revista pge 2010, volume 6

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Revista da Procuradoria-Geral do Estado do Acre, Volume 6, ano 2010.

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Page 1: Revista PGE 2010, Volume 6
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REVISTA DA PROCURADORIA GERAL DO ESTADO DO ACRE

ISSN 1679-6489

Volume 6, anual, 2010

Centro de Estudos Jurídicos – PGE/AC

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REVISTA DA PROCURADORIA GERAL DO ESTADO DO ACRE

PROCURADOR-GERAL DO ESTADO DO ACRERoberto Barros dos Santos

CONSELHO EDITORIALCaterine Vasconcelos de Castro

Cristovam Pontes de MouraDavid Laerte Vieira

Francisco Armando de Figueiredo MeloJanete Melo d’Albuquerque Lima

Marco Antônio Santiago MottaMarize Anna Monteiro de Oliveira Singui

Maria Lídia Soares de AssisMauro Ulisses Cardoso Modesto

Rodrigo Fernandes das Neves

EQUIPE DO CEJURAna Cláudia Ferraz Cavalcante

Maria do Socorro Braga de Oliveira ClarosMeyrelene MacedoSulanira BarrosoKonsuelo Kerder

Valdeci Maia de Oliveira Facundes

EQUIPE DE PRODUÇÃORevisão: Ana Cláudia Ferraz Cavalcante,

Caterine Vasconcelos de Castroe Valdeci Maia de Oliveira Facundes

Capa Ilustração: MaquesonDiagramação e Capa: Lindsay Gadelha do AmaralImpressão: Tribunal de Justiça do Estado do Acre

Revista da Procuradoria Geral do Estado do Acre. v. 6. Rio Branco: Centro de Estudos Jurídicos/PGE, 2010. Anual.ISSN: 1679-6489 CDD – 340.05

CDU – 34(05)

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ARNÓBIO MARQUES DE ALMEIDA JÚNIORGovernador do Estado do Acre

CÉSAR MESSIASVice-Governador do Estado do Acre

ROBERTO BARROS DOS SANTOSProcurador-Geral do Estado do Acre

MARIZE ANNA MONTEIRO DE OLIVEIRA SINGUICorregedora-Geral da PGE

CATERINE VASCONCELOS DE CASTROProcuradora-Chefe do Centro de Estudos Jurídicos

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PROCURADORES DO ESTADO

Ademilde Marinho SoaresCaterine Vasconcelos de Castro

Cristovam Pontes de MouraDaniela Marques Correa de Carvalho

David Laerte VieiraEdson Américo Manchini

Érico Maurício Pires BarbozaFelix Almeida de Abreu

Francisca Rosileide de OliveiraFrancisco Armando de Figueiredo Melo

Francisco Elno JucáGabriela Lira Borges

Gerson Ney Vilela JuniorHarlem Moreira de Sousa

Janete Melo d’Albuquerque LimaJoão Paulo Aprígio de Figueiredo

João Paulo Setti AguiarJosé Rodrigues Teles

Leandro Rodrigues Postigo MaiaLeonardo Silva Cesário Rosa

Luciano José TrindadeLuiz Rafael Marques de Lima

Luiz Rogério Amaral ColturatoMarcos Antônio Santiago Motta

Márcia Krause RomeroMárcia Regina de Sousa Pereira

Maria de Nazareth Mello de Araujo LambertMaria Eliza Schettini Campos Hidalgo Viana

Maria José Maia Nascimento PostigoMaria Lídia Soares de Assis

Marize Anna Monteiro de Oliveira Singui

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Mauro Ulisses Cardoso ModestoMayko Figale Maia

Paulo Cesar Barreto PereiraRoberto Barros dos SantosRoberto Ferreira da Silva

Rodrigo Fernandes das NevesRosana Fernandes Magalhães Biancardi

Sárvia Silvana dos Santos LimaSilvana do Socorro Melo Maués

Tito Costa de Oliveira

PROCURADORES DO ESTADO JUBILADOS

Aquileu José da Silva FilhoAzeilda Benevides Viga

Derci Maria de LimaDione Daher Oliveira de Menezes

Ivan Fernandes da Cunha FilhoJosé Maria Torres de AlbuquerqueMaria Ferreira Martins de Araújo

Maria Perpétuo Socorro de Souza GomesMaria Tereza Flor da Silva

Mario Izídio dos SantosMarluce Costa de Oliveira

Maurinete de Oliveira AbomoradOriêta Santiago de Moura

IN MEMORIAN

Alberto Augusto de OliveiraCristovam Lima de Oliveira

Francisco Fernandes de MeloJoão Batista Aguiar Filho

Maria da Conceição Castelo Branco Coelho

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SUMÁRIO

Editorial.................................................................................09

Apresentação: artista Maqueson ..........................................17

1 O mandado de segurança coletivo e a Lei n. 12.016/2009....................................................................................................21Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr.

2 Ativismo Judicial: objeções à intervenção do judiciário na formulação e execução de políticas públicas ambientais.........................................................................................................45Rodrigo Fernandes Das Neves

3 Política da Valorização do Ativo Ambiental Rural.............77Rodrigo Fernandes Das Neves

4 O papel do Estado na proteção do conhecimento tradicional associado à biodiversidade dos povos indígenas...................................................................................................................113Caterine Vasconcelos de Castro

5 Apontamentos sobre a consolidação do território acria-no - das disputas entre Portugal e Espanha à fixação defi-nitiva da divisa interestadual Acre/Amazonas pelo consti-tuinte de 1988.................................................................165Luciano José Trindade

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6 Gestão de Dívidas Públicas Reconhecida em Juízo......207Roberto Barros dos Santos

7 Contratação de empresa particular para execução de obra pública: por que surgem controvérsias jurídicas entre o INSS e diversos órgãos da administração relativamente às obrigações para com a seguridade social.....................257José Rodrigues Teles

8 Reflexões sobre a revisão de enquadramento nos planos de cargos carreira e remuneração dos servidores públicos e a prescrição quinquenal (trato sucessivo) e de fundo de direito..............................................................................281João Paulo Aprigio de Figueiredo e Alexsandro Silva de Souza

9 Juízo de Admissibilidade e de cognição sumária no Agravo por Instrumento: aparente simbiose.....................................319Cristovam Pontes de Moura

10 Reflexões sobre o processo administrativo à luz do estado democrático de direito e sua implantação eletrônica como uma ferramenta de gestão na Administração Pública..................369Marize Anna Monteiro de Oliveira Singui

11 Uma constituição para Israel..........................................417Roberto Ferreira da Silva

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EDITORIAL

O Centro de Estudos Jurídicos da Procuradoria Geral do Estado tem o prazer de apresentar à comunidade jurídica e a sociedade em geral a 6ª edição da Revista da Procuradoria Geral do Estado do Acre, que vem emoldurada pela magnífica obra do artista plástico acriano, Maqueson Pereira da Silva, que através da marchetaria, não apenas exercita a sua paciência em uma técnica exigente, mas também, recria e inova, a partir dos materiais que a floresta amazônica lhe concede: galhos, raízes, madeiras, folhas, que em suas mãos se transformam em raras obras de arte.

Nesse espírito, a publicação da 6ª Revista é mais uma contribuição que a PGE/AC oferece à sociedade acriana, com o intuito de divulgar os trabalhos científicos do corpo de Procuradores de Estado, que espelham a atuação de uma instituição que recria e inova a realidade acriana, seja na defesa judicial do Erário, seja ao viabilizar a consecução de políticas públicas.

Cumprindo sua missão institucional, o Centro de Estudos estimula o contínuo aperfeiçoamento técnico-profissional dos procuradores estaduais, assim como dissemina o conhecimento e compartilha com a comunidade em geral o posicionamento desses profissionais que atuam em defesa do interesse público.

Essa edição, em especial, foi brindada com artigo do professor pós-doutor e processualista Fredie Diddier Jr.,

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escrito em parceria com o doutor Hermes Zaneti Jr., sobre o

mandado de segurança coletivo e a Lei n. 12.016/2009. Os demais artigos científicos de autoria dos

Procuradores do Estado do Acre foram selecionados pela Comissão Editorial tendo como referência o tema “A Advocacia Pública no século XXI”, como forma de buscar mecanismos hábeis e ágeis para enfrentar a nova realidade de uma sociedade complexa e globalizada, sem perder a sensibilidade para as questões regionais e locais, tão peculiares e diferenciadas.

As reflexões encetadas nos diversos artigos demonstram a preocupação com a atuação da Procuradoria do Estado na preservação do meio ambiente, aqui abordados em mais de um trabalho, bem como a acuidade na combativa atuação em prol do erário público e da sociedade, além de outras questões processuais que se busca difundir como forma de compartilhar o conhecimento.

Essa disseminação do conhecimento nos remete aos ensinamentos de Platão, que no Mito da Caverna (narrado por Platão no livro VII do República) recomenda que os “sábios devem socializar o conhecimento”, isto é, o conhecimento do sábio deve ser compartilhado com seus semelhantes, deve estar à serviço da cidade.

Acreditamos que, de fato, de nada adiantaria realizar um excelente trabalho na defesa diária dos direitos da cidadania, da dignidade humana e do próprio Estado, se tal trabalho não fosse levado ao conhecimento de todos, como forma de multiplicar, difundir e compartilhar aprendizados e conhecimentos, que estão sempre em construção.

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Ademais, cremos que a construção de uma Instituição forte transita igualmente pela transparência de suas ações, missão esta também cumprida pela Revista da PGE na medida em que são publicados diversos trabalhos científicos, resultantes da atuação profissional dos Procuradores do Estado do Acre.

Dentre as contribuições merecem destaque:

Os artigos do ilustre Procurador Rodrigo Fernandes das Neves, mestre em Direito, cujos temas abordam matéria de extrema relevância: “Ativismo Judicial: objeções à intervenção do judiciário na formulação e execução de políticas públicas ambientais”, em que faz breves considerações sobre o Sistema Nacional de Meio Ambiente, destacando de que forma as decisões judiciais ilegítimas podem vir a interferir profundamente nessa estrutura de forma danosa. Estabelece, a partir das considerações, marcos referenciais que permitem decidir de forma aprofundada e consciente sobre os papéis institucionais dos Poderes e as condições necessárias à ação autônoma da sociedade.

E a “Política da Valorização do Ativo Ambiental Rural”, em que trabalho procura esclarecer a interpretação da norma estadual em conformidade com o sistema jurídico nacional e com as discussões realizadas no Grupo de Trabalho que produziu a norma. Dentre as dúvidas que surgiram na execução e aplicação da norma estadual, as principais giram em torno de duas questões centrais: forma de averbação de reserva legal e critério para imposição de multa. As dúvidas decorrem do fato de que, em determinadas áreas, a reserva

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legal, para efeito de compensação do passivo ambiental, fora reduzido de 80% para 50%, mas com uma série de nuances que exigem uma interpretação cuidadosa e detida, sob pena de criar condições desfavoráveis para a segurança jurídica das políticas públicas estaduais.

O artigo da Procuradora Caterine Vasconcelos de Castro, mestre em Direito, cujo tema “O papel do Estado na proteção do conhecimento tradicional associado à biodiversidade dos povos indígenas” aborda especificamente o conhecimento tradicional associado à biodiversidade dos povos indígenas, a partir da contextualização da nova ordem econômica e regras pertinentes inscritas nas convenções internacionais existentes, para então encetar considerações acerca do papel do Estado enquanto garantidor do direito fundamental a um meio ambiente saudável e o direito à autodeterminação e sustentabilidade dos povos indígenas.

Constitui objeto de valiosa e oportuna análise, o artigo do Procurador Luciano José Trindade, mestre em Direito, cujos “Apontamentos sobre a consolidação do território acriano - das disputas entre Portugal e Espanha à fixação definitiva da divisa interestadual Acre/Amazonas pelo constituinte de 1988”, retrata a história da integração das terras acrianas ao território brasileiro e a consolidação atual das fronteiras do Estado do Acre, com especial destaque à divisa interestadual Acre/Amazonas. Para tanto, enfoca-se o papel de árbitro exercido pela Igreja Católica nas disputas havidas entre Espanha e Portugal pela exploração e domínio das terras do novo mundo, bem como as influências dos fatores naturais

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e do uti possidetis na configuração geopolítica da região amazônica. Por fim, explana-se sobre as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Civil Originária 415-2 e na Reclamação Constitucional 1421-5, garantindo ao Estado do Acre o acréscimo territorial de aproximadamente 11,5 mil km2 e determinando a fixação de nova linha divisória entre os estados do Acre e do Amazonas.

Ademais, imprescindível a contribuição do Procurador Roberto Barros dos Santos na elaboração do artigo “Gestão de Dívidas Públicas Reconhecida em Juízo”. Este trabalho examina a temática alusiva à gestão das dívidas públicas reconhecidas em juízo, conferindo-lhe um enfoque técnico, realista e responsável que vai além da identificação do problema (atraso dos pagamentos das dívidas), das desculpas destituídas de razoabilidade e das soluções simplistas, irreais e sofisticas. Visando o enfrentamento adequado do assunto correspondente à gestão das dívidas públicas reconhecidas em juízo, fazendo-se algumas considerações sobre o sistema jurídico-constitucional, as causas e ações que efetivamente estão solucionando o problema.

Deve-se destacar, ainda, a relevante contribuição do Procurador José Rodrigues Teles, na abordagem do tema “Contratação de empresa particular para execução de obra pública: por que surgem controvérsias jurídicas entre o INSS e diversos órgãos da Administração relativamente às obrigações para com a seguridade social?” A experiência colhida em alguns processos que tramitam na Procuradoria Especializada Fiscal impulsionou a realização deste trabalho,

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tendo em vista que a questão das obrigações para com a Seguridade Social vem gerando controvérsias jurídicas entre a Previdência Social e outros Órgãos e Entidades da Administração Pública, tendo estes sido, reiteradamente, notificados como responsáveis solidários pelo pagamento de contribuições previdenciárias devidas por empresas contratadas para a execução de obras públicas.

De igual modo, registra-se relevante artigo do Procurador João Paulo Aprigio de Figueiredo em parceria com o Assessor Jurídico Alexsandro Silva de Souza, em que traz à baila “Reflexões sobre a revisão de enquadramento nos planos de cargos carreira e remuneração dos servidores públicos e a prescrição quinquenal (trato sucessivo) e de fundo de direito.” O presente trabalho consiste em identificar os limites na revisão dos enquadramentos, instituto que surge, sinteticamente, dos adventos de novos Planos de Cargos Carreira e Remuneração, os PCCR’s, analisando até quando se apresenta possível rever o ato ou perceber vantagens pecuniárias que deles possam advir. Relevante, ainda, apresenta-se o intuito de descortinar a íntima conexão existente entre o instituto da prescrição e o ato de enquadramento, o que desaguará na acentuada distinção entre prescrição do próprio fundo de direito e a prescrição de trato sucessivo.

Para enriquecer ainda mais esta produção científica, destaca-se o artigo do Procurador Cristovam Pontes de Moura, cujo tema “Juízo de admissibilidade e de cognição sumária no agravo por instrumento: aparente simbiose”. O presente estudo visa analisar a aparente simbiose entre o

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juízo de admissibilidade e de cognição sumária no agravo por instrumento no que concerne ao critério da urgência, em razão da modificação introduzida pela Lei n° 11.187/2005 no art. 522, caput, do Código de Processo Civil, que passou a exigir, para exame de prelibação positivo deste recurso, que a decisão agravada fosse suscetível de causar à parte “lesão grave e de difícil reparação”, requisito, a princípio, similar ao periculum in mora exigido para a concessão de efeito suspensivo ou ativo ao agravo pelo relator.

Também há que se registrar o aspecto inovador e objetivo, abordados no artigo da Procuradora Marize Anna Monteiro de Oliveira Singui, que traz à lume “Reflexões sobre o processo administrativo à luz do estado democrático de direito e sua implantação eletrônica como uma ferramenta de gestão na administração pública”. O estudo se propõe a realizar reflexões, que visam proporcionar aos leitores um novo olhar desse importante instituto jurídico, que é o processo administrativo, antes focado somente como um instrumento de defesa do cidadão em face à Administração Pública, para resgatar seus vários aspectos particulares, que o transformam em um importante instrumento de controle, de participação popular e de gestão democrática.

Registramos, ainda, o excelente artigo do Procurador Roberto Ferreira da Silva, em que faz uma profunda análise sobre “Uma constituição para Israel”. Esse artigo recebeu do Juiz Mário Klein, único brasileiro a atuar em um tribunal israelense, reconhecimento pela abrangente análise de sua produção e carta de recomendação com indicação para

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publicação. O referido trabalho expõe alguns fatos relevantes

que possam auxiliar o entendimento da complexa teia de relações que orbitam em torno do núcleo da própria existência do Estado de Israel, e como isso repercute nas suas instituições e no destino de seu povo, visando um breve estudo sobre o problema constitucional, levando-se em consideração as particularidades que a distingue das demais nações.

Por fim, registra-se que os temas aqui abordados, embora de autoria de alguns membros da carreira, traduzem o ideal e dedicação do corpo de Procuradores do Estado do Acre em construir uma sociedade mais justa, solidária, ética e democrática.

Comissão Editorial da Revista

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Maqueson Perreira da Silva é um filho da floresta. Nasceu no dia 30 de agosto de 1958, no Seringal Flora, muni-cípio de Porto Walter. Aos 18 anos, com ajuda dos padres ale-mães, foi como seminarista estudar em Santa Catarina, onde aprendeu as primeiras lições de marchetaria. Após uma década de ensinamentos e aprendizados voltou para o Acre, mais es-pecificamente para Cruzeiro do Sul, onde abriu sua oficina e, desde então, passou a ensinar essa arte a outros jovens. As obras de Maqueson carregam o cheiro e as cores das mais diversas espécies de árvores e plantas amazônicas. A sua inspiração, criatividade, vem da sabedoria de viver em paz com a floresta, utilizando-se de forma racional de seus recur-sos naturais, aparentemente sem utilidade, em que pequenos pedaços de madeira como o mogno, que não servem mais para a indústria moveleira, nas mãos dele viram peças exclusivas e de infinita beleza. O material recolhido é transformado em lâminas, que conservam os desenhos da madeira. As folhas vão ganhan-do formas, paisagens. É tão delicado, tão perfeito, que parece uma pintura. Entretanto, não há um pingo de tinta nos quadros. Só as cores naturais de uma Amazônia morta pelas queimadas e pelos desmatamentos, mas que nas mãos desse artista ganha vida novamente.

APRESENTAÇÃO: ARTISTA MAQUESON

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Os temas de seus trabalhos são sempre a beleza exu-berante da Amazônia, seus rios, fauna, flora, história, música e tipos humanos. São as mais diversas as peças produzidas: cai-xas, porta-jóias, painéis, quadros, tampos de mesa e bandejas, dentre outras, cujas obras encantam pessoas de varias partes do mundo. Nesse contexto, esse talentoso artista vem introdu-zindo profundas transformações na cultura acriana e implemen-tando o fomento da divulgação da cultura artística amazônica, com especial enfoque nas obras que retratam a bela paisagem e o viver do amazônida, minuciosamente detalhadas.

Comissão Editorial da Revista

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1Fredie Didier Jr. Hermes Zaneti Jr.

O Mandado de Segurança Coletivo e a Lei n. 12.016/2009

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O MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO E A LEI N. 12.016/2009

Fredie Didier Jr.1•

Hermes Zaneti Jr.••

Introdução. 1 “Legitimidade ad causam ou ad processum” no mandado de segurança coletivo. Perspectivas. 2 Mandado de segurança coletivo e os direitos difusos.3 Limites subjetivos da coisa julgada no mandado de segurança coletivo. Insuficiência do regramento legal. Apelo ao microssistema da tutela coletiva. 4 Direito de auto-exclusão da abrangência da jurisdição coletiva. Regra inadequada. Possível inconstitucionalidade. Apelo ao microssistema da tutela coletiva. 5 Necessidade de prévia ouvida da pessoa jurídica de direito público para a concessão de liminar no mandado de segurança coletivo. Bibliografia.

• Professor-adjunto de Direito Processual Civil da Universidade Federal da Bahia. Mestre (UFBA), Doutor (PUC/SP) e Pós-doutor (Universidade de Lisboa). Advogado e consultor jurídico. www.frediedidier.com.br.

•• Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Espírito Santo. Mestre e Doutor (UFRGS). Promotor de jus-tiça (MP-ES).

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INTRODUÇÃO

A Lei n. 12.016/2009 visa a regulamentar o mandado de segurança individual e coletivo.

Em relação ao mandado de segurança individual, não trouxe grandes novidades, restringindo-se, basicamente, a compilar a legislação que até então existia (Leis n. 1.533/1951, 4.348/1964 e 5.021/1966) e as súmulas dos tribunais superiores. No que diz respeito ao mandado de segurança coletivo, a situação é um tanto diversa, pois a lei trouxe dois novos textos normativos (arts. 21 e 22), que não tinham correspondente na legislação anterior.

Este artigo cuida de examinar os dispositivos dedicados ao mandado de segurança coletivo, cujo regramento pela Lei n. 12.016/2009 dificilmente poderia ter sido pior.

“LEGITIMIDADE 1 ad causam OU ad processum” NO MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO. PERSPECTIVAS.

O art. 5º, LXX, da CF/88 determina que “o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por: a) partido político com representação no Congresso Nacional; b) organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados”.

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A doutrina, de um modo geral, examina o inciso como legitimidade ad causam ativa para a propositura do mandado de segurança coletivo.

Não parece, porém, que este seja o único caminho. Gostaríamos de propor, para reflexão, as seguintes ponderações, ao final fazendo considerações gerais que são aplicáveis à nova regra do art. 21 da Lei 12.016/09.

Como se sabe, a legitimidade ad causam é a capacidade de conduzir um processo em que se discute determinada situação jurídica substancial. A legitimidade é uma capacidade que se atribui a um sujeito de direito tendo em vista a relação que ele mantém com o objeto litigioso do processo (a situação jurídica afirmada na demanda). Para que se saiba se a parte é legítima, é preciso investigar o objeto litigioso do processo, a situação concretamente deduzida pela demanda. Não se pode examinar a legitimidade a priori, independentemente da situação concreta que foi submetida ao Judiciário. Não existe parte em tese legítima; a parte só é ou não legítima após o confronto com a situação concreta submetida ao Judiciário.

Esta construção nova auxilia a resolver dois problemas sempre presentes na disciplina do processo coletivo: a) o confronto entre as correntes da legitimação autônoma para a condução do processo (Prozessführungsrecht) e da legitimação por substituição processual; b) a dissociação entre os momentos ope legis e ope judicis, para controle da adequada representação.

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Assim, o texto constitucional não cuida, nem poderia cuidar, de legitimidade ad causam para o mandado de segurança coletivo. A legitimidade para o mandado de segurança coletivo será aferida a partir da situação litigiosa nele afirmada, ou seja, ope judicis.

A norma constitucional, na verdade, atribui capacidade processual aos partidos políticos e às entidades de classe para valer-se do procedimento do mandado de segurança (ope legis).

Trata-se de regra semelhante ao § 1º art. 8º da Lei n. 9.099/1995, que atribui apenas às pessoas físicas capazes, às microempresas, às Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público e às sociedades de crédito ao microempreendedor (conforme a redação trazida pela Lei 12.126/2009) a capacidade processual para demandar nos Juizados Especiais Estaduais (o caput do art. 8º exclui a capacidade processual, para demandar e ser demandado nos Juizados, do incapaz, do preso, das pessoas jurídicas de direito público, das empresas públicas da União, da massa falida e do insolvente civil”).

A questão que surge é a seguinte: os outros legitimados à tutela coletiva, não previstos no inciso LXX do art. 5º da CF/88, têm capacidade processual para valer-se do procedimento do mandado de segurança coletivo? A CF/88, ao atribuir a capacidade processual referida, limita-a aos partidos políticos e às entidades de classe, ou apenas assegura que eles a possuem?

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Parece que a melhor solução é, realmente, entender que se trata de uma garantia constitucional mínima atribuída aos partidos políticos e às entidades de classe.

É absolutamente irrazoável defender que as demais associações civis e o Ministério Público (outros legitimados à tutela coletiva não previstos no texto constitucional) não têm capacidade processual para valer-se do procedimento do mandado de segurança. Podem valer-se de qualquer procedimento previsto em lei (art. 83 do CDC), mas logo em relação ao mandado de segurança, que é direito fundamental, lhes faltaria capacidade processual. Perceba: podem levar a juízo a afirmação de um direito coletivo por meio de um procedimento comum, mas não podem fazê-lo por meio do procedimento especial do mandado de segurança. Partindo da premissa de que um direito fundamental pode sofrer restrições por lei infraconstitucional, desde essa restrição encontre fundamento constitucional, pergunta-se: qual a justificativa constitucional para a restrição do direito fundamental de acesso à justiça por meio do mandado de segurança ao Ministério Público, associações civis e outros legitimados não mencionados no inciso LXX do art. 5º da CF/88?2 Nenhuma.

É inconstitucional, portanto, qualquer interpretação do art. 21 da Lei n. 12.016/20093, que praticamente reproduziu

2 Como, por exemplo, a Defensoria Pública.3 Art. 21 da Lei n. 12.016/2009: “O mandado de segurança coletivo pode

ser impetrado por partido político com representação no Congresso Na-cional, na defesa de seus interesses legítimos relativos a seus integrantes ou à finalidade partidária, ou por organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há, pelo me-

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o texto constitucional, que reconheça a incapacidade processual dos demais legitimados à tutela coletiva para valer-se do procedimento do mandado de segurança coletivo.

Foi dito que o art. 21 da Lei n. 12.016/2009 “praticamente” reproduziu o texto constitucional, porque se introduziu um excerto, que não consta da CF/88, relativo, aí sim, à legitimidade dos partidos políticos: o mandado de segurança coletivo por eles impetrado deve sê-lo “na defesa de seus interesses legítimos relativos a seus integrantes ou à finalidade partidária”. Trata-se de consagração de entendimento de que a legitimidade coletiva, mesmo aquela atribuída aos partidos políticos, não pode ser universal; é preciso que se verifique a sua adequação. Um dos critérios de adequação da legitimação é, exatamente, a pertinência temática, agora expressamente consagrada em tema de mandado de segurança coletivo. Sucede que a situação, neste caso, é um tanto diversa do ponto de vista constitucional, pois: a) se a legitimação dos partidos políticos para as ações diretas de constitucionalidade não exige pertinência temática, porque haveria de exigi-la o MSC; b) os partidos políticos não existem em razão dos interesses de seus membros, mas sim de um programa de governo, logo o controle de sua legitimidade não pode ser restrito aos interesses dos filiados; c) a Constituição não limitou a legitimação dos partidos políticos, subjetiva ou objetivamente, justamente por valorizar estes corpos intermediários da sociedade civil

nos, 1 (um) ano, em defesa de direitos líquidos e certos da totalidade, ou de parte, dos seus membros ou associados, na forma dos seus estatutos e desde que pertinentes às suas finalidades, dispensada, para tanto, autori-zação especial”.

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como entes vocacionados à defesa da sociedade em face das lesões das pessoas jurídicas de direito público ou no exercício de função delegada do Poder Público já que a sua finalidade é transformar a sociedade e consequentemente fiscalizar o Poder Público no exercício de seus deveres constitucionais.

Uma última observação, a jurisprudência e a doutrina têm entendido que o requisito da constituição há mais de um ano diz respeito apenas às associações, não atingindo os demais legitimados (partidos políticos, entidades de classe e sindicatos). Entendemos, ainda, que como se trata de ação coletiva, ao aplicar o microssistema, aplica-se também a regra do art. 5º, § 4º, que permite a dispensa da prévia constituição4.

MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO E OS 2 DIREITOS DIFUSOS.

Questão das mais tormentosas, na aplicação do princípio da atipicidade da tutela coletiva, é a de saber se é possível tutelar direito difuso por meio do mandado de segurança.

A CF/88 conferiu ao mandado de segurança o status de direito fundamental individual e coletivo. Prescreve que o mandado de segurança será concedido a “direito líquido e certo não amparável por habeas data ou habeas corpus”. Qualquer

4 No sentido contrário cf. Cássio Scarpinella Bueno, alegando a falta de menção expressa da nova Lei à possibilidade de dispensa, a nosso ver, contrariando o resto da excelente obra do autor, leitura puramente grama-tical do sistema.

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direito, portanto, pode ser tutelado por mandado de segurança, desde que seus fundamentos fáticos possam ser comprovados documentalmente.

A Constituição reconhece expressamente a existência dos direitos e deveres individuais e coletivos como direitos e garantias fundamentais, sendo que o writ do mandado de segurança está previsto exatamente neste capítulo. Ter um direito sem ter uma ação adequada para defendê-lo significa não poder exercê-lo, o que fere de morte a promessa constitucional e a força normativa da Constituição que dela decorre. Seria o equivalente a tornar flatus vocis, bocas sem dentes, as garantias constitucionais.

O processo de mandado de segurança tem rito célere e tradição constitucional longeva, que remete a formação da República no Brasil, sendo resultado histórico da antiga luta de Rui Barbosa para assegurar a tutela dos direitos civis por meio de remédio processual de matriz constitucional, o mandado de segurança.

Qualquer restrição ao mandado de segurança deve ser compreendida como restrição a um direito fundamental e, como tal, deve ser justificada constitucionalmente.

O parágrafo único do art. 21 da Lei n. 12.016/2009 restringe, porém, o objeto do mandado de segurança coletivo aos direitos coletivos em sentido estrito e aos direitos individuais homogêneos5.

5 Parágrafo único. Os direitos protegidos pelo mandado de segurança co-letivo podem ser: I – coletivos, assim entendidos, para efeito desta Lei, os transindividuais, de natureza indivisível, de que seja titular grupo ou categoria de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma

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A regra é flagrantemente inconstitucional.Trata-se de violação ao princípio da inafastabilidade

(art. 5º, XXXV, CF/88), que garante que nenhuma afirmação de lesão ou de ameaça de lesão a direito será afastada da apreciação do Poder Judiciário. Esse princípio garante o direito ao processo jurisdicional, que deve ser adequado, efetivo, leal e com duração razoável. O direito ao processo adequado pressupõe o direito a um procedimento adequado, o que nos remete ao mandado de segurança, direito fundamental para a tutela de qualquer situação jurídica lesada ou ameaçada, que garante o direito Afasta-se a possibilidade de o direito difuso ser tutelado por mandado de segurança, um excelente instrumento processual para a proteção de direitos ameaçados ou lesados por atos de poder. O direito difuso seria, então, o único direito que, sendo líquido e certo, não poderia ser tutelado por meio do mandado de segurança. Isso não tem justificação constitucional.

Além disso, o texto normativo está em descompasso com a evolução da tutela coletiva no direito brasileiro, especialmente o mandado de segurança coletivo. Muito se discutiu nos primeiros anos de aplicação se o mandado de segurança coletivo deveria tutelar apenas direitos coletivos (interpretação literal), direitos individuais homogêneos (direitos acidentalmente coletivos) ou também direitos difusos. A tese vencedora na doutrina6

relação jurídica básica; II – individuais homogêneos, assim entendidos, para efeito desta Lei, os decorrentes de origem comum e da atividade ou situação específica da totalidade ou da parte dos associados ou membros do impetrante.

6 NERY Jr., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Fe-

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e na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal foi a que garantiu a maior amplitude da tutela, alcançando todos os direitos coletivos lato sensu (difusos, coletivos stricto sensu e individuais homogêneos). Nesse sentido:

[...] expresso meu entendimento no sentido de que o mandado de segurança coletivo protege tanto os interesses coletivos e difusos, quanto os direitos subjetivos.7

Também neste sentido, o voto da Min. Ellen Gracie, no STF, Pleno, RE n. 196.184, j. em 27.10.2004:

À agremiação partidária, não pode ser vedado o uso do mandado de segurança coletivo em hipóteses concretas em que estejam em risco, por exemplo, o patrimônio histórico, cultural ou ambiental de determinada comunidade. Assim, se o partido político entender que determinado direito difuso se encontra ameaçado ou lesado por qualquer ato da administração, poderá fazer uso do mandado de segurança coletivo, que não se restringirá apenas aos assuntos relativos a direitos políticos e nem a seus integrantes.8

Uma interpretação literal do art. 21 da Lei n. 12.016/2009 implicaria grave retrocesso social, com prejuízo a tutela constitucionalmente adequada (art. 5º, XXXV c/c art. 83 do CDC – princípio da atipicidade das ações coletivas).

deral Comentada e Legislação Extravagante. São Paulo: RT, 2006, p. 139.

7 STF.RE 181.438-1/SP, Tribunal Pleno, rel. Min. Carlos Velloso, RT 734/229.

8 RE n. 196.184, transcrições, Bol. Informativo do STF n. 372.

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Cabe ao aplicador dar a interpretação conforme do texto normativo, para adequá-la ao microssistema da tutela coletiva e à Constituição Federal9.

LIMITES SUBJETIVOS DA COISA JULGADA 3 NO MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO. INSUFICIêNCIA DO REGRAMENTO LEGAL. APELO AO MICROSSISTEMA DA TUTELA COLETIVA.

O caput do art. 22 da Lei n. 12.016/2009 cuida dos limites subjetivos da coisa julgada no mandado de segurança coletivo: “No mandado de segurança coletivo, a sentença fará coisa julgada limitadamente aos membros do grupo ou categoria substituídos pelo impetrante”. O texto normativo não

9 Na doutrina, que começa a manifestar-se sobre a nova lei, muitos enten-dem no mesmo sentido, entre estes, Cássio Scarpinella Bueno. BUENO, Cássio Scarpinella. A Nova Lei do Mandado de Segurança. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 130; Luiz Manoel Gomes Jr. e Rogério Favreto. “Co-mentários ao art. 21”. In: GOMES JUNIOR, Luiz Manoel; FAVRETO. Comentários à Nova Lei do Mandado de Segurança: Lei 12.016, de 7 de agosto de 2009. São Paulo: RT, 2009, p. 191. No sentido contrário, sustentando posição inadmissível e valendo-se de equivocado argumento de autoridade na jurisprudência do STF – lembra-se que nos precedentes acima o Tribunal reconheceu possível a tutela de direitos difusos me-diante o MSC -, cf. José Miguel Garcia Medina e Fábio Caldas de Araú-jo. MEDINA, José Miguel Garcia; ARAÚJO, Fábio Caldas. Mandado de Segurança Individual e Coletivo: comentários à lei 12.016, de 7 de agosto de 2009. São Paulo: RT, 2009, p. 208. Note, ainda, que a referên-cia no texto ao n. 101 da súmula do STF é inapropriada, vez que ela, em verdade, decorre da interpretação do Supremo ainda sobre a Constituição de 1946, conforme se constata da simples pesquisa no sitio do Tribunal na internet, época em que não se discutia no Brasil o Mandado de Segu-rança Coletivo e muito menos os direitos difusos.

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é uma inovação: limita-se a afirmar que a coisa julgada vincula o grupo titular do direito coletivo objeto do mandado de segurança. Nada demais, portanto.

O regime jurídico da coisa julgada não se compõe apenas pela definição dos seus limites subjetivos.

É preciso definir qual é a técnica de produção da coisa julgada, se pro et contra, secundum eventum litis ou secundum eventum probationis. A Lei n. 12.016/2009 nada disse a respeito deste tema.

A ausência de regramento pode ser constatada após confrontarmos o texto do art. 22 com o texto do inciso II do art. 103 do CDC, que cuida do regime da coisa julgada para os processos em que se discute direito coletivo (que também pode ser objeto de um mandado de segurança coletivo).

Eis o texto do art. 103, II, CDC:

Nas ações coletivas de que trata este código, a sentença fará coisa julgada: ultra partes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou classe, salvo improcedência por insuficiência de provas, nos termos do inciso anterior, quando se tratar da hipótese prevista no inciso II do parágrafo único do art. 81.

Note que há duas regras bem definidas neste inciso: a coisa julgada é ultra partes (limite subjetivo) e secundum eventum probationis (“salvo improcedência por insuficiência de provas”, técnica de produção). Nada há na Lei n. 12.016/2009 a respeito da técnica de produção da coisa julgada, como se pode perceber após a leitura do art. 22, já mencionado.

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Há, pois, lacuna normativa.Três são, teoricamente, as soluções possíveis. A primeira delas é considerar que o modo de

produção de coisa julgada é o pro et contra, inclusive para os titulares dos direitos individuais considerados como “substituídos”, modo típico e adequado para o processo individual. Essa solução é inaceitável: a solução da lacuna deve ser buscada dentro do microssistema da tutela jurídica coletiva, e não fora dele, mormente se a opção revelar-se pior do que o modelo geral de coisa julgada previsto no CDC. Não parece constitucional atribuir ao mandado de segurança coletivo, que é um direito fundamental, um modelo de coisa julgada mais prejudicial às situações jurídicas coletivas do que aquele previsto na legislação comum para a tutela coletiva. Um direito fundamental merece interpretação de melhor quilate.

A segunda opção é considerar que a coisa julgada no mandado de segurança coletivo segue o modelo da coisa julgada do mandado de segurança individual, que é secundum eventum probationis. A opção é aceitável, mas não é conveniente. É que o módulo probatório do mandado de segurança é exclusivamente documental. Pode acontecer de a decisão denegatória do mandado de segurança basear-se na prova produzida (denega-se por ausência de direito, e não por ausência de prova documental): nesse caso, há coisa julgada material, a despeito do juízo de improcedência. Mesmo se o impetrante obtiver outra prova documental, não poderá renovar a sua demanda, por mandado de segurança ou por qualquer outro procedimento. Há coisa julgada.

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A terceira opção parece ser a mais simples e, talvez por isso mesmo, a mais correta. Diante da lacuna, busca-se no microssistema a solução para o impasse. O modo de produção da coisa julgada no mandado de segurança coletivo é o mesmo previsto genericamente para as ações coletivas e está regulado no art. 103 do CDC: secundum eventum probationis, sem qualquer limitação quanto ao novo meio de prova que pode fundar a repropositura da demanda coletiva. A extensão subjetiva da coisa julgada coletiva será secundum eventum litis, sem prejuízo das pretensões dos titulares de direitos individuais, mesmo no caso da desistência do processo prevista no § 1º do mesmo artigo, já que sabidamente a desistência não embaça a repropositura da demanda (art. 267, VIII do CPC).

Trata-se de solução mais adequada, porque mantém a coerência do sistema e evita o retrocesso em tema de mandado de segurança, que é um direito fundamental.

DIREITO DE AUTO-ExCLUSÃO DA ABRANGêNCIA 4 DA JURISDIÇÃO COLETIVA. REGRA INADEQUADA. POSSíVEL INCONSTITUCIONALIDADE. APELO AO MICROSSISTEMA DA TUTELA COLETIVA.

O § 2º do art. 22 da Lei n. 12.016/2009 é regra nova no microssistema da tutela jurisdicional coletiva.

Para bem compreender a extensão da novidade, é preciso compreender o que significa o direito de auto-exclusão da jurisdição coletiva.

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O direito à auto-exclusão da jurisdição coletiva consiste no poder jurídico de o indivíduo, por expressa manifestação de vontade, renunciar à jurisdição coletiva. Exercido esse direito, a jurisdição coletiva não produzirá efeitos na situação jurídica do indivíduo que se excluiu.

O exercício do right to opt out não implica renúncia da situação jurídica individual: o indivíduo não “abre mão” do seu direito à indenização, por exemplo; ele não quer, isso sim, que esse direito seja tutelado no âmbito coletivo, pois prefere, pelas mais variadas razões, a tutela jurisdicional individual. Ao excluir-se, o indivíduo “não será prejudicado pela sentença desfavorável” e “também não poderá ser, naturalmente, beneficiado pela coisa julgada da sentença favorável”10.

Nem todo sistema jurídico, que prevê a tutela coletiva, contém regramento sobre o direito de auto-exclusão.

No direito estadunidense, por exemplo, as ações coletivas (class actions) previstas no art. 23, (b)(1) e (b)(2), das Federal Rules, não permitem auto-exclusão: são, por isso, denominadas de mandatory class action ou no opt out class action11.

Ou seja: não há um imperativo teórico que imponha a existência da possibilidade de o indivíduo excluir-se da jurisdição coletiva.

Há um outro ponto digno de nota: a existência do direito à auto-exclusão pressupõe, logicamente, um prejuízo; por exemplo, que a coisa julgada coletiva estenda os seus

10 GIDI, Antonio. A class action como instrumento de tutela coletiva dos direitos. São Paulo: RT, 2007, p. 300.

11 Id,ibidem. p. 291.

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efeitos para o âmbito individual, qualquer que seja o resultado do processo (pro et contra) 12.

De fato, só há sentido em permitir que o indivíduo se exclua voluntariamente da jurisdição coletiva se ela puder prejudicá-lo. Este prejuízo poderá decorrer da espera pelo julgamento do processo coletivo, pela ausência de confiança no sistema processual coletivo e pela simples vedação da tutela individual, o que será averiguado pelo autor da ação individual, no nosso sistema, titular exclusivo deste direito.

O direito brasileiro não prevê a possibilidade de o indivíduo excluir-se da jurisdição coletiva por simples comunicação nos autos do processo.

Isso decorre da regra da eficácia apenas in utilibus da coisa julgada coletiva na esfera individual.

O tema não passou despercebido por Antonio Gidi, especialista no tema:

Não faz qualquer sentido permitir aos membros se excluírem do [...] grupo, uma vez que eles não serão mesmo atingidos pela coisa julgada desfavorável. Não haverá do que se excluir13.

Se o indivíduo não quiser o benefício que advém do processo coletivo, basta, simplesmente, que não proceda à liquidação e execução da sua pretensão individual.

No Brasil, como regra geral, para que o indivíduo se exclua da jurisdição coletiva, é preciso que, proposta sua

12 Id,ibidem. p. 306. 13 GIDI, Antonio. A class action como instrumento de tutela coletiva

dos direitos, cit., p. 306.

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ação individual e devidamente cientificado da existência de um processo coletivo, decida pelo prosseguimento do processo individual (art. 104, CDC; art. 22, § 1º, Lei n. 12.016/2009). Esse é o modo de abdicar expressamente da jurisdição coletiva no direito brasileiro, ato que não implica, repita-se, renúncia ao direito discutido.

O art. 104 do CDC dispõe que os efeitos a coisa julgada coletiva não beneficiarão o indivíduo, que tiver proposto a sua ação individual, se não for requerida sua suspensão no prazo de trinta dias, a contar da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva. Isso significa que se estiver pendente uma ação individual e uma ação coletiva correspondente, para que o indivíduo se beneficie da coisa julgada coletiva, é preciso que ele peça a suspensão do seu processo individual, no prazo de trinta dias contados do conhecimento efetivo da existência do processo coletivo.

O prosseguimento do processo individual (iniciado antes ou depois da propositura da ação coletiva, pouco importa) significará a exclusão do indivíduo-autor dos efeitos da sentença coletiva. Para tanto, é preciso que o indivíduo tenha optado pela continuação do seu processo individual, a despeito da existência do processo coletivo. Essa opção, porém, somente pode será válida, se lhe foi garantida a ciência inequívoca da existência do processo coletivo. A ciência pode ser verificada de forma inequívoca quando ocorrer nos autos do processo. Trata-se de pressuposto para o exercício regular, pelo indivíduo do right to opt out, ou o direito de optar por ser excluído da abrangência da decisão coletiva.

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O § 1º do art. 22 da Lei n. 12.016/2009 foge à regra geral do microssistema: o indivíduo deverá desistir do mandado de segurança individual, em vez de pedir a suspensão do processo. A regra é estranha e pode revelar-se inconstitucional se, no caso concreto, a desistência implicar a perda do direito fundamental ao mandado de segurança, que deve ser exercitado em cento e vinte dias (art. 23 da Lei n. 12.016/2009). Seria restrição irrazoável ao direito fundamental ao mandado de segurança.

Explica-se: a desistência do mandado de segurança, embora não implique decisão de mérito (e, portanto, suscetível de tornar-se indiscutível pela coisa julgada material), pode redundar na perda do direito fundamental ao mandado de segurança, que não poderia ser renovado, após eventual insucesso do mandado de segurança coletivo, em razão da necessidade de observância do prazo de cento e vinte dias previsto no art. 23 da mesma lei. Pode ser que a desistência não implique necessariamente essa perda (como nos casos de mandado de segurança contra omissão, que não se submete ao mencionado prazo). Mas a regra será a perda da oportunidade de discutir o seu direito individual por mandado de segurança.

Assim, dificilmente o impetrante desistirá do mandado de segurança, com toda razão. A situação que se pretendia evitar (pendência da ação coletiva e de ação individual sobre o mesmo tema) permanecerá ocorrendo. A solução legislativa é bem ruim.

O dispositivo tende a tornar-se letra morta. A

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tendência é a de a jurisprudência considerar que o mais adequado é a suspensão do processo individual, conforme a regra geral do microssistema. Esta interpretação pode, inclusive, fundamentar-se na relação de preliminaridade (a procedência da ação coletiva torna desnecessário o julgamento de mérito da ação individual) entre a ação coletiva e a ação individual, que autoriza a suspensão do processo individual com base no art. 265, IV, “a”, CPC.

Não será a primeira vez que regras processuais precisam ser adequadas às peculiaridades do mandado de segurança.

O § 1º do art. 21 do Regimento Interno do STF autorizava o relator a extinguir o processo, em caso de incompetência. A regra excepcionava o CPC, que determina a remessa dos autos ao juízo competente nos casos de reconhecimento da incompetência (art. 113, § 2º, do CPC). O STF percebeu que, se a regra do seu Regimento fosse aplicada ao mandado de segurança, o impetrante não teria mais como impetrar o seu mandado de segurança perante o tribunal competente, exatamente em razão do mencionado prazo14. Assim, o dispositivo foi alterado (Emenda Regimental n. 21/2007), para reproduzir o regramento do CPC: a incompetência no STF implica remessa dos autos ao órgão jurisdicional competente, e não mais extinção do processo.

14 MS n. 25087 ED/SP, j. em 21.9.2006, MS n. 26.244 AgR/DF, publicado no DJU de 23.2.2007, e MS n. 26.006 AgR/DF , j. em 2.4.2007.

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NECESSIDADE DE PRéVIA OUVIDA DA PESSOA 5 JURíDICA DE DIREITO PúBLICO PARA A CONCESSÃO DE LIMINAR NO MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO.

O § 2º do art. 22 não traz nenhuma novidade.Ao determinar que a liminar no mandado de

segurança coletivo somente possa ser concedida após a manifestação do representante judicial da pessoa jurídica de direito público, em setenta e duas horas, a Lei n. 12.016/2009 repete o que já estava prescrito no art. 2º da Lei n. 8.437/1992.

O dispositivo está em conformidade com o microssistema da tutela jurisdicional coletiva, pois regra semelhante incide sobre a ação civil pública (art. 2º da Lei n. 8.437/1992).

BIBLIOGRAFIA

BUENO, Cássio Scarpinella. A Nova Lei do Mandado de Segurança. São Paulo: Saraiva, 2009.

GOMES JUNIOR, Luiz Manoel; FAVRETO. Comentários à Nova Lei do Mandado de Segurança: Lei 12.016, de 7 de agosto de 2009. São Paulo: RT, 2009.

GIDI, Antonio. A class action como instrumento de tutela coletiva dos direitos. São Paulo: RT, 2007.

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MEDINA, José Miguel Garcia; ARAÚJO, Fábio Caldas. Mandado de Segurança Individual e Coletivo: comentários à lei 12.016, de 7 de agosto de 2009. São Paulo: RT, 2009.

NERY Jr., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal Comentada e Legislação Extravagante. São Paulo: RT, 2006, p. 139.

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2Ativismo Judicial: Objeções à Intervenção do Judiciário na Formulação e Execução de Políticas Públicas Ambientais

Rodrigo Fernandes das Neves

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ATIVISMO JUDICIAL: OBJEÇÕES À INTERVENÇÃO DO JUDICIÁRIO NA FORMULAÇÃO E ExECUÇÃO DE POLíTICAS PúBLICAS AMBIENTAIS

Rodrigo Fernandes das Neves•

Introdução. 1 Sisnama e gestão participativa do meio ambiente. 2 Objeções ao ativismo judicial exacerbado. 2.1 O Estado Contemporâneo e a Proteção ao Meio Ambiente. 2.2 A Importância da Participação Política e da Democracia para uma Sociedade mais Justa e Solidária. Considerações finais. Bibliografia.

INTRODUÇÃO

O debate que se pretende apresentar neste artigo está ligado à própria estratégia nacional de participação democrática na proteção do meio ambiente por meio de políticas públicas que objetivem criar as condições econômicas, sociais, estruturais e tecnológicas para, a médio prazo, se alcançar uma

• Procurador-chefe da Procuradoria Especializada do Meio Ambiente do Estado do Acre. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Rondônia - UNIR. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Especialista em Direito Público pela Faculdade Integrada de Pernambuco – FACIPE e especializando em Direito Ambiental pela UNIDERP.

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situação em que se possa, sem prejuízo da própria existência humana nas florestas, fazer um uso econômico e ambientalmente sustentáveis dos recursos naturais. Esse objetivo é algo que todos - sociedade e Estado - devem querer e trabalhar para conquistar.

Todavia, tal projeto, de gestão ambiental por meio de um sistema participativo, oferece, além de seu valor intrínseco de proteção de nossa Casa, um ganho estrutural tão importante quanto este: o incentivo a uma maior participação da sociedade nos temas de caráter público por meio, por exemplo, dos Conselhos Estaduais temáticos. Trata-se de uma das principais sementes da republicização do espaço público ou, em outras palavras, da efetiva consolidação da democracia participativa. É a efetivação do que Canotilho chama de “Estado democrático ambiental”, o qual corre sério risco de regressão com a interferência excessiva do Poder Judiciário nas deliberações eminentemente políticas, ou seja, a exacerbação do ativismo judicial.

Nesse sentido, considerando que, em tal contexto, há pelo menos dois objetos de importância máxima em discussão, meio ambiente e democracia, debates jurídicos sobre políticas públicas ambientais devem procurar uma solução que coordene a defesa de ambos, caso contrário não se poderia alcançar a idéia de estado democrático, seja ambiental ou não. É inaceitável um caminho no qual se tenda a que um anule o outro, pois a interpretação da Constituição deve sempre considerar o conjunto de seus princípios, e não apenas um isoladamente. Há um sistema maior a ser analisado

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e, se a solução proposta não contempla todos os princípios envolvidos, é porque não se refletiu suficientemente.

No entanto, em todo o país diversas ações civis públicas tem desafiado este princípio, em um processo que merece maior atenção e estudo para que, no afã de se buscar proteger o meio ambiente (ou a saúde), não se venha a causar prejuízos institucionais mais perigosos a longo prazo do que os benefícios a curto prazo. Em verdade, quando o Poder Judiciário avança exageradamente na esfera de deliberação política, a exemplo de quando extrapola em decisões que pretendem alterar fundamentalmente a formulação e a execução de políticas públicas debatidas e deliberadas democraticamente, o mesmo deixa de ser um instrumento de cumprimento das normas para se tornar a própria norma e o próprio executor da norma, ou seja, o Judiciário passa a assumir não somente seu próprio papel, mas também o do Poder Legislativo e o do Poder Executivo.

Em tais circunstâncias, acaso se aceite que procedimentos judiciais desconsiderem os processos democráticos para alcançar um objeto que se entende como “progressista” (proteção ambiental), como se poderá, no futuro, ofertar defesa dentro do sistema contra o mesmo tipo de atitude iniciado por outras pessoas que, novamente desprezando a democracia, queiram impor às sociedades decisões “reacionárias”?

Esse questionamento demonstra a necessidade de uma defesa urgente e veemente do Estado Democrático, ou a sociedade estará sujeita, em um futuro próximo, à submissão à

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vontade de técnicos e à eliminação do termo “democrático” na condução das questões públicas no país. Este é, aliás, o grande risco na judicialização da política, conforme será visto ainda mais adiante.

Buscando aprofundar conceitualmente o tema, serão feitas a seguir, portanto, breves considerações sobre o Sistema Nacional de Meio Ambiente, que representa um grande avanço no fortalecimento da democracia Participativa, e de que forma se pode danificar profundamente essa estrutura em razão de decisões judiciais ilegítimas. Na sequência, faz-se menções teóricas sobre o Estado e sua relação com a proteção do meio ambiente, tendo como objetivo a apresentação de um panorama macro, ou seja, o pano de fundo ante o qual os Poderes do Estado atuam em um caso concreto.

Apresenta-se, logo após, argumentos em defesa da democracia participativa e a demonstração da importância do resgate da capacidade de ação política da população, como uma forma de reação à situação de fragmentação social. A seguir, será discorrido sobre a situação atual do que se convencionou chamar de “judicialização da política”, apontando sinteticamente suas causas e consequências, de forma que se possa refletir sobre como esse processo mina e desintegra iniciativas de expansão da política e da democracia.

Ao final, pretende-se demonstrar que o Poder Judiciário pode interferir em questões do Poder Executivo quando necessário à garantia do funcionamento do sistema constitucional, mas jamais para determinar ou limitar conteúdo de políticas públicas, sob pena de tendermos a instalar um

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Estado Tecnocrático que, como bem afirmado por Bobbio, é a antítese da própria democracia.

Por tais considerações, objetiva-se estabelecer marcos referenciais que permitam decidir de forma consciente e aprofundado sobre papéis institucionais dos Poderes e, com altivez, indicar as condições necessárias à ação autônoma da sociedade.

1 SISNAMA E GESTÃO PARTICIPATIVA DO MEIO AMBIENTE

Relativamente à pretensão de o Poder Judiciário determinar ao Poder Executivo a execução de políticas públicas que visem compatibilizar uso/exploração e conservação do meio ambiente, cumpre destacar que, no que tange à temática ambiental, o Brasil adotou um modelo de gestão descentralizado, integrado e participativo, o que se consubstanciou pela Lei Federal nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, a qual instituiu a Política Nacional de Meio Ambiente e o Sistema Nacional de Meio Ambiente.

A Política Nacional de Meio Ambiente trouxe grande repercussão na história da Administração Pública brasileira, no sentido de repensar as ações governamentais que obedeciam a impulsos momentâneos ou a tendências de um determinado governo, em detrimento da construção de planos, programas e projetos devidamente articulados, constituindo-se, por essa razão, vanguarda na história da nossa evolução

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política. Conforme salienta Milaré1,

seus objetivos nitidamente sociais e a solidariedade com o planeta Terra que, mesmo implicitamente se acham inscritos em seu texto, fazem dela um instrumento legal de grandíssimo valor para o país e, de alguma forma, para outras nações sul-americanas com as quais o Brasil tem extensas fronteiras.

O objetivo geral dessa Política, conforme se depreende do art. 2º da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, consiste na preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, visando assegurar, no País, condições ao desenvolvimento sócio-econômico, aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana. Aliás, a própria Constituição Federal, em seu art. 225, prevê que a responsabilidade pela proteção ambiental é do Estado e da Sociedade o que, em uma análise sistêmica da Carta Maior, e fazendo uso de seu princípio democrático, resta claro que a gestão do meio ambiente deve ocorrer em parceria entre o Estado e a Sociedade por meio de processos democráticos.

Para implementar as diretrizes e os objetivos da Política Nacional de Meio Ambiente foi desenhado o Sistema Nacional de Meio Ambiente – SISNAMA, composto pelo conjunto de órgãos e instituições dos diversos níveis do Poder

1 MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente: doutrina, prática, jurisprudência, glossário. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.

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Público incumbidos da proteção e melhoria da qualidade ambiental (art. 6º, Lei nº 6.938/81) com a seguinte estrutura:

- Órgão superior: Conselho de Governo; - Órgão consultivo e deliberativo: Conselho Nacional do Meio Ambiente - CONAMA;- Órgão central: Ministério do Meio Ambiente;- Órgão executor: IBAMA/ICMBIO;- Órgãos seccionais: Órgãos ou entidades estaduais;- Órgãos locais: Órgãos ou entidades municipais.

O SISNAMA foi concebido para atuar como um conjunto articulado e integrado de órgãos e entidades, nos três níveis de governo, com atribuições, regras e práticas específicas que se complementam. Trata-se de um modelo de gestão baseado no princípio do compartilhamento e da descentralização das responsabilidades pela proteção ambiental entre os entes federados e com os diversos setores da sociedade, estruturado como uma rede capaz de abarcar toda a complexidade da questão ambiental, por meio de ações compartilhadas. O SISNAMA é, assim, um instituto jurídico que existe e funciona na medida em que os órgãos ou entidades que o integram existem e funcionam. De acordo com ensinamento de Milaré,

É fundamental que a informação, alma do SISNAMA, tenha fluxo nos dois sentidos: de alto a baixo, da cúpula às bases, e vice-versa. A cúpula permite uma visão ampla, ao passo que as bases propiciam uma visão mais concreta

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e realista dos problemas ambientais. Assim, da Federação aos Estados, do Estado aos Municípios, dos Municípios ao Estado e à Federação, o circuito completo do Sistema garante organicidade e objetividade à Política Nacional de Meio Ambiente2 [grifo nosso].

A cada um dos integrantes desse sistema foi dada uma atribuição específica. Dentre eles, destaca-se o Conselho Nacional do Meio Ambiente - CONAMA3 em razão de sua competência ter relação direta com a temática versada nos autos, qual seja, construção de políticas públicas ambientais e que, segundo Milaré, se constitui como o Órgão maior do Sistema. O referido conselho possui funções consultivas e deliberativas. Sua finalidade, de acordo com o art. 6º, II, da Lei nº 6.938/81 é assessorar, estudar e propor ao Conselho de Governo, diretrizes de políticas governamentais para o meio ambiente e os recursos naturais e deliberar sobre normas e padrões compatíveis com o meio ambiente ecologicamente equilibrado e essencial à sadia qualidade de vida.

Para exercer essas competências preestabelecidas pela Política Nacional de Meio Ambiente, o Decreto Federal nº 99.274, de 6 de junho de 1990, definiu a composição desse colegiado de forma a garantir a representatividade de cinco setores, a saber: órgãos federais, estaduais e municipais, setor

2 MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente: doutrina, prática, jurisprudência, glossário. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.3 Disponível em: <http://www.mma.gov.br/conama/>.

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empresarial e sociedade civil. A partir de então, a questão ambiental passou a ser responsabilidade compartilhada entre União, Estados, Distrito Federal, Municípios e entre esses e os demais setores da sociedade. As políticas públicas, que antes eram construídas no interior dos gabinetes, passaram a ser construídas no seio da sociedade, por meio de discussões de propostas no âmbito dos conselhos participativos e pluralistas. Como bem descreve Paulo Afonso Leme Machado:

Os colegiados visam na pureza de sua conceituação a inventariar as opiniões de setores que tem interesse na matéria a ser tratada. Colhem-se idéias e informações, confrontando-se as mesmas em busca da formação de uma posição comum ou, pelo menos, uma posição majoritária. O Prof. Morris Shaefer salienta a vantagem de uma larga participação no organismo colegiado dizendo que “as pessoas se sentem mais incorporadas à decisão finalmente adotada, mesmo se a escolha realizada pela instância responsável não é aquela da preferência da maioria dos participantes”. Considera-se igualmente que a tomada de decisão participativa é um antídoto contra a apatia dos agentes da organização [grifo nosso] 4.

A construção de políticas públicas deve cumprir, assim, o espírito proposto pela Constituição da República e pelas leis federais e estaduais, por meio de uma ampla participação nos Conselhos, como estrutura de comunicação

4 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Malheiros Editores, 2004.

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entre sociedade e Estado de forma a permitir a discussão ampla e participativa das questões socioambientais.

As discussões ocorridas no âmbito do Conselho Estadual de Meio Ambiente devem subsidiar o Poder Executivo na elaboração e implementação dos programas de governo, de forma que esse concilie as demandas sociais com a viabilidade técnica, consolidando práticas sustentáveis que correspondam às expectativas da coletividade. Isso só é possível em razão do engajamento efetivo, do empoderamento das instituições ali representadas e da flexibilização de interesses em prol de um bem comum, qual seja, a conservação e preservação do meio ambiente, buscando-se, assim, aliar desenvolvimento econômico e social com a proteção ambiental.

Toda essa dinâmica funcional da Política Nacional de Meio Ambiente e do Sistema Nacional de Meio Ambiente existente na atualidade constitui fruto de um processo contínuo de avaliação e de aprimoramento da gestão ambiental participativa e dos seus instrumentos ao longo de quatro décadas. Trata-se, dessa forma, de uma política de fortalecimento dos mecanismos de exercício da democracia que consiste na conciliação das necessidades setoriais com as globais, fazendo com que diversos interesses, que em princípio pareceriam dissonantes, cheguem a consensos gerados a partir do diálogo proporcionado por esse espaço de discussão.

Assim, a pretensão de se buscar soluções para questões tão complexas quanto políticas públicas amplas de gestão ambiental, junto ao Judiciário, parece conflitante com toda a história da gestão ambiental no Brasil e, principalmente,

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com o sistema legal em vigor, inclusive constitucional, como já mencionado anteriormente.

Assim, em razão da existência de uma estrutura própria para análise, discussão, construção e deliberação sobre temáticas ambientais e considerando a efetiva atuação dessa estrutura, ou seja, se há um canal aberto para construção da solução por meio de um meio constitucional e legalmente previsto, constata-se que a evidente incorreção da pretensão de se impor políticas públicas ambientais por meio de decisões judiciais, quando o Sistema Nacional estiver regularmente funcionando.

2 OBJEÇÕES AO ATIVISMO JUDICIAL ExACERBADO

2.1 O Estado Contemporâneo e a Proteção ao Meio Ambiente.

É certo que o Estado contemporâneo passa por uma séria crise de legitimidade, inclusive o próprio Poder Judiciário, determinada pelos fluxos globais de poder e pela constante fragmentação da identidade nacional em novas identidades coletivas. Conforme mencionado por Délton Winter de Carvalho, “esse enfraquecimento estatal é acompanhado pelo aumento das demandas prestacionais provenientes do fenômeno de proliferação dos direitos”5.

5 Carvalho, Délton Winter de. Dano Ambiental Futuro. Rio de Janeiro: Forense Universitária. p. 17.

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Em outros termos, o fato de que o Estado liberal permitiu que as demandas livres aumentassem em número e urgência criou uma defasagem entre o mecanismo da imissão e o mecanismo da emissão, ou seja, o sistema democrático viabiliza uma demanda fácil de serviços públicos, enquanto torna a resposta difícil6.

Em verdade, projetos individualistas e identidades de resistência, que pouco se comunicam em razão de seu caráter comunal, estão difundidos nas sociedades, o que é resultante da dissolução das identidades anteriormente legitimadoras da sociedade industrial7, ou seja,

ao postular questões de ecologia e de direitos humanos, os novos movimentos sociais aspiram ao universal. Salientam o que é comum à humanidade. Em outro nível, porém, esses movimentos concentram-se na “política da diferença”, que ganha tanto destaque nos escritos posmodernistas. Frisam identidades pluralistas e múltiplas, aquilo que nos divide por gênero, sexualidade, etnicidade, localidade. Em contraste com a universalidade e generalidade da economia e do meio ambiente global, eles chamam atenção para as particularidades de grupo, lugar, comunidade e história8 [grifo nosso].

6 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. São Paulo: Paz e Terra, 2000. p.36.

7 KUMAR, Krishan. Da sociedade pós-industrial à pós-moderna: novas teorias sobre o mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p.419.

8 KUMAR, op. cit., p. 196.

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Não parece haver dúvidas, portanto, que a construção de uma nova sociedade “requer a assimilação das reivindicações dos movimentos sociais por parte do sistema político e das instituições do Estado” de forma a se buscar uma nova unidade, ou seja, o Estado deve abrir espaço para a manifestação das identidades fragmentadas e dos movimentos sociais reativos, já que os movimentos sociais,

vem minando a fantasia neoliberal de implantação de uma economia global independente da sociedade por meio de uma arquitetura de informática. O grande esquema exclusivista (explícito ou implícito) de concentração de informações, produção e mercados em um segmento elitizado da população, livrando-se dos demais das mais diversas maneiras, mais ou menos humanistas de acordo com as disposições de cada sociedade, vem desencadeando, na expressão cunhada por Touraine, uma “grand refus”. Ressalve-se, porém, que a transformação dessa rejeição na reconstrução de novas formas de controle social sobre novas formas de capitalismo, globalizado e informacionalizado, requer a assimilação das reivindicações dos movimentos sociais por parte do sistema político e das instituições do Estado9 [grifo nosso].

Em tal contexto, uma vez que o fundamento de legitimação do Estado é a própria política, o papel do Estado contemporâneo na proteção do meio ambiente passa, necessariamente, por um maior debate direto com

9 Idem, p.136.

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a sociedade na formulação de políticas públicas na área ambiental, pela expansão das competências dos Conselhos de Meio Ambiente, e uma estratégia mais inclusiva possível de participação popular, de forma a agregar os interesses fragmentados em um corpo mais ou menos homogêneo e com visão de longo prazo, único meio de se resolver um problema tão complexo e difuso como o do meio ambiente. Qualquer estratégia que se substitua a processo político, inclusive a via judicial, representa um risco de supressão do grande pilar de sustentação do Estado Democrático de Direito, sobre o qual se fundamenta nossa Constituição Federal.

Aliás, logo em seu primeiro artigo, a Constituição estabelece o referido caráter de “Estado Democrático de Direito” de nossa República, dispondo em seu parágrafo único que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Vejamos:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:I - a soberania;II - a cidadania;III - a dignidade da pessoa humana;IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;V - o pluralismo político.Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição [grifo nosso].

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Uma vez considerado que o Poder Executivo, o Poder Judiciário e o Ministério Público fazem parte, os três, do que entendemos como “Estado”, parece evidente que os princípios democráticos constitucionalmente estabelecidos devem ser observados por todos. Nesse contexto, o princípio da legitimidade do Poder como emanação volitiva do povo, por representantes ou diretamente, ganha ainda mais importância ainda quando se refere ao Judiciário, pois é o único que não passa por escrutínios eleitorais. Ainda que se possa considerar a possibilidade, em casos excepcionalíssimos, de intervenção do Poder Judiciário em caráter contra-majoritário, deve-se considerar que a exceção não pode se tornar a regra, como vem ocorrendo.

Em todo caso, uma vez que o Judiciário também é o “Estado” – Estado-Jurisdição - quando a participação política exige intervenção da sociedade, como se acredita ser caso da gestão ambiental, é ela – a sociedade – quem deve diretamente atuar, e não um substituto, como muitas vezes pretende o Ministério Público e ratifica o Judiciário. Em resumo, a vontade de algumas instituições e pessoas não pode substituir os processos políticos que, quando fruto de um debate democrático, é sempre mais legítimo e efetivo, conforme se verá a seguir.

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2.2 A Importância da Participação Política e da Democracia para uma Sociedade mais Justa e Solidária

O único caminho possível para se alcançar as modificações necessárias e fundamentais de nossos tempos, alerta Zygmunt Bauman, é o resgate da verdadeira Política (com P maiúsculo, como diz o autor), uma busca intensa pelo reavivamento da Ágora, aquele lugar em que as questões públicas se encontram e interagem com as questões privadas10. Deve-se, portanto, exercitar a capacidade adormecida de organização em torno de interesses de longo prazo, o que passa pelo resgate da cidadania, termo tão desgastado quanto necessário11, e não pela tutela paternalista do Judiciário, principalmente nas questões de cunho social.

No tema ora em análise, verifica-se a semente de uma espécie de messianismo judicial que tende, a longo prazo, desestruturar a institucionalização dos novos espaços de participação política consubstanciados nos Conselhos, bem como a atrasar avanços que se avizinham e também a enfraquecer a Assembléia do Povo, ao se tomar espaços típicos do Legislativo. Em verdade, deve-se trabalhar coletivamente para que o espaço público seja repovoado de questões públicas, evitando-se decisões individuais e ilegítimas. Para esse objetivo, resta a responsabilidade de se criar firmes e permanentes pontes de ligação entre os indivíduos e a

10 BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p.49.

11 Idem, p. 45.

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sociedade, baseadas na solidariedade, e não um atalho individualista, sem significado para a coletividade.

Por tal razão, tendo em vista a responsabilidade que restou de resgate da Política, a sociedade tem lutado muito pela institucionalização de novos espaços onde as idéias se formem como “valores compartilhados” para construção de uma “sociedade justa”, e que não seja habitado somente por especialistas, mas também e principalmente por cidadãos comuns. A liberdade individual de fato e a democracia como sistema sólido só podem ocorrer, assim, como resultado de um trabalho coletivo12, o que, na realidade, é a representação prática dos próprios fundamentos da República contidos no art. 1º da Constituição Federal. É dessa forma, aliás, que se rompe

com o modelo de desenvolvimento paternalista e centralizador de atribuir ao Estado a responsabilidade total em resolver os problemas dos indivíduos, para reconhecer a idéia de que um Estado que devolve à comunidade o poder de decidir sobre seu futuro, facilitando a cidadania, fortalece-se a si mesmo13.

12 Idem, p.15.13 MOLINA, Saucedo. Apre(he)ndiendo la participación popular: análi-sis y reflexiones sobre el modelo boliviano de descentralización. La Paz, Offset Boliviana EDOBOL, 223 p. In: SANTÍN, Janaína Rigo. O tra-tamento histórico do poder local no Brasil e a gestão democrática municipal. Disponível em: http://www.unisinos.br/publicacoes _cienti-ficas/images/stories/Publicacoes/estudos_juridicosvol40n2/72a78_art04_santin%5Brev_ok%5D.pdf. Acesso em: 10 Jul 2009.

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Assim, por meio do estabelecimento de um sentido geral de sociedade como fruto do trabalho coletivo é que se começa a delinear a importância da participação política e sua relação com a Democracia. Esta última, é importante mencionar desde logo, no conceito procedimental de Bobbio, é um conjunto de regras que prevêem como e quem está autorizado a tomar decisões coletivas, ressaltando-se que todo grupo social é obrigado, para manter a vida coletiva, a tomar decisões que vincule seus membros14.

Ora, se, como Bobbio afirma, pode-se começar uma análise da democracia pelas perguntas de como e quem está tomando as decisões coletivas (ou quem está autorizado), não fica difícil de transpor para o tema presente: quem e como pretende tomar as decisões de interesse da comunidade quando a decisão da política pública ocorre em uma ação judicial? A sociedade, por meio de seus representantes eleitos, do Executivo e Legislativo, e por meio dos Conselhos constituídos ou técnicos jurídicos, por meio de um processo hermético? Isso bem informa sobre a natureza democrática de uma decisão que extrapole os limites do controle constitucional contra-majoritário para se substituir ao próprio processo democrático. Nesse contexto, é importante relembrar, como o faz Campilongo, que

o movimento da democracia é ascendente: do povo em direção à autoridade. A tecnocracia pressupõe o inverso: dos técnicos à maioria. A democracia implica participação e discussão

14 Bauman, op. cit, p.18.

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horizontal e inclusiva. A decisão técnica é vertical e exclusiva, tomada pelos que monopolizam “o discurso competente” dos saberes científicos15.

Bobbio afirma, inclusive, que a tecnocracia e a democracia são antitéticas16, o que deve se fazer pensar sobre os papéis institucionais dos Poderes do Estado. Isso porque deixar a decisão aos técnicos, em uma discussão vertical e exclusiva, representaria um risco à democracia, a qual, ao contrário, deve ser horizontal e inclusiva, como visto acima. O dilema fica sedimentado, assim, entre o estabelecimento da democracia majoritária ou de uma tecnocracia elitista17, já que as decisões judiciais minimizam o sistema majoritário como arena ideal para deliberações de natureza pública.

Nesse contexto, não se pode deixar de ter em conta que, a partir da Constituição Federal de 1988, estabeleceu-se um Estado baseado justamente nos dois pilares em discussão neste artigo: democracia participativa e princípios ecológicos. No conceito citado por Délton Winter de Carvalho, com base nos pensamentos de Canotilho,

o Estado ecológico ou ambiental [...] deve apontar para novas formas de participação política, em uma verdadeira “democracia sustentada” [...]. Uma “democracia

15 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Direito e democracia. São Paulo: Max Limonad, 2000. p.47.

16 BOBBIO, Norberto. Op. cit., p.34.17 Idem, p.47.

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sustentada” consiste em uma alteração das estruturas políticas para fomentar o aumento na participação popular acerca das tomadas de decisão que envolvem o meio ambiente e a instituição de uma solidariedade intergeracional” [grifo nosso]18.

Entretanto, o que se vê, muitas vezes, em diversas Ações Civis Públicas que buscam determinar conteúdo de políticas públicas contraria toda essa concepção. Considerando que o Brasil vive em um “estado democrático ambiental”; considerando a legitimidade dos Conselhos de Meio Ambiente para deliberar sobre políticas públicas de gestão ambiental; considerando a intervenção entre os Poderes representada por ações judiciais que impõe vontades individuais; considerando o afastamento, em tais casos, do debate com o Poder Legislativo e o Poder Executivo, representantes legítimos da vontade do Povo; não há dúvidas que o Poder Judiciário tem se afastado do que se pode considerar uma “democracia sustentada”, pois isso claramente contraria princípios democráticos, já que “o Estado democrático ambiental consolida-se como uma dimensão do próprio Estado democrático de Direito”19.

Neste ponto, é importante mencionar de forma mais completa o entendimento do português José Joaquim Gomes Canotilho sobre o tema, sob interpretação de Délton Winter, que sintetiza o contexto da seguinte forma:

18 Carvalho, op. cit., p. 19.19 Idem, p. 21.

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a política do ambiente tem um suporte social generalizado e é dinamizada por iniciativas dos cidadãos, possibilitando a formação de um compromisso ambiental da sociedade civil no “Estado democrático do ambiente”; este último (Estado democrático do ambiente) impõe uma dimensão participativa que valoriza e, mesmo, estabelece o “dever” a participação dos cidadãos nos procedimentos administrativos ambientais; [...] Assim, o Estado democrático ambiental tem por escopo a formação de um “Estado de justiça ambiental”, proibindo-se a iniquidade e qualquer espécie de discriminação ambiental, tidas através de decisões, seleções, práticas administrativas ou ações materiais que digam respeito à tutela ambiental ou à transformação do território e que onerem de forma injusta determinados grupos, comunidades, minorias, indivíduos, em vista de sua raça, situação econômica ou localização geográfica” [grifo nosso]20.

2.3 Limites da intervenção judicial e os riscos da judicialização da política

Foi mencionado, na introdução, o risco de se utilizar o Poder Judiciário para sufocar e diminuir o controle democrático sobre as atividades do Estado, pois a tese abre caminho, inclusive, para decisões reacionárias. Esta é, de fato, uma questão a ser enfrentada, sob pena de se ocultar problemas que estão embutidos nesta Ação.

20 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. In: DÉLTON, op. cit., p. 21.

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Muitas vezes o Poder Judiciário decide que eventuais prioridades de políticas públicas devem ser por ele decididas com base no que entende como “princípios constitucionais”, e não pela ação da Administração Pública baseada em processos participativos. Essa “flexibilidade exagerada”, que tem se tornado comum no primeiro grau de Judiciário acaba por agigantar a importância conferida ao Juiz, fazendo com que ele venha “elevar-se acima da lei parar tornar-se diretamente o porta-voz do direito”. Entretanto, “em nome de que pode o juiz pretender ser instituidor?”, pergunta-se Spengler21. Trata-se de uma verdadeira invasão da política e da sociedade pelo direito judicializado, tendo por consequência o entorpecimento da:

Capacidade democrática da sociedade, o que aumenta o desprestígio da política e das alternativas democráticas de produção e aplicação do direito22.

Aliás, conforme bem explicita o constitucionalista Luis Roberto Barroso, a doutrina constitucional contemporânea tem debatido explicitamente duas idéias em relação ao tema: a de capacidades institucionais e a de efeitos sistêmicos. Relativamente à questão de Capacidade institucional,

21 SPENGLER, Fabiana Marion. A crise da jurisdição e os novos contornos da função jurisdicional: (in)eficiência face à conflituosidade so-cial. In: REIS, Jorge Renato dos; LEAL, Rogério Gesta (orgs). Direitos Sociais & Políticas Públicas: Desafios contemporâneos. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2008. P. 2.273.22 Spengler, op. cit, p. 2270 e 2271. Spengler, op. cit, p. 2270 e 2271.

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discute-se sobre qual Poder está mais habilitado a produzir a melhor decisão em determinada matéria. Afirma o autor que “temas envolvendo aspectos técnicos ou científicos de grande complexidade podem não ter no juiz de direito o árbitro mais qualificado, por falta de informação ou conhecimento específico”, ou seja, em questões que envolvem não uma questão pontual e concreta de lesão à ordem jurídica, mas toda uma política pública, deve-se “prestigiar as manifestações do Legislativo ou do Executivo, cedendo o passo para juízos discricionários dotados de razoabilidade”23.

Barroso também cita o risco de efeitos sistêmicos imprevisíveis e indesejados. Conforme já dito neste artigo, a idéia de se impor uma política pública pretensamente boa ao meio ambiente pode causar conseqüências imprevisíveis a longo prazo, que podem se consubstanciar em algo muito pior. Como exemplo é a possível e já mencionada deslegitimação, na questão ambiental, dos novos espaços de participação política por meio de Conselhos do SISNAMA. Essas graves conseqüências não podem ser previstas por um magistrado que não tem formação para tal e não detém as informações necessárias para deliberação. Em tais casos se recomenda, portanto, uma posição de cautela e deferência por parte do Judiciário. Em síntese, sustenta Luis Roberto Barroso,

23 BARROSO, Luis Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática. Disponível em: <http:// www.oab.org.br/

oabeditora/users/revista/1235066670174218181901.pdf>. Acesso em: 5 AGO 2009. P. 16.

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O juiz, por vocação e treinamento, normalmente estará preparado para realizar a justiça do caso concreto, a microjustiça. Ele nem sempre dispõe das informações, do tempo e mesmo do conhecimento para avaliar o impacto de determinadas decisões, proferidas em processos individuais, sobre a realidade de um segmento econômico ou sobre a prestação de um serviço público. Tampouco é passível de responsabilização política por escolhas desastradas24.

No entanto, o Poder Judiciário tem insistido em “legislar” e determinar a “execução” de Políticas Públicas, a qual pretende construir sozinho. Em tais casos, pergunta-se Ingeborg Maus, “não será a justiça em sua atual conformação, além de substituta do imperador, o próprio monarca substituído?”25, em uma interessante analogia quanto à semelhança das decisões herméticas do judiciário e casos de exercício autoritário do Poder, que termina por se consubstanciar como uma antítese da democracia.

“Mas como se pode explicar esse fato? Por que a luta política agora se volta sob o plano da ação judiciária?”, questiona Spengler, para logo em seguida afirmar: “O certo é que essa onipresença da jurisdição se traduz numa certa patologia social e numa crise também política”26. Esta é,

24 Barroso. Idem. Ibidem.25 MAUS, Ingenborg. O judiciário como superego da sociedade. O papel

da atividade jurisdicional na “sociedade orfã”. Novos Estudos CEBRAP. Nº 58, nov/2000, p. 187. In: Spengler, op. cit., p. 2272.

26 Spengler, op. cit., p. 2273. Spengler, op. cit., p. 2273.

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acredita-se, a síntese do que significa a judicialização das políticas públicas: uma patologia, uma doença do sistema, que é potencializada por um ativismo judicial não sensível a aspectos democráticos e às instituições políticas. É dessa forma que se pretende tornar a exceção em regra e, assim, “a justiça torna-se objeto de uma súbita inversão de tendências: de secundária, ela se torna de repente prioritária”. Isso faz com que a jurisdição se transforme “no modo comum de gestão de setores inteiros”27.

Quanto ao tema, Rogério Gesta Leal, desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, faz lembrar as preocupações de Habermas “com a necessidade da sociedade se dar conta de que as questões políticas e que implicam tomadas de decisões sob assuntos de interesse comunitário não podem se reduzir a temas técnicos e burocráticos”28. E sintetiza o Desembargador, com base na ética habermasiana do discurso:

Discursos de auto-entendimento exigem a convivência reflexiva, corajosa e disposta a aprender com as próprias tradições culturais, formadoras de identidade. Em nosso contexto, é especialmente importante saber que, nos processos de autopersuasão, não pode haver não-participantes; em princípio, as tomadas de posição em termos de sim/não não podem ser delegadas a terceiros. Todos os membros têm

27 Spengler, op. cit., p. 2275. Spengler, op. cit., p. 2275.28 LEAL, Rogério Gesta; REIS, Jorge Renato dos. Direitos Sociais & Políticas Públicas: Desafios contemporâneos. Santa Cruz do Sul: Edu-

nisc, 2008, p. 2.439.

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que poder tomar parte do discurso, mesmo que os modos sejam diferentes29.

Quando uma Política Pública, por completo, é judicializada, exclui-se, consequentemente, a possibilidade desse ato discursivo aberto, onde grupos de interesse e conhecimento heterogêneo possam livremente debater e deliberar. Essa deslegitimação do direito e da política, ainda de acordo com o Desembargador Rogério Gesta Leal,

vai gerando, dentre outros, dois problemas extremamente graves, notadamente num Estado sobrecarregado com tarefas quantitativamente maiores: a perda do efeito impositivo da lei parlamentar e a crise de identidade, eficácia e legitimidade da democracia representativa, e a fragilização da separação dos poderes haja vista a hipertrofia de alguns em face de outros.

Por tudo quanto exposto, fica evidente o grau exacerbado de ativismo judicial, que ultrapassou demasiadamente os limites de controle da legalidade e constitucionalidade para, atuando politicamente, acabar substituindo-se inteiramente os processos políticos e deliberações democráticas por meio de uma decisão judicial.

Ressalte-se que muitas vezes não se trata de controle pelo Poder Judiciário de qualquer abuso e arbitrariedade da Administração Pública, mas o uso da via judicial para ingressar na própria essência da função típica do

29 Leal, op. cit. p. 2442.

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Pode Executivo. Em verdade, a gestão administrativa exigida pela Constituição da República impõe aos responsáveis pela Administração Estadual (Chefe do Poder Executivo Estadual e seus Secretários – art. 84, II, CF) o exame das carências do sistema público para que se encaminhe projetos de lei e plano plurianuais que indiquem as políticas públicas a serem executadas e seus respectivos custos e origem de receita. Essas políticas públicas são amplamente discutidas pela sociedade, tanto no momento da aprovação de uma plataforma política por meio do voto ou quanto na participação nos Conselhos Estaduais e por seus representantes na Assembléia Legislativa do Estado.

Assim, a determinação de políticas públicas por meio de ações judiciais demonstra-se frontalmente contrária a um princípio basilar da Federação Brasileira, que é o da soberania popular, fazendo com que o interesse ou entendimento de técnicos venham a se sobrepor ao processo democrático que, por meio do voto, elegeu um determinado programa de governo e construiu uma determinada política pública, violando-se, assim, o art. 2º da Constituição Federal.

Por tudo quanto exposto, demonstra-se que é papel das Procuradorias dos Estados trabalhar em defesa dos processos democráticos, da participação popular e da consolidação dos Conselhos Estaduais, de forma a se garantir maior amplitude e legitimidade na formulação de políticas públicas, buscando-se combater o excessivo e ilegítimo ativismo judicial na construção e execução de políticas públicas ambientais.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O sistema jurídico brasileiro, desde sua Carta Maior, estabelece que o âmbito adequado para deliberação sobre políticas públicas em temas ambientais são os Órgãos vinculados ao Sistema Nacional de Meio Ambiente - SISNAMA, os quais agem apoiados em normas legitimamente deliberadas pelos representantes legislativos, o que denota a impossibilidade de produção judicial original sobre o tema;

Deve-se reconhecer as limitações do Poder Judiciário na formulação de políticas públicas, ante o risco de politização da justiça e de deslegitimação das instituições democráticas. Há evidentes objeções e limites à crescente intervenção judiciária nas questões de direitos sociais, uma vez que se considere a falta de capacidade institucional do Judiciário de lidar com temas de grande complexidade, bem como em razão do déficit das decisões judiciais em relação aos consequentes efeitos sistêmicos imprevisíveis e indesejados;

As Procuradorias dos Estados devem combater o crescente ativismo judicial na formulação e execução de políticas públicas, sob pena de permitir a submissão da democracia – o poder do povo - à tecnocracia – o poder dos técnicos-juízes. Caso contrário, serão colocados em risco os processos democráticos consolidados nos Conselhos Representativos, em especial da área ambiental, bem como causará prejuízo aos novos espaços de participação popular arduamente conquistados pela sociedade, em um claro risco de retrocesso do Estado de Direito Ambiental.

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3Rodrigo Fernandes das Neves

POLíTICA DA VALORIZAÇÃO DO ATIVO AMBIENTAL RURAL: Critérios para averbação de reserva legal e imposições de multa em razão da redução da reserva legal na Zona 1 do ZEE 2ª Fase.

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POLíTICA DA VALORIZAÇÃO DO ATIVO AMBIENTAL RURAL: Critérios para averbação de

reserva legal e imposições de multa em razão da redução da reserva legal na Zona 1 do ZEE 2ª Fase.

Rodrigo Fernandes das Neves•

Introdução. 1 Contexto histórico. 2 Multa por desmatamento e averbação de reserva legal: duvidas na aplicação da norma estadual. Considerações finais. Bibliografia.

INTRODUÇÃO

O presente artigo trata sobre a Política de Valorização do Ativo Ambiental Florestal, que é uma iniciativa do Governo do Estado do Acre que objetiva regularizar o passivo ambiental das propriedades rurais em seu território, tema que tem se constituído como um dos maiores desafios para uma gestão socioambiental que promova a equidade e a sustentabilidade das atividades produtivas rurais.

• Procurador-chefe da Procuradoria Especializada do Meio Ambiente do Estado do Acre. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Rondônia - UNIR. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Especialista em Direito Público pela Faculdade Integrada de Pernambuco – FACIPE e especializando em Direito Ambiental pela UNIDERP.

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Por meio da Política supra-referida, estão sendo fomentadas ações integradas entre a sociedade civil, ONGs e instituições governamentais, em busca da melhoria da qualidade de vida das comunidades, assim como proteção do meio ambiente. Desta forma, desde o ano de 2008, foram editadas diversas normas que criaram planos e programas que buscam viabilizar atividades econômicas sustentáveis, onde a produção florestal e rural, a regularização das propriedades e a proteção ambiental possuam uma dinâmica integrada e harmônica. São exemplos dessa proposta o programa de certificação da propriedade rural sustentável, o programa de florestas plantadas e o programa de regularização do passivo ambiental.

A principal norma que rege a referida proposta de política pública e que fundamenta todas as demais, é a Lei Estadual nº 1.904, de 5 de junho de 2007, a qual instituiu o Zoneamento Ecológico-Econômico do Estado - ZEE. Esta Lei é um instrumento essencial para gestão das atividades econômicas e de proteção ambiental no Acre, pois contém um conjunto de dados e informações socioeconômicas e ambientais que devem obrigatoriamente ser observadas pela Administração Pública e pela iniciativa privada em suas atividades.

O já mencionado Programa de Regularização do Passivo Ambiental Rural e sua interpretação é o tema central deste artigo. Em especial, algumas questões geraram controvérsias extensas, que ainda hoje representam dúvidas na aplicação do Zoneamento e da política de resolução do

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passivo, principalmente para os técnicos do governo e para os proprietários rurais.

Em verdade, a Lei nº 1.904/2007 (ZEE) previu a formação de um Grupo de Trabalho amplo e representativo, com participação de vários atores sociais a exemplo de Federações de Produtores, Associações, Ministério Público Estadual e diversos Órgãos Governamentais Estaduais para que, dentro do marco legal estabelecido pela legislação federal, fossem apresentadas propostas para solução desse que é um dos problemas mais importantes para o desenvolvimento sustentável do Estado: o passivo ambiental das propriedades rurais, que impedem seu licenciamento e travam a implementação de políticas de desenvolvimento, inclusive financiamentos. Esse trabalho coletivo resultou, após um ano e meio de debates, em uma minuta de normativa que se consubstanciou no Decreto Estadual nº 3.416, de 12 de setembro de 2008, editado pelo governador sem nenhuma alteração em relação à proposição do GT.

Dentre as dúvidas que surgiram na execução e aplicação da norma estadual, as principais giram em torno de duas questões centrais: forma de averbação de reserva legal e critério para imposição de multa, em especial em razão do disposto no art. 25 do Decreto Estadual. As dúvidas decorrem do fato de que, em determinadas áreas, a reserva legal, para efeito de compensação do passivo ambiental, fora reduzida de 80% para 50%, mas com uma série de nuances que exigem uma interpretação cuidadosa e detida, sob pena de criar condições desfavoráveis para o meio ambiente e para a

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segurança jurídica das políticas públicas estaduais. Este texto procura, portanto, esclarecer a interpretação da norma estadual em conformidade com o sistema jurídico nacional e com as discussões realizadas no Grupo de Trabalho que produziu a norma e da qual a Procuradoria Geral do Estado participou, por meio da Especializada de meio ambiente.

1 CONTExTO HISTÓRICO

Antes de ingressar diretamente no tema, importante se faz uma breve digressão histórica para mencionar o que se considera esse “passivo ambiental” – pano de fundo do debate - bem como por meio de qual processo político surgiu a normatização sobre o tema no Brasil. Para isso, deve-se retornar ao biênio 1994/1995, período de grande aumento de desmatamento na Amazônia (ver gráfico 1, abaixo), o que gerou forte pressão tanto interna quanto internacional por uma ação vigorosa do Estado brasileiro. Naquele período turbulento, havia um movimento político conflitante no âmbito nacional sobre a questão, colocando em choque aqueles que pleiteavam, no Congresso, leis mais rígidas para proteção da Amazônia e aqueles que requeriam uma atuação menos rígidas no tratamento da proteção ambiental da ambiental, bem aos moldes que vemos hoje em dia.

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No ano seguinte, formou-se entre os “ecologistas” uma proposta que, gestada e aperfeiçoada no CONAMA, foi apresentada ao Presidente Fernando Henrique Cardoso como contraposição ao projeto dos “ruralistas”, proposta a qual se encontrava em trâmite no Congresso Nacional. O projeto do CONAMA, de grande caráter protetivo, possuía diversos pontos que foram propositadamente colocados para uma futura negociação e inevitável negociação, que é sempre dura quando envolve o tema ambiental, e seria motivo previsivelmente de embates e supressões no Congresso Nacional.

Entretanto, para surpresa de muitos, com o recrudescimento da pressão internacional sobre a proteção da Floresta Amazônica, Fernando Henrique editou, em 1996 – na sequência do pico de desmatamento, portanto - uma Medida

Gráfico 1 – Evolução anual do desmatamento na Amazônia Brasileira - Fonte: Prodes/Inpe

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Provisória que refletia, integralmente, a proposta apresentada pelo CONAMA. Esta proposta, apesar do amplo apoio social, resultou por outro lado em um impacto econômico e social intenso, gerando uma rejeição explícita dos produtores rurais, no resultou em uma virtual desobediência civil. Um dos principais pontos da referida Medida Provisória foi, justamente, o aumento da Reserva legal de 50% para 80% da propriedade na Amazônia Legal, algo que influenciará o debate sobre sua averbação a partir da interpretação das normas federal e estadual.

Tal fato, se do ponto de vista ambiental foi extremamente positivo, resultou em um problema na realidade diária para uma imensa massa de proprietários rurais, grandes e pequenos: de um dia para o outro, milhares deles passaram a ter um “passivo ambiental”, o qual deveria ser recuperado ou compensado, nos termos da Medida Provisória.

Instantaneamente, diversos proprietários, que haviam realizado desmatamentos legais até o limite de 50% (e também ilegais, diga-se), passaram a ser obrigados a respeitar, na área situada entre os 50% e os 80%, as restrições de uso típicas da Reserva Legal, surgindo a obrigação, inclusive, de recuperação ou compensação dessas áreas. Diante da incapacidade do setor, naquela época, vislumbrar a possibilidade de exploração econômica sustentável dos 80% de reserva legal, por meio de manejo florestal, por exemplo, a edição da MP resultou em uma forte reação à nova norma, conforme já ressaltado.

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Pela ausência de uma solução pactuada amplamente entre as diversas forças políticas, sociais e econômicas envolvidas, não é de se estranhar que o cumprimento do estabelecido na Medida Provisória tenha ocorrido em nível ínfimo, seja em razão de uma quase desobediência civil do setor produtivo – como já dito- seja por pura falta de recursos financeiros dos produtores para arcar com os custos de plantio, de compensação ou imobilização de áreas até então produtivas.

Sobre o tema, afirmam Ciro Fernando Assis Siqueira e Jorge Madeira Nogueira:

Em suma tornar eficaz a Reserva Legal com os percentuais estabelecidos em 1996 compreende uma reestruturação econômica, social e, me arrisco a dizer, cultural muito mais complexa do que o caráter diletante dos idealizadores e defensores da referida política foi, até aqui, capaz de alcançar 1.

Nesse sentido, na Amazônia legal, todas as áreas passaram a ter a obrigação de averbação da Reserva Legal em 80%, salvo previsão em contrário em Lei Estadual de Zoneamento, o qual poderia reduzi-la, para efeito de recomposição, para até 50% da área da propriedade.

1 SIQUEIRA, Ciro; NOGUEIRA, Jorge. O Novo Código Florestal e a Reserva Legal: do preservacionismo desumano ao conservacionismo politicamente correto. Disponível em: <www.sober.org.br/palestra/12/ 08O387.pdf>. Acesso em: 4 dezembro 2008.

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Pois foi na esteira desses fatos e acontecimentos que o Estado do Acre, em 1999, iniciou a construção de seu Zoneamento Ecológico-Econômico - ZEE, já sob a determinação do então recém eleito governador Jorge Viana. O ZEE, que era uma reivindicação da sociedade pelo menos desde o início daquela década, contemplou, em uma primeira fase, a reunião de dados e informações já existentes, mas que se encontravam dispersos e não sistematizados, respeitando-se, assim, uma realidade histórica da formação e ocupação do solo acriano.

Já na construção da uma segunda fase do ZEE, com a confecção de novos e mais detalhados dados e ampla participação social, puderam ser formulados excelentes mapas de gestão territorial, lançados no ano de 2006, os quais vem servindo de base para a decisão de implementação de políticas públicas e projetos privados produtivos na área rural e florestal do Estado.

No ano de 2007, já sob o comando do atual governador Arnóbio Marques, os dados, as informações, os estudos e os mapas de gestão foram agregados e oficializados, editando-se a Lei Estadual de Zoneamento Ecológico-Econômico, a qual foi aprovada na Assembléia Legislativa do Estado e sancionada no dia 5 de junho de 2007, simbolicamente no dia da Amazônia.

Conforme mencionado anteriormente, dita Lei tinha o potencial, em razão de previsão da norma Federal, de reduzir a Reserva Legal das propriedades rurais no Estado do Acre, para efeito de recomposição, para até 50%. Em razão

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de aprofundados estudos, que consideraram aspectos como desenvolvimento econômico, desflorestamento, dinâmica social e de desmatamento, tradição e aptidão do solo, dividiu-se o território acriano em Zonas. A Zona 1, que contempla o entorno das áreas de maior intervenção antrópica (ver áreas em vermelho no mapa abaixo), foi categorizadas como “consolidação de sistemas de produção sustentável”.

Segundo o Documento Síntese do Zoneamento Ecológico-Econômico - Fase II, a Zona 1 foi estabelecida em:

Áreas de influência direta das rodovias BR- 364 e BR-317 (Figura 47), de ocupação mais antiga do Estado com atividades agropecuárias e madeireiras. Também estão associadas às novas frentes de expansão e conversão das

Figura 1 - Distribuição das tipologias florestais no Estado do Acre - Fonte: Base de dados geográficos do ZEE/AC, Fase II, 2006

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áreas florestais para o desenvolvimento de atividades agropecuárias. São áreas ocupadas pela agricultura familiar em projetos de assentamento, pequenos produtores em posses, médios e grandes pecuaristas e áreas florestais de grandes seringais. Parte das áreas desta zona está sem situação fundiária definida ou não está inserida no Cadastro georreferenciado do INCRA. As unidades territoriais desta zona incluem áreas de Reserva Legal e Áreas de Preservação Permanente (APPs). Nesta zona se concentra a maior proporção de propriedades com passivo florestal. [grifo nosso]2.

O mapa do Acre, a seguir apresentado, indica as regiões que são consideradas para efeito do Zoneamento, como Zona 1:

2 ACRE. Programa Estadual de Zoneamento Ecológico-Econômico do Estado do Acre. Rio Branco: SEMA, 2006. P. 290.

Figura 2 – Ocupação do Território da Zona 1, no Estado do Acre. - Fonte: Base de dados geográficos do ZEE/AC, Fase II, 2006

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Com essas considerações, é de se destacar que a Lei Estadual nº 1.904/2007, em seu art. 7º, quanto à Reserva Legal das propriedades situadas na Zona 1, previu:

Art. 7º. Para fins de recomposição florestal aplica-se na Zona 1, o disposto no § 5º do art. 16 do Código Florestal com a alteração promovida pela Medida Provisória nº 2166-67/01, reduzindo-se a reserva legal nessas áreas para cinqüenta por cento, excluídas as áreas de preservação permanente.

Por sua vez, o art. 16 do Código Florestal, mencionado no artigo supracitado, dispõe:

Art. 16. As florestas e outras formas de vegetação nativa, ressalvadas as situadas em área de preservação permanente, assim como aquelas não sujeitas ao regime de utilização limitada ou objeto de legislação específica, são suscetíveis de supressão, desde que sejam mantidas, a título de reserva legal, no mínimo: (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.166-67, de 2001) I - oitenta por cento, na propriedade rural situada em área de floresta localizada na Amazônia Legal; (Incluído pela Medida Provisória nº 2.166-67, de 2001)[...]§ 5º O Poder Executivo, se for indicado pelo Zoneamento Ecológico Econômico - ZEE e pelo Zoneamento Agrícola, ouvidos o CONAMA, o Ministério do Meio Ambiente e o Ministério da Agricultura e do Abastecimento, poderá: (Incluído pela Medida Provisória nº 2.166-67, de 2001) I - reduzir, para fins de recomposição, a

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reserva legal, na Amazônia Legal, para até cinquenta por cento da propriedade, excluídas, em qualquer caso, as Áreas de Preservação Permanente, os ecótonos, os sítios e ecossistemas especialmente protegidos, os locais de expressiva biodiversidade e os corredores ecológicos; e (Incluído pela Medida Provisória nº 2.166-67, de 2001) [...] [grifos nossos]

Como se observa, a partir da edição da Lei Estadual, na Zona 1 estabelecida no ZEE, permitiu-se a redução da reserva legal, para efeito de recomposição, de 80% para até 50%. Entretanto, para que tal permissão passasse a vigorar juridicamente, ainda necessitava – conforme previsão no Código Florestal - de ratificação em nível Federal, inclusive no MMA e no CONAMA, nos termos apresentados no § 5º acima transcrito. Foi assim que, para consolidação da redução da Reserva Legal na forma apresentada – com redução na Zona 1 do ZEE - a norma estadual que estabeleceu o ZEE teve que seguir o fluxo representado na figura 3 a seguir:

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Foi assim que, a partir de maio de 2008, foi possível trabalhar uma versão final da regulamentação da possibilidade de redução da Reserva Legal, o que ocorreu por meio do Decreto Estadual nº 3.416, de 12 de setembro de 2008. Como mencionado anteriormente, tal Decreto foi resultado de reuniões de um Grupo de Trabalho previsto da própria Lei do ZEE e instituído por outro Decreto Estadual. Fizeram parte do GT as seguintes Instituições: IMAC, SEAP, SEAPROF, SEF, PGE, MPE, Federação da Agricultura, Federação dos Trabalhadores em Agricultura e Associação das Indústrias de Madeiras de Manejo. Tratava-se, portanto, de um grupo bastante representativo de diversos seguimentos da sociedade, com o acompanhamento e participação do Órgão Ministerial Estadual.

Figura 3 – Fluxo dos Procedimentos para Aprovação do ZEE Acre – Fase II

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Esse GT reuniu-se inúmeras vezes, trabalhando inicialmente com base em uma proposta pelo consultor André Lima (mestre em direito, autor de livro sobre o tema e vinculado ao terceiro setor). Após diversas alterações e complementações com base nas discussões surgidas do livre debate no grupo, alcançou-se uma proposta consensual. Uma síntese da agenda do Grupo de Trabalho é apresentada graficamente a seguir:

Figura 4 – Representação Gráfica da Agenda de Runiões do GT para Discussão do Passivo Ambiental.

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Foi assim que, após o desenvolvimento dos estudos-base do ZEE, a sua ratificação por Lei Estadual e a posterior corroboração dos Órgãos Federais e do Presidente da República, foi possível ao GT o fechamento do trabalho de criação de uma regulamentação estabelecendo as alternativas de recomposição do passivo ambiental disponibilizadas aos produtores rurais do Estado. Tais discussões resultaram na edição, pelo Governador Arnóbio Marques, do já mencionado Decreto nº 3.416/2008. A norma estabelece, em seu art. 1º, o seguinte:

Art. 1º Este Decreto regulamenta o art. 38 da Lei nº 1.904, de 5 de junho de 2007, com o objetivo, dentre outros, de valorização do ativo ambiental florestal de imóveis rurais do Estado do Acre, tendo como área prioritária a regularização na zona 1 do Zoneamento Ecológico-Econômico do Acre - ZEE.

Na sequência, já no art. 2º do referido Decreto, previu-se as seguintes alternativas para resolução do passivo ambiental:

Art. 2º [...]§ 1º A regularização dos imóveis rurais, para fins de recomposição da Reserva Legal, poderá ser realizada por meio de uma das seguintes modalidades, isolada ou conjuntamente:I - por meio de plantio ou de condução da regeneração natural, dentro de cronograma que respeite os prazos e critérios estabelecidos no Código Florestal e nesta norma;II - compensação por meio de servidão florestal ou de aquisição de floresta ou

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demais formas de vegetação nativa existentes em outro imóvel e que sejam excedentes à sua reserva legal, na forma estabelecida no Capítulo III deste Decreto.III - desoneração das obrigações previstas nos incisos anteriores, adotando as seguintes medidas, isoladas ou conjuntamente:a) doação, em favor do Poder Público, de propriedade particular existente em Unidade de Conservação de domínio público cuja área de floresta ou outra forma de vegetação nativa exista em extensão equivalente ao passivo de Reserva Legal, de acordo com o § 6º do artigo 44 da Lei nº 4.771 de 1965, com as alterações introduzidas pelo art. 49 da Lei nº 11.428, de 22 de dezembro de 2006;b) pagamento mediante depósito, em conta específica do Fundo Estadual de Florestas, previsto na Lei Estadual nº 1.426/2001, de valor correspondente à área de mesma importância ecológica e extensão, destinando-se estes recursos exclusivamente à regularização fundiária de Unidade de Conservação.

Pode-se sintetizar as alternativas de recomposição da Reserva Legal, previstas no texto normativo acima referido, por meio da figura 5, a seguir exposta:

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2 MULTA POR DESMATAMENTO E AVERBAÇÃO DE RESERVA LEGAL: DúVIDAS NA APLICAÇÃO DA NORMA ESTADUAL

Após contextualização do tema, volta-se novamente às controvérsias quanto à aplicação da norma estadual que trata sobre a resolução do passivo ambiental rural. Elas giram em torno, mais claramente falando, do tratamento a ser dado à Reserva Legal quando de sua averbação na matrícula de cada imóvel, assim como também dos critérios que serão utilizados para eventual imposição de multas nas áreas onde tenha ocorrida a redução da reserva, considerando a redução da reserva legal na Zona 1 do ZEE, conforme já mencionado. O primeiro ponto que surgiu nos debates foi quanto ao entendimento firmado no Grupo de Trabalho ao discutirem a criação do art. 25 do Decreto nº 3.416/2008. Vejamos o que diz o artigo:

Figura 5 – Apresentação Visual das Formas de Recomposição de Reserva Legal na Forma prevista no Decreto nº 3.416/2008.

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Art. 25. Na Zona 1, para efeito de imposição de multa por desmatamento irregular ocorrido até a entrada em vigor da lei nº 1.904/2007, será considerada a redução da reserva legal para cinqüenta por cento.

Como já dito, o Decreto nº 3.416/2008 foi amplamente discutido por um Grupo de Trabalho muito representativo, em um longo processo de diálogo e composição em busca de um texto consensual, de forma a aumentar o potencial de sucesso e adesão às propostas de solução do passivo ambiental formuladas. Muitas das soluções consensuadas decorrem de interpretações feitas pelo grupo em relação a conceitos e dispositivos da legislação federal, que muitas vezes é lacunosa, quando não incoerente, por diversas razões, inclusive as questões históricas já apresentadas.

A metodologia hermenêutica e a proposta para construção da proposta de Decreto por parte do GT fundou-se, dessa forma, em alguns princípios basilares: primeiramente, deveria-se partir do conhecimento compartilhado sobre a realidade do Estado, para que a solução tivesse uma ligação estreita com a dinâmica social e econômica do Acre e, assim, se alcançasse um resultado prático e eficaz; segundo, necessitava-se, dentro do marco legal federal, buscar saídas racionais, lógicas, consistentes e inovadoras para o problema do passivo ambiental no Estado, uma vez que a leitura nua e crua da Lei Federal, que já existia há mais de uma década, apresentara-se insuficiente e não alcançara resultado para uma real proteção do meio ambiente. Portanto, ficou evidente que algo novo deveria surgir daquele grupo.

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Nesse contexto, percebe-se, desde logo, que uma solução racional que olhasse de forma diferente a realidade do Acre e alcançasse uma saída inovadora para o problema não poderia ser encontrada pronta, por exemplo, em um livro, inexistindo a possibilidade de se aplicando algo já existente ou fruto de outras realidades sociais e econômicas. Caso contrário não seria inovadora e, muito menos, fixada na realidade acriana. Por outro lado, ainda, existiam limitações bastante estreitas para a inovação, uma vez que a legislação federal, que orienta e oferece as normas gerais do tema, já era muito detalhada e restritiva. Essas circunstâncias, agregadas aos diferentes interesses legítimos envolvidos, dão a dimensão do trabalho realizado pelo GT.

Pode ser dito, de toda forma, que a grande força do Decreto nº 3.416/2008 decorre justamente dessas dificuldades e de dois fatores fundamentais: sua legitimidade social e sua consistência racional. Os dispositivos apresentados na norma guardam estreita lógica sistemática e, assim, pode ser dito que o art. 25, mencionado anteriormente, é decorrência direta de conceitos embutidos em outros dispositivos do Decreto e, portanto, deve ser analisada em face do sistema em que está inserido. É o que se verá a seguir.

Para interpretar referido art. 25, que previu a consideração da redução da reserva legal para cinqüenta por cento no momento de imposição de multa por desmatamento até a edição da Lei do ZEE, necessita-se fazer uma interpretação sistemática e histórica de seu conteúdo, para que tal interpretação mantenha as características de legitimidade e racionalidade mencionadas anteriormente.

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Primeiramente, deve-se observar o artigo no contexto do sistema legal em que está inserido. Para tal atividade, deve-se considerar, desde logo, o marco legal da questão: os arts. 16 e 44 da Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965, que dispõem, respectivamente, sobre os limites de reserva legal das propriedades rurais e as alternativas de recomposição das áreas de vegetação nativa suprimidas das reservas legais; o disposto no § 5º do art. 16, que prevê regras para a redução da reserva legal para fins de recomposição; e a indicação do Zoneamento Ecológico-Econômico, representado pelo art. 7º da Lei Estadual nº 1.904, de 5 de junho de 2007, o qual dispõe que, para fins de recomposição florestal, aplica-se na Zona 1, a redução da reserva legal nessas áreas para cinqüenta por cento, excluídas as áreas de preservação permanente.

Diante dos dispositivos mencionados, deve-se compreender que, na Zona 1 do ZEE, a Reserva Legal será representada por algo entre 50% e 80% da área da propriedade, de acordo com a situação de cada imóvel. Isso decorre, como será adiante explicado, do fato de que há um princípio fundamental do qual não se pode afastar na interpretação do Decreto Estadual: o de que a redução da Reserva Legal não pode, em qualquer hipótese, resultar em redução de cobertura florestal, algo que permeia o Código Florestal e que fundamenta a norma estadual. A partir desse princípio, as soluções passam a surgir claramente.

Permita-se, assim, ingressar, desde logo, no debate sobre qual área deve ser averbada como reserva legal, pois esse fator vincula-se diretamente ao princípio acima mencionado

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e à solução de outras dúvidas que surgiram na aplicação da norma.

Questionou-se: como deverão ser averbadas as propriedades que tenham 50% ou mais de Reserva Legal e que estejam na Zona 1 do ZEE?

De início, resgate-se o texto da norma federal que autoriza a redução da reserva legal (Lei nº 4.771/65):

Art. 16 [...]§ 5º O Poder Executivo, se for indicado pelo Zoneamento Ecológico Econômico - ZEE e pelo Zoneamento Agrícola, ouvidos o CONAMA, o Ministério do Meio Ambiente e o Ministério da Agricultura e do Abastecimento, poderá:I - reduzir, para fins de recomposição, a reserva legal, na Amazônia Legal, para até cinquenta por cento da propriedade [grifo nosso].

Vê-se, assim, que o Poder Executivo, se autorizado pelo ZEE e ouvidos os Órgãos Federais, como ocorreu no caso do Acre, pode reduzir a reserva legal para até cinquenta por cento. Destaca-se a palavra “até” porque a legislação federal autorizou não a redução direta “para cinqüenta por cento” e sim “para até cinqüenta por cento”, o que significa um universo de variáveis que podem estar contidas no intervalo 50,0%, 50,1% ... 79,9%, 80% de reserva legal.

Pelo exposto, o Poder Executivo, cumpridos requisitos prévios da norma federal (ZEE aprovado, etc), tem a faculdade de declarar a possibilidade de redução da Reserva Legal, que pode ser variável dentro do universo percentual

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mencionado acima. Porém, como também dito anteriormente, essa faculdade deve estar limitada por um princípio: o da não-redução de cobertura florestal.

Como decorrência lógica dessas premissas, pode ser dito que a Reserva Legal, na Zona 1 do ZEE, será de, no mínimo, 50%. Porém, pelo princípio da não-redução de cobertura florestal, as propriedades com mais de 50% e menos de 80% de cobertura florestal devem manter a cobertura florestal existente na época da edição da Lei 1.904/2007, fosse ela 51%, 64%, 77% ou qualquer outra porcentagem no intervalo 50%-80%, pois a redução da Reserva Legal na Zona 1 deve ser aproveitada, de regra, para mitigar a obrigação de Recomposição da cobertura florestal e não para oferecer ao particular direito a novos desmatamentos.

Deve-se considerar, por conseqüência, que a área sem cobertura florestal acima de 50%, em propriedade situada na Zona 1, estarão liberadas, por força da Lei Federal e do ZEE, para o uso produtivo, uma vez que não necessitam de recomposição. Pode-se dizer, dessa maneira, que, em tais condições, referidas áreas perdem o caráter jurídico de Reserva Legal e não se submetem às limitações administrativas típicas dessa categoria.

Conjugando o mencionado nos dois parágrafos anteriores têm-se as seguintes considerações, em síntese: na Zona 1 do ZEE, a reserva legal será algo entre 50% e 80% da propriedade, de acordo com a cobertura florestal existente na data da entrada em vigor da Lei nº 1.904/2007; as áreas sem cobertura florestal acima de 50%, nas mesmas condições

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(zona1), por conseqüência, não são juridicamente reserva legal e não se submetem às limitações típicas dessa categoria. Para melhor entendimento do exposto até o momento, passamos a indicar alguns exemplos explicativos.

No caso hipotético apresentado na figura 6 abaixo, de uma propriedade situada na Zona 1 do ZEE, contendo 100 ha de área e 50 ha de florestas, pode-se dizer que não há passivo ambiental após a edição do Decreto Estadual nº 3.416/2008. Assim, a área de 50% sem cobertura florestal representada pela metade esquerda do gráfico poderá ser utilizada regularmente (com algumas exceções, a exemplo de APP) e, portanto, não são reserva legal e não se submetem às suas limitações. Isso significa, por consequência lógica, que a área a ser averbada como Reserva Legal, neste caso, é equivalente a 50% e não 80% da propriedade.

- 100 ha de área- 50 ha de floresta- Na Zona 1 do ZEE- Área a averbar: 50%- Passivo: 0%

Figura 6 – Representação Gráfica de Propriedade com 50% de Cobertura Florestal.

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Já na figura 7, abaixo, uma propriedade, também localizada na Zona 1 do ZEE, contendo apenas 20% de cobertura florestal, deverá recompor seu passivo ambiental até alcançar o percentual de 50% de cobertura, possuindo, assim, um passivo de 30%. Tal recomposição poderá ocorrer por meio de compensação, recuperação ou desoneração (ver fig. 05), de acordo com os critérios do Decreto Estadual. De toda sorte, deve-se mencionar que, grosso modo, também essa propriedade terá, ao final, uma averbação total de 50% da propriedade como Reserva Legal.

Como importante elemento, deve-se destacar que, nos casos em que a cobertura florestal for menor que 50% e for permitida recuperação da área por meio de plantio ou regeneração em virtude de Termo de Compromisso, poderá ser seguido o § 1º do art. 5º do Decreto nº 3.416/2008, o qual permite a averbação gradual da Reserva Legal. Vejamos:

Figura 7 – Representação Gráfica de Propriedade com 20% de Cobertura Florestal.

- 100 ha de área- 20 ha de floresta- Na Zona 1 do ZEE- Área a averbar: 50%

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Art. 5º [...][...]§ 1º A averbação da área de Reserva Legal deverá ser promovida no início da vigência do compromisso, quanto à cobertura florestal existente, e no início de cada fase do projeto de recomposição, quanto às áreas a serem recompostas ou regeneradas.

Há outra variável, que se aplica ao presente exemplo, que é a possibilidade de que os passivos verificados nas propriedades podem ser compensados em outra área, ou ainda que haja desoneração desta obrigação por meio de compensação em Unidade de Conservação ou pagamento ao Fundo Florestal, nos termos do Decreto Estadual.

Nestes casos, deverá haver a averbação, na matrícula do imóvel, de toda a vegetação existente na época da edição da Lei nº 1.904/2007 como Reserva Legal, ainda que menor que 50%, devendo-se completar a averbação, até os 50%, com a indicação da área que compensará o passivo existente. Sendo uma área real (compensação em área privada ou desoneração por doação de área em UC), também o imóvel cedente deverá conter, em seu registro cartorial, a averbação da nova condição de parte ou do todo de sua área de “ativo”, que passa a ter caráter de maior restrição de uso – Reserva Legal de outra propriedade (conferir art. 7º, § 6º; art. 12, § 3º, ambos do Dec. nº 1.426/2008). Já no caso de ser feito pagamento ao Fundo Florestal para “desoneração”, a SEF emitirá ao interessado um certificado que contenha declaração da área equivalente passível dessa desoneração, o qual deverá

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ser averbado no registro do imóvel a ser regularizado como comprovação da regularidade de sua reserva legal, nos termo do § 2º do art. 16 do Decreto acima mencionado.

Em um terceiro caso, que difere dos dois primeiros pelo fato de conter cobertura florestal maior que 50% (porém ainda inferior a 80%), podem também surgir dúvidas que devem ser esclarecidas neste artigo. A figura 8 abaixo representa uma propriedade de 100 ha localizada na Zona 1 onde há cobertura florestal em 72% da área. Pode-se dizer que, a exemplo das propriedades com 50% de floresta na Zona 1, não há passivo ambiental, o que, entretanto, não permite ao proprietário a redução da floresta para os mesmos 50% dos demais exemplos em razão do já mencionado princípio da não-redução de cobertura florestal.

Todavia, os 28% de área já aberta estarão disponíveis para uso produtivo e não se submetem às restrições típicas da Reserva Legal. Nesta hipótese, a Reserva Legal a ser averbada será de 72%, ratificando-se, assim, o posicionamento anterior de que a Reserva Legal poderá variar entre 50% e 80%

- 100 ha de área- 72 ha de floresta- Na Zona 1 do ZEE

Figura 8 – Representação Gráfica de Propriedade com 72% de Cobertura Florestal.

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da propriedade, na Zona 1, de acordo com a situação de cada propriedade.

Por fim, deve-se ressaltar que, em nas áreas localizadas nas demais Zonas do ZEE que não a Zona 1 (2, 3 e 4), a Reserva Legal permanece em 80% e assim deve ser averbada.

No entanto, outras questões permanecem nebulosas, mesmo após as explicações apresentadas acima, em especial quanto aos critérios para eventuais imposições de multa, levando em conta as reduções de reserva legal. Questionou-se, assim, se as áreas em que tiverem sido mantidos 50% de Reserva Legal, para efeito de autuação, seria considerado o critério de 80% e, se afirmativo, qual parâmetro (reserva legal ou área de conversão) seria aplicado. Questionou-se, também se, nas áreas com menos de 50% de cobertura florestal na Zona 1, qual parâmetro de reserva legal para efeito de fiscalização/autuação deveria ser adotado.

Em razão da estreita ligação entre esses questionamentos que servem de título à presente seção, devem ser enfrentados conjuntamente, de forma a facilitar a compreensão da solução indicada. Assim, tendo-se apresentado todo o esboço sobre a forma de averbação da Reserva Legal em razão da redução da mesma na Zona 1 do ZEE, nos termos do § 5º do art. 16 da Lei Federal 4.771/65, pode-se afirmar que fica mais fácil compreender os procedimentos para imposição de multa, uma vez que a resposta é corolário lógico do raciocínio formulado na questão anteriormente enfrentada.

Antes de tudo, a respeito do tema, deve-se salientar

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o disposto no art. 24 do Decreto nº 3.416/2008, com destaque à questão da prescrição. Na análise de cada caso em particular, é necessário verificar, desde logo, se houve o transcurso de tempo suficiente para a ocorrência da prescrição, inclusive o prazo prescricional especial de três anos disposto no § 2º do citado art. 24. Tal cuidado evitará gasto de tempo e recursos em relação a atividades que, por determinação legal, não podem mais sofrer imposição de sanção.

Ultrapassada esta questão inicial, pode-se prosseguir com o raciocínio formulado na proposta de solução quanto à área a ser averbada como reserva legal, servindo o mesmo de base para o encaminhamento aos questionamentos deste tópico. Assim, como visto, a Reserva Legal, na Zona 1 do ZEE, será algo entre 50% e 80%, a depender da cobertura florestal de cada propriedade na data de entrada em vigor da Lei nº 1.904, de 5 de Junho de 2007. Por esta razão, a solução da questão da Reserva Legal somente pode se dar com uma análise caso a caso, propriedade por propriedade. Assim também o é quando se fala de fiscalização por parte dos órgãos responsáveis e a verificação de eventual necessidade de imposição de multa.

Pegue-se como exemplo o primeiro caso hipotético citado no item anteriormente quanto à reserva legal, representado pela figura 6. Naquela situação, como visto, a Reserva Legal seria averbada em 50%, não havendo qualquer passivo ambiental a ser recomposto (regenerado, plantado, compensado ou desonerado). Dessa forma, o desmatamento realizado até 50% da área da propriedade não pode ser

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considerado como supressão de vegetação nativa em Reserva Legal, pois Reserva Legal não é.

Todavia, houve, de fato, uma supressão de floresta e, neste caso, podem ocorrer três formas distintas de responsabilização do proprietário:

a) houve, de alguma forma, autorização legal para o desmatamento e, neste caso, não há imposição de multa;

b) o ato foi ilegal, porém, por transcurso do tempo, está prescrito; ou,

c) a supressão ocorreu sem qualquer autorização de Órgão Ambiental competente e não ocorreu a prescrição. Neste caso, uma multa será devida.

Em relação à situação apresentada na alínea “c” acima, contudo, deve-se considerar uma circunstância altamente importante: uma vez que a área convertida em propriedade localizada na Zona 1 do ZEE em até 50% da área, em data anterior à Lei nº 1.904/2007, não é considerada Reserva Legal (conforme mencionamos no tópico anterior sobre a área a ser averbada), a multa a ser imposta deve ter como objeto a ocorrência de supressão de vegetação nativa em área de conversão, pois seria ilógico multar como supressão de Reserva Legal se já não se considera a área como tal em razão da previsão de redução estabelecida no ZEE e autorizado pela Legislação Federal (redução da Reserva Legal na Zona 1 do ZEE).

Situação bem diferente ocorre, contudo, se a supressão ocorreu em área superior a 50% da propriedade ou se tiver ocorrido em data posterior à publicação da Lei nº

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1.904/2007, argumento que nos leva, assim, a passar a enfrentar a última dúvida apresentada, quanto à multa por conversão de área superior a 50%. Vejamos o seguinte:

Acaso a supressão de floresta em propriedade na Zona 1 do ZEE tenha afetado área superior a 50% do seu total, haverá um passivo a ser recomposto porque, neste caso, houve invasão da Reserva Legal, mesmo quando sopesada a sua redução prevista no ZEE e na Legislação Federal. Essa possibilidade foi representada pela segunda situação hipotética citada no tópico anterior e cuja figura é reapresentada logo a seguir.

Uma vez que houve invasão de Reserva Legal e não havendo possibilidade de se ter recebido uma autorização legalmente expedida para tal supressão de floresta (pois não é possível autorização de supressão de Reserva Legal), duas situações podem ocorrer:

a) o ato, que foi ilegal, refere-se a um tempo longo o suficiente para ocorrência de prescrição e, assim, não há como se impor multa; ou,

- 100 ha de área- 20 ha de floresta- Na Zona 1 do ZEE

Figura 9 – Representação Gráfica de Propriedade com 20% de Cobertura Florestal.

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b) não houve transcurso de tempo suficiente para ocorrência da prescrição. Neste caso, uma multa será devida.

Em relação à situação apresentada na alínea “b” acima, deve-se considerar que houve violação de preceito legal que protege a Reserva Legal e, por tal razão, a multa deverá ser imposta considerando o ato como conversão de reserva legal até o limite de 50% (30%, no caso) e, a partir daí, como supressão de floresta em área de conversão. Analisemos melhor:

No exemplo graficamente apresentado acima, deve-se impor multa com a agravante de conversão de Reserva Legal no que se refere à área desmatada entre 20% e 50%. Para a área entre 50% e 80%, levando em conta que a mesma não será averbada como Reserva Legal, caso não se tenha licenciado tal desmate pelo Órgão Ambiental, deverá ser imposta multa como supressão de floresta em área de conversão (desmate sem autorização). Em todos os casos, relembramos que deverá ser observada a eventual ocorrência de prescrição.

Por fim, os desmatamentos ocorridosposteriormente à entrada em vigor da Lei nº 1.904/2007 não podem se beneficiar da redução da Reserva Legal na Zona 1 do ZEE, obrigando-se o responsável à recuperação da área, além de sofrer as sanções administrativas, civis e criminais eventualmente cabíveis, em especial o previsto no § 3º do art. 2º do Decreto nº 3.416/2008, conforme transcrito a seguir:

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Art. 2º [...][...]§ 3º Os imóveis onde tenha ocorrido supressão ilegal de floresta ou outra forma de vegetação nativa após a entrada em vigor da Lei nº 1.904/2007 se sujeitarão a embargo do uso da área desmatada ilegalmente, não se aplicando:I - a redução de reserva legal prevista no art. 7º da referida Lei Estadual;II - as regras estabelecidas no art. 5º deste Decreto;III - as possibilidades de desoneração previstas nas letras “a” e “b” do inc. III deste artigo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de tudo quanto mencionado no corpo do presente artigo, pode-se articular uma síntese das propostas desenvolvidas, na forma a seguir exposta:

A averbação da Reserva Legal, para as propriedades localizadas na Zona 1 do Zoneamento Ecológico-Econômico do Estado, deverá ocorrer em percentual variável entre 50% e 80%, dependendo do quantitativo de floresta existente no imóvel quando da entrada em vigor da Lei Estadual nº 1.904/2007;

As supressões de floresta em áreas de extensão não-superior a 50% de propriedade situada na Zona 1 do ZEE, se ocorrida antes da entrada em vigor da Lei Estadual nº 1.904/2007, poderão ou não ser sujeitas à multa, a depender da existência de autorização formal de Órgão Ambiental. Não havendo autorização, e cabendo a imposição de multa

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por consequência (salvo ocorrência de prescrição), deve-se considerar o ato como supressão de vegetação nativa em área de conversão (e não em reserva legal), como conseqüência lógica do exposto no item “I” desta conclusão;

Os desmatamentos ocorridos em áreas que representem extensão superior a 50% de propriedades situadas na Zona 1 do ZEE serão sujeitos a multa por supressão de Reserva Legal, salvo ocorrência de prescrição. Em todo caso, relembra-se que a supressão de vegetação nativa em área situada entre 50% e 80% da propriedade está sujeita a eventual multa na forma prevista na letra “b” desta conclusão.

Algumas outras conclusões decorrem do presente texto e devem ser observados na execução da norma estadual, podendo-se ainda destacar, dentre outras coisas, que:

Excepcionalmente, é possível averbar-se menos do que 50% de Reserva Legal nos casos em que houver resolução do passivo ambiental pela compra ou servidão de outra área privada ou em razão de desoneração decorrente de doação de área em Unidade de Conservação Estadual ou ainda pelo pagamento ao Fundo Florestal, conforme mencionado neste artigo. Deverão ser cumpridas, contudo, as obrigações de averbação dessas formas de recomposição na matrícula dos imóveis (cedente e cedido), de acordo com os dispositivos normativos do Decreto Estadual nº 3.416/2008;

Os desmatamentos ocorridos posteriormente à entrada em vigor da Lei nº 1.904/2007 não podem se beneficiar da redução da Reserva Legal previsto para a Zona 1 do ZEE;Fora da Zona 1 do ZEE, a Reserva Legal permanece em 80% e assim deve ser averbada.

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BIBLIOGRAFIA

SIQUEIRA, Ciro; NOGUEIRA, Jorge. O Novo Código Florestal e a Reserva Legal: do preservacionismo desumano ao conservacionismo politicamente correto. Disponível em: www.sober.org.br/palestra/12/ 08O387.pdf. Acesso em: 4 dezembro 2008.

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4Caterine Vasconcelos de Castro

O papel do Estado na proteção do conhecimento tradicional associado à biodiversidade dos povos indígenas

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O PAPEL DO ESTADO NA PROTEÇÃO DO CONHECIMENTO TRADICIONAL ASSOCIADO À BIODIVERSIDADE DOS POVOS INDíGENAS

Caterine Vasconcelos de Castro•

Introdução. 1 A proteção jurídica internacional do conhecimento tradicional associado à biodiversidade dos povos indígenas e o direito à autodeterminação e sustentabilidade. 2 O princípio da soberania permanente sobre os recursos naturais e sua correlação com a proteção dos conhecimentos tradicionais. 3 O papel do estado na adoção de políticas públicas que assegurem a proteção do conhecimento tradicional associado. Considerações Finais. Bibliografia.

INTRODUÇÃO

A partir do fenômeno da globalização e a internacionalização da economia, os conhecimentos das comunidades locais tradicionais, especialmente dos povos indígenas, despertam crescente interesse das indústrias associadas à biotecnologia, tendo em vista que representam

• Mestre em Direito pela UFSC. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Acre; especialista em Direito Público pela Faculdade Integra-da de Pernambuco; especialista em Direito Processual Civil pela Uni-versidade Cândido Mendes. Procuradora-Chefe do Centro de Estudos Jurídicos.

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uma fonte de informação relevante para acelerar o processo científico de identificação do potencial de utilidade econômica de diferentes formas de vida.

Sob o manto da propriedade intelectual convalida-se um processo de privatização do conhecimento tradicional dos povos indígenas, cuja realidade implica na necessidade de regulamentação do acesso à biodiversidade e conhecimentos tradicionais associados como necessidade de proteger um direito emergente, garantir a sustentabilidade e preservação do meio ambiente.

Nesse contexto, surge a Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB), por ocasião da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente (CNUMAD), realizada em 1992, no Rio de Janeiro, que se evidenciou, no cenário internacional, um novo código de conduta aplicável ao uso e à exploração da biodiversidade, o qual traz como princípio fundamental a soberania dos países detentores da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais associados, bem como a questão complexa que envolve o regime ideal de repartição de benefícios gerados pelas atividades de prospecção da biodiversidade.

A CDB estabelece, ainda, como princípio geral, a aplicação do princípio do consentimento prévio informado, cujo propósito é garantir a autodeterminação dos povos indígenas, ao procurar estabelecer uma forma desses povos participarem das decisões relativas ao uso e coleta de material genético e acesso ao conhecimento tradicional existente em território indígena, a despeito da soberania dos países sobre

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seus recursos naturais. É inconteste que o processo de globalização da

economia interfere no meio ambiente e, particularmente, provoca a inserção dos povos indígenas nesta realidade caracterizada pela exclusão social que propicia a transferência de recursos dos países megadiversos, e ainda em desenvolvimento, para os países desenvolvidos que possuem a tecnologia, acarretando o enfraquecimento do mecanismo de subsistência e modo de vida dos povos indígenas.

Tal realidade exige do Estado à adoção de políticas públicas que promova a consecução desses objetivos preconizados pela Convenção de Diversidade Biológica, a fim de assegurar um grau de proteção do conhecimento tradicional associado à biodiversidade, através da exploração tecnológica e comercial pelos próprios povos indígenas.

O presente artigo pretende, assim, tratar especificamente do conhecimento tradicional associado à biodiversidade dos povos indígenas, a partir dacontextualização da nova ordem econômica e regras pertinentes inscritas nas convenções internacionais existentes, para então encetar considerações acerca do papel do Estado enquanto garantidor do direito fundamental a um meio ambiente saudável e o direito à autodeterminação e sustentabilidade dos povos indígenas.

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1 A PROTEÇÃO JURíDICA INTERNACIONAL DO CONHECIMENTO TRADICIONAL ASSOCIADO À BIODIVERSIDADE DOS POVOS INDíGENAS E O DIREITO À AUTODETERMINAÇÃO E SUSTENTABILIDADE

Entenda-se conhecimento tradicional como “práticas empíricas, dos costumes que são passados de geração a geração aos membros de uma determinada comunidade local ou indígena que vive em contato com a natureza”1.

Para Ela Wiecko Castilho, o conhecimento tradicional pode ser identificado como um corpo de conhecimento construído através de gerações de pessoas que vivem em estreito contato com a natureza, cuja reprodução depende dessas pessoas que o atualizam, sendo que o termo tradicional “não fixa as coisas no passado, mas apenas carrega o acúmulo de experiências já vividas e aprovadas pelos antepassados para aplicá-las no presente, adaptando-as em busca da reprodução de sua eficácia”2.

A etimologia da palavra “tradição” designa a passagem de crenças, lendas, costumes, informações, de geração para geração, principalmente por via oral ou pela prática.

1 KOSZUOSKI, Adriana. Conhecimentos tradicionais: uma análise da proteção jurídica no Mercosul. Cuiabá: Carlini & Caniato, 2006, p.11.

2 CASTILHO, Ela Wiecko V. de. Parâmetros para o regime jurídico sui generis de proteção ao conhecimento tradicional associado a recursos biológicos e genéticos. In:MEZZAROBA, Orides (Org.). Humanismo latino e Estado no Brasil. Florianópolis: Fundação Arthur Boiteux, 2003, p. 459.

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A abrangência do termo, ressaltada por Paulo de Bessa Antunes, está relacionada ao fato de que a expressão engloba diferentes realidades e situações, podendo designar tanto folclore, pintura, artesanato, como a própria natureza. Assim também pode identificar o conhecimento de diferentes populações tradicionais, ribeirinhas, seringueiros, caiçaras, quilombolas e povos indígenas3.

Daí porque no presente trabalho, utiliza-se da expressão “conhecimento tradicional” para designar o conhecimento tradicional associado à biodiversidade, ou melhor, aos recursos genéticos, que nos termos da Legislação Brasileira, mais especificamente artigo 7º, inciso II, da Medida Provisória 2.186-16/01, é a informação ou prática individual ou coletiva de comunidade indígena ou de comunidade local, com valor real ou potencial, associada ao patrimônio genético.

Assim, tem-se que o saber acerca da biodiversidade, adquirido ancestralmente pelos povos indígenas, caracterizado pela estreita relação com o modo de vida ligado à natureza, evidenciado pelo conhecimento a respeito da utilidade de plantas e ervas medicinais, é conceituado pelo ordenamento jurídico como conhecimento tradicional associado à biodiversidade.

Necessário esclarecer também que a expressão genérica “povos indígenas” serve para designar grupos humanos bastante diferentes entre si, que historicamente estão vinculados aos primeiros povos que habitavam a América. Serve, portanto, para designar aquele que é originário de determinada localidade, nativo ou autóctone.

3 ANTUNES, Paulo de Bessa. Diversidade biológica e conhecimento tradicional associado. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002, p. 132.

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Os povos indígenas que vivem não apenas no nosso país, mas em todo continente americano são denominados índios, cuja nomenclatura deriva de um equívoco histórico dos primeiros colonizadores que, tendo chegado à América, julgaram estar na Índia. Também são chamados de ameríndios, os povos indígenas das Américas4.

Para Eduardo Viveiros de Castro, povos indígenas ou comunidade indígena “é toda comunidade fundada nas relações de parentesco ou vizinhança entre seus membros, que mantém laços histórico-culturais com as organizações sociais indígenas pré-colombianas” 5.

Segundo Manuela Carneiro da Cunha “comunidades indígenas são aquelas que se consideram segmentos distintos da sociedade nacional em virtude da consciência de sua continuidade histórica com sociedades pré-colombianas”6. Assim, para Manuela Carneiro da Cunha, “é índio quem se considera pertencente a uma dessas comunidades e é por ela reconhecido como membro”7.

No plano jurídico, a conceituação de índio deve ser buscada no sentido de o próprio índio poder reconhecer-se

4 CUNHA, Manuela Carneiro da. Disponível em: <http://www.socioam-biental.org>. Acesso em: 6 mar. 2007.

5 CASTRO, Eduardo Viveiros de. No Brasil , todo mundo é índio, exceto quem não é. In: RICARDO, Beto; RICARDO, Fany (Edits.). Instituto socioambiental, povos indígenas no Brasil 2001/2005. São Paulo: Ins-tituto Socioambiental, 2006, p. 41.

6 CUNHA, Manuela Carneiro da. Os direitos do índio: ensaios e docu-mentos. São Paulo: Brasiliense, 1987, p.25

7 Idem.

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como pertencente a um grupo indígena. Neste sentido, leciona José Afonso da Silva:

Enfim, o sentimento de pertinência a uma comunidade indígena é que identifica o índio. A dizer, é índio quem se sente índio. Essa auto-identificação, que se funda no sentimento de pertinência a uma comunidade indígena, e a manutenção dessa identidade étnica, fundada na continuidade histórica do passado pré-colombiano que reproduz a mesma cultura, constituem o critério fundamental para a identificação do índio brasileiro. Essa pertinência em si mesma, embora interagindo um grupo com outros, é que lhe dá a continuidade étnica identificadora8.

A Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), traz a conceituação de povos indígenas a partir da concepção de pessoas descendentes de populações que habitavam o país, ou região geográfica, ao qual o país pertencia no período da colonização e que independente de sua posição legal, conserva um pouco ou toda sua instituição social, econômica, cultural e política. Os povos indígenas, portanto, para a convenção são tratados como povos tradicionais que detêm costumes não escritos, crenças e rituais transmitidos de geração em geração.

Essa cultura indígena cuja diversidade é reconhecida pelo potencial imenso de conhecimento e experiências, se caracteriza hoje como fonte de riqueza e alvo

8 SILVA, José Afonso da. Direito constitucional positivo. 9.ed. São Pau-lo: Malheiros, 1992, p. 25.

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de espoliação. Ou seja, o objeto de apropriação não mais se restringe aos recursos hídricos e minerais de suas terras, mas atinge principalmente os conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade.

Essa realidade, evidenciada pelo capitalismo global, inaugura uma nova era de acesso que privilegia a informação genética e converte os recursos genéticos e conhecimento tradicional em matéria-prima, cujos mecanismos legais existentes não são capazes de proteger os povos indígenas das mais diversas formas de espoliação e de apropriação indevida de seus conhecimentos, a que se popularmente denomina de “biopirataria”.

A expressão biopirataria, embora não possua definição legal ou jurídica, é comumente considerada como toda a apropriação não autorizada do patrimônio genético de uma região, abrangendo espécies da fauna, flora, microorganismos e também dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade.

Segundo Jeremy Rifkin, a questão resume-se na disputa comercial sobre o domínio genético global, pois, enquanto “as empresas transnacionais alegam que a proteção da patente é essencial para que possam arriscar recursos financeiros e anos de pesquisa e desenvolvimento para trazer produtos novos e úteis ao mercado”, os países do Sul reivindicam uma “compensação por sua contribuição à revolução biotecnológica” a partir da preservação de ervas e lantas valiosas9.

9 RIFKIN, Jeremy. A era do acesso: a transição de mercados convencio-nais para networks e o nascimento de uma nova economia. São Paulo:

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Nesse cenário mundial, destaca-se a Convenção de Diversidade Biológica (CDB), por ocasião da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD), realizada em 1992, no Rio de Janeiro, como um novo código de conduta internacional aplicável ao uso e a exploração da biodiversidade.

A CDB traz como princípio fundamental uma questão complexa pertinente ao regime ideal de repartição de benefícios gerados pela bioprospecção que envolva a utilização dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade.

Todavia, há quem sustente que a CDB apenas referenda o desenvolvimento econômico-tecnológico, que visa um ordenamento jurídico e de propriedade no sentido capitalista e moderno, de “constitucionalismo global”, cuja dinâmica decorre não tanto das necessidades de proteção ou diminuição da erosão da diversidade biológica, mas notadamente do multifacetado interesse de comercialização desta diversidade10.

Em outro âmbito, diametralmente oposto à CDB, ou seja, no fórum da Organização Mundial do Comércio (OMC), com a finalidade de proteger o direito de propriedade intelectual como premissa para o desenvolvimento de novas tecnologias e garantir o desenvolvimento econômico

Makron Books, 1999, p.57.10 BRAND, Ulrich. Entre conservação, direitos e comercialização. A

Convenção sobre Biodiversidade no processo de globalização e as chan-ces de uma política democrática de biodiversidade. In: <http://boell_la-tinoamerica.org/dowload.pt/CBD_Ulrich Brand-post.doc>. Acesso em: 02 fev. 2007.

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dos países, em 1994, foi adotado o Acordo sobre aspectos relativos ao Comércio de Direitos de Propriedade Intelectual (TRIPS), como uma das conclusões da Rodada Uruguai, em 1994, ocorrida em Marraqueche, através do qual se estabelece padrões mínimos sobre patentes, marcas desenhos industriais, indicações geográficas, circuitos integrados e informações secretas11.

O direito de propriedade intelectual, segundo Luiz Otávio Pimentel, serve “como um instrumento de domínio econômico para garantir fatias do mercado para signos distintivos, produtos e obras que tem por titulares empresas ou pessoas naturais domiciliadas no exterior¨. A partir desta perspectiva, dentro do contexto internacional, pode-se enfatizar a importância do direito de propriedade intelectual para o desenvolvimento econômico, principalmente dos países da América do Norte, Europa e Ásia12.

Em verdade, o direito de propriedade intelectual é parte central do programa neoliberal patrocinado pela OMC, materializado no Acordo TRIPS (Aspectos Relativos ao Comércio e Direitos de Propriedade Intelectual), naturalmente porque assegura a concessão de patentes às invenções biotecnológicas, cuja sistemática, além de “garantir o monopólio institucionalizado, é um instrumento por intermédio

11 DAL RI JUNIOR, Arno; OLIVEIRA, Odete Maria de (Orgs.). Direito internacional econômico em expansão: desafios e dilemas. Ijuí: Edito-ra Unijuí, 2003, p. 362.

12 PIMENTEL, Luiz Otávio. Propriedade intelectual e desenvolvimento. In: CARVALHO Patrícia Luciane de (Org.), Propriedade intelectual: estudos e homenagens à professora Maristela Basso. Curitiba: Juruá, 2006, p. 43.

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do qual tanto o conhecimento científico e tecnológico são transformados em bem econômico, pois seu objetivo passa a ser objeto de tutela, isto é, passível de proteção e apropriação privada e, portanto, de transações mercantis13.

Esse sistema decorre da própria nova ordem global, como bem elucida Enrique Leff14:

Na era da produção intensiva de conhecimento, esse “fator estratégico da produção” concentra-se nos países do Norte, tanto no setor industrial como no agrícola. Isso não se deve apenas ao maior número de cientistas e tecnólogos em atividade e à sua capacidade de financiar um sistema de pesquisa altamente produtivo. Deve-se, sim, à implementação de uma estratégia de poder que levou esses países a estabelecer direitos de propriedade intelectual dentro da nova ordem global da OMC, abrindo a possibilidade para que consórcios transnacionais de biotecnologia se apropriem da riqueza genética dos países biodiversificados e invadam seus territórios com produtos trangênicos.

A globalização provoca assim a inserção dos povos indígenas nesta realidade marcada pelas desigualdades e homogeneização da cultura, acarretando o agravamento da histórica marginalização desses povos, da qual faz exsurgir como necessidade fundamental a

13 Idem, p. 81.14 LEFF, Enrique. Racionalidade ambiental e a reapropriação social da

natureza. Tradução de Luís Carlos Cabral. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 150.

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proteção jurídica dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade como forma de resguardar a sobrevivência desses povos e sua cultura, bem como assegurar o desenvolvimento sustentável, concebido segundo Cristiane Derani, como “desenvolvimento harmônico da economia e ecologia que devem ser ajustados numa correlação de valores onde o máximo econômico reflita igualmente um máximo ecológico”15.

Para compreender a forma que ocorre a apropriação desses conhecimentos pelo sistema de patentes, destaca-se a patente dos princípios ativos da planta Banisteriopsis caapi, componente de bebida denominada por alguns índios de ayahuasca, que a utilizam em rituais religiosos e como planta medicinal. As características medicinais, que já eram conhecidas das tribos, foram simplesmente colocadas em evidência como se inovação fosse, sendo objeto de patente, sob o pretexto de que as folhas da planta apresentadas tinham tamanho, formato e textura diferentes da variedade tradicional16.

Jeremy Rifkin assegura que “quase três quartos de todas as drogas derivadas de plantas, prescritas nos dias de hoje, eram utilizadas na medicina indígena”. Cita como exemplo, o curare, hoje utilizado como anestésico cirúrgico e relaxante muscular, que “é derivado de extratos vegetais utilizados pelos índios da Amazônia para paralisar a caça”17.

15 DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, p.128.16 VARELLA, Marcelo Dias. Direito internacional econômico ambiental. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p.369.17 RIFKIN, Jeremy. O século da biotecnologia: a valorização dos genes e

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Argemiro Procópio destaca inúmeros casos de apropriação dos conhecimentos tradicionais dos povos amazônicos pelo “bionegócio”, que segundo ele representa o novo campo para exportações bilionárias18:

Remédios vendidos nas prateleiras das farmácias do mundo inteiro trazem riquezas para transnacionais, graças ao conhecimento tradicional e causam impiedosa descrição em seu processo de cata ou colheita. Vale citar, a título de exemplo, o jaborandi, Pilocarpus jaborandi,, usado no tratamento de glaucoma; a espinheira santa, Maytenus ilicifol,a contra distúrbios estomacais; o látex antiviral da corticeira, Erythrina crista-galli; o veneno da Bothops jararaca, transformado em anti-hipertensivos; o poderoso analgésico presente na pele do sapo Epipadobates tricolor. Esses e centenas de outros frutos da biopirataria enriquecem mais ainda multinacionais e grandes laboratórios como o Abbot, Bristol-Meyers squibb, Eli Lilly, Nippon Mektron, Shapman Pharmaceuticals, Monsanto, Merck etc.

Percebe-se, pois, que no contexto da globalização e da economia de mercado, a usurpação do conhecimento indígena é legalizada pelo direito de propriedade intelectual cujo modelo caracteriza a forma como a nova fase do capitalismo se organiza.

a reconstrução do mundo. Tradução e revisão técnica de Arão Sampaio. São Paulo: Makron Books, 1999.p. 5.

18 PROCÓPIO, Argemiro. O multilateralismo Amazônico e as fronteiras de segurança. In:_______. Relações internacionais: os excluídos da Arca de Noé. São Paulo: Hucitec, 2005, p.108-109.

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Como enfatiza Antonio Carlos Wolkmer;

qualquer sistema jurídico se constitui no espelho ideológico de um processo social determinante que se sedimenta e se justifica pelas necessidades político econômico do modo de produção dominante19.

Nos últimos tempos, portanto, há um reconhecimento da comunidade internacional do valor e necessidade de proteção dos direitos culturais e conhecimentos tradicionais imateriais dos povos indígenas diante da realidade que se configura uma ameaça à profusão e proteção do conhecimento tradicional associado à biodiversidade.

Diante desse cenário, insta destacar a importância da Convenção 169 da OIT para a questão indígena no âmbito do reconhecimento de direitos, na proporção em que prevê que a diversidade étnico-cultural dos povos indígenas deve ser respeitada em todas as suas dimensões e reforça os direitos dos índios às terras e aos recursos naturais nelas existentes20.

Obriga, ainda, os governos a adotarem medidas para proteger e preservar o meio ambiente dos territórios habitados por indígenas (art. 7º), e dispõe que os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas próprias prioridades no que se refere ao processo de desenvolvimento econômico, social e cultural.

19 WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia estado e direito. 4.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003,p.164.

20 Idem, ibidem.

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O art. 15 da Convenção 169-OIT dita que os direitos dos povos indígenas aos recursos naturais existentes nas terras, aí abrangida a utilização, administração e conservação, deverão ser especialmente protegidos, e afirma que na hipótese de os recursos existentes nas terras pertencerem ao Estado, os governos devem estabelecer procedimentos de consulta para determinação de eventual prejuízo aos povos interessados.

Além da CDB, que se constitui em um divisor de águas na regulação do acesso à biodiversidade e reconhecimento do valor do conhecimento tradicional dos povos indígenas para sua conservação, há de se destacar que em 13 de setembro de 2007, a Assembléia Geral da ONU aprovou, após dois decênios de negociações, a Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, que protegerá as mais de 370 milhões de pessoas que integram estas comunidades vulneráveis do mundo. O texto, aprovado por 143 votos contra quatro, com 11 abstenções, constitui um marco histórico para o movimento indígena, que durante anos tentou fazer aprovar este texto nas Nações Unidas21.

A declaração, de 46 artigos, estabelece os padrões mínimos de respeito pelos direitos dos povos indígenas do mundo, que incluem a propriedade das suas terras, acesso aos recursos naturais dos seus territórios, preservação dos seus conhecimentos tradicionais e autodeterminação.

A questão da proteção do conhecimento tradicional ultrapassa o reconhecimento da sociodiversidade, mas, perpassa também pela necessidade de converter os povos indígenas

21 Disponível em: <http://ww.vozdipovo-online.com>. Acesso em: 14 set. 2007.

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em novos sujeitos coletivos capazes de valorizar e apreender seus conhecimentos ‘biotecnológicos tradicionais’. Portanto, o significado desta proteção jurídica que se está a buscar, não se restringe a esfera meramente econômica no sentido de compensação pelo uso do conhecimento tradicional, mas, fundamentalmente, significa assegurar a produção e profusão desses conhecimentos.

A propósito, Manoela Carneiro da Cunha, resume a questão:

Que se deve entender por salvaguarda desse patrimônio? Como garantir a continuidade, o que implicaria ao mesmo tempo a transmissão dos saberes e a inovação permanente? É amplamente sabido que ‘proteção’, o termo preferencialmente usado por órgãos como a Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI), no seio das Nações Unidas, e o Instituo Nacional da Propriedade Intelectual (INPI), no Brasil, se refere primariamente a instrumentos de propriedade intelectual e atuação no mercado. Em contraste, ‘salvaguarda’ consta do vocabulário dos órgãos relacionados à cultura, como a Unesco, internacionalmente, e o IPHAN no Brasil. As conotações desses dois termos são distintas, mas unem-nos duas preocupações comuns, diferentemente enfatizadas: a de assegurar os direitos intelectuais e remuneração de produtores ou detentores de patrimônio cultural, em particular de conhecimentos, e a de assegurar a perpetuação de formas culturais de produzir22.

22 CUNHA, Manoela Carneiro. Op.cit., 2006, p.96-97.

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A partir desta reflexão, importa sugerir que o direito à proteção jurídica dos conhecimentos tradicionais dos povos indígenas está diretamente relacionado ao meio ambiente e a autodeterminação dos povos indígenas. Como esclarece Carlos Frederico Marés, os direitos coletivos indígenas “atingem o âmago do direito ao desenvolvimento, ou aos direitos humanos econômicos, sociais, culturais e ambientais”23.

Por tal razão deve ser enfocado tendo como premissa o direito ao desenvolvimento, reconhecido em âmbito internacional pela Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento das Nações Unidas, adotada pela Resolução n. 41/128 da Assembléia Geral da ONU, de 4 de dezembro de 1986.

O seu artigo 1º estabelece que o direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável e também implica a plena realização do direito dos povos à autodeterminação, aí incluído o direito de soberania sobre todas as suas riquezas e recursos.

A noção de desenvolvimento para o movimento ambientalista ganha novo paradigma a partir da divulgação, em 1987, do relatório das Nações Unidas intitulado “Nosso futuro comum”, também conhecido como relatório Brundtland, por ter sido “o primeiro relatório internacional que utilizou e defendeu o conceito de ‘desenvolvimento sustentável’, entendido como ‘aquele que satisfaz as necessidades das gerações atuais sem

23MARÉS DE SOUZA FILHO, Carlos Frederico. Multiculturalismo e di-reitos coletivos. In: SOUSA SANTOS, Boaventura de (Org.) Reconhe-cer para libertar: os caminhos dos cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p.45.

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comprometer a capacidade das gerações futuras’ de satisfazer as suas próprias necessidades”24.

Essa noção de sustentabilidade fez surgir o movimento socioambientalista, através do qual se procura promover a tutela do meio ambiente através não só da proteção ambiental, mas principalmente do crescimento econômico e a equidade social.

Na concepção de Juliana Santilli, o socioambientalismo está baseado no pressuposto de que “as políticas públicas ambientais só teriam eficácia social e sustentabilidade política se incluíssem as comunidades locais e promovessem uma repartição socialmente justa e equitativa dos benefícios derivados da exploração dos recursos naturais”25.

É bem verdade que quando se evoca o direito à proteção jurídica dos conhecimentos tradicionais dos povos indígenas, na grande maioria das vezes, ressalta-se mais o enfoque econômico e patrimonial relacionado à propriedade imaterial e ao direito de propriedade intelectual vigente, olvidando-se da necessidade de dotar esses povos de autonomia a ponto de assegurá-los o direito de apropriar-se de seus saberes, da ciência e da tecnologia.

O enfoque econômico é compreensível a partir da avaliação do desenvolvimento conjuntural e estrutural do Capitalismo nas sociedades latino-americanas, onde enfatiza Antonio Carlos Wolkmer, há uma forte tendência de se

24 SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e novos direitos: proteção jurídica à diversidade biológica e cultural. São Paulo: Fundação Petró-polis, 2005, p. 30.

25 Idem, p.35.

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priorizar uma interpretação sócio-econômica de toda uma universalidade de necessidades básicas insatisfeitas.26

Margarita Alonso, por sua vez, destaca que quando a Convenção da Diversidade Biológica (art. 8j) estabelece a obrigatoriedade de proteção destes conhecimentos, lança um desafio às comunidades e povos que possuem tais conhecimentos e práticas tradicionais, sugerindo duas opções27:

I) sujeitar-se à proteção dos direitos da propriedade intelectual ocidental desenvolvida para outros tipos de inovações individuais com aplicações industriais; ouII) estabelecer regimes que visem proteger o contexto em que se produz este conhecimento sustentado pelo direito interno dos povos e das comunidades. E é esse o desafio que os grupos étnicos em diversas partes do mundo enfrentam. Em suma, trata-se de um conflito entre a sujeição a tipos jurídicos impostos e a defesa da sua autodeterminação e da sua base cultural.

O pressuposto que emerge desta preocupação com a integridade da sociodiversidade está assentado na concepção de que a idéia de biodiversidade não seja apenas um produto

26 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos

de uma nova cultura do direito. 3.ed. São Paulo: Alfa Omega, 2001, p.247.

27 ALONSO, Margarita Flórez. Proteção do conhecimento tradicional? In: SOUSA SANTOS, Boaventura de (Org.). Semear outras soluções: os caminhos da biodiversidade e dos caminhos rivais. Rio de Janeiro: Civi-lização Brasileira, 2005, p.293.

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da própria natureza, mas que prescinde da interação humana, daí porque ressalta-se a importância dos conhecimentos tradicionais, parte da cultura de um povo, na conservação da biodiversidade.

Assim, entre os objetivos a serem perseguidos não está apenas a conservação da biodiversidade, mas principalmente, da sociodiversidade, ou seja, o respeito e valorização do conhecimento e cultura das populações tradicionais e povos indígenas, de modo a promover social e economicamente essas comunidades.

A compensação ou repartição de benefícios em contrapartida pela apropriação do recurso genético ou conhecimento tradicional a ele associado, portanto, não seria a questão central da temática, pois o mais importante é garantir a proteção dos povos indígenas, sua cultura e modo de vida, das transformações de seus conhecimentos e recursos em mercadoria pelas empresas transnacionais e nacionais envolvidas nas atividades de biotecnologia.

Todavia, diante da realidade fática das relações internacionais e regras econômicas vigentes, os países em desenvolvimento, na busca de proteger seus recursos naturais e conhecimentos tradicionais de suas populações autóctones, encontram-se imersos em um dilema. Nesse sentido, Andressa Caldas adverte:

Se por um lado, a adoção de instrumentos legais próprios do sistema jurídico ocidental enseja uma imposição arbitrária de categorias e princípios estranhos aos variados modos

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de organização próprios das comunidades tradicionais. Por outro lado, a recusa da adoção desses instrumentos legais pode implicar na total liberalização da biopirataria, na medida que se retira da esfera estatal a possibilidade de fiscalização do acesso aos recursos naturais que integram a biodiversidade.

Com efeito, a temática da proteção dos conhecimentos tradicionais no cenário internacional está envolta por contradições entre a lógica capitalista e a racionalidade ecológica que se baseiam em valores diferenciados e se legitimam através de grupos e atores sociais cujos paradigmas de conhecimento são distintos28.

Além disso, as transformações do mundo globalizado criam imposições de poder na perspectiva ambiental do saber que exigem do Direito a incorporação de novos direitos humanos, como “os direitos comunitários á autogestão de seu patrimônio de recursos e à normatividade social sobre as condições de acesso e uso dos bens comuns da humanidade”, na forma descrita por Enrique Leff29.

Dado a complexidade da questão e as divergências existentes em torno de uma possível solução para a problemática posta na ordem do dia, evidencia-se que a tentativa de uma efetiva proteção dos saberes dos povos indígenas deve estar inserida em uma discussão aberta realizada entre as mais diversas áreas da sociedade e, principalmente, permitindo a participação dos próprios povos indígenas no processo de elaboração dos mecanismos para proteção de seus conhecimentos.

28 LEFF, Enrique. Saber Ambiental, Tradução de Lúcia Mathilde Endlich Orth. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 134.

29 Idem, p.160.

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2 O PRINCíPIO DA SOBERANIA PERMANENTE SOBRE OS RECURSOS NATURAIS E SUA CORRELAÇÃO COM A PROTEÇÃO DOS CONHECIMENTOS TRADICIONAIS

O conceito de soberania no Estado Moderno foi construído pelo clássico de Jean Bodin, Los seis libros de la Repúbica, num contexto histórico de crises de afirmação do poder político centralizado na França, para o qual soberania é “o poder absoluto e perpétuo de uma república”30.

No contexto do direito internacional, a soberania é o conjunto de faculdades ou poderes relativamente a outras coletividades, assemelhado aos poderes de liberdade. Como enfatiza Edson Ricardo Saleme, “a noção de soberania auxiliou alguns Estados a se firmarem economicamente, mormente pela unificação do poder, redução das guerras intestinas de ordem civil ou religiosa e centralização do poder geralmente nas mãos de um soberano”31.

A soberania, segundo Mozart Costa de Oliveira, é direito público subjetivo supra-estatal que se irradia da incidência da regra jurídica de Direito das Gentes sobre suporte fático unitário: “uma coletividade com o traço sociológico de, com o seu território, ter formado em si os requisitos de ser livre perante as demais”32.30 BEDIN, Gilmar Antônio. A sociedade internacional e o século xxI.

Ijuí: Editora Unijuí, 2001, p.138.31 SALEME, Edson Ricardo. A transmutação dos elementos formadores

do Estado: a afirmação do DIP. In: DERANI, Cristiane; COSTA, José Augusto Fontoura Costa (Orgs.). Globalização & soberania. Curitiba: Juruá, 2004, p.105.

32 OLIVEIRA, Mozart Costa de. Soberania – à busca de um conceito ju-

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Esse conceito de Estado Nacional Soberano, contudo, hoje está numa crise, que para Luigi Ferrajoli vem tanto de cima por causa da transferência maciça de sedes supra-estatais ou extra-estatais (a Comunidade Européia, a OTAN, a ONU e as muitas outras organizações internacionais em matéria financeira), quanto de baixo em decorrência de processos de desagregação interna33.

Essa noção de soberania nacional como união da comunidade política e força de coesão não se confunde com o princípio da soberania permanente sobre os recursos naturais adotados na Convenção sobre Diversidade Biológica, pois a soberania de cunho essencialmente político nem sempre implica uma soberania permanente sobre os recursos naturais.

Com efeito, na década de 70, os países em desenvolvimento ou colonizados embora detivessem autonomia política, não detinham a livre disposição de seus recursos naturais, uma vez que o acesso aos recursos biológicos era permitido a todos, eis que considerado patrimônio comum da humanidade, concepção esta advinda da Convenção sobre o Direito do Mar, de 198234.

Esse princípio do direito ambiental internacional sofreu duras críticas nas discussões que antecederam a Convenção sobre Diversidade Biológica, captaneadas pelos

rídico. In: DERANI, Cristiane; COSTA, José Augusto Fontoura Costa (Orgs.). Op.cit., 2004, p. 95

33 FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.48-49.

34 NASCIMENTO E SILVA, Geraldo Eulálio. Direito Ambiental Inter-nacional. 2. Ed. Rio de janeiro: Thex Editora, 2002, p.111.

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países em desenvolvimento, detentores da diversidade biológica, a partir de uma compreensão de que esses recursos representariam fonte para financiar o seu desenvolvimento35.

Os países em desenvolvimento colocaram em xeque a questão de patrimônio comum da humanidade em favor do conceito de patrimônio nacional, no sentido de monetarizar o acesso aos recursos por intermédio de medidas compensatórias, como, por exemplo, a transferência de tecnologias36.

Os países industriais, naturalmente, eram partidários de um livre acesso aos recursos biológicos mundiais, sob o pretexto de considerá-los essenciais para o futuro da agricultura e da biotecnologia37.

Assim, o princípio aqui estudado tem uma conotação muito mais econômica do que política, no sentido clássico de soberania do direito internacional, eis que surge com o objetivo de eliminar a exploração desses recursos pelos países desenvolvidos sem nenhuma contrapartida financeira aos países detentores da biodiversidade.

Como já enfatizado, embora houvesse durante a década de 70 de início dos anos 80 uma resistência a uma privatização generalizada, considerava-se os recursos genéticos e conhecimentos tradicionais patrimônio comum da humanidade, cujo paradoxo, era notório, eis que no mundo da biotecnologia tudo era patenteado e os remédios e sementes considerados patrimônio estritamente privados passíveis de royalites.35 LÉV�QUE, Christian. LÉV�QUE, Christian. Biodiversidade. Tradução de Waldo Mermels-

tein. Bauru: EDUSC, 1999, p.225.36 Idem, ibidem.37 Idem, ibidem.

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Em 1975, os países em desenvolvimento detinham, apenas 1,7% das patentes mundiais, embora dos 12 centros megadiversos, 11 estivessem localizados no hemisfério Sul, ou seja, fossem responsáveis pela maioria dos recursos genéticos mundiais.

Para equilibrar esse paradoxo, a CDB consagrou o princípio da soberania sobre os recursos naturais deixando de considerá-los patrimônio comum da humanidade para considerá-los objeto da soberania dos países em que se localizassem, cuja compensação pelo acesso seria essencialmente transferência de tecnologia.

Referido princípio passou a constituir instrumento político e econômico dos países megadiversos e em desenvolvimento para se contrapor aos interesses econômicos das multinacionais e das grandes potências que reiteradamente exploram a biodiversidade e auferem lucro sem distribuir os dividendos com os demais países.

O princípio da soberania sobre os recursos naturais está escrito na Declaração do Rio de Janeiro, nos termos do Princípio 2, que assim prescreve:

Os Estados, em conformidade com as Cartas das Nações Unidas e os princípios de direito internacional, têm o direito soberano de explorar seus recursos de acordo com suas próprias políticas ambientais e desenvolvimentistas, e a responsabilidade de assegurar que as atividades sob sua jurisdição ou controle não causem dano ao meio ambiente de outros Estados ou de áreas dos limites da jurisdição nacional.

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Esse princípio, portanto, assegura aos países o direito de estabelecerem regras sobre a utilização dos recursos naturais existentes em seus territórios, de forma que esse direito soberano implica, sobre seus recursos, em autonomia quanto à criação de legislação nacional que venha determinar as condições de acesso aos recursos genéticos.

O artigo 15, item 1, da CDB reconhece que os Estados possuem direitos soberanos sobre seus recursos naturais e que “a autoridade para determinar o acesso a recursos genéticos pertence aos governos nacionais e está sujeita a legislação nacional”.

O item 2 do mesmo artigo 15, prescreve:

2. Cada parte contratante deve procurar criar condições para permitir o acesso a recursos genéticos para utilização ambientalmente saudável por outras Partes Contratantes e não impor restrições contrárias com os objetivos desta Convenção.

Esta soberania, obviamente, está limitada à observância dos princípios informadores da Convenção da Diversidade Biológica, na proporção que cada estado nacional ao adotar sua legislação deve fazê-lo em consonância com os objetivos da CDB, no sentido da conservação da biodiversidade ser entendida como patrimônio comum da humanidade enquanto preocupação comum a todos.

A conservação da diversidade biológica enquanto preocupação comum, como assevera Marie-Angèle Hermite, implica na “necessidade de esforço de continuação e de organização das trocas confiadas aos Estados”. De sorte que

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o que está em jogo não é mais a humanidade, “pois não se considera a diversidade biológica como patrimônio comum da humanidade”38.

Por outro lado, a emergência do tema da conservação da diversidade biológica enquanto “patrimônio comum da humanidade”, é identificada por Boaventura de Sousa Santos como uma forma de globalização de baixo-para-cima, solidária ou contra-hegemônica, em que esses temas globais deveriam ser geridos por fideicomissos da comunidade internacional em nome das gerações presentes e futuras39.

Consoante o artigo 15 da Convenção, o Estado é o único titular do direto de permitir o acesso aos recursos, baseando-se na afirmação dos direitos soberanos no que respeita à diversidade biológica.

O texto da Convenção, portanto, institui o Estado como único titular do direito de permitir o acesso aos recursos em virtude do princípio da soberania. Todavia, a adoção do princípio da soberania dos Estados sobre os recursos naturais é vista por alguns movimentos indígenas como desrespeitoso à autodeterminação e autonomia dos povos indígenas.

Sob esta ótica, Vandana Shiva aponta como falha da CDB a ausência de previsão do princípio do direito soberano das comunidades locais “que conservaram e preservaram abiodiversidade e cuja sobrevivência cultural está intimamente ligada à sobrevivência da biodiversidade, à conservação do

38 HERMITE, Marie-Angèlie. O acesso aos recursos biológicos: panora-ma geral. In: VARELLA, Marcelo Dias; PLATIAU, Ana Flávia Barros. Diversidade biológica e conhecimentos tradicionais. Belo Horizonte: Del Rey, v.2, Coleção Direito Ambiental, 2004, p. 4.

39 Idem, p. 437.

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uso da diversidade biológica”40. A CDB apenas reconhece a importância dos

conhecimentos tradicionais na preservação do meio ambiente e encoraja a repartição de benefícios. A Convenção preconiza no seu artigo 8.j, que:

Art. 8j – Convenção sobre Diversidade Biológica:[...] Cada parte signatária deve:Em conformidade com sua legislação nacional, respeitar, preservar e manter o conhecimento, inovação e práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilo de vida tradicionais relevantes à conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica e incentivar sua mais ampla aplicação com a aprovação e participação dos detentores desse conhecimento, inovações e práticas; e encorajar a repartição eqüitativa dos benefícios oriundos da utilização desse conhecimento, inovações e práticas.

Essa previsão advém do reconhecimento do papel positivo que populações tradicionais locais e povos indígenas desempenham na conservação e no uso sustentável da diversidade biológica das florestas, por meio do conhecimento acumulado sobre o ambiente em que vivem, bem como de suas práticas agrícolas e subsistência adequadas ao meio ambiente local, ou seja, é um reconhecimento também à diversidade social e cultural humana.

Todavia, com base neste artigo, a Conferencia das Partes, órgão diretor da Convenção, “fez evoluir o texto para incitar os Estados a atribuírem um papel complementar

40 SHIVA, Vandana. Op.cit., 2003, p.181.Op.cit., 2003, p.181.

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às comunidades autóctones e locais”, associando-as ao procedimento de autorização de acesso e aos benefícios que podiam ser retirados. Elucida Marie-Angèle Hermite que a “lei é, portanto, convidada a associar as comunidades ao Poder Público e às vantagens que podem surgir”41.

Neste particular aspecto, Porto Gonçalves chama a atenção para o fato de a CDB reconhecer a soberania sobre os recursos naturais significar uma “vitória de Pirro”, ou seja, uma vitória obtida a alto preço, expressão que designa uma conquista em que as perdas do vencedor são tão grandes quanto a do perdedor. Daí porque sintetiza:

Em face da ampla mobilização de camponeses e indígenas, entre outros, para que se reconheçam os seus direitos comunitários e coletivos sobre o seu conhecimento ancestral, os Estados Nacionais podem ser, mais uma vez, chamados a cumprir o seu papel soberano de suprimir os direitos desses povos e comunidades e, em pleno exercício da soberania, negociá-los com grandes corporações transnacionais, como vêm fazendo historicamente42.

No centro desta problemática está o princípio da soberania dos recursos naturais, porquanto, aparentemente, este permite às Nações a realização de contrato de acesso sem

41 HERMITTE, Marie-Angèle. O acesso aos recursos biológicos: panora-HERMITTE, Marie-Angèle. O acesso aos recursos biológicos: panora-O acesso aos recursos biológicos: panora-ma geral. In: VARELLA, Marcelo Dias; PLATIAU, Ana Flávia Barros. Op.cit., 2004, p. 7.

42PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. A globalização da natureza e a natureza da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p.408.

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a participação dos povos indígenas e comunidades tradicionais.O autor adverte, contudo, que a soberania há

de ser pensada juntamente com a democracia, “onde o direito à igualdade não suprima o direito à diferença dessas populações”, ao chamar atenção para o perigo da soberania vir a ser exercida “pelos ‘de cima’ para os ‘de cima’ alegando razões de Estado”43.

Da mesma forma Juliana Santilli considera que embora o princípio da soberania dos Estados sobre seus recursos genéticos “possa ser festejado pelos países ricos em biodiversidade, por ser considerado um avanço em relação ao conceito anterior de ‘patrimônio da humanidade’, ele pode significar perdas para as comunidades indígenas, se for interpretado de forma contrária aos direitos indígenas e seus interesses”44.

Logo, “a maior soberania a ser respeitada é a da pessoa humana de sua dignidade. Para tanto, é imprescindível a satisfação de suas necessidades básicas e a redução de desigualdades”, como ressalta Silvana Winckler e André Balbinott45.

A celeuma, contudo, cinge-se ao fato de que a CDB embora reconheça a soberania dos países provedores de recursos naturais para recomendar a repartição de benefícios,

43Idem, p.408.44 SANTILLI, Juliana. A proteção aos direitos intelectuais coletivos das

comunidades indígenas brasileiras. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/SOS/indios>. Acesso em: 3 set. 2007.

45 WINCKLER, Silvana Terezinha; BALBINOTT, André Luiz. Direito ambiental, globalização e desenvolvimento sustentável. In: BARRAL, Weber; PIMENTEL, Luiz Otávio (Orgs.). Direito ambiental e desen-volvimento. Florianópolis: Fundação Arthur Boiteux, 2006, p.74.

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deixa de estabelecer regras mais específicas quanto às reais compensações devidas às comunidades indígenas.

O Brasil ratificou a Convenção de Diversidade Biológica assinada durante a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Congresso Nacional promulgou o Decreto Legislativo n. 2.519 de 1998 incorporando-a ao ordenamento jurídico brasileiro, cuja regulamentação até o presente momento não se deu por lei, mas por Medida Provisória.

A primeira a tratar do assunto foi a Medida Provisória nº. 2.052, editada em 30 de junho de 2000, que foi reformulada pela Medida Provisória 2.186-16 de 23.08.2001.

No caso brasileiro, num primeiro momento, com a edição da Medida Provisória 2.052 de 2000, evidenciou-se exatamente esta preocupação destacada por Porto Gonçalves no que diz respeito à soberania dos países sobre os recursos naturais ferir mais uma vez os direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais, senão vejamos o que preconizava o artigo 1.4:

Em casos de relevante interesse público, assim caracterizado pela autoridade competente, o ingresso em terra indígena, área pública ou privada para acesso a recursos genéticos dispensará anuência das comunidades indígenas e locais e de proprietários [...].

Ora, tal artigo representava uma fenda no sistema ao permitir o acesso a recursos genéticos independentemente da vontade dos índios e das comunidades tradicionais, a despeito da recomendação da CDB quanto à exigência do

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consentimento prévio e informado.Na Medida Provisória 2.186-16, de 23 de agosto de

2001, este artigo restou reformulado pelo artigo 17, que assim prescreve:

Art. 17. Em caso de relevante interesse público, assim caracterizado pelo Conselho de Gestão, o ingresso em área pública ou privada para acesso a amostra de componente do patrimônio genético dispensará anuência prévia dos seus titulares, garantidos a estes o disposto nos artigos 24 e 25 desta Medida Provisória.1 No caso previsto no caput deste artigo, a comunidade indígena, a comunidade local ou o proprietário deverá ser previamente informado.2. Em se tratando de terra indígena, observar-se-á o disposto no § 6º do art. 231 da Constituição Federal.

A constitucionalidade desse tópico da medida provisória pode ser questionada frente ao que dispõe o artigo 231, § 2º, da Constituição Federal, que outorga aos índios o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes em terras indígenas, ocupadas tradicionalmente. A Constituição Federal entrever, como exceção a essa autonomia, somente os casos de aproveitamento de recursos hídricos e pesquisa e exploração de recursos minerais, consoante § 3º do referido artigo e, ainda assim, assegurando-se a participação nos resultados da lavra.

Desse modo, inconteste que os povos indígenas deverão ser parte de qualquer contrato de acesso e recursos

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existentes em seu território. Deverão, portanto, participar das discussões e negociações quanto à utilização de seus conhecimentos e sendo-lhes garantido a devida compensação.

Da mesma forma, há de ser respeitado o direito dos povos indígenas em negar o acesso aos recursos naturais porventura existentes em seus territórios, bem como ao conhecimento tradicional associado à biodiversidade se assim for expresso a vontade da comunidade.

Assim, é que esse princípio da soberania sobre os recursos naturais deve estar conciliado com o propósito da Convenção de também garantir e assegurar os direitos à proteção dos conhecimentos tradicionais conferidos aos povos indígenas, exercendo a soberania de forma responsável e cooperativa.

3 O PAPEL DO ESTADO NA ADOÇÃO DE POLíTICAS PúBLICAS QUE ASSEGUREM A PROTEÇÃO DO

CONHECIMENTO TRADICIONAL ASSOCIADO

A complexidade da implementação dos princípios informativos da CDB, ademais, decorrem da existência de objetivos um tanto contraditórios da própria CDB, consistente na conservação e utilização de recursos genéticos, que abriga um enfoque ambiental, assim como ao mesmo tempo um objetivo econômico consistente em conferir a distribuição equitativa dos benefícios derivados da utilização de recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados.

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Nesse aspecto, tem-se que a CDB criou uma expectativa excessiva em respeito ao próprio valor desses recursos genéticos e conhecimentos tradicionais, o que poderia caracterizar uma primazia ao objetivo econômico em detrimento do enfoque ambiental que muitas vezes quer fazer parecer privilegiar.

Nesse contexto, um novo Regime Internacional de Acesso e Repartição de Benefícios da Biodiversidade começa a ser discutido no cenário internacional, a partir das regras internacionais de proteção à propriedade intelectual definidas pela OMC, adaptando-as aos princípios informativos da CDB e, na medida do possível, em consonância com a natureza dos direitos coletivos dos conhecimentos tradicionais dos povos indígenas e populações tradicionais.

A construção de um sistema de proteção dos conhecimentos tradicionais dos povos indígenas, contudo, deve ter por princípio o desenvolvimento econômico sustentável das comunidades a partir das necessidades básicas de cada uma visando a integração no mundo globalizado sem que se produza um desequilíbrio ambiental e uma desintegração cultural, bem como, não ignorar a correlação de forças no plano internacional em favor dos países do Norte, industrializados, o poder das multinacionais e relações desiguais do comércio46.

De fato, as relações comerciais entre empresas nacionais, multinacionais e comunidades indígenas parecem estar sempre marcadas por uma desigualdade de condições, onde, nem sempre os resultados atingem as expectativas das

46 VIEIRA, Liszt. Op.cit., 2004, p.131.

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parcerias. Cite-se como exemplo, um caso denunciado no

ano de 2007 ao Ministério Público Federal no Acre, pelos índios Ashaninkas do Vale do Juruá, de um pedido de patente relativo à formulação do sabonete de murmuru, obtido a partir do conhecimento tradicional da comunidade indígena47.

Os Ashaninkas haviam consentido a empresa Tawaya, localizada na cidade de Cruzeiro do Sul, segunda maior cidade do Estado do Acre, a livre entrada na aldeia para conhecerem o modo de extração da manteiga de murmuru, para posterior formulação de acordo comercial. O acordo consistiria no fornecimento das sementes de murmuru, que seria utilizada pela empresa em escala industrial, sendo que os índios teriam direito a 25% dos rendimentos obtidos pela empresa. Com isso, os Ashaninka preocuparam-se em formar e capacitar a comunidade para exploração da castanha de murmuru de forma sustentável, sem que o conhecimento da fabricação do produto fosse externalizado. Contudo, ao alvedrio da comunidade, foi requerida a patente do sabonete de murmuru por Fabio Fernandes Dias, proprietário da empresa junto ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI).

Diante da denúncia, o Ministério Público Federal no Acre expediu recomendação ao Instituto Nacional de

Propriedade Industrial (Inpi), para determinar a suspensão do pedido de patente nº PI0301420-7 relativo à formulação 47 Disponível em: <http://noticias.pgr.mpf.gov.br/noticias-do-site/meio-

ambiente-e-patrimonio-cultural/mpf-ac-recomenda-quebra-de-patente-do-sabonete-de-murmuru>. Acesso em: 3 out. 2007.

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do sabonete de murmuru, obtido a partir do conhecimento tradicional da comunidade indígena Ashaninka, do Rio Amônia, no Acre, com o objetivo de resguardar os direitos e interesses desses povos para fins de repartição de eventuais benefícios oriundos de produtos elaborados a partir de informações obtidas de seus conhecimentos tradicionais48.

A inserção dos povos indígenas no mercado econômico global tem suas conseqüências e não há dúvida que a “lógica da ciência e do mercado diferem dos sistemas tradicionais de conhecimento, na concepção de propriedade, e há forte ceticismo quanto ao reconhecimento de direitos de populações”, conforme observa Mauro Leonel ao mencionar que outra linha alternativa de defesa da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais seria o fortalecimento das próprias comunidades para que possam tratar seus conhecimentos como segredos comerciais, capacitando-as para obter benefícios da bioprospecção, inclusive para patenteá-las49.

O autor, contudo, sugere, que “nada indica que se possa esperar por uma reversão da tendência à concentração, ou que os gargalos do mercado possam abrir oportunidades iguais às populações tradicionais e suas cooperativas, desqualificadas frente às transnacionais e aos acordos internacionais de comércio”50.

A propósito, a grande parte desses projetos de parceria econômica estabelecidas com os povos indígenas não

48 Disponível em: <http://www.juristas.com.br/mod_noticia>. Acesso em: 3 out. 2007.

49 LEONEL, Mauro. Biossociodiversidade: preservação e mercado. In: RIBEIRO, Wagner Costa (Org.). Patrimônio ambiental brasileiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003, p.463.

50 Idem, p.463.

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se mostra compensatória, tampouco garantem autonomia e livre escolha, na medida em que as comunidades são tratadas como “simples receptáculos de projetos impostos de cima”51.

Dos exemplos mencionados e, considerando a inconteste relação assimétrica entre as comunidades indígenas e empresas transnacionais e nacionais, urge uma proteção efetiva e orientadora do Estado para regular e supervisionar a execução dos projetos de acesso e contratos comerciais a fim de assegurar à proteção dos conhecimentos tradicionais, o direito ao consentimento prévio fundamentado e a repartição equitativa de benefícios.

Como enfatiza Antonio Carlos Wolkmer:

A afirmação desses “novos direitos” de cunho social é proclamada, não mais para restringir radicalmente o poder estatal, mas para exigir uma certa ação positiva do Estado, objetivando assegurar e garantir a efetivação de direitos nascidos no âmbito da própria sociedade. Esses direitos introjetados, a partir das carências vitais e sociais, obtidos por confrontos e reivindicações permanentes, vão exigir, quase sempre, a presença dos poderes públicos para implementar as condições à sua realização52.

É inegável, portanto, a importância do controle do Poder Estatal no acesso a recursos genéticos e conhecimentos tradicionais e relações comerciais advindos. A intervenção do

51 Idem, p.452.52 WOLKMER, Antonio Carlos. Op.cit., 2001, p.163.

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Estado não significa substituição à vontade das comunidades indígenas. Como assevera Juliana Santilli, deve se dar através do modelo de assistência e assessoramento aos detentores do conhecimento tradicional a fim de que se concretizem os direitos ao consentimento prévio informado e a repartição de benefícios53.

Para Juliana Santilli essa proteção estatal se dá por meio de:

aferir o cumprimento dos requisitos mínimos de validade do instrumento jurídico que concretiza o consentimento prévio fundamentado, tanto para o acesso a recursos genéticos quanto para o acesso ao conhecimento tradicional associado. Desta forma, estará fortalecendo e equilibrando, minimamente, as relações entre as partes na autorização de acesso, relativizando as pressões econômicas sobre os povos tradicionais54.

Nesse sentido, Sandra Kishi ressalta a relevância do papel do Estado na efetivação da preservação e na proteção dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, “mediante políticas públicas de gestão de seu uso equitativo, permeadas de mecanismos de informação e participação”55.

53 SANTILLLI Juliana. Conhecimento tradicional associados à biodiversi-dade: elementos para a construção de um regime sui generis de proteção. In: VARELLA, Marcelo Dias; PLATIAU, Ana Flávia Barros (Orgs.). Diversidade biológica e conhecimentos tradicionais. Belo Horizonte, Del Rey, Coleção Direito Ambiental, 2004, v.2.

54Idem, p. 367. 55KISHI, Sandra Akemi Shimada. Principiologia do acesso ao patrimônio

genético e ao conhecimento tradicional associado. In: VARELLA, Mar-

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A propósito, ante a ausência de garantias efetivas na proteção desses conhecimentos, o Estado pode desempenhar papel importante através de mecanismos de controle judicial de políticas públicas a serem implantadas em prol do desenvolvimento dos povos indígenas, tendo a sustentabilidade como meta.

Advirta-se, contudo, que o acompanhamento do Estado, pode se dar também através de financiamento de projetos comerciais privados e que tais empreendimentos podem resultar numa implicação direta com a cultura e a organização social da comunidade, de modo a afetar os laços tradicionais e comunitários, gerando um individualismo, aumento de desigualdades e conflitos.

Ancorada nessa idéia, qualquer empreendimento deve conferir primazia à preservação e restabelecimento da organização social indígenas, através do respeito às tradições e cultura, configurando algo desastroso o desaparecimento dessa cultura, ainda que possibilite alguma conversão em benefícios econômicos para a comunidade indígena. Ou seja, o essencial é que verdadeiramente atenda às necessidades fundamentais da comunidade indígena, no aspecto de sua autonomia e autodeterminação, propiciando, inclusive, uma independência de subsistência em relação ao projeto e seus benefícios.

A proteção ao conhecimento tradicional exige, ainda, do Estado à adoção de políticas democráticas que permitam a efetiva participação dos povos indígenas, enquanto novos sujeitos coletivos na reformulação desses direitos. É o que Antonio Carlos Wolkmer denomina de modelo

celo Dias; PLATIAU, Ana Flávia Barros (Orgs.). Op.cit., 2004, p.320.

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“comunitário-participativo” caracterizado pela “reordenação do espaço público mediante uma política democrático-comunitária descentralizadora e participativa, desenvolvimento de uma ética da alteridade e construção de processos para uma racionalidade emancipatória”56.

Em respeito e garantia à autodeterminação dos povos indígenas, a proteção dos conhecimentos tradicionais deve implicar, portanto, na participação e envolvimento desses novos sujeitos nas atividades de pesquisa e desenvolvimento, a partir de uma capacitação e treinamento para efetiva transferência de tecnologia, a fim de que se propicie um apoderamento de saberes, bem como assegure uma independência em relação aos acordos econômicos eventualmente estabelecidos em razão do acesso a recursos genéticos ou conhecimento tradicional existente nas comunidades indígenas.

A participação do Estado na consecução desses objetivos também parece primordial, haja vista que a adoção de políticas públicas e de mecanismos de fomento e desenvolvimento econômico pode promover um grau de proteção do conhecimento tradicional associado à biodiversidade através da exploração tecnológica e comercial pelos próprios povos indígenas, sem que houvesse a intermediação de empresas nacionais e transnacionais, cujo objetivo é o monopólio do conhecimento e da geração de lucros e royalties.

Assim, urge “pensar e transformar a ordem existente”. Para tanto é preciso ter consciência de que “a estrutura social é atravessada pela coexistência conflitual

56 Idem, p.232.

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e pelo pluralismo de normas jurídicas geradas pela divisão de classes entre dominantes e dominados”57. Como enfatiza Antonio Carlos Wolkmer “é no bojo do pluralismo jurídico insurgente não estatal que se tenta dignificar o Direito dos oprimidos e dos espoliados”58.

Nesse contexto, necessário produzir um novo conceito acerca da idéia de “repartição de benefício” que transcenda a dimensão meramente econômica, eis que reivindicar uma proteção jurídica dos conhecimentos tradicionais dos povos indígenas não está circunscrito ao fato de exigir uma contraprestação financeira.

Aliás, o benefício a ser exigido pode se configurar na necessidade de preservar esse conhecimento da usurpação e patrimonialização com o único intuito de permitir seu livre intercâmbio e difusão, como forma de manter viva a cultura, a espiritualidade e o modo de vida tradicional dos povos indígenas e sua própria subsistência.

Logo, outros mecanismos de proteção que vão além do que pode proporcionar o consentimento prévio fundamentado ou a repartição de benefícios preconizada pela CDB, merecem ser estruturados com o propósito de coibir a apropriação indevida destes conhecimentos pelo direito de propriedade intelectual vigente.

Note-se o caso da patente do princípio ativo da planta Banisteriopsis caapi, componente da bebida indígena ayahuasca, utilizada para fins terapêuticos e medicinais por 57 WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico

crítico. São Paulo: Acadêmica, 1991, p.13258 Idem, ibidem.

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diversas comunidades indígenas da Amazônia. No caso, o que deve ser reivindicado não é a repartição de benefícios pela eventual utilização comercial, mas sim a proibição da patente por não representar nenhuma inventividade e, ainda, por configurar usurpação de conhecimento e do direito inato dos povos indígenas de continuarem a praticar suas tradições no futuro.

Nesse sentido, é que se defende a conjugação de esforços do Estado Brasileiro em proteger o conhecimento tradicional não só no sentido de garantir uma repartição de benefícios como preconiza o modelo utilitarista da Convenção de Diversidade Biológica, mas principalmente oferecer instrumentos jurídicos e mecanismos eficientes de preservação da cultura e limitação do seu uso tão somente no contexto em que é produzido, como reconhecimento e valoração do conhecimento tradicional indígena.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O paradoxo da atualidade, marcada pelo processo de globalização de economias e homogeneização de culturas, consiste no fato do saber indígena ser considerado útil como atalho para pesquisas no campo da biotecnologia, contudo, não ser passível de ser valorado economicamente pelo atual sistema jurídico fundado sob o padrão de cientificidade, que serve de alicerce para o discurso da legalidade liberal-individualista/formal-positivista sistematizado nos séculos XVIII e XIX,

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marcado por profundas contradições estruturais das sociedades de consumo e de produção globalizada do capital.

Contudo, há de se insurgir contra o modelo dominante concebido a partir da noção privatística de propriedade intelectual para se assegurar uma efetiva proteção ao conhecimento tradicional dos povos indígenas voltada para a manutenção das formas de produção desse conhecimento e auto-regulação dos sistemas de proteção já existentes, tendo por primazia o desenvolvimento sustentável e autodeterminação dos povos indígenas.

Nessa linha, estabelecer um regime de proteção jurídica dos conhecimentos tradicionais sob a concepção do pluralismo jurídico significa proteger o contexto em que se produz este conhecimento sustentado pelo direito interno dos povos indígenas.

Desse modo, verificou-se que as comunidades indígenas têm enfrentado a problemática da necessidade de proteger juridicamente o conhecimento tradicional associado à biodiversidade formulado de geração para geração pelos povos indígenas.

O significado desta proteção jurídica que se está a buscar ultrapassa o escopo meramente econômico, no sentido de compensação de benefícios pelo uso do conhecimento tradicional, cujo princípio, embora muitas vezes utilizado como slogan de um desenvolvimento sustentável, não possibilita a conversão dos povos indígenas em novos sujeitos coletivos capazes de valorizar e apreender seus conhecimentos

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‘biotecnológicos tradicionais’. Sugeriu-se, então, que a questão da proteção

dos conhecimentos tradicionais dos povos indígenas está diretamente ligada ao direito à autodeterminação e respeito à alteridade, como forma de denunciar e romper com o processo histórico de colonização, através do qual se consolidou a noção de res nullius, caracterizando o conhecimento tradicional como patrimônio comum da humanidade, porquanto essa concepção não se enquadra mais numa sociedade plural, caracterizada pela diversidade étnica.

Importante, também, nesse processo de proteção jurídica, que exista uma conjugação de esforços do Estado Brasileiro em proteger o conhecimento tradicional não só no sentido de garantir uma repartição de benefícios como preconiza o modelo utilitarista da Convenção de Diversidade Biológica, mas principalmente oferecer instrumentos jurídicos e mecanismos eficientes de preservação da cultura e limitação do seu uso tão somente no contexto em que é produzido, como reconhecimento e valoração do conhecimento tradicional indígena.

Essa atividade do Estado deve ser pautada pelo respeito à alteridade, a valoração da diversidade, a partir da concepção dos princípios do pluralismo jurídico de teor participativo que privilegia a diferença e admite realidades díspares, cujo sistema provoca a difusão das diferenças, da qual decorre a valoração da tolerância.

Defende-se, pois, que a participação do Estado na consecução desses objetivos é essencial e obrigatória, tendo

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em vista o princípio ambiental da precaução e, também, o princípio do dever comum de conservação da diversidade biológica.

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5Luciano José Trindade

APONTAMENTOS SOBRE A CONSOLIDAÇÃO DO TERRITÓRIO DO ESTADO DO ACRE – das disputas entre Portugal e Espanha à fixação definitiva da divisa interestadual Acre/Amazonas

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APONTAMENTOS SOBRE A CONSOLIDAÇÃO DO TERRITÓRIO DO ESTADO DO ACRE – das disputas entre Portugal e Espanha à fixação definitiva da divisa

interestadual Acre/Amazonas

Luciano José Trindade•

Indrodução. 1 A Igreja Católica e a partilha do novo mundo entre Espanha e Portugal. 2 A ocupação e as disputas pelo território acriano após a independência dos países latino-americanos. 3 As divergências entre o Acre e o Amazonas acerca de sua divisa interestadual e a decisão soberana do Constituinte de 1988. 4 A decisão do STF no julgamento da Ação Cível Originária 415-2 e a Reclamação Constitucional 1421-5. 5 A materialização da nova divisa interestadual Acre/Amazonas e seus efeitos. Considerações Finais. Bibliografia.

• Msc. Luciano José Trindade, Procurador do Estado do Acre, lotado na Especializada de Patrimônio Imobiliário, Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina e Especialista em Direito Público pela Universidade do Estado de Mato Grosso e pela Faculdades Integradas de Pernambuco

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INTRODUÇÃO

O presente artigo retrata a história da integração das terras acrianas ao território brasileiro e a consolidação atual das fronteiras do Estado do Acre, com especial destaque à divisa interestadual Acre/Amazonas.

Para tanto, enfoca-se o papel de árbitro exercido pela Igreja Católica nas disputas havidas entre Espanha e Portugal pela exploração e domínio das terras do novo mundo, bem como as influências dos fatores naturais e do uti possidetis na configuração geopolítica da região amazônica.

Em seguida aborda-se o processo de ocupação por seringueiros oriundos do nordeste do Brasil e sua resistência contra a pretensão jurídica das terras do Acre pelas autoridades bolivianas, culminando com a Revolução Acriana e a consequente assinatura do Tratado de Petrópolis, marco da integração do Acre ao território brasileiro.

Também se relatam as discussões ocorridas na década de 1980 entre os estados do Acre, Amazonas e Rondônia acerca das controvérsias sobre suas fronteiras e a solução dada pelo constituinte de 1988 e o papel desempenhado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística na questão.

Por fim, explana-se sobre as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Civil Originária 415-2 e na Reclamação Constitucional 1421-5, garantindo ao Estado do Acre o acréscimo territorial de aproximadamente 11,5 mil km2 e determinando a fixação de nova linha divisória entre os estados do Acre e do Amazonas.

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1 A IGREJA CATÓLICA E A PARTILHA DO NOVO MUNDO ENTRE ESPANHA E PORTUGAL.

No decorrer da Idade Média, paulatinamente, foi-se firmando a tradição de a Igreja Católica decidir a respeito do direito de propriedade das terras descobertas no novo mundo, apontando-se, a título de exemplo, a concessão de propriedade da Ilha de Córsega ao Bispo de Pisa pelo Papa Urbano II, em 1.092, através da Bula Nos Igitur, e a concessão da propriedade das Ilhas Canárias à Espanha pelo Papa Sisto IV.

Como o descobrimento da América por Cristóvão Colombo foi financiado pela Espanha, em 1493 o Papa Alexandre VI, espanhol de origem, editou a primeira versão da Bula Inter Coetera, que garantia à Espanha o direito sobre as terras do novo mundo, com o encargo de propagar a fé católica.

O inconformismo de Portugal com esse privilégio outorgado à Espanha motivou a reelaboração da Bula Inter Coetera, ainda 1493. Estabeleceu-se, então, que as terras a serem descobertas e conquistadas seriam divididas entre os dois Estados Ibéricos, Portugal e Espanha, tendo como limite divisório um meridiano imaginário, localizado a cerca de 100 milhas rumo Oeste das Ilhas de Açores e Cabo Verde, de modo que as terras encontradas a Oeste do referido meridiano ficariam para a Espanha e as terras a Leste ficariam para Portugal.1

Entretanto, em 1494, Portugal e Espanha firmam o Tratado de Tordesilhas, visando resolver definitivamente a

1 SOUZA, Carlos Alberto Alves de. História do Acre: novos temas, nova abordagem. Rio Branco: Editor Carlos Alberto Alves de Souza, 2002, p. 148-149.

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disputa pelo direito às terras do novo mundo, de modo que a linha divisória criada pela Bula Inter Coetera é deslocada para 370 léguas a Oeste, a partir de Cabo Verde. Dessa forma, durante cerca de 300 anos Portugal e Espanha ocuparam as terras da América do Sul baseados, exclusivamente, na linha divisória estabelecida imaginariamente pelo Tratado de Tordesilhas.

Dessa forma, diante da ausência de limites materiais efetivamente fixados em solo, foram fatores como os limites naturais da Cordilheira dos Andes e o afunilamento da bacia hidrográfica em direção ao Oceano Pacífico, que fizeram com que a ocupação espanhola se intensificasse na região do Prata e, consequentemente, as fronteiras das terras portuguesas, futuro território brasileiro, se estreitassem no Sul do continente. Por outro lado, a dificuldade dos espanhóis em adentrar por terra pelo Oeste do continente e a elasticidade das bacias hidrográficas pelas regiões Central e Norte, propiciaram que as fronteiras portuguesas se alargassem na região amazônica.

Assim, utilizando-se do princípio do uti possidetis, herdado do Direito Romano, segundo o qual a terra pertence a quem a ocupa, Portugal passou a penetrar cada vez mais no interior do Brasil e, já no Século XVII, ocupava parte da Amazônia, tendo fundado o Forte Presépio, atual cidade de Belém, capital do Estado do Pará, em 12 de janeiro de 16162.

Com isso, enquanto Portugal buscava um meio de assegurar o reconhecimento de seu direito sobre as áreas que passou a ocupar, a Espanha almejava frear essa expansão da

2 TOCANTINS, Leandro. Estado do Acre: geografia, história e socieda-de. Rio Branco: Fundação Cultura do Acre, 1998, p. 29.

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ocupação territorial portuguesa, que na região Norte do Brasil, já ia muito além da delimitação do Tratado de Tordesilhas. Dessa confluência de interesses, Espanha e Portugal firmaram, sucessivamente, o Tratado de Madri, de 1750; o Tratado de El Pardo, de 1761; e o Tratado de Santo Idelfonso, de 1777, que tinham por objeto estabelecer as fronteiras entre as respectivas terras colonizadas na América do Sul.

Assim foi fixada, imaginariamente, em plena região amazônica, uma linha divisória que partia da margem esquerda do rio Madeira e prosseguia até alcançar o rio Javari, implicando que as terras de Portugal vinham até as proximidades da região do Acre, porém este permanecia inserido nas terras da Espanha.

2 A OCUPAÇÃO E AS DISPUTAS PELO TERRITÓRIO ACRIANO APÓS A INDEPENDêNCIA DOS PAíSES LATINO-AMERICANOS.

Em 1867, o Brasil e a Bolívia, já independentes, firmaram o Tratado de La Paz de Ayacucho, que definia a fronteira entre os dois países por uma linha partindo do rio Madeira, situada na coordenada geográfica de 10º20’ de latitude Sul. Embora isso garantisse que o Acre ainda ficasse dentro do território boliviano, o artigo 11, do referido Tratado, estabelecia o reconhecimento do uti possidetis (direito decorrente da ocupação, da posse).

Além disso, a região passou a ser objeto de grande

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interesse da economia mundial por ser, à época, grande produtora de borracha. Nesse sentido, basta observar que no ano de 1867 a produção de borracha na região amazônica foi de 5.826 toneladas, registrando-se, a partir de então, contínuo e significativo aumento, chegando a ser responsável por aproximadamente 65% da produção mundial nas três décadas seguintes3, tornando-se objeto de interesse econômico tanto de empreendimentos privados internacionais quanto de outras nações4. Por outro lado, também nesse período, mais precisamente entre 1877 e 1879, o Nordeste brasileiro sofreu uma das piores secas de que se tem notícia, provocando o êxodo de milhares de pessoas para outras regiões do país, inclusive para a Amazônia5.

3 MESQUITA JUNIOR, Geraldo. Acre, Odisséia e Epopéia. In: O Tratado de Petrópolis e o Congresso Nacional. Brasília: Senado Fede-

ral, Gabinete do Senador Geraldo Mesquita Júnior, 2003, p. 15.4 Nesse sentido, elucidativo o fato ocorrido em março de 1899, quando,

sem autorização do governo brasileiro, a canhoneira americana Wilming-ton subiu o rio Amazonas supostamente em direção a Iquitos, no Peru, retornando apenas no mês seguinte. Contudo, alguns dias depois o espa-nhol Luiz Galvez Rodrigues de Árias, recém chegado a Belém, capital do Estado do Pará, repórter do jornal Província do Pará, publicaria matéria denunciando que o comandante do referido navio de guerra, Chapman Todd, dirigia-se a seu país de origem com a proposta de acordo a ser firmada entre os governos americano e boliviano, no qual os Estados Unidos apoiariam a Bolívia para questionar os direitos sobre o território do Acre por meios diplomáticos ou bélicos, se necessário. Em contrapar-tida, a Bolívia se comprometia a assegurar o abatimento dos impostos de importação dos produtos originários dos Estados Unidos e dos impostos de exportação de borracha destinada a seus portos. (Cf. MESQUITA JU-NIOR, op., cit., p. 17-18).

5 Estima-se que em 1877 e 1878 cerca de 64.000 chegaram à região ama-zônica com procedência apenas do Estado do Ceará.

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Nesse contexto, a Bolívia passou a exigir o reconhecimento de seu direito territorial sobre a região do Acre conforme lhe garantiam todos os documentos históricos, desde a antiga Bula Inter Coetera (1493), passando pelo Tratado de Tordesilhas (1494), pelo Tratado de Madri (1750), pelo Tratado do Pardo (1761) e pelo Tratado de Santo Idelfonso (1777), até chegar ao Tratado de Ayacucho.

Não obstante, a ocupação da região exclusivamente por brasileiros e a possibilidade de invocação do uti possidetis pesavam em desfavor das pretensões bolivianas.

Na realidade, até a segunda metade do Século XIX a Bolívia dedicava-se à exploração e exportação de ouro e prata retirados das minas de Potosí, sem qualquer interesse em ocupar o Acre, que aparecia em seus antigos mapas como tierras non descobiertas. Além disso, mesmo quando o governo boliviano passou a incentivar foi bastante fraca a migração de trabalhadores bolivianos para produzirem borracha no Acre, que preferiam explorá-la em seu próprio território6.

A falta de adaptação e de um vínculo mais forte dos bolivianos com a região do Acre foi evidenciada em carta datada de 25 de outubro de 1902, dirigida pelo delegado boliviano em Puerto Alonso, D. Lino Romero, ao presidente da Bolívia, General Pando:

O Acre é nominalmente da Bolívia, mas materialmente do Brasil. [...] Tudo contribui para isso: as imensas distâncias e obstáculos que o separam do resto do país, a população estranha que o povoa, a fasta de vias de

6 SOUZA, op. cit., p. 148.

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comunicação dentro do mesmo território, e finalmente a impossível adaptação de nossa raça a esse clima mortífero7.

Por exigência das autoridades bolivianas, preocupadas com a intensa ocupação das terras do Acre por seringueiros brasileiros, o Protocolo de 19 de fevereiro de 1895 formou uma comissão conjunta entre Bolívia e Brasil, com o objetivo de proceder à demarcação definitiva da fronteira, respeitando os limites estabelecidos no Tratado de Ayacucho.

Dessa forma, o Capitão-Tenente Cunha Gomes, representante do governo brasileiro, em conjunto com os representantes da Bolívia, concluiu em 1898 o traçado da linha demarcatória Bolívia-Brasil, posteriormente denominada “Linha Cunha Gomes”, sendo que a região do Acre continuava localizada ao Sul da referida fronteira, ou seja, ainda em território boliviano8.

Contudo, logo surgiram divergências de

interpretação acerca da referida linha divisória, permanecendo a questão da fronteira entre os dois países sob impasse, principalmente em virtude da ocupação dos seringueiros brasileiros na região do Acre.

Ocorre que, a despeito da importância da região para a economia mundial e do contingente de brasileiros, vindos especialmente da região Nordeste, que povoavam e trabalhavam na região do Acre, o

7 MESQUITA JUNIOR, op., cit., p. 24.8 TOCANTINS, op. cit., p. 47.

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governo brasileiro relutava em defender sua integração aos limites territoriais do Brasil. Com isso, em 1899 o governo boliviano fundou seu primeiro estabelecimento alfandegário, denominado Puerto Alonso, na localidade onde hoje existe a cidade acriana de Porto Acre, o que fortaleceu a posição boliviana de que a linha “Cunha Gomes” era a divisa entre os dois países e o Acre pertencia ao território da Bolívia.

Ocorre que a partir desse momento os brasileiros que viviam na região resolveram lutar pela conquista do referido território em favor do Brasil, instaurando-se uma fase de grande instabilidade política, compreendida entre os anos de 1899 a 1903.

Nesse sentido, em 1º de maio de 1899 o cearense José de Carvalho, à frente de um grupo armado de seringalistas brasileiros, intimou, por escrito, o representante do governo boliviano a deixar Puerto Alonso, o que foi acatado sem necessidade de uso das armas, pois os bolivianos tinham certeza que continuariam a comandar o Acre, o que de fato ocorreu, tendo havido rápida retomada do comando de Puerto Alonso pela Bolívia9.

Em 14 de julho de 1899, o espanhol Luiz Galvez, à frente da Junta Revolucionária do Acre, formada por seringueiros brasileiros, novamente expulsou os bolivianos de Puerto Alonso, vindo a proclamar a República Independente do Acre10. Não obstante, além de não receber qualquer apoio do Presidente Campos Sales, logo Luiz Galvez enfrentou grande

9 Ibid., p. 152.10 TOCANTINS, Leandro. Formação Histórica do Acre. Rio de Janeiro: Conquista, 1961, p. 237-239.

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oposição dos seringalistas de Xapuri e do seringalista Neutel Maia, proprietário do seringal Empresa (atual cidade de Rio Branco).

Além disso, como as casas aviadoras de Belém e Manaus se recusavam a pagar os impostos cobrados pelo Acre Independente, Galvez proibiu a exportação da borracha a essas cidades, o que resultou numa crise econômica na região.

Nesse cenário, em dia 28 de dezembro de 1899 o Coronel Antonio de Souza Braga, proprietário dos seringais Benfica e Riozinho, foi aclamado como novo Presidente do Estado Independente do Acre, o qual determinou a prisão e expulsão de Galvez do território acriano, porém sua incapacidade político-administrativa permitiu que Galvez fosse reconduzido a Presidente do Acre em 30 de janeiro de 199011.

Entretanto, logo em 15 de março de 1900 Luiz Galvez é novamente deposto, desta vez em razão de acordo diplomático firmado entre a Bolívia e o Brasil, no qual o governo brasileiro optou pela manutenção da soberania boliviana na região, inclusive auxiliando-a com o envio de forças militares.

Mais adiante, no final do ano de 1900, surge nova tentativa de expulsão dos bolivianos. Desta feita, foi Rodrigo de Carvalho quem liderou a Expedição Floriano Peixoto, depreciativamente chamada de “Expedição dos Poetas”, sem alcançar êxito na empreitada, vez que logo os brasileiros foram derrotados pelos bolivianos.

11 Ibid., p. 154.

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Assim ia se consolidando o domínio da Bolívia sobre a região do Acre, de forma que em julho de 1901 o embaixador boliviano, em Londres, assinou um contrato de constituição da empresa Bolivian Syndicate, formada por grandes investidores privados, concedendo-lhe o arrendamento das terras e seringais localizados no Acre12.

Não obstante, a mensagem do governador amazonense Silvério Néri, encaminhada em 15 de janeiro de 1902, à Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas, já dava uma ideia da irresignação dos brasileiros com a situação:

[...] seja-me permitido render um preito de homenagem àquela porção de brasileiros que em zona longínqua regam com seu sagrado sangue a idéia patriótica de fazer permanecer brasileira a larga faixa de terra, ora ocupada pelo estrangeiro, ao sul da chamada linha Cunha Gomes, que o Governo vê-se obrigado a respeitar, por força de um tratado.

Importante observar que o interesse do governo amazonense na expulsão definitiva dos bolivianos do Acre decorria do fato de que, caso isso ocorresse, o Estado do Amazonas exerceria o comando político da região e herdaria a arrecadação de impostos de exportação da borracha. Por isso, o governador do Amazonas convidou Plácido de Castro, originário do Rio Grande do Sul, ex-militar que à época exercia agrimensura na medição de seringais, para comandar

12 MESQUITA JUNIOR, op., cit., p. 21.

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um exército de seringueiros, visando à expulsão dos bolivianos do território acriano13.

Tendo aceitado a referida missão, após treinar duramente o exército de seringueiros, Plácido de Castro inicia a guerra contra os bolivianos em 6 de agosto de 1902. Partindo de Xapuri, o movimento revolucionário irradia-se por todo o território acriano e culmina com a proclamação do Estado Independente do Acre, após derrotar definitivamente as tropas bolivianas em Puerto Alonso, no dia 24 de janeiro de 1903.

Embora as autoridades bolivianas ainda pretendessem organizar uma grande expedição militar, para revidar contra o exército de Plácido de Castro, isso jamais veio a ocorrer.

Enfim, era chegado o momento do governo brasileiro finalmente defender a região do Acre como integrante de seu território, o que fez por meios diplomáticos através do Ministério das Relações Exteriores, tendo à frente o Barão de Rio Branco.

Assim, por iniciativa do Barão de Rio Branco, em 21 de março de 1903, foi negociado um armistício na cidade de La Paz, o qual perduraria até que houvesse um acordo definitivo entre os dois países acerca de suas divisas. Em julho de 1903, iniciaram-se as negociações diplomáticas, visando à conciliação dos interesses entre Bolívia e Brasil e o encerramento das disputas bélicas na região do Acre, sendo que, em 17 de novembro de 1903, foi firmado o Tratado de Petrópolis, através do qual eram permutados territórios e

13SOUZA, SOUZA, op. cit., 155.

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definidas as divisas internacionais entre os dois países, além do compromisso da construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré e de uma indenização no valor de 2 milhões de libras esterlinas em favor da Bolívia, a serem pagas em duas prestações, em razão da troca de territórios ser mais favorável ao Brasil14.

Por outro lado, mesmo após a assinatura do Tratado de Petrópolis, que pôs fim à disputa entre brasileiros e bolivianos pelas terras do Acre, ainda necessitava solução a questão da fronteira do Brasil com o Peru, vez que desde a última década do século XIX os peruanos vinham adentrando a região do Juruá para extrair o caucho, tipo de látex oriundo da árvore castilloa ulei, causando a devastação da floresta com a derrubada das árvores e entrando em conflito com os índios que habitavam as terras acrianas.

Dessa forma, entre o final do século XIX e início do século XX, registraram-se diversos conflitos de seringalistas brasileiros contra caucheiros e soldados peruanos15, podendo-se mencionar os seguintes acontecimentos: em 7 de setembro de 1893, os soldados peruanos e o comissário Jorge Barreto foram expulsos da região do Purus pelo seringalista José Ferreira de Araújo; em 21 de outubro de 1902, seringalistas brasileiros, comandados por Carlos Eugênio Chavin, expulsaram os soldados peruanos e o comissário Carlos Vasquez Cuadra, que tentavam ocupar as áreas de Cruzeiro do Sul, Feijó e Tarauacá; em 30 de março de 1904, é novamente o seringalista José

14 MESQUITA JUNIOR MESQUITA JUNIOR, op., cit., p. 37.15 SOUZA. SOUZA. op. cit., p. 159-160.

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Ferreira de Araújo quem expulsa os caucheiros e soldados peruanos; e, entre 04 e 06 de novembro de 1904, mesmo após a assinatura de um acordo de paz entre Brasil e Peru, seringalistas e soldados brasileiros atacaram e expulsaram os soldados peruanos que se encontravam instalados num posto militar peruano situado na boca do Rio Amônia, próximo à cidade de Cruzeiro do Sul.

Visando à demarcação de suas fronteiras, Brasil e Peru assinaram, em 12 de junho de 1904, um Acordo de Paz, no qual criaram duas comissões de demarcação, tendo o Brasil sido representado na comissão de reconhecimento do Alto Purus pelo escritor, sociólogo e historiador Euclides da Cunha. Após os trabalhos de demarcação, em 8 de setembro de 1909, foi firmado o Tratado Brasil/Peru, que definiu a fronteira entre os dois países e fez o território do Acre diminuir de 191.000 km2 para cerca de 152.589 km2, sendo que o restante ficou para o Peru que, em compensação, retirou-se definitivamente das terras brasileiras.

3 AS DIVERGêNCIAS ENTRE O ACRE E O AMAZONAS ACERCA DE SUA DIVISA INTERESTADUAL E A DECISÃO SOBERANA DO CONSTITUINTE DE 1988.

Antes mesmo de ser firmado o Tratado que fixou a fronteira Brasil/Peru, internamente foi editado o Decreto 5.188, de 7 de abril de 1904, que organizou o território do Acre em três departamentos administrativos, denominados “Alto

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Acre”, “Alto Purus” e “Alto Juruá”, e estabeleceu seus limites, sendo que, ao Norte, foi observada a linha geodésica Javari-Beni, partindo da cabeceira do rio Javari até a nova fronteira com a Bolívia, no rio Abunã.

Importante observar que a fixação da linha geodésica Javari-Beni não decorreu da realização de trabalhos precisos e detalhados de georeferenciamento in loco nem da consideração dos fatores históricos, econômicos e sociais inerentes à ocupação das terras do Acre. Na realidade, simplesmente foram aproveitados outros trabalhos demarcatórios anteriormente desenvolvidos, em especial os realizados em 1895 pela Comissão conjunta Bolívia/Brasil, que procedeu à demarcação da fronteira entre os dois países respeitando as determinações contidas no Tratado de Ayacucho e considerando o Acre território de domínio legal da Bolívia, cujo traçado demarcatório passou a ser denominado como “Linha Cunha Gomes”.

Assim, a linha divisória Javari-Beni, que passou a se confundir com a antiga “Linha Cunha Gomes”, foi oficialmente criada sem que tivesse sido estabelecida de fato no solo, razão pela qual, desde a administração do Território Federal do Acre, o próprio Governo Federal e os administradores dos departamentos do Alto Acre, do Alto Purus e do Alto Juruá já exerciam seu poder para além da mesma, em território que legalmente seria amazonense,

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conforme já destacava José Moreira Brandão Castelo Branco16, Juiz Federal do antigo Território Federal do Acre:

A linha geodésica oblíqua a que se referem os tratados de 1867 e de 1903, é uma reta que parte da nascente principal do Javari e vai parar na confluência do Beni-Mamoré. E assim, sempre determinaram as leis ou decretos do governo brasileiro ao traçarem os limites do Território, conforme todas as organizações administrativas e judiciárias por que há passado o mesmo desde sua fundação [...].

Mais tarde, em 1940, o Conselho Nacional de Geografia na sua louvável campanha das coordenadas geográficas das cidades brasileiras, verificou acharem-se bem distantes dos seus verdadeiros lugares as cidades de Seabra, hoje Tarauacá, e a de Feijó, o que motivou quebrar a referida diagonal em outros pontos, traçando o mapa que apreciamos quatro rumos: da nascente do Javari à cidade de Cruzeiro do Sul (Juruá), desta à de Feijó (Embira), desta à de Sena Madureira (Iaco-Purus) e daí ao lugar Triunfo, no rio Abunã.

[...]

Destarte, a reta que devia separar o território amazonense do acriano, só existe nas leis que organizaram o Território pelo que, para não ficar ziguezagueante, uma vez que, nos vales do Purus, Acre e Abunã, não escapa a essas deformações, devia ser locada novamente, reduzindo a dois os seus rumos, como já frisamos, ou definitivamente abandonada por uma divisória que compreendesse, entre

16 BRANCO, José Moreira Brandão Castelo. Cartografia Acriana. Revis-ta do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. 223, abril/junho de 1954, p. 73-74.

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outros in totum os vales do Tarauacá e do Acre, definindo melhor as raias de cada circunscrição da República e facilitasse a fiscalização das fronteiras, arrecadação e de impostos, ação da polícia e a administração da justiça, ampliando a área do Território, numa zona quase abandonada pelo Estado vizinho.

Como a linha Javari-Beni nunca chegou a ser fixada no solo, o exercício da jurisdição e da atividade administrativa dos diversos Departamentos do Território Federal do Acre, estendiam-se para além dos seus limites, sem que jamais houvesse qualquer oposição do Estado do Amazonas.

Com a elevação do Território Federal do Acre à categoria de Estado, através da Lei Federal 4.070, de 15 de junho de 1962, já era nítido que as características de ocupação da região e os indicadores de ordem histórica, econômica e social apontavam para a necessidade de ser adotada uma divisa interestadual diversa tanto da linha reta “Cunha Gomes” (ou Javari-Beni) quanto da linha quebrada proposta pelo Conselho Nacional de Geografia em 1940, uma vez que com o crescimento urbano as cidades de Cruzeiro do Sul, Tarauacá, Feijó e Sena Madureira passavam a se situar parcialmente além dos limites do Acre, já em território do Amazonas.

Contudo, somente a partir de meados da década de 1980 que a questão passa a ser tratada com maior interesse pelos próprios estados vizinhos. Assim, em 16 de outubro de 1984, os representantes dos Estados do Acre, do Amazonas e de Rondônia reuniram-se na sede da Delegacia do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, em Manaus, com

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o objetivo de estabelecer um procedimento visando solucionar amigavelmente as divergências a respeito de suas respectivas divisas interestaduais.

Em 19 de fevereiro de 1986, os três Estados firmaram o convênio nº 026/86, no Processo 7.346/82/IBGE, através do qual criaram a Comissão Tripartite constituída pelos Estados do Acre, do Amazonas e de Rondônia, com a finalidade de estabelecer as divisas e os limites entre si, competindo ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística a execução dos trabalhos geodésicos e cartográficos necessários.

Tendo funcionado de fevereiro de 1986 a outubro de 1987, a referida Comissão Tripartite realizou diversas reuniões e obteve do IBGE grande cooperação na execução dos trabalhos necessários à fixação das divisas entre os três Estados.

No que se refere à divisa entre o Acre e o Amazonas não se chegou ao consenso almejado. O Estado do Acre, representado pelo então Procurador-Geral do Estado Hélio Saraiva de Freitas, discordava que a linha divisória Acre/Amazonas fosse fixada exclusivamente com base na recuperação dos marcos internacionais e na interpretação dos diplomas legais até então existentes, vez que ambos se referiam apenas ao traçado da imaginária linha geodésica Beni-Javari (ou Cunha Gomes), segundo a qual as cidades de Cruzeiro do Sul, Sena Madureira, Tarauacá e Feijó ficavam parcialmente em território amazonense.

Já o Estado do Amazonas não concordava com a pretensão acriana de que a linha divisória passasse por

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marcos geodésicos localizados no Rio Envira (Cruzeiro do Sul) e próximo à Vila Jurupari (Feijó). O Amazonas somente admitia fossem adotados marcos divisórios na Foz do Igarapé Remanso e na localidade denominada Estirão Eliezer, situação que praticamente mantinha a antiga linha Beni-Javari.

Em face disso, na última reunião da Comissão Tripartite, realizada em 02 de outubro de 1987, embora não tivesse competência para dirimir conflitos entre os Estados, o IBGE apresentou um relatório formal baseado nos estudos técnicos e nos trabalhos de campo que havia realizado, sugerindo que os seguintes pontos e respectivas coordenadas geodésicas fossem acatados pelo Acre e pelo Amazonas para implantação de seus marcos divisórios: Cruzeiro do Sul (91.004); Feijó (91.005); BR-317 (91.006); Sena Madureira (91.007); e Caquetá (91.008).

Na realidade, a sugestão apresentada pelo IBGE visava manter, no território do Estado do Acre, as áreas de cidades tradicionalmente acrianas, de forma que se aproximava bastante daquilo que o Acre pretendia e alterava o traçado da linha divisória interestadual até então considerada oficial.

Na tentativa de solução amigável para controvérsia da divisa entre o Acre e o Amazonas e, diante da necessidade política, econômica e social de que a mesma não deixasse fora do território do Estado do Acre cidades e áreas tradicionalmente tidas e havidas por acrianas, em 3 de setembro de 1987, o então senador e constituinte Nabor Teles da Rocha Júnior apresentou a Emenda nº ES-28.146-1, a qual determinava que fosse adotada como divisa entre os dois Estados a linha projetada e sugerida

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pelo IBGE junto à mencionada Comissão Tripartite, tendo a referida Emenda sido aprovada pela Assembleia Nacional Constituinte como § 5º, do art. 12, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988, com a seguinte redação:

Art. 12 [...]§ 5º. Ficam reconhecidos e homologados os atuais limites do Estado do Acre com os Estados do Amazonas e de Rondônia, conforme levantamentos cartográficos e geodésicos realizados pela Comissão Tripartite integrada por representantes dos Estados e dos serviços técnico-especializados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

Dessa forma, baseados na soberana decisão do Constituinte de 1988, em 3 de outubro de 1989, os deputados constituintes acrianos promulgaram a Constituição do Estado do Acre, onde proclamaram, no art. 216, que o território do Estado do Acre fundamenta-se no Tratado de Petrópolis de 1903, no Tratado do Rio de Janeiro de 1909 e nos levantamentos cartográficos e geodésicos realizados pela Comissão Tripartite integrada por representantes dos Estados do Acre, do Amazonas e de Rondônia.

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4 A DECISÃO DO STF NO JULGAMENTO DA AÇÃO CíVEL ORIGINÁRIA 415-2 E A RECLAMAÇÃO CONSTITUCIONAL 1421-5.

O art. 12, § 5º, do ADCT, em reconhecimento aos fatores históricos, sociais, políticos e econômicos estabeleceu juridicamente as diretrizes a serem observadas pela nova divisa interestadual entre o Acre e o Amazonas, assegurando que ficassem no território do Estado do Acre as áreas historicamente assistidas pelos seus poderes constituídos e tradicionalmente ocupadas por acrianos.

Não obstante, apesar dessa nova linha divisória entre o Acre e o Amazonas ter sido formalmente constitucionalizada, a inexistência de sua materialização no solo expunha as autoridades públicas e as populações residentes nas localidades limítrofes das referidas unidades federativas a um estado de permanente incerteza acerca dos reais limites territoriais, tornando imperiosa a interligação substantiva da nova linha divisória.

Ocorre que o Estado do Amazonas opunha-se à alteração da divisa interestadual, pretendendo que se mantivesse a antiga Linha Cunha Gomes como fronteira entre os territórios acriano e amazonense. Assim o Estado do Acre viu-se obrigado a adotar as medidas judiciais necessárias à consolidação in solo da norma constitucional que estabeleceu a nova divisa interestadual, a fim de que fosse definitivamente estremada sua área territorial da área do Estado do Amazonas.

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Nesse sentido, desde 23 de junho de 1897, data em que o Supremo Tribunal Federal proferiu Acórdão17 decidindo exceção de incompetência suscitada em Ação Cível Originária ajuizada pelo Estado do Amazonas contra o Estado de Mato Grosso, não restam dúvidas de que cabe à Corte Constitucinal a solução de controvérsias sobre limites interestaduais.

Ademais, ainda no regime da primeira Constituição da República, Ruy Barbosa18 já discorria sobre a competência do STF para solucionar conflitos dessa natureza:

29. Tanto quanto nas questões de uns contra os outros Estados, ou entre estes e a União, em todas as outras e, portanto, nas que se debaterem, entre os próprios poderes federais, sobre as suas recíprocas extremas, quando tais questões se suscitem de modo regular, sob a forma de pleitos judiciais, a linha divisória entre esses poderes, entre os diferentes Estados, ou entre eles e a Federação, que a fixa, em derradeira instância, é a Corte Suprema.Toda a jurisprudência americana lhe reconhece, nesses litígios supremos, a condição de árbitro: “its high as arbitrator between the Federal and State governments and between the branches of the national government”.

Quanto à atual Constituição Federal, seu art. 102, inciso I, aliena “f”, dispõe que compete ao STF processor e julgar, originariamente, as causas e os conflitos entre a União e

17 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Jurisprudência do STF de 1897, pp. 345-347.

18 BARBOSA, Ruy. O Direito do Amazonas ao Acre Septentional. Vol. I, 1910, item 29, pp. 67-68.

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os Estados, a União e o Distrito Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respectivas entidades da administração indireta.

Dessa forma, em 1990 o Estado do Acre recorreu à jurisdição do Supremo Tribunal Federal, mediante o ajuizamento da Ação Cível Originária 415, de cunho demarcatório, postulando que fosse determinada a materialização da nova divisa interestadual tanto no solo quanto nos mapas oficiais da República Federativa do Brasil.

Apesar da resistência do Estado do Amazonas, a pretensão do Estado do Acre foi acolhida, tendo o ilustre relator, ministro Neri da Silveira, consignado em seu voto que a linha divisória interestadual deve ser aquela indicada pela Nota Técnica da Diretoria de Geociências do IBGE, conforme reconhecido e homologado pelo Constituinte de 1988, consoante explicitam os seguintes trechos:

5. Diante do exposto, tenho, destarte, que os pressupostos à incidência do § 5º do art. 12, do ADCT de 1988, se fazem efetivamente presentes na espécie.Com efeito, em razão do convênio celebrado entre os Estados do Amazonas, Acre e Rondônia, constituiu-se comissão composta de representantes das três Unidades da Federação, com a participação da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, a quem incumbiu proceder, como aconteceu, a levantamentos cartográficos e geodésicos destinados à verificação dos limites dos três Estados convenentes, que, à sua vez, acompanharam, em sucessivas reuniões, devidamente documentadas, os serviços técnico especializados a cargo do

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IBGE. [...]Não altera a conclusão quanto à incidência do art. 12, § 5º, do ADCT da Constituição de 1988, a circunstância de a Comissão Tripartite não haver adotado soluções definitivas e consensuais em torno dos limites dos três Estados litigantes, diante dos estudos técnicos do IBGE. Se tal houvesse sucedido, antes da conclusão dos trabalhos constituintes, decerto, a regra em alusão não teria sentido, porque, por via do acordo, os Estados teriam encontrado solução aos litígios concernentes aos limites territoriais. É bem de ver, em tal sentido, que os trabalhos técnicos do IBGE a esse respeito tiveram sua conclusão, inclusive com o relatório final e a Nota Técnica que consubstancia os resultados e conclusões dos serviços técnico-especializados, ainda no final do ano de 1987.[...]6. Não cabe, em consequência, discutir, aqui, a definição dos limites territoriais dos Estados em apreço, fora do contexto resultante da aplicação da regra do § 5º do art. 12 do ADCT da Constituição, o que conduz à verificação última do que se contém nos levantamentos cartográficos e geodésicos apontados nos relatórios e notas dos serviços técnico-especializados do IBGE, acima examinados, precisando-lhes a compreensão e tornando, desse modo, viável a sua definitiva execução.[...]No que concerne, assim, aos limites do Acre e Amazonas, restou claro dos levantamentos a necessidade de emprestar à linha geodésica de limite – Madeira-Javari – ‘quando locada no terreno’, traçado que garanta a jurisdição acriana sobre cidades tradicionalmente sob sua jurisdição como Cruzeiro do Sul, Tarauacá, Feijó, Sena Madureira e Manuel

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Urbano. Acentuou-o, de maneira explícita, essa situação, às fls. 1206/1207 (5º vol.), o IBGE, verbis:‘Essa divisa deverá merecer apreciação, a curto prazo, atingindo-se uma solução que contemple e equilibre os interesses acrianos e amazonenses, sob pena de que o quadro fronteiriço se agravar com a dinamização de processos de ocupação nas vizinhanças das cidades acima relacionadas.’Para a definição da linha poligonal a ser implantada, o IBGE assentou marcos descritos às fls. 1099, na Nota Técnica, com as respectivas coordenadas geodésicas, levando as denominações Cruzeiro do Sul (91.004), Feijó (91.005), Sena Madureira (91.007), Caquetá (91.008) e BR-317 (91.006). Como está na referida Nota Técnica (fls. 1099), ‘os procedimentos adotados objetivaram a substituição da linha geodésica Beni-Javari, por uma poligonal cujos vértices seriam os pontos acima anunciados, balizada pelos marcos internacionais na cabeceira do Javari e margem direita (lado brasileiro) do ponto frontal de confluência dos rios Beni e Mamoré’.

Assim, ao julgar a referida ACO 415-2, o Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que os limites entre os Estados do Acre e do Amazonas devem ser aqueles sugeridos e apresentados pelo IBGE no relatório final da Comissão Tripartite, por terem sido reconhecidos e homologados pelo art. 12, § 5º, do ADCT. Para tanto, o STF também determinou que o IBGE se encarregasse de realizar os trabalhos técnicos necessários à execução do julgado.

Entretanto, inconformado com a decisão e pretendendo obstar a materialização da nova divisa

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interestadual, em fevereiro de 2000 o Estado do Amazonas propôs perante o STF a Reclamação Constitucional nº 1421-5, contra o Presidente da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, alegando que a forma pela qual o IBGE executaria os trabalhos geodésicos e cartográficos relativos à divisa entre o Estado do Acre e do Amazonas, resultaria em descumprimento19 da decisão contida no Acórdão da referida ACO 415-2, “causando, com isso, instabilidade jurídica e social, ameaçando a ordem pública, expondo a perigo de grave lesão os municípios da antes aludida cidade fronteiriça de Guajará, do Estado do Amazonas”20.

Segundo o Estado do Amazonas, a Presidência do IBGE definira que constituiriam coordenadas para a implantação do traçado divisório, dentre outras, as seguintes:

- Ponto nº 91.004 – Cruzeiro do Sullatitude Sul .............................................07º33’05,886”longitude Oeste de Greenwich ...............72º35’03,100”- Ponto nº 91.005 – Feijólatitude Sul .............................................07º50’41,193”longitude Oeste de Greenwich................70º03’15,902”

No entendimento do Estado do Amazonas, para dar cumprimento ao julgado da ACO-415-2/STF, as coordenadas acima referidas deveriam ser substituídas por marcos divisórios, nas localidades de Estirão do Eliezer e Remanso, conforme

19 DANTAS, Marcelo Navarro Ribeiro. Reclamação constitucional no direito brasileiro. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2000, p. 483.

20 Supremo Tribunal Federal. Reclamação 1421, p. 04.

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sempre defendera, desde a época dos trabalhos realizados pela Comissão Tripartite.

Ocorre que, conforme já apontado pelos trabalhos técnicos realizados pelo IBGE em 1987, se tais pontos fossemadotados, simplesmente seria confirmada a antiga linha Javari-Beni (ou Cunha Gomes) e as cidades de Cruzeiro do Sul, Feijó, Tarauacá e Sena Madureira ficariam em território Amazonense. Isso restou claramente demonstrado no Ofício nº 71/PR, juntado pela Presidência do IBGE aos autos da Reclamação 1421-5, em atendimento às informações requisitadas pelo Ministro Relator, do qual se extrai o seguinte trecho:

Em decorrência das atividades desenvolvidas, o IBGE obteve, para estudos, as coordenadas informadas no Ofício nº 541/PR, de 25.11.99, para os marcos implantados de Cruzeiro do Sul (91.004) e Feijó (91.005), que, no entanto, não foram aceitos, em momento algum, pelo Estado do Amazonas.Não obstante a inconformidade amazonense, referidos marcos foram aqueles estabelecidos nos estudos técnicos desenvolvidos, tendo sido adotados impositivamente pelo § 5º do art. 12 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT – de 1988.

Em 2003, os municípios amazonenses de Guajará, Ipixuna e Boca do Acre pleitearam seu ingresso na referida Reclamação Constitucional, na qualidade de assistentes do Estado do Amazonas, com o argumento de terem legítimo interesse jurídico, vez que estariam em risco de perder grande parte de seus respectivos territórios com a suposta interpretação

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errônea da Fundação IBGE acerca da decisão proferida na Ação Cível Originária nº 415/STF.

Após o Estado do Acre, por intermédio da Procuradoria Geral do Estado, apresentar defesa e elucidar a inexistência de descumprimento da decisão do Supremo Tribunal Federal, em 3 de abril de 2008 a Reclamação Constitucional 1421/STF foi julgada improcedente, por unanimidade, nos termos do voto do relator, Ministro Gilmar Mendes, donde se extrai a seguinte conclusão:

Assim, a análise dos fundamentos e da conclusão da decisão parâmetro desta Corte – proferida na ACO nº 415-2/DF, em comparação ao ato reclamado, demonstra que não houve por parte do referido ato qualquer afronta ao que fora decidido pelo STF, no que tange aos limites territoriais do Estado do Acre e Amazonas.

5 A MATERIALIZAÇÃO DA NOVA DIVISA INTERESTADUAL ACRE/AMAZONAS E SEUS EFEITOS.

Em decorrência da referida decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na ACO 415, bem como de sua confirmação no julgamento da RCL/1421, o IBGE finalmente pode assentar os marcos delimitadores da nova linha divisória entre os Estados do Acre e Amazonas, a qual, desde 2004, já constava no Mapa Oficial da República Federativa do Brasil.

O mapa abaixo materializa o conteúdo da decisão

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do Supremo Tribunal Federal e indica o traçado da nova linha divisória entre os dois Estados. Nesse sentido, a divisa verde refere-se à antiga linha Cunha Gomes; a divisa amarela retrata a pretensão formulada pelo Estado do Acre na ACO 415/STF; e a divisa tracejada em preto constitui a nova linha divisória Acre/ Amazonas:

Essa nova configuração geográfica resultou na alteração territorial e populacional dos Estados do Acre e do Amazonas e, por consequência, dos respectivos municípios situados na região onde a linha divisória foi modificada.

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De acordo com dados oficiais do IBGE21, em 2001, portanto antes da execução da nova divisa, a área territorial do Acre era de 152.581,388 km2 e a do Amazonas era de 1.570.745,68 km2. Já em 2006, após a alteração da antiga linha divisória Cunha Gomes, a área do Acre aumentou para 164.153,163 km2 e a área do Amazonas diminuiu para 1.559.157,855 km2, representando um acréscimo de mais de 11,5 mil km2 ao território do Estado do Acre.

No que tange aos efeitos provocados na área territorial dos municípios acrianos atingidos pela nova divisão interestadual, enquanto Bujari, Sena Madureira e Porto Acre tiveram uma pequena perda de área, os Municípios de Cruzeiro do Sul, Feijó, Mâncio Lima, Manoel Urbano e Tarauacá tiveram significativo aumento de área territorial.

Por outro lado, os novos limites interestaduais e intermunicipais também provocaram a modificação do contingente populacional oficial dos Estados do Acre e Amazonas, assim como dos respectivos municípios atingidos, ensejando, consequentemente, a alteração dos coeficientes utilizados pelo Tribunal de Contas da União no cálculo das quotas relativas à distribuição dos recursos referentes ao Fundo de Participação dos Municípios, conforme se observa da Tabela abaixo:

21 Informados ao Supremo Tribunal Federal através do Ofício nº 472/PR, de 12.09.2006.

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De acordo com os dados acima, a partir do exercício de 2004, a nova fronteira interestadual Acre/Amazonas oficialmente passou a produzir efeitos, havendo a modificação da área territorial, da população e dos coeficientes do Fundo de Participação dos Municípios, o que resultou em ganhos significativos tanto do Estado do Acre quanto dos municípios acrianos.

Exemplificativamente, em 2003 o Município de Feijó/AC tinha uma população de 29.480 habitantes, o que correspondia ao coeficiente do FPM de 1,4. Já em 2004, com o acréscimo de 15,71 % em sua área territorial, Feijó passou a ter uma população de 35.713 habitantes, o que corresponde ao coeficiente do FPM de 1,6. Em contrapartida, em 2003 o Município de Envira/AM tinha população de 19.898 habitantes, que correspondia ao coeficiente do FPM de 1,2, em 2004 teve uma diminuição de área territorial de 43,91 %, reduzindo sua população para 13.312 habitantes, o correspondendo ao coeficiente do FPM de 0,8.

Essas informações indicam que, apesar da Reclamação Constitucional 1421 ter sido julgada pelo Supremo Tribunal Federal somente em abril de 2008, na realidade a nova linha divisória interestadual determinada pelo STF na ACO 415 já havia sido materializada pelo IBGE e produzia efeitos desde 2004, em especial na área territorial, no contingente populacional e nos coeficientes utilizados pelo TCU para cálculo das transferências do FPM a partir de 2005.

Em razão do cumprimento da decisão pelo IBGE, conforme determinado pelo STF, com a demarcação e

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materialização da nova linha divisória estadual tanto no solo e quanto nos mapas oficiais, o Estado do Acre adotou todas as medidas legais e administrativas necessárias à realização dos serviços públicos e ao exercício de sua autonomia, jurisdição e organização político-administrativa sobre a totalidade de seu território, inclusive sobre a área decorrente da nova linha divisória.

Por fim, ainda em 2004 foram editadas Leis Estaduais22 que redefiniram os limites territoriais dos Municípios Acrianos, bem como o Estado do Acre passou a exercer plenamente sua jurisdição e sua autonomia político-administrativa na área adquirida com a nova linha divisória.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise dos fatos históricos que envolvem a consolidação política e jurídica do território acreano demonstra que a simbiose entre realidade fática e os valores de uma sociedade tem força suficiente para influenciar e modificar o conteúdo jurídico das normas preexistentes, permitindo que haja uma constante conformação das categorias jurídicas às contingências históricas.

A saga da integração da região do Acre ao território brasileiro remonta ao período medieval e às forças políticas que delinearam a colonização portuguesa e espanhola no novo mundo, com as bênçãos da Igreja Católica.

22 Lei 1.542, de 29 de janeiro de 2004, Lei 1.568, de 19 de julho de 2004, e Lei 1.570, de 19 de julho de 2004.

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Nesse contexto, a influência dos fatores naturais como relevo, vegetação e hidrografia foram determinantes para o avanço da coroa portuguesa além da linha imaginária do Tratado de Tordesilhas, com a conseqüente ocupação da região amazônica e a invocação do princípio do uti possidetis, herdado do Direito Romano, segundo o qual a terra pertence a quem a ocupa.

Com a independência colonial do Brasil e da Bolívia, a fronteira entre os dois países inicialmente é estabelecida pelo Tratado de La Paz de Ayacucho, fixando a região do Acre em território boliviano. Contudo, sendo a região habitada exclusivamente por seringueiros brasileiros, as autoridades bolivianas exigem a formação, em 1895, de uma comissão conjunta Bolívia/Brasil para traçar a linha demarcatória entre os dois países, dando origem à “Linha Cunha Gomes”, que ainda mantinha o Acre em território boliviano.

Apesar disso, a resistência dos seringueiros brasileiros se intensificou fazendo com que, em 1899, o governo boliviano fundasse seu primeiro estabelecimento alfandegário, denominado Puerto Alonso, na localidade onde hoje existe a cidade acriana de Porto Acre. Esse fato, entretanto, marca o início da revolta armada dos brasileiros que ocupavam a região, causando grande instabilidade política de 1899 a 1903, onde se destacaram figuras políticas como o cearense José de Carvalho e o espanhol Luiz Galvez, que em 1899 chegou a declarar a República Independente do Acre.

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Mas é o gaúcho Plácido de Castro quem inicia a definitiva guerra contra os bolivianos, começando em Xapuri, no dia 6 de agosto de 1902, o movimento revolucionário que culmina com a proclamação do Estado Independente do Acre, após as tropas bolivianas serem derrotadas em Puerto Alonso, no dia 24 de janeiro de 1903.

O encerramento das disputas bélicas pela região do Acre é acordado oficialmente pelo Tratado de Petrópolis, firmado em 17 de novembro de 1903, através do qual a região do Acre, finalmente, foi reconhecida como integrante do território brasileiro.

Posteriormente, com o Tratado Brasil/Peru, firmado em 8 de setembro de 1909, as fronteiras internacionais do Brasil na região do Acre são fixadas em definitivo.

Não obstante, após a elevação do Território Federal do Acre à categoria de Estado, através da Lei Federal 4.070, de 15 de junho de 1962, percebe-se a necessidade de melhor delimitação das fronteiras interestaduais do Acre, vez que tanto a linha reta “Cunha Gomes” (ou Javari-Beni) quanto a linha quebrada proposta pelo Conselho Nacional de Geografia em 1940 situavam parcialmente as cidades de Cruzeiro do Sul, Tarauacá, Feijó e Sena Madureira além dos limites do Acre, já em território do Amazonas.

Destarte, em 1986 os Estados do Acre, Amazonas e Rondônia firmaram o convênio nº 026/86, no Processo 7.346/82/IBGE, através do qual criaram a Comissão Tripartite com a finalidade de estabelecer as divisas e os limites

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entre si, competindo ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística a execução dos trabalhos geodésicos e cartográficos necessários.

O desacordo entre os Estados do Acre e do Amazonas acerca da localização de dois pontos da respectiva fronteira interestadual, leva o IBGE a sugerir a adoção de uma linha divisória que, posteriormente, vem a ser acolhida pela Assembléia Nacional Constituinte como instrumento para solução definitiva da questão, conforme estabelece o § 5º, do art. 12, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988.

Diante disso, a fim de ver a referida linha divisória materializada no solo, o Estado do Acre promoveu a Ação Cível Originária 415-2, de cunho demarcatório, perante o Supremo Tribunal Federal, cujo julgamento determinou que o IBGE desse cumprimento à vontade do constituinte contida no mencionado dispositivo constitucional.

Posteriormente o Amazonas propôs perante o STF a Reclamação Constitucional nº 1421-5, sob a alegação de que as atividades demarcatórias realizadas pelo IBGE estariam descumprindo a decisão proferida na ACO 415. Porém, tal alegação não foi acolhida pelo STF, tendo a referida Reclamação Constitucional sido julgada improcedente, por unanimidade, reafirmando-se a necessidade de fixação da fronteira interestadual Acre/Amazonas em consonância com a sugestão do IBGE contida no relatório da Comissão Tripartite, por ter sido essa a vontade do constituinte.

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Na realidade, a simbiose entre fatores sociais, políticos e econômicos e seu conteúdo axiológico na sociedade acriana tiveram a força necessária para influenciar o constituinte de 1988 a consolidar o território acreano de forma irreversível, conforme destacou o voto-esclarecimento do ministro relator Gilmar Mendes.

Assim, desde 2004 a fixação da nova fronteira Acre/Amazonas passou a produzir novos efeitos sociais, jurídicos, políticos e administrativos, tendo havido, já nesse ano, modificação na área territorial e no contingente populacional do Acre e do Amazonas, bem a partir de 2005 tais modificações influenciaram os coeficientes utilizados pelo TCU para cálculo das transferências do FPM destinados aos municípios localizados na faixa de fronteira atingida pela nova divisa interestadual.

Nesse contexto, a consolidação da nova divisa Acre/Amazonas permitiu o exercício pleno da jurisdição e da autonomia político-administrativa do Estado do Acre, possibilitando a edição de leis estaduais que redefiniram os limites territoriais dos Municípios acrianos, a implementação de políticas públicas, a execução de ações administrativas e a disponibilização dos serviços públicos necessários ao exercício da cidadania da população que habita a extensão territorial havida pelo Acre com a atual fronteira interestadual.

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6Roberto Barros dos Santos

Gestão de Dívidas Públicas Reconhecida em Juízo

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GESTÃO DE DíVIDAS PúBLICAS RECONHECIDAS EM JUíZO

Roberto Barros dos Santos•

Introdução. 1 Sistema de pagamento de dívidas públicas reconhecidas em juízo. 2 Regime de pagamento por precatório 2.1 O regime de pagamento por precatórios no ordenamento jurídico brasileiro. 2.3 Problemas e tentativas frustradas de solução do regime de pagamento por precatório. 3 Gestão das dívidas públicas reconhecidas em juízo. 3.1 Conhecimento da situação das dívidas públicas em juízo. 3.2 Estudo da legislação existente quanto ao sistema de pagamento das dívidas públicas reconhecidas em juízo. 3.2.1 Definição de dívida pública de pequeno valor para fins de pagamento por requisição de pequeno valor. 3.2.1.1 Definição de dívida pública de pequeno valor para fins de pagamento por requisição direta. Valor global da execução “versus” valores individuais. 3.3 Elaboração das listas cronológicas de dívidas públicas reconhecidas em sentenças judiciárias. 3.4 Edição de leis necessárias à solução do problema das dívidas públicas reconhecidas em juízo. 3.5

•Procurador-Geral do Estado do Acre. Membro do Conselho da Procura-doria-Geral do Estado. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Acre; especialista em Direito Público pela Faculdade Integrada de Pernam-buco, especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Cândido Mendes do Rio de Janeiro/RJ, diplomado no Curso de MBA em Poder Judiciário pela Fundação Getúlio Vargas – Direito Rio.

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Perícia jurídico-contábil. 3.6 Convencimento quanto à precisão da perícia jurídico-contábil. Conciliação ou litígio. 4 Gestão de pagamentos das dívidas públicas. Solução para o passado, presente e futuro. 4.1 Pagamentos das dívidas públicas. Solução para o passado. 4.2 Pagamentos das dívidas públicas. Solução para o presente e futuro. 4.2.1 Pagamento das dívidas públicas reconhecidas extrajudicialmente. Questões macroeconômicas. 4.2.2 Gestão das dívidas públicas reconhecidas judicialmente. 4.2.2.1 Gestão institucional. 4.2.2.2 Gestão da atuação judicial dos entes públicos. 4.2.2.3 Proposta de ajuste do regime de pagamento pela via da requisição de pequeno valor. 4.2.2.4 Proposta de ajuste do regime de pagamento pela via do precatório. Considerações Finais. Bibliografia.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho examina a temática alusiva à gestão das dívidas públicas reconhecidas em juízo, conferindo-lhe um enfoque técnico, realista e responsável que vai além da identificação do problema (atraso dos pagamentos das dívidas), das desculpas destituídas de razoabilidade e das soluções simplistas, irreais e sofisticas.

A temática ou problema é de amplo conhecimento público, notadamente diante da ênfase dada pela imprensa nacional ao tratá-lo como o “calote público”. Mas o que se propõe com este artigo é lançar luzes sobre o sistema jurídico-constitucional, as causas e ações que efetivamente estão

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solucionando o problema. Esse enfrentamento adequado do assunto

corresponde à gestão das dívidas públicas reconhecidas em juízo.

1 SISTEMA DE PAGAMENTO DE DíVIDAS PúBLICAS RECONHECIDAS EM JUíZO

O fundamento central do sistema de pagamento das dívidas públicas reconhecidas em juízo está na assunção de responsabilidade civil por parte do Estado. O Estado, segundo o direito positivo (art. 37, § 6º, da CF), é civilmente responsável pelos danos que seus agentes causarem a terceiros, ficando obrigado a pagar as respectivas indenizações.

Dirley da Cunha Júnior1 ensina especificamente quanto à responsabilidade civil do Estado Brasileiro que:

O direito Brasileiro sempre concebeu um Estado responsável. Todavia, a responsabilidade objetiva só veio a ser consagrada entre nós a partir da Constituição de 1946 (art. 194), passando pela Constituição de 1967 (art. 105), pela Emenda n. 01 de 1969 (art. 107) até os nossos dias, com previsão no art. 37, § 6, da Constituição vigente.

Portanto, o Poder Judiciário pode condenar o Estado a responder civilmente por danos extracontratuais ou

1 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Direito Administrativo. 2. ed. Salvador: Juspodivm. 2003, p. 60

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contratuais. Ambas as hipóteses de responsabilidade civil estatal dão concreção ao princípio da vedação do enriquecimento sem causa.

2 REGIME DE PAGAMENTO POR PRECATÓRIO

Diante de uma condenação judicial impondo ao Estado uma obrigação de dar (pagamento de dinheiro), em princípio, poder-se-ia concluir que o procedimento judicial e o pagamento dar-se-iam da mesma forma que se opera entre os particulares, inclusive com a expropriação de bens.

No entanto, os bens públicos são inalienáveis e, via de consequência, impenhoráveis. Note-se que o Código Civil de 1916 já descrevia e especificava o que era bem público (arts. 65 e 66), bem como previa expressamente a inalienabilidade (art. 67), salvo com expressa autorização legal2. Em tal situação, far-se-ia necessário a edição de uma lei para cada execução, o que se mostrava de todo impraticável. O art. 649, inciso I, do Código de Processo Civil completa a proteção aos bens públicos ao prevê a impenhorabilidade de bens inalienáveis.

De efeito, o regime de pagamento por precatório surgiu para preservar simultaneamente a moralidade e aisonomia real entre os credores, os princípios da

2 O Código Civil de 2002 tem dispositivos similares, como se vê de seu art. 98 e seguintes.

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indisponibilidade do interesse público e da supremacia do interesse público sobre o particular.

Ou seja, a inalienabilidade e a impenhorabilidade dos bens públicos encontram suporte lógico-jurídico nos princípios da indisponibilidade do interesse público e da supremacia do interesse público sobre o particular, que se fazem necessários para manter a vida em coletividade calcada no bem estar social.

Antônio Flávio de Oliveira faz um preciso comentário sobre a essência do pagamento por precatório3:

Assim, pois, é o precatório justificado como forma moralizadora do pagamento dos débitos judiciais do poder Público, sem que haja preferência ou privilégios de cunho subjetivo e, principalmente, sem a disposição, para o mister de bens que integrem o patrimônio público, além de permitir, em razão dos procedimentos orçamentário – financeira envolvidos na sua concretização, o ordenamento dos gastos públicos.

Fixadas as premissas ou princípios que nortearam a criação do regime de pagamento por precatório, insta analisar as normas do ordenamento jurídico brasileiro, referentes ao assunto.

3 OLIVEIRA, Antônio Flávio. Precatórios. Aspectos administrativos, constitucionais, financeiros e processuais. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2005, p. 34.

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2.1 O REGIME DE PAGAMENTO POR PRECATÓRIOS NO ORDENAMENTO JURíDICO BRASILEIRO.

O regime de pagamento por precatórios ganhou status constitucional em 1934, tendo sido aperfeiçoado ao longo do tempo, consoante se infere do estudo do insigne constitucionalista José Afonso da Silva4:

A disciplina dos precatórios até 1934 era objeto do Decreto nº 3.084/1898, sem garantia de pagamento ao credor. A Constituição de 1934 (art. 182) é que ao tema estatuto constitucional. Desde então, os pagamentos devidos pela Fazenda Pública em virtude de sentença judiciária têm merecido disciplina constitucional, sob o pressuposto de que o sistema de execução forçada não se aplica às dívidas da Fazenda Pública, porque, sendo os bens públicos inalienáveis não podem ser penhorados. Daí por que a Constituição teve que buscar um sistema que garantisse os pagamentos decorrentes de sentença judiciária, de modo a evitar protecionismo.

O regramento na Constituição Federal de 1988 está disposto no art. 100. No plano infraconstitucional, identifica-se o art. 67 da Lei nº 4.320/64 como sendo a norma regulamentadora do assunto. De se registrar que esse dispositivo legal foi editado sob a égide da Constituição Federal de 1946,

4 SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 2. ed. São Paulo: Malheiros. 2006, p. 521.

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mas foi recepcionado pelo arts. 100 e 165 da Constituição Federal de 1988, considerando a plena compatibilidade.

A compatibilidade advém da consideração de que a Lei nº 4.320/67 reforça o princípio de que não pode haver despesas sem suporte de receitas para lhe fazer frente e sem o registro orçamentário.

2.2 NATUREZA JURíDICA DOS PRECATÓRIOS

Depreende-se desse regramento normativo que o precatório tem natureza jurídica de procedimento administrativo, tendo em conta que os comandos constitucionais e infraconstitucionais definem os elementos ou pressupostos vinculados dos atos administrativos a serem praticados por autoridades públicas, tencionando o pagamento, por intermédio de precatório, das dívidas públicas reconhecidas em sentenças judiciárias.

Essa compreensão é confirmada pela doutrina de Antônio Flávio de Oliveira5 e pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal6. No mesmo diapasão é a posição da jurisprudência do Col. TST, como se infere das seguintes Orientações Jurisprudenciais n º 08 e 10 do Tribunal Pleno daquele

5 OLIVEIRA, Antônio Flávio. Precatórios. Aspectos administrativos, constitucionais, financeiros e processuais. Belo Horizonte: Editora Fórum. 2005, p. 47.

6 STF. Agravo de Instrumento nº 674888/SP. Relator: Min. CELSO DE MELLO. Julgamento: 13/09/2007, DJ 02/10/2007 PP-00050.

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Sodalício. A jurisprudência do Col. Superior Tribunal de Justiça bém aponta para o mesmo entendimento7 8.

A definição da natureza jurídica tem grande relevância sob o aspecto prático, pois que eventuais impugnações contra os atos que lhe compõem devem se operar pelos meios próprios de contraste aos atos administrativos.

2.3 PROBLEMAS E TENTATIVAS FRUSTRADAS DE SOLUÇÃO DO REGIME DE PAGAMENTO POR PRECATÓRIO.

Em que pese a excelência principiológica, normativa e conceitual do regime de pagamento por precatório, tem-se que esse sistema começou a ruir com a não inclusão no orçamento de verbas necessárias para efetivar as liquidações e com os atrasos nos pagamentos de precatórios com valores orçados.

De acordo com levantamento realizado pelo Supremo Tribunal Federal e encaminhado ao Senado Federal em junho de 2004, os valores de precatórios devidos eram de 61 bilhões (sessenta e um bilhões de reais), dos quais 73%

7 STJ. Recurso Especial nº 493.612/MS. Relatora: Ministra Eliana Cal-mon. Órgão Julgador: Segunda Turma. Data do Julgamento 27/05/2003. Data da Publicação/Fonte DJ 23.06.2003.

8 STJ. Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 12059/RS. Rela-tora Ministra Laurita Vaz. Órgão Julgador: Segunda Turma. Data do Jul-gamento 05/11/2002. Data da Publicação/Fonte DJ 09.12.2002 p. 317. RSTJ vol. 165 p. 189

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se referem a débitos dos Estados e do Distrito Federal. Esses dados constam no Projeto de Emenda Constitucional nº 12/2006, em trâmite no Senado Federal.

As primeiras tentativas de solução desse passivo bilionário começaram com sequestros de verbas públicas embasados em atos normativos editados por parte dos Tribunais ao editar a Instrução Normativa nº 11/1997 do Colendo Tribunal Superior do Trabalho. No entanto, os itens III e XII dessa Instrução Normativa, referentes ao sequestro de verbas públicas, foram declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal ao julgar a ADI 1.662/SP9.

Por outro lado, tentou-se a intervenção federal dos entes públicos que tinham precatórios com pagamentos atrasados, porém também foi rechaçada pelo Supremo Tribunal Federal ao julgar a Intervenção Federal (IF) nº 2.127/SP10, dentre outras.

Ainda é digno de registro que essa dívida bilionária foi objeto de uma tentativa de solução com a emissão de títulos públicos dos entes Federativos. No entanto, essa proposta de solução se revelou como sendo mais uma orquestração criminosa de desvio de recursos públicos, cuja quadrilha foi intitulada pelos jornais de “máfia dos precatórios” ou “máfia

9 STF. ADI 1662/SP. Relator(a): Min. MAURÍCIO CORR�A. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Julgamento: 30/08/2001. Publicação DJ 19-09-2003 PP-00014.

10 STF. Intervenção Federal nº 2127/SP. Relator(a): Min. Marco Aurélio. Relator p/ Acórdão: Min. Gilmar Mendes. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Julgamento: 08/05/2003. Publicação DJ 22-08-2003 PP-00022 EMENT VOL-02120-01 PP-00044

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dos títulos públicos”, cuja ilicitude correspondia na emissão de títulos da dívida pública dos entes Federativos em valores bem superiores aos valores efetivamente devidos por aqueles. Não bastasse a emissão de títulos com valores superfaturados ainda não pagaram os valores efetivamente devidos, conforme revelado em matérias jornalísticas11.

Daí se ver que fracassaram as tentativas de solução pela via do seqüestro e da intervenção federal, sendo que a emissão de papéis públicos foi mais um meio criminoso de lesão ao Erário do que uma tentativa idônea de solução da inadimplência dos precatórios.

3 GESTÃO DAS DíVIDAS PúBLICAS RECONHECIDAS EM JUíZO

Não obstante a frustração das tentativas de solução dessa dívida bilionária não se pode quedar inerte, sob pena de permitirmos a perpetuação desse problema.

É certo que esse problema foi sendo criado no passar dos anos, por isso ao nosso sentir a solução imediata não se mostra factível, tal como já se demonstrou, porém é perfeitamente resolúvel a médio e longo prazo, desde que se implemente uma gestão profissional para pagamento das dívidas públicas reconhecidas em juízo.

Para tanto, cumpre iniciar conscientizando os gestores de que a solução desse problema é a real observância

11 Anexo III.

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dos mais caros postulados do Estado Democrático de Direito: fundamento republicano e a dignidade da pessoa humana, princípios da legalidade e da moralidade administrativa.

Em outro dizer, o pagamento de uma dívida pública ou particular originada da força de trabalho, da reparação de um dano moral ou material etc. corresponde ao respeito e cumprimento dos direitos humanos. Em verdade é a concreção do Estado Democrático de Direito, em que o poder é do povo e a lei está a acima de todos.

Além da conscientização desses deveres constitucionais é de todo necessário utilizar ferramentas de gestão administrativa para gerenciar e eliminar esse problema. O ciclo de planejamento, desenvolvimento das ações, controle e ações corretivas (PDCA) é a ferramenta central, sendo coadjuvado por outras como a 5W-2H e GUT etc. Não é demasiado ressaltar que a utilização das técnicas e ferramentas de gestão administrativa é o diferencial entre uma atuação profissional e uma atuação amadora.

Nesse sentido, os entes públicos devem estabelecer uma gestão de pagamento das dívidas públicas, considerando os planejamentos estratégicos do Governo e, consequentemente, das Instituições e Órgãos que compõem o núcleo central do Poder Executivo, notadamente das Procuradorias Gerais ou Advocacias Gerais dos entes Federativos.

Note-se que o atraso no pagamento dos precatórios é um fator negativo da posição dos entes Federativos perante o cidadão e os demais Poderes, principalmente diante do Poder Judiciário.

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Seguindo essa moldura, a Procuradoria Geral do Estado do Acre (PGE/AC) definiu o pagamento das dívidas reconhecidas em Juízo como uma ação essencial, a qual, por óbvio, não se limita a atuação judicial, pois depende de decisão administrativa e recursos financeiros. Também estabeleceu como estratégia a solução do passivo (passado) concomitantemente com a diminuição ou eliminação de novas dívidas (presente e futuro).

Destarte, faz-se necessário desenvolver as seguintes ações para a solução das dívidas públicas:1º - conhecimento da situação das dívidas públicas reconhecidas em juízo (processos e valores ditos como devidos pelos Tribunais);2º - estudo da legislação existente quanto ao sistema de pagamento das dívidas públicas reconhecidas em juízo;3º - elaboração das listas cronológicas de dívidas públicas reconhecidas em juízo;4º - edição de leis necessárias à solução do problema do atraso no pagamento das dívidas públicas reconhecidas em juízo;5º - perícia jurídico-contábil para verificar se os valores requisitados estão corretos ou equivocados.

3.1 CONHECIMENTO DA SITUAÇÃO DAS DíVIDAS PúBLICAS RECONHECIDAS EM JUíZO.

A primeira ação a ser realizada para gerir as dívidas públicas reconhecidas em Juízo é solicitar que os Tribunais

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disponibilizem as suas respectivas listas atinentes ao ente Federativo que, inclusive, podem ser acessados até nos sítios eletrônicos (sites) de alguns Tribunais. Trata-se de medida de publicidade ou transparência das dívidas públicas, inclusive para fins de conhecimento e fiscalização popular.

Por conseguinte, cumpre organizar as próprias listas de precatórios, visando aferir valores, a ordem cronológica etc., máxime considerando que, em regra, os entes públicos recebem requisições de pagamento de precatórios de mais de um Tribunal.

3.2 ESTUDO DA LEGISLAÇÃO ExISTENTE QUANTO AO SISTEMA DE PAGAMENTO DAS DíVIDAS PúBLICAS RECONHECIDAS EM JUíZO.

A ação seguinte consiste no estudo da legislação referente ao sistema de pagamento das dívidas reconhecidas em juízo, especialmente no plano constitucional.

Note-se que em 05 de outubro de 1988 veio a lume a vigente Constituição da República, tendo mantido o regime de precatório para fins de pagamento das dívidas da Fazenda Pública.

Em 16 de dezembro de 1998 foi publicada a Emenda Constitucional (EC) nº 20/98, acrescentando o parágrafo terceiro ao art. 100 da Constituição Federal, ou seja, prevendo o regime de pagamento por requisição de pequeno valor (RPV).

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Na sequência, promulgou-se a Emenda Constitucional nº 30, de 13 de setembro de 2000, alterando e acrescentando parágrafos ao art. 100 da Constituição Federal, bem como acrescentando o art. 78 no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Essencialmente, alterou-se o § 1º para dispor que a atualização do crédito do precatório se daria na data dopagamento, e não mais na data da inclusão no orçamento. Outrossim, fez-se consignar que o pagamento estava condicionado ao trânsito em julgado da sentença judiciária, afastando, assim, alguns entendimentos doutrinário-jurisprudenciais que defendiam a formação de precatório com base em sentenças passíveis de recursos com efeitos meramente devolutivos.

O § 1º-A definiu créditos alimentares, notadamente para acabar com a celeuma quanto à classificação do que era crédito comum e de crédito alimentício. Demais disso, assentou-se que os créditos alimentícios também se submetiam ao sistema de pagamento por precatório, embora incluídos em listas especiais.

A alteração do § 2º aparentemente fez apenas um ajuste gramatical, mas na prática passou a consignar o orçamento diretamente ao Poder Judiciário para evitar a intermediação entre orçamentos, diminuir a burocracia e aumentar a transparência.

O § 3º foi alterado para corrigir a omissão quanto ao Distrito Federal. O § 4º explicitou que a definição de crédito de pequeno valor seria dada pelas respectivas leis dos

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entes Federativos. O § 5º prevê crime de responsabilidade ao presidente do Tribunal que injustificadamente retarda o pagamento dos precatórios.

O art. 78 do ADCT prevê parcelamento dos precatórios pendentes de pagamento ou ações iniciadas até 31 de dezembro de 1999, bem como compensação de precatórios com créditos tributários. Ainda cuidou de inserir uma hipótese específica de sequestro de verbas públicas.

Por fim, promulgou-se a Emenda Constitucional nº 37, de 28 de maio de 2002, publicada no dia 13 de junho de 2002. Deflui dessa emenda constitucional que, em síntese, alterou o § 4º para vedar o fracionamento ou quebra da execução, evitando que parte de um mesmo crédito fosse pago por requisição de pequeno valor e parte por precatório. O art. 86 do ADCT tratou da questão de direito intertemporal ao divisar precatórios de maior valor (PGV), precatórios preferenciais (PPV) e requisições de pequeno valor (RPV). O art. 87 do ADCT tratou de definir transitoriamente o que devia se entender por dívida de pequeno valor.

Desse modo, reafirma-se que o precatório é a regra do pagamento das dívidas da Fazenda Pública reconhecidas em sentença judiciária transitada em julgado (art. 100, “caput”, da CF), tendo sido criada uma exceção com a promulgação da Emenda Constitucional nº 20/98, que veio a ser aperfeiçoada pelas Emendas Constitucionais nºs 30/2000 e 37/2002, considerando o delineamento do art. 100, “caput” e § 3°, da Constituição Federal, jungido aos comandos dos arts. 86 e 87, “caput” e parágrafo único do ADCT.

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Logo, tem-se que as Emendas Constitucionais nºs. 20/98, 30/00 e 37/02 modificaram o sistema de pagamento das dívidas da Fazenda Pública reconhecidas em sentenças judiciárias transitadas em julgado. De efeito, formou-se o seguinte sistema:

I – Dividiu o estoque de precatórios até a EC nº 37/2002 em precatórios de pequeno valor ou preferenciais e precatórios de grande ou maior valor (art. 86 do ADCT). II – Dividiu o sistema de pagamento das execuções concluídas após a EC n. 37/02 em precatórios (grande valor) e RPV (pequeno valor).

Em síntese, a diferença consiste no fato de que o pagamento das requisições de pequeno valor (RPV) alude aos débitos de pequena monta dos entes federativos reconhecidos em sentenças judiciárias, cujos trânsitos em julgado se deram após a publicação da Emenda Constitucional nº 37/02. Por outro lado, os precatórios preferenciais (PPV) são as dívidas de pequena monta reconhecidas em sentenças judiciária, cujos trânsitos em julgado se deram antes da publicação da Emenda Constitucional nº 37/2002.

Ou seja, o novo regime de pagamento (requisição de pequeno valor) não pode ser aplicado aos julgados pretéritos a sua publicação, por força dos princípios da irretroatividade das leis (art. 5º, XL, CF), do ato jurídico perfeito (art. 5º, XXXVI, CF), da legalidade (art. 5º, II, CF) e do devido processo legal em seu aspecto formal (art. 5º, LIV, CF), combinado com o art. 86, “caput” e §§, do ADCT.

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Note-se que a retroação tem que está prevista em lei. No caso, não há tal previsão legal, mas sim o contrário. Vale dizer, o art. 86, do ADCT é expresso ao referir que os débitos de pequeno valor inscritos precatório e pendentes de pagamento serão quitados conforme disposto no art. 100, da Constituição Federal seguindo a ordem cronológica de apresentação dos respectivos precatórios.

Sobre este particular aspecto, colhe-se precedente específico do Colendo Tribunal Superior do Trabalho12, referente ao Estado do Acre.

A par disso, os entes Federativos e os Tribunais tem que refazer as listas de dívidas reconhecidas em juízo, mas antes se faz necessária a definição de dívida de pequeno valor.

3.2.1 Definição de dívida pública de pequeno valor para fins de pagamento por requisição de pequeno valor.

Relembremos que o Poder Constituinte Reformador promulgou as Emendas Constitucionais nº 20/98 e 30/2000 deixando a cargo dos respectivos entes de direito público a fixação das dívidas que considerava de pequeno valor para fins de processamento do pagamento por RPV, considerando as suas respectivas capacidades financeiras.

12 TST: ROAG - 3106/1991-402-14-43, Relator designado para lavratura do acórdão Ministro Luiz Philippe VIEIRA DE MELLO FILHO. Publi-cado no DJ de 05/09/2008.

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Editou-se a Lei nº 10.099/2000 que era aplicável aos débitos previdenciários, bem como a Lei nº 10.259/2001 que se destinava aos débitos da união, das autarquias e fundações públicas, por isso os demais entes federativos se insurgiam quanto à aplicação dessas normas aos seus processos, notadamente diante da inobservância de suas respectivas capacidades econômico-financeiras, o que gerou uma verdadeira cizânia.

A par disso, o Poder Constituinte Derivado promulgou a Emenda Constitucional n° 37/2002, fixando provisoriamente patamares a serem considerados para tal desiderato, tendo tido o cuidado de explicitar o óbvio, isto é, que aquela norma transitória teria vigência até a edição das respectivas normas editadas pelos entes políticos.

Desse modo, o art. 87, do ADCT fixou transitoriamente em 40(quarenta) salários mínimos o teto das dívidas da Fazenda Pública Estadual e Distrital reconhecida em sentença judiciária transitada em julgado, para fins de pagamento por requisição direta de pagamento – RPV, assim como definiu em 30(trinta) salários mínimos para as dívidas dos Municípios.

Nesse quadrante, cumpre aos entes Federativos editarem suas respectivas leis, com fulcro na capacidade orçamentário-financeira / (art. 100, §§ 3° e 5°, da CF) e na autonomia (auto-organização – art. 1°, 18 e 25, da CF), fixando o que deve ser entendido como dívida de menor valor para fins de pagamento por meio de requisição direta (RPV).

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A esse respeito, interessa anotar que o STF reconheceu a constitucionalidade da Lei nº 5.250/02, do Estado do Piauí, que fixa o valor da requisição de pequeno valor em 5 (cinco) salários mínimos, como se infere da ementa do acórdão da ADI 2868/PI. Logo, o Excelso Supremo Tribunal Federal reconheceu definitivamente a constitucionalidade da lei estadual em referência que fixa valor inferior ao transitoriamente fixado no art. 87, do ADCT.

A decisão definitiva de declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade tem efeito vinculante e “erga omnes” em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal, nos termos da jurisdição constitucional, do art. 102, § 2°, da CF e do art. 28, parágrafo único, da Lei n° 9.868/99.

Logo, por imperativo lógico, considera-se constitucional as leis que fixem valores inferiores aos transitoriamente definidos no art. 87 do ADCT da CF/88, desde que esteja em consonância com a respectiva capacidade orçamentário-financeira do ente Federativo (art. 100, §§ 3° e 5°, da CF), ou seja, que se revista de razoabilidade orçamentário-financeira.

Nessa linha, o Estado do Acre fixou em 30 (trinta) salários mínimos em consonância com a sua capacidade financeira, sendo que esse valor foi reconhecido como constitucional em decisão liminar do Ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Reclamação

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3772-513. Seguindo essa trilha, em 01/12/2005, o Tribunal Pleno do Colendo Tribunal Superior do Trabalho também reconheceu a constitucionalidade da Lei nº 1.481/200314.

Para finalizar esse tópico, destaca-se que a definição de dívida de pequeno valor para fins de pagamento por requisição direta está reservada à lei, sendo, portanto, inconstitucional a definição por atos normativos editados sem aprovação do Poder Legislativo. O Supremo Tribunal Federal afirmou esse entendimento ao julgar as Medidas Cautelares nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 3057/RN e 3344/DF.

3.2.1.1 Definição de dívida pública de pequeno valor para fins de pagamento por requisição direta. Valor global da execução “versus” valores individuais.

A definição de dívida pública de pequeno valor para fins de pagamento por requisição direta, ainda passa pela análise de crédito integral ou global da execução “versus” o crédito individual ou por beneficiário.

Inicialmente, defendíamos o entendimento de que devia ser considerado o crédito integral ou global da execução, considerando os preceitos dos artigos 1º, “caput”, 18 e 25; art.

13 STF: Reclamação nº 3772-5, Ministro Gilmar Mendes, DJ 05/09/2005, Requerente: Estado do Acre.

14 TST. Recurso Ordinário e reexame necessário nº 402/2004-000-14-00.0, Relator Ministro João Orestes Dalazen. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. DJ 10/02/2006.

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100, “caput” e §§ 3º, 4º, 5º, combinado com o art. 167, II e § 1º, todos da Carta Magna, jungidos aos preceitos do art. 87, “caput” e parágrafo único, do ADCT

Invocávamos o art. 87, do ADCT da CF/88 porque fixou transitoriamente valores por execução para fins de pagamento das dívidas da Fazenda Pública reconhecidas em sentenças judiciárias transitadas em julgado por intermédio de requisição direta de pagamento (RPV). Esse preceito do ADCT da CF/88 está em sintonia com os comandos do art. 100, §§ 4º e 5°, da CF.

Assim sendo, o limite fixado provisoriamente pela EC n° 37/02 para fins de RPV é o valor da execução, e não o crédito por beneficiário, como se infere da Proposta de Emenda Constitucional n° 407-A. Sobre esse assunto, remete-se à leitura da obra de Bruno Espiñeira Lemos15 em que aborda o assunto ao se referir à tramitação do projeto que resultou na Emenda Constitucional nº 30/00.

Para finalizar, consigna-se que a consideração de dívida integral ou global da execução visa preservar as finanças públicas (art. 167, II e § 1º, todos da Carta Magna), porquanto o entendimento diverso representaria o desembolso imediato de valores sem dotação orçamentária específica. Acrescente-se que a essência da requisição de pequeno valor é o diminuto impacto nas contas públicas diante dos parcos valores que representa.

15 LEMOS, Bruno Espiñeira. Precatório: Trajetória e desvirtuamento de um instituto. Necessidade de novos paradigmas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor. 2004.

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Há um risco ao equilíbrio das finanças públicas. O risco existe porque o valor global ou integral da execução pode atingir cifras elevadas, considerando o parâmetro para a requisição de pequeno valor seria avaliado de acordo com o número de autores, o que seria atingido a partir de uma ação com dezenas ou milhares de pessoas na condição de substituídos processuais.

Entretanto, estamos tendentes a atenuar o nosso posicionamento, considerando os princípios constitucionais do devido processo legal em sentido material (art. 5º, LIV), da razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII), da isonomia (art. 5º, I), da segurança jurídica (art. 5º, “caput”) e da economia processual, para entender que o crédito para fins de requisição de pequeno valor deve ser individual.

Essencialmente, consideramos que tanto o credor que ajuíza ação individualmente quanto os que preferem aforar ações plúrimas (litisconsórcio ativo e facultativo) tem direito a receber os créditos por requisição de pequeno valor, desde que os valores individuais estejam inseridos na definição de pequena monta.

Desse modo, o entendimento que defendíamos outrora gerava uma situação de injusta discrepância e de aumento do número de ações judiciais, considerando que um credor que ajuizasse ação individual receberia os seus créditos rapidamente por RPV, ao passo que um credor de valor idêntico que ajuizasse ação plúrima receberia por precatório se o valor global ou integral da execução superasse o teto do que se considera requisição de pequeno valor. Nessa linha, cita-

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se decisão do Supremo Tribunal Federal16. De igual modo, destaca-se Orientação Jurisprudencial nº 09, do Pleno do Colendo Tribunal Superior do Trabalho.

O aumento de ações judiciais para tentar receber pela requisição de pequeno valor já foi identificado na Procuradoria Geral do Estado do Acre. Essas são as considerações que nos impulsiona a refletir sobre a possibilidade de modificação de entendimento.

3.3 ELABORAÇÃO DAS LISTAS CRONOLÓGICAS DE DíVIDAS PúBLICAS RECONHECIDAS EM SENTENÇAS JUDICIÁRIAS.

Superadas, portanto, as etapas de estudo da legislação e de definição de dívida de pequeno valor, inclusive com o reconhecimento de que a análise deve ser feita com base no crédito individual. Agora, faz-se necessário adentrarmos a fase de elaboração das listas de precatórios e requisições de pequeno valor, inclusive observando o direito intertemporal.

Para tanto, sob o aspecto prático e legal, inicia-se com a verificação da questão de direito intertemporal (antes ou depois da publicação da EC nº 37/2002) combinada com a análise do valor da dívida (maior ou menor valor), tal como definido no art. 86, do ADCT.

16 STF. AI 607046/ RJ - Rio de Janeiro. Ministro Cesar Peluso. Julgamento 05/10/2006, Publicação DJ 18/10/2006. PP-0071.

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Como já demonstrado em capítulo anterior, trata-se de dívida de pequena monta (art. 86, II, do ADCT combinado com o art. 100, § 3°, da CF) objeto de emissão de precatório judiciário (art. 86, I, do ADCT), que se encontre pendente de pagamento total ou parcial (art. 86, III, do ADCT) na data da publicação da Emenda Constitucional nº 37/2002 deverá ser quitada por precatório, nos termos do art. 100, “caput”, da CF, combinado com o art. 86, § 1º, do ADCT. No entanto, esse precatório terá pagamento com preferência, por força da parte final do art. 86, § 1º, do ADCT.

Nesses termos, diferenciou-se o precatório de pequeno valor ou preferencial (art. 86, § 1º, do ADCT) do precatório de maior valor ou simplesmente precatório, sendo que aqueles foram emitidos antes da publicação da Emenda Constitucional nº 37, de 13 de junho de 2002.

Por outro lado, as execuções concluídas após a publicação da Emenda Constitucional nº 37/2002 (13/06/2002) devem ser pagas por requisição de pequeno valor (dívida de pequeno valor) ou por precatório de maior valor ou simplesmente precatório.

Por fim, cumpre atentar para a natureza da dívida, pois que as alimentícias têm preferência, nos termos do art. 100, “caput” e § 1-A, da Constituição Federal.

De efeito, entendemos que as listas terão uma subdivisão entre dívidas alimentícias e não-alimentícias, obedecendo-se os princípios da isonomia e da anualidade. Esclareça-se que o crédito alimentício tem que ser inserido em lista específica com prevalência apenas sobre os créditos não-

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alimentícios inscritos no orçamento do mesmo ano, portanto, os créditos alimentícios de um ano subseqüente não podem ter prevalência sobre os créditos não-alimentícios dos anos antecedentes.

Nesse contexto, compreende-se que as listas devem ser compostas observando o seguinte:

1º - verificação da questão de direito intertemporal – requisição de pagamento anterior ou posterior a Emenda Constitucional nº 37/2002;2º - valor devido: grande valor x pequeno valor;3º - natureza do crédito – alimentício ou não-alimentício. 4º - orçamento de inscrição da dívida.

Portanto, a partir da elaboração das listas pelos entes públicos poderão iniciar os pagamentos.

3.4 EDIÇÃO DE LEIS NECESSÁRIAS À SOLUÇÃO DO PROBLEMA DAS DíVIDAS PúBLICAS RECONHECIDAS EM JUíZO.

A primeira lei que se impõe é a definidora de dívida de pequeno valor para fins de pagamento por requisição direta ou classificação como precatório preferencial.

Por outro lado, destaca-se que o art. 78 está a merecer regulamentação no âmbito dos entes Federativos. De se ver que esse comando constitucional atinge apenas uma parte dos precatórios, vez que não são parceláveis nem compensáveis

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os “créditos definidos em lei como de pequeno valor, os de natureza alimentícia, os de que trata o art. 33 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e suas complementa-ções e os que já tiverem os seus respectivos recursos liberados ou depositados em juízo”.

Além disso, nem todos os entes Federativos realizaram os parcelamentos, sendo que alguns nem sequer editaram lei prevendo o procedimento a ser adotado no âmbito de suas respectivas esferas.

O Estado de Rondônia está no rol dos que editaram lei, sendo que essa norma foi impugnada pela ADI n° 2851, mas o Supremo Tribunal Federal a declarou integralmente constitucional, consoante se infere da ementa do acórdão17. A norma rondoniense pode servir de parâmetro.

3.5 PERíCIA JURíDICO-CONTÁBIL.

Por fim, convém anotar que qualquer dívida pública reconhecida em juízo deve ser submetida a uma perícia jurídico-contábil, independentemente de integrar uma lista de requisição de pequeno valor, precatório preferencial ou precatório de maior valor.

Essencialmente, exige-se a aferição da certeza do crédito exigido para evitar o enriquecimento sem causa do credor e, em última análise, a ofensa aos princípios do devido

17 STF. ADI 2851. Órgão julgador: Tribunal Pleno. Rel. Ministro Carlos Velloso. Acórdão publicado no DJ de -3/12/2004.

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processo legal em sentido material e da moralidade, dentre outros.

Para tanto é de fundamental importância a criação de núcleos especializados em perícias jurídico-contábeis. A formação acadêmica e a prática multidisciplinar é condição primordial para escolha dos integrantes do núcleo ou grupo de trabalho encarregado de realizar perícias jurídico-contábeis.

Após a formação do núcleo de perícia jurídico-contábil, cumpre examinar os processos que correspondem às dívidas públicas reconhecidas em sentenças judiciárias, examinando minuciosamente o comando das sentenças e acórdãos (coisa julgada), aprofundando o estudo doutrinário-jurisprudencial em torno da temática de cada processo para aferir se o valor exigido está correto ou equivocado.

Para que se tenha uma idéia da importância da perícia jurídico-contábil, insta referir que a Procuradoria Geral do Estado do Acre tem conseguido êxito em alguns casos em que já há o reconhecimento definitivo de erros materiais cujos valores economizados são da ordem de mais R$ 8.000.000,00 (oito milhões de reais). O que mais impressiona nesses casos é que a redução alude a percentuais elevados, sendo que, em média, são em mais de 90%.

Convém esclarecer que as questões mais recorrentes detectadas pela perícia jurídico-contábil são as seguintes: inclusão do nome de pessoas que não integravam o título executivo, equívoco quanto aos índices de correção monetária e juros de mora, inobservância de compensação deferida no título executivo, inobservância de juros de mora regressivos

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a partir do ajuizamento da ação, ausência de limitação dos aumentos objeto da condenação à data-base da categoria e ausência de limitação da recomposição salarial à data da transmudação do regime jurídico.

Concluída à perícia com a definição dos credores e valores corretos, resta convencer de forma consensual ou litigiosa a sua precisão.

3.6 CONVENCIMENTO QUANTO À PRECISÃO DA PERíCIA JURíDICO-CONTÁBIL. CONCILIAÇÃO OU LITíGIO.

De efeito, deve-se primeiramente tentar a conciliação. Essa iniciativa pode se dá tanto com a celebração de termos de cooperação com os Tribunais quanto com o contato direto com os credores, com a intervenção simultânea ou a posteriori do Juízo da Execução.

Os termos de cooperação tem sido efetuados em alguns Tribunais, inclusive com resultados expressivos e animadores como o revelado pelos Tribunais Regionais do Trabalho da 8ª (PA e AP) e da 3ª Região (MG). Recentemente, o Estado do Acre assinou termo de cooperação com o Tribunal Regional do Trabalho da 14ª Região e em breve assinará com o Tribunal de Justiça.

Em caso de não ser possível celebrar termos de cooperação com os Tribunais, ainda será possível a celebração de acordos individuais com os credores, os quais deverão ser

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realizados judicial ou extrajudicialmente, sendo que esses devem ser submetidos à homologação judicial. É dizer, os credores se convencem da existência de equívoco dos cálculos judiciais e, em passo seguinte, acordam quanto ao valor que receberão para solucionar o caso.

Entretanto, existem situações em que não há acordo extrajudicial nem judicial, restando, portanto, a via litigiosa ou correicional. Nessa hipótese, devem ser manejados embargos à execução18 ou ações rescisórias, se ainda houver prazo. Por fim, restará o pedido de revisão dos precatórios ou, ainda, a alegação de coisa julgada inconstitucional.

Os embargos à execução, além das hipóteses tradicionalmente previstas, existe a possibilidade de alegação de inexigibilidade do título diante de decisões do Supremo Tribunal Federal, considerando a declaração ou interpretação de inconstitucionalidade ou incompatibilidade de lei ou ato normativo19. Essa matéria de defesa dos embargos à execução apresentados pela Fazenda Pública foi prevista pela Medida Provisória nº 2.180-35, de 24 de agosto de 2001, que alterou o Código de Processo Civil e a Consolidação das Leis do Trabalho. Posteriormente, reafirmou-se esse comando com a edição da Lei nº 11.232/2005.

18 Mesmo após a edição da Lei nº 11.232/2006, que alterou diversos dis-positivos do CPC, ainda se aplica o procedimento do art. 730 para as execuções em face da Fazenda Pública.

19 Para efeito do disposto no inciso II do caput deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo de-clarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supre-mo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal.

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As ações rescisórias podem ser viabilizadas de acordo com os requisitos previstos nos comandos constitucionais e infraconstitucionais, sendo que a possibilidade de êxito é grande.

É certo que a súmula nº 343 do Excelso Supremo Tribunal Federal representava um óbice quase intransponível ao conhecimento das ações rescisórias e, em última análise, uma barreira aos dispositivos constitucionais e à aplicação da interpretação jurisprudencial da Corte Suprema. Eis o teor da referida norma: “Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”.

Todavia, recentemente tem sido revisto esse enunciado da jurisprudência do Excelso Supremo Tribunal Federal a ponto de se indicar que deve ser cancelado, como se infere do seguinte julgado do Pleno, segundo informativo publicado no site da Suprema Corte20.

Por outro lado, em caso de já ter fluído o prazo para ação rescisória há possibilidade de pedido de revisão do precatório. A esse respeito, convém conferir notícia veiculada no sítio eletrônico do TST, referente ao estudo realizado pelo professor e Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, Ives Gandra Martins Filho21. O Pleno do col. Tribunal Superior do Trabalho tratou do assunto ao editar a orientação jurisprudencial nº 02.

20 STF: Informativo nº 497.Disponível em:< www.stf.jus.br/informativo>. Acesso em: 20.10.2009:

21 TST firma jurisprudência sobre revisão de precatórios. Disponível em: <www.tst.jus.br/noticiais>. Acesso em: 12/12/2003.

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De efeito, o pedido de revisão do precatório poderá se dá perante o presidente do Tribunal ou perante o Juízo da Execução. Trata-se de competência concorrente. A competência conferida aos presidentes dos Tribunais veio à lume com art. 1º-E, da Lei nº 9.494/97, inserido pela Medida Provisória nº 2.180-35/2001.

A competência do Juízo da execução decorre da competência para processar e julgar o feito.

Para ultimar esse tópico, impende revelar que ainda existem os defensores da coisa julgada inconstitucional, tendo como base o argumento de que princípios do devido processo legal em sentido material (art. 5º, LIV, da CF) e da moralidade (art. 37, caput, da CF) se sobrepõem ao principio da segurança jurídica matizada pela coisa julgada (art. 5º, caput e XXXVI, da CF).

Daí se ver que existem diversos meios de se demonstrar os reais limites da coisa julgada, considerando o trabalho da perícia jurídico-contábil. Desse modo, superam-se as etapas básicas para viabilizar a gestão das dívidas públicas.

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4 GESTÃO DE PAGAMENTOS DAS DíVIDAS PúBLICAS. SOLUÇÃO PARA O PASSADO, PRESENTE E FUTURO.

4.1 PAGAMENTOS DAS DíVIDAS PúBLICAS. SOLUÇÃO PARA O PASSADO.

Convém repisar que o ponto central de uma gestão das dívidas públicas é solucionar o passivo bilionário (passado) e evitar que outras dívidas se acumulem com o passar dos anos (presente e futuro).

De início, faz-se necessário estabelecer as prioridades, observando a legislação, especialmente para evitar quebra da ordem cronológica de pagamento dos precatórios e, consequentemente, a isonomia.

Dessa forma, entende-se que a solução dos precatórios tem que ser concomitante com a das requisições de pequeno valor. Ademais, alguns desses precatórios podem ser objeto de compensação com créditos tributários.

Após a solução dos precatórios preferenciais e das requisições de pequeno valor será a vez dos precatórios de maior valor.

Desse modo, superam-se as etapas básicas para viabilizar a gestão das dívidas públicas, notadamente do passivo. Vale dizer, classificam-se as dívidas públicas e estabelecem-se os valores efetivamente devidos e na seqüência realizam-se os pagamentos.

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4.2 PAGAMENTO DAS DíVIDAS PúBLICAS. SOLUÇÃO PARA O PRESENTE E FUTURO.

Não bastasse o já exposto, tem-se que a gestão das dívidas públicas tem como diferencial a visão do presente e do futuro, visando evitar que se produzam dívidas bilionárias como as existentes no passado. Note-se que essa atuação deve centrar tanto nas dívidas contraídas junto ao setor público e mercado financeiro quanto nas dívidas objeto de sentenças judiciárias. Ou seja, a gestão tem que avançar para procurar evitar ao máximo a geração da dívida pública, sendo que o trabalho de redução e resolução da dívida existente passa a ser excepcional.

4.2.1 Pagamento Das Dívidas Públicas Reconhecidas extrajudicialmente. Questões Macroeconômicas.

É certo que o equilíbrio financeiro do País tem contribuído significativamente para a solução das dívidas públicas contraídas por empréstimos firmados pelos entes Federativos, considerando o controle da inflação, o crescimento econômico e o controle de gastos públicos.

Tocantemente ao controle de inflação, insta referir que ela foi uma das causadoras da dívida bilionária dos entes públicos, tal como se infere dos débitos decorrentes dos planos econômicos. Atualmente a inflação se encontra em níveis razoáveis. O ponto central da mudança brasileira foi o entendimento de que a inflação era ruim, e não boa, como se

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pensara décadas passadas. Entretanto, não se pode descuidar do controle da

inflação, especialmente em uma economia globalizada em que um problema em um país tem reflexos imediatos nas economias de todo o mundo, tal como se infere das notícias veiculadas no ano passado quanto à alta dos preços dos alimentos.

Por outro lado, a atual estabilidade econômica gerou divisas capazes de pagar a dívida externa brasileira e a conseguir a classificação do País como grau de investimento. Daí se ver que é fundamental que o Brasil poupe mais dinheiro, ao invés de gastar mais. Nessa linha, a criação do Fundo Soberano representa uma medida acertada.

O crescimento econômico mundial até setembro de 2008 também contribuiu para o equilíbrio financeiro brasileiro, mas atualmente já se tem sinais claros de redução do crescimento. Em verdade, os Estados Unidos continua revelando indicadores que dão conta de recessão, embora alguns países, dentre eles o Brasil, deem sinais de recuperação.

Por outro vértice, os gastos públicos passaram a ser controlados com a edição da Lei de Responsabilidade Fiscal, bem como passaram a ser mais transparentes, notadamente pela fiscalização dos órgãos de controle o Estado e pela sociedade, especialmente das organizações não governamentais. Esse controle é retratado em informação inserida no site do Banco Central do Brasil22.

22 Sítio eletrônico (site) do Banco Central do Brasil. Link economia e fi-nanças/dívidas públicas. Disponível em: <www.bcb.gov.br >. Acesso em 20.07.2009:

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No entanto, os gastos públicos vem aumentando constantemente, conforme aponta a crítica especializada23.

Por fim, insta destacar que cabem aos demais órgãos de controle e a sociedade fiscalizar os gastos públicos, sendo que a imprensa tem um papel fundamental, pois que ao se informar e informar manifesta a vontade popular, inclusive para evitar gastos públicos desnecessários, assim como ocorreu recentemente com a idéia de criar cargos de comissão no Senado Federal. O controle social resultou em ação contrária, pois foram extintos diversos cargos em comissão no Senado Federal.

4.2.2 Gestão Das Dívidas Públicas Reconhecidas Judicialmente.

4.2.2.1 Gestão Institucional.

No que se refere às dívidas públicas reconhecidas em sentenças judiciárias, compreende-se que elas também necessitam de um sistema de gestão profissional, tal como a desempenhada para as dívidas públicas externas e internas contraídas pelos entes Públicos junto a credores internacionais e nacionais, públicos e privados.

23 Brasil Real - Cartas de Conjuntura ITV” é uma publicação quinzenal do Instituto Teotônio Vilela. Disponível em: <www.itv.org.br>.Acesso em 20.07.2009:

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Nesse sentido, o primeiro passo é reestruturar as instituições e órgãos de defesa judicial dos entes públicos, a fim de que os processos sejam conduzidos por profissionais especializados em determinadas fases processuais ou matérias. Essa divisão gera resultados expressivos porque tem proporcionado maior cooperação entre os colegas, atualização e domínio das matérias enfrentadas, mais tempo para manifestações devido a homogeneidade de prazos e procedimentos, redução das falhas (perdas de prazos, erros procedimentais etc.) e maior número de decisões favoráveis.

Outra ferramenta indispensável é a documentação das rotinas de trabalho, porquanto garante a eficiência dos serviços e facilita o treinamento das equipes.

Associa-se, ainda, o investimento em tecnologia que permita o controle dos processos internos, a criação de bancos de dados (peças e precedentes judiciais referentes aos processos da Instituição), processo eletrônico e indicadores que apontem os resultados positivos e negativos e, ainda, sirvam de parâmetro para outras correções, inovações etc.

A estrutura física também é fundamental para garantir funcionalidade e saúde dos membros da equipe.

Outrossim, destaca-se que o mais importante é ter uma equipe em número razoável, com conhecimento técnico e comprometimento com a missão da instituição e do setor de lotação. A mutidisciplinariedade é imprescindível, pois que além de profissionais da área de Direito se exige a presença de profissionais da área de cálculos (economistas, matemáticos ou contabilistas), estatísticos, administradores etc.

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Reitera-se que o meio ambiente do trabalho saudável é fundamental para a existência, permanência e evolução de uma Instituição, sendo que além da estrutura física é necessária a harmonia espiritual calcada no respeito da dignidade da pessoa humana e a na vontade de contribuir para um mundo melhor para as atuais e futuras gerações. Trata-se da sustentabilidade social, ambiental e econômica da Instituição e do Ente Federativo.

Indubitavelmente, as Instituições e órgãos de defesa judicial dos entes públicos são órgãos de controle interno, cuja essencialidade justificou o status de função essencial à Justiça.

Em resumo, justifica-se uma gestão administrativa para garantir que os entes públicos percam apenas aquelas ações em que a justiça está sendo feita com a sucumbência do ente público, e não por erro da defesa jurídica, falta de estratégia, falta de conhecimento, falta de estrutura física e de pessoal etc.

4.2.2.2 Gestão da Atuação Judicial dos entes Públicos.

Não bastasse isso, ainda se faz necessário modificar a forma de atuação porque presentemente não mais se concebe uma defesa judicial que se insurja contra todas as decisões judiciais desfavoráveis e que ajuíze todas as ações cabíveis, ainda que se vise salvaguardar os princípios da indisponibilidade do interesse público e da supremacia do interesse público sobre o interesse privado.

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Hodiernamente, tem-se que a efetiva proteção desses princípios centrais do Direito Administrativo está no reconhecimento da inviabilidade de ações ou de recursos. Em outras palavras, entende-se que é necessário selecionar os assuntos e processos que realmente exigiam a atuação da defesa estatal, pois que existem algumas demandas que a insistência representaria mais prejuízos do que benefícios.

Essa nova ótica calcada na razoabilidade, na proporcionalidade e na economicidade recomenda as seguintes ações: a) não ajuizamento de ações para exigir valores ínfimos; b) dispensa de recursos, ações de impugnação ou sucedâneos recursais em matérias em que a questão jurídica, econômica ou social não viabilize tais medidas, inclusive editando enunciados de súmula administrativa referentes a jurisprudência iterativa dos Tribunais; e, c) celebração de acordos judiciais e extrajudiciais em causas perdidas.

O não-ajuizamento de ações para exigir valores ínfimos é uma medida imprescindível para desafogar as atividades do contencioso e do Judiciário, máxime considerando que em alguns casos o valor do processo judicial supera o valor do crédito.

No entanto, esses valores precisam ser acrescidos dos gastos da tramitação dos processos internos das Instituições e órgãos de defesa judicial do Estado. A par disso, a União e alguns Estados não devem ajuizar ações com valores ínfimos, embora devam mensurar o efeito multiplicador.

Por outro lado, nas ações judiciais em curso em que as teses jurídicas das Fazendas Públicas forem reiteradamente

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desacolhidas, faz-se necessário apresentar manifestações internas para não interpor recursos, ações autônomas de impugnação ou sucedâneos recursais. Entretanto, a prudência é necessária, pois é comum a improcedência de teses jurídicas nas instâncias ordinárias e a reforma pelas instâncias extraordinárias, sendo que, não raras vezes, os Tribunais Superiores (STJ e TST) mantem as decisões originárias e a Suprema Corte reverte o julgamento. Os aumentos decorrentes dos planos econômicos são o exemplo clássico dessa derradeira situação.

Nesse quadrante, a jurisprudência iterativa dos Tribunais recomenda a edição de enunciados de súmulas administrativas pela AGU e pelas Procuradorias dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, representando a conformação com determinadas decisões judiciais e reduzindo o procedimento interno de manifestação de não-interposição de recursos etc.

Diante dessas situações em que os entes públicos são vencidos se afigura importante aferir a plausibilidade jurídica e econômica para a celebração de acordos. De início, faz-se necessário ter lei prevendo a possibilidade de acordo, sendo que na grande maioria das Leis Orgânicas das Carreiras de Procuradores dos Estados há essa previsão com a reserva de competência administrativa ao Procurador-Geral. Além disso, existem leis específicas sobre o assunto, tal como a Lei Federal nº 9.469/97:

O acordo tem diversas vantagens, tais como a satisfação das partes, a economia de dinheiro ao deixar de

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ajuizar ou prosseguir com processo, a rapidez na solução do problema, programação do pagamento etc. Pensando nisso, o Conselho Nacional de Justiça lançou a campanha permanente de conciliação (conciliar é legal), inclusive com enfoque para as dívidas públicas.

Destaca-se que a conciliação representa o adimplemento programado com a obrigação perante o cidadão, ao passo que se na via litigiosa os processos vão se encerrando sem uma sintonia e cronologia, o que não raras vezes coloca em riscos os serviços públicos essenciais. É dizer, evita-se o risco do colapso do sistema de pagamento com o recebimento repentino de precatórios e principalmente de requisições de pequeno valor.

Seguindo essa trilha, a União e os Estados tem feito acordos sucessivos em matérias de grande repercussão social e econômica. No âmbito da União, destacam-se os acordos dos 28,86%, dos 3,17% e da correção do FGTS.

É de todo conveniente destacar, ainda, que eventual rolagem (inadimplência) de dívida pública reconhecida em sentença judiciária, além de ser um ato irregular, representa um péssimo resultado financeiro para o devedor, considerando que o credor receberá o capital com correção monetária e juros de mora.

Avulta essa compreensão diante da comparação do elevado índice de juros de mora frente aos atuais índices de inflação, conforme consignamos em memorial elaborado para ser apresentado no RE 453740.

Se toda a gestão administrativa e judicial não for

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suficiente para evitar a dívida ou para viabilizar um acordo, faz-se necessário executar a gestão para o sistema de pagamento por precatório ou requisição de pequeno valor. Quanto a esse derradeiro sistema de pagamento das dívidas pública emerge a preocupação com o atraso ou com comprometimento dos serviços públicos essenciais.

4.2.2.3 Proposta de ajuste do regime de pagamento pela via da requisição de pequeno valor.

Como antedito, a requisição de pequeno valor é liquidada em até 60 (sessenta) dias a partir do recebimento pelo ente público devedor. Vale dizer, nos processos judiciais que se iniciam na fase de conhecimento e que tem uma resolução de mérito com uma sentença condenatória passam à fase de execução, sendo que essa tende a ser mais célere devido a limitação de matérias arguíveis em defesa (art. 730 do CPC ou 884 da CLT).

Em situações normais, as execuções podem se iniciar e findar no mesmo ano, gerando a obrigação de pagamento sem previsão orçamentária específica, porquanto os projetos de leis orçamentárias anuais são elaborados e aprovados em um ano para serem executados no ano seguinte, por força do princípio da anualidade (art. 165 e seguintes da CF, art. 1º, da Lei nº 4.320/64 e Lei Complementar nº 101/2000).

Nessa conjuntura, tem-se utilizado estimativas para aprovisionamento orçamentário dos gastos com requisições

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de pequeno valor, mas o problema é que, não raras vezes, essas estimativas estão sendo suplantadas pelos valores das condenações judiciais.

Essa situação tem gerado preocupação do Governo Federal que já sinalizou com a possibilidade de alterar o regime de pagamento por requisição de pequeno valor24, o que resultou em manifesto contrário da Associação dos Juízes Federais.

Indubitavelmente a extrapolação das estimativas de pagamento das requisições de pequeno valor tem a potencialidade de gerar o comprometimento dos serviços públicos essenciais ou o atraso na liquidação desses débitos. Entenda-se a preocupação maior se deve ao fato de que o sistema de pagamento por requisição de pequeno valor é muito bom porque garante a efetiva prestação jurisdicional ao ser pago rapidamente os créditos dos cidadãos.

A par disso, é que constata-se um aumento excessivo dos gastos a ponto de comprometer esse sistema tão eficiente, porquanto o Poder Público tem outras atribuições constitucionais. A solução para esse problema exige uma gestão administrativa e judicial profissional que permita compatibilizar a efetividade jurisdicional e os serviços públicos essenciais prestados pelo Estado.

Assim sendo, a solução se inicia com o aperfeiçoamento do sistema de previsão orçamentária para pagamento de requisições de pequeno valor, o que pode ser atingido com a utilização de recursos tecnológicos, estatísticos, jurídicos e contábeis.24 Disponível em: <http://www.jeremoabohoje.com.br/noticias/abrmono-

ticias.asp?noticia=abrnoticia53.asp>. Acesso em: 20.07.2009.

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Vale dizer, as Instituições e órgãos de defesa judicial das Fazendas Públicas devem implementar setores específicos com a atribuição para liquidar previamente as ações judiciais, considerando os pedidos deduzidos pelas partes e eventuais precedentes judiciais sobre as matérias em litígios.

Essa tarefa tem ficado cada vez mais alcançável diante da uniformização de tabelas de processos e assuntos (Resolução nº 46 do Conselho Nacional de Justiça, de 18 de dezembro de 2007), da uniformização dos sistemas de cálculos, da edição de súmulas vinculantes, dos julgamentos em processos objetivos de controle de constitucionalidade etc.

A antecipação maior se daria com uma liquidação interna realizada no prazo da contestação, mas ela perderia em precisão. Alternativamente, pode-se considerar o comando da sentença que, em regra, deve ser líquida. Atente-se que as sentenças, em geral, são impugnadas por recursos voluntários ou são submetidas ao reexame necessário (art. 475 do CPC e art. 1º, V, do Decreto-Lei nº 779/69), salvo exceções previstas nos parágrafos 2º e 3º do art. 475 do CPC.

Ademais, compreende-se que a liquidação interna deve se operar no prazo da contestação, considerando que existem processos de competência originária dos tribunais, especialmente mandados de segurança, sendo que alguns casos não cabem sequer recursos (art. 102, I, alíneas “d”, “e”, “f” e “n”, da CF).

Com essa gestão resolve-se o equívoco da previsão orçamentária estimada e aquém do desembolso real, restando a

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questão da garantia de pagamento dos valores adequadamente orçados.

Para finalizar, deve-se destacar que é sabido que além das requisições de pequeno valor existem os precatórios preferenciais e os de maior valor, que somados representam valores muito considerados, máxime considerando os que estão com pagamentos atrasados. No entanto, é preciso manter o fiel cumprimento daquele regime de pagamento como forma de efetivar a jurisdição, garantir a dignidade da pessoa humana e o respeito aos princípios da Administração Pública.

4.2.2.4 Proposta de ajuste do regime de pagamento pela via do precatório.

O problema dos precatórios deve ser resolvido concomitantemente com o pagamento das requisições de pequeno valor, inclusive com a vinculação as receitas (PEC nº 12/2006), considerando a reserva do possível e a efetividade da prestação jurisdicional.

É cediço que algumas instituições são contra esse projeto de emenda constitucional por considerá-lo uma nova moratória ou “calote público”, mas a realidade demonstra que atualmente não se tem vinculação e a dívida tem aumentado constantemente.

Nessa conjuntura, tem-se que assim como foi estabelecida meta de superávit primário para pagar a dívida externa, também deverá sê-lo para pagamento das dívidas públicas reconhecidas em juízo.

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Destaque-se que o superávit primário é formado pela economia de todas as unidades da Federação. E mais, que o superávit primário possibilitou acumular reserva financeira suficiente para pagar a dívida pública externa, razão pela qual é factível que poderá ser paga a dívida pública interna.

Não se desconhece que o superávit primário representa uma redução de investimentos dos Governos, mas não é menos verdade que o pagamento da dívida pública interna gera investimentos da área privada, geração de emprego, desenvolvimento ou crescimento social.

Subsidiariamente, concorda-se com a aprovação do Projeto de Emenda Constitucional nº 12/2006, tendo em conta que é uma proposta de solução viável para o atraso no pagamento dos precatórios, sendo que o quanto antes for aprovado melhor será porque os pagamentos iniciarão o quanto antes. A ideia de vinculação de parte do orçamento foi adotada para garantir investimentos nas áreas de educação e de saúde, cujos problemas ainda existentes não são por falta de recursos públicos, mas sim, pela corrupção, a ineficiência, a falta de gestão administrativa etc.

No que pertine ao leilão, em princípio se revelaria inaceitável, mas ele é amplamente utilizado entre particulares. Relembremos ainda que a solução da dívida pública externa se iniciou com as negociações com os credores.

De toda sorte, os debates devem ser travados no Parlamento, a fim de que se encontre um equilíbrio entre os percentuais de vinculação para pagamento das dívidas públicas e os serviços públicos essenciais e os investimentos sociais.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com essas considerações, espera-se ter demonstrado que é possível operar uma gestão das dívidas públicas reconhecidas em juízo visando solucionar o problema dos pagamentos atrasos e sem criar novos débitos bilionários.

A par disso, aponta-se como solução a liquidação interna dos pedidos formulados em ações judiciais, especialmente no prazo de contestação, aproveitando a uniformização de tabelas de processos e assuntos (Resolução nº 46 do Conselho Nacional de Justiça, de 18 de dezembro de 2007), da uniformização dos sistemas de cálculos, da edição de súmulas vinculantes, dos julgamentos em processos objetivos de controle de constitucionalidade etc.

Diante da liquidação interna dos pedidos formulados em ações judiciais resta desenvolver a vinculação de parte do orçamento para pagamento das requisições de pequeno valor.

Por fim, quanto ao regime de pagamento pela via do precatório necessita de ajustes, os quais já se encontram delineados na proposta de Emenda Constitucional nº 12/2006. O aperfeiçoamento deve advir dos debates travados no Parlamento, notadamente para encontrar o equilíbrio entre os percentuais de vinculação ao orçamento para pagar todas as dívidas públicas reconhecidas em juízo e os serviços públicos essenciais e os investimentos sociais.

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STF: Informativo nº 497.Disponível em:< www.stf.jus.br/informativo>. Acesso em: 20.10.2009.

STJ. Recurso Especial nº 493.612/MS. Relatora: Ministra Eliana Calmon. Órgão Julgador: Segunda Turma. Data do Julgamento 27/05/2003. Data da Publicação/Fonte DJ 23.06.2003.

STJ. Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 12059/RS. Relatora Ministra Laurita Vaz. Órgão Julgador: Segunda Turma. Data do Julgamento 05/11/2002. Data da Publicação/Fonte DJ 09.12.2002 p. 317. RSTJ vol. 165 p. 189.

TST: ROAG - 3106/1991-402-14-43, Relator designado para lavratura do acórdão Ministro Luiz Philippe VIEIRA DE MELLO FILHO. Publicado no DJ de 05/09/2008.

TST. Recurso Ordinário e reexame necessário nº 402/2004-000-14-00.0, Relator Ministro João Orestes Dalazen. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. DJ 10/02/2006.

TST firma jurisprudência sobre revisão de precatórios. Disponível em: <www.tst.jus.br/noticiais>. Acesso em: 12/12/2003.

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7José Rodrigues Teles

Contratação de Empresa Particular para Execução de Obra Pública: por que surgem controvérsias jurídicas entre o INSS e diversos Órgãos da Administração relativamenteàs obrigações para com a Seguridade Social?

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CONTRATAÇÃO DE EMPRESA PARTICULAR PARA ExECUÇÃO DE OBRA PúBLICA: POR QUE SURGEM CONTROVéRSIAS JURíDICAS ENTRE O INSS E DIVERSOS ÓRGÃOS DA ADMINISTRAÇÃO RELATIVAMENTE ÀS OBRIGAÇÕES PARA COM A SEGURIDADE SOCIAL?

José Rodrigues Teles•

Introdução.1 Notificação de Órgãos e Entidades da Administração Pública. 2 Da Responsabilidade Solidária e Subsidiária em matéria tributária. 3 Da aplicação do inciso IV da Súmula 331/TST em face da Lei nº. 8.666/93. 4 Da supremacia do interesse público. Considerações finais. Bibliografia.

INTRODUÇÃO

A questão das obrigações para com a Seguridade Social vem gerando controvérsias jurídicas entre a Previdência Social e outros Órgãos e Entidades da Administração Pública, tendo estes sido, reiteradamente, notificados como responsáveis solidários pelo pagamento de contribuições previdenciárias

• Procurador do Estado do Acre, Lotado na Procuradoria Fiscal, nomeado pelo Dec. Est. 035/98, OAB/AC 1.430. Pós-Graduado Lato Sensu em Di-reito Público pela FACIPE – Faculdade Integrada de Pernambuco, Pós-Graduado em Direito Tributário pela UNAMA – Universidade da Amazô-nia e UNISUL – Universidade do Sul de Santa Catarina e, Pós-Graduando em Gestão-Pública com �nfase em Controle Externo pelo INFOCO – Ins-tituto Superior de Formação Continuada.

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devidas por empresas contratadas para a execução de obras públicas.

A experiência colhida em alguns processos que tramitam na Procuradoria Especializada Fiscal animou este modesto articulista, a tecer breves comentários sobre alguns aspectos procedimentais relativos às obrigações para com a Seguridade Social, que devem merecer atenção ou cuidados da Administração, quando contrata Empresa Privada para a execução de obras públicas.

Para melhor compreensão, a abordagem será dividida em tópicos, nos quais se exporá os temas cuja repetição se tem visto com maior frequência, sempre procurando confrontar onde residem as controvérsias jurídicas e os pontos de vista deste modesto articulista.

1 NOTIFICAÇÃO DE ÓRGÃOS E ENTIDADES DA ADMINISTRAÇÃO PúBLICA

Na esfera federal, consoante consignado no Parecer nº. AGU/MS 08/2006, foram notificados o Centro Federal de Educação Tecnológica de Santa Catarina – CEFET/SC, Ministério da Defesa – Comando do Exército e Ministério da Fazenda.

Idêntica ocorrência se deu no Estado do Acre, porquanto este ente público foi considerado pelo INSS, responsável solidário pelo pagamento de contribuições previdenciárias devidas por empresa contratada pela

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Administração Estadual para a realização de obra pública, conforme NFLD Nº 35.412.796-9, da qual o Estado do Acre aguarda o julgamento do Recurso interposto junto ao então Conselho de Recursos da Previdência Social.

Encontra-se consignado no Parecer nº. AGU/MS 08/2006, adotado pelo Advogado-Geral da União, por meio do Parecer nº. AC 055/2006, tudo nos termos do Despacho do Consultor-Geral da União nº. 996/2006, para os fins do art. 41, da Lei Complementar nº. 73, de 10 de fevereiro do 1993, aprovado pelo Presidente da República, especialmente nos itens IV e V abaixo, os seguintes entendimentos:

[...]IV – Atualmente, a Administração Pública não responde, nem solidariamente, pelas obrigações para com a Seguridade Social devidas pelo construtor ou subempreiteira contratados para a realização de obras de construção, reforma ou acréscimo, qualquer que seja a forma de contratação, desde que não envolvam a cessão de mão-de-obra, ou seja, desde que a empresa construtora assuma a responsabilidade direta e total pela obra ou repasse o contrato integralmente (Lei 8.212/91, art. 30, VI e Decreto nº. 3.048/99, art. 220, § 1º c/c Lei nº. 8.666/93, art. 71).

V – Desde 1º.02.1999 (Lei nº 9.711/98, art. 29), a Administração Pública contratante de serviços de construção civil executados mediante cessão de mão-de-obra deve reter onze por cento do valor bruto da nota fiscal ou fatura de prestação de serviços e recolher a importância retida até o dia dois do mês subseqüente ao da emissão da respectiva nota fiscal ou fatura, em nome da empresa contratada, cedente da mão-de-obra (Lei nº. 8.212/91, art. 31).

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Entretanto, o Consultor-Geral da União, Doutor Manoel Lauro Volkmer de Castilho, faz importante ressalva no sentido de que o Administrador Público deve ter extremo cuidado e atenção redobrada no trato dessa questão, na medida em que existe a Súmula 331 do TST. Veja-se o teor da referida ressalva:

[...]4. Observo, contudo, a despeito da convicção das proposições ora submetidas à apreciação, que esse entendimento recomenda redobrar os cuidados e eventualmente reiterar iniciativas junto aos tribunais trabalhistas para afastar a aplicação da Súmula 331 do TST (item IV) de acordo com o qual a administração (direta e indireta) fica responsável subsidiariamente pelas obrigações trabalhistas do empregador por ela contratado em caso de inadimplemento deste, o que de sua vez, implicará em responsabilidade tributária correspondente pelas contribuições previdenciárias devidas – e nessa hipótese, pelo menos com respeito aos contratos de obras, serão inteiramente indevidas pela Administração.

5. Assim, ao submeter a aprovação o mencionado parecer sugiro também recomendar-se à administração federal direta e indireta, bem assim sua representação judicial e consultiva, extremo cuidado e atenção para que não venham a responder solidariamente por tributos que a lei não lhes obriga.

Vê-se, pois, que a questão é relativa a matéria de natureza trabalhista, previdenciária e tributária e, sendo assim, em cada caso, deve ser esclarecida mediante a análise da legislação pertinente e do Contrato firmado entre

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a Administração Pública e a Empresa Privada, tendo como baliza o estudo dos seguintes pontos:a) Enquadramento do instrumento como contrato para execução de obra de construção, reforma ou acréscimo, sujeito às regras do art. 30, VI, da Lei nº. 8.212/91; ou contrato de serviço de construção civil executado mediante a cessão de mão-de-obra, sujeito às regras do art. 31, da Lei nº. 8.212/91;b) A Súmula nº. 331, item IV, do Tribunal Superior do Trabalho frente à Lei n° 8.666/93;c) Que outras obrigações são exigíveis do Contratado, ao lado da prestação do objeto do contrato, ainda que não consignadas expressamente no instrumento contratual, mas decorrentes dos princípios e normas que regem os contratos de Direito Público, com ênfase para o atendimento dos encargos trabalhistas, previdenciários e fiscais relativos à execução da obra contratada;

Definidos os pontos acima, devem ser analisados os normativos que dispõem sobre a questão, a saber:

Lei nº. 8.212/91

Art. 30. A arrecadação e o recolhimento das contribuições ou de outras importâncias devidas à Seguridade Social obedecem às seguintes normas: (Redação dada pela Lei nº 8.620, de 5/1/93)[...]VI - o proprietário, o incorporador definido na Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964,o dono da obra ou condômino da unidade imobiliária, qualquer que seja a forma de contratação da construção, reforma ou acréscimo, são solidários com o construtor, e

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estes com a subempreiteira, pelo cumprimento das obrigações para com a Seguridade Social, ressalvado o seu direito regressivo contra o executor ou contratante da obra e admitida a retenção de importância a este devida para garantia do cumprimento dessas obrigações, não se aplicando, em qualquer hipótese, o benefício de ordem; (Redação dada pela Lei nº 9.528, de 10/12/97)[...]

Art. 31. A empresa contratante de serviços executados mediante cessão de mão-de-obra, inclusive em regime de trabalho temporário, deverá reter 11% (onze por cento) do valor bruto da nota fiscal ou fatura de prestação de serviços e recolher a importância retida até o dia 10 (dez) do mês subseqüente ao da emissão da respectiva nota fiscal ou fatura em nome da empresa cedente da mão-de-obra, observado o disposto no § 5o do art. 33 desta Lei. Alterado pela Lei nº 11.488 - de 15/6/2007 - DOU DE 15/5/2007 - Edição extra [...]§ 1º O valor retido de que trata o caput, que deverá ser destacado na nota fiscal ou fatura de prestação de serviços, será compensado pelo respectivo estabelecimento da empresa cedente da mão-de-obra, quando do recolhimento das contribuições destinadas à Seguridade Social devidas sobre a folha de pagamento dos segurados a seu serviço. (Redação dada pela Lei nº 9.711, de 20/11/98)[...]§ 3º Para os fins desta Lei, entende-se como cessão de mão-de-obra a colocação à disposição do contratante, em suas dependências ou nas de terceiros, de segurados que realizem serviços contínuos, relacionados ou não com a atividade-fim da empresa, quaisquer que sejam a natureza e a forma de contratação. (Redação dada pelaLei nº 9.711, de 20/11/98)

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Releva notar, pois, que a Lei nº. 8.212/91 apresenta duas hipóteses distintas, no que diz respeito às obrigações previdenciárias dos contratantes de obras de construção civil, a saber: uma, nos contratos de construção, reforma ou acréscimo, o dono da obra é solidariamente responsável com o contratado pelas contribuições previdenciárias por este devidas (art. 30, VI); duas, nos contratos de serviços executados mediante a cessão de mão-de-obra, o contratante deve reter onze por cento do valor bruto da nota fiscal ou fatura de prestação de serviços e recolher a importância retida para a Previdência Social (art. 31).

2 DA RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA E SUBSIDÁRIA EM MATéRIA TRIBUTÁRIA.

Verifica-se, por outro lado, que a Lei nº. 8.666/93 prevê no seu art. 71, §§ 1º e 2º, com a alteração trazida pela Lei nº. 9.032/95: primeiro, a não transferência para a Administração Pública da responsabilidade pelo pagamento dos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais, em face da inadimplência do contratado (§ 1º); segundo, impõe a responsabilidade solidária da Administração Pública pelo pagamento de contribuições previdenciárias devidas por terceiros no concernente aos contratos definidos no artigo 31, da Lei nº. 8.212/91 (§ 2º).

Com efeito, veja-se o teor do aludido dispositivo legal:

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Lei nº. 8.666/93

Art. 71. O contratado é responsável pelos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato. § 1º A inadimplência do contratado, com referência aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento, nem poderá onerar o objeto do contrato ou restringir a regularização e o uso das obras e edificações, inclusive perante o Registro de Imóveis. (Redação dada pela Lei nº 9.032, de 1995)§ 2º A Administração Pública responde solidariamente com o contratado pelos encargos previdenciários resultantes da execução do contrato, nos termos do art. 31 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991. (Redação dada pela Lei nº 9.032, de 1995)

Colho no texto das Leis nºs. 8.212/91, art. 30, VI; e, 8.666/93, art. 71, § 1º, acima transcritos, que ocorrendo inadimplência do Contratado com relação aos encargos sociais, a Administração Pública como contratante tem obrigação solidária com referência aos encargos previdenciários e responsabilidade subsidiária quanto aos encargos trabalhistas.

A título de esclarecimento do que significam as expressões “obrigação solidária” e “responsabilidade subsidiária” no campo do Direito Tributário, trago a lição de De Plácido e Silva1, que assim se manifesta:

1 SILVA, de Plácido e. Dicionário Jurídico. 15ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1999

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Obrigação Solidária: é a expressão usada para indicar a obrigação em que há vários devedores ou vários credores, mantendo entre si uma solidariedade a respeito do débito ou do crédito. Nesta razão, a obrigação é única, embora se manifeste uma pluralidade de relações subjetivas acerca do objeto (ob.cit. pp. 568 e 569).[...]Responsabilidade Subsidiária: entende-se a que vem reforçar a responsabilidade principal, desde que não seja esta suficiente para atender os imperativos da obrigação assumida (ob. cit. p. 776).

Diante disso, a obrigação solidária da Administração Pública pela Contribuição Previdenciária, ocorre em duas hipóteses:

1. No contrato de empreitada total para a execução de obra de construção civil, quando o Contratante é órgão ou entidade pública, existe, a obrigação solidária da Administração Pública pelo cumprimento das obrigações para com a Seguridade Social, de qualquer importância devida pelo Contratado relativamente à execução da obra contratada, na forma da Lei nº. 8.212/91, art. 30, VI, com a redação dada pela Lei nº. 9.528, de 10/12/97.

2. No contrato de serviços de construção civil mediante cessão de mão-de-obra, a Administração Pública, quando Contratante, está obrigada a reter e recolher onze por cento do valor bruto da nota fiscal ou fatura de prestação de serviços, respondendo solidariamente com o contratado pelos encargos previdenciários resultantes da execução do contrato

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(Lei nº. 8.212/91, art. 31, c/c a Lei nº. 8.666/93, art. 71, § 2º).Estabelecidas as duas hipóteses acima, o contrato

firmado entre a Administração e a Empresa Privada será: a) um contrato para a execução de obra de construção, reforma ou acréscimo, sujeito às regras do art. 30, VI, da Lei nº. 8.212/91; ou, b) um contrato de serviço de construção civil executado mediante a cessão de mão-de-obra, sujeito às normas do art. 31, da Lei nº. 8.212/91.

Nesse ponto, para melhor entendimento da questão, busco na legislação de regência, especificamente na Lei de Licitações nº. 8.666/93, o conceito de “contrato de obra” e “contrato de serviço”.

Com efeito, a mencionada Lei nº. 8.666/93, dispõe, in verbis:

Art. 6o Para os fins desta Lei, considera-se:

I - Obra - toda construção, reforma, fabricação, recuperação ou ampliação, realizada por execução direta ou indireta;

II - Serviço - toda atividade destinada a obter determinada utilidade de interesse para a Administração, tais como: demolição, conserto, instalação, montagem, operação, conservação, reparação, adaptação, manutenção, transporte, locação de bens, publicidade, seguro ou trabalhos técnico-profissionais;

Portanto, se a Administração firma um contrato de “obra” por empreitada total tem obrigação solidária com a Empresa Contratada pelo cumprimento das obrigações para com a Seguridade Social, por força do disposto no art. 30, VI, da Lei nº. 8.212/91, com a redação dada pela Lei nº. 9.528, de 10/12/97.

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3 DA APILCAÇÃO DO INCISO IV DA SúMULA 331/TST EM FACE DA LEI Nº. 8.666/93.

Nesse ponto, passo a abordar a Súmula 331, do TST, que trata da responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto às obrigações trabalhistas, senão veja-se:

súmula nº 331 do TsT CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE (mantida)- Res. 121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003I - A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei nº 6.019, de 03.01.1974).II - A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da administração pública direta, indireta ou fundacional (art. 37, II, da CF/1988).III - Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20.06.1983) e de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta.IV - O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços, quanto àquelas obrigações, inclusive quanto aos órgãos da administração direta, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista, desde que hajam participado da relação processual e constem também do título executivo judicial (art. 71 da Lei nº 8.666, de 21.06.1993). – grifo nosso.

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Chama atenção o disposto no inciso IV da Súmula n° 331 do Tribunal Superior do Trabalho, diante da Lei de Licitações e Contratos n° 8.666, de 21 de junho de 1993.

Inicialmente, vê-se que o normativo acima dispõe, claramente, sobre contrato de prestação de serviços com cessão de mão-de-obra, disciplinado pelo disposto no art. 31, da Lei nº. 8.212/91, c/c art. 71, § 2º, da Lei nº. 8.666/93, substratos jurídicos da hipótese “2”, já definida linhas atrás.

De qualquer modo, registra-se divergência na doutrina acerca do assunto, ou seja, da aplicação do inciso IV da Súmula 331/TST em face da supracitada Lei nº. 8.666/93, com opiniões importantes a favor e contra.

Com efeito, uma corrente defende a tese de que o mencionado inciso IV da Súmula em questão é plenamente aplicável, ao passo que outra entende que tal inciso não deve prevalecer em detrimento da legislação que versa sobre licitações e contratos celebrados no âmbito da Administração Pública.

Vê-se, pois, que de um lado da doutrina estão os que são mais favoráveis aos interesses do trabalhador em detrimento dos interesses do Estado, sendo que os defensores desta tese pugnam pela aplicação irrestrita da Súmula 331/TST. Esta posição doutrinária, relativamente aos encargos previdenciários está em sintonia com o comando legal expresso no art. 71, § 2º, da Lei n° 8.666/93.

Defendendo esse posicionamento encontra-se a doutrina de Francisco Antônio de Oliveira2, a saber:

2 OLIVEIRA, Francisco Antônio de. Comentários aos enunciados do TST. 5ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 879.

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O inciso IV do Enunciado foi revisto, acrescentando-se, didaticamente: “inclusive quanto aos órgãos da administração direta, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista”. [...] Com a modificação, a mais alta Corte Trabalhista coloca as coisas em seus devidos lugares e passa a responsabilizar o Poder Público. Modificação oportuníssima.

Perfilhando o mesmo entendimento, eis as ponderações de Maurício Godinho Delgado3 assim manifestadas:

Ora, o Enunciado 331, IV, não poderia, efetivamente, absorver e reportar-se ao privilégio da isenção responsabilizatória contido no art. 71, § 1º, da Lei de Licitações – por ser tal privilégio flagrantemente inconstitucional. A súmula enfocada, tratando, obviamente, de toda a ordem justrabalhista, não poderia incorporar em sua proposta interpretativa da ordem jurídica – proposta construída após largo debate jurisprudencial – regra legal afrontante de antiga tradição constitucional do país e de texto expresso da Carta de 1988...Não poderia, de fato, incorporar tal regra jurídica pela simples razão de que norma inconstitucional não deve produzir efeitos.

A abordagem acima se refere aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais definidos no art. 71, § 1º, da Lei nº. 8.666/93 pelos quais, em tese, a Administração Pública não responderia solidariamente com o contratado (particular). Em tese? Sim. Porque pode vir a existir obrigação solidária do Ente Público por encargos previdenciários, no caso da

3 DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 2ª ed. São Paulo: LTr, 2003, p. 455.

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aplicação do disposto no § 2º; ou, mesmo reflexa, eis que o disposto no § 1º, do art. 71, da citada Lei nº. 8.666/93 não afasta o encargo previdenciário.

Apesar das respeitadas opiniões dos renomados juristas acima apontados, outros existem, que defendem a aplicação do artigo 71, § 1º, da Lei n° 8.666/93 e a não subsistência do inciso IV da Súmula 331, por entenderem ser este o melhor posicionamento que se coaduna com os interesses públicos, em se tratando de contrato de serviços.

De acordo com os defensores da doutrina ora enfocada, uma vez inadimplidos os encargos trabalhistas por parte da empresa contratada pela Administração Pública, tais débitos não poderão ser imputados a esta, mas sim ao próprio prestador de serviços, que é o real empregador. Dizem que a redação da Lei nº. 8.666/93 é clara e objetiva, não dando ensejo a interpretações contrárias.

Perfilham desse entendimento os seguintes juristas:

Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo4 que assevera:

O contratado é responsável pelos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato (art. 71). A inadimplência do contratado não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento, nem poderá onerar o objeto do contrato ou restringir a regularização e o uso das obras e edificações, inclusive perante o Registro de Imóveis (art. 71, § 1°).

4 ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito Administrativo. 3ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2002, p. 336.

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Comungando do mesmo entendimento são as lições de Carlos Pinto Coelho Motta5, senão veja-se:

Incumbe ao contratado o pagamento de encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais, isentando a Administração Pública desse ônus também no caso de inadimplência do contratado.

E, por fim, o mesmo autor arremata com o seguinte argumento:

Por via de consequência, não se autoriza ao contratado criar, durante a execução contratual, obrigação trabalhista para o contratante; e tampouco descumprir itens como capacidade financeira – que poderia ser afetada por sucessivos passivos trabalhistas6.

Defendendo, também, a não aplicação do inciso IV da Súmula nº. 331 do TST, o Promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios Leonardo Jubé de Moura7, preleciona que a administração pública não responde pelos encargos trabalhistas devidos pela empresa contratada, tendo em vista não existir qualquer relação

5 MOTTA, Carlos Pinto Coelho. Eficácia nas licitações e contratos: es-tudos e comentários sobre as Leis 8.666/93 e 8.987/95, com a redação dada pela Lei 9.648 de 27/5/98. 8ª ed. rev. atual. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 305.

6 Op. cit. p. 306.7 MOURA, Leonardo Jubé de. Responsabilidade subsidiária dos entes

da administração por débitos trabalhistas. Enunciado 331/TST. Ile-galidade e inconstitucionalidade. Disponível em: <http://www.jus.com.br>. Acesso em: 18 de novembro de 2008

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jurídica estabelecida entre o Estado e o empregado daquela, senão veja-se a sua opinião:

Com efeito, o E. TST – reconhecendo a inexistência de vínculo empregatício – fixa a responsabilidade do ente público na órbita civil/administrativa, cogitando de responsabilidade objetiva do Estado e/ou de culpa in vigilando e in eligendo. Ora, não há, in casu, relação trabalhista entre a Administração e os empregados da empresa contratada. Há, isto sim, contrato de prestação de serviços, entre empresa e ente público, regido por normas de Direito Administrativo e de Direito Civil – nada que diga com Direito do Trabalho.

Acrescenta Leonardo Jubé de Moura que alei só abre uma exceção no que tange aos encargos previdenciários, em que a Administração Pública responde solidariamente com o contratado, nos termos da Lei n° 8.666/1993 (art. 71, § 2°).

Vê-se, pois, argumenta Leonardo Jubé de Moura, que a lei acima abre uma exceção quanto aosencargos previdenciários, em que a Administração Públicaresponde solidariamente com o contratado. Sendo assim, a Súmula 331, item IV, do TST, choca-se com a mencionada Lei nº. 8.666/93, ao preceituar que o “inadimplemento das obrigações trabalhistas pelo prestador de serviços implica em responsabilidade subsidiária do tomador de serviços, mesmo que este seja uma pessoa jurídica de direito público.”

De tudo que já se viu até aqui, é correto afirmar

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que para os encargos trabalhistas a obrigação do Ente Público contratante é subsidiária à do contratado; enquanto, que, para os encargos previdenciários a obrigação é solidária.

Vê-se, na prática, que o entendimento jurisprudencial do TST vem afastando o comando do § 1º, do art. 71, da Lei nº. 8.666/93, a despeito de ter esta lei passado, obviamente, pelo crivo do Legislativo e do Executivo e fazendo prevalecer o disposto no inciso IV, da Súmula 331, senão veja-se:

RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA. LIMITAÇÃO PELA NATUREZA DAS PARCELAS. IMPOSSIBILIDADE. A Súmula n. 331 do col. TST, em seu item IV, sinaliza às empresas contratantes que tenham mais cautela ao contratar, buscando empresas idôneas, sob pena de virem a arcar com o pagamento das verbas trabalhistas devidas pelo contratado inadimplente. O entendimento jurisprudencial não excepcionou quaisquer verbas da responsabilidade subsidiária, pelo que inadimplidas pelo prestador de serviços, quer sejam indenizatórias, quer sejam salariais ou multas, responderá aquele que se beneficiou do labor. Dá-se provimento ao recurso ordinário obreiro para estender a responsabilidade subsidiária da tomadora dos serviços às multas convencionais e dos arts. 467 e 477 da CLT, negando ao apelo da FUFMT que pleiteava a exclusão da multa de 40% sobre o FGTS. (TRT23. RO - 00565.2007.003.23.00-5. Publicado em: 27/05/08. 1ª Turma. Relator: DESEMBARGADOR ROBERTO BENATAR) – grifo nosso

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No mesmo sentido são os seguintes precedentes:

(TRT23. RO - 00577.2007.007.23.00-5. Publicado em: 28/05/08. 1ª Turma. Relator: DESEMBARGADOR TARCÍSIO VALENTE);(TRT23. RO - 00890.2007.008.23.00-0. Publicado em: 03/04/08. 2ª Turma. R e l a t o r : D E S E M B A R G A D O R LUIZ ALCÂNTARA);(TRT23. AP - 0 0 3 3 6 . 2 0 0 4 . 0 0 2 . 2 3 . 0 1 - 4 . P u b l i c a d o em: 14/04/08. 2ª Turma. Relator: DESEMBARGADORA LEILA CALVO);(TRT23. RO - 00743.2007.001.23.00-5. Publicado em: 14/04/08. 2ª Turma. Relator: DESEMBARGADORA LEILA CALVO);(TRT23. RO - 01034.2007.007.23.00-5. Publicado em: 17/04/08. 2ª Turma. Relator: DESEMBARGADORA MARIA BERENICE);(TRT23. RO - 00854.2007.008.23.00-6. Publicado em: 14/04/08. 2ª Turma. Relator: DESEMBARGADORA LEILA CALVO);(TRT23. RO - 00418.2006.081.23.00-0. Publicado em: 28/04/08. 2ª Turma. Relator: DESEMBARGADOR OSMAIR COUTO).

Frente à farta jurisprudência acima colacionada, e, apesar da balizada opinião dos renomados doutrinadores que possuem entendimento contrário, constato que a Súmula 331, inciso IV, tem prevalecido na jurisprudência do TST, face ao artigo 71, § 1°, da Lei n° 8.666/93, no tocante à responsabilidade da Administração Pública pelo pagamento de verbas trabalhistas (com reflexo na contribuição previdenciária) inadimplidas pelo contratado.

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4 DA SUPREMACIA DO INTERESSE PúBLICO

Diante da culpa in vigilando ou da culpa in eligendo com que a Justiça Laboral tem fundamentado a imposição de obrigação trabalhista subsidiária aos entes públicos, decorrendo daí, também, ainda que de forma reflexa, obrigação solidária de natureza previdenciária, extrai-se que dita Justiça vem impondo a estes entes, o dever de tomar todas as precauções para escolher bem as empresas com as quais contratam.

Certo é que, existe a necessidade da Administração Pública valer-se das prerrogativas peculiares do contrato administrativo e a par do acompanhamento a execução do contrato, exigir a comprovação da adimplência com as obrigações fiscais, especialmente, quanto à Contribuição para o INSS, antes de liberar o pagamento da nota fiscal ou fatura apresentada pela Empresa Contratada.

Nessa senda, é forçoso lembrar que a Administração Pública é regida pelo princípio da supremacia do interesse público sobre o particular e, nesse contexto, sobressaem-se outras obrigações exigíveis do Contratado, ao lado da prestação do objeto do contrato, ainda que não consignadas expressamente no instrumento contratual, mas decorrentes dos princípios e normas que regem os contratos de Direito Público, conforme delineado no art. 30, VI, da Lei nº. 9.212/91 e no inciso IV, da Súmula 331, do TST.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com fundamento no acima esboçado, conclui-se que para os encargos trabalhistas a obrigação do Ente Público Contratante é subsidiária à da Empresa Contratada; enquanto, que para os encargos previdenciários a obrigação é solidária.

Ademais, quando se tratar de contrato de empreitada total para a execução de obra pública, existe a obrigação solidária da Administração Pública pelo cumprimento das obrigações para com a Seguridade Social, de qualquer importância devida pela Empresa Contratada relativamente à execução da obra, na forma da Lei nº. 8.212/91, art. 30, VI, com a redação dada pela Lei nº. 9.528, de 10/12/97.

Diante da culpa in vigilando ou da culpa in eligendo com que a Justiça Laboral tem fundamentado a imposição de obrigação subsidiária aos entes públicos com base na Súmula 331, IV, do TST, pelas obrigações trabalhistas, com óbvios reflexos caracterizadores da obrigação solidária pelos encargos previdenciários, é importante que a Administração Pública tome todas as PRECAUÇÕES e, a par do acompanhamento da execução do contrato, exija a comprovação da adimplência com as obrigações trabalhistas e tributárias, especialmente, quanto à Contribuição para o INSS, relativamente à execução do contrato, antes de liberar pagamento de nota fiscal ou fatura apresentada pela Empresa Contratada.

Enfatizo que outras obrigações são exigíveis da Contratada, ao lado da prestação do objeto do contrato, ainda que não consignadas expressamente no instrumento contratual,

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mas que decorrem dos princípios e normas que regem o Direito Público, a exemplo das normas expressas no art. 30, VI, da Lei nº. 8.212/91 e no inciso IV, da Súmula 331, do Tribunal Superior do Trabalho.

Por fim, é fundamental que a Administração cerque-se de cuidado e atenção para que não venha a responder solidariamente com Empresa Contratada, por encargos previdenciários atinentes à execução de obra pública, eis que tal possibilidade é real, conforme ficou constatado tanto no âmbito da Administração Federal, bem como, na do Estado do Acre e, assim, possa eliminar qualquer possibilidade de controvérsias jurídicas entre a Previdência Social e os outros Órgãos e Entidades da Administração Pública, relativamente à responsabilidade solidária pelo pagamento de contribuições previdenciárias não adimplidas por empresas contratadas para a execução de obras públicas.

BIBLIOGRAFIA

ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO. Parecer nº. AGU/MS 08/2006, adotado pelo Advogado-Geral da União, por meio do Parecer nº. AC 055/2006, tudo nos termos do Despacho do Consultor-Geral da União nº. 996/2006.

ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito Administrativo. 3ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2002.

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho.

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MOTTA, Carlos Pinto Coelho. Eficácia nas licitações e contratos: estudos e comentários sobre as Leis 8.666/93 e 8.987/95, com a redação dada pela Lei 9.648 de 27/5/98. 8ª ed. rev. atual. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 305.

MOURA, Leonardo Jubé de. Responsabilidade subsidiária dos entes da administração por débitos trabalhistas. Enunciado 331/TST. Ilegalidade e inconstitucionalidade. Disponível em: <http://www.jus.com.br>. Acesso em: 18 de novembro de 2008.

OLIVEIRA, Francisco Antônio de. Comentários aos enunciados do TST. 5ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.

SILVA, de Plácido e. Dicionário Jurídico. 15ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 1999.

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8João Paulo Aprigio de Figueiredo e Alexsandro Silva de Souza

Reflexões Sobre a Revisão de Enquadramento nosPlanos de Cargos Carreira e Remuneração dosSevidores Públicos e a Prescrição Quinquenal(Trato Sucessivo) e de Fundo de Direito.

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REFLExÕES SOBRE A REVISÃO DE ENQUADRAMENTO NOS PLANOS DE CARGOS CARREIRA E REMUNERAÇÃO DOS SERVIDORES PúBLICOS E A PRESCRIÇÃO QUINQUENAL (TRATO SUCESSIVO) E DE FUNDO DE DIREITO.

João Paulo Aprigio de Figueiredo•

Alexsandro Silva de Souza••

Introdução. 1 Do enquadramento. Conceito e natureza jurídica. 2 Prescrição da pretensão: a perda da exigibilidade do direito pelo pretenso titular. 3 Prestações de trato sucessivo: súmulas 85 do STJ 163 e 443 do STF. Prescrição do fundo de direito. Diferenças. 4 Revisão de enquadramento. Leis de efeitos concretos (plano de cargos, carreira e remuneração). Inaplicabilidade das súmulas 85 do STJ e 163 e 443 DO STF. 5 Jurisprudências selecionadas relativas ao objeto de estudo. Considerações finais. Bibliografia.

• Procurador do Estado do Acre; Pós-Graduado em Direito Processual: Grandes Transformações. Coordenação de Ada Pellegrini Grinover. Curso Luiz Flávio Gomes – IELF em parceria com a Universidade da Amazônia – UNAMA. Pós-Graduado em Contabilidade Pública e Responsabilidade Fiscal pelo Grupo Educacional UNINTER – Curitiba/PR.•• Advogado; Gestor de Políticas Públicas na Assessoria Jurídica da Procuradoria Especializada de Pessoal da PGE/AC. Pós-Graduado em Direito Público. Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL em parceria com o Curso Luiz Flávio Gomes – LFG.

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INTRODUÇÃO

Sempre que a Administração é instada a manifestar-se acerca de pretensos direitos dos servidores, principalmente quando transcorrido lapso temporal considerável entre a questio juris e a inequívoca exteriorização da pretensão por parte do servidor, não raras vezes depara-se com o instituto da prescrição, que no âmbito administrativo encontra justificativa na necessidade de estabilização das relações entre o administrado e a Administração e entre esta e seus servidores, em obediência ao princípio da segurança jurídica.

Não há dúvida de que a inércia do titular do direito, aliada ao decurso de considerável lapso temporal, constitui-se em causa da prescrição, justamente por que os interesses conflitantes não podem ficar submetidos, indefinidamente, sem solução.

Tal realidade imiscui-se no direito administrativo quando formuladas pretensões pelos servidores em face de questionamentos relativos ao ato de enquadramento pretérito e seus efeitos, quando transcorrido lapso de tempo capaz de modificar situações jurídicas.

É consenso, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, que o fundamento do instituto da prescrição repousa na estabilidade das relações jurídicas, apesar disso, a uniformidade das opiniões para por aí. Ora indaga-se acerca do objeto da prescrição, se essa ataca o direito, a pretensão ou se a ação é que sofre seus efeitos. Prefere-se não adentrar nas controvertidas peculiaridades que cercam referido instituto.

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Apesar das controvertidas peculiaridades que cercam o referido instituto, optou-se por privilegiar as relações do instituto com o ato administrativo de enquadramento efetivado à luz dos Planos de Cargos Carreira e Remuneração (PCCR).

Por vezes depara-se com situações em que os servidores entendem que foram lesados quando a Administração procedera a seus enquadramentos nos PCCR´s, momento em que formulam pretensões judiciais e extrajudiciais, visando corrigir pretensos erros. Eis aqui o momento em que surgem consideráveis controvérsias.

O tema é de extrema importância, elevando-se a intenção do presente trabalho, exatamente em identificar os limites na revisão dos enquadramentos, instituto que surge, sinteticamente, dos adventos de novos Planos de Cargos Carreira e Remuneração, os PCCR’s, analisando até quando se apresenta possível rever o ato ou perceber vantagens pecuniárias que deles possam advir.

Relevante, ainda, apresenta-se o intuito de descortinar a íntima conexão existente entre o instituto da prescrição e o ato de enquadramento, o que desaguará na acentuada distinção entre prescrição do próprio fundo de direito e a prescrição das parcelas não reclamadas no qüinqüênio que antecedeu a pretensão.

Dessa forma, o objetivo geral deste trabalho é discutir a prescrição, especificamente no que concerne aos efeitos desta perante o enquadramento nos PCCR’s, mormente diante das modificações de situações jurídicas, dantes

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consolidadas, e do direito a perceber vantagens pecuniárias decorrentes dessa situação jurídica.

1 DO ENQUADRAMENTO. CONCEITO E NATUREZA JURíDICA.

Salutar, em qualquer trabalho científico, a delimitação do objeto de estudo, o alcance e significação que determinado termo possui no contexto cognitivo apresentado, de modo que quando a este termo nos referirmos ecoe no estudioso uma noção, ao que pese não se tratar de uma verdade absoluta e imutável, que delineie uma determinada situação posta no mundo dos fatos.

Neste contexto, assim desencadeamos as preliminares do presente estudo, à luz do que já mencionara CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELO:

Cada bloco ou grupo de situações parificadas pela unidade de tratamento legal recebe – para fins de organização do pensamento – um nome, que é a rotulação de um conceito; vale dizer: o simples enunciado da palavra evoca no espírito uma noção complexa, formada pelos diversos elementos agregados em uma unidade, que deram margem ao conceito jurídico1.

1 MELO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 360.

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Das considerações traçadas por ANTÔNIO FLÁVIO DE OLIVEIRA, em obra dedicada exclusivamente a matéria, extrai-se o conceito de enquadramento, in verbis:

[...] ato de, frente à legislação vigente, situar o servidor no seu plano de cargos. Assim, o servidor que se encontre no serviço público passará, posteriormente a ocorrência de alteração legislativa e, em virtude dessa modificação, a ter cambiada a nomenclatura, o símbolo, o sistema de progressão na carreira etc., do cargo que ocupa. A solução do problema ocasionado pela necessidade de tradução do cargo anterior ao novo cargo criado é dada pelo instituto do enquadramento, que constitui o ato de identificar a situação anterior do servidor, encontrando a novel situação correspondente e diante disso fazer o seu enquadramento2.

Desse modo, enquadramento é ato destinado a transpor o servidor de uma “velha” estrutura jurídica funcional para outra, posterior e de eficácia temporal não coincidente.

Ressalte-se que, muito embora ocorra no enquadramento a transposição consistente na visualização de duas situações relativas a dois quadros de cargos, para à luz dos mesmos, identificar-se a correspondência entre uma e outra realidade (transposição), não poderá utilizar-se do instituto para, em detrimento do princípio insculpido no art. 37, II, da CF, instituir quadro com nomenclatura diferente,

2 OLIVEIRA, Antônio Flávio de. Servidor Público: Remoção, Cessão, Enquadramento e Redistribuição. Belo Horizonte: Fórum, 2003, p. 113.

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existindo alteração das atribuições e grau de responsabilidade dos cargos anteriormente ocupados.

A Jurisprudência é farta a esse respeito:

SERVIDORA PÚBLICA – ENQUA-DRAMENTO – VEDAÇÃO CONSTI-TUCIONAL – A pretensão de enquadramento de servidor público contraria a disposição do inc. II do art. 37 da Constituição Federal. (TRT 5ª R. – REO 62.01.00.0496-52 – (12.574/01) – 5ª T. – Rel. Juiz Paulino César Martins Ribeiro do Couto – J. 08.05.2001)

ENQUADRAMENTO – A Constituição Federal proíbe a investidura em cargo ou emprego sem a realização de concurso público. Comprovado o desvio são devidas às diferenças salariais respectivas. (TRT 5ª R. – REO 62.01.00.0686-52 – (15.426/01) – 1ª T. – Relª Juíza Sônia Santos Melo – J. 31.05.2001)

Esclarecidos, sucintamente, os delineamentos acerca do conceito de enquadramento, convém explicitar sua natureza jurídica. Esta consiste em outro ponto de suma importância para satisfatória cognição da matéria, haja vista as consequências e efeitos que dela decorrem.

O enquadramento em sua concretude possui natureza jurídica de ato administrativo, o que o qualifica consequentemente como ato jurídico, especificamente ato jurídico constitutivo, haja vista a criação, modificação ou extinção de situações jurídicas.

Não custa acentuar que o ato jurídico, conforme

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leciona a aprazível obra de HELY LOPES MEIRELLES, é toda manifestação de vontade da Administração Pública que, agindo nesta qualidade, tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar, extinguir e declarar direitos, ou impor obrigações aos administrados ou a si própria 3.

No ato de enquadramento, serão verificadas as condições pessoais do servidor frente ao quadro de transposições, para em seguida emitir posicionamento que será indicativo do ato de enquadramento a ser adotado pela autoridade competente.

Por aí se vê que o enquadramento, de regra, é sempre manifestação volitiva da Administração. No entanto, não raras vezes, oferece-se ao servidor a possibilidade de permanecer na estrutura que ocupa, mesmo tendo ocorrido à substituição do quadro por uma nova organização de carreira. É caso, v. g., da Lei Estadual n.º 1.704, de 26 de janeiro de 2006, que trouxe a lume nova estrutura organizacional no âmbito do Poder Executivo do Estado do Acre, que, não obstante, possibilita aos antigos servidores optarem pelo novo regime.

Neste contexto, é pertinente registrar, desde logo, que na maioria das vezes, o enquadramento resulta de determinação legal, o que parece natural que ocorra automaticamente. É o caso dos Planos de Cargos, Carreiras e Remuneração (PCCR) no âmbito das categorias do Estado do Acre. Com exceção ao Plano da Lei Estadual n.º 1.704/2006,

3 MEIRELES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: malheiros, 2004, p. 147.

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supracitada, a rigor, os demais PCCR’s resultaram no enquadramento ex-officio, onde a modificação do quadro foge à esfera de decisão do servidor.

Além do mais, tratar-se-á o enquadramento sempre de ato administrativo vinculado, já que deverá ser praticado com estrita observância ao prescrito em lei, de forma que não haverá base para conveniência e discricionariedade da Administração.

É nesse contexto que está calcado o presentetrabalho, exatamente no momento em que o Estado Administração, instituída realidade jurídica diversa da anterior, realiza o ato de enquadramento dos servidores nos PCCR`s, mais especificamente em momento posterior ao aludido ato, onde, por vezes existem questionamentos sobre enquadramentos pretéritos e busca-se, administrativa ou judicialmente, sua modificação.

2 PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO: A PERDA DA ExIGIBILIDADE DO DIREITO PELO PRETENSO TITULAR.

Pretendendo refletir acerca das relações existentes entre o enquadramento, o transcurso de determinado lapso temporal e os possíveis pleitos de modificação do ato de enquadramento pretérito, não poderíamos deixar de enfrentar, mesmo que com modesto aprofundamento, o astucioso instituto da prescrição.

Satisfatórias considerações relativas à prescrição

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demandam aprofundamento proporcional às controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais acerca do tema. In casu, apesar da reconhecida importância do instituto, nos ateremos apenas aos aspectos necessários à cognição do assunto em análise, ávidos por nos atermos, em outra oportunidade, as suas peculiaridades.

Etimologicamente o termo prescrição vem do substantivo latino praescriptio, que advém do verbo praescribere que significa escrever antes. 4 Segundo Caio Tácito, citado por Carlos Pinto Coelho Motta, o efeito do decurso do tempo como fator da paz social, tranquilizando as relações jurídicas, conduz a que, salvo direitos imprescritíveis por sua natureza, como os da personalidade, as pretensões e ações tenham, como princípio inerente, um limite temporal de exercício5.

Acerca da prescrição muito se discute se a mesma atinge a pretensão, a ação ou o direito, discussão que envolve astutos argumentos, majoritários e minoritários, e cuja imersão nos faria desviar o foco do estudo. Contudo, cumpre-nos registrar que, por muitos anos, a doutrina brasileira, tradicionalmente, estabeleceu o critério segundo o qual a prescrição atacava a ação e não o direito, sendo que este se extinguiria por via de consequência.

4 ALVES, Vilson Rodrigues. Da prescrição e da decadência no novo código civil. Campinas: Bookseller, 2003, p. 69.

5 TÁCITO, Caio. RDA, p. 296. In: MOTTA, Carlos Pinto Coelho (coord.). Curso prático de Direito Administrativo. 2ª ed. rev. atual. ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 699.

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No entanto, o direito constitucional da ação, como bem lembrou PABLO STOLZE apresenta-se como o direito de pedir ao estado um provimento jurisdicional que ponha fim ao litígio, sendo sempre público, abstrato, de natureza essencialmente processual e indisponível. Desse modo, conclui o mencionado doutrinador que não importa se autor possui ou não razão, se detém ou não o direito que alega ter, sempre lhe será conferido, à luz do principio da inafastabilidade, o inviolável direito a uma sentença, desse modo, não se pode dizer que a prescrição ataca a ação6.

Consiste, dessa forma, a prescrição na perda da pretensão de reparação do direito violado, em virtude da inércia do seu titular, no prazo previsto pela lei.

Neste sentido, esclarece LEONARDO JOSÉ CARNEIRO DA CUNHA:

O ajuizamento de uma demanda que verse sobre direitos a uma prestação depende da presença de uma pretensão, ou seja, de um alegado direito subjetivo exigível. E essa pretensão, via de regra, subordina-se a um prazo, dentro do qual deve ser exercida. Tal prazo é a prescrição, cujo significado indica a perde da pretensão.Com efeito, consumada a prescrição, o que se esvai não é o direito de ação, mas sim a pretensão, isto é, a exigibilidade do direito de que se alega ser titular7.

6 GALIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil. São Paulo: Sa-raiva, 2004, p. 477.

7 CUNHA. Leonardo José Carneiro da. A fazenda Pública em Juízo. São Paulo: Dialética, 2005, p. 60.

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Assim, com a autonomia do direito processual, a ação deixou de identificar-se com o próprio direito subjetivo material, não sendo mais materialização de um direito dependente ou nascido daquele, a partir da violação. Assim, é que se distingue a pretensão da ação.

O direito subjetivo, a partir de quando passa a ser exigível, dá origem à pretensão. Desse modo, a partir da exigibilidade do direito, surge ao seu titular o poder de exigir sua realização pelo obrigado, caracterizando a pretensão. Em suma, violado o direito, surge a pretensão, ou seja, aquele direito se torna exigível, devendo ser exercitado no prazo fixado em lei, caso não exercido a pretensão no prazo estabelecido, consuma-se a prescrição.

Destaque-se que somente há pretensão se houver lesão. É aquela que se sujeita à prescrição, sendo o ponto que a diferencia da decadência. A decadência, como se refere à perda efetiva de um direito, pelo seu não-exercício no prazo previamente estipulado, somente pode ser relacionada aos direitos potestativos que exigem manifestação judicial, aqui o direito não está sujeito a uma lesão, ou seja, não se relaciona com um crédito-débito, não geram pretensão, logo não estão sujeitos a prescrição.

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3 PRESTAÇÕES DE TRATO SUCESSIVO: SúMULAS 85 DO STJ E 163 E 443 DO STF. PRESCRIÇÃO DO FUNDO DE DIREITO. DIFERENÇAS.

Tanto a doutrina quanto à jurisprudência têm enunciado a teoria estatutária da função pública, ocasião que é distinguido a prescrição que atinge o denominado “fundo de direito” e a prescrição das “prestações sucessivas ou de trato sucessivo”8.

Nesse contexto, quando verificado que as prestações formuladas pelos servidores em face da Administração Pública versem sobre situações relativas a reajuste de vencimentos, reenquadramento, reclassificação e outras vantagens pecuniárias, em que do elemento tempo possa advir consequências modificativas ou extintivas do direito do servidor, necessário se faz considerar as naturezas dessas pretensões.

Certas pretensões formuladas em face da Administração Pública dizem respeito a vantagens financeiras que reproduzem, periodicamente, a obrigação do Estado. Nesses casos, a prescrição atingirá progressivamente as pretensões, à medida que complementarem o prazo estabelecido no Decreto n.º 20.910/32. Nesta hipótese, a prescrição não consumará toda a pretensão, atingirá apenas as prestações que se vencerem antes

8 ALENCAR, Elody Nassar de. O Estado em juízo. Prescrição de ações judiciais contra a Administração. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 61, jan. 2003. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3561>. Acesso em: 08 maio 2007.

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dos últimos 5 (cinco) anos, tal entendimento fora sufragado na Súmula 85 do STJ.

Por outro lado, no que tange à prescrição do fundo de direito, convém mencionar abordagem procedida em voto no Recurso Extraordinário n.° 110.419/SP pelo Exmo. Ministro Moreira Alves, in verbis:

Fundo de direito é a expressão utilizada para significar o direito de ser funcionário (situação jurídica fundamental) ou os direitos a modificações que se admitem com relação a essa situação jurídica fundamental, como reclassificações, reenquadramentos, direito a adicionais por tempo de serviço, direito a gratificação por prestação de serviços de natureza especial, etc. A pretensão ao fundo de direito prescreve, em direito administrativo, em cinco anos a partir da data da violação dele, pelo seu não conhecimento inequívoco.

A rigor, a prescrição de fundo de direito ataca à própria situação jurídica, não está a se falar da hipótese em que o servidor busca reaver diferenças salariais decorrentes da situação funcional, mas, sim, que a pretensão pretende buscar revisar a própria situação funcional.

Frise-se que a situação jurídica do servidor não é estática, imutável, pelo contrário, se modifica no tempo, seja pelas promoções ou progressões, seja pelas reclassificações ou reenquadramentos, como bem salientou o Min. MOREIRA ALVES no julgado sobredito.

Assim, no que se refere a essas modificações da própria situação jurídica, tem-se que são suscetíveis de violação, criando a partir da lesão a pretensão que, neste caso,

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se não exercida no prazo de lei, dar azo à prescrição do próprio fundo de direito.

Quanto à prescrição do direito de perceber vantagens pecuniárias, ou outros que possam repercutir mês a mês lesando suposto direito, pressupondo, desse modo, a priori, se tratar de prestações de trato sucessivo, duas situações devem ser esclarecidas. Primeiramente, quando há pronunciamento da Administração negando formalmente o pleito do servidor, caso em que se conta o prazo prescricional do momento da negativa, quando surge a possível lesão, bem como a possibilidade de se exigir o alegado direito (pretensão) que entenda violado. Outra situação seria a de inexistir pronunciamento formal da Administração sobre o pleito do servidor, ou ainda quando este se queda absolutamente inerte.

Veja que no primeiro caso, trata-se de prescrição do próprio fundo de direito, pois houve o pronunciamento da Administração, negando o pleito, passando daí a contar o prazo prescricional, afastando-se a aplicação da Súmula n.º 85 do STJ, por não se tratar, na verdade, de relação de trato sucessivo, embora pudesse se cogitar a renovação do “interesse” em períodos, o que erroneamente poderia induzir a existência de prestação de trato sucessivo. Frise-se, inexiste trato sucessivo quando existir expresso pronunciamento rejeitando o pleito.

Na última situação, não afastada a relação de trato sucessivo, observando-se a inexistência de pronunciamento da Administração, o prazo prescricional regula-se pelo disposto na Súmula n.° 85 do STJ, que dispõe in verbis:

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Nas relações jurídicas de trato sucessivo em que a Fazenda Pública figure como devedora, quando não tiver sido negado o próprio direito reclamado, a prescrição atinge apenas as prestações vencidas antes do quinquênio anterior a propositura da ação.

Como se observa, o direito de perceber as vantagens pecuniárias, decorrentes da situação jurídica consolidada, é mera consequência dessa situação (situação jurídica fundamental), que diz respeito, tão-só, ao quantum, tal pretensão renasce cada vez que surge o que é devido e, por conta disso, à prescrição alcança as prestações vencidas há mais de cinco anos. Aqui não há que se falar em prescrição de fundo de direito.

Tal entendimento também encontra respaldo nas Súmulas 163 e 443 do Colendo STF:

SÚMULA 163 STF - Nas relações jurídicas de trato sucessivo, em que a Fazenda Pública figure como devedora, somente prescreve as prestações, vencidas antes do quinquênio anterior à propositura da ação.

SÚMULA 443 STF - A prescrição das prestações anteriores ao período previsto em lei não ocorre quando não tiver sido negado, antes daquele prazo, o próprio direito reclamado ou a situação jurídica de que ele resulta.

Quanto à mencionada Súmula 443 do STF, convém esclarecer que caso ocorra manifestação, explícita ou implícita, de negação do direito pela Administração no prazo

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qüinqüenal, a prescrição estende-se para além das prestações, atingindo o próprio fundo do direito, nos termos do que já mencionamos alhures quanto à existência de pronunciamentos da Administração9.

Igualmente prevê o art. 1.º c/c o art. 3º, ambos do Decreto n.º 20.910/32:

Art. 1º. As dívidas passivas da União, dos Estados e dos Municípios, bem assim todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda Federal, Estadual ou Municipal, seja qual for a sua natureza, prescrevem em cinco anos contados da data do ato ou fato do qual se originarem.

[...]

Art. 3º. Quando o pagamento se dividir por dias, meses ou anos, a prescrição atingirá progressivamente as prestações, à medida que completarem os prazos estabelecidos pelo presente decreto.

Quanto a este aspecto, pertinentes são as considerações traçadas por LEONARDO JOSÉ CARNEIRO DA CUNHA:

A aludida Súmula 85 do STJ aplica-se tão-somente às situações de trato sucessivo, assim caracterizadas quando há omissão ou quando a Administração não se pronuncia expressamente sobre o pleito da parte interessada, passando a agir sem prévio pronunciamento formal. Assim, na

9 STF - RE n.° 116.958-3.

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hipótese, por exemplo, de não ter procedido a reajuste de vencimentos, ou de não se ter reenquadrado ou reclassificado o servidor, no que pese disposição legal determinando o reenquadramento ou a reclassificação, aí sim seria o caso de trato sucessivo, aplicando a Súmula 85 do STJ, eis que a suposta violação do direito estaria sendo renovada a cada mês.Caso haja, todavia, expresso pronunciamento da Administração, que venha a rejeitar formalmente o pleito do sujeito, é evidente que, a partir da ciência do ato administrativo denegatório, surge lesão e, de resto, a própria pretensão, com o que se inicia a contagem do prazo prescricional de 5 (cinco) anos10.

Arremata, por fim, o citado autor:

Para que se aplique a Súmula 85 do STJ, é preciso que se trate de relação jurídica de trato sucessivo, ou seja, todo mês renova-se a violação ou a lesão ao direito da parte, surgindo, mensalmente, uma nova pretensão, com o início contínuo do lapso temporal da prescrição. Ora, se a Administração nega, expressa e formalmente, o pleito da parte, a partir daí surge uma induvidosa e específica lesão a um suposto direito, iniciando-se o curso do prazo prescricional, sem que incida o enunciado contido na Súmula 85 do STJ11.

10 CUNHA, Leonardo José Carneiro da. A fazenda Pública em Juízo. São Paulo: Dialética, 2005, p.63.

11 CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Ob Cit. p. 63Ob Cit. p. 63

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A jurisprudência, na mesma linha de raciocínio, já se pronunciou:

16154241 – ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL – INCOMPET�NCIA DO JUÍZO PROCESSANTE – AUS�NCIA DE PREQUESTIONAMENTO – PRESCRIÇÃO DO FUNDO DE DIREITO – NÃO OCORR�NCIA – SÚMULA 85/STJ – GRATIFICAÇÃO POR OPERAÇÕES ESPECIAIS – INCORPORAÇÃO – DECRETO-LEI 1.714/79 E LEI 7.923/89 – 1. O dispositivo tido por violado quanto à alegada incompetência da Justiça Federal alagoana para processar e julgar a ação com relação a alguns dos autores, não foi apreciado pela instância a quo. Falta prequestionamento. 2. Sendo relação jurídica de trato sucessivo, cujo direito postulado em juízo não foi inequivocamente negado pela Administração, a prescrição atinge apenas as parcelas vencidas anteriormente ao qüinqüênio legal precedente ao ajuizamento da ação. Incidência da Súmula 85 – STJ. 3. Por força da Lei 7.923/89, art. 2º, § 2º, ficam absorvidos pelas remunerações constantes das Tabelas anexas a ela, as gratificações, auxílios, abonos, adicionais, indenizações e quaisquer outras retribuições, excetuadas as constantes do § 3º do mesmo dispositivo legal, aí se incluindo a Gratificação por Operações Especiais. Precedentes. 5. Recurso parcialmente conhecido e parcialmente provido. (STJ – RESP . 396487 – AL – 5ª T. – Rel. Min. Edson Vidigal – DJU 22.04.2002) (g.n)

Embargos Divergentes - Administrativo - Servidores da RFFSA - Complementação de Aposentadoria - Reajuste Revogado pela Lei nº 4.564/64 - Fundo de Direito - Prescrição Quinquenal - Decreto nº 20.910/32 (arts. 1º e 3º).

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1. Quando a própria lei, abolindo a vantagem concedida, com efeitos imediatos e concretos, atinge o fundo de direito (actio nata) para a anulação do ato, da sua vigência começa a correr o prazo prescricional, alcançando as ações contra a Fazenda Pública (Dec. 20.910/32, art. 1º).2. A prescrição apenas das prestações ou pagamentos mensais e sucessivos pressupõe que a Administração Pública tenha praticado ato concreto, por isso, exigindo a jurisprudência que, nessa hipótese, o prazo prescricional inicie-se a partir do conhecimento pelo administrado do indeferimento do seu pedido.3. Demonstrado que, no caso, por si, a lei causou efeitos imediatos e concretos, o prazo prescricional começou a fluir da sua vigência, suprimindo vantagem que deixou de ser paga.4. Precedentes jurisprudenciais.5. Embargos acolhidos.(EREsp 231.343/RS, Rel. Ministro MILTON LUIZ PEREIRA, CORTE ESPECIAL, julgado em 02.10.2002, DJ 16.12.2002 p. 225). (g.n.)

Dessa forma, caracterizada a existência deprestação de trato sucessivo, existindo omissão ou quando não houver expresso pronunciamento sobre o pleito, incidirá o regramento da Súmula 85 do STJ, reconhecendo-se a existência de lesão renovável a cada mês. Neste caso, como prevê a súmula a prescrição atinge apenas as prestações vencidas antes do qüinqüênio anterior ao pleito.

De outra forma, quando, tratando-se da própria relação jurídica fundamental ou os direitos a modificações que

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se admitem com relação a essa situação jurídica fundamental, inexistindo pronunciamento denegando o pleito, tratar-se-á de prescrição do próprio fundo do direito, no prazo de cinco anos a partir da data em que ocorrera a violação, pelo seu não conhecimento inequívoco.

4 REVISÃO DE ENQUADRAMENTO. LEIS DE EFEITOS CONCRETOS (PLANO DE CARGOS, CARREIRA E REMUNERAÇÃO). PRESCRIÇÃO DO FUNDO DE DIREITO. INAPLICABILIDADE DAS SúMULAS 85, DO STJ, E 163 E 443 DO STF.

Convém, antes de traçar qualquer comentário acerca da revisão de enquadramento, fazer importante distinção entre enquadramento e reenquadramento.

ANTÔNIO FLÁVIO DE OLIVEIRA esclarece que identificada a situação anterior do servidor, o ato de identificação da novel situação correspondente denomina-se enquadramento, salientando que surgindo uma nova norma, diversa da anterior, o mesmo procedimento também será de enquadramento, pois na nova lei é a primeira vez que será realizado. Já o reequadramento é o ato de refazer, calcado na mesma lei, o enquadramento inicial, que foi anulado, por motivo de vício, pela própria Administração no exercício do seu poder de autotutela ou pelo Poder Judiciário em decorrência

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de pedido de prestação jurisdicional12.Feitas às considerações acima, temos que a

revisão de enquadramento oriunda de uma nova lei, trata-se de novo enquadramento, não havendo que se falar in casu em reenquadramento. A existência da nova lei produz efeitos jurídicos importantes na vida do servidor que a ela se submeterá. Desse modo, quando da implantação de um novo PCCR estaremos diante de uma lei de efeitos concretos, visto que em decorrência da nova lei será praticado um novo ato administrativo de enquadramento, ato este destinado a uma determinada carreira e, mais especificamente, a cada servidor, apurando-se de modo individualizado sua situação funcional e o enquadrando nos termos da lei.

Nestes casos, feito o novo enquadramento, poderá o servidor entender que sofreu alguma lesão, de modo que após determinado lapso temporal venha a questionar seu enquadramento. Observe que poderá ser suscitado que pretensa lesão venha se renovando mês a mês, induzindo o menos atento a crer estar diante de uma relação de trato sucessivo.

Ocorre que, se nos detivermos um pouco mais à análise, em que pese à inexistência de pronunciamento pela Administração, outro fator que poderia levar a crer tratar-se de prestação de trato sucessivo, perceberemos que in casu a lesão é acarretada por ato normativo de efeitos concretos (PCCR),

12 OLIVEIRA, Antônio Flávio de Oliveira. Servidor Público: Remoção, Cessão, Enquadramento e Redistribuição. Belo Horizonte: Fórum, 2003, p. 145/146.

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implicando diante de tal situação a inexistência de relação de trato sucessivo.

Nesse sentido, leciona LEONARDO JOSÉ CARNEIRO DA CUNHA:

Demais disso, é comum haver lei de efeitos concretos, cuja vigência já acarreta lesão a direitos alegados em juízo pela parte interessada. A suposta lesão, nestes casos, não surge do ato administrativo que aplica a lei, mas sim da vigência da própria lei que, por exemplo, suprimiu uma vantagem ou modificou uma situação anterior.[...]A hipótese é de lei de efeitos concretos. Sendo seus efeitos suportados pelo suposto titular do direito, que a partir dali teve modificada sua situação ou passou a suportar uma eventual lesão, tem-se que o marco inicial do prazo prescricional é a data da publicação da lei, não se aplicando a súmula 85 do STJ13.

A propósito, mormente no que se refere aos enquadramentos dos Planos de Cargos Carreiras e Remuneração, no âmbito da Administração Pública do Estado do Acre, vislumbra-se, entre outras, que as Leis Estaduais n.ºs 1.384/2001, 1.394/2001, 1.419/2001, 1.418/2000, LCE n.° 67/1999, LCE n.° 84/2000, além de outras, constituem atos normativos de efeitos concretos, pois a partir de suas vigências foram modificadas as situações dos servidores, tendo em vista a transposição consistente na visualização de duas situações ou

13 CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Ob. Cit. p. 64

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dois quadros de cargos, que identificou correspondência entre os cargos de uma e outra realidade (transposição).

É, inclusive, esse o entendimento do STJ a respeito de leis com efeito concreto:

Embargos Divergentes - Administrativo - Servidores da RFFSA - Complementação de Aposentadoria - Reajuste Revogado pela Lei nº 4.564/64 - Fundo de Direito - Prescrição Quinquenal - Decreto nº 20.910/32 (arts. 1º e 3º).1. Quando a própria lei, abolindo a vantagem concedida, com efeitos imediatos e concretos, atinge o fundo de direito (actio nata) para a anulação do ato, da sua vigência começa a correr o prazo prescricional, alcançando as ações contra a Fazenda Pública (Dec. 20.910/32, art. 1º).2. A prescrição apenas das prestações ou pagamentos mensais e sucessivos pressupõe que a Administração Pública tenha praticado ato concreto, por isso, exigindo a jurisprudência que, nessa hipótese, o prazo prescricional inicie-se a partir do conhecimento pelo administrado do indeferimento do seu pedido.3. Demonstrado que, no caso, por si, a lei causou efeitos imediatos e concretos, o prazo prescricional começou a fluir da sua vigência, suprimindo vantagem que deixou de ser paga.4. Precedentes jurisprudenciais.5. Embargos acolhidos.(EREsp 231.343/RS, Rel. Ministro MILTON LUIZ PEREIRA, CORTE ESPECIAL, julgado em 02.10.2002, DJ 16.12.2002 p. 225). (g.n)

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ADMINISTRATIVO. REVISÃO DE ENQUADRAMENTO. LEI DE EFEITOS CONCRETOS. PRESCRIÇÃO DO FUNDO DE DIREITO. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL NÃO COM-PROVADO.1 - Tratando-se de lei que altera o enquadramento de servidor, incide a prescrição do fundo de direito, contando-se o prazo a partir do próprio ato, porquanto seus efeitos concretos refletem alteração na situação funcional do servidor desde logo. Não há falar, portanto, em prescrição qüinqüenal, pois o lapso temporal atinge, in casu, o próprio direito de ter revisto o enquadramento.2 - Malgrado a tese de dissídio jurisprudencial, há necessidade, diante das normas legais regentes da matéria (art. 541, parágrafo único do CPC c/c o art. 255 do RISTJ), de confronto, que não se satisfaz com a simples transcrição de ementas, entre o acórdão recorrido e trechos das decisões apontadas como divergentes, mencionando-se as circunstâncias que identifiquem ou assemelhem os casos confrontados. Ausente a demonstração analítica do dissenso, incide o óbice da súmula 284 do Supremo Tribunal Federal.3 - Recurso conhecido em parte (alínea “a”).(REsp 439.609/MG, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, SEXTA TURMA, julgado em 20.03.2003, DJ 07.04.2003 p. 354)

PROCESSUAL CIVIL. VIÚVAS DE POLICIAIS MILITARES DO ESTADO DO CEARÁ. INDENIZAÇÃO DE REPRESENTAÇÃO. SUPRESSÃO. LEI DE EFEITOS CONCRETOS. RESTABELECIMENTO. PRESCRIÇÃO. OCORR�NCIA. DECRETO 20.910/32,

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ART. 1º.1. Quando a ação busca configurar ou restabelecer uma situação jurídica, o prazo prescricional deve ser contado a partir do momento em que a parte teve ciência da violação de seu direito, de forma inequívoca, pela Administração; se, entretanto, a lei ou qualquer ato normativo, independentemente de manifestação do administrador, causar efeitos concretos sobre direitos já adquiridos pelos seus titulares, é a partir desse momento que corre o referido prazo.2. Transcorrido o qüinqüênio legal entre a data da lei que suprimiu a verba pretendida e a propositura da ação, a prescrição atinge o próprio fundo de direito, e não apenas as prestações dele decorrentes.3. Recurso conhecido e provido.(REsp 212292/CE, Rel. Ministro EDSON VIDIGAL, QUINTA TURMA, julgado em 02.09.1999, DJ 27.09.1999 p. 115).

Convém, neste contexto, abarcando pretenso dissenso quanto aos efeitos concretos da lei que implanta o PCCR, mesmo ante o posicionamento pacífico da jurisprudência neste sentido, frisar que de um modo ou de outro, o ato administrativo de enquadramento há de ter efeitos concretos ante a manifestação da Administração, transpondo o servidor de um plano para outro, avaliando, caso a caso, os requisitos para o enquadramento nos termos da Lei.

Desse modo, somente se permitiria entender o contrário, se a Administração não realizasse o ato de enquadramento do servidor, situação em que, ante o mandamento positivo da lei, evidenciaria a lesão renovada a cada período (trato sucessivo), haja vista a inexistência de

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transposição de um plano para outro, em afronta ao comando legal.

5 JURISPRUDêNCIAS SELECIONADAS RELATIVAS AO OBJETO DE ESTUDO

16151982 – ADMINISTRATIVO – SERVIDOR PÚBLICO – REENQUADRAMENTO – FISCAL DE CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS – PRESCRIÇÃO – FUNDO DE DIREITO – Em se tratando de pretensão de reenquadramento funcional, prescreve o próprio fundo de direito se a ação é proposta mais de cinco anos após o ato da Administração que determinou o enquadramento. (Precedentes.) Recurso desprovido. (STJ – RESP 383534 – RS – 5ª T. – Rel. Min. Felix Fischer – DJU 11.03.2002)

89006048 – ADMINISTRATIVO – PRESCRIÇÃO – PRINCÍPIO DA ACTIO NATA – Reposicionamento de servidor ativo em Plano Classificação de Cargos. Não extensão aos inativos. Violação de direito. Marco inicial da prescrição. O princípio da actio nata consagra a tese de que a lesão dá origem à pretensão ou seja, faz nascer, para o lesado, a possibilidade de reclamar em juízo uma prestação destinada a restaurar o direito violado. Se, à luz do sistema da anterior Carta Constitucional, houve lesão a direito do servidor inativo, em decorrência da não-extensão de enquadramento deferido a servidor ativo de igual categoria, a data do ato que origina tal fato é o termo a quo para a fluência da prescrição. Ultrapassado o prazo prescricional, estabelecido em Lei, a prescrição resta consumada e,

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consequentemente, inviabilizada a pretensão. Ademais, certo é que não cabe ao Judiciário função legislativa, e não é possível extrair de mera exposição de motivos aumento jamais concedido pela via própria, cumprida que seja a Constituição. Inviável, portanto, postular aumento que apenas através de Lei, e, mais ainda, de Lei de iniciativa privativa do chefe do Executivo, poderia ser obtido. Recurso desprovido. Sentença confirmada. (TRF 2ª R. – AC. 98.02.42502-8 – RJ – 2ª T. – Rel. Juiz Guilherme Couto – DJU 17.01.2002)

16140044 – AGRAVO INTERNO – ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL – SERVIDOR PÚBLICO ESTADUAL – REENQUADRAMENTO FUNCIONAL – REVISÃO – APROVEITAMENTO DE PONTOS – RECONHECIMENTO DA PRESCRIÇÃO DO FUNDO DE DIREITO – JURISPRUD�NCIA UNIFORME – I. A cediça jurisprudência da Terceira Seção deste Tribunal, após refletir sobre o tema circunscrito entre o diverso tratamento dado aos casos da Paraíba reenquadramento funcional e os de São Paulo aproveitamento pretérito dos pontos na revisão do reenquadramento funcional, unificou posicionamento, a fim de restabelecer a premissa maior, qual seja, a vantagem econômica oriunda do aproveitamento de pontos é secundária em comparação com o aludido reenquadramento funcional, oportunidade em que restou consolidado o entendimento da ocorrência da prescrição do próprio fundo de direito para os dois casos, já que em ambos a pretensão circunscreve-se à concessão de vantagens pecuniárias que prescindem, inexoravelmente, do reexame prévio da revisão do reenquadramento funcional. II. Neste diapasão, havendo requerimento de aproveitamento de pontos para propiciar

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alteração no enquadramento funcional, após o prazo prescricional de 5 (cinco) anos, impõe-se afastar o verbete Sumular 85 – STJ, para reconhecer a prescrição do próprio fundo de direito e não apenas das parcelas anteriores ao quinquênio da propositura da ação, já que o exame da premissa menor requer a concessão da premissa maior, qual seja, do multicitado reenquadramento. III. Agravo regimental desprovido. (STJ – AGRESP 299738 – SP – 5ª T. – Rel. Min. Gilson Dipp – DJU 25.06.2001 – p. 00225)

16056943 – EMBARGOS DE DIVERG�NCIA – ADMINISTRATIVO – REVISÃO DE ENQUADRAMENTO – LEI 7.293/84 – PRESCRIÇÃO DO FUNDO DE DIREITO – SÚMULA 85/STJ – INAPLICABILIDADE – 1 – Esta Seção tem entendido que em se tratando de ação ordinária que objetiva a revisão do enquadramento funcional, determinado pela Lei n° 7.293/84, do servidor do IPASE como Fiscal de Contribuições Previdenciárias do INSS não se aplica a Súmula 85/STJ. 2 – Outrossim, ocorre a prescrição do próprio fundo de direito. 3 – Precedentes da Eg. Terceira Seção: (EREsp. 117.614/SP, Rel. Min. Felix Fischer, DJ 23.11.98; EREsp. 150.286/PB, Rel. Min. Vicente Leal, DJ 02.08.99; EREsp. 180.769, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ 04.10.99). 4 – Embargos conhecidos e acolhidos para afastar a aplicação da Súmula 85/STJ e determinar a prescrição do próprio fundo de direito. (STJ – ERESP 209464 – PB – 2ª S. – Rel. Min. Jorge Scartezzini – DJU 07.08.2000 – p. 00097)

16053485 – ADMINISTRATIVO – SERVIDOR PÚBLICO – REENQUADRAMENTO – EQUIPARAÇÃO SALARIAL COM CARGO TÉCNICO

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– PRESCRIÇÃO DO FUNDO DE DIREITO – OCORRÊNCIA – 1. Configura reenquadramento o pleito visando ao reconhecimento do cargo exercido por servidor como cargo técnico, a fim de receber remuneração equivalente à desta categoria. 2. É pacífico nesta Corte o entendimento de que o marco inicial para a propositura da ação de revisão conta-se a partir do momento em que foi realizado o enquadramento lesivo. Proposta ação fora do qüinqüênio, prescreve o próprio fundo de direito. 3. Agravo Regimental não provido. (STJ – AGA 234866 – (199900276213) – SP – 5ª T. – Rel. Min. Edson Vidigal – DJU 15.05.2000 – p. 00186)

16049173 – RECURSO ESPECIAL – ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL – SERVIDOR – ENQUADRAMENTO – REVISÃO – LEI e 1989 – PRESCRIÇÃO DO FUNDO DE DIREITO – Discutindo-se na ação principal o próprio ato de enquadramento, que se deu há mais de 7 anos antes do ajuizamento da ação, prescreve o próprio fundo de direito, pois as diferenças salariais advirão dessa situação jurídica. Inaplicabilidade, na espécie, da Súmula 85/STJ – Recurso provido para decretar a prescrição do fundo de direito. (STJ – REsp 238104 – SP – 5ª T. – Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca – DJU 24.04.2000 – p. 00070)

16048779 – EMBARGOS DE DIVERG�NCIA NO RECURSO ESPECIAL – ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL – SERVIDOR – ENQUADRAMENTO – REVISÃO – PRESCRIÇÃO DO FUNDO DE DIREITO – Uma vez que discute-se na ação ordinária revisão de enquadramento funcional, e o mesmo se deu há mais de dez anos da propositura da ação, prescreve o próprio fundo de direito, e não apenas as

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parcelas do qüinqüênio. Entendimento que vem prevalecendo nesta Seção. Precedentes. Embargos recebidos e providos para decretar a prescrição do fundo de direito. (STJ – Ac. 199800918280 – ERESP 180590 – PB – 3ª S. – Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca – DJU16154170 – PROCESSUAL CIVIL – APOSENTADORIA – CONTAGEM DE FÉRIAS EM DOBRO – PRESCRIÇÃO DO FUNDO DE DIREITO – OCORR�NCIA – 1. Quando a ação busca configurar uma situação jurídica, o prazo prescricional deve ser contado a partir do momento em que a parte teve ciência da violação de seu direito; se a lei ou qualquer ato normativo, independentemente de manifestação do administrador, causar efeitos concretos sobre direitos de seus titulares, é a partir desse momento que corre o referido prazo. 2. Tendo o recorrido se aposentado em 1967, e a ação somente proposta em 1993, é de se constatar a prescrição do próprio fundo de direito. 3. Recurso provido. (STJ – RESP . 398967 – PR – 5ª T. – Rel. Min. Edson Vidigal – DJU 22.04.2002)

16154241 – ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL – INCOMPET�NCIA DO JUÍZO PROCESSANTE – AUS�NCIA DE PREQUESTIONAMENTO – PRESCRIÇÃO DO FUNDO DE DIREITO – NÃO OCORR�NCIA – SÚMULA 85/STJ – GRATIFICAÇÃO POR OPERAÇÕES ESPECIAIS – INCORPORAÇÃO – DECRETO-LEI 1.714/79 E LEI 7.923/89 – 1. O dispositivo tido por violado quanto à alegada incompetência da Justiça Federal alagoana para processar e julgar a ação com relação a alguns dos autores, não foi apreciado pela instância a quo. Falta prequestionamento. 2. Sendo relação jurídica de trato sucessivo, cujo direito postulado

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em juízo não foi inequivocamente negado pela Administração, a prescrição atinge apenas as parcelas vencidas anteriormente ao qüinqüênio legal precedente ao ajuizamento da ação. Incidência da Súmula 85 – STJ. 3. Por força da Lei 7.923/89, art. 2º, § 2º, ficam absorvidos pelas remunerações constantes das Tabelas anexas a ela, as gratificações, auxílios, abonos, adicionais, indenizações e quaisquer outras retribuições, excetuadas as constantes do § 3º do mesmo dispositivo legal, aí se incluindo a Gratificação por Operações Especiais. Precedentes. 5. Recurso parcialmente conhecido e parcialmente provido. (STJ – RESP . 396487 – AL – 5ª T. – Rel. Min. Edson Vidigal – DJU 22.04.2002)

16151982 – ADMINISTRATIVO – SERVIDOR PÚBLICO – REENQUADRAMENTO – FISCAL DE CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS – PRESCRIÇÃO – FUNDO DE DIREITO – Em se tratando de pretensão de reenquadramento funcional, prescreve o próprio fundo de direito se a ação é proposta mais de cinco anos após o ato da Administração que determinou o enquadramento. (Precedentes.) Recurso desprovido. (STJ – RESP 383534 – RS – 5ª T. – Rel. Min. Felix Fischer – DJU 11.03.2002)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de tudo que fora exposto em linhas pretéritas, seguindo a linha de raciocínio desenvolvida neste artigo, chega-se as seguintes conclusões sobre a temática:

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O enquadramento consiste no ato administrativo constitutivo que detectando a situação anterior do servidor, aloca-o na novel situação correspondente, sempre com fundamento em uma norma diversa da que sistematizava a estrutura anterior. Desse modo, estando uma estrutura de cargos e carreiras em curso, a lei nova que venha a determinar uma nova estrutura demandará um novo enquadramento dos servidores, não havendo que se falar em reenquadramento.

A prescrição, no que pese as controvérsias mencionadas, extingue a possibilidade de exigir, judicial ou extrajudicialmente, o direito o qual alega o interessado ser titular, restando fulminada a pretensão.

O acionamento judicial ou administrativo do Estado depende da existência de um pretenso direito que se entende violado, plenamente exigível (pretensão), não se podendo exigir do Estado determinado direito, forçoso concluir pela inexistência ou perda da pretensão ou, simplesmente, no último caso, pela ocorrência da prescrição. Assim, existindo pretensão (direito subjetivo exigível), via de regra, subordina-se seu exercício a um prazo, dentro do qual deve ser exercida. (prescrição).

Da inércia do interessado durante o lapso de tempo previsto no Decreto n.º 20.910/1932 (5 anos), resulta a inexigibilidade do direito e consequentemente a ocorrência da prescrição. Esta poderá, na relação entre administrado e Administração, incidir sobre a própria situação jurídica fundamental (direito de ser servidor) ou as modificações que sejam admissíveis com relação a essa situação jurídica

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fundamental, caso em que se tem a prescrição do fundo de direito, ou, de outro modo, apenas incidir sobre situações decorrentes dessa situação jurídica fundamental, permanecendo esta incólume, dando azo a lesão continuada destas situações decorrentes, caso em que, diante da inércia, se tem a prescrição das prestações sucessivas ou de trato sucessivo.

Os Planos de Cargos Carreira e Remuneração - PCCR´s - possuem efeitos imediatos e concretos, da mesma forma o enquadramento oriundo de sua implantação. A consequência primordial e direta de sua concretude em matéria de prescrição é a fixação do termo a quo do prazo prescricional, que nestes casos começa a correr da data da própria implantação do PCCR e, portanto, da pretensa lesão. Registre-se que os prazos prescricionais apresentam-se in casu regulados pelo Decreto n.º 20.910 de 06 de janeiro de 1932, nesse passo, não há possibilidade atualmente, de proceder a revisões de enquadramento no âmbito dos PCCR´s no Estado do Acre, haja vista que praticamente todos datam de 2001.

O prazo prescricional, trate-se de prescrição de fundo ou de prestações de trato sucessivo é de 5 (cinco) anos, porém em se tratando de prescrição de fundo fica fulminado não apenas o período anterior ao quinquênio mas todo o fundo do direito, restando impossibilitada as modificações que sejam admissíveis com relação a situação jurídica fundamental (enquadramento), bem como as pretensas vantagens financeiras, sejam de que natureza forem, em relação a situação jurídica. Por outro modo, no que se refere às prestações de trato sucessivo, cujo direito postulado em juízo não foi inequivocamente negado

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pela Administração, a prescrição atinge apenas as parcelas vencidas anteriormente ao quinquênio legal precedente ao ajuizamento da ação, incidindo a Súmula 85 do STJ.

BIBLIOGRAFIA

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9Cristovam Pontes de Moura

Juízo de Admissibilidade e de Cognição Sumária no Agravo por Instrumento: Aparente Simbiose

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JUíZO DE ADMISSIBILIDADE E DE COGNIÇÃO SUMÁRIA NO AGRAVO POR INSTRUMENTO: APARENTE SIMBIOSE

Cristovam Pontes de Moura•

Introdução. 1 Alterações no regime do recurso de agravo pela Lei nº 11.187/2005. 2 Juízo de admissibilidade do agravo por instrumento. 3 Juízo de mérito: cognição sumária efetuada pelo relator do agravo por instrumento. 4 Aparente simbiose. Considerações finais. Bibliografia.

INTRODUÇÃO

O presente estudo foi apresentado como tese no XXXIV Congresso Nacional de Procuradores de Estado, aprovada com propositura de louvor pelo respectivo relator, e visa analisar a aparente simbiose entre o juízo de

• Procurador do Estado (Coordenador de Execução), Presidente da Associação dos Procuradores do Estado do Acre, Graduado em Direito pela Universidade Federal do Acre, Especialista em Direito Processual Civil e em Direito Constitucional pela Universidade do Sul de Santa Catarina, em convênio com o Instituto Brasileiro de Direito Processual.

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admissibilidade e de cognição sumária no agravo por instrumento no que concerne ao critério da urgência, em razão da modificação introduzida pela Lei n° 11.187/2005 no art. 522, caput, do Código de Processo Civil, que passou a exigir, para exame de prelibação positivo deste recurso, que a decisão agravada fosse suscetível de causar à parte “lesão grave e de difícil reparação”, requisito, a princípio, similar ao periculum in mora exigido para a concessão de efeito suspensivo ou ativo ao agravo pelo relator.

Inicialmente, busca-se examinar, ainda que de forma superficial, as alterações do regime do recurso de agravo pela Lei nº 11.187/2007, dando nova redação aos arts. 522, 523 e 527 do Código de Processo Civil, destacando-se que, na nova disciplina, o agravo retido passa a se tornar regra geral, excepcionando o agravo por instrumento para as decisões suscetíveis de causar à parte lesão grave e de difícil reparação, além dos casos de inadmissão da apelação e nos relativos aos efeitos em que a apelação é recebida.

Após, o discurso percorre o juízo deadmissibilidade do agravo por instrumento, traçando linhas gerais sobre os pressupostos de admissibilidade universais de qualquer ferramenta recursal e realçando aqueles específicos da espécie em tela, notadamente diante do novo art. 522, caput, da Lei Adjetiva Civil.

Em momento posterior, verificam-se as questões atinentes ao juízo de cognição sumária realizado pelo relator do agravo interposto mediante instrumento, tanto na hipótese de concessão de efeito suspensivo quanto na de antecipação da tutela recursal.

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Na sequência, analisa-se de forma específica a aparente simbiose entre juízo de admissibilidade e juízo de cognição sumária a ser realizado pelo relator do agravo por instrumento após as alterações efetuadas pela Lei nº 11.187/2005, trazendo-se à colação as díspares posições sobre a matéria, de estudo ainda incipiente, em sede doutrinária e jurisprudencial.

Justifica-se o enfrentamento do aludido tema em virtude da carência de produções científicas destinadas a estudá-lo especificamente, bem como pela falta de consenso pretoriano, dando ao operador do direito a sensação de insegurança, o que torna instigante o presente trabalho e as conclusões a serem dele extraídas, sem qualquer pretensão de juízo definitivo sobre a matéria, obviamente.

Utilizou-se durante a pesquisa o método de abordagem dedutivo (conexão descendente), partindo-se de um breve estudo sobre as modificações operadas pela Lei nº 11.187/2005, com enfoque na inclusão da urgência como pressuposto de admissibilidade do agravo por instrumento, além da semelhança de tal requisito com o periculum in mora utilizado para a apreciação de pedido de concessão de efeito suspensivo ou ativo a tal recurso, apontando-se, ao final, a presença ou não de simbiose entre juízo de admissibilidade e de cognição sumária na espécie.

O método de procedimento adotado foi o dogmático-jurídico, interpretando-se de forma neutra e prática os dispositivos supramencionados, além de sua integração ao sistema normativo, até se alcançar a sua adequada significação

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e aplicabilidade, fazendo uso, para tal investigação, de pesquisa envolvendo técnica de documentação indireta, isto é, fontes bibliográficas, como publicações avulsas, boletins, livros, pesquisas, monografias, artigos e material jurisprudencial.

1 ALTERAÇÕES NO REGIME DO RECURSO DE AGRAVO PELA LEI Nº 11.187/2005.

Desde a formalização entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, em dezembro de 2004, do primeiro Pacto de Estado em favor de um Judiciário mais Rápido e Republicano, o direito processual civil pátrio vem sofrendo reformas constitucionais e infraconstitucionais com o objetivo declarado de reduzir a morosidade dos processos judiciais e aumentar a eficácia das decisões proferidas em seu bojo.

Nesse contexto, foi promulgada, ainda no mesmo ano, a Emenda Constitucional nº 45, chamada de “Reforma do Judiciário”, a qual foi seguida de alterações sistemáticas do Código de Processo Civil, notadamente pelas Leis nos 11.187/2005 (nova disciplina dos agravos retido e por instrumento), 11.232/2005 (estabelece a fase de cumprimento das sentenças no processo de conhecimento), 11.276/2006 (altera os arts. 504, 506, 515 e 518, do Código de Processo Civil), 11.277/2006 (acrescenta o art. 285-A ao Código de Processo Civil), 11.280/2006 (altera os arts. 112, 114, 154, 219, 253, 305, 322, 338, 489 e 555, do Código de Processo Civil),

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11.382/2006 (altera dispositivos do Código de Processo Civil, relativos ao processo de execução), 11.418/2006 (regulamenta o § 3º do art. 102 da Constituição Federal), 11.419/2006 (informatização do processo judicial) e 11.441/2007 (possibilita a realização de inventário, partilha, separação consensual e divórcio consensual por via administrativa).

Ao presente trabalho interessa analisar a primeira dessas reformas ao Código de Processo Civil, vale dizer, a implementada pela Lei nº 11.187, de 19 de outubro de 2005, que reformulou o regime dos agravos retido e por instrumento, dando nova redação aos arts. 522, 523 e 527 daquele Diploma.

O art. 522, caput, da Lei Adjetiva Civil, sofreu modificação nos seguintes termos:

REDAÇÃO ANTERIORArt. 522. Das decisões interlocutórias caberá agravo, no prazo de 10 (dez) dias, retido nos autos ou por instrumento (redação dada pela Lei nº 9.139/1995).

REDAÇÃO DADA PELA LEI Nº 11.187/2005Art. 522. Das decisões interlocutórias caberá agravo, no prazo de 10 (dez) dias, na forma retida, salvo quando se tratar de decisão suscetível de causar à parte lesão grave e de difícil reparação, bem como nos casos de inadmissão da apelação e nos relativos aos efeitos em que a apelação é recebida, quando será admitida a sua interposição por instrumento.

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Trata-se da mais significativa reformulação operada pela Lei nº 11.187/2005, haja vista ter transformado em regra o agravo retido, recurso este antes manejado apenas em face das decisões proferidas em audiência de instrução e julgamento ou daquelas posteriores à sentença, à exceção, por óbvio, dos provimentos que ocasionassem dano de difícil e incerta reparação, bem como dos que não admitissem apelação ou que dispusessem sobre os efeitos em que esta fosse recebida, a teor do art. 523, § 4º, do Código de Processo Civil, na redação que havia lhe dado a Lei nº 10.352/20011.

Nesse feito, tem-se a exposição de motivos do Projeto de Lei nº 75/2005 – que deu origem à Lei nº 11.187/2005, apresentada pelo então Ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos2 – afirmando que a proposta tem o escopo de “alterar a sistemática de agravos, tornando regra o agravo retido e reservando o agravo de instrumento para as decisões suscetíveis de causar à parte lesão grave e de difícil reparação”, além dos casos de inadmissão da apelação e nos relativos aos efeitos em que a apelação é recebida.

É o que lecionam Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery3:

1 MELO, Francisco Armando de Figueiredo; ROSA, Leonardo Silva Cesário. Breves comentários à Lei 11.187/05: alterações na sistemática

do recurso de agravo. Revista da Procuradoria-Geral do Estado do Acre, Rio Branco, n. 4, p. 165-173, jan./dez. 2006, p. 165.

2 BRASIL. Exposição de motivos do PL nº 75/2005. Disponível em: <http://www.mj.gov.br/reforma/index.htm>. Acesso em: 5 jan. 2007.

3 Código de Processo Civil comentado e legislação extravagante. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 757.

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O sistema admite a impugnabilidade das decisões interlocutórias no processo civil brasileiro, mas estabelece como regra que o recurso contra elas seja o agravo na forma retida (CPC 523), de modo a não impedir o andamento do processo e não permitir que a matéria seja apreciada de imediato pelo tribunal, pois o agravo retido só será examinado se e quando houver apelação da sentença [destaque existente no original].

Do mesmo modo, a reforma modificou o texto do § 3º do art. 523 do Diploma Processual, bem como revogou o seu § 4º, eliminando expressamente a possibilidade de interposição de agravo por instrumento contra decisões proferidas na audiência de instrução e julgamento, impondo, em tal hipótese, o cabimento de agravo retido a ser interposto oral e imediatamente, nele expostas sucintamente as razões do agravante. Por equidade, muito embora não conste na lei instrumental, o agravado também deverá deduzir oralmente, na própria audiência, as razões de sua contraminuta.

A Lei nº 11.187/2005 realizou, igualmente, importantes transformações nos incisos II, V e VI, e parágrafo único, do art. 527 do Código de Processo Civil.

Anteriormente, o relator tinha a faculdade4 de converter o recurso de agravo por instrumento em agravo retido, salvo quando se tratasse de “provisão jurisdicional de urgência” ou houvesse “perigo de lesão grave e de difícil ou incerta reparação, remetendo os respectivos autos ao juízo

4 Muito embora tenha sido posteriormente pacificado o entendimento de que se tratava de um poder-dever.

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da causa”, onde seriam “apensados aos principais, cabendo agravo dessa decisão ao órgão colegiado competente”.

De acordo com a redação trazida pela Lei nº 11.187/2005 ao inciso II do dispositivo em questão, o relator converterá o agravo de instrumento em agravo retido, mandando remeter os autos ao juiz da causa,

salvo quando se tratar de decisão suscetível de causar à parte lesão grave e de difícil reparação, bem como nos casos de inadmissão da apelação e nos relativos aos efeitos em que a apelação é recebida5.

Ademais, o novo parágrafo único do art. 527 do Código de Buzaid retirou a possibilidade de interposição de agravo interno contra a decisão do relator que converter o agravo de instrumento em agravo retido, e daquela que deferir ou indeferir efeito suspensivo ou antecipação da tutela recursal (art. 527, III, CPC). Entretanto, ao prever que o relator pode reconsiderar a decisão, abriu-se possibilidade de pedido nesse sentido pela parte prejudicada.

Transferiu-se, outrossim, a possibilidade anteriormente conferida ao agravado no parágrafo único do art. 527 da Lei Adjetiva Civil para o seu inciso V, o qual consigna que, no prazo para a apresentação de contraminuta, o recorrido tem a faculdade de juntar “a documentação que entender conveniente”, não se limitando, portanto, às “cópias das peças que entender convenientes”, de modo a permitir que anexe papéis ainda não presentes nos autos originais.

5 BRASIL. Código de Processo Civil. Artigo 527, inciso II.

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Já a alteração do inciso VI teve por finalidade eliminar a necessidade de oitiva do Ministério Público nos casos de decisão liminar do relator previstas nos incisos I (negativa de seguimento, nos casos do art. 557) e II (conversão do agravo de instrumento em agravo retido).

Tais modificações à sistemática do recurso de agravo receberam inúmeras críticas, sob uma pletora de argumentos, que vão desde a inconveniência de se buscar solucionar a morosidade dos processos judiciais por meio de simples exame de aspectos de política legislativa, sem enfrentar questões outras associadas à estrutura administrativa do Poder Judiciário e ao próprio anseio de litigar contido em nossa cultura, até a não observância estrita do princípio do devido processo legal na adoção da aludida reforma, sobretudo no que diz respeito à irrecorribilidade criada na alteração do parágrafo único do art. 527 do Código de Processo Civil6, que não permite impugnação recursal da decisão que nega seguimento ao agravo por instrumento ou o converte em agravo retido7, restringindo-se a permitir mero pedido de reconsideração.

Não obstante os relevantes questionamentos acima apontados, este estudo tem por objeto analisar

6 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento. v. 2. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 553-7.

7 Petrônio Calmon Filho entende que a decisão que nega seguimento ao agravo por instrumento ou o converte em agravo retido, por não ser re-corrível internamente no âmbito do tribunal, desafia a interposição de re-cursos excepcionais. CALMON FILHO, Petrônio. Reflexões em torno do agravo de instrumento. Material da 3ª aula da Disciplina Recursos e Meio de Impugnação, ministrada no Curso de Especialização em Direito Processual Civil – UNISUL – IBDP – REDE LFG, 2007, p. 12.

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comparativamente os pressupostos específicos para que se logre juízo de admissibilidade positivo no agravo por instrumento e os requisitos considerados em sede de cognição sumária para a concessão de efeito suspensivo ou ativo ao recurso sub examine, tendo em vista a alteração operada na cabeça do art. 522 do Código de Processo Civil pela Lei n° 11.187/2005.

2 JUíZO DE ADMISSIBILIDADE DO AGRAVO POR INSTRUMENTO

A utilização de mecanismo recursal depende do preenchimento de determinados requisitos, pois se cuida de reflexo do direito de ação com o respectivo prolongamento do processo, sujeitando-se, por isso, a exigências correspondentes às condições da ação descritas no art. 267, inciso VI, do Código de Processo Civil – possibilidade jurídica do pedido, legitimidade das partes e interesse processual.

O exame de tais condições – que, unidas aos demais requisitos formais para o exercício da atividade recursal, denominam-se pressupostos recursais – constitui o juízo de admissibilidade (ou prelibação) dos recursos, o qual deve ter antecedência lógica em relação ao julgamento do pedido formulado pelo recorrente8 ou, em linguagem mais afeita à 8 NERY JUNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos. São Paulo: Revista

dos Tribunais, 2004, p. 252.

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técnica de julgamento dos recursos, deverá, antes de qualquer coisa, ser conhecido, caso preencha os pressupostos, ou não conhecido, se não os satisfizer9.

O juízo de prelibação, portanto, é necessariamente preliminar ao julgamento do mérito, não havendo que se investigar a existência ou não de fundamentos para o recurso caso não seja sequer admitido10.

Assim, no critério adotado por José Carlos Barbosa Moreira11, seguido por Nelson Nery Junior12 e, em parte, por Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart13, dividem-se os pressupostos gerais dos recursos em intrínsecos – que dizem respeito à decisão recorrida em si mesma considerada, destacando-se seu conteúdo e a forma da decisão impugnada (cabimento do recurso, legitimidade recursal e interesse em recorrer) – e extrínsecos – os quais concernem a fatores externos à decisão judicial que se pretende impugnar (tempestividade,regularidade formal, inexistência de fato impeditivo ou extintivo do direito de recorrer, e preparo)14.9 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil.

v. 1. 39. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 505.10 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O novo processo civil brasileiro.

22. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 116.11 Idem, p. 262.12 NERY JUNIOR, ob. cit., p. 273. NERY JUNIOR, ob. cit., p. 273.13 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do

processo de conhecimento. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 540.

14Alexandre Freitas Câmara defende a existência de “condições do re-curso” (legitimidade, interesse e possibilidade jurídica do recurso), cor-respondentes, em tudo e por tudo, às condições da ação. Na verdade, percebe-se, até com certa facilidade, que tais “condições do recurso” são os próprios pressupostos recursais intrínsecos. CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. v. 2. 9. ed. Rio de Janeiro:

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Demais disso, alguns recursos dependem do preenchimento de pressupostos específicos de admissibilidade, como o agravo por instrumento15, objeto deste estudo, o qual se consubstancia em um dos recursos de maior complexidade neste particular, fato que se tornou ainda mais evidente após a vigência da Lei n° 11.187/2005.

Realmente, segundo o art. 524 da Lei Adjetiva Civil, com redação dada pela Lei n° 9.139/95, o recurso em espeque, fugindo à regra, deve ser dirigido diretamente ao tribunal competente, por meio de petição que preencha os seguintes requisitos: a) exposição do fato e do direito; b) as razões do pedido de reforma da decisão; e c) o nome e o endereço completo dos advogados constantes do processo. Permite o § 2° do art. 525 do mesmo Diploma, todavia, que a peça seja protocolada no tribunal, depositada no correio sob registro com aviso de recebimento ou, ainda, interposta por outra forma prevista na lei local16.

No tocante à exposição do fato e do direito, bem como das razões do pedido de reforma (ou cassação) do decisum impugnado, inexiste disparidade em relação a

Lumen Juris, 2004, p. 67.15 Não confundir com o agravo por instrumento previsto no art. 544 do

Código de Processo Civil, apesar de sua similar complexidade, já que se constitui em recurso distinto, cabível apenas nos casos de inadmissão, na instância ordinária, de recurso extraordinário ou especial.

16 Note-se que, ao fazer alusão a lei local, o dispositivo em tela está a exigir lei formal, editada pelo Poder Legislativo Estadual no uso da competência concorrente atribuída pelo art. 24, inciso XI, da Constitui-ção Federal, para legislar sobre procedimentos em matéria processual, não se podendo admitir que norma administrativa de tribunal o faça.

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qualquer outro recurso. Entretanto, quanto à obrigatoriedade de constar o nome e endereço dos patronos constituídos no feito, infere-se que tem o fito de viabilizar tanto a intimação para oferecer contrarrazões por ofício dirigido ao advogado da parte contrária, sob registro e com aviso de recebimento, quanto àquela efetuada mediante publicação no órgão oficial, nas comarcas sede de tribunal e naquelas em que o expediente forense for divulgado no diário oficial, a teor do que dispõe o art. 527, inciso V, do Código de Processo Civil.

Além disso, a Lei Processual Civil, em seu art. 525, exige que o agravo interposto diretamente perante o tribunal esteja acompanhado do respectivo instrumento, formado por peças obrigatórias, consistentes nas cópias da decisão agravada, da certidão da respectiva intimação e das procurações outorgadas aos advogados do agravante e do agravado. Facultativamente, pode o recorrente acostar outras peças que entender úteis.

Ressalte-se que a omissão de qualquer das peças supramencionadas na formação do instrumento do agravo conduz à sua inadmissibilidade, ante a ausência de pressuposto recursal, vale dizer, a regularidade formal17.

A pertinência em se impor a juntada de tais documentos é evidente, já que a decisão agravada é essencial para que o juízo ad quem se inteire do provimento jurisdicional recorrido, a certidão de sua intimação se mostra indispensável

17 DINAMARCO, Cândido Rangel. A reforma do Código de Processo Civil. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 189.

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para aferição da tempestividade do agravo e os instrumentos de mandato dos patronos do recorrente e do recorrido comprovam as correspondentes regularidade de representação e capacidade postulatória18.

Quanto às peças facultativas, interessante salientar que, apesar da nomenclatura, incumbe à parte anexar aquelas essenciais à solução da controvérsia pelo órgão jurisdicional de 2° grau, porquanto, diante da impossibilidade de compreensão do contexto fático por ausência de documento “facultativo”, não se poderá conhecer do agravo pela deficiência de sua formação19, visto que, desde a alteração levada a cabo pela Lei n° 9.139/95, não é mais possível a conversão do julgamento em diligência20.

Por oportuno, faz-se salutar ressalvar que, muito embora a disposição do art. 544, § 1°, in fine, do Código de Processo Civil, diga respeito ao agravo por instrumento interposto de decisão que inadmite recurso extraordinário ou especial, a jurisprudência, especialmente dos tribunais

18 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado e legislação extravagante. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 767.

19Aplica-se, por analogia, o Enunciado n° 288 da Súmula de Jurisprudên-cia do Supremo Tribunal Federal. “Nega-se provimento [rectius: conhe-cimento] a agravo para subida de recurso extraordinário, quando faltar no traslado o despacho agravado, a decisão recorrida, a petição de recur-so extraordinário ou qualquer peça essencial à compreensão da contro-vérsia”. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula nº 288. Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 11 ago. 2008.

20 NERY JUNIOR, ob. cit., p. 387-90. NERY JUNIOR, ob. cit., p. 387-90.

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regionais federais21 22 23, tem entendido que as cópias das peças do processo podem ser declaradas autênticas pelo próprio advogado, sob sua responsabilidade pessoal, também no que tange ao recurso disciplinado pelos arts. 522 e seguintes, do mesmo texto legal. A recentíssima Lei n° 11.382/2006 afastou qualquer dúvida com relação ao tema, ao inserir o inciso IV no art. 365, dispondo que fazem a mesma prova que os originais “as cópias reprográficas de peças do próprio processo judicial declaradas autênticas pelo próprio advogado sob sua responsabilidade pessoal, se não lhes for impugnada a autenticidade”.

É de se registrar, também, que, em conformidade com o § 1° do art. 525 do Código de Processo Civil, a petição do agravo por instrumento deve estar acompanhada do comprovante do pagamento de suas custas e do porte de retorno, nos termos de tabela publicada pelos tribunais.

Ademais, o agravante deve atentar para a regra do art. 526 do Diploma Adjetivo, o qual preconiza que, três dias após o manejo do agravo por instrumento, deverá requerer

21 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região, Agravo de Instru-mento nº 200601000337393/GO, 1ª Turma, Relator: Juiz Federal José Amilcar Machado, Brasília, 4 de dezembro de 2006. Diário da Justiça da União. Brasília, 18 dez. 2006, p. 105.

22 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 3ª Região, Agravo de Instru-mento nº 254844/SP (200503000946365), 7ª Turma, Relator: Juiz Fede-ral Walter do Amaral, São Paulo, 5 de março de 2007. Diário da Justiça da União. Brasília, 19 abr. 2007, p. 385.

23 BRASIL Tribunal Regional Federal da 3ª Região, Agravo de Instrumen-to nº 259221/SP (200603000069190), 6ª Turma, Relatora: Juíza Federal Consuelo Yoshida, São Paulo, 28 de março de 2007. Diário da Justiça da União. Brasília, 7 mai. 2007, p. 569.

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juntada de cópia da petição recursal e do comprovante de sua interposição aos autos do processo original, relacionando os documentos que instruíram o recurso, sob pena de inadmissibilidade, desde que o não cumprimento de tal norma seja arguido e provado pelo agravado.

O dispositivo em questão possui o objetivo de permitir ao órgão recorrido o exercício de juízo de retratação, além de facilitar o direito de defesa do agravado24, pois o agravo por instrumento é interposto diretamente perante o tribunal, que nem sempre está sediado em local de fácil acesso para as partes, consoante exemplifica Alexandre Freitas Câmara25:

Pense-se, por exemplo, em processo que tramite perante a Justiça Federal de Rio Branco, capital do Estado do Acre. Neste caso, o agravo de instrumento será interposto perante o TRF da Primeira Região, com sede em Brasília. Sendo certo que o agravante não precisa se deslocar até Brasília para interpor seu recurso, que pode ser enviado pelo correio, surge um enorme prejuízo para o agravado, que teria de ir até a sede do tribunal para obter cópia da petição de interposição do agravo, a fim de poder elaborar adequadamente suas contra-razões.

Não bastassem todos os requisitos acima, a Lei nº 11.187/2005, ao modificar a sistemática do recurso de agravo, transformando em regra sua modalidade retida, restringiu sobremaneira as hipóteses de cabimento da interposição por

24 GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. v. 2. 16 ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 313.

25 CÂMARA, Ob. cit., p. 107.

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instrumento, reservada à impugnação de decisão suscetível de causar à parte lesão grave e de difícil reparação, e aos casos de inadmissão da apelação e naqueles relativos aos efeitos em que a apelação é recebida (art. 522, CPC).

Das três hipóteses susomencionadas, duas são objetivamente estabelecidas26, a saber: a) inadmissão de apelação; e b) efeitos em que é recebida. A primeira havia sido instituída pela Lei n° 9.139/95, que incluiu o § 4° ao art. 523 do Código de Processo Civil, enquanto a última surgiu em 2001, com a edição da Lei n° 10.352. Ambas vieram para excepcionar a regra então vigente de que as decisões posteriores à sentença comportariam agravo retido. Deve-se realçar, além disso, que o dispositivo em tela foi revogado pela Lei nº 11.187/2005, mas tais permissivos para a utilização de agravo por instrumento foram mantidos com a reforma a que se submeteu o regime de agravo.

A última janela para a interposição de agravo mediante formação de instrumento foi aberta por meio da criação de uma clausula di chiusura27, como diriam os juristas italianos – de índole subjetiva, visando açambarcar todos os demais casos em que se fizesse necessário tal modo de interposição. Assim, a reforma previu que, em se tratando de

26 CALMON FILHO, Petrônio. Reflexões em torno do agravo de instru-mento. Material da 3ª aula da Disciplina Recursos e Meio de Impugna-ção, ministrada no Curso de Especialização em Direito Processual Civil – UNISUL – IBDP – REDE LFG, 2007, p. 7.

27 Em bom português: “cláusula de fechamento”.

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decisão suscetível de causar à parte lesão grave e de difícil reparação, caberá agravo por instrumento28.

Em relação à subjetividade dos elementos postos pela novel modificação à legislação processual civil, Petrônio Calmon Filho29 conclui:

Não há como explicar ou definir hipóteses objetivas de grave dano, nem mesmo apresentar uma fórmula para saber se eventual reparação desse dano será difícil. Somente a análise de cada caso, com bom senso e equilíbrio, poderá proporcionar um juízo razoável. Por essa razão, a lei é sábia em estabelecer um tipo aberto dentre as hipóteses de cabimento do agravo de instrumento [destaque existente no original].

Por se cuidar de hipótese de cabimento do agravo por instrumento, de especial configuração, mister se faz que o agravante demonstre em suas razões recursais a aptidão da decisão recorrida para causar lesão grave e de difícil reparação, o que será apreciado pelo relator do recurso.

Note-se que o novo art. 522 do Código de Processo do Civil se refere à mera suscetibilidade de o provimento recorrido ensejar a dita “lesão grave e de difícil reparação”, sem exigir demonstração mais robusta de que este prejuízo possa efetivamente ocorrer, o que será tratado com mais vagar no Capítulo 4 do presente trabalho.

28 Percebe-se que as hipóteses objetivas (inadmissão de apelação e efeitos em que é recebida) também poderiam estar incluídas dentre as decisões suscetíveis de causar lesão grave e de difícil reparação.

29 Idem, p. 8.

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Por ora, basta adiantar que o fator determinante para se classificar determinada decisão como passível de ocasionar dano de tal monta vem a ser o próprio comando que encerra, bastante para oportunizar juízo de admissibilidade positivo por parte do relator do agravo por instrumento que a impugnou, como só ocorre, por exemplo, nos casos de deferimento ou indeferimento de tutelas de urgência, nos quais assiste à parte o direito de interpor o recurso diretamente ao tribunal para ver imediatamente reapreciado o decisum contra o qual se insurge30.

Assim, a inclusão de tal requisito específico de admissibilidade se constitui em pujante desafio a ser enfrentado na prática pelas partes e, principalmente, pelos relatores, notadamente ante sua semelhança frente a um dos requisitos para a concessão de efeito suspensivo ou ativo ao agravo por instrumento.

3 JUíZO DE MéRITO: COGNIÇÃO SUMÁRIA EFETUADA PELO RELATOR DO AGRAVO POR INSTRUMENTO

Ultrapassado o exame dos requisitos de admissibilidade dos recursos, passa-se, em caso de prelibação positiva, ao juízo de mérito, que visa a apurar “o próprio conteúdo da impugnação à decisão recorrida”31.

30 NERY JUNIOR, NERY, ob. cit., p. 758. NERY JUNIOR, NERY, ob. cit., p. 758.31 BARBOSA MOREIRA, ob. cit., p. 121.

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Ao se atacar vício de atividade(error in procedendo), isto é, desrespeito de norma processual que provoque gravame à parte, postula-se a declaração de nulidade ou cassação do decisum, sendo tal pedido o mérito do recurso32.

Do contrário, se pleiteia corrigir erro de juízo (error in judicando), requer-se a reforma do provimento jurisdicional, caso entenda o recorrente por sua injustiça, havendo, neste particular, coincidência qualitativa do objeto da irresignação com o meritum causae vindicado no grau inferior de jurisdição33. De acordo com Couture34, “não se trata de vício de forma, mas de fundo”.

Alcançando-se o julgamento do mérito dos recursos, poderá ser negado provimento, caso se entenda infundada a pretensão do recorrente, ou poderá se dar provimento, seja para cassar ou reformar a decisão35 36.

Tal exame meritório também ocorre quando da apreciação das chamadas tutelas de urgência, não obstante se revista de menor profundidade, constituindo-se em juízo de cognição sumária37,

32 NERY JUNIOR, ob. cit., p. 248-9. NERY JUNIOR, ob. cit., p. 248-9.33 BARBOSA MOREIRA, idem, ibidem.34 COUTURE, Eduardo. Fundamentos del derecho procesal civil. 3. ed.

Buenos Aires: Depalma, 1978, p. 345. In: NERY JUNIOR, ob. cit., p. 250.

35 THEODORO JÚNIOR, ob. cit., p. 505.36 Sem olvidar, por evidente, as hipóteses de esclarecimento ou integração,

típicas do recurso de embargos de declaração (art. 535, CPC).37 Sobre os níveis de cognição, tanto no plano horizontal quanto no verti-

cal, v. Watanabe (1987, p. 84-94).

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isto é, limitado verticalmente38, não se baseando em juízo de certeza, mas de mera probabilidade.

Sobre a matéria, colhe-se o magistério de Fredie Didier Jr.39:

A cognição sumária (possibilidade de o magistrado decidir sem exame profundo) é permitida, normalmente, em razão da urgência e do perigo de dano irreparável ou de difícil reparação, ou da evidência (demonstração processual) do direito pleiteado, ou de ambos, em conjunto. No plano vertical, a diferença entre as modalidades de cognição está apenas na maneira como o magistrado enxerga as razões das partes (causa de pedir) […].A cognição sumária conduz aos chamados juízos de probabilidade e verossimilhança; conduz às decisões que ficam limitadas a afirmar o provável, que, por isso mesmo, são decisões provisórias.

É o que se dá com o relator no caso do agravo por instrumento, recurso que de acordo com o disposto no art. 497 do Código de Processo Civil, com redação dada pela Lei nº 8.038/90, não é ordinariamente dotado do chamado efeito

38 PORTO, Sérgio Gilberto. Coisa julgada civil. Rio de Janeiro: Aide, 1998, p. 92-3.

39 DIDIER, JR., Fredie. Curso de direito processual civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento. v. 1. 7. ed. Salvador: Jvspo-dium, 2007, p. 274.

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pensivo40 41.No entanto, depreende-se da leitura do art.

527, inciso III, do mesmo Diploma, com redação dada pela Lei n° 10.352/200142, que, após a realização de juízo de admissibilidade positivo, o relator “poderá atribuir efeito suspensivo ao recurso”, no que a doutrina convencionou denominar, respectivamente, de efeito suspensivo ope iudicis – em contraposição ao efeito suspensivo automático previsto em lei (ope legis)43.

Por expressa previsão legal, tal dispositivo deve ser combinado com o art. 558, caput, da Lei Adjetiva Civil, na forma que lhe deu a Lei n° 9.139/95, exprimindo caber ao relator, a requerimento do agravante, suspender o cumprimento da decisão até o pronunciamento definitivo da turma ou câmara nos casos de prisão civil, adjudicação, remição de

40 BORGES, Flávio Buonaduce. Meios de impugnação dos atos judiciais no direito processual brasileiro: o recurso de agravo na sistemática pro-cessual brasileira. In: NERY JUNIOR, Nelson; WAMBIER, Teresa Ar-ruda Alvim (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e assuntos afins. v. 9. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 182-192, 2006, p. 185.

41 José Carlos Barbosa Moreira (ob. cit., p. 122-3 e 145), na esteira da lição de Pontes de Miranda (Comentários ao Código de Processo Civil (de 1973). t. VII. Atualização de Sérgio Bermudes. 3. ed. Rio de Janeiro: Fo-rense, 1997, p. 16), observa com propriedade ser inexata a denominação “efeito suspensivo”, já que, nos recursos detentores deste predicado, não se verifica ser a interposição causa da cessação dos efeitos da decisão, mas apenas fator de prolongamento do estado de ineficácia em que se encontra, pelo simples fato de estar sujeita à impugnação pelo indigitado recurso.

42 O efeito suspensivo no agravo foi instituído pela Lei nº 9.139/95, aper-feiçoada pela Lei nº 10.352/2001, que incluiu o instituto da antecipação da tutela recursal.

43 MARINONI; ARENHART, ob. cit., 2003, p. 566.

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bens, levantamento de dinheiro sem caução idônea e em outros casos dos quais possa resultar lesão grave e de difícil reparação, sendo relevante a fundamentação.

No que concerne à suspensão dos efeitos da decisão impugnada, verifica-se claramente que os requisitos acima citados remontam àqueles classicamente destinados a aferir a necessidade de concessão de tutelas de urgência, quais sejam, o fumus boni iuris e o periculum in mora.

De fato, não se pode negar que a cognição sumária efetuada pelo relator do agravo por instrumento imediatamente após a sua admissão é espécie do gênero tutela de urgência44 e, como tal, reclama a presença dos indigitados elementos.

Nessa senda, a demonstração do contexto fático a partir do qual “possa resultar lesão grave e de difícil reparação” nada mais é do que o tradicional periculum in mora, ou o “perigo da demora” da apreciação do mérito recursal aos interesses do agravante, caso não suspensos de plano os efeitos da decisão recorrida45.

Por seu turno, a relevância da fundamentação requerida pelo Diploma Processual não se traduz em simples excesso legislativo para lembrar ao julgador a necessidade de verificação do preenchimento da exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais46. Em verdade, tal requisito é atinente ao fumus boni iuris – “fumaça do bom direito” –, de modo que o recorrente deverá demonstrar a

44 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Os agravos no CPC brasileiro. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 229.

45 CÂMARA, ob. cit., p. 104.46 Cf. CALMON FILHO, ob. cit., p. 12.

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probabilidade de que seu recurso venha a ser provido47.De mais a mais, também é possível a antecipação

dos efeitos da tutela recursal mediante decisão monocrática do relator do agravo por instrumento. Isso porque a suspensão dos efeitos da decisão se revela útil quando as consequências práticas de dado provimento jurisdicional causarem dano ao recorrente. Porém, nos casos em que não houver deferimento de medida urgente pelo magistrado em 1° grau de jurisdição, de nada adiantaria a concessão de efeito suspensivo a essa decisão, “já que suspender uma omissão do juiz não acarreta efeito algum no plano concreto”48, razão pela qual, desde a edição da Lei n° 10.352/2001, o Estatuto Instrumental contempla expressamente a possibilidade de se atribuir incontinenti à parte a providência anteriormente negada.

Contudo, mesmo compondo o grupo das tutelas de urgência – não dispensando assim a presença do fumus boni iuris e periculum in mora – a medida ora observada se perfaz por meio da satisfação de requisitos previstos em outro dispositivo que não o art. 558, caput, do Código de Processo Civil: o art. 273, inciso I, do aludido texto legal.

Quanto ao tema, Tereza Arruda Alvim Wambier49 pontifica:

[…] o correto é considerar-se que o próprio relator possa conceder efeito “ativo” ao agravo, adiantando o “provável” julgamento

47 ALVIM, José Eduardo Carreira. Novo agravo. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 121.

48 MARINONI; ARENHART, ob. cit., 2003, p. 567.49 WAMBIER, ob. cit., p. 267-8.

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do recurso, enquanto este está tramitando (e se diz provável, porque a parte deve demonstrar aparência de bom direito) não com base no art. 558, caput, que é regra excepcional, mas com base no art. 273, I, do CPC, do mesmo modo deve ocorrer com relação à apelação.

Decerto, o inciso III do art. 527 do Código de Processo Civil, ao disciplinar que o relator poderá deferir, em antecipação de tutela, total ou parcialmente, a pretensão recursal, não se vincula aos requisitos esposados no art. 558, caput, do referido Diploma, mas àqueles previstos em seu art. 273, inciso I, sob pena de descaracterizar o instituto da antecipação da tutela pelo simples fato de se encontrar em sede recursal, não se podendo reconhecer a necessidade de sua concessão mediante simples demonstração de perigo de lesão grave e de difícil reparação, e de relevância da fundamentação50.

Portanto, para deferimento de antecipação dos efeitos da tutela recursal – ou efeito ativo, como denominado pela doutrina em momento anterior à previsão expressa no Codex pela Lei n° 10.352/200151 – deve haver prova inequívoca para convencimento da

50 RODRIGUES, Clóvis Fedrizzi. Antecipação de tutela recursal em sede de agravo e apelação: interpretação da Lei 10.352/01. In: NERY JU-NIOR, Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e de outros meios de impug-nação às decisões judiciais. v. 8. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 399-412, 2005, p. 405.

51 TALAMINI, Eduardo. Recorribilidade das decisões sobre tutela de ur-gência. In: NERY JUNIOR, Nelson; ARRUDA ALVIM, Eduardo Pelle-grini de; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Aspectos polêmi-cos e atuais dos recursos cíveis e de outros meios de impugnação às decisões judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 284.

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verossimilhança da alegação, bem como o fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação.

Ao contrário do que possa parecer, a Lei Processual Civil não está a exigir da parte a comprovação inexorável prima facie dos fatos jurídicos narrados em sua causa de pedir, mas apenas a demonstração suficiente da correspondente verossimilhança, já que, como visto, o momento processual encerra cognição sumária.

É o que lecionam Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart52:

Deixe-se claro, destarte, que estamos estudando a “prova inequívoca” suficiente para o surgimento da “verossimilhança” necessária para a concessão da tutela antecipatória de cognição sumária baseada em fundado receio de dano.A denominada “prova inequívoca”, capaz de convencer o juiz da “verossimilhança da alegação”, somente pode ser entendida como a “prova suficiente” para o surgimento do verossímil, entendido como o não suficiente para a declaração da existência ou inexistência do direito.

Quanto ao receio de dano irreparável ou de difícil reparação, refletem-se, no entendimento de Ovídio Batista da Silva53, na exposição a perigo do direito provável, ou seja, numa situação de perigo iminente à efetividade do direito pleiteado pelo autor. Tal receio deve ser fundado, demonstrável

52 MARINONI; ARENHART, ob. cit., 2003, p. 243-4.53 SILVA, Ovídio Baptista da. Do processo cautelar. Rio de Janeiro: Fo-

rense, 1996, p. 73.

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mediante fatos concretos, não podendo advir de mero temor da parte.

Ressalte-se que, no tocante à antecipação dos efeitos da tutela recursal de que trata o art. 527, inciso III, do Código de Processo Civil, apenas será possível o enquadramento na hipótese do inciso I do art. 273 do mesmo texto legal, porquanto o inciso II se refere à caracterização de abuso de direito de defesa ou manifesto propósito protelatório do réu, as quais não se circunscrevem ao agravo por instrumento, que exige, já no juízo de admissibilidade, que a decisão recorrida seja suscetível de causar à parte lesão grave e de difícil reparação.

Nunca é demais lembrar que, a exemplo da decisão que nega seguimento ao agravo por instrumento ou o converte em agravo retido, o provimento jurisdicional que versa sobre tutela de urgência somente é passível de reforma no momento do julgamento do agravo, salvo se o próprio relator a reconsiderar, consoante o parágrafo único do art. 527 do Código de Processo Civil, emprestando ao juízo de cognição sumária realizado pelo relator, na prática, ares de definitividade.

4 APARENTE SIMBIOSE

Colocadas as premissas acima, constata-se que a reforma no regime do recurso de agravo efetuada pela Lei nº 11.187/2005 – transformando em regra o agravo retido e

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restringido sua interposição por instrumento apenas quando impugnar “decisão suscetível de causar à parte lesão grave e de difícil reparação, bem como nos casos de inadmissão da apelação e nos relativos aos efeitos em que a apelação é recebida” – trouxe perplexidade para os operadores do Direito no que se refere à distinção entre juízo de admissibilidade e juízo de mérito (cognição sumária) realizado pelo relator do agravo por instrumento.

Com efeito, a principal hipótese de cabimento do agravo por instrumento instaurada pela alteração legislativa ora mencionada (“decisão suscetível de causar à parte lesão grave e de difícil reparação”) em tudo se assemelha ao requisito atinente ao periculum in mora nos casos de concessão de efeito suspensivo ou antecipação dos efeitos da tutela recursal, no âmbito do indigitado recurso.

Por certo, conforme asseverado anteriormente,para o deferimento de efeito suspensivo no agravo por instrumento, a teor do art. 558, caput, da Lei de Ritos, o relator deverá observar, além da relevância da fundamentação, a possibilidade de “resultar lesão grave e de difícil reparação”.

Igualmente, ao apreciar pedido de efeito ativo na figura recursal em questão, cabe ao relator verificar a existência de “fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação”, somado, por óbvio, à presença de prova inequívoca para o convencimento da verossimilhança da alegação, ex vi do art. 273, inciso I, do Diploma em espeque.

A similitude apontada tem levado a doutrina e jurisprudência pátrias a adotar posições díspares quanto ao

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tema, de estudo ainda incipiente, ora aduzindo que o juízo de admissibilidade positivo do agravo por instrumento implicaria necessariamente a concessão de tutela de urgência – ou pelo menos o reconhecimento do “perigo da demora” – ora entendendo que se trataria de critérios tecnicamente diversos.

Petrônio Calmon Filho54 traz intelecção no sentido de que a utilização pelo legislador da expressão “lesão grave e de difícil reparação” leva à inevitável conclusão de que o conhecimento do agravo por instrumento pelo relator acarretará a concessão de efeito suspensivo ou ativo ou, não se demonstrando a urgência, deverá se converter o recurso em retido:

[…] o legislador utilizou-se da mesma expressão três vezes, naturalmente pretendendo dizer a mesma coisa. No art. 522 dirige-se à parte para dizer que essa somente pode agravar por instrumento quando, além das hipóteses objetivas, a decisão recorrida for suscetível de causar à parte lesão grave e de difícil reparação. Em seguida, no art. 527, inciso II, dirige-se ao relator do agravo de instrumento para dizer que esse deverá convertê-lo em agravo retido salvo se, além das hipóteses objetivas, a decisão recorrida for suscetível de causar à parte lesão grave e de difícil reparação. Depois estabelece a regra do inciso III do mesmo artigo, para dizer que o relator deverá conceder efeito suspensivo ou ativo quando a decisão recorrida possa causar lesão grave e de difícil reparação. Isso quer dizer que se o relator não encontrar fundamento para a concessão de efeito

54 CALMON FILHO, idem, ibidem.

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suspensivo ou ativo deverá converter o agravo de instrumento em retido, tomando ambas as decisões em caráter monocrático, em nome do tribunal, como órgão fracionário [destaque existente no original].

Da mesma forma, Clito Fornaciari Júnior55 estabelece que “aquilo que era apontado a fim de se requerer efeito suspensivo ou ativo, agora o será, de vez, requisito de admissibilidade do próprio recurso”.

Em um dos raros estudos específicos sobre o tema aqui abordado, Luiz Henrique Borges Varella56 também entende haver simbiose entre juízo de admissibilidade e de cognição sumária no agravo por instrumento, ressalvando as hipóteses de ausência de pedido de efeito suspensivo ou presença tão-somente de periculum in mora, sem demonstração do fumus boni iuris:

[…] a lesão grave e de difícil reparação passou a ser pressuposto de admissibilidade (no modo de cabimento por adequação) para o agravo de instrumento; incumbe ao relator, obrigatoriamente, converter a modalidade instrumental em retida caso não reste evidenciada aquela lesão; a conversão não é passível de agravo interno ou regimental. […]O simples fato de admitir o agravo de instrumento, consoante as novas regras trazidas pela Lei 11.187/05, implica um juízo

55 FORNACIARI JÚNIOR, Clito. O novo agravo e o irrecuperável vício. Tribuna do Direito, São Paulo, a. 13, n. 151, nov. 2005, p. 22.

56 VARELLA, Luiz Henrique Borges. Admissão e efeito suspensivo do agravo de instrumento por lesão grave e de difícil reparação. Revista Juristas, João Pessoa, a. 3, n. 84, jul. 2006.

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positivo de admissibilidade do recurso. Em outras palavras: o relator constata que, no caso sob sua apreciação, existe o perigo de lesão grave e de difícil reparação.Conseqüentemente, afigura-se no mínimo incoerente se fazer o juízo positivo de admissão e, concomitantemente, indeferir o efeito suspensivo ao agravo de instrumento. Isto porque o requisito principal (lesão grave e de difícil reparação) é o mesmo para ambas as questões.Por conseguinte, mostram-se plausíveis as seguintes providências: admissão do agravo por instrumento (art. 522, caput, segunda parte, CPC), conferindo-lhe efeito suspensivo (art. 558, segunda parte, CPC), ou conversão do agravo de instrumento em agravo retido por ausência de lesão grave e de difícil reparação (art. 527, inc. II, CPC). […]Ressalte-se, por fim, que há possibilidade de ser o agravo de instrumento admitido e, corretamente, ser-lhe negado efeito suspensivo. Tratam-se, em verdade, de duas únicas hipóteses: ausência de requerimento da parte quanto à concessão de efeito suspensivo ou presença de lesão grave e de difícil reparação mas ausência de relevante fundamentação [destacou-se].

Do mesmo modo, Heitor Vitor Mendonça Sica57 entende que a nova disciplina impõe ao julgador a missão de efetivamente adentrar o mérito recursal para verificar se o

57 SICA, Heitor Vitor Mendonça. O agravo e “mito de Prometeu”: consi-derações sobre a Lei 11.187/2005. In: NERY JUNIOR, Nelson; WAM-BIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais dos

recursos cíveis e assuntos afins. v. 9. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 193-219, 2006, p. 196-7.

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agravo por instrumento poderá ser processado.Na casuística dos tribunais, vários pretórios

aplicam o entendimento de que haveria correlação entre o juízo de prelibação e o de delibação no agravo por instrumento, a exemplo do Tribunal Regional Federal da 2ª Região58:

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO. EFEITO SUSPENSIVO. AUS�NCIA DOS PRESSUPOSTOS AUTORIZADORES.Agravo interno interposto em face da decisão que converteu o presente agravo de instrumento em agravo retido, por não verificar, na hipótese, a existência de risco de lesão grave e de difícil reparação à recorrente.Uma vez reconhecida a inexistência dos pressupostos autorizadores do efeito suspensivo pleiteado, merece ser mantida a decisão que converteu o presente agravo de instrumento em agravo retido, nos termos do disposto no artigo 527, inciso II, do Código de Processo Civil, com a redação conferida pela Lei nº 11.187/2005 [destacou-se].

Ainda, colaciona-se decisão monocrática exarada por membro do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul59:

58 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 2ª Região, Agravo Interno nº 140241/RJ (200502010090283), 7ª Turma Especial, Relator: Juiz Fede-ral Ricardo Regueira, Rio de Janeiro, 14 de março de 2007. Diário da Justiça da União. Brasília, 28 mar. 2007, p. 256.

59 In: AMARAL, Guilherme Rizzo. O agravo de instrumento na Lei nº 11.187/05 e as recentes decisões do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul: um alerta necessário. Disponível em: <http://www.tex.pro.br/wwwroot/01de2006/oagravo_guilherme_rizzo_amarall.html> Acesso em: 10 jul. 2008.

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[…] para a admissibilidade do recurso como sendo de instrumento, não basta que o recorrente preencha apenas os pressupostos recursais genéricos e os requisitos formais dos artigos 524 e 525 do Código de Processo Civil. […] Cumpre-lhe também demonstrar a presença da cláusula da lesão grave e de difícil reparação.[…] firmar o conceito do que representa esta cláusula [da lesão grave e de difícil reparação] na atual formação do agravo de instrumento será tarefa árdua a ser enfrentada pelos doutrinadores e, em especial, pela jurisprudência, na medida em que se trata de cláusula de natureza de mérito e não tão-somente processual [destacou-se].

Portanto, para esta parcela da doutrina e da jurisprudência, diante das alterações operadas pela Lei nº 11.187/2005, existiria clara interligação entre a admissibilidade do agravo por instrumento e a cognição sumária efetuada pelo relator para concessão de tutela de urgência.

Por outro lado, já se encontram vozes dissonantes, tanto entre os jurisconsultos quanto na esfera pretoriana, afirmando que os juízos de admissibilidade e de urgência levados a efeito pelo relator do agravo por instrumento são independentes, não havendo que se falar em simbiose entre ambos, mesmo com a reforma processual ora operada.

A esse respeito, Rafael Wallbach Schwind60

60 In: JACOB, Luiz Guilherme de Almeida Ribeiro. Notas à Lei nº 11.187/2005. Altera o CPC para conferir nova disciplina ao cabimento dos agravos retido e de instrumento. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 921, 10 jan. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7827>. Acesso em: 23 jul. 2008.

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pontua o seguinte:

Não se pode entender que a rejeição de pedido de efeito suspensivo ou antecipação da tutela recursal leve necessariamente à conversão do agravo de instrumento em agravo retido. É plenamente possível que, em determinados casos, mediante um juízo preliminar, o relator rejeite o pedido de antecipação da tutela recursal, embora reconheça a necessidade de o recurso ser julgado pelo tribunal antes do julgamento do feito de origem.

Em estudo visando à crítica de decisões monocráticas que, inadvertidamente, a pretexto de realizarem juízo de admissibilidade, invadem o mérito recursal, Guilherme Rizzo Amaral61 observa:

A nova redação do artigo 522 do CPC, traz o termo suscetível. Decisão suscetível de causar à parte lesão grave e de difícil reparação é o que se exige para admitir o agravo de instrumento (sem prejuízo de se negar, a posteriori, provimento ao mesmo). A decisão agravada não precisa, de fato, comprovadamente, causar a lesão, mas, dada a sua natureza, o contexto processual em que a mesma está inserida, deve ser suscetível de causá-la. Ora, quando alguém pleiteia a antecipação da tutela fundada no receio de dano irreparável ou de difícil reparação, parte-se da premissa que, indeferida a antecipação da tutela, ocorrerá o dano. Colhe-se, portanto, para justificar a interposição do agravo de instrumento – ou seja, para o juízo de admissibilidade – as

61 AMARAL, ob. cit.

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afirmações do agravante in status assertionis, concluindo-se pela suscetibilidade de vir a decisão indeferitória da antecipação da tutela a causar dano. Indo-se além, estar-se-á invadindo o mérito recursal [destacou-se].

Este também é o posicionamento de um dos mentores da reforma ora debatida, Athos Gusmão Carneiro62, ao se manifestar sobre os agravos interpostos de decisões que versem sobre matérias que, a priori, reclamem urgência em sua apreciação, sob pena de comprometer a própria utilidade do recurso.

Igualmente, Araken de Assis63 traz orientação nesse sentido:

Evidentemente, incluem-se no art. 522, caput, as liminares em geral, nada importando sua natureza cautelar ou satisfativa, porque essas providências, por definição, assentam no receio de dano irreparável. Se há, ou não, tal risco no caso concreto – o indeferimento da liminar talvez tenha se fundado na existência desse pressuposto específico da tutela de urgência –, constitui ele o mérito do recurso. À admissibilidade do agravo de instrumento, portanto, bastará o agravante alegar que a decisão é suscetível de causar lesão dessa espécie.

62 CARNEIRO, Athos Gusmão. Do recurso de agravo ante a Lei nº 11.187/2005. Revista dialética de direito processual, São Paulo, n. 35, fev. 2006, p. 11.

63 ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 502.

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De maneira diversa, mas chegando a idêntica conclusão, Luiz Rodrigues Wambier, Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina64 alertam que a adoção do critério “urgência” para diferenciar o modo de processamento do agravo poderia provocar exame de admissibilidade em profundidade tal que se constituiria em julgamento meritório do recurso, impedindo sua mera conversão em agravo retido.

Prosseguem os autores justificando que o relator apenas deverá converter o agravo ao regime de retenção “nos casos em que mostrar-se evidente a ausência de urgência no julgamento do recurso” e, não verificando tais hipóteses, caberá a ele: a) julgar desde logo o recurso, se presentes os requisitos do art. 557 do Código de Processo Civil; b) dar sequência ao processamento do agravo, encaminhando-o para apreciação colegiada6566.

Assim, inferem os referidos doutrinadores inexistir identidade entre juízo de admissibilidade e de mérito naespécie67:

64WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDI-NA, José Miguel Garcia. Breves comentários à nova sistemática pro-cessual civil II. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 253.

65 WAMBIER et ali, ob. cit., p. 253-4.66 José Miguel Garcia Medina, em obra individual anterior à reforma ora

abordada, já afirmava não haver necessária correlação entre a manuten-ção do regime do agravo de instrumento e a imposição de efeito suspen-sivo ao mesmo recurso. MEDINA, José Miguel Garcia. A recentíssima reforma do sistema recursal brasileiro: análise das principais modifica-ções introduzidas pela Lei 10.352/2001. In: NERY JUNIOR, Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Aspectos polêmicos e atu-ais dos recursos cíveis e de outros meios de impugnação às decisões judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 357.

67 WAMBIER et ali, ob. cit., p. 256.

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A urgência a que se está referindo, que serve de critério para a determinação do regime aplicável ao agravo, e para conversão do agravo de instrumento em agravo retido (art. 527, inc. II), não é idêntica à urgência exigida pela lei para a concessão do efeito suspensivo ao agravo de instrumento (art. 558). É que tal urgência, cuja demonstração se exige do recorrente, que se requer para que o agravo seja de instrumento, não é a mesma, sob o ponto de vista da intensidade, que se espera ver demonstrada pela parte, para obter efeito suspensivo. Se assim fosse, a todo agravo de instrumento dever-se-ia conceder efeito suspensivo. A urgência para obtenção de efeito suspensivo deve ser mais aguda [destaque existente no original].

Também na jurisprudência, encontram-se algumas decisões no sentido de não reconhecer similaridade entre juízo de admissibilidade e de mérito (cognição sumária) do agravo por instrumento, consoante se depreende da seguinte decisão proferida no âmbito do Tribunal Regional Federal da 5ª Região68:

Preliminar arguida em sede de contra-razões, de que este agravo deveria ser recebido na forma retida, não deve prosperar. É que não vislumbro motivo para converter a forma em que foi recebido este recurso, até porque a decisão a quo poderia causar à parte lesão grave e de difícil reparação se o entendimento deste relator fosse no sentido de que estariam presentes os requisitos necessários para a concessão do efeito suspensivo ativo [destacou-se].

68BRASIL. Tribunal Regional Federal da 5ª Região, Agravo de Instru-mento nº 66545/PE (200605000008374), 3ª Turma, Relator: Juiz Federal Paulo Gadelha, Recife, 6 de julho de 2006. Diário da Justiça da União. Brasília, 21 ago. 2006, p. 631.

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Com idêntico teor, transcreve-se decisum monocrático exarado por membro do Tribunal Regional Federal da 2ª Região69, que, como visto, está longe de pacificar a matéria:

Trata-se de agravo de instrumento, em face de decisão proferida pelo Juízo da 3ª Vara Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, que, nos autos do processo n.º 2006.02.01.007389-7 entendeu não estar presente a urgência específica exigida para remessa extraordinária especialmente diante do indeferimento do INSS ter se dado em 05/06.Em conformidade com a novel disciplina que rege o recurso de agravo, das decisões interlocutórias caberá agravo, na forma retida, salvo quando se tratar de decisão suscetível de causar à parte lesão grave e de difícil reparação (CPC, art. 522).In casu, como o presente trata de discussão a respeito de doença incurável em que o agravante está passando por grandes dificuldades e vive em extrema pobreza, entendo tratar-se, pois, de hipótese de exceção à citada regra, motivo pelo qual deve ser processado como agravo de instrumento.Indefiro o pedido de efeito suspensivo, por entender não existir perigo na demora com o andamento regular do feito principal, uma vez que, de acordo com a certidão de fls. 50, a agravante encontra-se recebendo o benefício de auxílio-doença [destacou-se].

69 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 2ª Região, Agravo de Instru-mento nº 200602010073897/ES, 2ª Turma Especial, Relator: Juiz Fede-ral Messod Azulay Neto, Rio de Janeiro, 26 de junho de 2006. Diário da Justiça da União. Brasília, 28 ago. 2006, p. 192.

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Vale salientar que tais posicionamentos são pontuais, não tendo os tribunais pátrios chegado a um consenso sobre a questão, dados os entraves para se levar a matéria à apreciação do Superior Tribunal de Justiça com a limitação do acesso recursal implantada pela reforma de que se está a cuidar.

Ainda assim, tem-se notícia de que a Quarta Turma da Corte Superior de Justiça julgou recurso especial que postulava desconversão de agravo retido para a modalidade por instrumento70, inclinando-se pela adoção desta última corrente, sem, todavia, exarar manifestação explícita sobre o tema tratado no presente trabalho.

Contudo, mesmo diante de tal fato e da carência de produção científica sobre o tema, é possível, numa análise jurídica das premissas até então levantadas, chegar-se à conclusão de que o juízo de admissibilidade e o juízo de cognição sumária realizados pelo relator no agravo por instrumento são diversos.

Realmente, o exame de admissibilidade de qualquer recurso, conforme asseverado em linhas anteriores, restringe-se à análise de requisitos formais, que de modo algum se confundem com o juízo de cognição sumária.

No caso do agravo por instrumento, para deixar cristalina a impossibilidade de se fustigar o próprio objeto do recurso em juízo de prelibação, o legislador se utilizou da

70 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial nº 748336/RN, 4ª Turma, Relator: Ministro Hélio Quaglia Barbosa, Brasília, 11 de setembro de 2007. Diário da Justiça da União. Brasília, 24 set. 2007, p. 314.

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expressão “decisão suscetível”. O indigitado termo, no corpo do art. 522, caput, do Código de Processo Civil, tem o condão de limitar ao campo teórico a apreciação da “lesão grave e de difícil reparação” à parte.

Em outras palavras, o relator não poderá verificar se efetivamente há a referida lesão, sob pena de precipitado exame de tutela de urgência, mas apenas examinar se, em tese, a decisão seria passível de comportar tal dano ao recorrente.

Por sua vez, no que diz respeito ao juízo de cognição sumária efetuado pelo relator do agravo por instrumento, o vislumbre do risco de lesão grave e de difícil reparação não reside no campo ideal, tampouco se baliza pela decisão impugnada, mas tem guarida nos fatos narrados e comprovados pela parte, ensejando a apreciação, ainda que sem a profundidade desejável, de dados empíricos.

Mesmo correndo o risco de parecer óbvio, tome-se o exemplo das decisões que versam sobre tutelas de urgência. Nestas hipóteses, por sua própria natureza, serão elas sempre suscetíveis de causar à parte lesão grave e de difícil reparação71, não obstante se saiba que o reconhecimento desta urgência não acarretará necessariamente o preenchimento do requisito do periculum in mora quando da apreciação do pedido de efeito suspensivo ou de antecipação da tutela recursal, o que dependerá de exame efetivo dos elementos concretos trazidos aos autos.

71 NERY JUNIOR; NERY, ob. cit., p. 758. NERY JUNIOR; NERY, ob. cit., p. 758.

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Assim, deve-se diferenciar a apreciação da urgência com o fim de admissibilidade do agravo por instrumento – restrita ao exame teórico da suscetibilidade de ocorrer lesão grave e de difícil reparação – daquela analisada em cognição sumária, decidindo pedido de efeito suspensivo ou ativo ao recurso, no bojo da qual se impõe ao relator, mesmo em juízo perfunctório verticalmente limitado, o cotejo do contexto fático a partir do qual se possa verificar o risco de “lesão grave e de difícil reparação”.

Nesse eito, a identidade entre o pressuposto específico de admissibilidade do agravo por instrumento referente à suscetibilidade de a decisão causar à parte “lesão grave e de difícil reparação” e o requisito pertinente à urgência para a concessão de efeito suspensivo ou ativo a este recurso é apenas aparente, havendo distinção entre ambos por razões de técnica processual.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Destarte, verifica-se que a alteração na disciplina dos agravos retido e por instrumento efetuada pela Lei nº 11.187/2005, sobretudo na redação do art. 522, caput, do Código de Processo Civil, não instituiu simbiose entre o juízo de admissibilidade e o de cognição sumária realizado pelo relator do agravo por instrumento, tratando-se, pois, de etapas distintas do julgamento recursal.

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BIBLIOGRAFIA

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10Marize Anna Monteiro de Oliveira Singui

Reflexões sobre o processo administrativo à luz do estado democrático de direito e sua implantação eletrônica como uma ferramentade gestão na Administração Pública

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REFLExÕES SOBRE O PROCESSO ADMINISTRATIVO À LUZ DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E SUA IMPLANTAÇÃO ELETRÔNICA COMO UMA FERRAMENTA DE GESTÃO NA ADMINISTRAÇÃO PúBLICA

Marize Anna Monteiro de Oliveira Singui•

Introdução. 1 O processo administrativo. 1.1 Noções Gerais. 1.2 Conceito do Processo Administrativo. 1.3 Finalidades do Processo Administrativo. 2 Processo administrativo eletrônico. 2.1 Considerações Preliminares. 2.2 Fundamentos para Institucionalização do Processo Administrativo Eletrônico nas atividades da Administração Pública. 2.2.1 Estado Democrático de Direito e Soberania Popular. 2.2.2 Dever de Publicidade dos atos administrativos e o contraditório administrativo. 2.2.3 Dever de Participação popular na definição, execução e implementação das políticas públicas. 2.2.4 Dever de Eficiência Administrativa. 2.2.5 Direito Fundamental à Boa Administração Pública. 2.3 Desafios para a institucionalização do processo administrativo eletrônico. Considerações finais. Bibliografia.

• Corregedora-Geral da Procuradoria-Geral do Estado do Acre; Diretora da Escola Superior do Instituto Brasileiro da Advocacia Pública – IBAP/AC; especialista em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Acre – UFAC, em convênio com a Universidade Federal de Minas Gerais; especialista em Direito Público pela Faculdade Integrada de Pernambuco – FACIPE, em parceria com a Associação dos Procuradores do Estado do Acre – APEAC e especialista em Gestão Pública pela Fundação Getúlio Vargas – FGV. MA

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INTRODUÇÃO

O processo administrativo, entendido como sucessão de atos administrativos ordenados por lei, tendente a atingir um ato fim, era visto como uma mera relação jurídica destinada a compor conflitos e possibilitar o exercício de direito em face à Administração Pública. Simples instrumento de a pessoa privada defender-se dos atos administrativos do Estado.

Sabe-se que o Direito Administrativo, ramo do direito público que norteia a estrutura e o funcionamento da Administração Pública, passa por uma nova leitura, assim como o sistema jurídico de direito público, com base no modelo original europeu-continental, especialmente o francês, vem sofrendo sensível influência do sistema americano. Assim, a mescla desordenada entre esses sistemas fomenta o aumento da importância concedida ao processo administrativo com a “processualização” do Direito.

Outrora, a terminologia “processo” era associada exclusiva mente à função jurisdicional, ou seja, era algo inerente à atividade do Poder Judiciário. A partir dos anos 50, começa a surgir uma nova concepção do fenôme no processual, que passa a abranger também as demais funções de Estado. O pro cesso deixa de ser entendido como o modo de atuação do Poder Judiciário e passa a ser concebido como o modo de exercício do poder estatal, também presente no exercício da função legislativa e executiva.

As transformações pelas quais passou o Estado

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moderno, agregadas à nova visão do Estado Democrático de Direito, fundada na soberania popular, compeliram a ruptura das velhas prescrições dogmáticas que já não mais atendem às expectativas da população, que cobra da Administração Pública eficiência, agilidade, efetividade e transparência em sua atividade.

Nesse contexto, surge uma forte tendência que é a processualização da atividade administrativa, em face à crescente preocupação com a democratização e abertura da participação popular na formação da vontade administrativa e não apenas no ato administrativo final, passando o processo a ser uma forma de contenção de poder.

Com os insucessos do Estado Liberal e do intervencionismo estatal, aparece um novo modelo de Estado Regulador, que intervém na ordem econômica e social por interpostas pessoas jurídicas denominadas de Agências Reguladoras. Essas entidades, além de exercer funções tipicamente administrativas, exercem funções normativas que podem culminar em sanções por meio de processo administrativo. Com essas funções normativas o processo administrativo transforma-se, também, em instrumento de criação de normas genéricas e abstratas.

Corolário disso, o processo administrativo vem se tornando numa efetiva forma de relacionamento entre o cidadão e a Administração Pública, num instrumento de vital importância de direito-garantia individual, de participação democrática do cidadão frente à Administração Pública.

Todavia, ressalta-se que, não obstante a elevada

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importância do processo administrativo, somente há nove anos, com a Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, foi este disciplinado no âmbito federal, sendo que poucos Estados da federação possuem leis dessa mesma natureza.

Sabe-se que a atividade administrativa está adstrita aos imperativos de uma finalidade, ou seja, aos fins propostos na lei, a qual o administrador público é compelido a observar que é a realização do bem comum de um povo. Contudo, como verificar se a atividade administrativa está em consonância com os fins legais, consubstanciado no interesse público primário? Como verificar se a política pública desenhada pelo governante, escolhido democraticamente pelo povo, está sendo executada de forma satisfatória?

Dessa forma, objetiva-se, com estas reflexões: 1) ampliar a discussão sobre o papel do processo administrativo, sua importância no Estado Democrático de Direito, sua implantação eletrônica como uma ferramenta tecnológica de gestão na administração pública; 2) refletir sobre a potencialidade do processo administrativo eletrônico como instrumento de gerenciamento da população e da própria Administração Pública nas atividades administrativas, tendo em vista que basicamente quase todo o agir da administração é formalizado por um conjunto de atos administrativos que são registrados para a tomada de decisões e execução da lei no caso concreto; 3) discutir o processo administrativo eletrônico como uma ferramenta tecnológica capaz de modificar as interações entre o cidadão e o Poder Executivo, bem como o de promover uma gestão administrativa mais eficiente; 4) refletir até que

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ponto a implantação de forma eletrônica ou virtual do processo administrativo, como já iniciado no processo judicial, através da Lei nº 11.419, de 19 de dezembro de 2006, facilitará à própria Administração Pública na fiscalização da conduta do administrador público. Se o ato administrativo atendeu aos requisitos necessários para realização dos fins propostos na lei, em atenção aos princípios constitucionais da legalidade, transparência, publicidade, eficiência e participação popular, exigências do Estado Democrático de Direito.

Como se vê, a temática é rica e não poderá, certamente, ser esgotada nos estreitos limites destas reflexões. Impõe-se, por isso, a perfeita delimitação dos escopos, razão pela qual se abordará de forma sintética estudo sobre a conceituação do processo administrativo. Posteriormente, será dedicado capítulo sobre o processo administrativo eletrônico, fundamentos e desafios para a sua institucionalização na Administração Pública.

As reflexões consignadas visam a convidar aos leitores para um novo olhar desse importante instituto jurídico, que é o processo administrativo, antes focado somente como um instrumento de defesa do cidadão em face à Administração Pública, para resgatar seus vários aspectos particulares, que o transformam em um importante instrumento de controle, de participação popular e de gestão democrática.

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1 O PROCESSO ADMINISTRATIVO

1.1 Noções Gerais

Anteriormente o processo era visto como o modo peculi ar de atuação do Poder Judiciário, ou seja, inerente à função jurisdicional. Dessa forma, os primeiros estudos focaram luzes em torno do pro cesso judicial. Após os anos 50, essa concepção foi modificada, passando o fenômeno processual a abranger, também, as demais funções estatais: legislativa e executiva.

Contemporaneamente processualistas e administrati vistas asseveram, quase que por unanimidade, a existência do processo em todas as atividades estatais, em razão do núcleo comum pertencente ao exercício de todas as atividades estatais. Esse núcleo central é a contenção do poder estatal, como bem salienta Marcelo Harger1.

Cândido Rangel Dinamarco afirma que:

Processo é conceito que transcende ao direito processual. Sendo instrumento para o legíti-mo exercício do poder, ele está presente em todas as atividades estatais (processo administrativo, legislativo) 2.

1 HARGER, Marcelo. Princípios Constitucionais do Processo Admi-nistrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 47.

2 DINAMARCO, Cândido Rangel. In: HARGER, Marcelo, op. cit., p.46.

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A constituição fixa as balizes para que cada Poder cumpra suas funções institucionais, com independência e respeito aos direitos individuais. Assim, a atividade administrativa está sob as amarras legais, em que o agente é compelido a restringir qualquer que seja sua inclinação pessoal ao estatuído na finalidade determinada na lei, que é o atendimento ao interesse público.

No Estado Democrático de Direito aprocessualidade se vincu la à disciplina do exercício do poder estatal, que não só exige a consonância substancial da atividade administrativa com a norma, mas, sobretudo com os meios de produzi-la.

Visando ao cumprimento de suas funções institucionais, a Administração Pública desempenha um imenso leque de atividade administrativa, por exemplo: contratação de serviços, execução de uma obra, tomada de decisão, edição de regulamento, pareceres, concessão de licença, punição de servidores, audiências etc., enfim, toda essa prática é desenvolvida mediante a formalização de um processo administrativo.

É certo que com a ampliação da área de atuação do Estado emergiu a necessidade de um maior controle da atividade administrativa, fazendo-se destacar o processo administrativo como instrumento poderoso de controle.

No exercício do “Poder”, não raras vezes, há desvio de condutas de administradores públicos que burlam o sistema jurídico e se locupletam do erário, com a malversação dos recursos públicos. É diante dessa perspectiva que o processo

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ganha relevo como forma de con tenção do poder. O processo é modo de garantir a observância dos limites legais.

Insta ressaltar que se analisará nestas reflexões o processo administrativo como uma forma na qual se exterioriza a atividade da Administração Pública, que se subsume a regime jurídico específico, resultante de conjunto de normas (regras e princípios) disciplinadores da atividade administrativa do Estado.

Obtempere-se que esse regime jurídico difere do parâmetro legal norteador da conduta do particular que atua em liberdade, podendo realizar qualquer conduta, desde que não vedada em lei, ao passo que ao administrador público só é facultado realizar o que está previamente estabelecido em lei.

A justificativa para a diferenciação desses regimes jurídicos, segundo Egon Moreira3, ocorre em virtude de que, enquanto o particular defende interesse disponível, por si, imediatamente titularizado e tem como pressuposto a igualdade dos personagens que ajustam livremente seus interesses, a Administração Pública realiza atividade fundada pela tutela de interesse público indisponível, titularizado pela coletividade.

Para a realização de suas funções institucionais e finalidades constitucionais, a Administração Pública utiliza o processo como instrumento de registro de seus atos, controle da conduta de seus agentes e solução de controvérsias entre a administração e o administrado4.

3 MOREIRA, Egon Bockmann. Processo Administrati-vo (Princípios Constitucionais e a Lei 9.784/1999). 3ª ed. atu-al, revista e aumentada. São Paulo: Malheiros, 2007, p.26.

4 MEIRELES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro.

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Os estudiosos indicam várias noções diferentes de processo administrativo. Em sentido estrito, o processo é caracterizado como a série de documentos que formam a peça administrativa. Em sentido amplo, o conjunto de atos ordenados para a solução de uma controvérsia entre a administração e o administrado.

Registra-se, de outra banda, que há dissentimentoem sede doutrinária quanto à qualificação normativa, se processo ou procedimento. Existe um intenso debate doutrinário no sentido de que a terminologia mais adequada é procedimento administrativo ao invés de processo administrativo. Filiando-se a esta corrente destacam-se: Carlos Ari Sundfeld, Lúcia Valle de Figueiredo, Marçal Justen Filho e José Carlos de Araújo Almeida Filho.

Apesar da sedução ao debate não se adentrará nessa controvérsia doutrinária, mormente tendo em vista a amplitude da discussão científica que ensejaria uma monografia exclusiva sobre este tema5.

1.2 Conceito do Processo Administrativo.

Inicialmente, necessário registrar que a elaboração do conceito de processo administrativo é tarefa complexa devido à existência de diversidade de legislações e instituições públicas com atividades específicas, que impõem dificuldades para uma definição de âmbito universal.

São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 63. 5 MOREIRA, Egnon Bockmann, op. cit., p. 45-60.

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Mais complexa ainda é a tarefa da elaboração de um conceito universal diante das existências de sistemas diferenciados de regimes administrativos nos diversos países. Hodiernamente têm-se dois sistemas: o sistema francês, contencioso administrativo, em que os litígios envolvendo a Administração Pública são resolvidos por órgãos pertencentes à estrutura paralela do Poder Judiciário e integrante da Administração Pública; e o sistema inglês, sistema judiciário ou de jurisdição única, em que os atos administrativos são sindicáveis perante o Judiciário.

Conforme observa Seabra6, atualmente, em nenhum país aplica-se um sistema de controle puro, seja através do Poder Judiciário ou dos Tribunais Administrativos. No Brasil vige, desde a instauração de sua primeira República, o sistema de jurisdição única, em que o controle administrativo é feito pela justiça comum.

O termo processo, segundo a definição contida no dicionário Aulete7, tem o sentido de ação de proceder, de dar seguimento, de desenvolvimento gradativo de uma atividade, de um fenômeno. Consoante dicionário Aurélio8, processo é: “1. Ato de proceder, de ir por diante; seguimento, curso, marcha. 2. Sucessão de estados ou de mudanças”.

À luz dessa conceituação constata-se que a nomenclatura processo não é restrita à linguagem jurídica,

6 SEABRA, Fagundes. In: MEIRELES, Hely Lopes, op. cit., p. 50.7 AULETE, Dicionário Digital. Disponível em: <www.auletedigital.com.

br>. Acesso em: 11 de fev. 2008.8 AURÉLIO, Dicionário Digital. Disponível em: <C:\Arquivos de pro-

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mas noção genérica que retrata juízo unitário de fenômeno múltiplo, sequência de atos desenvolvida numa sucessão lógica, com vistas a determinado fim.

Na seara jurídica, processo é descrito como instrumento utilizado para regular interação entre as pessoas, tendo como escopo a solução de conflitos de interesse ou tomada de decisão. O processo administrativo, assim, pode ser definido como um conjunto sistemático de atos dos órgãos públicos que regula as relações jurídicas da administração com ela mesma, com outras entidades estatais e com os administrados, pessoas naturais e jurídicas.

Conforme a natureza e o objetivo da decisão, o processo pode realizar-se por diferentes procedimentos, pois não há processo sem procedimento, mas há procedimentos administrativos que não constituem processo.

Em resumo, processo administrativo é um instrumento que formaliza a sequência ordenada de atos e atividades da Administração Pública. É um conjunto de atos coordenados preparatórios para a obtenção de uma decisão final administrativa.

1.3 Finalidades do Processo Administrativo.

Sustenta-se que o Direito Administrativo foi criado com a intenção precípua de resguardar os interesses e realizações da Administração Pública. Tanto é que, à luz dos ensinamentos anteriormente vigentes, o interesse público

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encontrava-se em um patamar de superioridade em relação aos interesses dos particulares, numa relação de verticalidade, como preceitua o consagrado princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, empregado para justificar uma série de prerrogativas inerentes à Administração Pública, na qualidade de tutora e guardiã dos interesses coletivos 9.

Esse entendimento está sendo revisitado pelos doutrinadores de escol que reformularam essa forma de pensar, com uma nova leitura nas soluções desses conflitos de interesses, para ressaltar no centro axiológico o princípio da dignidade da pessoa humana e do direito fundamental do administrado.

O Procurador do Estado do Rio de Janeiro Gustavo Binenbojm10 leciona que:

A dogmática administrativista estruturou-se a partir de premissas teóricas comprometidas com a preservação do princípio da autoridade, e não com a promoção das conquistas liberais e democráticas. O direito administrativo, nascido da superação histórica do antigo regime, serviu de instrumento para a preservação daquela mesma lógica de poder.O instrumental conceitual do modelo jusadministrativista legado por tal tradição encontra-se esgotado. A velha dogmática do direito administrativo é reconhecidamente

9 Nesse sentido são as lições de Hely Lopes Meirelles, Celso Antonio Bandeira de Melo, nas obras citadas.

10 BINEMBJOM, Gustavo. Temas de Direito Administrativo e Consti-tucional – artigos e pareceres. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 39-60.

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autoritária, do ponto de vista político, inconsistente, do ponto de vista teórico, e ineficiente, de um ponto de vista pragmático. Tais vícios, reproduzidos em momentos históricos distintos pelo mundo afora, convergem agora, no Brasil, para um momento de inflexão teórica que se poderia caracterizar como uma crise dos paradigmas do direito administrativo brasileiro.Na tarefa de desconstrução dos velhos paradigmas e proposição de novos, a tessitura constitucional assume papel condutor determinante, funcionando como diretriz normativa legitimadora das novas categorias. A premissa básica a ser assumida é a de que as feições jurídicas da Administração Pública – e, a fortiori, a disciplina instrumental, estrutural e finalística da sua atuação – está alicerçada na própria estrutura da Constituição, entendida em sua dimensão material de estatuto básico do sistema de direitos fundamentais e da democracia.

Isso ocorria em razão daquela visão do interesse público como superior à satisfação dos interesses individuais. Essa ótica está sendo superada com a crescente identificação do interesse público como a maior satisfação possível dos interesses dos cidadãos. Na existência de conflito entre o princípio do interesse público versus dignidade da pessoa humana, não há que preponderar automaticamente o primeiro princípio, nem tampouco o segundo. Apregoa-se que não há relação de superioridade entre o interesse público e privado. Defende-se que o conflito será resolvido mediante a ponderação desses interesses, em conformidade com o princípio da

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proporcionalidade e da razoabilidade 11.O Direito Administrativo na doutrina moderna

também tem como norte a garantia do administrado contra atos e comportamentos da Administração e ao melhor cumprimento dos fins da Administração12.

Esse novel entendimento vem expresso na própria lei instituidora do processo administrativo, Lei nº 9.784/99, que em seu artigo 1º, prescreve: “Esta Lei estabelece normas básicas sobre o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal direta e indireta, visando, em especial, à proteção dos direitos dos administrados e ao melhor cumprimento dos fins da Administração”.

O processo administrativo é assim um instrumento de garantia que dispõe o particular perante o Poder Público, para proteger os direitos fundamentais de todos os interessados no resultado do processo. Tanto é que está inserido na Constituição da República Federativa - CRFB, art. 5º, LV, no rol dos direitos e garantias fundamentais.

O processo administrativo, ao mesmo tempo em que resguarda os administrados frente à atuação da Administração Pública, dando a possibilidade destes exibirem suas razões e defesa, antes de ser afetado com a decisão, concorre para que a atuação administrativa seja mais eficiente, eficaz e efetiva, mais responsável, com a melhor solução que atenda às finalidades determinada na lei, que é o atendimento

11Seguindo essa linha de entendimento estão os doutrinadores Alexandre Santos de Aragão, Daniel Sarmento, Gustavo Binenbojm,

Humberto Ávila e Paulo Ricardo Scheir.12 Filiando-se a esse entendimento Agustín Gordillo, Sérgio Ferraz, Cáio

Tácito, Cármen Lúcia Antunes.

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ao interesse público em causa. Em síntese, o processo administrativo tem a

precípua finalidade de proteger o administrado e a Administração. Protege o administrado com a maximização de suas garantias. Protege a própria Administração Pública, quando estabelece normas básicas visando o melhor cumprimento dos fins da Administração Pública.

Imperioso abordar, logo após, as noções gerais sobre processo administrativo eletrônico, fundamentos e desafios de sua institucionalização.

2 PROCESSO ADMINISTRATIVO ELETRÔNICO.

2.1 Considerações Preliminares.

Contemporaneamente, o processo administrativo vem destacando-se como instrumento de garantia dos administrados em face à Administração Pública e em um instrumento de criação de normas genéricas, destinadas não somente às partes, na relação processual administrativa, como também à regulação da atuação da economia.

O processo é o reflexo da cultura e da realidade vivenciada pelo povo, espelhando o grau de civilização de uma nação. A atual conjuntura e o novo status alcançado pelo processo administrativo impõem adoção de novos mecanismos visando à agilidade e, ao mesmo tempo, à democratização na tramitação processual. Hoje, o sistema encontra-se dissociado

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da realidade social, com exacerbada priorização dos meios em detrimento dos fins.

Não se pode olvidar que a revolução tecnológica e a globalização desencadearam mudanças estruturais e principiológicas. Avulta-se, sobremaneira, a importância de um processo mais simplificado e transparente. Infelizmente, as máquinas judiciárias e administrativas brasileira não atendem à dinâmica do mundo moderno, não obstante inúmeras reformas visando maior celeridade processual. As metamorfoses sociais são dinâmicas e radicais, compelindo igual dinamismo às mudanças na Administração Pública, que deveria estar na vanguarda dos acontecimentos sociais, para poder perseguir sua finalidade precípua, que é o bem estar de toda coletividade.

No Estado Democrático de Direito o valor efetividade emerge como uma vertente de suma importância, o que exige da Administração Pública propiciar a criação de mecanismos modernos para atender às demandas dos administrados de forma mais democrática, eficiente e eficaz. Assim, deve seguir o mesmo rumo perseguido pelo Poder Judiciário, com a modernização de sua estrutura administrativa, por meio da utilização da tecnologia da informação.

Em dezembro de 2006, foi aprovada a Lei nº. 11.419 que produziu uma revolução no sistema judicial do país com a introdução do Processo Judicial Eletrônico, que permite a tramitação dos processos via web e tem, exatamente, o mesmo procedimento do processo em papel, porém as etapas são mais rápidas e seguras, sem necessidade de material impresso.

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É inconteste que o Judiciário enfrenta o problema da crescente demanda e a morosidade da tramitação processual. Sabe-se que grande parte das demandas judiciais é relativa às entidades públicas e está relacionada aos processos administrativos que versam sobre: servidores públicos, licitação, desapropriação, cobrança fiscal, etc., cuja controvérsia, quase sempre, gira na inobservância do contraditório e da ampla defesa, tendo em vista o não acesso aos atos processuais, o que gera busca da tutela jurisdicional.

A implantação do Processo Administrativo Eletrônico pela Administração Pública possibilitará um alívio para o Poder Judiciário, pois com ele tanto as partes envolvidas como os demais interessados terão acesso e conhecimento dos atos administrativos desde o exato momento de sua produção, o que resolve um dos pontos nevrálgicos que ensejam demanda judicial, a alegada violação ao princípio constitucional do contraditório e ampla defesa.

Sem sombra de dúvidas, a gestão de conhecimento é um novo paradigma para a boa administração e sucesso das instituições. Contudo, as instituições públicas no Brasil não têm dedicado um cuidado especial à gestão do conhecimento, apesar dos alertas feitos pelos especialistas da área, no sentido de que “hoje o recurso realmente controlador, o fator de produção absolutamente decisivo, não é o capital, a terra ou a mão de obra. É o conhecimento”, conforme assevera Drucker13.

13 DRUCKER, Peter Ferdimand. O melhor de Peter Dru-cker: obra completa tradução de Maria L. Leite Rosa, Arle-te Similde Marques e Edite Sciulli. São Paulo: Nobel, 2002, p. 29.

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Castells14 comunga desse entendimento, asseverando que “uma revolução tecnológica concentrada nas tecnologias da informação está remodelando a base material da sociedade em ritmo acelerado”, bem como “a revolução da tecnologia da informação foi essencial para a implementação de um importante processo de reestruturação do sistema capitalista a partir da década de 80” 15.

Com o aparecimento do computador eletrônico, multiplicaram-se as aplicações e usos das tecnologias de Informação e Conhecimento – TIC, surgindo forma inimaginável de “instantaneidade das atividades humanas”. Apenas com um clique, em tempo real, a informação é repassada para qualquer lugar do planeta terra que tenha acesso à internet.

O novo paradigma do Estado Democrático de Direito exige que os órgãos públicos sejam mais transparentes, o que implica informações colocadas ao alcance da população e, sobretudo que as decisões administrativas sejam responsáveis, tomadas segundo a vontade e a participação popular.

14 In: COELHO, Espartaco Madureira. Gestão do conhecimento como sistema de gestão para o setor público. Revista do Serviço Público, Ano 55, Números 1 e 2, Jan-jun 2004, p. 90.15 Idem, p. 31.

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2.2 Fundamentos para Institucionalização do Processo Administrativo Eletrônico nas atividades da Administração Pública.

2.2.1 Estado Democrático de Direito e Soberania Popular.

Um Estado Democrático de Direito não se reduz na simples idéia de sufrágio universal, na possibilidade de escolha dos governantes pelos governados. O que caracteriza um Estado Democrático de Direito é a existência de instituições e de instrumentos ou mecanismos que possibilitem a participação do povo nas construções das políticas públicas e no controle do exercício do Poder.

A democracia exige essa participação real do povo! O povo só é soberano quando lhe é facultado à participação e o controle das decisões políticas. Não foi por mero acaso que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 ficou conhecida como Constituição Cidadã, pois firma-se no propósito de “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos” 16, de forma que seja assegurada ao povo brasileiro condição necessária para a participação no processo político de decisão, consequência lógica de um Estado Democrático de Direito.

16 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: Preâm-bulo. Texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, com alterações adotadas pelas Emendas Constitucionais 1/92 a 55/2007. Bra-sília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2007.

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Todavia, passados vinte anos de vigência da Carta Magna, todas as reformas e emendas propostas ainda não conseguiram cumprir com o desiderato constitucional. Por essa razão considera-se de vital importância ampliar os mecanismos de participação popular, motivo pelo qual se propõe a institucionalização do processo administrativo eletrônico como canal de acesso do cidadão à atividade da Administração Pública.

2.2.2 Dever de Publicidade dos atos administrativos e o contraditório administrativo

É princípio basilar da Constituição da República Federativa do Brasil - CRFB, em seu art. 37, caput, a publicidade de todos os atos administrativos. O processo administrativo eletrônico cumpre com esse desiderato, promovendo a ampliação do acesso e, por conseguinte, a abertura para fiscalização da atividade administrativa com a prestação de contas permanentemente aos cidadãos.

A publicidade geral dos processos administrativos propicia a ciência das partes interessadas direta e indiretamente no conteúdo das decisões proferidas no processo, para que tomem as providências legais necessárias.

Imperioso lembrar que atualmente um dos grandes problemas, tanto na esfera judicial como administrativa, é a morosidade na tramitação processual, pois é muito burocrática. Por exemplo, as partes só ficam sabendo das decisões quando

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são intimadas pelo Diário Oficial. Até que isso aconteça existe um grande lapso entre a prolação da decisão e o efetivo conhecimento pelas partes.

Ademais, como bem observa Edilberto Barbosa Clementino17, a publicação das intimações no Diário Oficial tem inúmeros inconvenientes: a) elevado preço das publicações; b) dificuldade de consulta (haja vista serem bastante volumosos os Diários Oficiais); c) a possibilidade sempre presente de deixar passar despercebida uma importante publicação, diante da falibilidade humana; d) possibilidade de greve no serviço de Correios e Telégrafos, que eventualmente poderiam embaraçar o trabalho das empresas que hoje prestam serviços de pesquisa e recorte de publicações do Diário Oficial, dentre outros.

Acrescenta-se a esse conjunto de inconveniências o fato de que o homem do povo não tem, em geral, acesso ao Diário Oficial, bem como, anualmente, pilhas e mais pilhas de papel são consumidas para a sua publicação, além de que para fazer sua circulação litros e mais litros de combustíveis são queimados, injetando na atmosfera gazes poluentes que afetam a saúde da população.

Pondera-se que a mesma tecnologia adotada para o processo judicial eletrônico pode ser utilizada para o processo administrativo, de sorte que toda a tramitação processual pode ser acessada eletronicamente por qualquer pessoa. Ressalta-se que aos diretamente interessados pode ser oferecido um serviço conhecido como push18, que envia, automaticamente, 17CLEMENTINO, Edilberto Barbosa. Processo judicial eletrônico. Curi-

tiba: Juruá, 2007, p. 149.18 Conforme Edilberto: “Tecnologia que traz qualquer tipo de conteúdo

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informação de toda a movimentação processual. E, mais ainda, utilizando-se as ferramentas de busca disponíveis nas redes localiza-se, também com facilidade, qualquer diário publicado.

Logo, com a universalização do uso da internet, as intimações e citações serão feitas pelo sistema eletrônico, que já apresenta um grau de confiabilidade, como por exemplo,o uso do sistema da Receita Federal no recebimento das declarações de Ajuste Anual de Imposto de Renda.

Funda-se, assim, o processo administrativo eletrônico no princípio da publicidade, pois assegura e amplia o conhecimento de todos os atos processuais e, por conseguinte, a plena fiscalização de sua adequação pelas partes interessadas e por toda a população. Esse mecanismo de fiscalização permanente dos atos administrativos certamente contribuirá para a diminuição dos desmandos com a coisa pública e a malversação do erário, figuras corriqueiras que se tornaram comum no cenário nacional.

Não se pode acostumar com essas mazelas que só contribuem para ampliar o imenso fosso da desigualdade social em nosso país. Apesar de o Brasil conseguir entrar, neste ano, pela primeira vez no grupo dos países de Alto Desenvolvimento Humano (IDH), muitos desafios precisam ser vencidos, tendo em vista que no ranking geral o país ficou entre os 70 que alcançaram nível mínimo de desenvolvimento, faltando, assim, um longo caminho para o desejado.

da internet para o comprador, mesmo quando o usuário não está nave-gando”. Glossário. Ob. cit., p. 150.

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Segundo o Relatório do Desenvolvimento Humano 2007/2008, em termos absolutos, o Brasil ultrapassou a barreira de 0,800 da linha de corte, no índice que varia de 0 a 1, considerado o marco de alto desenvolvimento humano. Em termos relativos, caiu uma posição no ranking de 177 países e territórios: de 69º, em 2006, para 70º, em 200819.

O processo administrativo eletrônico assenta-se, também, no princípio do contraditório e da ampla defesa (Constituição da República Federativa, em seu art. 5º, inciso LV), na medida em que oferece à parte adversa a oportunidade de defender-se contra as acusações e atos processuais que interfiram em sua esfera jurídica.

2.2.3 Dever de Participação popular na definição, execução e implementação das políticas públicas

A institucionalização do processo administrativo eletrônico na Administração Pública possibilitará uma melhor administração no desenvolvimento e implementação de políticas públicas, com a otimização dos recursos, já que o grande desafio é, com parcos recursos, atender às crescentes necessidades da população de forma mais eficiente, eficaz e efetiva.

Defende-se essa institucionalização não apenas como forma de facilitar o acesso de serviços públicos

19 Disponível em: <http://www.pnud.org.br/rdh/>. Acesso: em 13 de jun. de 2008.

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on-line e melhorar sua prestação, mas, sobretudo com forma de interface com o cidadão, por meio de um conjunto de processos, mediado pela tecnologia da informação, capaz de modificar as interações, em uma escala maior, entre os cidadãos e a Administração Pública, de forma a permitir a participação na tomada das decisões administrativas, mediante a instituição de foros de discussões e canais de ouvidorias, para o colhimento das reclamações, com as competentes apurações pelas corregedorias dos possíveis deslizes ou desmandos cometidos.

Desse modo, a implantação do processo administrativo eletrônico desponta como uma excelente ferramenta que tem a condição de possibilitar, também, uma estrutura de funcionamento da atividade administrativa capaz de responder às reais necessidades do povo, mediante o fomento da participação ampla e plural dos cidadãos na ordem política por meio do ciberespaço.

Não se pode olvidar que o princípio democrático, como bem salienta Canotilho20, impõe “a estruturação de processos que ofereça ao cidadão efectiva possibilidade de aprender a democracia, participar do processo de decisão, exercer o controle crítico na divergência de opiniões, produzir imputs políticos democráticos”, importando, por isso, numa forma de organização do Estado e, ao que nos interessa, da Administração Pública.

20 PEREZ, Marcos Augusto. A Administração Pública Democrática: Institutos de Participação Popular na Administração Pública. Belo Hori-zonte: Fórum, 2004, p. 73.

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Oportuno destacar que essa ferramenta tecnológica pode estabelecer uma nova relação entre os governantes e governados, como bem destacou o colega Rodrigo Fernandes das Neves21, mediante a conexão direta dos políticos com os cidadãos na formulação de melhores legislações e políticas públicas, o que aumenta a confiança nas instituições e proporciona a relegitimação do próprio Estado.

Nesse sentido, assevera Rodrigo Neves22 que para adequada política pública e desenvolvimento da e-democracia deve a Administração Pública:

Criar novos espaços públicos para interação e deliberação política. Diante da defasagem de ambientes tradicionais com esse objetivo, a Internet oferece vantagens significativas para manutenção de áreas públicas de discussão e deliberação.Promover um fluxo de comunicação interativo e multidirecional, de maneira a conectar os cidadãos, os representantes políticos e os administradores.Integrar os processos de e-democracia a estruturas constitucionais mais consistentes.Garantir que a integração entre os cidadãos, seus representantes e os administradores tenham um sentido. Uma vez que se chame o público para participar do processo político, deve-se garantir que isso ocorra de

21 NEVES,Rodrigo Fernandes das. A democracia nas sociedades de informação e do conhecimento, apresentada na conclusão de mestrado

realizado com a Universidade Federal de Santa Catarina, 2008. p. 198.22 Idem, p. 199/200.

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uma maneira clara, efetivamente facilitada e que haja mecanismos de resposta onde os governos possam ouvir e aprender.Garantir que haja quantidade suficiente de informações de alta qualidade, de maneira que os cidadãos possam considerar as opções políticas a partir de bases confiáveis.Se a opinião pública será ouvida mais claramente e constantemente, deve-se envidar esforços para que a maior gama possível de opiniões sejam integradas na conversação democrática, inclusive aquelas tradicionalmente marginalizadas.Deve-se refletir no espaço virtual a realidade geográfica e a estrutura social, provendo-se acesso equitativo ao processo democrático para todas as áreas e todas as comunidades.

O acesso ao processo é uma forma mais democrática de atuação do Poder Estatal, já que a democracia transcende da noção de eleição de representantes populares para o modo de tomada de decisões, pela forma de funcionamento e operação das atividades de Estado, que possibilite a manifestação do administrado, antes que a decisão administrativa o afete.

Sem dúvidas o processo administrativo eletrônico focado na participação do administrado na elaboração da decisão administrativa tem o condão de aproximar o Estado do cidadão, ensejando um meio de debate com o administrado, conferindo, assim, maior eficácia e efetividade à decisão administrativa.

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2.2.4 Dever de Eficiência Administrativa

A eficiência na prestação de serviços pela Administração Pública é ditame constitucional, previsto no seu art. 37, caput, que impõe ao administrador a busca de meios que facilitem o acesso da população de forma eficiente, eficaz e efetiva. A inovação da tecnologia da informação já vem demonstrando ser uma excelente ferramenta.

A institucionalização do processo administrativo não passa somente pela simples transferência de processos em papel diretamente para o computador, mas do uso potencial da tecnologia para reestruturar esse processo e aperfeiçoar procedimentos, mediante os raios-X de todas as etapas e a verificação de sua real necessidade, de modo que a marcha processual seja reduzida e o processo se desenvolva em menor espaço de tempo possível.

Dentre as grandes reclamações da população destacam-se a morosidade e a ineficiência que contribuem, sobremaneira, para o descrédito do Poder Judiciário brasileiro e da Administração Pública em geral. É lamentável que a duração razoável do processo judicial e administrativo seja letra morta na CRFB, em seu art. 5º, LXXVIII23.

A economicidade é outro grande aspecto de relevo. O processo eletrônico possibilita a redução sensível dos gastos na formatação do processo, com a dispensa do uso de papéis, envelopes, cartuchos de tintas, carimbos, grampos. Esses

23A todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua trami-tação (CRFB, art. 5º, LXXVIII).

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insumos oneram, em média, por processo, onze reais e quarenta e quatro centavos, segundo aponta estudo.24

Outro fator de ordem econômica é a redução do quadro de pessoal. Estima-se que em um juízo virtual o quadro de pessoal sofra redução de aproximadamente 20% do modelo tradicional, em razão do reaproveitamento dos servidores antes encarregados de rotinas burocráticas suprimidas25.

A celeridade na tramitação, a diminuição de distâncias entre o local da emanação da decisão e a residência da parte interessada em conhecer daquela decisão, a dispensa de publicação do ato processual em Diário Oficial e jornais, o acesso e a movimentação dos autos a qualquer instante, de qualquer lugar e por várias pessoas no mesmo instante, acarretam, sem sombras de dúvidas, a diminuição do custo do processo.

Favorece, também, a sistematização da atividade administrativa com a processualização, pois estabelece forma uniforme da atuação estatal. A automação de rotinas e de atos processuais contribui para a celeridade e eficiência na tramitação processual. A desburocratização da antiga forma de juntada de documentos no processo, feita pessoalmente, por meio dos advogados ou das partes aos atendentes da Administração Pública, é eliminada pela forma automática e com fornecimento do recibo eletrônico de protocolo pelo próprio sistema.

24 MORAIS, Luiz. Processo Administrativo e Processo Judicial Eletrôni-cos. Disponível em <http://www.carreirasjuridicas.com.br/files_down-loads/textos_complementares/processo_administrativo_e_processo_ju-dicial_eletronicos.pdf>. Acesso em: 15 de jun. 2008.

25 Idem.

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Cumpre ressaltar que o processo administrativo eletrônico apresenta-se, também, como eficiente colaborador do meio ambiente. Com a supressão do papel acaba por contribuir sobremaneira à preservação ambiental.

Sabe-se que um dos grandes problemas enfrentados pela Administração Pública é manter espaço físico adequado para o arquivamento de crescentes pilhas de papéis referentes a documentos e processos administrativos que são armazenados em imensos galpões/depósitos insalubres, que além de onerar mais a máquina administrativa ainda provocam doenças aos servidores que manipulam os autos processuais arquivados. Segundo Relatório Anual do Conselho Nacional de Justiça de 2006, apenas os processos enviados ao Supremo Tribunal Federal naquele ano ocasionaram, “entre remessa e retorno, a manipulação e transporte de 680 toneladas de papel” 26.

Assim, a conservação dos autos processuais em mídia digital será uma eficiente opção, pois resolve, simultaneamente, os problemas de espaço físico, trabalho insalubre e a destruição dos autos em razão de incêndio.

2.2.5 Direito Fundamental à Boa Administração Pública

A implantação do processo administrativo via eletrônica alicerça-se, também no Direito Fundamental à boa Administração Pública, na prerrogativa que o administrado

26Disponível em: <http://www.cnj.gov.br/images/stories/relatorio_anual.pdf>, p. 88. Acesso em: 15 de jun. 2008.

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tem de exigir dos administradores públicos uma Administração Pública eficiente, eficaz e efetiva.

Esse direito fundamental é defendido por Juarez Freiras27, que espelhado no art. 41 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia, assevera como Direito Fundamental à boa Administração Pública “o dever da Administração Pública ser eficiente e eficaz, proporcional cumpridora de seus deveres, com transparência, motivação, imparcialidade e respeito à moralidade, à participação social e à plena responsabilidade por suas condutas omissivas e comissivas.”

O primado de Direito Fundamental à boa Administração Pública impõe esse novo modelo adotado pelo Estado de gestão por resultados, que apregoa a superação do formalismo exacerbado instituído no modelo burocrático, para o modelo gerencial, voltado à obtenção de resultados eficientes, com foco no exame da legitimidade, da economicidade, da razoabilidade, do máximo aproveitamento possível nos meios de atuação disponíveis.

O Dever Fundamental à Boa Administração Pública cobra do Poder Público um agir de modo rápido, preciso, que possibilite a participação popular na gestão e no controle da administração, de forma que os atos administrativos produzam sua finalidade pública que é a satisfação dos reais interesses da população.

27 FREITAS, Juarez. Discricionariedade Administrativa e o Direito Fun-damental à Boa Administração Pública. São Paulo: Malheiros, 2007, p.20.

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2.3 Desafios para a institucionalização do processo administrativo eletrônico

O processo administrativo eletrônico se afina com o propósito do Estado Democrático de Direito que perpassa, além da simples concepção valorativa, para uma forma de organização da função estatal focada na democracia participativa, voltada para o atendimento dos reais interesses e necessidades coletivas.

Imperioso reconhecer, contudo, que esta ferramenta não detém a magia de solucionar todos os problemas que afetam a Administração Pública, mas é necessário mudar as estruturas arcaicas e burocráticas vigentes.

Daí urge institucionalizar o processo administrativo eletrônico na esfera administrativa por meio de um sistema que seja capaz de informação cooperativa, que sirva de suporte e interação de forma dialogada entre as instituições pública e privada, na soma de esforços para a construção do bem comum.

Entretanto, essa interação entre as várias instituições públicas e privadas parceiras é tarefa difícil. Os sistemas existentes atualmente não conversam entre si, o que vai requerer tecnologia de ponta e alto investimento. O Poder Judiciário já gastou enormes recursos com informatização razoável visando instituir o processo judicial eletrônico. Há severas críticas questionando até que ponto justifica-se elevados investimentos em um país com tantas carências e desigualdades sociais como o Brasil.

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Ressalta-se, contudo, que a implantação desse sistema melhora a relação custo-benefício, justificada pelos resultados de eficiência, celeridade e transparência. Ademais, o investimento para a implantação de um sistema de processo eletrônico, apesar de elevado, pode ser rateado entre os entes estatais e parcerias privadas. Os custos podem ser diluídos com o aproveitamento do sistema Projudi desenvolvido pelo CNJ, em parcerias com os Tribunais.

Outro grave problema a ser enfrentado é a aversão do uso do computador e demais tecnologias pela maioria das pessoas integrantes da velha geração, mormente em razão do exagerado tecnicismo utilizado no Direito Eletrônico e na informática28, o que não acontece com a nova geração, que desde muito cedo tem acesso às novas tecnologias.

A essas dificuldades soma-se a diversidade da capacidade econômica da população que, em sua grande maioria, ainda não dispõe de recurso financeiro que permita o acesso à internet; tanto assim, que o perfil dos usuários de computadores está distribuído nos seguintes percentuais: 26% pertencentes à Classe A, 54% à Classe B, 18% à Classe C e 2% à Classe E29.

Segundo dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, 32,1 milhões de brasileiros,

28 ALMEIDA FILHO, José Carlos de Araújo. Processo eletrônico e te-oria geral do processo eletrônico: a informatização judicial no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 51, “Direito Eletrônico se preocupa com o estudo das questões tecnológicas que interferem no mundo jurí-dico, a informática jurídica irá se preocupar com as ferramentas a serem adaptadas ao Direito.”.

29Cf. notícia colhida na UOL, disponível em: <www.uol.com.br>. Acesso em: 16 de jun. 2008.

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cerca de 21,9% da população acima dos 10 anos de idade, utilizaram a internet no país. Esse número coloca o Brasil como o primeiro país da América Latina e o quinto no mundo no uso da internet. Entretanto, se for comparado o número de internautas em relação à população do país, a colocação do Brasil cai para 62ª posição mundial e a 4ª na América Latina, sendo ultrapassado pela Costa Rica, Guiana Francesa e Uruguai30.

Observa-se, todavia, que uma grande parcela da sociedade, que possui acesso à internet somente a utiliza para jogos, como passatempo, conforme pesquisa realizada pelo Grupo de pesquisas da Universidade Católica de Petrópolis, Direito Eletrônico e Cidadania, registrado no CNPq31.

É primordial despertar uma consciência política na população e fomentar a participação popular na fiscalização da atividade administrativa, por intermédio das escolas. Infelizmente, o ensino no Brasil ainda apresenta-se deficiente, alicerçado em programas de ensino divorciados da realidade, numa formação baseada fundamentalmente na transmissão de conhecimentos por meio de aulas expositivas. Nesse sistema prioriza-se habilidade para decorar a matéria. Daí a formação de alunos sem espírito crítico, incapazes de estabelecer

30A comparação, feita a partir de informações da União Internacional de Telecomunicações (UIT), foi divulgada pela assessoria do Comitê Gestor da Internet no Brasil, um dos parceiros do IBGE na realização da pesquisa. Disponível em: <http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2008/04/14/materia.2008-04-14.7971350745/view>. Acesso em: 14 de jun. 2008.. Acesso em: 14 de jun. 2008.

31 ALMEIDA FILHO, José Carlos de Araújo, op. cit. p. 57.

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correlações entre o que aprendem na sala de aula com o mundo real32.

Não se pode olvidar que o ensino não se limita apenas em informar e proporcionar certo grau de conhecimento. Ensinar a pensar por si próprio de maneira independente, desenvolver a percepção de um senso crítico é condição primordial à formação de cidadãos conscientes de seus direitos e deveres.

Sabe-se que a imensa maioria da população brasileira ainda não possui computador e faz parte do que se convencionou chamar de grupos da “exclusão digital”, portanto urge instituir programas, projetos e atividades visando à universalização do acesso à rede de computadores. Exemplos dessa natureza é o Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações33, que destina recursos para levar aos hipossuficientes o serviço de telecomunicações, bem como os Planos de Metas34 para a implantação e serviços de redes digitais de informação destinados ao acesso público, nas instituições públicas de ensino profissionalizantes.

Não se pode olvidar, também, que os próprios servidores e administradores públicos ainda não possuem conhecimento técnico adequado para operacionalizar os sistemas eletrônicos, correndo, assim, sério risco de formação de casta dos “iniciados” na área tecnológica. 32 ABDREAS SCHLEICHER. Medir para avançar rápido, com o físico alemão que comanda os rankings de educação da OCDE. Revista Veja, edição 2072, ano 41, nº31, 06 de agosto de 2008, pág. 17.33Instituído pela Lei 9.998, de 17 de agosto de 2000.34Estabelecidos pelo Decreto 3.753 e 3.754, ambos de 19 de fevereiro de

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Infelizmente, em todo processo evolutivo, sempre existem segmentos que não conseguem acompanhá-los. Isso ocorreu com o manuscrito, que evoluiu para a datilografia35 e agora a era digitalizada. O importante é seguir o processo de evolução, com o cuidado de ampliar o acesso dessa nova tecnologia para todos os atores envolvidos.

Obtempere-se, ainda, que o uso intenso de uma ferramenta como o computador pode colocar em risco a saúde dos servidores públicos. Se de um lado os computadores facilitam o trabalho com seu sofisticado sistema de operação, que permite cada dia realizar um número crescente de tarefas, sem a necessidade de mudança de atividade, local ou posição, de outro lado, essa mesma facilidade limita o uso de só alguns sistemas musculares do corpo humano, mantendo em posição estática a maioria dos outros músculos, o que propicia uma lesão conhecida por LER, ou Lesão do Esforço Repetitivo.

Porém, esse tipo de doença não é exclusivo do uso de computadores; afeta, também, qualquer atividade repetitiva e contínua, tais como: tocar piano, dirigir caminhões, fazer crochê, digitação, etc.36.

Todavia, esse risco pode ser reduzido mediante o desenvolvimento de projetos e adoção de medidas como a adaptação ou ajustamento do meio ambiente de trabalho às

35 Existiam à época severas resistências à utilização da máquina de datilografia, sob a assertiva da facilidade em adulteração.36 A Digitação intensiva é uma das causas mais comuns da incidência da LER e tem contribuído para o aumento de casos de doenças ocupacionais.<http://www.bauru.unesp.br/curso_cipa/4_ doencas_do_trabalho/2_ler.htm>

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características psicofisiológicas ou particularidades do corpo humano, elaborados por profissionais na área de ergonomia ou Engenharia Humana, que estudam os fatores anatômico, fisiológico e psicológico do homem no seu ambiente, procurando estabelecer uma melhor relação entre eles. Existem alternativas de prevenção eficientes, assentadas na educação dos usuários para a prática de ginástica laboral e na aquisição e utilização de equipamentos ergonomicamente adequados.

Outra dificuldade reside no fator de segurança do sistema de processamento eletrônico, na suscetibilidade de fraudes pelos hackers 37 e de especialistas na área de informática.

Pondera-se, contudo, que em qualquer tipo de processo a garantia de segurança nunca é absoluta, nem mesmo o sistema de processamento em papel é seguro. Este é vulnerável à adulteração, destruição em incêndios e alagamentos ou mesmo desaparecimento por furtos.

A via eletrônica tem demonstrado capacidade na tramitação de documentos processuais, como ocorre nos processos judiciais. A infraestrutura de Chaves Públicas e Privadas confere confiabilidade aos documentos eletronicamente produzidos, no aspecto de autenticidade e integridade, mediante a utilização de Chaves Assimétricas e a Criptografia38.

37 Hacker é o termo de origem do inglês usado para designar pessoas que criam e modificam softwares e hardware de computadores.

38 CLEMENTINO, Edilberto Barbosa. Processo judicial eletrônico. Curitiba: Juruá, 2007. p. 96, afirma que: “Criptografia é um conjunto de técnicas que permite tornar incompreensível uma mensagem ou infor-

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Outro recurso utilizado é a Certificação Digital, também conhecida como assinatura digital, meio de autenticação de documentos pelo computador, de qualquer lugar, via internet. O sistema funciona com a utilização de cartão eletrônico (smart card) e de leitor específico para o cartão, que é conectado ao computador. Para usar o sistema e certificar ou assinar documentos, o usuário insere o cartão no aparelho e digita a senha ou passa o polegar sobre o leitor ótico39.

Consoante assevera o Instituto Nacional de Tecnologia da Informação, a assinatura digital “é uma modalidade de assinatura eletrônica, resultada de uma operação matemática que utiliza algoritmos de criptografia assimétrica e permite aferir, com segurança, a origem e a integridade documento40”.

Assevera, ainda, que essa assinatura vincula-se ao documento eletrônico, sendo que qualquer modificação em seu conteúdo torna a assinatura inválida. Dessa forma, essa técnica, além de verificar a autoria do documento, estabelece a sua imutabilidade.

Atualmente há um sistema denominado Gerenciamento de Documentos – GED, que executa o processamento automático de todos os dados no processo eletrônico e a verificação de sua integridade, o que impede a adulteração de qualquer material nele inserido, que segundo o

mação, com observância de normas especiais consignadas em cifra ou num código”.

39Relatório de Prestação de Contas do CNJ. Disponível em: <http://www.cnj.gov.br/images/stories/relatorio_anual.pdf>. Acesso em: 15 de jun. 2008.

40 ALMEIDA FILHO, José Carlos de Araújo, op. cit., p. 174.

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prof. José Carlos de Araújo Almeida Filho foi implantado com sucesso no Tribunal de Alagoas41.

Há premente necessidade de regular a internet devido os crescentes conflitos, com regras claras que coíbam ilícitos e punam os prevaricadores. Contudo, sabe-se dessa dificílima tarefa, sobretudo diante do problema de legitimidade dos Estados na regulamentação e na aplicação das regras e execução das decisões.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo de globalização marcado pela evolução da civilização e dos avanços tecnológico e social acarreta profundas transformações tanto na economia, quanto na sociedade, como no Direito Público. Assim, torna-se necessário um novo repensar da Administração Pública e do Direito Administrativo para atender às crescentes demandas, o que exige uma flexibilidade em sua organização e forma de atuação.

A Administração Pública moderna tem um grande desafio que é impor dinamismo no agir administrativo para poder acompanhar as inovações sociais e responder às demandas de forma eficiente, eficaz e efetiva. Diante desse desafio e da crise do Estado iniciada na década de 1970, a

41 FERNANDES, Ciro Campos Christo. Transformação na gestão de com-pras públicas brasileira. In VIII Congresso Internacional del CLAD sobre a reforma de Estado y de la Administração Pública. Panamá, 28-31, 2003. p. 27.

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Administração Pública reformulou o seu modelo de gestão administrativa, quebrando paradigmas arcaicos, substituindo a tradicional gestão burocrática pela gerencial, baseada em conceitos como flexibilidade, qualidade e inovação.

Nesse novo modelo de gestão gerencial, estabelecido pela Emenda nº 19/98, a proposta é de horizontalização das relações entre o poder público e o cidadão, na busca incondicional da eficiência, em que o controle de resultados é pautado pela qualidade, economicidade, oportunidade e satisfação do interesse público primário do cidadão-usuário.

A Constituição Cidadã de 1988, alicerçada no princípio do Estado Democrático de Direito, tem como fios condutores os princípios da participação popular, da publicidade, da transparência, da moralidade e da eficiência. À luz desses princípios constitucionais, o direcionamento da gestão volta-se para eficiência versus atendimento à satisfação das necessidades da sociedade, com incessante busca pela eficiência substancial, voltada para a realização da justiça como fim que não se pode dispensar na orientação de seus serviços e resultados.

Há uma nova leitura sobre os princípios que regem a Administração Pública. Do reinado absoluto do princípio da legalidade, despontam outros princípios com a mesma grandeza, a exemplo do princípio da eficiência, da participação popular e do controle de todos os atos administrativos. O princípio da eficiência conduz a tônica para alcance dos resultados pretendidos no atuar do gestor público, sem a

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exclusão da observação dos meios legais para consecução desses resultados.

Outra novidade desse novel modelo é a ampliação das relações entre a Administração e o setor privado, com tratativas de colaboração consensual, na qual o Poder Público, ao invés de decidir unilateralmente uma controvérsia administrativa, promove o debate com a sociedade para mediante acordo, exarar o ato administrativo decisório.

A abertura da Administração Pública para a parceria público-privada e para a colaboração consensual na tomada de decisão revela, sem dúvidas, um grande avanço democrático, mas também é um perigoso terreno propício à promiscuidade, que exige uma rigorosa identificação do interesses públicos e privados, frente ao contratualismo voltado para as negociações, transações e acordos entre grandes grupos de poder.

O nó da questão em torno da administração gerencial é dotar a Administração de mecanismos para que a busca da justiça material, por intermédio da eficiência e da colaboração consensual dos setores privados, seja alcançada, sobretudo na metodologia de controle aplicada, para que a descentralização não propicie o desvio de finalidade e a corrupção nas atividades da Administração Pública.

Sobreleva-se de curial importância o controle sobre toda atividade administrativa, com mecanismo de maior vigilância e correção prévia de atos administrativos pela própria Administração, por outros Poderes (chek Balance) ou por qualquer cidadão.

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Neste sentido é que se propõe a implantação na Administração Pública do Processo Administrativo de forma eletrônica ou virtual como instrumento de controle, que possibilitará tanto ao cidadão, ao homem do povo, como também o próprio administrador fiscalizar de forma direta a atividade administrativa.

A atividade administrativa, retratada sob a forma do processo administrativo eletrônico, oportunizará aos administrados verificar se a conduta do gestor atendeu aos requisitos necessários para realização dos fins propostos, bem como servirá para que a própria Administração Pública promova o controle dos atos de seus administradores públicos de forma mais célere e econômica.

Vislumbra-se o Processo Administrativo Eletrônico como um instituto adequado a esta nova forma de gestão, baseada em um novo modelo de relações Administração-cidadão, calcado na informação, transparência e simplificação de acesso. A participação popular na fiscalização da conformação dos atos administrativos é imperativa nesta nova ordem do Estado Democrático de Direito, que exige uma democratização voltada para a abertura, em que o cidadão possa, de fato, influenciar a formação da decisão administrativa.

Observa-se na atualidade que governos tem centrado esforços na facilitação e aprofundamento da participação pública, realizando estudos de forma a tornar mais fácil o acesso às informações estatais e de assegurar aos cidadãos uma atuação mais ativa na formulação e execução de políticas públicas. No âmbito da Organização para a Cooperação

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e Desenvolvimento Econômico - OCDE, diversos estudos têm sido desenvolvidos voltados para orientações de seus países membros quanto à forma como podem ser realizadas ações para viabilizar novas relações governo-cidadão.

Entretanto, constata-se que o modelo adotado pelas instituições públicas, em especial a brasileira, não está sendo capaz de atender à complexidade das demandas, tendo em vista que os sistemas de informações governamentais constituem imenso conjunto de ilhas conectadas por links, sem a devida interação entre os diferentes sistemas. Por essa razão, há necessidade de estabelecer programas e metas para construção de sistemas que conversem com os demais, que possibilitem além da interação de dados, a necessária e salutar interação com o cidadão.

Essa interface da Administração Pública com o cidadão está sendo efetivada graças o advento da internet e das inovações em tecnologia da comunicação, que proporcionam às organizações a possibilidade de migrar seus sistemas de plataformas convencionais para sistemas web.

Sem dúvida o governo eletrônico, conhecido como e-gov ou e-governo, vem despontando no cenário como uma das formas engendradas para atender mais ágil e eficientemente às crescentes e complexas demandas da sociedade, conforme se depreende das pesquisas realizadas sobre o impacto da utilização dessa ferramenta na seara administrativa.

A internet vem se consolidando como um novo meio de organização das empresas, mecanismo de universalização do acesso da população a bens culturais,

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motivo pelos quais os países vêm discutindo a aplicação da TIC na administração Pública.

O Brasil é relativamente bem visto no ranking de “e-gov”, em razão de alguns casos de sucesso, como a Comprasnet, Imposto de Renda pela internet e Eleições Eletrônicas. O desempenho brasileiro pode ser melhorado ainda mais com a implantação do Processo Administrativo Eletrônico.

Ademais, o Poder Executivo não pode ficar na contra mão de direção, devendo seguir o mesmo rumo perseguido pelo Poder Judiciário nestes últimos anos, com a modernização de sua estrutura administrativa, por meio da utilização dessa tecnologia.

Pelas linhas vetoriais expostas, conclui-se que o Processo Administrativo Eletrônico é um importante instrumento de controle, de eficiência, de direito-garantia individual e da participação democrática do cidadão frente à Administração Pública.

A implantação do processo administrativo eletrônico encontra porto seguro e guarida no Direito Fundamental à boa Administração Pública, que está alicerçada nos princípios constitucionais da eficiência, publicidade, moralidade, exigência do novo paradigma do Estado Democrático de Direito.

Não se pode olvidar do grande desafio que é desenvolver no cidadão, no homem do povo, a capacidade e interesse em uma participação ativa das formulações e aplicações das políticas públicas, por meio dessas novas

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tecnológicas de informação, o que exige a disponibilidade de informações acessíveis e compreensíveis, bem como o desenvolvimento de uma política de inclusão digital, ou seja, a facilitação de acesso para essas novas tecnologias e uma forte campanha educacional para seu manuseio.

Imperioso, também, romper duas barreiras: a dificuldade de integração de sistemas/processos existentes em distintas unidades das instituições públicas e privadas parceiras e um intenso trabalho na cultura do funcionalismo público para esse novo tempo. O administrador público deve combater a tendência de resistir às mudanças e soltar as amarras que o prendem ao cais, partindo pelo mar da inovação em busca de novos instrumentos capazes de acompanhar a dinâmica social e melhor atender às demandas da sociedade, que cobra uma Administração Pública cada vez mais eficiente, eficaz e efetiva.

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Uma Constituição para Israel

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UMA CONSTITUIÇÃO PARA ISRAEL

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“Sem uma Constituição formal não há limites à supremacia legislativa, e a supremacia dos direitos humanos existirá tão-somente quando houver auto-contenção da maioria. A Constituição, entretanto, impõe limitações legais na legislatura e garante que os direitos humanos sejam protegidos não apenas por meio da auto-contenção da maioria, mas também pelo controle constitucional sobre a maioria.” Aharon Barak , Presidente da Suprema Corte de Israel, 1995-2006, citado neste artigo por Tatiana Waisberg.

Introdução. 1 Elementos de construção do pensamento e da práxis constitucional israelense. 2 Leis básicas. 3 A Procuradoria Geral de Israel. 4 Fontes de direito em Israel. 5 Argumentos contrários e favoráveis à constituição. 5.1 Argumentos contrários. 5.2 Argumentos favoráveis. 6 Propostas de constituição. 7 Constituicionalismo legislativo. Considerações finais. Bibliografia.

INTRODUÇÃO

Qualquer discussão sobre a questão constitucional de Israel deve levar em consideração as particularidades

• Procurador do Estado do Acre. Mestrando em Direito das Relações Internacionais da UniCEUB.

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que a distingue das demais nações. É um estado unitário, “considerado uma democracia parlamentar”, com base no “bem-estar social”1 e abrigava em 2006 uma população de sete milhões de habitantes2, sendo 76,2 % de judeus, 19,5% de árabes (17,8% muçulmanos, 1,7% de cristãos), 0,4% de outros cristãos, 3,9% de drusos, circasianos e camadas de menor potencial demográfico. Uma de suas principais características de perfil sociológico repousa na existência de um exacerbado contato da religião com a política. O seu arcabouço constitucional é de natureza material e está sustentado em leis de natureza ordinária e de configuração especial – as leis básicas – aprovadas pelo Parlamento unicameral Knesset, e, também, na jurisprudência dos tribunais. Revela a ausência de uma carta de direitos, e de mecanismos que garantam à legislação aprovada a submissão a mecanismos de revisão judicial, especificamente, o controle de constitucionalidade, conforme ver-se-á a seguir. Ao lado do Reino Unido e da Nova Zelândia não dispõe de um diploma formal nos moldes kelsenianos3, mas sim de uma legislação produzida sucessivamente pelo parlamento, desde sua criação, aparentemente esparsa4, num ambiente de

1 SHAPIRA, Amos. Why Israel has no Constitution, but should, and likely will, have one. Saint Louis University Law Journal, [S.l.], v. 37, n. 2, p. 284, Winter 1993.

2 HECHOS de Israel. Jerusalém: Centro de Información de Israel, 2006. p. 61, 109.

3 Cf. MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 446-467.

4 Cf. GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito constitucional com-parado. Porto Alegre: S. A. Fabris, 2006. p. 222.

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distinção entre as leis comuns e as leis denominadas básicas, onde essas últimas foram idealizadas para constituir o corpo de uma futura constituição. Atualmente os debates a respeito da necessidade, ou não, de uma constituição formal nesses países têm ocorrido em fóruns privilegiados onde o ocidente jurídico jamais imaginaria que o assunto fosse questionado com veemência, tal como vem ocorrendo, por exemplo, no Reino Unido. A mídia internacional tem dado destaque ao fato de que naquele país, principalmente durante as campanhas eleitorais, a reforma constitucional tem sido recorrentemente um instrumento de apoio utilizado por políticos ingleses, candidatos ao cargo de Primeiro-Ministro, como Neil Kinnock5 - derrotado por John Major- e, em depois por Tony Blair. Apoiado por este último, Gordon Brown, então Ministro da Economia e candidato à chefia de governo, declarou à imprensa que “se empenharia para que o Reino Unido tivesse uma constituição escrita, que pontuasse os princípios fundamentais do Estado, estabelecesse os limites dos poderes do governo e do Parlamento, ampliasse a autoridade da Câmara dos Comuns em sua fiscalização do Executivo” e que expusesse “claramente os direitos e responsabilidades dos cidadãos”, tornando universal o conhecimento das normas constitucionais, até então matéria

5 MAZA, Celia. ?Necesita Reino Unido uma Constitución?. El Confi-dencial, Londres, 31 mai. 2009. Disponível em: <http://www.elconfidn-cial.com/cache/2009/05/31/mundo_36_necesita_reino_unido_constitu-cion...>. Acesso em: 17 jun. 2009.

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restrita aos operadores do direito, estudiosos e autoridades6.

No presente ano de 2009, David Cameron, adversário político de Gordon e pretendente ao mesmo cargo, divulgou uma série de medidas reformadoras que pretende implantar, caso eleito, tais como:

Redução da quantidade de deputados e ampliação da liberdade de seus votos, limitação do mandato parlamentar, criação de instrumentos de iniciativa popular na elaboração de leis no Parlamento, ampliação da autonomia dos governos locais, além de mudanças na legislação eleitoral e na Câmara dos Lordes7.

A academia inglesa8, através de um de seus representantes, manifestou opinião pessoal a respeito da necessidade urgente de o Reino Unido ter uma constituição escrita e ofereceu sugestões para “os candidatos de sua circunscrição parlamentar”9: “reforma eleitoral”, “prazos

6 BROWN anuncia candidatura para primeiro-ministro britânico. Disponí-vel em: <http://www.lustosa.net/ noticias/100417.php.>. Acesso em: 15 set. 2008.

7 MAZA, op. cit.8 Timothy Garton Ash, catedrático de Estudos Europeus na Universida-

de de Oxford e professor titular da Instituição Hoover da Universidade de Stanford. ASH, Timothy Garton. A Grã-Bretanha precisa de uma constituição? In: SUPREMO Tribunal Federal em Debate, [S.l], 30 maio 2009. Disponível em: <http:// supremoemdebate.blogspot.com/2009/05/gra-bretanha-precisa-de-uma.html>. Acesso em: 17 jun. 2009.

9 Ash comenta o fato da possibilidade de qualquer cidadão britânico, tal qual o norte-americano ou alemão, poder levar em seu bolso um exem-plar das suas Constituições, em vez de tão-somente conhecer alguns dispositivos de memória ou de maneira fragmentada, caso não seja um especialista. Ibidem.

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fixos de legislatura” (limitação a uma recondução ao cargo de primeiro-ministro, etc.), “comitês parlamentares fortes” (eleição para o cargo de presidente do comitê, etc.), “parlamentares de dedicação plena e melhor remunerados”, “reforma da Câmara dos Lordes” (mas é contra a eleição direta vinculada ao simples argumento de que isso constitui um processo de escolha democrática, por achá-lo insuficiente), “governos locais democráticos mais fortes” (combater a excessiva centralização), “cautela no sistema geral de base de dados” (redução da invasão de privacidade do cidadão e no “cadastramento” de DNA, etc.) e “carta de direitos” (uma codificação britânica explícita dos direitos de seus cidadãos). A matéria nunca como antes esteve tão em evidência na pauta das discussões políticas daquele país, onde se supunha pacificado esse tipo de aspiração democrática continental. Em Israel as agendas política, jurídica, religiosa e popular, desde sua independência, sempre inseriram discussões a respeito da oportunidade, conveniência ou não, de o país consagrar um texto fundamental corporificado de uma maneira geral nos moldes ocidentais. O presente artigo pretende expor alguns fatos relevantes que possam auxiliar o entendimento da complexa teia de relações que orbitam em torno do núcleo da própria existência do Estado de Israel, e como isso repercute nas suas instituições e no destino de seu povo, visando um breve estudo sobre o problema constitucional.

Algumas indagações de caráter geral podem ser consideradas pertinentes: Israel possui ou não uma Constituição?

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Existiu ou existe uma Assembléia Constituinte? Quem deseja uma Constituição para Israel? Que tipo de motivação instiga os debates constitucionais? Qual o Direito vigente em Israel? Quais os principais argumentos contrários e favoráveis a uma constituição israelense? Qual o papel da religião na discussão constitucional? Existe permeabilidade à influência da doutrina estrangeira nas relações institucionais internas? Quais são os atores públicos e privados que devem dialogar na construção de um regime constitucional pleno em Israel? Que tipo de conversa sobre o problema é entabulado pelas principais instituições do Estado? As respostas aqui apresentadas ou sugeridas representam apenas uma visão panorâmica, que pode ser aprofundada através de uma detida análise da bibliografia consultada e disponível sobre o assunto.

1 ELEMENTOS DE CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO E DA PRÁxIS CONSTITUCIONAL ISRAELENSE

Para uma perfeita compreensão do tema é necessário que se conheça um pouco da História de Israel e seu povo, que acumula fatores intimamente associados à forma de organização política e social dessa nação sobrevivente. As notórias crônicas judaicas registram que, expulsos da Palestina pelos romanos em 73 d.C., os judeus foram, inicialmente, obrigados a fugir para diversos países da Ásia e da Europa, e mais tarde para a África e América. Desde

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essa época a comunidade internacional judaica aspirou pela restauração de um Estado essencialmente Judeu e pelo retorno de seu povo à Palestina. O jornalista e advogado judeu Theodor Herzl, austro-húngaro, foi o teórico e criador do movimento sionista10 (com seus ramos religioso e socialista) cuja base ideológica está impressa em seu livro “Der Judenstaat” (O Estado Judeu), publicado em 1895, onde sugeria a “criação de um estado exclusivamente judeu na Argentina ou na Palestina”. A idéia-força da obra era a formação de um congresso sionista, integrado exclusivamente por judeus, como a melhor opção de

10 Sionismo (Retorno a Sion - Jerusalém e Terra de Israel -, Terra Pro-metida) é o movimento político judaico surgido na Europa, em 1897, que tinha como objetivo “a criação e o estabelecimento de um Estado nacional Judeu soberano na Palestina”. Encyclopedia Britannica. Na realidade a idéia de retorno a Sion (Sião) é bem mais antiga. Qualquer estudo bíblico aponta já o Salmo Bíblico 137:1 e 5, primeira parte, ex-pressando esse sentimento nostálgico: “Junto aos rios da Babilônia nos assentamos e choramos, lembrando-nos de Sião [...] Se eu me esquecer de ti, ó Jerusalém [...]”. Depois dessa época e antes de Herzl, alguns rabinos e estudiosos clamaram pela suspensão do “exílio perpétuo a que se viam submetidos os judeus” e até mesmo pelo estabelecimento de uma república judia. Especial destaque merece na modernidade Moses Mendelssohn (1729-1786), que pugnou pelo reconhecimento de direitos civis aos cidadãos alemães de origem judaica e pela “aproximação e integração de cristãos e judeus na sociedade”. Ao analisar uma proposta de um Estado Judeu, já na Palestina, em 1770, manifestou-se em de-sacordo em função de três motivos: “tal Estado somente vingaria após uma guerra na Europa contra tal proposta”; “debaixo de ancestral servi-dão, não estariam dotados da necessária coragem para levar a cabo uma aventura daquele porte”, e “pobres, não teriam suporte financeiro para empreender a tarefa”. Teodor Herzl aproveitou essa análise e a aspiração nacional e, entre outras providências, criou a Companhia Judia, institui-ção financeira para “administrar bens de imigrantes e planejar a futura economia” do país imaginado. PEREDNIK, Gustavo D. Las raíces del sionismo y Moisés Mendelssohn. El Catoblepas, [S.l.], n. 26, p. 5, abr. 2004. Disponível em: <http://www.nodulo.org/ec/2004/ n026p05.htm>. Acesso em: 15 jun. 2009.

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se conseguir a criação de um estado judeu independente, que reuniria os judeus dispersos pelo mundo e resolveria o antigo problema do anti-semitismo11. Durante a Primeira Guerra Mundial, em 1917, a Palestina estava ocupada e dominada pelo império turco-otomano (1516-1917). Em dois de novembro daquele ano, o Secretário britânico dos Assuntos Estrangeiros, Sir Arthur James Balfour em correspondência ao Lorde Rothschild, Presidente da Federação Sionista Britânica, manifestou a intenção e a “simpatia” do Governo Britânico de criar facilidades à comunidade judaica para povoamento da Palestina e estabelecimento do Estado de Israel – um “lar nacional para o povo judeu” - em caso de uma provável vitória dos ingleses sobre os turco-otomanos, com “a recomendação expressa de preservação e defesa dos direitos civis e religiosos dos não-judeus já residentes naquele território” e, também, dos direitos e do status político garantido aos judeus em outros países. Essa manifestação é conhecida como Declaração de Balfour, ratificada pela Itália, França e Estados Unidos12, e representaria o lastro jurídico para futuros documentos da Liga das Nações e das Nações Unidas.

11 HERZL, Theodor. Sionismo. In: ORGANIZAÇÃO SIONISTA MUN-DIAL. Hagshama Brasil. Rio de Janeiro, [2009]. Disponível em: <http://www.hagshama.com.br/sionismo/herzl.html>. Acesso em: 23 mar. 2009.

12 ISRAEL. Ministry of Foreign Affairs. ISRAEL. Ministry of Foreign Affairs. The Balfour Declaration No-vember 2, 1917. Jerusalém, 2008. Disponível em: <http://www.mfa.gov.il/MFA/Peace+Process/Guide+to+the+Peace+Process/The+Balfour+ Declaration.htm>. Acesso em: 23 mar. 2009.

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Conquistada a Palestina pelos ingleses (1917-1947), os vencedores perceberam que qualquer sistema legal que viesse a ser adotado na região deveria, obrigatoriamente, “levar em consideração as normas jurídicas em vigor durante a ocupação otomana”, que deveriam ser agregadas às leis britânicas que iriam viger no mandato civil13 outorgado à Grã-Bretanha pela Liga das Nações. O Mandato entrou em vigor, de fato, em 1922 e durou até 1948, com a independência e o estabelecimento do Estado de Israel. Ainda em 1920, por autorização do Mandato, às comunidades árabes e judias foi-lhes concedido o direito de administrarem seus assuntos internos, manejado imediatamente pela judia, com o propósito de instalar uma equipe de governo própria, através de um Conselho Nacional (Assembléia dos Eleitos) de natureza política. Articulada a comunidade (criação de cidades e kibutzim14), a partir de financiamento judeu local e internacional foram estruturados, e postos em atividade “serviços de saúde, educacionais, sociais e religiosos”15. Assim, em 1922, foi editada a principal norma jurídica do Mandato Britânico16 para a Palestina: o King’s Order in Counsel ou a Disposição (Ordem) do Rei e seu Conselho, por suas características considerada uma “mini-constituição”,

13 Território do Oriente Médio, com status de território sob mandato, for-mado pelo hoje Estado de Israel, a Palestina e Jordânia, que, em tese, deveriam ser preparados para a independência.

14 Plural de kibutz, as fazendas coletivas de inspiração marxista.15 FOREIGN domination: facts about Israel. Jerusalém: Keter Press, 2008.

p. 27.16 Em 1922 é criada a Agência Judia preposta da comunidade judia nas rela-

ções com o Mandato Britânico, governos e organizações internacionais.

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tratando da convivência das leis otomanas e britânicas, desde que as primeiras não se contrapusessem às últimas e do preenchimento das lacunas da lei otomana com dispositivos britânicos. Esclarecia como administrar o mandato britânico proveniente da autoridade emanada da Liga das Nações e propunha a eleição de representantes judeus e árabes junto ao mandato17. Na sequência, com a independência de Israel, o Conselho Temporário de Estado decretou que as leis britânicas – com as leis otomanas não tornadas nulas - pequenas exceções à parte, seriam incorporadas ao mundo jurídico israelense18. O decreto denominado “Leis e Administração” (Manifesto) estabeleceu que permaneceriam em vigor as leis promulgadas antes da Declaração de Independência de 1948, desde que não conflitassem com os princípios nela inseridos e nem fossem incompatíveis com a futura legislação aprovada pelo Knesset19, o Parlamento de Israel. O Manifesto distingue-se do King’s Order por não registrar a forma de administração do novo Estado, que deveria ser disposta pela futura constituição.

17 BEN-TASGAL, Gabriel. Estructura política de Israel: la base legal. Israeli, 22 Oct. 2008. Disponível em: <http://www.guy-sen.com/es/print.php?sid=8280>. Acesso em: 30 maio 2009.

18 BEN-TASGAL, Gabriel. La base legal em Israel: um país sin constitución. Disponível em: <http://www.wzo.org.il/es/recursos/print.asp?id=1086>. Acesso em: 22 maio 2009.

19 ISRAEL. Ministry of Foreign Affairs. El Estado: la ley del país. Jerusalém, [2009]. Disponível em: <http://www.mfa.g o v. i l / M FA E S / F a c t s % 2 0 A b o u t % 2 0 I s r a e l / E L % 2 0 E S TA -DO-%20La%20ley%20del%20 pas>. Acesso em: 03 abr. 2008.

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Para esse problema logo foi encontrada uma solução: a edição de mais uma “mini-constituição”, denominada “Ordenanças sobre a Organização do Governo e a Lei 1948”, em 19 de maio de 1948 e que adotou em seu corpo, também as disposições contidas no “Manifesto”. Nelas estão delineadas e abordadas temas como, por exemplo, o governo, as leis, o sistema e cortes judiciais, as forças armadas, o orçamento, os impostos, etc. Pelas razões expostas, a legislação nacional de Israel que compõe o seu sistema jurídico20 possui como característica notável a convivência e interação de diversos diplomas e jurisprudência independente21, principalmente a partir de 1948. Deve ser levada em conta, também, a Resolução 181. O estabelecimento do Estado de Israel, tecnicamente, foi precedido por essa Resolução22 do Conselho de Segurança da ONU, que aprovada, sob a presidência do chanceler brasileiro

20 Classificado por René David como de natureza mista: common Law e di-reito romano-germânico. DAVID, René. 2002 apud WAISBERG, Tatiana. Notas sobre o direito constitucional israelense: a revolução constitucional e a Constituição escrita do Estado de Israel. Revista de Direito Constitu-cional e Internacional, São Paulo, ano 16, n. 63, p. 325. abr./jun. 2008.

21 As leis otomanas e britânicas vigeram plenamen-te - as primeiras até 1917, e estas últimas, entre 1918-1948.

22 Ao dispor sobre a transferência do Poder do Mandato Britânico para o Conselho Provisório Judaico, encarregado de elaborar o diploma constitucional, foi elevada por alguns à “categoria de poder cons-tituinte originário do novo Estado”. WAISBERG, op. cit., p. 326.

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Oswaldo Aranha23, e intitulada “Plano de Partilha com União Econômica”, de 29 de novembro de 194724, conforme o seu texto, buscava uma distribuição proporcional do território liberado às populações árabes e judias e idealizava entre elas uma fraterna cooperação. Legitimados, os judeus criaram a Secretaria Zraj Varhaftil, como instrumento preparatório do processo de redação de uma Constituição para o futuro Estado de Israel, que foi adotada com o nome de seu presidente25, mas que não logrou êxito. A idéia de uma constituição escrita foi registrada na própria Declaração de Independência de 14 de maio de

23 Oswaldo Aranha é nome de uma das principais ruas de Tel-Aviv e de um centro cultural onde estão guardados parte do acervo bi-bliográfico de propriedade do chanceler, além do martelo usado para anunciar o veredito na ONU, no kibutz Bror Chail. PINSKY, Luciana. Herói de uma nação: aventuras na história: Isra-el – 60 anos da criação de um Estado. São Paulo: [s.n.], 2007. p. 24.

24 Em síntese, estabelecia prazos e condições a serem observadas: “deso-cupação pelos ingleses do litoral na área reservada ao povo judeu a fim de criar facilidades de desembarque para os imigrantes (até 01/02/1948); o poder do Mandato Britânico seria transmitido aos recém-criados Con-selhos Provisórios dos Estados Judeu e Árabe, sob a supervisão da ONU (até 01/04/1948); desocupação definitiva da Palestina pelos ingleses (até 01/08/1948); e transformação dos Conselhos Provisórios em go-vernos autônomos e independentes (até 01/10/1948)”. Discordando da criação do Estado de Israel, em 14 de maio de 1948, Iraque, Jordânia, Egito e Síria atacaram Israel. PINSKY, op. cit., p. 23.

25 CAZAÑA, Carlos Javier Soto. ?Israel, um Estado sin constitución? Disponível em: <http://www.liberlex.com/archivos/israel-constitucion.pdf>. Acesso em: 19 maio 2009.

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194826, documento matriz dos fundamentos morais que norteiam os rumos do Estado de Israel e fonte de autoridade: “Declaramos [...] de conformidade com a Constituição que será adotada pela Assembléia Constituinte eleita, mais tardar a primeiro de outubro de 1948 [...]”. Porém, mercê do ambiente de belicosidade com os árabes, a Assembléia Constituinte somente veio a ser instalada em fevereiro de 1949. Essa Assembléia aprovou a “Lei de Transição 1949”, conhecida como “pequena constituição”, denominando de “Knesset”, o Poder Legislativo (Parlamento) Israelense, e o estabeleceu como o “Primeiro Knesset” (Primeira Knesset), de uma série identificada por números ordinais, conforme a legislatura sequencial. Para o Knesset27, a Declaração “não é um documento ordinário legal nem tampouco uma lei”, mas reveste-se de validade legal em

26 A Declaração constitui o “ideário nacional e diploma básico do proces-so de construção da Constituição de Israel”, registrando os motivos cir-cunstanciais da restauração da Terra de Israel (Eretz Yisrael) com base na democracia e na identidade judaica, respeitados os princípios de paz, liberdade e justiça, na busca do bem comum através de uma relação har-mônica e cooperativa com os vizinhos árabes. SISTEMA electoral. Dis-ponível em: <http://www.bibliojuridica.org/libros/2/533/5.pdf>. Acesso em: 28 maio 2009.

27 Knesset tem sua raiz em kinus, que significa “reunião”. O seu nome é originário do hebraico Anshe Knesset HaGedolah, “A Grande Assem-bléia”, composta por 120 rabinos que governou o destino dos judeus, entre os marcos dos profetas e do alvorecer do judaísmo rabínico, por aproximadamente 200 anos. Simboliza o “renascer da soberania judaica no território de Israel”. Disponível em: <http://www.oragoo.net/0-que-e-o-knesset/>. Acesso em: 27 fev. 2009.

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face das recorrentes interpretações normativas de algumas de suas seções por parte da Suprema Corte de Israel28. As tratativas para elaboração de uma constituição escrita para Israel receberam impulso notável com a conhecida Resolução Harari29, uma espécie de proposta alternativa à elaboração imediata de um texto unitário e escrito. Aprovada pela Primeira Knesset, nela constava a determinaçãoà Secretaria de Constituição, Direito e Justiça para que elaborasse uma proposta de constituição para Israel, configurada por grandes “artigos temáticos” a serem denominados de “leis básicas”, que ao final dos trabalhos da Secretaria, após submetidos ao Knesset para aprovação, deveriam ser reunidos para formar a Constituição do Estado de Israel. A Resolução, cautelosamente, omitiu pontos importantes da discussão constitucional: “disposição que dificultasse ou impedisse emendas à lei (no caso Leis Básicas), por exemplo, maioria absoluta ou mais restrita do voto parlamentar; supremacia (não estabelece uma distinção hierárquica entre lei básica e lei comum); controle de constitucionalidade (poder de os tribunais decidirem a respeito de leis comuns incompatíveis com as leis básicas)”, algumas das principais garantias inseridas em uma constituiçãodemocrática30.

28 ISRAEL. The Proclamation of Independence. Jerusalém, [2009]. Dis-ponível em: <http://www.knesset.gov.il/ lexicon/eng/megilat_eng.htm>. Acesso em: 28 maio 2009.

29 Deputado Izahar Harari, integrante do Primeiro Knesset.30 KAHANA, Tsvi; GOOD, Mathew. Human rights in Israel: a brief

overview. [S.l.], May 2008. Disponível em: <http://www.queensu.ca/csd/documents/FINAL_08.5.21_Kahana_Good_israelpaper-1.pdf>. Acesso em: 14 jun. 2009.

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Na realidade essa Secretaria seria investida de poderes semelhantes a uma Assembléia Constituinte até que se aprovassem as leis básicas julgadas necessárias ao país. Uma vez que a Primeira Knesset não conseguiu cumprir o disposto na Resolução com esse desenho, vem ocorrendo a votação gradual de leis básicas, pelas diversas Knesset no exercício de seu duplo papel – poder constituinte e poder legislativo - à espera de um momento político mais propício para a sua unificação31.

2 LEIS BÁSICAS32

Nos termos do atípico processo legislativo israelense, através da Resolução Harari33 foi delegado ao Knesset o “poder constituinte” para editar leis denominadas de “Leis Básicas” relacionadas aos temas nacionais relevantes que orientassem constitucionalmente o Estado de Israel,

31 BEN-TASGAL, Gabriel. La base legal em Israel: um país sin constitución. Disponível em: <http://www.wzo. org.il/es/re-

cursos/print.asp?id=1086>. Acesso em: 22 maio 2009. 32 Cf. Wikipédia, a expressão “Lei Básica” pode ser utilizada com a

intenção de substituir o termo “Constituição”, no sentido de que “é uma medida temporária, mas necessária”, sem a formalidade que caracteriza uma constituição, ou seja, configura uma lei com efei-tos e poderes de uma constituição, como, por exemplo, a Lei Funda-mental da Alemanha, que criou condições para a futura reunifica-ção de suas parcelas ocidental e oriental. Disponível em: < http://en.wikipedia.org/wiki/Basic_law>. Acesso em: 13 maio 2009.

33 Aprovada pelo Knesset em 13 de junho de 1950.

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intencionalmente estruturadas em forma de capítulos que deveriam ser reunidos e compor, no futuro, o corpo material da Constituição Israelense, sendo aquelas consideradas suas parciais precursoras.

A doutrina ressalta que não há, porém, qualquer previsão a respeito do mecanismo que permitirá a reunião das diversas leis no corpo do documento único quando o processo de produção estiver concluído, como por exemplo, se através de referendo ou outro tipo consulta popular. Até 2008 foram promulgadas onze Leis Básicas34 que abrangem princípios básicos para o estabelecimento da lei suprema do país. São elas: O Knesset (O Parlamento Israelense) (1958); As Terras Públicas (1960); O Presidente do Estado (1964); O Governo (1968, revisada em 1992 e 2001); A Economia do Estado (1975); As Forças de Defesa de Israel (1976); Jerusalém – A Capital de Israel (1980); O Judiciário (1984); O Controlador do Estado (O Tribunal de Contas) (1988); A Dignidade Humana e a Liberdade (1992); e Liberdade Profissional ou de Ocupação (1992, revisada em 1994). Sob uma abordagem sintética, são elas: a) Lei Básica: O Knesset - aprovada pela Terceira Knesset, conceitua a instituição como a câmara de

34 As informações sobre as Leis Básicas a seguir estão disponíveis em: LEIS básicas: a actual legislação básica: resumo. <http://64.233.179.104/translate_c?hl=pt-BR&langpair=en%7Cpt&u=http://www.knesset>. Acesso em: 28 ago. 2008 e TASGAL, Gabriel Ben. La base legal em Israel: um país sin constitución. Disponível em: <http://www.wzo.org.il/es/recursos/print.asp?id=1086>. Acesso em: 22 maio 2009.

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representantes do Estado de Israel, de natureza una, a ser composta por 120 membros, eleitos para mandatos de quatro anos, cuja sede deve estar situada em Jerusalém, apesar de não estabelecer especificamente o poder e a autoridade do Parlamento. Dispõe sobre os critérios de elegibilidade e imunidade de seus integrantes. Destaca, primordialmente, entre outras, a sua competência para legislar e revisar as leis, a par de ter complementada sua atuação na formação do governo, participar nas decisões de natureza política, exercer fiscalização das ações do executivo, escolher o Controlador do Estado, e eleger o Presidente de Israel, para um mandato de sete anos.

b) Lei Básica: As Terras Públicas (ou Terras de Israel) - aprovada pela Quarta Knesset, trata das áreas de propriedades do Estado (90 % do território) e foi baseada nas raízes tradicionais de relacionamento do povo israelense com a sua terra (Eretz Yisrael), impedindo qualquer tipo de transferência de domínio e posse, exceto as transações autorizadas por lei.

c) Lei Básica: O Presidente do Estado - aprovada pela Quinta Knesset, é na realidade uma reunião de leis ordinárias sobre o assunto, dispondo sobre as suas funções, competência e poderes presidenciais, após ter sido eleito pelo Knesset.

d) Lei Básica: O Governo - aprovada inicialmente pela Sexta Knesset e modificada pelas Décima-Segunda e Décima-quinta Knesset, estabelece que o Poder Executivo é o

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Governo, com sede em Jerusalém, e nas alterações restaura35 e revoga, respectivamente, a eleição do Primeiro-Ministro via eleição direta. Nesse sistema o Parlamento delega o poder ao Governo, que o exerce com a responsabilidade de cada Ministro submeter-se ao Primeiro-Ministro, cargo que não pode ser exercido por qualquer um cidadão. A lei ainda dispõe sobre as atribuições dos ministros e do Primeiro-Ministro. Só pode ser modificada pela maioria de integrantes do Knesset.

e) Lei Básica: A Economia do Estado - aprovada pela Oitava Knesset, trata do orçamento do Estado e da regra fundamental36 de que quaisquer impostos, taxas, empréstimos obrigatórios, somente podem ser estabelecidos ou alterados mediante lei. O Ministro da Economia submete relatório anual ao Knesset para efeito de controle, além daquele exercido pelo Controlador do Estado (semelhante a um Tribunal de Contas).

f) Lei Básica: As Forças de Defesa de Israel - aprovada pela Oitava Knesset, estabelece que o Exército, subordinado à autoridade do Governo, em especial ao Ministro da Defesa, é a única Força Armada de Israel, admitindo-se a exceção de criação de força suplementar criada através de lei.

g) Lei Básica: Jerusalém - a Capital de Israel, aprovada pela Nona Knesset, trata da unidade e indivisibilidade de Jerusalém, a Capital do Estado de Israel, e sede da

35 O Presidente e o Primeiro-Ministro eram eleitos, criando um sistema misto (1992-2001), inusitado, alcunhado de “parladencial” (parliaden-tial). SUSSER, Bernard. Toward a constitution for Israel. Saint Louis University Law Journal, [S.l.], v. 37, n. 4, p. 939, Summer 1993.

36 Semelhante ao nosso princípio da reserva legal.

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Presidência do Estado, do Knesset, do Governo e da Suprema Corte de Justiça. Garante a proteção dos lugares sagrados para os adeptos das diversas religiões e, por extensão, do judaísmo, cristianismo e do islamismo. Privilegia a cidade e municipalidade nos aspectos relacionados ao desenvolvimento econômico e bem-estar de seus moradores.

h) Lei Básica: O Judiciário (O Poder Judiciário) - aprovada pela Décima Knesset, dispõe sobre a organização e atribuições do Poder Judiciário Israelense, que inclui tribunais de natureza religiosa, sobre a publicidade dos atos, o ingresso na magistratura (exclusividade de cidadãos israeelenses), a independência dos magistrados e sua inamovibilidade. Proíbe tribunais de exceção. Não há disposição a respeito da autoridade dos tribunais para apreciar a legalidade ou “constitucionalidade” das leis.37

i) Lei Básica: O Controlador do Estado - aprovada pela Décima-segunda Knesset, trata da auditoria do Estado, no sentido amplo, e é o órgão operacional da fiscalização da administração pública possuindo funções semelhantes ao brasileiro Tribunal de Contas da União, porém com maior abrangência e independência38. O Controlador, eleito para apenas um mandato de sete anos, no desempenho de suas atribuições presta contas somente ao Knesset, a quem cabe

37 Essa importante matéria será tratada na futura Lei Básica: Legislação. LEIS básicas: a actual legislação básica: resumo. <http://64.233.179.104/translate_c?hl=pt-BR&langpair=en%7Cpt&u=http://www.knesset>. Acesso em: 28 ago. 2008.

38 Fiscaliza, inclusive, as contas dos partidos políticos.

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escolhê-lo em votação secreta. De acordo com o Ministério de Negócios Estrangeiros de Israel, na realidade o cargo já existia desde 1949, consolidado através de lei ordinária de 1958, e desde 1971 também abrange funções de ombusdman público39, ou seja, está encarregado de receber as reclamações contra os órgãos passíveis de fiscalização do Estado.

j) Lei Básica: A Dignidade Humana e a Liberdade - aprovada pela Décima-segunda Knesset, na realidade contém recortes remanescentes da Lei Básica Direitos Humanos, desfigurada pela oposição dos partidos tradicionais religiosos em face de seu polêmico conteúdo. Tem como propósito explícito a proteção dos direitos humanos e a liberdade, vinculados ao ideal de um Estado democrático e judeu40. Garante o direito à propriedade e o direito de ir e vir, à privacidade e à intimidade. Violações aos direitos somente em situações excepcionais e em virtude de lei compatível com os valores de Israel, promulgada com objetivos corretos e balizada por seus limites suficientes e necessários. Essa lei não pode ser suspensa, alterada ou sujeita a condições por um Regulamento de Emergência, apesar de admitir exceção em estado de emergência declarado. Seus

39 Historicamente, fato notório entre os israelenses e estudiosos do tema, a idéia de “ombusdman” já era conhecida do povo judeu através de Moi-sés, que, no deserto, por sugestão de seu sogro Jethro, designou “homens capazes” para ouvir as necessidades do povo hebreu. (�xodo 18:13-26)

40 Para se ter uma idéia da importância desse epíteto transcrevo: “Isra-el deve ser primeiro judeu, depois democrático”, palavras do Depu-tado David Rotem, do Knesset, em 16 de abril de 2009. KAY, Yehu-KAY, Yehu-dah Lev. Israel Must be Jewish First, Democratic Second. In: ARUTZ Sheva, [S.l.], 12 ago. 2009. Disponível em: <http://www.israelnatio-nalnews.com/News/News.aspx/131851>. Acesso em: 26 jun 2009.

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fundamentos repousam no “valor de ser humano, na santidade da vida humana e no princípio de que todas pessoas são livres”, conforme o disposto na Declaração de Independência de Israel. Incompleta, no amplo campo dos direitos humanos, deixou de tratar, entre outros, do direito à igualdade, às liberdades de religião, expressão, manifestação e associação. A sua importância está ligada à denominada Revolução Constitucional, a ser tratada mais adiante.

k) Lei Básica: Liberdade de Ocupação - aprovada pela Décima-terceira Knesset, revoga a anterior sobre o mesmo tema e observa como princípios básicos os fundamentos da Lei Básica: A Dignidade Humana e a Liberdade – “o valor do ser humano, a santidade da vida humana e o princípio de que todas as pessoas são livres”. Visa garantir aos cidadãos de Israel a liberdade individual de escolher e exercer qualquer profissão, negócio ou ocupação, observados a legislação, a segurança, a saúde pública e os valores de Israel. Essa lei, também, não pode ser suspensa, alterada ou sujeita a condições por um Regulamento de Emergência, e somente poderá ser alterada por outra lei básica aprovada pela maioria dos integrantes do Parlamento. Um notável avanço é a sua disposição no sentido de que, se aprovada lei que com ela conflite, a mais recente somente irá viger por dois anos. Admite como princípio básico de interpretação a Declaração de Independência de Israel, alçando-a a um status constitucional. Revela fragilidade no processo de construção das leis básicas, o fato de que uma lei ordinária ou comum e uma lei básica, para serem aprovadas, demandam tão-somente

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da deliberação da maioria simples dos parlamentares, em que pese, também, a “blindagem” (cláusula de limitação) que confere um status distinto a alguns dos artigos das leis básicas. Esses, conforme a matéria, dependem de 61 deputados para sofrerem modificações, conforme o previsto na Lei Básica: Liberdade de Ocupação. Por envolverem questões religiosas relevantes, pelo menos três leis, originariamente idealizadas para se transformarem em Leis Básicas, não alçaram a esse patamar: Lei do Retorno (1950), Lei de Aquisição de Nacionalidade (1952) e Lei da Educação do Estado (1953)41. Atualmente, na pauta de discussões envolvendo a proposição de novas Leis Básicas estão as intituladas de “Direitos Sociais”, “Liberdade de Expressão e Associação” (Organização) e a mais palpitante delas, “A Legislação”42 (ou o Devido Processo Legal), que visa atribuir uma hierarquia entre as leis comuns ou ordinárias e as leis básicas, conferindo a estas um nível superior àquelas, o que propiciará sua reunião e conversão em corpo de uma constituição formal43. No Knesset, desde maio de 2003, a

41 Disponível em: <mhtml:file://F:Israel%20-%20CONSTITUTION.mht>. Acesso em: 05 fev. 2009.

42 Existe a previsão de que venha conferir “autoridade às cortes para exer-cer a revisão constitucional da legislação” [...] apesar de que, atualmente (1999), de acordo com as leis vigentes, questões desse tipo já são resol-vidas no âmbito do poder judiciário. DORNER, Dalia. Does Israel have a Constitution?. Saint Louis University Law Journal, [S.l.], v. 43, n. 4, p. 1328-1329, Fall 1999.

43 A Suprema Corte de Justiça de Israel, em 1995, ao assumir o poder revi-sional sobre caso concreto de análise de lei aprovada pelo Knesset e que violava lei básica, estabeleceu essa distinção, conferindo superioridade hierárquica a uma lei básica sobre a ordinária. Disponível em: <http://

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Comissão de Constituição, Direito e Justiça44 vem renovando o compromisso da Resolução Hariri de redigir uma proposta de constituição.

3 A PROCURADORIA GERAL DE ISRAEL

Indispensável em qualquer regime democrático, em Israel a Procuradoria Geral é uma instituição de natureza política45, cujas atribuições ainda não integram nenhuma das leis básicas aprovadas46, e a legislação

www.mfa.gov.il/MFAPR/Facts% 20About%20Israel/O%20ESTADO-0A%20Legislao%20Nacional>. Acesso em: 27 mai. 2009.

44 “A maioria dos projetos de lei relativos às Leis Básicas foram apresen-tados ao Knesset pelo Poder Executivo. Somente a Lei: O Knesset o foi pela Comissão, e as Leis: Liberdade Humana e Dignidade, e O Governo (1992), como iniciativas de membros do Knesset.”. ISRAEL. The Knes-The Knes-set. Legislation. [S.l.], 2009. Disponivel em: <http://www.knesset.gov.il/description/eng/eng_work_mel2.htm>. Acesso em: 16 jun. 2009.

45 Não é exceção: “o Ministério Público norte-americano, ainda que tenha suas origens no modelo inglês, se apresenta estruturalmente a respeito de seus integrantes, como um órgão eminentemente político”. Integra o Ministério da Justiça. PAE, José Eduardo Sabo. O Ministério Público na construção do estado democrático de direito. Brasília: Brasília Ju-rídica, 2003. p. 127.

46 Nas constituições brasileiras, o Ministério Público está inserido desde 1934. Em 1967, no capítulo dedicado ao Poder Judiciário; em 1969, naquele dedicado ao Poder Executivo, e em 1988, no capítulo intitulado “Das funções essenciais à Justiça”. Aliás, suas funções muito se asse-melham àquelas do passado do nosso MP, inclusive a de Advogado do Estado. CONSTITUIÇÃO que definiu papel do Ministério Público faz 17 anos hoje. Disponível em: <http://noticias.pgr.mpf.gov.br/noticias-do-site/geral-2006/constituicao-que-defin....> Acesso em: 25 jun. 2009.

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que lhe dá suporte não está muito bem definida47. O Procurador Geral desempenha as funções de

consultor jurídico do governo, do Knesset, e de outras áreas administrativas (a administração direta e indireta submetem-se a sua interpretação vinculante das leis), cabendo-lhe, inclusive, a responsabilidade da elaboração das leis propostas pelo governo e do seu cumprimento após aprovadas. Representa o Estado em ações civis e criminais em que é parte.

Entre outros poderes, está investido da autoridade para propor processos criminais contra o Primeiro Ministro, através de dispositivo da alteração de 1992 da Lei Básica: O Governo. Inexistem critérios para a sua nomeção e a do

Promotor Público. Goza de autonomia relativa ao “acumular poderes quase-judiciais, quase-legislativos e administrativos na esfera política de poder”,

47 O primeiro passo para a sua criação foi dado, na década de 1950, pelo então “Primeiro-Ministro Ben-Gurion (Partido Mapai) numa mano-bra que visava enfraquecer o poder de Pinchas Rosen, então Minis-tro da Justiça, ao criar nesse ministério um escritório do novo órgão”, dotando-o de “relativa autonomia”, visando sua atuação nas “questões de Estado de política (corrupção) e segurança”. Esse fato estabelecia um clima de “conflito interno entre os titulares dos dois órgãos”. Para resolvê-lo, em 1962, foi instituído o Comitê Agranat composto por três juristas e presidido pelo Presidente da Suprema Corte de Justiça, Simon Agranat, estabelecendo a Procuradoria Geral com um ente dotado de “espírito jurídico” e “responsabilidade administrativa”, mas exercendo suas funções no Ministério da Justiça. O Procurador Geral seria nome-ado pelo Governo e Promotor Público (segundo na hierarquia) pelo Mi-nistro da Justiça, que ainda detinha poderes de “dispensar ou limitar a autoridade do Procurador Geral”. BARZILAI, Gad; NACHMIAS, David. Governmental laweryring in the political sphere: advocating the Leviathan. Disponível em: <http://www.questia.com/reader/action/open/98496104>. Acesso em: 25 jun. 2009.

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“nos procedimentos eleitorais, na política municipal”, que é reduzida, entretanto, em matérias relativas à segurança nacional.

A institucionalização do órgão vem sendo sedimentada ao longo do tempo, ao ser-lhe conferida legitimidade em face das ações de reconhecimento e respeito48 encetadas pelos poderes executivo, legislativo e judiciário (em especial por esse último) como resultados de seus contatos de natureza profissional, consolidando a sua neutralidade, em que pese a nomeação de seu titular pelo Poder Executivo e sua integração ao Ministério da Justiça 49. Uma de suas funções mais nobres é o exercício das funções de “Defensor Público” e, também, por isso, é considerado “o guardião do interesse público e do Estado de Direito”50. Depreende-se, portanto, que é inconcebível a construção de um sistema constitucional moderno sem a participação efetiva, preferencialmente independente, de uma entidade nos moldes da Procuradoria Geral.

48 A instituição tem sido prestigiada, por mérito profissional, com a nome-ação de seus procuradores gerais para o cargo de Justices (Ministros) da Suprema Corte de Israel: Aharon Barak, Jaim Cohen, Meir Shamgar e It-zhak Zamir. Disponível em: <http://www.mfa.gov.il/MFAES/Facts%20About%20Israel/El%Asesor%20Juridico>. Acesso em: 22 jun. 2009.

49 BARZILAI; NACHMIAS, op. cit.50 Disponível em: <http://www.mfa.gov.il/MFAES/Facts%20About%20

Israel/El%Asesor%20Juridico>. Acesso em: 22 jun. 2009.

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4 FONTES DO DIREITO EM ISRAEL

Como visto anteriormente, na Palestina, o povo judeu sempre foi submetido ao império da lei, desde as normas otomanas até aquelas de origem britânica, recepcionadas pelo novo sistema israelense independente. Esse sistema é composto pelas leis otomanas e britânicas que não foram anuladas antes da criação do Estado de Israel, em convivência harmônica com as novas disposições legais. Na prática, a ausência de dispositivo sobre determinado tema no ordenamento jurídico israelense era resolvida com o auxílio, primeiro na legislação britânica e, se não encontrada, por último, na fonte otomana51. Na falta de uma constituição completa, o complexo sistema israelense, deparando-se com o problema de se estabelecer a espécie de norma a ser aplicada em cada caso concreto, levou o Knesset a aprovar a Lei Ordinária “Fontes Judiciais (ou do Direito) de 1980”, dispondo sobre “a legislação” – “processo legislativo” - em sua acepção doutrinária, e erigindo-a como a principal fonte do direito em Israel, conhecida de uma maneira geral como “Legislação Primária ou Formal”. A doutrina admite a existência de três grupos de legislação: “a Primária52, a Secundária e a de Emergência”, adotada pelo governo em caso abastecimento e serviços

51 O Knesset, em 1984, aprovou a ruptura total com a legisla-ção otomana, que deixou de ser fonte de direito em Israel.

52 Em caso de conflito entre duas leis primárias, prevale-ce a mais recente, ressalvadas algumas poucas exceções.

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essenciais, bem como na defesa do Estado, e têm o poder de suspender, alterar e modificar, por um período limitado, leis do Parlamento53. Alguns estudiosos como Ben-Tasgal classificam-na em dois tipos: a Primária e a Secundária. Integram a Legislação Primária, as leis aprovadas pelo Knesset, entre elas as Leis Básicas; as leis oriundas do Conselho Temporário do Estado conhecidas como “Ordenanças” e aquelas emanadas durante o Mandato Britânico, não revogadas pelo Manifesto ou leis israelenses posteriores, denominadas “Ordenanças Mandatárias”. A Legislação Secundária abrange os dispositivos emitidos pelas autoridades administrativas do Executivo, através de poderes delegados pelo Parlamento, denominados “Regulamentos”54, considerados como principal fonte da legislção secundária, e os específicos “Mandatos”, emanados pelas Forças Armadas de Israel. Nessa categoria geral ainda estão incluídas as leis e normas editadas pelos “municípios” e pelos conselhos regionais. A liberdade dos temas, porém, fica adstrita à conformidade com as Leis Primárias55.

53 A GUIDE to legal research in research: 3.2.1 legislation: In: GlobalLex. Disponível em: <http://www. nyulawglobal.org/globalex/israel.htam>. Acesso em 04 jun. 2009.

54 Um tipo excepcional de regulamento é o oriundo de delegação pela “Ordenança sobre a Organização do Governo e a Lei 1948” ao Conselho Temporário do Estado, para declarar a existência de estado de emergên-cia em Israel e, em consequência, baixar o “Regulamento de Defesa em situações (horas) de Emergência”. Sua vigência é de três meses, poden-do ser prorrogado, além de ter o poder de mudar a lei, suspender sua vigência; aumentar impostos e taxas.

55 BEN-TASGAL, Gabriel. Estructura política de Israel: la base legal. Israeli, 22 Oct. 2008. Disponível em: <http://www.guysen.com/es/print.php?sid=8280>. Acesso em: 30 maio 2009.

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Além das Leis Primárias e Secundárias, existem outras fontes do direito no ordenamento jurídico em Israel, como, por exemplo, as deliberações do Poder Judiciário, denominadas “jurisprudência”; os “costumes”56 e os “valores morais”. No caso de inexistência de jurisprudência ou de lei, ao magistrado é permitido fundamentar sua decisão segundo “as raízes de liberdade, justiça, retidão e a paz da tradição de Israel”, valores morais inscritos na Declaração de Independência de 194857. Na apreciação das fontes do direito em Israel deve ser levado em consideração o ativismo judicial da Suprema Corte de Israel cujo ponto culminante foi a chamada Revolução Constitucional58, nas palavras de seu próprio Juiz Presidente Aharon Barak:

56 Vale como fonte do direito. Por exemplo, era comum o “pagamento de indenização aos trabalhadores despedidos ou que rescindiam seu con-trato de trabalho voluntariamente, e apesar de a lei não reconhecer tal direito, esse costume adquiriu força de lei e normatividade”, a partir de decisões do Poder Judiciário de Israel. GAVISON, Ruth. Constitu-GAVISON, Ruth. Constitu-tions and Policitical Reconstruction? Israel’s quest for a Constitution. In: ARJOMAND, Saïd Amir (Ed.). Constitutionalism and political re-construction: international comparative social studies. Leiden; Boston: Brill, 2007. p. 84.

57 BEN-TASGAL, op. cit..58 Para Moshe Landau, ex-presidente da Suprema Corte de Isra-

el, o que ocorreu foi a “a adoção de uma Constituição através da via jurisprudencial”. ARANZADI, J. El conflicto poliédrico: el na-cionalismo sionista (XXVI). Un Estado judio e democrático. 27 Ene. 2009. Disponível em: <http://espacioblog.com/espejismo/ post/2009/01/27/el-conflicto-poliedrico>. Acesso em: 01 fev. 2009.

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Em março de 1992, Israel passou por uma Revolução Constitucional. Em março de 1992, duas novas Leis Básicas foram aprovadas: Lei Básica: Liberdade de Ocupação e Lei Básica: Dignidade da Pessoa Humana e sua Liberdade59. Sob essas novas Leis Básicas, uma série de direitos humanos – entre eles, Dignidade, Liberdade, Mobilidade, Privacidade, Propriedade – adquiriram força constitucional acima dos estatutos simples. Esses direitos, em sua maioria, já estavam protegidos, antes da constitucionalização. Enquanto poucos eram protegidos pelo legislador, a maior parte deles era protegido por precedentes legais da Suprema Corte, desenvolvidos por grandes juristas desde o estabelecimento do Estado. A principal diferença gerda por essas Leis Básicas é o reforço do valor normativo desses direitos. Uma simples lei do Knesset, não mais mais poderá infringir esses direitos, a não ser que preencha o requerimento dessas Leis Básicas (“cláusula de limitação”). Assim, nos tornamos uma democracia constitucional60.

59 Em contraposição ao argumento de que o seu texto está adequado para ser transformado em uma Carta de Direitos, o Juiz (Ministro) da Su-prema Corte Dalia Dorner asseverou que “além de incompleta (foram omitidos vários direitos), inexiste consenso nacional a respeito dessa matéria”. DORNER, Dalia. Does Israel have a Constitution?. Saint Lou-is University Law Journal, [S.l.], v. 43, n. 4, p. 1330, Fall 1999. p. 1330.

60 “Com a criação do Estado, e no desaparecimento da influência britânica, prevaleceu em Israel uma estrutura constitucional baseada no modelo de democracia formal. A transformação a respeito de tudo isto se deu em 1992. Com a aprovação das Leis Básicas, tratando dos direitos huma-nos ocorreu uma “revolução constitucional”. As Leis Básicas tratando dos direitos humanos foram alçadas ao plano constitucional, “ao nível supra-regulamentar”. Nós temos realmente princípios constitucionais. A Suprema Corte se vê como competente para exercer as revisões judiciais sobre a constitucionalidade de uma norma regulamentar. A transição de uma democracia formal para uma democracia substantiva não foi com-

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Nos juntamos a grupos de nações iluminadas pela democracia, em que direitos humanos ganharam força constitucional acima das leis simples. Similar aos Estados Unidos, Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão e outros países ocidentais, nós agora temos uma defesa constitucional dos direitos humanos. Nós também temos uma Constituição61 escrita62.

preendida por todos. Muitas e bem formadas pessoas ainda continuam pensando em termos de democracia formal somente. A seu ver, revisão judicial sobre a constitucionalidade de uma norma regulamentar parece infringir a própria democracia. Todavia, ninguém pode esquecer que es-tamos enfrentando um período de transição.” BARAK, Aharon. Demo-cracia em nossos tempos. Disponível em: <http://www.riototal.com.br/comunidade-judaica/juda7d8.htm>. Acesso em: 15 jun. 2009.

61 BARAK, Aharon, 1997 apud WAISBERG, Tatiana. Notas sobre o direi-to constitucional israelense: a revolução constitucional e a Constituição escrita do Estado de Israel. Revista de Direito Constitucional e Inter-nacional, São Paulo, ano 16, n. 63, p. 345. abr./jun. 2008.

62 “Segundo Gavison, a Revolução Constitucional é “uma profecia, ain-da não realizada”. Segundo a Professora da Universidade Hebraica, são várias as condições indispensáveis à recepção de uma Constituição, que ainda não foram evidenciados. Além de ausência de Assembléia Consti-tuinte, Gavison ressalta a desavença interna entre os próprios Ministros da Suprema Corte, fonte de disparidade entre os diferentes entendimen-tos, ora refletindo avanços, ora retrocessos, rumo a aplicação dos dita-mes da Revolução Constitucional. Materialmente, ataca-se a ausência de superioridade absoluta das novas Leis Básicas, que, por força do art. 10 de ambas as Leis Básicas, não possuem efeito retroativo, proibindo a anulação de leis simples, vigentes antes da entrada em vigor das novas Leis Básicas. Ausentes os elementos formais e materiais que compõe a essência da Constituição, a autora avalia que “a grande mudança, não foi a introdução de uma Constituição escrita, mas sim a inserção de um novo modelo de controle de constitucionalidade, com base na interpre-tação da Cláusula de Limitação.” GAVISON, Ruth, 1998 apud WAIS-BERG, op. cit., p. 346.

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Pode-se dizer que

o reconhecimento dado pelas novas Leis Básicas para alguns direitos humanos básicos, a potencial desqualificação de “leis inconstitucionais” pela Suprema Corte63 e a clara manifestação nas novas Leis Básicas do caráter dual de Israel como um Estado Judeu e democrático representa a síntese da “revolução constitucional”64.

As fontes do direito israelense, normas jurídicas legisladas ou não, e aquelas produzidas conforme a sua cultura e tradição, ainda não podem ser estruturadas de maneira a estabelecer entre elas uma hierarquia fixa e definida pois carecem de uma norma suprema e intransponível que as submeta.

63 Para um melhor entendimento do controle de constitucionalidade vi-gente através dos tempos em Israel vejamos: controle difuso de “atos administrativos que derivam do comando legal” (sem interferência dire-ta no poder legislativo); “reconhecimento pela Suprema Corte do limite formal da Lei Básica: o Knesset” (“como poder legislativo e poder cons-tituinte”); modelo Kol ha Am (1953), controle “sobre atos administrati-vos – decretos e portarias do poder Executivo”, envolvendo a liberdade de imprensa; modelo Bergman, quando “pela primeira vez foi cancelada uma lei do Knesset”, e, modelo Banco Mizrahi (1995), ampliando o controle inclusive sobre “leis ordinárias que ferirem leis básicas”. Cf. WAISBERG, op. cit., p. 335-347.

64 HIRSCHL, Ran. The “Constitucional Revolution” and the emergence of a new economic order in Israel. Israel Studies, [S.l.], v. 2, n. 1, p. 136, Spring 1997.

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5 ARGUMENTOS CONTRÁRIOS E FAVORÁVEIS À CONSTITUIÇÃO

A idéia de se concretizar a elaboração e aprovação de uma Constituição para Israel sempre mereceu atenção por parte das classes mais engajadas da nação judaica dispersa pelo mundo. Por se tratar de assunto polêmico gerou categorias de adversários e simpatizantes à causa65. A seguir, podem ser observadas algumas manifestações que se enquadram numa ou noutra corrente.

5.1 ARGUMENTOS CONTRÁRIOS

No alvorecer do novo Estado, com base na coerência, ficou caracterizada que a demora na elaboração de uma constituição se legitimava também numa “anomalia

65 Cabe lembrar que Israel “é uma sociedade diversa com vários grupos sociais que manifestam valores e princípios políticos às vezes incom-patíveis. [...] Essa divisão dificulta um consenso sobre o assunto e opõe entre si alguns grupos: não-judeus versus não judeus; judeus ultra-or-todoxos versus judeus não- religiosos; nacionalistas ou nacionalistas religiosos versus os “pombas ou os amantes da paz”; rico versus pobre; esquerda econômica versus direita econômica; novos imigrantes versus cidadãos veteranos; judeus orientais (sefaraditas) versus judeus oci-dentais (ashkenazitas). LURIE, Guy; CAVARI, Amnon; KENIG, Ofer. Writing a Constitution: a catalyst for bridging gaps in israeli society. In: ANNUAL MEETING FOR THE ASSOCIATION FOR ISRAEL STUDIES, 21., Tucson, 2005. Annals… Disponível em: <http://www. aisisraelstudies.org/2005papers.html>. Acesso em 16 jul. 2009. Tradu-ção nossa.

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democrática”: O Estado de Israel se propunha a ser um estado judeu. Em 1950 viviam em Israel apenas uns 10% dos judeus dispersos pelo mundo, ou seja, uma parcela pouco representativa para discutir a importância de uma constituição, fato que aconselharia aguardar que a maioria estivesse residindo naquele território para, então, ser promulgada uma Constituição66.

Outro fator apontado foi o peso da herança da tradição inglesa – common law - que forjou grande parte dos políticos, dos acadêmicos, dos advogados e juízes israelenses67,

66 Alguma semelhança pode ser identificada com a situação da República Federal da Alemanha, em 1949, logo após o término da grande guerra. Autorizada pelos aliados ocidentais que junto com os russos haviam di-utorizada pelos aliados ocidentais que junto com os russos haviam di-vidido o país em duas nações, “uma Assembléia Constituinte foi encar-regada de redigir uma Lei Fundamental que, ao tempo que dispusesse da autoridade de uma Constituição, encerrasse um caráter provisório”, a fim de que não se frustrasse um possível e almejado processo de reuni-ficação do povo alemão em um só Estado, o que, efetivamente, ocorreu em 1990. EL CONFLICTO poliédrico: el nacionalismo sionista (XXVI). Un Estado judio e democrático. 27 Ene. 2009. Disponível em: <http://espacioblog.com/ espejismo/post/2009/01/27/el-conflicto-poliedrico>. Acesso em: 01 fev. 2009. 1949: Promulgada a Lei Fundamental Alemã. DW-WORLD.DE, [S.l.], 06 maio 2009. Disponível em: <http://www.dw-world.de/dw/article/0,,525432,00.html>. Acesso em: 01 jun. 2009. EL CONFLICTO poliédrico: el nacionalismo sionista (XXVI). Un Es-tado judio e democrático. 27 Ene. 2009. Disponível em: <http://espacio-blog.com/espejismo/ post/2009/01/27/el-conflicto-poliedrico>. Acesso em: 03 maio 2009.

67 A composição original da Suprema Corte de Israel congregava opera-dores do direito, oriundos da Inglaterra e Alemanha sem qualquer vín-culo com os ideais sionistas. SHAFIR, Gershon; PELED, Yoav, 2002, apud PEREIRA, J. A. Teles. De actor secundário a actor principal: O Supremo Tribunal e a “Revolução Constitucional” em Israel. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC, [São Paulo], n. 9, p. 279, jan./jun. 2007.

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assustados com a simples idéia de uma constituição formal desconectada de suas crenças e valores jurídicos, ao lado da facilidade e da conveniência para o poder executivo tomar decisões sem os trilhos de uma constituição68. Alie-se a isso a gravidade do perpétuo conflito árabe-israelense69. Conforme dados do Knesset, agregado à posição adotada pelos partidos religiosos, Ben Gurion70 opunha-se à Constituição formal71. Seus argumentos, entre outros já abordados, baseavam-se

68 “O sionismo dos pais-fundadores do Estado de Israel assentava numa ideologia comunitarista, de raiz marxista, na qual a prevalência dos inte-resses do Estado – do Estado enquanto comunidade – sobre os do indi-víduo assumia papel fundamental”. SHAFIR, Gershon; PELED, Yoav, 2002, apud PEREIRA, J. A. Teles. De actor secundário a actor principal: O Supremo Tribunal e a “Revolução Constitucional” em Israel. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC, [São Paulo], n. 9, p. 279, jan./jun. 2007.

69 SHAPIRA, Amos. Why Israel has no Constitution, but should, and like- SHAPIRA, Amos. Why Israel has no Constitution, but should, and like-ly will, have one. Saint Louis University Law Journal, [S.l.], v. 37, n. 2, p. 285-286, Winter 1993.

70 “[…] num Estado livre, como o Estado de Israel, não é necessária uma “Carta de Direitos”, o que necessitamos é, uma “Carta de Deveres”: de-veres para com a terra-mãe, para com o povo, para com a alyia [levas de emigrantes europeus , entre 1881 e 1939] na construção da nação [...]” Ben-Gurion, no Knesset, em 1951. PEREIRA, op. cit,, p. 276.

71 Para Ben-Gurion existia ainda o risco do controle judicial dos atos le-gislativos que, certamente, uma constituição abrigaria, por juízes não-alinhados ao sionismo, apontando como exemplo “decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos da América que atrasaram a implantação da política de vanguarda contida na legislação conhecida como New Deal”. Ibidem, p. 281 e MACIEL, Adhemar Ferreira. A Suprema Corte e o New Deal. Revista Ajufe, Brasília, n. 39, p. 20, dez. 1993. O cerne do con-flito nos Estados Unidos foi a “proteção judicial dos direitos de proprie-dade...” e “liberdade de empreendimento”, que provocou a declaração de inconstitucionalidade de várias leis do corpo do programa New Deal pela Suprema Corte. PIPES, Richard. Propriedade e liberdade. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 286.

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na tese da “inconveniência de uma antiga reivindicação de Constituição em confronto com um contexto de lutas sociais e econômicas inexistentes naquele momento”. A afirmação era de que na Grã-Bretanha, mesmo sem possuir uma constituição escrita, se encontravam garantidas a liberdade, democracia e o estado de direito e, mais: os princípios básicos de qualquer constituição já se encontravam inseridos na Declaração de Independência. Os poderes para a elaboração de leis conferidos à Assembléia Constituinte, a quem caberia redigir a Constituição até 1º de outubro de 1948, já haviam sido delegados pela Lei de Transição (16 de fevereiro de 1949) à Primeira “Knesset” - assim por ele mesma renomeada - e sua sucessora imediata; portanto não haveria pressa72. Ocorre que, como pano de fundo, a principal resistência à existência de uma Constituição foi a poderosa oposição dos partidos religiosos – à época, os políticos mais influentes e principais atores no dilema Estado-Religão - que não aceitavam qualquer substituto à Lei Divina como norma geral para condução dos destinos de Israel. Assim também, um diploma daquele porte poderia opor-se às leis de essência religiosa através de poderes de censura com que seria dotada

72 ISRAEL. The Knesset in the Government System. Consti-tution. Disponível em: <http://www.knesset.gov.il/ descrip-tion/eng/eng_mimshal_hoka.htm>. Acesso em: 02 jun. 2009.

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uma Corte Superior de Justiça73. Isso levando-se em consideração que uma Constituição para Israel obrigatoriamente deveria inspirar-se no modelo proposto pela ONU, com características ocidentais, que deveria estabelecer garantias de liberdade religiosa e de confissão. Os partidos religiosos, em especial o ultra-ortodoxo Agudat Israel, tem exigido, desde há muito, que os termos de uma possível Constituição para Israel sejam estabelecidos por “consenso de todos os partidos”74, observando que Israel não pode ter um diploma de porte igual àqueles promulgados por outras nações. Não há como alijar o espírito e o sentimento do povo judeu em sua herança e identidade oriunda dos patriarcas. Essas agremiações consideram que os judeus são o povo escolhido por Deus e que esses já possuem em estatuto superior que os rege e ao Estado de Israel: a Sagrada Torah,75 integrante da Halachá, lei religiosa

73 EL CONFLICTO poliédrico: el nacionalismo sionista (XXVI). Un Es-tado judio e democrático. 27 Ene. 2009. Disponível em: <http://espacio-blog.com/espejismo/ post/2009/01/27/el-conflicto-poliedrico>. Acesso em: 03 maio 2009. 1949: Promulgada a Lei Fundamental Alemã. DW-WORLD.DE, [S.l.], 06 maio 2009. Disponível em: <http://www.dw-world.de/dw/article/0,,525432,00.html>. Acesso em: 01 jun. 2009.

74 Em 1947, Ben Gurion e outros da Agência Judia, para tranqüilizar os membros do Agudat Israel, encaminharam correspondência ao partido prometendo que no futuro estado judeu “o Shabat (Sábado) seria o dia oficial de descanso, que em todas as cozinhas do governo se prepararia somente comida kosher (apropriada para se comer, de acordo com as leis dietéticas judaicas), que os divórcios e os casamentos se realizariam conforme a Halacha (tradição legalística do judaísmo) e a educação po-deria ser escolhida por cada um conforme suas preferências”. ISRA-EL: the Constitution. Disponível em: <mhtml:file://F:\Israel%20-%20THE%20CONSTITUTIO.mht>. Acesso em 05 fev. 2009.

75 A Bíblia Hebraica ou o Pentateuco, que compreende os cinco primeiros livros do Velho Testamento cristão: Genesis, �xodo, Levítico, Números e Deuteronômio.

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judaica secular, “que reúne o corpo integral das leis e práticas diárias obrigatórias a serem seguidas por todos os judeus, e a interpretação rabínica e seus mandamentos”. Confrontando os argumentos dos religiosos, no sentido de que não se pode abrir mão de tão poderoso instrumento de condução, agregação e preservação da identidade da nação de Israel durante os tempos da diáspora, e que a remeteu à criação do Estado de Israel, é perfeitamente compreensível a resistência desse grupo à aprovação de uma constituição laica76. Para se ter uma idéia do poder de influência da religião77 nos assuntos de Estado em Israel cabe lembrar que “a pedra angular de toda a estrutura do relacionamento Estado-Religião78 (em Israel) é o princípio do status quo”79.

76 CAZAÑA, Carlos Javier Soto. ?Israel, um Estado sin constitución?. p. 82. Disponível em: <http://www. liberlex.com/archivos/israel-consti-tucion.pdf>. Acesso em: 19 maio 2009.

77 “Os Rabinos são o mais importante fator da democracia israelen-se, e os verdadeiros líderes de diversos partidos políticos [...]”. THE

ISRAEL DEMOCRACY INSTITUTE. Religion and State. [S.l], 2009. Disponível em: <http://www.idi.org.il/sites/english/ResearchAnd Programs/Religion%20and%20State/Pages/ ReligionandState.aspx>.

Acesso em: 21 jun. 2009.78 A questão religiosa é alma do Estado Judeu. Na diáspora, o judaísmo,

com suas leis, regras e regulamentos, inclusive de natureza pessoal e familiar, dispostas na Torah, no Talmude e na Takkanah, constituiu-se na “pátria portátil” que preservou a identidade da nação quando inte-grada à “terra dos outros”. PEREIRA, J. A. Teles. De actor secundário a actor principal: O Supremo Tribunal e a “Revolução Constitucional” em Israel. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC, [São Paulo], n. 9, p. 303, jan./jun. 2007.

79 Cf. Nota 59, onde estão dispostos alguns dos fundamentos do status quo. Expressão que remete às relações entre “partidos religiosos e não-

religiosos”. LOS ENTES del gobierno Israeli. Disponível em: <http://www. masuah.org/entes_del_gobierno%20y%20minorias%20en%20israel.htm>. Acesso em: 21 jun. 2009.

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Expressão que, aliás, figura nos acordos que constituíram a base da entrada de partidos religiosos no Governo logo após sua independência. “O princípio implica a não introdução de modificações às disposições inicialmente acordadas entre o Estado e as autoridades religiosas nesta área particularmente sensível”80. Baseado nos estudos do jurista Uriel Lin, em 2000, o Primeiro-Ministro Ehud Barak iniciou a discussão de um projeto de criação de Constituição para Israel com ênfase na separação do Estado da Religião. Entre outras mudanças previstas nas normas em vigor estariam a “supressão do registro obrigatório da religião no documento de identidade, a revogação da obrigatoriedade de os restaurantes, e afins, contratarem fiscais de supervisão da preparação das refeições, conforme as regras dietéticas (Kashrut) do judaísmo e, principalmente, a liberação para a realização de casamento civil, atualmente efetivado por autoridades religiosas cristãs, muçulmanas ou judaicas, conforme o credo dos nubentes”. A medida foi considerada como uma “apostasia” pelos líderes dos partidos religiosos do Knesset que acusam Barak de estar destruindo a unidade da comunidade judaica e violando os preceitos fundamentais do judaísmo81. Em outubro de 2004, o Haaretz–Israel News divulgou que a “mais contundente abordagem” de religiosos ortodoxos sobre a aventura de se elaborar um diploma

80 ENGLARD, Izhak, 1990 apud PEREIRA, op. cit., p. 299.81 WURGAFT, Ramy. Los ortodoxos reaccionam contra La “Cons-

titucion de Barak”. Disponível em: <www.elmundo.es/2000/09/22/internacional/22N0068.html>. Acesso em: 1 fev. 2009.

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constitucional para Israel foi a de Aryeh Deri, líder o Partido Shas: “Mesmo se a constituição incluísse os Dez Mandamentos, nós nos oporíamos a ela”, revelando a preocupação com o fato de que com a superioridade dessa norma, a Suprema Corte de Israel possa promover alterações no poder das autoridades e disposições religiosas no país82. Isso, por si só, revela o tom e a gravidade da oposição religiosa em relação a qualquer movimento em direção a uma Constituição, até mesmo de natureza híbrida.

5.2 ARGUMENTOS FAVORÁVEIS83

O povo israelense não tem dúvidas a respeito do fato de que os pais fundadores de Israel eram favoráveis a elaboração de um arranjo constitucional, conforme está registrado na própria Declaração de Independência84,

82 EXPERTS putting fi nal touches on Israel’s proposed constitution. Dis- EXPERTS putting final touches on Israel’s proposed constitution. Dis-Dis-ponível em: <http://www.haaretz.com/

hasen/pages/ShArt.jhtml?itemNo=485698&contrassID=i&s...>.Acesso em: 01 fev. 2009.83 “Para manter a democracia – e garantir um delicado equilíbrio entre

seus elementos – uma Constituição formal é preferível. Para operar efe-tivamente, a Constituição deve gozar de hierarquia normativa superior, não pode ser facilmente emendada tal como os estatutos normais, e deve garantir aos juízes autoridade para o controle de constitucionalidade das leis.” BARAK, Aharon, 2006 apud WAISBERG, Tatiana. Notas sobre o direito constitucional israelense: a revolução constitucional e a Cons-tituição escrita do Estado de Israel. Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, ano 16, n. 63, p. 344. abr./jun. 2008.

84 Em que pese Ben-Gurion simpatizar com a idéia de uma supremacia do Poder Legislativo. Cf. KAHANA, Tsvi; GOOD, Mathew. Human rights in Israel: a brief overview. [S.l.], May 2008. Disponível em: <http://

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bem como quanto à necessidade da existência de um documento que vinculasse todas as instituições do Estado, incluso o Poder Legislativo, e dispusesse sobre as normas e regras de seu funcionamento. Tudo rotulado pela obrigatoriedade de submissão à Resolução 181 da Assembléia Geral da ONU, de 29 de novembro de 1947, que dispôs sobre a partilha do território da Palestina em dois Estados: um judeu e outro árabe, e que tinha como um de seus objetivos a convivência harmoniosa e cooperativa entre os dois povos85. A academia e os juristas asseveram que o risco da “existência de um sistema parlamentar desprovido de um diploma constitucional escrito”, com poderes intrínsecos e extrínsecos, que limite os poderes de uma legislatura dotada, em tese, de ilimitados poderes legislativos, por si só estimula a reflexão permanente sobre os possíveis benefícios advindos de uma constituição formal86. Na seara política, outro momento importante desse grande e difuso debate ocorreu em 1º de fevereiro de 2000, quando o Presidente do Knesset, o MK87 Abraham Burg, por ocasião das comemorações do qüinquagésimo primeiro aniversário da Declaração de Independência de

www.queensu.ca/csd/documents/FINAL_08.5.21_Kahana_Good_isra-elpaper-1.pdf>. Acesso em: 14 jun. 2009.

85 Resolução 181 da Assembléia Geral da ONU, de 29 de novembro de 1947.

86 SHAPIRA, Amos. Why Israel has no Constitution, but should, and like- SHAPIRA, Amos. Why Israel has no Constitution, but should, and like-ly will, have one. Saint Louis University Law Journal, [S.l.], v. 37, n. 2, p. 287, Winter 1993.

87 MK – Member of Knesset – Membro do Knesset, conforme são identi-ficados seus parlamentares.

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Israel, publicou artigo intitulado “O aniversário do Knesset: A hora da Constituição”. Manifestando o seu ponto de vista, apontou que merecia crítica a acomodação dos israelenses em relação à necessidade de se elaborar uma constituição para o país e romper um status quo contemplativo. A oposição histórica entre sionistas e ortodoxos, “fê-los acreditar no arrefecimento do ímpeto que os movia em maio de 1948”. Para os primeiros, liderados ideologicamente por Ben-Gurion, “duas décadas seria o suficiente as tradições religiosas fossem flexibilizadas e, para esses últimos, finalmente prevaleceria a tradição sobre ideais políticos”, e assim tentaram obter benefícios que supostamente o tempo poderia lhes oferecer; no que estavam, ambos, errados. Para se contrapor a essa realidade, cria Abraham Burg que uma Constituição poria fim ao conflito e que ela mesma representaria “um novo princípio fundamental”, que renovaria a vida da nação, bem imaterial tão grato a todos os judeus. Sua idéia era que se aprovasse uma Constituição “sem a declaração formal de um Estado confessional, mas mantendo a religião judia preservada à parte do diploma”. Sobreviveu, apenas, o sonho do discurso88.

Em fevereiro de 200689, o Primeiro-Ministro Ehud Olmert, no Parlamento, em sessão do pleno, asseverou que o

88 BECERRA, Manuel J. Terol. Ni la ortodoxia ni el laicismo quieren desaparecer. Disponível em: <http:// www.nuevarevista.net/2004/agos-to/nr_articulos94_2.html>. Acesso em: 12 jun. 2009.

89 OLMERT: Israel needs constitution. Disponível em: <http://www.yne-tnews.com/Ext/Comp/ArticleLayout/ CdaArticlePrintPreview/1,2506,L...>. Acesso em: 01 fev. 2009.

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“próximo Knesset” deveria se empenhar em “estabelecer as fronteiras permanentes de Israel e votar uma constituição que caracterizasse o país como um Estado democrático e judeu90 e que o seu texto explicitasse as atribuições do poder executivo91, e afiançasse a proteção dos direitos humanos em geral, bem como os da minoria árabe”. Criticando o modelo norte-americano, o rival Benjamin Netanyahu, líder do Partido Likud, afiançou que “A constituição precisa proteger o cidadão do grupo, da tirania, porém atualmente ela deve providenciar ferramentas para o governo proteger-se ele mesmo e aos cidadãos da realidade em que vivemos”. Lembrou Netanyahu, mais tarde, em outubro de 2007 que, há décadas da independência, não poderia mais tardar a necessária convivência harmônica entre o secular e o religioso garantida por uma Constituição92, questão considerada pelos estudiosos como um objetivo nacional permanente.

90 Uma democracia pura é incompatível com a escolha preferencial de um credo religioso para seus cidadãos. Tal característica é justamente um dos dilemas dos árabes na defesa de uma Constituição para o país. GAVISON, Ruth. Constitutions and Policitical Reconstruction? Israel’s quest for a Constitution. In: ARJOMAND, Saïd Amir (Ed.). Constitutionalism and political reconstruction: international comparative social studies. Leiden; Boston: Brill, 2007. p. 81.

91 “No hay una clara separación de poderes entre El legislativo (La Kne-set, parlamento de Israel) y El poder ejecutivo (Primer Ministro y gabi-nete) del gobierno”. KARNIEL, Yuval; REISS-WOLICKI, Linda. Un pueblo libre en muestra tierra: la democracia y el pluralismo en Israel. Jerusalém: Centro de Información de 2005. p. 10 .

92 TRANSLATION of part of the Prime Minister Ehud Olmert’s speech to the Knesset at the opening of the Winter Session. Disponível em: <http://www.idi.org.il/sites/english/ResearchAndPrograms/Constitution% 20by%20Consensus/Pages/ConstitutionbyConsensusArticle3.aspx>. Acesso em: 21 jun. 2009.

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6 PROPOSTAS DE CONSTITUIÇÃO

Desde a Resolução Hariri, no exercício do papel de Assembléia Constituinte, o Knesset já estava legitimado a elaborar uma Constituição para Israel. O órgão encarregado dessa tarefa, a Comissão de Constituição, Direito e Justiça, tem se valido, especialmente, de propostas oferecidas pelas organizações não-governamentais “Institutos de Democracia de Israel - IDI, e de Estratégia Sionista, pelo Movimento Progressista Centro de Ação Religiosa pelo Judaísmo de Israel, além de incentivar a participação popular – cidadãos e outras organizações – na formulação de sugestões”93.

Considerado um organismo moderado de natureza privada, o Instituto de Democracia de Israel94 - IDI ofereceu ao Knesset uma proposta de constituição multicultural – “Constituição por Consenso”95 - elaborada por mais de 100 líderes das comunidades representativas dos

93 ILAN, Shahar. A Constitution is born. Haaretz.com, [S.l.], 2009. Disponível em: <http://www.haaretz. co.il/hasen/spages/912741.html>. Acesso em: 17 jul. 2009. A participação popular é também possível através desse website.

94 O IDI tem sido instado pelo Ministério da Justiça a colaborar, regular e oficialmente, em assuntos jurídico-constitucionais em apoio ao Knesset.

95 CONSTITUTION by consensus. Disponível em: <http://www.idi.org.il/sites/english/ResearchAndPrograms/ Constitution%20by%20Con-sensus/Pages/ConstitutionbyConsensus.aspx>. Acesso em: 25 maio 2009. KREMNITZER, Mordechai. Constitutional principles and their implementation. Disponível em: <http:// www.idi.org.il/sites/english/ResearchAndPrograms/ConsititionalLaw/Pages/ConstitutionalPrinci-plesandTheirImplementation.aspx>. Acesso em: 17 jul. 2009. ARYE, Carmon. Give Israel a constitution. Disponível em: <http://www.idi.

org.il/sites/english/OpEds/Pages/OpEdCarmon090606.aspx>. Acesso em: 01 jun. 2009. Disponível em: <http://www.cfiisrael.org//timetable.html>. Acesso em: 21 jun. 2009.

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“direitos femininos, ativistas sociais, árabes e ultra-ortodoxos, veteranos israelenses, novos imigrantes e especialistas de todas as universidades do país”, levando-se em consideração os interesses dos quatro principais setores da sociedade israelense: “religioso, secular-liberal, nacionalista e árabe”. O Comitê Público encarregado de realizar essa tarefa foi liderado pelo presidente jubilado da Suprema Corte de Israel Meir Shamgar, cuja autoridade para oferecer contribuições desse tipo foi legitimada pelo próprio Knesset, tendo sido sua produção aproveitada pela Comissão de Constituição, Direito e Justiça em seu comissionamento constituinte de elaborar uma Constituição. O assunto tem sido exaustivamente discutido no âmbito da Comissão, com mais vigor desde 2003, quando os ex-Primeiros-Ministros Ehud, Peres e Barak, na condição de convidados oficiais, debateram sobre o papel do Poder Executivo, dentro do Projeto denominado Constituição por Amplo Consenso, abrangendo opiniões desses especialistas sobre o melhor sistema de governo para o país, direito das minorias, papel das Forças Armadas, etc.96. O debate atualmente tem sido ampliado para além do âmbito das elites e a proposta é torná-lo popular, visando legitimar e ratificar o processo de construção da Constituição. Para além do esforço oficial, surgiram outras propostas de minutas também de caráter popular, e entre elas

96 OFFICIAL DRAFT OF A CONSTITUTION FOR ISRAEL. Constitu-tion for Israel. Disponível em: <http:// www.cfisrael.org//home.html>. Acesso em: 08 jul. 2009. Tradução nossa.

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merecem ser destacadas, ainda que de maneira superficial, uma de origem essencialmente acadêmica, e outra, originária de representantes de grupo nacional minoritário: a população de origem árabe. O professor Amos Shapira, da Universidade de Tel Aviv, relata que durante o biênio 1985-1986, na sua Faculdade de Direito, um grupo de professores e alunos, liderados pelo reitor da faculdade, Uriel Reichman, abraçou a árdua tarefa de redigir uma constituição para Israel, à falta de “equivalência das leis básicas a uma constituição, uma vez que o controle de constitucionalidade e uma carta de direitos”97 até então não haviam sido contemplados na legislação do Knesset. Segundo Shapira, o esboço do “Comité Público por uma Constituição para Israel” foi divulgado e recebeu elogios e críticas. Em síntese, propunha a “elaboração de uma Constituição escrita, (com o estabelecimento de dispositivo de controle de constitucionalidade); reforma da Lei Eleitoral no sentido de facilitar a formação de maiorias, atenuando a proporcionalidade extrema em que o sistema assenta (salvaguarda contra mudanças nas Leis Básicas com quorum de dois terços ou três quintos da maioria) e eleição directa do Primeiro-Ministro”98. Teve parcial sucesso, pois uma desuas propostas foi aproveitada e aprovada pelo Parlamento: a

97 Disponível em: <mhtml:file://F\Israel%20-%20THE%20CONSTITU-TION.mht>. Acesso em: 16 jun. 2009.

98 PEREIRA, J. A. Teles. De actor secundário a actor principal: O Supremo Tribunal e a “Revolução Constitucional” em Israel. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC, [São Paulo], n. 9, p. 295, jan./jun. 2007.

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eleição para o cargo de Primeiro-Ministro99. Para Shapira,“a constituição deve ser um instrumento que ofereça uma equilibrada acomodação de valores universais, liberais e democráticos com particularidades dos dogmas culturais e tradicionais judaicos”100.

A comunidade árabe também ofereceu a sua contribuição para responder ao desafio. Em 2007101, com fundamento na previsão de partilha102 da região em dois Estados: um judeu e outro árabe, e na dicotomia implícita no fato de Israel adotar como princípios fundamentais ser um Estado “judeu103 e democrata”, o Adalah Center, organização que procura representar a comunidade árabe-israelense em Jerusalém, propôs um modelo de Constituição para Israel que, democraticamente, equiparasse os direitos das populações árabes e judias104.

99 O documento produzido, “além de ter sido aproveitado nas au-las da aludida faculdade, estimulou um de seus redatores a can-didatar-se e eleger-se, destacando-se como um bom parlamen-tar constitucionalista”. SHAPIRA, Amos. Why Israel has no Constitution, but should, and likely will, have one. Saint Louis University Law Journal, [S.l.], v. 37, n. 2, p. 289, Winter 1993.

100 Ibidem, p. 290.101 CENTRO árabe-israelense quer direitos da minoria na Constituição.

UOL, São Paulo, 2 fev. 2007. Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/ultnot/efe/2007/02/28/ult1807u35141.jhtm>. Acesso em: 26 ago. 2008.

102 Resolução de Partilha da ONU, de 29 de novembro de 1947.103 Segundo a Lei do Retorno (1950), que privilegia a matrilinearidade,

judeu é aquele nascido de mãe judia ou o convertido ao judaísmo. Con-forme outras leis israelenses - Lei da Nacionalidade de 1952 e suas emendas de 1958, 1968 e 1971 - entretanto, está prevista a possibilida-de de naturalização a cidadãos de origem não-judaica.

104 Um dos direitos a que aspira o segmento palestino é o disposto na Lei do Retorno: aos judeus, residentes fora de Israel, é permitido estabele-cer-se definitivamente no território israelense; o que não é permitido

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Nele constam, entre outros, “dispositivos que garantem a devolução de terras desapropriadas após 1948 aos antigos proprietários e o registro de uma espécie de mea culpa do Estado israelense aos prejuízos infligidos à população palestina”. A idéia era instigar o debate público e fazer chegar a minuta até o Knesset, por via formal ou informal. Tal proposta conflita com as características e manifestações tradicionais da comunidade israelense e, por essa razão, serviu apenas para marcar posição desse segmento minoritário na composição de forças necessariamente interessadas na resolução do problema.

7 CONSTITUCIONALISMO LEGISLATIVO105

No estudo de temas constitucionais, envolvendo literalmente não só a discussão, mas principalmente o objeto do próprio tema principal, é indispensável a lembrança de que a disputa pela “supremacia constitucional” entre o legislativo e

“aos refugiados palestinos que lá viviam antes de 1948”. O assunto é tão polêmico que, no final de 2007, o Ministro do Interior de Israel, Meir Shitrit, que também pugna pela alteração da lei, manifestou-se, publicamente, no sentido de que ”todos os judeus devem ter a possi-bilidade de viver em Israel, mas não é necessário conceder a cidada-nia cinco minutos depois da chegada deles ao país”. Cf. FLINT, Guila. Israel discute fim de cidadania automática para judeus. Tel Aviv, 2007. Disponível em: <http://www.bbc.co.uk/ portuguese/reportebbc/story/2007/11/printable/071101_israel_...>. Acesso em: 28 ago. 2008.

105 Cf. KAHANA, Tsvi; GOOD, Mathew. Cf. KAHANA, Tsvi; GOOD, Mathew. Human rights in Israel: a brief overview. [S.l.], May 2008. p. 26-37. Disponível em: <http://www.que-[S.l.], May 2008. p. 26-37. Disponível em: <http://www.que-ensu.ca/csd/documents/FINAL_08.5.21_Kahana_Good_israelpaper-1.pdf>. Acesso em: 14 jun. 2009.

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o judiciário permeia as relações entre os dois poderes em quase todas as nações livres, em especial naquelas em que “existe um vácuo” em substituição a disposições imperativas sobre assuntos nacionais relevantes. “O ponto central dos esforços de cada ator está localizado na primazia da interpretação dos direitos fundamentais”. As soluções estão sempre vinculadas à “coerência jurídica e à prática de auto-controle da manifestação dos poderes legais de que estão dotados”. Juristas de países como o Canadá106 - há mais de trinta anos - Reino Unido e Nova Zelândia, não depositários de diploma constitucional escrito, construíram, modernamente, uma doutrina de proteção de direitos constitucionais denominada de “constitucionalismo legislativo”, onde, apesar do recorrente engajamento do poder judiciário no exercício garantidor dos direitos dos cidadãos, a magistratura não esgota o tema, nem tampouco são imutáveis os efeitos de suas decisões. Seu conceito, desenvolvido no Canadá e aperfeiçoado nos Estados Unidos da América, revela uma tentativa de conciliar a “soberania do parlamento com a tradicional proteção constitucional de direitos fundamentais”, admitindo o judiciário como ator indispensável mas não suficiente nesse processo. O “constitucionalismo legislativo” é uma característica evidente em Israel, onde a competência

106 Estabelecido como norma através do Canadian Charter of Rights and Estabelecido como norma através do Canadian Charter of Rights and arter of Rights and Freedoms, 1982. Cf. BATEUP, Christine. Reassessing the dialogic possibilities of a Weak-Form Bills of Rights. Disponível em: <works. bepress.com/context/christine_bateup/article/1000/type/native/view-content/>. Acesso em: 21 jun. 2009.

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para exercer o controle da constitucionalidade é exercida pelo judiciário de modo limitado, uma vez que “o legislativo detém o poder de desfazer as ações da corte ou, preventivamente, resguardar as leis de uma revisão pelas cortes”. Essas disposições impulsionaram a “promoção de parceria” ou diálogo, uma espécie de acordo de boa convivência, entre as cortes e o legislativo, cuja natureza foi modificada em 1995, com o julgamento do caso Hamizrachi, quando, sob os efeitos das Leis Básicas: Dignidade Humana e Liberdade e Liberdade de Ocupação, aprovadas em 1992, “ficou garantida formalmente a proteção aos direitos humanos”. O legislativo houve por bem minimizar o emprego do poder de interferir sobre as decisões do judiciário, num primeiro momento, e depois viu-se impedido por dispositivos das aludidas leis, conforme já comentado neste artigo, de encetar qualquer mudança das decisões judiciais, que não efetivadas através do uso de seus poderes de assembléia constituinte de emenda constitucional, “por se tratar de leis básicas, portanto com status constitucional”. O Knesset e o Judiciário souberam administrar um perfeito equilíbrio nessa relação de parceria, com concessões recíprocas de exercício de poder, pelo menos até fevereiro de 2008, quando o Ministro da Justiça de Israel, Daniel Friedmann107, apresentou ao Conselho de Ministros do governo (Gabinete) uma moção com o

107Disponível em: <noticias.terra.com.br/mundo/interna/0,OI3164293-EI308,00.html>. GOVERNMENT aproves motion to limit Supreme’s Court Power. Israel NewsYnetenews, [S.l.], [2009]. Disponível em: <http://www.ynetnews.com/articles/0,7340,L-3593071,00.html>. Acesso em: 15 set. 2008.

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objetivo de limitar o poder da Suprema Corte de invalidar leis aprovadas pelo Knesset, inclusive aquelas que “atentam contra os direitos humanos, independentemente de sua colisão ou não com as denominadas Leis Básicas”, exceto se elas venham a conflitar, especificamente, com as Leis Básicas: Liberdade de Ocupação e Dignidade Humana e Liberdade. A proposta foi aprovada em 9 de julho do mesmo ano por 13x11 votos, ou seja, uma margem estreita de vantagem. A mudança estabeleceu ainda que, “o Knesset poderá revalidar uma lei anulada pela Suprema Corte através de votos da maioria simples de 61 parlamentares do Knesset, desde que a diferença entre opositores e defensores seja, ao menos , de cinco votos”108, exceto se violar alguma lei básica, tais como as que tratam da dignidade humana e liberdade , e da liberdade de ocupação”. Friedmann considerou isso um avanço no sentido de se restaurar a “capacidade do Executivo para governar e reforçar o status do Knesset”, bem como de especificar, pela primeira vez, em Israel, “a legitimidade da Suprema Corte para anular uma lei” 109.

108 GOVERNMENT aproves motion to limit Supreme’s Court Power. Israel NewsYnetenews, [S.l.], [2009]. Disponível em: <http://www.ynetnews.com/articles/0,7340,L-3593071,00.html>. Acesso em: 08 jul. 2009.

109 A propósito, o confronto entre o legislativo e o judiciário, na Europa e em especial na Alemanha, no que concerne ao controle de consti-tucionalidade, é questão antiga e já analisada por Kelsen e Schmitt, envolvendo a legitimidade e primazia na “guarda da constituição”. Lima aponta que “A formulação dominante era a de que o político seria o determinante para a construção de um estado possível. Impor-tante ressaltar: não o político advindo da tensão traduzida por meio da heterogeneidade das forças sociais presentes em qualquer cenário pluralista. Porém o político cuja definição se aproximava da noção de amigo (Freund) e inimigo (Feind) para determinação das ações a se-

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Encaminhada pelo governo ao Knesset, por demandar uma emenda à Lei Básica: O Judiciário, a medida está sendo apreciada, no momento, pelo Comitê de Constituição, Direito e Justiça110.

rem efetivadas pelo estado. Derivando dessa premissa, o constitucio-nalismo operava a submissão do direito à política, invertendo assim a possibilidade de um estado democrático de direito, onde a política se submete ao direito.” [...] (Esse raciocínio vincula-se ao espaço tem-poral da formulação dessas teorias em que o pensamento de Kelsen, que pode muito bem ser aplicado hoje em dia, bem como à época do estabelecimento do Primeiro Knesset). Assevera Kelsen, citado no ar-tigo de Lima: “O pensamento de que somente o legislativo, e não o judiciário, é verdadeiramente político, é tão falso, quanto o argumento de que somente o legislativo produz direito e o judiciário, quando da aplicação do direito, apenas o reproduz. [...] Na verdade, quando o le-gislador investe o juiz, dentro de determinadas fronteiras, de ponderar sobre os interesses contrários e decidir conflitos em favor de alguns e desfavor de outros, transfere para o juiz, este mesmo legislador, a tarefa de criação do direito, e com isso, um poder que confere à fun-ção judicial o mesmo caráter político que o legislador possui”. LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto Lima. A guarda da constituição em Hans Kelsen. Disponível em: <http://sisnet.aduaneiras. com.br/lex/doutrinas/arquivos/031007.pdf>. Acesso em: 17 jun. 2009. GOVERN-GOVERN-MENT approves motions to limit Supreme Court’s power. [S.l.], 09 jul. 2008. Disponível em: <http://www.ynetnews.com/articles/ 0,7340,L-3593071,00.html>. Acesso em: 15 set. 2008.

110 “Esta é uma decisão sem precedentes (exceto pela lei similar do Ca-nadá, mais branda), nenhuma democracia avançada adotou tal dispo-sitivo. O relacionamento entre os segmentos do governo no Estado de Israel devem ser equilibrados, porém o meio apropriado para se alcan-çar tal desiderato é através de um processo legislativo de convocação de uma Constituição, como está sendo realizado pelo Knesset”. ARYE. Carmon. The Government’s decision to limit the powers or the Su-preme Courts. Disponível em: <http://www.idi. org.il/sites/english/BreakingTheNews/Pages/TheLimitationofTheSupremeCourt.aspx>. Acesso em: 04 jun. 2009. CABINET approves motion to limit Supreme Court’s power. Israel NewsYnetenews, [S.l.], 09 jul. 2008. Disponível em: <http://www.ynetnews.com/articles/0,7340,L-3593174,00.html>. Acesso em: 21 jun. 2009.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A nação israelense, com toda a sua carga ancestral de ideais, valores, tradições, e a tão-sonhada necessidade retorno à pátria, é um dos mais veementes exemplos de capacidade de sobrevivência cultural de um povo, que sempre caminhou sob o império da lei. Um dos principais fatores de manutenção dos laços de cumplicidade positiva e parceria fraternal entre seus integrantes foi a Torá, o corpo da religião e dos ensinamentos judaicos, aliada à Halachá, a tradição legalística do judaísmo, observadas durante todo o período da diáspora, e que constituem a “pátria portátil” que preservou a identidade da nação quando integrada à “terra dos outros”. Em que pese o judaísmo não ser a religião oficial de Israel, em sua maioria, os judeus são voluntária e eternamente cativos da religião que sempre os protegeu e fortaleceu contra as investidas exógenas de sua aniquilação étnica e cultural, reconhecendo nela elemento essencial para a manutenção de sua unidade, malgrado a discordância a respeito da importância desse valor pelos diversos segmentos políticos atuantes na Declaração de Independência. Por ocasião do estabelecimento das instituições políticas necessárias à existência de um Estado moderno e democrático, Israel homenageou o seu pilar religioso, submetendo a proposta política de seus fundadores àsimposições dos rabinos e seus partidos no tocante ao status quo. Acordos de cordialidade política foram assinados entre os líderes em prol da garantia da expressão legal do Estado.

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Não obstante, os estatutos da ONU e dos conteúdos dos primeiros dispositivos legais, em especial da Resolução Hariri, o Poder Constituinte foi estilizado de forma inusitada e declinou de elaborar na sua primeira legislatura o diploma máximo da democracia: a Constituição. Foram criados mecanismos de produção legislativa, em que as Leis Básicas, de natureza especial, são configuradas de modo a se constituir como membros do futuro corpo constitucional, uno e indivisível. À falta de regras bem definidas sobre a questão da constitucionalidade das leis promulgadas, dos atos administrativos e jurídicos manejados pelos poderes, instalou-se uma preocupação geral que contaminou não só as instituições públicas e privadas, como também os Poderes do Estado. De início em função do sistema parlamentarista sobressaiu a supremacia do Legislativo, intimamente associado ao Executivo. As discussões mais relevantes sempre envolveram os direitos das minorias abrangidos pelos direitos fundamentais de todos os cidadãos israelenses. Aí, então, há percepção do contato com o Judiciário, que, desarmado de instrumentos de controle de constitucionalidade, viu-se compelido ao ativismo jurídico, potencializado a partir de 1992, de direito, e 1995, na prática jurisprudencial, a conferir um status hierárquico à legislação pátria. Inicialmente como um apêndice, mas paulatinamente revelando-se sempre atuante, necessário e respeitado, transita com vigor, no fortalecimento desse processo, a Procuradoria Geral, instituição cuja existência é

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absolutamente necessária no regime democrático. A par disso, manifestações contrárias e favoráveis, próximas ou distantes, e permanentes, como o componente religioso da sociedade, eclodiram em diversos momentos da vida do país, todas focando o problema constitucional, caracterizando assim uma luta ideológica. O Knesset, entidades privadas, acadêmicos, especialistas políticos, representantes de grupos étnicos e minoritários, aliados à participação popular ainda que restrita, todos emprestaram seus esforços e contribuição ao processo de tentativa de fazer nascer uma acalentada Constituição. Ocorre que “sem a internalização de valores pela sociedade uma constituição não se basta a si mesma”111. A partir de experiência doutrinária estrangeira, incorporada pelo Estado Israelense, o Legislativo e o Judiciário acordaram limites de atuação no exercício do papel de “guardião da Constituição”, no tocante ao controle de constitucionalidade, sistema aperfeiçoado a partir da aprovação pelo Knesset de leis garantidoras de direitos humanos, consideradas “supra-legais” pelo Judiciário. Se for verdade que a cada avanço se contrapõe, dialeticamente, um retrocesso, era de se esperar que a parceria Legislativo-Judiciário seria abalada, tal qual ocorreu com a proposta atual de redução dos poderes do Judiciário, ainda não muito bem resolvida.

111 DORNER, Dalia. Does Israel have a Constitution?. DORNER, Dalia. Does Israel have a Constitution?. Saint Louis Uni-versity Law Journal, [S.l.], v. 43, n. 4, p. 1334, Fall 1999.

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Os tempos modernos vem debilitando velhas estruturas tidas como perpétuas, imutáveis, dogmáticas em alguns países, onde se busca quebrar paradigmas dos sistemas constitucionais por eles adotados em prol de uma ampliação de liberdades democráticas. Urge, pois, uma solução definitiva para o debate constitucional antecipando o seu desfecho sem data marcada. O desafio é como antecipá-lo, trazê-lo para agora, o momento presente, se não existe, de fato, um verdadeiro e amplo consenso entre as parcelas antagônicas da sociedade e também entre elas, a respeito da oportunidade, necessidade e “utilidade” da aprovação de uma Constituição para Israel, como se fosse uma panacéia da democracia a beneficiar o Estado e o povo israelense. A profusão de idiossincrasias112 dos componentes notáveis da sociedade israelense parece indicar que isso não é uma tarefa fácil de concluir. Como estabelecer um pacto social entre as divergentes correntes? Como criar uma solução doméstica para o problema, sem violar os objetivos colimados pelos arquitetos e fundadores do Estado? O quê de fato quer a sociedade israelense? Essas perguntas, por enquanto, não tem respostas.

112 Em agosto de 2007, das cento e vinte cadeiras do Parlamento uni-cameral israelense (o Knesset), oito são ocupadas por cidadãos ára-bes. No Poder Executivo, um árabe, ex-Embaixador na Finlândia, é o vice-prefeito de Tel-Aviv. Majalli Whbee, Vice-Ministro das Relações Exteriores, é um druso israelense. Nomeado ministro sem pasta, Salah Tarif, druso, foi integrante do gabinete original do Primeiro-Ministro Ariel Sharon. No Poder Judiciário é integrante da Suprema Corte, desde 2004, o Justice (ministro) Salim Jubran, árabe-cristão.

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Liderada pelo Knesset, como expressão democrática do povo israelense e pela Suprema Corte, garantidora da defesa dos direitos fundamentais passados, presentes e futuros, a busca de uma carta constitucional ideal, preferencialmente pluralista, com requerida habilidade do Executivo, provavelmente passará por um caminho de pacificação interna e de possibilidade de reconhecimento e exaltação externa, respeitados e preservados os valores tão caros a Eretz Yisrael.

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