revista travessia nº 74 - dossiê paraguaios - carlos freire da silva e tiago rangel côrtes...

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74 revista do migrante Publicação do CEM - Ano XXVII, n° 74, Janeiro - Junho/2014 Ciudad del Este Ciudad del Este Ciudad del Este Perfil Perfil Perfil Confecções Confecções Confecções PARAGUAIOS PARAGUAIOS PARAGUAIOS - dossiê – - dossiê – - dossiê – Caaguazú Caaguazú Caaguazú Guaraní Guaraní Guaraní Associações Associações Associações Caacupé Caacupé Caacupé

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A organização deste dossiê decorre de um convite do Centro de Estudos Migratórios (CEM-Missão Paz). Agradecemos ao Pe. Paolo Parise e ao Dirceu Cutti – coordenadores da Missão Paz e da Revista Travessia, respectivamente – pela oportunidade para que realizássemos pesquisa sobre a migração paraguaia em São Paulo.Mas por que um dossiê sobre migração paraguaia? A migração paraguaia em direção a São Paulo se relaciona a uma diversidade de temáticas estratégicas para refletirmos sobre as tendências do capitalismo transnacional. Ao abordar o trânsito de pessoas entre Paraguai e Brasil na atualidade, este dossiê retoma desde os efeitos das ditaduras na América Latina na questão migratória passando pelo fluxo dos sacoleiros brasileiros no comércio fronteiriço, a expansão das fronteiras da soja associada à atuação dos “brasiguaios”, as cadeias produtivas da indústria de confecções, e também as formas de resistência que passam pela valorização da língua guarani e a formação de associações de migrantes. Apesar de privilegiar a migração paraguaia, as análises ultrapassam os limites nacionais, considerando múltiplas travessias imbricadas nestas dinâmicas migratórias. A motivação para realizar um estudo dedicado a paraguaios, nasceu da constatação de que o elevado contingente desse grupo residente na RMSP (Região Metropolitana de São Paulo) não condizia com o reduzido número de estudos. Enquanto se multiplicaram nos últimos anos as análises e o interesse sobre bolivianos e haitianos, poucas são as referências à migração paraguaia. No artigo que traz uma apresentação geral da história e perfil dos Paraguaios em São Paulo, vemos que se trata de um dos maiores fluxos migratórios para a região na última década. Seja através das informações do Ministério da Justiça para os migrantes regulares no país, seja através dos dados sobre aqueles que participaram do processo de anistia em 2009, os paraguaios estão entre os principais, destacando-se como o quarto maior grupo em número de migrantes nos dois casos. Nesse artigo, construímos perfis de paraguaios residentes em São Paulo com base em dados do Censo-IBGE de 2010 e da análise histórica. Acabamos por identificar diferenças geracionais. O grupo de paraguaios que se estabeleceu na RMSP no contexto das ditaduras militares, entre os anos 1960 e 1980, era predominantemente de origem urbana, sobretudo dos arredores de Assunção. Na década de 1990 diminuiu o fluxo de paraguaios para São Paulo. A partir da virada do milênio uma nova geração, menos escolarizada, de origem rural, com idade inferior a trinta anos, ruma a São Paulo para trabalhar predominantemente nas oficinas de costura.A questão dos migrantes transnacionais que trabalham em oficinas de costura não é um tema novo. Há uma infinidade de estudos que tratam da inserção de bolivianos nessa cadeia produtiva. No entanto, o objetivo do artigo Migrantes na costura em São Paulo foi compreender o mecanismo que faz circular migrantes transnacionais através de oficinas. Não se trata de um texto sobre bolivianos, nem sobre paraguaios ou brasileiros que trabalham com costura; considerar a presença de paraguaios no setor, assim como comparar os perfis dos três grupos foi estratégico para revelar as razões que tornam a exploração de migrantes transnacionais atrativa para a indústria de confecções reestruturada. A hipótese desenvolvida coloca em evidência como a subcontratação de oficinas de costura para a produção de vestuário garante agilidade às grandes redes varejistas para oferecer constantemente novos produtos em suas araras, assim como reduzir custos e externalizar os riscos da atividade para as oficinas na ponta da cadeia produtiva. Em um contexto de concorrência global, procuramos demonstrar que os problemas das condições de trabalho no setor são fruto da maneira como se organiza a cadeia produtiva e das demandas de serviço das grandes redes varejistas que pautam o ritmo de trabalho nas oficinas de costura, e não decorrem da origem de seus tr

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  • ISSN 0103-5576

    www.missaonspaz.org0103-5576

    Sumrio

    7474 revista do migrante

    Publicao do CEM - Ano XXVII, n 74, Janeiro - Junho/2014

    [email protected]

    ApresentaoDirceu Cutti

    Dossi Paraguaios

    IntroduoTiago Rangel Crtes

    Carlos Freire da Silva

    Paraguaios em So Paulo: uma histria e um retratoTiago Rangel Crtes

    Migrantes na costura em So Paulo:paraguaios, bolivianos e brasileiros na indstria de confeces

    Tiago Rangel CrtesCarlos Freire da Silva

    O que se passa em Caaguaz?Carlos Freire da SilvaTiago Rangel Crtes

    Ciudad del Este: do comrcio de fronteira ao centro de So PauloCarlos Freire da Silva

    Caacup: trajetrias de organizaes de paraguaios em So PauloPorfirio Leonor Ramrez

    Los migrantes paraguayos y la lengua guaranMiguel ngel Vern

    Ciudad del EsteCiudad del EsteCiudad del Este

    Perfil Perfil Perfil

    ConfecesConfecesConfeces

    PARAGUAIOS PARAGUAIOS PARAGUAIOS - dossi - dossi - dossi

    Caaguaz Caaguaz Caaguaz

    GuaranGuaranGuaran

    Associaes Associaes Associaes

    Caacup Caacup Caacup

  • www.missaonspaz.org

    (11) 3340.6952

    [email protected]@missaonspaz.org

    [email protected]@missaonspaz.org

    www.missaonspaz.org

    Rua Glicrio, 225

    01514-000

    Capa - Tiago Rangel Crtes / Karina Moyss Pain

    Jos Carlos Pereira

  • SUMRIO

    Apresentao ............................................................................................ 05

    Dirceu Cutti

    Dossi Paraguaios

    Introduo ................................................................................................. 07

    Tiago Rangel CrtesCarlos Freire da Silva

    Paraguaios em So Paulo: uma histria e um retrato ......................... 13

    Tiago Rangel Crtes

    Migrantes na costura em So Paulo: paraguaios, bolivianos e brasileiros na indstria de confeces ....... 37

    Tiago Rangel CrtesCarlos Freire da Silva

    O que se passa em Caaguaz? ............................................................... 59

    Carlos Freire da SilvaTiago Rangel Crtes

    Ciudad del Este: do comrcio de fronteira ao centro de So Paulo .. 75

    Carlos Freire da Silva

    Caacup: trajetrias de organizaes de paraguaios em So Paulo ... 93

    Porfirio Leonor Ramrez

    Los migrantes paraguayos y la lengua guaran ................................... 109

    Miguel ngel Vern

  • TRAVESSIA - Revista do Migrante - N 74 - Janeiro - Junho / 20144

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    as visitas realizadas por estudantes e pesquisadores biblioteca do CEM observa-se nitidamente como o foco de ateno volta-se, como se diz na gria, bola

    da vez no que concerne aos movimentos migratrios em nosso pas. Na dcada de 1980 e comeo dos anos 1990, a moda era estudar a migrao dos nordestinos, seguida pelos deslocamentos em direo fronteira agrcola, entre os quais mereceu destaque o dos brasiguaios. Repentinamente, como num cerrar e abrir de cortinas, no palco da academia despontaram estudos voltados para a emigrao dos brasileiros e, paralelamente, com todo flego, ao concomitante processo inverso o da imigrao particularmente dos bolivianos inseridos no ramo das confeces e, em menor grau, aos refugiados e/ou solicitantes de refgio. Atualmente, quase desnecessrio diz-lo, pesquisar a imigrao haitiana tornou-se a coqueluche da vez. Porm, em relao a um grupo expressivo de imigrantes na Regio Metropolitana de So Paulo os paraguaios repete-se o que ocorreu no passado com a grande imigrao espanhola: a ausncia de estudos; aqueles, s recentemente obtiveram algum reconhecimento. Visando preencher a lacuna, perseguimos alternativas para o desenvolvimento de uma pesquisa. Uma delas foi a de apresentar a ideia ao Instituto C&A, que prontamente a abraou. Contatos preliminares haviam sido entabulados com o pesquisador Carlos Freire da Silva que, ao receber carta branca, acercou-se do tambm pesquisador Tiago Rangel Crtes. Desde o incio tnhamos em mira que o estudo conformaria um dossi a ser publicado nesta revista. Ressaltamos que com grande satisfao do Conselho Editorial da Travessia que apresentamos a voc leitor este estudo indito, que vai muito alm da fenomenologia do ir e vir. A presena dos paraguaios/as em nosso meio analisada a partir de uma viso ampla, abarcando processos sociais de ontem e de hoje na qual se

    apresentao

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    encontra involucrada. Mas deixemos que os prprios coordenadores da pesquisa explicitem como eles mesmos acenam na introduo ao dossi as mltiplas travessias imbricadas nestas dinmicas migratrias.

    Dirceu Cutti

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    organizao deste dossi decorre de um convite do Centro de Estudos Migratrios (CEM-Misso Paz). Agradecemos ao Pe. Paolo Parise e ao Dirceu Cutti coordenadores da Misso Paz e da Revista Travessia, respectivamente pela oportunidade para que realizssemos pesquisa

    sobre a migrao paraguaia em So Paulo.Mas por que um dossi sobre migrao paraguaia? A migrao paraguaia em direo a So Paulo se relaciona a uma diversidade

    de temticas estratgicas para refletirmos sobre as tendncias do capitalismo transnacional. Ao abordar o trnsito de pessoas entre Paraguai e Brasil na atualidade, este dossi retoma desde os efeitos das ditaduras na Amrica Latina na questo migratria passando pelo fluxo dos sacoleiros brasileiros no comrcio fronteirio, a expanso das fronteiras da soja associada atuao dos brasiguaios, as cadeias produtivas da indstria de confeces, e tambm as formas de resistncia que passam pela valorizao da lngua guarani e a formao de associaes de migrantes. Apesar de privilegiar a migrao paraguaia, as anlises ultrapassam os limites nacionais, considerando mltiplas travessias imbricadas nestas dinmicas migratrias.

    A motivao para realizar um estudo dedicado a paraguaios nasceu da constatao de que o elevado contingente desse grupo residente na RMSP (Regio Metropolitana de So Paulo) no condizia com o reduzido nmero de estudos. Enquanto se multiplicaram nos ltimos anos as anlises e o interesse sobre bolivianos e haitianos, poucas so as referncias migrao paraguaia. No artigo que traz uma apresentao geral da histria e perfil dos Paraguaios em So Paulo, vemos que se trata de um dos maiores fluxos migratrios para a regio na ltima dcada. Seja atravs das informaes do Ministrio da Justia para os migrantes regulares no pas, seja atravs dos dados sobre aqueles que participaram do processo de anistia em 2009, os paraguaios esto entre os principais, destacando-se como o quarto maior grupo em nmero de migrantes

    introduo

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    nos dois casos. Nesse artigo, construmos perfis de paraguaios residentes em So Paulo com base em dados do Censo-IBGE de 2010 e da anlise histrica. Acabamos por identificar diferenas geracionais. O grupo de paraguaios que se estabeleceu na RMSP no contexto das ditaduras militares, entre os anos 1960 e 1980, era predominantemente de origem urbana, sobretudo dos arredores de Assuno. Na dcada de 1990 diminuiu o fluxo de paraguaios para So Paulo. A partir da virada do milnio uma nova gerao, menos escolarizada, de origem rural, com idade inferior a trinta anos, ruma a So Paulo para trabalhar predominantemente nas oficinas de costura.

    A questo dos migrantes transnacionais que trabalham em oficinas de costura no um tema novo. H uma infinidade de estudos que tratam da insero de bolivianos nessa cadeia produtiva. No entanto, o objetivo do artigo Migrantes na costura em So Paulo foi compreender o mecanismo que faz circular migrantes transnacionais atravs de oficinas. No se trata de um texto sobre bolivianos, nem sobre paraguaios ou brasileiros que trabalham com costura; considerar a presena de paraguaios no setor, assim como comparar os perfis dos trs grupos foi estratgico para revelar as razes que tornam a explorao de migrantes transnacionais atrativa para a indstria de confeces reestruturada. A hiptese desenvolvida coloca em evidncia como a subcontratao de oficinas de costura para a produo de vesturio garante agilidade s grandes redes varejistas para oferecer constantemente novos produtos em suas araras, assim como reduzir custos e externalizar os riscos da atividade para as oficinas na ponta da cadeia produtiva. Em um contexto de concorrncia global, procuramos demonstrar que os problemas das condies de trabalho no setor so fruto da maneira como se organiza a cadeia produtiva e das demandas de servio das grandes redes varejistas que pautam o ritmo de trabalho nas oficinas de costura, e no decorrem da origem de seus trabalhadores.

    Ao acompanharmos agentes pastorais nas oficinas de costura de paraguaios em So Paulo, notamos a recorrncia de migrantes oriundos do departamento de Caaguaz, mais especialmente de Repatriacin. Em O que se passa em Caaguaz?, seguimos a trajetria de Moiss, um jovem trabalhador que sai da zona rural paraguaia para buscar melhores oportunidades de trabalho em So Paulo. Nosso primeiro contato com Moiss ocorreu na vspera da Semana Santa de 2013, enquanto vivia na Vila Medeiros em uma oficina de costura, na zona norte de So Paulo. No final desse ano, Moiss retornou cidade de origem para ajudar os pais na lavoura. Reencontramos o jovem trabalhador no assentamento em que morava com a famlia em Repatriacin. Ao descrever a trajetria de Moiss, evidenciamos o impacto da monocultura da soja, gerida por brasiguaios que expandem a fronteira agrcola para plantar a commodity, com a respectiva concentrao de terras e xodo rural. Alm disso, descrevemos como o pacato municpio de Caaguaz, que tem economia decadente e dependente da indstria extrativista da madeira, dinamizado pelas remessas de migrantes transnacionais.

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    De Caaguaz partimos para Ciudad del Este. Neste artigo, discutimos como as representaes usuais que se tem no Brasil sobre o Paraguai so largamente informadas pelas imagens construdas sobre comrcio fronteirio. De tal modo que do Paraguai e paraguaio, acabaram se associando pejorativamente a contrabando e falsificao. Procuramos descrever como se deu a formao do mercado de fronteira, animado por milhares de sacoleiros brasileiros que durante um determinado perodo se dirigiam cotidianamente regio em busca de mercadorias, mas tambm de paraguaios que levavam produtos de So Paulo para o Paraguai. Retomamos a histria da fundao de Ciudad del Este no processo de reaproximao diplomtica entre Paraguai e Brasil com a inaugurao da Ponte da Amizade na dcada de 1960 e, tambm, no processo de constituio dos fluxos migratrios de chineses e libaneses que, desde o incio, conectam o comrcio da cidade paraguaia ao centro de So Paulo. No entanto, desde a abertura econmica nos anos 1990, o fluxo de sacoleiros vem diminuindo progressivamente e So Paulo vem ganhando centralidade nestas dinmicas comerciais. Atualmente, muitas feiras do Paraguai espalhadas pelo Brasil so abastecidas pelo centro de So Paulo.

    Alm das questes desenvolvidas nos diferentes artigos mencionados, dois temas pungentes impunham-se para a constituio de um dossi sobre paraguaios na RMSP: a relevncia das associaes de migrantes em So Paulo e a importncia da lngua guarani. Convidamos Porfirio Leonor Ramrez (Leo), que conhecemos em um contexto de entrevista para a pesquisa e que se tornou um grande amigo, para redigir Caacup: trajetrias de organizaes de paraguaios em So Paulo. Leo chegou do Paraguai em 2004, trabalhou por anos em oficinas de costura, conseguiu cursar o ensino superior em So Paulo e atualmente trabalha no Consulado da Venezuela. Influente na comunidade paraguaia, Leo compe a Japayke, uma das poucas associaes de paraguaios em So Paulo. Em seu texto, ele descreve as organizaes existentes no municpio, d nfase aos grupos culturais e devoo Virgencita de Caacup. Para Leo, a constituio de associaes de migrantes fundamental para organizar os interesses coletivos na busca pela expanso de seus direitos e melhores condies de insero no pas de acolhida. Leo um batalhador, dedicado a resistir s formas de opresso e de supresso de direitos dos migrantes. Agradecemos sua contribuio e dedicao na produo do artigo.

    Alm disso, Leo concentra uma vasta rede de contatos envolvendo organizaes sociais, sindicais, acadmicas, governamentais, entre outras. Atravs dele tivemos a oportunidade de conhecer Miguel ngel Vern, linguista, diretor geral de planificao lingustica da Secretara de Polticas Lingusticas do Paraguai, professor da Universidade de Assuno e militante pela revalorizao da lngua guarani. Miguel, em Los migrantes paraguayos y la lengua guaran, texto escrito em espanhol, justifica a valorizao da lngua guarani e mostra o impacto dos brasiguaios em termos lingusticos no Paraguai. Para o autor, el portugus [que acompanha os colonos brasileiros] se impone como el monocultivo de soja

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    que carcome el campo paraguayo. Obrigado Miguel por nos ter possibilitado aprofundar a compreenso sobre o tema.

    Entendemos que o dossi almejou tratar os diversos aspectos relacionados migrao paraguaia sem ficar restrito anlise deste grupo populacional em especfico. Portanto, para compreender os paraguaios em So Paulo foi necessrio articular diversos outros movimentos migratrios em temporalidades distintas.

    Por fim, a pesquisa no teria sido possvel sem a colaborao das pessoas que nos receberam em suas casas e compartilharam suas histrias. Somos gratos ao pe. Alejandro Cifuentes, agente de pastoral Patrcia Rivarola e aos seminaristas, em especial o paraguaio Eudes Sanabria, que permitiram que os acompanhssemos em suas visitas s oficinas de costura. Agradecemos tambm a contribuio de Daniel Ribeiro e Maria Mercedes na tabulao dos dados estatsticos presentes neste dossi. A pesquisa foi desenvolvida atravs de anlise documental, acesso literatura especializada, entrevistas de trajetrias, observao dos espaos em que os paraguaios esto presentes em So Paulo, alm da anlise de dados da Rais, do Ministrio do Trabalho e Emprego e do Censo-IBGE de 2010.

    Tiago Rangel CrtesCarlos Freire da Silva

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    Paraguaios em So PauloUma histria e um retrato

    Tiago Rangel Crtes *

    Domingo frio e chuvoso, centro de So Paulo. Em uma rua do bairro do Bom Retiro jovens se renem na calada em frente a um sobrado antigo ao redor de uma churrasqueira de ferro fundido. Pele clara e os cabelos escuros. Seis homens e duas mulheres. Uma guampa circula de mo em mo, no sem antes ser totalmente preenchida com gua gelada armazenada em uma garrafa trmica volumosa, adornada em couro com as cores vermelha, azul e branca. O guarani ou yopar1 falado entre eles revela serem jovens paraguaios descansando durante seu dia de folga. Cena semelhante pode ser visualizada facilmente ao se realizar uma caminhada pelas ruas do bairro de grande diversidade cultural.

    Foto: Tiago Rangel CrtesComemorao de paraguaios do dia da Virgem de Caacup, Igreja Nossa Senhora da Paz, centro de So Paulo.

    * Mestre em Sociologia pela USP e Tcnico do Observatrio do Trabalho/DIEESE.

    perfil

  • TRAVESSIA - Revista do Migrante - N 74 - Janeiro - Junho / 201414

    Ou, nos finais de semana, basta chegar Praa Nicolau de Moraes Barros, ou Areio (em guarani, Ybycui), tambm conhecida como Praa dos Paraguaios, na esquina prxima Rua do Bosque com a Rua dos Americanos. Juntamente com o Bom Retiro, Pari e Brs so os principais bairros no centro de So Paulo em que se concentram, alm da Vila Medeiros, na Zona Norte, e da Vila Any, no municpio de Guarulhos.

    Os paraguaios constituem um dos principais fluxos migratrios transnacionais para o Brasil na ltima dcada, sendo que a grande maioria se concentra na Regio Metropolitana de So Paulo (RMSP). Informaes divulgadas pelo Ministrio da Justia em 2011 sobre estrangeiros com residncia regularizada no pas apontavam 17.604 paraguaios, destacando-os como o quarto maior grupo, atrs apenas de portugueses, bolivianos e chineses2. Por ocasio da anistia para regularizao da situao migratria em 2009, os paraguaios foram a quarta nacionalidade mais beneficiada pela lei, atingindo 9,9% do total (Grfico 1). A Misso Paz, atravs do Centro Pastoral e de Mediao dos Migrantes e da Casa do Migrante, atendeu entre janeiro de 2000 e maio de 2012 a 22.364 pessoas, das quais 15.738 eram bolivianas e 3.045 eram paraguaias, o segundo grupo populacional em termos de atendimento. Estes nmeros se referem a apenas uma parte da migrao paraguaia para So Paulo, que bem maior do que as cifras indicam. O consulado paraguaio e as organizaes Paraguai Teete e Japayke, por exemplo, apontam entre 40 e 60 mil paraguaios na RMSP. No h informao quantitativa precisa que indique a quantidade de paraguaios no municpio, mas estas diferentes bases de informao nos permitem dizer que se trata de um dos principais grupos atualmente.

    Grfico 1 Distribuio dos anistiados (Lei 1.664) por nacionalidade.Brasil, 2009.

    Fonte: Ministrio da Justia, Polcia Federal.Elaborao prpria.

  • TRAVESSIA - Revista do Migrante - N 74 - Janeiro - Junho / 2014 15

    De modo geral, nos ltimos anos, houve uma mudana no cenrio das migraes transnacionais na cidade com o crescimento substantivo da mobilidade de pessoas no circuito Sul-Sul, sobretudo bolivianos, paraguaios e peruanos, para alm de grupos vindos da frica, composto, entre outros, por angolanos, nigerianos, congolenses e senegaleses, e da sia, neste caso, chineses e coreanos. Recentemente, haitianos tambm compem este mosaico; passaram a afluir aps o terremoto que devastou o pas em 2010. Se nas publicaes acadmicas e noticirios jornalsticos a discusso sobre migrantes bolivianos e haitianos esteve em evidncia nos ltimos anos, o mesmo no se pode dizer sobre os paraguaios. Esse fluxo para So Paulo passa ainda relativamente pouco pesquisado, praticamente no h acmulo de estudos especficos sobre o tema.

    Trata-se de uma migrao cujo princpio remete aos anos 1950, porm passaram a chegar em intensidade para So Paulo aps meados da dcada passada. Os microdados do Censo de 2010 revelam que a maior parte (50,3%) dos nascidos no Paraguai residentes na RMSP se estabeleceram depois de 2005, sendo que dois a cada trs paraguaios mudaram para o Brasil aps os anos 2000. Apenas 15,1% teriam chegado entre 1981 e 2000, enquanto 17,9% teriam chegado ao pas antes dos anos 1980 (Tabela 1). Em comum com o caso amplamente debatido de bolivianos, so migrantes que recorrentemente vm a So Paulo para trabalhar em oficinas de costura. No entanto, a comunidade boliviana na RMSP se instalou progressivamente desde os anos 1990, enquanto a paraguaia teve forte expanso recente.

    Tabela 1 - Pas estrangeiro de nascimento, total e respectiva distribuio percentual conforme perodo em que fixou residncia no Brasil, para residentes na RMSP

    Fonte: IBGE, Censo Demogrfico 2010. Gerao de dados: Daniel Ribeiro e Maria Mercedes - Expertise Social Ltda. Elaborao prpria

    O objetivo deste artigo fazer um esboo da histria da migrao paraguaia para a RMSP e traar um retrato do perfil dos migrantes que residem na cidade, de modo a realizar uma anlise da heterogeneidade de paraguaios em So Paulo. Trata-se de texto de apresentao, sendo que algumas questes especficas sero tratadas em outros artigos que compem este dossi e espera-se despertar o interesse de pesquisadores para que realizem mais estudos sobre essa populao em So Paulo. A anlise se baseia nos microdados do Censo IBGE de 2010, na observao de campo e na anlise de trajetrias de vida. Ao se traar o perfil

  • TRAVESSIA - Revista do Migrante - N 74 - Janeiro - Junho / 201416

    dos migrantes a partir dos microdados de Censo de 2010, deve-se advertir que as informaes quantitativas coletadas pelo IBGE apresentam limitaes a serem consideradas. Segundo as estimativas do Censo, os paraguaios seriam 4.146 na RMSP. Esses resultados reconhecidamente subestimam o nmero de migrantes. Ressalva-se que a cada dez anos, quando o IBGE realiza a pesquisa censitria, so utilizados dois tipos de questionrios: o primeiro, mais simples e curto, deve ser aplicado a todos os domiclios do pas; o segundo, com informaes em profundidade, direcionado apenas para uma amostra da populao residente no pas. As informaes que utilizaremos para traar o perfil se referem pesquisa amostral do Censo de 2010. Isto , so estimativas e h uma margem de erro. Tendo em vista essa limitao, buscaremos apresentar os dados em sua distribuio percentual, e no em seus valores absolutos. De todo modo, desde que consideradas suas limitaes, o Censo fornece uma das bases de dados mais confiveis e abrangentes3.

    Uma histria: razes da migrao paraguaia para So Paulo

    As mobilidades populacionais so constitutivas da histria do Paraguai: da colonizao atualidade, da relao dos povos que ali viviam com os forneos, diversos fluxos de pessoas formaram o que hoje compe a populao do pas. Ao mesmo tempo, as guerras e a sada de seus nacionais para outros lugares marcaram definitivamente o percurso histrico do pas e de sua sociedade, aspectos que foram fundamentais para a definio das fronteiras do territrio e para a consolidao de uma identidade paraguaia, ancorada num projeto de Estado-nao4.

    O socilogo paraguaio Toms Palau (2011, p. 57), ao analisar de forma ampla os processos migratrios que tomam lugar no Paraguai, evidencia a especificidade dos fluxos migratrios imbricados no pas: ao mesmo tempo em que mais de 10% da populao vive em outro territrio, tem-se a situao em que mais de 10% das pessoas recenseadas no Paraguai nasceram em outro pas. Isto , trata-se de um contexto de forte repulso e atrao de migrantes, em que os dois fenmenos esto estritamente relacionados. Segundo o estudo de perfil migratrio paraguaio da OIM (2011, p. 35), a Argentina registrava mais de 550 mil migrantes paraguaios, a Espanha teria 135.517 e o Brasil, como o terceiro destino, perfazia 40 mil migrantes (o que representaria 5,1% dos migrantes transnacionais do pas). J a principal presena de migrantes transnacionais no Paraguai, segundo dados do Censo do pas de 20025, seria a de brasileiros, com 81.592 pessoas, o que significa 47,1% do total da populao nascida em outro pas e residente no Paraguai (OIM, 2011, p. 28).

  • TRAVESSIA - Revista do Migrante - N 74 - Janeiro - Junho / 2014 17

    Segundo Palau (2011), retomando algumas das marcas histricas do Paraguai, antes da independncia lograda em 1811 e da Guerra da Trplice Aliana (1864-1870), populaes camponesas, sobretudo guaranis, no reconheciam os limites territoriais que definiam as fronteiras do Estado-nao que acabara de ser fundado. Era um espao contguo com amplo significado cultural e identitrio dos povos que ali viviam e que no tinham relao com os limites que eram impostos pela colnia e, posteriormente, pelos recm-independentes Estados nacionais. Para Palau, a Guerra da Trplice Aliana foi um marco poltico que criou uma clivagem no modo de organizao desses fluxos, em que se forjou uma identidade nacional que tinha seus significados na construo ideolgica e prtica do que era o inimigo, o estrangeiro. Ao final da guerra, a populao que vivia no territrio que constitua o Paraguai foi praticamente dizimada: reduzida de 1,3 milhes de habitantes a 300 mil, restando em sua maioria mulheres, idosos e crianas.

    Ainda de acordo com Palau, aps o trmino da guerra, entrou na pauta poltica a recolonizao do pas: seja a leste, a norte ou a sul. A ideia de colonizao do interior perdurou por todo o sculo XX, ainda que suas estratgias e seus sentidos tenham mudado ao longo desse perodo. Boa parte dessas polticas esteve ancorada na gesto fundiria, operada no sentido de atrair migrantes transnacionais camponeses. Inicialmente, buscava-se aproximar principalmente europeus para produzirem e ocuparem os vazios populacionais criados pela guerra. De modo geral, essas iniciativas tinham a ver com mecanismos de distribuio das terras agricultveis do pas e a facilitao do acesso do estrangeiro regularizao, oferecendo uma srie de vantagens. Em termos prticos, essas medidas no alcanaram os resultados esperados, sendo que a colonizao dos vazios populacionais do pas demorou, levando mais de 70 anos para que a populao paraguaia restitusse o nmero de antes da guerra, o que ocorreu em meados dos anos 1950.

    Os fatores que consolidaram os destinos e os perfis dos migrantes paraguaios presentes em So Paulo atualmente, so marcados fortemente por aspectos engendrados a partir dos anos 1950, com a ascenso de Alfredo Stroessner ao poder (1954-1989). De modo geral, so trs os aspectos centrais: 1 a perseguio massiva dos opositores do governo; 2 a aproximao entre os governos brasileiros e paraguaios, que levou ao intercmbio de pessoas com apoio estatal; 3 a reestruturao fundiria do pas, com a consequente expulso de colonos de suas terras. Esses fatores impactaram na constituio de perfis diferentes de migrantes que saram do pas em momentos distintos para se estabelecerem em So Paulo.

    Nos anos 1950, aps o golpe militar liderado por Alfredo Stroessner, houve uma mudana geral da poltica do pas. Segundo Alfredo da Mota Menezes (1987), se at aquele momento a economia paraguaia era basicamente dependente da Argentina, Stroessner buscou reorientar sua poltica externa,

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    aproximando-se do Brasil. Esse deslocamento traduziu-se numa mudana do vetor da dependncia paraguaia. A porta de entrada do pas para o mundo era a Argentina, que controlava a sada ao mar da Bacia do Prata. Stroessner, ento, aportou uma srie de polticas que tinham como direo estreitar as relaes com o leste de Assuno e no apenas com o sul. Buscava proporcionar ao Paraguai, como ele dizia, a possibilidade de respirar com dois pulmes e no apenas um, sendo que as relaes com o Brasil consolidariam essa oportunidade. Em parceria com o governo brasileiro, construiu-se a estrada que liga Assuno Foz do Iguau, sendo que o Brasil financiaria a obra at a cidade de Coronel Oviedo, na metade do caminho de Foz do Iguau Assuno, alm da construo da Ponte da Amizade, inaugurada em 1965, e totalmente financiada pelo governo militar brasileiro.

    Ao mesmo tempo em que o Paraguai avaliava o Brasil como parceiro estratgico e estimulava as trocas comerciais e culturais, o mesmo fizeram sucessivos governos brasileiros, tanto civis, antes do golpe de 1964 e, ainda mais os militares, aps o golpe de 1 de abril que deps Joo Goulart. Os portos de Santos e Paranagu foram disponibilizados ao Paraguai para escoar sua produo, o que diminua a dependncia da Bacia do Prata. Tambm no movimento de aproximao dos pases foram firmados os acordos que estabeleciam a criao da Usina Hidreltrica Binacional de Itaipu. Essas medidas marcaram o estreitamento das relaes entre Brasil e Paraguai, e o consequente aumento da dependncia do pas guarani. Em contrapartida aos investimentos brasileiros, o Brasil conquistava mais um mercado para seus produtos e, alm disso, conseguiria expandir a fronteira agrcola. O Paraguai facilitou o acesso de brasileiros s suas melhores terras agricultveis, muitas delas contguas fronteira do Mato Grosso do Sul e do Paran. Em conjunto, essas medidas tiveram o efeito de colonizao do leste realizada, sobretudo, por brasileiros.

    Segundo Menezes, a ida dos primeiros brasileiros para o Paraguai comeou na dcada de 1950, mas foi nos anos 1970 que se intensificou, aps a assinatura do Tratado de Itaipu, de 1973. Os principais argumentos de Menezes para explicar o elevado fluxo de brasileiros que rumaram ao Paraguai so: 1 a qualidade da terra paraguaia para a agricultura terra vermelha como do norte paranaense e oeste de So Paulo; 2 a forte presso dos latifndios no Brasil sobre as pequenas propriedades, sobretudo no Paran; 3 o uso de tecnologias no campo tinha liberado fora de trabalho camponesa para migrao; 4 as facilidades oferecidas pelas Companhias Colonizadoras6; 5 o preo da terra no Paraguai; 6 a ausncia de leis paraguaias que limitasse a entrada dos migrantes e a venda de terras aos brasileiros; 7 o preo da soja no mercado internacional, sendo que a fantstica imigrao de brasileiros para o Paraguai era manipulada desde Chicago. Por qu? Cada vez que um bushel de soja aumentava um penny7 na Bolsa de Valores de Chicago, mais e mais brasileiros moviam-se para o Paraguai (MENEZES, 1987, p. 135-136). Nesse sentido, frisa-se que o fluxo de brasileiros que chega ao Paraguai contemporneo sada de paraguaios para

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    outros pases e est relacionado dinmica do capitalismo globalizado, em que a soja uma commodity transacionada no mercado global.

    A presena de colonos brasileiros, sobretudo do Paran, Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul, impactou na distribuio das terras paraguaias, fortalecendo o xodo rural. Antes de os paraguaios iniciarem suas empreitadas migratrias transnacionais, executaram internamente e em grande intensidade a mobilidade rural-rural, assim como a rural-urbana. Camponeses que almejavam seguir lavrando a terra buscavam novos territrios. Ao mesmo tempo, contingentes iam para as cidades, em especial a recm-inaugurada Ciudad del Este e Assuno, em busca de oportunidades. Para Palau (2011), o xodo rural estava diretamente ligado forma como se organizava a produo agrria e ao modo concentrador de distribuio de terras: neste sentido, o autor conclui que a produo de soja transgnica em grandes latifndios teria relao direta com o aumento da migrao rural-urbana. Foi na passagem da dcada de 1980 para 1990 que a populao paraguaia passou a ser predominantemente urbana. Devido saturao da absoro da fora de trabalho que chegava s cidades, a migrao transnacional se fortalece como alternativa. As melhores terras agricultveis estariam sendo vendidas a baixo custo a migrantes brasileiros, que desde os anos 1960/1970 chegavam em massa no pas e com dinheiro para compr-las. Ou, ento, as Companhias Colonizadoras vendiam as terras a prazo, permitindo que os brasileiros quitassem a dvida aps tomar posse da propriedade, sendo que apenas a renda proveniente da extrao da madeira dos lotes era suficiente para quitar o valor de todo terreno recm-comprado, alm de causar desmatamento e problemas ambientais (PALAU, 2011; MENEZES, 1987).

    Ao mesmo tempo, aps o golpe, perseguidos polticos fugiam do Paraguai para no serem presos ou mortos pelo governo ditatorial. A maior parte afluiu para a Argentina e, nesse momento, as autoridades de imigrao estimavam a entrada de ao redor de oito mil paraguaios ao ano no pas8. Segundo Menezes (1987), estima-se que aps a tomada do poder presidencial, em torno de um tero da populao paraguaia, ou at 500 mil pessoas tenham se colocado em retirada do pas9, sendo que a maior parte foi para Buenos Aires, onde se concentravam os oposicionistas do regime de Stroessner. Alis, para Menezes, essa foi uma das razes que favoreceu a aproximao poltica de Stroessner ao Brasil, avaliou-se que o governo argentino no tomava as devidas medidas contra os paraguaios que conspiravam em Buenos Aires contra o governo militar sediado em Assuno. Ainda hoje, a Argentina continua sendo para os paraguaios o destino prioritrio: a facilidade com o idioma e de deslocamento, o acordo do Mercosul que facilitou o acesso documentao, assim como as slidas redes sociais e associativas de migrantes estabelecidas fazem com que os paraguaios sejam o principal grupo no pas. Segundo o Censo argentino de 2010, 35% dos migrantes transnacionais que se encontravam na Argentina eram paraguaios (SCALABRINI INTERNATIONAL MIGRATION NETWORK, 2011, p. 8). Em

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    2000, para a OIM, por volta de 85% dos nascidos no Paraguai que residiam no exterior encontravam-se na Argentina (2011, p. 33).

    Em relao aos que vieram para o Brasil, a partir dos anos 1950, a perseguio do governo militar, a aproximao do governo brasileiro e as trocas e intercmbios de estudantes, assim como a reestruturao fundiria do pas foram os fatores que marcaram dois momentos e perfis diferentes de migrantes que aportaram em So Paulo10. O migrante que chegou antes do final dos anos 1970, de modo geral, ou veio fugido da ditadura militar, ou se instalou na cidade por conta das polticas de aproximao entre os dois governos nacionais. Quando Stroessner tomou o poder, tratou-se de expulsar do pas uma grande massa de pessoas. No se realizava exatamente a perseguio pontual de lideranas e pessoas que se destacassem em sua atuao poltica oposta a Stroessner (mais ou menos o que ocorreu no Brasil), mas uma cassada ostensiva e massiva a todos que eram avaliados como alinhados oposio, muitos dos quais estavam no mesmo partido de Stroessner, o Colorado, mas que eram avaliados como oposio. Essa caa geral fez com que So Paulo entrasse na rota de destino dos paraguaios, assim como Buenos Aires.

    Ao mesmo tempo, com o estreitamento das relaes entre os governos brasileiro e paraguaio, foi incentivada a vinda de estudantes universitrios para a capital paulista. Paraguai e Brasil haviam firmado acordos de intercmbios cultural e educacional, sendo que o prprio Stroessner havia estudado na Escola Militar do Rio de Janeiro (MORAES, 2000, p. 34). Alm disso, o governo de Stroessner enviou capital paulista pessoas de sua confiana para atuarem no estreitamento das relaes de Brasil e Paraguai. Nesse primeiro momento, os migrantes paraguaios que fixaram residncia em So Paulo tm um perfil relativamente escolarizado e qualificado. Em geral, eram pessoas que tinham trajetrias urbanas, a maioria de Assuno e seus arredores.

    Citamos, como exemplo, a trajetria de sucesso de mdico paraguaio Jlio Csar Mario, que aps concluir a educao bsica no Paraguai, veio estudar medicina na USP em So Paulo em 1963, graas ao convnio educacional Brasil-Paraguai. Formou-se em 1968, nos anos subsequentes especializou-se em cirurgia vascular. Tornou-se um dos maiores e mais consagrados cirurgies vasculares do pas, atualmente atende no Hospital Srio Libans de So Paulo, professor de medicina da mesma universidade em que se graduou, fez at mesmo parte da equipe mdica que cuidou da presidenta Dilma Rousseff11. O mdico um cone entre os paraguaios que chegaram a So Paulo antes dos anos 1980.

    A partir do final dos anos 1970, comeam a aportar em So Paulo migrantes paraguaios com perfil diferente do anterior. Tratava-se de migrantes de baixa qualificao, que vieram em busca de oportunidades de trabalho, no vinham fugidos da perseguio poltica, nem tampouco tiveram incentivos do Brasil ou do Paraguai para fixarem residncia na RMSP. Os primeiros relatos de paraguaios

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    que operaram mquinas de costura remontam justamente a esse perodo, ainda que no estivessem afluindo cidade mobilizados exclusivamente por esse tipo de trabalho. De todo modo, neste momento, havia uma forte relao da insero dos paraguaios em So Paulo com a presena de migrantes sul-coreanos, que trabalhavam na indstria de confeces.

    Segundo Carolina Mera (2009, p. 12), boa parte dos coreanos que chegou cidade a partir do final dos anos 1960 entrou no pas via Paraguai e Bolvia, Estados que tinham firmado acordos com o governo sul-coreano para estimular a migrao desses asiticos. No entanto, tanto o Paraguai como a Bolvia eram destinos menos atrativos economicamente, sendo que muitos coreanos almejavam, na realidade, se instalar na Argentina e no Brasil. Avaliavam, desse modo, o uso dos acordos que incentivava a migrao para esses pases como estratgia de entrada na Amrica Latina, para rumarem a pases vizinhos. Ainda de acordo com a autora e notcias de jornal dos anos 1980, por volta da metade dos coreanos que chegavam ao Paraguai estabeleciam residncia na Argentina ou no Brasil12. Esta disperso e insero comum dos coreanos na Amrica Latina, alm de seu peso inicial para a insero de paraguaios e bolivianos no setor das confeces, foram constitutivos para o que Patrcia Tavares de Freitas (2009) formulou como um territrio circulatrio entre Brasil, Argentina, Paraguai e Bolvia em torno da costura.

    Como abordamos em outro texto deste dossi, os primeiros paraguaios que se inseriram nas oficinas de costura, de modo semelhante ao que ocorreu com bolivianos, foram mobilizados por coreanos que j se encontravam no setor. Os migrantes asiticos espalhados entre Paraguai e Bolvia foram importantes para que a indstria de confeces se concretizasse como nicho de mercado de paraguaios e bolivianos, que comearam afluir cidade no comeo dos anos 1980. Segundo foi relatado, alguns coreanos agenciavam suas redes transnacionais a fim de trazerem trabalhadores que iriam operar as mquinas de costura de suas oficinas, sobretudo nos bairros do Bom Retiro e da Liberdade, mas tambm na zona norte, como Casa Verde, e outros lugares da zona leste da cidade. Segundo relatos e notcias de jornal13, devido o custeio das passagens, esses trabalhadores ficavam confinados nas oficinas de coreanos at pagarem as dvidas que haviam contrado.

    Essas so caractersticas do fluxo mais atual de migrantes paraguaios, que posterior ao fim da ditadura militar e queda de Stroessner em 1989. De todo modo, os fatores fundamentais que estruturaram a precria situao que levou a migrao transnacional de pessoas pobres do pas se desenvolveram na era Stroessner. Isto , a aproximao com produtores agrcolas brasileiros que cultivavam a monocultura de soja (atualmente transgnica) forou o xodo rural. Na medida em que as cidades paraguaias j no davam conta de absorver essa fora de trabalho, a migrao transnacional se intensificou. Nesse momento, a origem desses migrantes paraguaios no mais prioritariamente a de pessoas

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    de Assuno e regio, mas de municpios com preponderncia de atividades agrcolas e extrativistas, como do departamento de Caaguaz.

    Nos anos 1980 e 1990, dos paraguaios que se dedicavam ao trabalho nas oficinas de costura, mobilizados por coreanos, alguns conseguiram criar seus prprios empreendimentos nos anos 1990 e 2000. Outros se dedicaram s atividades de comrcio, sendo o comrcio ambulante, sobretudo de vestimentas confeccionadas na cidade, um dos eixos de atuao. H, ainda, os circuitos de comerciantes que sero abordados em profundidade em outro artigo deste dossi, mas que se refere exatamente aos paraguaios que vm a So Paulo fazer compras para abastecer comerciantes do seu pas. Atualmente, as mercadorias mais levadas de So Paulo ao Paraguai so artigos de vesturio. Outro nicho importante de mercado para as mulheres paraguaias que vieram nesse perodo o trabalho como bab ou empregada domstica.

    O final dos anos 1980 e comeo dos 1990 foi marcado por processos de redemocratizao que ocorreram em toda a Amrica Latina. Este foi o contexto da consolidao do MERCOSUL (Mercado Comum do Sul), de aproximao dos pases do Cone Sul do continente americano. Ao longo da dcada de 1990, os paraguaios que se puseram em marcha do pas no rumaram em grande quantidade para So Paulo. A Espanha e a Argentina eram os destinos prioritrios. Neste caso, se tratava de migrantes que buscavam melhores opes de trabalho e renda. Na Argentina, os homens se dedicam primordialmente construo civil e as mulheres se ocupam como domsticas e babs. Na Espanha, esses trabalhadores se inseriram em atividades de menor prestgio e baixa remunerao. O Brasil, em especial So Paulo, neste momento, no era destino prioritrio. Como vimos nos microdados do Censo apresentados na Tabela 1, apenas 15,1% da populao paraguaia que reside atualmente na RMSP ingressou no pas entre 1981 e 2000.

    Foi, sobretudo, a partir da crise econmica argentina deflagrada no final dos anos 1990 e agudizada nos anos 2001 e 2002, que paraguaios comeam a rumar a So Paulo e Espanha em maior medida. A trajetria de Lus Fernando14 expressa os sentidos dos movimentos migratrios mais recentes. Ele nasceu em 1979 em Capiat, no departamento Central, prximo Assuno. Migrou pela primeira vez aos 17 anos com sua me para o municpio de Caaguaz, onde j moravam seus tios e avs. Aos 22 anos, em 2001, devido s penosas condies do mercado de trabalho no municpio, s dificuldades encontradas para os estudos, Lus Fernando decidiu, em conjunto com parentes, que iria a Buenos Aires, onde vivia seu tio Gonzlez. O parente lhe informou que o trabalho seria rduo, jornadas superiores a doze horas dirias, muitas vezes inclusive aos finais de semana. Naquele momento, a Argentina passava por aguda crise econmica, ainda assim era a empreitada migratria mais fcil de ser realizada, tendo em vista os contatos estabelecidos, a garantia de emprego e casa com familiar.

    No dia posterior chegada em Buenos Aires, ao bairro Villa del Parque, acordou cedo para ajudar nos retoques finais da construo da casa que logo

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    seria o espao em que moraria e trabalharia, a oficina de costura de seu tio. O parente conhecia com destreza os mecanismos da produo subcontratada das oficinas de costura, apesar de ser de origem rural, j havia vivido anteriormente em So Paulo, realizando o mesmo tipo de atividade. Depois de laborar sete meses na oficina de costura do tio, com jornadas superiores a 12 horas dirias, devido a alguns pequenos desentendimentos, o jovem decidiu buscar outro trabalho. Prontamente, devido aos contatos estabelecidos no bairro, comeou a trabalhar em outra oficina, onde pagavam melhor e a jornada era inferior. Em 2003, a Argentina anistiou os migrantes irregulares, algum tempo depois Lus Fernando regularizou sua situao migratria e seguiu trabalhando no pas at o comeo de 2007. No perodo, a Argentina melhorou sua situao econmica, do mesmo modo que Lus Fernando auferiu ganhos que permitiram iniciar uma pequena reforma na casa de sua me que ficara em Caaguaz. Entre idas e vindas da Argentina ao Paraguai, Lus Fernando nota que os conterrneos que foram Espanha tinham conseguido juntar mais dinheiro do que aqueles que rumaram Argentina. Naquele momento, o cmbio pesava na deciso (o euro valia por volta de 7500 guaranis, converso superior do peso argentino).

    Com a avaliao de que em quatro anos em Buenos Aires no tinha conseguido terminar a reforma da casa da me, Lus Fernando decide a despeito do momento de crise, do recrudescimento do controle das fronteiras e do retorno dos conterrneos da Europa partir para a Espanha. Para tanto, buscou uma agncia de viagens que lhe emprestaria dinheiro para entrar no pas como viajante, alm de reservas de hotel e de uma quantia em mos para provar que poderia se manter no pas. Para tanto, hipotecou a casa em que vivia com a me. A agncia o orientou passo a passo como deveria agir para passar pela imigrao, realizada na Itlia, pois se avaliava ser mais fcil cruzar o espao Schengen15 nesse pas. Do total de oito paraguaios que embarcaram com Lus Fernando rumo Espanha, apenas quatro conseguiram passar pela imigrao sem problemas. Assim que chegou capital espanhola, Lus Fernando devolveu o dinheiro que havia sido emprestado para auxili-lo na passagem pela imigrao e a sua me pde desipotecar a casa. O migrante recm-instalado buscou toda sorte de empregos, de entregador de pizzas a servente de construo, passando por cuidador de cavalos. Empregou-se como limpador de edifcios e porteiro. Ao final de 2008, Lus Fernando foi acometido por grave infeco na perna esquerda, ficou diversos dias internado no hospital e impedido de trabalhar, gastando suas economias no perodo. A crise na Espanha se agudizava ao mesmo passo que a situao de sade e de emprego. Portanto, resolveu regressar ao Paraguai no comeo de 2009.

    O dinheiro que levou a Caaguaz bastava apenas para trs meses. De volta ao pas natal, Lus Fernando estabelece contato com amigos que viviam em So Paulo. Neste momento, novo horizonte migratrio se consolida ao rapaz que vinha realizando empreitadas migratrias nos ltimos sete anos, desde que

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    completara 22 anos de idade. Pouco tempo depois de ter retornado ao Paraguai, decide buscar nova oportunidade em So Paulo. Uma conhecida o havia indicado como ajudante em uma confeco na Rua Jos Paulino, no Bom Retiro. Lus Fernando passa com facilidade pela fronteira, com visto de 90 dias como turista. Em So Paulo, trabalha como costureiro em uma oficina subcontratada, depois como ajudante em uma confeco, em seguida, com carteira assinada, como atendente em uma tica tambm no bairro do Bom Retiro, dentre outros empregos. No comeo de 2014, tendo acumulado algum dinheiro, decide regressar ao Paraguai. Atualmente, vive com sua me em Caaguaz.

    Esta trajetria evidencia os percursos, expectativas, ambies e aes realizadas por um migrante paraguaio recente, que chegou a So Paulo aps os anos 2000. Nota-se a forte disposio em circular e experimentar a situao migratria em contextos no necessariamente favorveis, tendo em vista o acmulo de valores para investir na sociedade de origem. A mobilizao por variados destinos tem forte relao com as crises econmicas enfrentadas nos pases prioritrios de instalao, ao mesmo tempo em que o mercado de trabalho paulistano apresenta condies favorveis, ainda que primordialmente na informalidade, para a absoro desse fluxo de trabalhadores. Rumar ao Brasil, em especial a So Paulo, no tem custos migratrios to elevados, os riscos so menores do que viajar Europa. So Paulo est a apenas uma madrugada de nibus da fronteira com o Paraguai. Dependendo da poca do ano, a passagem para Assuno inferior a 200 reais. Desse modo, o custo de deslocamento, a distncia, o no recrudescimento das polticas migratrias, a situao econmica ascendente do pas na primeira dcada dos anos 2000 so fatores a serem considerados para explicar o incremento recente dos paraguaios em So Paulo.

    Um retrato: o perfil dos migrantes paraguaios a partir dos microdados do Censo de 2010

    Segundo os dados do Censo de 2010, o estado de So Paulo teria 41.262.199 habitantes, dos quais 19.683.975 se encontravam na RMSP. Nessa regio, o Censo identificou que 192.422 pessoas nasceram em outro pas que no o Brasil. Os paraguaios seriam a 11 populao estrangeira de maior presena, totalizando 4.146 pessoas (Tabela 2); no estado de So Paulo seriam 6.038 paraguaios. So Paulo e Guarulhos so os dois municpios que concentram o maior nmero de paraguaios no pas. Ainda que os dados indiquem apenas 2,2% dos nascidos em outro pas residentes na RMSP como do Paraguai, provvel que essa participao relativa no total de migrantes seja subestimada.

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    Tabela 2 Pas estrangeiro de nascimento, total e respectiva distribuio percentual, para residentes RMSP, resultados gerais para a amostra do Censo Demogrfico 2010.

    Fonte: IBGE, Censo Demogrfico 2010.Elaborao: Daniel Ribeiro e Maria Mercedes - Expertise Social Ltda.Observao (*): compreende somente casos vlidos, portanto, excetuando informao inexistente (Ignorado e/ou No sabia pas estrangeiro) para 188 (cento e oitenta e oito) casos.

    Segundo o Censo de 2010, a populao nascida no Paraguai que vive na RMSP predominantemente jovem: por volta de 60% tem idade igual ou inferior a 29 anos. Trs em cada quatro paraguaios residentes em So Paulo tm idade inferior a 39 anos. A faixa etria mais representada se situa entre 19 e 29 anos. Ainda que haja predomnio de homens, nota-se que no h grande disparidade entre os sexos, 52,6% de homens contra 47,4% de mulheres. No entanto, ao se analisar o sexo dos migrantes pela faixa etria, registra-se uma maior variao: h predomnio de homens nas faixas etrias mais jovens, do total com idade at 39 anos, 58,7% so homens, sendo que at 18 anos e entre 30 e 39 anos a preponderncia de homens chega a quase 70%. Ao se visitar as oficinas de costura de paraguaios, nota-se nesses espaos o predomnio masculino. Conforme relatado, mais frequente a sada dos jovens do sexo masculino para buscarem alternativas de sustento, enviar remessas para a famlia, enquanto as jovens mulheres (que tambm vm, mas em menor intensidade) frequentemente ficam com os pais para ajudar no cuidado domstico, ou migram apenas aps terem contato com pessoa de confiana estabelecida, em geral um homem.

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    O grfico da pirmide etria dos paraguaios residentes na RMSP evidencia a preponderncia de jovens, com idade entre 15 e 35 anos, a baixa quantidade de crianas e idosos. O reduzido nmero de crianas se deve ao fato de que os migrantes que vm a So Paulo, em sua maioria, no trazem os filhos do pas; o perfil composto por jovens sem filhos que migram para o Brasil. No entanto, deve-se ressalvar, pela observao de campo, que muito comum a paternidade e maternidade desses migrantes em idade bastante jovem. Nas visitas a campo, notou-se a constituio de famlias de paraguaios com idade inferior a 22 anos, que tinham entre um e dois filhos. Em alguns casos, os migrantes que constituam famlia com filhos tinham se conhecido em So Paulo, outras vezes eles tinham migrado juntos do Paraguai. Ao se visitar o Parque da Luz, ou a Praa dos Paraguaios (Praa Nicolau de Moraes Barros) num final de semana, seguramente se poder encontrar essas jovens famlias com suas crianas. Muitas vezes, essas crianas, filhas de migrantes, nascem no Brasil, portanto, so brasileiras e no entram na pirmide etria. A maior parte das crianas com que pudemos interagir em So Paulo frequentava a escola brasileira, no tinha grandes dificuldades para conseguir matrcula, sendo que os pais falavam o guarani e/ou o castelhano com os filhos. Muitas vezes, eles respondiam em lngua portuguesa, justamente devido experincia escolar.

    Grfico 2 Pirmide etria das pessoas nascidas no Paraguai, residentes na RMSP,Censo Demogrfico de 2010

    Fonte: IBGE, Censo Demogrfico 2010.Elaborao: Daniel Ribeiro e Maria Mercedes - Expertise Social Ltda.

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    Ao contrrio do senso comum brasileiro, que pensa que os paraguaios, em sua maioria, so indgenas, esteretipo reforado pelo fato de falarem o guarani16, as pessoas dessa nacionalidade recenseadas em 2010 no se declaram como indgenas; na RMSP sequer houve um registro. Mais da metade se considera de cor ou raa branca (70,6%) e ao redor de um quarto se denomina pardo (27,1%). Em relao religiosidade, o Censo de 2010 confirmou a expectativa de predomnio de catlicos (76,4%). A coletividade paraguaia que vive na RMSP devota da Virgencita de Caacup; o artigo de Porfirio Leonor Ramrez neste dossi aborda a questo em profundidade. Em todos os anos, na cidade de So Paulo, mais de dois mil migrantes se renem na Igreja Nossa Senhora da Paz, no Glicrio, para fazerem suas oraes Santa. Em segundo lugar, com o registro de 8,5% do total, aparecem os sem religio, seguidos pelos ateus (2,5%). O restante dos paraguaios est distribudo entre diferentes igrejas, sobretudo (neo)pentecostais.

    Tabela 4 Distribuio percentual das pessoas nascidas no Paraguai, residentes na RMSP, conforme cor e/ou raa e religio e/ou culto.

    Fonte: IBGE, Censo Demogrfico 2010.Gerao de dados: Daniel Ribeiro e Maria Mercedes - Expertise Social Ltda.Elaborao prpria

    A tabela abaixo evidencia a distribuio percentual dos paraguaios residentes na RMSP por nvel de instruo conforme perodo em que fixaram residncia no pas. De modo geral, os recenseados no tm alta escolarizao, apenas 8,0% do total declarou ter cursado o ensino Superior Completo. Mais de um tero (35,4%)

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    sequer tem o Ensino Fundamental completo. Um pouco mais da metade relatou ter entre o Fundamental Completo e o Superior Incompleto. Ao se comparar o percentual dos com Ensino Superior, salta vista o valor alcanado por aqueles que fixaram residncia na RMSP at 1980: quase um quinto (19,7%), enquanto os grupos que chegaram posteriormente apresentam uma participao muito mais baixa de pessoas com maior escolarizao. Em 2010, 42,8% dos paraguaios que residiam na RMSP e que tinham ensino superior completo estabeleceram residncia antes dos anos 1980. Esses dados reforam a hiptese desenvolvida na primeira parte deste texto, de que houve uma primeira leva de migrantes paraguaios composta por profissionais liberais, com maior qualificao, dentre os quais pode-se enumerar mdicos, pessoas com trajetrias urbanas e que vieram ou com apoio do governo de Stroessner, devido aproximao com o Brasil, ou fugidos da ditadura. No entanto, deve-se ressalvar, isso no quer dizer que a maior parte dos migrantes que chegaram antes dos anos 1980 pertencesse a esse grupo. O Censo mostra que 29,1% dos migrantes que chegaram at 1980 eram sem instruo e/ou com fundamental incompleto; quase 60% apresentavam, no mximo, o mdio incompleto. A tabela evidencia uma mudana do perfil de escolarizao dos paraguaios que rumaram a So Paulo. Nos grupos mais novos, que fixaram residncia na RMSP no sculo XXI (o que representa 67,0% dos paraguaios na RMSP em 2010), o percentual dos menos escolarizados mais elevado. Mais da metade (57,6%) dos que chegaram a So Paulo entre 2001 e 2005 no apresentavam sequer o fundamental completo, enquanto entre os vindos de 2006 a 2010, 70,5% tinham escolarizao inferior ao ensino mdio incompleto.

    Tabela 5 - Distribuio percentual do nvel de instruo conforme perodo em que fixou residncia no Brasil das pessoas nascidas no Paraguai, residentes na RMSP, mediante os

    resultados gerais para a amostra do Censo Demogrfico 2010.

    Fonte: IBGE, Censo Demogrfico 2010.Gerao de dados: Daniel Ribeiro e Maria Mercedes - Expertise Social Ltda.Elaborao prpria

    Analisando-se a distribuio dos paraguaios exclusivamente no municpio de So Paulo, nota-se a concentrao em distritos que tm relao com a indstria de confeces. Pari, Bom Retiro, Vila Medeiros, Brs e Vila Maria concentram

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    quase a metade (44,4%) dos paraguaios em So Paulo. Os distritos do Bom Retiro e do Brs tm uma relao histrica e antiga com a indstria de confeces, sendo que essas regies so conhecidas como postos de comercializao de vestimentas. Pari, Vila Medeiros e Vila Maria, como sabido pelos estudos realizados com migrantes bolivianos, so regies que concentram alto nmero de oficinas de costura, que se multiplicaram e espalharam pela cidade aps os processos de reestruturao produtiva (este tema foi aprofundado em outro texto que acompanha este dossi).

    Em geral, a espacializao dessas oficinas tem relao direta com o circuito das encomendas e das confeces. Os imveis, que concentram em um mesmo espao moradia e trabalho, localizam-se de forma estratgica, balanceando os custos de mobilidade na cidade com os custos de aluguis. Aqueles que ficam na regio central (Brs, Bom Retiro e Pari, por exemplo) tm custos mais elevados de aluguel e custos mais reduzidos em termos de circulao pelos locais de referncia para a execuo da atividade produtiva, como buscar as encomendas de tecidos cortados, entregar as vestimentas prontas ou acessar as lojas e representantes de materiais de insumo para a costura (como aviamentos a mquinas). J os imveis que se espalharam para as regies mais perifricas, de modo geral, seguiram uma tendncia de se localizar em pontos estratgicos que unem vias de acesso (inclusive metr e trem) aos mesmos locais de referncia na regio central, mas com custos menores de aluguel. , portanto, devido a essa infraestrutura urbana que a maior parte das oficinas de costura que se espalharam para as regies perifricas da cidade se concentraram nas zonas norte e leste. Com exceo do Graja, os distritos das regies sul e oeste de So Paulo, por exemplo, no aparecem tendo peso entre os principais destinos desses migrantes na cidade. A prpria concentrao de paraguaios em Guarulhos tem a ver com a facilidade de acesso ao centro de So Paulo, imbricada no circuito das encomendas.

    Tabela 6 Distribuio percentual das pessoas nascidas no Paraguai residentes no municpio de So Paulo conforme os distritos de So Paulo, mediante os resultados gerais

    para a amostra do Censo Demogrfico 2010.

    Fonte: IBGE, Censo Demogrfico 2010.Gerao de dados: Daniel Ribeiro e Maria Mercedes - Expertise Social Ltda.Elaborao prpria

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    Os dados do Censo sobre as ocupaes dos paraguaios residentes na RMSP evidenciam a importncia da indstria de confeces para esse grupo de migrantes. Quase a metade (47,1%) dos recenseados afirmaram ter ocupao relacionada indstria de confeces, sendo que 41,7% informaram ser operadores de mquina de costura. As atividades relacionadas ao comrcio tambm tm grande importncia entre os paraguaios residentes na RMSP. Como se pode verificar pela observao de campo em mercados populares, como a Feira da Madrugada no Brs, h um nmero alto de comerciantes paraguaios. Em muitos casos, comercializam vestimentas, que podem ter sido fabricadas por eles mesmos. Outra ocupao que aparece na lista com as principais ocupaes dos paraguaios a de trabalho domstico. Foram entrevistadas algumas mulheres que, tendo migrado nos anos 1990, trabalham em casas de famlia.

    Tabela 7 Ocupao exercida no trabalho das pessoas nascidas no Paraguai1, residentes na RMSP, mediante os resultados gerais para a amostra do Censo Demogrfico 2010.

    Fonte: IBGE, Censo Demogrfico 2010.Gerao de dados: Daniel Ribeiro e Maria Mercedes - Expertise Social Ltda.Elaborao prpria

    O nmero de 2.974 migrantes nesta tabela difere do valor apresentado anteriormente (4.146) pois houve uma massa de pessoas que no respondeu pergunta. Trata-se de erro devido desagregao detalhada dos microdados do Censo.

    A heterogeneidade da comunidade paraguaia em So Paulo se relaciona fortemente com a histria da sua migrao para a cidade, os diferentes momentos e fatores que atuaram na conformao desse fluxo. Variados vnculos e formas de insero na dinmica da cidade foram construdos ao longo desses anos. De todo modo, como pudemos ver, a dinmica mais recente se relaciona fortemente com o desenvolvimento da indstria de confeces, acompanhando os processos migratrios que envolvem bolivianos.

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    Consideraes finais

    Apesar de pouco percebida e debatida, a migrao paraguaia para So Paulo j tem mais de 50 anos, trata-se de uma das principais populaes que chegaram cidade nos ltimos anos. Ao longo deste texto, buscamos evidenciar os principais aspectos histricos que conformaram esse fluxo em So Paulo. As razes dessa migrao foram estabelecidas na ditadura de Stroessner: a perseguio massiva da oposio e a aproximao com o governo brasileiro foram aspectos que engendraram um primeiro tipo de migrante paraguaio que chegou a So Paulo. Em geral, pessoas com trajetrias urbanas, muitas das quais com qualificao elevada. O intercmbio e incentivo vinda de estudantes, a construo da Ponte da Amizade e da rodovia que corta o pas ao meio, ligando Foz do Iguau capital paraguaia foram outros aspectos que permitiram essa mobilidade.

    Ao mesmo tempo, Stroessner empreendeu uma srie de medidas que reestruturaram a organizao fundiria do pas. Brasileiros, a maior parte da regio sul e do Mato Grosso do Sul rumaram ao Paraguai onde tiveram a oportunidade de se estabelecer. Os baixos custos das terras, que poderiam ser quitadas com a simples explorao da madeira que havia sobre elas e o elevado custo da soja no mercado internacional foram fatores que impactaram diretamente na dinmica do xodo rural paraguaio. Uma massa de trabalhadores saiu do campo rumo s cidades. Com o esgotamento da absoro dessa fora de trabalho, a perspectiva da migrao transnacional se fortalece.

    Na primeira dcada dos anos 2000, as crises na Argentina e na Espanha foram fatores importantes para reestruturar os sentidos dos destinos migratrios dos paraguaios. Nesse momento, So Paulo passa a ganhar importncia: a facilidade de acesso, os baixos custos para cruzar a fronteira e instalao no municpio, a possibilidade de trabalho em oficinas de costura que fornecem moradia e emprego, o aquecimento da economia brasileira no contexto de recesso global so alguns dos aspectos que engendraram o aumento da migrao recente. De modo geral, trata-se de um perfil especfico de migrantes: jovens, com menos de 39 anos de idade, em sua maioria homens, com baixa escolaridade, pessoas que vieram de regies rurais do Paraguai, sendo o departamento de Caaguaz, ou mais especificamente o municpio de Repatriacin uma das principais origens desses migrantes.

    Ao longo do texto, buscou-se evidenciar aspectos gerais da histria paraguaia que conformou as razes para a consolidao de perfis de migrantes distintos que se instalaram em So Paulo. O objetivo no foi esmiuar ou detalhar esse fluxo migratrio, mas sim traar um panorama para podermos aprofundar a discusso sobre o tema.

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    Notas1 - Guampa o recipiente, de couro ou madeira, que se utiliza para tomar o terer. Yopar uma lngua resultante da fuso morfossinttica, gramatical e semntica dos idiomas guarani e espanhol.2 - Disponvel em: e . Acesso em: 15 jun. 2014.3 - As informaes dos microdados do Censo de 2010 apresentadas foram processadas por Daniel Ribeiro e Maria Mercedes, da Expertise Social Ltda.-ME - Desenvolvimento Institucional e Estudos Sociais Aplicados. 4 - H uma profunda e relevante discusso que no poderemos retomar neste momento que se refere ao lugar do Estado-nao como constituinte da identidade nacional, de vnculos de solidariedade social e de cidadania. Isto , trata-se de questionamentos das noes de nao, sociedade, pas e povo. Inclusive, h uma reflexo profunda de cunho epistemolgico que questiona o lugar das cincias sociais na construo prtica e poltica dessas noes. Ver Benedict Anderson (2008), Arjun Appadurai (1997), Andreas Wimmer e Nina Glick-Schiller (2003), dentre outros.5 - Os dados do Censo de 2012 do Paraguai ainda no foram divulgados. No entanto, uma pesquisa quantitativa indica que os brasileiros continuam sendo o principal contingente populacional de estrangeiros no pas, ver: Anurio Paraguayo DGEEC, 2012, p. 58. Disponvel em:. Acesso em: 15 jun. 2014.6 - Companhias colonizadoras brasileiras que tinham como negcio vender terras em territrio paraguaio.7 - O bushel de soja a unidade de medida utilizada para as transaes nas bolsas de valores da commodity soja, equivale a 60 libras ou 27,2155 kilos. Um penny equivale a um centavo de dlar estadunidense. 8 - O Estado de So Paulo, 7 de maro de 1959, p. 2. Disponvel em: . Acesso em: 24 fev. 2014.9 - Segundo informaes oficiais, a populao total do Paraguai era de 1.328.452 pessoas em 1950; 1.819.103 em 1962; 2.357.955 em 1972; 3.029.830 em 1982; 4.154.588 em 1992; 5.163.198 em 2002 e, para 2012, projetava-se a populao de 6.672.631. Disponvel em: . Acesso em: 15 jun. 2014. 10 - O incio da histria de migrao de paraguaios para o Brasil remonta ao perodo diretamente posterior Guerra da Trplice Aliana (1864-1870). Migravam para as zonas rurais em regies fronteirias. O Mato Grosso do Sul foi o estado que recebeu o maior nmero de migrantes neste momento (PALAU, 2011). Parte da cultura e identidade sul-mato-grossense se deve justamente a esses fluxos migratrios, que impactaram diretamente na cultura, na culinria (chipa, sopa), na msica (a harpa), na lngua. O Mato Grosso do Sul foi o principal destino de fluxos migratrios paraguaios transnacionais aps a Guerra da Trplice Aliana, os paraguaios trabalhavam para a Companhia Mate Laranjeira; o segundo momento de intensificao da migrao paraguaia para o estado foi com a ditadura de Alfredo Stroessner. Para mais informaes, ver Marcos Leandro Mondardo (2013).

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    11 - A histria deste mdico foi relatada por um de nossos entrevistados. A cmara de vereadores de So Paulo lhe rendeu homenagens em 2007. Para maiores informaes acesse: ; . Acesso em: 15 jun. 2014. 12 - Ver notcia do Estado de So Paulo, 19 de setembro de 1982, pag. 36. Evidencia a chegada de coreanos irregulares a So Paulo que substituram judeus nos negcios das confeces no Bom Retiro e Brs. Naquele perodo, os coreanos entravam no Brasil ou por Foz do Iguau ou por Ponta Por, ambos municpios que fazem fronteira com o Paraguai. Disponvel em: . Acesso em: 15 jun. 2014.13 - Mercosul no muda vida de imigrantes sul-americanos. Estado de So Paulo, domingo, 30 de julho de 1995, pgina A26. Disponvel em: . Acesso em: 15 jun. 2014. 14 - O nome fictcio, a trajetria real. Foi realizada por ns uma entrevista com o migrante em 2013. Porfirio Leonor Ramrez, pesquisador paraguaio, em outra ocasio, tambm o entrevistou. Com autorizao do entrevistado e do entrevistador, tivemos acesso transcrio do material coletado por Ramrez, que tinha informaes mais detalhadas do que as que obtivemos. 15 - O Acordo de Schengen uma conveno entre pases europeus sobre uma poltica de abertura das fronteiras e livre circulao de pessoas entre os pases signatrios. Um total de 30 pases, incluindo todos os integrantes da Unio Europeia (exceto Irlanda e Reino Unido) e trs pases que no so membros da UE (Islndia, Noruega e Sua), assinaram o acordo.16 - A cano ndia, escrita pelo paraguaio Jos Asuncin Flores, gravada no Brasil nas vozes de Cascatinha e Inhana e, posteriormente, Gal Costa, uma guarnia, estilo musical tradicional do pas.

    RefernciasAPPADURAI, Arjun. Soberania sem territrio: notas para uma geografia ps-nacional. So

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    RESUMO

    O objetivo deste artigo apresentar, de forma introdutria, a histria da migrao paraguaia para a Regio Metropolitana de So Paulo e, em seguida, o perfil, segundo o Censo de 2010, das pessoas nascidas no Paraguai residentes na RMSP, de modo a realizar uma anlise da heterogeneidade dessa populao. Sugere-se que os aspectos que consolidaram essa migrao para So Paulo foram engendrados na ditadura de Alfredo Stroessner, com a perseguio massiva dos opositores ao governo, com a aproximao e intercmbio entre o governo brasileiro e o paraguaio e, por fim, com a reestruturao fundiria do Paraguai e o consequente xodo rural. Segundo os dados estatsticos apresentados, a migrao paraguaia cresceu exponencialmente a partir da segunda metade dos anos 2000, concomitante s crises em outros pases de destino dos paraguaios. O perfil dos migrantes recentes de jovens, majoritariamente homens, com baixa escolaridade, que trabalham com costura, vivem na Vila Medeiros, Bom Retiro e arredores e Vila Any, em Guarulhos.

    Palavras-chave: migrao paraguaia; perfil migratrio; histria migratria.

    ABSTRACT

    The objective of this paper is to present, in an introductory way, the history of Paraguayan migration to the Metropolitan Region of So Paulo (MRSP) and the profile, according to the IBGE-Census 2010, of people born in Paraguay and residents in the MRSP, as well as to perform an analysis of the heterogeneity of this population. It is suggested that the aspects that consolidated this migration to So Paulo were engendered in the dictatorship of Alfredo Stroessner, with the massive persecution of opponents of the government, the approach and exchange politics between Brazilian and Paraguayan governments, and finally, the land restructuring in Paraguay and the consequent rural exodus. According to the statistical data presented, Paraguayan migration has grown exponentially since the second half of the 2000s, concurrent to the crises in other countries of destination for Paraguayans. The recent migrant profile is young, male, with low education, working with sewing, living in Vila Medeiros, Bom Retiro and surroundings and Vila Any, Guarulhos.

    Keywords: paraguayan migration; profile; history.

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    Foto: Tiago Rangel Crtes.Oficina de Costura de paraguaios na Vila Medeiros, So Paulo. Detalhe do terer, companheiro de todas as horas.

    Migrantes na costura em So PauloParaguaios, bolivianos e brasileiros

    na indstria de confeces

    Tiago Rangel Crtes *Carlos Freire da Silva **

    A dinmica atual da indstria de confeces em So Paulo se confunde com a histria dos fluxos de migrantes que em diferentes momentos a compuseram. Em seu surgimento a partir da dcada de 1930 e desenvolvimento ao longo do sculo passado, esteve relacionada a diversos contingentes migratrios: srios,

    * Mestre em Sociologia pela USP e Tcnico do Observatrio do Trabalho/DIEESE. ** Pesquisador, doutor em Sociologia pela USP.

    confeces

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    libaneses, judeus, coreanos; e tambm nacionais, principalmente do nordeste do pas1. A partir do final dos anos 1970, sobretudo ao longo da dcada de 1990 e de 2000, destaca-se a migrao transnacional de trabalhadores que operam mquinas de costura. Dentre diversas nacionalidades, bolivianos e paraguaios tm afludo em intensidade para a regio e se inserido nesse segmento produtivo, fenmeno importante para a vida urbana da Regio Metropolitana de So Paulo (RMSP).

    O que tem despertado um grande debate pblico sobre esses fluxos, em especial em torno dos bolivianos, no tanto o volume absoluto de pessoas, seno a forma particular de insero na cidade: a tendncia especializao no setor de confeces e as condies precrias de trabalho s quais esto sujeitos (segundo inferncias do Censo de 2010, 29,9% dos paraguaios e 42,6% dos bolivianos residentes na RMSP trabalham como operadores de mquina de costura2). As formas extremas de explorao dos migrantes no setor tm sido amplamente veiculadas pelas mdias, pesquisadas nas universidades, denunciadas por organizaes de direitos humanos e causado aes do Ministrio do Trabalho e Emprego (MTE) e do Ministrio Pblico do Trabalho (MPT). Porm, a nfase exclusiva ao caso de bolivianos tem causado algumas distores no debate, como atribuir as condies de trabalho em So Paulo origem nacional dos migrantes. Nesse sentido, a participao dos paraguaios no setor algo relativamente pouco tematizada, embora no ignorada em diferentes estudos.

    O objetivo deste artigo ser justamente discutir os migrantes transnacionais que gravitam em torno das oficinas na RMSP. Partindo da hiptese de Sylvain Souchaud (2012) de que a insero de migrantes no segmento no se constitui como um nicho tnico, mas sim um nicho de mercado para diferentes grupos, sugere-se a existncia de uma afinidade no modo como se organizam os fluxos migratrios e a estrutura produtiva do segmento (FREIRE, 2008; CRTES, 2013). Como procuraremos demonstrar, as condies de trabalho, as violaes e as situaes a que so submetidos (e s quais se submetem) os trabalhadores no so caractersticas ligadas origem nacional desses migrantes, mas decorrem da maneira como se associa a migrao e a organizao do trabalho na cadeia produtiva da indstria de confeces. Destaca-se especialmente a posio de poder e controle das grandes empresas varejistas e atacadistas, que auferem os maiores ganhos na cadeia, responsveis por ditar o ritmo da produo, definir os estilos e tipos de vestimentas, em um modelo de gesto produtiva em que no so responsabilizadas pelos contratos de trabalho dos operadores das mquinas de costura.

    O texto est dividido em dois momentos. No primeiro abordaremos o desenvolvimento recente da indstria de confeces. Procuraremos mostrar que, embora possa haver semelhanas entre as oficinas de costura atuais e os sweatshops do sculo XIX (GREEN, 1998), isso no quer dizer que as oficinas representem um anacronismo residual no setor. A situao atual de organizao do segmento atravs da proliferao de pequenas clulas produtivas, em que

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    frequentemente coincidem espaos de moradia e trabalho que contam com migrantes muitas vezes em situaes precrias, coincide com o processo de modernizao e desenvolvimento global da indstria de confeces. H uma afinidade entre os modos como se estruturam a produo pulverizada de vestimentas em oficinas de costura e os atuais fluxos migratrios transnacionais dinamizados, no caso da RMSP, por bolivianos e paraguaios e, em menor medida, por peruanos e migrantes de outras nacionalidades.

    Num segundo momento, traaremos algumas comparaes entre a organizao de oficinas de costura de bolivianos, paraguaios e brasileiros e o perfil de seus trabalhadores. Como foi dito, embora a nfase dada ao debate tenha pautado quase exclusivamente o caso dos bolivianos, a maior parte dos trabalhadores do segmento so mulheres brasileiras e, desde os anos 1980, h registros da participao de paraguaios, tendo crescido exponencialmente a partir de meados dos anos 2000. O grande diferencial das oficinas de migrantes se deve ao modo pelo qual se articulam as condies de trabalho, a moradia e a intermediao migratria. Ao mesmo tempo em que essas caractersticas favoreceram as oficinas de costura a se constiturem como um nicho de mercado para migrantes, facilitando a insero dos trabalhadores na vida urbana de So Paulo, esses termos se situam na base das autuaes dos rgos de fiscalizao do trabalho. Ao considerar a presena de paraguaios no setor, buscaremos deslocar a problematizao tnica ou da origem nacional, com o objetivo de compreender as semelhanas e diferenas dos trabalhadores migrantes e brasileiros que operam mquinas de costura, ou que trabalham em torno dessa atividade especfica.

    Oficinas de costura e mobilidades migratrias

    De acordo com as informaes da Rais3, a Confeco de artigos do vesturio e acessrios representa o grupo de atividade de maior estoque de empregos formais na indstria de transformao da RMSP. Em 2012, constitua 7,5% do total dos empregos na indstria. Dos 93.697 registros de vnculos de emprego, 97,6% eram de brasileiros; dos 2,4% restantes, 1,7% era composto por bolivianos, 0,4% por paraguaios e os demais 0,3% dispersos entre mais de quinze diferentes nacionalidades. Essa simples constatao sobre o mercado de trabalho formal da RMSP indica duas questes importantes: primeiro, a relevncia desse segmento industrial para a economia urbana da cidade; e, em segundo lugar, a presena de migrantes transnacionais, em especial bolivianos e paraguaios, sem deixar de considerar que o segmento composto majoritariamente por trabalhadores brasileiros.

    necessrio ponderar que essa indstria marcada fortemente pelo trabalho informal (logo, no computado pelos dados da Rais), de modo que o

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    nmero de empregos no segmento seguramente muito maior. Ao se analisar exclusivamente os operadores de mquinas de costura formais na RMSP em 20124, havia 39.380 vnculos, dos quais 96,1% (37.289) eram compostos por brasileiros, 3,0% (1.185) por bolivianos e 0,7% (288) por paraguaios, e mais de 15 nacionalidades se dividiam entre os 0,2% (78) restantes. Quando contrastamos as informaes da Rais com os microdados da amostra do Censo de 2010, que captam trabalhadores formais e informais, vemos que as estimativas para Operador de mquina de costura apresentam nmeros bem maiores, seriam 156.695 pessoas na RMSP, sendo 91,1% brasileiros, 7,5% bolivianos (11.807 pessoas) e 0,8% paraguaios (1.242 pessoas).

    Considerando a incidncia de migrantes neste segmento especfico da indstria, podemos pensar as oficinas como um mecanismo que opera em dois sentidos: primeiro, atravs das oficinas de costura se ativam redes de migrao transnacionais, possibilitando a circulao de trabalhadores ao oferecer um caminho de insero na dinmica econmica da cidade. Em segundo, as oficinas possibilitam a gesto do trabalho na indstria de confeces associada a sua produtividade, pois oferecem uma forma de organizao da produo adequada sazonalidade e flexibilidade do setor; livra as empresas que coordenam as cadeias produtivas do peso da manuteno de um grande quadro fixo de trabalhadores para um mercado bastante flutuante; e desresponsabilizam as maiores empresas pelas condies de trabalho desenvolvidas no setor ao descaracterizar a relao de trabalho, que passa a se constituir juridicamente como uma relao de prestao de servios (FREIRE, 2008; CRTES, 2013). Esses sentidos compem um modo de insero dos migrantes, atravs das oficinas, que engendra formas especficas de explorao do trabalho.

    As oficinas de costura so mecanismos atravs dos quais se impulsionou a mobilidade migratria para a regio nos ltimos anos, de modo que h uma afinidade entre essas dinmicas migratrias e a indstria de confeces da RMSP. Sobre o assunto, Sylvain Souchaud (2012) argumenta que a despeito da grande concentrao de migrantes bolivianos no setor, isto no pode ser tomado como um nicho tnico, ou seja, a reincidncia da atuao profissional de migrantes no decorre de caractersticas ligadas origem nacional dos trabalhadores. Ao invs disto, o autor prope que as oficinas se constituram em um nicho econmico para migrantes de diferentes origens. De acordo com Souchaud, elas podem ser pensadas como lugares de insero e ascenso social em que numerosos estrangeiros realizam seus projetos migratrios5, seja de tornar-se dono de oficina ou de acumular recursos para investir em seu pas de origem. De fato, essa uma caracterstica a qual no podemos perder de vista, do contrrio seria difcil entender um fluxo to grande de pessoas que se pem a atravessar fronteiras para trabalhar com costura em So Paulo.

    Devido a essa razo, o autor sugere que as oficinas de costura no podem ser interpretadas unicamente na perspectiva da explorao da mo de obra. A informalidade e a flexibilidade desses espaos seriam elementos que facilitariam

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    a integrao dos migrantes ao mercado de trabalho (entre pessoas conhecidas, normalmente parentes ou amigos de amigos), falando a mesma lngua e assimilando novos cdigos sociais, teriam a oportunidade de aprender o ofcio da costura (em geral, no se exige o conhecimento prvio), sem constrangimentos do empregador para a regularizao da situao no pas (SOUCHAUD, 2012, p. 80).

    No entanto, os mesmos aspectos apontados por Souchaud como vantajosos, por permitirem a insero na cidade, alguns casos de ascenso social e a realizao dos projetos migratrios, podem implicar em uma problemtica relao ampliada entre a intermediao da migrao, a moradia no mesmo local de trabalho e a remunerao por produtividade. As oficinas dos migrantes tm como caracterstica distintiva tambm serem recorrentemente espaos de moradia, com hospedagem e alimentao. Por vezes, at mesmo o deslocamento para a nova cidade pode ser financiado pelo dono da oficina. Esta relao no tem um significado homogneo para o conjunto dos migrantes, mas a partir dela que surgem situaes limites como reteno de documentos, endividamentos, coaes e restries de mobilidade. Esses elementos compem as denncias de situaes extremas de explorao, realizadas por entidades sociais de apoio aos migrantes e pelos prprios migrantes, assim como autuaes do Ministrio Pblico do Trabalho (MPT) e do Ministrio do Trabalho e Emprego (MTE) de reduo do trabalhador condio anloga de escravo6 (categoria do cdigo penal mobilizada por auditores fiscais e procuradores do trabalho).

    O lugar que vem sendo ocupado pelos migrantes na indstria de confeces em So Paulo ganhou corpo no processo de reestruturao produtiva a partir dos anos 1980 e foi intensificado nos anos 1990. De acordo com Branislav Kontic, antes a firma concentrava internamente diversas etapas do processo produtivo e de distribuio, em um modelo de produo em que a economia de escala garantida pela demanda estvel ou crescente implicava um padro de diviso tcnica e social do trabalho com uma linha de produo em srie, onde se separava o planejamento da execuo, com a lgica de um operador por tarefa e mquina (KONTIC, 2001, p. 44-45).

    Nos anos 1980, muitas das firmas que se inspiravam nessa estrutura organizacional faliram; outras saram da regio metropolitana de So Paulo, e instalaram suas empresas no nordeste e sul do pas; outras tentaram se amoldar ao novo perodo, mudaram sua estrutura produtiva, diminuram suas plantas e se especializaram em diferentes segmentos da produo. As empresas buscaram se adaptar s novas exigncias do mercado. Neste processo, a subcontratao se generalizou e a etapa da costura, momento da produo caracterizado por ser altamente intensivo em fora de trabalho, passou a ser majoritariamente um servio externo contratado pelas empresas como estratgia de gesto de mo de obra.

    Devido s novas condies do mercado, caracterizada pela produo flexvel, que combina alta produtividade, pequena escala de produo, diversificao de produtos e explorao de nichos de mercado em funo das variaes de

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    tendncias da moda, verificou-se uma profunda mudana nas formas de gesto da mo de obra (KONTIC, 2001, 2007; GARCIA e CRUZ-MOREIRA, 2004). A subcontratao de oficinas de costura no deve ser entendida como simples expediente para a reduo de custos trabalhistas, mas sobretudo como um modo de gesto da produo. Com a compresso do intervalo de tempo entre o design da pea, sua confeco e consecutiva venda, as empresas responsveis pela distribuio demandam produtos exclusivamente quando avaliam momento oportuno para venda no mercado.

    O processo de reestruturao acompanhou uma fragmentao na cadeia das confeces entre empresas de acordo com os tipos de servios prestados. No topo da cadeia esto as empresas ligadas distribuio, so elas as grandes marcas e lojas de departamento que dominam o comrcio varejista e esto presentes nos principais centros de consumo do pas. Elas dinamizam toda a cadeia produtiva, pois as suas ordens de servio ditam o ritmo de trabalho no outro extremo da cadeia as oficinas de costura, fazendo oscilar perodos de muito volume de trabalho e prazos apertados e outras pocas em que a falta de encomendas motivo de preocupao, de modo que as oficinas de costura so bastante dependentes do circuito de encomendas ativado pelas empresas do topo da cadeia (FREIRE, 2008). Em seguida, esto situadas as empresas confeccionistas que propriamente fabricam as roupas. Elas se concentram no Brs e no Bom Retiro, mas tambm se dispersaram pela zona leste e at para outros municpios da regio metropolitana de So Paulo, como Guarulhos, e mesmo para fora da RMSP, como no polo txtil de Americana. Ao longo dos anos 1990, elas diminuram suas estruturas, concentrando-se nas tarefas de criao, modelagem e corte dos tecidos, alm das vendas diretas atravs das lojas-fbrica.

    De acordo com Branislav Kontic (2001), os migrantes coreanos foram importantes na configurao atual do setor. Nos anos 1960 e 1970, chegaram cidade e abriram pequenas empresas de confeco, onde mobilizavam fora de trabalho dos prprios conterrneos e comercializavam as vestimentas nas regies em que moravam, especialmente no Bom Retiro. As condies de trabalho se assemelhavam s oficinas de bolivianos e paraguaios atualmente7. Conseguiram desenvolver uma estrutura produtiva bastante adaptada ao contexto global, logrando o oferecimento de produtos de qualidade, diferenciados, com valores bastante competitivos. De modo geral, a comunidade coreana apresentava alguns elementos que permitiram a sua atuao destacada no setor capital inicial para investimento, um modo prprio de financiamento conhecido como sistema Kye, importao e revenda de mquinas industriais de costura, entre outros (KONTIC, 2001; CHOI, 1991). Os coreanos apresentam histrico de migrao para as capitais do Paraguai, Bolvia e Argentina, sendo que em alguns casos passaram por estes lugares antes de se estabelecer no Brasil (CHOI, 1991; BUECHLER, 2003). Tanto migrantes paraguaios, como bolivianos que se estabeleceram h mais tempo no setor, relatam que no princpio trabalhavam diretamente como empregados de coreanos. Embora esta relao possa ter sido importante na origem dessas

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    dinmicas migratrias vinculadas costura, atualmente impossvel caracteriz-las como uma relao entre grupos especficos.

    No final dos anos 1980 e nos 1990, muitos trabalhadores foram estimulados a abrirem suas prprias oficinas, com doao ou emprstimos de mquinas por seus patres, a fim de prestarem servios de costura. Seja no caso das oficinas de brasileiros, muitas delas de ex-operrias das fbricas que perderam seus empregos e passaram a realizar exatamente o mesmo trabalho em seus domiclios, mobilizando parentes e vizinhos para cumprir as encomendas; seja no caso das oficinas de migrantes paraguaios e bolivianos que agenciavam a vinda de parentes e conhecidos diretamente de seus pases de origem; ambas se multiplicaram no mesmo perodo. Na prtica, poucas oficinas se constituram formalmente como empresas e no princpio esse processo foi acompanhado do crescimento da informalidade nas relaes de trabalho (embora, como veremos adiante, tenha ocorrido um crescimento da formalizao no setor ao longo da ltima dcada). O servio da costura remunerado por pea confeccionada, recebem-se os tecidos cortados e o demandante estipula o prazo que o prestador ter para realizar a tarefa. Como o segmento marcado pela sazonalidade e flutuao da demanda, o risco em relao garantia da reproduo da fora de trabalho exteriorizado para