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SENATUS

v. 4 n. 1 novembro 2005

Brasília

ISSN 1678-2313

Senatus Brasília v. 4 n. 1 p. 1-88 nov. 2005

DIRETOR DA SECRETARIA DE INFORMAÇÃO E DOCUMENTAÇÃODO SENADO FEDERALPaulo Afonso Lustosa de Oliveira

EDITOR RESPONSÁVELVera Manzolillo (DF0615JP)

EQUIPE TÉCNICA E REVISÃOAntonio Augusto Araújo CunhaMaria Isabel A. F. B. TaveiraMarilúcia ChamarelliVera Lúcia Corrêa Nasser Silva

PROJETO GRÁFICO E CAPACamila Gabriela Souza - Subsecretaria de Projetos Especiais/ Núcleo de Criação e Marketing daSecretaria Especial de Comunicação Social

ILUSTRAÇÕESPedro Sampaio Nascimento- Subsecretaria de Projetos Especiais/Núcleo de Criação e Marketing daSecretaria Especial de Comunicação Social

IMPRESSÃOSecretaria Especial de Editoração e Publicações do Senado Federal

Endereço para correspondênciaSenado Federal - Anexo I - 18o andar - salas 1808 a 181070165-900 Brasília/DFTel.: (61) 3311-4382Fax: (61) 3311-3079e-mail: [email protected]

Periodicidade: irregularTiragem: 5.000 exemplaresTambém disponível em: http://www.senado.gov.br/web/revistas/senatus

Os conceitos emitidos nos artigos são de responsabilidade de seus autores.Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.

SENATUS

Senatus : cadernos da Secretaria de Informação eDocumentação / Senado Federal, Secretaria deInformação e Documentação. – vol. 1, n. 1 (dez. 2001)–. –Brasília : Senado Federal, Secretaria Especial deEditoração e Publicações, 2001–.

v.Periodicidade varia.Subtítulo suprimido a partir do vol. 2, n . 1 (dez. 2002).ISSN 1678-2313

1. Ciências Sociais – Periódico. 2. Ciência da informação –Periódico. I. Brasil. Congresso. Senado Federal. Secretariade Informação e Documentação.

CDU 3CDD 300.5

EditorialPaulo Afonso Lustosa de Oliveira............66666

EspecialCiclo de Conferências 2004:

“Era Vargas”.............1414141414A presença de Vargas na República brasileira........1414141414

Burle Marx....................88888Capa

Dossiê

Patrimônio cultural brasileiro e legislação: um

panorama............1818181818

TributaçãoAs leis e a segurança jurídica dos contratos,senador Renan Calheiros, Presidente do SenadoFederal.............

Meio AmbienteA ciência, a crise ambiental e a

sociedade de risco......................4242424242

SENATUS

V. 4 / n. 1Uma publicação editada pela Secretariade Informação e Documentação

CULTURA

DestaqueSenador Romero Jucá saúda publicação da revista

SENATUS.........3636363636Íntegra do pronunciamento...............3838383838

Por uma política pública para a cultura.........2626262626

3434343434

Direito internacionalDesafios, Perplexidades e Paradoxos

no “Novo” Direito Internacional

dos Conflitos Armados..............................................................................................................5454545454

Combustível renovávelO Biodiesel no Brasil...............4949494949

Saúde e direitoSaúde, direito de todos e dever do

Estado...................6060606060

Informática e parlamento

Viagem na América Meridional Descendoo Rio das Amazonas.............................

Prodasen - 33 anos de história a serviço damodernização do Senado e do Legislativobrasileiro...................

Crime OrganizadoA lavagem de dinheiro no Brasil.............................6767676767

Resenha

Tradução e revisão

ÉticaÉtica, Bioética e Tecnologia: os riscos dadesumanização.............................

Aquela mania de revisar tudo.............................8383838383

7070707070

7777777777

8585858585

DEditorial

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e Sófocles, o filósofo grego, vem a explicaçãopara o estado de euforia que acompanha aequipe da revista SENATUS desde olançamento de seu vol.3, nº 1, em junho de

2004: “o bom êxito é o prêmio do trabalho”.“o bom êxito é o prêmio do trabalho”.“o bom êxito é o prêmio do trabalho”.“o bom êxito é o prêmio do trabalho”.“o bom êxito é o prêmio do trabalho”.Êxito Êxito Êxito Êxito Êxito sinônimo de reconhecimento de um trabalhotrabalhotrabalhotrabalhotrabalho de

equipe que, apesar de pequena, tem conseguido concretizar ocompromisso assumido pela Secretaria de Informação eDocumentação desde o primeiro número da revista, que é o dedivulgar e oferecer ao debate da sociedade brasileira temas dosmais variados matizes.

Prova desse êxito são os registros de inúmerostelefonemas, e.mails, telegramas, correspondências em geral,que até hoje nos chegam, parabenizando, elogiando, enaltecendoa iniciativa, oferecendo colaborações, solicitando assinaturas.

Duas outras demonstrações desse reconhecimentolevam a assinatura de dois senadores: o ExcelentíssimoPresidente do Senado Federal, senador Renan Calheiros,escolheu a SENATUS para expor as razões pelas quaisapresentou sua PEC 45/2004, que veda a edição de medidasprovisórias em matéria contratual, mostrando que “eventuaisdisfunções do sistema de leis acabam por afetar as relaçõescontratuais, gerando insegurança jurídica e incertezas”.

O outro grande incentivo veio do senador Romero Jucá,que ocupou a tribuna desta Casa para saudar a SENATUS. Em seupronunciamento afirmou que “a qualidade gráfica e editorial darevista é o que primeiro chama a atenção. E, o que é maisimportante, os artigos e as matérias estão à altura dessa qualidade”.

Essa foi e é nossa aspiração: aliar a qualidade e aintensidade de conteúdo dos artigos à beleza gráfica e editorial.Isso demanda esforço, cuidado e profissionalismo dos poucosque fazem esta revista; mas esses poucos têm um pensamento

em comum: o importante é fazero importante é fazero importante é fazero importante é fazero importante é fazer. E fazem, apesar de todas asadversidades.

Eis o vol. 4, nº 1, da nossa SENATUS. Novamente, comuma belíssima capa, ilustrada por uma tapeçaria de Burle Marx. Oacervo de obras de arte do Senado Federal abriga este e maisdois trabalhos desse prestigiado artista, reconhecidointernacionalmente.

Os 50 anos da morte de Getúlio Vargas, completadosem 2004, foram lembrados das mais variadas formas pelo Brasilafora: reportagens especiais, seminários, programas detelevisão; o BNDES – Banco Nacional de DesenvolvimentoEconômico e Social – promoveu um amplo debate sobre a EraVargas durante a realização do Ciclo de Conferências, iniciativada Secretaria de Informação e Documentação. Nas páginas 14 a17, um resumo histórico da trajetória política de Getúlio Vargase um relato sobre a sólida amizade entre o Presidente Vargas eseu ajudante de ordens.

O DOSSIÊ deste número trata do assunto CulturaCulturaCulturaCulturaCultura. Doisconsultores legislativos do Senado Federal enfocam o tema pelavisão da política pública e de sua legislação. João Bosco BezerraBonfim enfatiza que o “descaso” pela cultura vem desde os temposdo Império brasileiro; e Vera Americano Bueno traça um panoramahistórico de nosso patrimônio cultural, analisando todas as leisde incentivo cultural, das primeiras às mais recentes.

Nada mais necessário que discutir as conseqüências daintervenção do homem na natureza. Maíra Luísa Milani deLima, mestranda do curso de pós-graduação em Direito daUniversidade de Santa Catarina, apresenta um instigantetrabalho que aponta a sutil distinção entre perigos e riscosnesse sentido; Estado, empresas e o próprio homem “fingem”desconhecê-los em prol de seus próprios benefícios, malsabendo que estão construindo sua própria armadilha. O

artigo intitulado A ciência, a crise ambiental eA ciência, a crise ambiental eA ciência, a crise ambiental eA ciência, a crise ambiental eA ciência, a crise ambiental ea sociedade de riscoa sociedade de riscoa sociedade de riscoa sociedade de riscoa sociedade de risco nos faz parar e pensar.

Sob um outro aspecto, mas também enfocando otrabalho sob a ótica da consciência ambiental, Paulo Suareze Frederique Abreu apontam o projeto do biodiesel comoesperançosa alternativa de o Brasil não depender tanto dopetróleo em um futuro não muito distante.

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Outro artigo que merece toda a atenção foi escrito porClarita Costa Maia, consultora legislativa do Senado Federalpara a área de Relações Internacionais e Defesa Nacional, quedescreve os organismos criados com o objetivo de asseguraruma paz mundial ou, pelo menos, uma convivência pacífica erespeitadora entre os países. Em Desafios, perplexidades eDesafios, perplexidades eDesafios, perplexidades eDesafios, perplexidades eDesafios, perplexidades eparadoxos no “novo” Direito Internacional dos conflitosparadoxos no “novo” Direito Internacional dos conflitosparadoxos no “novo” Direito Internacional dos conflitosparadoxos no “novo” Direito Internacional dos conflitosparadoxos no “novo” Direito Internacional dos conflitosarmadosarmadosarmadosarmadosarmados a autora mostra que não é exatamente o que ocorre.

O título da matéria, assinada por três experts no assunto,dispensa qualquer explicação do que irá ser lido: Saúde: direitoSaúde: direitoSaúde: direitoSaúde: direitoSaúde: direitode todos e dever do Estadode todos e dever do Estadode todos e dever do Estadode todos e dever do Estadode todos e dever do Estado. Está lá na nossa Carta Magna. Eaqui, está na página 60.

O chefe do Departamento de Combate a Ilícitos Cambiais eFinanceiros do Banco Central do Brasil, Ricardo Liáo, expõe asrazões por que acredita que o Brasil esteja suficientemente maduropara enfrentar as questões envolvendo os crimes de lavagem dedinheiro.

Os 33 anos da história do Prodasen Os 33 anos da história do Prodasen Os 33 anos da história do Prodasen Os 33 anos da história do Prodasen Os 33 anos da história do Prodasen – a SecretariaEspecial de Informática do Senado Federal – estão registradospelo seu assessor de imprensa, o jornalista Mário Simões.

Ainda para esta edição,Carlos Homero Vieira Nina, chefede gabinete do senador Antero Paes de Barros, e Manoel Moacir

Costa Macêdo, PhD em Sociologia pelaSussex University da Inglaterra, elaboraram umensaio sobre ética e qualidade de vida à luzdas novas tecnologias.

O último artigo, de autoria de RenataHetmanek, é sobre os percalços e, por

que não dizer, sobre as delícias dotrabalho de tradução e de revisão -

uma eterna luta com as palavras - enão deixa de ser uma homenagemao Serviço de Tradução destaSecretaria que, diariamente,silenciosamente, vence algunsrounds desta batalha sem fim.

Finalmente, na seçãoResenhaResenhaResenhaResenhaResenha, o consultor legislativoMarcius Fabiani Barbosa de Souza

presenteia os leitores com o resumo do livro Viagem na AméricaMeridional descendo o Rio das Amazonas, impresso em 1751, naFrança, e reeditado em 2000 pelo Conselho Editorial do SenadoFederal na coleção O Brasil Visto por Estrangeiros.

Eis assim mais um volume da revista SENATUS, veículo deinformação que prova, nas palavras do senador Romero Jucá, queo trabalho desta Casa não se esgota na atividade legislativa, masestende-se na possibilidade de provocar reflexão e debate sobreos grandes temas nacionais.

Como já foi dito acima: o importante é fazer o importante é fazer o importante é fazer o importante é fazer o importante é fazer. O êxito é. O êxito é. O êxito é. O êxito é. O êxito ésó uma conseqüência. só uma conseqüência. só uma conseqüência. só uma conseqüência. só uma conseqüência. Que ele venha novamente traduzido emreconhecimento dos nossos leitores e colaboradores.

Paulo Afonso Lustosa de OliveiraDiretor da Secretaria deInformação e Documentação doSenado Federal

Capa8

“ Se faço jardins não quero fazer pintura,se faço pintura não quero fazer gravura em madeira,se faço xilogravura não quero fazer litografia,cada especialidade pede uma técnica e um meiode expressão. Por isso eu me bato muito:não quero fazer uma pintura que seja jardim.Que a pintura e os problemas artísticostenham influenciado todo o meu conceito de arte,não há dúvida. Tenho procurado na vidanão me cingir a uma fórmula.Detesto fórmulas.Eu amo os princípíos”.

Roberto Burle MarxRoberto Burle MarxRoberto Burle MarxRoberto Burle MarxRoberto Burle Marx

“Composição” , óleo sobre tela, sem data, 133 x 304 cm

Senatus, Brasília, v. 4, n. 1, p. 8-13, nov. 2005

BurleMESTRE DOS JARDINS, DAS TELAS, DAS TAPEÇARIAS,DAS ESCULTURAS E DE MUITO MAIS QUE NOSSA VÃFILOSOFIA POSSA IMAGINAR...

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A primeira imagem que vem à mente quando se fala deBurle Marx é a da figura de paisagista. Conhecido e reconhecidomundialmente nesta arte, poucos sabem, no entanto, que foi(quase) um artista completo. Em uma das mais recentespublicações sobre seu trabalho, intitulada Roberto Burle Marx:

M a r xArte & Paisagem, organizada em comemoração aos seus 95 anospor José Tabacow – seu colaborador por quase três décadas -, háum trecho que enfatiza esse aspecto (quase) desconhecido: “olado experimentador de Burle Marx o levou a realizar projetos depaisagismo, pinturas, esculturas, desenho de jóias, serigrafia,

Senatus, Brasília, v. 4, n. 1, p. 8-13, nov. 2005

Senatus, Brasília, v. 4, n. 1, p. 8-13, nov. 2005

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litografias, design de vasos de cristal, luminárias, pinturas emtecidos e tudo o mais que ele tivesse oportunidade deexperimentar...”.

Se muitas pessoas desconhecem até mesmo que foi pintore escultor, o que dizer então que tenha sido designer de vasosde cristal? É surpreendente e mais um motivo de orgulho paratodos nós brasileiros.

Desse extenso leque de manifestações artísticas, o acervode obras de arte do Senado Federal tem o privilégio de contarcom duas delas: pinturapinturapinturapinturapintura - um tríptico em acrílico sobre tela e umquadro a óleo localizados, respectivamente, no Hall do Anexo IIe no gabinete da Presidência da Casa; e tapeçariatapeçariatapeçariatapeçariatapeçaria: um enormee belo trabalho pendurado em uma das paredes do Museu doSenado, que ilustra nossa capa.

Extraído de um informativo paulista, Guia de Cotia OnLine1, de 24 de dezembro de 2004, a SENATUS transcreveabaixo um breve histórico da vida de Burle Marx:

“Seu pai, Wilhem Marx, veio da Alemanha para o Brasilem 1895, e sua mãe, Cecília Burle, de Pernambuco. Em 04de agosto de 1909, nasceu Roberto Burle Marx, em SãoPaulo, capital. Teve cinco irmãos. Em 1914, a família setransferiu para o Rio de Janeiro, onde Burle Marx realizouseus primeiros estudos.

UM POUCO DE SUA HISTÓRIAUM POUCO DE SUA HISTÓRIAUM POUCO DE SUA HISTÓRIAUM POUCO DE SUA HISTÓRIAUM POUCO DE SUA HISTÓRIA

“(...) artista é aquele que consegueexpressar-se com inteligência. Poroutro lado, para mim a arte é umanecessidade de encontrar um auto-equilíbrio. Existe no entanto, um ladoda arte que é tão imponderável quantoa vida. Se pudéssemos explicar a razãode porque temos necessidade deperpetuarmo-nos, de porquevivemos...”

Entrevista a Ana Rosa de Oliveirafev. 1992

www.vitruvius.com.br/entrevista/burlemarx_5.asp

“Tríptico” , acrílico sobre tela, de 1972, 130 x 480 cm

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A partir de 1919, passou a residir numa chácara no bairrodo Leme, Rio de Janeiro. Era um vasto terreno, com muitapedra e água. Dona Cecília, sua mãe, tomava conta do grandejardim. Ali também morava Ana Piaseck, sua “mãe de criação”.Juntas, cuidavam das crianças e ensinavam Roberto a lidarcom as plantas. Data dessa época seu primeiro canteiro.

Nesse mesmo período, conheceu Lucio Costa, que viviaa poucos metros de sua casa. O autor do Plano Piloto deBrasília tinha, na ocasião, dezessete anos.

Burle Marx vivia num ambiente cercado de interessepelas artes, em especial pela música, e demonstrava qualidadesexcepcionais para o canto, que estudou com a mãe.

Por volta de 1928, Burle Marx começou a sentirperturbações na vista. O pai decidiu seguir com toda a famíliapara a Alemanha, não só para consultar um oftalmologista,como também para que Roberto aperfeiçoasse sua voz debarítono. Superados os problemas de saúde, estudou cantocom o professor Flahm, que mostrou grande entusiasmo pelasqualidades vocais do jovem. É dessa época seu interessepelas estufas do Jardim Botânico de Dahlem, onde descobriuplantas da f lora bras i le i ra reunidas por Eichler.Paralelamente, uma exposição retrospectiva de Van Gogh,na Alemanha, impressionou-o tão profundamente, que eleresolveu abandonar o canto para estudar pintura, retornandoao Brasil em 1929.

Inscreveu-se, em 1930, na Escola Nacional de Belas Artesdo Rio de Janeiro. A princípio, desejava seguir a carreira dearquitetura. Porém, aconselhado por Lucio Costa, inscreveu-se no curso de pintura. Conheceu, então, os estudantes efuturos arquitetos Oscar Niemeyer, Jorge Machado Moreira,Carlos Leão e os irmãos Marcelo e Milton Roberto.

Em 1931, Lucio Costa, então diretor da Escola Nacionalde Belas Artes, convidou o professor alemão Leo Putz paradar aulas de pintura. Este exerceu profunda influência em BurleMarx, não só como mestre, mas também por sua cultura geral.Roberto também estudou escultura com Celso Antônio e como pintor Pedro Correia de Araújo. Freqüentando o meiointelectual carioca, conheceu o poeta Murilo Mendes, o críticoLélio Landucci, o escritor José Lins do Rego, o cenógrafo epintor Tomás Santa Rosa e o escritor Aníbal Machado.

A convite de Lucio Costa, em 1932, realizou seu primeirojardim para a família Alfredo Schwartz, sendo o projetoarquitetônico do próprio Lucio Costa e de GregoriWarchavchik. Era um jardim no terraço da primeira residênciacarioca com arquitetura modernista, hoje demolida.

Mais uma vez, a convite de Lucio Costa, realizou umsegundo jardim, em 1933, para a residência de Ronan Borges,também demolida atualmente.

É convidado, em 1934, para exercer as funções de diretorde Parques e Jardins, em Recife, Pernambuco. Ali permaneceu

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até 1937, alternando seu trabalho com algumas estadas no Riode Janeiro. Conheceu, então, os intelectuais Gilberto Freire,o pintor Cícero Dias, o engenheiro e poeta Joaquim Cardozo,o crítico Clarival do Prado Valladares e seu irmão, o crítico emuseólogo José Valladares, e o escritor Graciliano Ramos.Datam dessa época os projetos para a Praça Euclides da Cunha(Cactário da Madalena), o Jardim da Casa Forte – primeirostrabalhos de caráter público com plantas brasileiras; a reformados jardins da Praça da República, o jardim da Praça do Derbye da Ilha dos Amores e o projeto da Praça Artur Oscar. Nessa

ocasião, a imprensa registra que Burle Marx desejava,sobretudo, “livrar os jardins do cunho europeu, sempreseguido entre nós”. E conclui “Também temos que fugir àfeição romântica, uma vez que o jardim acompanha oprogresso da humanidade”.

Interrompendo seus estudos de pintura, em virtude desua atividade em Pernambuco, Burle Marx retornouperiodicamente ao Rio de Janeiro para freqüentar as aulas dopintor Cândido Portinari, então lecionando na Universidadedo Distrito Federal.

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Sem título, tapeçaria, de 1973, 320 x 480 cm

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Deixou o Recife, em1937, por motivos políticos.De volta ao Rio, foi convidadopor Portinari para serassistente na execução dosmurais do Ministério daEducação sob o tema “Ohomem e o trabalho”.

Em 1938, projetou osjardins do Ministério daEducação e Saúde, ligando-seà equipe de Lucio Costa,formada por Oscar Niemeyer,Affonso Eduardo Reidy, JorgeMachado Moreira, Carlos Leãoe Ernani Vasconcelos. Realizouinúmeros projetos de jardins,inclusive o jardim da residênciade Roberto Marinho, que muitoimpressionou Oscar Niemeyerque, na época, projetava oconjunto da Pampulha.

À medida que o tempoavançava, mais se evidenciavae se intensificava a atividadeartística de Roberto BurleMarx. O elenco dos projetosrealizados demonstrava amagnitude de seu trabalho,tanto no sentido público,social, como na suainconfundível individualidade.

A partir de 1968, desen-volveu seus projetos em equipecom os arquitetos Haruyoshi Ono,

ainda hoje dirigindo o escritório que foi do paisagista.Adquiriu, em sociedade com seu irmão Guilherme Siegfried

Marx, em 1949, um sítio de 800.000 m², em Campo Grande,Estado do Rio de Janeiro. Embora desde menino tenha coletadoplantas, foi nesse terreno que finalmente se abriu a possibilidadede melhor organizar uma respeitável coleção botânica. Começou,então, a realizar inúmeras incursões de coleta no territóriobrasileiro, estabelecendo acordos de permuta com os jardinsbotânicos de Kew Gardens, Londres, e do Brooklyn BotanicGarden, Nova York, e com produtores comerciais do Brasil e doexterior. A coleção assumiu proporções que exigiram um

ARTE & Paisagem é publicado em comemoração aos 95anos de Burle Marx.1Disponível em:<http://www.guiadecotia.com.br/materias/20040802_leitura.asp>. Acesso em: 04 jan. 2005.

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“(...) é preferível fazer, errar e depoisacertar, mas fazer sempre”.

Entrevista a Ana Rosa de Oliveira, fev. 1992.www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq013/bases/

01tex.asp

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crescente esforço de manutenção. Para garantir sua perenidade,indenizou o irmão e doou ao Governo brasileiro não apenas asplantas, mas também o terreno, as construções, suas coleções deobjetos de arte e demais benfeitorias do sítio.

Com quase 85 anos de idade, faleceu no Rio deJaneiro em 1994.

CICLO DE CONFERÊNCIAS/2004

Era Vargas

Especial

pelo professor titular de História Modernae Contemporânea da Universidade doBrasil/UFRJ, Francisco Carlos Teixeira daSilva).

No primeiro dia do evento, abertopelo presidente do BNDES, à época, CarlosLessa, ocorreram a conferência A presençade Vargas na história republicana e a mesa-redonda O significado de Vargas para asociedade e o Estado no Brasil.

No dia seguinte, a mesa-redondaGetúlio Vargas e o imaginário políticorepublicano abriu os trabalhos, sendoseguida pela conferência O significado daEra Vargas.

O Seminário, gravado na íntegra pelaTV e Rádio Senado, foi transmitido pormeio de videoconferência para váriasAssembléias Legislativas.

A PRESENÇA DEA PRESENÇA DEA PRESENÇA DEA PRESENÇA DEA PRESENÇA DEVARGAS NA REPÚBLICAVARGAS NA REPÚBLICAVARGAS NA REPÚBLICAVARGAS NA REPÚBLICAVARGAS NA REPÚBLICABRASILEIRABRASILEIRABRASILEIRABRASILEIRABRASILEIRAProf. Francisco Carlos Teixeira da Silva

“O problema econômico pode-seresumir numa palavra – produzir! Produzirmuito e barato, o maior númeroaconselhável de artigos, para abastecer osmercados internos e exportar...”

Com essas palavras e em plena criseeconômica mundial, na sua campanhapresidencial de 1929, Getúlio DornellesVargas rompia com uma longa tradição dahistória econômica brasileira, centradaexclusivamente na exportação de produtosagrícolas, sem qualquer beneficiamento,

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E m setembro de 2004, a Secretariade Informação e Documentação doSenado Federal promoveu – como

vem fazendo desde 2000 – seu Ciclo deCiclo deCiclo deCiclo deCiclo deConferências Conferências Conferências Conferências Conferências com o mesmo objetivo delevar a debate público relevantes assuntosde interesse de toda sociedade.

Naquela oportunidade, em conjuntocom o BNDES (Banco Nacional deDesenvolvimento Econômico e Social) e oLaboratório de Estudos do TempoPresente da Universidade Federal do Riode Janeiro, foi realizado o seminárioVARGAS E O DESENVOLVIMENTOVARGAS E O DESENVOLVIMENTOVARGAS E O DESENVOLVIMENTOVARGAS E O DESENVOLVIMENTOVARGAS E O DESENVOLVIMENTONACIONAL BRASILEIRONACIONAL BRASILEIRONACIONAL BRASILEIRONACIONAL BRASILEIRONACIONAL BRASILEIRO, quando foidiscutida, em dois dias, por parlamentares,professores, pesquisadores, estudantes epúblico em geral, a importância da chamadaEra VEra VEra VEra VEra Vararararargggggas as as as as (vide texto ao lado assinado

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tais como o café, o açúcar, o cacau e aborracha. Para Vargas, o crescimentoeconômico e a melhor distribuição deriquezas no interior do País eram a únicasaída para o Brasil, rompendo com séculosde dependência.

Vargas nasceu em 1882, ainda aotempo da escravidão no Brasil, erapidamente fez uma exitosa carreirapolítica: em 1909, foi eleito deputado

estadual pelo Partido Republicanogaúcho; em 1923, deputado federal; em1926, foi escolhido ministro da Fazenda,do então presidente Washington Luís(1926-1930) e, em 1927, governador doRio Grande do Sul. Foi na qualidade degovernador do Rio Grande que Vargasapresentou-se, em 1929, como candidatoa presidente da República pela AliançaLiberal. A candidatura de Vargas, tendoum político nordestino como vice – oparaibano João Pessoa – surgia como umanovidade política e, até mesmo, como umato de desafio ao sistema oligárquicodominante durante toda a República (queem breve será chamada de Velha),montado pelas elites políticas de SãoPaulo e Minas Gerais, e mantenedor domodelo agrário monocultor e exportador,com vinculações diretas com o capitalfinanceiro e comercial da Grã-Bretanha(então a potência dominante).

Vargas e Pessoa, políticos daper i fe r ia do s i s tema de poder,rompiam com a tradição da política ditado café com leite e propunham aascensão de um novo pessoal político,dando significado real à idéia defederação. Propunham, a inda, asuperação do passado de “feitoriaco lon ia l ” do Pa ís e seu desen-volvimento autônomo. A Aliança

Liberal foi, contudo, derrotada pelosistema dominante e, pouco maistarde, João Pessoa era assassinado.

Irrompia a Revolução de 1930,com Vargas à frente.

Estabelecido como chefe dogoverno revolucionário, Vargas cria, jáem 1930, o Ministério da Educação eSaúde e o Ministério do Trabalho. Sãosinais evidentes de modernização doPaís e da transformação da QuestãoSocial em política de Estado. Em 1932,é estabelecido o direito de voto dasmulheres, bem como o voto secretono processo eleitoral, visando acabarcom o “voto de cabresto” impostopelas oligarquias locais. Ao mesmotempo, o Estado ocupa-se da condiçãooperária com grandes inovações:surge a jornada de trabalho de oitohoras, a licença maternidade e acarteira de trabalho obrigatória.

No mesmo ano de 1932,infelizmente o País se vê envolto emtremenda guerra civil, com a exigênciade São Paulo de eleições diretas e livres.Sob tal impacto, dá-se a aprovação daConstituição Democrática de 1934, que permitea eleição indireta de Vargas para a Presidênciada República. Encerrava-se o períodorevolucionário (1930-1934) e reinaugurava-sea história constitucional do País.

Ainda em 1934, é criada a Justiça doTrabalho, abrindo pela primeira vez nanossa história a possibilidade de ostrabalhadores apresentarem suas queixase exigirem seus direitos frente ao Estado.

Em 1935, dá-se a Revolução daAliança Libertadora Nacional, conjunto desocialistas, comunistas e democratasradicais, com lutas acirradas no Rio deJaneiro, em Recife e em Natal. A chamadaIntentona Comunista serve de pretextopara o endurecimento do regime, com oaprofundamento da Lei de SegurançaNacional e a criação do Tribunal deSegurança Nacional.

Em 1937, alegando riscos internos eexternos para a segurança do País, Vargasdissolve o Congresso Nacional, revoga aConstituição de 1934 e institui umaditadura, o chamado Estado Novo. Asalegações de Vargas baseavam-se nas lutasentre a esquerda, representada pela

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Aliança Nacional Libertadora, e a direitafascista, organizada em torno da AIB(Ação Integralista Brasileira), além doacirramento das relações internacionais(ataque japonês contra a China; ataqueitaliano contra a Abissínia; e o rearmamentoalemão e suas ameaças contra a Áustria,Polônia e Tchecoslováquia).

Encerrava-se, assim, a fasedemocrática de Vargas (1934-1937),iniciando-se a carreira de chefe do EstadoNovo (1937-1945). Tratava-se de um Estadoditatorial, forte, unificado – osgovernadores e símbolos estaduais foramsuprimidos -, sem atividade partidária efortemente voltado para o culto da figurado chefe de Estado. Vargas dota o País deuma constituição de tipo autoritário,inspirada no modelo polonês edenominada A Polaca (1937).

Inúmeras medidas de desenvol-vimento econômico, autonomia e busca dobem-estar social marcam o Estado Novo:criação do Conselho Nacional do Petróleo(1938) – o primeiro poço de petróleo doPaís é descoberto em 1939, em Lobato, naBahia; estabelecimento do salário mínimoem 1940; criação da CompanhiaSiderúrgica Nacional, em Volta Redonda/RJ, em 1941; surgimento da CompanhiaVale do Rio Doce em 1942; outorga daConsolidação das Leis Trabalhistas (CLT)em 1943.

Em pouco tempo, o País passa porum processo intenso de modernização,deixando definitivamente para trás opassado agrário, monocultor eexportador. As grandes cidades crescem,com sua população urbana e fabril, surgemmeios de comunicação de massa, como ocinema e o rádio, que se expande portodo o País. A Rádio Nacional, criada em1936, torna-se um elo de todos osbrasileiros, e a partir de 1941 todo o Paíspára para ouvir o Repórter Esso.

Lamartine Babo, Ary Barroso e NoelRosa são sucessos nacionais nas vozes

de Carmem Miranda e de Linda e DircinhaBatista. Nos cassinos e nos teatros derevistas as vedetes, como Virgínia Lane,provocam burburinhos.

Em 1942, o Brasil foi à guerra, emvirtude do torpedeamento de naviosmercantes brasileiros por submarinos doTerceiro Reich. Vargas preocupa-se comas condições de defesa, redivide o Paíse cria os territórios federais, visando àmaior integração nacional. Reequipa asForças Armadas, cria a FAB em 1941 e,em 1943, envia a FEB (ForçaExpedicionária Brasileira) para oscampos de lutas na Itália.

Em 1945, na onda de demo-cratizações que encerra a II GuerraMundial, Vargas é deposto. Nas eleiçõesseguintes, em 1946, é eleito senador pordois estados e deputado federal por sete,atestando a grande popularidade que

gozava. Mantém-se no exílio, no RioGrande, só retornando formalmente àpolítica em 1950, quando é eleito,democraticamente, presidente daRepública, com 3.849.040 votos (contraos 2.343.384 dados a Eduardo Gomes).Nesta nova fase democrática de suacarreira, cria o BNDES em 1952, aPetrobrás em 1953 e, no ano seguinte, aEletrobrás. Acelera o processo deindustrialização, montando as condiçõesdefinitivas da arrancada desenvol-vimentista do País.

Envolto em lutas partidárias,intrigas políticas e acusações várias,Vargas se suicida na manhã de 24 deagosto de 1954. Sua presença na históriarepublicana brasileira, como figuracarismática, polêmica e indutora docrescimento econômico, marca todo oséculo XX.”

As palestras, mesas redondas e conferências foramtransmitidas simultaneamente para várias AssembléiasLegislativas por meio de videoconferência.

O valor de uma amizade

S

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entado anonimamente dentre as centenas de pessoas que assistiram àspalestras sobre a Era VEra VEra VEra VEra Vararararargggggasasasasas, um senhor de 84 anos tinha um brilho noolhar que passou despercebido dos demais. Tratava-se do Coronel Fittipaldi:muito mais que o piloto que trabalhou com Getúlio Vargas de 1950 até o dia

do seu suicídio em 24 de agosto de 1954, foi um assessor especial e um amigoincondicional.

Essa sólida amizade está registrada em um livro de memórias que o CoronelFittipaldi está tentando publicar. Deana Guedes, ex-chefe de gabinete da Secretariade Informação e Documentação do Senado Federal, teve a honra e o privilégio daprimeira leitura do livro. É de sua autoria o pequeno resumo que transcrevemos aseguir:

“Coronel aviador, nascido em Uruguaiana, Rio Grande do Sul, neto de imigrantesitalianos que deitaram raízes em solo gaúcho desde meados do século XIX, HernaniFittipaldi é a história viva da chamada “Era Getulista”.

Aos dezessete anos, ainda cadete, comemorando o recebimento de seu espadimna estância de um padrinho, foi apresentado ao então Presidente da República Dr.Getúlio Dornelles Vargas. Este, impressionado com a vivacidade do rapaz, perguntou-lhe qual arma escolheria, o que de pronto respondeu-lhe: “Quero ser aviador!”.“Muito bem”, contra-argüiu o Presidente, “pois saiba que criarei a Força AéreaBrasileira, para jovens como tu”.

Desse encontro remoto, relatado em seu livro de memórias, seguiram-se muitosoutros que fortaleceram uma amizade entre o jovem gaúcho e o experiente caudilho.

O Coronel Fittipaldi foi, com a turma da Escola de Pilotos Aviadores do Realengo,do primeiro grupo de militares do novo Ministério da Aeronáutica.

Diversas foram as visitas realizadas à Estância do Itu, e entre os diversosalmoços compartilhados, o convite para ser o piloto oficial do Presidente e seuajudante de ordens.

Mais do que um ajudante de ordens, o jovemgaúcho foi um assessor especial e um amigoincondicional do Presidente Getúlio, que lheconfiava desde serviços oficiais até confissõesparticulares, de cunho reservado aos grandescompanheiros.

E ele lhe foi fiel até na morte, pois esteve a seu lado no último suspiro e naúltima viagem, acompanhando seu corpo, ainda como seu piloto especialmenteescolhido, até seu repouso eterno em terras minuanas.

As memórias relatadas pelo Coronel Fittipaldi em seu livro vão além da históriado Brasil, contada por quem a presenciou. Suas histórias trazem a emoção dospersonagens em seus diálogos e colóquios cotidianos, como se pudéssemos, também,estar à mesa com o Dr. Getúlio e ouvi-lo pedir: “mais uma chaleira de água quentepara o meu mate!”.

Não se trata somente de um relato de memórias, mas quase que a transcriçãode um diário, onde seu autor guardou cada frase de seus interlocutores com umanitidez tão peculiar que nos transporta aos anos e aos fatos vivenciados por muitospersonagens da verdadeira História do Brasil.

É de se observar que o Coronel Hernani Fittipaldi, mesmo após o falecimentodo Presidente Getúlio Vargas, permaneceu como piloto da Presidência, fazendocarreira militar, servindo outros presidentes, entre eles João Goulart, que havia sidoseu colega de ginásio no Rio Grande do Sul, transportando-o e a sua família atémesmo para o exílio.

Estas e outras vivências também fazem parte da esplêndida galeria depersonagens históricos encontrados nos escritos de Fittipaldi.

Até mesmo sua cassação e conseqüente prisão pela ditadura militar não foramolvidadas, com observações curiosíssimas.”

Coronel FittipaldiMemória viva dachamada “Era Getulista”

Muito mais do que seu piloto, o CoronelFittipaldi foi um assessor especial e amigoincondicional de Getúlio Vargas.

Deana Guedes é fun-cionária aposentada doSenado Federal, bacharelem Direito, pela Univer-sidade de Brasília, comespecialização em Análisede Sistemas com O&M eGerenciamento de Arqui-vos (Base de Dados); ex-chefe de Gabinete da

Secretaria de Documentação e Informação; foimembro de várias Comissões e Grupos de TrabalhoInterministeriais, coordenadora e professora decursos de treinamentos técnicos.

Vera Americano Bueno

Dossiê

PATRIMÔNIOCULTURAL BRASILEIROE LEGISLAÇÃO:UM PANORAMA

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Recentemente, o Jornal do Senadoexibiu, como chamada principal de capa,a seguinte manchete: Ação do governona cultura gera debate.

Parece normal que um dosprincipais veículos informativos doSenado Federal dê destaque à discussãoque tem ocupado grande espaço namídia, por força da repercussão geradapelas medidas governamentaisrelacionadas ao setor. No entanto, aosolhos dos que acompanham a trajetóriada cultura, no universo das chamadaspolíticas públicas, o fato evidencia umainegável novidade: a cultura a fazer partedo debate político, a envolver tanto oPoder Público quanto o setor privado,as entidades de classe e, obviamente,os artistas e criadores. Sob qualquerângulo, com as ressalvas devidas, trata-se de uma notável novidade.

No Brasil, tem sido notória a poucaimportância concedida pelos governos àquestão cultural, o que expõe, ao longodo tempo, o trato frágil do tema,

suscetível de danosas mudanças de cursoprovocadas pela dinâmica da vida políticado País. Trata-se, de resto, decaracterística peculiar às nações queainda não alcançaram patamaresrazoáveis de desenvolvimento, para asquais a cultura não ocupa lugar de relevona configuração do Estado e naconsolidação de sua polít ica.Ultimamente, o que tem sido observadofoge a esse padrão e sinaliza para umaeventual mudança, malgrado eventuaisinterpretações pessimistas.

Um dos recursos disponíveis parauma isenta avaliação desse paulatinodestaque dos temas culturais é aobservação da gradual configuração doordenamento jurídico voltado para aidentificação, proteção e guarda donosso patrimônio cultural. Até bempouco tempo, a legislação de proteçãoao patrimônio cultural brasileiro seconfundia com a história das própriasinstituições. Nesse sentido, parece oportunauma rápida notícia sobre esse caminho.

UM POUCO DUM POUCO DUM POUCO DUM POUCO DUM POUCO DA HISTÓRIA DA HISTÓRIA DA HISTÓRIA DA HISTÓRIA DA HISTÓRIA DASASASASASINSTITUIÇÕESINSTITUIÇÕESINSTITUIÇÕESINSTITUIÇÕESINSTITUIÇÕES

O Ministério da Cultura (MinC) –que congrega as principais instituiçõespúblicas voltadas para o trato da matéria– já passou por alguns percalços que,ainda hoje, afetam sua própria identidade.Em breves palavras, ele já foi Secretariada Cultura, depois Ministério, para, quaseem seguida, voltar a ser Secretaria, nareforma administrativa promovida pelogoverno Collor. Antes que esse processode idas e vindas estabelecesse suadiscutível rotina, o Ministério fora criado,nos anos 1980, basicamente em funçãoda necessidade de se compatibilizar adiversificação e a abrangência dasatribuições assumidas pelos diferentesórgãos da administração pública que seocupavam da cultura, desde as artesplásticas (como a Fundação Nacional deArte - FUNARTE), até o patrimôniohistórico e artístico (como o Institutodo Patrimônio Histórico e ArtísticoNacional - IPHAN).

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Esse movimento, ainda quetitubeante, revela o reconhecimento, porparte do Poder Público, do seu papel noque se refere à proteção do patrimôniocultural da nação. O processo fixa suasraízes no século XVIII, por ocasião daprimeira iniciativa oficial de que se temnotícia em favor da conservação dos bensculturais brasileiros: carta encaminhadaao Governador de Pernambuco peloConde de Galveias, D. André de Melo eCastro – Vice-Rei do Estado do Brasil,entre 1735 e 1749 – revela preocupaçãocom o destino da herança holandesadaquele estado, materializada no seuextraordinário conjunto de edificações deépoca.

No entanto, somente a 14 de julhode 1934, por intermédio do Decreto nº24.735, destinado a aprovar oregulamento do Museu HistóricoNacional, é que a esfera governamentaldá os primeiros passos em direção àproteção legal das manifestaçõesartísticas no País.

Pouco depois, a Constituição de1934 promoveria significativo avanço: noCapítulo II, dedicado à educação e àcultura, a Carta definia a proteção e oapoio ao patrimônio histórico e artísticocomo dever do Estado.

Esse importante antecedenteconstitucional produziria um primeiroefeito jurídico por ocasião do governoVargas. Sob a égide de GustavoCapanema – Ministro da Educação de1934 a 1945 –, com o concursoinestimável do escritor Mário deAndrade, um decreto organizou o entãoServiço do Patrimônio Histórico eArtístico Nacional, presidido, à época,por Rodrigo Melo Franco de Andrade.

A trajetória daquele IPHAN – cujasigla passou por algumas mudanças, atéseu providencial resgate – e suaproposta original foram progres-sivamente esgarçadas pelas sucessivas

alterações verificadas no panoramapolítico brasileiro. É importante salientarque, àquela época, apesar doreconhecimento quanto à importância deseu legado ter sido absorvida apenas porgrupos restritos da nossaintelectualidade, o IPHAN passou aconstituir uma espécie de símbolo deeficácia de uma instituição pública. Issose deu pela avaliação de seu desempenhona chamada fase heróica, considerada, atéhoje, um parâmetro de responsabilidadesocial. Atualmente, integrando oorganograma do Ministério da Cultura, oIPHAN, apesar de todas as dificuldades,exerce sua verdadeira e primeira vocaçãode proteção, revitalização e conservaçãodos bens culturais da nacionalidade.

A partir dos anos 1970, com oadvento e a definição de novos rumospolíticos e econômicos no País, tanto oIPHAN quanto os demais setores que seincumbiam da questão cultural passaram ase mostrar incapazes de fazer frente aosnovos desafios propostos pela dinâmicasocial. Foi, então, durante o governoFigueiredo, no período que se seguiu aosanos mais negros do regime militar, queocorreu a reestruturação da área cultural,com a criação da Secretaria da Cultura,congregando órgãos então reunidos noâmbito do Ministério da Educação eCultura. Desse rol participava, além dopróprio IPHAN, aFundação NacionalPró-Memória, criadaem novembro de1979, na esteira daatuação pioneira doCentro Nacional deReferência Cultural (CNRC). Esseprograma, liderado por Aloísio Magalhães,décadas após a iniciativa desbravadora doantigo IPHAN, foi o primeiro passo emdireção aos atuais avanços, particular-mente no que se refere à ampliação doconceito de bem cultural.

A etapa seguinte foi a criação doMinistério da Cultura, em sua primeiraversão em 1985, seguida pelos já relatadoseventos, até a sua atual configuração.

A LEGISLAÇÃO CULTURALA LEGISLAÇÃO CULTURALA LEGISLAÇÃO CULTURALA LEGISLAÇÃO CULTURALA LEGISLAÇÃO CULTURALMalgrado todas as vicissitudes

históricas, avanços e recuos motivadospela dinâmica da cena política, o panoramada legislação cultural brasileira vemapresentando inegáveis avanços, tanto nosentido de sua adequação às atuaisdemandas da sociedade quanto deampliação das áreas de alcance einteresse. Os benefícios advindos doinvestimento no setor – em relação àocupação dos espaços de marketing marketing marketing marketing marketing ou àisenção fiscal concedida ao patrocínio eao mecenato – vieram redimir umaflagrante deficiência verificada no plantellegislativo relativo ao setor cultural,sobretudo em cotejo com legislaçõescongêneres de outros países.

A Constituição de 1988, refletindoo tratamento conferido ao tema pelostextos constitucionais de alguns paísesdo chamado Primeiro Mundo, promoveu,especialmente nos arts. 215 e 216, umsignificativo avanço em relação àdefinição, preservação e difusão dopatrimônio cultural, garantindo eincentivando a produção e o acesso àsfontes da cultura nacional.

Atualmente, o ordenamento jurídicofaculta uma razoável sustentação às açõesgovernamentais destinadas ao setorcultural. Mas nada é definitivo. Os anseiosda coletividade – cada vez maisconscientizada e engajada na preservaçãodo seu patrimônio – aliados à demanda

(...) atualmente, o aperfeiçoamento da consciênciapatrimonial do cidadão é um fato.

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dos setores que produzem cultura no Paísprovocam revisões e aprimoramentos.Passemos os olhos por esse plantel.

Decreto-Lei nº 25, de 20 de novembroDecreto-Lei nº 25, de 20 de novembroDecreto-Lei nº 25, de 20 de novembroDecreto-Lei nº 25, de 20 de novembroDecreto-Lei nº 25, de 20 de novembrode 1937 –de 1937 –de 1937 –de 1937 –de 1937 – organiza a proteção dopatrimônio histórico e artístico nacional.

É praticamente impossível analisaro viés jurídico da questão patrimonial semse reportar ao Decreto-Lei em questão,ele próprio uma espécie de bem cultural,matriz e fundamento da ação institucionale da tomada de posição, por parte doPoder Público, em relação ao nossoacervo cultural.

Concebido sob a inspiradaorganização do escritor e folclorista Máriode Andrade, sob os auspícios de GustavoCapanema, então Ministro da Educação, oDecreto-Lei nº 25, de 1937, reflete apreocupação em conciliar os traçosculturais eminentemente nacionais com aprática adotada por outros países emquestões similares. Mais ainda, representareferência obrigatória sempre que estiverem pauta a definição de patrimôniohistórico e artístico – aí compreendidos

os bens móveis e imóveis, de valorhistórico, arqueológico, documental,artístico e ambiental – ou o tombamentodesses bens e seus efeitos.

O tombamento é o instrumento quegarante, do ponto de vista institucional, apromoção de iniciativas requeridas pelarestauração e preservação de um bemcultural. O tombamento nada mais é doque o instituto jurídico do qual o PoderPúblico lança mão para determinar quaisos bens culturais a serem protegidos peloEstado e a natureza dessa proteção.

Instrumento de preservação porexcelência, constitui prerrogativa exclusivado Instituto do Patrimônio Histórico eArtístico Nacional – IPHAN, utilizado, poriniciativa dos setores oficiais ou desegmentos sociais, com o objetivoprecípuo de atribuir ou referendar o valorde um determinado bem cultural. Naprática, trata-se de ato administrativo, cujoandamento e conseqüente resultadocompreendem estudos, prospecções eoutras providências técnicas específicasrelativas à natureza e espécie do bem aser tombado.

Lei nº 8.313, de 23 de dezembro deLei nº 8.313, de 23 de dezembro deLei nº 8.313, de 23 de dezembro deLei nº 8.313, de 23 de dezembro deLei nº 8.313, de 23 de dezembro de19911991199119911991 – restabelece princípios da Lei nº7.505, de 2 de julho de 1986, institui oPrograma Nacional de Apoio à Cultura -PRONAC e dá outras providências.

Aprovada na esteira da tendênciacontemporânea de se fomentar aassociação do Estado à iniciativa privada,relativamente ao quesito cultura, a LeiRouanet, ou Lei de Incentivos Fiscais,resgata princípios contidos na Lei nº 7.505,de 1986, a chamada Lei Sarney, e define

um modelo de participação do setorprivado na tarefa de incremento epreservação de nossos indicadores e denossa produção culturais.

Instrumento legal de inquestionávelabrangência e alguma complexidade, a LeiRouanet abriu espaço para a definição deum mercado de projetos culturais. Osmecanismos de fiscalização e controledefinidos pela nova Lei de Incentivosmaterializavam, por um lado, um esforçode controle em relação a uma possívelbenesse fiscal. Por outro, no entanto, tais

mecanismos desestimulavam o seuemprego efetivo pelo alto grau deexigência burocrática, fator de exclusãopara os projetos de pequena monta,geralmente de origem popular eprovenientes de regiões afastadas doSudeste, concentrador da maior parte dosrecursos incentivados.

A Lei 8.313, de 1991, faculta aisenção ou o abatimento fiscal para aspessoas física e jurídica interessadas emapoiar projetos culturais, por intermédiode patrocínio ou doação, nos limitesestipulados pela legislação tributária.Para usufruir os benefícios previstos, oprojeto deve passar pelo exame eaprovação do Ministério da Cultura.

Em um País de perversos desníveissociais como o nosso, onde as prioridadescostumam se apoiar em argumentos denatureza econômica, o chamadomarketingmarketingmarketingmarketingmarketing cultural, enquanto opção deinvestimento, é bastante incipiente e,para muitos setores, praticamenteinexistente. A cultura, em geral vista apartir das manifestações mais elitizadas,é erroneamente avaliada e raramenteentendida como um bem de todos, nacontra-mão do que ocorre em muitospaíses. O advento da Lei Rouanet tempermitido a reversão, mesmo que parcial,desse quadro. Os números atestam quesão muitos os setores que têm sebeneficiado dessa legislação e o quantofoi considerável o volume de projetosapresentados ao MinC.

No entanto, ao longo de mais deuma década, a aplicação da Lei vemapresentando desvios e desgastes, que,de certa forma, contrariam seusprincípios de democratização de acessoaos recursos incentivados para oincremento de projetos culturais. Oexcesso de concentração das verbasincentivas no chamado eixo Rio–SãoPaulo, o apoio preferencial amanifestações que favoreçam a

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(...) o panorama da legisla-ção cultural brasileira vemapresentando inegáveisavanços, tanto no sentidode sua adequação às atuaisdemandas da sociedadequanto de ampliação dasáreas de alcance e interesse.

visibilidade do patrocínio e a dificuldadede captação sofrida pelos pequenosprojetos são algumas das importantesdistorções passíveis de revisão.

A atual gestão do MinC empreendeessa tarefa. Após realizar semináriositinerantes em todas as regiõesbrasileiras, no intuito de colher subsídiose dar voz a um universo maior deagentes, o MinC anuncia a iminentereformulação da Lei. Segundo seudiagnóstico, grande parte das questõessuscitadas poderá ser aperfeiçoada porintermédio de decretos e portarias. Noentanto, alguma modificação para opróprio texto legal é esperada,particularmente no que diz respeito àalteração dos patamares de isenção, nabusca da distribuição mais homogênea dobenefício facultado.

Por fim, acrescente-se que,movidos pelos resultados alcançados pelalegislação federal, vários são os estadose municípios que criaram suas própriasleis de incentivo à cultura. O que apenasreforça a evidência: atualmente, oaperfeiçoamento da consciênciapatrimonial do cidadão é um fato.

Lei nº 8.685, de 20 de julho de 1993Lei nº 8.685, de 20 de julho de 1993Lei nº 8.685, de 20 de julho de 1993Lei nº 8.685, de 20 de julho de 1993Lei nº 8.685, de 20 de julho de 1993 –cria mecanismos de fomento à atividadeaudiovisual e dá outras providências.

A chamada Lei do Audiovisualpermite, nos moldes da Lei Rouanet, adedução do Imposto de Renda devidode percentuais relativos a investimentospara a produção de obras audiovisuais.Aperfeiçoada pela Lei nº 9.323, de 1996,essa legislação atendeu, em determinadomomento, aos anseios do setor, aoproporcionar-lhe um crescimentoconsiderável, por conta, principalmente,do interesse despertado no setorprivado em relação aos benefícios fiscaisfacultados pela legislação.

Relativamente à produção audiovisualdo País, eram esses os principais parâmetros

legais em vigor até a edição da MedidaProvisória nº 2.228, de 2001.

Ao se retroceder no tempo,observa-se, a partir de 1999, um quadrode agravamento dos principais

problemas a comprometer a nossaprodução cinematográfica, com orecrudescimento do que já se anunciavacomo mais uma crise do setor.

Com o objetivo de mapear essasquestões e propor alternativas, foiinstalada, no âmbito da Comissão deEducação do Senado Federal , aSubcomissão do Cinema Brasileiro, queesteve em atividade de agosto de 1999a dezembro de 2000. Por ocasião doencerramento dos t rabalhos, acomplexidade e a extensão da agenda,que não foi esgotada, apontaram para anecessidade de prosseguir e aprofundara discussão.

Assim, foi criada a SubcomissãoPermanente de Cinema, ComunicaçãoSocial e Informática (recentementerenomeada como SubcomissãoPermanente de Cinema, Teatro eComunicação Social), um dos maisimediatos resultados do trabalho dasubcomissão temporária, trazendo otema, de vez, para o âmbito doCongresso Nacional. Por outro lado, umgrupo representativo dos váriossegmentos do audiovisual, reunido soba coordenação da Casa Civi l da

Presidência da República, ampliou adiscussão, instrumentalizando a redaçãoda Medida Provisória nº 2.228, de 2001.

Editada com o intuito deestabelecer a política nacional de

cinema, por intermédio do estímulo aodesenvolvimento da indústria cinema-tográfica brasileira, a referida MedidaProvisória, para fazer frente aos seuspropósitos, criou a Agência Nacional deCinema (ANCINE). Como pano defundo, expresso ou latente, desse intuitoprincipal, identifica-se a defesa e a proteçãoda produção audiovisual brasileira, comoforma de garantir, em última instância, adefesa e a proteção da própria identidadecultural do País, a partir do entendimentode que o cinema constitui uma das maiseloqüentes manifestações da nossa culturade natureza plural.

Na verdade, as precauções detintas nacionalistas tomadas pela MedidaProvisória nº 2.228, de 2001,consolidaram cuidados relativos àprodução fílmica brasileira que jáexistiam, esparsos em diferentes leis.A novidade foi sua concentração em umúnico texto legal e a instrumentalizaçãodo Estado para fazer cumprir o antigo equase sempre postergado anseio deproteção a esse importante produtocultural brasileiro.

Pouco depois, a Lei nº 10.454, de13 de maio de 2002, reafirmou e ampliou

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as atribuições da Ancine, dispondo, emparticular, sobre a cobrança daContribuição para o Desenvolvimento daIndústria Cinematográfica Nacional(CONDECINE), que incide sobre aveiculação, a produção, o licenciamentoe a distribuição de obras cinemato-gráficas e videofonográficas, com finscomerciais.

Do ano de 2002 para cá, o cinemabrasileiro vem demonstrando um grandevigor, com inegável potencial decrescimento, a gerar emprego, renda edivisas para o País. Em tempos recentes,o Brasil compareceu com sua produçãocinematográfica a mais de duas centenasde festivais, onde foram assinadosinúmeros contratos de venda de direitosde exibição. Por outro lado, o esperadocrescimento do mercado interno tambémse anuncia, com exemplos de bilheteriasexcepcionais para as nossas produções.

Motivado por esse incremento, aatual gestão do MinC constituiu umgrupo que produziu o anteprojeto quecriava a Agência Nacional de Cinema edo Audio-visual (ANCINAV),

ampliando as competências, atri-buições e, sobretudo, o alcance da

agência já criada pela MedidaProvisória nº 2.228, de

2001.O anteprojeto

elaborado pelo MinC,com o objetivo principalde estabelecer regraspara uma efetivaproteção da indústriac i n e m a t o g r á f i c anacional, apresentava

um texto definido por ele próprio comoum primeiro rascunho. Por intermédioda imprensa, soube-se que a minutagerou, por um lado, muitas discordânciase, por outro, várias manifestações deapoio. Dado a conhecer de maneiraacidental, via Internet, o anteprojetoprovocou, desde o início, enormeceleuma, mobilizando praticamentetodos os segmentos direta ouindiretamente envolvidos com a matéria.A partir de então, o MinC assumiu atarefa de divulgação e de consultapública, por intermédio da criação depágina específica no seu site.

A grita maior contra a idéiaprincipal do anteprojeto partiu dosdistribuidores e exibidores que criticama criação e a majoração de impostos etaxas sobre filmes e vídeos. A AssociaçãoBrasileira de Cinemas (ABRACINE) e aAssociação Brasileira de Operadores deMultiplex (ABRAPLEX) repudiaram,publicamente, a intenção por elesvislumbrada no anteprojeto do Governo:a de subtrair recursos de uma indústriaem plena expansão, com o intuito decontrolar esse crescimento.

Por intermédio da mesma fonte,cifras foram exibidas a atestar a aberturade mais de 700 salas de exibiçãocomercial em todos o País, nos últimosseis anos. Na opinião dessas entidades,os impostos previstos no anteprojeto,além de majorar uma carga tributária jámuito alta, incidiriam sobre o preço dosingressos e promoveriam entraves àabertura de novas salas.

Do lado oposto da contenda,realizadores e entidades se posicio-

naram a favor da iniciativa do Governo.O Congresso Brasileiro de Cinema(CBC), por exemplo, entendeu que amedida material izava um desejohistórico do cinema brasileiro. Em notaoficial , o CBC alegou que oestabelecimento de marcos reguladores,que contemplem a criação e a difusão doconteúdo brasileiro e da produçãoindependente, constitui medidaestratégica para o desenvolvimento doPaís. O CBC resumiu sua posição aoafirmar que o atual Governo promoviaa mudança sempre almejada pelo setor.É bem verdade que medidas anterioresprocuraram instaurar a ambicionadacolaboração entre o cinema e ate lev isão. No entanto, todas astentativas foram malogradas.

Não se esgota aqui a lista dasdiferentes vozes que se posicionarama favor ou contra o anteprojeto. Nesseresumo da querela, importa acrescentarque, após apreciação efetivada emnumerosas reuniões, lideradas peloPoder Execut ivo, a questão foiredirecionada. O primeiro enten-dimento apontou para a necessidade dea iniciativa do MinC ser precedida peladefinição de um marco regulatório parao setor, tarefa cuja coordenação foidelegada ao Ministér io dasComunicações, que capitaneia aconsolidação do ante-projeto dachamada Lei Geral da Comunicação,tarefa já em curso.

E a Ancinav? Bem, como disse opróprio Ministro Gilberto Gil, a iniciativade sua criação não se esvaziou, mas apenasficou para um segundo momento.

Robe

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ABr

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Os anseios da coletividade – cada vez mais conscientizadae engajada na preservação do seu patrimônio – aliados àdemanda dos setores que produzem cultura no Paísprovocam revisões e aprimoramentos (...)

Enquanto isso, sem perder o vínculoestabelecido com diferentes segmentos dacadeia produtiva do audiovisual, o SenadoFederal continua a promover audiênciaspúblicas, no âmbito da Subcomissão deCinema, Teatro e Comunicação Social,iniciativa especialmente oportuna, em vistada anunciada reforma da Lei nº 8.685, de 1993.

Lei nº 10.753, de 2003 Lei nº 10.753, de 2003 Lei nº 10.753, de 2003 Lei nº 10.753, de 2003 Lei nº 10.753, de 2003 – institui aPolítica Nacional do Livro.

Antiga aspiração do seu autor, oSenador José Sarney, e dos setoresespecíficos, a Lei do Livro – comopassou a ser conhecida –, contou, nasua elaboração, com a participação dosreferidos setores, como a FundaçãoBiblioteca Nacional, a Câmara Brasileirado Livro e a então Secretaria do Livro eda Leitura, do Ministério da Cultura.

O escopo primeiro dessa legislaçãoé implementar o disposto no art. 215 daConstituição Federal, que estipula, comodever do Estado, a promoção de meiosde acesso, de todo cidadão, às fontes dacultura nacional. Além do mais,considerando a notável importância dolivro e da leitura para o desenvolvimentodo País, ela vem ao encontro doimperativo de o Brasil contar com a suaprópria Lei do Livro, a exemplo da maioriados países, inclusive uma expressivaparcela de nações sul-americanas.

Além de estabelecer as diretrizesgerais da política nacional do livro e fixarconceitos, a Lei nº 10.753, de 2003,dispõe sobre a editoração, distribuição ecomercialização do livro, bem como sobrea sua difusão.

Convém ressaltar que a atualconjuntura social e política revelou-seextremamente oportuna para a suapromulgação, levando-se em conta arevisão por que tem passado o setorcultural e a reestruturação dos órgãos deatribuição específica do Poder Executivo.

Para atender à necessidade deabertura de bibliotecas em todo o País– conforme dispõe a Lei –, foi criado,no início de 2004, o programa Fomede Livro, concebido e implementadopela Bibl ioteca Nacional . Maisrecentemente, o incremento de metase a incorporação de atribuições foi detal monta, que o referido programa foialçado à condição de Plano Nacional doLivro e Leitura. Tendo em vista suaenvergadura e importância , acoordenação do programa foitransferida para Brasília, como forma dese vincular diretamente ao próprioMinC, por intermédio da Secretaria dePolíticas Culturais. A idéia é que todasas ações e projetos do Governoreferentes ao livro, à leitura e às biblio-tecas sejam centralizadas por esseprograma, integrando as açõesdesenvolvidas por diferentes minis-térios que se incumbem, de variadasformas, do tema.

Uma das mais recentes açõesnessa área foi o lançamento do programaViva Leitura, nome dado no Brasil aoAno Ibero-americano da Leitura,celebrado em 21 países da Europa e dasAméricas, no decorrer de 2005. NoBrasil, o programa é coordenado pelosMinistérios da Cultura e da Educação epela Assessoria Especial da Presidênciada República. É importante ressaltarque a iniciativa, primeira ação da

Política Nacional do Livro, Leiturae Bibliotecas, confere ao tema aestatura de política pública, arti-culada entre Governo Federal,estados, munic ípios,empresas e instituiçõesdo Terceiro Setor.

Outra iniciativaem andamento amerecer destaqueé a constituiçãodas Câmaras Setoriaisdo Livro e da Leitura,cuja intenção écongregar osprofissionais dacadeia produtiva ecriativa do livroprovenientes de todas asr eg i õe s do Pa í s , nointu i to de discut i r asquestões vinculadas aosetor e desenvolver ações voltadaspara o incremento e a difusão do livroe da leitura.

Por fim, ressalte-se que umimportante desdobramento legalpropiciado pela Lei do Livro encontra-seconsolidado na Lei nº 11.033, de dezembrode 2004, que promove a desoneraçãofiscal do livro, criando condições para oefetivo crescimento do setor.

Decreto nº 3.551, de 2000 –Decreto nº 3.551, de 2000 –Decreto nº 3.551, de 2000 –Decreto nº 3.551, de 2000 –Decreto nº 3.551, de 2000 –institui o Registro de Bens Culturaisde Natureza Imaterial que constituem

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Do ano de 2002 paracá, o cinemabrasileiro vemdemonstrando umvigor cada vez maior,com um inegávelpotencial decrescimento, a geraremprego, renda edivisas para o País.(...)das vinte maioresbilheterias do ano de2003, oito são deproduções nacionais.Um número histórico,sem dúvida.

patrimônio cultural brasileiro, cria oPrograma Nacional do PatrimônioImaterial e dá outras providências.

N o B r a s i l , n ã o é n o v o oreconhecimento das expressões eman i f e s t a ções popu l a r e s comoindicadores da nossa identidadecultural . Na verdade, o registrodessas manifestações já fazia partedo histórico anteprojeto elaboradopor Mário de Andrade, em 1936,origem da ação do Estado em favorda proteção ao nosso patrimôniocultural, posteriormente materia-l izada no Decreto-Lei nº 25, de1937. A partir desse texto pioneiro,f o i c o n s t r u í d a t o d a u m ainterpretação sobre a identificaçãoe a preservação dos bens culturaisb r a s i l e i r o s , r e s p a l d a d a p e l oordenamento jurídico vigente.

Ressalte-se, nessa trajetória,a r e l e v â n c i a d o p a p e ld e s e m p e n h a d o p e l o C e n t r oNacional de Referência Cultural(CNRC). Grupo inter-ministerialcriado na década de 1970, com oi n t u i t o d e m a p e a r e c r i a ri n s t r u m e n t o s d e p r o t e ç ã o a opa t r imôn io cu l t u r a l b r a s i l e i ro ,a l ç a n d o - o a o p a t a m a r d a sprioridades nacionais, o CNRC, soba l iderança de Aloísio Magalhães,estabeleceu os passos pioneirospara a futura edição do Decreto nº3.551, de 2000.

Contando, desde 1937, com oinstituto do tombamento, voltadopara a preservação de obras de arte,monumentos , s í t ios h i s tó r i cos ,arqueológicos e ambientais, bemcomo outros bens materiais de valorh i s tó r i co e a r t í s t i co , o Es t adopassou a dispor de instrumentoadequado ao r eg i s t r o de ben sculturais de natureza imaterial, apartir da edição do Decreto.

A o p e r a c i o n a l i z a ç ã o d op r o c e s s o d e r e g i s t r o a i n d a éobjeto de del iberações governa-men t a i s . En t r e t an t o , o g r andepasso de reconhecimento dessep a t r i m ô n i o j á o s t e n t a s u a sv i r t u d e s . C o m b a s e e m e x p e -r i ê n c i a s i n t e r n a c i o n a i s d ereconhecimento das manifestaçõesc u l t u r a i s i m a t e r i a i s , f i c o uev idenc iado que as ações ma isrecomendadas para o trato dessepatrimônio são justamente aquelascon t emp l ada s pe l o dec r e to de2000: o inventár io, o registro, ad o c u m e n t a ç ã o , a s s i m c o m o adefinição de medidas de apoio, ded i f u s ão do conhec imen to e deproteção à propriedade intelectual.

M a i s r e c e n t e m e n t e , e s s al o u v á v e l i n o v a ç ã o r e c e b e u ,também, o aporte especializado daUNESCO que, a part i r de 1933,tendo como re fe rênc ia o t ra ta-mento do tema por alguns paísesorientais , passou a considerar oa s s u n t o c o m o á r e a d e s u acompetência e estudo, o que tempropiciado, inclusive, a lgum t ipode apoio financeiro aos detentoresde saberes e práticas patrimoniais.

O i n s t i t u t o d o r e g i s t r o ,previsto no Decreto nº 3.551, de2000, nasce a part i r da aberturade processo que deve ser sempreco l e t i v o , e n vo l v e ndo Gove r no(por intermédio das inst i tuiçõesd e a t r i b u i ç ã o e s p e c í f i c a ) ,associações civis e as comunidadesque abrigam essas manifestaçõesculturais . Seu objet ivo, a lém davalor ização dos bens inscr i tos, éa cr iação de meios para a efet ivaimplementação das d i spos içõesprevistas no art. 216 da ConstituiçãoFederal. Sem nenhuma dúvida, umavanço a ser considerado.

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Vera Maria Americano Bueno, consultora legislativado Senado Federal, licenciada em Letras (UnB), mestreem Literatura Brasileira (PUC-RJ); foi professora deTeoria da Literatura na Universidade Santa Úrsula (RJ);pesquisadora do Centro Nacional de ReferênciaCultural (DF), coordenadora de projetos no Instituto doPatrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN),pesquisadora, coordenadora de projetos e diretora daSecretaria de Articulações Institucionais da FundaçãoNacional Pró-Memória (DF).

PPPPPARA FINALIZARARA FINALIZARARA FINALIZARARA FINALIZARARA FINALIZARA partir do amplo panorama aqui

esboçado, é possível afirmar que oconjunto de instrumentos legaisdestinados à proteção do nossopatrimônio cultural exibe, hoje, um perfilsistêmico, com abrangência suficientepara alcançar todas as áreas do setor.Trata-se de um fato promissor, nuncaantes observado.

Outro fato auspicioso e de inegávelineditismo é a freqüência com que aquestão cultural tem sido consideradaentre as políticas prioritárias do Estado.E não apenas os setores diretamenteenvolvidos com a questão cultural sevêem às voltas com o exame das maisnovas medidas jurídicas para o setor. Emsintomática evidência de reconhe-cimento, o País todo comenta – e, decerta forma, participa – da afinação doordenamento jurídico voltado para aidentificação e proteção do nossopatrimônio cultural.

Esse fato, somado à açãogovernamental atualmente esboçada,revelam que o Poder Público, malgrado afalta recorrente de recursos, caminha paraum período de maior maturidade, para oqual contribuem a valorização da culturae o reconhecimento da sua importânciaestratégica e econômica para odesenvolvimento da Nação.

Com base em experiên-

cias internacionais de

reconhecimento das

manifestações culturais

imateriais, ficou eviden-

ciado que as ações mais

recomendadas para o

trato desse patrimônio

são justamente aquelas

contempladas pelo

decreto de 2000: o

inventário, o registro, a

documentação, assim

como a definição de

medidas de apoio, de

difusão do conhecimen-

to e de proteção à pro-

priedade intelectual.

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João Bosco Bezerra Bonfim

POR UMA POLÍTICA PÚBLICAPARA A CULTURA

A existência de uma “lei de incentivo à cultura”representa uma das respostas possíveis a uma questãoque poderia ser posta do seguinte modo: “Deve ou nãoo Estado atuar como indutor na área de cultura?” Emborao problema não seja novo na história brasileira, neminédita a atuação do Estado, somente na década de 1980,sob o título de Lei Sarney (Lei nº 7.505, de 1986), foiadotado esse mecanismo de fomento, por intermédioda renúncia fiscal.

Outras experiências, como a de fundações, autarquias,institutos ou empresas diretamente vinculadas ao Estado(Funarte, Embrafilme), sempre levantaram questiona-mentos sobre os critérios de escolha das obras e artistasapoiados, quando não deram lugar a especulações sobre acorreta aplicação de recursos. Em uma medida extrema, oGoverno Collor desestruturou a maior parte dessasinstituições, deixando a cultura brasileira ainda mais órfãdo amparo estatal.

Ressalte-se que a presença do Estado como indutorem diversos outros segmentos vem sendo empregadadesde os tempos coloniais. Foi assim com a cultura doaçúcar e do café; igualmente se reproduziu a presença doEstado na industrialização do Sul-Sudeste; não foi outra aatitude quando se resolveu reduzir as desigualdadesregionais, com as políticas de incentivos fiscais para oNorte e o Nordeste; e, ainda hoje, as políticas de incentivofiscal são largamente empregadas para setores econômicosvoltados para a exportação. Entretanto, quando se trata daatuação do Estado como indutor da produção cultural, temsido sempre questionada tal presença, seja porque não háatores sociais tão poderosos quanto os dos segmentoseconômicos mencionados, seja porque a cultura éconsiderada “dispensável” ou sem importância para merecera atenção do Governo ou o investimento público.

Essa noção de “desimportância” da cultura para oEstado pode ser vista na própria organização da máquina

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Assim sendo, uma lei de incentivoà cultura, nos moldes da atual – aLei Rouanet – procura responder,simultaneamente, a todos essesproblemas de financiamento e, aomesmo tempo, potencializar aprodução cultural do Brasil, comouma forma de afirmação políticada própria nacionalidade brasileira,da identidade cultural, da estimado povo e de sua valorização pe-rante os outros povos do mundo.

administrativa brasileira. Se, por um lado, desde ostempos do Império, sempre houve um Ministério “daFazenda”, por outro, apenas muito recentemente se criouum Ministério da Cultura. Se a Educação mereceu acriação de um ministério específico na década de 1930,somente décadas depois a “cultura” a ele foi incorporadacomo um “apêndice”.

A lei de incentivo responde também a outra questão,que pode ser formulada da seguinte maneira : “Érecomendável – necessário, imprescindível – ou não oaporte de recursos de empresas e pessoas físicas para aprodução cultural?” Embora a resposta – positiva – a essaquestão já tivesse sido dada desde tempos remotos, até oadvento da Lei de Incentivo à Cultura não tinha havido umaporte significativo de recursos. O mecenato cultural, emverdade, terá sido um grande indutor da cultura brasileiradesde a Colônia. Esse mecanismo agiu, principalmente,para promover as expressões artísticas vinculadas ao gostodas elites – fosse da nobreza ou da burguesia urbana –,como as artes plásticas e a música erudita.

En t re tan to , esse mecena to , baseado na“espontaneidade” de ricos doadores terá sido semprerestrito a eventos ou instituições específicas e localizadas,jamais para a difusão e democratização do fazer cultural.

Se ricos banqueiros e “capitães da indústria” ajudarama fundar museus dedicados às artes plásticas, por outrolado, as manifestações da cultura popular brasileira tiveramque sobreviver dos parcos recursos de seus realizadores.

Se grandes obras artísticas e arquitetônicas foramerigidas e recuperadas, em benefício de uma visão elitistade cultura e de arte, de outra parte, por não disporem derecursos financeiros, ricas tradições populares foramdeclinando, ao longo do tempo; ou se mantendo apenaspela persistência e resistência dos grupos populares, comoé o caso dos reisados, maracatus, pastorinhas e outrasmanifestações genuínas da cultura brasileira.

Assim sendo, uma lei de incentivo à cultura, nosmoldes da atual – a Lei Rouanet – procura responder,s imu l t aneamente , a todos esses p rob lemas definanciamento e, ao mesmo tempo, potencializar aprodução cultural do Brasil, como uma forma de afirmaçãopolítica da própria nacionalidade brasileira, da identidadecultural, da estima do povo e de sua valorização peranteos outros povos do mundo.

Percepções como essa – a da relevância da culturapara a afirmação nacional – já são bastante arraigadas emoutros países. Ou seja, a visão de que a produção cultural

não se restringe ao “deleite” e à fruição de prazeresestéticos supérfluos. Ou que investir em cultura não é“jogar dinheiro fora”. Pelo contrário, a produção cultural,além de influir fortemente na identidade de um povo, deuma nação, pode-se revelar um forte indutor da própriaeconomia. Nos Estados Unidos da América, desde o iníciodo século XX, existem leis de incentivos fiscais para apromoção das artes, em que pessoas físicas chegavam ater reduções de até 100% do imposto a pagar, seinvestissem em cultura. Para as empresas, os percentuaiseram mais modestos. Mas apenas recentemente houvelimitação a esses incentivos; mas isso ocorreu somentequando se tinha já uma “indústria cultural” vigorosa e auto-sustentável. A par disso, nos EUA foi erigida a maiorindústria de entretenimento do planeta, grande indutorada sua economia interna e grande exportadora de bensculturais. Dessa potência produtora e exportadora, osEstados Unidos auferem não apenas recursos financeiros,mas também influenciam os valores e os costumes de todosos outros países do globo.

No Brasil, ao se verificar que a “espontaneidade” domecenato não era tão forte e que a intervenção direta doEstado como financiador de projetos culturais poderia serfonte de questionamentos, optou-se por um padrãovinculado a valores de “mercado”, mas com a participação

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estatal. Essas escolhas estiveram na formulação originaldas leis de incentivo à cultura.

Por um lado, o recurso é público – já que provém darenúncia de impostos que, de outro modo, iriam para oscofres do Estado, e ali empregados indiferenciadamente;por outro, esse dinheiro sai diretamente dos cofres dasempresas, públicas e privadas. O Estado participa daseleção dos projetos a serem patrocinados; mas asempresas – sob forte orientação dos departamentos de

marketing – têm o direito deesco lher os p ro je tos queapoiarão.

Uma vez que os recursossão limitados, os produtorescu l tu ra i s e a r t i s t a s acabament rando numa espéc ie de“competição” pelos patrocínios, oque func iona também comoe lemento depurador dosprodutos e eventos que serãomerecedores de tais recursos.Esse tipo de depuração, por suavez, pode redundar em outroproblema, que é a orientação dequais projetos e artistas escolher,pois as empresas querem o maiorretorno em imagem para seusinvestimentos. Com isso, há orisco de se privilegiar artistas,even tos e espaços ma i sconhecidos, de grandes centros,em de t r imento de ou t rosartistas, eventos e espaços que

seriam igualmente – ou mais – merecedores de apoio.Essa equação tríplice Estado–Empresas–Produtores

apresenta, obviamente, aspectos negativos e positivos.Mas, no momento, tem sido a resposta possível à questãodo aporte de recursos para a cultura. Para as empresas,representa o benefício de permitir que estas associemsuas respectivas imagens a produções artísticas, comoparte de suas estratégias publicitárias. Para o Estado, oproveito de, com uma máquina administrativa reduzida,poder multiplicar sua atuação. Para os produtores, umacesso menos difícil aos recursos. Como ganho adicional,traz para o setor uma consistência e uma organicidademaior, visto que as produções e eventos precisam de umaestrutura “profissionalizada” para atuar na elaboração de

projetos, captação dos recursos, gestão e prestação decontas. Mas essa tríplice aliança apresenta um senão:uma vez que se trata de uma po l í t i c a púb l i c apo l í t i c a púb l i c apo l í t i c a púb l i c apo l í t i c a púb l i c apo l í t i c a púb l i c a, énecessário que os usuários ou potenciais usuários dacultura (espectadores, leitores, apreciadores) sejamtambém considerados, isto é, que os projetos apoiadoscom recursos públicos sirvam, de fato, para democratizaro acesso à cultura.

A Lei de Incentivo à CulturaA Lei de Incentivo à CulturaA Lei de Incentivo à CulturaA Lei de Incentivo à CulturaA Lei de Incentivo à CulturaA primeira versão dessa política de incentivo à Cultura

foi a chamada Lei Sarney, de 1986. Posteriormente, foramrealizadas alterações resultando na que hoje conhecemospor Lei Rouanet ou Lei de Incentivo à Cultura – a Lei nº8.313, de 1991–, que institui o Programa Nacional de Apoioà Cultura (PRONAC) e dá outras providências.

O Pronac tem a finalidade de captar e canalizarrecursos para facilitar e permitir os meios de acesso àcultura; deve, também, estimular a regionalização daprodução cultural, difundir as manifestações culturais eseus criadores, assim como preservar os bens materiais eimateriais do patrimônio cultural e histórico brasileiro,entre outros objetivos (art. 1º).

Seu funcionamento ocorre por intermédio de trêsmecanismos: o Fundo Nacional da Cultura (FNC); osFundos de Investimento Cultural e Artístico (FICART); eo Incentivo a projetos culturais. Para que recebam osincentivos da lei, uma série de critérios e mecanismos éestabelecida, como se verá adiante.

O Fundo Nacional da Cultura (FNC)O Fundo Nacional da Cultura (FNC)O Fundo Nacional da Cultura (FNC)O Fundo Nacional da Cultura (FNC)O Fundo Nacional da Cultura (FNC) – de naturezacontábil, com prazo indeterminado de duração, atua sobas formas de apoio a fundo perdido ou de empréstimosreembolsáve is . Suas fontes de recursos provêm,especialmente, do Tesouro Nacional, de doações e depercentual – 3% – da arrecadação bruta dos concursos deprognósticos e loterias federais. Para ele também podemconvergir legados, subvenções e auxílios de entidades dequalquer natureza, inclusive de organismos internacionais.Em linhas gerais, o FNC pode financiar até 80% do custototal de cada projeto aprovado, desde que o proponentecomprove dispor do complemento.

Os Fundos de Inves t imento Cul tura l e Ar t í s t i coOs Fundos de Inves t imento Cul tura l e Ar t í s t i coOs Fundos de Inves t imento Cul tura l e Ar t í s t i coOs Fundos de Inves t imento Cul tura l e Ar t í s t i coOs Fundos de Inves t imento Cul tura l e Ar t í s t i co(FICART)(FICART)(FICART)(FICART)(FICART) – a lei autoriza a constituição de Fundos deInvestimento Cultural e Artístico (Ficart). Tais fundospodem ser constituídos para a produção comercial de

( . . . ) a produção(. . . ) a produção(. . . ) a produção(. . . ) a produção(. . . ) a produção

cultural , além decultural , além decultural , além decultural , além decultural , além de

influir fortementeinfluir fortementeinfluir fortementeinfluir fortementeinfluir fortemente

na identidade dena identidade dena identidade dena identidade dena identidade de

um povo, de umaum povo, de umaum povo, de umaum povo, de umaum povo, de uma

nação, pode-senação, pode-senação, pode-senação, pode-senação, pode-se

revelar um forterevelar um forterevelar um forterevelar um forterevelar um forte

indutor da própriaindutor da própriaindutor da própriaindutor da própriaindutor da própria

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eventos e produtos nas áreas cinematográfica, musical, deteatro e dança, obras científicas e literárias, além deambientes para exibição de arte e espetáculos. Mecanismosemelhante está previsto na Medida Provisória nº 2.288-1,de 06 de setembro de 2001, o Fundo de Financiamento daIndústria Cinematográfica Nacional (Funcine).

O Incentivo a Projetos CulturaisO Incentivo a Projetos CulturaisO Incentivo a Projetos CulturaisO Incentivo a Projetos CulturaisO Incentivo a Projetos Culturais – Pessoas físicas oujurídicas podem efetuar doações ou patrocínios tantocomo apoio direto a projetos culturais, quanto porcontribuições ao FNC. Tais doações ou patrocínios sãodedutíveis do Imposto de Renda devido, e podem serdestinados a artes cênicas, livros de valor artístico,literário ou humanístico, música erudita ou instrumental,circulação de exposições de artes plásticas, acervos parabibliotecas públicas e para museus.

A Lei Rouanet (art. 25) determina que os projetos,para poderem receber sua chancela, devem ter comoobjetivo desenvolver as formas de expressão, os modosde criar e fazer, os processos de preservação e proteçãodo patrimônio cultural brasileiro; do mesmo modo, devemfavorecer os estudos e métodos de interpretação darealidade cultural. Os projetos deverão, ademais, tornaracessível à população o conhecimento dos bens de valorartístico e cultural. Numa relação de 12 categorias, poderãoser apresentados projetos de artes cênicas, cinema,literatura, música, artes plásticas, patrimônio cultural,humanidades e programas de rádio e televisão de naturezaeducativa e cultural (que não tenham caráter comercial).Uma ressa l va é f e i t a em re l ação às p roduçõesc inematográ f i cas , v ideográ f i cas , fo tográ f i cas oudiscográficas, que só poderão beneficiar produtoresindependentes; ou, então, produções educativo-culturaisrealizadas por empresas de rádio e televisão.

Para a dedução do imposto devido, há limitesestabelecidos pela legislação do Imposto sobre a Rendavigente. As pessoas jurídicas tributadas com base no lucroreal não poderão deduzir o valor da doação ou do patrocíniode alguns dos itens apoiados como despesa operacional.

Os projetos culturais previstos na Lei de Incentivo àCultura serão apresentados ao Ministério da Cultura, ou aquem este delegar atribuição, acompanhados do orçamentoanalítico, para aprovação de seu enquadramento nosobjetivos do Pronac. Uma vez aprovado, será publicado atooficial contendo o título do projeto aprovado e a instituiçãopor ele responsável, o valor autorizado para obtenção dedoação ou patrocínio e o prazo de validade da autorização.

P a t r o c í n i oP a t r o c í n i oP a t r o c í n i oP a t r o c í n i oP a t r o c í n i o – a le i cons idera como pat roc ín io atransferência de numerário, com finalidade promocional.Outra forma, esta para o contribuinte do Imposto sobre aRenda e proventos de qualquer natureza, é a cobertura degastos para a realização de atividade cultural. Além dacobertura de gastos, é possível também a cessão de usode bem móve l ou imóve l do pa t roc inador. Ta i stransferências a título de patrocínio não estão sujeitas aorecolhimento do Imposto sobre a Renda na fonte (art. 23,§ 2º). O patrocinador, por sua vez, está impedido dereceber qualquer vantagem financeira ou material emdecorrência do patrocínio que efetuar.

DoaçõesDoaçõesDoaçõesDoaçõesDoações – as distribuições gratuitas de ingressos paraeventos de caráter artístico-cultural por pessoa jurídica aseus empregados e dependentes legais são consideradascomo sendo doação. Também são vistas como doações asdespesas efetuadas por pessoas físicas ou jurídicas com oobjetivo de conservar, preservar ou restaurar bens de suapropriedade ou sob sua posse legítima, tombados peloGoverno Federal. Mas esta última hipótese só poderáocorrer se observadas regras e aprovações do órgão depatrimônio cultural.

DeduçõesDeduçõesDeduçõesDeduçõesDeduções – as deduções referentes a doações ou patrocínios(art . 26) obedecerão apercentuais var iáveis. Aspessoas físicas poderão abater80% das doações e 60% dospatrocínios; as pessoasjurídicas tributadas com baseno lucro real, 40% das doaçõese 30% dos patrocínios. Nesteúltimo caso, as empresaspoderão abater as doações epatrocínios como se fossemdespesa operacional. Paraartes cênicas, livros de valor artístico, literário ou humanístico,música erudita ou instrumental, circulação de exposições deartes plásticas, doações para bibliotecas públicas e museus,o abatimento é de 100% da doação. Esses valores, de todo omodo, não poderão ser superiores a 4% do imposto devido,para empresas e a 6% para pessoas físicas. O teto para taisdoações é fixado anualmente pelo Presidente da República,com base em um percentual da renda tributável das pessoasfísicas e do imposto devido por pessoas jurídicas tributadascom base no lucro real.

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O agenc i amen toO agenc i amen toO agenc i amen toO agenc i amen toO agenc i amen to – a elaboração de projetos para aobtenção de doação, patrocínio ou invest imento,assim como a captação de recursos ou a sua execuçãop o r p e s s o a j u r í d i c a d e n a t u r e z a c u l t u r a l s ã oconsideradas como atividades de agenciamento, paraas quais poderá haver também remuneração provindada doação ou patrocínio (art. 28).

A Le i do Aud iov i sua lA Le i do Aud iov i sua lA Le i do Aud iov i sua lA Le i do Aud iov i sua lA Le i do Aud iov i sua lO out ro mecan ismo de incent i vo à cu l tu ra é a

chamada Le i do Aud iov i sua l . A Le i n º 8 .685 , de1993 , c r iou mecan i smos de fomen to à a t i v idadea u d i o v i s u a l , p e l a q u a l c o n t r i b u i n t e s p o d e mdeduzi r, do Imposto de Renda dev ido, as quant iasi n v e s t i d a s n a p r o d u ç ã o i n d e p e n d e n t e d ea u d i o v i s u a i s , i s t o é , p a r a a q u e l a s o b r a s c u j oprodutor majori tár io não seja vinculado a empresasconcess ionár i as de te lev i são ou rád io .

A dedução pode se r de 3% do IR dev ido pe laspessoas f ís icas e 1% pelas pessoas jur ídicas, sendoque a pessoa jur íd ica t r ibutada com base no lucror e a l p o d e r á , t a m b é m , a b a t e r o t o t a l d o si n ve s t imen to s e f e t uados na f o rma de s t e a r t i gocomo despesa ope rac iona l . Uma vez que podemser u t i l i zados , concomi tan temente , os bene f í c iosd a L e i R o u a n e t , a s d e d u ç õ e s p a r a a s p e s s o a sjur íd icas podem chegar a 5%.

Outro mecanismo criado pela lei é a taxação dasremessas de rendimentos da exploração de obrasaudiovisuais estrangeiras em 25% do IR na fonte. Emcompensação , essas mesmas remessas t e rão umdesconto de 70% do IR devido se os investirem nodesenvolvimento de obras brasileiras: longas metragens,telefilmes e minisséries, e produções independentes.

Leis de Incentivo à Cultura nos EstadosLeis de Incentivo à Cultura nos EstadosLeis de Incentivo à Cultura nos EstadosLeis de Incentivo à Cultura nos EstadosLeis de Incentivo à Cultura nos Estadose Municípiose Municípiose Municípiose Municípiose Municípios

Pelo menos 16 Estados brasileiros dispõem de leisde incentivo à cultura, tanto pelos mecanismos dosFundos como pela renúncia fiscal, neste caso, do ICMS.Segundo estimativa da revista eletrônica Cultura eMercado (http://culturaemercado.terra.com.br/), osestados da Federação destinam cerca de 166 milhões dereais à cultura, um valor superior ao orçamento do MinC( Ministério da Cultura) para 2004, que é de R$ 130milhões.

Um exemplo é o Estado de Minas Gerais, quepermite, sob certas condições, a dedução de até 3% doICMS devido para o patrocínio de atividades culturais.Funciona à semelhança da Lei Rouanet, com a préviaaprovação de projetos pelo Estado e a captação junto aoscontribuintes. Em seis anos de funcionamento, estima-se que essa lei terá injetado na cultura cerca de cemmilhões de reais. As leis de incentivo da Bahia, do RioGrande do Sul e de Mato Grosso têm funcionamentosemelhante.

No Ceará (Lei Jereissati), além do incentivo direto,há um fundo estadual de cultura, constituído também comrecursos do ICMS. De igual modo, procedem o DistritoFederal e Pernambuco.

Em São Paulo, a Lei Estadual de Incentivo à Culturanão está vinculada a impostos. Os recursos fazem partedo orçamento estadual. O mecanismo abre a possibilidadede financiamento para até 80% dos projetos a elesubmetidos e aprovados.

Alguns municípios, principalmente os de capitais, contamtambém com leis semelhantes, pela renúncia do ISS e do IPTU.É o caso de Aracaju (SE), Belo Horizonte (MG), Curitiba (PR),Rio de Janeiro (RJ), São Paulo (SP), Teresina (PI) e Vitória (ES).

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alocado pelo orçamento público ou pela espontaneidadedas empresas.

A confiança dos produtores também tem crescido,visto que, em 1996 – ano de expressivo incremento dautilização da lei – foram apresentados 2.351 projetos,número que chegou a 4.068 em 2001.

PerspectivasPerspectivasPerspectivasPerspectivasPerspectivasNeste momento, estão sendo discutidas algumas

mudanças na Lei de Incentivo à Cultura, com vistas aaperfeiçoá-la, tornando-a mais democrática, e reduzindo aconcentração de incentivos. São propostas calcadas emavaliações do funcionamento da lei, por intermédio deseminários promovidos em todo o País, no presente ano,e que apontam para o seu aperfeiçoamento.

Um dos mecanismos passíveis de aperfeiçoamentoé o aumento do teto de isenção para as empresas. Hoje,uma empresa só pode investir até 4% do Imposto deRenda a pagar; na proposta do Ministério, esse limitepoderá ser estendido para 10%. Essa alteração poderáser feita mediante decreto presidencial, como autoriza alei em vigor.

Uma das mais importantes alterações pretendidas dizrespeito à distribuição mais equânime dos recursosincentivados nas diferentes regiões do País. A proposta,que implica mudança na legislação em vigor, deveestabelecer limites para os investimentos em cada região,variáveis de ano para ano, sempre com reajustes quesuperem a arrecadação regional do ano anterior. Em 2003,por exemplo, foram investidos efetivamente R$ 385milhões em obras culturais com base na Lei de Incentivo àCultura, um recorde histórico de captação. Entretanto, R$ 293milhões ficaram na região Sudeste, ao passo que, para oSul, seguiram somente R$ 41 milhões, enquanto o Nordesteficava com apenas R$ 27 milhões. De modo eloqüente, as

Impacto das Leis de IncentivoImpacto das Leis de IncentivoImpacto das Leis de IncentivoImpacto das Leis de IncentivoImpacto das Leis de Incentivoà Culturaà Culturaà Culturaà Culturaà Cultura

As l e i s de incen t i vo àcu l tu ra t êm permi t ido umacréscimo substancial na ofertade recursos e , conseqüen-temente, de projetos culturaispatrocinados, em todas as áreas.

Em 1990, as empresasbrasileiras investiam apenas R$33 mi lhões em a t i v idadesart ís t icas ou cul turais ; umadécada depois, em 2001, esse valor chegou a R$ 384milhões. Tais empresas, além de poderem deduzir o valordos impostos devidos, obtêm um retorno de imagemsignificativo perante os públicos consumidores e asociedade em geral. Em pesquisa realizada pelo MinC(2001-2002), 65% dos investidores revelaram quepercebiam alguma melhora em sua imagem institucional e28% opinaram que, com os patrocínios, estavam agregandovalor à marca da empresa.

Do ponto de vista da economia brasileira, estima-seque a produção cultural não chegue a alcançar 1% do PIBnacional. Entretanto, apesar de a receita ser modesta, osetor tem permitido a abertura de novas oportunidades detrabalho e a qualificação de mão-de-obra. Segundoestimativa do MinC, de cada milhão de reais investindo naárea, criam-se 160 empregos diretos e indiretos. Em 1994,o Brasil tinha 510 mil empregos na produção cultural, 80%deles na iniciativa privada.

Embora os investimentos em cultura não sejamcumulativos, estima-se que, atualmente, haja mais de 800mil pessoas ligadas à produção e à comercialização de artee cultura no País. Em estudo da Fundação João Pinheiro(1998), no setor cultural havia mais postos de trabalhoque nas indústrias eletroeletrônica, automobilística e deautopeças, juntas. Ainda que os postos de trabalho na áreade cultura não tenham a mesma formalidade e consistênciaque a daqueles setores, seu número é bastante expressivoe chega a ser o dobro do que empregam os bancos emtodo o País.

Por intermédio dos mecanismos da Lei Rouanet e daLei do Audiovisual, de 1996 a 2002, foram captados para acultura cerca de R$ 3,3 bilhões. Apenas em 2003, com obenefício da Renúncia Fiscal, foram captados recursos daordem de R$ 419 milhões para projetos culturais de todo oPaís, um montante de recursos que dificilmente seria

Senatus, Brasília, v. 4, n. 1, p. 26-32, nov. 2005

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João Bosco Bezerra Bonfim é consultor legislativo

do Senado Federal, professor, bacharel em Letras

(UnB), mestre em Lingüística (UnB); foi assessor

pedagógico do Movimento de Educação de Base

(MEB), professor de Literatura (Ensino Médio) e

assessor legislativo da Câmara Legislativa do DF.

cifras baixam mais ainda quando chegamos ao Centro-Oeste e ao Norte, com R$ 17 milhões e R$ 5 milhões,respectivamente.

Pela nova proposta do MinC, não haverá prejuízo paraas áreas mais bem aquinhoadas atualmente – Rio e SãoPaulo. O principal indício de que não haverá redução novolume de recursos desses estados é que o teto da isençãofiscal, que era de R$ 160 milhões até 2003, foi elevadopara R$ 320 milhões, em 2004; e há boas perspectivaspara que possa chegar em breve ao limite de R$ 401milhões. Por isso, será possível passar a investir em áreascarentes, sem prejudicar os setores hoje atendidos.

Outra medida que visaria reduzir as desigualdadesregionais é a possibilidade de dedução de percentuais maioresdo Imposto de Renda nas regiões onde hoje há pouca aplicação.Essa proposta leva em consideração que a arrecadação naregião Sudeste é muito superior à das demais regiões. Aalternativa, então, seria estabelecer tetos regionalmenteadaptados, e não um único para todo o País.

Outra modificação proposta – a ser proximamenteencaminhada pelo Executivo ao Congresso Nacional – é a delimitar a dedução com patrocínios feita pelas grandesempresas. Isso porque, hoje, uma grande empresa podededuzir até 100% dos recursos que aplicar em patrocínio aprojeto de música instrumental ou erudita, artes cênicas,exposições de artes plásticas, livros artísticos, ou doaçõespara museus. No mesmo sentido de evitar a concentração, oMinC pretende baixar esse percentual para faixas entre 30%e 90%. Mas as empresas de pequeno e médio porte poderiamcontinuar a usufruir a possibilidade de deduzir 100% do queefetivamente gastem com tais projetos.

Para as pessoas físicas, também haveria mudanças. Hojeelas só podem abater o limite de 6% do Imposto de Renda apagar, o que pode representar valores muito baixos em moedacorrente. A alternativa apontada pelo MinC é de elevar essepercentual para 10% do imposto devido, a fim de tornar essaquantia um pouco mais elevada.

Da mesma forma, no intuito de vincular oferta e procura,o MinC poderá lançar editais para fins específicos – arestauração de um prédio histórico, por exemplo; e asempresas poderiam aportar recursos para esses projetosespecíficos. Com isso, a oferta de patrocínio e a respectivaprocura estariam associadas.

A adoção dessas medidas, anunciadas pelo MinC, deveráser para breve, a maior parte delas por decretos e portarias.No conjunto, representam as medidas possíveis, no momento,para aperfeiçoar a legislação de incentivos culturais.

Nota: As fotos das páginas 30 e 31foram gentilmente cedidas pelaÂnima Cultural Agência de ProjetosS/C Ltda, agência de comunicaçãoque trabalha na criação e desenvol-vimento de ações que promovamuma experiência real entre marcas eindivíduos, utilizando como matéria-prima produtos de diversos segmen-tos culturais.www.animacultural.com.br

Página 30 - Projeto recuperação doAcervo da Companhia Vera Cruz. Fo-tos de Eliane Lage, Mário Sérgio eCarlos Vergueiro no filme Caiçara;Eliane Lage e Anselmo Duarte no Fil-me Sinhá Moça; e Eliane Lage eMarina Freitas no Filme Sinhá Moça.

Página 31 - Projeto Quilombos(documentação etno-fotográfica)

Tributação

Senatus, Brasília, v. 4, n. 1, p. 34-35, nov. 2005

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As decisões de investimentos em umpaís são precedidas de sofisticadas análiseseconômicas e financeiras. Assim, na óticamacroeconômica, são avaliados aestabilidade monetária, a disciplina fiscal,o endividamento público, a amplitude domercado, o nível de abertura da economiaao comércio internacional, dentre outros.A rapidez das informações permite que,em segundos, grandes aportes de capitalmigrem de um lado a outro do mundo, aomenor sinal de risco.

Além das variáveis macro-econômicas, os investidores avaliam aestabilidade do sistema de normas do país,no intuito de detectar se há incertezasquanto ao cumprimento das regrasjurídicas e dos contratos. A clareza doconjunto legal se afigura, portanto, comobalizador do investimento privado, dado

As leis e asegurança jurídicados contratos

que a proliferação de normas, às vezes emsocorro das circunstâncias, acaba por gerara impossibilidade de sua aplicação efetiva.No limite, tudo isso dificulta o trabalho dointérprete e do aplicador da lei e tende,ao longo do tempo, a reduzir a importânciado próprio direito escrito. Quanto maisprolixo o sistema normativo, maior otempo envolvido na solução de impassesjudiciais, implicando custos adicionais paraas empresas.

A legislação federal, conformelevantamento do próprio Governo, em1998, já contava com 10.121 leis de carátergeral (que poderiam ser consolidadas) eoutras 17.350 de caráter particular(concessão de pensões, homenagens,declaração de utilidade pública, etc.). Diga-se que não se trata de uma realidadeapenas brasileira, mas também de países

mais desenvolvidos. Estudos daOrganização para Cooperação eDesenvolvimento Econômico (OCDE)demonstraram que o grande volume delegislação existente nos Estados-membrosda União Européia (UE) representa umobstáculo à cidadania e ao eficientefuncionamento das empresas e daAdministração Pública. Em razão disso,a UE, em 2000, criou um colegiado dealto nível com a finalidade de simplificaro ambiente regulamentar, no âmbitocomunitário e nacional. Entre nós, como advento da Lei Complementar nº 95,de 1998, alterada pela Lei Complementarnº 107, de 2001, aperfeiçoou-se asistemática de simplificação e consolidaçãode leis. Assim, hoje já estão tramitandono Congresso Nacional diversos projetosque consolidam legislações, a exemplo do

Senador Renan Calheiros

Senatus, Brasília, v. 4, n. 1, p. 34-35, nov. 2005

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PL nº 7475/02 (consolida a legislaçãoesportiva), PL nº 7078/02 (consolida alegislação previdenciária), PL nº 1494/99(consolida a legislação de transportes eviação), dentre outros.

Em matéria tributária, por exemplo,o extenso rol legislativo, aliado àcomplexidade e tecnicismo das normas,favorece a obscuridade. Trata-se de campofértil para inúmeros questionamentosjudiciais, criando um ambiente deincertezas quanto à própria validade dotributo cobrado. Fragilizando-se a norma,o contribuinte, na dúvida, opta pelo nãopagamento do tributo, fenômeno refletidona sonegação e na informalidade. As

empresas, num cenário assim, se vêemobrigadas, por sua vez, a manter umaestrutura de “defesa” tributária, cujoscustos são, obviamente, repassados aospreços finais dos bens e serviços.

Eventuais disfunções do sistema deleis acabam por afetar as relaçõescontratuais, gerando insegurança jurídicae incertezas. Embora reconheçamos asdificuldades de redução (a curto prazo)desse tipo de incerteza, dado o traçocultural detalhista do nosso Direito, pensoque sinalizações podem ser dadas àsociedade e aos agentes econômicosquanto ao desejo de uma rota distinta.Ocupei-me de estudos relativos a essa

temática e apresentei a PEC nº 45/2004,que veda a edição de medidas provisóriasem matéria contratual.

J á a vançamos bem naes t ab i l i dade mac roeconômica .Cumpre-nos, agora, operar na linhada estabi l idade normativa e doscontratos, ainda mais num tempo emque se discute parcerias de longoprazo entre o Estado e o setor privado.A discussão dessa segurança jurídicadas normas e contratos naturalmenteé f undamen ta l . C r i a r amb ien teestável para nossas leis e marcosregulatórios me parece ser um bommote para o Parlamento em 2005.

Renan CalheirosRenan CalheirosRenan CalheirosRenan CalheirosRenan Calheiros, senador por Alagoas, é

Presidente do Senado Federal

Em matéria tributária, por

exemplo, o extenso rol legislativo,

aliado à complexidade e

tecnicismo das normas, favorece

a obscuridade. Trata-se de campo

fértil para inúmeros

questionamentos judiciais,

criando um ambiente de

incertezas quanto à própria

validade do tributo cobrado.

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36 Destaque

O lançamento do terceiro volume da revista SENATUS, editada pela Secre-taria de Informação e Documentação (SIDOC) do Senado, foi saudada pelo senadorRomero Jucá (PMDB-RR). Iniciativas como essa, afirmou o senador, fazem com que aCasa cumpra seu papel de foco irradiador de conhecimento, fundamental na democracia.

- A publicação de uma revista como a SENATUS, além de nos encher deorgulho por sua qualidade, nos lembra que a responsabilidade do Parlamento com asociedade não se esgota na atividade legislativa. É também papel do Parlamento traba-lhar para o aprofundamento da cultura democrática na sociedade, difundindo conheci-mento, provocando reflexão e divulgando os debates sobre os grandes temas nacionais– disse o senador.

O senador se disse satisfeito pelo fato de haver espaço para artigos de consultoreslegislativos do Senado, que, com a revista, ganham espaço para divulgar para um públicomais amplo “o competente trabalho que fazem”.

- A qualidade gráfica e editorial da revista é o que primeiro chama a atenção. E, oque é mais importante, os artigos e as matérias apresentadas estão à altura dessaqualidade – declarou Jucá, apresentando suas “mais sinceras congratulações” ao diretorda SIDOC, Paulo Afonso Lustosa de Oliveira.

Com ênfase no tema segurança pública, a edição da revista, narra Jucá, traz artigodo consultor Joanisval Gonçalves, que defende que a atividade de inteligência é fun-

Senador Romero Jucásaúda publicação darevista SENATUSMatéria divulgada pela Agência Senado, edição de 03/09/2004

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damental para a prevenção de crimes. Em outro artigo, continua o senador, oconsultor Tiago Odon aponta para problemas de fiscalização no território brasi-leiro, que indicam que a solução para o combate ao crime organizado dependemais de boa execução que de nova legislação.

No terceiro artigo da série, dos consultores Stelson Ponce de Azevedo eGilberto Guerzoni Filho, Jucá relata que há dúvidas quanto à efetividade daproposta de unificação das polícias. Os autores do texto entendem que ainiciativa não deve resolver os problemas das polícias, que são crônicos.

Em outras páginas, o senador relata que o consultor Fernando Meneguinsugere caminhos para enfrentar o desemprego, como a flexibilidade do mercadode trabalho e a melhor regulamentação de setores da economia. O senadorDelcídio Amaral (PT-MS) também comenta na revista os avanços trazidos peloEstatuto do Idoso.

A revista traz ainda notícias sobre eventos, conferências e seminários,resenhas, além do oportuno resgate da memória do senador Guido Mondin, queera pintor e escritor – afirmou Jucá, informando que a ilustração da capa darevista SENATUS é de autoria de Mondin.A revista SENATUS está dis-ponível na Internet no endereço http://www.senado.gov.br/sf/publicacoes/revistasenatus/

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SR. ROMERO JUCÁ SR. ROMERO JUCÁ SR. ROMERO JUCÁ SR. ROMERO JUCÁ SR. ROMERO JUCÁ (PMDB - RR.Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr.Presidente, Srªs e Srs. senadores, além dasua função precípua, que é legislar, oParlamento cumpre, nos Estados modernos,uma série de outras funções fundamentais.Entre elas, está a de favorecer a produção, adiscussão e a disseminação deconhecimento, especialmente deconhecimento sobre a própria sociedadeque representa e sobre os temas que atocam mais de perto.

Sinto grande satisfação, Sr.Presidente, e orgulho mesmo, de constatarque o Senado Federal é um foco irradiadorde conhecimento, de várias maneiras.Nossa Biblioteca, por exemplo, põe àdisposição não apenas dos senadores e dosservidores da Casa, mas também dapopulação em geral, um acervo que ofereceum precioso apoio aos que procuram refletirsobre o Brasil. O Arquivo do Senado guardapreciosidades de nossa história, àdisposição dos pesquisadores. Instituiçõescomo a Unilegis e o Interlegis, a TV e aRádio Senado ajudam a difundir para asociedade a experiência e o conhecimentoque se gera e se acumula em torno dotrabalho legislativo.

Mas o que quero hoje destacar é oexcelente trabalho feito pelo Senado na área

de publicações.Desde 1997, oSenado conta comum Conselho

Editorial responsável pela edição “de obrasde valor histórico e cultural e de importânciarelevante para a compreensão da históriapolítica, econômica e social do Brasil ereflexão sobre os destinos do País”.Publicados pela Secretaria Especial deEditoração e Publicações, os títulos quecompõem as diversas coleções formam umacervo considerável.

O Senado ainda é responsável pelapublicação da Revista de InformaçãoRevista de InformaçãoRevista de InformaçãoRevista de InformaçãoRevista de InformaçãoLegislativaLegislativaLegislativaLegislativaLegislativa, de periodicidade trimestral, emcirculação ininterrupta há 40 anos.

O que quero hoje saudar de formaespecial é a publicação do terceiro volumeda revista SSSSSENAENAENAENAENATUSTUSTUSTUSTUS, da Secretaria deInformação e Documentação. Essa é umapublicação de periodicidade irregular, o quetorna ainda mais digna de registro a suarecente edição.

A qualidade gráfica e editorial darevista é o que primeiro chama a atenção.E, o que é mais importante, os artigos eas matérias apresentadas estão à alturadessa qualidade.

Um dos temas que mereceudestaque neste número da revista foi asegurança pública. Três artigos discutem ocombate ao crime organizado e a unificaçãode polícias. Aliás, é digno de nota que ostrês artigos são de autoria de consultores

legislativos da Casa, que, assim, divulgampara um público mais amplo ocompetente trabalho que fazem, e deque, em geral, apenas nós, senadores esenadoras, nos beneficiamos direta-mente no nosso dia-a-dia.

O consultor Joanisval Gonçalvesdefende a idéia de que a atividade deinteligência, que no Brasil ainda sofreinjustamente com os preconceitosoriginados por sua associação com oregime militar, é altamente relevante nocombate ao crime organizado. O autorsustenta que, diante de uma atividadecriminosa cada vez mais diversificada,complexa e organizada, a atividade deinteligência, para além da repressão, éfundamental para a prevenção.

No texto seguinte, o consultorTiago Odon analisa detidamente o combateao crime organizado no Brasil. O autorchama a atenção para o fato de que o poderfiscalizador do Estado está comprometido,tanto na área primária, ou seja, no controlede aeroportos, portos, locais de embarquee desembarque e terminais de carga,quanto na área secundária, ou seja, todo orestante do território nacional, uma vezque as mercadorias ilícitas de que vive ocrime organizado tenham conseguidopassar a barreira primária de controle. Asrazões para isso são várias: vão desde asimplificação dos processos de fiscalizaçãonas aduanas até problemas de falta decoordenação entre as instâncias federal e

do pronunciamento doExcelentíssimo

senador Romero Jucána sessão de

02 de setembro de 2004

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estaduais, passando por insuficiência depessoal e terceirização de atividades. Oautor conclui afirmando que a solução parao combate ao crime passa mais pelaexecução do que pela legislação.

Por fim, os consultores StelsonPonce de Azevedo e Gilberto GuerzoniFilho discutem até que ponto a unificaçãode polícias aperfeiçoaria a segurança pública.Inicialmente, os autores defendem a tesede que a unificação de polícias, por meio deuma emenda constitucional, atingiria oprincípio federativo, assim “ferindo acláusula pétrea que determina a perenidadeda Federação”. Quanto ao mérito da idéiade unificação, os autores lembram que oesforço de unificar as atividades depoliciamento ostensivo e de polícia judiciáriaem uma única estrutura só se justificaria sefosse garantido um ganho significativo deeficácia no combate ao crime. Mas isso,argumentam, é duvidoso. É duvidoso que aunificação pura e simples resolva osproblemas crônicos de nossas polícias.Além do mais, há funções, como a demanutenção ou restauração da ordempública, que só uma organização militarizadapode desempenhar a contento.

Outro tema que freqüenta a agendade prioridades nacionais, o desemprego, éanalisado em artigo produzido por mais umconsultor legislativo da Casa. O consultorFernando Meneguin mostra que, a partirde modelos econômicos distintos, trêsdiagnósticos diferentes sobre o problemado desemprego podem ser feitos. Umprimeiro diagnóstico aponta para a relaçãoentre demanda de trabalho e crescimentoeconômico. O segundo, para aspectosinstitucionais, como a ação de sindicatos ea fixação de um salário mínimo, que tirariamflexibilidade do mercado de trabalho,influenciando seu equilíbrio. O terceirodiagnóstico enfatiza o papel do marcoregulatório ineficiente. O autor concluidizendo que, embora a principal causa dedesemprego no Brasil seja, naturalmente,

a desaceleração da atividade econômica emgeral, o melhor seria atacar o problema emvárias frentes, com base nos váriosdiagnósticos que mencionei.

A revista traz ainda um artigo daProfessora Maria Elenita Nascimento sobrea gestão de comunidades virtuais eminstituições públicas e privadas, área emque o Congresso Nacional, mais uma vez,se destaca, com a Comunidade Virtual doLegislativo, o Interlegis. O Interlegis é aindalembrado no artigo de Telma Venturelli eJales Marques, consultores do PNUD noPrograma Interlegis, que destacam as açõesdo Senado na área de educação, qualificaçãoe treinamento, com referência especial aoensino a distância.

Há ainda um belo artigo daestudante Henrianne Barbosa sobre umadas grandes riquezas culturais do Brasil,que são as línguas indígenas. Hoje, existemainda cerca de 180 línguas indígenas faladasno País, de um universo que já foi muitomaior: antes da chegada dos portugueses,havia 1.200 línguas. O artigo nos lembraoportunamente da necessidade de cuidardesse rico patrimônio brasileiro.

Por fim, destaco o artigo de autoriado nobre senador Delcídio Amaral sobreum dos itens mais significativos da produçãolegislativa no ano passado, que foi o Estatutodo Idoso. O eminente senador faz umaoportuna recapitulação dos ganhos eavanços iniciados por essa nova legislação,convocando toda a sociedade paratornar realidade o que a lei játornou possível.

A revista traz aindanotícias sobre eventos,conferências e seminários,resenhas, além dooportuno resgate damemória de um antigomembro desta Casa,o senador GuidoMondim, que,além de sua

atividade política, foi também pintor eescritor. A imagem que ilustra a capa darevista, aliás, é de um de seus quadros.

Sr. Presidente, Srªs e Srs.senadores, a publicação de uma revistacomo a SSSSSENAENAENAENAENATUSTUSTUSTUSTUS, além de nos encher deorgulho por sua qualidade, nos lembra quea responsabilidade do Parlamento com asociedade não se esgota na atividadelegislativa. O Parlamento é o coração dademocracia. É seu papel também trabalharconstantemente não apenas para o bomfuncionamento das instituiçõesdemocráticas, mas também para oaprofundamento disto que poderíamoschamar de cultura democrática nasociedade, difundindo conhecimento,provocando reflexão e divulgando osdebates sobre os grandes temas nacionais,que nos ocupam cotidianamente em nossaatividade principal.

Creio que a revista SSSSSENAENAENAENAENATUSTUSTUSTUSTUSajuda a cumprir isso com louvor. Deixo aquiminhas mais sinceras congratulações ao Dr.Paulo Afonso Lustosa de Oliveira, diretorda Secretaria de Informação eDocumentação, ao Sr. Nunzio Briguglio,editor responsável pela revista, e a todosos demais que a tornaram possível.

Muito obrigado.

Fontes: Fontes: Fontes: Fontes: Fontes: Secretaria-Geral da Mesa -Subsecretaria de Taquigrafia - Secretariade Informação e Documentação -Subsecretaria de Informações

Foto: Lygia Lyra - SUPRES

Meio Ambiente

Senatus, Brasília, v. 4, n. 1, p. 42-48, nov. 2005

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IntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoDurante o século passado, propagou-se a crença de que

a ciência seria capaz de desenvolver antídotos para todos osmales da modernidade, inclusive aqueles decorrentes do usoirracional dos recursos naturais. Assim, se o progressoprovocasse graves disfuncionalidades, estariam na própriatecnologia os meios para remediá-las.

A crença exacerbada na eficiência da técnica científicadurante o século passado pode ser entendida como uma dascausas da crise ecológica. Isto porque os pressupostosmetodológicos da ciência moderna são identificados com oparadigma cartesiano, segundo o qual a natureza deveria sercolocada a serviço do homem.

Não se pode negar a emergência de novos paradigmas dedesenvolvimento a partir da tomada de consciência da criseecológica. Entretanto, ainda não houve um verdadeiro rompimentocom o modelo de desenvolvimento dominante no século XX.

É importante ressaltar o papel benigno da ciência, tanto naprevisão de riscos como no protesto de alguns cientistas diantede questionáveis avanços do conhecimento. No entanto, osbenefícios que a ciência trouxe para a modernidade não estãoaqui em questão.

A CIÊNCIA,A CRISE AMBIENTAL

E A SOCIEDADE DE RISCO

Trata-se de desenvolver a idéia segundo a qual os homense suas instituições, ao intervir supostamente em prol dodesenvolvimento social e, principalmente, econômico, com açõesque afetam o meio ambiente, muitas vezes desconsideram que aciência não é capaz de prever todos os efeitos destas ações e,muito menos, de encontrar meios para remediá-los. Daí osurgimento de uma sociedade que investe em riscos ecológicos.

O Estado, no século XX, fez uma aliança com a técnica ecom a ciência e as utilizou na gestão da existência social. Estetrabalho consiste em analisar de que forma isto se deu e quaisas implicações desta parceria para a constituição da sociedadede risco contemporânea e a conseqüente crise ambiental.

Com isto, toma-se como referencial teórico a concepçãodo risco na sociedade moderna desenvolvida por Ulrich Beckatravés do modelo sociológico denominado “sociedade do risco”.

A relação entre o Estado e a CiênciaA relação entre o Estado e a CiênciaA relação entre o Estado e a CiênciaA relação entre o Estado e a CiênciaA relação entre o Estado e a CiênciaFrançois Châtelet e Évelyne Pisier-Kouchner, na obra As

Concepções Políticas do Século XX: História do PensamentoPolítico, analisam como as atividades científicas penetraram navida das sociedades que se industrializaram.

Maíra Luísa Milani de Lima

“Pensamos nestas coisas com razão tardia e do que vemos comclareza, do que vimos, fazemos um lugar que só de nósdepende”.

Wallace Stevens

A ciência propiciou a possibilidade de previsão das catástrofesnaturais e trouxe a expectativa de controle de seus resultados.Entretanto, aos perigos naturais somam-se riscos provenientesjustamente da intervenção do homem sobre o meio e da buscade uma maior eficiência da técnica e da ciência.

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A partir da revolução copérnico-galileana, primeiromomento da ciência moderna, define-se uma nova relaçãoprática entre o homem e a natureza. A possibilidade deconstrução de uma ciência universal muda a significação daprópria operação de conhecimento (CHATELÊT; PISIER-

KOUCHNER, 1983, p. 452).

A busca de um método para construir um conhecimentoeficaz a respeito da natureza, que fosse útil à humanidade,foi a grande preocupação de René Descartes. Oconhecimento construído pela humanidade até aquela época,constituía para Descartes um conjunto de opiniões confusase incertas. Ele busca, então, um método para explicar anatureza a partir de causas puramente físicas, autônomascom relação à mente e ao pensamento.

Descartes inaugurou um modelo de racionalidade dominantena ciência moderna onde a natureza deixa de ser concebida comoum organismo vivo e mágico, e passa a ser compreendida comouma máquina, na qual a interação de suas pequenas partes seriacapaz de explicar o funcionamento global. A cultura científica adota,então, um paradigma simples, que reduz um conceito a outro, ouos separa. O conhecimento baseia-se na formação de leis quepermitem prever o comportamento futuro dos fenômenosobservados, o que dá a idéia de ordem e estabilidade no mundo(CHÂTELET; PISIER-KOUCHNER, 1983, p. 452).

Assim, o cientista moderno acreditou ser possívelcompreender o todo a partir do estudo das partes, como se anatureza fosse uma máquina e, seus fenômenos, “peças”, cujofuncionamento futuro poderia ser previsto apenas pela observaçãode seu exercício presente. Com isto, rejeitou a complexidade dotodo, recusou a incerteza do conhecimento e não se preparoupara o inesperado.

Para Châtelet e Pisier-Kouchner (1983), Descartes étestemunha e administrador da mudança na operação doconhecimento: testemunha porque seu discurso tem como finalidadelegitimar a nova ciência; administrador porque em seu “Discursodo método” apela para a construção de uma espécie de sociedadeonde o homem é mestre e senhor da natureza.

“Conhecer [para Descartes] é dominar duplamente:fazendo com que desapareça o mistério do objeto, mas tambémsubmetendo-o às transformações materiais correspondentesà vontade dos homens” (CHATELÊT; PISIER-KOUCHNER,1983, p. 453).

A partir de Descartes, o importante é não deixar sem uso oexercício do conhecimento. A técnica deixa de significar apenasarte, destreza, e adquire o título de teoria. A ciência não é maisalgo puramente especulativo.

Paulatinamente, devido às exigências da produtividade e àsnecessidades militares, a organização das ciências e as técnicasque se ligam a tais ciências, tornam-se um problema do Estado. Associedades avançadas do século XIX passam a pensar em si mesmascomo um conjunto empírico complexo e tentam prever suas crises,suas dificuldades. Acredita-se que a ciência é capaz de fornecer àpolítica um instrumento verificável e eficaz, podendo chegar asubstituir as teorias aleatórias e subjetivas (CHÂTELET; PISIER-KOUCHNER, 1983, p. 449).

Após a Primeira Guerra Mundial, a relação que se estabeleceentre as ciências da natureza e a indústria passa a seinstitucionalizar. Os imperativos militares desempenham um grandepapel: com pesquisa científica, a ciência passa a fazer partediretamente das forças produtivas e, com isto, constitui-se comoelemento da política. Estratégia (guerra e diplomacia), imperialismoindustrial, desenvolvimento científico e técnico tornam-seindissociáveis (CHÂTELET; PISIER-KOUCHNER, 1983, p. 457).

Os Estados socialistas não tratam a atividade científica demaneira diferente. A utilização da racionalidade da ciência entradiretamente na linha de organização sistemática da existência socialpara o aumento do bem-estar de todos. Isto ilustra como a ciênciaé concebida, durante o século XX, como um poder neutro, podendoser utilizada para fins diversos, conforme a utilização política quelhe é dada (CHÂTELET; PISIER-KOUCHNER, 1983).

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A transformação progressiva do Estado em “Estado-Cientista”1, se dá, também, por outra via: o Estado passa apreocupar-se cada vez mais com a segurança e o bem-estar dos cidadãos. Isto o obriga a aceitar como de suaresponsabilidade um número cada vez maior de problemase a encontrar soluções para os mesmos. Deve evitar ascr ises por meio de técnicas apropr iadas. Odesenvolvimento da ciência e suas implicações naindústria geram um dinamismo social que, apesar deartificial, é uma espécie de estimulação constante, graçasàs quais as contradições mais profundas podem serresolvidas ou mascaradas. A intensa expansão industrialgera uma imagem singular de felicidade, uma idéia deigualdade de oportunidades (CHÂTELET; PISIER-KOUCHNER, 1983, p. 458).

O Estado considera que o saber produzido pelasciências da natureza e pelas ciências do homem e dasociedade, assim como as técnicas de apropriação etransformação delas resultantes, constituem o guia porexcelência do bom governo e somente tal guia podepermitir a edificação de uma sociedade mundialordenada e feliz.

Neste sentido, no século XX, a ciência auxilia oEstado no desenvolvimento técnico-científico-industrial,tido como caminho do bem-estar social. Trata-se de uminstrumento ao ideário de progresso que tem na naturezauma fonte inesgotável de recursos.

No entanto, os custos ambientais e humanos dodesenvolvimento da técnica, da ciência e da indústriapassam a ser questionados a partir de desastres como aAIDS, Chernobyl, aquecimento global, contaminação daágua e de alimentos pelos agrotóxicos etc. Nestecontexto, a atual fase da sociedade industrial consagra-se como uma fase onde a questão centra l é ogerenciamento dos riscos ambientais.

O homem sempre conviveu com o r isco,relacionando-o a causas essencialmente naturais. Em quepese o desejo de domínio do homem sobre a natureza eo enorme avanço técnico-científico que este desejoimpulsionou, os fenômenos naturais nunca deixaram dese constituir em perigos. A ciência propiciou apossibilidade de previsão das catástrofes naturais e trouxea expectativa de controle de seus resultados. Entretanto,aos perigos naturais somam-se riscos provenientesjustamente da intervenção do homem sobre o meio e dabusca de uma maior eficiência da técnica e da ciência. O

risco, então, torna-se um produto da modernidade em seu estadomáximo de desenvolvimento (BECK, 1998).

Da “fuga para frente” à sociedade do risco: a perspectiva deDa “fuga para frente” à sociedade do risco: a perspectiva deDa “fuga para frente” à sociedade do risco: a perspectiva deDa “fuga para frente” à sociedade do risco: a perspectiva deDa “fuga para frente” à sociedade do risco: a perspectiva deUlrich BeckUlrich BeckUlrich BeckUlrich BeckUlrich Beck

Châtelet e Pisier-Kouchner (1983, p. 545) utilizam a expressão“fuga para frente” para ilustrar o salto que a ciência dá sempre quese depara com uma questão que não é capaz de responder. Ocientista, quando se depara com um problema que não pode sersolucionado naquele momento, continua sua pesquisa e acreditaque, no futuro, a própria ciência encontrará uma solução para aquelaquestão deixada para trás.

Neste contexto, a certeza da cura faz com que as precauçõesnão sejam tomadas. A ciência deixa de considerar sua falibilidade epassa a investir em riscos. Desta forma, o homem, quando se dáconta da finitude dos recursos naturais e da complexidade dofuncionamento do planeta, não adota outros modelos dedesenvolvimento que rompem com o paradigma cartesiano. Continuaa extrair da natureza seu progresso contando que a ciênciadesenvolverá uma técnica capaz de resolver o impasse.

Um exemplo atual de “fuga para frente” é o caso dos organismosgeneticamente modificados. Apesar dos prováveis riscos de suainserção no meio ambiente e de seu consumo, os transgênicos estãosendo cultivados. Seus malefícios são deliberadamente descartadosenquanto suas possíveis vantagens são veiculadas no sentido deconvencer a opinião pública quanto a sua necessidade. A ciênciapropiciou a possibilidade de previsão das catástrofes naturais e trouxea expectativa de controle de seus resultados. Entretanto, aos perigosnaturais somam-se riscos provenientes justamente da intervençãodo homem sobre o meio e da busca de uma maior eficiência datécnica e da ciência.

Diante de fenômenos como esse,Ulrich Beck desenvolve um modelosociológico denominadosociedade de risco ondeanalisa a relação da sociedadecontemporânea com a ciênciae com a natureza.

Nesse modelo, o autorfaz uma distinção entreperigos e riscos. Beck (1998)liga a noção de perigo,primeiramente, com asociedade pré-industrial. Osperigos têm causasessencialmente naturais,

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como terremotos, pragas e a fome. Já a noção de risco é relacionadacom a ação do homem sobre o meio ambiente. Deriva, a partir daRevolução Industrial, da maior intervenção humana na natureza eda busca de maior eficiência técnica e científica.

Numa primeira fase, o homem “cientista” acredita poderprever tais riscos e controlar seus resultados. Já na atual fase dedesenvolvimento da sociedade, os riscos podem ser previstos,entretanto, admite-se que seus efeitos são incontroláveis e, assim,o homem opta por não vê-los, não assumi-los como possíveis. Nasociedade de risco, os riscos adquirem “irresistíveis estados deinvisibilidade” (AYALA; LEITE, 2002, p. 13).

A invisibilidade, então, é artificial. Não é possível prever osefeitos exatos de determinada ação, mas o risco de que tal açãopode levar à degradação ambiental existe. Desta forma, no casodos transgênicos acima exemplificado, os possíveis malefícios docultivo são conhecidos, mas não são levados em consideração.

Outra característica dos riscos modernos é o fato de queeles já não se limitam a lugares e grupos, mas se globalizam namedida em que não respeitam as fronteiras dos Estados nacionais,gerando ameaças globais. Nesse sentido, a sociedadecontemporânea convive com os riscos produzidos por ela mesmae com a frustração de muitas vezes não saber distinguir entrecatástrofes que possuem causas essencialmente naturais e aquelasocasionadas a partir da relação que trava com a natureza.

Esta frustração ocorre porque as causas dos riscos e doperigo possuem origens diversas e se tornam, muitas vezes,imperceptíveis, como é o caso das substâncias tóxicas presentesna água, no ar e nos alimentos. Os riscos são gerados em níveisavançados de desenvolvimento e podem permanecer invisíveis,eis que se estabelecem no saber científico e é nesse saber quepodem ser alterados, minimizados.

Tornar um risco conhecido é uma decisão política. Trazerquestões polêmicas relativas ao desenvolvimento científico ou

ao progresso econômico para a sociedade civil, avaliá-las,insista-se, é escolha política. O risco adquire seu caráter deinvisibilidade em virtude de manobras sociais, institucionaise políticas que impedem que suas causas venham a público.

A forma de difusão de substâncias nocivas no ar, naágua, no solo e nos alimentos é apresentada à opinião públicacomo se o uso de tais substâncias fosse inevitável para aprodução e como se seus efeitos estivessem sendo tratadospela ciência. No entanto, o grau de tolerabilidade do homema certo produto químico é analisado sem que se leve emconta o acúmulo de tal substância ao longo dos anos e aspeculiaridades de cada ser humano. Não é tarefa fácil analisaras conseqüências da exposição do homem a um produto por

um longo período de tempo. Porém, a noção de tolerabilidadeadvinda da análise científica e a liberação de certo produto porum órgão técnico governamental, traz a falsa idéia de queestamos protegidos. Não se leva em conta que as mesmassubstâncias podem ter efeitos completamente diversos parapessoas diversas de acordo com idade, sexo, hábitosalimentícios, trabalho, informações, educação etc. Não se levaem conta, ainda, o resultado da soma da exposição do serhumano a diversas toxinas todos os dias.

Nesse sentido, quem limita a poluição também a consente.O limite de tolerância nada mais é do que a permissão para poluir“um pouquinho”, ou envenenar “um pouquinho”. Os valores queguiam a definição dos padrões de tolerabilidade não sãosimplesmente assuntos da química, mas da ética pela qual seguia a sociedade contemporânea. A regulamentação doenvenenamento é característica de uma sociedade que considerasua ausência como utópica e cobre a si mesma com substânciastóxicas (BECK, 1998).

A complexidade dos riscos contemporâneos tornouinsuficiente os mecanismos de segurança do complexo financeiro-industrial sobre o qual está pautado o capitalismo (BECK, 2001).No entanto, diante de possível vantagem econômica, há umaclara opção em omitir os riscos. É nesse sentido que a sociedadeopta por não levá-los em consideração quando precisa decidirsobre uma ação que pode ocasionar danos ao ambiente. Osresponsáveis pela decisão podem pautá-la na crença de que aciência encontrará remédios para suas conseqüências nefastas e,neste caso, teremos a “fuga para frente”. Podem, também,manipular resultados de pesquisas científicas para convencer aopinião pública que tal ação é segura.

Dessa forma, as autoridades, com o apoio da ciência,expedem permissões para a produção de venenos “não perigosos”,que afetam a todos. A responsabilidade por isto será dasautoridades, da ciência ou dos agricultores, responsáveis peloseu uso? Seus efeitos serão discutidos publicamente?

Beck (1998) desenvolve o conceito de irresponsabilidadeorganizada para identificar os meios utilizados pelos sistemaspolítico e econômico para ocultar a origem dos riscos, seuspossíveis efeitos e evitar uma possível responsabilização pelosdanos ocasionados.

Trata-se, portanto, da “pretensão das instituições em nãoconhecer a realidade do perigo, ocultar suas origens, negar suaexistência, suas culpas e suas responsabilidades na produçãodo perigo” (AYALA; LEITE, 2002, p. 12), além do descaso comque tratam o controle dos riscos e a reparação dos danos poreles ocasionados.

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Diante dairresponsabilidadeorganizada, a idéiade risco sofre umainversão com a deperigo: o risco não éreconhecido comoalgo construído apartir de certasações direcionadas.Ao contrário,segundo Beck, ele ésubstituído pela

noção de perigo, isto é, algo natural, inerente à sociedade humanae, assim, difunde-se a idéia segundo a qual ninguém é responsávelpelas catástrofes naturais e sociais.

Dessa forma, no caso da transgenia, que se trata de umrisco gerado pela intervenção científica na natureza, é divulgadaa idéia segundo a qual qualquer efeito colateral de seu cultivo ede sua utilização para consumo humano é natural e, assim, seconstitui em um perigo inerente ao processo de desenvolvimentocientífico, o que torna muito difícil a responsabilização pelosdanos ocasionados.

Uma característica marcante da sociedade contemporâneagerada a partir da aliança feita entre o Estado e a ciência é alegitimidade conferida aos técnicos na tomada de decisões doEstado no que concerne às políticas públicas. As decisões sãotomadas “cientificamente”, de modo que as ações do ser humanona natureza são justificadas porque são tomadas por “experts”.Disto resulta um afastamento entre Estado e sociedade civil. Aciência, no século XX, é capaz de legitimar qualquer decisãopolítica. Ela se constitui num enorme poder, pois a sociedadecivil não está apta a contestar os técnicos.

Assim, qual o poder conferido à sociedade civil no queconcerne à questão dos organismos geneticamente modificados?As empresas de biotecnologia responsáveis pela produçãodesses organismos veiculam apenas os benefícios de suautilização, enquanto alguns cientistas concordam quanto àgravidade do desastre ecológico que sua utilização podeocasionar. A informação que a sociedade possui para discutir aquestão é fragmentada, pois a veiculação das informaçõesprovenientes das multinacionais interessadas na liberação dostransgênicos é muito maior que a veiculação dos riscos que abiotecnologia ocasiona.

Portadora de informações fragmentadas e sem mecanismosefetivos de participação, a sociedade civil é impossibilitada deinfluenciar na decisão quanto à liberação do cultivo e à utilização

destes organismos para consumo humano. Tal decisão fica acargo de órgãos governamentais que baseiam suas escolhas emquestões políticas e econômicas, desconsiderando o princípioda precaução2, segundo o qual sempre que houver ameaça dedanos ao meio ambiente e à saúde humana, a ausência de certezacientífica quanto aos danos não deve ser utilizada para postergarmedidas eficazes para prevenir a degradação ambiental.

Dessa forma, na atualidade, estamos à mercê do sistemaindustrial, dos riscos ocasionados pelo desrespeito à naturezae aos riscos aos consumidores de seus produtos. Ao mesmotempo em que os “experts” são obrigados a assumir suaignorância frente a desastres como o de Chernobyl, o homemnão muda sua atitude com relação ao meio ambiente (BECK,1998). Na tomada de decisões que podem afetá-lo, osargumentos utilitaristas, pautados no paradigma dominante deprogresso, acabam prevalecendo sobre aqueles que visam àproteção do patrimônio natural.

A crise atual (crise da ciência, das técnicas, do progresso)não está em contradição com a modernidade, mas é expressãode seu próprio desenvolvimento. As promessas da modernidadenão são coerentes com a estrutura de seus setores produtivos,sua noção de crescimento econômico, sua compreensão daciência e da técnica e suas formas de democracia (BECK, 1998).

Nesse sentido, Beck caracteriza a sociedade do risco,descrevendo-a como uma fase da sociedade industrial que tomaconsciência da limitabilidade de seus pressupostosdesenvolvimentistas, mas que, entretanto, não rompe com o modelocartesiano de dominação da natureza. Assim, continua investindona produção de riscos ecológicos que escapam cada vez mais aoseu controle. Desta forma, a modernização da sociedade industrial,que Beck denomina modernização simples, torna-se cega e surdapara seus próprios efeitos e ameaças e acaba por destruir suaspróprias bases (BECK et al., 1997, p. 19-24).

É característica marcante da sociedade contemporânea adistribuição de riscos entre aqueles que não tiveram acesso aosbenefícios advindos da ação que optou por desconsiderá-los.Assim, enquanto as vantagens econômicas advindas daexploração da natureza não são socializadas, os riscosprovenientes de tal exploração atingem a todos. Se os impactosambientais provenientes da utilização de organismosgeneticamente modificados anunciados por alguns cientistasse concretizarem, a população mundial será prejudicada comoum todo. Já os lucros auferidos com seu uso ficam concentradosnas empresas que desenvolvem a tecnologia para a constituiçãodos transgênicos.

O autor distingue a modernização simples damodernização reflexiva, trazida por ele como um modelo

(...) a sociedade contem-porânea convive com osriscos produzidos por elamesma e com a frustra-ção de muitas vezes nãosaber distinguir entrecatástrofes que possuemcausas essencialmentenaturais e aquelasocasionadas a partir darelação que trava com anatureza.

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alternativo à sociedade de risco. A modernização reflexivarepresenta o ideal de uma sociedade que coloca seu modeloorganizacional e seus valores relativos à idéia de progressoem questão, fazendo emergir novos paradigmas dedesenvolvimento (BECK et al., 1997, p. 19-24).

A crise ambiental, conseqüência da apropriação dosrecursos naturais de forma desordenada em prol dodesenvolvimento industrial e tecnológico, ocasionou reaçõesque culminaram com a regulamentação por parte do Estado dasatividades que o homem realiza na natureza.

Neste contexto, o direito surge como elemento essencialpara coibir a degradação ambiental. Entretanto, a partir da décadade 1970, organizações financeiras supranacionais impuseramuma disciplina comum aos países no que diz respeito à economiae, diante da lógica da globalização econômica, a regulaçãoambiental é logo descartada, uma vez que se constitui emempecilho para o desenvolvimento econômico.

Assim, se até a década de 1970 a ciência estavacomprometida com o ideal desenvolvimentista do Estado, apóseste período ela está comprometida com a lógica do capitalismoglobal. A produção industrial não se baseia apenas nointercâmbio de bens, mas também na troca de riscos oriundosdesta produção. A partir da globalização, o Estado não temmais condição de prever, organizar e controlar o risco. Comisto, a responsabilização pela tomada de determinada decisãoque venha prejudicar o meio ambiente se torna extremamentecomplicada. “A sociedade virou um laboratório onde “A sociedade virou um laboratório onde “A sociedade virou um laboratório onde “A sociedade virou um laboratório onde “A sociedade virou um laboratório onden inguém se r e sponsab i l i z a pe lo r e su l t ado da sn i nguém se r e sponsab i l i z a pe lo r e su l t ado da sn i nguém se r e sponsab i l i z a pe lo r e su l t ado da sn i nguém se r e sponsab i l i z a pe lo r e su l t ado da sn i nguém se r e sponsab i l i z a pe lo r e su l t ado da sexperiências”experiências”experiências”experiências”experiências” (BECK, 2001).

Conclusão Conclusão Conclusão Conclusão ConclusãoUma das conseqüências do modelo de desenvolvimento e

do ideário de progresso estabelecido a partir da RevoluçãoIndustrial, e talvez a pior delas, é a degradação ambiental. Omodelo sociológico proposto por Ulrich Beck é importante,pois possibilita o entendimento do modo complexo pelo qual ohomem moderno se relaciona com a natureza: apesar da tomadade consciência da crise ambiental, do movimento ecológico, dodiscurso da sustentabilidade e da constatação da falibilidade daciência, as decisões sociais, econômicas e políticas que dizemrespeito ao meio ambiente não deixam de submetê-lo ao capital.

Dentro do paradigma ainda dominante dedesenvolvimento, a questão ambiental não pode ser umempecilho ao desenvolvimento econômico. Com isso, investe-se alto nos riscos ecológicos e nas suas justificações: ou ele étido como se fosse uma conseqüência natural e não houvesseoutro caminho possível para o desenvolvimento, ou investe-se

na ilusão de que os riscos estão sendo cientificamente tratados,o que impossibilita qualquer discussão pública sobre eles.

Ora, o risco não é uma conseqüência natural dodesenvolvimento. Ele surge a partir de decisões políticasdirigidas. Ou seja, diante do conhecimento de que umadeterminada ação pode ocasionar um desastre ecológico oucontribuir com ele, alguém decide desconsiderar o risco erealizar a ação, pois, entre o perigo ecológico e um possívelbenefício econômico, opta-se pelo benefício econômico.

O que justifica o conceito de sociedade de risco é atransformação das ameaças da natureza em ameaças sociais,econômicas e políticas do sistema, ou seja, à imprevisibilidadedas ameaças naturais soma-se a imprevisibilidade dos efeitosdas ações sociais, econômicas e políticas que interferem nomeio ambiente.

Uma das principais características da sociedade de risco éser, ao mesmo tempo, dependente e crítica da ciência:dependente, pela capacidade que ela possui de legitimardecisões, e crítica, porque diante dos efeitos colaterais da sagacientífica, surge a dúvida onde antes prevalecia a féincondicionada em seus benefícios.

O reconhecimento da dúvida e da falibilidade científicadiante de desastres ambientais é essencial para a emergênciade um novo paradigma que abrace a incerteza do conhecimento

(...) no caso da transgenia, que se trata de um risco gerado

pela intervenção científica na natureza, é divulgada a idéia

segundo a qual qualquer efeito colateral de seu cultivo e de

sua utilização para consumo humano é natural e, assim, se

constitui em um perigo inerente ao processo de desenvolvi-

mento científico, o que torna muito difícil a

responsabilização pelos danos ocasionados.

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e coloque o homem não como dominador, mas como parte da natureza. Nestesentido, o olhar crítico sobre a ciência e, principalmente, sobre o modo peloqual ela é apropriada pelo Estado e pelo mercado para legitimar decisões políticas

e econômicas é o primeiro passo para a superação da sociedade de risco.

Referências:Referências:Referências:Referências:Referências:

AYALA, Patrick de Araújo; LEITE, José Rubens Morato. Direito Ambiental naSociedade de Risco. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. 290 p.BECK. Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona:Paidós Ibérica, 1998. 304 p.

———. Tecnologia é matriz do risco, diz sociólogo: para Ulrich Beck, ciência é

causa dos principais problemas da sociedade industrial. Folha de S. Paulo, SãoPaulo, 20 nov. 2001. Caderno A, p. 12.BECK, Ulrich et al. A reinvenção da política: rumo a uma teoria damodernização reflexiva. In: ULRICH, Beck; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott.Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna.São Paulo: UNESP, 1997. p. 11-72.CHÂTELET, François; PISIER-KOUCHNER, Évelyne. As Concepções Políticasdo Século XX. História do Pensamento Político. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.776 p.MORIN, Edgar; KERN, Anne Brigitte. Terra-Pátria. Porto Alegre: Sulina, 2003.4. ed. 181 p.SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. São Paulo:Cortez, 2003. 92 p.

1 Châtelet e Pisier-Kouchner (1983) descrevem e analisam as expressões mais importantesdo pensamento político do século XX e, para isto, propõem a seguinte tipologia: Estado-Gerente, estudo acerca do Estado liberal; Estado-Partido, onde discutem a separaçãoentre Estado e sociedade e a constituição do primeiro como partido único; Estado-Nação, ou seja, a exacerbação do estatismo nacionalista na Europa (estado fascista enazista); Estado-Cientista, onde examinam como a ciência e a técnica foraminstitucionalizadas pelo Estado e utilizadas na gestão da existência social ou na “eliminaçãoprogressiva do político qualificado no caso como ‘ideológico’, em benefício de organismostecnocráticos de decisão”. Por fim, os autores colocam o “Estado em Questão” enquantoforma de organização política e investigam o fenômeno totalitário, além dos debatesatuais acerca do mistério que envolve a potência do Estado.

2 O princípio da precaução foi enunciado na Declaração do Rio, durante a 2ª Conferênciadas Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento (Eco-92).

Maíra Luísa Milani de Lima é mestranda do cursode Pós-Graduação em Direito da UniversidadeFederal de Santa Catarina. Bolsista / Capes.

Combustível renovável

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Breve histórico dos BiocombustíveisBreve histórico dos BiocombustíveisBreve histórico dos BiocombustíveisBreve histórico dos BiocombustíveisBreve histórico dos Biocombustíveis

no Brasil e no Mundono Brasil e no Mundono Brasil e no Mundono Brasil e no Mundono Brasil e no Mundo

O uso de óleo vegetal comocombustível remonta ao fim do séculoXIX quando Rudolph Diesel, inventordo motor a combustão interna (motordiesel), utilizou em seus ensaiospetróleo, álcool e óleo de amendoimcomo combustíveis (Shay, 1993). Entreas décadas de 1930 e 1940 do séculoXX, os óleos vegetais puros continuarama ser usados nos motores com ciclodiesel, mas suas aplicações ficaramrestritas a situações emergenciais comoas de guerra (Ma, 1999). Nessa mesmaépoca, dois processos foram propostospara a obtenção de derivados de óleosvegetais passíveis de serem usados emmotores diesel: (i) a transesterificação;e (ii) o craqueamento. Com estesprocessos, foi possível transformar osóleos em produtos com propriedadesfísico-químicas, tais como a viscosidadee densidade, mais próximas às do óleodiesel, facilitando assim sua mistura nomesmo ou substituição total sem anecessidade de se alterar o motor.

No primeiro processo, uma misturade ésteres etílicos ou metílicos de ácidosgraxos, conhecida hoje como biodiesel,é obtida pela transesterificação de óleos

vegetais com metanol ou etanol, reaçãotambém conhecida por alcoólise.

Esta reação foi estudada emdiversos países, dando origem, nessaépoca, às primeiras patentes mundiaissobre o biodiesel (por exemplo, Keim,1945). É interessante notar que houvediversos testes de uso em larga escala,como na Bélgica em 1942, quando maisde 20.000 km foram rodados porcaminhões usando biodiesel obtido pelareação de óleo de dendê com etanol(Chavannes, 1942). Já no segundo caso,uma mistura de hidrocarbonetossemelhantes quimicamente aos quecompõem o petróleo é obtida peloprocesso de craqueamento ou pirólisede óleos vegetais. Por exemplo, naChina, hidrocarbonetos oriundos docraqueamento em batelada do óleo deTungue foram usados como substitutosà gasolina e ao diesel de petróleodurante a Segunda Guerra Mundial(Chang, 1947). Posteriormente, as crisesno mercado mundial de petróleoocorridas nas décadas de 1970 e 1990,aliadas ao aumento da demanda deenergia e da consciência ambiental dapopulação, conduziram a um movimento

no sentido daprodução de com-bustíveis alternativosprovenientes de fontes renováveis,onde certamente os biocombustíveistêm um papel de destaque.

No Brasil, essa história não foidiferente. Desde 1930, vários esforçosforam fe i tos por autor idadesgovernamentais, universidades einstitutos de pesquisa para incorporarfontes renováveis de combustíveis nanossa matriz energética. É interessantesalientar que diversas abordagensforam dadas, sendo que a nossa maisbem sucedida experiência vem do usodo etanol extraído da cana-de-açúcarcomo combustível alternativo paramotores do ciclo Otto, dentro doprograma federal chamado PRÓ-ALCOOL (Programa Nacional doÁlcool), iniciado em 1980. Esteprograma implementou e regula-mentou o uso direto de etanolhidratado e de misturas de gasolina eetanol anidro como combustível(Goldemberg, 2004).

O Biodiesel no BrasilPaulo A.Z. Suarez e Frederique R. Abreu

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Por outro lado, o uso energético deóleos vegetais no Brasil esteve semprepresente nas discussões envolvendo adiversificação dos combustíveis líquidos. Noinício da década de 1940 foram realizadosestudos no sentido de usar óleos vegetais innatura (Borges, 1944) ou hidrocarbonetosobtidos pelo seu craqueamento (Otto, 1945)como combustíveis alternativos ao óleodiesel. Cabe salientar que o governo chegoua proibir a exportação do óleo de algodãopara derrubar o seu preço no mercadointerno, com o intuito de viabilizar asubstituição do óleo diesel em ferrovias(Chem. Metal. Eng., 1943). Com aestabilidade no mercado internacional dopetróleo, após o término da Segunda GuerraMundial, esses esforços foram abandonadosaté 1975, quando ocorre uma nova crise deabastecimento originada pela criação daOPEP - Organização dos PaísesExportadores de Petróleo. Nesta data, foicriado pelo Governo Federal o Plano deProdução de Óleos Vegetais para FinsEnergéticos (PRÓ-ÓLEO) com o objetivode gerar um excedente de óleo vegetalsignificativo, capaz de tornar seus custos deprodução competitivos com os do óleomineral. Previa-se uma regulamentação deuma mistura de 30% de óleo vegetal no óleodiesel, havendo perspectivas para suasubstituição integral a longo prazo. À época,foi proposta como alternativa tecnológica atransesterificação ou alcoólise de óleosvegetais, destacando-se os estudosrealizados na Universidade Federal do Ceará,

utilizando diferentes fontes de óleos vegetaiscomo soja, babaçu, amendoim, algodão egirassol dentre outros (Parente, 2003).Infelizmente, esse programa foi abandonadopelo governo em 1986, quando o preço dopetróleo volta a cair no mercadointernacional. No entanto, houve um avançorespeitável nas pesquisas relativas à produçãoe uso de biodiesel no nosso País, as quaisforam conduzidas em diferentesuniversidades e centros de pesquisas.Recentemente, o biodiesel deixou de serum combustível puramente experimental epassou para as fases iniciais decomercialização quando foi instalada aprimeira indústria de ésteres de ácidosgraxos no Estado de Mato Grosso(novembro, 2000), começando com umaprodução de 1.400 toneladas/mês de ésteretílico de óleo de soja (Sant’anna, 2003).

Perspectivas do Biodiesel no Brasil.Perspectivas do Biodiesel no Brasil.Perspectivas do Biodiesel no Brasil.Perspectivas do Biodiesel no Brasil.Perspectivas do Biodiesel no Brasil.As ilustrações da Figura 1 mostram

a produção e a demanda de petróleo, diesel,gasolina e etanol no Brasil durante os últimosdez anos. Analisando estes dados, pode-seperceber que embora o consumo de petróleotenha aumentado, houve um declínio na suaimportação, causado por um significativocrescimento da produção interna. Adependência externa brasileira média emrelação ao petróleo e seus derivados teveuma redução de 48,6% em 1993 para 9,4%em 2001 (ANP - Agência Nacional dePetróleo, 2003). No que se refere à gasolina,por exemplo, o declínio do consumoverificado nos últimos anos, devido aoaumento proporcional no conteúdo de etanoldas misturas comercializadas, refletiudiretamente no aumento em sua exportação.O consumo de diesel por sua vez teve, umacréscimo considerável, sendo que esteaumento na demanda está sendo atualmenteprovido por uma crescente importação direta.No Brasil, 80% do consumo de diesel estádiretamente ligado ao transporte (BEB/MME - MInistério das Minas e Energia,

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2002); e a dependência externa crescentedeste combustível poderá ser dramáticapara a nossa economia.

PPPPPetróleo e combustíveis no Brasil:etróleo e combustíveis no Brasil:etróleo e combustíveis no Brasil:etróleo e combustíveis no Brasil:etróleo e combustíveis no Brasil: (♦)total de Petróleo; ( ) produção depetróleo; ( ) petróleo importado; ( )consumo de diesel; ( ) produção de

diesel ; ( ) diesel importado; ( )produção de gasolina; ( ) consumo degasolina ; (-) exportação de gasolina; (*)consumo de etanol anidro; (_____) consumo deetanol hidratado; (+) consumo total deetanol (Fonte: BEB/MME, 2002).

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A dependência em diesel fóssilimportado e a última crise de petróleoaumentaram as discussões no sentido dese descobrir alternativas a estecombustível. Neste sentido, váriosministérios, institutos de pesquisa euniversidades se uniram para tornarpossível o uso de óleo vegetal e seusderivados como alternativa ao diesel fóssil.Nesse contexto, nos últimos quatro anos,diversos grupos de estudo foram criadospelo governo, sendo a principal propostaa alcoólise de óleos vegetais para gerar obiodiesel. Além desta, alternativas comoo uso direto do óleo vegetal (puro ou emmisturas com diesel de petróleo) e dehidrocarbonetos obtidos pela quebratermo-catalítica dos mesmos tambémforam propostas. Esta vem sendolargamente estudada no Instituto deQuímica da UnB (Universidade de Brasília),em parceria com a EMBRAPA - EmpresaBrasileira de Pesquisa e Agropecuária,como fonte de combustível alternativo paramotores diesel ou máquinas estacionáriaspara produção de eletricidade emcomunidades isoladas e em fazendas.

Assim, a alcoólise (com metanolou etanol) de óleos vegetais foiconsiderada a rota principal para umgrande programa de substituição do dieselde petróleo (PROBIODIESEL).Inicialmente foi proposto substituir até2005 todo o combustível de dieselconsumido inicialmente no Brasil por B5(5% biodiesel e 95% mistura de diesel depetróleo) e em 15 anos por B20 (20%biodiesel e 80% mistura de diesel depetróleo), usando ésteres de etanol(Vigliano, 2003). É importante ressaltarque, embora a etanólise possua limitaçõestecnológicas, ela foi a rota escolhida poresse programa devido a grande experiênciana produção de etanol no Brasil.

Após muita discussão em nívelgovernamental, surgiu de formaamadurecida o Programa Nacional de

Produção e Uso de Biodiesel(PNPB). ALei no 11.097, de 13 de janeiro de 2005,regulamentou o uso de biodiesel na matrizenergética brasileira. Foi permitido o usoopcional de até 2 % de biodiesel misturadoao óleo diesel por um período de três anos,quando passará a ser obrigatório. A leiprevê ainda o uso opcional de misturascom até 5 % de biodiesel passados trêsanos e obrigatório em oito anos. Alémdesta lei, outros decretos e medidasprovisórias têm regulamentado osdiversos segmentos da cadeia produtivapara a produção e distribuição do biodiesel.Cabe aqui salientar o Decreto nº 5.297,de 6 de dezembro de 2004, da Presidênciada República, que institui subsídiosespeciais ao biodiesel produzido pelaagricultura familiar.

Nesse novo programa, não existepreferência quanto ao álcool utilizado nemem relação ao óleo vegetal. Esta decisão éimportante, pois possibilita o usoalternativo de matérias-primas em funçãoda disponibilidade e preço das mesmas nomercado, permitindo assim uma adaptaçãoda indústria às realidades regionais e àsvariações nas cotações das mesmas nomercado. Cabe aqui salientar que devidoà sua grande biodiversidade, ao seu climadiversificado e às suas condições de terra,o Brasil possui inúmeras fontes de óleosvegetais que poderão ser usadas para aprodução de biodiesel.

Por outro lado, os padrões dequalidade para o biodiesel e suas misturasforam regulados pela Agência Nacional dePetróleo (Resolução ANP nº 42, de 24novembro de 2004). Nesta resoluçãoforam especificados 15 parâmetros para obiodiesel puro, incluindo contaminantesquímicos, propriedades físicas epropriedades químicas. Foi, ainda, exigidaa análise de outros 11 parâmetros, os quaisnão apresentam especificações. Estamedida foi importante pelo fato depossibilitar o uso de diferentes fontes de

óleo vegetal. Esse ato também especificaque para a mistura de biodiesel e óleodiesel, a densidade, viscosidade eentupimento a frio devem estar de acordocom os limites estabelecidos para estesparâmetros na resolução que regulamentao uso do derivado de petróleo.

Considerações FinaisConsiderações FinaisConsiderações FinaisConsiderações FinaisConsiderações FinaisFoi destacado durante a década

de 1940 que, “embora os estudosexperimentais demonstrem a viabilidadedeste projeto, seus custos ainda hoje sãouma limitação importante para o uso dederivado de óleos vegetais comocombustíveis” (Otto, 1945). É interessanteressaltar que este argumento ainda hoje éusado contra a implementação do biodieselnão só no Brasil como no mundo, sendosempre apontado que seu custo deprodução o inviabiliza. No entanto, aexperiência brasileira no desenvolvimentodo programa de uso de etanol comocombustível mostrou que é possíveldiminuir consideravelmente os custoscom o desenvolvimento da tecnologia deprodução (Goldemberg, 2004). Por outrolado, espera-se que argumentos sociais e

O Brasil possui inúmeras fontes de óleosvegetais que poderão ser usadas para aprodução de biodiesel, graças à suagrande biodiversidade, ao seu climadiversificado e às suas condições de terra...

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ambientais, como também a possibilidadede adquirir uma independência energética,tenham um importante papel na decisãopolítica para que a implementação dobiodiesel no Brasil saia do papel e se torneuma realidade.

AgradecimentosAgradecimentosAgradecimentosAgradecimentosAgradecimentosOs autores agradecem ao CNPq

pelas bolsas de pesquisa e aos diversos órgãosque financiam as pesquisas no LMC -Laboratório de Materiais e Combustíveis doInstituto de Química da Universidade deBrasília (FINEP-CTPETRO, FINEP-CTENERG, FAPDF, FINATEC, MCT e MDA).

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Frederique Rosa e Abreu é doutor emQuímica pela Universidade de Brasília e,atualmente, faz estágio de pós-doutoradono Instituto de Química da UniversidadeFederal de Alagoas.

Paulo Anselmo Ziani Suarez é doutor emCiências dos Materiais pela UniversidadeFederal do Rio Grande do Sul, e professor doInstituto de Química da Universidade de

Brasília.

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Direito Internacional

A

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política externa norte-americana pós-11 de setembro temsuscitado diversas críticas quanto à afinidade em relação aoscânones consagrados do Direito Internacional. Municiados doargumento da legítima defesa, nos seus matizes maiscontroversos, casado com outras hipóteses não menos pacíficasde uso da força nas relações internacionais, como a intervençãohumanitária e a intervenção com fins democratizantes, os EstadosUnidos iniciaram campanha internacional contra o terrorismo, aqual, segundo alguns analistas, afronta a Carta da Organizaçãodas Nações Unidas (ONU). Mais além, põe em questão a própriaintegridade da organização arquitetada, nas cinzas do pós-Guerra,como o único mecanismo legítimo para o arbitramento desituações de ameaça e ruptura da paz internacional, bem comopara a definição conclusiva sobre a propriedade de ações delegítima defesa.

A preocupação com odesenvolvimento dos fatos nos longínquosrincões da Ásia, em paralelo com as batalhasjurídicas travadas ao redor do tema, não émera preocupação acadêmica. Aprevalecerem os argumentos encampadosa favor das “novas” hipóteses legais do usoda força nas relações internacionais, todosos países estarão legalmente sujeitos aintervenções armadas com base emjustificações e leituras de cenários deameaça senão inconsistentes ao menoscontestáveis, porquanto determinadas combase em percepções particulares. Os paísespouco desenvolvidos ou em desen-volvimento, menos capazes de expurgar acriminalidade organizada transnacional,com a qual mormente se envolve o

terrorismo, e mais vulneráveis, justificadamente ou não, a críticasacerca da legitimidade de seus governos, se tornarão alvos aindamais infensos às ingerências políticas dos Estados mais fortes.

Os Estados Unidos, por sua condição de potência militardesde o fim da Segunda Guerra Mundial, são um dos muitosdefensores de leituras menos restritivas da Carta da ONU. Nãopoucos Estados pretendem resgatar as antigas prerrogativas deuso unilateral e extensivo da força. Nos anos de 1970, já seencontrava em franco questionamento a regulação internacionalda matéria, em face da polêmica sobre a “morte” do artigo 2.4 daCarta. No ponto áureo da Doutrina Reagan, a tendência sofreuplasmação legislativa expressa na Diretiva 138 dos Estados Unidossobre Decisão em Assuntos de Segurança Nacional, de 1983,que aprovava ataques armados preventivos e represálias armadascontra terroristas. A Doutrina Bush, calcada nas ações antecipadasanti-terrorismo e nas intervenções anti-proliferação do terrorismointernacional, não é, portanto, um fenômeno díspar na histórianorte-americana, mas sua continuidade.

Alguns argumentos que secundam a campanha pela leituramenos restritiva da Carta da ONU, ainda que possam sermanietados em benefício da crua política de potência de algunsEstados, possuem lógica não obscura; outros, mesmo forjadosno nobre argumento da defesa dos direitos humanos, sãoevidentemente falhos e conduzem a intervenções ilegítimas ede eficácia questionável. Não parece, portanto, haver respostasimples à validade dos argumentos que exporemos que nãopasse pela necessidade de escrutínio das condições específicasdo caso concreto.

A Proibição do Uso da Força no Direito InternacionalA Proibição do Uso da Força no Direito InternacionalA Proibição do Uso da Força no Direito InternacionalA Proibição do Uso da Força no Direito InternacionalA Proibição do Uso da Força no Direito InternacionalApós a Conferência de São Francisco e a ultimação da carta

constitutiva da Organização das Nações Unidas, a comunidadede Estados acreditava estar deixando para trás a época em que as

Desafios, Perplexidades e Paradoxosno “Novo” Direito Internacional dos Conflitos Armados

Clarita Costa Maia

Os países pouco desenvol-

vidos ou em desenvolvi-

mento, menos capazes de

expurgar a criminalidade

organizada transnacional,

com a qual mormente se

envolve o terrorismo, e

mais vulneráveis,

justificadamente ou não,

a críticas acerca da

legitimidade de seus

governos, se tornarão

alvos ainda mais infensos

às ingerências políticas

dos Estados mais fortes.

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controvérsias internacionais eram resolvidas, sistemática eregularmente, por meio do recurso à força. A doutrina da guerrajusta, de origem romana, incorporada e reformulada pela teologiacristã, vigente até então, apenas impunha como limitantes à guerraquesitos formais (notificação ou declaração formal e conduçãodas hostilidades sob a autoridade de um príncipe) e outrossubstantivos de evidente imprecisão (existência de “causa justa”e “correta intenção”). O conhecido Tratado Geral para Renúnciada Guerra como Instrumento de Política Nacional, o PactoKellogg-Briand, sempre mencionado como o marco da ilegalidadeda guerra, tão-somente limitava o recurso à força comoinstrumento de política internacional e disciplinava as relaçõesentre as Partes no Acordo. Dessa forma, não logrou o referidoPacto, de mero efeito inter partes, impor limites às interpretaçõessobre as circunstâncias que ensejariam, por exemplo, a legítimadefesa. A Convenção da Liga das Nações, por sua vez, tambémnão alcançou a universalidade, não jogou à ilegalidade as guerrasinternacionais nascidas por disputas de caráter ostensivamenteinterno e preservou amplamente a liberdade de ação dos Estadoscom disposições legais que, inter alia, lhes facultava ação militarcaso não fosse alcançada decisão arbitral ou judicial “dentro deum prazo razoável”1.

A Carta de São Francisco, de natureza universal econstituinte, especialmente no que concerne à disciplina douso da força, significou avanço inequívoco. Não apenasconsagrou a ONU como o único mecanismo internacionallegítimo para determinar as circunstâncias de ameaça e rupturada paz nas relações internacionais, às quais todos os países,membros e não-membros, devem obedecer, como tambémestabeleceu, de maneira exaustiva, as exceções legais àproibição do recurso à força: a segurança coletiva e a legítimadefesa. De ambas, porém, entende-se, da própria leitura daCarta, que deve prevalecer, na eclosão de hostilidadesinternacionais, a resolução pela via da segurança coletiva, comoforma de garantir maior imparcialidade e ação mais criteriosa.A legítima defesa somente é cabível até o momento em que oConselho de Segurança avalia a situação que a ensejou e,julgando-a procedente, decide agir em nome da comunidadede Estados.

A segurança coletiva é a raison d´être da ONU. Em facedas incalculáveis perdas humanas e econômicas causadas porduas guerras mundiais, quiseram os legisladores da Cartabuscar a paz e a estabilidade pela coibição do arbítrio norecurso à força no plano internacional, construindo mecanismode solução de controvérsias competente para decidir sobre asmedidas cabíveis em caso de polarização entre Estados,preventivas ou coercitivas, de caráter militar ou não.

Ocorre que no esteio de ambos os institutos, desde afundação da ONU, porém mais acentuadamente a partir do fim daGuerra Fria, nasceram novas interpretações de seus conteúdos,a ensejarem novas hipóteses de recurso à força. Seja no exercícioda competência largamente discricionária conferida ao Conselhode Segurança para determinar as situações de ameaça e rupturada paz internacional e de agressão, seja pela eclosão do fenômenodas guerras de libertação nacional a partir dos anos de 1950, seja,ainda, pelas alegações dos Estados acerca da correção do recursoà legítima defesa nos casos de ameaças desconhecidas à época daConferência de São Francisco, como o terrorismo internacional ea escalada do armamentismo nuclear, argumentos não desprezíveissurgiram para tentar elastecer as hipóteses do recurso à força.Sobre eles há que se debruçar com detenção e cautela.

A Legítima Defesa a Ataque Armado de Grupos TA Legítima Defesa a Ataque Armado de Grupos TA Legítima Defesa a Ataque Armado de Grupos TA Legítima Defesa a Ataque Armado de Grupos TA Legítima Defesa a Ataque Armado de Grupos Terrerrerrerrerroristasoristasoristasoristasoristas

O contra-ataque ensejado no Direito Internacional pela legítimadefesa em face de agressão armada de grupos terroristas ocorre,necessariamente, no território de um Estado, que pode ou não terrelação direta com o ato de agressão praticado. Por isso, sempre foivisto com extrema cautela nos primórdios da ordem jurídica onusiana.Por muito tempo, defendeu-se ateoria de que somente em caso departicipação ativa substancial doEstado cujo território serviu de basepara as operações ou para aorganização do grupo armado outerrorista poderia ser eleresponsabilizado por crime contra apaz internacional. A Resolução 2625(XXV) da Assembléia Geral,conhecida como a Declaração sobreos Princípios do DireitoInternacional relativos às RelaçõesAmigáveis e à Cooperação entre osEstados, dispõe sobre a obrigaçãode todos os Estados em reprimir aorganização de grupos armados quevisam à incursão em território deoutro Estado. A falha não-intencional em perseguir esse objetivoacarretaria simples responsabilidade internacional2.

A discussão começou a ganhar novos matizes com a definiçãode agressão, constante no anexo à Resolução 3314 (XXIX) daAssembléia Geral. Para muitos doutrinadores, a interpretação doAnexo leva à conclusão de que a passividade de um Estado, sesubstancial ao deslanche dos ataques armados perpetrados contra

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outro Estado por grupo armado ou terrorista a partir de seu território,também configura crime contra a paz internacional.

Infere-se que, em caso de responsabilidade substancial doEstado pelo ato, a legítima defesa será avançada não apenas contraos grupos armados e terroristas, mas também contra o próprioEstado. Em caso de não haver responsabilidade substancial, porexemplo, no caso de o Estado não ter tido meios suficientes paramitigar esses grupos, a despeito de seus esforços, supõe-se queo Estado vítima do ataque armado terrorista não terá direito deresposta de forma direta. Nesse caso, para alcançar os gruposagressores deverá entrar em negociação com o Estado em que ogrupo terrorista se achar instalado com vistas a orquestrar açõesde desmobilização e punição dos responsáveis.

O argumento da legítima defesa contra grupos terroristasnão é excepcional nas relações internacionais. Registram-se osseguintes casos: a incursão de Israel no Sinai em resposta aataques terroristas, em 1956; a condenação da Organização dosEstados Americanos (OEA) à subversão transnacional arquitetadapela República Dominicana contra o Presidente Venezuelano,em 1960; as retaliações israelenses aos atos terroristas cometidosna fronteira com o Líbano, em 1982; o patrocínio pelos EstadosUnidos de grupos insurgentes na Nicarágua, no período de 1980a 1986; a resposta israelense às incursões turcas em seu territórioem busca de insurgentes curdos, em 1995; e, finalmente, a açãodos Estados Unidos contra o Afeganistão, em resposta aos ataquesao World Trade Center, em 20013.

A ação norte-americana foi, em grande medida, amparadapelo Direito Internacional e pelo Conselho de Segurança, quereconheceu a responsabilidade afegã no albergamento deperpetradores, organizadores e patrocinadores dos atos

terroristas. Diferente,porém, foi o tratamentoconcedido aoscombatentes inimigos;esse assunto não nosocupará no momento.

A Legí t ima DefesaA Legí t ima DefesaA Legí t ima DefesaA Legí t ima DefesaA Legí t ima DefesaPreventivaPreventivaPreventivaPreventivaPreventiva

A legítima defesapreventiva ou antecipadatampouco é estranha à

prática internacional pós-Carta. Um dos conflitos mais célebresem que foi evocada é a Crise de Mísseis em Cuba, ocorrida em1962. O então Presidente John Kennedy impôs quarentena navala Cuba para compelir a remoção de mísseis soviéticossecretamente dispostos no território da ilha. O antecedente da

conspiração norte-americana fracassada para a remoção doregime de Castro do poder em Cuba, conhecido como oEpisódio da Baía dos Porcos, serviu de justificativa para oarmamentismo cubano. Embora o impasse tenha se resolvidofora da égide da ONU e a fundamentação jurídica da açãotenha sido calcada nos artigos 6 a 8 do Tratado Interamericanode Assistência Recíproca (TIAR) e não na Carta da ONU, adiscussão gerada tornou claro que poucos Estados rechaçavama hipótese de uma legítima defesa preventiva.

A grande dificuldade na aceitação desse instituto resideem se lograr a certeza da procedência da percepção de ameaça.Afinal, seria necessário que o Estado que a alegassecomprovasse o caráter agressivo e não defensivo dos esforçosmilitares do outro Estado, a existência de nexo causal entreações militares agressivas desse Estado e o ânimo beligeranteem relação à potencial vítima e, finalmente, a necessidade deação imediata. Afinal, o primeiro ato de uso da força é a evidênciaprima facie da agressão, o que gera a presunção iuris tantumde que a ação é ilegítima. Ao Estado que o perpetra caberia oencargo de demonstrar que aquele ato responde a um ataqueem consistente preparação. Dessarte, a legítima defesapreventiva parece não ser hipótese tão excêntrica ou ilegítimapara o recurso à força nas relações internacionais, a despeitoda dificuldade em se averiguar a boa-fé do Estado que a alega.Certamente, porém, é uma hipótese de uso da força senãotemerária, delicada, em face dos episódios de injustificadaviolência que pode engendrar. Uma das maiores tragédias daaviação civil ocorreu em função da legítima defesa preventiva.Em resposta ao suposto alvejamento de helicóptero norte-americano, em 03 de julho de 1988, o cruzador USS Vincennesdisparou míssil contra aeronave civil iraniana, que levantouvôo de aeroporto militar-comercial, matando 290 passageiros4.

A própria ONU, por meio de seus órgãos políticos ejurídicos (Conselho de Segurança, Assembléia-Geral e CorteInternacional de Justiça) não se pronunciou de maneira claraem contrário ao mencionado instituto, senão contra alegaçõesque, em face da situação fática, pareciam não atender osquesitos da legítima defesa preventiva. Como exemplo, tem-se a condenação do Conselho de Segurança e da AssembléiaGeral, em 1981, aos ataques aéreos de Israel ao centro depesquisa iraquiano de Tuwaitha. A ação militar foi defendidacom base no argumento de que o Iraque estava desenvolvendobombas atômicas com a pretensão de utilizá-las contraIsrael, como já o fizera no passado. Essas armas, no entanto,seriam finalizadas até o ano de 1985. Em face dadesconfiguração da necessidade de ação imediata, a manobrade Israel não foi apoiada pela ONU. Na oportunidade, não

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houve, todavia, questionamento sobre a validade da próprialegítima defesa preventiva.

O tema das armas nucleares abre outra sorte deargumentos complexos e relevantes em torno da questãoda legítima defesa preventiva. A própria AgênciaInternacional de Energia Atômica (AEIA) lançou informe commenção ambígua à legítima defesa preventiva, reconhecendoa capacidade decisiva do primeiro ataque atômico nodeslanche de guerra5. A Corte Internacional de Justiça, naOpinião Consultiva de 1993 sobre a Licitude da Ameaça oudo Uso de Armas Nucleares, embora tenha reconhecido ailicitude da ameaça e do emprego de armas nucleares, nãodescartou o seu uso em conformidade com os propósitos daCarta da ONU, por exemplo, em ação de segurança coletivana qual fique demonstrada a necessidade militar de suautilização (para o abreviamento eficaz da guerra ou em razãode necessidade de ação defensiva in loco), bem como nahipótese de legítima defesa. Como a Corte estava a analisarcaso de ataque efetivo, permitiu-se não tecer consideraçõessobre a “questão da legalidade da resposta [com armasnucleares] a um iminente ataque armado”, dandocontinuidade ao “limbo jurídico” no qual se insere o institutoda legítima defesa preventiva.

Mesmo se o Direito Internacional esposasse da validadedo instituto da legítima defesa preventiva, não haveria comojustificar a ação norte-americana no Iraque. Afinal, asautoridades norte-americanas não conseguiram agremiarprovas consistentes de que o Iraque estava desenvolvendoarmas de destruição em massa, e, ainda pior, em projeçãotemporal que justificasse a ação imediata, sobretudo dianteda receptividade iraquiana às inspeções da própria AgênciaInternacional de Energia Atômica.

Os Estados Unidos, em conformidade com a praxedos países, não ancorou os argumentos para a ação noIraque apenas na legítima defesa preventiva. Justificou-atambém no suposto e esdrúxulo direito de intervençãohumanitária de caráter preventivo e na necessidade dedemocratizar o país como forma de banir as estruturas deapoio ao terrorismo internacional.

A Intervenção HumanitáriaA Intervenção HumanitáriaA Intervenção HumanitáriaA Intervenção HumanitáriaA Intervenção HumanitáriaEm março de 2002, um grupo de notáveis acadêmicos

norte-americanos, liderados por Robert O. Keohane,concluíram obra que analisa a intervenção humanitária emface dos acontecimentos de 11 de setembro de 20016. Opapel da intervenção humanitária na política externa anti-terrorismo norte-americana despertou tanta expectativa que

“a literatura sobre o assunto crescia como o número de armasde destruição em massa no mundo”.

A intervenção humanitária consiste no uso ou ameaça deuso da força contra um Estado no qual estejam ocorrendo

massivas violações dos direitos humanos dos naturais desseEstado. A ação ocorre sem a permissão dele e, em regra, sem apermissão do Conselho de Segurança. As ações permitidas peloConselho de Segurança com a mesma finalidade configurariamo instituto da assistência humanitária. As justificativas para aação na ausência de autorização do Conselho e do país a serpalco das ações são, respectivamente, as situações possíveisde inação do Conselho - por falta de recursos materiais ou deadequada rapidez na análise da situação - e as circunstâncias deterrorismo de Estado contra nacionais ou de falência dagovernabilidade interna.

Conforme já visto, o principal objetivo da ONU é o deservir de mecanismo de segurança coletiva e de instância únicana qual são decididas as situações de ameaça ou ruptura da paze de agressão. Ora, o uso da força sem a prévia autorização doConselho, e em caso de descabimento de legítima defesa, éabsolutamente ilegal, ainda que o fim supostamente perseguidoesteja em consonância com seus princípios. A despeito dascriticadas insuficiências do Conselho, ele ainda é a instânciapolítica que mais legitimidade possui em âmbito mundial paradecidir sobre tais questões.

Novamente, os Estados Unidos não advogam sozinhos odireito à intervenção humanitária. Mesmo países do movimento

A legítima defesa somente é cabível até o momento emque o Conselho de Segurança avalia a situação que aensejou e, julgando-a procedente, decide agir em nomeda comunidade de Estados.

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dos não-alinhados, nãodesenvolvidos, chegaram a sevaler do argumento em algumasocasiões. Em geral, não se negaa existência de ações deintervenção autenticamentehumanitárias, cujo leading caseé a intervenção da França noentão Império Central Africano,em 1979. Assim também pareceter ocorrido na ação conjunta daFrança, do Reino Unido e dosEstados Unidos para a proteçãodos curdos no Iraque, em 1991.A boa-fé dos interventores foiatestada pelo Relator Especialsobre Direitos Humanos daONU no Iraque à época.

A legitimação de ações deforça não autorizadas peloConselho é temerária; abre apossibilidade de abusos e demanipulações de carátermeramente político, ademais deser uma usurpação dascompetências do Conselho deSegurança. Todavia, as situaçõesfáticas nem sempre seguem alinearidade desejada. Asintervenções da ComunidadeEconômica de Países do OesteAfricano na Libéria e em SerraLeoa, no período de 1989 a 1999,são típicos exemplos de açõesnão autorizadas previamenteque foram posteriormentechanceladas pelo Conselho deSegurança. As organizaçõesregionais de legítima defesacoletiva, pela simples

circunstância da proximidade física em relação ao local doseventos, são mais vocacionadas a identificar tensões e a lhesresponder de maneira imediata, quando os fatos assim impuserem.

Não bastassem as dificuldades inerentes ao instituto daintervenção humanitária, temos como inovação recente oargumento da intervenção humanitária de caráter preventivo. Oraciocínio implícito mal esconde a artificialidade em que foi forjado

para atender aos objetivos de política externa norte-americana.Inexistindo indícios de ação coordenada para a promoção deviolações massivas dos direitos humanos no momento da decisãopela guerra, os Estados Unidos abrigaram-se moralmente noargumento de que se poderia esperar do regime baath, em funçãode seu histórico, novos episódios semelhantes.

O argumento nos parece simplesmente imaterial, doponto de vista do Direito Internacional. Não se podem conferirconseqüências jurídicas sequer a intenções dedutíveis quenão sejam objetivamente provadas, menos ainda apensamentos supostos.

A Intervenção com fins DemocratizantesA Intervenção com fins DemocratizantesA Intervenção com fins DemocratizantesA Intervenção com fins DemocratizantesA Intervenção com fins DemocratizantesDe forma ainda mais obscura, tentou-se argüir que a

debelação do regime autoritário e anti-democrático de SaddamHussein influenciaria na mitigação do terrorismo internacional.O pilar intelectual dessa teoria é a controvertida crença navocação pacífica das democracias e a ainda mais contestávelcrença na maior eficiência delas na extirpação dos gruposarmados e terroristas que utilizam seus territórios como palco.Não é preciso resgatar na memória profunda o fato de que osataques armados contra os Estados Unidos no 11 de setembroforam arquitetados durante anos em solo americano edeslanchados a partir dele. Além disso, e antes de qualquerargumento, não podemos nos esquecer que a conexão entre aAl Qaeda e o regime baath jamais foi comprovada de maneiraconvincente.

O pano de fundo da novíssima defesa das intervençõescom fins democratizantes é o aumento vertiginoso do númerode países democráticos e a aposição do quesito democráticocomo condição para filiação em organizações e blocosregionais, como a Organização dos Estados Americanos, aUnião Européia e o Mercosul. A titularidade democrática é,principalmente, uma opção política e ideológica, não apartadado raciocínio de que a legitimidade de um governo é condiçãofundamental para a estabilidade interna do Estado e,potencialmente, para a estabilidade regional.

A defesa categórica de que só há legitimidade nosgovernos democráticos, decorrente desse raciocínio, éaltamente problemática, além de desrespeitosa aomulticulturalismo nas relações internacionais. O PactoInternacional sobre os Direitos Civis e Políticos apenas seaproxima da defesa da democracia, inter alia, pela consagraçãoda liberdade de pensamento e expressão.

A existência de organizações e blocos regionais queexigem a titularidade democrática, por motivos deideologia, pragmatismo político ou ativismo na garantia dos

Uma das maiorestragédias da aviação civilocorreu em função dalegítima defesa preventiva.Em resposta ao supostoalvejamento dehelicóptero norte-americano, em 03 dejulho de 1988, o cruzadorUSS Vincennes disparoumíssil contra aeronavecivil iraniana, quelevantou vôo de aeroportomilitar-comercial,matando 290 passageiros.

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direitos humanos, ou mesmo o antecedente da ação doConselho de Segurança para a restauração da ordemconstitucional e democrática no Haiti, em 1993, não sãosuficientes para confirmar a existência de direito costumeiroà intervenção com fins democratizantes. Mesmo no casoda OEA, que possui mecanismo único de resposta em casode quebra da ordem constitucional democrática nos seuspaíses-membros, proíbe-se a utilização da intervenção nolugar da ação coletiva. Além disso, a t itularidadedemocrática é mera condição de filiação e não exigênciaabsoluta. Os Estados que não concordarem com o quesitopodem, soberanamente, optar por não aderirem àOrganização ou a ela renunciarem.

Em resumo, três grandes incertezas pairam sobre asintervenções democratizantes: primeiro, saber se está emgestação direito costumeiro que reconheça legitimidade tão-somente a regimes democráticos; em caso positivo, distinguir sea intervenção é a forma legítima e mais adequada para oestabelecimento ou restabelecimento da ordem democrática, emvista do fato de que a decisão pela mudança de regime político,ao contrário das ações de contenção de violação aos direitoshumanos, não se ressente da procrastinação em alguns meses,até que os órgãos multilaterais competentes deliberem; em casonegativo, saber se, ainda assim, é cabível intervenção ou açãocoletiva para restauração da ordem constitucional em países jádemocráticos, quando inexistir situação de agravamento dastensões internas que comprometa a paz e a estabilidade regionalou mundial. A ação do Conselho de Segurança no Haiti, em 1993,precedente usado como elemento de argumentação pelosdefensores das intervenções democratizantes, fundamentou-senão apenas na quebra da ordem constitucional, mas também, eprincipalmente, na preocupação de que a tensão interna no paísgerasse deslocamento de pessoas para países limítrofes,ameaçando a estabilidade regional.

ConclusãoConclusãoConclusãoConclusãoConclusãoOs Estados Unidos não são os únicos a pleitearem o

alargamento das hipóteses de uso da força nas relaçõesinternacionais. Mesmo as instâncias políticas e jurídicas legítimaspara a definição do Direito Internacional no uso da força nãologram aclarar a validade ou a invalidade de algumas das hipóteseslevantadas, seja por confusão conceitual ou por falta de destemor.As nuances dos fatos concretos, por sua vez, parecem não permitirrespostas categóricas a muitas das questões suscitadas. Todavia,pode-se distinguir, em paralelo e como pano de fundo de muitosargumentos, forte campanha em nome do resgate dasprerrogativas de ação unilateral dos Estados por meio do uso da

força nas relações internacionais, o que põe em risco a própriaordem jurídica onusiana, criada fundamentalmente como únicofórum legítimo para deliberação sobre o uso da força nas relaçõesinternacionais. Por fim, algumas das justificações para o uso daforça parecem-nos de excentricidade absoluta.

O resultado de todo esse cenário é a ampliação, no DireitoInternacional, de imensa zona cinzenta a respeito dos limites aouso da força e, portanto, o surgimento de relativa imprevisibilidadequanto aos procedimentos futuros diante dos desafiosinternacionais. Em última análise, constata-se o revigoramentodas teses que pretendem resgatar a doutrina da guerra justacomo limitante único à disciplina do uso da força. Por tudo o quevimos, certamente, isso será uma involução.

1 DINSTEIN, Yoram. Guerra, agressão e legítima defesa. 3.ed. SãoPaulo: Manole, 2004.

2 ALCAIDE FERNÁNDEZ, Joaquín. Las actividades terroristasante el Derecho Internacional contemporáneo.Madrid: Tecnos, 2000. p. 288.

3FRANCK, Thomas M. Recourse to force: state action againstthreats and armed attacks. Cambridge: Cambridge UniversityPress, 2003. (Hersch Lauterpacht Memorial Lectures).

4 MÁRQUEZ CARRASCO, María del Carmen. Problemas actualessobre la prohibición del recurso a la fuerza en DerechoInternacional. Madrid: Tecnos, 1998. p. 114.

5 Id., p. 110.

6 HOLZGREFE, J. L; KEOHANE, Robert. Humanitarianintervention : ethical, legal and political dilemmas. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.

Clarita Costa Maia é especialistaem Direito Internacional dos Confli-tos Armados, mestre em Relações In-ternacionais, professora do UNILEGIS(Universidade do Legislativo) e con-sultora legislativa do Senado Federalem Relações Internacionais e DefesaNacional.

Saúde e direito

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O Direito à Saúde como Direito FundamentalO Direito à Saúde como Direito FundamentalO Direito à Saúde como Direito FundamentalO Direito à Saúde como Direito FundamentalO Direito à Saúde como Direito FundamentalA idéia de direito humano sempre esteve presente nas

sociedades, seja por razões religiosas ou filosóficas. Portanto,faz-se aqui necessário conhecer a evolução da idéia de direitohumano e de direito fundamental para que se possa compreendera moderna noção do Direito à Saúde.

O primeiro documento estatal a proteger os direitosfundamentais é da Espanha, concedido pelo Rei Afonso IX, nascortes de Leão, em 1188, que, já na época, protegia os bens dossúditos tais como a vida, a honra e a propriedade. Porém, o maisfamoso texto da Idade Média, que esboçava as linhas iniciais degarantia aos direitos fundamentais, foi a Magna Carta de João-Sem-Terra (Magna Charta Libertatum), elaborada no ano de 1215na Inglaterra. Muito embora os direitos não fossem asseguradosa todos os súditos, mas somente a classes privilegiadas,proprietárias de terras e capazes de ler em latim1, o textorestringia o poder do monarca e apresentava as primeiras chamasde garantia de direitos.

A partir de então e antes do liberalismo, começaram asurgir inúmeras declarações visando garantir aos súditosdeterminados direitos, como a liberdade de expressão e aliberdade política. Como exemplos ingleses desses documentospode-se citar o Petition of Rights (Petição de Direitos) de1668, Ata de Habeas Corpus de 1679 e Bill of Rights (Declaraçãode Direitos) de 1689. Embora a concessão dos direitosassegurados nessas declarações ficasse condicionada à vontadedo Soberano, é indiscutível que houve um avanço, que faria dasRevoluções Liberais do Século XVIII o marco inicial dasreivindicações dos direitos humanos dos oprimidos contra osopressores e da constitucionalização dos direitos fundamentais.

Assim, os ex-colonos ingleses que viviam na América editaramsuas declarações de direito e, do mesmo modo, os burguesesfranceses, ao tomarem o poder político dos nobres, aprovaramsua declaração. A Declaração de Direitos da Virgínia, de 1776,decorrente da Revolução Americana, e a Declaração Universaldos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, decorrente daRevolução Francesa, protegiam os direitos em uma acepçãoindividualista, isto é, a função do Estado restringia-se apenas aproteger a propriedade e segurança dos indivíduos, e as relaçõessociais e econômicas desenvolviam-se sem a interferênciaestatal. Foi a fase da consagração dos direitos de liberdade.

No entanto, não era suficiente apenas garantir a liberdadeformal dos indivíduos, era preciso avançar. Com a revoluçãoindustrial, iniciada em meados do século XIX, ficou evidente anecessidade de reconhecer certos direitos sociais derivados dasreclamações resultantes dos problemas sociais e econômicossurgidos com a industrialização. Então, ao lado dos direitosindividuais já garantidos pelo Estado Liberal, surge um novoelenco de direitos, os direitos sociais.

Após a Segunda Guerra Mundial, quando o mundo inteiroestarreceu-se com as atrocidades que levaram ao questionamentodas condições humanas e à necessidade de garantia efetiva dosdireitos humanos, os Estados viram-se obrigados a dar sentidoconcreto aos direitos sociais. Tal movimento iniciou-se com a própriaOrganização das Nações Unidas (ONU) que, na DeclaraçãoUniversal dos Direitos Humanos (DUDH) de 1948, “fonte maisimportante das modernas constituições” (SÜSSEKIND, 1986, p.21), estabeleceu um vasto campo de dispositivos referentes aosdireitos sociais, em especial à saúde, a saber:

SAÚDE,Carlos E. F. Bartolomei, Mariana S. Carvalho, Maria Célia Delduque

DIREITO DE TODOS E DEVER DO ESTADO

Todo homem temdireito a um padrãode vida capaz deassegurar a si e àsua família saúde ebem-estar, inclusivealimentação,vestuário, habitação,cuidados médicos eos serviços sociaisindispensáveis, edireito à segurançaem caso dedesemprego, doença,invalidez, viuvez,velhice ou outroscasos de perda dosmeios desubsistência emcircunstâncias forade seu controle.

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Art. XXV – Todo homem tem direito a um padrão de vidacapaz de assegurar a si e à sua família saúde e bem-estar,inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidadosmédicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito àsegurança em caso de desemprego, doença, invalidez,viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios desubsistência em circunstâncias fora de seu controle.

A partir desses documentos declaratórios de direitoshumanos, os ordenamentos jurídicos de cada país tenderam agarantir internamente os direitos fundamentais (sem perder devista a necessidade conjunta de internacionalização), sob umaperspectiva de generalização (extensão da titularidade dessesdireitos a todos os indivíduos). Fruto desse processo, aConstituição brasileira de 1988 é um marco no que tange àgarantia dos direitos fundamentais. Em seu Título II – Dos Direitose Garantias Fundamentais - o texto constitucional relaciona osdireitos fundamentais de primeira geração, passando pelos direitosde segunda geração, chegando aos de terceira geração2.

Bobbio (1992, p. 21) assevera que os ditos direitosfundamentais, de primeira geração, consistem em liberdades; osdireitos sociais, de segunda geração, consistem em poderes, quese realizam por intermédio da imposição de obrigações a outros,incluído o poder público; e os de terceira geração são os direitosindividuais e coletivos inexistindo determinação de seus titulares.Schwartz (2003, p. 118) particulariza esta idéia com a saúde,esclarecendo que se enquadra nos três tipos a saber: saúde é umdireito de primeira geração, caracterizado pela titularidadeindividual e pela possibilidade de ser oposto à vontade do Estadoe que, por isso, torna-se um direito irrenunciável, indisponível einalienável; a seu ver, é um direito de segunda geração porqueestá ligada a um pensamento preventivo e que, portanto, constituiuma vinculação direta e orgânica aos Poderes instituídos; e,finalmente, a saúde pode ser compreendida como direito deterceira geração, pois tanto diz respeito à individualidade como àcoletividade, em uma idéia de direito difuso.

A Constituição Federal do Brasil erigiu a dignidade da pessoahumana a um princípio fundamental. Este é o núcleo informadordo ordenamento jurídico brasileiro e critério de valoração aorientar a interpretação e compreensão do sistema instauradoem 1988. Ou seja:

A dignidade humana e os direitos fundamentais vêmconstituir os princípios constitucionais que incorporam asexigências de justiça e dos valores éticos, conferindosuporte axiológico a todo sistema jurídico brasileiro.(BARROS, 1996, p. 141).

No entanto, para a realização do direito à saúde e demaisdireitos fundamentais não é suficiente que os mesmos estejamconsagrados na Constituição; eles precisam ser vividos portodo indivíduo na sociedade e estarão tanto mais realizadosquanto mais os indicadores sociais refletirem condições ideaisde vida para todos.

Assim, as normas sobre direitos fundamentais seconcretizam por intermédio do agir político, sobretudo em suadimensão social. É fácil perceber que a efetivação desses direitostorna-se uma questão de operação sistêmica de uma política dedireitos fundamentais e que se de um lado está o direito à saúde,constitucionalmente estabelecido, do outro está o dever doEstado em garantir o gozo desse direito à população, porintermédio da adoção de políticas públicas que têm comoinstrumentos de realização o arcabouço legal, a execução deações e a eleição de prioridades.

Acepções dos termos direito e saúdeAcepções dos termos direito e saúdeAcepções dos termos direito e saúdeAcepções dos termos direito e saúdeAcepções dos termos direito e saúdeO Estado tem a missão de assegurar a dignidade da

pessoa humana, por meio da concretização da igualdade emsituações reais. Assim, no que se refere à saúde, direitohumano e fundamental, deixa de ser mero garantidor de direitose liberdades individuais, paraser protagonista de prestaçõesposit ivas que são imple-mentadas mediante políticas eações estatais. A OrganizaçãoMundial da Saúde (OMS), em1946, quando no preâmbulo desua Constituição proclamouque “saúde é o completo bem-estar físico, mental e social enão apenas a ausência dedoença ou outros agravos”,ofereceu a matriz embrionáriaao ordenamento jurídicoconstitucional da atualidade,que acolheu o conceito sobdupla perspectiva: a individual,de busca de ausência demoléstia, e a coletiva, depromoção da saúde emcomunidade. Essa confluênciadas duas dimensões, individuale coletiva do direito à saúde, éque permite estabeleceralgum critério na diferenciação

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das expressões geralmente utilizadas para se referir a essetema: Direito à Saúde, Direito da Saúde e Direito Sanitário.

O direito à saúdedireito à saúdedireito à saúdedireito à saúdedireito à saúde pode ser conceituado como o valorideal da experiência humana, tanto na dimensão individualcomo na coletiva, erigido a preceito constitucional.

Já o direito da saúdedireito da saúdedireito da saúdedireito da saúdedireito da saúde é conceituado como o conjunto denormas jurídicas que regulam as atividades sanitárias estataise definem os meios de que o Estado dispõe para concretizaresse direito, desde a definição dos aspectos organizacionaise operacionais do sistema de saúde, o estabelecimento daforma e dos critérios a serem observados na formulação eimplementação das políticas de saúde até as normas específicasaplicáveis a bens e serviços de interesse à saúde. É o sistemade normas jurídicas que disciplinam as situações que têm asaúde por objeto e regulam a organização e o funcionamentodas instituições destinadas à promoção e defesa da saúde.

E, por fim, o direito sanitáriodireito sanitáriodireito sanitáriodireito sanitáriodireito sanitário, conceituado como oestudo interdisciplinar que permite aproximar conhecimentosjurídicos e sanitários. Em outras palavras, é a disciplina queestuda o conjunto de normas jurídicas que estabelecem direitose obrigações em matéria de saúde.

É no escopo do direito da saúde que está o tratamentojurídico do tema em toda a sua complexidade de planosconstitucional, legal, administrativo, regulatório, civil, penale internacional. É a legislação em saúde, muito embora estetermo tenha um sentido estreito que não alberga a acepçãojurídica em toda a sua amplitude, como as fontes do direito,os usos e costumes, a interpretação da literatura doutrinárianem a sucessão convergente e coincidente de decisõesjudiciais ou de resoluções administrativas (jurisprudência).

Fundamentos do sistema de saúde brasileiroFundamentos do sistema de saúde brasileiroFundamentos do sistema de saúde brasileiroFundamentos do sistema de saúde brasileiroFundamentos do sistema de saúde brasileiroComo dito, a Constituição da República do Brasil adotou

o entendimento de que saúde é um direito advindo da condiçãode pessoa humana, independentemente de quaisquer outrascondições, redundando na afirmação de acesso universal eigualitário às ações e serviços de saúde. O modelo de saúdeadotado pela ordem jurídica brasileira trouxe um enfoque dasações de saúde pública, não mais com açõespredominantemente curativas, mas com ações preventivas;doenças não têm somente causas biológicas, mas tambémcausas sociais: alimentação, moradia, saneamento básico, meioambiente, trabalho, renda, educação, transporte, lazer eacesso a bens e serviços essenciais. Além disso, o textoconstitucional reconheceu a essência coletiva do direitoà saúde, condicionando sua garantia à execução depolíticas públicas:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado,garantido mediante políticas sociais e econômicas quevisem à redução do risco de doença e de outros agravos eao acesso universal e igualitário às ações e serviços parasua promoção, proteção e recuperação.

Competência em matéria de saúdeCompetência em matéria de saúdeCompetência em matéria de saúdeCompetência em matéria de saúdeCompetência em matéria de saúde“O Brasil é uma República Federativa, isto é, optou

pela Federação como forma de organização político-administrativa” (SILVA, 1995, p. 101); o Federalismo, comoexpressão de Direito Constitucional, baseia-se na união decoletividades políticas autônomas que são: União, estadosfederados, Distrito Federal e municípios.

A Magna Carta descreve, expressamente, as competênciasde cada esfera de poder público. “Esta distribuição constitucionalde poderes é o ponto nuclear de Estado Federal” (SILVA, 1995,p. 454). No Federalismo, as competências são distribuídas,necessariamente, entre os entes públicos e podem se dar demaneira coordenada ou cooperada. Assim, no Federalismocooperativo, os resultados buscados são comuns e do interessede todos. A decisão tomada em escala federal é adaptada e

(...) para a realização do

direito à saúde e demais

direitos fundamentais não é

suficiente que os mesmos

estejam consagrados na

Constituição; eles precisam

ser vividos por todo

indivíduo na sociedade e

estarão tanto mais realizados

quanto mais os indicadores

sociais refletirem condições

ideais de vida para todos.

executada autonomamente pelo ente federado, adequando-a àssuas peculiaridades e necessidades (BERCOVICI, 2002). Estetipo de repartição é chamado de competência concorrente eestá previsto no artigo 24 da Constituição de 1988. Já no artigo23, nas chamadas competências comuns, revela-se acooperação. Nesta, a decisão é de todos, mas a execução serealiza separadamente, muito embora possa haver, no que serefere ao financiamento das políticas públicas, uma atuaçãoconjunta. O Brasil é um exemplo de Federação em que acooperação é obrigatória.

No que se refere às competências em matéria de saúde,observa-se que “a CF/88 não isentou qualquer ente federativoda obrigação de proteger, defender e cuidar da saúde” (DALLARI,1995, p. 42). A atuação conjunta e coordenada entre União,estados, Distrito Federal e municípios é uma imposiçãoconstitucional. Portanto, a saúde – “dever do Estado” (artigo 196)– é responsabilidade constitucional de todos.

O SUS como instrumento para a aplicação das normasO SUS como instrumento para a aplicação das normasO SUS como instrumento para a aplicação das normasO SUS como instrumento para a aplicação das normasO SUS como instrumento para a aplicação das normassanitáriassanitáriassanitáriassanitáriassanitárias

Como já exposto, a implementação do direito à saúdevincula-se intrinsecamente à elaboração e realização de políticaspúblicas. Para tanto, a Constituição previu instrumentosrealizadores ou garantidores dessa implementação. O SUS,Sistema Único de Saúde, é o mais importante deles.

A criação constitucional desse sistema é uma vitória dosmovimentos sociais de apoio à Reforma Sanitária, que acabaramsensibilizando um grupo de parlamentares membros daAssembléia Nacional Constituinte com a demonstraçãopungente da inadequação do sistema de saúde então vigente,que não conseguia enfrentar problemas sanitários, como:quadro de doenças de todos os tipos, baixa coberturaassistencial da população, ausência de critérios e detransparência dos gastos públicos etc. (WESTPHAL;ALMEIDA, 2001).

A partir dessa pressão social, a Constituição Federal de1988 previu a estruturação das ações e serviços de saúde emum sistema único, o denominado Sistema Único de Saúde. Aidéia de unidade afasta a possibilidade dos entes públicoscomponentes do SUS constituírem sistemas autônomos ousubsistemas de saúde. Aliás, a própria referência constitucionala um sistema de saúde já traz imediatamente a idéia deordenação e unidade, ou seja, “um conjunto de conhecimentosordenados segundo princípios que devem ser seguidos de formaunívoca pelas três esferas de governo” (CANARIS, 1996, p. 9).Para Afonso (1994, p. 360), o único programa setorial dedescentralização que relativamente prosperou foi o da saúde.

O SUS tem as suas principais atribuições previstas no art.200 da CF/88, que vão desde “controlar e fiscalizarprocedimentos, produtos e substâncias de interesse para asaúde” (inciso I) até “colaborar na proteção do meio ambiente,nele compreendido o do trabalho” (inciso VIII). “As suasatribuições têm como objetivo a promoção (eliminar ou controlaras causas das doenças e agravos), proteção (prevenir riscos eexposições a doenças) e recuperação (atuar sobre o dano jáexistente) da saúde” (WESTPHAL, 2001, p. 36). Para alcançaressas metas, o SUS, por meio de sua direção em cada esferagovernamental (secretários de Saúde, estaduais e municipais,e ministro da Saúde), deverá promover as políticas públicasnecessárias, com determinada autonomia, até para destinarrecursos para programas de saúde específicos.

Participação da comunidade na aplicação das normasParticipação da comunidade na aplicação das normasParticipação da comunidade na aplicação das normasParticipação da comunidade na aplicação das normasParticipação da comunidade na aplicação das normassanitárias - o controle socialsanitárias - o controle socialsanitárias - o controle socialsanitárias - o controle socialsanitárias - o controle social

A pressão dos movimentos sociais sanitários realizada nomomento constituinte ensejou a introdução de novos instrumentosde participação social na formulação, execução e fiscalização daspolíticas públicas, em especial no que tange ao setor saúde. Emseu art. 198, a Constituição Federal de 1988, apoiando-se nessesideais de democratização dos espaços decisórios, consagrou a‘participação da comunidade’ como diretriz do SUS.

A Lei no 8.080/90 reafirmou a participação da comunidadeno SUS, porém teve seu art. 11, que regulamentava estaparticipação, vetado pelo então Presidente da República FernandoCollor. O dispositivo estava inserido no capítulo “Da Organização,da Direção e da Gestão”, e o seu veto demonstrou a enormedificuldade que existia (e ainda existe) para a implementação dasconquistas da Reforma Sanitária já consagradas na Magna Carta.

A Lei no 8.142/90 retomou quase literalmente o dispositivovetado, regulamentando assim a participação da comunidadeno SUS. Em seu art. 1º, estabelece quecada esfera do Governo devecontar com a Conferência deSaúde e o Conselho deSaúde como instânciascolegiadas de partici-pação social.

Tem-se, assim,a tentativa de des-dobramento inicialda previsão consti-tucional de cons-trução de esferasde participação

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social, como objetivo deefetivar o princípioda democracia participativa no âmbito da saúde. A ConstituiçãoFederal de 1988 de forma tímida, porém concreta e incontestável,contempla tal princípio, ao dispor que “Todo poder emana dopovo, que o exerce por meio de representantes eleitos oudiretamente, nos termos desta Constituição” (art. 1º, § único),além de prever, em outros dispositivos, a participação social naimplementação de políticas públicas no que tange não só à saúde,mas à assistência social, à criança e ao adolescente, ao processode organização das cidades etc.

Percebe-se, portanto, que “a Constituição foi capaz deincorporar novos elementos culturais, surgidos na sociedade, nainstitucionalidade emergente, abrindo espaço para a prática dademocracia participativa” (BOAVENTURA, 2002 p. 33). Nessecontexto, surgem os conselhos de saúde.

“Não é um fenômeno novo no Brasil, nem exclusivo da áreada saúde, porém não há na atualidade nada semelhante aosconselhos de saúde, com a sua expressiva representatividadesocial, atribuições e poderes legais, além da extensão de suaimplementação, englobando as esferas municipais, estaduais efederal e, em alguns lugares, ainda há conselhos locais e regionais”(CARVALHO, 1995, p. 30-31) .

As competências legais básicas dos conselhos de saúde emtodas as esferas encontram-se no art. 1º, § 2º, da Lei no 8142/90,e podem ser divididas em dois grandes campos: a área deplanejamento e controle, cujo tema principal é o do financiamento;e a área de articulação com a sociedade, como a atribuição deorganizar as conferências de saúde, examinar denúncias epropostas populares, e também estimular a participaçãocomunitária no controle da administração do SUS (Resolução no

33/92, do Conselho Nacional de Saúde - CNS). As atribuiçõesespecíficas de caráter executivo também estão na seara dacompetência legal dos conselhos, que cada vez mais participamna cadeia decisória da administração do SUS, como instânciadeliberativa e recursal.

Pelo exposto, parece claro que os conselhos de saúdesignificam hoje bem mais que uma prescrição legal de alcanceduvidoso. Eles entraram em cena, trazendo consigo a estréia dealguns novos atores sociais. A sua existência e funcionamentopossibilitam a participação sistemática de milhares de pessoasno debate e busca de soluções para os problemas de saúde.

É possível que hoje o número de conselheiros de saúde,dentre os quais os usuários são maioria, já se aproxime, talvezultrapasse, o número de vereadores, o que configura uma situaçãoinédita não só no setor saúde, mas no conjunto das políticaspúblicas (CARVALHO, 1995, p. 30-31).

Dessa forma, os conselhos de saúde são importanteinstrumento para a efetivação do SUS e para a garantia do direitoà saúde a todos. Por meio de suas atribuições e poderes, essesórgãos podem intervir nas políticas estatais referentes à saúde,direta ou indiretamente, exigindo que o Estado atue quandoomisso e controlando as suas ações.

Construção do direito da saúdeConstrução do direito da saúdeConstrução do direito da saúdeConstrução do direito da saúdeConstrução do direito da saúdeÉ preciso que todos saibam que a saúde é direito

fundamental individual e coletivo e não mera concessão do poderestatal ou palavras bonitas escritas na Constituição. É certo quea legislação sanitária brasileira é muito mais avançada que asituação fática do País, o que não invalida o paradigma do conceitode saúde amplo, que deve ser perseguido pelo esforço de todosos atores sociais e políticos comprometidos .

O SUS tem as suasprincipais atribuiçõesprevistas no art. 200 daCF/88, que vão desde“controlar e fiscalizarprocedimentos,produtos e substânciasde interesse para asaúde” (inciso I) até“colaborar na proteçãodo meio ambiente, nelecompreendido o dotrabalho”.

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1 O texto da Magna Charta Libertatum era escrito em latim, somentevindo a ser traduzido para o inglês no século XVI.

2 Classificação segundo a Teoria da Geração de Direitos, extraídados ensinamentos de Norberto Bobbio.

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Carlos E. F. Bartolomei é consultor BIREME/OPAS/OMS,editor executivo da Revista de Direito Sanitário/Journalof Health Law do Centro de Estudos e Pesquisas de DireitoSanitário e Núcleo de Pesquisas de Direito Sanitário daUniversidade de São Paulo, bacharel em Direito, pós-graduando USP.

Mariana S. Carvalho é oficial de Chancelaria - Técnicade Cooperação Técnica Recebida Multilateral/CTRM daAgência Brasileira de Cooperação/ABC, do Ministério dasRelações Exteriores/MRE, bacharel em Direito pelaUniversidade de Brasília, especialista em Direito Sanitáriopela Universidade de São Paulo, mestranda em DireitoPúblico pela Universidade de Brasília.

Maria Célia Delduque é advogada do Núcleo de DireitoSanitário da Diretoria da Fundação Oswaldo Cruz emBrasília – DIREB/FIOCRUZ, especialista em DireitoSanitário pela Universidade de São Paulo, mestrandaem Gestão e Planejamento em Meio Ambiente naUniversidade Católica de Brasília.

A

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67 Crime organizado

partir dos anos 80, a lavagemde dinheiro no mundo passou

a tomar dimensões importantes, uma vezque foi identificada como o processopelo qual o narcotráfico conseguiafinanciar suas atividades e angariarlucros expressivos frente aos negóciosrealizados por quase todo o planeta.

Ante tal constatação, estudiosossobre o assunto sugeriram aos órgãosde representação internacional aaprovação do chamado “regulamentomodelo”, o qual, se e quando adotadopelos vários países, poderia ofereceralguma resistência aos cartéis do tráficoe atingir relativo sucesso no seucombate. Para tanto, sugeriram a adoçãodos seguintes itens: a) a tipificação dalavagem de dinheiro como crime; b) acriação de uma unidade de inteligênciafinanceira; c) a sensibilização dasinsti tuições f inanceiras para acomunicação das operações suspeitas;d) a cooperação internacional.

Assim, após vários anos dediscussões internas sobre o assunto, econsiderando a ampliação do escopodesse tema, que não mais se vinculavaapenas ao narcotráfico, mas também aoutros tipos de crimes, a “lavagem de

dinheiro”, isto é, a ocultação ou adissimulação da natureza, origem,localização, disposição, movimentaçãoou propriedade de bens, direitos ouvalores obtidos de maneira ilícita com opropósito de sua reintrodução nosistema formal (financeiro ou nãofinanceiro) de maneira lícita, fenômenode característ ica marcadamentetransnacional, foi tipificada no Estadobrasileiro como atividade criminosa apartir da promulgação da Lei nº 9.613,de 3 de março de 1998.

Não obstante tal tipologia criminaltenha sido introduzida no ordenamentojurídico no ano de 1998, práticas dessanatureza já vinham sendo observadasclaramente no País desde o início dos anos1990, com as revelações públicas trazidaspelas investigações conduzidas nostrabalhos realizados pela CPI envolvendoPaulo César Farias (então ligado àPresidência da República), depois a doOrçamento (relacionada a algunsparlamentares), mais tarde a dosPrecatórios (com a participação de estadose municípios) e, recentemente, já navigência da Lei nº 9.613/98, as CPIs deRoubo de Cargas, narcotráfico, prostituiçãoinfantil e a do Banestado, entre outras.

Com a edição desta lei, tambémforam identificados os principaisprotagonistas a serem acionados tanto pelaparte do Estado brasileiro como poraqueles que constituem e representam osegmento privado da sociedade. Comoexemplo do primeiro conjunto teríamos oConselho de Controle de AtividadesFinanceiras (COAF), órgão criado com afunção principal de disciplinar, aplicarpenas administrativas, receber, examinare identificar as ocorrências suspeitas deatividades ilícitas previstas na lei, bemcomo coordenar e propor mecanismos decooperação e de troca de informações queviabilizem ações rápidas e eficientes, casosde suspeição ou de fortes indícios delavagem de dinheiro (a unidade deinteligência financeira); os chamadosórgãos de supervisão dos sistemas, isto é,Banco Central do Brasil (BC), Comissãode Valores Mobiliários (CVM) eSuperintendência de Seguros Privados(SUSEP), exercendo suas funções legaisde regular e supervisionar a atuação doschamados “obrigados a informar” (art. 9ºda Lei nº 9.613), observadas ascompetências de cada um deles; além daparticipação direta da Secretaria da ReceitaFederal, Departamento de Polícia Federal,

A LAVAGEMde dinheiro no Brasil

Ricardo Liáo

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Agência Brasileira de Inteligência,Ministério das Relações Exteriores,Departamento de Recuperação de Ativose Cooperação Jurídica Internacional,Controladoria Geral da União e Ministérioda Previdência Social (registre-se quetodos compõem o Plenário do COAF,tendo os seus representantes comoprincipal propósito o intercâmbio deinformações para o atingimento dosobjetivos legais estabelecidos).

Representam o segundo conjunto asinstituições financeiras e demais entidadesautorizadas a funcionar pelo Banco Centraldo Brasil, as administradoras de cartão decrédito (nacional e internacional), asempresas de factoring, as promotorasimobiliárias, as lotéricas, os comerciantesde pedras preciosas e de antiguidades,entre outros. A lei os obriga a, ao sedepararem com situações ou operaçõesque possam constituir fortes indícios doscrimes de lavagem de dinheiro, comunicartais fatos às autoridades competentes(tendo como destinatário final dainformação o COAF), sem que disso tenhaciência a parte eventualmente envolvida.

De posse de tais informes esituações, compete ao Conselho examiná-las, analisá-las e, concluindo pelo indícioou ocorrência do crime, promover acompetente comunicação dos fatos ao

Ministério Público Federal (MPF) ouEstadual, conforme o caso, para asprovidências de alçada.

É claro que por trás disso tudoexiste toda uma máquina admi-nistrativa montada nos últimosanos pelo Estado brasileiro paradar suporte e condução aessas questões, uma vezque, além das compe-tências que até entãovinham exercendo todosos órgãos antes citados, pre-viamente à edição da Lei nº 9.613/98,houve a necessidade da constituição e dacapacitação de novas equipes espe-cializadas no assunto para a conduçãodesses processos de trabalho.

No caso do Banco Central do Brasil,a Diretoria Colegiada, por decisão adotadaem novembro de 1999, dentro do propósitode seguir a orientação já entãoestabelecida pelo Estado quanto àsegregação, na área de fiscalização, dasatividades de supervisão prudencialdaquelas de combate aos ilícitos cambiaise financeiros - aí incluídas a avaliação dossistemas de prevenção que passaram a serimplementados pelas instituições dosistema financeiro nacional (um dosprincipais meios utilizados pelos lavadoresde dinheiro) - constituiu o Departamentode Combate a Ilícitos Cambiais eFinanceiros (DECIF) atualmenteDepartamento de Combate a IlícitosFinanceiros e de Supervisão de Câmbio eCapitais Internacionais (DECIC). Suasfunções principais são prevenir e combateros ilícitos cambiais e financeiros junto aosistema financeiro, além de monitorar asoperações de câmbio, uma vez que oscrimes contra o sistema financeironacional, previstos na Lei no 7.492/86, sãoconsiderados como precedentes ao crimede lavagem de dinheiro.

Dessa forma, o Decic, unidade quecompõe a Diretoria de Fiscalização do

Banco Central, vemdesenvolvendo, desde então, a avaliaçãodos chamados sistemas anti-lavagem dedinheiro, que vêm sendo desenvolvidose implementados pelas instituiçõesfinanceiras, e que alcançam os seguintesitens: a) política institucional esta-belecida pelas instituições; b)ferramentas utilizadas para verificaçãodos métodos de detecção das situaçõesou operações suspeitas; c) adoção daspolíticas “conheça o seu cliente” e“conheça o seu funcionário”; d) estruturasfuncionais constituídas pela instituiçõespara a condução dos trabalhos deprevenção, inclusive segregação defunções; e) política de treinamentoadotada e seus resultados; e f) testes deconsistência com relação às bases dedados das instituições.

Além dessas atividades, desenvolvetambém o monitoramento diário dasoperações realizadas no mercado decâmbio brasileiro, que chegam a alcançara marca de 13 mil operações diáriasregistradas no Sisbacen (Sistema deInformações Banco Central), bem comodo acompanhamento das transferênciasinternacionais em reais, que chegam, emmédia, a 300 diariamente.

O resultado desse trabalho vemrevelando a participação de sumaimportância que o sistema financeiro

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assumiu frente aos comandoslegais e regulamentaresestabelecidos pela Lei nº 9.613 ea regulamentação do BC, o que,em números, se traduz, do anode 1999 até os dias de hoje, emcerca de 25 mil situações ouoperações suspeitas detectadase comunicadas ao Banco Centrale COAF, além dos cerca de 35mil registros de saques oudepósitos em espécie supe-

riores a R$ 100 mil.Relativamente à efetivi-

dade de ações, a partir dasoperações ou situações comu-nicadas pelas instituições finan-ceiras e daquelas detectadas pelasações do monitoramento do BC,temos atualmente cerca de 300comunicações ao MPF envol-vendo indícios de lavagem dedinheiro e 150 relatos ao COAFsobre o mesmo assunto.

É de se registrar que parteconsiderável dos trabalhos dedetecção, análise, verificação,investigação, troca de expe-riência, de informações e deconclusão, embora se revele ematerialize em processosespecíficos, vem sendo conduzidadentro de um processo deconjugação de esforços de todos os órgãosde início citados, ainda que em diferentesescalas ante a especialização de cada umdentro de suas áreas de competência,sendo certo que a somatória conspira, emmuito, a favor do Estado.

Isso se deve, em boa parte, àconcepção que vem sendo desenvolvida eimplementada com base nas reuniõesplenárias realizadas mensalmente, a partirde 1988, no COAF. Todos os órgãos alireunidos participam ativamente dasreuniões e propugnam pelo melhorencaminhamento das várias ações em

Ricardo Liáo é economista, atualmente chefiao Departamento de Combate a IlícitosFinanceiros e de Supervisão de Câmbio eCapitais Internacionais do Banco Central doBrasil e representa o BC no COAF desde 1998.

andamento nos diferentes órgãos demaneira que possam, quando conclusos,apresentar os melhores resultados.

Reforço dessa metodologia foiapresentado em 2003 com a realizaçãoda Estratégia Nacional de Combate àLavagem de Dinheiro – ENCLA 2004 e,ao final de 2004, a ENCLA 2005, deiniciativa do Ministério da Justiça, contandocom a participação de aproximadamente30 órgãos do Estado brasileiro, todosenvolvidos direta ou indiretamente com a

provenientes de crimes associados àlavagem de dinheiro.

A melhor avaliação que se poderiater sobre o Brasil, a respeito doenfrentamento da questão da lavagem dedinheiro foi feita, inicialmente, no ano de2000, ocasião em que o Grupo de AçãoFinanceira (GAFI/FATF) da Organizaçãode Cooperação e DesenvolvimentoEconômico (OCDE), após a vinda de seusperitos, classificou o País entre os 10melhores qualificados no mundo. Recenteavaliação, realizada no final de 2003/início

de 2004, indica que tal situaçãopermanece inalterada.

Dessa forma, temos, atual-mente, o Estado brasileiro sufi-cientemente maduro para enfrentaras questões envolvendo os crimes delavagem de dinheiro, uma vez que ascondições ora estabelecidas e aconfiança existente entre os órgãos sãofavoráveis à troca de conhecimento ede informação, bem como o seucompartilhamento, dentro dos limitesestabelecidos pela Lei nº 9.613, de 3de março de 1998, e pela LeiComplementar nº 105, de 10 janeirode 2001, como indicam os inúmeroscasos que, já em fase de investigaçãojudicial, começam a ser deconhecimento de toda a sociedade.

questão da prevenção e do combate àlavagem de dinheiro.

Completando o ciclo, a criação, noâmbito do Ministério da Justiça, doDepartamento de Recuperação de Ativose de Cooperação Jurídica Internacional(DRCI), recém incluído como membro doCOAF, vem possibilitando a realização detrabalho de aproximação do Brasil a váriospaíses com intuito de tornar ágeis eeficazes os procedimentos de cooperaçãointernacional e os processos derecuperação de ativos localizados no Paíse no exterior, quando identificados como

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Prodasen - 33 anos de históriaMário Simões

Informática e parlamento

AAAAA SERVIÇOSERVIÇOSERVIÇOSERVIÇOSERVIÇO DADADADADA MODERNIZAÇÃOMODERNIZAÇÃOMODERNIZAÇÃOMODERNIZAÇÃOMODERNIZAÇÃO DODODODODO SENADOSENADOSENADOSENADOSENADO EEEEE DODODODODO LEGISLATIVOLEGISLATIVOLEGISLATIVOLEGISLATIVOLEGISLATIVO BRASILEIROBRASILEIROBRASILEIROBRASILEIROBRASILEIRO

No início eram trevas e Deus disse:faça-se o bit. E todos viram que o

bit era bom. O Gênesis bíblico talvezpossa ser utilizado para retratar o queera o processo orçamentário até osprimeiros anos da década de 1970. Essa“luz” surgida no processo orçamentáriopraticamente nos cega sobre o passadoe nos impede de compreender como erapossível calcular todo o Orçamento daUnião manualmente. Pois era assim quetudo era feito. E essa foi uma das razõesdo surgimento do Prodasen (Centro deInformática e Processamento de Dadosdo Senado Federal): “automatizar” oprocesso de elaboração do orçamento.Além disso, deveria aperfeiçoar ostrâmites inerentes ao processolegislativo e agilizar as respostas às

demandas por informações de ordemlegal e bibliográfica.

Esses três pontos constaram daproposta de criação de um órgão de“processamento de dados” no SenadoFederal, debatida pela Mesa Diretora doSenado no início de 1971. Desde aquelaépoca, não foi somente o processoorçamentário que ganhou complexidadee nos leva hoje a uma dependência quasevisceral do computador, da informáticaou, para ser mais atual, da tecnologia dainformação e comunicação (TIC). Todoo processo legislativo e os processosde trabalho em geral assumiram outradinâmica: o mundo foi transformado pelooutro “cérebro eletrônico”.

Hoje, o Prodasen controla emantém uma rede de cerca de 4.000

computadores, oferece diversas soluçõespara “aperfeiçoar os trâmites inerentesao processo legislativo” e “agilizar asrespostas às demandas por informaçõesde ordem legal e bibliográfica”. Mais doque isso! Esses processos todos estãona Internet, ou em fase de migração,abertos à sociedade e aos cidadãos.

Três décadas de históriaEm junho de 1972, foi iniciada a

licitação para contratação de equipamentose serviços de operacionalização dos doissistemas de informatização do Senado: SAI(Sistema Administrativo Integrado) e SIL(Sistema de Informação Legislativa). O SAIteve subsistemas de Administração dePessoal, Financeiro, Material e Bibliotecae o SIL constituía-se de subsistemas de

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Legislação (Legi), Tramitação de Matérias(Mate), Referência Bibliográfica (BIB),Jurisprudência (Juri) e Orçamento (Orca).

A IBM venceu a licitação e sugeriua adoção do software Stairs, que acabarade ser lançado no mercado mundial.Houve, por isso, uma alteração nocomputador de grande porte adquirido,o mainframe: do IBM 360/155 evoluiu-se para o IBM 360/158. Assim, oProdasen já nasce com o sentidodirecionado às tecnologias de ponta; jásurge com a atenção voltada para autilização de softwares e hardwares osmais avançados e inovadores – uma dasmarcas de sua história.

O enfrentamento de fortesresistências internas caracterizou o anode 1973. As dificuldades de setores doSenado adaptarem-se aos novosprocessos de trabalho estavam naorigem dessas dificuldades.

O processo de consolidação doProdasen no Senado e sua institu-cionalização como órgão de naturezaautônoma e com estrutura organiza-cional definitiva ocorreu a partir de 1975.

As principais marcas deste período fo-ram a preocupação com a administra-ção dos recursos humanos e a implan-tação de procedimentos formais pararecrutamento, avaliação e promoção depessoal.

Na área de desenvolvimento desistemas, foi adotada uma metodologiabaseada em lista de tarefas a executar, queseriam submetidas à aprovação do usuário.

A partir de 1981, o Prodasenempenhou-se em melhorar a atenção aseus principais usuários, os senadores.Para dar apoio às atividades do dia-a-diados gabinetes foi desenvolvido o sistemaProteus, que tratava do controle dacorrespondência, emissão de mala-direta,agenda do parlamentar, entre outros. OProteus rodava no mainframe e osgabinetes dispunham de terminais paraacessá-lo.

Em 1985, o Prodasen incrementou apossibilidade de acesso aos seus bancosde dados, duplicando o número determinais à disposição dos gabinetes.Dessa época, vem a marca de um estreitovínculo com seus usuários.

Um momento importante, quedeixou também marcas na história doProdasen, foi o apoio dispensado aostrabalhos da Assembléia NacionalConstituinte em 1988, com o Sistema deApoio à Elaboração Constitucional.

O incremento da micro -informática representou outro grandedesafio ao Prodasen: sair de umarealidade de processamento centra-lizado no computador de grande portepara sistemas distribuídos, com autilização de microcomputadores. Essamudança implicou adaptações dases t ru turas organ izac iona is , dascarreiras técnicas e dos métodos eprocessos de trabalho nos órgãosde informática.

O Prodasen então passou aincorporar a contribuição dos usuáriose for ta leceu suas a t i v idades detreinamento. A prioridade foi para oprocesso legislativo. Hoje, o Prodasenatende a todo o Senado: do serviçomédico à segurança; da comunicaçãosocial aos gabinetes dos senadores; dataquigrafia ao orçamento.

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Do CPD à descentralização damicroinformática

O ano de 1991 foi muito importantena história do Prodasen. Até aquele data,o ambiente computacional do SenadoFederal mantinha o desenho tradicionaldos centros de processamentos dedados e um mainframe centralizava todoo trabalho. Naquele momento optou-sepor uma mudança de concepção: redede computação distribuída.

Não prevaleceu, entretanto, umavisão imediatista na definição do novosistema. O projeto inicial para instalaçãoda rede interna e aquisição dos novosequipamentos deveria seguir as demandassugeridas pela nova realidade.

Essa concepção passou a vigorar emfevereiro de 1992. A instalação dobackbone em fibra ótica interligandotodos os prédios do Senado Federal e aaquisição dos novos equipamentos

haviam sido realizadas entre abril esetembro do ano anterior.

A prioridade definida inicialmentefoi para os gabinetes dos senadores, aSecretar ia-Geral da Mesa e aTaquigraf ia , que receberam osprimeiros 160 microcomputadores doSenado Federal. Nessa época tambémforam adquiridos os cinco primeirosservidores de rede. Eram os primeirospassos para o abandono definitivo domainframe – o que naquela época seriavisto como uma alucinação.

Entre 1992 e 1995, a maioria dasestações de trabalho era de micro-computadores 486. A partir de 1995,começou a evolução para o pentiumcom kit multimídia. Hoje, o Prodasenpossui cerca de 4.000 estações detrabalho e mantém uma política derenovação trianual do seu parque: acada ano um terço é atualizado – aestratégia coincide com o prazo usualde manutenção de equipamentosdefinido nas licitações e também

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respeita a obsolescência induzidapelas empresas.

No primeiro semestre de 1995, oProdasen inaugurou sua página naInternet, que pode ser visitada peloendereço: www.senado.gov.br – e foiuma das pr imeiras dentre osparlamentos americanos.

Procurando atender à demandacrescente por informações, o Prodasen,mais uma vez, saiu na frente e, nos anosde 1996 e 1997, deu início à migração e àadaptação de suas bases de dados para oambiente de Internet. Confirma-se a“especulação” do início da década, agorajá com uma alternativa mais clara. A duplaestratégia vai se complementando:enquanto ia-se substituindo os sistemasantigos por novos, direcionados para oambiente web, trabalhava-se para adesativação do mainframe, que ainda seriaatualizado em 1997.

Assim aconteceu com os antigosSistema de Informações Legislativas (SIL)e Matérias Legislativas (MATE), que

foram modernizados com interfacesgráficas e mais recursos de pesquisa eemissão de relatórios.

O sistema de acompanhamento daexecução orçamentária já está àdisposição na Internet para acessototalmente livre. Por ele, é possívelacompanhar os dispêndios dos recursosfederais, vinculando as despesas àsemendas apresentadas e aprovadas pelosparlamentares quando da tramitação doOrçamento no Congresso Nacional. É oSiga Brasil, totalmente reformulado e comrecursos de pesquisa que permite ocruzamento de informações oriundas debases distintas de dados.

Por meio da Internet também já épossível ao cidadão, a partir de sistemadesenvolvido pelo Prodasen, elaborarproposta de emenda ao processoorçamentário. Basta credenciar-se,informando o seu CPF, elaborar aproposição e oferecê-la a um senador oudeputado. A autoria de emendaorçamentária é facultada a parlamentar.

Essas decisões reforçam umapolítica que marcou também a históriado Prodasen: utilizar a tecnologia paraampliar a transparência das informaçõese incrementar o acesso do grandepúblico ao que acontece no Parlamento,fortalecendo a democracia e ressaltandoa participação popular.

Essa cultura do Prodasen permitiuque em meados dos anos 1990 surgissede seus técnicos a proposta do ProgramaInterlegis, que recebeu financiamentointernacional para interligar as diversasCasas Legislativas do País, das Câmarasde Vereadores ao Senado e à Câmarados Deputados, passando pelasAssembléias Legislativas e pelosTribunais de Contas.

Com a implantação do Interlegis, oProdasen deu um passo significativo nasua histórica contribuição ao processodemocrático brasileiro. O Interlegis hojecumpre signif icat ivo papel nainformatização das Casas Legislativas,pautando sua política de desenvol-

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vimento em uma plataforma de softwarelivre – o que viabilizou desenvolversoluções e distribuir aplicações eprogramas a custo zero para asinstituições estaduais e municipais doPoder Legislativo.

Modernizar e facilitar o acesso docidadão ao Legislativo

O Prodasen nasceu com a precípuafunção de servir como instrumento paraa modernização do Poder Legislativo.Outra não tem sido sua missão: criarsistemas informatizados que facilitemo trabalho do representante popular econtr ibuam, também, para ademocratização do Poder Legislativo.Isso exige do Prodasen constanteatenção às inovações tecnológicas quepossam atender às demandas doprocesso legis lat ivo e de suasatividades de suporte.

Na década de 1980, o Prodasenlevou a informática aos gabinetes dossenadores e enfrentou outro grandedesafio: dar suporte aos trabalhos da

Assembléia Nacional Constituinte. Paraisso, elaborou sistema que permitiu ainformatização de todo o processoconstituinte: dos projetos das 24subcomissões, das oito comissões, dastrês versões da Comissão deSistematização e da versão final doPlenário. Elaborou ainda um Banco deSugestões dos Cidadãos que recebeu,indexou e arquivou todas as propostasenviadas pela população. Assim, mais de70 mil cidadãos puderam participar daConstituinte apresentando sugestões.

O início dos anos 90 assistiu aoutra grande inovação no Senado. Destavez, pioneiro em todo o mundo, ainstituição ofereceu aos senadores oserviço de Voz e Imagem dos Plenários(VIP). Apoiado em tecnologia recém-lançada no exterior, o Prodasen possibilitoua transmissão de voz e imagem doPlenário e das comissões aos gabinetesdos senadores. Para isto, utilizou a infra-estrutura de rede já instalada no Senado eos micro-computadores como monitoresde televisão.

Uma consequência imediata daimplantação do VIP foi a premiação doProdasen pela Sucesu-DF (Sociedade deUsuários de Informática e Tele-comunicações), no ano de 1993.

Produtos NovosComo coroamento de todo o

trabalho dessas três últimas décadas, oProdasen desenvolveu nos últimos doisanos alguns produtos que ampliam suacontribuição para a modernização doSenado Federal.

1) e-gabO Portal de Gabinetes também foi

desenvolvido pelo Prodasen para atendera uma demanda antiga. Agora, por meiode uma página na intranet do Senado, ogabinete do senador acessa todas asinformações diretamente relacionadascom seu trabalho. Além de congregarserviços e produtos, a proposta cria umambiente para ajudar na organização dotrabalho. Uma das principaiscaracterísticas dessa solução é a facilidade

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de uso, pois o perfil do usuário acompanhasua senha, independentemente damáquina a que esteja conectado. O Portalainda incorpora para todos os seususuários a transmissão ao vivo da TVSenado, não importanto se o equipamentotem ou não o ponto VIP. Particularmente,o sistema permite que os servidores dogabinete do senador compartilhem suaexperiência, nivelando as informaçõesdisponíveis. O conjunto do trabalhoganha mais independência e pode serdesenvolvido por todos, facilitando aincorporações de novos funcionários evalorizando a experiência dos que játrabalham no gabinete.

2) Siga BrasilO Sistema de Informações

Gerenciais Avançadas (Siga) utiliza umatecnologia de gerenciamento deinformações estratégicas para reorganizaros dados do Orçamento da União,relacionando-os com várias outras basesde dados. Abre inesgotáveispossibilidades de pesquisas para

senadores, deputados e assessores dasduas Casas. Essa ferramenta de pesquisae análise está voltada à transparência dosdados relativos ao Orçamento da União etem como objetivo final ampliar apossibilidade de fiscalização da execuçãoorçamentária – uma das principaisatribuições constitucionais do Parlamento.É o mais ambicioso projeto detransparência orçamentária de que se temnotícia; não há nenhum esforço semelhantesendo realizado em outro país.

O Siga Brasil utiliza recursos deBusiness Intelligence (BI) e DataWarehousing (DW). Elaboradas no finalda década de 1980, estas tecnologias têmpor finalidade aglutinar ferramentas quepossibilitem ao gestor e ao executivodispor de informações que possamorientá-lo e direcioná-lo em suas decisõesestratégicas. São instrumentos quepermitem ao próprio interessado dominardados que outrora estiveram diluídos embases distintas e demandavam enormeconhecimento técnico de informática paraserem manipuladas.

Assim, com esse instrumental, ossenadores e deputados poderão retirardos dados orçamentários informaçõessobre o passo-a-passo da execuçãoorçamentária. Uma emenda poderá serrastreada em todos os momentos de suaexecução, chegando mesmo ao detalhedo empenho de despesa e à emissão daordem bancária, que é o passo definitivode liberação dos recursos para a contado destinatário.

3) Ordem do Dia EletrônicaA Ordem do Dia Eletrônica também

foi um investimento significativo doProdasen na modernização do Plenáriodo Senado Federal. Agora, a pauta dasmatérias em condições de análise peloPlenário estão disponíveis em meioeletrônico, agilizando as informaçõesdisponíveis para os senadores. A infra-estrutura organizada para a implantaçãoda Ordem do Dia Eletrônica permite quenovos serviços sejam inseridos noPlenário, ampliando a introdução datecnologia no dia-a-dia dos senadores. Em

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Mário Simões é jornalista, servidor do SenadoFederal e assessor de imprensa do Prodasen.

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contraste com o restante do Senado, oPlenário era o único setor da instituiçãoque ainda prescindia do uso intensivo datecnologia da informação, que limitava-seao painel de votação eletrônica.

4) SiconO Prodasen concluiu, também, o

desenvolvimento da nova versão do Sicon,o Sistema de Informações do CongressoNacional, que inclui bases de dadosmantidas há mais de 30 anos. O novoSicon reúne a agilidade da Internet e osrecursos complexos de pesquisas quemarcaram a era do computador de grandeporte, o mainframe.

O desenvolvimento do novo sistemaé uma decorrência direta da desativaçãodo computador de grande porte e dadescontinuidade do Search Manager, oantigo Stairs. A versão anterior do Sicon,conhecido também como Aqua, permitiapesquisas bastante complexas com autilização de operadores variados, abrindo

muitas possibilidades de busca. O novoSicon mantém essas mesmas opções etraz muitas facilidades: a interface gráficacaracterística da Internet, a oportunidadede pesquisa única em todas as bases – oque anteriormente era impossível - ediversos tipos de pesquisa segundo aespecialização do usuário.

Ao contrário do Stairs, que exigiaum grande conhecimento específico paraa realização de pesquisas, o Siconapresenta uma variedade significativa depossibilidades, permitindo sua execuçãotanto por pessoas experientes comoleigas. A sua grande marca é a facilidade.Pode-se realizar buscas em uma ou emtodas as bases, recorrendo-se ainda atrês t ipos de pesquisa: básica,intermediária e avançada. No nívelbásico, a busca é por palavras ouexpressões; no intermediário sãolocalizadas informações a partir dasprincipais estruturas dos documentos.Na pesquisa avançada, mais

especializada, o usuário pode utilizar asestruturas detalhadas dos documentospara atingir seu objetivo.

O Sicon já permite o acesso àsbases de dados da Biblioteca do Senado,dos discursos de senadores e dalegislação federal. Ainda serãoacrescidas as Matérias Legislativas(Mate), as Emendas e a Biografia dosSenadores. Já está em condições de seroferecido na Internet e, em particular, ausuários tradicionais do antigo Sicon.Alguns já viram o sistema edemonstraram grande satisfação com oresultado do trabalho da Subsecretariade Sistemas Legislativos do Prodasen.

Dessa maneira, o Prodasen temcumprido as orientações básicasinvocadas para sua criação. Os trêsprincípios que indicaram sua fundaçãoforam incorporados pelo trabalhodiuturno de seu quadro técnico em favorda modernização do Senado Federal e doLegislativo brasileiro.

E

77 Ética

Carlos Homero Vieira NinaManoel Moacir Costa Macêdo

ÉTICA, BIOÉTICA E TECNOLOGIA:OS RISCOS DA DESUMANIZAÇÃO

Senatus, Brasília, v. 4, n. 1, p. 77-82, nov. 2005

ntende-se a ética não apenas como um conjunto deprincípios fundamentais de direitos e valores no campo

do comportamento social vinculado às normas legais. Odesafio ético deve ser ampliado no sentido da universalizaçãodos direitos reais, abrangente e holístico na direção dacidadania plena e participativa.

O interesse pela ética não significa levantar a bandeirade um movimento intelectual, moral e religioso, mas umimpulso de sobrevivência das relações sociais civilizadas. Valle(1999, p. 69) define a ética como uma “vastidão sem fim, aciência do ethos”. Ou seja, a ética corresponde a toda açãohumana que toma por objeto de intervenção outra ação humana,do próprio agente ou de outro.

Para Srour (1998, p. 286), o momento atual dodesenvolvimento da humanidade permeia uma “discussãocontemporânea [que] gira em torno do egoísmo ético emchoque com as morais socialmente orientadas”. Este mesmoautor identifica o objeto de estudo da ética como sendo “amoral, o dever fazer, a qualificação do bem e do mal, a melhorforma de agir coletivamente. A ética avalia então os costumes,aceita-os ou reprova-os, diz quais ações sociais são

moralmente válidas e quais não são [...] define o bem moralcomo o ideal do melhor agir ou do melhor ser. E tem procuradoas fontes da moral nas divindades, na natureza ou nopensamento racional” (SROUR, 1998, p. 270).Nessa mesmaperspectiva, William Saad Hossne (2001, p. 54), médico,professor, pesquisador e fundador da Sociedade Brasileira deÉtica, afirmou que “o ser humano deveria preocupar-se maiscom a ignorância que com o avanço do conhecimento [istoquer dizer a garantia de] que preceitos éticos e a dignidadehumana sejam respeitados nas pesquisas científicas”. Semdúvida, afirma Marinho (1996, p. 128-129) não é fácil definir oético e o justo, em sociedades marcadas pelas desigualdadese contradições abusivas. De qualquer modo, para o autorprevalecem as forças e os valores sociais sobre as decisões doindivíduo, porque só assim se constrói os valores sociais quegarantem a vida coletiva e eleva o ser humano.

Reconhece-se na atual quadra da humanidade, o grandepotencial transformador da engenharia genética e dabiologiacelular, embora - de acordo com Buey (2000, p. 13, 18) -não exista um acervo ético capaz de proteger a própriahumanidade [...] e quanto mais sabemos sobre a estrutura da

matéria e da vida e melhor aplicamos este conhecimento paratratar de melhorar a vida das pessoas maior é o perigo dedesumanização. O que para Lucien Sfez (1996) significa queas mudanças genéticas (vegetais, animais e humanas) alteramnão somente o estado-da-arte da ciência, mas também o cursoda história. Renova-se e reinventa-se a história.

O que se abstrai nessa perspectiva, é que a qualidadede vida do ser humano não requer apenas os requisitosmateriais exigidos pelo corpo: casa, comida e moradia. Oseu ethos exige hábitos, costumes, tradições, sonhos, lazere trabalho, onde a vida humana possa nascer, florescer,crescer e multiplicar como corpo e espírito. A qualidade devida com ética é simples: busca-se a regularidade dosdesejos, das relações sociais e das necessidades satisfeitase, assim, preenche-se o cotidiano das pessoas. Berlinguer(2000, p. 41-48) em estudo sobre a eqüidade, qualidade ebem-estar futuro, escreve que “as relações entre a ética e asdoenças do nosso tempo têm dois diferentes aspectos. Oprimeiro é o progresso técnico-científico que, pela primeiravez na história, nos coloca em condições de conhecer e podervencer ou limitar enormemente a grande maioria das doençasexistentes: podemos, embora não tenhamos agidosuficientemente nesta direção. O segundo aspecto é o fatode, pela primeira vez na história, a tipologia das doençasmostrar que a antropogenia tem origem nas decisões humanas[...] ambos os aspectos nos induzem a pensar que a ética eas políticas públicas de saúde podem ser a bússola, osfundamentos para se obter um bem-estar em um mundo maissolidário” (BERLINGUER, p. 48).

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Diante dos desafios das novas realidades, as pessoasencontram na ética, não a utopia da realidade ideal, mas anecessidade de um tempo que exige auto-gestão e,principalmente, um quadro de referência para o cotidiano, nabusca de agir eticamente para atingir uma vida com melhorqualidade. Isto não implica na simplicidade das caracterizaçõeslineares das relações sociais em curso, mas na complexidadede uma sociedade desigual que persiste e se agrava, seja naestrutura do seu processo de produção material, seja nasensação de impunidade e corrupção na atividade política dosseus líderes ou mesmo dos seus representantes, todas a seconstituírem em descrença, desesperança e distanciamentode um referencial ético para a sociedade.

Indignação e niilismo podem expressar o início de umareação a partir dos setores sociais organizados e esclarecidos,de um lado, e do outro, o desprezo dos cidadãos pelas formasdemocráticas de convivência social a serem observadas naviolência, na apatia participativa e na nostalgia dos mecanismosautoritários e reacionários, a exemplo dos movimentos racistase preconceituosos e do conservadorismo político. Ressalta-se nesta direção os dilemas éticos que, para Hossne (2001, p.55), referem-se aos “momentos que transcendem as opções eanálises [...] às vezes, as pessoas simplesmente preferemnão fazer a opção. Apelam para o que está estabelecido na leiou na moral”.

Segundo Gortner (1991), existe um dilema ético emsituações nas quais dois ou mais valores em conflito sãoimportantes e competitivos, sendo que um deles deveprevalecer sobre os demais. Como exemplo, o Quadro 1 mostra

(...) as mudanças genéticas (vegetais,animais e humanas) alteram nãosomente o estado-da-arte da ciênciamas também o curso da história.

dilemas éticos presentes nas estratégias de política agrícola,que servem de referência às opções de alternativas de açõesque vão desde as soluções lineares de mercado à mudançasocial qualitativa e a proteção do meio ambiente.

Os indicativos de anomia não estão caracterizados nosconstrangimentos morais oriundos da ruptura da coesão socialno contexto da divisão social do trabalho, tipificados pela sociologia

clássica. A consciência coletiva pode ser entendida como a própriaconsciência ética, a qual tem sido vilipendiada pela frieza docapital embrutecido nas formas tecnológicas.

A tecnologia não pode ser vista como uma combinaçãoharmônica e ampliada pelos ditames da modernidade entre o softe o hard, mas, como uma relação social de produção, complexa eprenhe de contradições. É imperativo entender o chamado “social”

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Fonte: Adaptado de YEGANIANTZ, L. ; MACÊDO, M. M. C. O desafio da ética agrícola. Cadernos de Ciência e Tecnologia, Brasília, v. 17,

n. 3, p. 1215-146, set./dez. 2000.

DESEJOS

(Individuais)

Vs. NECESSIDADES

(Individuais e Coletivas)

LÓGICA ECONÔMICA

(Racionalidade Econômica)

Vs. VALORES ÉTICOS

(Imperativos Éticos)

DIREITOS INDIVIDUAIS

(Responsabilidade Individual)

Vs. DIREITOS COLETIVOS

(Responsabilidade Coletiva)

INTERESSE DOS PRODUTORES

(Preços Recebidos e Pagos)

Vs. BEM-ESTAR DOS CONSUMIDORES

(Qualidade e Preços Pagos)

INFRA-ESTRUTURA ECONÔMICA

(Estradas, Armazéns, outros)

Vs. INFRA-ESTRUTURA SOCIAL

(Educação, Saúde, Pesquisa, outros)

ÊXITO TÉCNICO ACIMA DA ÉTICA

(Produtividade)

Vs. ÊXITO TÉCNICO ACIMA DA TÉCNICA

(Externalidades)

ÉTICA EMPRESARIAL

(Agro-negócio e Alta Produtividade)

Vs. ÉTICA AMBIENTAL E BIOÉTICA

(Desenvolvimento e Agricultura Sustentada)

SUBORDINAÇÃO À INDÚSTRIA E SERVIÇOS

(Dentro da Cadeia Agro-industrial)

Vs. AUTONOMIA CAMPONESA

(Artesanato, Serviços ao Consumidor)

RAÇÃO ANIMAL

(Grãos como Fonte Protéica)

Vs. ALIMENTAÇÃO HUMANA

(Grãos como Fonte Calórica)

ERRADICAÇÃO DA FOME E DA MISÉRIA

(Não Considera o Custo Ambiental)

Vs. PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE

(Considerando o Custo Ambiental)

ÊXODO RURAL E FAVELAS URBANAS

(Concentração de terra e capital)

Vs. INVASÃO DE TERRAS PELO MST

(Desemprego rural)

IGUALITARISMO E ALTRUÍSMO

(Preferência pelos Pequenos Produtores)

Vs. IGUALITARISMO E INVEJA

(Opção pelas Grandes Propriedades)

QUADRO 1 – DILEMAS ÉTICOS NA AGRICULTURA

em sua conotação moral, implicando em uma ação dirigida emalgum sentido para o bem-estar dos outros, geralmente para obem-estar da sociedade ou de seus membros menos privilegiados,conforme mostra a teoria de justiça de John Rawls (RAWLS, 1971).

Em cada enfoque ético, está presente o Direito. Procura-se, através dos variados ramos do Direito do ponto de vistaético, fazer com que o homem, o único ser inteligente doplaneta Terra, enquanto pessoa física ou pessoa jurídica, tenharelações éticas, da seguinte natureza: relação homem/

natureza; relação homem/indivíduo, homem/cidadão, homem/Estado (VALLE, 1999, p. 69).

Sob esse enfoque, o Quadro 2 apresenta alguns temasidentificados pela bioética e externados na atualidade comodilema moral ou ético.

O fundamental é compreender os limites que devemdirigir a um só tempo os agentes públicos e as liderançaspolíticas, sociais e comunitárias e os geradores e operadoresdo conhecimento na definição objetiva do ser pois o dever serpode ser interpretado como um dogma. Esta distinção podeser interpretada como a distinção entre a ética descritiva (oque é, explicação, comportamento) e a ética normativa (deverser, justificativa, ação). Não se observa no horizonte dasconvicções em uso e dos freios e contrapesos dos códigospositivistas do ordenamento jurídico a convicção plena advindada sociologia jurídica e das responsabilidades sociais e éticas.A Constituição Federal do Brasil de 1988 expressa a ética daresponsabilidade, apesar de não existir uma ética em uso nocotidiano das pessoas:

Art. 3 - Constituem objetivos fundamentais da RepúblicaFederativa do Brasil: construir uma sociedade livre, justa esolidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar apobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociaise regionais. Acrescente-se a esse, entre os fundamentos doArt. 1 aqueles que incluem o compromisso com a cidadania, adignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho .

A tecnologia não se submete aos apelos dasdesigualdades, das injustiças e dos horrores dos que estãoabaixo da linha do Equador. Educação, diplomacia eprosperidade não são eficazes e suficientes para a desejadamudança social. Evidências abundam no que diz respeito àsconquistas cientí f icas em sua vasta abrangência edisciplinaridade. A carência tem sido na assimetria entre aprodução, a distribuição, a circulação e o consumo dos seusprodutos e subprodutos.

Nesse sentido, a tecnologia não significa um meroinstrumento material, mas também uma organização social.Para Fourez (1999), as escolhas tecnológicas determinam otipo de vida social de um grupo: uma sociedade pode se tornarmais ou menos tecnocrática a depender do tipo de tecnologiaque constrói. Assim, a escolha da tecnologia não é somenteuma escolha de meios neutros, mas uma escolha de sociedade.

A análise da tecnologia em seu sentido ético pode serarticulada por um discurso que analisa o processo produtivodiante dos valores construídos do bem e do mal. Acselrad(1997, p. 14) destaca as intenções das ações que têm porobjeto uma base material biofisicamente comum interligando

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QUADRQUADRQUADRQUADRQUADRO 2 – TEMAS RECENTES DO 2 – TEMAS RECENTES DO 2 – TEMAS RECENTES DO 2 – TEMAS RECENTES DO 2 – TEMAS RECENTES DA BIOÉTICAA BIOÉTICAA BIOÉTICAA BIOÉTICAA BIOÉTICA

1. É lícito eliminar dos centros médicos e deinvestigação as sobras de embriões obtidos porfertilização in vitro?

2. É lícito decidir ter um filho para utilizá-lo comodoador de medula óssea com o fim de salvar a vida deum irmão com leucemia?

3. É lícito modificar a função ou a estrutura do cérebromediante o uso de psicofármacos ou mediante otransplante de células nervosas?

4. É lícito e moral e moralmente aceitável submeter-se a intervenções para mudar de sexo?

5. Será lícito que o indivíduo possa construir coleçõesde si mesmo para manter-se com boa saúde,consumindo-se a si mesmo em um “canibalismogenético” como se consome outros objetos?

6. É moralmente aceitável a “meritocraciahereditária”, que se diz pela seleção dos traçosgenéticos favoráveis dos pais?

7. É lícita a clonagem de seres humanos hoje possívelapós a clonagem de vertebrados superiores comoovelhas?

Fonte: BUEY, F. F. Sobre tecnociencia y bioética: los árboles delparaíso: parte I. Bioética,Brasília, v. 8, n. 1, 2000, p. 22.Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/revista/bio1v8/revista.htm >. Acesso em: 25 ago. 2005.

espaços, homens e tempos. Reconhece-se, igualmente, quetais ações e juízos que sobre elas se aplicam, ocorrem emcondições de acentuada desigualdade jurídica, econômica epolítica de acesso ao espaço ambiental pelos distintos agentessociais. Abandonadas as preocupações econômicas com osmeios, colocam-se então questões aos fins socialmentedesejáveis. E a possibilidade de fins lucrativos questiona adesejabilidade da produção material como fim último.

Para Martins (2000, p. 212), o grande desafio doséculo não está nas grandes conquistas tecnológicas masem como vencer o egoísmo. O altruísmo criador é o melhorantídoto contra o egoísmo destruidor. No contexto da éticaprofissional, tem-se um grande compromisso com averdade positivada pelo método científico. Os resultadosda investigação científica não devem ser utilizados parafins particulares, e os relacionamentos requerem umespaço de discussão democrática, sem a priori oudoutrinas aos quais todos os participantes deveriamconformar-se (THIOLLENT 1997, p. 19).

Em outras palavras, isto significou, no contexto da teoriasociológica funcionalista, as normas da neutralidade científicaapontadas por Merton (1968), onde a prática científica em uso pelopesquisador obedece aos princípios identificados como:universalismo, comunalismo, desinteresse e ceticismo organizado.Predomina, nesta perspectiva, a racionalidade, a imparcialidade eum controle social oriundo da comunidade científica e não dasociedade em sua totalidade, contra aqueles que não se submetemàs referidas normas.

Embora não sendo o escopo deste trabalho projetar um modelotal qual a proposta rostowiana de transformação social, e reconhecendoa fragilidade de tal formulação, recorre-se à ética como uma utopiados novos tempos, como a estratégia possível de articular entre siprincípios de justiça, igualdade de direitos, dignidade da pessoahumana e da cidadania. A ética pode criar no mundo real a possibilidadeda sua viabilidade, embora não garanta o seu cumprimento. Nessecontexto, pergunta-se: qual a estratégia capaz de regular odesenvolvimento histórico-cultural da humanidade?

A resposta pode ser encontrada nas palavras do teólogoLeonardo Boff, em seu livro A Águia e a Galinha:

“Ethos – ética, em grego – designa a morada humana. O serhumano separa uma parte do mundo para, moldando-a ao seu jeito,construir um abrigo protetor permanente. A ética, como moradahumana, não é algo pronto e construído de uma só vez. O ser humanoestá sempre tornando habitável a casa que construiu para si.

Ético significa, portanto, tudo aquilo que ajuda a tornar melhoro ambiente para que seja uma moradia saudável, materialmentesustentável, psicologicamente integrada e espiritualmente fecunda”.

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(...) o grande desafio doséculo não está nasgrandes conquistastecnológicas mas emcomo vencer o egoísmo.O altruísmo criador é omelhor antídoto contrao egoísmo destruidor.

Manoel Moacir Costa Macêdo é professor,

pesquisador, PhD em Sociologia pela Sussex

University, Inglaterra, professor do curso de

mestrado em Direito da Universidade Católica de

Brasília.

Carlos Homero Vieira Nina é advogado, chefe

de Gabinete do senador Antero Paes de Barros.

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REFERÊNCIAS:REFERÊNCIAS:REFERÊNCIAS:REFERÊNCIAS:REFERÊNCIAS:

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BERLINGUER, Giovanni. Equidade, qualidade e bem-estar futuro.In: GARRAFA, Volnei; COSTA, Sérgio Ibiapina F.; OSELKA,Gabriel (Org.). A bioética no século XXI. Brasília: UnB, 2000, p.41– 48.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da RepúblicaFederativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria deEdições Técnicas, 2000. 370 p.

BUEY, Francisco Fernandez. Sobre tecnociencia y Bioética: losárboles del paraíso. Bioética, Brasilia, v. 8, n. 1, 2000, 13 – 27.

FOUREZ, Gérard. A Construção das Ciências: introdução àfilosofia e à ética das ciências. São Paulo: Unesp, 1995. 319 p.

HOSSNE, W. S. Entre a ética, a fé e a ciência. Época, Rio deJaneiro, v. 4, n. 171, p. 54-56, 27 ago. 2001.

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MARTINS, Ives Granda da Silva. A Era das Contradições: desafiospara o novo milênio. São Paulo: Futura, 2000. 222 p.

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SFEZ, Lucien. A saúde perfeita: crítica de uma nova utopia. SãoPaulo: Loyola, 1996. 402 p.

SROUR, Robert Henry. Poder, cultura e ética nas organizações.Rio de Janeiro: Campus, 1998. 337 p.

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VALLE, Gabriel. Ética e Direito. Porto Alegre: Síntese, 1999. 225 p.

YEGANIANTZ, Levon; MACÊDO, Manoel Moacir Costa. Odesafio da ética agrícola. Cadernos de Ciência e Tecnologia,Brasília, v. 17, n. 3, p. 125-146, set./dez. 2000. Disponível em:< h t t p : / / a t l a s . s c t . e m b r a p a . b r / c c t / C C T . n s f /Por%20Volume?OpenView&Start=1&Count=30&Expand=13#13 >.Acesso em: 25 ago. 2005.

83 Tradução e Revisão

s tradutores normalmente se enquadram melhor em umdeterminado perfil: há os que têm mais fluência na língua deorigem, os que possuem produtividade mais alta do que amédia, os que dominam muito bem as ferramentas eletrônicase aquele tipo de tradutor com perfil de revisor. É claro que omesmo tradutor pode reunir essas características, mas aexperiência demonstra que há uma maior tendência naturalpara uma delas. Este artigo é sobre aquele tipo de tradutorque faz controle de qualidade de projetos, aquele que bate oolho no texto e já detecta erros.

Como diria Caetano Veloso, “cada um sabe a dor e adelícia de ser o que é”. O revisor típico é aquele que nãoconsegue andar na rua como um transeunte normal, semprestar atenção no que está escrito ao redor. Ele, perdido notrânsito, não consegue se localizar porque se distrai com asfaixas das lojas e dos camelôs, que trazem preciosidades dotipo: “Fa-se tijolo” (Faz-se tijolo), “bala de cocô gelada” (balade coco gelada) e “comida a kilo” (comida a quilo).

Ele não consegue assistir a um filme, saco de pipoca namão, sem dar a menor bola para a legenda. Tem vontade decutucar o vizinho da poltrona quando percebe um erro de tradução.(Isso quando não cutuca mesmo.) É vício de profissão. Teve umfilme aí que, no trailer, o garoto vinha caminhando no corredor daescola e dizia: “I have problems with girls. Period”. Na legenda,durante umas três semanas, apareceu: “Tenho problemas comgarotas menstruadas”. Depois tiraram a legenda (que deveria seralgo como: Tenho problemas com garotas. Ponto.)

O revisor nato chega no restaurante e, mesmo já sabendoo que vai pedir, abre o cardápio para ler as bobagens, queinfalivelmente estão lá. Suco de “melância” é muito comum.Não sei se mais doce do que o de melancia, mas costuma serservido na maioria das lanchonetes. E tem o vendedor decelular que insiste na tal tecla “asterístico”. Nunca vi um celularcom “asterístico”, mas deve existir, porque o vendedor sempremenciona essa tecla, empolgadíssimo com as instruções.

Revisor que é revisor lê livro com uma lapiseira na mão,para ir marcando os erros. Se o texto estiver mal escrito, pelomenos se distrai com a revisão. Tem um autor brasileiro,grande sucesso de vendas, que no início da carreira nãopermitia que seus livros fossem revisados. Lembro-me deque perdi a conta do número de vezes que encontrei no textodele “haviam ovelhas” (verbo haver no sentido de existir éimpessoal, não deve ser flexionado). Depois, com o sucesso ea tradução para outros idiomas, ele foi cedendo à pressão daindústria literária e permitiu a revisão – para o bem de todos.

Escrever e-mails parece um prato cheio para os erros.Não adianta ler e reler a mensagem, é só clicar no botão“Enviar” que um erro vem à tona, como mágica; parece que ocomando é que gera o erro; impressionante isso!

Revisor típico não agüenta participar de salas de bate-papo comuns. Ele não suporta a pressão das palavras flutuandoentre deslizes ortográficos, semânticos, lingüísticos. O revisornato é aquele cara que diz, em uma conversa informal: “Sevocê vir fulano, diga a ele que mandei lembranças”. Se você

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Aquela mania de revisar tudo“A luta contra o erro tipográfico tem algo de homérico. Durante a revisão, os erros se escondem, fazem-se positivamente invisíveis. Mas assim que o livro sai, tornam-se visibilíssimos, verdadeiros sacis a nosbotar a língua em todas as páginas. Trata-se de um mistério que a ciência ainda não conseguiu decifrar...”

Renata Hetmanek

Monteiro Lobato

O

“vir”. Quem é que conjuga o verbo ver assim? Só quem trabalhacom as letras. Confesso que às vezes tenho vergonha de dizer“vir”. Dependendo do interlocutor, digo “ver” mesmo, que épara a pessoa não achar que estou falando errado...

Aliás, se a língua escrita dá trabalho, a língua falada,então... (Parênteses: vou deixar para os lingüistas a discussãosobre o que é transgressão da norma culta da língua, sobre oconceito de erro, regionalismo, variante social etc.) Vocês jáouviram alguém dizer que um bebê recém-nascido teve“itiriça” (icterícia)? Que a cozinheira vai assar um “largato”(lagarto)? E que alguém vai comer uma “salchicha” (salsicha)?A Sadia veiculou um comercial lindo em que um menino dizalgo como: “Minha mãe disse que é salsicha e não “salchicha”,porque senão a marca seria “Chadia” e não Sadia.

Falando em comercial, no outro dia presenciei umacena curiosa. Sabem aquele anúncio da Nova Schincariol(ele saiu do ar), no qual aparecia um monte de gentegritando “Experimenta, experimenta!”? Era bem animado,envolvente, realmente chamou a atenção, porque aspessoas repetiam o slogan várias vezes e ele ficavamartelando na cabeça do espectador. Pois estava eucaminhando na rua perto de casa quando entreouvi odiálogo de dois senhores que estavam sentados em umbanco. Um deles estava com o jornal de ofertas de umsupermercado na mão. Viu que a Nova Schincariol estava em

promoção. Virou para o outro e disse:“Você viu o comercial da cerveja? É

legal. Fica todo o mundo falando“Exprimenta, exprimenta”.” Eu ri

sozinha. Depois de ouvir váriasvezes o coro gr i tando

“experimenta”, ele reproduziu “exprimenta”, do jeito queestá acostumado a falar.

Lembro-me de uma crônica do Millôr Fernandes quediscorre sobre essa mania de leitura. O homem estáhospedado em um hotel e se esquece de levar algo paraler. Ele fica desesperado. Procura uma Bíblia na gaveta,uma etiqueta no cobertor, qualquer coisa serve. Tem o vícioda leitura. No final, contenta-se com uma carta que atelefonista do hotel tem na bolsa. Não existe gente assim?Que lê bula de remédio inteira? Etiqueta de produtos, paraver composição, calorias, validade? Nossa, até manualtécnico de aparelhos domésticos, câmeras fotográficas! Temgosto para tudo nesse mundo...

D i v e r s ão d e t r a du t o r / r e v i s o r é a po s t a r s ede t e rm inada pa l a v r a e x i s t e , s e co r r e sponde aosignificado atribuído a ela em uma conversa. Presenteque e le gosta de ganhar é d ic ionár io em papel ,dicionário eletrônico, gramática, breviário de verbos.Alegria é encontrar um contexto para usar uma palavramenos corriqueira, como “telúrico”. “Telúrico” é umapalavra linda. O Caetano usa. Linda.

Os amigos ficam rindo quando resolvemos conduzir aconversa para o lado das palavras. Mas, na hora da dúvida,correm para nós. Fulano, você pode traduzir o meu currículo?Pode revisar a minha monografia? Fulano, como se escreveisso? Pois é. Como diz o eterno poeta Carlos Drummond deAndrade, em seu poema “O Lutador”: “Lutar com palavras éluta mais vã. Entanto lutamos mal rompe a manhã. São muitas,eu pouco. (...) Lutar com palavras parece sem fruto. Não têmcarne e sangue... entretanto, luto”. Fiquemos com a nossaluta, esperançosos de que ela não seja em vão.

Renata Hetmanek é gerente de projetos da Editema-SP

(Latin Languages). Tradutora há dez anos, formada em

Jornalismo (UERJ), com especialização em História das

Relações Internacionais (UERJ) e em Tradução Inglês-

Português (PUC-RJ).

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No século XVIII, a travessia do Oceano Atlântico envolviainúmeros riscos. A viagem do Rio de Janeiro a Lisboa, por exemplo,levava de oitenta a noventa dias. As naus viajavam em comboiosde até cem embarcações. No centro da formação iam os lentos epesados navios mercantes. Pelos flancos, galeões de guerracuidavam da segurança do comboio, uma vez que os mares eraminfestados de piratas. Os naufrágios eram constantes. A vida abordo era espartana. Os alimentos restringiam-se a biscoitos,carne salgada, vinagre, azeite, queijo, açúcar, mel. Os viajanteseram veementemente aconselhados a redigir seus testamentosantes de embarcar.

Em 1735, Charles-Marie de La Condamine (1701-1774),membro da Academia de Ciências de Paris, embarcou numadessas viagens. Aos 16 dias do mês de maio, partiu da cidadefrancesa de La Rochelle com destino ao Peru, um dos domíniosespanhóis na América do Sul. A tarefa de La Condamine e dosdemais cientistas que o acompanharam era a de medir, na linhaequinocial, a longitude do arco de um grau de meridiano. Osfranceses pretendiam, com essa e outras medidas tomadas naLapônia e no sul da África, colocar um ponto final nas controvérsias

a respeito da forma esferóide e da grandeza da Terra, confirmandoalgumas das previsões de Isaac Newton (1642-1727).

Com fama de bom escritor, La Condamine foiencarregado de relatar os sucessos da expedição, da qualresultaram três publicações. Uma delas, e a que mais interessaa nós, brasileiros, é a Viagem na América Meridional Descendoo Rio das Amazonas, impressa pela primeira vez na França, em1751, e reeditada em 2000 pelo Senado FederalSenado FederalSenado FederalSenado FederalSenado Federal na coleção OOOOOBrasil Visto por EstrangeirosBrasil Visto por EstrangeirosBrasil Visto por EstrangeirosBrasil Visto por EstrangeirosBrasil Visto por Estrangeiros.

A gênese da Viagem na América Meridional estáprofundamente relacionada à curiosidade científica quase doentiade La Condamine. Em 1743, concluídas as medidas encomendadaspelo trono francês, La Condamine combinou com Godin e Bouguer,os demais cientistas da expedição, que os três voltariam à Europapor caminhos diferentes. Nosso autor optou pelo caminho do “riodas Amazonas, que atravessa todo o continente da Américameridional, do Ocidente ao Levante, e passa com razão por ser omaior curso do mundo”.

A crônica resultante dessa viagem tornou-se um dosmaiores clássicos da chamada “literatura de informação”, expressão

Viagem naAmérica Meridional

Resenha85

Senatus, Brasília, v. 4, n. 1, p. 85-86, nov. 2005

Descendo o Rio das Amazonas

DE CHARLES-MARIE DE LA CONDAMINE - COLEÇÃO

O BRASIL VISTO POR ESTRANGEIROS, EDITADA PELO

CONSELHO EDITORIAL DO SENADO FEDERAL

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Índias do Amazonas

que alguns críticos mais puristas condenam como uma contradiçãoem termos. Discussões estéticas à parte, o fato é que a Viagemna América Meridional é daquelas obras indispensáveis para acompreensão dos traços formadores do norte do País e, emconseqüência, do Brasil. Não foi à toa que o relato de La Condaminefoi um dos textos que mais inspiraram, motivaram e informaramEuclides da Cunha, cujo interesse pela região amazônica culminoucom a participação na expedição oficial de reconhecimento emapeamento das cabeceiras do rio Purus, nos primeiros anos doséculo passado.

La Condamine tinha dois objetivos ao descer oAmazonas: levantar a carta do rio e “recolher observações detodo gênero que tivesse ocasião de fazer num país tão poucoconhecido”. É exatamente nessas observações que residegrande parte do encanto do livro. Numa prosa admiravelmenteconcisa e ágil, La Condamine narra as lendas sobre as tais“amazonas” que habitariam as margens do rio ao qualemprestaram seu nome; descreve as propriedades da borracha,que, “fresca, dá-se-lhe com moldes a forma que se quer; ela éimpenetrável à chuva, mas o que a torna digna de nota é a suagrande elasticidade”; registra nomes e características deplantas, animais, tributários do Amazonas, povos nativos daregião. Quanto a estes, reproduz alguns dos preconceitoscomuns aos viajantes europeus de sua época, admirando-se

ao ver “o quanto o homem abandonado à natureza, privado deeducação e sociedade, pouco difere das bestas”.

A edição do Senado FederalSenado FederalSenado FederalSenado FederalSenado Federal traz ainda uma informativaapresentação do historiador Basílio de Magalhães (1874-1957),além de três apêndices contendo cartas escritas e recebidas porLa Condamine a respeito da viagem.

A Viagem na América Meridional Descendo o Rio dasAmazonas tem, por fim, o grande mérito de, uma vez mais, dirigiro olhar brasileiro na direção dessa região tão rica, não somenteem recursos naturais, mas também em história e cultura – riquezasó comparável à injustificável desatenção que lhe dedicam oshabitantes das demais regiões do País.

Marcius Fabiane Barbosa de Souza é bacharelem Tradução pela Universidade de Brasília, éconsultor legislativo do Senado Federal para aárea de pronunciamentos.

Mapa da América Meridional

Senatus, Brasília, v. 4, n. 1, p. 85-86, nov. 2005

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