da ilha de Santiago, nas circunstâncias as mais incríveis e inusitadas. Dir-se-ia a vivificação em acção, em carne e osso míticos e esperançosos, da palavra profética de Nho Naxo, o mais célebre profeta da ilha de Santiago e de todo o Cabo Verde.

Ademais, continuavam as prisões de patriotas cabo-verdianos e muitos adolescentes e jovens sonhavam já, e algo impacientes, juntar-se um dia a Amílcar Cabral, em palavras sussurradas no calor das brigas, na fúria do confronto com as autoridades coloniais e com tropas portuguesas colocados nas ilhas e nas esquinas da infância, das escolas e dos liceus.

Palavras sussurradas, não fossem as mesmas chegar aos ouvidos

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omniscientes dos aparelhos auscultadores e dos galinhas (bufos, delatores, informadores) de uma PIDE/DGS, que, por exemplo, em Assomada tinha o rosto vermelhuço e o pullover berrantemente encarnado do Sr. Eusébio e a duplicidade do sorriso e do sangue daqueles que a voz baixinha de alguns mais experientes nessas andanças clandestinas tornava conhecidos ou, pelo menos, suspeitos.

Palavras ainda sussurradas quando tiveram lugar as ocorrências relacionadas com o fracassado assalto ao navio Pérola do Oceano e a sequente prisão de inúmeros militantes e responsáveis do PAIGC na clandestinidade no interior de Santiago (em particular, no Concelho de Santa Catarina), destacando-se de entre eles o jovem estudante Pedro Martins, depois relatados no seu livro Testemunho de um Combatente. Certamente rocambolescos e amplamente expressivos não só da capacidade de infiltração da polícia política colonial-fascista nas estruturas clandestinas do PAIGC aliada à ingenuidade ao aventureirismo político de alguns responsáveis políticos islenhos das estruturas de base desse partido-movimento de libertação nacional, os acontecimentos anteriormente referidos aferiram de forma insofismável do elevado grau de impaciência política que perpassava o estado de espírito de alguns militantes oriundos dos sectores camponeses mais aguerridos da sociedade cabo-verdiana, tendo sido, ademais, denotativos da grande coragem cívica e física de quem neles participou de modo activo e desassombrado. A prisão de Pedro Martins e dos implicados na tomada temporária do Pérola do Oceano precede a de vários jovens conotados com o PAIGC enviados para a Foz do Cunene e o Campo de S. Nicolau, em Angola (como Homero Vieira Lopes, Alexandre de Pina, Luís Tolentino, Fogo, Eurico Correia Monteiro, Euclides Fontes, entre outros) e sucede-se às prisões de Toco (Fernando Tavares), Zéqui de Nho António Querido (José Luís Ferreira Querido), Zezé de Nhu Alberto Galina (José Aguiar Galina Monteiro), Kide Varela, Manel de Nho Jesuíno (Emanuel Braga Tavares), Luís Fonseca, Lineu Miranda, Carlos Tavares e Jaime Schofield.

Palavras ainda sussurradas quando se ouviam contar as notícias escutadas por aqueles que sintonizavam a Rádio Libertação (estação emissora do PAIGC instalada em Conacry) ou souberam dos acontecimentos de 22 de Setembro de 1972 na Praia, como é cantado por Tony Lima dos Kaoguiamo.

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O período do pós-25 de Abril

A preponderância da via pan-africanista demonstrar-se-ia de forma inequívoca no período pós-25 de Abril quando, reunidos na Frente Ampla Anti-Colonial, os presos políticos, algumas personalidades avessas ao regime colonial-fascista e os estudantes universitários regressados para a mobilização para a independência se declararam esmagadoramente favoráveis ao PAIGC e aos seus princípios e objectivos e contribuíram de forma decisiva para a larga disseminação dos seus postulados ideológicos e das suas palavras de ordem políticas.

Tanto mais que, como estrategicamente previsível, a luta político-armada conduzida na Guiné-Bissau pelo PAIGC foi de valor determinante para o colapso do fascismo português, inaugurou novas perspectivas para o exercício do direito à autodeterminação ao povo cabo-verdiano e aos demais povos das colónias portuguesas e abriu novas oportunidades democráticas e desenvolvimentistas para o próprio povo português.

Estudantes universitários e liceais e activistas dos centros urbanos ensinavam à juventude curiosa, rebelde e sedenta de acção a fazer ressoar nas ruas slogans enaltecedores da “independência total e imediata”, da “unidade Guiné-Cabo Verde” , da “unidade africana” e da “revolução ou morte” e contra “a reacção” invariavelmente botada “abaixo”. Reacção que se ia descredibilizando quer pela sua aliança com aquele que era considerado e invectivado como o mentor intelectual da morte de Cabral (o General Spínola) e com as suas teses de reciclagem do adjacentismo no recém-inventado federalismo, quer com os círculos mais reaccionários da Igreja Católica e das classes possidentes e privilegiadas dos meios urbanos e rurais.

A via nacionalista representada por José Leitão da Graça seria, por sua vez, vítima do regresso tardio às ilhas desse político do seu exílio euro-africano (Senegal, Gana e Suécia) e do amalgamento que se pôde fazer da corrente política por ele representada com as correntes reacionárias, colonial-saudosistas e spinolistas, muito devido ao facto de, depois da queda em desgraça de Spínola no 28 de Setembro de 1974, muitos dos militantes da UDC (União Democrática de Cabo Verde) se terem passado para a UPICV (União do Povo das Ilhas de Cabo Verde). Tal amalgamento tem lugar, apesar da assumida ideologia pan-africanista, de um radicalismo de esquerda de feição maoísta e do independentismo professados pelo

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resistente anticolonial. Curiosamente, terá sido a exacerbação de um nacionalismo cabo-verdiano, alicerçado nas especificidades geográfico-insulanas e culturais mestiças da cabo-verdianidade que foram fatais para a conjuntura política de José Leitão da Graça. Sem os pergaminhos míticos de que o PAIGC e os seus dirigentes, combatentes, presos políticos e militantes da clandestinidade eram portadores, o nacionalismo cabo-verdiano de José Leitão da Graça era primacialmente dirigido contra a “união forçada com a Guiné”, sobretudo numa primeira fase do mesmo e a organização política por ele liderada exigiam em combativos comunicados (consultar a propósito o livro Golpe de Estado em Portugal…Traída a Descolonização em Cabo Verde!, de compilação por José Leitão da Graça dos documentos, comunicados e memorandos da UPICV) que a questão da unidade Guiné-Cabo Verde fosse objecto preferencial de referendo em lugar da questão da independência, como exigiam os adjacentistas da UDC ou alguns autonomistas, como Henrique Teixeira de Sousa. Por isso mesmo, foi facilmente confundido com a ideologia crioulo-lusitana dos claridosos, na altura em rápido refluxo e acelerado descrédito. Nem mesmo o radicalismo de esquerda dos comunicados da UPICV pôde ter acolhimento numa juventude estudantil que, seduzida pela “doença infantil do comunismo, o esquerdismo”, começava a digladiar-se abertamente entre as correntes trotskysta e maoísta na sua disputa pela liderança com “os vindos de Conacry” e “das duas Guinés”.

Por sua vez, medidas de grande impacto político foram tomadas pelas diferentes correntes político-ideológicas conotadas com o PAIGC. Foram os casos da libertação dos presos políticos do Tarrafal, a 1 de Maio de 1974, os confrontos de jovens praienses com os militares portugueses por ocasião do 19 de Maio de 1974, a fundação do jornal independentista Alerta para substituir e em resultado da extinção do oficioso e (arqui-)colonialfascista O Arquipélago, a recusa dos mancebos cabo-verdianos aquartelados no centro de instrução militar do Morro Branco na ilha de S. Vicente em prestar juramento à bandeira portuguesa, a greve geral da função pública, a ocupação da Rádio Barlavento e a mudança da sua linha editorial para um cariz inequivocamente paigcista e da sua denominação para Rádio Voz de S. Vicente, os inumeráveis comícios, sessões de esclarecimento, saraus culturais e outras acções de mobilização política, precedidas sempre e invariavelmente de um minuto de silêncio em memória do “Camarada Amílcar Cabral, Militante Número Um do nosso Partido e Herói do Povo”, bem como de outros mártires guineenses e

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cabo-verdianos da luta político-armada na Guiné, como Domingos Ramos, Jaime Mota, Justino Lopes ou Titina Silá, e preenchidas com slogans e excursos (discursos?) político-heróicos às tragédias e histórias do sofrimento dos cabo-verdianos, destacando-se sempre a escravatura, as fomes, a emigração forçada e o trabalho servil e semi-escravo em S. Tomé e Príncipe e Angola, os vexames sofridos às mãos dos morgados e das autoridades coloniais, a resistência lendária consubstanciada nas revoltas dos Engenhos, da Achada Falcão e de Ribeirão Manuel (ainda os Valentes de Julangue não eram rememorados), a repressão das “nossas manifestações culturais mais genuínas” (com destaque para o batuco, a tabanca, o funaná, o colá sanjon), a inculcação da vergonha em relação às nossas características raciais de feição ou matriz negras, enfim, quase tudo o que tinha sido aflorado em 1962 por Manuel Duarte no panfleto político “Cabo Verde e a Revolução Africana”, assinado por A. Punói. Tudo muito regado a música revolucionária, nossa e dos outros africanos (com destaque para José Carlos Schwarz e os Cobiana Jazz), e de muita “poesia de protesto e luta”, da autoria de António Nunes, Aguinaldo Fonseca, Kaoberdiano Dambará, Mário Fonseca, Ovídio Martins, Gabriel Mariano, Onésimo Silveira, Arménio Vieira, Emanuel Braga Tavares, Tony Lima, etc. Nos comícios, jovens e adolescentes recitavam com fervor, por exemplo, os poemas …. (“Labanta bo anda fidjo di África/ labanta negro/ obi grito’l povo/ África Djustisa Liberdadi”), “Bandera di Strela Negro”, “Kabral ka morre”, “Caminho Longe”, “Capitão Ambrósio” e entoavam “Guerra Mendes”, “Korda Skrabo”, “Tchom di morgado”, “Minino manso”, etc., etc.

Nesta fase, em parte coincidente com a queda do fascismo em Portugal e Cabo Verde, os princípios pan-africanistas e da unidade Guiné-Cabo Verde incorporados e defendidos no ideário político do PAIGC revelaram-se como encerrando um grande poder mobilizador.

Releva nesta circunstância a proclamação, a 24 de Setembro de 1973, ainda no calor da guerra de libertação (bi)nacional, do Estado soberano da Guiné-Bissau, do qual Cabo Verde não fazia, nem podia fazer parte, quer por razões sumamente candentes e irrenunciáveis, porque fundadas na identidade própria do povo das ilhas e na intangibilidade das fronteiras do seu arquipélago, sendo que todas elas se funda(va)m em princípios de direito internacional público imperativo (jus cogens), designadamente no princípio (direito) da autodeterminação e da independência dos povos

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coloniais e no princípio da intangibilidade das fronteiras herdadas do colonialismo, princípios esses consagrados em vários instrumentos jurídicos internacionais, designadamente na Carta das Nações Unidas, na Resolução 1514 (XV) da Assembleia Geral das Nações Unidas e na Carta da Organização da Unidade Africana (OUA). Relembre-se que na sua mensagem de Ano Novo de 1973, considerado o seu testamento político, Cabral arquitetara a proclamação de um Estado soberano guineense e, posteriormente, a proclamação de um Estado soberano cabo-verdiano, após a criação das devidas condições político-institucionais para o efeito, designadamente a eleição de uma Assembleia Nacional Popular cabo-verdiana. Esse Estado soberano cabo-verdiano deveria ser distinto do Estado soberano guineense, mesmo se Cabral continuava a almejar a associação entre ambos os Estados e a pugnar, desde que assim fosse a vontade expressa dos respectivos povos para o efeito consultados, pela união orgânica de ambos, antevendo para prazo não muito longínquo a criação de uma Assembleia Popular Suprema dos dois países. Já no Memorando apresentado, ainda no ano de 1960 ao Governo português, Cabral defendera, de forma inequívoca, a existência prévia de poderes soberanos independentes em cada um dos dois países como pressuposto jurídico-constitucional e político-institucional para qualquer eventual unidade orgânica entre os mesmos.

Acontecimentos de grande relevância política rodeiam esta fase de internalização insular dos princípios pan-africanistas conexos com o projeto de unidade Guiné-Cabo Verde. São os casos do regresso a Cabo Verde, já em Fevereiro de 1975, de Aristides Pereira, Secretário-Geral do PAIGC bem como a recusa do mesmo em imediatamente assumir a presidência de uma República Unida da Guiné e Cabo Verde, a ser proposta à reunião do Conselho Executivo da Luta de 25 de Maio de 1974, imediatamente precedente da proclamação da independência das ilhas cabo-verdianas. É nessa sequência que Aristides Pereira é formalmente designado para exercer o cargo de Presidente da República de Cabo Verde pela recém-constituída Assembleia Nacional Popular em resultado das eleições legislativas de 30 de Maio de 1975.

O regresso de Aristides Pereira a Cabo Verde (o qual se tornaria definitivo com a sua assunção do cargo de Presidente da República de Cabo Verde, mesmo se conservando o altíssimo cargo supra e binacional de Secretário-Geral do PAIGC) e os demais actos, acima mencionados, são

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de transcendente importância, quer para o condicionamento da abertura de uma via que se poderia demonstrar como sem retorno para o processo da união orgânica entre a Guiné e Cabo Verde (pelo menos na vigência do regime de partido único ou até à eclosão, sempre eminente, de um golpe de força similar ao despoletado a 14 de Novembro de 1980), quer para o correlativo aplainamento prático de uma via mais inequivocamente soberanista. Estamos em crer que essa via foi sempre perscrutada como opção fundamental pelos patriotas cabo-verdianos integrados no partido binacional, o PAIGC, e veio dar razão aos que defendiam com convicção que cada tiro disparado na Guiné, mormente se o fosse por um combatente cabo-verdiano, era um tiro disparado pela independência de Cabo Verde e, assim, intentavam legitimar o que consideravam seu inequívoco nacionalismo cabo-verdiano. Tanto mais que, argumentavam, o caminho da Guiné só foi definitivamente encetado por se ter mostrado praticamente impossível levar a cabo uma luta armada não suicidária em Cabo Verde, depois de haver um grupo previamente preparado na Argélia, em Cuba e na União Soviética para o efeito, operacionalmente conduzido pelo Comandante então em ascensão, Pedro Pires, e superior e directamente liderado por Amílcar Cabral, e depois, em resultado de uma decisão do II Congresso concretizadora de um dos itens do Testamento Político (Mensagem do Ano Novo de 1973), com uma efectiva estrutura dirigente nacional cabo-verdiana, a Comissão Nacional de Cabo Verde do PAIGC.

Por sua vez, sem a participação cabo-verdiana na luta político-armada na Guiné não seria possível (ou seria extremamente difícil) fazer vingar junto das autoridades portuguesas o direito do povo de Cabo Verde à autodeterminação e à independência, negado ou relativizado por aqueloutros cabo-verdianos que ainda navegavam nas águas quer da autonomia quer do federalismo spinolista, comummente considerados como modelos apressados e oportunistas de reciclagem do adjacentismo colonial.

A independência de Cabo Verde ocorreria, assim, em condições assaz favoráveis, na medida em que foi possível chegar-se a dois objectivos cruciais:

a) A obtenção de uma ampla adesão popular para a causa da independência, sobretudo entre as camadas jovens e urbanizadas. Para

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esse efeito, foram decisivas tanto a catarse cultural no sentido da libertação da plenitude da identidade cabo-verdiana e da recuperação da dimensão afro-crioula, da co-matriz afro-negra e da margem continental africana da mesma identidade como também a euforia e a confiança no futuro da nossa terra despoletadas com as lutas políticas no pós-25 de Abril.

Tais estados anímicos foram potenciados, em grande medida, pela participação cabo-verdiana na saga heróica anticolonial e tornada visível na libertação dos presos políticos do Tarrafal de Santiago, logo no primeiro de Maio de 1974, no regresso dos presos políticos da Foz do Cunene e do Campo de S. Nicolau do deserto do Namibe, no regresso triunfal e apoteótico daqueles militantes, combatentes e dirigentes cabo-verdianos directamente engajados na luta político-armada na Guiné-Bissau e/ou comprometidos na luta político-diplomática do PAIGC, tendo sido de transcendente importância a mitificação de Amílcar Cabral quer como um profeta e sábio, tal Moisés negro, quer ainda como um Messias negro e combatente, tal um Jesus Cristo afro-crioulo.

Tais acontecimentos demonstraram-se como sumamente necessários para uma catarse cultural de amplas repercussões identitárias e político-ideológicas e, assim, para a ruptura com o assimilacionismo colonial e a tutela assistencial portuguesa, considerada até aí tanto em franjas extensas das camadas mais humildes bem como por importantes sectores das elites letradas do povo das ilhas como indispensável, senão insubstituível, para a viabilização da emigração cabo-verdiana para Portugal, para a manutenção dos planos de fomento e dos trabalhos públicos de apoio às populações (vulgarmente conhecidos como “trabalhos de estrada”), e, assim, para a garantia da simples sobrevivência física do povo cabo-verdiano.

b) A captação de recursos, de diversos quadrantes político-ideológicos, necessários, senão indispensáveis, para a viabilização do jovem Estado soberano, para a sobrevivência do seu povo, apavorado pela ameaça das fomes, e para a criação e potenciação de força anímica com vista à prossecução do futuro desenvolvimento sustentado do país.

Como é reconhecido pelo próprio Onésimo Silveira (mesmo se com algum contragosto), o princípio da unidade Guiné-Cabo Verde consubstanciado na unidade de acção entre guineenses e cabo-verdianos comprovou-se, assim, historicamente como de grande utilidade e de

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inegável relevância para a obtenção da independência política dos povos da Guiné e de Cabo Verde.

Terceira Parte

A fase pós-colonial da aplicação do princípio da unidade Guiné-Cabo Verde

Conquistadas as soberanias nacionais, inicia-se uma segunda fase no entendimento e na implementação do princípio da unidade Guiné-Cabo Verde por parte dos nacionalistas cabo-verdianos comprometidos com o PAIGC e alcandorados ao poder político no quadro de um regime de partido único binacional.

Institucionalmente inaugurada com a proclamação da República de Cabo Verde, a Cinco de Julho de 1975, essa fase indicia-se simbolicamente com o assassinato de Amílcar Cabral (como se referiu, motivado, directa e imediatamente, nas suas origem e identidade culturais cabo-verdianas, apesar da sua naturalidade guineense, do seu notável contributo para a libertação do povo da terra onde nasceu e graças a cuja luta heróica ganhou notoriedade internacional, bem como da sua posterior identificação com a comunidade política emergente com a guerra de libertação nacional e que ele próprio denominou “nação africana forjada na luta e da consequente emergência da sua bipatridia política).

Nessa fase pós-colonial, o princípio da unidade Guiné/Cabo Verde é remetido a um duplo e dúbio estatuto:

De fundamento ideológico e legitimador do Partido, doravante jurídico-constitucionalmente instituído pela LOPE (Lei de Organização Política do Estado) como Força Política Dirigente da Sociedade cabo-verdiana, isto é, como centro político de um regime autoritário de partido único, estatuto esse que é sancionado e relegitimado pelos artigos 3º e 4º da Constituição de Setembro de 1980 (a primeira do Cabo Verde independente), os quais passam a regular e tornam extensivo ao Estado esse mesmo estatuto de omnipotência e monopólio políticos.

Sublinhe-se que tal estatuto se apoiou largamente na disseminação da crença, segundo a qual o princípio da unidade Guiné-Cabo Verde seria

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em si indiscutível, porque concebido pelo génio singular e insubstituível de Cabral e comprovado na praxis histórica da luta como indispensável para a até então impensável independência e soberania de Cabo Verde e para a criação de alternativas africanas às dependências colonial e neocolonial.

ii) De pública profissão de fé no princípio e de pragmática expectativa quanto à sua implementação prática.

No período que se seguiu à proclamação da independência nacional da Guiné-Bissau e ao seu posterior reconhecimento por parte da ex-potência colonial bem como à instituição, em fins de Dezembro de 1974, do Governo de Transição em Cabo Verde e, depois, à proclamação da soberania nacional plena de Cabo Verde, procedeu-se prioritariamente à edificação ou à reconstituição dos alicerces das instituições nacionais no quadro de um regime de partido único bem assim à adopção de medidas urgentes para a satisfação das necessidades básicas das populações.

Neste contexto sociopolítico, de euforia democrático-revolucionária e de engajamento de corpo inteiro na chamada saga da reconstrução nacional, a prevista união orgânica entre as Repúblicas da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, embora abordada com alguma veemência retórica e encarada com indisfarçável urgência no Comunicado do Conselho Executivo da Luta do PAIGC de 25 de Maio de 1975 e apesar de tida como vocação histórica do povo das ilhas no Texto da Proclamação Solene da Independência Política de Cabo Verde lida por Abílio Duarte a 5 de Julho de 1975 no Estádio da Várzea da cidade da Praia, foi sendo sucessivamente adiada ou, até, postergada para um futuro cada vez mais nebuloso e longínquo.

A extensão da aparente sacralização e da dogmatização política do princípio da unidade Guiné-Cabo Verde por parte de Amílcar Cabral e dos seus émulos e partidários para as condições da pós-independência demonstrar-se-ia como diferente nos seus efeitos político-estratégicos e foi, por isso, vista como dúbia, senão intolerável, do ponto de vista social e político-cultural, por parte de franjas importantes da sociedade, sobretudo as emigradas, fortemente assediadas pelas forças remanescentes da UPICV e da UDC, parcialmente reorganizadas no âmbito da UCID (União Cabo-Verdiana Independente e Democrática), fundada na Holanda a 13 de Maio de 1978. Argumentava-se tanto nos bastidores do nacionalismo revolucionário cabo-verdiano, como no seio da oposição ilegalizada, que outras correlações de forças sociopolíticas e novas esperanças e

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perspectivas vieram abrir-se no processo da construção do progresso e da indagação dos caminhos para um desenvolvimento efectivo e auto-sustentado, sobretudo no que se refere a Cabo Verde.

Na verdade, puderam fazer a sua irrupção, relativamente exitosa porque coroada de algum sucesso durante um certo período de tempo, na história do povo das ilhas novos instrumentos e procedimentos de legitimação política e novos processos de engendramento do crescimento económico-social com vista ao desenvolvimento geral do país, com destaque para as retóricas da edificação no solo das ilhas de uma economia nacional independente resultantes da estratégia político-económica deliberada pelo único Congresso do PAIGC realizado no pós-independência, o célebre III Congresso, de 1977, para ser aplicada nos dois países governados por esse partido binacional. Em Cabo Verde, as retóricas acima referidas e a estratégia político-económicas na qual se sustentavam seriam objeto de tentativas várias de implementação por via da construção e/ou melhoria de algumas infraestruturas rodoviárias, portuárias e aeroportuárias, do estabelecimento de empresas públicas nos domínios do controle do comércio externo e do abastecimento das populações com produtos básicos, dos transportes marítimos e rodoviários, das telecomunicações, das indústrias têxteis e alimentares (com vista sobretudo à substituição das importações. Todavia, a sua implementação aliava-se sempre à prática da reciclagem da ajuda externa e das remessas de emigrantes (tida então, nas palavras de José Carlos dos Anjos, como a expressão máxima da sagacidade dos dirigentes do país) e, sublinhe-se, seria fortemente limitada por uma ambiência geral marcada pela recorrência de secas cíclicas e pela consequente necessidade do recurso permanente a programas de emergência financiados pela Comunidade Internacional para a salvação colectiva, a par de alguns tentames no sentido da melhor exploração da posição geoeconómica do país, tentames esses que, mais tarde, se concretizariam nas políticas do desenvolvimento tripolar do país-arquipélago (S. Vicente, Sal e Praia) e culminariam, já nos fins dos anos oitenta do século XX (!988) e ainda em plena vigência do regime de partido único, na liberalização da Constituição económica de Setembro de 1980 e na adopção da política de extroversão económica do país.

Cabe destacar, neste contexto, o mais sacralizado de todos os mecanismos político-institucionais nascidos com o Cinco de Julho de 1975: um Estado-nação, o Estado nacional dos cabo-verdianos, assente

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na vontade popular e na soberania dos órgãos do poder legitimamente constituídos.

Manuel Duarte encarregar-se-ia de, sem prejuízo da reiteração da sua profissão de fé no projeto de unidade Guiné-Cabo Verde, fundamentar em estudo jurídico-político (agora constante do livro póstumo Cabo-Verdianidade e Africanidade, e outros Textos) as perspectivas e os constrangimentos inerentes à associação política entre duas nações culturalmente distintas e geograficamente distantes, para mais constituídas em Estados independentes em tempos históricos diferentes, ainda que assentes numa mesma génese libertária e lideradas pelo mesmo movimento de libertação, agora no poder e inseridos numa mesma época de ruptura anticolonial, aliás, portadora de algum atraso em relação aos demais países vizinhos.

Já no Texto da Proclamação da Independência de Cabo Verde, e não obstante aí se pugnar por “um destino africano, livremente escolhido pelo povo de Cabo Verde” bem como, como anteriormente referido, pela “sua vocação histórica para estabelecer”, após consulta popular, “laços de unidade com a República irmã da Guiné-Bissau”, o povo de Cabo Verde é exaltado como nação dotada de identidade cultural própria, forjada durante um processo histórico multissecular marcado por múltiplos actos de resistência e por revoltas de diversa índole.

Essa óptica ficou reforçada nas Resoluções emanadas do III Congresso do PAIGC (de 1977), o qual se encarregaria de inequivocamente ratificar e politicamente consagrar os subsídios teóricos fornecidos por Manuel Duarte (e também por Renato Cardoso, como se verifica num dos textos da sua co-autoria publicados em Cabo-Verdianidade e Africanidade, e Outros Textos).

Nesses documentos, o PAIGC adaptou às condições pós-coloniais a chamada concepção dinâmica da unidade Guiné/Cabo Verde. Nos termos dessa concepção, os dois povos passaram a ser inequivocamente considerados como nações politicamente soberanas e culturalmente distintas, ainda que irmanadas pela história, pelo sofrimento e pela busca de um destino partilhado. A par do afastamento geográfico, do reconhecido défice de conhecimento recíproco entre os dois povos (sobretudo do cabo-verdiano das ilhas em relação ao guineense), da praticamente nula integração económica e sociocultural entre os dois países, passaram

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tais considerandos nacionais, de fortes implicações soberanistas, a ser entendidos como pressupostos indeclináveis para a problematização da questão da unidade e para a configuração do futuro rosto das instituições conjuntas que eventualmente pudessem ser estabelecidas entre os dois países.

Ainda que pugnando, do ponto de vista retórico, pelo contínuo engajamento dos dois povos no processo de edificação de uma pátria africana una e fraterna, num futuro quadro unitário e solidário, consideravam os teóricos do PAIGC que esse processo deveria ser gradual, progressivo e devidamente alicerçado na construção das indispensáveis bases económicas e técnico-materiais. Estas bases eram consideradas como indispensáveis para uma segura integração económica bem como para a criação das condições para uma maior aproximação humana e um maior interconhecimento entre os dois povos, o qual deveria ser acelerado mediante um crescente e necessário intercâmbio, inclusive cultural, entre os mesmos. Seriam essas condições objetivas e subjetivas que deveriam sedimentar o autoconvencimento popular do bem fundado e dos benefícios práticos advenientes da unidade e da ulterior integração política dos dois países mediante a sua união orgânica.

Sintetizando, ajuizava-se que a união orgânica que desse processo gradual pudesse emergir só seria possível a médio e/ou longo prazo.

De grande relevância foi outrossim a paulatina autonomização dos ramos nacionais do PAIGC, tornada especialmente irreversível com a implantação desse partido em todo o território insular cabo-verdiano no período pós-25 de Abril de 1974 e com a consolidação dessa implantação no período pós-colonial com a sua transformação em movimento de libertação nacional no poder dotado dos recursos materiais, humanos e simbólicos que lhe advinham do seu estatuto político-jurídico e factual de força política dirigente da sociedade e do Estado.

Tal facto acarretou duas consequências de monta:

a) O aumento da propensão soberanista dos ramos nacionais do PAIGC e, consequentemente, dos Estados-nação que dirigiam, com o progressivo esvaziamento dos órgãos supranacionais do PAIGC (Secretário-Geral, Secretário-Geral Adjunto, Conselho Superior de Luta, Comité Executivo de Luta, Comissão Permanente e Secretariado Executivo) de

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efectiva capacidade decisória no plano supranacional, mesmo com a nominal manutenção das suas atribuições e competências estatutárias. Dessa factualidade resultou o correlativo enfraquecimento das principais estruturas institucionais de salvaguarda e de garantia do princípio da unidade num quadro formal de regime de partido único binacional. Sintoma dessa tendência foi a denominação PAIGC/CV, corrente no período pós-abertura de 1990, para (des) qualificar o ramo cabo-verdiano do Partido Africano da Independência da Guiné e de Cabo Verde. Ainda que essa mesma denominação pudesse também ser entendida como um estratagema de combate ao nacionalismo revolucionário integrante da ideologia e da prática políticas do PAIGC, considerado pelos inimigos e adversários tradicionais do cabralismo como estando ainda presente na teoria e na praxis do PAICV, partido que, aliás, se considerava e se proclamava como herdeiro cabo-verdiano legítimo e credenciado do passado de luta e do legado político-ideológico do PAIGC e do pensamento doutrinário de Amílcar Cabral.

b) A progressiva implantação dos combatentes cabo-verdianos (chamados, na altura, “grupo de Conacry”, e, agora, “grupo de Cuba” pelos seus rivais oriundos da luta clandestina anticolonial) no solo das ilhas e o aprofundamento dos seus conhecimentos em relação às mentalidades e idiossincrasias do povo das ilhas, do qual viveu fisicamente afastado durante a luta político-militar e diplomática levada a cabo a partir da Guiné-Bissau e da Guiné-Conacry.

Como assinala Humberto Cardoso no livro O Partido Único em Cabo Verde -Um Assalto à Esperança, esses conhecimentos demonstraram-se como fundamentais nas estratégias de busca de renovação no terreno restrito das ilhas, sobretudo no período pós-14 de Novembro de 1980, de uma controversa legitimidade histórica, eventualmente adquirida no campo da luta político-militar nas terras-longe guineenses, e sujeita a rápidos processos de desgaste nas condições autoritárias, ainda que mitigadas, de um regime de partido único. A concretização dessas estratégias de legitimação política foi sobremaneira dificultada devido não só às divergências interpartidárias e às sequentes purgas e dissidências maoísta, trotskysta e outras dos antigos militantes da clandestinidade (com destaque para as de Jorge Querido, logo no imediato pós-25 de Abril, e a trotskysta de 1979) como também ao seu estabelecimento e à sua indagação num país muito aberto ao Ocidente político e cultural e ao seu modelo democrático pluralista e dele economicamente muito dependente.

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Na nossa opinião, acrescia sobremaneira no sentido da sua legitimação aos olhos das populações cabo-verdianas, o engajamento dos combatentes, agora como dirigentes e representantes do Estado soberano cabo-verdiano, na luta pela captação de recursos externos e sua posterior reciclagem e redistribuição internas com o fito da sobrevivência do país e da melhoria das condições de vida das suas camadas mais humildes, nos planos da saúde, da educação, da cultura e, mais genericamente, da dignidade da pessoa humana.

Neste quadro e para além do papel de legitimação acima referido, parece incontornável para a compreensão da subsistência no período pós-independência das instituições incorporadoras do projecto da unidade Guiné/Cabo Verde, o papel que implicou a existência na Guiné-Bissau de uma comunidade de origem cabo-verdiana e de um regime, o de Luís Cabral, o qual parecia rever-se completamente no nacionalismo revolucionário e no princípio da unidade Guiné-Cabo Verde, pois que neles se inspirava, se renovava e procurava legitimar-se quase que quotidianamente. A unidade Guiné/Cabo Verde parecia significar no plano interno da sociedade bissau-guineense a unidade nacional entre todos os seus grupos étnicos negro-africanos, crioulos e outros, sob uma incontornável hegemonia social da minoria crioula, nativa da Guiné mas maioritariamente de origem cabo-verdiana. Teria sido uma fracção dessa minoria a principal interessada na manutenção do princípio da unidade Guiné-Cabo Verde e na sua maior institucionalização nas condições pós-coloniais de existência do país africano continental.

Neste contexto, que também era de indagação e de busca de caminhos, a programada unidade orgânica entre os dois países foi sendo reiteradamente proclamada, mas sucessivamente adiada.

No plano das relações entre os dois países, a implementação do princípio da unidade Guiné/Cabo Verde ficou-se pela realização de escassas medidas, a maioria com forte carácter simbólico. São os casos de:

a) Uma cada vez mais difusa supranacionalidade do partido único, dirigente nos dois países enquanto “movimento de libertação no poder”.

b) O estatuto de igualdade civil e política dos cidadãos dos dois países numa época em que eram raros os guineenses que frequentavam as ilhas cabo-verdianas e nelas residiam.

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c) A criação de algumas empresas mistas, sobretudo no domínio dos transportes marítimos, como foi o caso da NAGUICAVE.

d) A institucionalização de algumas estruturas estatais binacionais, como o Conselho da Unidade (de natureza interparlamentar) e a Conferência Intergovernamental, a Comissão de Defesa e Segurança, de carácter partidário, supra-estatal e supranacional e que superintendia nas questões das forças armadas nominalmente comuns, as FARP (Forças Armadas Revolucionárias do Povo), e outras formas assaz fluidas de cooperação intergovernamental, notoriamente distantes de formas mais avançadas e convincentes de integração económica ou, ainda menos, política.

e) A adopção no Colóquio Linguístico de 1979 sobre a Escrita do Crioulo (mais conhecido e celebrizado como Colóquio do Mindelo) de um alfabeto de base fonético-fonológica fortemente influenciado pelo Alfabeto Fonético Africano e que deveria ter em conta as flagrantes linguísticas entre os crioulos de Cabo Verde e da Guiné-Bissau.

Como se depreende dos documentos do PAIGC (sobretudo dos emanados do seu III Congresso de 1977) e dos pareceres de Manuel Duarte e Renato Cardoso sobre esta matéria (publicados postumamente, como já referido, em Cabo-Verdianidade e Africanidade, e Outros Textos, de Manuel Duarte), o modelo da unidade orgânica, o qual, tal como se previa na primeira Constituição de Cabo Verde (de Setembro de 1980), deveria ser aprovado formalmente em consulta popular, permaneceu incerto, acabando por se transformar num tabu, antes de se desmoronar completamente com o golpe de estado de Nino Vieira contra Luís Cabral de 14 de Novembro de 1980, a sequente criação do PAICV (Partido Africano da Independência de Cabo Verde) a 20 de Janeiro de 1981 e o desaparecimento /dissolução do PAIGC como partido binacional e força política dirigente dos Estados e das sociedades da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, ficando o desaparecimento/dissolução do antigo partido binacional e a transformação do seu ramo insular em partido nacional cabo-verdiano dotado de todos os recursos e prerrogativas de força política dirigente da sociedade e do Estado de Cabo Verde devidamente ratificados e consagrados pela revisão de Fevereiro de 1981 da Constituição cabo-verdiana de Setembro de 1980.

De todo o modo e independentemente da subsistência da boa- fé dos protagonistas guineenses e cabo-verdianos, em especial na sequência dos eventos relacionados com o assassinato de Amílcar Cabral e com o

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golpe de estado de Nino Vieira, de 14 de Novembro de 1980, constata-se com alguma clareza que a eventual união orgânica entre a Guiné e Cabo Verde foi sempre rodeada de muitos mistérios e de algumas mistificações, a que não escaparam nem os mais consistentes teóricos nem tão pouco os mais altos dirigentes políticos do PAIGC.

O colapso do projeto da união orgânica entre a Guiné e Cabo Verde

Tornadas (quase) insanáveis as fissuras provocadas especialmente pelas circunstâncias etnicamente marcadas do assassinato de Amílcar Cabral, está-se em crer que a não completa cicatrização das feridas provocadas pelo trágico e infausto acontecimento radicasse na pouca (ou nula) crença que alguns dos seus principais defensores públicos passaram a depositar na viabilidade do mesmo projeto. Na verdade, é crível que esses dirigentes tivessem pensado estar esgotadas as potencialidades emancipatórias do princípio da unidade Guiné/Cabo Verde, paradoxalmente devido ao pleno sucesso da conquista das soberanias nacionais e à emergência dos dois povos nos palcos da história na busca de afirmação nacional e da resolução de problemas e conflitos internos, próprios a cada uma das respectivas sociedades. Deste modo, tornou-se quase inevitável o ulterior bloqueio do processo de união orgânica entre a Guiné e Cabo Verde ou, pelo menos, a desaceleração do entusiasmo mobilizador que esse princípio pan-africanista suscitara para a luta anticolonial galvanizando importantes setores das duas sociedades.

Parecendo que não, e apesar das cautelas postas na implementação prática do projeto da unidade Guiné/Cabo Verde, a marcha fúnebre por esse mesmo projeto e o requiem pela pátria africana binacional, sonhada por Amílcar Cabral e da qual ele próprio foi o principal defensor e a vítima mais ilustre, terão sido entoados com a tristeza e a consternação devidas à morte de um ente muito querido, mas, igualmente, com o alívio que se deve ao óbito daqueles que em vida vegetam mais do que vivem, sofrem atrozmente calados mais do que sobrevivem em condições mínimas de dignidade. De natureza e efeitos mortíferos para o princípio e para o projeto da unidade Guiné/Cabo Verde, o golpe perpetrado por Nino Vieira, mais do que um assassinato, que seria o segundo de Cabral, na óptica dos detratores, dos sacrificados e dos alvos dos eventos de 14 de Novembro de 1980, representa, por assim dizer, uma espécie de acto de eutanásia.

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Por isso, foi amplamente tolerado, senão incensado, por quase todos aqueles que o interpretaram como significativo de um novo começar para os que puderam sobreviver ao que se tinha tornado um silencioso cancro político susceptível de gangrenar o corpo dos dois Estados-nação emergentes, especialmente do Estado-nação bissau-guineense, e a reconciliação nacional da sociedade cabo-verdiana. A tal compreensão, por demais tolerante, terão quiçá escapado os poucos cabo-verdianos das ilhas que, depois da independência de Cabo Verde, permaneceram na Guiné-Bissau e aqueloutros pan-africanistas de extracção paigcista que, mesmo depois da evidência da irreversibilidade das soberanias nacionais, continuaram a apostar, e até às derradeiras consequências, no sonho cabraliano da unidade Guiné/Cabo Verde. Tal aposta poderia ter tido como motivações tanto uma genuína convicção e a crença inabalável no princípio unitário a que se vem referindo como também a vontade de prestação de uma homenagem póstuma ao seu doravante imortal criador. Mais pragmaticamente, a defesa persistente do princípio da unidade Guiné/Cabo Verde poderá ter tido como motivação a sua compreensão enquanto fonte de legitimação do poder que alguns efectivamente exerciam, certos deles, considerando-se eles próprios, na sua dupla pertença nacional e identitária, como encarnando a ideia da unidade e da pátria africana bicéfala (no sentido de binacional). Mesmo se o princípio da unidade Guiné/Cabo Verde se tenha tornado em si mesmo cada vez mais inócuo na sua radicação complementar nas potencialidades libertárias e desenvolvimentistas dos dois países.

Sublinha Humberto Cardoso no livro acima referenciado, que, em reacção ao golpe de Estado protagonizado por Nino Vieira, as estratégias de renovação da legitimidade histórica por parte dos antigos dirigentes cabo-verdianos do PAIGC conheceram uma inequívoca, visível e inédita deriva nacionalista e soberanista, divergente do mais lato patriotismo pan-africanista ínsito no projeto de unidade Guiné-Cabo Verde, dantes abraçado. Até porque os dirigentes guineenses, ora golpistas, não teriam merecido a grandeza e a generosidade de tal projeto, primacialmente dedicado à venerável memória de Amílcar Cabral, da sua ingente e do seu sonho de construção de uma vida de liberdade, paz, justiça, progresso social e prosperidade pelos povos e para todos os filhos da Guiné e de Cabo Verde. É essa deriva nacionalista que teria levado os dirigentes cabo-verdianos a apressar o fim do PAIGC binacional, condenando imediatamente o golpe de estado como método condenável e inaceitável de resolução de conflitos

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intrapartidários, onerando pela exacerbação dos problemas ocorridos na Guiné-Bissau todos os dirigentes guineenses (tanto os “autenticamente guineenses” como os de origem cabo-verdiana, neles incluindo assim Luís Cabral e Nino Vieira que alegadamente teriam à sua disposição as instâncias nacionais do ramo guineense do partido e foram ambos os mais altos dirigentes do Estado guineense), rejeitando quaisquer compromissos com os dirigentes do Conselho da Revolução (aliás, considerado golpista com sucesso e, por, isso, interlocutor ilegítimo nas questões partidárias, mas autoridade e órgão soberanos, doravante legítimos nas relações entre os Estados independentes da Guiné-Bissau e de Cabo Verde).

Paradigmático desse posicionamento é a atitude de Aristides Pereira: na correspondência trocada com Nino Vieira, o Secretário-Geral do PAIGC começa por adoptar o comportamento de líder máximo desse partido supranacional e de paternal e, por isso, severa repreensão do método golpista adoptado por aquele que, com ele, tinha tido a responsabilidade político-militar bicéfala de uma das Frentes de combate guineense (a Frente Sul); a partir da circunstância de João Bernardo Vieira considerar a destituição de Luís Cabral como irreversível e, por isso, como facto absolutamente consumado, Aristides Pereira passa a adoptar a postura de Chefe de Estado cabo-verdiano e, como tal, estrangeiro em relação à Guiné-Bissau. Por isso, e em coerência com esse estatuto, Aristides Pereira, como, aliás, os membros do Conselho Nacional de Cabo Verde do ainda PAIGC entretanto reunido em sessão de emergência, recusavam-se a interferir nos assuntos internos da Guiné-Bissau para tão-somente indagar e preocupar-se com o destino dos cidadãos cabo-verdianos, seus compatriotas, residentes no doravante considerado ex-país irmão.

Já não eram os Estatutos do Partido nem as normas do Direito Constitucional e do Direito Penal guineenses, e sua eventual violação, nem sequer as funções de Secretário- Geral do PAIGC, por um lado, e, por outro lado, de Membro da Comissão Permanente do PAIGC (a mais alta instância executiva do PAIGC, de composição paritária binacional) e Presidente do Conselho Nacional da Guiné-Bissau do mesmo partido, a presidir à interlocução entre Aristides Pereira e Nino Vieira, mas as normas de Direito Internacional Público que doravante estão presentes nas palavras trocadas entre o Presidente da República de Cabo Verde e o Presidente do Conselho da Revolução da Guiné-Bissau.

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Rejeitando, de início, qualquer solução que não implicasse a reconstituição do status quo anterior ao reajustamento ninista, isto é, a reposição de Luís Cabral nas suas funções de Chefe de Estado guineense, já claramente impossível de concretizar, bem como qualquer saída à crise que pudesse significar a superação da alegada “unidade entre cavalo e cavaleiro”, isto é, a recomposição, a favor dos “guineenses autênticos”, da correlação de forças ao mais alto nível binacional e nacional-guineense do comatoso PAIGC, os dirigentes cabo-verdianos do PAIGC optaram pela transformação do ramo cabo-verdiano desse partido em partido nacional autónomo, o PAICV, culminando, assim, o que desde há muito (pelo menos, desde o assassinato do “cabo-verdiano” Amílcar Cabral) se adivinhava, ainda que por indícios contraditórios.

À inicial estupefacção face ao desmoronamento de um princípio largamente propagandeado como intocável e assente em bases inquebrantáveis seguiu-se a respiração aliviada dos cabo-verdianos e a total recentragem do Partido Africano da Independência sobre as problemáticas da sociedade e da terra cabo-verdianas.

Alguns incidentes, ocorridos, particularmente, nos meses que se seguiram ao 14 de Novembro de 1980, são, no entanto, de molde a testemunhar os sentimentos dos dirigentes do PAICV, reforçados com outros dirigentes cabo-verdianos históricos (como Júlio de Carvalho, José Araújo e Honório Chantre), chegados do ambiente repressivo e esquizofrénico da Guiné-Bissau e, imediatamente, colocados nas mais altas instâncias da nomenclatura dominante nos poderes partidário e governamental (ao contrário dos seus companheiros guineenses que, estando em Cabo Verde, também se pronunciaram contra o golpe ninista). Está-se em crer que esses dirigentes se sentiam politicamente acossados por parte daqueles que doravante eram desqualificados como aliados da reacção interna, alegadamente saudosista do período colonial e inserida numa contra-ofensiva geral do neocolonialismo em África. Por isso, o claro fito de demonstração de força, experimentada politicamente com muito sucesso em face dos acontecimentos de Bissau, na irrupção repressiva nos eventos da (contra) reforma agrária em Santo Antão de 31 de Agosto de 1981 e na reacção estridente e, por vezes, histérica contra algumas denúncias de alegadas violações de direitos humanos feitas por alguns dirigentes do IPAJ (Instituto de Assistência e Patrocínio Judiciários).

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Ainda que tivesse logrado manter o regime de partido único por mais de dez anos após o fracasso do projeto de unidade Guiné/Cabo Verde e tivesse persistido na defesa da identidade africana de Cabo Verde, o PAICV pôde e, de certo modo, soube envolver essas duas premissas ideológicas essenciais em compromissos vários, com vista à manutenção da ajuda ocidental, à descompressão do regime, à valorização da crioulidade, à reconciliação com as elites letradas claridosas e à mobilização e/ou neutralização dos quadros recém-regressados dos estudos universitários. Foi o que, aliás, intentámos modestamente demonstrar no texto “Síndromas de orfandade continental, indagação identitária e funcionalização político-ideológica nos discursos identitários caboverdianos” (publicado no jornal online Liberal e em Cabo Verde – Três Décadas Depois (número temático especial da revista Direito e Cidadania).

Deste modo e a título de descomplexado balanço, pode-se dizer que o princípio da unidade Guiné/Cabo Verde se demonstrou, historicamente, como o mais eficaz instrumento de libertação política e de catarse cultural do povo cabo-verdiano, para depois se desvanecer definitivamente e ao correlativo projeto de pátria africana binacional nos horizontes geograficamente longínquos do “reajustamento” de Nino Vieira. Reajustamento, cujos fautores eram, tal “os bárbaros”, de Kavafis, muito aguardados, ainda que esconjurados como implicados numa odiosa segunda morte de Amílcar Cabral, de que “esses outros”, “os suspeitos de costume”, seriam os responsáveis diretos. Reajustamento (no sentido de golpe contra o “cabo-verdiano” Luís Cabral), aliás, antecipado por Onésimo Silveira em artigo de clarificação da sua dissidência com o projeto paigcista de unidade Guiné-Cabo Verde, publicado, em 1974, no jornal francês Le Monde Diplomatique.

Afinal e literalmente, reajustamento da utopia, outrora libertadora, da pátria africana supranacional a um presente de inadiável maturação e consolidação do Estado nacional soberano.

Nessa sequência, o patriotismo africano bi-nacionalista retirou a máscara, há muito descolorida, da unidade no quadro de uma pátria sem contornos idiossincráticos precisos, e também aliviado, mostrou o rosto uni-nacionalista da pátria do meio do mar, na poética expressão de Ovídio Martins.

Da pátria crioula, mas também da pátria africana, ou, pelo menos,

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peri-africana, porque pertença de um povo cuja sagacidade o levou a enveredar, em tempo historicamente oportuno, pelos caminhos da liberdade nacional, propiciados pela apreensão da sua maturidade de povo detentor de uma identidade nacional inconfundível e resgatador do seu “destino africano, livremente escolhido”, segundo os termos cunhados e lavrados por Manuel Duarte e adoptados e lidos por Abílio Duarte no Texto da Proclamação da Independência.

Com o espírito perscrutando “o sol, o suor e o verde mar ” do nosso chão e rememorando “os séculos de dor e esperança”, iniciados com a chegada do descobridor e a arribada da primeira nau negreira à primeira ilha do nosso arquipélago, e, depois, imortalizados no hino do movimento africano de libertação binacional, pôde o povo de Cabo Verde cumprir a utopia, apenas remotamente sonhada pelos nativistas, de obtenção de uma “pátria amada” na “terra dos nossos avôs”. Hino que, outrora partilhado com a República irmã da Guiné-Bissau, constituiu o primeiro hino nacional da República de Cabo Verde e, por isso, foi, com “o milho onírico da bandeira” ( em verso de Zé di Sant’ y Águ), “esse irmão uterino” (nas palavras de Corsino Fortes), a justo título um signo maior da soberania nacional cabo-verdiana. Mesmo se geminada a uma outra, projetada “pátria africana”, lugar, a um tempo, imaginado como sonho a cumprir-se, vituperado como ressaca da utopia e/ou esconjurado como cemitério da nação tão exaustivamente procurada e tão exaustamente reencontrada.

Cumprido o seu destino de orgulhosa sinalização da história e da dignidade resgatadas no nascimento de duas nações soberanas, e em prevenção do pesadelo que da utopia em sangue e ressentimento poderia entrementes coagular-se, foi esse hino envolto na bandeira verde-ouro-rubra da estrela negra, do milho e da concha da idiossincrasia cabo-verdiana simbolicamente reencontrada e remetido para o lugar digno que, por direito próprio, deve ocupar no presente da nação guineense, na memória colectiva da nação cabo-verdiana e na história e na actualidade do Partido Africano da Independência de Cabo Verde.

Outros símbolos, por uns considerados como exclusiva e plenamente crioulos, ainda que também gémeos dos símbolos de uma outra nação irmã, agora situada nas Antilhas ditas Holandesas, podiam doravante ocupar os palcos libertos da história cabo-verdiana.

Afinal, o patriotismo africano sempre se alimentou entre nós, ilhéus,

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do imprescindível pão do quotidiano patriotismo de “se sentir feliz por se ter nascido cabo-verdiano”, como se expressa Manuel de Novas pela voz de Ildo Lobo, também imortalizada na morte.

Ou como exclama uma personagem da peça teatral “O Julgamento de Totó Monteiro” do dramaturgo, poeta e compositor Ano Nobo (Fulgêncio Baptista): “Pátria dja nu ten dja”.

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Nota do autor

Constitui o presente texto uma versão revista do ensaio intitulado “O Caso Amílcar Cabral: Breves Apontamentos Críticos”, publicado em três partes no jornal electrónico A Semana Online dos dias 13, 20 e 25 de Maio de 2007. Depois da publicação desse texto, o autor publicou no mesmo jornal o ensaio “O Caso Amílcar Cabral-Quarta Parte”, republicou o ensaio “Funcionalização Político-Ideológica e Síndromas de Orfandade nos Discursos Identitários Caboverdianos (Separata de Cabo Verde, Três Décadas Depois, nº especial da revista Direito e Cidadania, Vários autores (coordenação de Jorge Carlos Fonseca), Praia, 2007) e foram editadas e/ou chegaram ao conhecimento do autor várias obras que vieram confirmar, complementar ou contradizer as teses defendidas no presente ensaio, com destaque para os livros Em Busca da Nação - Notas para uma reinterpretação do Cabo Verde colonial (UFSC, Florianópolis/Brasil, IBNL/Cabo Verde, 2006), de Gabriel Fernandes, O Nativismo em Angola, no Brasil e em Cabo Verde (IPADE, Lisboa, 2006), de José Guimarães, Amílcar Cabral (1924-1973) Vida e Morte de um Revolucionário Africano (Nova Vega, Lisboa, 2011), de Julião Soares Sousa, Tarrafal/Chão Bom, Memórias e Verdades (IIPC (Instituto da Investigação e do Património Culturais), Praia, 2010) e Aristides Pereira, Minha Vida, Nossa Luta (Spleen-Edições, Praia, 2012), livro de entrevistas de Aristides Pereira concedidas a José Vicente Lopes, e O Mestiço e o Poder, Identidade, Dominação e Resistência na Guiné-Bissau (Nova Vega, Lisboa, 2012), de Tcherrno Djaló.

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Anatomia de uma bem-sucedida guerra revolucionária:exército português versus PAIGC e

o assassinato de Amílcar Cabral

Leopoldo Amado, Ph.D.

Universidade de Coimbra

[email protected]

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Leopoldo AmadoAnatomia de uma bem-sucedida guerra revolucionária: exército português

versus PAIGC e o assassinato de Amílcar Cabral

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Resumo

Historicamente, o artigo procura sintetizar a evolução da bem-sucedida guerra de libertação dos povos da Guiné-Bissau e Cabo Verde, diligente e inteligentemente dirigida pelo PAIGC e Amílcar Cabral, seu incontornável líder histórico. Assim, fase por fase, à medida que a guerra ia gradualmente subindo de patamar, Amílcar Cabra ousou e conseguiu adaptar-se às complexas contingências geradas pelo conflito, tanto no aspecto estritamente militar como nos domínios social e político da internacionalização do conflito que a subjazem, ao ponto de o Exército Português e o Portugal Colonial terem sido colocados perante um imbróglio insuperável que, segundo o autor, em muito explicam o assassínio de Amílcar Cabral e o próprio desmoronamento do Império colonial que se lhe seguiu, insurgindo-se, em consequência, perante as teses que tendem a menosprezar a melhoria gradual e o quase permanente ascendente político-militar do PAIGC, designadamente, pela via do ardil aviltamento do papel dos temíveis misseis Strela que, aliás, na acepção do autor, apenas tiveram um papel secundário, apesar de decisivo.

Palavras-chave: PAIGC; guerra colonial; Amílcar Cabral.

Ressalvando-se o ano de 1971, um período caracterizado, no geral, por um impasse militar no teatro das operações, o desequilíbrio da situação militar, desde o começo da guerra, foi sempre favorável ao PAIGC, até mesmo para os comandos-chefes portugueses, mercê da sua permanente melhoria estratégico-táctica e, também, da perfeita combinação de acções de guerrilha com as da guerra convencional (sobretudo, a partir de 1968). Contribuiu, também para esse desequilíbrio, uma manifesta superioridade do PAIGC em termos de arsenal bélico, o apoio das populações e o conhecimento do meio, traduzidos estes numa elevada moral combativa.

Desde o início da luta armada, essa realidade se manteve quase inalterável. De um lado, porque o PAIGC foi capaz de adequar a estratégia militar e a consequente táctica às estruturas logísticas e ao próprio dispositivo, colmatando as situações que, aqui e acolá, se impunham e fazendo face, por outro, aos desafios próprios de crescimento que requeriam o confronto das estratégias dos exércitos em presença.

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Esta dinâmica foi impondo às FARP (Forças Armadas Revolucionárias do Povo) uma gradativa subida de patamar em termos organizacionais, e uma constante adequação dos desígnios militares aos estritamente políticos, sendo também de assinalar o facto de o PAIGC ter aproveitado este ascendente favorável para estender o seu controlo por quase toda a região Sul.

Tal facto criou as condições ideais para o alastramento do conflito à região Centro-Oeste, apesar das contra-ofensivas de Cantanhez e Quitafine, desencadeadas, quase em simultâneo, pelo exército português, mas que não conseguiram debelar o ascendente militar do PAIGC que conseguiu, mesmo assim, abrir novos corredores de infiltração e abastecimentos a partir da fronteira Norte, dos quais se destacam os de Sitató, Jumbenbem, Sambuiá e Canja, obrigando o Exército português, a uma nova e profunda remodelação do seu dispositivo táctico.

Foi, efectivamente, em 1971, após a chegada do General Spínola com a sua política da “Guiné Melhor”, que o ascendente político-militar do PAIGC foi seriamente abalado e posto à prova. A introdução de um novo conceito operacional, pelo exército português, baseado na combinação das acções psicossociais com a crescente africanização do conflito, contribuiu, significativamente, para uma espécie de equilíbrio e impasse militares, mercê sobretudo da formação de unidades de recrutamento local, de espírito marcadamente ofensivo, de pendor atacante e de procura de supremacia, mesmo que transitória, em todas as zonas em disputa. Esta alteração estratégica demonstrou que o General Spínola possuía uma profunda perceção dos aspectos doutrinários da guerra anti-subversiva, que doravante, passava a ser direccionada no sentido da conquista das populações, por meio de acções socioeconómicas, de tal sorte que logrou espalhar, momentaneamente, embora, o desânimo nas hostes combatentes do PAIGC.

Apercebendo-se ambos (Amílcar Cabal e Spínola) de que havia que tirar partido da situação de equilíbrio e impasse militares que se registou a partir de 1971, quer um quer outro, quiseram potenciar a seu favor as oportunidades que surgiam, optando, claramente, o primeiro por uma estratégia global assente na internacionalização do conflito para cujo fortalecimento era sumamente importante a componente militar, enquanto o segundo apostava, seriamente, num trabalho cujo objetivo era o de minar

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a credibilidade da Direção do PAIGC.

Com isso, Spinola visava, igualmente, forjar uma solução, politicamente, negociada uma vez que era assente que o conflito só podia ser resolvido pela via política e não pela militar. Assim, através da acção concertada da PIDE-DGS e da APSIC (serviços militares de ação psicológica), as autoridades coloniais começaram a desenvolver, paralelamente, com um notável sucesso, todo um paciente e meticuloso trabalho de sapa e de infiltração das estruturas intermédias e, em certa medida, da própria cúpula do PAIGC.

Perante este estado de coisas, Amílcar Cabral respondeu com uma nova modificação dos aspectos gerais da sua manobra global, passando doravante a preocupar-se em manter, no teatro das operações, com grande economia de meios e de materiais, um estado de guerra que servisse a propaganda interior e exterior do PAIGC, para poder obter a adesão das populações e uma máxima restrição de mobilidade das unidades do Exército português.

Associado a estes dois aspectos, Amílcar Cabral introduziu, ainda, um terceiro, a todos os títulos demolidor, que foi o de, permanentemente, alimentar nas instâncias internacionais, a ideia de uma possível e até iminente derrota militar do Exército português na Guiné, não apenas com o objetivo de assegurar que as questões relativas à justeza da luta do PAIGC se mantivessem sempre na agenda internacional, mas, sobretudo, para criar um ambiente internacional favorável à sua intenção de proclamar o Estado da Guiné-Bissau e, assim, assestar o golpe diplomático fatal ao colonialismo português.

Para Cabral era ponto assente que o Estado da Guiné-Bissau existia de facto, pois possuía uma organização social, política e económica criada nas zonas libertadas, apenas precisando de ser formalizada de jure, com a proclamação da independência e a adopção de uma Constituição que criasse os seus órgãos de Governo. À luz do Direito Internacional, a formalização transformaria a presença do exército português, na Guiné, numa força invasora e de ocupação.

Do confronto de duas convicções estratégicas muito claras, obriga, do lado português, ao incremento de uma forte componente política na sua atuação, tanto junto das populações como na procura de uma solução

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negociada. Amílcar Cabral opta, por uma inusitada acção psicossocial, amplamente realizada com o apoio da Suécia e articulada no plano das operações militares, com ações coordenadas, quer atacando as guarnições com possibilidades de apoio simultâneo de artilharia e tirando o máximo rendimento da sua atividade, quer ameaçando zonas urbanas e os chamados reordenamentos populacionais organizados pelo exército português em autodefesa quer, ainda, provocando intervenções junto da tropa portuguesa e montando de seguida emboscadas nos itinerários de acesso directo das forças de socorro.

O exército português cai, assim, numa fase desconcertante graças, sobretudo, à introdução, por parte de Amílcar Cabral e do PAIGC, de novas e potentes armas que colocam os aquartelamentos situados ao longo da fronteira sob permanente fogo de artilharia. Esta opção tática leva a uma substancial melhoria das FARP em termos de organização militar e ao incremento da eficiência e da eficácia da ampla acção psicossocial em marcha conseguindo, em boa verdade, contrabalançar a inteligente ação psicossocial arquitetada pelo General Spínola.

Na realidade, justamente pela ameaça que representava, Amílcar Cabral constituía, desde essa altura, um sério problema para as autoridades coloniais de Bissau e mesmo para as da Metrópole. Aliás, pelo menos, desde 1972, o nome do general Spínola começou a ser apontado para a presidência da República, não podendo, por isso, regressar derrotado. Era para ele imperioso tudo fazer para inverter a situação militar, pelo que não é de descartar a hipótese de que o assassinato de Amílcar Cabral se enquadrasse nessa espécie de obsessão que levaria o exército português, no início de 1973, logo depois do seu assassinato, a realizar uma série de violentas operações militares contra as regiões libertadas e algumas bases do PAIGC no Sul que, no entanto, vieram a revelar-se militarmente desastrosas.

Acresce-se, também, que os sucessos militares e políticos do PAIGC, designadamente, a proclamação do Estado da Guiné-Bissau, só foram possíveis graças aos trabalhos realizados por Amílcar Cabral, ainda em vida, aos quais após o seu desaparecimento, mutatis mutandi, se deu continuidade, de acordo com as linhas estratégicas por ele gizadas. Portanto, ao contrário do que é lugar-comum afirmar-se, não foram os mísseis Strella, utilizados pelo PAIGC após a morte de Amílcar

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Cabral que configuraram uma alteração marcadamente significativa em termos estratégico-tácticos. Na verdade, ainda em vida, Amílcar Cabral tinha logrado alterar, significativamente, a situação do impasse militar prevalecente, fazendo-a pender, favoravelmente, para o lado do PAIGC. A utilização maciça de morteiros (82 mm e 120 mm), foguetões de 122 mm (Graad ou jacto do Povo), da peça de artilharia 130 mm e, ainda, do M-46 (novíssima arma de longo alcance capaz de atingir 30 quilómetros), ocasionaram, do ponto de vista da correlação de forças no terreno, uma acentuada alteração favorável ao PAIGC.

Com efeito, a última mensagem de Cabral resume de forma perfeita a situação em que os portugueses se encontravam no teatro da guerra: Dizia ele que “ (…) o agressor colonialista enfrenta uma contradição principal, sem solução (…) Para ter a sensação de que domina o território, ele é obrigado a dispersar as tropas, levando-as a ocupar o maior número de localidades possível, mas, dispersando-as fica mais fraco e, assim, as forças patrióticas, concentradas, podem dar-lhe golpes mais duros e mortais. Então ele é obrigado a retirar para concentrar as suas tropas e evitar grandes perdas em vidas humanas, para melhor resistir ao avanço das forças nacionalistas, contra as quais pretende ganhar tempo. Mas, concentrando tropas, deixa sem a sua presença militar e política vastas áreas do país, que são organizadas e administradas pelas forças patrióticas”. [Cabral, Amílcar, “Mais Pensamento para Melhor Agir”, mais Actividade Para melhor Pensar” (mensagem de Ano Novo), Serviços de Informação do PAIGC, Arquivo do PAIGC, Janeiro de 1973, pp. 12 e 13]

Será assim em defesa da sua imagem pessoal, muito mais do que a imposição de qualquer perspetiva negocial, que Spínola desencadeia operações de grande monta no Sul, ainda antes do assassinato de Cabral, as quais o PAIGC responde, no Norte, de forma, igualmente, violenta, obrigando o Exército português ao balanceamento de efectivos para o Sul, para logo depois atacar novamente e com assinalável sucesso os aquartelamentos do exército português no Sul.

Para as autoridades coloniais, como acima se referiu, Amílcar Cabral e o PAIGC eram já um sério problema, na medida em que, para além da projeção e respeito internacionais, o PAIGC contava, ainda, no seu arsenal com uma moderna e potente artilharia e poderosos carros blindados. Tudo apontava, de resto, que estava nos seus planos a consolidação da guerra

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convencional que, de resto, vinha sendo ensaiada com inquestionável sucesso, desde pelo menos 1968, ao transformar o teatro de operações da Guiné num sério dilema para os governantes portugueses, já que estes não podiam negociar, porque iriam abrir um precedente nas outras colónias, e, também, porque não encaravam de ânimo leve a possibilidade de uma derrota, que já se vislumbrava no horizonte, pois afectaria o moral dos seus soldados que combatiam noutras frentes, nomeadamente em Angola e Moçambique. A alternativa política era a de “aguentar o mais possível”, mesmo que com a perfeita consciência de que, ainda assim, essa situação só jogava contra eles.

Antes, porém, da instalação deste clima político entre a espada e a parede em que o Portugal Imperial se encontrava, a Subdelegação da PIDE-DGS havia apostado, fortemente, num primeiro momento, na transmudação de elementos da estrutura clandestina do PAIGC em seus informadores ao ponto de a estrutura clandestina vir a encontrar-se quase que completamente minada.

O irónico da situação era que, mesmo dentro da estrutura clandestina do PAIGC, em Bissau, os próprios agentes infiltrados da PIDE-DGS estavam, sem o saberem, encarregues de vigiar os movimentos de outros agentes, seus correligionários, o que, de per si, dá ideia do enorme grau de infiltração da PIDE-DGS junto das estruturas nacionalistas. A este grupo, juntava-se, ainda, a grande rede de informadores que se contavam aos milhares, para além do nada desprezível contingente de desertores do PAIGC que a PIDE-DGS, igualmente, convertera em informadores e que o exército português utilizou como guias privilegiados nas suas acções cirúrgicas.

A tudo isso, deve-se agregar outros planos urdidos para desacreditar Amílcar Cabral e mesmo para a sua eliminação física, dos quais se destacam os seguintes:

• A contratação em 1965, do escritor Amândio César no tempo do governador Arnaldo Shultz, que se deslocou a Guiné para escolher elementos para a publicação de um livro de contrapropaganda con-tra o PAIGC, no qual, de resto, se referiu a Amílcar Cabral em ter-mos assaz indecorosos, evidenciando quase uma batalha pessoal:

“ (…) Ele sabe o fim que o espera, e sabe melhor do que

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ninguém o que sucedeu a um seu amigo de subversão, aquele Humberto Delgado em cuja morte parece que também andou envolvido o nome da sua mulher. Esse fim à vista e a rivalidade dos outros comparsas, que su-portarão mal, ou não suportam de todo, a sua ascendên-cia cabo-verdiana, agravada com o seu casamento com mulher branca da metrópole – tudo isso leva Amílcar Ca-bral a apresentar-se otimista em L’ Humanité exactamen-te quando a imprensa estrangeira também começa a dar pela mentira do terrorismo na nossa província da Guiné (…) ” [César, Amândio, Guiné 1965: Contrataque, Pax, 1965, p. 31]

• Em 1966 ter-se-ia registado uma primeira tentativa de abater Amílcar Cabral nas regiões libertadas, na sequência da qual Honó-rio Sanches Vaz e Miguel Embaná, altos responsáveis do PAIGC (igualmente agentes da PIDE-DGS), foram julgados e condenados ao fuzilamento. Segundo os planos desse atentado, um atirador de bazuca deveria disparar contra a barraca onde Cabral devia pernoi-tar. Honório Sanches Vaz mantinha ligações com a Subdelegação da PIDE-DGS de Bissau, tendo, inclusivamente, enviado a Bathurst, Gâmbia, emissários que se encontraram com o inspector da PIDE-DGS, no Hotel Atlântico, onde, alegadamente, ele próprio chegou a encontrar-se com agentes outros da PIDE-DGS para negociar a rendição dos elementos do PAIGC sob o seu comando.

• Um outro plano que, desde 1967 vinha sendo urdido e discutido com minúcia entre o Director-Geral da PIDE e o chefe da Subde-legação de Bissau, através de uma troca de ofícios com a chancela de “muito secreto”, acabaria depois por ser abandonado por inexe-quível.

Com efeito, o próprio Amílcar Cabral tinha uma aguda consciência da existência de planos que visavam a sua eliminação física. Produziu, por isso, um importantíssimo e premonitório documento no qual denunciava, concomitantemente, os planos do Governo colonial em face da guerra e, no qual antevia, também, o seu próprio assassinato. Curiosamente, tudo ou quase tudo veio a acontecer, como de resto ele previra neste documento. Nesse documento, dizia que:

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“ (…) Os colonialistas portugueses, para criarem a confusão na nossa terra, tudo farão para formar uma Direcção paralela do Partido para se opor à já existente, a qual deve incluir um ou dois agentes e alguns elementos responsáveis e entre os descontentes, em particular, aqueles que, pelos erros cometidos ou pelas críticas que lhes foram feitas, estão descontentes com a actual chefia do Partido. A Direcção clandestina, criada, exclusivamente, para a sabotagem e a destruição do Partido, deveria aproveitar todas as possibilidades para manter contactos com Governos de outros Estados a fim de levá-los a pensar que existe uma cisão no seio do Partido e para ganhar o seu apoio. Nesta segunda fase, os colonialistas e os seus aliados, de acordo com o plano elaborado, devem desenvolver uma campanha de persuasão da opinião pública sobre a cisão do PAIGC em toda a África e ao nível internacional, propondo-se desacreditar o prestígio da actual Direcção do Partido e, em primeiro termo, do seu Secretário-Geral. No interior do país, as tropas colonialistas activariam as suas operações no intuito de desmoralizar e aterrorizar a população e os nossos combatentes. E, enfim, se os agentes dos colonialistas, infiltrados nas nossas fileiras, não forem desmascarados a tempo e conseguirem levar a cabo os seus planos, sobretudo recrutar aliados entre alguns dirigentes do Partido e encontrar apoio dos países vizinhos, em primeiro lugar da República da Guiné, iniciar-se-ia a terceira fase que prevê: a formação de uma nova Direcção do Partido (…) com base no racismo e, se for necessário, no tribalismo e na intolerância religiosa, a fim de fixar a divisão do nosso povo e torná-lo indefeso perante os colonialistas. Decerto mudarão também o nome do nosso Partido, a cessação de toda as espécies de acções antiportuguesas, tanto no interior do país como à escala internacional, particularmente na República da Guiné, o estabelecimento do controlo sobre os bens do PAIGC com o fim de paralisar as nossas acções militares e a manutenção do nosso Exército e a

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prisão e a liquidação física de todos os membros fiéis ao PAIGC. Realizadas essas metas, a declaração sobre o estabelecimento de contactos com Lisboa, por intermédio de Spínola, para o início de conversações falsas que terão por finalidade alcançar a autonomia interna da Guiné e o estabelecimento da chamada autodeterminação sob a bandeira portuguesa. A criação do Governo da Guiné que declarará a formação do Estado da Guiné como parte integrante da comunidade portuguesa. Em conformidade com os planos e promessas de Spínola e das autoridades coloniais portuguesas, a todos os agentes e membros do Partido envolvidos na realização do dado programa serão assegurados postos elevados na vida política e nas forças armadas do futuro Estado. Serão também bem pagos pela sua traição. Este é o plano diabólico elaborado por Spínola e pelas autoridades coloniais portuguesas e que tem em vista destruir o nosso Partido por dentro, recorrendo aos agentes já infiltrados ou a serem infiltrados no seio do Partido. Julgo que a veracidade destes planos não dá margem para dúvidas, pois foram recolhidos por gente nossa em Bissau. Como se vê, as intenções dos colonialistas são bastante sérias e os programas têm largo alcance. O nosso Serviço de Segurança fez um grande trabalho no sentido de neutralizar alguns agentes do inimigo e colher certo material referente a algumas pessoas que ainda se encontram em liberdade. Esta informação tem carácter meramente confidencial e, por isso, não vamos fazer agora debates”. [Cf. Cabral, Amílcar, “Vamos Reforçar a Nossa Vigilância, para Desmascarar e Eliminar os Agentes do Inimigo para Defendermos o Partido e a Luta e para Continuarmos a Condenar ao Fracasso Todos os Planos dos Criminosos Colonialistas Portugueses”, Serviços de Informação e Propaganda do PAIGC, Arquivo do PAIGC, Março de 1972.]

A 20 de Janeiro de 1973, ocorre, porém, o assassínio de Amílcar Cabral em circunstâncias até, agora, não completamente esclarecidas, apesar de começar a ser possível descortinar-se, as várias tentativas, quer as anteriores quer as mais recentes, sintomaticamente, todas da direta

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responsabilidade moral e material da PIDE-DGS, todos como o objetivo da eliminação física de Amílcar Cabral e, deste modo, o enfraquecimento da Direcção do PAIGC.

Apesar de não serem suficientemente claras as circunstâncias que levaram ao assassínio de Amílcar Cabral, é hoje possível, valendo-se da indagação “Quem é o Inimigo?”, demonstrar que concorreram forças de natureza díspar, quer entre os, circunstancialmente, correligionários aos ocasionalmente entrincheirados no mesmo lado da barricada. Não se pode, obviamente, esquecer, as históricas rivalidades étnicas atiçadas pelo sistema colonial, e uma infinidade de outras linhas de demarcação, todas elas resultantes de tensões deliberadamente fomentadas, ao ponto de podermos comparar essa conspiração a um polvo gigante cujos tentáculos compreendiam os milhares de agentes da PIDE-DGS, recrutados na Guiné, os agentes duplos da rede clandestina do PAIGC em Bissau, os inimigos internos do PAIGC, os guineenses “inimigos” da união com os caboverdianos, os caboverdianos “inimigos” da união com os guineenses; as clivagens étnicas que se manifestaram sob diversas formas durante a luta de libertação, os “comprometidos” (infiltrados) do lado do PAIGC mobilizados pelas autoridades colonias, os “comprometidos” do lado das autoridades coloniais (descontentes) mobilizados pelo PAIGC; e, finalmente, os agentes da PIDE-DGS naturais da Guiné-Conakry. [No complot contra Amílcar Cabral foi referenciado o nome de dois cidadãos da República da Guiné, a saber, Alpha Coubassa, funcionário Público e Gueladou Bah, funcionário administrativo (Vide Arquivos da PIDE-DGS, ANTT, PAIGC, SR 64/61 – nt 3073 (Pasta 8), fls.421)].

Enquanto nas hostes dos caboverdianos do PAIGC que se encontravam em Conakry e que foram presos na altura pelos conspiradores reinou e, em certo sentido, ainda, reina, a convicção unânime de que a quase generalidade dos guineenses em Conakry estava a par da conspiração que conduziu ao assassínio de Amílcar Cabral, informações hoje disponíveis permitem-nos assinalar a realização de várias reuniões discretas efetuadas, logo após o desaparecimento de Cabral, por guineenses notáveis do PAIGC que tinham a preocupação de ver um guineense suceder a Amílcar Cabral, tendo, inclusivamente, sido aventado, num primeiro momento, o nome de Rafael Babosa, para logo depois se construir um difuso consenso em torno da figura de Nino Vieira.

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Conclui-se, portanto, que, independentemente da acão da PIDE-DGS, tenha surgido o grupo dos conspiradores fruto de clivagens, dissidências e tensões criadas no PAIGC, com motivações individuais ou de cariz diverso e até mesmo diferenciado.

Acresce-se, também, com recurso à indagação de “Quem é o Inimigo”, a participação das autoridades da Guiné-Conakry na conspiração, pois é difícil acreditar-se na sua não-participação se se atender ao fato de que os cabecilhas da conspiração foram, triunfalmente, recebidos no Palácio de Sékou Touré. Aliás, na mesma linha de raciocínio, é possível, hoje, provar-se a directa ou a indirecta participação dos Serviços de Inteligência de vários países ocidentais que, na altura, apoiavam a política colonial de Portugal.

No entanto, Spínola recusa, terminantemente, a sua implicação na morte de Amílcar Cabral, enquanto certos sectores, politicamente mais conservadores do exército português, consideravam que

“(…) o mal-estar permanente gerado entre cabo-verdianos e guineenses do PAIGC e o seu reflexo na população foram dando origem, no decorrer da guerra, a aproximações e contactos entre responsáveis daquele movimento e autoridades portuguesas. Talvez que o assassínio de Amílcar Cabral tenha sido consequência de tudo isto e também do peso da subordinação soviética de que ele sentia necessidade de se libertar. (…) ”. [Silvino Silvério, Marques, A Vitória Traída (Quatro Generais Escrevem): J. da Luz Cunha, Bethencourt Rodrigues, Editorial Intervenção, 1977, p. 263.]

Na opinião do autor deste texto, não há dúvidas de que Amílcar Cabral teria sido vítima das manipulações das autoridades colonias e da PIDE-DGS mas, igualmente, de uma série de entidades e de interesses que pareciam gravitar em círculos concêntricos, todos eles, inquestionavelmente, manietados pelos Serviços da PIDE-DGS em Bissau e Lisboa (o núcleo central da conspiração), os autores morais e matérias do assassinato de Amílcar Cabral.

Reportando-nos ao estado das pesquisas e das investigações sobre o assassínio de Amílcar Cabral, as únicas dúvidas atém-se com a

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dificuldade em determinar, com exactidão, o grau de infiltração do PAIGC pela PIDE-DGS, e, na mesma linha, os diferentes níveis de responsabilidade moral, uma vez que são conhecidos os autores materiais: Inocêncio Cani, Comandante de Marinha; Estêvão Lima, da Marinha; Mário Cá, da Marinha; João Tomas Cabral, agente da PIDE-DGS desde a altura em que desempenhou as funções de responsável pela logística e reabastecimento em Koundara; Alda Djassi; Coda Nabonia, um dos guarda-costas de Amílcar Cabral; Momo Turé, ex-preso político em Tarrafal; Baciro Turé; Inácio Soares da Gama, comandante da região Leste; Emílio Costa, da Marinha; Luís Teixeira, da Marinha; Mamadu N’Djai, Comandante de infantaria e, na altura, chefe da segurança do Secretariado do PAIGC; Marcelino Ferreira, vulgo “Néne”, radiotelegrafista em Conakry; Aristides Barbosa, ex-preso político em Tarrafal; Ansumane Bangurá; Abdulai Djassi; Valentino Cabral Mangama e Bocoda (ou Coda) Mabogma.

Num artigo publicado por Basil Davidson em Abril de 1973 (Sunday Times de 15 de Abril de 1973), o autor descreve, em pormenor os acontecimentos que teriam precedido a morte de Amílcar Cabral, atribuindo o atentado às autoridades portuguesas. Nesse artigo, Davidson afirma que o programa de promoção social de Spínola só poderia vingar se o PAIGC fosse destruído por um duplo golpe que decapitasse a sua chefia e ao mesmo tempo enfraquecesse a sua principal base logística, proporcionada por Sékou Touré. Evoca a incursão contra Conakry, em Novembro de 1970, e fala de Momo Touré e de Aristides Barbosa,

“que regressaram ao PAIGC depois de terem passado vários anos encarcerados nas prisões portuguesas e que, uma vez acolhidos pelo PAIGC, teriam então procurado aliciar recrutas, tendo conseguido audiência local entre uns quantos descontentes. O número de tais aderentes teria atingido cerca de três dúzias, tendo, porém, a tentativa de golpe sido levada a cabo apenas por nove (…) ” [Davidson, Basil, citado também por uma nota da PIDE-DGS – Arquivos da PIDE-DGS/ANTT, Proc. PAIGC, SR64/61 – NT 3073, Pasta 8, fls.762].

Quanto ao assassínio de Amílcar Cabral, corroboramos as palavras de Costa Pinto que afirmou:

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“ (…) muito embora seja ainda difícil fazer um balanço das várias acções desempenhadas pelos serviços de informação e nomeadamente da PIDE, parece não oferecer dúvidas de que esta, quer através de informadores próprios quer através de outras polícias, controlava de perto as atividades dos movimentos de libertação nos países onde tinham santuários, desde os primeiros tempos do Congo-Kinshasa e de Conakry. As acções mais espectaculares que lhe foram atribuídas estão, no entanto, ainda longe de ter uma resposta satisfatória no que toca à sua responsabilidade, até pela alta promiscuidade entre tensões étnicas e pessoais no interior das próprias organizações guerrilheiras ou, por vezes, entre estas e as facções políticas dos países de acolhimento. Casos como o assassínio de Amílcar Cabral ou de Eduardo Mondlane, por exemplo, apesar de já serem passíveis de reconstituição com muito maior base informativa, repousam ainda neste limbo interpretativo (…)” - [Pinto, António Costa, O Fim do Império Português, Livros Horizonte, Lisboa, 2001, p. 53].

Na opinião do autor, o assassínio de Amílcar Cabral não dissipou a encruzilhada de dissensões múltiplas que se geraram a montante e a jusante da guerra colonial/guerra de libertação. Pelo contrário, catalisou uma circunstancial e inaudita união de esforços, ditada pela emoção colectiva suscitada pela súbita perda de um líder da dimensão de Amílcar Cabral, que se traduziu, do lado do PAIGC, pelo endurecimento da guerra, facto que levou o exército português a uma situação de colapso militar e que, de alguma maneira, teria catalisado, inclusivamente, a ocorrência do 25 de Abril em Portugal, para além da independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde e de outras ex-colónias africanas de Portugal, nomeadamente Angola e Moçambique

No caso da Guiné-Bissau, referido algures, o período pós independência contrasta com esta herança dourada que foi a luta de libertação nacional, superiormente dirigida por Amílcar Cabral, de resto, uma luta que entrou a justo título para a galeria dos povos do Terceiro Mundo que ousaram enfrentar e vencer o colonialismo. Foi, inquestionavelmente, por isso, que Amílcar Cabral pagou com vida o preço por ter ousado enfrentar

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Anatomia de uma bem-sucedida guerra revolucionária: exército português versus PAIGC e o assassinato de Amílcar CabralRevista Desafios

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e vencer uma potência colonial.

Contudo, esta herança histórica, inolvidável a todos os títulos, porque é nela que se forjou as nações guineense e caboverdiana, não foi, infelizmente, gerida de molde a suprimir os matizes culturais e ontológicos em que se fundaram e ainda fundam, paradoxalmente, as sobreposições e justaposições inconvenientes de uma historicidade em que, paradoxalmente, o próprio movimento de libertação, se movera.

Janeiro de 2012

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Cátedra Amílcar Cabral na Uni-CV: Porquê, Para quê?

Manuel Veiga, Ph.D.

Universidade de Cabo Verde

[email protected]

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José Luís Hopffer AlmadaCátedra Amílcar Cabral na Uni-CV: Porquê, Para quê? Manuel Veiga

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Resumo

Este artigo apresenta os motivos e as finalidades de se criar, na Universidade de Cabo Verde, a Cátedra Amílcar Cabral e o porquê da escolha de Cabral como patrono. Perpassa-se, entre as razões da fundação da Cátedra, o dever moral de se estudar, investigar e difundir o legado e os ensinamentos de Amílcar Cabral, perpetuando, assim, a memória de um dos maiores obreiros da liberdade e da independência do povo caboverdiano.

Palavras-chave: Cátedra Amílcar Cabral; Universidade de Cabo Verde; memória de Cabo Verde.

Numa altura em que celebrámos o 88º aniversário natalício de Amílcar Cabral e recordamos, com indignação o 40º aniversário do assassinato desse líder imortal, a criação de uma Cátedra Amílcar Cabral na Uni-CV é uma homenagem forte a um dos maiores obreiros da nossa Independência. Nesta curta intervenção, proponho-me falar das razões que estão na base da escolha de Cabral como patrono da instituição e da finalidade dessa mesma instituição.

Amílcar Cabral foi e é um gigante do humanismo caboverdiano, do humanismo africano e mundial.

A Nação caboverdiana, em particular, e a África, em geral, têm o dever moral de estudar, de investigar e de difundir o legado e os ensinamentos que Amílcar Cabral, como humanista, estratega, diplomata e agrónomo, inscreveu no seu testamentário, como a melhor herança que podia deixar não só ao seu povo, como também à África e ao mundo.

A Uni-CV, ao criar a Cátedra Amílcar Cabral, quer associar-se a todos quantos gostariam que o nome e a obra de Amílcar Cabral fossem, hoje e sempre, lembrados e assumidos como fonte inesgotável de inspiração.

Na reflexão sobre o porquê do nome Amílcar Cabral ligado à Cátedra e o para quê dessa mesma Cátedra, proponho abordar algumas questões que, para cada item, a Comissão criada para a instalação da Cátedra considerou relevantes

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Cátedra Amílcar Cabral na Uni-CV: Porquê, Para quê?Revista Desafios

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I. Comecemos com o Porquê da Cátedra Amílcar Cabral?

Cabral dizia «sou um africano que quis saldar a sua dívida para com o seu povo» Hoje, resta saber se este mesmo povo já saldou toda a sua dívida para com Cabral. Sabemos que não. Alguma coisa foi feita, mas muitas outras aguardam melhores dias. Não tenho a mínima dúvida que a Uni-CV, um espaço académico para a produção, a comunicação e a divulgação de conhecimentos, tem um papel fundamental em tudo o que diz respeito à investigação, à afirmação e à valorização do legado e dos ensinamentos de Amílcar Cabral. Esta é uma das razões do porquê da escolha de Amílcar Cabral como patrono da Cátedra. A mesma terá um forte pendor cultural e pode-se perguntar porquê?

É preciso ter em conta que, em Cabo Verde, poucos terão teorizado a cultura, de forma tão sábia e tão abrangente, como fizera Amílcar Cabral. Vejamos alguns dos aspectos por ele abordados 1.4

Em Arma da Teoria (1978:225), reconhece: «Um povo que se liberta do domínio estrangeiro não será culturalmente livre a não ser que, sem complexos e sem subestimar a importância dos contributos positivos da cultura do opressor e de outras culturas, retome os caminhos ascendentes da sua própria cultura ...2».5

Continuando, Cabral reafirma: «se o valor universal da cultura africana é, presentemente, um facto incontestável, não devemos no entanto esquecer que o homem africano, cujas mãos ... ‘colocaram pedras nos alicerces do mundo’, a desenvolveu em condições, senão sempre, pelo menos frequentemente, hostis...» (idem, Ibidem, p. 229).

Mais abaixo remata dizendo que as massas trabalhadoras devem quebrar «as grilhetas do universo da aldeia para se integrarem no país e no mundo» (p. 232). É ainda o mesmo que, em declarações à Marcela Glisenti e Alioune Diop, disse em 1969: «Os nossos jovens devem ser cidadãos do mundo, devem conhecer a história da África e dos outros continentes. Não queremos encerrar-nos num esquema individual, numa cultura específica, num mito tradicional; queremos viver como os outros, medir-nos com todo o mundo, com brancos, negros e amarelos» (Continuar Cabral, 1984: 266).

1 VEIGA Manuel, 2005, “Amílcar Cabral e a Interculturalidade”, in Cabral no Cruzamento de Culturas, Actas do II Simpósio Internacional sobre Amílcar Cabral2 CABRAL Amílcar, 1978, Arma da Teoria – Unidade e Luta, Portugal,Seara Nova, p. 225,

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Encarando a cultura como a síntese do local e do global, Cabral pre-conizava, como objectivos de uma política cultural consequente, para Cabo Verde e para a Guiné-Bissau,

«o desenvolvimento de uma cultura popular e de todos os valores culturais positivos autóctones; o desenvolvimento de uma cultura nacional científica e tecnológica, compatível com as exigências do progresso; o desenvolvimento, com base numa assimilação crítica das conquistas da humanidade nos domínios da arte, da ciência, da literatura, etc., de uma cultura universal tendente a uma progressiva integração no mundo actual e nas perspectivas da evolução; elevação constante e generalizada dos sentimentos de humanismo, solidariedade, respeito e dedicação desinteressada à pessoa humana» ( Arma da Teoria – Unidade e Luta, 1978, p. 232).

Na visão de Amílcar Cabral, toda a luta para a melhoria da qualidade de vida (ontem a luta armada e hoje a luta para o desenvolvimento e para a inclusão) é “um acto de cultura”. Daí que “reprimida perseguida, traída... Refugiada nas aldeias, nas florestas e no espírito das gerações vítimas da dominação, a cultura sobrevive a todas as tempestades, para retomar, graças às lutas de libertação, toda a sua faculdade de desenvolvimento (l’Arme de la Théorie,1975,François Maspero, p.341).

Um homem com esta visão de cultura só pode prestigiar uma Cáte-dra que leva o seu nome. Além disso, a Uni-CV, ao escolhê-lo como patrono da Cátedra, não só lhe presta uma merecida homenagem, como também sufraga as ideias por ele defendidas e reconhece que o seu legado merece ser estudado, interpretado, enriquecido, divulgado e preservado.

II. Retomemos o segundo aspecto: Para Quê uma Cátedra Amílcar?

O Regulamento da Cátedra, no seu artigo 2º, sobre a natureza da instituição, define-a como «... um espaço académico com natureza de centro de investigação e extensão, de carácter trans, pluri e interdisciplinar que, em estreita colaboração e sintonia com outras estruturas académicas

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da Uni-CV, promove a investigação, a formação e a extensão do conhecimento, em matéria de cultura, em geral, bem como o resgate e a promoção da história e do património cabo-verdianos, em particular, e, ainda, do pensamento e da obra Amílcar Cabral, designadamente como humanista, homem de cultura, político e dirigente de libertação nacional, diplomata e agrónomo».

A natureza da Cátedra, assim definida, deixa clara a finalidade da sua criação. A promoção da investigação, do ensino e da extensão do conhecimento, em matéria do humanismo, em geral; da cultura caboverdiana, em particular; do pensamento e legado de Amílcar Cabral, em específico.

A Cátedra investiga, mas também ela ensina, ela divulga, ela promove, o humanismo africano, a singularidade cabovrerdiana, o legado de Amílcar Cabral.

A nível do ensino formal e sistemático, a Cátedra exerce o papel de conselheira junto das estruturas da Uni-CV promotoras dos programas académicos. Porém, a nível de formação pontual, em domínios cobertos pela instituição, serão promovidos cursos de pequena duração, colóquios, seminários, mesas-redondas.

O Regimento, fixando os objectivos da Instituição no artigo 5º, diz:

“A Cátedra Amílcar Cabral é um espaço aberto destinado ao debate de ideias, à implementação e divulgação de projectos académicos, e desenvolve as suas actividades nas áreas da cultura, da história, da filosofia e das ciências sociais, humanas, pedagógicas e, ainda, das ciências agrárias e ambientais”.

Diz o mesmo artigo que a Cátedra, inspirando-se no legado do seu Patrono, tem por objectivos:

a. “Promover a formação e a investigação cultural, técnica e científica;

b. Estimular o conhecimento, a valorização e a preservação da cultura nacional, em todas as suas formas de expressão e de manifestação;

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José Luís Hopffer AlmadaCátedra Amílcar Cabral na Uni-CV: Porquê, Para quê? Manuel Veiga

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c. Promover o respeito pela diversidade cultural, a interculturalidade e o diálogo de culturas, a nível nacional e internacional;

d. Estimular a criação individual e colectiva e colaborar com as instituições de vocação cultural na valorização, dinamização, divulgação e preservação do património cultural;

e. Promover o conhecimento e a assimilação crítica dos valores culturais em África e no mundo;

f. Desenvolver a pesquisa, o magistério e a comunicação da cultura nacional e universal;

g. Fomentar a pesquisa académica, promover e organizar eventos culturais, quais sejam: colóquios, conferências e seminários sobre temas diversos, nas áreas cobertas pela Cátedra;

h. Identificar e participar nas redes e rotas de investigação, de ensino, de conhecimento, de enriquecimento, de difusão e de preservação do legado histórico e filosófico de Amílcar Cabral;

i. Promover a cooperação com outras unidades funcionais e centros de investigação da Uni-CV e/ou com outras instituições afins;

j. Aprovar e apoiar projectos de investigação científica;

k. Promover a divulgação do conhecimento científico, através de sites especializados e do apoio à edição;

l. Promover a prestação de serviços científicos e técnicos especializados, e de consultoria”.

Para cumprir esses objectivos, o Regimento estabelece, no artigo 13º, a estrutura orgânica da instituição, integrada por: Assembleia-Geral; pelo Conselho Consultivo e pelo Conselho Directivo. O órgão executivo da Cátedra é o Conselho Directivo formado pelo Director da Cátedra, pelos Coordenadores das Linhas de investigação e por dois vogais.

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Por sugestão do Director da Cátedra, e concordância do Conselho Directivo, a Uni-CV aprovou, já, as seguintes Linhas de Investigação:

1. Cultura, Línguas e Literatura;

2. Legado de Amílcar Cabral e Ciências Agrárias e Ambientais;

3. Património Cultural e Ciências Sociais, Humanas e Pedagógicas.

Pelo despacho nº 0146, de 19 de Dezembro de 2012, o Magnífico Reitor designou os Coordenadores das Linhas de Investigação acima referidas.

De salientar que em conformidade com o artigo 10º do Regulamento,

“Podem ser membros da CAC-CV docentes e investigadores de ensino superior e personalidades de reconhecido mérito e experiência que dêem garantias de contribuir para o cumprimento da missão e dos objectivos da Cátedra.

Sem prejuízo do acima exposto, são ou podem ser membros da CAC-CV: Os membros fundadores; os docentes ou investigadores de áreas científicas, cobertas pela Cátedra, preferencialmente, de entre doutores pertencentes ao quadro da Uni-CV; personalidades de reconhecido mérito científico, técnico e cultural, e ainda por individualidades que se destacam na afirmação e valorização dos ideais de Amílcar Cabral, admitidos pelo Conselho de Direcção, por proposta da Fundação Amílcar Cabral.

A Cátedra aceita como membros, ainda, outras individualidades com idoneidade científica, técnica ou profissional, designados pelo Reitor, ouvido os departamentos governamentais de áreas ligadas à educação, à cultura, à ciência, à agronomia e ao ambiente”.

“Por deliberação do Conselho Directivo, e precedendo parecer favorável do Conselho Consultivo, podem ser admitidos como membros associados, investigadores de outras instituições, nacionais ou estrangeiras“, nos termos do artigo 10º do Regulamento da Cátedra.

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José Luís Hopffer AlmadaCátedra Amílcar Cabral na Uni-CV: Porquê, Para quê? Manuel Veiga

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Esta é o figurino da instituição criada na Uni-CV, em homenagem à Amílcar Cabral, mas também para promover o seu legado, a investigação cultural e histórica, a produção e extensão do conhecimento.

III. Em Jeito de Conclusão

A iniciativa da Uni-CV deve ser louvada e acarinhada. Em Cabo Verde, Cabral não está esquecido, mas também não ocupa o lugar que merece.

Existem a Fundação Amílcar Cabral, a Associação dos Combatentes da liberdade da Pátria, o Museu de Documentos Especiais no Arquivo Histórico Nacional, que procuram, não sem inúmeras dificuldades, manter viva a memória de Cabral e do seu legado.

O Estado investiu em alguns ícones simbólicos para perpetuar a memória de Cabral, mas ainda sem a dinâmica e a visibilidade que o nome de Cabral merece: O Aeroporto Amílcar Cabral no Sal; o Monumento Amílcar Cabral na Praia e no Sal; a Avenida Amílcar Cabral no Platô; a Taça Amílcar Cabral; o Liceu Amílcar Cabral, em Assomada, alguns selos com a efígie de Cabral; as notas de 100, 200, 500, 1000 e 2.500$00 que, entretanto, nos anos 90 foram, de novo, substituídas.

A nível da iniciativa local, foi criado, em João Galego, na Boavista, um centro cultural Amílcar Cabral.

A Universidade de Santiago instituiu a Conferência Anual Amílcar Cabral-Paulo Freire que vai na sua quarta edição.

No estrangeiro, como reconhecimento pelo legado de A. Cabral, o seu nome figura em instituições várias, avenidas, selos, associações etc., como por exemplo: A CIDAC (Centro de Investigação para o Desenvolvimento - Amílcar Cabral), em Portugal; a Universidade Amílcar Cabral em Bissau e uma avenida com o mesmo nome; a avenida Amílcar Cabral em Moscovo; a recente avenida Amílcar Cabral, em St. Dénis, França; a Cátedra de Estudos Africanos Amílcar Cabral, em Cuba; o Comité Amílcar Cabral/ Martin Luther King Jr., na UMASS Boston, nos EUA, etc., etc.

É neste coro de homenagens e de reconhecimento que a Uni-CV quis associar o seu nome, criando a Cátedra Amílcar Cabral, cuja natureza vem plasmada no artigo 2º do Regulamento, acima referido.

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Cátedra Amílcar Cabral na Uni-CV: Porquê, Para quê?Revista Desafios

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Pelas atribuições dessa Cátedra, não temos dúvidas de que a memória e o legado de Amílcar Cabral vão ser objecto de pesquisa, de ensino, de extensão académica, de colóquios, debates, mesas-redondas, mas também de publicações em livros, revistas e folhetos vários.

O sucesso da CAC-CV vai depender do dinamismo dos seus órgãos, da participação efectiva do sistema Uni-CV e de outros sistemas do ensino superior dentro e fora do País, da empatia que conseguir granjear junto da cidadania caboverdiana na Nação Global, da parceria que conseguir estabelecer com instituições nacionais e estrangeiras que perseguem os mesmos objectivos.

Não se pode afirmar que Cabral está esquecido, mas ele que «pagou a sua dívida para com o seu povo», tendo generosamente oferecido a sua própria vida, não pôde ainda ter, na justa medida, o reconhecimento desse mesmo povo. E para perpetuamos a memória de Cabral e tomá-lo como fonte de inspiração, temos que, com humildade, aceitar que ainda não fizemos tudo o que deveríamos, particularmente no ensino e na investigação. A Cátedra Amílcar Cabral, ao lado de todas as outras iniciativas já existentes, vai colocar a sua pedra no edifício da MEMÓRIA e do RECONHECIMENTO a Amílcar Cabral.

Augurando que a Cátedra, em sintonia com outras instituições, saberá honrar e perpetuar a memória de um dos maiores obreiros da liberdade e da Independência do nosso povo, só nos resta congratular-nos com tal iniciativa e dizer que, na qualidade de docente, de membro fundador e de Director da Cátedra Amílcar Cabral, tudo faremos, em colaboração com o sistema Uni-CV e com as redes nacionais e internacionais de promoção da cultura, da história, da ciência e do legado de Amílcar Cabral, para que a instituição ora criada esteja à altura dos objectivos traçados.

Praia, Janeiro de 2013

(Director da Cátedra Amílcar Cabral na Uni-CV, por ocasião do Fórum organizado pela Fundação A. Cabral)

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IV PARTE

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Cabo Verde: Monopólio da terra, disputas partidárias

e criação de um centro de civilização (1822-1851)

Eduardo Adilson Camilo Pereira, Ph.D.

Universidade de Cabo Verde

[email protected]

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Cabo Verde: Monopólio da Terra, Disputas Partidárias e criação de um centro de civilização (1822-1851) Eduardo Adilson Camilo Pereira

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Resumo

Este trabalho tem como principal objectivo fazer uma reflexão sobre as disputas político-partidárias em Cabo Verde, entre os anos de 1821 a 1842, opondo dois partidos: liberais moderados e liberais exaltados. Para tal, pro-põe demonstrar como as elites políticas locais apropriaram das festas reli-giosas para mobilizar os rendeiros do interior da ilha de Santiago em torno do partido pró-Brasil.

Por outro lado, o projecto separatista em relação a Portugal e a constitui-ção de um novo centro civilizacional em Mindelo – ilha de São Vicente são compreendidos como decorrentes das disputas partidárias. Além disso, propõe compreender as mobilizações políticas tanto em decorrência das reivindicações das elites políticas das ilhas de Santo Antão, São Vicente e São Nicolau para a eleição de um represente junto ao governo geral quanto pela divulgação das listas de eleitores.

Palavras-chave: Cabo-Verde; história; propriedade da terra e mobilizações políticas.

Para a revolta dos rendeiros muito contribuiu a grande influência da elite política local. Sabe-se pela carta dirigida pelo Administrador da urzela61 e uma das personalidades mais influentes em várias ilhas de Cabo Verde, Sargento-mor Manoel Antonio Martins, de 20 de Novembro de 1820, ao governador geral, Antonio Pusich (1818-1821), que muitos funcionários e capitães-mores das várias ilhas vinham praticando “cousas” em nome do governador geral, sem o seu conhecimento. Por sua vez, o governador geral, solicitou ao referido contratador os nomes dos “aduladores”, para poder tomar as providências legais, ao bem da “tranquilidade” pública e do Real Serviço. Estas duas Cartas atestam, com o advento do liberalismo, a emergência das divergências políticas no arquipélago, sob influência do movimento constitucionalista na metrópole. O governo geral, a partir do projecto de lei sobre os princípios e bases de organização do governo, tinha demonstrado o conhecimento dos constrangimentos e os receios de convulsão no seio do governo colonial português. Tais acontecimentos deviam-se a adesão ao constitucionalismo, o que se prolongou até 1828, com a queda do absolutismo em Portugal, assinalada pela instalação das 1 Quem caberia administrar o contrato da urzela. Este contrato era celebrado com a Coroa portuguesa, sendo que o contratador gozava de independência em relação ao governo geral. Urzela era uma planta tintureira, donde era extraído uma tinta de cor violeta que, posteriormente era exportada tanto para Por-tugal quanto para a Inglaterra.

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Cabo Verde: Monopólio da Terra, Disputas Partidárias e criação de um centro de civilização (1822-1851)Revista Desafios

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Cortes em 24 de agosto, no Porto e 15 de setembro, em Lisboa. Em “Os subsídios para a história da administração pública na Guiné e em Cabo Verde no séc. XIX”27, Pusich defendeu a manutenção do “Governo-Militar” nas ilhas de Cabo Verde, tendo em vista o risco de uma anarquia. Tal posicionamento deve-se, sobretudo, ao receio que os habitantes do interior da ilha de Santiago tomassem o controle político da ilha, por meio de uma anarquia.

A leitura do relatório do governador Antonio Pusich possibilitou compreender que as elites políticas, além da implantação do regime li-beral, pretendiam emancipar-se da Coroa portuguesa. Segundo o referi-do governador, Manoel Antonio Martins deveria ser expulso das ilhas de Cabo Verde a bem do “socego publico”, como também pelos “roubos, e fraudes” contra as alfândegas de Cabo Verde. Pelos autos da devassa, de 30 de maio de 1830, este importante negociante e contratador da urzela, pretendia vender as ilhas de São Vicente e do Sal aos ingleses. Segundo o sargendo mor da ilha de Boa Vista, João Cabral da Cunha Goldofim, as autoridades tiveram conhecimento do projeto quando, no final do mês de fevereiro de 1820 atracou no porto da ilha de Boa Vista uma escuna que transportava um importante negociante inglês, de nome Mest Barba, que por ter emitido cartas de recomendação para esse sargento, obteve dele a hospedagem em sua residência. Em conversações com o inglês, soube o sargento que Manoel Antonio Martins tinha negociado a venda das ilhas de São Vicente e do Sal pelo valor de trinta mil libras esterlinas a Mest Watraman e Mest Debes, importantes negociantes ingleses interessados na exploração do sal e da urzela em Cabo Verde. Mest Barba tinha sido convidado por Manoel Antonio Martins a ir estabelecer uma feitoria e sua respectiva governação nas duas ilhas. Tais denúncias decorriam das dis-putas políticas que opunham os liberais moderados aos liberais exaltados. Além disso, segundo Pusich, Martins, que residia na vila da Praia, na qua-lidade de deputado às Cortes, lançou “calumnias e accusações” contra o governo geral, devido, em parte, à proteção que gozava da Corte no Rio de Janeiro.

Porém, quando soube que o referido negociante não tinha poderes para vender as referidas ilhas, Barba alegou que Martins tinha garantido que possuía autorização da Coroa portuguesa, a qual lhe havia feito doação das referidas ilhas. Estes fatos atestam que Martins, um liberal exaltado, 2 PUSICH, João António. Subsídios para a história da administração pública na Guiné e em Cabo Verde no séc. XIX. In: Coleções da BNL, Cód. 743, (182?).

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Cabo Verde: Monopólio da Terra, Disputas Partidárias e criação de um centro de civilização (1822-1851) Eduardo Adilson Camilo Pereira

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pretendia colocar em execução o mesmo projeto de emancipação do Bra-sil, concedendo parte das ilhas, no caso Sal e São Vicente, em que era contratador da urzela, à administração de influentes mercadores ingleses que, por sua vez, tinham interesse na separação das mesmas em relação à Coroa portuguesa. Não é por acaso que uma das primeiras determinações políticas do partido separatista foi a de entregar-se à administração inglesa e buscar apoios, com o envio de um grupo de deputados ao Rio de Janeiro. Além disso, a leitura desse ofício atesta que os líderes do partido separa-tista também buscavam apoio e protecção dos ingleses.

Manoel Antonio Martins igualmente mantinha contatos e negócios permanentes com a Corte no Rio de Janeiro, o que facilitou os contactos políticos do partido Liberal pró-Brasil com o movimento separatista naque-la cidade.

Por outro lado, Pusich demonstrou a dificuldade administrativa do arquipélado em meio a disputas políticas que opunham liberais moderados e exaltados, o que designou chamar de “incêndio revolucionário”. Para este político, nunca tinha sido mais difícil administrar os rendimentos públi-cos, face ao “fogo revolucionario na Ilha da Boavista (…) por maquinações de João Cabral da Cunha Goldofim e Manoel Antonio Martins”. Goldofim mobilizou-se para exortar ao comandante da vila da Praia “para que se le-vantassem contra o seu Superior”, reivindicando os novos direitos políticos garantidos pela constituição. Apesar do “horrivel volcão revolucionario”, Pusich não quis ceder a tais “instigações”, pleiteando querer “conciliar o socego publico com a fidelidade devida a V. Mage”. Para demonstrar o seu interesse por uma governação sem prejuizo para a tranquilidade pública e do desmembramento das ilhas que compunham o arquipélago, determi-nou a convocação do clero, da nobreza e do “Povo” da vila da Praia.

Segundo este político, o seu governo se esforçou para “conservar” a união política entre as ilhas, abonando apenas o juramento de obediência à futura Constituição, em primeiro de abril de 1821, sob condição de ser aprovado pelo rei, D. João VI. O mesmo justificou sua resistência contra as iniciativas políticas dos liberais, pleiteando que o Poder Legislativo ainda residia na pessoa do rei, sendo que “tudo aquillo que não he expressa e livremente sancionado por V. Mage., não deve ser adoptado nem obedeci-do por seus leaes Vassalos”. Discordando das determinações administrati-vas do governador geral, os “revolucionarios”, compostos principalmente

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de comandantes militares e da Câmara da Vila da Praia, prometeram “odio e amiaças” ao governador. Para cumprir as vinganças, tomaram duas ini-ciativas políticas contrárias às do governo geral. Em primeiro lugar, “amo-tinando a Plebe tumultuariamente”, fazendo o juramento “que quizerão” das Bases da Constituição, em primeiro de maio de 1821. Em segundo lugar, constituiram “despoticamente” uma “Junta de Governo”, da qual excluíram o então governador geral, Antonio Pusich. Os revolucionários, com esta iniciativa política, obrigaram o governador a abdicar do cargo. A criação de uma “absoluta Junta Governativa” pelos “facciosos e degra-dados” pretendia não só extinguir a administração da Fazenda Real, bem como também abolir todas as instituições militares, políticas e financeiras, de uma forma “despótica e tomultuariamente”, sem qualquer autorização e licença da Coroa portuguesa.

Por outro lado, a junta do governo constitucional de Cabo Verde não pretendia receber o novo governador nomeado de Lisboa. Segundo Carlos Antonio da Silva, uma das testemunhas ouvidas durante a devassa, o comandante da ilha de São Nicolau tinha chegado a bordo de um navio da vila da Praia, de nome “Bela Ilmor”. O mesmo dera ordem para que não desembarcasse, tendo em vista que “não podião Obedeçer a Ordem da Junta, porque esta estava deleberada a não aceitar o Governo, nem o Menistro não trazendo denheiro”. Tal iniciativa teve lugar, depois do co-mandante ter conversado com um “inglez de nome Rothque”, que tinha aportado naquela ilha. A mesma testemunha ainda confirmou que este inglês também havia espalhado a mesma notícia na ilha da Boa Vista. Além disso, reiterou que na ilha de Santiago pôde confirmar as denúncias por intermédio de Joze Joaquim de Souza Senna, o qual salientou que “Os Cabeças Erão huns poucos entrando o Contador Araujo”.83 Estas mobili-zações políticas contaram com a participação dos ingleses, os principais interessados na separação do arquipélago em relação a Coroa portuguesa.

O grupo dos exaltados era constituído, em grande parte, por degre-dados para as ilhas de Cabo Verde, devido às suas posições políticas con-trárias aos interesses da Coroa portuguesa, sendo, na maioria das vezes, partidários do sistema constitucional. Dentre esses posicionamentos polí-ticos, cabe destacar a de Francisco de Paula de Medina e Vasconcellos, de-gredado para as ilhas de Cabo Verde, aonde veio a falecer em 16 de julho de 1824, devido às disputas políticas entre liberais moderados e exaltados

3 AHU, Cabo Verde, Cx. 72, doc. 43, f. 84 – 85.

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em Funchal. É crível sustentar que os liberais exaltados criam que a cons-tituição legitimava as suas ações reivindicativas, por meio de resistências às práticas despóticas. Questionou “por que Tu, Senhor, tendo jurado Essa Constituição, que aos Lusos derão Legitimas Cortes, decretaste Que teus Vassallos todos a jurassem”. Cabe ainda destacar que o mês de janeiro foi escolhido pelos liberais para a declaração da monarquia constitucional.

Por outro lado, destacou na Carta dirigida à Coroa portuguesa, que cedeu ao “violento procedimento” não só para poder evitar uma “anar-quia”, como também para “poupar àquelles Habitantes as desgraças”. O risco de anarquia decorria tanto da diversidade de opiniões quanto da opo-sição que determinado número de pessoas fizeram às inovações introdu-zidas. Segundo este, apesar de todas as “maquinações” dos “revolucio-narios”, muitos habitantes, reconhecendo a “ilegalidade e fraude” de tais iniciativas, não quiseram reconhecer outro governo. Os exaltados foram os principais responsáveis pela pregação de doutrinas revolucionárias, o que lhe possibilitou explorar os descontentamentos políticos e sociais dos opri-midos, com destaque para os rendeiros do interior de Santiago. Fez crer ainda o grande esforço “humiliante” para convencer a infantaria de que todas as deliberações foram tomadas com o seu consentimento, como forma de “evitar o conflicto de partidos e desgraças eminentes”. Para ga-rantir a tranquilidade pública, decidiu abandonar a ilha de Santiago, fixando residência na ilha do Maio, para que a sua presença “não viesse a servir de alvo aos descontentes” que, por meio de tais “innovações”, poderiam pro-mover ainda mais discórdias. Tal decisão decorria da necessidade de acal-mar os ânimos tanto dos liberais moderados como dos exaltados, diante da ameaça que um “conflito d’aquelles partidos, degenariam huma cruel, e sanguinolenta Guerra Civil”.94

Segundo este político, Manoel Antonio Martins e João Cabral da Cunha Goldofim, respectivamente contratador da urzela e comandante deposto da ilha da Boa Vista, andaram por todas as ilhas de Cabo Verde a divulgar, por meio de “papéis”, as bases da nova Constituição, fazendo com que os seus habitantes passassem a reivindicar a adopção do mesmo sistema político. Segundo os depoimentos prestados por “alguns dos mais poderozos habitantes daquella ilha”, Goldofim liderava um movimento de separação e independência em relação ao governo geral, na vila da Praia, com a adesão à nova forma de governo constitucional. Em segundo

4 AHU, CU, Cx. 80, doc. 84, de 27 de Julho de 1825.

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lugar, pretendia levar aqueles princípios a todas as ilhas de Cabo Verde, principalmente a ilha de Santiago. O governador temia ainda que a capital seguisse o mesmo exemplo das demais ilhas, uma vez que se constatou que Manoel Antonio Martins foi apontado como o principal líder do partido separatista. Para conseguir colocar em prática o projeto, deslocou-se de ilha em ilha, aconselhando e coletando assinaturas dos seus habitantes. Na ilha de Santiago, temendo que a capital seguisse o mesmo exemplo, tendo em vista que os habitantes encontravam-se numa “terrivel anarquia”, o governador geral reuniu-se com as principais autoridades locais, temendo pela “unidade desta Capitania”.

A leitura do ofício permitiu esclareceu um dos problemas levanta-dos por esta pesquisa: o de como as elites políticas tiveram acesso às dou-trinas liberais. Por outro lado, o ofício de 12 de abril de 1821, revela que, pelo fato de sediar o “partido separatista”, a ilha de Boa Vista foi o foco das “discordias e insubordinação” da capitania. O partido, formado inicialmen-te pelos membros da família de Manoel Antonio Martins, tinha como um dos principais objectivos lutar contra os abusos “inveterados” permitidos pelo então governo geral de Cabo Verde. Por isso, procurava militantes, dentre vários grupos sociais, em todas as ilhas do arquipélago.105

As discussões políticas entre liberais moderados e exaltados tam-bém trouxeram para debate público duas questões importantes: a sobera-nia do povo e/ou a soberania da nação. Enquanto os moderados defendiam a soberania na nação, os exaltados, inspirados em Rousseau, defediam que a soberania estava no povo. Os projectos separatistas estavam articu-lados às reivindicações pela soberania popular. Para os exaltados, as elei-ções populares deveriam demonstrar que o povo não abriria mão da sua soberania, manisfestando-a livremente. Foi assim que os mais influentes dentre as populações das ilhas de Santo Antão e São Nicolau, em troca da sua obediência à capital da província, na vila da Praia, exigiram, por meio de um ofício à Coroa portuguesa, de 15 de maio de 1821, não só que o governo geral procedesse à eleição de uma Junta provisória, composta de cidadãos portugueses, eleitos pela “pluralidade de votos das ilhas adjacen-tes”, da qual ficava de fora o então governador Antonio Pusich, por não ser português por nascença, quanto à manutenção das autoridades locais nos seus respectivos postos.

Por outro lado, justificaram as suas decisões, tendo em vista que 5 HU, Cabo Verde, Cx. Nº 70, Doc. Nº 52.

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o mesmo vinha exercendo o cargo de governador com “violências e des-potismo”, o que levou o povo da capital, como das ilhas de Santo Antão, São Nicolau e Boa Vista, a exigir, em troca da sua obediência à capital da província, a sua exoneração do cargo. Ainda reiteraram que não reconhe-ceriam a superioridade do governo sediado na vila da Praia, pelo fato dos seus membros não serem nomeados por “eleitores de todas as Ilhas”. A leitura deste documento possibilitou compreender que com a introdução do regime liberal e do sistema de representação política, as demais ilhas passaram a exigir a sua representação política junto do governo geral, se-diado na vila da Praia. Os liberais exaltados passaram a requerer que o go-verno geral, em cumprimento dos dispostos constitucionais, procedesse à eleição dos deputados das demais ilhas do arquipélago. Segundo eles, a verdadeira liberdade deveria pautar-se pela representação política.

Todavia, a soberania popular deveria estar articulada às pregações revolucionárias. A revolução seria o começo de uma profunda transforma-ção da sociedade, uma vez que derrubaria o despotismo. Os acontecimen-tos decorrentes dessa “regeneração” deveriam fundar uma nova era de igualdade de direitos e oportunidades. A revolução idealizada tinha uma di-mensão popular, agregando tanto homens brancos como negros. A autên-tica liberdade era aquela em que, além da igualdade jurídica, se agregasse a igualdade social, contrariando todos os privilégios e títulos de nobreza. Estes fatos podem ser atestados no ofício, de 17 de abril de 1821, que o governador geral, Antonio Pusich, dirigiu à Coroa portuguesa, mostrando que o “sossego” tanto da capital quanto das demais ilhas de Cabo Verde estaria comprometido, tendo em vista que as autoridades civis das refe-ridas ilhas estariam a promover uma autêntica “anarquia entre este povo rude e supersticioso”, levando os seus habitantes a declararem a separa-ção das mesmas do governo geral, na vila da Praia. No caso específico da ilha da Boa Vista, destacaram as iniciativas e “maquinações” políticas do sargento João Cabral da Cunha Goldofim e do administrador do contrato da “urzela”, Manoel Antonio Martins. Também justificou que todas as suas iniciativas políticas tinham como principal objetivo a “prosperidade e aug-mento desse Reyno” onde residia há mais de 30 anos, o que lhe permitia considerar-se “cidadão”.116

Como parte das contestações políticas, tanto os liberais moderados quanto os exaltados também lançaram mão de datas e aniversários que

6 AHU, Cabo Verde, Cx. Nº 70, Doc. Nº 38, de 17 de Abril de 1821.

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melhor poderiam legitimar suas pretensões políticas. Assim, no dia 1 de maio de 1821, aniversário do achamento da ilha de Santiago por Antonio de Nolle, alguns habitantes mais influentes da ilha de Santiago, conside-raram a Constituição a forma de governo mais favorável à felicidade dos indivíduos que se tem conhecimento, não só como garantia da “liberda-de” quanto ao livre exercício de direitos por parte dos cidadãos, que pas-saram de “sociedades anarchicas para as civiz”. Também consideraram esta forma de governo mais próxima do governo dos “Ceos”, permitindo a livre expressão de idéias, como também ser verdadeiros “cidadãos de Portugal”. Note-se ainda que o grupo dos signatários era composto por integrantes tanto das câmaras municipais quanto do poder judiciário da ilha de Santiago.

Os moderados também enfatizaram a necessidade de evitar “tu-multos populares que podiam haver”, como a “causa da nação”, uma vez que colocaria em risco a “integridade da Capitania”. Recordaram aos opo-sitores da monarquia constitucional os esforços feitos pelo jovem grego Leonidas, que “sustentou o decoro da sua Patria, á testa de trezentos Gregos”, reiterando que aquela “regeneração” estaria além daquele esfor-ço de “Cidadãos votados pelo bem da Pátria”. Tal regeneração consistia na restituição dos direitos, da paz, da ventura, bem como que “os povos se mantivessem na pacifica posse de seus verdadeiros bens e legítimos direitos”. Tais acções populares deviam-se sobremaneira ao facto desses políticos “se inspirarem e imprimirem idéias modernas mais justas e ver-dadeiras”. Nestas declarações inseriram-se os padres franciscanos que foram representados pelo Reverendo Frei Constantino de Ovar Ferreira. Durante a sua pregação equiparou o regime constitucional vigente à “liber-dade dos céus”.

Os moderados tomaram diversas decisões para evitar a desinte-gração política do arquipélago. As reivindicações por autonomia local fo-ram, em parte, atendidas por meio da ampliação da participação política das elites locais, com destaque para as eleições. Para tal, determinaram que tanto os habitantes da capital quanto das outras ilhas deveriam jurar a Constituição após sua aprovação e sanção pelo rei de Portugal, D. João VI. Com isso procuravam atender três motivos fundamentais. O primeiro se referia à necessidade de evitar a desobediência ao rei; o segundo aludia à necessidade de garantir a “causa da nação”, e o terceiro visava à necessi-dade de se evitar “tumultos populares”, o que poderia colocar em perigo

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a integridade de toda a capitania de Cabo Verde, por ser um local consti-tuído por homens com “sentimentos primitivos e costumes inveterados” que, inspirando nas “idéias modernas”, poderiam provocar desordens e resistências às autoridades. E tinham como exemplo a revolta dos ren-deiros dos Engenhos. A primeira ilha a professar a sua independência foi a de Boa Vista, seguindo-se a de São Nicolau, que se proclamou indepen-dente em 22 de Abril de 1821. Tais declarações, inspiradas nas bases da Constituição, foram equiparadas pelos exaltados ao fogo que “accenderão um Vulcão que depois se arrebentou”. Esta fala atesta que boa parte dos liberais ansiava em pôr cobro às opressões que vinham sofrendo, pelo que designavam chamar de “regeneração”.

Os liberais moderados preferiam ainda fazer elogios à Constituição e a D. João VI sem, contudo se referir às reformas. Também criticavam o regime despótico, mostrando a importância da liberdade. Ainda segun-do a mesma Carta, de 16 de Maio, a “faisca da liberdade” demandada das “bases da Constituição” estava crescendo dentre as populações das várias ilhas, principalmente as ilhas de Boa Vista e São Nicolau, onde se proclamaram a independência, no dia 22 de abril de 1821, com o objetivo de romper com o “sofrimento”. Na ilha de Santiago os devotos e as auto-ridades locais escolheram o dia 1º de maio, padroeira da ilha de Santiago, para declarar com todo o “enthusiasmo” a sua adesão à nova Constituição, o que teve lugar pelas nove horas da manhã. Foi um acto solene onde o go-vernador geral leu o texto das “santas bases da Constituição”, sendo que a primeira autoridade a prestar juramento aos “Santos Evangelhos” no altar da igreja matriz da vila da Praia foi o ouvidor que, por sua vez, deu vivas à nova Constituição. O ritual utilizado foi o mesmo celebrado nas festas de 1º de Maio, o que indica que os seus organizadores escolheram esta data por ser próximo da festa de 13 de Maio, uma das festas religiosas mais im-portantes da vila da Praia, momento de maior concentração de pessoas na vila da Praia. O coronel de milicias, Manoel Alexandre de Medina e Vascon-cellos, em conjunto com a Câmara da Vila da Praia, bem como o Desenbar-gador Ouvidor Geral, marcharam em frente da infantaria a qual disparou 24 tiros. Logo após foi lavrado o auto de juramento na Câmara Municipal contendo 74 assinaturas de autoridades civis e religiosas. Após o ritual foi instituída uma Junta Provisória para governar a província, composta de um Presidente e quatro deputados, todos eleitos “por pluralidade de votos”. Para os cargos foram nomeados, mediante juramento das leis, o Coronel Joaquim Jozé Pereira, enquanto presidente, o ouvidor geral João Cardozo

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de Almeida Amado , titular da pasta da justiça; Antonio Joze da Silva, titular da fazenda; Coronel Gregório Freire de Andrade, titular da pasta militar.127

Também 1º de Maio de 1821 foi o dia escolhido não só para assina-lar os 377 anos do achamento da ilha de Santiago, como também para rom-per com a escravidão e o “cruel despotismo e “prepotências” praticadas pelos sucessivos governadores gerais de Cabo Verde, dentre os quais D. Antonio Coutinho de Lencastre, sobre uma população considerada “bárba-ra e levantada”. Para tal, tornava-se necessário a regeneração do sistema de governo com a adoção do regime constitucional. Para os liberais mode-rados da ilha de Santiago, 1º de Maio de 1821 rasgou “as cataratas Criou-las”.138 O dia ainda foi representado de três formas diferentes. Primeiro, ao achamento da ilha de Santiago por Antonio de Noli, o qual encontrou esse “Palus alagada pelo Mar Atlantico”. Segundo, representada como “a luz, resplandeceo a verdade, prestes colhei, que hé tempo os louros da vossa felicidade, que desde os Genóz, Duques de Dalmacia, os Mecenas (…) alerta (…) para o bem constante”. Se o regime despótico foi associado às trevas e à escuridão, o liberalismo foi associado à luz e à verdade. Tercei-ro, assemelhava-se a uma criança que “embalou no seu berço, lá nesses orizontes do Minho por Lusos Guerreiros”.

Em suas pregações, os padres liberais enfatizaram que Deus man-dou dos “ceos” para a terra “leite” e “mel” para libertar os “atribulados” e os “captivos filhos de Israel”. Devia-se louvar o Senhor Deus que, por meio da sua “lei e direitura”, juradas no batismo, acabaram com a escra-vidão, “enxugar o inverno” as “securas dos Montes de Gelvoé”, fazendo renascer as esperanças dos cristãos. Para tanto, tornava-se necessário seguir os princípios constitucionais, dentre os quais, a liberdade de livre escolha dos representantes por meio do voto popular, bem “d’aquelles que fazem parte da mesma Nação”. O direito ao voto, garantido pela nova Constituição, permitiria garantir a unidade de toda a província.

Enquanto os moderados defendiam pequenas reformas, como a realização periódica de eleições, os exaltados defendiam o regime republi-cano de Rousseau, como a melhor forma de garantir e respeitar os direitos individuais. Os exaltados continuavam a defender que as eleições para de-putados fossem alargadas a todas as ilhas do arquipélago. Segundo Gregó-

7 AHU, Cabo Verde, Cx. Nº 70, Doc. Nº 38, de 17 de Abril de 1821.8 Reivindicação política das ilhas de Cabo Verde, assente no direito de escolha do seu próprio governo local.

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rio Freire de Andrade, a eleição dos integrantes do novo governo provisório tornava-se de fundamental importância diante de “algumas indisposições populares”. As demais ilhas do arquipélago também reivindicavam a sua participação política na Junta do governo provisório. A Carta ainda revela que no imaginário coletivo português, Cabo Verde, como as demais colô-nias portuguesas, era uma mera extensão de Portugal. É importante ainda salientar que esse processo eleitoral nos permite não só conhecer a opi-nião pública, como também conhecer o imaginário e a mentalidade colec-tiva na qual está inserida. Por meio das mobilizações políticas, é possível conhecer as estratégias empregadas, as opiniões de vários grupos sociais, bem como é revelador de um projeto de sociedade.

Já para os liberais moderados, o novo governo deveria diligenciar para garantir o “direito da propriedade”, bem como os direitos individuais, garantindo todas as leis vigentes, enquanto as Cortes não determinassem o contrário. Também deveria comunicar imediatamente a mudança política para as demais ilhas de Cabo Verde, visando evitar que tomassem ou-tro partido favorável ao desmembramento, unindo-se à capital, na vila da Praia. À semelhança dos “libertadores da pátria”, que restituíram à “Nação portuguesa” os seus Direitos, a sua “paz”, deveria imitar a “Providência Divina”, responsável pela reunião desses direitos que “há tanto dispersa-do” na individualidade dos seus cidadãos. Ainda o governo deveria fazer com que os habitantes das demais ilhas desprendessem do ódio, das vin-ganças e de tudo quanto fosse considerado contrário à verdadeira virtude, acreditando que das sábias deliberações “nasceriam os valores da lusitana Nação”.

O novo governo deveria ainda promover não só a “familiarização dos povos”, como “dando o justo a quem se deve dar, e tirando o aquem não hé apto para o bem publico”. Segundo a mesma Carta, tanto pelo Direito Divino quanto pelo direito dos homens, todos os devotos teriam direito a paz, tranquilidade, à luz, caso jurassem a nova Constituição. Se-gundo os ensinamentos retirados de S. Izidoro, os devotos deveriam tirar da terra todos os frutos “prestes para a vida”. Além disso, necessitavam previnir-se dos “roubos praticados pelos inimigos estrangeiros”. Caso con-trário, Deus castigaria as transgressões com “fortes sanções: por meio das fomes e secas”.

Para Henrique Galvão e Carlos Selvagem, tratar-se-ia de “uma afir-

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mação inconsciente de unidade e sentimento nacional de lusitanidade”.149 Porém, os estudiosos não pesquisaram como os excluídos do mundo polí-tico, entre os quais os rendeiros do interior da ilha de Santiago, receberam e ressignificaram as doutrinas políticas no regime liberal, limitando-se a compreender a sua reprodução entre a elite política da vila da Praia. Ade-mais, não questionaram como essas doutrinas políticas foram reinterpreta-das de ilha em ilha, muito menos de freguesia em freguesia.

A indecisão é visível ainda nesta outra correspondência de Manoel da Penha Gomes, morador de João Tevês, interior da ilha de Santiago, datada de 13 de janeiro de 1823, segundo a qual “(...) Estamos aqui atrapa-lhado com constituição ou como chama, os soldados todos a hirem Cazas de seos Comd.tes jurar a dita (constituição) p.a que asistamos os governa-dores de nossas terras p.ª q. naõ queremos domar enfim (conforme) vm.e (devidamente) bem sabe atrapalhada de nossa terra (...)”.1510 Os coman-dantes militares pretendiam convencer os demais oficiais e soldados que o seu dever era defender os interesses do arquipélago, sobrepondo-os aos da Coroa portuguesa. Durante a devassa, o próprio furiel reconheceu ter escrito a carta, mas que a escreveu porque ouviu as denúncias de soldados e do povo da ilha de Santiago.

Ao mesmo tempo em que os comandantes militares mobilizavam os soldados da ilha de Santiago, os padres do interior da ilha arregimen-tavam os devotos durante as principais festas religiosas. Na Igreja de São Salvador do Mundo, Joze Pereira de Carvalho convocou os “povos” para assinarem qual dos governos era de sua preferência, se o de Lisboa ou o do Brasil. Segundo os autos, a maioria posicionou-se a favor do governo de Lisboa. Não deixa de reconhecer que os líderes pretendiam “fazer cabeça” dos habitantes da ilha de Santiago, sede do governo, para não receber o governo nomeado de Lisboa. Segundo Manoel Jose Mendes, presbítero da ordem de “Sam Pedro”, uma das testemunhas ouvidas durante a devassa na ribeira dos Engenhos, havia rumores de uma possível revolta colectiva na ilha para impedir o desembarque do novo governador vindo de Lisboa.

“(...) O Pastor Calisto, que assiste em S. Jorge; (interior da ilha de Santiago) e que D. Anna Maria Marcelina, moradora taõ bem em S. Jorge, tinha sido perguntada

9 GALVÃO, Henrique e SELVAGEM, Carlos. Império Ultramarino português. Lisboa: Imprensa Nacional de Publicidade, 1951, v. I, p. 53. 10 AHU, Cabo Verde, Cx. Nº. 72/ Doc. Nº. 43, de 16 de Maio de 1823, f. 74 – 75.

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por huma Mulher moradora em Santa Catharina, para que a aconselhasse, se era melhor o Governo de Portugal, ou o do Rio de janeiro; perguntei taõ bem em particular a Diogo Joze Coelho sobre este acontecimento, e me respondeo; que Joze Pereira de Carvalho, he quem andava convocando os Povos, para naõ receberem o Governo de Portugal unindo-se ao Brazil, e que tinha ouvido dizer a varias pessôas, que o Conego Rodrigues tão bem se achava emplicado neste projecto (...) mas que naõ tendo encontrado o apoio, que esperavaõ, tanto no Povo desta Villa da Praia, como nos Habitantes do interior da Ilha, naõ tinhaõ podido ainda pôr em pratica o projecto intentado (...)”.1611

O ofício acima transcrito permite observar dois aspectos importan-tes. Em primeiro lugar, permite-nos compreender que as mobilizações par-tidárias eram feitas preferencialmente dentro das igrejas e por ocasião das grandes festas religiosas. Em segundo lugar, possibilita-nos sustentar que a liderança partidária era composta sobretudo por padres, tanto do interior da ilha de Santiago quanto da Ribeira Grande, já que os mesmos detinham maiores conhecimentos e prestígio social entre os devotos da ilha. Além disso, os padres conheciam os sofrimentos, a extrema exploração econó-mica, bem como as principais aspirações dos rendeiros do interior da ilha, principalmente as referentes à posse das terras cultivadas. Como parte da mobilização, os religiosos pregavam aos devotos a justiça de um Deus da liberdade, o qual deu a todos o poder de escolha. Também destacaram que a terra deveria ser compreendida como uma dádiva de Deus e não de al-gum ser humano. A leitura deste ofício permite responder a dois principais questionamentos desta pesquisa: a) como eram feitas as mobilizações po-líticas no interior da ilha de Santiago?; b) qual o papel das lideranças políti-cas locais na mobilização dos rendeiros?

Por outro lado, os integrantes do partido, compostos por cônegos e por altos funcionários do governo geral, detinham bons conhecimentos tanto do “caráter” quanto da cultura dos habitantes do interior da ilha de Santiago, que influenciaram, em parte, na escolha da data para a eclosão da revolta. A eficácia da mobilização dos grupos sociais, entre eles os ren-deiros, dependeria não só da capacidade de escolha de tradições popula-

11 HU, Cabo Verde, Cx. Nº. 72/ Doc. Nº. 43, de 15 de Março de 1823.

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res mais significativas dentro da comunidade, como também de um con-junto de estratégias políticas, entre elas a escolha de líderes comunitários, tudo para ressignificar os ideais defendidos pelo partido dentro do grupo. Os próprios líderes do movimento andavam de dia e de noite a recolher assinaturas para se “unirem ao Brasil”.

A existência do projecto revolucionário pode ser ainda atestado, por meio do ofício, de 27 de março de 1822, enviado pela Junta do gover-no provisória de Cabo Verde a Dominico Furtado de Mendonça. Segundo este, o morgado, Domingos Ramos Monteiro, havia reportado que os líde-res da revolta foram à casa de Joaquim Tavares e de uma mulher e que “por estes não quererem ser do seu partido, lhe tinham morto hum porco, e roubando alguma agoardente”.1712 Devemos ter presente que as mobi-lizações políticas são também reflexos de certa “oferta política”, assente nas relações entre oferta e procura.

Segundo os autos da devassa, o coronel Gregório Freire de Andrade era tido como um dos principais suspeitos de incitar os rendeiros a revolta-rem-se contra o “despotismo do morgado”, contrariamente aos princípios constitucionais. Para tanto, protegia os rendeiros revoltados, garantindo que os mesmos estavam agindo com base na legislação vigente. Por isso, devido à confiança nele depositada pelos rendeiros, no seu trajecto dos Pi-cos a Belém, passava pela ribeira dos Engenhos. Durante o seu percurso, muitos rendeiros içavam bandeiras e davam tiros em seu “louvor”. Este, chegando à região de “Matto Gege” “dava tiros em correspondencia”, o que não se registava com os outros oficiais. Os revoltosos reiteravam aos oficiais de justiça que somente este morgado “podia livremente passar naquella Rebeira”. A sua grande influência sobre os rendeiros dos Enge-nhos devia-se ao fato deste ser um dos mais influentes reverendos, padre e vigário do interior da ilha de Santiago, no caso de Nossa Senhora da Luz. Enquanto isso, o ajudante Pedro Cardozo, o alferes Joaquim Tavares, o capitão de cavalaria Domingos Tavares e o capitão-mor Joze Coelho de Mendonça, que conseguiu fugir, foram atacados e presos pelos rendeiros quando passavam pela referida ribeira.

Segundo os autos da devassa, o plano da revolução partiu de al-guns cônegos da cidade da Ribeira Grande, descontentes com o sistema vigente, em que cabia a Coroa portuguesa a nomeação do governador de 12 AHN, SGG, Correspondências expedidas às diversas autoridades da ilha de Santiago (1822/Março/10 – 1823/Fevereiro/12). Cópias manuscritos. Livro nº 106.

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Cabo Verde. As igrejas locais desempenharam um papel preponderante na mobilização dos rendeiros em torno dos princípios do partido pró-Brasil. A tentativa de eleição dos “deputados de Cortes” aconteceu nas fregue-sias do interior da ilha de Santiago, seguindo o mesmo preceito utilizado pelos irmãos para a eleição da mesa directora das irmandades locais. É crível sustentar que tanto o clero quantos os representantes políticos ti-veram um papel preponderante na mobilização dos rendeiros. Os padres que eram afectos ao partido separatista, utilizando-se dos seus prestígios sociais entre os rendeiros santificaram e consagraram as acções violentas contra Domingos Ramos Monteiro e respectivos oficiais de justiça, como sendo o único caminho para debelar a cruel exploração à qual estavam submetidos.

Por outro lado, as suas pregações procuravam romper com um con-junto de medidas arbitrariamente praticadas pelos morgados e respectivas autoridades locais. Por isso mesmo, remeteram os rendeiros aos castigos impostos por Deus àqueles que desafiaram a sua ira. É preciso ter ainda presente que a mobilização política duradoura de qualquer grupo social depende da imposição pelos partidos de uma representação do mundo social capaz de agregar um número, o maior possível, de simpatizantes por meio da mobilização dos mais variados grupos sociais. Nesta represen-tação da sociedade, os padres faziam prevalecer a ideia de que a justiça divina só seria restabelecida pela recusa à ordem sócio-política que regia a sociedade vigente.

Para conseguir mobilizar os rendeiros do interior da ilha de Santia-go, as lideranças do partido separatista precisaram valer-se tanto de máxi-mas religiosas compreensíveis para a comunidade, quanto retratar a cruel exploração que vinham sofrendo por parte do proprietário da terra e das autoridades locais. Para atingir esses objetivos precisariam propôr uma “junta da terra”1813 que representasse os interesses das elites políticas locais, como também um sistema de governo que lhes garantisse a posse das terras e rompesse com as crueldades e vexames praticados pelos morgados. Por outro lado, precisariam separar-se do sistema de governo implantado pela Coroa portuguesa nas ilhas, completamente dominada e manipulada pelos morgados, em detrimento dos interesses dos rendeiros. A regime liberal não respondeu às suas principais aspirações, dentre as quais, a posse legal das terras.

13 Governo composto por indivíduos nascidos nas ilhas de Cabo Verde.

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Também procuraram mobilizar a população pelas festas regionais do interior da ilha de Santiago tradicionalmente celebradas no mês de Ja-neiro. Esta iniciativa atestava que as mesmas sempre foram menospreza-das e reprimidas pelo colonizador, considerando-as “gentílicas” e contrá-rias à “civilização européia”. A escolha do mês de Janeiro para a eclosão da revolta por parte dos integrantes do partido não foi algo arbitrário e espontâneo. O partido procurou mobilizar todos os “irmãos” dentro das irmandades, importante congregação religiosa de solidariedade, fazendo-os crer que o novo sistema político era mais próximo do governo divino. Estas estratégias não só revelam que os seus integrantes detinham bons conhecimentos da cultura local, como sabiam que táticas deveriam pôr em prática para resistir à imposição colonial, em função das circunstâncias culturais peculiares a cada freguesia.

Foi neste contexto em que as resistências eclodiram. Ao apresentar o estado da atual administração nas ilhas de Cabo Verde, em 1824, António Pusich considerou que as câmaras municipais estavam compostas tanto de “homens ignorantes, ou degradados” quanto de monopolistas. Estes eram responsáveis pelas “peitas, e sobornos”, convocando os habitantes para assinarem “abaixo assignados, attestados e protestos contra as Auto-ridades que querem coibir os excessos dos monopolistas e traficantes”.1914

A questão do monopólio do poder político no interior da ilha de San-tiago ficou pode ser atestada pela leitura do ofício do juiz desembargador Leandro. Os poderosos detinham assim grandes poderes e prestígios so-bre a justiça e as câmaras municipais. Por sua vez, a ausência de juizes facilitava a concentração de poder por parte de homens, como Domingos Ramos Monteiro, Nicolau dos Reis Borges, Gregório Freire de Andrade. Além de ricos proprietários do interior da ilha de Santiago, comerciantes, capitães mores, eram também desembargadores. Os juizes poderiam re-presentar uma barreira quase intransponível para os proprietários, tendo em vista que à luz da legislação, os morgados teriam, por exemplo, que conceder contractos de arrendamento por escrito, o que na maioria dos casos não acontecia. Por outro lado, a presença do magistrado deveria im-plicar, na investigação das diversas práticas discricionárias dos morgados, como as sucessivas violências perpetuadas contra os rendeiros.2015

O próprio António Pusich, governador de Cabo Verde, reiterou que as 14 AHU, Cabo Verde, Cx. Nº. 077/ Doc. Nº. 95-A, de 1824.15 AHU, Cabo Verde, Cx. Nº. 060/ Doc. Nº. 3, de 24 de Janeiro de 1812.

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administrações locais da ilha de Santiago eram grandemente influenciadas por “monopolistas e traficantes” que, por sua vez, subornavam e ofereciam “peitas” aos funcionários. Segundo ele, a grande maioria dos juizes ordinários mal sabia assinar o próprio nome, tendo por “assessores” algum “rábula ou degradados práticos na maldade e partidários dos traficantes”. As administrações locais do interior da ilha de Santiago defendiam os interesses dos morgados, tanto políticos quanto económicos. Os morgados eram, na maioria das vezes, detentores de cargos políticos, tais como: provedores de justiça, presidentes das câmaras municipais; comandantes e coroneis da infantaria colonial; e comerciantes, e com isso detinham um poderio político, podendo manipular a administração local em seu próprio interesse.

Figura 1 – Quadro do Corpo administrativo de Cabo Verde proposto pelo prefeito Manoel Antonio Martins (1834 – 1835)

CORPO ADMINISTRATIVO DE CABO VERDE (1834)Para Provedores

Nicolau dos Reis Fonseca Borges – para o Districto da vila da Praia na Ilha de S. Thiago, Ex- Capitão –Mór, e Morgado

Luiz Freire de Andrade – Coronel de Milicias, para o Districto de S.ta Catharina, na mesma Ilha de S. Thiago; Morgado

Antonio Carlos d’Araujo – Rico proprietário, para o Districto da Ilha Brava

Antonio Carlos de Mello – Tenente Coronel de Milicias, rico negociante, para o Districto da Ilha do Maio

Francisco Joze de Senna – Rico proprietário, para o Districto da Ilha Brava

João Antonio Leite – Major de Milicias; da opulenta familia Dias, para o Districto da Ilha de S. Nicoláu

Luis Antonio de Mello – Rico proprietário, para o Districto das Ilhas de Sto. Antão, e S. Vicente

Joaquim Pereira da Silva – Major de Milicias com soldo, rico proprietário, e Capitalista para o Districto da Ilha da Boa Vista, aonde primeiro levantou o grito da Liberdade

Por meio do ofício de 3 de janeiro de 1827 enviado pelo governador geral de Cabo Verde, Caetano Procópio Godinho de Vasconcelos, à Coroa portuguesa, temos conhecimento das formas de mobilizações políticas empregues na ilha de Santiago pelos liberais exaltados. O mesmo governador estava convicto que “a divergencia de opinioens, a revolta,

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são aqui totalmente desconhecidos (…) factos anteriormente sucedidos (…) não tiveram origem senão pela intriga e cabula de poucos, e não pela indole dos povos (…)”. Esta fala atesta que as intrigas políticas eram usadas como principais meios de mobilização política.2116

Com o governo de D. Duarte de Mesquitela (1830-1831), “raiou so-bre estes Ceos a aurora da Regeneração”, com a chegada dos liberais exaltados ao poder. Por isso, foi constituída uma nova junta composta pelo coronel Gregório Freire de Andrade, pelo ouvidor Antonio de Brito Lago e pelo vigário geral. Segundo o prefeito, Manoel Antonio Martins, este triunvirato, ao invés de promover a liberdade promoveu a desordem e o “desgosto de todos os corações”. Segundo o ofício, tanto Gregório Freire de Andrade, considerado pelo prefeito como “negro sem caráater”, quan-to Marcellino Resende Costa, registrado como “mulato”, faziam valer os seus direitos, valendo-se da perseguição a todos os seus inimigos. Daí que se organizaram para perseguir todos os liberais, incluindo Manoel Antonio Martins, considerado, desde o tempo de D. Duarte2217, como o “chefe do Partido Liberal”. Gregório Freire de Andrade, Marcelino Rezende e Antonio de Brito Lago perseguiam todos os seus opositores, por vezes, retirando-lhe a posse sobre as terras.2318

A desordem se instalou quando a Junta da Fazenda começou a ca-luniar, roubar propriedades, apoiar contrabandos e a promover, para cargos públicos, tanto degredados quanto “mulatos bébados”, vistos com des-prezo pelos governos antecessores. Os proprietários do interior da ilha de Santiago eram representados como aqueles que “enviam gratuitamente, e que assinavão ‘boçalmente’ tudo quanto o Escrivão lhes appresentasse, dizendo que deviam assinar”. Estes factos mostram que certa elite local, formada pelos naturais de Cabo Verde e pelos degredados, começou a ocupar os cargos públicos de relevância que dantes eram ocupados ape-nas pelos reinóis. O ofício faz crer que tanto Gregório quanto Marcellino eram opositores às liberdades políticas consagradas pelo regime liberal. Ademais, com as suas iniciativas políticas colocavam em perigo a tranqui-lidade pública no interior da ilha de Santiago.

À margem das manobras políticas que visavam que a sede do governo colonial fosse mantida na ilha de Santiago, Manoel Antonio Martins, liberal

16 AHU, CU, Cx. 087/Doc. Nº 8.17 Governador de Cabo Verde em 1830.18 AHN, SGG, Requerimentos (1831). Originais manuscritos. Cx. 037.

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moderado assumido, apresentava-se como um forte opositor político de Marcellino Costa. Ao ser nomeado como prefeito de Cabo Verde, esforçou-se em incriminá-lo, reiterando que este alienava bens do estado de forma “illegal, e despotica”. Para o referido prefeito, este opositor político utiliza-va-se do seu cargo e da confiança dos morgados do interior da ilha de San-tiago para alienar bens em favor dos seus principais aliados políticos. Por isso, a prefeitura deveria proceder ao “sequestro dos bens” de todos os morgados que tinham adquirido de forma ilegal as terras no interior da ilha. Em 13 de janeiro de 1834, Marcelino Rezende Costa, escrivão e deputado da Junta da Administração e Arrecadação da Fazenda Pública, por meio de um ofício dirigido à rainha Dª. Maria II, acusou o contractador da urzela, Manoel Antonio Martins, de praticar vários desmandos, dentre os quais destacamos: o facto de obrigar homens forros (rendeiros) a trabalhar nos domingos e dias santos, o que feria os preceitos da igreja; no momento do pagamento dos insignificantes salários com roupas, os rendeiros, além de serem ameaçados, eram insultados e presos. Os rendeiros, face aos abusos do referido administrador, que pagava pela urzela quando quisesse, dirigiram requerimentos ao governador geral. Esse mesmo contractador, por vezes tomava cavalos, vacas e burros dos rendeiros para vender aos navios estrangeiros que passam pela ilha de Boa Vista, pagando, poste-riormente, o preço que quisesse. Apesar das inúmeras reclamações junto à câmara municipal, nenhuma iniciativa foi tomada contra o referido admi-nistrador que era também Coronel de Milicias.2419 Este deputado opôs-se à extrema exploração que os “homens forros” estavam sujeitos tanto na ilha da Boa Vista quanto no interior da ilha de Santiago, fazendo crer aos rendeiros que deveriam revoltar contra os seus morgados e o respectivo regime político que legitimava as suas práticas. Note-se que a revolta de Achada Falcão teve início justamente no dia 13 de Janeiro, o que atesta que as elites políticas da ilha de Santiago usavam esse dia para fazer as suas mobilizações políticas, por ser tempo de festejo dos reinados, con-gregando grande parte dos rendeiros do interior da ilha de Santiago. Por isso, os festejos locais representavam espaços preferenciais, utilizados pelas elites políticas locais, dentre as quais os padres, para a divulgação das propostas do partido Liberal.

As arbitrariedades de Martins passaram a ser levadas em conside-ração a partir das disputas políticas, que opunham os liberais moderados

19 AHN, SGG, Portarias e estudos do Tesouro Público (Fevereiro – Setembro/1835). Originais e cópias manuscritos. Cx. 285.

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aos exaltados, ávidos por reformas políticas e sociais profundas. Embora os rendeiros tivessem dirigido suas queixas por escrito às câmaras muni-cipais e ao governo geral, o contratador exercia suas influências políticas. As denúncias surgiram no momento em que um representante político, no caso um deputado, decidiu enviá-las para o governador geral. Além disso, tratava-se de um opositor político, o que justificava a denúncia perante o governo. Os líderes políticos faziam oposição aos seus adversários. Não por acaso, os rendeiros do interior de Santiago tenham se revoltado contra os morgados defensores da manutenção da indivivisibilidade das terras.

Esta fala oficial revela a emergência e o poder político de uma elite local. Um primeiro exemplo referia-se a Gregório Freire de Andrade que, além de comandante da infantaria da ilha de Santiago, rico proprietário ru-ral, reverendo da igreja católica no interior da ilha, detinha grande influência político-religiosa sobre as suas populações, principalmente sobre os ren-deiros. Um segundo referia-se Marcelino Rezende Costa, escrivão da Jun-ta governativa desde 1829. Considerado pelo prefeito de Cabo Verde, Ma-noel Antonio Martins, como o principal responsável pelas intrigas, exercia grande influência política na ilha de Santiago, ao ponto de levar o mesmo governante a considerar que “aumentava a confuzão para ter maior nume-ro de infelizes, que dependessem delle”. Reiterou os atentados de que fora vítima, em 1832, quando sua residência era frequentada por “liberais mal olhados, e mal olhados eu mesmo pela Junta”. Não deixou de desta-car a grande conspiração política dos “sectarios Baptista” que, na noite de três de Julho de 1832, “tomaram uma attitude marcial contra huma sonha-da revolução de que me apelidaram chefe”. O poderio político de Gregório Freire d’Andrade foi reforçado com a sua nomeação, em 21 de dezembro de 1835, para o cargo de administrador do concelho de Santa Catarina.

Ainda segundo Martins, tanto Gregório Freire de Andrade quanto Marcelino Rezende Costa perseguiam os seus inimigos políticos, princi-palmente “todos quantos contradiziam, ou simplesmente censuravam os seus desatinos”. O facto dos liberais exaltados dirigirem “insultos a indiví-duos conhecidos por seu liberalismo”, mostra o descontentamento quanto às opções políticas. Também os considerou como “negros terroristas” que em alguns casos fizeram com que a Junta da Fazenda procedesse a “de-vassas”, “calumnias”, roubos de propriedade, bem como “apoiar contra-bandos”. Além disso, começaram a ser promovidos para cargos públicos tanto “degredados turbulentos” quanto “mulatos bébados”, desprezados

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pelos anteriores governos. Tais iniciativas representavam um conjunto de mobilizações políticas, para a promoção dos simpatizantes da elite local, como também a consciência de que a introdução do liberalismo no arqui-pelago não resultou na plena liberdade dos seus habitantes.

Estes factos atestam que tanto Marcelino quanto Gregório Freire de Andrade detinham grande influência e confiança não só de determina-dos morgados, como principalmente dos rendeiros, a ponto de os mobili-zar politicamente contra os seus morgados. Não é por acaso que Manoel António Martins os denominou de “terroristas”, tendo em vista as suas maquinações políticas contra o regime liberalest. Para o então prefeito, as iniciativas dos referidos políticos era “bifronte”.2520 Se de um lado, apoia-vam os morgados que eram seus aliados políticos; de outro mobilizavam os rendeiros a rebelarem contra os morgados que eram seus adversários políticos, fazendo crer aos primeiros que deveriam denunciar todos os abu-sos que vinham sofrendo dos mesmos proprietários. Todos os morgados que discordassem das decisões políticas eram perseguidos.

Esses exaltados também exigiam da prefeitura profundas reformas políticas, com destaque para a realização periódica de eleições dentro das freguesias. Para atender às pressões, por meio do ofício de 31 de maio de 1834, o então prefeito considerou que os seus esforços e empenho para garantir a eleição dos deputados às Cortes com a maior liberdade objetivavam servir a “pátria portuguesa”. Para tal, destacou o papel de D. João VI, por ter castigado os tiranos, os “malvados e os seus crimes”, bem como sabendo procurar nos seus “domínios” pessoas que servissem o bem público. Considerou os flagelos da fome e da miséria, principalmente nas ilhas de sotavento, como resultado da tirania e prevaricações dos seus funcionários, vista com “desprezo” pela Junta da Fazenda, dentre os quais destacava Marcellino Resende Costa, considerado um adulador. Segundo este tais atitudes demonstraram como os tiranos viam a miséria dos po-vos, nada mais que “escravos” dos seus caprichos. Também resultou na perseguição dos “sectarios” de Baptista aos liberais moderados, dentre os quais o então prefeito.

Segundo Marcelino Rezende, Martins aproveitava para estorquir dos “mizeraveis algum real se aparecer”, uma vez que o arroz vendido, na maioria das vezes, continha lixos e terra que “nelle está envolto”. O mes-

20 Que tem duas frontes e caras, falso, traiçoeiro.

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mo pagava também com penico, pratos, canecas, copos, talheres, papel, cachimbos, agulhas, alfinetes, com o único propósito de “não dar hum real dinheiro”. Além disso, os urzeleiros sofriam grande prejuizo com a venda da urzela. Note-se isso levando em consideração que um alqueire de milho era vendido a duas patacas, enquanto da urzela era comprada um alqueire mais barato. Para a câmara municipal, o “abuso” residia no fato do referido contratador utilizar de todas as vantagens económicas para “reter o di-nheiro dos trabalhadores”, obrigando os urzeleiros a comprar o milho pelo valor de duas patacas um alqueire. Para garantir a dependência e a venda dos seus produtos, o contratador não pagava em dinheiro, como forma de impedir que os urzeleiros comprassem o milho mais barato. Para Marcelli-no, esta exploração económica predominava também no interior da ilha de Santiago, uma vez que os urzeleiros eram, na sua maioria, rendeiros que pagavam rendas aos seus morgados. Com esta iniciativa o contratador mantinha os urzeleiros sempre na condição de “miseraveis”, tendo em vista que “por este modo não podem alacançar com que pagar os Seus competentes fóros das Suas Terras, e das Suas Cazas, e nem tão pouco os Dízimos que devem á Real Fazenda dos animaes que possuem”. Não era do interesse político dos morgados e dos “capitalistas” que a urzela comprada dos rendeiros fosse paga exclusivamente em dinheiro, uma vez que estes poderiam utilizar esse numerário para comprar as terras que cul-tivavam, requisito este para o pleno exercício dos direitos políticos.

Na prática, Marcellino Rezende da Costa intitulou-se protector dos mais fracos, denunciando os abusos decorrentes do monopólio político-económico, responsável, em parte, pela miserabilidade do povo, como também representava a principal barreira para a posse das terras que culti-vavam. O relatório apontava para grandes prejuizos decorrentes da demora de pesagem da urzela que chegava a acontecer depois das 12 horas, com mais de 6 horas de espera. Este fato fazia com que a urzela comprada dos urzeleiros fosse de pouca qualidade.2621 Para este político, a subversão ao regime político vigente constituía o único caminho para denunciar a extre-ma exploração dos rendeiros do interior da ilha de Santiago.

Tais explorações dos rendeiros/urzeleiros agravavam-se, sobretudo em épocas de estiagens. Segundo Manoel Antonio Martins, em meio a fome de 1832, que levou à morte de milhares de pessoas em todas as ilhas do arquipélago, o “enfame, e sanguinario” Baptista, ajudante de D.

21 A urzela perdia suas qualidades.

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Duarte de Mesquitela, governador geral de Cabo Verde entre 1830 e 1832, promoveu uma cruel perseguição a todos aqueles que defendessem a cau-sa liberal. No início de 1832, tal perseguição deu origem à abertura de uma “devassa”, aberta e dirigida por Gregório Freire de Andrade, ouvidor e cro-nonel de Milicias. Mas, utilizando as suas influências políticas, Martins con-seguiu sustar tal devassa, dirigida por um dos perseguidores dos liberais. Tal manobra política permitiu não só salvar “propriedades de huns”, como também a fuga de alguns incriminados. Segundo Martins, “não temo di-zello á face do Mundo, e dos que o sabem, pois que não temi praticallo á face de vis Denunciantes, que então me soffriam por necessidade”. O próprio Martins, na qualidade de prefeito de Cabo Verde, foi perseguido pelos seguidores de Baptista. As mobilizações políticas na Corte eram tan-tas, que se chegou a emitir uma ordem de prisão contra o citado prefeito que, imediatamente contestou tal iniciativa legal junto à Coroa portuguesa. Os simpatizantes deste opositor político fizeram crer aos habitantes do interior de Santiago que o regime liberal em nada garantia os seus direitos políticos. Para tal deveriam subverter as determinações tanto dos seus morgados quanto das autoridades administrativas.

Dentre as principais vítimas de Baptista, António Manoel Martins destacou o nome de João Joze Antonio Frederico, ex-tesoureiro da Junta da Fazenda. Em 1831, foi forçado por este segmento político a abandonar a sua casa e a sua família, aonde não regressou até 1834, quando da instituição dos corpos administrativos da prefeitura da província de Cabo Verde e Guiné. Segundo o mesmo prefeito, tratar-se-ia de “hum dos filhos destas Ilhas, em que se encontra mais illustração, á qual reune conhecimentos locaes da Provª, e que as suas virtudes civicas são geralmente reconhecidas”. Como forma de reparação política, pediu ao prefeito de Cabo Verde o cargo de sub-prefeito da camara da Guiné, somando ao pedido feito também pelo Coronel Joaquim Antonio de Mattos que, segundo Martins, fez “penozos (…) sacrificios a prol da cauza das Liberdades Patrias”. A estratégia política de Baptista consistia na perseguição e na expulsão do arquipélago de todos aqueles que se opusessem às medidas administrativas tomadas pelo governo geral.

Segundo o governador e tenente Serrão, na mesma carta dirigida ao coronel governador-militar da ilha de Santiago Gregório Freire de Andrade, havia reiterado que em 1838 preparava-se para declarar-se uma “revolu-ção em Portugal”, devendo ser alargada a Cabo Verde. Para este, a Carta

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atesta que o referido tenente fazia parte do grupo de “conspiradores”, tendo em vista que “pertenceo ao partido dos revoltosos”. Por isso mes-mo, o governo geral decidiu enviá-lo de volta a Portugal, tendo em vista a sua grande influência sobre as elites políticas da ilha de Santiago. Além disso, a Coroa portuguesa deveria ter em consideração a importância po-lítica da ilha de Santiago, tanto pelo número de população, que totalizava entre 26 e 30 mil “indigenas”, 30 mulatos e 40 “brancos”, quanto pela grande quantidade de produção agrícola. O posicionamento político das elites locais determinava quase sempre o “carácter político” das restantes ilhas do arquipélago, tendo em vista a sua dependência política-económi-ca. A resistência à dominação pode ser constatada no princípio, segundo a qual “o Pico d´Antónia [cume mais alto da ilha de Santiago] é quem nos tem livrado e há de livrar do demonio dos brancos”. Os portugueses eram vistos pelos rendeiros do interior de Santiago como demónios, que de-dicavam-se exclusivamente em roubar a sua alma. Acreditavam que as febres e as epidemias representavam as punições de Deus contra aqueles que os oprimiam. Desejavam ainda assassinar todos os morgados da ilha de Santiago, tomando de assalto a administração dos mesmos. Também acreditavam que deveriam apartar-se do demônio “branco”. A Carta ainda possibilita-nos reiterar que este importante político do interior de Santiago sempre apoiou a revolta dos rendeiros contra os seus morgados, conspi-rando contra sucessivos governos gerais. No arquipélago, representava os interesses políticos em favor à revolução tanto em Portugal quanto no arquipélago.

“(…) D´estes principios e de outros que eu não exponho para não alongar mais este officio, deve-se concluir que se os portuguezes são hoje senhores da Ilha de S. Thiago, é porque as familias indigenas do paiz mais influentes são nossas amigas, e querem que a Ilha, esta Provincia toda seja portugueza, por que logo que elles não queserem ser nossos Compatriotas, parece-me que de certo os não podermos obrigar ao dominio portuguez”. 2722

As intrigas políticas e as reivindicações pela reforma da constitui-ção seriam reforçadas pelas reivindicações políticas locais, dentre as quais, que o governo geral deveria estar sediado nas demais ilhas do barlaven-to. Para esta discussão muito contribuiu o receio da elite local quanto a

22 AHU, SEMU, Cabo Verde, Cx. Nº 55.

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um possível ataque dos habitantes do interior da ilha de Santiago, repre-sentados como sendo revoltosos e rebeldes. Com as sucessivas revoltas contra o governo geral mobilizadas pelos liberais exaltados, os moderados propunham a construção de um centro civilizacional em Mindelo, o que passava necessariamente pela mudança da sede do governo geral para a ilha de São Vicente. Já os exaltados defendiam a manutenção da sede na vila da Praia. Em primeiro lugar, para o deputado da provincia, Theophilo José Dias, liberal moderado, o bem estar de Cabo Verde só poderia ser alacançado com a transferência da capital para a ilha de São Vicente. Para este, a ilha de Santiago não era a ilha mais opulenta do arquipélago. Tam-bém descordou daqueles que defendiam que a referida ilha era “única que [merecia]a honra de ser a Capital da mesma Provincia”. A ilha de Santiago e sua respectiva elite política eram vistos como responsáveis pela deca-dência económica das demais ilhas. Além disso, para este governante, a ilha de São Vicente teria melhor localização geográfica para a navegação, além da existência de um excelente porto. Referindo-se ainda a posição geográfica, defendeu que “se a centralidade falta à ilha de S. Vicente em relação a todo o archiplago, ella tem a centralidade necessaria respectiva-mente ao grupo das Ilhas de Barlavento, igualmente rico, importante, e o que infelizmente se acha desprezado”. Destacou ainda que tanto o litoral quanto o interior da ilha de Santiago apresentavam um clima insalubre.

Em segundo lugar, fazia crer que a “Câmara e Cidadãos signata-rios” defendiam que uma das principais prioridades políticas do arquipé-lago referia-se à “fixação definitiva e permanente da Sede do Governo”, tendo em vista a falta de “estabilidade”, oriunda das exorbitantes despe-sas financeiras decorrentes das sucessivas transferências periódicas da sede do governo geral. Estas despesas faziam com que os funcionários recebessem os respectivos salários em até seis meses atrasados, em pre-juizo dos serviços da administração do governo geral. Este governante de-fendia que se tratava de um “egoismo imperdoavel” da câmara da vila da Praia manter a capital do arquipélago na ilha de Santiago que, em tempo das chuvas, era transferido para o interior da ilha. A transferência da sede do governo para São Vicente foi justificada por boa parte da elite política local devida, em parte, ao receio que negros do interior da ilha de Santiago planejassem uma invasão da vila da Praia, para depôr o governador geral nomeado pela Coroa portuguesa.

Porém, destacou a necessidade defendida pela elite política local

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quanto a criação de “uma povoação no seu centro, e em sitio sádio e que hade ser a necessaria e prompta consequencia de se fixar lá a sede do Governo durante os mezes doentios na Villa da Praia”, representadas pelas localidades dos Picos e Orgãos. Questionou a prioridade na criação de uma povoação no centro da ilha de Santiago. Além da grande distância que o se-para da vila da Praia, as grandes despesas com o transporte dos serviços, a inacessibilidade ao interior da ilha no periodo chuvoso (junho a outubro), que sempre dificultou o transporte dos “artigos de primeira necessidade” para a vila da Praia, seria uma “desgraça” decretar a sede do governo nos Picos, pois o governo não poderia demandar sobre assuntos que exigiam decisões rápidas. Também destacou que para tal seriam precisos mobilizar avultados recursos financeiros, além do total isolamento da referida locali-dade em relação à vila da Praia.

Quanto às vias de acesso, notou que “considerem bem (…) o transi-to de mais de dez leguas, por caminhos completamente escabrados, sujei-tos ao ardentissimo sol quando marchassem de dia … á perigoza cacimba quando andassem de noite”. Em parte, para este governador, tornava-se “absurdo” fixar a residência do governo no interior da ilha de Santiago, tendo em vista os avultados recursos financeiros necessários para a cons-trução e manutenção de uma estrada que a ligasse à vila da Praia. Em contrapartida, defendeu o investimento deste capital financeiro na edifica-ção de “habitações para o Governo, Bispo e Repartições publicas” numa outra ilha do arquipélago, no caso em São Vicente. Pode-se constatar que a fundação da nova cidade esteve diretamente ligada a crença de que os rendeiros do interior de Santiago não eram capazes de auto-governar-se.

Em terceiro lugar, refutou o princípio, segundo o qual “todos os habitantes de qualquer Capital, argumentando que só elles, por esse fac-to, são os mais ricos, mais nobres, e os mais illustrados do resto de seus irmãos do Reino ou Província”. Segundo este, todos os relatórios aponta-vam a existência generalizada das febres quer no litoral, quer no interior da ilha de Santiago, com drásticas consequências para a saúde humana. Para rebater os argumentos quanto à extensão da ilha de Santiago, Marinho reiterou que:

“(…) É na verdade extensa; mas pretender que ella só vale o resto da Provincia, é avançar uma enexactidão, um absurdo. E quando isto fosse verdadeiro, seria por

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ventura humano, de rasão e justiça – que as demais Ilhas (oito) não merecessem contemplação egual (…) quem assim fala não tem conhecimento do tamanho da ilha de Sto. Antão, que é tão grande como a de S. Thiago; - e tambem o não há da ilha de S. Nicolau, que, ainda que menor, não deixa de ser extensa (…)”.

Por outro lado, o mesmo contesta o argumento utilizado pela câma-ra da vila da Praia, segundo o qual a ilha de Santiago tinha maior número de população do arquipélago. Segundo esta interpretação, os habitantes da provincia não se limitavam aos habitantes da ilha de Santiago. As esta-tísticas apontavam pouca diferença populacional entre as ilhas de Santiago e Santo Antão.

Em quarto lugar, apesar de admitir que na ilha de Santiago faz-se mais comércio com o exterior, Marinho questiona o “direito de querer tudo para si e nada para as outras, que por não serem tão commerciais e in-dustriosos, por isso mesmo teem mais direito a serem protegidas?”. A Coroa portuguesa deveria beneficiar as ilhas que mais necessitam para se desenvolver, ao invés de construir a sede do governo no interior da ilha de Santiago. Ainda não se justificava o argumento da grande distância entre São Vicente e a vila da Praia, tendo em vista que os Picos distava 150 pas-sos do mar. Segundo este, o investimento para a construção da capital no interior da ilha de Santiago seria quatro vezes superior ao que se poderia despender para a construção de edifícios públicos em Mindelo. O governo geral gastaria elevada soma em dinheiro, tendo em vista às péssimas vias de comunicação para o interior da ilha de Santiago e o custo da mão de obra, que era 50% acima do preço praticado nas ilhas do barlavento. Por isso, “Só quem não conhece os caminhos para o interior de S. Thiago, e ig-nora quanto custam alli os transportes, é que pode ficar em silencio vendo semelhante proposta:-de ser o seu interior o local da residencia do Gover-no no tempo das aguas”. Para ele, a transferência da capital para a ilha de São Vicente não comprometeria o comércio, a agricultura, a navegação e a importância política da ilha de Santiago.

Em quinto lugar, Dias contestou o argumento apresentado pelas câmaras da vila da Praia e de Santa Catarina, segundo o qual só a ilha de Santiago exportava café, purgueira e açucar para Lisboa. As ilhas do Fogo e de Santo Antão seriam também responsáveis pela boa parte das safras

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da purgueira e do café respectivamente. Fazia crer que o trabalho de vários agricultores havia demonstrado que as terras da ilha de São Vicente, consi-derada em tempos como “improdutiva”, eram sobremaneira férteis. Para esta autoridade, ao contrário dos argumentos apresentados pelas elites políticas da ilha de Santiago, a ilha de São Vicente existia de várias nascen-tes de água potável para abastecer a futura cidade de Mindelo.

Considerou igualmente absurdo o argumento que, com a trans-ferência da capital para outra ilha, dimimuiria a confiança no governo que “longe de promover os mananciaes de prosperidade que incerra em si, lhe faça sair o numerario para ir distribuil-o com os Empregados publicos, residindo n’outra parte”. Contrapondo aos argumentos apresentados pela câmara da vila da Praia, reiterou ser falso que só a ilha de Santiago con-tribuía para as despesas do arquipélago, tendo em vista a inatividade dos seus empregados. Entende ainda que a Coroa devesse descentralizar o comércio e a indústria para as outras ilhas do arquipélago, construir boas estradas não só na ilha de Santiago, como também nas ilhas de Santo An-tão e São Nicolau, pondo fim ao “estado de ambulância em que há annos andam as Repartições publicas, e o mesmo Governo; o que deve quanto antes cessar”. Segundo este,

“Que a fixação da Sede do Governo n’aquella Ilha seja a única medida que de prompto lhe pode dar um impulso de prosperidade porque a Ilha não tem precisado de tal medida para prosperar como tem prosperado – porqe. Ella só por si se hade illustrar, e civilizar como affirmam os representantes; - e a Provincia não há de florescer por estar o Governo na Ilha de S. Thiago; - Pelo contrario, se alli se estabelecessem as Escolas Publicas, ninguem as frequentaria (…) nem os Empregados das duas Repartições superiores – Secretaria, e Contadoria – estarião em estado de poder desempenhar suas respectivas obrigações, por falta de saude”.

Em sexto lugar, para o referido governador não correspondia a ver-dade que “aquella ilha, tarde ou nunca há de receber illustração, ou luzes d’outro fóco luminoso que venha a haver na Provincia; mas que hade sem-pre brilhar por si, civilisar-se, illustrar-se – quando o não faça ás outras”. Por outro lado, rebate os argumentos, segundo o qual a construção de uma

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povoação e a edificação de edifícios públicos necessários para o governo geral acabaria com a falta de instrução de sua população. Segundo este, a instalação do governo no interior da ilha não a tornaria mais ilustrada ou civilizada, uma vez que “o resto da Provincia vale mais do que a Ilha de Santiago”. Além disso, esbarraria na resistência das famílias em enviar os seus filhos para a referida ilha, tendo em vista a intempérie do clima. Algumas chegaram até a reiterar que “antes quero meus filhos ignorantes do que perdel-os”. Segundo esta interpretação, só haveria civilização se se permanecer o regime despótico no interior da ilha de Santiago.

Para Dias, a transferência da Sede do governo geral para a ilha de São Vicente traria grandes ganhos para Cabo Verde, principalmente as re-ceitas arrecadadas com o estabelecimento dos depósitos de carvão de pedra para abastecer os navios transatlânticos. Também possibilitava que os negociantes estabelecessem os seus depósitos de mercadorias, apro-veitando a excelência do seu porto para o comércio com a Europa. Possi-bilitava aos funcionários do governo geral resguardar das “carneiradas”, considerada como “natural e privativa da mortifera S. Thiago”. Além disso, facilitaria o desenvolvimento das ilhas de Santo Antão e de São Nicolau, esquecidas pelos sucessivos governos gerais, mas importantes mercados de abastecimentos da ilha de São Vicente. Destacou ainda que se a ilha de Santiago despunha de rendimentos superiores às outras demais ilhas, devia-se principalmente ao “direito que julgam ter os habitantes de S. Thia-go, para dizerem – esta é a Capital”. 2823 Note-se que os representantes po-líticos de cada ilha faziam pressões para que a Coroa portuguesa sediasse o governo geral numa outra ilha. Em nenhum momento, os rendeiros do in-terior da ilha de Santiago viram suas reivindicações serem analisadas pelo governo geral, muito menos pela Coroa portguesa. Aos rendeiros, sem representação política junto ao governo geral, restava subverter a ordem política vigente, como forma de protesto pela desiguladade de direitos e parcialidade das administrações locais. As elites locais procuravam unica-mente em garantir os seus interesses económicos, por meio de disputas político-partidárias que se preocupavam em destacar a dimensão cultural de cada ilha.

Além da discussão entre liberais moderados e exaltados sobre a criação de um novo centro civilizacional, merece atenção a sua participa-ção nas assembleias de votação, grande parte, dominada pelos influentes

23 AHU, Cabo Verde, Cx. 54.

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morgados e capitalistas do interior de Santiago. Sabe-se pelo acto solene de eleição de novos deputados e vereadores na paróquia de São Louren-ço dos Órgãos, interior da ilha de Santiago, de 3 de fevereiro de 1839, que vários morgados foram eleitos deputados às Cortes. Pelas 11 horas procedeu-se à abertura das portas da igreja matriz “perante o Povo que a mesma Igreja havia concorido se congregarão em Mesa Eleitoral”, com a presidência do vereador da câmara do referido concelho, João da Silva Perreira. Influentes morgados e capitães da infantaria foram escolhidos para desempenharem cargos políticos. Para deputados foram nomeados: Theofilo Joze Dias, com 43 votos; Dr. Jullio Joze Dias, com 43 votos; An-tónio Cabral de Sá Nogueira, com 43 votos; Carlos Leite Perreira de Mello Vergolino, com 20 votos e Honório Perreira Barreto, com 23 votos. Para escrutinadores foram “eleitos” Nicolau dos Reis Borges e Manoel de Brito Monteiro, sendo o primeiro um dos mais influentes morgados do inte-rior da ilha de Santiago.2924 Por meio de eleições para cargos públicos, os morgados continuaram com o monopólio da terra no interior da ilha de Santiago, restringindo cada vez mais as liberdades político-administrativas dos seus rendeiros que, na impossibilidade de ter a posse das terras e de poder votar, contestavam a ordem vigente por meio de revoltas, como é o caso da revolta de Achada Falcão. Tal mobilização sócio-política reivindica-va não só a igualdade de todos perante a lei, como também a participação política e a autonomia económica em relação aos morgados.

Esses políticos, devido à pressão que exerciam junto do governo ge-ral em tempos eleitorais, influenciavam sobremaneira a administração do arquipélago, ao ponto de causar resignação do governo geral. Pelo ofício nº 72, de 29 de Maio de 1840, o governador geral, João de Fontes Pereira de Mello, considerou inúteis quaisquer “melhoramentos” em curso em Cabo Verde, limitando-se a pequenas obras que eram iniciadas e em segui-da abandonadas. Para este, a principal questão que deveria ser discutida referia-se “as preocupações absurdas, que se encontrão nestes Povos”. Segundo este, o arquipélago tem sido administrado em meio a “conspira-çoens” e “agitaçoens” que, por vezes, tem desenbocado em “estriação política”. Ainda segundo este governador, a Coroa deveria investir no tra-balho dos párocos, que ainda detinham um grande prestígio social entre os habitantes do interior da ilha de Santiago. Além disso, para cessar as conspirações políticas, a Coroa deveria trabalhar para punir o seu “chefe”,

24 AHN, SGG, Correspondências recebidas das Câmaras Municipais (Janeiro – Dezembro/7/1839). Orig-inais e cópias manuscritos. Cx. 124.

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responsabilizando-o criminalmente pelas desordens promovidas, principal-mente no interior da ilha de Santiago. As mobilizações políticas eram feitas por meio de grandes agitações dos vários segmentos sociais, dos quais cabe destacar os rendeiros do interior de Santiago. As suas próprias rei-vindicações, dentre as quais o direito a um contracto escrito, apontavam para a presença de uma forte mobilização política. A oposição política feita pelos padres ao coronelismo dos grandes morgados do interior da ilha de Santiago devia-se ao facto destes serem também pequenos morgados do interior da ilha de Santigo. Com esta oposição política esperavam recupe-rar as terras que lhes foram confiscadas pelo governo geral.

Segundo a portaria de 6 de novembro de 1834, remetida pelo pre-feito de Cabo Verde, os morgados do interior da ilha de Santiago, entre os meses de janeiro e fevereiro, deveriam comprar todas as colheitas dos seus rendeiros pelo preço de 400 reis um alqueire, deveriam revenden-dê-las nos meses de setembro e outubro pelo preço de 1200 reis. Caso o rendeiro recusasse a vender por um preço baixo as suas colheitas ao mor-gado poderia até ser expulso injustamente das terras onde constituiu a sua família. Esta tática económica estava articulada a uma estratégia política que visava empobrecer cada vez mais o rendeiro que já vivia em extrema pobreza. Apesar das determinações da Coroa portuguesa para favorecer o comércio público e a economia, os morgados do interior da ilha de Santia-go continuavam tendo práticas de tirannia e monopólio das riquezas gera-das pela terra. O mesmo prefeito considerou que os “criminosos abuzos de monopolios, revenda e travessias” de gêneros estavam proibidas pela Ordenação, Liv. 5, folhas 76, como também previstas nos Alvarás de 4 de outubro de 1644, de 24 de setembro de 1649, de 20 de outubro de 1651, quanto pelos Decretos de 25 de janeiro de 1679 e de 12 de agosto de 1695. Por isso, determinou que os provedores, nos limites da suas juris-dições, fiscalizassem o “criminoso monopolio do milho ou qualquer outro mantimento de primeira necessidade”, previnindo e policiando todas as práticas comerciais, garantindo a concorrência. Além disso, os provedores deveriam divulgar regulamentos que favorecessem a “economia pública”, impondo grandes penalidades para os infratores, por meio de constituição de processos crimes.

Em certo sentido, é crível sustentar que a revolta dos rendeiros foi produto da mobilização popular feita no interior da ilha de Santiago em torno da eleição dos “deputados de Cortes”. Segundo João Dias, juiz da

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freguesia de Santa Catarina e uma das testemunhas nos autos de devas-sa sobre a constituição do partido pró-Brasil, a principal motivação de tal mobilização devia-se à divulgação de nomes dos eleitores de todas as fre-guesias da ilha de Santiago, presentes nos “livros de matrícula” apresen-tado aos vários grupos sociais, dentre os quais destacamos os rendeiros. Ainda segundo este magistrado, tal estratégia de mobilização consistiu na convocação do “povo” do interior da ilha, mediante editais, para jura-rem a constituição. Na ocasião, alguns cônegos, oficiais e o presidente de câmara da Ribeira Grande divulgaram aos presentes “idéias para não se receber o governo de Lisboa”.3025 É crível sustentar que a elite local utilizou o processo eleitoral para mobilizar os rendeiros do interior da ilha de Santiago, demonstrando não só a importância da subversão ao regime político imposto pela Coroa portuguesa, como também a necessidade de criar uma junta composta pelos naturais de Cabo Verde.

O arquipélago era administrado para responder conspirações e agi-tações políticas que o partido Liberal pró-Brasil fazia em relação às determi-nações da Coroa portuguesa, o que impossibilitava qualquer reforma políti-ca. A revolta pode também ser analisada em função das denúncias, segun-do as quais os deputados às Cortes haviam renunciado ao compromisso com as reformas políticas propostas. Além disso, permite compreender que a existência do bipartidarismo em Cabo Verde é um fenómeno histó-rico.

25 AHU, Cabo Verde, Cx. 72, doc. 43, f. 56.

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Referências bibliográficas

Obras gerais

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CHESNEAUX, J. (1995). Devemos fazer tábula rasa do passado? (sobre a história e os historiadores). São Paulo: Ática. (Série Fundamentos, 109).

DUVERGER, M. (1985). Os grandes sistemas políticos: instituições políticas e Direito Constitucional. Coimbra: Almedina.

GALVÃO, H. ; SELVAGEM, C. (1951). Império Ultramarino portu-guês. Lisboa: Imprensa Nacional de Publicidade, v. I.

PUSICH, J. A. (182?). Subsídios para a história da administração pública na Guiné e em Cabo Verde no séc. XIX. In: Coleções da BNL, Cód. 743.

Documentos pesquisados

Manuscritos

Arquivo Histórico de Cabo Verde (A.H.N.) – Secretaria Geral do Go-verno (S.G.G.).

Caixas: nº 37; 124; 285.

Livro: 106.

Arquivo Histórico Ultramarino (A.H.U.) – Cabo Verde – Conselho Ultramarino (C.U.). Caixas: nº 53; 54; 55; 56; 60; 69; 72; 70; 72; 77; 80; 87.

Arquivo Histórico Militar (A.H.M.) 2a. Divisão, 3a. Secção,

Caixa: nº 2.

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Condicionantes institucionales del emprendimiento

turístico en pequeños territorios insulares

Jeremias Dias Furtado

Universidade de Cabo Verde

[email protected]

Antonia Mercedes García Cabrera

Universidad de Las Palmas de Gran Canaria

[email protected]

María Gracia García Soto

Universidad de Las Palmas de Gran Canaria

[email protected]

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Jeremias Dias Furtado, Antonia Mercedes García Cabrera, María Gracia García Soto Revista Desafios

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Resumen

Dado que las deficiencias en el marco institucional de un territorio inhiben la actividad emprendedora de la población residente en el mismo, el presente trabajo se desarrolla con el propósito de esclarecer las relaciones que justifican tal influencia para, a partir de ellas, hallar los mecanismos que permitan revertir la misma. Específicamente, nuestro interés se centra en identificar aquellos factores institucionales que permiten estimular la actividad turística en pequeñas economías insulares en desarrollo (PEID), en las que tal actividad empresarial representa una oportunidad real para alcanzar el crecimiento económico. El trabajo desarrollado pretende, de esta forma, dar respuesta a la siguiente cuestión investigadora: ¿qué factores institucionales del entorno influyen en la decisión de fundar una empresa en el sector turístico en una PEID? Los resultados hallados permiten establecer diversas proposiciones de investigación que deben ser exploradas empíricamente para mejorar nuestra comprensión del emprendimiento turístico y su promoción efectiva en tales contextos económicos.

Palabras-clave: emprendimiento turístico; pequeña economía insular en desarrollo (PEID); teoría neo-institucional; cambio institucional.

Introducción

A pesar de ser prolífica la literatura en el campo del emprendimiento, el debate sobre cómo estimular en los territorios la puesta en marcha de nuevas empresas se ha intensificado de forma creciente entre los académicos en los últimos años. Ello es así debido al papel destacado que el emprendimiento tiene en la economía, al ser el motor del desarrollo socioeconómico, de la generación de empleo y de la creación de riqueza en cualquier territorio, particularmente en las pequeñas economías insulares en desarrollo (PEID), tal y como señalan autores como Buhalis (1999) o Logossah y Maupertuis (2007). Debido a ello, las organizaciones internacionales han realizado amplios esfuerzos para estimular el crecimiento económico de las economías menos avanzadas a través del emprendimiento. En esta tarea se ha prestado gran relevancia a los factores del entorno que condicionan el comportamiento emprendedor (García-Cabrera & García-Soto, 2008; De Clercq et al., 2010; Ferreira et al., 2011;

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Fortunato & Alter, 2011; Gries & Naude, 2011), si bien no siempre con los resultados esperados. Debido a ello, en nuestra investigación estamos interesados en el estudio de tales factores del entorno y para su análisis recurrimos a la Teoría neo-institucional o neo-institucionalismo pues ofrece los fundamentos para analizar los mismos.

El neo-institucionalismo sostiene que los factores del entorno o instituciones influyen en el comportamiento de los individuos en general y de los emprendedores en particular (Díaz-Casero, 2003), siendo para la presente investigación de especial relevancia los trabajos que defienden tal influencia en el contexto de las PEID (Buhalis, 1999; Logossah & Maupertuis, 2007). Específicamente, y frente a los enfoques institucionales tradicionales que enfatizan la conformidad y la adaptación del individuo a las normas institucionales (e.g., Teoría Económica Institucional, Teoría Sociológica Institucional), el neo-institucionalismo concede gran importancia al cambio institucional y al papel de los diferentes actores económicos, políticos y sociales en estos procesos de cambio (Tracey & Phillips, 2011) tan necesarios para establecer aquéllas condiciones del entorno que hagan posible el estímulo empresarial. La Teoría Económica Institucional es relevante aquí puesto que ha identificado las categorías o tipos de factores del entorno que potencialmente influyen en el comportamiento emprendedor (Casero, 2003). De esta forma, y a pesar de que la literatura previa ha identificado una multiplicidad de factores que motivan el comportamiento emprendedor y que están relacionados con el individuo –e.g., formación, personalidad (Díaz et al., 2005; García-Cabrera & García-Soto, 2008, 2009; De Clercq et al., 2010)– o bien son de naturaleza sociológica –e.g., redes sociales (Fortunato & Alter, 2011)–, existe una creciente literatura que sostiene que son las instituciones o variables del entorno las que rigen las interacciones humanas y condicionan el comportamiento tanto de las personas como de las organizaciones (e.g., Caballero, 2004; Webb et al., 2009; Puffer et al., 2010; Tracey & Phillips, 2011).

Ahora bien, los teóricos institucionales más recientes incorporan en sus planteamientos el análisis sociológico de las relaciones interindividuales (Granovetter, 2005) destacando la influencia de tales interacciones en el comportamiento emprendedor y en los resultados económicos cuando éstos se analizan desde una óptica institucional (Caballero & Kingston, 2005; De Clercq et al., 2010; Fortunato & Alter, 2011). Debido a este enfoque interdisciplinar y aglutinador de las versiones más modernas de la Teoría

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Institucional, en el presente trabajo recurrimos a ella y nos amparamos en sus preceptos para hallar los factores que determinan el emprendimiento en una PEID. Al hacerlo, admitimos como hipótesis básica que los factores institucionales del entorno se instrumentan y materializan en diferentes elementos –e.g., leyes, valores culturales, prácticas empresariales socialmente admitidas– que interactúan y se refuerzan entre sí para condicionar la actuación emprendedora de los individuos (García-Cabrera & García-Soto, 2008; Gries & Naude, 2011) en la medida que tales individuos, como miembros de un grupo social o mediante su vinculación a diferentes redes sociales (García-Cabrera & García-Soto, 2009; De Clercq et al., 2010), acceden al conocimiento de tales elementos institucionales y se sienten alentados a amoldar sus comportamientos a lo que tales instituciones predican.

Ahora bien, las instituciones son básicamente el resultado de un proceso de aprendizaje social, de forma que están arraigadas en la cultura de la población de cada territorio. Debido a ello, presentan un carácter estable en el tiempo y además, para el caso de las PEID, pueden ser desfavorables para el emprendimiento. Por ello, cabe plantearse cuál puede ser la mejor forma de impulsar un cambio institucional que dé lugar a un entorno propicio para la creación de empresas en tales economías. Ahora bien, dado que Jackson y Deeg (2008) advierten que cada marco institucional puede proveer de diferentes fortalezas y debilidades a distintos tipos o sectores de actividad económica, parece aconsejable la elección de un sector de actividad específico para realizar la investigación. Atendiendo a esta sugerencia, el presente trabajo escoge el sector turístico por ser éste un eje estratégico clave para el desarrollo socioeconómico de las economías emergentes (Liu & Wall, 2006) entre las que se encuentran las PEID. Partiendo de estas ideas previas, en el presente trabajo tratamos de dar respuesta a la cuestión de investigación siguiente: ¿qué factores institucionales del entorno influyen en la decisión de fundar una empresa en el sector turístico en una PEID? Para responder a este interrogante buscamos tanto argumentos teóricos en la literatura como evidencias empíricas mediante la realización de un estudio en la República de Cabo Verde. La respuesta que ofrecemos al interrogante planteado nos permite establecer nuevas relaciones sobre la particular incidencia de las instituciones en el emprendimiento que se lleve a cabo en contextos sectoriales y económicos específicos, a saber, el sector turístico y las PEID. De esta forma, pretendemos contribuir a una mejora

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en la comprensión del fenómeno emprendedor y, por ende, a su promoción efectiva en tales contextos. Por consiguiente, nuestro trabajo parece de particular interés para las instancias gubernamentales implicadas en la planificación de políticas orientadas a fomentar la actividad emprendedora, para los individuos que deseen emprender y para los empresarios foráneos que deseen invertir en el sector turístico en estos lugares (Logossah & Maupertuis, 2007; García-Cabrera & García-Soto, 2008; Tracey & Phillips, 2011).

Para responder a la cuestión que fundamenta la investigación realizada el presente artículo se estructura en torno a cinco apartados que siguen a esta introducción. Inicialmente analizamos el emprendimiento desde la perspectiva de la Teoría neo-institucional para, posteriormente, contextualizar tal discusión al particular contexto del emprendimiento en las PEID. Con este propósito definimos las PEID, presentamos el Programa de Acción de Barbados (PAB) y analizamos la Estrategia de Mauricio (MSI), destacamos la importancia de la especialización turística en las PEID e identificamos los subsectores turísticos de mayor crecimiento en estos contextos económicos. En el tercer apartado analizamos el caso de la República de Cabo Verde y presentamos la evidencia empírica obtenida del trabajo de campo realizado, justificando por qué este país puede ser considerado un caso de éxito en este ámbito. Finalmente, formulamos las proposiciones de investigación que sintetizan la aportación de nuestro trabajo, y a ellas siguen las conclusiones del mismo.

Empreendimiento desde la perspectiva neo-intitucional

En el campo del management el término emprendimiento hace referencia a la acción de crear una nueva empresa (Low & MacMillan, 1988), esto es, al proceso por el que un individuo accede a una idea de negocio y organiza los recursos necesarios para aprovecharla asumiendo con ello un riesgo económico con el propósito de obtener beneficios, en el caso que nos ocupa, en el sector turístico (Buhalis, 1999; Kreiser et al., 2010). La investigación realizada en materia de emprendimiento ha demostrado que el entorno ejerce diferentes tipos de presiones que en ocasiones incentivan y en otras inhiben el comportamiento emprendedor (Urbano et al., 2007; Webb et al., 2009; Puffer et al., 2010). El marco teórico empleado

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en muchos de estos estudios es la Teoría neo-institucional (North, 2005), planteamiento al que nosotros también recurrimos para comprender los efectos del entorno sobre el emprendimiento en el contexto de las PEID.

Las instituciones se corresponden con limitaciones humanas que representan las reglas de juego de una sociedad. Tales reglas proporcionan estructura y orden a las relaciones e intercambios que se producen entre los agentes que toman decisiones en el mercado (North, 1990, 2005). A las organizaciones y empresarios, según esta Teoría, corresponde el rol de jugadores. De esta forma, la diferencia que existe entre instituciones y organizaciones estriba en lo que distingue a los jugadores de las propias reglas del juego que se están jugando (Díaz-Aunión et al., 2010) y que determinan los costes de transacción y, por ende, la viabilidad de llevar a cabo una actividad económica con fines de lucro. Atendiendo a estos planteamientos, el tipo de organización que se cree dependerá de las oportunidades proporcionadas por el marco institucional (North, 1994).

Las instituciones pueden ser formales –e.g., leyes, normas jurídicas– o informales –e.g., valores culturales– (North, 1995) y son transportadas a través de diferentes vehículos que Scott (1995) clasifica en tres pilares o dimensiones: regulativo, normativo y cognitivo. La dimensión regulativa incluye las leyes, reglamentos, normas y políticas formuladas por el gobierno al objeto de promover ciertos tipos de comportamiento y restringir otros (Scott, 1995; Fernández-Alles & Valle-Cabrera, 2006). Estas instituciones se imponen mediante presiones coercitivas y a través de ellas se verifica la conformidad del comportamiento con las leyes, de forma que las empresas obtienen legitimidad en la sociedad si operan de conformidad con las normas legalmente establecidas y son penalizadas en otro caso (Trevino et al., 2008; Tracey & Phillips, 2011).

La dimensión normativa, por su parte, incluye las normas, valores y creencias sobre el comportamiento humano admisible. Las instituciones normativas no sólo definen las metas u objetivos socialmente aceptables –e.g., obtener beneficios–, sino también las formas adecuadas para buscar su consecución –e.g., prácticas comerciales éticas– (Huang & Sternquist, 2007). El mecanismo normativo da prioridad a las creencias morales y obligaciones interiorizadas como base del orden social. Bajo esta concepción de Scott (1995), el comportamiento del empresario es guiado no sólo por el interés propio, sino también por la conciencia social y un deseo de

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comportarse adecuadamente de acuerdo con las expectativas y normas de conducta que él ha asimilado, lo que es conocido como presión normativa (Fernández-Alles & Valle-Cabrera, 2006). Los incentivos que ofrecen estas presiones normativas al individuo incluyen tanto recompensas extrínsecas –e.g., aceptación y legitimidad social– como intrínsecas –e.g., respeto a sus principios morales–. Estos controles normativos tienden, debido a esta base moral, a ser interiorizados por el individuo en mayor medida que los controles regulativos.

Finalmente, la dimensión cognitiva refleja el conocimiento económico-empresarial compartido por las organizaciones e individuos de un determinado territorio e incluye las decisiones y formas organizativas que han sido aplicadas con éxito por otras organizaciones, sean o no del mismo sector de actividad (Lu, 2002); son estructuras y conocimientos que se dan por consolidados y, por ello, no se cuestionan, sino que se adoptan por otras empresas que afrontan situaciones similares (Scott, 1995). Tales elementos contienen esquemas válidos que ayudan al decisor, cuando afronta un cierto nivel de incertidumbre, a escoger entre alternativas posibles (Lu, 2002; Veciana & Urbano, 2008). La dimensión cognitiva subraya que la legitimidad proviene de la adopción de aquellas decisiones adoptadas por organizaciones que se toman como referencia, de forma que esta presión mimética induce a imitar los comportamientos previos. Así, estas presiones ofrecen como incentivos él éxito de las decisiones adoptadas o su aceptación por el resto de actores por amoldarse a las prácticas empresariales comunes.

Para los teóricos institucionales, la dimensión cognitiva contiene los elementos de la dimensión normativa, siendo ambas dimensiones reforzadas por la dimensión regulativa (Veciana & Urbano, 2008). De esta forma, las instituciones del entorno se entrelazan y refuerzan para condicionar la actuación de los individuos y organizaciones establecidos en un territorio, dificultándose así su transformación. Ahora bien, la Teoría neo-institucional destaca la capacidad de los actores para influir en las reglas del juego, correspondiendo a ellos por tanto un papel protagonista en la generación del cambio institucional (North, 1994). En esta tarea pueden ser clave la labor de los agentes políticos que, mediante sus decisiones individualizadas y basadas en la autoridad formal que la legislación les provee, pueden propiciar el cambio institucional actuando sobre aquellas instituciones que condicionan las actitudes poblacionales hacia la

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creación de empresas y el tipo de empresas que se crean y progresan en el tiempo (Urbano et al., 2007). Si bien los agentes políticos influyen fundamentalmente en las instituciones de naturaleza regulativa, a través sus decisiones pueden también establecer las bases para el desarrollo de las de carácter cognitivo y normativo que el territorio precisa para fomentar el emprendimiento. La cuestión principal estriba entonces en identificar qué instituciones específicas son las que permiten desarrollar el emprendimiento turístico en las PEID. Para avanzar en esta línea en el siguiente epígrafe procedemos a definir y caracterizar las PEID y la relevancia que el sector turístico puede tener en ellas, estableciendo así las bases para posteriormente identificar las instituciones que pueden ser más idóneas en las mismas.

Emprendimiento Turístico en Pequeñas Economías Insulares en Desarrollo (PEID)

PEID311 son economías insulares pequeñas y vulnerables (Logossah & Maupertuis, 2007) que se corresponden principalmente con países y/o territorios de África, Caribe y Pacífico. Dado que sus economías están en desarrollo, o bien se incluyen dentro del grupo de países menos avanzados o de aquellos de crecimiento mediano. Debido a ello, su nivel de desar-rollo socio-económico sostenible depende de la aplicación del Programa de Acción de Barbados (PAB, 1994) y de la Estrategia de Mauricio (MSI, 2005), programas que propugnan un trato especial y diferenciado por parte de la comunidad internacional, sobre todo de las instituciones de Bretton Woods, a estos territorios. A este respecto, estos países se caracterizan por demandar en el marco de la Organización Mundial del Comercio (OMC) un sistema comercial multilateral más equilibrado y justo que permita el logro de dos objetivos en materia de sostenibilidad relacionados con los programas anteriores: (1) el establecimiento de un vínculo claro entre co-mercio y desarrollo socio-económico basado en la transparencia y la in-tegración real de las PEID en el proceso decisorio subregional y mundial (PAB, 1994); y, (2) el establecimiento de una alianza mundial contra el cam-1 Por ejemplo, Cabo Verde, Barbados, Belice, Cuba, Dominica, Fiji, Guyana, Haití, Jamaica, Papua Nueva Guinea, St. Kitts y Nevis, Mauricio, Santa Lucia, San Vicente y las Granadinas, Seychelles, Las Islas Sa-lomón, Surinam, Trinidad y Tobago, Vanuatu, etc. Además, por diversas características y/o desafíos que afrontan, tienen esta consideración Chipre y Malta. Finalmente, las islas ultra periféricas griegas, franc-esas, españolas o portuguesas también pueden considerarse en cierta medida PEID (Bughalis, 1999; Logossah y Maupertuis, 2007).

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bio climático y la mitigación de sus efectos basada en la creación de capa-cidad de adaptación y en la resistencia de estos territorios a los riesgos de catástrofes naturales (MSI, 2005).

El PAB, más particularmente, se concibe en Barbados en 1994 y es aprobado por la Resolución 47/189 de la ONU. Incluye 14 bloques de ac-ciones específicas que deben ser desarrolladas para abordar los retos que afrontan los territorios PEID: el cambio climático y la elevación del nivel del mar; los desastres naturales y ambientales; la gestión de residuos; los recursos costeros y marinos; los recursos de agua dulce, tierra, de energía; los recursos del turismo y de biodiversidad; las instituciones nacionales y la capacidad administrativa; o el desarrollo de recursos humanos, entre otros. Por consiguiente, en el PAB se incluyen diversos ámbitos sectoriales que deben impulsarse y de entre los cuales aquí destacamos el turismo y el desarrollo institucional, por ser los que captan la atención del presente proyecto de investigación. Estas áreas consideradas prioritarias deben me-recer de estrategias específicas a nivel nacional, regional e internacional en el corto, medio y largo plazo al objeto de hacer factible el desarrollo soste-nible de las PEID (PAB, 1994). Ahora bien, dado que las circunstancias que concurrían cuando fue aprobado el PAB cambiaron –e.g., mayor escasez de recursos financieros, disminución de la ayuda oficial al desarrollo–, en enero de 2005 se definió la estrategia de Mauricio (MSI, 2005) aprobada por la Resolución A/57/262 de la ONU. Esta nueva resolución, con el obje-tivo de hacer factible el logro de los objetivos de desarrollo del Milenio en las PEID, añade cinco áreas de actuación a las previamente establecidas: graduación de la condición de país menos desarrollado, comercio, produc-ción y consumo sostenibles, salud, y gestión del conocimiento y cultura.

En cuanto a sus características específicas, destaca en las PEID sus limitaciones para beneficiarse de los efectos positivos de las economías de escala, debido a su aislamiento y lejanía de los continentes y, por ende, de los principales mercados de producción (Buhalis, 1999; Costa et al., 2004; Logossah & Maupertuis, 2007). El efecto de esta limitación es múltiple para la economía de las PEID: (1) elevados costes logísticos, esto es, de transporte, de almacenamiento o de comunicación; (2) reducida capacidad de competitividad externa de bienes, productos y servicios; y (3) reducida capacidad de atracción de inversión directa extranjera –IDE– (Brewer et al., 1990). Atendiendo a estos factores, la actividad industrial basada en la producción de bienes comercializables que se lleve a cabo en estos

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territorios adolece de falta de competitividad. Esto es así porque la lejanía de las fuentes de materias primas y de los centros de consumo se tradu-ce en unos elevados costes logísticos que encarecen los productos y por consiguiente hacen inviable la comercialización de los mismos. Estas limi-taciones económicas generan una mayor vulnerabilidad social en las PEID. Como consecuencia, De Mattos (2000) advierte que en las PEID suele ser habitual un cierto retardo en el nivel de desarrollo que va acompañado de una insuficiente capacidad tecnológica y baja innovación, así como una falta de capacidad para beneficiarse del efecto aprendizaje –e.g., aprender haciendo– (Logossah & Maupertuis, 2007). Todo ello da lugar a que estas economías sean dependientes del exterior.

En este marco de limitaciones a la actividad productiva, la especialización turística representa una oportunidad para el desarrollo económico y social de las PEID (Buhalis, 1999; Logossah & Maupertuis, 2007; OMT, 2012), siendo tal actividad sectorial ya destacada en el PAB (1994). La especialización turística, más particularmente, debe entenderse como un cluster322 de actividades caracterizado por poseer unas tasas relativamente altas de crecimiento económico como consecuencia de la actividad emprendedora turística, esto es, de la creación de empresas que tiene lugar en dicho sector. La elección de esta estrategia de desarrollo parece además idónea debido a la fuerte dotación natural de recursos turísticos en estos territorios (OMT, 2012). Tal dotación confiere a las PEID un valor añadido diferencial frente a destinos alternativos que compiten sobre la base de las tradicionales cuatro “s” –i.e., sea, sand, sun and sex–, permitiéndoles diferenciarse de ellos (De Sousa et al., 2013) mediante la oferta de ecoturismo –e.g., observación de aves, de ballenas–, turismo cultural –e.g., riqueza y diversidad cultural de su población–, o turismo de montaña –e.g., paisajes deslumbrantes, clima, volcanes–, entre otras actividades mostradas en el Cuadro 1. No sorprende, por consiguiente, que el turismo represente en la actualidad un eje estratégico clave para el desarrollo socioeconómico de estos territorios (Buhalis, 1999; Logossah & Maupertuis, 2007; OMT, 2012). Algunos ejemplos de ello los aportan lugares como Santa Lucia (75% de las exportaciones FOB); Antigua y Barbuda (61%); Maldivas (58%); Seychelles (56%); Barbados (55%); Samoa (51%); Cabo Verde (15,9% del PIB y 99% de los flujos de IDE) según la

2 Geographic concentrations of interconnected companies, specialized suppliers, services providers, firms in related industries and associated associations- (e.g., universities, standards agencies, trade associations) in a particular field that compete but also cooperate. Michel Porter, (1990).

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OMT (2002) y el Consejo Mundial de Viajes y Turismo (CMVT, 2008).

Cuadro 1. Subsectores turísticos en crecimiento en las PEID y respectivas características

Tipos Principales características

Turismo cultural Caracterizado por las “4 E”: educación (cultura, historia y patrimonio), eventos, entorno y entretenimiento.

Turismo de eventos fijos, estacionales y de oportunidad

Actividades periódicas programadas (eventos fijos), estacionales desar-rolladas en el nivel regional y de oportunidad en función de las tenden-cias del mercado.

Turismo de megaeventos

Grandes eventos culturales, deportivos y religiosos que, por sus carac-terísticas internacionales, catalizan la atención nacional y un gran flujo turístico internacional.

Turismo temático

Espacios de recreación con instalaciones, servicios y equipamientos es-pecíficos que reproducen artificialmente sonidos de la naturaleza, de la cultura, de la tecnología y donde se hacen proyecciones futuristas.

Turismo étnico-histórico-cultural

Desplazamiento por la motivación de los orígenes étnicos locales y regionales, y también en el legado histórico-cultural de su ascendencia común.

Turismo religioso

Vistitas a hogares, monumentos y lugares históricos, cargados de sim-bolismo religioso y cultural: peregrinaciones, compra y venta de arte sacro, artesanía, visitas al patrimonio tradicional como catedrales, mu-seos, edificios eclesiásticos, etc.

Turismo cívico-institucional y turismo urbano

Conocimiento del patrimonio tradicional: instalaciones y monumentos patrios y municipales con relevancia histórica para la formación del ethos cultural de países, (e.g., paisaje urbano, patrimonio arquitectónico y emblemático, museos, deportivos, arquitectura en hoteles, edificios de oficinas y palacios feriales y de congresos, etc.

Turismo internacional de negocios

Cumbres, reuniones de negocios (e.g., de dirección, de fuerza de ventas), viajes de incentivos, exposiciones y ferias, así como congresos, workshops o talleres.

Turismo rural y turismo agroindustrial

Visitas a instalaciones y a procesos agropecuarios, agroindustriales y pecuario-industriales. En cuanto a la atracción rural se encuentran: mon-taña, clima y paisajes rurales, edificios rurales, senderismo, alpinismo, etc.

Ecoturismo, viajes de aventura y turismo esotérico

Visitas a ciudades y hogares que proporcionan experiencias y vivencias únicas - contacto con la naturaleza virgen – (e.g., los volcanes) y con los pueblos indígenas.

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Turismo de guerra y/o histórico

Visitas a monumentos bélicos, maquinaria histórico-militar, espolios/legados bélicos o campos históricos de batallas militares y de concen-tración penales.

Turismo de salud y/o de ‘aborto’

Visitas de ciertos segmentos específicos de mujeres embarazadas provenientes de países donde se prohíbe la práctica de abortar niños para países donde tales prácticas son institucionalmente tolerables.

Fuente: elaboración propia a partir de Costa et al. (2004) y Carvalho (2012)

El reconocimiento creciente del turismo como una estrategia de de-sarrollo económico se refleja en el elevado número de planes turísticos elaborados en las últimas décadas en diferentes territorios. Esto es así, porque el éxito en el desarrollo de este sector está condicionado por el de-sarrollo de un adecuado proceso de planificación conducente a desarrollar los recursos críticos para competir (Liu & Wall, 2006). De hecho, según Costa et al. (2004) y Liu y Wall (2006), tomando como referente el año 1980, la OMT ha sido capaz de construir un inventario de más de 1.600 pla-nes de desarrollo turístico. Estos planes abordan comúnmente 15 temas distintos relacionados con el papel del turismo en el seno del Plan Nacional de Desarrollo, así como en la planificación específica de los subsectores turísticos –e.g., turismo rural, turismo social, turismo religioso, turismo de salud, etc.

Ahora bien, la planificación realizada para promover la actividad tu-rística no siempre ha ido acompañada del logro de los resultados positivos esperados en lo que a desarrollo del sector y de la actividad económica del territorio se refiere. Esta disonancia ha sido atribuida a la falta de participa-ción de la población local en los beneficios generados por el sector o a la falta de formación en los recursos humanos que prestan servicios en dicho sector (Liu & Wall, 2006), entre otros. Además, dado que las PEID po-seen importantes singularidades –e.g., economías pequeñas, estructuras vulnerables, aislamiento, escaso desarrollo socio-económico– demandan planes especiales orientados a desarrollar aquellas capacidades humanas e institucionales necesarias para el desarrollo del sector turístico (UNCTAD, 2010). Dado que el éxito en la especialización turística de un territorio de-pende de la explosión de la actividad emprendedora que garantice la oferta de plazas alojativas, restauración, entre otras, nuestro trabajo puede hacer

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una aportación relevante en este ámbito al identificar los factores institu-cionales del entorno que influyen en la decisión de fundar una empresa turística en una PEID. Los resultados que alcancemos, más particularmen-te, pueden orientar la actividad planificadora que se lleve a cabo por parte de las autoridades en estos territorios al objeto de garantizar el desarrollo de aquellas cualidades institucionales que hagan factible la especialización turística.

La República de Cabo Verde: estudio del caso de una PEID

Cabo Verde es un país con estructura archipielágica compuesto por diez islas y ocho islotes. Se encuentra situado geográficamente a 450 Kilómetros de Senegal y dispone de una superficie de 4.033 km2 y una zona económica exclusiva de 200.000 km2. El país, conjuntamente con las islas Canarias, Madeira y Azores, forma parte de la región Macaronésica (Figura 1) y sus características geográficas y socio-económicas la hacen merecer la condición de PEID

figura 1. Cabo Verde ubication geografica

Las islas caboverdianas están dotadas de una naturaleza e idiosincrasia propias que las hace únicas por su diversidad orográfica, socio-antropológica, económica y cultural, constituyendo ésta una de las causas de contrastes estructurales y de comportamientos diferenciados en materia emprendedora. Cabo Verde es uno de los pocos países democráticos y políticamente estables del continente africano y el que

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más se ha desarrollado desde un punto de vista económico tras liberalizar su economía en los años 90. Esta liberalización se llevó a cabo mediante reformas en sus instituciones regulativas encaminadas a establecer una democracia, privatizar las empresas públicas o incentivar la creación de empresas al objeto de fortalecer el tejido empresarial nacional y el sector privado (Do Rosário, 2011). Los años 90 constituyen, tras estas reformas, el punto de inflexión a partir del cual cambia la función y los fines del Estado. Específicamente, de un Estado que gestionaba la economía con criterios Keynesianos se pasa a un Estado regulador de la economía y que garantiza los servicios públicos esenciales. Como resultado, este país ha sido considerado uno de los diez países más reformistas en 2010, presentando buenos indicadores sociales, económicos y políticos en relación a otros países de la subregión oeste africana.

Adicionalmente, Cabo Verde ha logrado formar parte del Grupo de los 5 países de mayor éxito de África. Esta catalogación viene avalada por los indicadores macroeconómicos del país, que reflejan un entorno general favorable, con una mejora de la tasa de desempleo que desciende del 16,7 por ciento en 2003 al 13,1 por ciento en 2010 (INE, 2010); un avance de la renta per cápita, con un aumento real de 975 a 1.420 euros en 5 años, llegando a 3.400 dólares americanos en 2007; y una evolución del PIB nominal, en la mayoría de los años, superior al 7 por ciento, así como del PIB real superior al 5 por ciento en los últimos cinco años. Sin embargo, y a pesar de estos avances, Cabo Verde aún afronta retos en materia de pobreza –e.g., uno de cada cuatro individuos es considerado pobre–, desempleo, falta de infraestructura económica y, debido a su condición insular, también de economías de escala. Otros retos relevantes fueron identificados en el estudio conjunto efectuado en 2011 por la UCRE (Unidad de Coordinación de la Reforma del Estado) y la ONUDI (Organización de las Naciones Unidas para el Desarrollo Industrial). Atendiendo al mismo, los empresarios de Cabo Verde consideran que el entorno empresarial en dicho país adolece de problemas relacionados con el transporte, la cualificación de los recursos humanos, el abastecimiento de electricidad, el acceso al crédito, así como la existencia de competencia no regulada. Otros hándicaps relevantes son el pequeño tamaño del mercado interno o la débil conexión entre Cabo Verde y el espacio económico de África Occidental (CEDEAO).

Cabo Verde, al igual que otras PEID, ha escogido la especialización

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turística como vía estratégica para el desarrollo socioeconómico. Como resultado de los esfuerzos realizados en materia turística alcanza el desarrollo económico necesario para superar su clasificación como país menos avanzado y situarse entre los de rendimiento medio (OMT, 2012), reconocimiento obtenido por parte de la ONU en diciembre de 2007. Así, su economía se caracteriza por una clara relevancia del sector servicios que contribuye al 50 por ciento de la economía del país (INE, 2010). El sector turístico representa el 18 por ciento de ese valor, absorbiendo el 15 por ciento del empleo total y más del 90 por ciento de los flujos de inversión directa extranjera. Si bien todas las islas del archipiélago poseen potencial y recursos territoriales para el desarrollo de dicho sector (Logossah & Maupertuis, 2007), cuatro de ellas acogen la práctica totalidad del negocio turístico: Sal, Santiago, Boavista y Sao Vicente, siendo su evolución desigual en la última década. Así, el número de turistas entrantes en el período 2002-2012 experimentó una tasa de crecimiento positiva en la isla de Boavista, pero decrecimientos moderados en las islas de Santiago y Sao Vicente, y más severos en Sal. En su conjunto, Cabo Verde recibió más de medio millón de turistas en el año 2012, lo que representa un aumento del 251 por ciento respecto a la entrada de turistas en 2002. Esta mejora en el sector ha estado apoyada por la implantación de políticas públicas encaminadas al desarrollo de los clusters con soporte en el mar, el turismo y las TIC (Programa VIII Gobierno Constitucional, 2011-2016).

Ahora bien, dado que la especialización turística se alcanza sólo en el marco de unas tasas altas de crecimiento económico derivadas de la actividad emprendedora turística, esto es, de la creación de nuevas empresas en dicho sector, en el presente trabajo tratamos de dar respuesta al siguiente interrogante en aras a realizar una aportación a la literatura que, además, sea útil en la formulación de políticas públicas: ¿qué factores institucionales del entorno influyen en la decisión de fundar una empresa en el sector turístico en una PEID? Para dar respuesta al mismo, en junio de 2012 se llevó a cabo un estudio empírico con el propósito de conocer la evaluación que los caboverdianos realizan de la calidad de las instituciones regulativas, normativas y cognitivas que afectan a la creación de empresas en el sector turístico, así como de la medida en que tales instituciones condicionaron el comportamiento emprendedor de aquellos que finalmente decidieron fundar una empresa en dicho sector.

En la realización del trabajo empírico se consideró como población

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objeto de estudio a aquellos individuos residentes en Cabo Verde con una edad superior a 15 años, siendo éste el límite a partir de la cual puede producirse la incorporación al mercado laboral. Sobre esta base, el universo de estudio asciende a 491.875 individuos en 2010 (INE, 2011), por lo que admitiendo un nivel de confianza de 95,5 por ciento y una tasa de error del 4,59 por ciento, el tamaño muestral definido es de 237 individuos. Específicamente, el estudio fue realizado en las islas de Sal, Boavista, Santiago y Sao Vicente, por encontrarse en el grupo de las de mayor desarrollo turístico, y en las de Fogo (S. Filipe y STª Catarina) y Maio, de menor desarrollo. Esto permitió incluir en el estudio las circunstancias institucionales que concurren en territorios que han logrado desigual nivel de especialización turística. Para la recogida de la información se hizo uso de un cuestionario estructurado y redactado en lengua portuguesa. Para la conformación de las escalas relacionadas con las estructuras institucionales se atendió a las sugerencias de los autores que nos preceden en su medición (De Clercq et al., 2010), si bien éstas fueron construidas para los fines específicos de la investigación aquí propuesta. El análisis estadístico se llevó a cabo mediante medias y desviaciones típicas de cada uno de los ítems incluidos en el cuestionario, así como a través del porcentaje de individuos con respuesta superior a 3 en una escala de 5 posiciones, indicando así su valoración positiva de las instituciones analizadas.

Los resultados alcanzados para las instituciones regulativas se muestran en la Tabla 1. En opinión de los caboverdianos existen leyes y reglamentos relativos a la creación de nuevos negocios (3,92) y rapidez administrativa en lo que se refiere a la oferta inmediata de servicios de administración fiscal (3,89) o de registro de empresas en un día (3,75), siendo estas instituciones valoradas positivamente –i.e., con una puntua-ción superior a 3– por el 88,6 por ciento de los encuestados. Ahora bien, la regionalización sería bien vista por los emprendedores actuales y poten-ciales (3,71), apuntándose así hacia una necesidad de descentralización administrativa. Por el contrario, no son bien valorados por su efecto en la creación de empresas la rapidez de la justicia, que se considera lenta (1,94), la situación económica (2,35) y los incentivos existentes para esti-mular la actividad empresarial, así como la ya mencionada centralización administrativa (2,41), entre otros. Merece finalmente destacarse respecto a estas instituciones que los caboverdianos reconocen y valoran el apoyo y la actuación gubernamental conducente a la creación y consolidación de

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empresas en el sector turístico, obteniendo éstas una valoración positiva por el 75,1 por ciento y el 73 por ciento de la muestra, respectivamente.

Las instituciones normativas, por su parte, guardan relación con las creencias y comportamientos considerados social y moralmente acepta-bles y deseables en un territorio. La evaluación de las mismas por parte de los caboverdianos se muestra en la Tabla 2 y, como se puede apreciar, para todas ellas más del 75 por ciento de los encuestados valoran positivamen-te –i.e., por encima de 3– estas instituciones. Concretamente, está bien visto que una mujer decida poner en marcha su propio negocio (4,22) y se considera que los buenos empresarios son los que realizan una oferta de calidad a sus clientes (4,07). Por su parte, también se consideran que ser empresario es una opción profesional deseable (3,95) y que éstos gozan de un alto estatus y respeto en la sociedad (3,93). En términos globales, los propios encuestados indican que los valores existentes en el país repre-sentan un estímulo para la creación (3,32) y consolidación (3,30) de nuevas empresas en el sector turístico. Evidentemente, estas instituciones nor-mativas o cultura poblacional representan un importante activo del país.

Tabla 1. Percepción de las instituciones regulativas por la población caboverdiana

Dimensión regulativa N Media* Desviación típica

Valor ≥ 3

(%)**

Existen leyes y reglamentos gubernamentales relativas a la creación de nuevos negocios

237 3,92 0,780 74,7

La oferta inmediata de servicios de administración fiscal (ej., CAF, NIF) facilita la actividad empresarial

237 3,89 1,073 88,6

La oferta del servicio “registro de empresa en un día” incentiva la creación de empresas

237 3,75 1,010 88,6

La regionalización sería bien vista por los aspirantes y empresarios ya instalados 237 3,71 0,993 86,9

Existen normas regulativas para asegurar la calidad de los productos y servicios prestados por las empresas

237 3,35 1,009 81,0

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La fijación del salario mínimo nacional es bueno para la creación de nuevas empresas

237 3,26 1,093 75,5

Las nuevas empresas consiguen los permisos y licencias en un corto periodo de tiempo

237 3,06 1,139 71,3

Las leyes se aplican a las nuevas empresas de una forma previsible y coherente

237 2,98 0,836 74,3

Existe información disponible sobre cómo poner en marcha y gestionar un nuevo negocio

237 2,96 1,119 64,1

Se ofrece la formación necesaria para que los individuos que lo deseen puedan crear un nuevo negocio

237 2,90 1,083 64,2

Los reglamentos sobre las nuevas empresas y empresas en crecimiento son adecuados y eficaces

237 2,88 0,894 70,4

Existe una buena oferta de formación profesional que aporta trabajadores disponibles para la contratación

237 2,78 0,930 64,6

Existen cursos de formación continua para mejorar los conocimientos y habilidades de los empleados

237 2,69 0,993 60,3

La administración realiza controles regulares para verificar la calidad de los productos y servicios ofertados

237 2,67 0,966 56,5

La flexibilidad de los convenios colectivos favorece la creación de empresas 237 2,64 0,931 57,8

La presión fiscal existente es favorable para las nuevas empresas y empresas en crecimiento

237 2,55 1,031 49,3

La flexibilidad laboral favorece la actividad empresarial 237 2,54 0,954 50,2

Existen ayudas públicas para apoyar la creación de nuevos negocios 237 2,47 1,044 48,1

El paquete de incentivos a la actividad empresarial es suficiente para la creación de nuevos negocios

237 2,41 0,973 45,1

La centralización administrativa de muchos servicios en el Estado favorece la creación de empresas

237 2,40 1,010 43,4

La situación económica general es buena y favorece la creación de empresas 237 2,35 1,112 41,4

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La rapidez de la justicia favorece la actividad empresarial 237 1,94 1,056 22,8

El apoyo y la actuación gubernamental facilita la creación de empresas en el sector turístico

237 3,03 0,947 75,1

El apoyo y la actuación gubernamental facilita la consolidación de las empresas en el sector turístico

237 3,00 0,966 73,0

* Total desacuerdo (1) a total acuerdo (5). Valores superiores a 2,5 indicarían que, en promedio, los individuos de la muestra sostienen que estas estructuras institucionales regulativas existen en el país.

** Porcentaje de individuos que contestan con un valor igual o superior a 3.

Tabla 2. Percepción de las instituciones normativas por la población caboverdiana

Dimensión normativa N Media* Desviación típica

Valor ≥ 3

(%)**Está bien visto que una mujer decida poner en marcha su propia empresa o negocio 237 4,22 0,779 97,9

Se considera que los buenos empresarios son los que realizan una oferta de calidad a sus clientes

237 4,07 0,815 96,2

Se considera que convertirse en un emprendedor es una opción profesional deseable

237 3,95 0,829 94,9

Los empresarios de éxito gozan de un alto estatus y respeto en la sociedad 236 3,93 0,838 95,4

La creación de nuevas empresas es considerada una forma adecuada de hacer fortuna

237 3,71 1,010 89,0

La mayoría de las personas piensan que los empresarios son individuos competentes y autosuficientes

237 3,68 0,905 89,5

Se valoran positivamente las habilidades empresariales, la capacidad creativa y el pensamiento innovador

237 3,67 0,850 92,0

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Quien crea nuevos negocios es destacado en los medios de comunicación, como persona exitosa

237 3,52 0,928 87,8

La calidad en el servicio al cliente es una norma que se toma muy en serio 237 3,19 0,997 78,1

Las opiniones y valores de la población facilitan la creación de empresas en el sector turístico

237 3,32 0,883 83,3

Las opiniones y valores de la población facilitan la consolidación de las empresas en el sector turístico

237 3,30 0,857 84,1

* Total desacuerdo (1) a total acuerdo (5). Valores superiores a 2,5 indicarían que, en promedio, los individuos de la muestra sostienen que estas estructuras institucionales normativas existen en el país.

** Porcentaje de individuos que contestan con un valor igual o superior a 3.

Las instituciones cognitivas, finalmente, se relacionan con el conocimiento económico-empresarial existente en la población, y la evaluación de las mismas se presenta en la Tabla 3. Destaca en ellas la predisposición de la población a imitar los modelos empresariales aportados tanto por empresas de éxito locales (3,76) como extranjeras (3,29), observándose el miedo al fracaso como uno de los motivos por los que las personas no ponen en marcha un negocio (3,47). Adicionalmente, es relevante el conocimiento empresarial en materia de creación de empresas existente en el municipio, lo que atestigua el hecho de que todo el mundo conozca a alguien que ha creado una empresa (3,31) y que existan muchas personas con experiencia en la creación de un negocio (3,2). Tal conocimiento emprendedor contrasta con la falta de formación de la fuerza laboral en el país, con claras deficiencias en materia de conocimiento de idiomas (2,46) o experiencia en dirección de empresas (2,7), entre otras. En cuanto al sector turístico, al igual que para las instituciones regulativas y normativas, también consideran que el conocimiento existente en el territorio facilita la creación (3,08) y la consolidación (3,07) de empresas turísticas.

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Tabla 3. Percepción de las instituciones cognitivas por la población caboverdiana

Dimensión cognitiva N Media* Desviación típica Valor ≥ 3 (%)**

Es habitual imitar a las empresas locales de éxito creando negocios similares a los suyos

237 3,76 1,029 88,2

El miedo a fracasar impide que las personas pongan en marcha su empresa

237 3,47 1,027 82,3

Casi todo el mundo conoce a alguien que ha puesto en marcha un negocio recientemente

237 3,31 0,958 81,5

Es habitual imitar a las empresas extranjeras de éxito creando negocios similares a los suyos

237 3,29 1,140 74,2

Existen muchas personas con experiencia en la creación de un nuevo negocio

237 3,20 0,956 76,8

Muchas personas son capaces de organizar los recursos necesarios para crear un nuevo negocio

237 2,95 1,001 64,9

Existe una fuerza laboral con estudios universitarios 237 2,92 1,034 67,9

Muchas personas saben cómo reaccionar a las buenas oportunidades creando nuevos negocios

237 2,79 1,010 61,1

La mayoría de las personas sabe cómo dirigir un pequeño negocio 237 2,79 1,137 58,3

Existe una fuerza laboral con experiencia en actividades de servicio y atención al cliente

237 2,78 0,907 67,0

Muchas personas conocen las exigencias que en materia de calidad tienen los clientes

237 2,75 0,917 60,3

Existe una fuerza laboral con experiencia en dirección de empresas 237 2,70 0,935 63,7

Existe una fuerza laboral con conocimientos de idiomas extranjeros 237 2,46 0,909 48,6

El conocimiento y el carácter de la población facilita la creación de empresas en el sector turístico

237 3,08 0,938 75,1

El conocimiento y el carácter de la población facilita la consolidación de las empresas en el sector turístico

237 3,07 0,929 74,7

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* Total desacuerdo (1) a total acuerdo (5). Valores superiores a 2,5 indicarían que, en promedio, los individuos de la muestra sostienen que estas estructuras institucionales cognitivas existen en el país.

** Porcentaje de individuos que contestan con un valor igual o superior a 3.

Finalmente, como parte del análisis realizado se ha comparado las respuestas aportadas por los empresarios caboverdianos participantes en el estudio con respecto al resto de los encuestados (véase Tabla 4). Este análisis comparativo llevado a cabo a través de un test de diferencia de medias permite identificar la existencia de diferencias significativas entre ambos grupos en su valoración de las instituciones y, por ende, una mejor identificación de aquellas relacionadas con el emprendimiento. Los resultados indican que el grupo de emprendedores se corresponde con aquellos individuos que con carácter general valoran mejor la eficacia e idoneidad del conjunto de leyes y reglamentos que afectan a las nuevas empresas y empresas en crecimiento. Adicionalmente, los emprendedores se distinguen por valorar más positivamente la existencia de instituciones normativas o valores que enfatizan la calidad de servicio que se oferta al cliente y de instituciones cognitivas o existencia de conocimiento en el territorio sobre cómo atender a los clientes y, más particularmente, sobre las exigencias que estos tienen en materia de calidad. Sobre la base de estos resultados podemos afirmar que aquellos que deciden ser empresarios son precisamente quienes más positivamente valoran la existencia de leyes favorables a las nuevas empresas y de valores sociales y conocimiento acumulado en materia de calidad de servicio, una práctica empresarial de elevada relevancia para alcanzar el éxito en el sector turístico.

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Tabla 4. Dimensiones institucionales y emprendimiento

Dimensiones institucionales

MediaEstadístico t de

igualdad de mediasNo empresario

(n=144)

Empresario

(n=99)Regulativa

Los reglamentos sobre las nuevas empresas y empresas en crecimiento son adecuados y eficaces

2,74 3,11 -3,182**

NormativaLa calidad en el servicio al cliente es una norma que se toma muy en serio

3,04 3,42 -2,893**

CognitivaExiste una fuerza laboral con experiencia en actividades de servicio y atención al cliente

2,70 2,91 -1,770†

Muchas personas conocen las exigencias que en materia de calidad tienen los clientes

2,65 2,91 -2,264*

†p<0,1, *p<0,05, **p<0,01.

Instituciones y emprendimento en pequeñas economías insulares: proposiciones de investigación

Sobre la base de la investigación teórica y empírica llevada a cabo para identificar aquellas instituciones que pueden tener un efecto positivo sobre el emprendimiento turístico en una PEID, en el presente epígrafe realizamos una discusión de las evidencias halladas para, a partir de ellas, formular diversas proposiciones de investigación. En las PEID, la incertidumbre del entorno es mayor que en otros contextos económicos más desarrollados debido, entre otros, a unos menores niveles de información fiable sobre la evolución de la economía, mayor grado de incertidumbre jurídica ocasionada por marcos legislativos limitados para regular las relaciones mercantiles o mayor riesgo del país debido a la inestabilidad de los regímenes políticos. En estos contextos, los principios de la Teoría

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neo-institucional pueden ser particularmente útiles para comprender cómo los factores del entorno inciden en las decisiones empresariales relativas al emprendimiento puesto que los deseos e intenciones individuales no siempre se concretan en acciones –e.g., la decisión de emprender–, ni se transforman directamente en los resultados esperados (Díaz-Casero et al., 2012). Las intenciones han de interactuar con un entorno en el que las instituciones limitan, regulan y/o incentivan el comportamiento de los individuos.

Desde un punto de vista regulativo, la calidad del entorno institucional hace referencia a la estructura legal que provea de estímulos al emprendimiento –e.g., tasas impositivas, incentivos fiscales, trámites legales requeridos–, así como el establecimiento de aquellas infraestructuras físicas –e.g., ventanillas únicas para la constitución de la empresa–, y de desarrollo del capital humano necesarias para apoyar tal actividad emprendedora –e.g., planes de formación reglada y continua que incluyan la gestión empresarial y el emprendimiento–. De esta forma, sólo cuando la calidad del entorno regulativo para el emprendimiento genera oportunidades empresariales en el sector turístico que pueden ser percibidas por los individuos, tal y como muestra la evidencia empírica hallada entre los empresarios caboverdianos, éstos podrán tomar decisiones emprendedoras motivadas por su intención de aprovechar tales oportunidades (Bowen & De Clercq, 2008; Stenholm et al., 2013). En caso contrario, una baja calidad del entorno regulativo motivará bajos niveles de emprendimiento (Aidis et al., 2008).

Proposición 1. Cuanto mayor es la calidad de las estructuras regulativas para el emprendimiento turístico en una PEID, más elevada será la actividad emprendedora en dicho territorio.

La dimensión normativa incluye las normas sociales y los valores culturales socialmente compartidos y asimilados por los individuos, priorizando las creencias y obligaciones morales como guía para la adopción de decisiones empresariales (Scott, 1995). Así y en primer lugar, Tominc y Rebernik (2007) afirman que el hecho de que la sociedad de la que el individuo forma parte considere que la empresa propia es una alternativa profesional deseable o que respete y otorgue un estatus elevado a aquéllos que triunfan con sus negocios, promueve el comportamiento emprendedor en busca de oportunidades empresariales de éxito. García-Cabrera y García-

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Soto (2008); en segundo lugar, al analizar las instituciones normativas para una PEID, la República de Cabo Verde, encuentran que cuando los valores culturales de una zona geográfica enfatizan la proactividad, la asertividad y la orientación al éxito material, la población que ha sido educada en tales valores y los ha interiorizado, mostrará mayor vocación emprendedora y tratará de identificar oportunidades de negocio. Estos resultados son coherentes con la evidencia empírica hallada en la presente investigación. A este respecto, merece la pena destacar, que la existencia de valores que primen la calidad de servicio que se concede al cliente, son fundamentales para el emprendimiento en dicho sector.

Proposición 2. Cuanto mayor es el énfasis que las estructuras normativas conceden al emprendimiento turístico basado en la calidad de servicio en una PEID, más elevada será la actividad emprendedora en dicho territorio.

La dimensión cognitiva refleja el conocimiento social compartido en un territorio sobre los comportamientos y decisiones empresariales idóneas para alcanzar el éxito en el mundo empresarial y/o en sectores específicos en particular (Lu, 2002). Los hábitos empresariales, bajo este enfoque, se corresponden con las instituciones cognitivas y representan una forma de comportamiento no reflexiva, auto-sostenible, que surge como resultado de actuaciones repetidas a lo largo del tiempo y son comúnmente empleadas cuando existen condiciones de incertidumbre (Lu, 2002; Déniz-Déniz & García-Cabrera, 2011). De hecho, esta puede ser controlada mediante las decisiones adoptadas por el emprendedor. Bajo la dimensión cognitiva, las decisiones del individuo reducen la incertinidad y adquieren legitimidad si se adopta el marco común de referencia (Scott, 1995) y se imita los comportamientos y acciones encuadrados en dicho marco –e.g., decisión de emprender, sector en el que operar–. Ahora bien, este conocimiento empresarial debe ser adecuadamente difundido para que accedan al mismo tanto los actuales empresarios como los emprendedores potenciales –e.g., publicando en distintos medios la experiencia de emprendedores de éxito–, de forma que tales instituciones cognitivas puedan guiar las decisiones que en materia de emprendimiento se adopten en tales territorios. El trabajo realizado en Cabo Verde pone de manifiesto la importancia de este conocimiento, especialmente cuando en él se recoge las exigencias que en materia de calidad tienen los clientes y la forma de ofrecer servicio y atención al mismo. Asimismo, los resultados

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confirman la predisposición de los emprendedores a imitar los modelos de éxito aportados tanto por empresas locales como foráneas.

Cuanto mayor es el desarrollo y difusión de las estructuras cognitivas que facilitan modelos de emprendimiento turístico basados en la calidad de servicio en una PEID, más elevada será la actividad emprendedora en dicho territorio.

Conclusiones

La discusión teórica y empírica desarrollada en el presente trabajo nos permite alcanzar conclusiones de utilidad tanto académica como prácticas referidas al emprendimiento turístico en las PEID. Estas conclusiones pueden ser clasificadas en dos categorías, a saber: (1) la idoneidad de la Teoría neo-institucional como marco teórico adecuado para el estudio de los condicionantes del entorno que afectan el logro de la especialización turística en las PEID; y (2) la identificación de las estructuras institucionales con potencial influencia en el emprendimiento turístico.

Así, y en primer lugar, de nuestro trabajo derivan argumentos que avalan la idoneidad de Teoría neo-institucional en el análisis del particular contexto que representan las PEID y el reto que éstas afrontan en materia de especialización turística para promover su desarrollo socio-económico. Tal idoneidad viene avalada porque esta Teoría enfatiza la relevancia tanto de las instituciones formales o leyes, como de las informales, más relacionadas con las normas culturales y los conocimientos arraigados en la población, admitiendo que unas y otras afectan al desarrollo de la economía. Específicamente, nuestro trabajo empírico corrobora la existencia y relevancia de las instituciones informales en una PEID, hecho que no puede ser infravalorado dado el débil cuerpo legislativo que existe comúnmente en estos territorios con economías en desarrollo. De esta forma, en ausencia de suficiente reglamentación, son las normas culturales y los conocimientos arraigados en la población los que guían el proceso decisorio en materia de emprendimiento turístico. Estas instituciones informales difícilmente son moldeables por las autoridades, o al menos requeriría un largo período de tiempo lograrlo dado que no pueden imponerse mediante decretos (Silva, 2007). Es más, tal y como sugiere la

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literatura previa, las instituciones informales incluso dan origen a las leyes y propician su transformación en la medida que influyen en las decisiones del legislador (Castanheira Neves, 2005), de ahí la elevada relevancia de las mismas.

En este sentido, si las instituciones informales enfatizan la calidad de servicio al cliente, tal y como hemos hallado para el particular caso de Cabo Verde, cabría esperar un posterior desarrollo legislativo orientado a garantizar dicha calidad y evitar así posibles comportamientos oportunistas en los empresarios que pudieran dañar la reputación que, en calidad de destino turístico, alcanzara la PEID. Por otra parte, una reglamentación contraria a las creencias culturales y al conocimiento arraigado en la población sería poco efectiva, no sólo por el carácter opuesto o incoherente entre unas y otras instituciones, que en vez de reforzarse entrarían en conflicto, sino porque en contextos de ineficacia judicial, común en los territorios en desarrollo, las instituciones regulativas podrían ser infringidas sin elevado coste para aquellos que ignoran su cumplimiento.

En esta línea, de nuestra discusión se infiere la necesidad de que las autoridades políticas realicen mayores esfuerzos por conciliar en el tiempo las instituciones regulativas de naturaleza formal, que normalmente se aprueban con retardo, con las instituciones informales, esto es, por promulgar puntualmente aquellas leyes y decretos que refuercen las instituciones informales válidas y favorables para la acción emprendedora, logrando así la necesaria coherencia institucional en estos territorios. Específicamente, debido a esta fortaleza de las instituciones formales en las PEID, las autoridades deberían sólo formular políticas e impulsar medidas que sean coherentes con los marcos históricos, socio-culturales, económicos y tecnológicos de sus territorios, claramente articulados a través de las instituciones informales. Por consiguiente, si bien al Estado corresponde el rol de actor principal en el desarrollo de un cambio institucional que facilite la introducción de instituciones que permitan el desarrollo de la especialización turística en la PEID, éste rol ha de desempeñarlo siendo sensible a la realidad institucional del país y no meramente replicando lo que se hace en otros lugares (Caballero, 2004).

Sobre la base de estas ideas, parece oportuna la sugerencia de Trevino et al. (2008) quienes advierten que, aunque los gobiernos deben impulsar reformas en las tres dimensiones institucionales, a saber, cognitiva,

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normativa y regulativa, deben ser conscientes de que son precisamente los cambios que van acompañados de una menor reforma legislativa los que alcanzan mejores resultados dado que el simple cambio de las reglas formales no produce necesariamente los efectos que se buscan (Caballero & Kingston, 2005). Por consiguiente, parece necesario el logro, en primer lugar, de la legitimación en los niveles cognitivo y normativo para que las personas acepten de forma natural los cambios y, con posterioridad, lleguen a considerarlos como consolidados y, sólo entonces, recurrir a su reglamentación dándoseles la forma de leyes o constituciones, afectando así al pilar regulativo. En esta línea, Trevino et al. (2008) proponen una metodología en la que el proceso de desarrollo institucional se hace de una forma escalonada, empezando por el pilar cognitivo, para pasar posteriormente al normativo y, finalmente, al regulativo.

Respecto a esta actuación gubernamental orientada al desarrollo de estructuras cognitivas adecuadas para el emprendimiento, en el presente trabajo se propone tanto el impulso de actividades formativas orientadas a desarrollar mejores prácticas entre los empresarios, como la difusión de las mismas entre la población –e.g., desarrollando programas de difusión de las experiencias empresariales de éxito–. Similarmente, las acciones formativas encaminadas a facilitar el conocimiento de las instituciones regulativas establecidas para favorecer la creación de nuevas empresas también pueden contribuir a la meta buscada. Dado que estas medidas están claramente conectadas con el desarrollo de mayores niveles de formación e información entre la población en cuestiones relevantes para la empresa y el emprendimiento, nuestra propuesta es coherente con el planteamiento de North (2005) al afirmar que los procesos de cambio institucional requieren de una inversión económica en capital humano.

En coherencia con este cuerpo de conclusiones, una segunda aportación de nuestro trabajo consiste en ofrecer un conjunto de instituciones normativas y cognitivas que deberían ser evaluadas en cualquier PEID como paso previo a la formulación de nuevas leyes y decretos por parte de sus autoridades políticas. Además, para el particular caso de Cabo Verde, se ofrece la valoración específica que una muestra de su población radicada en destinos turísticos realiza de las mismas. A este respecto, nuestro trabajo claramente identifica instituciones de naturaleza regulativa, normativa y cognitiva que son especialmente relevantes para el colectivo de emprendedores frente al resto de la población que reside en

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la PEID, orientando por tanto la actuación política encaminada a generar el marco institucional idóneo para fomentar el emprendimiento en destinos turísticos. Merece la pena destacarse el elevado protagonismo que en las instituciones normativas y cognitivas tiene la calidad en la atención y servicio al cliente, un atributo de elevada relevancia para el éxito de la actividad turística.

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Subsídios para um ensino transformador no primeirocurso de e-learning da Universidade de Cabo Verde

Maria Luísa Inocêncio

Universidade de Cabo Verde

[email protected]

Maria da Luz Correia

Universidade de Cabo Verde

[email protected]

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Maria Luísa Inocêncio, Maria da Luz Correia Revista Desafios

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Resumo

Apresentamos subsídios para a reflexão centrada nas práticas de ensino universitário transformador. A reflexão parte do estudo exploratório realizado sobre o primeiro curso de e-learning da Universidade de Cabo Verde para a formação pedagógica de professores do ensino secundário. O quadro concetual e metodológico de referência é composto pelos conceitos de ambientes virtuais de aprendizagem colaborativa, interatividade, construtivismo sociocultural e abordagem situada do processo de ensino e da aprendizagem. Analisámos os registos eletrónicos da atividade de ensino e aprendizagem no ambiente virtual e as declarações dos formandos. Os resultados sugerem que a interação entre o tutor online e os formandos na modalidade de escrita assíncrona, em torno dos conteúdos de aprendizagem, bem como o papel mediador que o tutor exerce ao ajudar a reconstruir as representações das experiências docentes são, todos eles, elementos chave que potenciam a formação de professores prospetivos. Ao contrário dos modelos de formação assentes em processos de transmissão, receção e reprodução de informação, os modelos de formação assentes na construção colaborativa de conhecimento favorecem a aprendizagem profunda com sentido e orientada para a ação transformadora. A mais-valia da construção de conhecimento docente através da discussão escrita assíncrona resulta das condições em que os participantes atuam. Podem realizar as tarefas de aprendizagem num horário personalizado, têm mais tempo para ler e refletir sobre as diversas fontes de informação (fontes concetuais, outros pontos de vista e relatos de experiências profissionais), recolher sugestões, ensaiá-las, avaliar os resultados e partilhá-los em qualquer momento.

Palavras-chave: interação; modelos de formação de professores; atividades de aprendizagem docente; formador-mediador; reflexão prospetiva guiada.

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1. Introdução

As mudanças no ensino universitário, entendidas como mudanças direcionadas para impulsionar processos de construção colaborativa de conhecimento e práticas transformadoras na sociedade, marcam o discurso público e académico, mas ocorrem em pequena escala e em contextos institucionais específicos. Na Universidade de Cabo Verde, o NaEaD-Núcleo de Apoio ao Ensino a Distância iniciou um processo de reflexão-ação sobre a temática, a partir de um estudo exploratório apresentado ao I Colóquio Cabo-Verdiano de Educação (Correia e Inocêncio, 2013). O CCPL-Curso de Complemento Pedagógico de Formação é o primeiro curso e-learning da iniciativa da UNI-CV e o programa do semestre 1 tem quatro unidades curriculares. Os 19 formandos exerceram ou exercem uma profissão, predominado a profissão docente. Participam na atividade virtual do curso no seu local de residência, respetivamente nas Ilhas de S. Vicente, Sal e Santiago.

Pretendemos partilhar pistas para a melhoria da formação a partir de uma análise, no quadro da interatividade, dos elementos do processo de ensino e aprendizagem identificados no curso de Complemento Pedagógico da Licenciatura na modalidade e-learning, com uma forte componente virtual. O termo “interação” está associado a conceções vinculadas ao modelo de ensino transmissivo ou a um modelo de ensino baseado na conceção construtivista do ensino e da aprendizagem. Os resultados apurados vão ao encontro da ideia de que o recurso a metodologias ativas e o estabelecimento de interações significativas são fatores potenciadores de um maior envolvimento dos estudantes na co-construção das suas aprendizagens.

Retomamos as conclusões do trabalho anterior (Correia e Inocêncio, 2013) que se afiguram mais oportunas para a presente reflexão sobre o modelo de formação universitária que melhor poder formar professores prospetivos. Destacamos as seguintes dimensões da interacção mediada pelo tutor online e pelo ambiente virtual: (i) a dimensão interacção no ambiente virtual da formação entre docente-estudante-conteúdo de aprendizagem; (ii) a dimensão interacção exterior à actividade virtual preparatória da actividade virtual (é estabelecida pelos estudantes num processo de aprendizagem entre “iguais”); (iii) a dimensão interacção na formação virtual projectada para a interacção na actividade profissional (escola), quando o estudante-professor transfere as suas aprendizagens

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para favorecer a aprendizagem dos seus alunos. As dimensões (ii) e (iii) da interacção parecem ter excelentes potencialidades de expansão da influência educativa da universidade nos contextos exteriores ao contexto virtual da formação. Caracterizaremos, com maior detalhe, o processo pelo qual certas formas de interação em tarefas de aprendizagem podem contribuir para um maior impacto social da formação universitária.

2. Quadro conceptual

O desafio que se apresenta ao processo de ensino e aprendizagem em ambientes e-learning reside na seleção das formas que melhor estimulam a participação entendida como participação para melhorar efetivamente a qualidade da aprendizagem (Hrastinski, 2008). O aumento do número de estudos de caso da formação virtual dos professores reportados na literatura atual parece corresponder mais diretamente ao aumento do uso das tecnologias de informação e comunicação-TIC no ensino universitário, mas não tanto ao interesse pela compreensão dos processos pelos quais essas propostas favorecem a aprendizagem (Hammond, 2005). Em todo o caso, a investigação tem evidenciado o valor que o debate e a colaboração assíncrona escrita têm, em particular para aprender conteúdos complexos, que requerem uma compreensão profunda dos conceitos e ideias. Apresentamos as ideias chave que presidem às decisões para melhorar as condições e a qualidade da aprendizagem colaborativa em ambientes virtuais.

2.1. Formação de professores em ambientes virtuais

Na literatura sobre ambientes e-learning é patente o reconhecimento de que os ambientes eletrónicos possibilitam novas formas de ensinar e aprender e que estas potencialidades são reforçadas quando as práticas de ensino e aprendizagem estão vinculadas a uma conceção sócio-construtivista. Tanto o formador como os formandos que utilizam as ferramentas de comunicação em ambientes eletrónicos têm a vantagem de poder interagir, de acordo com o seu próprio ritmo e calendário, e de se envolverem numa partilha de saberes. O desenho tecno-pedagógico – a escolha das ferramentas eletrónicas, a conceção das atividades, a orientação das discussões e a definição das normas de participação, bem como a gestão do processo de ensino e aprendizagem – é uma tarefa

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complexa que cabe ao docente desenvolver e adaptar (Moreira, Pedro e Santos, 2009). A formação de professores em ambiente e-learning consiste no uso intencional de um sistema eletrónico ou computador para apoiar o processo de aprendizagem (Allen, 2003, in Clarey, 2003).

Tomamos, como referência, os elementos da perspetiva colaborativa da aprendizagem apoiada pelo computador (CSCL- Computer Supported Collaborative Learning) e a abordagem situada do ensino e da aprendizagem. As propostas de formação colaborativa visam encontrar formas em que os formandos possam aprender com os outros, através do diálogo e da reflexão em pequenos grupos e em comunidades virtuais de aprendizagem. Têm subjacente uma perspetiva sócio-construtivista do ensino e da aprendizagem e as teorias dialógicas (Stahl, Koschmann e Suthers, 2006).

Em relação à participação entendida como interação entre colegas e o professor, destacamos conclusões da investigação relevantes para os nossos propósitos: (i) a participação tem um efeito positivo na perceção que os alunos formam da aprendizagem e na qualidade da avaliação das tarefas de aprendizagem (Fredericksen, Picket, Shea, Pelz e Swan, 2000; Hiltz, Coppola, Rotter, Turoff e Benbunan-Fich, 2000, ibidem); (ii) a participação influencia a satisfação do aluno (Alavi e Dufner, 2005, em Hrastinski, 2008) e favorece a redução das taxas de reprovação (Rovai, 2002, ibidem). Vários estudos destacam elementos como o controlo e a autonomia do aprendente no processo de aprendizagem e mostram que a qualidade da interação é diretamente responsável pelo aumento da motivação dos aprendentes (Garrison, 2003; Garrison e Shale, 1990; Gunawardena e McIsaac, 2004, in Moreira, Pedro e Santos, 2009). Quando associada a aspetos comunicacionais e contextuais, a interação tende a representar um fator não negligenciável do processo de ensino e da aprendizagem, sendo certo que as transações se tornam mais ricas, contextualizadas e diversificadas.

A importância da colaboração e do debate colaborativo entre iguais é um dos recursos mais importantes da formação de professores, como assinala a literatura de investigação sobre uma tipologia de cursos que combinam, em diferentes graus, a presencialidade e a virtualidade da actividade de ensino e aprendizagem (Andriessen, Baker e Suthers, 2003; Turcotte e Laferrière, 2004). O papel do docente em ambientes virtuais adquire características específicas: o docente como facilitador do discurso,

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planificador dos processos de interacção e fonte principal de apoio directo durante o processo de aprendizagem (Bustos, Coll e Engel, 2009).

A discussão no fórum virtual tem mais potencialidades para gerar mais processos de pensamento de nível superior do que nas aulas exclusivamente presenciais (Bereiter e Scardamalia, 1993, McGilly, 1994, Harasim, 1995 e Akers, 1997, in Turcotte e Laferrière, 2004). Os fatores favorecedores são: (i) na discussão virtual, os participantes dispõem de mais tempo para explorar o tema e refletir sobre as ideias dos outros participantes; (ii) a participação no debate assíncrono favorece o desenvolvimento da sua própria compreensão, a organização do pensamento próprio. Acresce referir que estas condições de participação exercem uma pressão positiva para que todos participem, o que dificilmente se consegue noutras condições.

2.2. Aprendizagem baseada em projetos

A aprendizagem baseada em projectos ocorre em vários espaços de aprendizagem, além do espaço académico: o local de trabalho, os espaços de encontro social, espaços de lazer, etc. Reflete os conceitos construtivistas e contribui, com as tecnologias interativas digitais, não apenas para motivar os aprendentes, mas também para desenvolver uma aprendizagem transformadora. O processo de aprendizagem tende a tornar-se mais dinâmico e significativo, já que o estudante tem a oportunidade de negociar com os colegas o que se vai investigar, formular hipóteses, produzir o pensamento analítico e sintético, exercitar a autonomia e o senso de responsabilidade. O docente deixa de assumir um papel de mero detentor e centralizador de um conhecimento cristalizado, não raras vezes utilizado em salas de aula de modelo presencial, passando a exercer funções de mediador e motivador do conhecimento (Gomes, 2004).

A aprendizagem baseada em projetos está inevitavelmente marcada pelo contexto em que se desenvolve. No conjunto dos usos pedagógicos da conceção situada y distribuída do processo de ensino e aprendizagem encontramos a participação guiada e o ensino recíproco (Brown, Collins y Duguid, 1989; Collins, Brown e Newman, 1989, in Pea, 1993). A aprendizagem necessária para realizar uma atividade encontra-se distribuída num grupo de participantes, o num sistema de aprendiz-mentor. A abordagem situada do ensino e aprendizagem favorece também a multiplicação e a transferência do aprendido de forma adaptada aos

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contextos exteriores à formação.

As formas de ajuda que o tutor online presta aos formandos são, por exemplo, explicitar os conteúdos chave através de perguntas ou interpelações que modelam atuações (modeling), apoiam (coaching), incentivam os formandos-professores para que também explicitem o seu pensamento, articulem as suas ideias e identifiquem as suas necessidades de aperfeiçoamento (Hmelo-Silver, Duncan e Chinn, 2007). As formas de ajuda específicas à aprendizagem baseada em projetos devem ter em conta a previsível diversidade de conhecimentos prévios dos membros da equipa do projeto. Estas ajudas consistem preferencialmente na elaboração, pelo tutor online, de documentos de apoio à sistematização de conceitos chave de que os formandos necessitam para fundamentarem as suas opções quanto ao objeto de estudo, à metodologia de pesquisa e de avaliação do projeto de aprendizagem (Hmelo-Silver, 2012). Todas as formas de ajuda mencionadas traduzem a importância do papel do tutor como mediador e orientador de aprendizagens significativas.

3. O estudo empírico - padrões de interação no CCPL

No quadro concetual descrito, este estudo pretende explorar a seguinte questão: Como a formação de professores no ambiente virtual do curso CCPL está a incentivar práticas de ensino transformadoras? Para responder a esta questão, destacamos a parte do estudo exploratório em que se observam os seguintes padrões de encadeamento de interações que favorecem a transformação das práticas educativas.

Padrão A de encadeamento de interações

No início do processo interativo, o primeiro elemento da interação consiste na partilha, pelos formandos-professores, de relatos de experiências, de estudos de caso, de conhecimentos prévios sobre o tema em debate. Esta partilha faz parte da estratégia que o tutor online utiliza para incentivar a participação e corresponde à operacionalização do princípio sócio-construtivista segundo o qual o ponto de partida para realizar aprendizagens significativas e de qualidade deve ser a experiência e os conhecimentos prévios dos alunos e o que eles necessitam de compreender sobre o tema.

O segundo elemento da interação consiste no feedback – em

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particular do tutor online, mas também dos formandos-professores - sobre os contributos dados por cada participante. Para além de atitudes de encorajamento que contribuem para motivar os formandos, é também importante um pronto feedback às atividades de aprendizagem para promover a construção do conhecimento pelo formando, em tarefas que incitem o pensamento crítico (Peres e Pimenta, 2011). O feedback vale, em primeiro lugar, por representar o reconhecimento não só do valor do contributo em que incide - “A interação nos Fóruns permite criar temas e o professor faz muitos comentários, o que é bom” (formando 12) -, mas também da pessoa que o redigiu. Depois, o feedback vale também pela confirmação dos pontos de vista próprios - “Gostei do trabalho do resumo da nossa participação no fórum. O professor faz comentários às nossas contribuições, há realmente interação” (formando 7) -, ou pela reorientação que ajuda a pensar melhor -“Caro Prof., Agradecida pela crítica construtiva sobre o meu trabalho” (formando 12).

O terceiro elemento da interação incide no que faz o autor do contributo que recebeu o feedback. Destacamos as reações em que o feedback recebido é explicitamente utilizado para ampliar a análise, elaborar sugestões, antecipar ou mesmo anunciar a intenção de levar à prática as ideias recebidas. Esta operacionalização tanto pode ser ensaiada no contexto do próprio debate na formação, como pode projetar-se para fora do espaço formativo académico. Exemplo: “Caro Professor, Achei excelente a sua sugestão. Penso que desta forma será possível ultrapassar certas dificuldades e quem sabe motivar o aluno.” (formando 7).

O quarto elemento da interação que observámos ocorre fora do espaço formativo académico, no local de trabalho, isto é, em escolas das Ilhas de S. Vicente, do Sal e de Santiago onde os formandos-professores lecionam, na intervenção educativa junto de famílias de alunos. Exemplo: “Existe interacção com as três colegas com as quais trabalhamos juntas. Às vezes telefono-lhes para trocarmos ideias” (formando 12).

O quinto elemento da interação consiste no feedback que os mesmos formandos-professores trazem ao fórum de debate académico, ao partilharem as suas apreciações dos resultados da experiência de operacionalização das sugestões que decidiram pôr em prática.

O sexto elemento da interação traduz a influência da sequência das interações anteriores: os formandos-professores que ensaiaram a operacionalização oferecem, a todos os participantes, um material

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formativo que é único por três motivos: pelas peculiaridades da experiência vivida, pelo facto de a experiência ter sido concetualmente preparada e, finalmente, por fechar um ciclo de reflexão partilhada e enquadrada num conjunto de referências concetuais e de experiência.

Padrão B de encadeamento de interações

Os três primeiros elementos da interação são idênticos aos do Padrão A. O elemento 4 de interação que observámos no Padrão B consiste na interação entre colegas que trabalham no mesmo local de trabalho para refletirem sobre as leituras realizadas e os temas e prepararem os próximos contributos ao debate no fórum. Portanto, o Padrão B de interação está explicitamente relacionado com as tarefas de aprendizagem académica online, embora se realize num espaço presencial e profissional. Exemplo: “Existe interacção com as três colegas com as quais trabalhamos juntas. Às vezes telefono-lhes para trocarmos ideias” (formando 12). Na figura seguinte está representada a sequência das interações analisadas no quadro concetual da interatividade.

Figura 1. Interatividade e interações no processo formativo.

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O processo de reflexão e de (re)construção conjunta de conhecimento inicia-se no ambiente virtual de discussão assíncrona escrita, desloca-se para o contexto profissional a partir da iniciativa dos formandos-professores, e volta ao ambiente virtual para analisar experiências à luz das referências concetuais mediadas pelo tutor online no fórum virtual. Trata-se, pois, de sequências de interações entre os formandos, o conteúdo de aprendizagem e o formador online, que são incentivadas pelo tutor online e que se podem multiplicar e expandir noutros contextos.

4. Discussão e conclusões

Os resultados do estudo ainda em curso sobre formação pedagógica complementar da licenciatura apontam para a mais-valia de três elementos interrelacionados das práticas de um ensino transformador. O primeiro é a atuação do tutor online como mediador e orientador do processo de construção de conhecimento que é necessário para fazer aprendizagens profundas. O segundo elemento, naturalmente relacionado com o anterior, é o desenho das tarefas de aprendizagem, o que inclui não só a definição do produto final mas também, e não menos importante, a forma colaborativa, reflexiva e construtiva de as realizar numa perspetiva de aprendizagem baseada em projetos. O terceiro elemento refere-se ao desenho tecno-pedagógico do curso, à conceção construtivista, cultural, situada e colaborativa do ensino e da aprendizagem que deve estruturar a atuação dos participantes para aprender melhor e mobilizar o aprendido no contexto profissional. Em síntese, a discussão assíncrona e colaborativa no ambiente virtual, mediada e apoiada por referências concetuais estruturadas, por um lado, e as tarefas orientadas para propostas de intervenção, por outro lado, oferecem boas potencialidades para o aperfeiçoamento da colaboração entre a formação universitária e a colaboração com processos de melhoria das práticas de ensino nas escolas de Cabo Verde.

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A Globalização: duas dimensões de uma complexidade histórica

Olena Kovtun, Ph.D.

Universidade de Cabo Verde

[email protected]

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A Globalização: duas dimensões de uma complexidade histórica Olena Kovtun

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Resumo

O ensaio discute a lógica da organização e da promoção de diversos organismos de Globalização, particularmente, a actuação dos agentes económicos nas suas relações em diferentes ambientes (não) democráticos entre o Estado, o mercado e a comunidade. Neste sentido, procuramos fazer uma articulação entre a abordagem histórico-conceptual, sobre estruturas complexas e relacionais, no caso do terceiro sector, e a abordagem estratégica relacional, no exemplo do capitalismo informático.

Palavras-chave: globalização; democracia; hegemonia.

1. As estruturas dominantes e os seus intermédios “solidários”

Ao longo das últimas décadas, assistimos a uma transição entre a ordem dominante de produção, que foi o período do fordismo, para a ordem de produção da dominação, que corresponde ao período recente (pós-fordismo). Nesta transição, emergiram os processos que envolveram os mecanismos para abastecer a “liderança política, intelectual e moral” em e entre as organizações diferentes e em diversas instituições da sociedade civil. Tais mecanismos asseguraram que esta liderança fosse articulada com a ordem de produção aparentemente autónoma. A interdependência era extremamente importante, pois ajudava a entender a forma e a introduzir os conteúdos específicos da dominação nessas relações, por um lado estruturais, por outro, processuais. (Ngai-Ling Sum, 2003; Jessob, 2007; Sílvia Ferreira, 2009).

A invenção de um sector “que emerge da conjugação histórica de relações e eventos que moldam as possibilidades de uma determinada observação do sector ter ressonância em determinadas estruturas sociais”, embora, por um lado, tenha surgido, simultaneamente, em diferentes países, tomou, por outro, sentidos diferentes em cada um deles, “implicando observações divergentes de país para país e até no mesmo país” (Ferreira, 2009, p. 172).

Por sua vez, Ngai-Ling Sum desdobra a ideia da promoção e da expansão das Infra-estruturas Globais de Informação (GII) baseadas na criação das condições materiais para incorporá-las numa rede complexa e

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“emaranhada de diferentes escalas de actuação do local ao global” (Sum, 2003).

A emergência de um sector com particularidades de solidariedade surge na altura em que as transformações sociais eliminam as fronteiras entre público e privado e na mesma altura em que o poder hegemónico aproveita os fracassos e os problemas económicos e financeiros dos diversos Estados, como, por exemplo, a estagnação do Japão ou a crise financeira da Ásia, para sobreviver e ganhar força a fim de manter a sua hegemonia (Ngai-Ling Sum, 2003; 2004). Em conformidade com a “lei da sobrevivência”, este facto sustenta a ideia de que, quando as sociedades sobrevivem às dificuldades económicas, parecem estar mais abertas às promoções da economia solidária, mas também são mais frágeis quanto às influências dominantes.

A relação processual dominante que caracteriza um determinado período histórico surge como fonte de um complexo hegemónico (GII-IPR-TRIPs) apoiado pelo capital transnacional informático e pelas comissões do comércio e do Estado (Ngai-Ling Sum, 2003). O funcionamento desse complexo e o exercício do seu poder dominante exigem a presença de um actor com capacidades de saber transmitir, traduzir e articular, repetidamente, este poder em rede das identidades governamentais, políticas, comerciais, culturais e outras (Foucault, 1992). Este actor, que Ngai-Ling Sum (2003) chama “intelectual orgânico”, ajuda a organizar a linguagem e o discurso da articulação socializante. Mas, para que ele possa exercer esta função, tem que ser o sabedor da realidade de cada uma das identidades referentes, por isso, tem que estar presente e omnipresente em cada uma delas, seja no Estado, no mercado ou na sociedade civil.

As funções do sector a que se refere Sílvia Ferreira (2009) coincidem com as funções do “intelectual orgânico” de Ngai-Ling Sum (2003). E, corroborando a abordagem desta autora sobre a economia olítica cultural internacional, subtraímos a ideia de que “o poder é imanente e relacional” (Sum, 2003) e, depreende-se de “técnicas específicas de disciplina e regimes de verdade” (Foucault, 1992), ou seja, funciona a partir de “articulações específicas de poder e de conhecimento” ( Ferreira, 2009).

Assim, no caso do terceiro sector, a autora defende a importância dos discursos que se enquadram numa perspectiva de “pluralismo de bem-estar” social e na (re)emergência da economia social em vários países ao

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mesmo tempo e os discursos político-sociais direccionados para promover uma identidade “baseada no estatuto legal das organizações não lucrativas, mas que justifiquem a existência de um sector que responda aos fracassos do mercado e do Estado” (Sílvia Ferreira, 2009) (Q.1).

Numa outra perspectiva, contrária a essa, Ngai-Ling Sum abre a discussão sobre os discursos políticos, relacionados com dois componentes principais da estratégia para a renovação da hegemonia dos EUA, tais como: a promoção da GII sob a direcção da administração do governo e a expansão dos DPI

para o comércio mundial através do acordo TRIPs. De tal modo, um dos primeiros projectos administrativos destinava-se a criar as condições materiais essenciais ao surgimento de uma rede de “auto-estradas da informação” que é GII (Ngai-Ling Sum, 2003).

Quadro.I. As recomendações para promoção e suporte

Do terceiro sector

( Centris Report, Deakin report, et.al. )

♦ Promover o conjunto de iniciativas que fa-zem parte da acção voluntária, autêntica, profética, guiada por uma visão reformista e organizadas através de empresas não lucrativas, conformadas com os critérios de igualdade de oportunidades;

♦ retirar o apoio financeiro governamental e manter independente a acção voluntária para generalizar a relação entre o Estado e as empresas nas actividades financiadas publicamente;

♦ defender a heterogeneidade no interior do sector e dentro das organizações de for-ma a evitar o dualismo;

♦ integrar o modelo de desenvolvimento económico e social baseado na separação entre o Estado e o mercado;

♦ inserir o contributo do sector nas contas nacionais, com os sectores público e pri-vado lucrativo lado a lado.

(Ngai-Ling Sum, 2003; Sílvia Ferreira, 2009)

De GII

(Ministerial Conferencial in Brussels, G7)

♦ Promover a adesão do mercado e estimular livre circulação de produ-tos e serviços;

♦ depender do sector privado o pro-cesso de normas voluntárias inter-nacionais e as tecnologias proprie-tárias das normas em vez da regu-lação estatal;

♦ aplicar o acordo GATT-TRIPs e a sua posterior encarnação em regime de acordo WTO-TRIPs, para promover que os provedores de conteúdo façam pleno uso do GII com a ga-rantia de que os seus direitos de propriedade intelectual serão pro-tegidos;

♦ criar um ambiente regulamentar flexível que possa acompanhar as rápidas mudanças tecnológicas e de mercado.

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Assim, na década de noventa, coincidirem ao mesmo tempo:

• a institucionalização e globalização do terceiro sector “ através de um acréscimo significativo de pesquisa e de publicações, de lançamento de centros de pesquisa e de revistas, de criação das associações nacionais e internacionais de investigadores” (Sílvia Ferreira, 2009);

• a acumulação dos esforços de DPI para manter a hegemonia económica dos EUA, em face ao desafio mais competitivo de um ressurgimento da Economia Europeia, através dos meios de comunicação, decisões políticas e envolvimento dos membros da comunidade empresarial (Ngai-Ling Sum, 2003).

Nestes desenvolvimentos simultâneos revela-se a importância da dialéctica das redes específicas de agentes discursivos e materiais em ligação entre as cadeias e no modo como essas cadeias específicas ofereceram as possibilidades para as diferentes formas de articulação intercontextual (Jessob, 2007).

2. O contexto orgânico dos discursos (não)dominantes

No emergente capitalismo dos sistemas de comunicação e de informação tem vindo a aumentar a importância e a visibilidade dos diversos aspectos económicos, tecnológicos, jurídico-políticos e ideológicos, relacionados com este processo complexo. As circunstâncias desse processo apontam para a presença dos actores capazes de formar e promover o seu capital intelectual e os seus quadros através de interacções em redes na produção de riqueza e de bem-estar social. Contudo, estes processos exigem, dos actores, a definição de prioridades estratégicas e tácticas específicas para poderem moldar e estabelecer os seus espaços complexos dominantes e competitivos.

Corroborando a teoria da hegemonia de Gramsci, Ngai-Ling Sum (2004) afirma que esta dimensão é bastante permissiva, pois pressupõe as modalidades e os aparelhos de exploração específicos. As identidades sociais específicas representam-se como sujeitos de poder diferente

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para o alcance dos seus interesses materiais: “ ela não está interessada em desenvolver uma conta transhistórica do poder, mas está antes, principalmente, preocupada com a natureza do poder nas formações sociais capitalistas modernas, onde a política de massas se desenvolve” (Ngai-Ling Sum, 2004).

De tal modo, a hegemonia e a solidariedade ou o poder e o conhecimento são duas modalidades da época da Globalização neo-liberal, pois o saber organiza o mercado privilegiado e a competitividade dos discursos que “sustentam ou reinventam os códigos hegemónicos e filtram as ideias e discursos que se opõem ou enfraquecem esses códigos” (idem).

Nos projectos políticos, os instrumentos utilizados (governamentais, comerciais, etc.) fazem o papel de vanguarda e traduzem as regras e os princípios de relacionamento, reescrevendo a história do direito de propriedade (industrial ou intelectual) entre diferentes quadros de actuação, sejam os documentos assinados entre o governo e o sector do comércio, associação ou tratados internacionais ou acordos bilaterais e acções unilaterais (Sum, 2003; Ferreira, 2009).

Observa-se, então, que as categorias relacionais são construídas através de um conjunto de relações que se estabelecem entre os diferentes modos de organização das relações sociais: Estado, Mercado e Comunidade (Q.II.). As interpretações de diferentes observações de saber e de poder devem ter em conta “as configurações específicas da relação Estado/mercado/comunidade/sociedade civil, bem como diferentes tradições e projectos políticos acerca destas tradições” (Ferreira, 2009:180).

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Quadro 2. O fluxo “solidário” entre o Estado, Mercado e a Comunidade

(Fonte: Sum, 2004; Ferreira, 2009)

Entretanto Ngai-Ling Sum defende que os segmentos da dominação (organizações e instituições internacionais e de Estados) participam, co-constituem, negoceiam, traduzem e moldam o bom senso e a vontade colectiva a partir do senso comum para uma maior divulgação pública e de consumo (Ngai-Ling Sum, 2004).

A harmonização do interesse público com o interesse da elite alcança-se e transmite-se em funcionamento encadeado através de canais

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de transmissão (grande media global, regional e nacional), particularmente, as secções de negócios, notícias/comentários da TV e rádio, especialistas de entrevista, filmes, livros, relatórios, páginas Web, bem como gráficos, códigos e índices. Os intelectuais orgânicos juntam-se na produção e distribuição de quadros dominantes (por ex.: “o comércio como um motor para a democracia”, e “criam um limite de escolhas para a resposta do público a partir do qual este, forma, então, uma opinião” (id., ib).

As formas de interpretação do conhecido (por ex.: as tecnologias disciplinares; a subjectivização; os regimes de notação e documentação; as tecnologias de controlo; metáforas categoriais, etc.) no ver de Ngai-Ling Sum (Sum corrab. Foucault, 2003), ajudam a disciplinar o “outro” e o “eu” por meio do enquadramento das questões e da imposição das regras de conduta. Estes processos de formação do objecto e construção do conhecimento (saber) sobre os objectos ajudam a redefinir actores, identidades, subjectividades e desejos (por ex.: parcerias racionais; investidores económicos; corporações éticas; consumidores satisfeitos, etc.). Os actores e as identidades, aqueles que ocupam as posições privilegiadas (intelectuais orgânicos) constroem e organizam a linguagem e o discurso através da sua socialização dominante. A autora acentua a importância de ter em conta “o papel das redes específicas de agentes em ligação de géneros, bem como as regras de géneros específicos e as possibilidades que eles oferecem para as diferentes formas de articulação interdisciplinar” (Ngai-Ling Sum, 2003).

Na perspectiva de Mazurkiewicz (2008), as interacções interpessoais são “fases moleculares” que, nas interacções com os ambientes técnicos e biológicos, se apresentam como fontes de informação e de competição. Estas fontes, no ver do autor, podem ser tratadas como parte de sedução nos processos históricos: económicos, jurídico-políticos, científicos da formação da sociedade disciplinar. Neste sentido, as novas técnicas de sujeição actuam na parte de trás de inúmeras fases moleculares, repetindo sempre o número das suas interacções e combinações até que obtenham um certo nível da homogeneidade, a tal “verdade” colectiva pública (Foucault, 1992; Sum, 2004).

Michel Foucault compara o pequeno continuum331 temporal 1 Tendo em consideração o exercício simultâneo de poder e de saber ou a dominação e o conhecimen-to, Foucault (1977) empregá-lo como técnica, pela qual as autoridades impõem aos corpos tarefas ao mesmo tempo repetitivas e diferentes, mas sempre graduadas, realizando, esta maneira, na forma de “continuidade e de coerção, um crescimento, uma observação, uma qualificação do sujeito”.

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da individualidade da génese com a individualidade da célula ou a individualidade do organismo que produz, ao mesmo tempo, um efeito e um objecto da disciplina (Foucault, 1977:145). De tal modo, os diferentes actores institucionais da sociedade civil criam as representações selectivas em redes sociais e, baseando-se nelas, podem moldar a vontade colectiva popular e levar ao poderou à formação disciplinar dominante (Jessob, 2007; Sílvia Ferreira, 2009).

3. A economia social e a hegemonia: uma observação empírica

À medida que evoluem e promovem os seus conhecimentos e estabelecem as suas forças − a solidariedade, por um lado, e a hegemonia, por outro−, estas duas dimensões complexas da Globalização têm sido observadas por investigadores de diversas áreas do conhecimento (Cox, 1987; Rose, 1999; Ngai-Ling Sum, 2003; 2004; Sílvia Ferreira, 200).

Quanto ao sector não lucrativo, as argumentações da pesquisa apontam para um conceito que se centra demasiado nos aspectos económicos e organizacionais, ao contrário das argumentações do conceito de sociedade civil, que revelam mais o seu lado político e cultural (Sílvia Ferreira, 2009, p. 178). Contudo, apesar de estarem em desacordo sobre as organizações que este sector incluí, os investigadores medem a solidariedade em termos da sua importância no emprego e na produção de serviços, pois o seu principal objectivo é a combinação das actividades produtivas com actividades de cunho social e educativo, centradas umas e outras nos valores de solidarismo e de reciprocidade.

Por outro lado, as observações empíricas sustentam que as infra-estruturas globais de informação (GII), através da extensão de acordos e da sua consolidação dominante (GII-IPR-TRIPs), ajudam aos EUA reforçar a sua hegemonia económica, utilizando os discursos ideológicos dominantes e o poder material.

As competências empresariais usadas como influências dominantes são, com efeito, os aspectos significativos para a investigação em termos de cultura política internacional económica. Neste caso, as investigações desenvolvem-se em torno de copyright story, para poderem analisar as estatísticas quanto às estratégias e as tácticas das forças contra as

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hegemonias (pirataria, “copyright enemy”, etc.). De tal maneira, colaboram com agenda política emergente na realização dos seus objectivos principais que são: “a ampliação e o aprofundamento dos direitos de propriedade industrial e intelectual, incluindo informação digital dos bens e serviços, bem como a facilitação da extensão do regime da propriedade através dos meios técnicos (específicos de GII) e das medidas jurídicas (específicas de TRIPs-WTO342)” (Ngai-Ling Sum, 2003:376).

Conclusão

A Globalização e os seus organismos com os princípios democráticos promovem a criação de relações específicas de igualdade e de razão do senso comum entre as identidades do Estado, do mercado e da comunidade (Sílvia Ferreira, 2009). O capitalismo, em particular, o presente capitalismo da informação permite que co-existam diversas formas de governação, até ao ponto em que ele é constituído promotor de solidariedade, por um lado, e criador de hegemonia económica, por outro. De onde vem esta afirmação?

Segundo observa Anthony Giddens (2012), a globalização, que está por detrás da expansão das estruturas democráticas, “é dirigida pelo Ocidente e está profundamente marcada pelo poderio político e económico dos Estados Unidos da América, arrastando a consequências muito desiguais”. O autor sustenta que a globalização veio reestruturar a vida das sociedades no mundo inteiro, no sentido da transformação de modos de viver, por meio de adaptação e de ajuste de diferentes maneiras de pensar dentro duma complexidade cultural, tão louvada pelos cosmopolitas (Giddens, 2012).

Neste ensaio, procurou-se reflectir sobre dois exemplos concretos e, verificar de que maneira os discursos ideológicos e práticas normalizadoras influenciam na moldura das selectividades estruturais dominantes e se evidenciam nas estratégias dos actores.

No caso do terceiro sector, concluiu-se que veio e se inventou através das estratégias e tácticas fundadas nos princípios democráticos. Quanto às recomendações para promoção e suporte, elas estão baseadas 2 WTO- World Trade Organizatoin.

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nos princípios da democracia, na capacidade para acção voluntária, na defesa de heterogeneidade no interior do sector e na integração do desenvolvimento económico e social em conjunto com os sectores público e privado.

Por outro lado, as recomendações para o suporte de GII baseiam-se nos critérios de estimulação, na dependência financeira do sector privado, no pleno uso de acordos assinados com as garantias de protecção de DPI, criando, de tal maneira, os ambientes regulamentares flexíveis que possam acompanhar as rápidas mudanças não só tecnológicas como também de mercado.

Este facto sustenta a ideia de que em dois casos têm sido usados diferentes instrumentos para a promoção e suporte, designadamente: no caso do terceiro sector, tudo indica que as organizações envolvidas estão interessadas na criação e utilização dos novos modelos de desenvolvimento e implementação da democracia nas suas relações com os Estados, mercados e as comunidades; ao contrário, no caso de infra-estruturas globais informáticas (GII), onde as estratégias e tácticas usadas pareceram ser equipadas pela hegemonia política, mas sob a forma de mistificação e ocultação de dominação social, esta última é realizada por meio da utilização de diferentes modos de governação e de coordenação que produzem os discursos e as práticas e depois, estas, por sua vez, moldam as estratégias dos actores sociais e políticos.

No sentido epistemológico, as duas abordagens apresentam uma análise teórica importante sobre o papel e a importância das estratégias e das tácticas relacionais na construção dos sistemas complexos e na observação dos processos de relações dentro e fora dos espaços geográficos e níveis económicos diferentes.

Nestes dois exemplos, pode-se observar como as estruturas complexas da ordem capitalista de produção da hegemonia apoiam e limitam as contradições inerentes a esta produção através das suas coerções estruturadas.

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Abreviaturas do Quadro 2

OIT – Organização Internacional do Trabalho;

OTC – Organização dos Trabalhadores Científicos, é uma organização sem fins lucrativos e dirige-se a todas as pessoas profissionalmente envolvidas em actividades de I&D;

OCDE – A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Económico;

CIVICUS – Aliança Mundial para Participação Cidadã, é uma organização internacional com sede na África do Sul, fundada em 1993;

CIRIEC – Centre International de Recherchers et d´Information sur l´Economie Publique, Sociale at Coopérative;

INCPO – International Classification of Non-profit Organizations.

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Referências bibliográficas

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FERREIRA, S. (2009). A invenção estratégica do terceiro sector como estrutura de observação mútua: Uma abordagem histórico-conceptual, Revista Crítica das Ciências Sociais, pp. 84,169-194.

FOUCAULT, M. (1992). Microfísica do Poder. Edições GRAAL, Ltda., p. 295.

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GIDDENS, A. (2012). O mundo na era da Globalização. Tradução de Saul Barata. Editorial Presença, p. 89.

JESSOB, B. (2007). The Development of the Strategic-relational Approach, in State Power: A strategic relational approach, Cambridge: Polity, pp.21-53.

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ANEXOS

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Regulamento da Cátedra Amílcar Cabral ANEXO

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REGULAMENTO DA CÁTEDRA AMÍLCAR CABRAL

Artigo 1º

(Instituição)

É instituída, por tempo indeterminado, na Universidade de Cabo Verde, a Cátedra Amílcar Cabral.

Artigo 2º

(Natureza)

A Cátedra Amílcar Cabral é um espaço académico com natureza de centro de investigação e extensão de carácter trans, pluri e interdisciplinar que, em estreita colaboração e sintonia com outras estruturas académicas da Uni-CV, promove a investigação, a formação e a extensão do conhecimento, em matéria de cultura, em geral, bem como o resgate e a promoção da história e do património cabo-verdianos, em particular, e, ainda, do pensamento e da obra Amílcar Cabral, designadamente como humanista, homem de cultura, político e dirigente de libertação nacional, diplomata e agrónomo.

Artigo 3º

(Identificação)

A Cátedra Amílcar Cabral é identificada pelo seu nome em extenso e pela sigla CAC-CV, representados graficamente por um logótipo original próprio, aprovado pelo Conselho da Universidade.

Artigo 4º

(Fundamentos)

1. A CAC-CV, enquanto projecto universitário, dará particular atenção à investigação científica e à difusão do conhecimento e da cultura, designadamente através da formação e valorização dos recursos

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Regulamento da Cátedra Amílcar CabralRevista Desafios

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humanos e da extensão.

2. A Cátedra Amílcar Cabral cultiva, defende e promove os valores do humanismo e fomenta o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, a promoção da cultura e das artes, tendo em vista o desenvolvimento harmonioso e sustentável.

3. A CAC-CV assume o desafio de promover, a par da cultura universal, as virtualidades da cultura endógena e humanística, no quadro de um projecto académico e cultural voltado para a formação integral e a valorização dos recursos humanos, bem como para a defesa, a afirmação e a divulgação do património histórico e sociocultural de Cabo Verde.

Artigo 5º

(Objectivos)

1. A Cátedra Amílcar Cabral é um espaço aberto destinado ao debate de ideias, à implementação e divulgação de projectos académicos, e desenvolve as suas actividades nas áreas da cultura, da história, da filosofia e das ciências sociais e humanas e das ciências agrárias e ambientais.

2. A CAC-CV inspira-se no legado e no pensamento do seu Patrono e prossegue os seguintes objectivos:

a) Promover a formação e a investigação cultural, técnica e científica;

b) Estimular o conhecimento, a valorização e a preservação da cultura nacional, em todas as suas formas de expressão e de manifestação;

c) Promover o respeito pela diversidade cultural, a interculturalidade e o diálogo de culturas, a nível nacional e internacional;

d) Estimular a criação individual e colectiva e colaborar com as instituições de vocação cultural na valorização, dinamização, divulgação e preservação do património cultural;

e) Promover o conhecimento e a assimilação crítica dos valores culturais em África e no mundo;

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Regulamento da Cátedra Amílcar Cabral ANEXO

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f) Desenvolver a pesquisa, o magistério e a comunicação da cultura nacional e universal;

g) Fomentar a pesquisa académica, promover e organizar eventos culturais, quais sejam: colóquios, conferências e seminários sobre temas diversos, nas áreas cobertas pela Cátedra;

h) Identificar e participar nas redes e as rotas de investigação, de ensino, de conhecimento, de enriquecimento, de difusão e de preservação do legado histórico e filosófico de Amílcar Cabral;

i) Promover a cooperação com outras unidades funcionais e centros de investigação da Uni-CV e/ou com outras instituições afins;

j) Aprovar e apoiar projectos de investigação científica;

k) Promover a divulgação do conhecimento científico, através de sites especializados e do apoio à edição;

l) Promover a prestação de serviços científicos e técnicos especializados, e de consultoria.

Artigo 6º

(Liberdade de iniciativa)

Na prossecução da sua missão e objectivos, a Cátedra Amílcar Cabral goza de liberdade de iniciativa na programação e execução das suas actividades e projectos de investigação, bem como na prestação de serviços à comunidade, sem prejuízo dos Estatutos e do Regulamento Orgânico da Uni-CV, do presente regulamento e demais normas e directivas superiormente definidas pelos órgãos de gestão da Uni-CV.

Artigo 7°

(Sede)

A Cátedra Amílcar Cabral está sedeada na cidade da Praia, podendo criar

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Regulamento da Cátedra Amílcar CabralRevista Desafios

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delegações e outras formas de representação no território nacional ou no estrangeiro, mediante autorização do Reitor.

Artigo 8º

(Linhas de investigação)

1. As linhas de investigação da CAC-CV concretizam a política de investigação da Uni-CV segundo grandes áreas do conhecimento e da produção científica, através de objectivos de longo prazo que presidem à organização e à execução dos projectos de investigação neles inscritos.

2. Para uma ou mais Linhas de Investigação é designado, nos termos deste regulamento, um Coordenador, ao qual incumbe, designadamente, promover a planificação, coordenação e dinamização do programa de investigação e participar na avaliação dos projectos inscritos na respectiva linha de investigação.

Artigo 9º

(Projectos de investigação)

1. Para efeitos de organização e coordenação das actividades de investigação, bem como da sua avaliação e do seu financiamento interno, cada linha de investigação organiza-se em projectos de investigação nela inscritos e aprovados.

2. Os Projectos de Investigação da CAC-CV são instrumentos de investigação científica sobre questões específicas, de natureza disciplinar ou interdisciplinar, através de objectivos bem definidos, de duração limitada e de execução programada no tempo.

3. Os projectos de investigação correspondem a domínios relevantes dentro das linhas

de investigação e são coordenados por um investigador doutorado da Cátedra;

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Regulamento da Cátedra Amílcar Cabral ANEXO

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4. Os projectos da CAC-CV devem ser aprovados pelo Conselho Directivo, nos termos

do presente Regulamento.

5. Para efeitos de avaliação, findo o período previsto de execução do projecto de investigação, o investigador coordenador do projecto terá que apresentar ao Conselho Directivo o respectivo relatório científico.

6. Os projectos de investigação podem associar subprojectos que dão corpo ao projecto e o operacionalizam, em número a fixar pelo Conselho Directivo.

7. A cada projecto ou subprojecto é afecto um grupo de investigadores, em número variável, com os respectivos coordenadores, aos quais incumbe a coordenação geral, a afectação de recursos internos disponibilizados pelo Centro e a apresentação de relatórios globais de avaliação.

Artigo 10135º

(Membros)

1. Podem ser membros da CAC-CV docentes e investigadores de ensino superior e personalidades de reconhecido mérito e experiência que dêem garantias de contribuir para o cumprimento da missão e dos objectivos da Cátedra.

2. Sem prejuízo do disposto no número anterior, são membros da CAC-CV:

a) Os membros fundadores, constantes de lista anexa ao presente regulamento;

1 As alíneas a-e do número 2 deste artigo viriam a ser revistas pela Deliberação do CONSU nº 010/2013, de 7 de Junho, passando a ter a seguinte redacção: “a)Os membros fundadores, constantes de lista anexa ao presente regulamento; b) Docentes ou investigadores admitidos pelo Conselho de Direcção da Cátedra; c)Docentes e investigadores de cada área científica, designados pelo respectivo Conselho Cientifico, preferencialmente, de entre doutores pertencentes ao quadro da Uni-CV; d) Personalidades de reconhecido mérito científico, técnico e cultural, bem como por individualidades que se têm destacado na prossecução dos ideais de Amílcar Cabral, admitidos pelo Conselho de Direcção, por proposta da Fundação Amí/car Cabral; e)Personalidades de reconhecida idoneidade cientifica, técnica ou profissional, designados pelo Reitor, ouvido os departamentos governamentais responsável pelas áreas da educação, cultura, ciência, agronomia e ambiente”.

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Regulamento da Cátedra Amílcar CabralRevista Desafios

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b)Docentes ou investigadores de cada área científica, designados pelo respectivo Conselho Científico, preferencialmente, de entre doutores pertencentes ao quadro da Uni-CV;

c) Personalidades de reconhecido mérito científico, técnico e cultural, bem como por individualidades que se têm destacado na prossecução dos ideais de Amílcar Cabral, admitidos pelo Conselho de Direcção, por proposta da Fundação Amílcar Cabral;

d)Personalidades de reconhecida idoneidade científica, técnica ou profissional, designados pelo Reitor, ouvido os departamentos governamentais responsável pelas áreas da educação, cultura, ciência, agronomia e ambiente.

3. Por deliberação do Conselho Directivo, e precedendo parecer favorável do Conselho Consultivo, podem ser admitidos como membros associados, investigadores de outras instituições, nacionais ou estrangeiras.

Artigo 11º

(Deveres e direitos dos membros)

1. Constituem deveres dos membros da CAC-CV:

a) Observar as disposições do presente regulamento e demais normas aplicáveis ao Centro;

b) Contribuir para a realização dos objectivos da CAC-CV, participando activamente nas suas actividades;

c) Promover a edição e difusão dos seus trabalhos, designadamente em revistas, livros e outras publicações da Cátedra.

2. São direitos dos membros:

a) Participar nas actividades da CAC-CV;

b) Ser integrado numa das linhas de investigação da CAC-CV e, nesse quadro, participar nos seus projectos e actividades;

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Regulamento da Cátedra Amílcar Cabral ANEXO

325

c) Utilizar os serviços da Cátedra, nos termos regulamentares;

d) Integrar os órgãos da Cátedra, nos termos regulamentares.

3.Os membros da CAC-CV têm ainda o direito de comparticipar nas receitas provenientes das actividades de prestação de serviços, que realizarem no quadro da Cátedra, cumulativamente com a sua ocupação profissional principal, nos termos previstos na lei e nos regulamentos da Uni-CV.

4. Os membros referidos no número 3 do artigo 9º, quando em exercício efectivo de funções no âmbito da CAC-CV, têm os direitos e os deveres constantes do presente regulamento, salvo o direito a que se refere a alínea d) do nº 2.

Artigo 12º

(Perda da qualidade de membro)

1.Perdem a qualidade de membros da CAC-CV:

a) Os que apresentem por escrito a sua demissão ao Conselho Directivo;

b) Os que forem exonerados por deliberação do Conselho Directivo, fundamentada e aprovada por dois terços dos seus membros;

2.Constituem motivos justificativos da exoneração de um membro da CAC-CV:

a) O reiterado desrespeito dos deveres do membro da CAC-CV ou o não cumprimento culposo das deliberações legalmente tomadas pelos órgãos da CAC-CV;

b) A prática de actos que contribuam para o desprestígio, descrédito ou sejam lesivos para a CAC-CV.

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Regulamento da Cátedra Amílcar CabralRevista Desafios

326

Artigo 13º

(Órgãos)

1. São órgãos de gestão da CAC-CV:

a) O Conselho Directivo;

b) O Conselho Consultivo.

2. Desde que tenha um número de membros superior a 25 membros, a Cátedra terá, obrigatoriamente, uma Assembleia-Geral, órgão deliberativo constituído por todos os membros da CAC-CV, com competência para deliberar sobre os assuntos mais relevantes da vida da Cátedra, designadamente:

a) Planos de Actividades anuais ou plurianuais;

b) Relatório anual de gestão e contas;

c) Alteração do regulamento da CAC-CV;

d) Definição da Agenda de Investigação da Cátedra;

e) Ratificação da admissão de novos membros;

f) Aprovação de regulamentos internos em desenvolvimento do presente regulamento e com a observância dos normativos de hierarquia superior;

g) O mais que lhe for submetido pelo Conselho Directivo.

3. O mandato dos órgãos referidos nos números anteriores é de três anos, renováveis.

Artigo 14º

(Composição e competência do Conselho Directivo)

1. Constituem o Conselho Directivo:

a) O Director;

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Regulamento da Cátedra Amílcar Cabral ANEXO

327

b) Os Coordenadores das linhas de investigação da Cátedra;

c) Dois Vogais.

2. Os membros do Conselho Directivo são designados nos termos seguintes:

a) O Director é designado, de entre os membros da Cátedra, pelo Reitor, ouvido o Conselho Científico de cada área do conhecimento;

b) Os Coordenadores das linhas de investigação são designados pelo Reitor, por proposta do Director, de entre docentes ou investigadores, preferencialmente doutorados, que sejam membros da CAC-CV;

c) Os Vogais são cooptados pelos membros do Conselho Directivo referidos nas alíneas anteriores, de entre os membros da CAC-CV.

3. Compete ao Conselho Directivo:

a) Assegurar a liderança científica da CAC-CV, nos termos dos Estatutos da Uni-CV e do presente regulamento;

b) Propor ao Conselho da Universidade a aprovação ou reformulação das linhas de investigação, ouvido o Conselho Consultivo;

c) Aprovar projectos e subprojectos de investigação que se enquadrem na sua missão e nas linhas de investigação existentes;

d) Velar pela articulação entre o desenvolvimento das linhas e dos projectos de investigação e as orientações gerais definidas pelo Conselho da Universidade;

e) Pronunciar-se sobre todas as questões que lhe sejam colocadas pelo Director ou pelos órgãos competentes da Uni-CV;

f) Acompanhar e avaliar o desenvolvimento dos projectos de investigação em curso;

g) Apresentar ao Reitor propostas de celebração de protocolos com instituições similares e/ou entidades prestadoras de serviços, no âmbito das atribuições da Cátedra;

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Regulamento da Cátedra Amílcar CabralRevista Desafios

328

a) Assegurar a gestão corrente da Cátedra, assegurando a correcta afectação dos recursos humanos e materiais disponíveis aos projectos, de acordo com os princípios definidos pelo Conselho da Universidade e com o plano de actividades e os recursos orçamentais afectos ao Centro;

b) Elaborar os relatórios anuais e plurianuais de actividades da CAC-CV, bem como as propostas de orçamento, submetendo estas últimas à apreciação do Conselho Administrativo da Universidade;

c) Aprovar e submeter ao Conselho da Universidade a proposta de logótipo da CAC-CV;

d) Submeter ao Conselho da Universidade a proposta de alteração ao presente regulamento;

e) Elaborar os regulamentos internos necessários ao bom funcionamento da Cátedra e submetê-los à aprovação do Conselho da Universidade;

f) Coordenar todas as acções relacionadas com processos de avaliação externa da CAC-CV;

g) Zelar pela boa conservação e manutenção das instalações e equipamentos e outros bens afectos ao CAC-CV;

h) Garantir uma conveniente divulgação das iniciativas da CAC-CV;

i) Admitir Membros, nos termos do presente regulamento.

Artigo 15º

(Director)

1. O Conselho Directivo é presidido pelo Director da CAC-CV, ao qual compete, em geral, dirigir, orientar e coordenar as actividades da CAC-CV e, em especial:

a) Representar a CAC-CV;

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Regulamento da Cátedra Amílcar Cabral ANEXO

329

b) Presidir às reuniões e actividades do Conselho Directivo;

c) Gerir e coordenar superiormente as actividades da CAC-CV;

d) Assegurar a liderança científica da CAC-CV;

e) Dinamizar as actividades do Conselho Directivo, procedendo, nomeadamente à distribuição de tarefas e à coordenação das actividades dos demais membros do Conselho Directivo;

f) Assegurar a observância das normas legais, estatutárias e regulamentares aplicáveis.

2. O Director é coadjuvado no exercício das suas funções pelos Coordenadores das linhas de investigação e pelos Vogais, nos quais pode delegar competências.

3. O Director é substituído nas suas ausências e impedimentos por um dos Coordenadores das linhas de investigação, que indicar.

Artigo 16º

(Funcionamento do Conselho Directivo)

1. O Conselho Directivo reúne-se, ordinariamente, uma vez por mês e, extraordinariamente, sempre que for convocado pelo Director ou a pedido de 1/3 dos membros em efectividade de funções, os quais devem fazer acompanhar a sua petição das propostas de agenda.

2. Por deliberação do Conselho Directivo, podem ser convidados a tomar parte em reuniões deste órgão, sem direito a voto, individualidades com currículo académico, científico ou profissional relevante nas matérias agendas para discussão.

3. O Conselho Directivo pode funcionar em pelouros, coordenados pelos respectivos membros e integrados por outros membros da CAC-CV.

4. O Conselho Directivo pode ainda criar grupos ou comissões para a realização de tarefas específicas de estudos, investigação e prestação de serviços.

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Regulamento da Cátedra Amílcar CabralRevista Desafios

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Artigo 17º

(Composição e competência do Conselho Consultivo)

1. O Conselho Consultivo é constituído por dez a vinte membros, designados de entre docentes e investigadores detentores do grau de doutoramento ou de mestrado ou personalidades de reconhecido mérito científico, académico ou profissional, pertencentes ou não aos quadros de pessoal da Uni-CV.

2. Os membros do Conselho Consultivo são designados, de entre os membros da CAC-CV, por deliberação do Conselho da Universidade, por proposta do Reitor.

3. Na sua primeira reunião, os membros do conselho Consultivo elegerão, de entre si, o respectivo Coordenador.

4. Compete, em geral, ao Conselho Consultivo contribuir para a definição da politica de investigação e extensão da CAC-CV e, nomeadamente:

a) Pronunciar-se sobre a política científica da CAC-CV;

b) Emitir parecer sobre a criação de linhas, programas e projectos de investigação;

c) Dar parecer sobre os planos de actividade da CAC-CV;

d) Dar parecer sobre a criação ou extinção de comissões ou grupos de trabalho;

e) Pronunciar-se sobre a adesão ou qualquer outra forma de associação da CAC-CV a outras instituições nacionais ou estrangeiras;

f) Emitir parecer sobre a admissão dos membros associados, nos termos do número 3 do artigo 10º;

g) Emitir parecer sobre todos os assuntos que lhe sejam submetidos pelo respectivo Coordenador ou pelo Presidente do Conselho Directivo da CAC-CV.

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Regulamento da Cátedra Amílcar Cabral ANEXO

331

Artigo 18º

(Funcionamento do Conselho Consultivo)

1. O Conselho Consultivo reúne-se ordinariamente, pelo menos duas vezes por ano e, extraordinariamente, sempre que convocado pelo respectivo Coordenador ou a pedido de 1/3 dos membros em efectividade de funções ou do Director da CAC-CV, devendo os pedidos de convocação fazerem-se acompanhar das propostas de agenda.

2. Os responsáveis por linhas ou projectos de investigação da CAC-CV que não forem membros do Conselho Consultivo poderão assistir às reuniões deste, sem direito a voto, a convite do Coordenador.

3. Por deliberação do Conselho Consultivo, podem ainda ser convidados a tomar parte em reuniões deste órgão, sem direito a voto, individualidades com currículo académico, científico ou profissional relevante nas matérias agendas para discussão.

Artigo 19º

(Gestão administrativa e financeira)

A gestão administrativa e financeira da Cátedra é assegurada por seus órgãos internos, sem prejuízo da competência própria dos órgãos e serviços competentes da Universidade.

Artigo 20º

(Financiamento)

Constituem recursos financeiros da CAC-CV:

a) Receitas provenientes de projectos de investigação;

b) Receitas de prestação de serviços;

c) Receitas que lhe sejam atribuídas nos termos dos Estatutos da Universidade e da lei.

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Regulamento da Cátedra Amílcar CabralRevista Desafios

332

Artigo 21º

(Casos omissos)

Todos os casos omissos no presente Regulamento são resolvidos em consonância com os Estatutos e demais regulamentos da Universidade de Cabo Verde e com a legislação em vigor, directa ou subsidiariamente aplicável.

Praia, 19 de Novembro de 2012.

Conselho da Universidade,

______________________________

Paulino Lima Fortes

Reitor

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Protocolo de parceria entre a Universidade de Cabo Verde (Uni-CV) e a Fundação Amilcar Cabral (FAC) ANEXO

333

PROTOCOLO DE PARCERIA ENTRE A UNIVERSIDADE DE CABO VERDE (UNI-CV) E A FUNDAÇÃO AMILCAR CABRAL (FAC)

CONSIDERANDO QUE:

- A Universidade de Cabo Verde tem vindo a mobilizar parcerias tendo em vista a excelência das actividades de ensino, investigação e extensão que desenvolve cujo objectivo é o de consolidar e fortalecer o sistema de ensino, para criar a massa critica indispensável ao processo de desenvolvimento sustentável;

- A preservação da nossa memória histórica constitui um desígnio nacional;

- A Fundação Amílcar Cabral tem como missão preservar a memória de Amílcar Cabral, incentivar a pesquisa e contribuir para a salvaguarda do património cultural;

- Há a vontade no estreitamento de laços e no desenvolvimento de actividades de cooperação conjunta tendo em vista a promoção do legado de Amílcar Cabral;

É celebrado entre a UNIVERSIDADE DE CABO VERDE, com sede na Praça António Lereno, CP. 379, cidade da Praia, representada pelo respectivo Reitor, Prof. Doutor Paulino Lima Fortes, adiante designada como Primeiro Outorgante, e a FUNDAÇÃO AMILCAR CABRAL, com a sede na Praia, representada pelo seu Presidente, Comandante Pedro Verona Rodrigues Pires, adiante designado como Segundo Outorgante, o presente Protocolo de Parceria, o qual se regerá pelas cláusulas seguintes, sem prejuízo da legislação aplicável:

Cláusula 1

Objectivos

O presente Protocolo estabelece as bases gerais de desenvolvimento da cooperação entre a Universidade de Cabo Verde e a Fundação Amílcar Cabral. Os outorgantes concordam como sendo de interesse comum a investigação, a documentação, a formação sobre a vida e obra de Amílcar Cabral.

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Protocolo de parceria entre a Universidade de Cabo Verde (Uni-CV) e a Fundação Amilcar Cabral (FAC)Revista Desafios

334

Cláusula 2

Actividades

Segundo os termos de regulamento de cada uma das partes signatárias e no limite dos recursos possíveis, a parceria consistirá nas seguintes acções:

- Criação de condições que permitam à Cátedra Amílcar Cabral cumprir a missão por que foi criada, nos termos do número 2 do seu Regulamento e que estabelece: A Cátedra Amílcar Cabral é um espaço académico com natureza de centro de investigação e extensão de carácter trans, pluri e interdisciplinar que, em estreita colaboração e sintonia com outras estruturas académicas da Uni-CV, promove a investigação, a formação e a extensão do conhecimento, em matéria de cultura, em geral, bem como o resgate e a promoção da história e do património cabo-verdianos, em particular, e, ainda, do pensamento e da obra Amílcar Cabral, designadamente como humanista, homem de cultura, político e dirigente de libertação nacional, diplomata e agrónomo;

- Comemoração das datas alusivas ao nascimento e morte de Amílcar Cabral;

- Organização de actividades anuais sobre a vida e obra de Amílcar Cabral;

- Organização de actividades académicas e científicas conjunta, tais como conferências, seminários, mesas-redondas ou colóquios;

- Publicações e/ou edições conjuntas de obras de interesse comum;

- Patrocínio conjunto à edição de “Desafios – Revista Científica da Cátedra Amílcar Cabral”.

Cláusula 3

Implementação

Se necessário, os detalhes específicos relativos a uma actividade serão definidos em Protocolos adicionais que se tornam parte integrante deste Protocolo de cooperação uma vez assinado pelos dois outorgantes. Esses Protocolos regulamentam as áreas de cooperação, a forma, a duração e os aspectos financeiros necessários para o desenvolvimento desta cooperação.

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Protocolo de parceria entre a Universidade de Cabo Verde (Uni-CV) e a Fundação Amilcar Cabral (FAC) ANEXO

335

Cláusula 4

Financiamento

As partes signatárias comprometem-se a procurar financiamento junto das instituições locais, regionais, nacionais e internacionais para o desenvolvimento das acções previstas no âmbito do presente Protocolo.

Cláusula 5

Duração, modificação, rescisão

Este Protocolo de cooperação terá uma duração de três (3) anos a partir da data da última assinatura. Ele pode ser modificado ou prolongado mediante o consentimento mútuo das partes, por escrito.

As Partes podem rescindir o presente Protocolo de cooperação mediante um aviso escrito com antecedência de seis (6) meses. Todavia, as Partes se comprometem a conduzir ao seu termo as actividades em curso.

As duas Partes privilegiarão prioritariamente o diálogo e a negociação directa para o esclarecimento de dúvidas e a resolução de quaisquer questões relacionadas com a execução do presente Protocolo.

E, por estarem de acordo, as autoridades de ambas as Partes assinam dois exemplares originais do presente Protocolo de cooperação, estabelecido em língua portuguesa.

Feito na cidade da Praia, aos 25 de Abril de 2013.

Pela Universidade de Cabo Verde Pela Fundação Amílcar Cabral

Prof.Doutor Paulino Lima Fortes

Reitor da Uni-CV

Comandante Pedro Verena R. Pires

Presidente da FAC

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Lista dos menbros da Cátedra Amílcar Cabral ANEXO

337

LISTA DOS MEMBROS DA CÁTEDRA AMÍLCAR CABRAL

Membros Fundadores

Prof. Doutor Paulino Fortes;

Prof. Doutora Maria Adriana Carvalho;

Prof. Doutor Manuel Brito Semedo;

Prof. Doutor Bartolomeu Varela;

Prof. Doutor Marcelo Galvão Baptista;

Prof. Doutor Manuel Veiga;

Prof. Doutor Arlindo Mendes;

Prof. Doutor Carlos dos Anjos;

Doutora Crispina Gomes;

Prof. Doutor Lourenço Conceição Gomes;

Doutoranda Arminda Brito;

Mestre Octávio Cândida Francisca

Membros Estatutários

Prof. Doutora Amália Maria Vera-Cruz de Melo Lopes

Prof. Doutor Eduardo Adilson Camilo Pereira

Prof. Doutora Dora Pires

Prof. Doutora Maria de Fátima Fernandes

Prof. Doutora Laurence Garcia

Mestre António Francisco Afonseca Martins

Mestre Arlindo Rodrigues Fortes

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Lista dos menbros da Cátedra Amílcar CabralRevista Desafios

338

Mestre Dejair Dionísio

Mestre Emanuel Correia de Pina

Mestre Hilarina Nascimento Santos Pires Lima

Mestre Jair Gonçalves Martins

Mestre Maria do Rosário Fontaínhas dos Reis Silva

Mestre Maria dos Reis Monteiro

Mestre Maria Goreti Varela Freire

Mestre Nélida Brito

Mestre Paul Moreno

Mestre Wladmir Silves Ferreira

Mestrando Lourenço Tavares

Conselho Directivo da Cátedra

Prof. Doutor Manuel Veiga (que preside e coordena a 1ª Linha de Investigação da Cátedra);

Prof. Doutor Arlindo Mendes (Coordenador da 3ª Linha de Investigação);

Doutora Crispina Gomes (Coordenadora da 2ª Linha de Investigação);

Prof. Doutora Dora Pires (Representante da Cátedra em S. Vicente)

Mestre Nélida Brito (responsável pelas Actividades de Extensão).

Direcção da Revista “Desafios...”

Director: Prof. Doutor Manuel Veiga

Subdirector: Mestre Paulo Lima

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Lista dos menbros da Cátedra Amílcar Cabral ANEXO

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Conselho Editorial

Prof. Doutor Manuel Veiga

Prof. Doutor Arlindo Mendes

Doutora Crispina Gomes

Prof. Doutora Dora Pires

Mestre Nélida Brito

Mestre Paulo Lima