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Varios Artigos-revista Pge

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Procuradoria Especial do Centro de Estudos

PROCURADORIA GERALDO ESTADO DE SERGIPE

Vol. 06 | Abril 2008

PROCURADORIA GERAL DO ESTADO DE SERGIPE

Márcio Leite de RezendePROCURADOR GERAL DO ESTADO

André Luiz Vinhas da Cruz Arthur Cezar Azevedo BorbaMarcus Cotrim de Carvalho MeloWellington Matos do Ó PROCURADORES ASSISTENTES

Conceição Maria Gomes E. BarbosaSUBPROCURADORA GERAL DO ESTADO

José Paulo Leão Velloso SilvaPROCURADOR à DISPOSIçãO DA SUBPROCURADORIA

Carla de Oliveira Costa Meneses CORREGEDORA GERAL DA ADVOCACIA GERAL DO ESTADO

PROCURADORIA ESPECIAL DOS ATOS E CONTRATOS ADMINISTRATIVOS

Felipe Moreira de Godoy e VasconcelosPROCURADOR- CHEFE

Eduardo José Cabral de Melo FilhoMaria Edilene ConradoPatrícia Maria Amorim PessoaPedro DurãoRicardo Silveira de Oliveira

PROCURADORIA ESPECIAL DO CONTENCIOSO CÍVEL

Vladimir de Oliveira MacêdoPROCURADOR-CHEFE

Agripino Alexandre dos Santos FilhoAna Queiroz CarvalhoCristiane TodeschiniGisele de Assis CamposGuilherme Augusto Marco AlmeidaHumberto Alexandre Foltran FernandesKátia Kelen Sousa dos AnjosKleidson Nascimento dos Santos Leo Peres KraftLuiz José Azevedo Pereira de MeloMarcelo Aguiar PereiraMarcus Aurélio de Almeida BarrosPatrícia Regina Léo CavalcantiVinícius Magno Duarte Rodrigues

PROCURADORIA ESPECIAL DO CONTENCIOSO FISCAL

Mário Luiz Britto AragãoPROCURADOR-CHEFE

Edson Wander de Almeida CostaEugênia Maria Nascimento FreireFlávio Augusto Barreto MedradoGilda Boa Morte Tosta CaféJoão Monteiro JúniorJosé Alcides Vasconcelos FilhoJosé de Sousa IbiapinoMauro Fernando dos SantosMicheline Marinho Soares DantasPaulo de Albuquerque Pontes JúniorPaulo Modesto dos PassosRobson Nascimento Filho

PROCURADORIA ESPECIAL DA VIA ADMINISTRATIVA

Carlos Antônio Araújo MonteiroPROCURADOR-CHEFE

Evânio José de Moura SantosGervázio Fernandes de Serra JúniorLélia Vieira Fortes Franco Regina Helena Gondim de Lucena Oliveira Rita de Cássia Matheus dos Santos SilvaRonaldo Ferreira ChagasTatiana Passos de ArrudaTiago Bockie de Almeida

PROCURADORIA ESPECIAL DOS ASSUNTOS FUNDIÁRIOS E PATRIMÔNIO IMOBILIÁRIO

Pedro Dias de Araújo JúniorPROCURADOR-CHEFE

Maria Lúcia Morais Maia de Britto

PROCURADORIA ESPECIAL DO CONTENCIOSO TRABALHISTA

Marcos Alexandre Costa de Souza PóvoasPROCURADOR-CHEFE

Samuel Oliveira Alves

PROCURADORIA ESPECIAL DO CENTRO DE ESTUDOS

Mário Rômulo de Melo Marroquim

PROCURADORIA ESPECIAL DE ATUAÇÃO JUNTO AOS TRIBUNAIS SUPERIORES

Antônio José de Oliveira BotelhoPROCURADOR-CHEFE

André Luís Santos Meira

Conselho Editorial

André Luiz Vinhas da CruzVinícius Magno Duarte RodriguesRobson Nascimento FilhoPedro Dias de Araújo Júnior Mário Rômulo de Melo Marroquim

www.pge.se.gov.br

As opiniões expressas pelos autores nesta revista não refletem, neces-sariamente, a posição da Procuradoria Geral do Estado de Sergipe.

Referência Bibliográfica:

Revista PGE/Procuradoria Geral do Estado de Sergipe. vol.VI (1993 - ). Aracaju/2008.

Periodicidade Semestral

1. Ciência Jurídica 2. Periódicos I. Procuradoria Geral do Estado de Sergipe. Procuradoria Especial do Centro de Estudos.

Endereço para correspondência:

Procuradoria Geral do Estado de SergipePraça Olímpio Campos, nº 14, centro.CEP: 49010-040 - Aracaju - SE Telefone: (79) 3179-7666

Contato para envio de artigos e trabalhos:

Procuradoria Especial do Centro de Estudos]Telefone: (79) 3179 7665. E-mail: [email protected]

SUMÁRIO

ARTIGOS

1 - AS DEFESAS DO EXCECUTADO.Leonardo José Carneiro da Cunha

2 - LIMITES DE APLICAÇÃO DA TEORIA DA FLEXIBILIZAÇÃO OU RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA.Nilton Kiyoshi Kurachi e Ana Paula Muxfeldt de Almeida

3 - O SIGILO FISCAL E SUA ‘QUEBRA’: ANÁLISE DAS PREVISÕES LEGAIS EXCEPCIONANTES À LUZ DA CONSTITUIÇÃO.Augusto Carlos Cavalcante Melo

4 - EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE SOBERANIA DO ESTADO MODERNO AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS.Arnaldo de Aguiar Machado Júnior

5 - A AÇÃO CIVIL PÚBLICA E O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES: ESTUDO ANALÍTICO DE SUAS POSSIBILIDADES E LIMITES.Paulo Gustavo Guedes

6 - FRAUDE À LEI EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA.Marcus Vinícius Lima Franco

7 - CLÁUSULAS ABERTAS, CONCEITOS INDETERMINADOS E DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL DIANTE DAS HIPÓTESES DE IMPENHORABILIDADE FORMULADAS PELA LEI 11382/06.Flávia Moreira Guimarães Pessoa

8 - A PREVISÃO DOS ARTIGOS 475-L, §1º E 741, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: INOVAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL E SUA CONFORMIDADE COM OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS.Andrea Carla Veras Lins e Lyts de Jesus Santos

9 - ESTATUTO DOS SERVIDORES DE ARACAJU (LEI MUNICIPAL 1464/88). LEI MORTA?Filipe Côrtes de Menezes

10 - RAÍCES FILÓFICAS: PARADOJA DE VALORES EN LA ADMINISTRACIÓN PÚBLICA.Pedro Durão

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11 - O POSITIVISMO JURÍDICO: UMA ABORDAGEM DA TEORIA NORMATIVISTA DO DIREITO, SEGUNDO HANS KELSEN. André Luiz Vinhas da Cruz

12- O CONTROLE INTERNO E A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA GERENCIAL.Agripino Alexandre dos Santos Filho

13 - APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA AOS REENQUADRAMENTOS DE CARGOS REALIZADOS EM DISCORDÂNCIA COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL.Rita de Cássia Matheus dos S. Silva

14 - CONSIDERAÇÕES SOBRE OS EFEITOS DA REMUNERAÇÃO ATRAVÉS DO SUBSÍDIO.Arthur Cezar Azevêdo Borba

15 - CONSTITUCIONALIDADE DA ADVOCACIA PRIVADA DO PROCURADOR DO ESTADO. Eugênia Maria Nascimento Freire

16 - SOB A ÉGIDE DE UM ESTADO DE DIREITO SOCIAL: EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS E AÇÃO ESTATAL NO CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO.Kleidson Nascimento dos Santos

17- A RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA DOS ADMINISTRADORES E O ÔNUS DA PROVA.Leo Peres Kraft

18 - PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR E ESCUTA TELEFÔNICA Samuel Oliveira Alves

19 - A RACIONALIDADE JURÍDICA E ECONÔMICA DA LC Nº 118/2005 E DA LEI 11.101/2005 E SEUS IMPACTOS NA ECONOMIA BRASILEIRA.Marival Matos dos Santos e Julimar Andrade Vieira

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PARECERES E PEÇAS PROCESSUAIS

20 - INCOMPATIBILIDADE DO EXERCÍCIO DA VEREÂNCIA COM O CARGO COMISSIONADO. Rita de Cássia Matheus dos S. Silva

21 - REGULARIDADE FORMAL DE PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR.Tiago Bockie de Almeida

22 - CELEBRAÇÃO DE CONVÊNIO DE COOPERAÇÃO TÉCNICA ENTRE A SEFAZ E A SERASA.José de Sousa Ibiapino

23 - FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS PARA HEPATITE C CRÔNICA.Antônio José de Oliveira, Vladimir de Oliveira Macedo e Humberto Alexandre F. Fernandes

24 - CONTESTAÇÃO DA ILEGITIMIDADE PASSIVA DO ESTADO EM AÇÕES DE COMPETÊNCIA DA AUTARQUIA DER.Pedro Dias de Araújo Júnior

25 - ANULATÓRIA FISCALRobson Nascimento Filho

26 - PARECER. DEFESA PRÉVIA. TCE/SE Jeferson Fonseca de Moraes

27 - PARECER. DENÚNCIA. TCE/SEJeferson Fonseca de Moraes

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ARTIGOS

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Leonardo José Carneiro da CunhaMestre em Direito pela UFPE

Doutor em Direito pela PUC/SPProcurador do Estado de Pernambuco

Advogado e consultor jurídico

AS DEFESAS DO EXECUTADO.

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SUMÁRIO

1. Introdução. 2. Defesa no cumprimento de sentença: impugnação. 2.1. Efeitos da impugnação. 2.2. Objeto da impugnação. 2.3. Procedimento. 2.4. Recursos. 3. Defesa na execução contra a Fazenda Pública: embargos à execução. 3.1. Efeitos dos embargos. 3.2. Objeto dos embargos. 3.3. O procedimento dos embargos opostos pela Fazenda Pública. 3.4. Recursos nos embargos. 4. Defesa na execução fundada em título extrajudicial: embargos à execução. 4.1. Efeitos dos embargos. 4.2. Objeto dos embargos. 4.3. Requerimento de parcelamento do crédito como proibição para oposição dos embargos. 4.4. Procedimento. 4.5. Recursos. 5. Exceção de pré-executividade. 5.1. Seu cabimento no cumprimento de sentença. 5.2. Seu cabimento na execução contra a Fazenda Pública. 5.3. Seu cabimento na execução fundada em título extrajudicial. 6. Ações autônomas (defesas heterotópicas). Bibliografia.

1 INTRODUÇÃO O Código de Processo Civil de 1973, em sua estrutura originária, unificou as execuções. Independentemente de estar fundada em título judicial ou em título extrajudicial, a execução submetia-se ao mesmo procedimento: o executado era citado para, em vinte e quatro horas, pagar ou nomear bens à penhora. Feita a penhora de bens, o executado era intimado, iniciando-se o prazo de dez dias para oposição de embargos à execução, que suspendiam o curso da execução. Os embargos eram julgados por sentença, da qual cabia apelação. Rejeitados os embargos, a apelação era desprovida de efeito suspensivo (CPC, art. 520, V). Acolhidos que fossem, a apelação ostentava o duplo efeito. Basicamente, a diferença que havia entre a execução fundada em título judicial e a execução fundada em título extrajudicial residia no objeto dos embargos do devedor. Se o título fosse judicial, o executado somente poderia alegar, em seus embargos, as matérias relacionadas no art. 741 do CPC. Em se tratando de execução fundada em título extrajudicial, não havia limitação, podendo o executado alegar toda e qualquer matéria (CPC, art. 745). Significa, então, que a defesa do executado, independentemente de a execução fundar-se em título judicial ou extrajudicial, era feita, na concepção originária do atual CPC, por meio de embargos, que ostentam a natureza de ação. Pela estrutura originária do Código de Processo Civil brasileiro em vigor, a execução sempre constituiu um processo autônomo, regulado em Livro próprio (o Livro II do CPC/1973). Com o advento da Lei nº 11.232, de 22 de dezembro de 2005, não existe mais processo autônomo de execução fundada em título judicial, devendo a sentença ser objeto de simples cumprimento. Tal sistemática não atinge a execução proposta em face da Fazenda Pública. Esta continua sendo uma execução autônoma, cabendo embargos do devedor, cuja natureza de ação está mantida. Aliás, o art. 741 do CPC passou

a tratar dos embargos à execução opostos pela Fazenda Pública. Este dispositivo – juntamente com os arts. 730 e 731, os quais não foram alterados – está no Livro II do CPC, que trata do processo (autônomo) de execução. Os demais dispositivos – que tratavam da execução fundada em título judicial – foram revogados, sendo, muitos, transplantados para o Livro I do CPC (arts. 475-A a 475-R), que trata do processo de conhecimento, de sorte que o cumprimento da sentença não gera mais um processo autônomo de execução. Na execução contra a Fazenda Pública, continua a regra antiga: há processo autônomo de execução, disciplinado no Livro II do CPC, mais precisamente nos arts. 730 e 731, passando o art. 741 a cuidar dos embargos opostos pela Fazenda Pública, relacionando as matérias que possam ser versadas em tais embargos. Por aí já se vê que, atualmente, variam os tipos de execução, a depender do título executivo. Se o título for judicial, adota-se a sistemática do cumprimento de sentença, com o procedimento previsto a partir do art. 475-J do CPC. Em se tratando de título extrajudicial, a execução mantém a disciplina prevista no Livro II do Código, inaugurando um processo autônomo. Na execução contra a Fazenda Pública, independentemente de qual seja o título executivo, há regramento próprio, ajustado à sistemática constitucional do precatório ou da requisição de pequeno valor. Em cada tipo de execução, o executado pode defender-se. No cumprimento da sentença, a defesa do executado faz-se mediante impugnação (CPC, arts. 475-L e 475-M). Na execução de título extrajudicial, o executado defende-se pelos embargos à execução (CPC, arts. 736 a 745). A Fazenda Pública, nas execuções contra ela propostas, defende-se igualmente por embargos (CPC, arts. 730 e 741). O que se pretende, no presente ensaio, é analisar essas defesas apresentadas pelo executado, investigando-se, ademais, se ainda é possível o manejo da chamada exceção de pré-executividade, além do exame das ações autônomas (igualmente nominadas de defesas heterotópicas) e da relação havida entre todas essas defesas do executado.

2. DEFESA NO CUMPRIMENTO DE SENTENÇA: IMPUGNAÇÃO

Condenado ao pagamento de quantia certa ou já fixada em liquidação, o devedor deve efetuar o pagamento no prazo de quinze dias. Não efetuado o pagamento nesse prazo, o valor da condenação será acrescido de multa de 10% (dez por cento) e, a requerimento do credor, será expedido mandado de penhora e avaliação. Feita a penhora e avaliação do bem, o executado será imediatamente intimado, podendo oferecer impugnação no prazo de quinze dias. A intimação é feita na pessoa do advogado do executado, mediante publicação no Diário Oficial (CPC, art. 236) ou, caso não haja circulação do Diário Oficial na Comarca, por carta registrada, com aviso de recebimento, quando o advogado for domiciliado fora do juízo, ou pessoalmente, quando domiciliado na sede do juízo (CPC, art. 237). Na falta de advogado, o executado deverá ser intimado pessoalmente, por mandado ou pelo correio.

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Segundo Teori Albino Zavascki, o prazo de quinze dias para apresentação de impugnação conta-se desde logo. Em suas palavras, “o termo inicial é a data da intimação, e não a da juntada aos autos do respectivo mandado ou do comprovante de entrega da correspondência. É sistema de contagem semelhante ao do prazo dos embargos do devedor na execução fiscal (Lei 6.830/80, art. 16, III) e semelhante também ao previsto para os embargos na redação original do art. 738, I, do CPC, antes da modificação imposta pela Lei 8.953/94”.1 Na verdade, é preciso observar se a intimação dirigiu-se ao advogado – operando-se, pois, por publicação no Diário Oficial – ou se, na falta do advogado, foi feita pessoalmente ao executado, por mandado ou pelo correio. Feita a intimação por publicação no Diário Oficial, o prazo de quinze dias para o oferecimento da impugnação já se inicia desde logo. Caso, porém, tenha a intimação sido feita pessoalmente ao executado, por carta ou por mandado, impõe-se aplicar, na espécie, o disposto no art. 241, I e II, do CPC, iniciando-se o prazo a partir da juntada aos autos do aviso de recebimento ou da juntada aos autos do mandado de intimação devidamente cumprido.2 Havendo mais de um executado, se a intimação se operar por publicação no Diário Oficial, na pessoa de seus advogados, o prazo já se inicia imediatamente. Caso, todavia, as intimações sejam feitas por oficial de justiça ou por via postal, aplica-se o disposto no art. 241, III, do CPC, iniciando-se após a juntada do último mandado de intimação ou do último aviso de recebimento. Se há mais de um executado com procuradores diferentes, controverte-se a doutrina sobre a aplicabilidade do art. 191 do CPC, sobressaindo, de um lado, entendimento segundo o qual tal dispositivo não se aplicaria, tendo todos eles quinze dias para oferecimento da impugnação,3 enquanto, de outro lado, destaca-se orientação no sentido de que a regra incidiria, de tal sorte que os executados teriam, no caso, trinta dias para ajuizamento da impugnação.4 Em razão do art. 191 do CPC, os litisconsortes com procuradores diferentes têm prazo em dobro para contestar, para recorrer e, de modo geral, para falar nos autos. Tal dispositivo não tem aplicação ao prazo conferido aos litisconsortes para ajuizar uma demanda. É por isso que não incide tal dispositivo quando do ajuizamento de embargos à execução, tal como, aliás, estabelece o § 3º do art. 738 do CPC. A impugnação consiste numa defesa. Dessa forma, aplica-se o disposto no art. 191 do CPC, sendo inegável que os executados terão prazo em dobro.5 Enfim, aplica-se o disposto no art. 191 do CPC à impugnação, de sorte que, havendo mais de um executado com procuradores diferentes, terão prazo em dobro para ajuizamento da impugnação. Sem embargo de opiniões em contrário6, a impugnação não depende de penhora; não é necessário que o juízo esteja garantido para que se possa apresentar a impugnação. Segundo dispõe o § 1º do art. 475-J do CPC, o prazo final para apresentação da impugnação é de quinze dias, a contar da intimação da penhora. O que a regra estabeleceu foi um limite temporal para o oferecimento da impugnação, valendo dizer que a impugnação deve ser apresentada até o final do prazo

de quinze dias após a intimação da penhora. A penhora não constitui requisito necessário e suficiente ao ajuizamento da impugnação; esta pode, então, ser oferecida antes mesmo da penhora. Segundo Daniel Amorim Assumpção Neves, “A melhor interpretação do dispositivo legal é a que considera que o prazo indicado em lei é o prazo máximo concedido ao demandado para ingressar com a impugnação, verificando-se após esse prazo o fenômeno da preclusão temporal. Significa dizer que, após a penhora, o demandado será intimado, e a partir de então terá ainda quinze dias para apresentar impugnação. Isso não significa dizer que não possa o demandado ingressar com a impugnação a qualquer momento antes disso, inclusive antes da constrição judicial. E nem se alegue que, antes de intimado da penhora, o prazo não terá sido iniciado, o que vetaria a prática do ato processual, considerando-se que essa tese já foi amplamente rejeitada pela melhor doutrina” 7. No mesmo sentido, assim entende Rodrigo Barioni: “..., o prazo para impugnação começa a fluir da intimação da penhora; nada impede, porém, que o executado se antecipe ao momento da penhora e ofereça desde logo sua impugnação à execução, uma vez que, conforme já mencionado, não há norma legal que condicione a impugnação à prévia segurança do juízo”.8

2.1. Efeitos da impugnação

A impugnação apresentada no cumprimento da sentença é desprovida de efeito suspensivo, podendo o juiz, todavia, conceder tal efeito suspensivo, se o executado assim requerer e desde que, tendo havido penhora, estejam preenchidos os requisitos genéricos das cautelares: fumus boni juris e periculum in mora (CPC, art. 475-M).9 Não é o simples oferecimento da impugnação que acarreta a suspensão da execução. Cabe ao executado demonstrar a necessidade de se conferir efeito suspensivo à impugnação para que, então, o juiz lhe agregue tal efeito, sobrestando o andamento da fase de cumprimento da sentença. Ao comentar a regra inserida no art. 475-M do CPC, anota Olavo de Oliveira Neto que “neste caso, inverte-se o ônus da prova, cabendo ao executado, para obter o efeito, formular o pedido e provar a possibilidade do dano e a sua qualificação”.10

Significa que o cumprimento da sentença se suspende, não com o ajuizamento da impugnação, mas sim com a determinação judicial de que ela merece, no caso concreto, ser recebida com efeito suspensivo. A suspensão da execução da sentença opera-se, então, ope judicis, e não com o simples oferecimento da impugnação. Deferido o efeito suspensivo, a impugnação será instruída e decidida nos próprios autos. Caso, porém, seja rejeitado o pedido de efeito suspensivo, a impugnação será processada em autos apartados, apensados aos autos principais (CPC, art. 475-M, § 2º). Daí se infere que a impugnação deve ser ajuizada por simples petição, mantendo-se confinada nos autos, se concedido o efeito suspensivo. Rejeitado que seja o efeito suspensivo, deve ser desentranhada a impugnação para que seja autuada e passe a tramitar em apenso aos autos principais.

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A execução pode prosseguir, mesmo tendo o juiz concedido o efeito suspensivo. Na dicção do § 1º do art. 475-M do CPC, “ainda que atribuído efeito suspensivo à impugnação, é lícito ao exeqüente requerer o prosseguimento da execução, oferecendo e prestando caução suficiente e idônea, arbitrada pelo juiz e prestada nos próprios autos”. Trata-se de indisfarçável medida de contra-cautela, prestada pelo exeqüente para resguardar o dano que o executado alega estar exposto e que justificou o deferimento do efeito suspensivo. Não é necessária a propositura de uma demanda cautelar para que seja prestada a caução; esta se presta nos próprios autos, devendo ser suficiente e idônea, real ou fidejussória.

2.2. Objeto da impugnação

O art. 475-L do CPC substituiu seu art. 741, em sua redação originária, para estabelecer que, na impugnação, o executado somente pode alegar as matérias ali relacionadas. O executado, em sua impugnação, apenas pode tratar de vícios, defeitos ou questões da própria execução, podendo, ainda, suscitar causas impeditivas, modificativas ou extintivas da obrigação, desde que supervenientes à sentença. É taxativo o elenco de matérias previstas no art. 475-L do CPC, não podendo o executado alegar, em sua impugnação, qualquer outro tema. Ressalvadas a falta ou nulidade de citação, se o processo correu à revelia (CPC, art. 475-L, I) e a chamada coisa julgada inconstitucional (CPC, art. 475-L, § 1º), ao executado não se permite alegar questões anteriores à sentença, restringindo-se a suscitar matéria que diga respeito à própria execução ou que seja superveniente à sentença. E isso porque as questões anteriores à sentença já foram alcançadas pela preclusão ou pela coisa julgada material, não devendo mais ser revistas na execução. É relevante observar que, quando o executado alegar que o exeqüente pleiteia, em excesso de execução, quantia superior à resultante da sentença, cabe-lhe declarar, na própria impugnação, o valor que entende correto, sob pena de sua rejeição liminar.

2.3. Procedimento

Apresentada a impugnação, o juiz poderá rejeitá-la liminarmente, quando intempestiva ou quando verse sobre matéria não prevista no art. 475-L do CPC, caso em que deve ser considerada manifestamente protelatória. Não há previsão para essa rejeição liminar, mas constitui uma decorrência lógica da previsão de prazo para seu ajuizamento e, igualmente, da regra inscrita no aludido art. 475-L. Ora, se há um prazo para ajuizamento da impugnação, é curial que deve ser rejeitada quando sua apresentação for serôdia. De igual modo, se a impugnação somente pode versar sobre determinadas matérias (CPC, art. 475-L), revela-se incabível quando não tratar de qualquer uma delas, impondo-se sua rejeição liminar. Também pode haver rejeição liminar, conforme anotado no item 2.2. supra, quando o executado alegar excesso de execução, mas não declarar, em sua impugnação, o valor que entende correto. Essa hipótese

de rejeição liminar está, expressamente, prevista no § 2º do art. 475-L do CPC. Não sendo caso de rejeição liminar da impugnação, o juiz irá recebê-la para deferir ou não o efeito suspensivo. Em seguida, deverá determinar a intimação do exeqüente para sobre ela manifestar-se. Não há previsão legal quanto ao prazo do exeqüente para manifestação sobre a impugnação. Daí por que, segundo leciona Humberto Theodoro Júnior, o exeqüente deve manifestar-se “no prazo que lhe assinar o juiz, levando em conta a maior ou menor complexidade da causa (art. 177). Silenciando-se o ato judicial a respeito do prazo de resposta, será de cinco dias (art. 185)”.11

Teori Albino Zavascki entende que o juiz deve determinar a intimação12 do exeqüente, fixando-lhe prazo igual ao da impugnação, ou seja, quinze dias contados da intimação . Cassio Scarpinella Bueno, invocando os princípios do contraditório e da isonomia, defende igualmente que o exeqüente deve ser intimado para, em quinze dias, manifestar-se sobre a impugnação. 13

Diante do silêncio da lei, deve o juiz fixar o prazo para que o exeqüente se manifeste sobre a impugnação; deixando de fazê-lo, o prazo será de cinco dias, mercê do que dispõe o art. 185 do CPC. Mesmo intimado, é possível que o exeqüente não se pronuncie sobre a impugnação. A ausência de manifestação do exeqüente não implica qualquer presunção de veracidade quanto ao afirmado pelo executado. A sentença que se executa é título executivo, gozando de presunção de certeza, liquidez e exigibilidade, estando, ademais, acobertada pela preclusão e, em se tratando de execução definitiva, pela coisa julgada material. Ao executado incumbe o ônus da prova das alegações que fizer, não se operando a presunção de veracidade dos fatos alegados, em razão de simples inércia do exeqüente, ao deixar de se pronunciar sobre a impugnação. Após a manifestação do exeqüente, poderá o juiz determinar a produção de provas adicionais e designar audiência de instrução e julgamento. Não havendo necessidade de outras provas, o juiz poderá, diversamente, já decidir a impugnação.

2.4. Recursos

A impugnação, como já se afirmou, pode ser rejeitada liminarmente pelo juiz. Da decisão que rejeitar, desde logo, a impugnação cabe recurso de agravo. Nos termos do art. 522 do CPC, o agravo deve, em regra, ser interposto na forma retida, somente cabendo agravo de instrumento da decisão que inadmitir a apelação, da decisão relativa aos efeitos em que a apelação for recebida e em casos de grave lesão ou de difícil reparação. Ocorre, porém, que o agravo retido contém efeito devolutivo diferido, devendo ser interposto apenas para evitar a preclusão. Interposto o agravo retido, cabe à parte interessada, nas razões ou contra-razões de apelação, reiterá-lo, sob pena de ele não ser conhecido, por não ser a matéria devolvida ao conhecimento do tribunal (CPC, art. 523). Rejeitada, liminarmente, a impugnação, a execução da sentença deve prosseguir, até a satisfação do crédito, extinguindo-se por sentença. Se se entendesse que da rejeição liminar da impugnação

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coubesse agravo retido, este haveria de ser reiterado nas razões da apelação interposta contra a sentença que declarasse extinta a execução, afastando-se o interesse recursal. Quer isto dizer que, rejeitada liminarmente a impugnação, não cabe agravo retido, mas sim agravo de instrumento. O agravo retido é, como se vê, incompatível com a execução. Cabe, diante disso, agravo de instrumento contra a decisão que rejeitar, liminarmente, a impugnação apresentada pelo executado. Diante dessa incompatibilidade, o § 3º do art. 475-M do CPC estabelece ser cabível agravo de instrumento (e não retido) contra a decisão que julgar a impugnação. Se, todavia, o juiz, ao acolher a impugnação, resolver pôr termo à execução, extinguindo essa fase do processo, aí cabe apelação.

3. DEFESA NA EXECUÇÃO CONTRA A FAZENDA PÚBLICA: EMBARGOS À EXECUÇÃO

Em razão da inalienabilidade e impenhorabilidade14 dos bens públicos, a regra de responsabilidade patrimonial prevista no art. 591 do CPC revela-se inoperante frente a Fazenda Pública . Desse modo, a execução por quantia certa contra a Fazenda Pública15 deve revestir matiz especial, não percorrendo a senda da penhora, nem da apropriação ou expropriação de bens para alienação judicial, a fim de satisfazer o crédito executado. Daí por que se ajuíza a execução, com o procedimento capitulado no art. 730 do CPC, seguindo-se a oposição de embargos do devedor pela Fazenda Pública para, ao final, ser, então, expedido o precatório, em atendimento à regra inscrita no art. 100 da Constituição Federal de 1988. Ajuizada a execução em face da Fazenda Pública, esta é citada para, querendo, opor embargos do devedor no prazo de 30 (trinta) dias (Lei nº 9.494/1997, art. 1º-B, na redação da MP nº 2.180-35/2001). Não apresentados ou rejeitados que sejam, o juiz determina a expedição de precatório ao Presidente do respectivo tribunal para que reste consignado à sua ordem o valor do crédito, com requisição às autoridades administrativas para que façam incluir no orçamento geral, a fim de proceder ao pagamento no exercício financeiro subseqüente. Enfim, a defesa da Fazenda Pública, na execução contra ela movida, é feita por embargos, cujas peculiaridades passam a ser doravante registradas.

3.1. Efeitos dos embargos

A Lei nº 8.953, de 13 de dezembro de 1994, incluiu um § 1º ao art. 739 do CPC, segundo o qual “os embargos serão sempre recebidos com efeito suspensivo”. Essa regra aplicava-se, irrestritamente, aos embargos opostos pela Fazenda Pública. Citada para a execução, a Fazenda Pública ajuizava embargos, os quais eram dotados de efeito suspensivo, obstando o seguimento da execução. Com o advento da Lei nº 11.382, de 6 de dezembro de 2006, o conteúdo do art. 739 foi transportado para o art. 739-A. O § 1º do art. 739-A equivale ao que dispunha o § 1º do então art. 739,

cujo comando foi modificado. Opostos os embargos, não há mais a suspensão automática da execução. Nos termos do § 1º do art. 739-A do CPC, “o juiz poderá, a requerimento do embargante, atribuir efeito suspensivo aos embargos quando, sendo relevantes seus fundamentos, o prosseguimento da execução manifestamente possa causar ao executado grave dano de difícil ou incerta reparação, e desde que a execução já esteja garantida por penhora, depósito ou caução suficientes”. O § 1º do art. 730-A do CPC não se aplica à execução proposta contra a Fazenda Pública, pelos seguintes motivos: a) o efeito suspensivo depende de penhora, depósito ou caução. A Fazenda Pública não se sujeita a penhora, depósito nem caução, não precisando garantir o juízo para opor seus embargos; b) a expedição de precatório ou requisição de pequeno valor depende do prévio trânsito em julgado (CF/88, art. 100, §§ 1º e 3º), de sorte que somente pode ser determinado o pagamento, se não houver mais qualquer discussão quanto ao valor executado. Conforme assinala Cassio Scarpinella Bueno, “o trânsito em julgado que autoriza a execução contra a Fazenda só pode ser o dos embargos à execução, superados, pois, os processos de conhecimento e o de eventual liquidação...”.16

Em outras palavras, o precatório ou a requisição de pequeno valor somente se expede depois de não haver mais qualquer discussão quanto ao valor executado, valendo dizer que tal expedição depende do trânsito em julgado da sentença que julgar os embargos. Por essa razão, os embargos opostos pela Fazenda Pública devem, forçosamente, ser recebidos no efeito suspensivo, pois, enquanto não se tornar incontroverso ou definitivo o valor cobrado, não há como se expedir o precatório ou a requisição de pequeno valor. Quando os embargos forem parciais, a execução, nos termos do § 3º do art. 739-A do CPC, prosseguirá quanto à parte não embargada. Tal regra aplica-se aos embargos opostos pela Fazenda Pública. Nesse caso, a execução deve prosseguir relativamente ao valor equivalente à parte incontroversa, expedindo-se, quanto a essa parte, o precatório17. Em tal situação, não está havendo o fracionamento vedado no § 4º do art. 100 da Constituição Federal, eis que não se trata de intenção do exeqüente de repartir o valor para receber uma parte por requisição de pequeno valor e a outra, por precatório.18

À evidência, a nova disciplina dos embargos à execução deve ser adaptada à execução contra a Fazenda Pública, que se submete a regime jurídico próprio, ajustando-se à sistemática constitucional do precatório ou da requisição de pequeno valor. Como a expedição do precatório ou da requisição de pequeno valor depende do prévio trânsito em julgado, é curial que os embargos devem, sempre, ser recebidos no efeito suspensivo. Logo, o § 1º do art. 739-A do CPC não se aplica à Fazenda Pública, por ser incompatível com o regime da execução contra ela proposta. Aplica-se, contudo, à execução contra a Fazenda Pública a regra do § 3º do art. 739-A do CPC, de maneira que, sendo parciais os embargos, a execução deve prosseguir no tocante à parte não embargada.

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3.2. Objeto dos embargos

Na execução contra ela movida, a Fazenda Pública defende-se por meio de embargos, que passaram a ser disciplinados no art. 741 do CPC, em cujos termos há uma restrição: somente podem ser alegadas as matérias ali relacionadas. Apenas se permite à Fazenda Pública tratar de vícios, defeitos ou questões da própria execução, podendo, ainda, suscitar causas impeditivas, modificativas ou extintivas da obrigação, desde que supervenientes à sentença. E nem poderia ser de outro modo, já que as questões anteriores à sentença já foram alcançadas pela preclusão e, até mesmo, pela coisa julgada material. Com exceção da falta ou nulidade de citação, se o processo correu à revelia (CPC, art. 741, I) e da chamada coisa julgada inconstitucional (CPC, art. 741, parágrafo único), a Fazenda Pública não deve alegar questões anteriores à sentença, cingindo-se a suscitar matéria que diga respeito à própria execução ou que seja superveniente à sentença. Dentre as alegações previstas no art. 741 do CPC, não há qualquer alusão a penhora ou avaliação de bens, exatamente porque a execução contra a Fazenda Pública não se faz por expropriação, nem há constrição, depósito ou penhora de bens. Tudo se processa sem garantia do juízo para, ao final, ser expedido o precatório ou a requisição de pequeno valor. A essa altura, não é ocioso repisar o que já se disse na introdução do presente ensaio: não se aplica à Fazenda Pública as regras do cumprimento de sentença, não incidindo, no particular, o disposto nos arts. 475-J e seguintes do CPC; não se aplica, a toda evidência, a multa de 10% (dez por cento) ali prevista19. A execução contra a Fazenda Pública continua a ser um processo autônomo, ensejando citação e oposição de embargos, recebidos no efeito suspensivo. Cumpre observar que a execução proposta contra a Fazenda Pública pode fundar-se num título executivo extrajudicial. Aliás, o enunciado 279 da Súmula de Jurisprudência Predominante do STJ confirma ser cabível execução de título extrajudicial contra a Fazenda Pública. Proposta execução de título extrajudicial contra a Fazenda Pública, o procedimento da execução segue a mesma trilha dos arts. 730 e 731 do CPC, devendo haver citação para oposição de embargos, com a posterior expedição de precatório ou requisição de pequeno valor. Não se deve, entretanto, impor, na execução fundada em título extrajudicial contra a Fazenda Pública, a restrição de matérias prevista no art. 741 do CPC. O art. 741 do CPC restringe as matérias que podem ser veiculadas nos embargos à execução, mas tal disposição confina-se no âmbito da execução de título judicial20. Em se tratando de título extrajudicial, não há razão para restringir o âmbito dos embargos, eis que não há preclusão nem coisa julgada material relativamente ao título, que impeça a alegação de questões pertinentes à obrigação ou à relação jurídica que deu origem ao crédito. Em outras palavras, o art. 745 do CPC aplica-se aos embargos opostos pela Fazenda Pública na execução fundada em título extrajudicial contra ela movida, de

sorte que lhe é franqueada a possibilidade de alegar, em seus embargos, quaisquer matérias, não devendo haver restrição nem limitação. Os limites impostos no art. 741 do CPC, não custa repetir, incidem apenas aos embargos opostos à execução fundada em título judicial.

3.3. O procedimento dos embargos opostos pela Fazenda Pública

Opostos os embargos pela Fazenda Pública, a execução, como já anotado no item 3.1. supra, fica suspensa. Recebidos os embargos, deve o juiz determinar a intimação do embargado para se manifestar. No particular, aplica-se a disciplina própria do regime jurídico dos embargos, incidindo o disposto no art. 740 do CPC, de sorte que o exeqüente será ouvido no prazo de quinze dias. Em seguida, o juiz julgará imediatamente o pedido, aplicando o art. 330 do CPC, ou designará audiência de conciliação, instrução e julgamento, proferindo sentença no prazo de dez dias. Em vez de receber os embargos, poderá o juiz rejeitá-los liminarmente, quando, nos termos do art. 739 do CPC, forem intempestivos, quando inepta a petição inicial ou quando manifestamente protelatórios. Se a execução proposta contra a Fazenda Pública estiver fundada em título judicial, também haverá rejeição liminar dos embargos, quando estes versarem matéria não prevista no art. 741 do CPC. Julgados os embargos opostos pela Fazenda Pública, a sentença não está sujeita a reexame necessário, de vez que o reexame já foi procedido em relação à sentença do anterior processo de conhecimento, além de o art. 475, II, do CPC aludir, apenas, a embargos opostos à execução fiscal, excluindo-se aqueles opostos à execução não-fiscal, ou seja, àquela fundada em sentença condenatória.21

3.4. Recursos nos embargos

O ato do juiz que rejeita liminarmente os embargos, indeferindo, desde logo, a petição inicial, ostenta o cariz de sentença. Logo, cabível apelação. Acontece, porém, que tal sentença encarta-se na hipótese do art. 295 do CPC, por se tratar de caso típico de indeferimento da petição inicial. Quer isto dizer que a apelação interposta contra a sentença que rejeita, liminarmente, os embargos é aquela prevista no art. 296 do CPC, de forma que não enseja contra-razões e permite ao juiz o exercício da retratação. Ademais, tal apelação não conta com revisor, tendo, apenas, relator (CPC, art. 551, § 3º). Recebidos os embargos e processados na forma do art. 740 do CPC, seu julgamento final se faz por meio de sentença, sendo, portanto, cabível a apelação. Acolhidos os embargos, a apelação tem duplo efeito. A partir da Lei Federal n. 11.232/2005, os embargos à execução de título judicial restringem-se às hipóteses de execução contra a Fazenda Pública (art. 741 do CPC). Segundo a previsão do art. 520, V, do CPC, a apelação interposta contra sentença que julgue improcedentes ou rejeite os embargos à execução não teria efeito suspensivo legal. Só que a expedição de precatório ou de requisição de pequeno valor depende

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do prévio trânsito em julgado (CF/88, art. 100, § 1º e 3º), de sorte que somente pode ser determinado o pagamento, se não houver mais qualquer discussão quanto ao valor executado. Diante disso, a apelação contra a sentença que rejeita os embargos à execução contra a Fazenda Pública, mercê das referidas exigências constitucionais, há de ser recebida no duplo efeito. Vale dizer que o art. 520, V, do CPC não tem mais aplicação à apelação que rejeita os embargos à execução de título judicial. Na execução civil entre particulares, não há mais embargos; a defesa do executado, como se viu, faz-se por impugnação. E, quando se tratar de execução contra a Fazenda Pública, a regra não se aplica em virtude das mencionadas normas constitucionais, sendo a apelação ali recebida, necessariamente, no duplo efeito. O recebimento da apelação apenas no efeito devolutivo, no caso de execução contra a Fazenda Pública, é totalmente inoperante e ineficaz, visto que, enquanto não confirmados ou estabelecidos, definitivamente, os valores a serem inscritos em precatórios ou requisitados por RPV, não se pode prosseguir na execução. À evidência, o art. 520, V, do CPC restringe-se, atualmente, à hipótese de embargos à execução fundada em título extrajudicial. No curso do procedimento dos embargos, pode haver a prolação de decisões interlocutórias, que, em princípio, são atacadas por agravo retido, o qual deve ser reiterado nas razões ou contra-razões de apelação. Somente será cabível agravo de instrumento, se houver grave lesão ou de difícil reparação, ou na hipótese de inadmissão da apelação, ou, ainda, da decisão relativa aos efeitos em que recebe a apelação (CPC, art. 522).

4. DEFESA NA EXECUÇÃO FUNDADA EM TÍTULO EXTRAJUDICIAL: EMBARGOS À EXECUÇÃO

A partir das mudanças levadas a cabo pela Lei nº 11.382, de 6 de dezembro de 2006, o executado, na execução fundada em título extrajudicial, é citado para, no prazo de três dias, efetuar o pagamento da dívida (CPC, art. 652). Independentemente de penhora, depósito ou caução, o executado poderá opor-se à execução por meio de embargos (CPC, art. 736). Os embargos serão oferecidos no prazo de quinze dias, contados da data da juntada aos autos do mandado de citação (CPC, art. 738). Como se observa, os embargos à execução não dependem mais de garantia do juízo, não sendo necessária a constrição de bens pela penhora, depósito ou caução. Citado o executado, e juntado o respectivo mandado aos autos, já se inicia o prazo de quinze dias para a oposição dos embargos, mesmo que ainda não se tenha feito a penhora de bens. Quando houver mais de um executado, não se aplica o disposto no art. 241, III, do CPC, segundo o qual o prazo, no caso de litisconsórcio passivo, começa da data da juntada do último mandado cumprido. Na execução proposta contra mais de um executado, essa regra não se aplica; o prazo para cada um deles embargar conta-se a partir da juntada do respectivo mandado de citação, significando dizer que o prazo é individual. Quando, todavia, os executados forem cônjuges entre si,

aí se aplica o disposto no art. 241, III, do CPC: o prazo para embargos somente terá início, a partir da juntada aos autos do último mandado de citação devidamente cumprido (CPC, art. 738, § 1º).22

O prazo para embargos é, como visto, de quinze dias. Ainda que haja mais de um executado, estando cada um representado por procurador diferente, o prazo é de quinze dias, não havendo variação, nem se aplicando a regra inscrita no art. 191 do CPC. É o que estabelece o § 3º do art. 738 do CPC.

4.1. Efeitos dos embargos

Consoante já restou acentuado no item 3.1. supra, o art. 739 do CPC estabelecia que os embargos seriam recebidos sempre com efeito suspensivo (§ 1º), sendo certo, contudo, que, se os embargos fossem parciais, a execução prosseguiria quanto à parte não embargada (§ 2º). Havendo mais de um executado, os embargos intentados por um deles suspendiam a execução também para os demais, desde que seus fundamentos servissem para todos (§ 3º). Significa, então, que a execução suspendia-se, no todo ou em parte, quando opostos embargos do devedor. Se os embargos impugnassem toda a execução ou todo o valor executado, a suspensão era total. Caso, porém, os embargos atacassem apenas parte da execução ou parte do valor cobrado, suspendia-se somente essa parte. Não se pode dizer que esse efeito suspensivo seja inerente aos embargos à execução. Trata-se de questão que depende de previsão legal, variando em cada direito positivo. No direito italiano, por exemplo, a opposizione all’esecuzione (que corresponde aos embargos à execução do CPC brasileiro) não tem eficácia suspensiva automática da execução ou do processo executivo. Somente haverá suspensão da execução, se for intentada medida cautelar para assegurar o resultado útil da opposizione all’esecuzione, diante da relevância dos seus argumentos e do risco de grave lesão23. Na verdade, a suspensão da execução, no direito italiano, constitui tema afeto aos procedimentos cautelares24. Enfim, no direito italiano, apresentada a opposizione all’esecuzione não há suspensão automática da execução, não sendo, portanto, tal suspensão decorrente de determinação legal; decorre, isto sim, do poder do juiz de suspender, como instrumento geral de tutela cautelar25. Determinada a suspensão da execução, o provimento de suspensão cautelar perde eficácia em conseqüência da sentença do juízo de primeiro grau, que reconhece a insubsistência da opposizione26. Como se pode perceber, havendo embargos, a execução poderá ser suspensa. Há sistemas em que a simples oposição dos embargos causa a suspensão da execução, ao passo que, em outros, não são os embargos que acarretam a suspensão da execução, mas determinação judicial, tendo em vista a necessidade de se acautelar os interesses do embargante. Nesse último caso, a suspensão se opera mediante providência cautelar. Em suma, a suspensão da execução, tendo em vista o ajuizamento dos embargos do executado, pode operar-se ope legis ou ope judicis. Realmente, a legislação processual estabelece se

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os embargos do executado terão, automaticamente, o efeito suspensivo. Trata-se do critério ope legis do efeito suspensivo dos embargos. O sistema originário do CPC brasileiro tinha, como visto, o efeito suspensivo, em razão da determinação legal (critério ope legis). Outros sistemas, como o italiano, determinam que os embargos sejam recebidos sem efeito suspensivo, podendo o juiz, mediante provimento cautelar, agregar esse efeito suspensivo. Haverá, nesse caso, concessão de efeito suspensivo pelo critério ope judicis. A Lei nº 11.382, de 6 de dezembro de 2006, alterou essa sistemática, de sorte que o regime brasileiro migrou do critério ope legis para o ope judicis: os embargos não têm mais efeito suspensivo automático. Sua oposição não acarreta a suspensão da execução, cabendo ao juiz, preenchidos os correlatos requisitos, avaliar se deve suspender a execução. Do contrário, não se suspende a execução. Com efeito, o art. 739-A do CPC dispõe que “os embargos do executado não terão efeito suspensivo”. E, segundo o § 1º do mesmo art. 739-A do CPC, “o juiz poderá, a requerimento do embargante, atribuir efeito suspensivo aos embargos quando, sendo relevantes seus fundamentos, o prosseguimento da execução manifestamente possa causar ao executado grave dano de difícil ou incerta reparação, e desde que a execução já esteja garantida por penhora, depósito ou caução suficientes”. Como se observa, os embargos do executado, ofertados na execução fundada em título extrajudicial são desprovidos de efeito suspensivo, podendo o juiz, todavia, conceder tal efeito suspensivo, se o executado assim requerer e desde que preenchidos os requisitos genéricos das cautelares: fumus boni juris e periculum in mora. Ademais, é preciso, para que se conceda o efeito suspensivo aos embargos, que o juízo esteja garantido pela penhora, pelo depósito ou por uma caução. Atribuir eficácia suspensiva automática aos embargos faz com que o exeqüente suporte os riscos do atraso na entrega da prestação jurisdicional: basta a oposição de embargos para que se suspenda a execução. Com essas modificações levadas a efeito no Código de Processo Civil, invertem-se os ônus da demora do processo. É o executado quem deve suportar os riscos da eventual morosidade processual, demonstrando a necessidade de se conferir efeito suspensivo aos embargos. Essa modificação acarretou, conseqüentemente, uma alteração no texto do art. 791, I, do CPC, que passou a ostentar a seguinte redação:

“Art. 791. Suspende-se a execução: I – no todo ou em parte, quando recebidos com efeito suspensivo os embargos à execução (art. 739-A);

Significa que a execução passará a ser suspensa, não com a propositura dos embargos, mas sim com a determinação judicial de que os embargos merecem, no caso concreto, ser recebidos com efeito suspensivo.

4.2. Objeto dos embargos

É bastante amplo do objeto dos embargos à execução fundada em título extrajudicial. O executado pode alegar qualquer matéria em seu favor, não havendo

restrições legais (CPC, art. 745). Se o executado alegar excesso de execução, deverá indicar, na petição inicial de seus embargos, o valor que entende correto, apresentando memória de cálculo que o demonstre. Trata-se de ônus atribuído ao embargante. A falta de indicação do valor correto ou a ausência de memória de cálculo que o demonstre implicará a rejeição liminar dos embargos ou o não conhecimento desse fundamento (CPC, art. 739-A, § 5º). Já se viu que, na execução fundada em título extrajudicial, os embargos não dependem mais de penhora, sendo ajuizados no prazo de quinze dias, contado da juntada aos autos do mandado de citação (CPC, art. 738). Significa, então, que, citado o executado, este já pode opor embargos. Como os embargos não têm efeito suspensivo, por não haver penhora (CPC, art. 739-A, § 1º), a execução irá prosseguir em busca de um bem a ser penhorado. É possível, desse modo, que sejam opostos embargos e, somente depois, ser penhorado um bem. Só que a penhora incorreta ou a avaliação errônea constitui matéria a ser alegada nos embargos (CPC, art. 745, II). Havendo vício na penhora ou na avaliação do bem, como deve o executado defender-se, se já opôs embargos? Nesse caso, impõe-se aplicar o disposto no art. 462 do CPC, a permitir que o executado alegue, posteriormente, o fato superveniente. Tal alegação, entretanto, não há de ser feita mais nos embargos, que já foram ajuizados, a não ser que não tenha ainda sido intimado o exeqüente. Aplica-se, no caso, o disposto no art. 294 do CPC, de forma que somente pode haver aditamento dos embargos antes da intimação do exeqüente. Vale dizer que, tendo o exeqüente já sido intimado, não poderá mais haver o aditamento dos embargos, a fim de serem incluídos novos argumentos, com novo pedido, que, no caso, seria para desconstituir a penhora ou questionar a avaliação feita. Muito embora não possa mais a questão ser suscitada nos embargos, é possível que o executado alegue vício da penhora ou avaliação errônea na própria execução, valendo-se do disposto no art. 462 do CPC. Como se trata de fato superveniente, não há preclusão, podendo a parte invocá-lo posteriormente, desde que respeitado o contraditório e as demais regras inerentes ao devido processo legal . Se, quando da penhora ou avaliação do bem, já houverem sido julgados os embargos, poderá igualmente o executado alegar o vício da penhora ou o erro da avaliação por simples petição, não havendo que se falar em preclusão, dada a superveniência da situação, aplicando-se, de igual modo, o disposto no art. 462 do CPC.

4.3. Requerimento de parcelamento do crédito como proibição para oposição dos embargos

O executado, no prazo para embargos, pode reconhecer o crédito do exeqüente e, comprovando o depósito de 30% (trinta por cento) do valor em execução, acrescido de custas e honorários de advogado, requerer seja admitido a pagar o restante em até seis parcelas

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mensais, acrescidas de correção monetária e juros de 1% (um por cento) ao mês (CPC, art. 745-A). Citado o executado, este terá, como visto, quinze dias para opor embargos. Durante esse prazo, em vez de embargar, poderá requerer o aludido parcelamento. O executado pode, enfim, escolher entre os embargos e o pedido de parcelamento. Na lição de Humberto Theodoro Júnior, “a opção escolhida, qualquer que seja, eliminará a outra faculdade processual. Se se opõem os embargos, não se cabe mais o parcelamento; se se obtém o parcelamento, extingue-se a possibilidade de embargos à execução”.28

O pedido de parcelamento impede, portanto, que o executado possa opor embargos. É que houve a prática de uma conduta incompatível com o desejo de discutir a dívida, caracterizando uma rematada preclusão lógica. Ao requerer o parcelamento, o executado reconhece a dívida, não lhe sendo mais possível opor embargos à execução. Muito embora não possa o executado opor embargos, nada impede que, na própria execução, possa, posteriormente, alegar vícios processuais, tais como a falta de uma condição da ação ou de um pressuposto processual. Enfim, o executado, ao requerer o parcelamento da dívida, não pode mais opor embargos à execução, mas pode, na própria execução, suscitar alguma questão de ordem pública ou, até mesmo, invocar fatos supervenientes, alegando, por exemplo, a impenhorabilidade do bem que venha a ser, posteriormente, penhorado, caso se concretize o não pagamento de qualquer das prestações (CPC, art. 745-A, § 2º).

4.4. Procedimento

Os embargos são distribuídos por dependência, autuados em apartado e instruídos com cópias das peças processuais relevantes, sendo certo que tais cópias podem ser declaradas autênticas pelo próprio advogado. Se forem intempestivos, manifestamente protelatórios ou ajuizados mediante petição inicial inepta, devem os embargos ser rejeitados liminarmente pelo juiz. Sendo manifestamente protelatórios os embargos, o juiz, além de rejeitá-los liminarmente, deve impor, em favor do exeqüente, multa ao embargante no valor de até 20% (vinte por cento) do valor executado. Recebidos os embargos, será o exeqüente intimado para, no prazo de quinze dias, manifestar-se. Após a manifestação do exeqüente, o juiz julgará imediatamente o pedido ou designará audiência de conciliação, instrução e julgamento, proferindo sentença no prazo de dez dias.

4.5. Recursos

A rejeição liminar dos embargos configura um indeferimento da petição inicial, cabendo apelação, nos termos do art. 296 do CPC: não haverá contra-razões, o juiz pode retratar-se e, no tribunal, não haverá revisor; haverá, apenas, relator (CPC, art. 551, § 3º). Durante o procedimento dos embargos, o juiz poderá proferir decisões interlocutórias, que serão atacadas por agravo retido, a ser reiterado nas razões ou

contra-razões da apelação. Se, todavia, a decisão puder causar lesão grave ou de difícil reparação, caberá, então, agravo de instrumento. Nesse sentido, a decisão do juiz que conceder ou negar o efeito suspensivo aos embargos deve ser controlada por agravo de instrumento, revelando-se incabível, por falta de interesse recursal, o agravo retido. Os embargos são julgados por sentença, da qual cabe apelação. Acolhidos os embargos, a apelação tem duplo efeito. Rejeitados que sejam, a apelação é desprovida de efeito suspensivo, ostentando, apenas, o devolutivo (CPC, art. 520, V).

5. EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE

Pela estrutura originária do CPC de 1973, o processo de execução não comportava defesa, cabendo ao executado valer-se de ação cognitiva autônoma (embargos do devedor) para desconstituir o título executivo e, de resto, apresentar as impugnações que tivesse contra o alegado crédito do exeqüente. Sem embargos disso, doutrina e jurisprudência admitem a possibilidade de o executado, nos próprios autos da execução, apresentar simples petição conducente à extinção do feito, por não comportar os requisitos próprios que permitem o seu aforamento. Vale dizer que, despontando situações, “como aquelas em que se discutem questões atinentes à admissibilidade do processo de execução e que se relacionam com os pressupostos processuais e as condições da ação, essa mesma defesa prévia é feita via de exceção de pré-executividade nos próprios autos da ação.”.29

O que se percebe, a bem da verdade, é que a exceção de pré-executividade vem sendo utilizada para provocar a atuação do juiz em matéria de ordem pública. A doutrina e a jurisprudência passaram, de igual modo, a aceitá-la, quando, mesmo a matéria não sendo de ordem pública nem devendo o juiz dela conhecer de ofício, houvesse prova pré-constituída da alegação feita pelo executado.30 Na verdade, o que passou a servir de critério para se admitir a exceção de pré-executividade foi a verificação da necessidade ou não de prova pré-constituída. Com efeito, há três casos que são identificados pela doutrina, dos quais dois deles permitem a exceção de pré-executividade, restando o terceiro como hipótese privativa dos embargos do executado: a)matérias de ordem pública, que devem ser conhecidas de ofício pelo juiz (nulidade da execução, carência de ação, falta de pressupostos processuais): cabível a exceção de pré-executividade; b)matérias que não devem ser conhecidas de ofício pelo juiz, devendo a parte alegá-las, sendo, porém, desnecessária qualquer dilação probatória: cabível a exceção de pré-executividade; c)matérias que não devem ser conhecidas de ofício pelo juiz, devendo a parte alegá-las e comprová-las por meio de instrução probatória, exigindo-se, pois, a dilação probatória: cabível, apenas, os embargos do devedor, não se admitindo a exceção de pré-executividade. Diante das mudanças operadas na legislação processual – em que se desnuda a existência de defesa

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própria (impugnação) no chamado cumprimento de sentença e se descortina uma nova configuração para os embargos à execução fundada em título extrajudicial – indaga-se quanto à possibilidade de continuar sendo possível o manejo, pelo executado, da exceção de pré-executividade.

5.1. Seu cabimento no cumprimento de sentença

Continua cabível a exceção de pré-executividade na execução de sentença. Se não apresentada a impugnação no prazo legal, pode o executado alegar alguma matéria não alcançada pela preclusão, que possa ser conhecida de ofício pelo magistrado. Não é demais lembrar que a exceção de pré-executividade somente é cabível, se a prova for pré-constituída. Havendo necessidade de dilação probatória, não se permite o manejo da exceção de pré-executividade. Já se viu que, antes mesmo de haver a penhora, pode o executado já apresentar sua impugnação, esvaziando-se a utilidade da exceção de pré-executividade antes da penhora. De todo modo, nada impede que, por simples petição, o executado já demonstre a inexistência de uma condição da ação ou de um pressuposto processual ou, enfim, de uma matéria que possa ser conhecida de ofício pelo juiz. Tal petição deve ser recebida como impugnação, tendo-se por já antecipada a defesa do executado, que somente poderá alegar, posteriormente, alguma matéria não alcançada pela preclusão. Revela-se cabível, portanto, a exceção de pré-executividade no cumprimento da sentença.

5.2. Seu cabimento na execução contra a Fazenda Pública

Na execução, a Fazenda Pública é citada para opor embargos. Opostos os embargos, estará suspensa a execução, vindo a ser processados e, ao final, julgados. Diante disso, a Fazenda Pública não detém, em princípio, interesse processual em ajuizar uma exceção de pré-executividade, pois dispõe de mecanismo mais útil e menos prejudicial para apresentar sua defesa. É que não há necessidade de penhora nem de garantia do juízo para que a Fazenda Pública oponha seus embargos. Demais disso, os embargos opostos pela Fazenda Pública suspendem o curso da execução. A exceção de pré-executividade, por sua vez, não causa essa suspensão no processo de execução, sendo, pois, menos útil para a Fazenda Pública. E não havendo utilidade, não há interesse processual. Há, no entanto, uma possibilidade de a Fazenda Pública apresentar a exceção de pré-executividade: quando perdido o prazo para embargos, houver uma questão de ordem pública que cause a nulidade da execução ou que enseje sua extinção. Nessa hipótese, poderá a Fazenda Pública ajuizar a exceção de pré-executividade, defendendo-se por meio de uma mera petição. Aliás, o valor dos precatórios poderá sempre ser revisto, de ofício ou a requerimento, a fim de evitar desembolsos indevidos de recursos públicos. No particular, a Medida Provisória nº 2.180-35/2001 introduziu o art. 1º-E à Lei nº 9.494/1997 que assim

dispõe:“Art. 1º-E. São passíveis de revisão, pelo Presidente do Tribunal, de ofício ou a requerimento das partes, as contas elaboradas para aferir o valor dos precatórios antes de seu pagamento ao credor.”

Assim, por meio de mera petição ou, se assim se preferir denominar, por meio de uma exceção de pré-executividade, a Fazenda Pública poderá, ainda que não disponha de mais prazo para oposição de embargos à execução, requerer a revisão do valor do crédito, com vistas a assegurar o interesse público, evitando-se pagamentos indevidos ou em quantias superiores ao realmente devido. Tal revisão pode, inclusive, ser feita de ofício, devendo os autos ser encaminhados ao juiz de primeira instância para proceder a tal revisão. O Presidente do tribunal exerce atividade administrativa. Logo, interpretando a regra conforme a Constituição, deve ser atribuída ao juiz a tarefa de rever o valor. Ao Presidente do tribunal cabe encaminhar os autos ao juiz de primeira instância para que ali se proceda à conferência e aferição do valor devido.

5.3. Seu cabimento na execução fundada em título extrajudicial

Já se viu que os embargos, na sua feição atual, não dependem mais de penhora, depósito ou caução. Em razão disso, parece, em princípio, afastada a possibilidade, na execução fundada em título extrajudicial, do ajuizamento da exceção de pré-executividade. Ora, se o objetivo desta última é permitir a defesa do executado sem a necessidade de ser garantido o juízo, falta-lhe interesse em manejá-la, na exata medida em que os embargos podem ser ajuizados, sem a prévia garantia do juízo. Há, porém, um caso em que se permite, ainda, o uso da exceção de pré-executividade na execução fundada em título extrajudicial: quando o executado perder o prazo para os embargos. Nessa hipótese, havendo alguma matéria que possa ser conhecida de ofício pelo juiz, que não enseje dilação probatória, resta ainda cabível a exceção de pré-executividade. É que as matérias que podem ser conhecidas de ofício não se sujeitam, geralmente, à preclusão, podendo ser alegadas a qualquer momento. Logo, enquanto não encerrada a execução, pode o executado suscitar alguma dessas questões por simples petição.

6. AÇÕES AUTÔNOMAS (DEFESAS HETEROTÓPICAS)

O executado, no cumprimento de sentença, defende-se por meio da impugnação ou da exceção de pré-executividade. Para combater ou desfazer a sentença, poderá, ainda, intentar uma ação rescisória perante o tribunal competente para processá-la e julgá-la. Em se tratando de execução fundada em título extrajudicial, o executado, como se viu, pode defender-se por embargos à execução ou por exceção de pré-executividade. Além desses tipos de defesa, pode o

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executado intentar ações autônomas, que não são incidentais à execução, embora lhe sejam prejudiciais. Daí serem chamadas de defesas heterotópicas31. Assim, por exemplo, pode ser intentada uma ação declaratória de inexistência de relação jurídica entre credor e devedor ou, ainda, uma ação anulatória do título executivo, ou, até mesmo, uma ação para discutir o quantum debeatur. Em todos esses casos, essas ações (defesas heterotópicas) são prejudiciais à execução.32

Além de não suspender a execução, a existência de uma ação declaratória ou anulatória autônoma não impede o ajuizamento da execução. É o que se depreende do disposto no § 1º do art. 585 do CPC:

“§ 1º. A propositura de qualquer ação relativa ao débito constante do título executivo não inibe o credor de promover-lhe a execução”.

À evidência, “a circunstância de ter o devedor ajuizado antes ação de revisão não tem o condão de impedir o credor de ingressar em Juízo para a satisfação do seu crédito”.33

A execução somente será suspensa, se houver embargos do executado, depois de seguro o juízo com a penhora. Qualquer ação autônoma não evita a realização da penhora, não produzindo efeitos relativamente aos embargos do executado. Caso a ação autônoma seja ajuizada antes da execução e, citado o executado, este não ingressa com os embargos, aquela ação autônoma não poderá fazer as vezes dos embargos, não suspendendo a execução. Na verdade, a ação autônoma somente influencia a execução, se, julgada procedente, tiver sido encerrada antes do término da execução34. A existência da ação autônoma, mesmo que a execução não tenha sido embargada, não impede a penhora nem acarreta a suspensão do feito executivo. A ausência de embargos não impede o ajuizamento de ação autônoma para discutir a dívida.35

É possível, então, que, antes da execução ou da penhora, tenha a ação autônoma sido ajuizada. Poderá, não raramente, ocorrer de o objeto dos embargos coincidir com o da ação autônoma. Positivada a hipótese, haverá litispendência, não podendo ser opostos os embargos, ficando prejudicado o executado com a impossibilidade de suspensão da execução . Realmente, não é insólita a situação em que, antes mesmo da execução ou da penhora, o devedor proponha ação autônoma (defesa heterotópica) discutindo o valor ou a existência da própria dívida. Proposta a execução, fica-lhe vedado o manejo dos embargos, pois o que tem para alegar é o mesmo que já se discute na ação autônoma. Nesse caso, diante da litispendência, são incabíveis os embargos.38

Em casos como esse, deve-se, desde que realizada a penhora, receber a ação autônoma como embargos, suspendendo a execução , caso o executado requeira e o juiz se convença da presença dos requisitos necessários e suficientes à concessão do efeito suspensivo aos embargos (CPC, art. 739-A, § 1º). Se a ação autônoma estiver em outro juízo, os correspondentes autos devem ser encaminhados ao juízo da execução, a fim de que seja recebida como embargos. É possível, como se vê, que a ação autônoma seja recebida como embargos do devedor, suspendendo a execução. Para que isso seja possível, é preciso, todavia, que tenha havido penhora ou garantia do juízo

e a ação autônoma tenha sido ajuizada até antes do escoamento do prazo para os embargos. Se, escoado o prazo para embargos, ainda não tiver sido intentada a ação autônoma, não poderá mais, caso ajuizada posteriormente, ser recebida como embargos . Para que a ação autônoma suspenda a execução, deverá ser recebida como embargos. E, para que seja recebida como embargos, deve, realizada a penhora, ter sido intentada até antes do escoamento do prazo para embargos. Fora dessa hipótese, não se permite que a ação autônoma suspenda a execução.39

É comum a afirmação, de parte da doutrina e da jurisprudência, no sentido de que não haveria conexão entre a execução e uma ação autônoma. Segundo esse entendimento, pode haver conexão entre os embargos do executado e uma dessas ações autônomas, acarretando a reunião das causas para serem julgadas conjuntamente pelo mesmo juízo, evitando-se, com isso, decisões conflitantes. Na verdade, há, sim, conexão entre a execução e uma ação autônoma. Tal conexão resulta da prejudicialidade desta última em relação àquela40. A conexão diz respeito tanto a processos de conhecimento como a processos de execução e cautelar, de sorte que pode haver conexão entre ação de conhecimento e execução. É bem verdade que não há decisão propriamente dita a ser proferida na execução, mas há um resultado prático que pode ser incompatível com a decisão a ser tomada no processo de conhecimento41. A prejudicialidade constitui uma figura particular de um fenômeno mais amplo e geral, que tem a sua expressão compreensiva na conexão de causas. Havendo duas demandas em curso, em que, numa, o objeto é prejudicial de outra, há, entre elas, verdadeira conexão pela causa de pedir ou, como queira, conexão por prejudicialidade. Toda vez em que há prejudicialidade, existe conexão42. As demandas devem, nesse caso, ser reunidas pela conexão (CPC, art. 105). É certo, enfim, que há conexão entre a execução e uma ação autônoma que lhe seja prejudicial.43

A existência de conexão entre duas demandas acarreta, via de regra, a reunião delas a um mesmo juízo (CPC, art. 105). Tal reunião entre uma execução e uma ação autônoma pode gerar a suspensão daquela. Ocorre, porém, que a ação autônoma somente pode suspender a execução, se, como visto, for intentada antes de escoado o prazo para embargos. Significa, então, que somente é possível haver a reunião da ação autônoma com a execução, se aquela lhe for precedente. Com efeito, “na hipótese em que a ação anulatória precede a execução fiscal, recomenda-se, como forma de evitar decisões inconciliáveis, a reunião das ações, visto que conexas pela prejudicialidade”.44

Como se percebe, a ação autônoma somente acarreta a suspensão da execução, se intentada antes de escoado o prazo dos embargos e desde que esteja seguro o juízo da execução, caso o executado requeira a suspensão e o juiz se convença da presença do fumus boni juris e do periculum in mora (CPC, art. 739-A, § 1º). Fora daí, poderia ser suspensa a execução? Seria possível que, numa ação autônoma, fosse concedido um provimento de urgência para sobrestar o andamento da execução? Em princípio, poder-se-ia responder afirmativamente a essas indagações. E não faltam vozes

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e letras que assim entendem. Realmente, há quem afirme que “naturalmente, sempre será possível ao devedor a propositura de ação autônoma de impugnação – declaratória negativa da obrigação reconhecida no título judicial –, que poderá, por provimento de urgência (cautelar ou antecipatório), vir a suspender o curso da execução, sustando a prática de atos executivos”.45

A suspensão da execução por provimentos de urgência concedidos em ações autônomas não parece possível, a não ser que haja a garantia do juízo na execução, revelando-se, ademais, muito provável o êxito a ser obtido na demanda cognitiva. A não ser assim, restará afetado o princípio da isonomia, pois, para obter efeito suspensivo nos embargos, o executado deve garantir o juízo, enquanto, na ação autônoma, bastaria a obtenção de um provimento de urgência. Se os embargos suspendem a execução por haver penhora, não deve ser diferente numa ação autônoma, sob pena de se permitir a concomitância de dois caminhos diversos a serem trilhados pelo executado: um repleto de restrições e dificuldades, e outro bastante cômodo, chegando-se, por ambos, ao mesmo resultado. Permitir o uso alternativo de ambas as medidas equivaleria, como se disse, a esgarçar o princípio da isonomia, na medida em que o uso dos embargos causaria restrição e dificuldades, enquanto aquele que se valesse da ação autônoma não precisaria segurar o juízo pela penhora. Haveria, enfim, um esvaziamento dos embargos, passando a ser utilizada a via das ações autônomas, com pedido de liminar para sustar o prosseguimento da execução.46

Então, somente pode haver suspensão da execução pela ação autônoma, se esta for anterior à execução e desde que tenha havido penhora47, caso, ainda, o executado requeira e estejam presentes o fumus boni juris e o periculum in mora in mora (CPC, art. 739-A, § 1º).

Notas e Referências

1. Defesas do executado. A nova execução de títulos judiciais: comentários à Lei 11.232/05. RENAULT, Sérgio; BOTTINI, Pierpaolo (coords.). São Paulo: Saraiva, 2006, n. 3.2, pp. 140-141.2. AMARAL, Guilherme Rizzo. A nova execução: comentários à Lei nº 11.232, de 22 de dezembro de 2005. OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro (coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 132; BONDIOLI, Luis Guilherme Aidar. O novo CPC: a terceira etapa da reforma. São Paulo: Saraiva, 2006, n. 26, p. 112; CÂMARA, Alexandre Freitas. A nova execução de sentença. 3ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, n. 8.1, p. 131; NOTARIANO JR., Antonio; BRUSCHI, Gilberto Gomes. Os prazos processuais e o cumprimento da sentença. Execução civil e cumprimento da sentença. BRUSCHI, Gilberto Gomes (coord.). São Paulo: Método, 2006, p. 51.“PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL PROCESSADA PERANTE A JUSTIÇA ESTADUAL. INTIMAÇÃO DA FAZENDA NACIONAL PELO CORREIO. PRAZO RECURSAL. INÍCIO DA CONTAGEM. JUNTADA AOS AUTOS DO AVISO DE RECEBIMENTO. INTELIGÊNCIA DO ART. 241, I, DO CPC. APELAÇÃO TEMPESTIVA.I – De acordo com o ditame do inciso I do art. 241 do CPC, quando a intimação da decisão judicial dá-se pelo correio, a contagem do prazo recursal inicia-se quando da juntada aos autos do aviso de recebimento. Precedente: REsp nº 601.625/SE, Rel. Min. TEORI ALBINO ZAVASCKI, DJ de 27/06/2005.II – Merece reforma, pois, o acórdão recorrido que entendeu intempestiva a apelação considerando como dies a quo do prazo recursal a data do recebimento do AR.III – Recurso especial provido, determinando o retorno dos autos ao Colegiado de origem para que prossiga no julgamento da apelação.” (Acórdão unânime da 1ª Turma do STJ, REsp 839.380/GO, rel. Min. Francisco Falcão, j. 15/8/2006, DJ de 31/8/2006, p. 269).

“PROCESSUAL CIVIL. CITAÇÃO POR OFICIAL DE JUSTIÇA. INTIMAÇÃO PESSOAL DA FAZENDA PÚBLICA. INÍCIO DO PRAZO PARA RESPOSTA. JUNTADA DO MANDADO AOS AUTOS. ART. 241, II, DO CPC. PRECEDENTES. 1. Recurso especial contra v. acórdão segundo o qual o prazo para a União apresentar recurso conta-se da data da intimação e não da juntada do mandado aos autos.2. O art. 241, II, do CPC, estatui que começa a correr o prazo para recorrer ‘quando a citação ou intimação for por oficial de justiça, da data da juntada aos autos do mandado cumprido.’3. Pacificada a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que contagem do prazo para resposta, quando a intimação é feita por Oficial de Justiça, inicia-se a partir da data da juntada dos autos do mandado de citação.4. Precedentes das 1ª, 2ª, 3ª, 4ª e 6ª Turmas desta Corte Superior.5. Recurso provido.” (Acórdão unânime da 1ª Turma do STJ, REsp 584.387/RJ, rel. Min. José Delgado, j. 20/11/2003, DJ de 19/12/2003, p. 375).3. ASSIS, Araken de. Cumprimento da sentença. Rio de Janeiro: Forense, 2006, n. 112.5, p. 336; BONDIOLI, Luis Guilherme Aidar. O novo CPC: a terceira etapa da reforma. São Paulo: Saraiva, 2006, n. 26, p. 112; NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado e legislação extravagante. 9ª edição. São Paulo: RT, 2006, n. 9 ao art. 475-J, p. 642; RODRIGUES, Marcelo Abelha. A terceira etapa da reforma processual civil (em co-autoria com DIDIER JR., Fredie; JORGE, Flávio Cheim). São Paulo: Saraiva, 2006, p. 150.4. CÂMARA, Alexandre Freitas. A nova execução de sentença. 3ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, n. 8.1, p. 131; NOTARIANO JR., Antonio; BRUSCHI, Gilberto Gomes. Os prazos processuais e o cumprimento da sentença. Execução civil e cumprimento da sentença. BRUSCHI, Gilberto Gomes (coord.). São Paulo: Método, 2006, pp. 52-53; ZAVASCKI, Teori Albino. Defesas do executado. A nova execução de títulos judiciais: comentários à Lei 11.232/05. RENAULT, Sérgio; BOTTINI, Pierpaolo (coords.). São Paulo: Saraiva, 2006, n. 3.2, p. 141.5. CÂMARA, Alexandre Freitas. A nova execução de sentença. 3ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, n. 8.1, pp. 131-132.6. BONDIOLI, Luis Guilherme Aidar. O novo CPC: a terceira etapa da reforma. São Paulo: Saraiva, 2006, n. 26, p. 113; RODRIGUES, Marcelo Abelha. A terceira etapa da reforma processual civil (em co-autoria com DIDIER JR., Fredie; JORGE, Flávio Cheim). São Paulo: Saraiva, 2006, p. 151.7. Reforma do CPC: Leis 11.187/2005, 11.232/2005, 11.276/2006, 11.277/2006 e 11.280/2006. (em co-autoria com RAMOS, Glauco Gumerato; FREIRE, Rodrigo da Cunha Lima; MAZZEI, Rodrigo). São Paulo: RT, 2006, p. 228. 8. Cumprimento da sentença: primeiras impressões sobre o projeto de alteração da execução de títulos judiciais. Revista de Processo. 134:53-62. São Paulo: RT, abril/2006, pp. 57-58.9. SHIMURA, Sérgio. Cumprimento de sentença. Execução no processo civil: novidades & tendências. SHIMURA, Sérgio; NEVES, Daniel A. Assumpção (coords.). São Paulo: Método, 2005, p. 249.10. OLIVEIRA NETO, Olavo de. Novas perspectivas da execução civil – cumprimento da sentença. Execução no processo civil: novidades & tendências. SHIMURA, Sérgio; NEVES, Daniel A. Assumpção (coords.). São Paulo: Método, 2005, p. 200.11. As novas reformas do Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 147. No mesmo sentido: CÂMARA, Alexandre Freitas. A nova execução de sentença. 3ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, n. 8.1, p. 140.12. Defesas do executado. A nova execução de títulos judiciais: comentários à Lei 11.232/05. RENAULT, Sérgio; BOTTINI, Pierpaolo (coords.). São Paulo: Saraiva, 2006, n. 3.2, p. 143. No mesmo sentido: BONDIOLI, Luis Guilherme Aidar. O novo CPC: a terceira etapa da reforma. São Paulo: Saraiva, 2006, n. 27, p. 115, nota de rodapé n. 148. 13. A nova etapa da reforma do Código de Processo Civil: comentários sistemáticos às Leis n. 11.187, de 19-10-2005, e 11.232, de 22-12-2005 – vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 127.14. É comum haver confusão entre o conceito de inalienabilidade e impenhorabilidade. Conquanto despontem interligados, o bem impenhorável nem sempre será, por isso mesmo, inalienável. É o que sucede, segundo lembra Lásaro Cândido da Cunha, com o bem de família, que é impenhorável, mas não é inalienável. “Por sua vez, o bem inalienável será sempre impenhorável, salvo se perder essa característica” (CUNHA, Lásaro Cândido da. Precatório: execução contra a Fazenda Pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 38).15. ASSIS, Araken de. Comentários ao Código de Processo Civil – vol. 9. São Paulo: RT, 2000, p. 408.16. Execução por quantia certa contra a Fazenda Pública – uma proposta atual de sistematização. Processo de execução. SHIMURA, Sérgio; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.). São Paulo: RT, 2001, pp. 140-141.17. Acórdão unânime da 6ª Turma do STJ, REsp 714.235/RS, rel. Min. Hamilton Carvalhido, j. 24/2/2005, DJ de 9/5/2005, p. 490. Igualmente: acórdão unânime

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da 6ª Turma do STJ, AgRg no REsp 640.357/RS, rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, j. 7/6/2005, DJ de 27/6/2005, p. 462. No mesmo sentido: acórdão unânime da 6ª Turma do STJ, AgRg no REsp 691.979/PR, rel. Min. Paulo Medina, j. 7/6/2005, DJ de 1/8/2005, p. 600. Ainda no mesmo sentido: acórdão unânime da 5ª Turma do STJ, REsp 636.326/RS, rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, j. 14/6/2005, DJ de 15/8/2005, p. 351. Também no mesmo sentido: acórdão unânime da 5ª Turma do STJ, AgRg no AgRg no REsp 673.163/RS, rel. Min. Gilson Dipp, j. 4/8/2005, DJ de 29/8/2005, p. 417. Em igual sentido: acórdão unânime da 5ª Turma do STJ, REsp 738.330/RS, rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 4/8/2005, DJ de 29/8/2005, p. 433.18. “Processual Civil. Execução contra a Fazenda Pública. Embargos Parciais. Prosseguimento da Execução pela Parte Incontroversa. Possibilidade. 1. Em se tratando de execução contra a Fazenda Pública, fundada em sentença transitada em julgado, a propositura de embargos parciais não impede o seu prosseguimento, com a expedição de precatório (ou, se for o caso, de requisição de pequeno valor), relativamente à parte não embargada, como prevê o art. 739, § 2º, do CPC. Tratando-se de parcela incontroversa, tanto na fase cognitiva, quanto na fase executória, está atendido, em relação a ela, o requisito do trânsito em julgado previsto nos §§ 1º e 3º do art. 100 da CF. 2. Não se aplica à hipótese a vedação constitucional de expedição de precatório complementar, estabelecida no § 4º, do art. 100, da CF (EC nº 37/2002). A interpretação literal desse dispositivo – de considerar simplesmente proibida, em qualquer circunstância, a expedição de precatório complementar ou suplementar – levaria a uma de duas conclusões, ambas absurdas: ou a de que estariam anistiadas de pagamento todas e quaisquer parcelas ou resíduos de dívidas objeto da condenação judicial não incluídas no precatório original; ou a de que o pagamento de tais resíduos ou parcelas seria feito imediatamente, sem expedição de precatório, qualquer que fosse o seu valor. Assim, a proibição contida no citado dispositivo deve ter seus limites fixados por interpretação teleológica, de conformidade, aliás, com a expressa finalidade para que foi editado: a de evitar que, na mesma execução, haja a utilização simultânea de dois sistemas de satisfação do credor exeqüente: o do precatório para uma parte da dívida e o do pagamento imediato (sem expedição de precatório) para outra parte, fraudando, assim, o § 3º, do mesmo art. 100, da CF. 3. Embargos de divergência a que se nega provimento.” (Acórdão unânime da 1ª Seção do STJ, EREsp 551.991/RS, rel. Min. Teori Albino Zavascki, j. 22/2/2006, DJ de 20/3/2006, p. 182).“EXECUÇÃO – PRECATÓRIO – DUPLICIDADE. Longe fica de conflitar com o artigo 100, § 4º, da Constituição Federal enfoque no sentido de ter-se a expedição imediata de precatório relativamente à parte incontroversa do título judicial, dando-se seqüência ao processo quanto àquela impugnada por meio de recurso.” (Acórdão unânime da 1ª Turma do STF, RE 458.110/MG, rel. Min. Marco Aurélio, j. 13/6/2006, DJ de 29/9/2006, p. 48).“EMENTA: 1. Execução contra a Fazenda Pública: recurso extraordinário: descabimento: controvérsia relativa às exigências para a inclusão do precatório no orçamento, de natureza infraconstitucional, de exame inviável no RE. 2. Execução contra a Fazenda Pública: fracionamento do valor da execução em parcelas controversa e incontroversa, sem que isso implique em alteração de regime de pagamento, que é definido pelo valor global da obrigação: ausência, no caso, de violação do art. 100, §§ 1º e 4º, da Constituição Federal.” (Acórdão unânime da 1ª Turma do STF, RE 484.770/RS, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 6/6/2006, DJ de 1/9/2006, p. 22).19. BUENO, Cassio Scarpinella. A nova etapa da reforma do Código de Processo Civil: comentários sistemáticos às Leis n. 11.187, de 19-10-2005, e 11.232, de 22-12-2005 – vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 185.20. THEODORO JÚNIOR, Humberto. As novas reformas do Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2006, pp. 202-203.21. Nesse sentido: acórdão unânime da 1ª Turma do STJ, REsp 504.580/SC, rel. Min. José Delgado, j. 15/04/2003, DJ de 09/06/2003, p. 193.22. Manteve-se, pois, o entendimento que já prevalecia no âmbito do STJ. Antes, porém, o prazo era da juntada aos autos do mandado de intimação da penhora. Agora, com a mudança legislativa, o prazo tem início com a juntada aos autos do mandado de citação devidamente cumprido. Eis, a propósito, o teor do seguinte precedente:“PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS DO DEVEDOR. CONTAGEM DO PRAZO. TERMO INICIAL. LITISCONSÓRCIO.- Havendo litisconsórcio passivo no processo executório, o prazo para oferecer embargos do devedor é autônomo, devendo ser contado a partir de cada uma das intimações de penhora. Precedentes.- Contudo, incidindo a penhora sobre bem imóvel, o prazo para oferecer embargos do devedor começa a correr a partir da juntada aos autos da última intimação feita a um dos cônjuges. Precedentes.Recurso especial conhecido e provido.” (Acórdão unânime da 3ª Turma do STJ, REsp 681.266/DF, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 2/6/2005, DJ de 1º/7/2005, p. 530).23. ANDOLINA, Italo. “Cognizione” ed “esecuzione forzata” nel sistema della tutela

giurisdizionale. Milano: Giuffrè, 1983, n. 34, p. 122.24. CAPONI, Remo; PISANI, Andrea Proto. Lineamenti di diritto processuale civile. Napoli: Jovene Editore, 2001, p. 348.25. VERDE, Giovanni; CAPPONI, Bruno. Profili del processo civile – 3. Processo di esecuzione e procedimenti speciali. Napoli: Jovene Editore, 1998, pp. 245-251.26. CAPONI, Remo; PISANI, Andrea Proto. Lineamenti di diritto processuale civile. Napoli: Jovene Editore, 2001, p. 348.27. LEONEL, Ricardo de Barros. Causa de pedir e pedido: o direito superveniente. São Paulo: Método, 2006, passim.28. A reforma da execução do título extrajudicial: Lei nº 11.382, de 06 de dezembro de 2006. Rio de Janeiro: Forense, 2007, n. 117, pp. 216-217.29. RT 740/351.30. ARRUDA ALVIM, Eduardo. “Objeção de pré-executividade – aplicação em matéria fiscal”. Problemas de processo judicial tributário – 4º volume. Valdir de Oliveira Rocha (coord.). São Paulo: Dialética, 2000, pp. 37-54.31. MARTINS, Sandro Gilbert. A defesa do executado por meio de ações autônomas: defesa heterotópica. São Paulo: RT, 2002, passim.32. PEREIRA, Rosalina P. C. Rodrigues. Ações prejudiciais à execução. São Paulo: Saraiva, 2001, passim.33. Acórdão unânime da 3ª Turma do STJ, REsp 537.278/RJ, rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 16/12/2003, DJ de 05/04/2004, p. 258.34. PEREIRA, Rosalina Pinto da Costa Rodrigues. Ações prejudiciais à execução. GENESIS – Revista de Direito Processual Civil. Curitiba: GENESIS, 22:791-794, p. 792.35. Idem. Ibidem, p. 792.36. “PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO FUNDADA EM TÍTULO EXTRAJUDICIAL. CONTRATO DE CONFISSÃO DE DÍVIDA. PENDÊNCIA DE AÇÃO REVISIONAL PARALELA VISANDO À DESCONSTITUIÇÃO DO TÍTULO. GARANTIA DO JUÍZO. SUSPENSÃO. ORIENTAÇÃO DA CORTE. RECURSO DESACOLHIDO.I – Os embargos de devedor constituem meio hábil a sobrestar os atos do processo executivo, para que primeiro se decida acerca da validade do título exeqüendo, sobre os critérios utilizados na atualização dos valores nele contidos ou a respeito da regularidade formal da execução.II – O ajuizamento de ação declaratória, por seu turno, não retira a força executiva dos títulos extrajudiciais a que visa desconstituir ou alterar, que se presumem líquidos e certos.III – Segundo tem decidido este Tribunal, estando seguro o juízo da execução pela penhora de bens do devedor, não há razão para exigir-se a oposição de embargos sob iguais fundamentos da ação de conhecimento anteriormente ajuizada.” (Acórdão unânime da 4ª Turma do STJ, REsp 181.052/RS, rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 17/09/1998, DJ de 03/11/1998, p. 173).37. “PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE EXECUÇÃO HIPOTECÁRIA. S.F.H. AÇÃO REVISIONAL PROPOSTA APÓS. SUSPENSÃO DO PRIMEIRO PROCESSO APÓS A PENHORA. CABIMENTO. CPC, ART. 585, § 1º. EXEGESE.I. Fixa-se o entendimento mais recente da 4ª Turma em atribuir à ação revisional o efeito de embargos à execução, de sorte que, após garantido o juízo pela penhora, deve ser suspensa a cobrança até o julgamento do mérito da primeira.II. Recurso especial não conhecido” (Acórdão unânime da 4ª Turma do STJ, REsp 486.069/SP, rel. Min. Aldir Passarinho Júnior, j. 03/02/2004, DJ de 08/03/2004, p. 259).“EXECUÇÃO. SUSPENSÃO. AJUIZAMENTO PELO DEVEDOR DE AÇÃO REVISIONAL DE CONTRATO. APROVEITAMENTO COMO EMBARGOS.- A ação revisional de contrato, cumulada com anulatória de título, segundo a jurisprudência do STJ, deve receber o tratamento de embargos à execução, com as conseqüências daí decorrentes.Recurso especial não conhecido” (Acórdão unânime da 4ª Turma do STJ, REsp 435.443/SE, rel. Min. Barros Monteiro, j. 06/08/2002, DJ de 28/10/2002, p. 327).“PROCESSO CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL E AÇÃO ANULATÓRIA DO DÉBITO. CONEXÃO. SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE DO CRÉDITO EXEQÜENDO SEM GARANTIA DO JUÍZO. INVIÁVEL.1. Se é certo que a propositura de qualquer ação relativa ao débito constante do título não inibe o direito do credor de promover-lhe a execução (CPC, art. 585, § 1º), o inverso também é verdadeiro: o ajuizamento da ação executiva não impede que o devedor exerça o direito constitucional de ação para ver declarada a nulidade do título ou a inexistência da obrigação, seja por meio de embargos (CPC, art. 736), seja por outra ação declaratória ou desconstitutiva. Nada impede, outrossim, que o devedor se antecipe à execução e promova, em caráter preventivo, pedido de nulidade do título ou a declaração de inexistência da relação obrigacional.2. Ações dessa espécie têm natureza idêntica à dos embargos do devedor, e quando os antecedem, podem até substituir tais embargos, já que repetir seus fundamentos e causa de pedir importaria litispendência.3. Para dar à ação declaratória ou anulatória anterior o tratamento que daria à ação de embargos, no tocante ao efeito suspensivo da execução, é necessário que o

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juízo esteja garantido.4. Inexistindo prova da garantia, é inviável a suspensão da exigibilidade do crédito exeqüendo.5. Recurso especial a que se nega provimento.” (Acórdão unânime da 1ª Turma do STJ, REsp 677.741/RS, rel. Min. Teori Albino Zavascki, j. 15/02/2005, DJ de 07/03/2005, p. 167).38. “Agravo regimental. Recurso especial admitido. Execução. Suspensão. Ação revisional. Precedentes da Corte.1. A propositura de ação revisional, após o prazo para o oferecimento dos embargos à execução, não tem o condão de suspender a execução. Precedentes.2. Agravo regimental desprovido” (Acórdão unânime da 3ª Turma do STJ, AGA 519.181/RS, rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 25/11/2003, DJ de 16/02/2004, p. 248).“EXECUÇÃO. SOBRESTAMENTO. AÇÃO REVISIONAL PARALELA PROPOSTA PELO DEVEDOR. INADMISSIBILIDADE.- Exaurido o prazo para oferecimento dos embargos, a propositura de ação revisional pelo devedor não possui o efeito de suspender a tramitação do processo executivo.Recurso especial conhecido e provido” (Acórdão unânime da 4ª Turma do STJ, REsp 258.739/MT, rel. Min. Barros Monteiro, j. 17/05/2001, DJ de 27/08/2001, p. 343).39. “PROCESSO CIVIL. EXECUÇÃO FUNDADA EM TÍTULO EXTRAJUDICIAL. AJUIZAMENTO ANTERIOR DE AÇÃO DE CONHECIMENTO RELATIVA AO MESMO TÍTULO. SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO. INOCORRÊNCIA. ARTS. 265, IV, a, 585, § 1º E 791, CPC. PRECEDENTES. RECURSO PROVIDO.- A ação de conhecimento ajuizada para rever cláusulas de contrato não impede a propositura e o prosseguimento da execução fundada nesse título, notadamente se a esta faltam a garantia do juízo e a oposição de embargos de devedor.” (Acórdão unânime da 4ª Turma do STJ, REsp 373.742/TO, rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 06/06/2002, DJ de 12/08/2002, p. 218).40. OLIVEIRA NETO, Olavo. Conexão por prejudicialidade. São Paulo: RT, 1994, n. 4.4.3, pp. 93-95.41. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Reflexos das ações procedimentais autônomas (em que se discute, direta ou indiretamente, a viabilidade da execução) na própria execução. Processo de execução. SHIMURA, Sérgio; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coords.). São Paulo: RT, 2001, p. 725.42. SHIMURA, Sérgio. Título executivo. 2ª edição. São Paulo: Método, 2005, n. 4.4, p. 577.43. “PROCESSO CIVIL – CONEXÃO DE AÇÕES – REUNIÃO DOS PROCESSOS PARA JULGAMENTO SIMULTÂNEO – AÇÃO DE EXECUÇÃO FISCAL E AÇÃO ANULATÓRIA DE DÉBITO FISCAL – PREJUDICIAL DE PAGAMENTO.1. A Primeira Seção pacificou a jurisprudência no sentido de entender conexas as ações de execução fiscal, com ou sem embargos e a ação anulatória de débito fiscal, recomendando o julgamento simultâneo de ambas.2. Existindo em uma das demandas, anulatória ou embargos, questão prejudicial, como na hipótese dos autos, em que se alegou pagamento, cabe examinar, em primeiro lugar, a questão prejudicial, porque é ela que dá sentido ao que vem depois.3. Recurso especial improvido.” (Acórdão unânime da 2ª Turma do STJ, REsp 603.311/SE, rel. Min. Eliana Calmon, j. 14/6/2005, DJ de 15/8/2005, p. 249).44. Acórdão unânime da 2ª Turma do STJ, REsp 193.725/SC, rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 17/2/2005, DJ de 16/5/2005, p. 275.45. YARSHELL, Flávio Luiz. Efetividade do processo de execução e remédios com efeito suspensivo. Processo de execução. SHIMURA, Sérgio; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coords.). São Paulo: RT, 2001, p. 388.46. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Reflexos das ações procedimentais autônomas (em que se discute, direta ou indiretamente, a viabilidade da execução) na própria execução. Processo de execução. SHIMURA, Sérgio; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coords.). São Paulo: RT, 2001, pp. 732-735.47. “PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO FISCAL NÃO-EMBARGADA. AÇÃO ANULATÓRIA DE DÉBITO. CONEXÃO. INEXISTÊNCIA. SUSPENSÃO. INCABIMENTO. PRECEDENTES.1. Recurso especial contra acórdão segundo o qual ‘não há conexão entre execução fiscal não embargada e a ação anulatória relativa ao débito fiscal, mesmo que tenham como objeto a mesma notificação de lançamento, uma vez que na execução fiscal não será prolatada sentença de mérito que possa conflitar com decisão a ser proferida na ação anulatória’.2. De regra, não se suspende execução fiscal não-embargada só pelo fato de ter sido interposta ação anulatória de débito.3. A conexão só se caracteriza quando entre duas ações for comum o objeto ou a causa de pedir e o resultado seja idêntico para ambas as ações.4. Não viola dispositivo legal a decisão que nega suspensão de execução não-embargada até julgamento definitivo de ação anulatória de débito fiscal, quando o exame da discussão posta nas lides demonstra inexistência de conflito entre as

demandas.5. ‘A execução fiscal não embargada não pode ser paralisada por conexão de ação de consignação em pagamento, sem depósito algum’ (REsp nº 407299/SP, 2ª Turma, Relª Minª Eliana Calmon, DJ de 17/05/2004)6. Recurso especial não provido.” (Acórdão unânime da 1ª Turma do STJ, REsp 745.811/RS, rel. Min. José Delgado, j. 24/5/2005, DJ de 27/6/2005, p. 300).

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LIMITES DE APLICAÇÃO DA TEORIA DA FLEXIBILIZAÇÃO OU RELATIVIZAÇÃO

DA COISA JULGADA.2

Nilton Kiyoshi KurachiProcurador do Estado de Mato Grosso do Sul

Professor universitário (UNIDERP/MS)Diretor Administrativo da Associação Nacional de Procuradores de Estado

Mestre em Direito (UNIMAR/SP) Ana Paula Muxfeldt de Almeida

AdvogadaBacharel em Direito (UNIDERP/MS)

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SUMÁRIO

Introdução; 1. A coisa julgada e a sua flexibilização; 1.1 A coisa julgada; 1.2 A coisa julgada inconstitucional; 1.3 Histórico do nascimento da flexibilização da teoria da flexibilização ou relativização da coisa julgada; 1.4 Hipóteses de ocorrência da flexibilização da coisa julgada; 1.6.1 Nas ações de investigação de paternidade ou maternidade; 1.6.2 No meio ambiente; 1.6.3 O caso constante no artigo 741 do código de processo civil; 1.6.4 Nas desapropriações; 1.6.5 a emenda constitucional nº 41/2003; 2. Meios processuais utilizados para invocar a flexibilização da coisa julgada; 3. Limites de aplicação da teoria da flexibilização da coisa julgada; 3.1 Conseqüências da aplicação da teoria da flexibilização da coisa julgada na sociedade moderna; 3.2 O conflito entre a teoria da flexibilização da coisa julgada com alguns princípios constitucionais; 3.3 Os casos específicos de aplicação da teoria da flexibilização da coisa julgada; 4. conclusão; 5. Referências bibliográficas.

RESUMO

Esta obra apresenta os resultados de um estudo que visa verificar a possibilidade de flexibilização da coisa julgada na sociedade moderna e seus limites de aplicação. Com isso, foram verificadas algumas hipóteses comuns de flexibilidade. A mitigação da coisa julgada, em alguns momentos, choca-se com alguns princípios e, assim, ocorrem algumas conseqüências negativas com a sua aplicação. Nesse contexto, os princípios da proporcionalidade e da racionalidade podem servir como ferramentas básicas para auxiliar o magistrado no momento em que sentir a necessidade de flexibilizar a coisa julgada.

Palavras-chave: Flexibilização, coisa julgada, hipóteses, limites, conseqüências, princípios.

ABSTRACT

This work presents the results of a study that it seeks to verify the possibility of flexible of the thing judged in the modern society and your application limits. With that, some hypotheses common of flexibility were verified. The mitigation of the judged thing, in some moments, it is shocked with some beginnings and, like this, they happen some negative consequences with your application. In that context, the beginnings of the proportionality and of the rationality they can serve as basic tools to aid the magistrate when it feels the flexible need the judged thing.

Word-key: flexible, judged thing, hypotheses, limits, consequences, beginnings.

1 INTRODUÇÃO

A constante modificação das relações sociais tem trazido ao mundo jurídico grandes indagações em relação à verdadeira vantagem da perpetuidade das sentenças definitivas. O avanço tecnológico e científico foi um forte motivo para se fazer questionamento sobre os

benefícios imutabilidade das decisões. Nas ações de investigação de paternidade, o exame de DNA, com probabilidade de acerto de até 99% (noventa e nove por cento), suprimiu alguns erros, suposições, indícios e presunções que embasavam, até pouco tempo, alguns julgados. Outra força propulsora do questionamento sobre a imutabilidade da coisa julgada é o direito fundamental ao meio ambiente introduzido no texto constitucional de 1988, artigo 225. O problema ocorre quando, por exemplo, uma atividade poluidora está sob a égide do princípio do desenvolvimento sustentável. Essa atividade, autorizada pelo Licenciamento Ambiental, contrapõe-se com o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Existem, ademais, sentenças também admitidas como injustas. São os casos oriundos das desapropriações quando ofendem os princípios da legalidade, da moralidade administrativa e do justo valor.Faz-se mister ressaltar, também, mais outra problemática que envolve o ordenamento jurídico brasileiro. O modelo constante no parágrafo único do artigo 741, do Código de Processo Civil, considera inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou ainda, quando a sua aplicação ou interpretação é incompatível com a Constituição Federal. A partir de toda essa discussão a coisa julgada, que outrora parecia ser um instituto absoluto, passou a perder arena. A necessidade de se buscar uma adequação à realidade do sistema jurídico fez surgir, na doutrina e na jurisprudência, uma corrente chamada de “flexibilização da coisa julgada”. Este posicionamento não reconhece mais o caráter inexorável da aplicação do princípio da imutabilidade nas decisões definitivas. Entretanto, apesar de apresentar soluções aparentemente adequadas ao sentimento de justiça, essa teoria confronta-se com alguns princípios vigentes em nosso ordenamento e se mostrado inaplicável em alguns momentos. Este assunto também tem suscitado dúvidas em saber qual é o mecanismo processual mais apropriado para provocar a re-análise da coisa julgada. Por esse motivo, surgiu a necessidade de analisar os casos passíveis de mutabilidade da coisa julgada, os limites de sua aplicação e as implicações jurídicas de sua aplicação na sociedade moderna brasileira.

1. A COISA JULGADA E A SUA FLEXIBILIZAÇÃO

1.1 A coisa julgada

A partir da análise da história do direito verifica-se que a sociedade escolhe os valores que serão positivados no ordenamento jurídico. É por meio desses valores que são criadas as regras jurídicas. Entre os vários valores integrantes da Lei fundamental encontramos o princípio da segurança jurídica, que tem como escopo proteger a imutabilidade da coisa julgada. Porém, a constante modificação das relações sociais tem trazido ao mundo jurídico grandes indagações em relação à vantagem da perpetuidade das sentenças definitivas. Esses questionamentos fizeram nascer a teoria da flexibilização da coisa julgada. A terminologia “coisa julgada” deriva da

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expressão latina res iudicata que significa “bem julgado”. Esse instituto pode ser compreendido como um meio processual utilizado para garantir a segurança nas relações jurídicas evitando, assim, a perpetuidade dos conflitos após a análise jurisdicional do Estado. O conceito de coisa julgada surgiu no ordenamento nacional a partir da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro1, Decreto-lei 4.657, de 04 de setembro de 1942 (art. 6º, §3º): “Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso”. Pode-se, assim, entender que o fenômeno coisa julgada ocorre a partir do momento em que a decisão não é mais suscetível a recursos. Além de pertencer ao ramo processual a Constituição da República Federativa do Brasil de 19882, em seu artigo 5º, que trata dos direitos e deveres individuais e coletivos, no inciso XXXVI, destaca, entre outros princípios, que a lei não poderá prejudicar a coisa julgada. Por esse motivo, hoje se discute a natureza jurídica desse instituto. Uns entendem tratar-se de uma norma meramente processual, outros, porém, acreditam referir-se a um mandamento constitucional. Sem adentrar nesse mérito, pode-se considerar a coisa julgada como a qualidade ou efeito da sentença que proíbe uma nova discussão sobre a mesma matéria pela via judicial. Vale ainda dizer que, para ocorrer esse efeito o litígio deverá envolver o mesmo tema e as mesmas partes integrantes de um processo anterior o qual já tenha transitado em julgado. Dessa forma, observa-se que sua origem se deu em razão da necessidade da garantia da imutabilidade nas relações sociais e o seu objetivo é a não perpetuação dos conflitos. Nesse contexto, a sentença, ainda que equivocada ou injusta, deve ser imutável.

1.2 A coisa julgada inconstitucional

A coisa julgada inconstitucional é um tema que vem sendo debatido jurisprudencial e doutrinariamente ao considerar que as sentenças juridicamente impossíveis, injustas e atentatórias à normalidade das leis são inconstitucionais e devem ser revistas. A ampla discussão sobre esse tema ensejou a criação da teoria da flexibilização da coisa julgada. Como coisa julgada inconstitucional pode-se entender como o efeito produzido pelas sentenças quando estas afrontam os direitos ou alguns princípios fundamentais. Apesar de a doutrina não mencionar a res iudicata inconstitucional é formada por duas situações distintas: quando ocorre por força de lei; e em razão da ofensa aos princípios, direitos e garantias constitucionais. A primeira hipótese ocorre quando a lei ou o ato normativo são declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal. Como exemplo, verifica-se a hipótese constante no parágrafo único do artigo 741, do Código de Processo Civil. A segunda situação ocorre quando a sentença transitada em julgado viola a aplicação dos princípios, direitos e garantias constitucionais. A título de exemplo, pode-se citar a situação relativa às ações de investigação de paternidade ou maternidade em que o juiz pautou-se devidamente na legislação, porém, depois de decorrido o prazo para a propositura de recursos comprovou-se

que a filiação não era legítima.

1.3 Histórico do nascimento da teoria da flexibilização ou da relativização da coisa julgada

Como se tem notícia, a teoria da flexibilização da coisa julgada surgiu a partir da busca da verdade dos fatos, do sentimento de se fazer justiça e da discussão sobre os efeitos da coisa julgada inconstitucional no mundo jurídico. O surgimento dessa teoria não ocorreu só na ordem jurídica brasileira. Outros países, também, questionaram a autoridade das sentenças transitadas em julgado. No Uruguai, Eduardo Couture3 escreveu vários artigos sobre a admissibilidade e meios de revisão judicial das sentenças cobertas pela coisa julgada. Examinou o caso do fazendeiro rico que teve um filho com sua empregada. Para livrar-se da responsabilidade paterna o patrão instigou sua funcionária a contratar um advogado inteira confiança dele. Quando foi chamado ao processo o fazendeiro negou os fatos e o procurador da parte contrária negligenciou o ônus de provar o alegado. A conseqüência foi à improcedência do pedido. Como obviamente não houve recurso ocorreu, também, o trânsito em julgado da sentença. Posteriormente, o filho ao chegar à maior idade moveu ação de investigação de paternidade, mas confrontou-se com o imperativo da coisa julgada. Um professor da Universidade de La Plata, Juan Carlos Hitters4, em monografia sobre a revisão da coisa julgada fez uma longa resenha de casos apreciados pelos tribunais argentinos. Em uma das decisões desses órgãos colegiados estabeleceu-se que os vícios substanciais da sentença poderiam afetar os atos processuais. Por esse motivo, os ditos defeitos seriam suscetíveis de alegação e reconhecimento mesmo depois de decorrido o prazo preclusivo. Tal justificativa foi dada em razão de o procedimento judicial definitivo (sentença) ser considerado sem efeito quando viesse a ser reconhecida a existência de um vício de fundo. No direito norte-americano, segundo Cândido Dinamarco5, a cultura anglo-americana é mais desapegada aos rigores da autoridade da coisa julgada. A professora Mary Kay Kane relatou que em um processo trabalhista a coisa julgada foi afastada em razão das regras de lei salarial. A ação anterior teria omitido alguns pedidos possíveis e, em razão do lapso temporal, adveio a coisa julgada. O entendimento que se formou foi à idéia de que esse instituto deveria ser descaracterizado pelo fato de a sentença ter limitado um direito assegurado em lei. No Brasil, as atenções atinentes à inconstitucio-nalidade da coisa julgada foram levantadas também a partir da reflexão de casos concretos. Em razão disso, a suscitação de dúvidas da onipotência desse instituto tornaram-se freqüentes ensejando a criação da teoria da flexibilização da res iudicata. Um exemplo de reflexão ocorreu após o procurador de justiça Hugo Nigro Mazzilli6 figurar a hipótese de uma ação civil pública haver sido julgada favorável a uma fábrica poluidora. A justificativa apresentada foi a de que os gazes liberados na atmosfera não seriam nocivos à saúde da população. Após o

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trânsito em julgado verificou-se que a perícia realizada fora fraudulenta e que a atividade da empresa estava poluindo o meio ambiente. Outro momento que suscitou questionamento foi após Humberto Theodoro Júnior7 emitir um parecer para a Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo sobre a multiplicidade e superposições de sentenças. Estas condenaram o Poder Público a indenizar duas vezes o proprietário de uma mesma área expropriada. De forma análoga despertou interesse a ocorrência exposta por Ada Pellegrini Grinover8. A professora entendeu que inexiste óbice da coisa julgada para o impedimento da propositura de anulação de reconhecimento de filiação. Nessa ação restou provado que o demandado não tinha condições fáticas de ser o pai do suposto filho. Mesmo depois da constatação de que o declarante era impotente ao tempo da concepção, o pedido anulatório da decisão foi julgado improcedente. Após o trânsito em julgado, o tema novamente foi discutido não logrando êxito, pois o autor esbarrou no obstáculo da coisa julgada. A partir da ocorrência de todos esses casos, a doutrina, verificando o cerceamento dos direitos individuais e coletivos fundamentais, concebeu um conceito denominado de coisa julgada inconstitucional. O instituto da coisa julgada que outrora parecia ser absoluto passou a perder arena. A necessidade de se buscar uma adequação no sistema jurídico fez nascer a corrente chamada de “flexibilização da coisa julgada”. Este posicionamento da doutrina não reconhece mais o caráter inexorável da aplicação do princípio da segurança jurídica. Depois da ocorrência de alguns julgados, como por exemplo, o da primeira turma do Supremo Tribunal Federal9 em 1982, (Acórdão de RE 93412 de Santa Catarina em 04/02/1982) cujo Relator fora o Ministro Clovis Ramalhete, ficou sedimentado o entendimento, qual seja, que as sentenças abusivas não podem prevalecer. Verifica-se, dessa forma, que a jurisprudência, também, vem trilhando caminho no sentido de considerar a possibilidade de descaracterização do absolutismo da coisa julgada desde a década de 80. Além da tendência doutrinária e jurisprudencial o ordenamento jurídico brasileiro ensejou a necessidade de se desconsiderar a coisa julgada. O parágrafo único do artigo 741, do Código de Processo Civil, cuja redação foi dada pela Medida Provisória nº 2.180-35/2001, considera inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais. Outra fonte-base da teoria da flexibilização é o Código de Processo Penal10 (Decreto-lei 3689, de 1941) no que tange a promoção da justiça pelo elevado princípio da verdade real como fundamento da sentença. Segundo a disposição do artigo 622, a ação revisional (com o objetivo de rever a sentença injusta) poderá ser requerida, a qualquer tempo, nos casos constantes dos incisos I, II e III do artigo 621, do mesmo diploma. Apesar da demonstração dos fatos e dos motivos da criação dessa nova teoria, foi no caso das ações de investigações de paternidade que a flexibilização da coisa julgada teve seu maior aporte. O avanço científico trouxe para a sociedade moderna uma prova pericial com probabilidade de acerto de até 99% (noventa e nove por cento). Hoje o exame do ácido deoxyribonucleic ou ácido nucleic do deoxyribose, conhecido como

DNA, é amplamente utilizado para comprovar o estado de filiação. A novel técnica probatória proporcionou certeza quase inquestionável quanto à verdadeira paternidade. Em conseqüência, não parecia ser medida de justiça fazer com que, pelo motivo de a sentença ter transitado em julgado, um erro material obrigasse o filho a conviver com o pai que não possuía qualquer ligação consangüínea. Também não parecia razoável exigir que o inverídico pai continuasse a se responsabilizar pelas obrigações relativas à filiação. A partir disso, retorquiu-se a efetividade dos julgados anteriores baseados em “achismos” ou pautados apenas em provas superficiais que de longe poderiam ser refutadas. A coisa julgada inconstitucional ensejou a criação da teoria da flexibilização da coisa julgada cujo ideário não reconhece mais o caráter inexorável da aplicação do princípio da imutabilidade nas decisões.

1.4 Hipóteses de ocorrência da flexibilização da coisa julgada

Além dos comentários aduzidos no item anterior, pode-se dizer que a discussão sobre a coisa julgada está ligada à necessidade de adequação do sistema jurídico vigente à realidade social brasileira. As possíveis sentenças que não devem ser revestidas do manto da coisa julgada são: a declaratória de existência de preclusão por terem sido falsas as provas; expedida sem que o demandado tenha sido citado com as garantias exigidas pela lei processual; a originária de posição privilegiada da parte autora que, aproveitando-se de sua própria posição de monopólio e do estado de necessidade do réu, demanda a este por razão de um crédito juridicamente infundado; a baseada em fatos falsos depositados durante o curso da lide; a reconhecedora da existência de um fato que não está adequado à realidade; a conseguida por um perjúrio ou a um juramento falso; a ofensiva à soberania estatal; a violadora dos princípios da dignidade humana etc. As hipóteses mais comuns encontradas na seara jurídica brasileira que ensejam a aplicação da teoria da flexibilização do instituto da coisa julgada são as seguintes: nas ações de investigação de paternidade ou maternidade; nas situações que envolvem o meio ambiente; o caso constante no artigo 741, do Código de Processo Civil; e nas desapropriações.

1.4.1 Nas ações de investigação de paternidade ou maternidade

Atualmente, o exame de DNA, com probabilidade de certeza de até 99% (noventa e nove por cento), está sendo muito utilizado para comprovar o estado de filiação. A partir do seu surgimento, questionou-se a efetividade dos julgados baseados apenas em provas superficiais e subjetivas. Nas demandas de ações de investigação de paternidade a atribuição de responsabilidade ao pai inverídico não é, nem de longe, razoável quando ocorre um erro material da sentença em decorrência da convicção subjetiva do juiz. A criança, por sua vez, não poderia ter seu direito de convivência familiar suprimido.

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Danielle Vicentini11 comenta sobre essa casuística: “Caso a coisa julgada seja considerada direito fundamental absoluto, estaremos extinguindo por completo o direito ao respeito e à convivência familiar da criança, pois a criança jamais poderá descobrir quem é seu pai e exercer direitos decorrentes disso. Por outro lado, caso seja admitida à rediscussão do caso, estaremos preservando o direito da criança e arranharemos a garantia da coisa julgada.” No caso em epígrafe, pode-se verificar que existe colisão entre dois direitos fundamentais: da dignidade da pessoa humana (em razão do respeito à convivência familiar) com a segurança jurídica (decorrente da imutabilidade da coisa julgada). Para resolver essa questão, conforme o entendimento dos idealizadores da teoria da flexibilização da coisa julgada, deve-se analisar qual direito deve prevalecer. O meio utilizado é o princípio da proporcionalidade. É clarividente que a dignidade da pessoa humana é mais importante visto tratar-se de um dos fundamentos pelos quais foi constituído o Estado Democrático de Direito. Segundo alguns doutrinadores, pelo fato de possuir o status de um supraprincípio ou um supravalor, apesar de o direito da imutabilidade da coisa julgada estar disposto entre os direitos e garantias fundamentais, a dignidade da pessoa humana deve prevalecer. O Tribunal de Justiça de Rio Grande do Sul12, em decisão prolatada pela relatora Desembargadora Maria Berenice Dias (Apelação/TJ Rio Grande do Sul/RS. Apelação cível nº 70008334724), já entendeu que: “Possível a renovação de demanda investigatória quando a ação anterior foi julgada improcedente por falta de provas e não foi realizado o exame de DNA. Os preceitos constitucionais e da legislação de proteção ao menor se sobrepõem ao instituto da coisa julgada, pois não há como negar a busca da origem biológica. Apelo provido monocraticamente.” No mesmo sentido, o Relator Ministro Sálvio Figueiredo Teixeira da 4ª turma do Superior Tribunal de Justiça13 (REsp 330172 / RJ; Recurso Especial 2001/0066393-6) entendeu: “III - Esta Turma, em caso que também teve seu pedido julgado improcedente por falta de provas (REsp n. 226.436-PR, DJ 04/02/2002), mas diante das suas peculiaridades (ação de estado - investigação de paternidade etc.), entendeu pela relativização (sic) da coisa julgada.” Atualmente, a maioria das sentenças que tratam de filiação tem como prova o exame de DNA. Essa técnica suprimiu erros e suposições que acometiam alguns julgados. O entendimento jurisprudencial já se posiciona em conceder a flexibilização da coisa julgada nas decisões pautadas apenas em provas subjetivas. Porém, deve-se observar que no caso da recusa do réu em submeter-se ao exame leva à presunção de veracidade dos fatos alegados. Aplica-se, mesmo assim, a regra do artigo 359 do Código de Processo Civil.

1.4.2 No meio ambiente

O direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado foi introduzido na Carta Magna de 1988, em seu artigo 225. A Constituição, ao afirmar que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito de todos, impôs ao Poder Público e à coletividade o dever de preservá-lo. Assim, qualquer brasileiro nato ou naturalizado poderá invocar esse direito difuso, cujo caráter, de acordo com o pensamento do doutrinador Celso Fiorilo14, é transindividual e indivisível. Como transindividualidade pode-se entender como sendo o interesse que ultrapassa o limite da esfera de direitos e obrigações de cunho individual. A palavra indivisibilidade traz à luz a idéia de que o meio ambiente é um bem que a todos pertence, mas ninguém individualmente o possui. Dessa forma, pode-se inferir que esse assunto envolve interesse público e está acima de qualquer outro interesse particular. A legislação infraconstitucional (Lei 6.938/1981), no intuito de garantir o desenvolvimento econômico e social, concebeu o princípio do desenvolvimento sustentável contrariando o direito fundamental ao meio ambiente inserido na Lei Maior. Assim, surgem dúvidas para saber qual interesse deve prevalecer. Resta ponderar qual o direito que possui mais valia, o meio ambiente ou o desenvolvimento econômico. Outros problemas ocorrem quando, por exemplo, um empreendedor-poluidor obtém o Licenciamento Ambiental de forma fraudulenta ou, ainda, quando sua atividade extrapola os limites de poluição admitidos. O procurador de justiça Hugo Nigro Mazzilli15, ao figurar a hipótese da ação civil pública que foi julgada favorável a uma fábrica poluidora, entendeu pela mitigação da coisa julgada por não ser admitida a destruição do habitat do ser humano sob qualquer pretexto. A justificativa apresentada pela empresa foi a de que os gazes liberados na atmosfera não seriam nocivos à saúde da população. Após o trânsito em julgado verificou-se que a perícia realizada fora fraudulenta e que a atividade da empresa estava poluindo o meio ambiente. No que tange à supremacia do interesse público em relação ao particular, as duas altas cortes brasileiras pronunciaram-se em matéria de direito ambiental. O Ministro Demócrito Reinaldo16, da primeira turma do Superior Tribunal de Justiça (RMS 9629 / PR - Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 1998/0024829-3), entendeu que, apesar de o recorrente ter agido em conformidade com o alvará de construção, a obra deveria ser embargada: “Consoante a legislação em vigor, a construção de edifícios na faixa litorânea do Estado do Paraná não se sujeita somente à obtenção de autorização na esfera da Administração Municipal, porquanto, predominando o interesse público vinculado à preservação e equilíbrio do meio ambiente e do estímulo ao turismo, a sua defesa, bem assim a avaliação do impacto de qualquer obra compete não somente ao Município, mas, concomitantemente, ao Estado e à União, aos quais se impõe legislar concorrentemente.” “Normas que não infringem a autonomia do

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Município, nem ao direito adquirido. Recurso ordinário improvido. Decisão unânime.” O Supremo Tribunal Federal17 (Recurso Extraordinário nº 106931 - PR), Relator Ministro Carlos Madeira, considerou que a contrariedade ao interesse público retira a definitividade da coisa julgada: “Ementa: Administrativo. licença de construção. a invalidade do alvará concedido pela autoridade municipal, por autoridade estadual, tendo em vista a sua ilegalidade, a contrariedade ao interesse público e até por descumprimento do titular na execução da obra, retira a sua presunção de definitividade e o desqualifica como ato gerador de direito adquirido. Recurso Extraordinário não conhecido. Observação. Votação: Unânime. Resultado: Não Conhecido. VEJA RE-85002, RTJ-76/1016, RE-93108, RTJ-100/351, RE-93651. ANO: 86 AUD:16-05-86 Alteração: 05/12/00, (MLR).” Em consonância com o pensamento apresentado pelos tribunais, Thiago Zandona18, em seu artigo que trata da relativização da coisa julgada no direito ambiental publicado em 2004, também considerou que e o direito ao meio ambiente deve prevalecer sobre qualquer outro. Nesse sentido, complementa: “[...] entende-se ser quase inerente ao conceito de Direito Ambiental, enquanto tutela jurídica coletiva, a necessidade de relativizar-se a coisa julgada atendendo as peculiaridades de cada caso. Se assim não se entender, as gerações futuras e a sadia qualidade de vida apregoados na Carta Maior (art. 225 CF) ficarão muito prejudicadas, pois formalismo processualista não acompanha a mutação social.” Extrai-se das colocações aduzidas que ao mesmo tempo em que a Lei Maior coloca o meio ambiente como direito de todos, a legislação infraconstitucional, em nome do desenvolvimento econômico-social, prevê possibilidades de degradação. Mas de acordo com pensamento doutrinário e jurisprudencial explicitados, pelo fato do direito ao meio ambiente envolver interesse público qualquer ato administrativo ou judicial relativo a esse tema estaria alheio à definitividade da coisa julgada.

1.4.3 O caso constante no artigo 741 do código de processo civil

A legislação brasileira já contém em seu regramento um caso de possibilidade de flexibilização. É a situação prevista no Título III, Capítulo II, que trata dos embargos à execução fundada em sentença, do Código de Processo Civil Brasileiro. O parágrafo único do artigo 741, mostra claramente mais uma necessidade da flexibilização da coisa julgada. É o caso da inexigibilidade do título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais ou em aplicação incompatível com a Constituição Federal19. O diploma legal estabelece: Artigo. 741. [...]

“Parágrafo único. Para efeito do disposto do inciso II deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal ou em aplicação ou interpretação tidas por incompatíveis com a

Constituição Federal.”

Como se depreende da análise desse dispositivo, pode-se considerar que a ineficácia do título judicial pode surgir posteriormente ao trânsito em julgado. Assim, se no decorrer da demanda a lei em que se fundou a decisão for declarada inconstitucional pelo STF, no acolhimento dos embargos ou em sede de exceção de pré-executividade, o título fica despido de eficácia executiva.

1.4.4 Nas desapropriações

No sistema jurídico vigente existem, ademais, outras sentenças admitidas pela doutrina como injustas. O processo de desapropriação quando ofende o princípio da legalidade, da moralidade administrativa ou do justo valor é considerado inconstitucional. O Ministro José Delgado20, em seu voto como relator da primeira turma do Superior Tribunal de justiça, declarou sua posição doutrinária reconhecendo o caráter não absoluto da coisa julgada. Foi no caso em que a Fazenda do Estado de São Paulo havia sido vencida em um processo de desapropriação. O tema voltou a ser discutido em juízo após se verificar que, por erro pericial, não foi constatada a realidade dos fatos uma vez que a área apossada pelo Estado já pertencia a ele próprio e não aos autores da ação. A tese do Ministro prevaleceu por três votos contra dois e a tutela antecipada foi concedida. Em sede do Recurso Especial (REsp554.402/RS - Recurso Especial 2003/0114847-6)21, novamente entendeu pela desconsideração da coisa julgada: “[...] não se pode acolher a invocação de supremacia da coisa julgada principalmente tendo-se em vista o evidente erro cometido pela sentença [...].” “Não deve se permitir, em detrimento do erário público, a chancela de incidência de correção monetária dobrada em desacordo com a moral e com o direito[...]. Abriga-se, nesse atuar, maior proximidade com a garantia constitucional da justa indenização, seja pela proteção ao direito de propriedade, seja pela preservação do patrimônio público.” “Inocorrência de violação aos preceitos legais concernentes ao instituto da res iudicata. Conceituação dos seus efeitos em face dos princípios da moralidade pública e da segurança jurídica.” Como se depreende da leitura da fundamentação do voto desse Ministro, as sentenças ofensivas aos princípios da legalidade, da moralidade e do justo valor indenizatório são atentatórias à Constituição. A moralidade administrativa obsta autoridade da res iudicata em relação aos julgados absurdamente lesivos ao Estado.O imperativo da legalidade e do justo valor impede que o Estado pague valor ínfimo ou exorbitante. Ao pagar menos pelo imóvel desapropriado restringiria o direito de propriedade do cidadão. Ao pagar mais implicaria dano e ultraje à moralidade administrativa. No que tange aos precedentes do Supremo Tribunal Federal (Recurso Extraordinário 93412 / SC Relator Ministro Clovis Ramalhete)22, o entendimento é de que nova avaliação do imóvel não ofende a coisa julgada: “Não ofende a coisa julgada a decisão que, na execução, determina nova avaliação para atualizar o valor

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do imóvel, constante de laudo antigo, tendo em vista atender a garantia constitucional da justa indenização, procrastinada por culpa da expropriante. precedentes do STF. recurso extraordinário não conhecido.” Com cautela, o Ministro Soares Muñoz23, ao proferir seu voto/vista, no mesmo recurso, considerou que a aplicação da flexibilidade da res iudicata deve ser restringida em relação aos fatos contemporâneos: “A doutrina moderna a respeito da coisa julgada restringe os seus efeitos aos fatos contemporâneos, ao momento em que foi prolatada a sentença. A força da coisa julgada material, acentua James Goldschmidt, alcança a situação jurídica no estado em se achava no momento da decisão, não tendo, portanto, influência sobre os fatos que venham a correr depois.” O Pretório Excelso desconsiderou a coisa julgada em razão do princípio da justa indenização e da moralidade administrativa e o colendo Superior Tribunal de Justiça ao julgar o Recurso Especial nº 105.012 / RN considerou que a flexibilização da res iudicata deve ocorrer apenas em casos excepcionais. O Ministro Néri da Silveira24 entendeu: “Liquidação de sentença. Determinação de nova avaliação. Diante das peculiaridades do caso concreto, não se pode acolher a alegação constante do recurso extraordinário de ofensa, pelo acórdão, ao artigo 153, § 3º, da Constituição Federal, em virtude do deferimento de nova avaliação dos terrenos. O aresto teve presentes fatos e circunstâncias especiais da causa, a indicarem a injustiça da indenização, nos termos em que resultaria da só aplicação da correção monetária, a contar da Lei n. 4.686/1965, quando a primeira avaliação aconteceu em 1957. Critério a ser seguido na nova avaliação. Decreto-Lei n. 3.365/1941, artigo 26. Questão que não constitui objeto do recurso extraordinário da União.” Verifica-se, contudo, que nos processos de desapropriação que ofendem os princípios da moralidade administrativa, da legalidade e do justo valor são desconstituídos de definitividade. Em outras palavras, a inobservância dessas normas criam óbices à autoridade da coisa julgada possibilitando nova análise do pleito.

2. MEIOS PROCESSUAIS UTILIZADOS PARA INVOCAR A FLEXIBILIZAÇÃO DA COISA JULGADA

Em análise às disposições doutrinárias e jurisprudenciais, verifica-se que ocorre cada vez mais a mitigação da coisa julgada. Prova disso são os diversos julgados já existentes sobre esse tema. A res iudicata já não possui mais um caráter absoluto e, em alguns casos, está sendo submetida a um controle difuso de constitucionalidade. Corrobora-se que, a partir da década de oitenta25 , determinadas sentenças passaram a não reconhecer mais o seu caráter inexorável. Ao se concluir que a possibilidade de flexibilização da coisa julgada é resplandecente resta discutir quais são os meios processuais, apontados pela doutrina ou pela jurisprudência, através dos quais se impugna em juízo essa desconformidade com o sistema jurídico. Vale lembrar que a legislação processual ainda não se adequou a essa nova tese apesar de o artigo 741, do Código de Processo Civil, já ensejar a possibilidade

de sua existência. Antes de adentrar ao tema relativo aos mecanismos processuais utilizados para invocar a flexibilização da coisa julgada, vale trazer a luz do presente estudo algumas considerações em relação ao efeito da sentença definitiva considerada inconstitucional. Humberto Theodoro Júnior26 entende que a sentença inconstitucional é inexistente ou nula. Este doutrinador acredita que a nulidade pode ser declarada a destempo. Candido Rangel Dinamarco27 afirma que a sentença nula pode ser um nada jurídico, mas não é um nada histórico. Considera que sentença de mérito, apesar de ser inconstitucional, gera efeitos. Como se depreende da leitura das opiniões em epígrafe, é divergente o entendimento sobre a natureza jurídica do efeito da sentença definitiva inconstitucional. Assim, pode-se entender que o resultado que torna a decisão injusta imutável segue duas vertentes, quais sejam: o primeiro entendimento emerge no sentido de reconhecer a existência da coisa julgada material inconstitucional; de forma contrária, o segundo raciocínio repele a existência da coisa julgada material e considera que nesses casos não ocorre o trânsito em julgado. De acordo com a primeira vertente, o reconhecimento da existência da coisa julgada material tem como efeito a produção dos efeitos reflexos da sentença de mérito, ou seja, mesmo sendo inconstitucional a sentença gera efeitos. Porém, em razão do vício grave que a inquina deve-se considerar a possibilidade de mitigação do efeito dessa sentença. Em consonância com a segunda assertiva, não é admitida a existência da coisa julgada. Assim, o ato judicial é nulo, inexistente. Vale ressaltar, que a escolha do meio processual adequado à desconstituição da res iudicata dependerá dessa análise, ou seja, da natureza jurídica da coisa julgada inconstitucional. Examinando, contudo, as discussões doutrinárias, verifica-se que ainda não existem meios processuais específicos destinados a invocar a desconstituição da res iudicata. Os tribunais, também, não têm sido exigentes quanto à escolha do remédio técnico-processual adequado. Os seguintes meios de controle de constitucionalidade da sentença definitiva inconstitucional têm sido apontados pelos estudiosos como aptos à desconstituir a coisa julgada: ação declaratória de nulidade - querella nulitatis - (STF - RE 97589 / SC); a ação rescisória (artigos 485 a 495, do Código de Processo Civil); a propositura de uma ação idêntica à anterior (STJ - REsp 226.436 / PR); os embargos à execução (artigo 736 e seguintes, do Código de Processo Civil) ou a exceção de pré-executividade (STJ - REsp nº 838.399 SP / 2006/0076191-0); e a argüição de descumprimento de preceito fundamental (§ 1º, do artigo 102, da Constituição Federal e Lei 9.882/99). Ao se entender pelo reconhecimento da existência da coisa julgada material e considerar pela mutabilidade em razão do vício grave que a inquina, o interessado poderá, conforme o caso, optar pela ação rescisória, pelos embargos à execução ou pela argüição de preceito fundamental.

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Em segundo plano, ao não aceitar a existência da coisa julgada e considerar a ocorrência de um ato nulo, o caminho a se percorrer é o da utilização da ação declaratória de nulidade (querella nulitatis) ou da propositura de outra ação idêntica à primeira. Se houver a intenção de atacar um título executivo que envolva matéria de ordem pública, concebe-se a possibilidade de impugnação por meio da exceção de pré-executividade. Pelo fato de o ordenamento ainda não contemplar o mecanismo processual adequado para desconstituir as sentenças injustas definitivas, por meio de uma análise do caso concreto, cabe ao interessado observar a natureza jurídica da coisa julgada inconstitucional e optar pelo mecanismo de sua conveniência.

3. LIMITES DE APLICAÇÃO DA TEORIA DA FLEXIBILIZAÇÃO DA COISA JULGADA

As exposições asseveradas nos capítulos anteriores mostraram que é inegável o reconhecimento aplicação da teoria da flexibilização da coisa julgada no ordenamento jurídico nacional. Entretanto, apesar de aparentar ser solução adequada ao sentimento de justiça e na tentativa de resguardar o direito à dignidade da pessoa humana, a mitigação da res iudicata esbarra em outro princípio constitucional, qual seja, o da segurança jurídica exteriorizado pela imutabilidade da coisa julgada. Para se descobrir quais são os casos passíveis à aplicação da teoria da flexibilização sugere-se uma análise criteriosa de suas implicações no caso em concreto.

3.1 Conseqüências da aplicação da teoria da flexibilização da coisa julgada na sociedade moderna

Com a aplicação da teoria da flexibilização da coisa julgada, surgem alguns questionamentos em relação aos reflexos ocasionados na sociedade moderna brasileira. Ver-se-á a seguir que existem conseqüências positivas e negativas da mitigação do instituto da res iudicata. Geroges Abboud28, ao publicar um artigo sobre a impossibilidade de relativização da coisa julgada inconstitucional, entendeu: “[...] a falta de critérios seguros e racionais para a “relativização” da coisa julgada material pode, na verdade, conduzir à sua flexibilização (desconsideração), estabelecendo um estado de grande incerteza e injustiça.” “[...] quem poderia impedir que o sucumbente retornasse, no dia seguinte, com uma ação inversa, pretendendo demonstrar a injustiça da segunda sentença? Porventura (sic), a coisa julgada...?” Sérgio Nojiri29, afirma que não há nenhum critério objetivo para se definir os contornos de uma nova decisão. Assim, não teria como saber de que forma o Judiciário deve agir, ou ainda, quantas vezes poderia ser anulada uma decisão. Coloca ainda, que se for possível a anulação de uma sentença transitada em julgado, pelo dever de coerência, também abre-se a possibilidade de anular a qualquer tempo a decisão posterior que anulou

a anterior trazendo à tona o problema da “eternização dos conflitos”. Para melhor entender, veja-se o seguinte exemplo: suponha-se que um juiz, convencido da incompatibilidade entre uma sentença e a Constituição Federal, se considere autorizado para decidir em sentido contrário à sentença anterior. Possivelmente, sua sentença modificadora da decisão antiga poderá ser considerada injusta pela parte sucumbida. A análise dessa contenda reflete no sentido de se questionar o que impediria esse litigante de impugnar em juízo a segunda sentença. Outro pensamento pertinente reluz na possibilidade de outro juiz, que não julgou a causa, achar necessário submeter essa segunda decisão ao seu crivo também. A competência para análise do pleito, como se sabe, ainda não é clara. Assim, qual é o juiz competente para flexibilizar a coisa julgada? Como se vê, as conseqüências negativas da aplicação da teoria da flexibilização da coisa julgada na sociedade atual giram em torno da propagação do “eterno devir”, ou seja, que a sentença seja revista ad infinitum e da a dúvida em relação à competência jurisdicional para análise do pleito. O resultado positivo da aplicação da teoria da flexibilização mostra o justo objetivo de não se eternizarem as injustiças fazendo com que os cidadãos creditem sua confiança no sistema e nas Instituições Públicas sob o primado da justiça e do elevado fundamento do Estado Democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana.

3.2 O conflito entre a teoria da flexibilização da coisa julgada com alguns princípios constitucionais

A flexibilização da coisa julgada, tendência doutrinária e jurisprudencial que visa garantir a persecução dos direitos fundamentais individuais, coletivos e difusos, desconsidera o instituto da coisa julgada. Como se observa, ela se esbarra nos princípios da segurança jurídica e do desenvolvimento sustentável. Sabe-se, porém, que o ordenamento jurídico atual exige que a decisão do Magistrado seja adequada e racional o caso concreto. O juiz, ao prolatar a sentença, não pode pautar-se em decisões absurdas ou reprováveis pela sociedade. O problema ocorre no momento da contraposição de direitos expostos no ordenamento jurídico. No regramento atual alguns princípios e garantias, em determinados momentos, se chocam ocasionando dúvida em saber qual deles deve prevalecer. Para resolver essa celeuma o princípio da proporcionalidade serve como ferramenta para auxiliar o Magistrado a ponderar o valor dos bens envolvidos propiciando sacrifício mínimo dos direitos em jogo. Verifica-se, que a segurança jurídica e o desenvolvimento sustentável opõem-se aos princípios da justiça e da verdade real, da legalidade, da moralidade administrativa, do justo valor, da dignidade humana e meio ambiente ecologicamente equilibrado, entre outros. Em matéria das ações de investigação de paternidade e maternidade colidem dois direitos,

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quais sejam, a garantia da coisa julgada com o direito à convivência consangüínea familiar da criança correlacionado com a dignidade humana. Os próprios Tribunais têm entendido que os preceitos constitucionais e a legislação de proteção ao menor se sobrepõem ao instituto da coisa julgada, pois não há como negar a busca da origem biológica. No direito ambiental chocam-se os princípios: do desenvolvimento sustentável com o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado transcrito no artigo 225, da Carta Magna. Em sede de direito Administrativo, a res iudicata confronta-se com os princípios da moralidade e do justo valor. O Pretório Excelso30 demonstrou o seu entendimento confirmando que não ofende a coisa julgada a decisão que, na execução, determina nova avaliação para atualizar o valor do imóvel. Em Recurso Extraordinário31 reconheceu, também, que no caso de contrariedade ao interesse público, retira-se a presunção de definitividade da coisa julgada e o desqualifica-a como ato gerador de direito adquirido. Cândido Rangel Dinamarco32 preleciona sobre esse conflito de normas e estabelece a necessidade de uma convivência equilibrada entre os princípios e garantias constitucionais, sem que nenhum seja absoluto. Dessa maneira, segundo esse doutrinador, a afirmação do valor da segurança jurídica não implica em desprezar o da unidade federativa, o da dignidade da pessoa humana. Esse mesmo doutrinador ainda enfatiza: “A posição defendida tem apoio também no equilíbrio, que há muito venho postulando, entre duas exigências opostas mas (sic) conciliáveis – ou seja, entre a exigência de certeza ou segurança, que a autoridade da coisa julgada prestigia, e a de justiça e legitimidade das decisões, que aconselha não radicalizar essa autoridade. Nessa linha, repito: a ordem constitucional não tolera que se eternizem injustiças a pretexto de não eternizar litígios.” Com idéia semelhante, Danielle Vincentini33 entende que ocorrendo uma colisão entre os direitos fundamentais a solução fica por conta da jurisprudência a qual deve ponderar o valor dos bens envolvidos, devendo resolver o conflito através do sacrifício mínimo dos direitos em jogo. Com o reconhecimento da existência e da importância do direito à dignidade da pessoa humana não se deve extirpar totalmente um dos direitos em conflito. O objetivo de sua tese é o de demonstrar que não deve ser apenas desconsiderada a coisa julgada material, mas, sim, evitar o descumprimento por completo a norma constitucional. Pode-se, contudo, inferir que para haver uma melhor convivência entre os princípios constitucionais é imprescindível, em determinadas situações, desconsiderar o caráter inexorável da autoridade da coisa julgada. Para os defensores da teoria da flexibilização da coisa julgada, os princípios da proporcionalidade e razoabilidade devem ser utilizados exatamente nesse sentido, o de sanar paradoxos, sopesando o valor dos direitos em jogo. Com isso, o Magistrado, ao sentenciar, deve ponderar quais dos interesses fundamentais constitucionais devem prevalecer no caso concreto. Por exemplo, deve-se considerar o que possui mais valia a justiça ou a segurança jurídica? Sabe-se que o “supraprincípio” da dignidade da pessoa humana é

mais importante e deve prevalecer sobre a segurança jurídica.

3.3 Os casos específicos de aplicação da teoria da flexibilização da coisa julgada

Para se descobrir os momentos específicos aos quais pode ser aplicada a teoria da flexibilização deve-se fazer uma análise objetiva apoiada na prevalência de certos valores constitucionalmente superiores à imutabilidade da coisa julgada. Nesse sentido, Candido Rangel Dinamarco, enfatiza: “Se tiver razão no que sustento, terei chegado a uma visão sistemática da relativização da coisa julgada segundo critérios que em primeiro plano são objetivos – despontando sobretudo o da prevalência de certos valores, constitucionalmente resguardados tanto quanto a coisa julgada, os quais devem prevalecer mesmo com algum prejuízo para a segurança das relações jurídicas. Daí aceitar a idéia da coisa julgada inconstitucional, que assenta na premissa da harmoniosa convivência entre todos os princípios e garantias plantados na ordem constitucional, nenhum dos quais pode ser tratado como absoluto.” Desse modo, partindo do pressuposto de que o supraprincípio da dignidade da pessoa humana é de caráter geral e constitui a pilastra do ordenamento jurídico brasileiro deve prevalecer sobre qualquer outro mandamento constitucional individual. Sua maior valia é corroborada, também, pelo fato de tratar-se de um fundamento pelo qual foi construído o Estado Democrático de Direito. A presente teoria, como se observa, não é direcionada a toda e qualquer sentença, mas busca apenas um trato extraordinário em casos específicos, ou seja, ela é destinada à situações extraordinárias com o objetivo de afastar absurdos, injustiças flagrantes, fraudes e infrações à Constituição federal. Assim preleciona Cândido Rangel Dinamarco34: “Não me move o intuito de propor uma insensata inversão para que a garantia da coisa julgada passasse a operar em casos raros e a sua infringência se tornasse regra geral”. No mesmo sentido, Teresa Arruda Alvim36 , entende: “Sabe-se, todavia, que a coisa julgada é um instituto de extrema relevância para o Estado de Direito. A sua supressão ou a sua flexibilização exagerada, segundo critérios vagos e abertos, geraria indubitavelmente insegurança intolerável.” Na compreensão do professor Cezar Santos37 ao flexibilizar a coisa julgada não se pensa em operar a mitigação da coisa julgada como garantia constitucional, mas admitir a possibilidade de sua revisão em casos excepcionais. Seu entendimento é no sentido de repelir as injustiças flagrantes, as fraudes e as infrações das normas constitucionais. Dessa forma, as sentenças abusivas ou absurdas não poderiam sujeitar-se à preclusão. O Pretório Excelso (RE 105.012-RN), também, já decidiu por considerar a possibilidade da flexibilização da coisa julgada apenas em casos específicos. Georges Abboud38, crítico da teoria da flexibilização, entende que somente as sentenças inconstitucionais que violem direitos e garantias

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fundamentais deveriam ter sua reparação no âmbito da jurisdição constitucional. Nos demais não considera a possibilidade de desconstituição da res iudicata. Afirma, ainda, que flexibilizar a coisa julgada pode ser necessário, mas deve-se recusar a aplicação dessa teoria sempre que o caso não seja portador de absurdos, injustiças graves ou transgressões constitucionais. Considera que nos contratos entre particulares, cujos direitos são disponíveis, é imprudente aplicar a mitigação da garantia constitucional da coisa julgada visto sua contraposição com princípio do pacta sunt servanda (os tratos devem ser cumpridos desde a celebração do pacto até o seu adimplemento). Sérgio Nojiri, que também é crítico da teoria da flexibilização da coisa julgada, acredita que não pode haver sentenças judiciais inconstitucionais no sistema jurídico. Sua explanação é no sentido de que as decisões são expedidas por juízes competentes conforme a disposição do inciso LIII, do artigo 5º da Constituição Federal. Assim, segundo ele, o Judiciário é um dos guardiões da constitucionalidade e da legalidade e quando os juízes proferem decisões agem em consonância com o modelo constitucional não produzindo coisa julgada inconstitucional. Porém, contrapondo-se à idéia inicial, deixa claro que alguns atos não merecem que seus efeitos se preservem no tempo. Da leitura das exposições em epígrafe, observa-se que em alguns casos, tratando-se de direitos disponíveis, não é possível conceber a possibilidade de mitigação da coisa julgada. Porém, no que tange à violação dos direitos e garantias fundamentais, até mesmo os críticos da teoria da flexibilização da coisa julgada admitem que as sentenças injustas não devem perpetuar-se.

4. CONCLUSÃO

Os doutrinadores e juristas favoráveis à teoria da flexibilização da imutabilidade da coisa julgada entendem que as sentenças, quando afrontam os direitos e princípios fundamentais, devem, a qualquer tempo, ser desconstituídas. Entretanto, no ordenamento atual, esses princípios e garantias constitucionais, em alguns momentos, se chocam ocasionando dúvidas em saber qual deles deve prevalecer. Para resolver essas questões, a comunidade de processualistas criou uma teoria que tenta encontrar saídas que possam redesenhar os contornos do conceito da coisa julgada desprezando o seu caráter inexorável. Essa teoria é denominada flexibilização ou relativização da coisa julgada. Em razão da evolução das relações sociais, a garantia da segurança jurídica não deve ser levada a rigor de cercear os direitos fundamentais garantidos na Constituição Federal. Com isso, os preceitos da dignidade da pessoa humana, do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, do direito ao justo valor nas desapropriações e da moralidade administrativa não podem ser negados sob o primado da estabilidade nas relações jurídicas. Nesse diapasão, o princípio da proporcionalidade apresenta-se como uma ferramenta básica para o Magistrado sopesar os direitos em conflito. O escopo da utilização desse instituto é o de salvaguardar o núcleo

essencial de cada um dos direitos. Caberá, contudo, o exame do caso em concreto para identificar qual direito cederá espaço para a máxima concretização do outro. Além do dever Jurisdicional em ponderar a prevalência dos interesses fundamentais são exigidas dos órgãos Judiciários uma motivação racional da decisãocom medidas não arbitrárias. É aqui que se destaca a necessidade de aplicação do princípio da razoabilidade.Nesse sentido, de acordo com os defensores da teoria da flexibilização da coisa julgada, nos julgados despidos dos mandamentos da razoabilidade e da proporcionalidade não ocorre o trânsito em julgado. As hipóteses mais comuns encontradas na seara jurídica que ensejam a aplicação da teoria em epígrafe são as seguintes: nas ações de investigação de paternidade ou maternidade; nas situações que envolvem o meio ambiente; nos casos constantes no artigo 741, do Código de Processo Civil; e nas desapropriações. Nas ações de investigação de paternidade caso a coisa julgada seja considerada direito fundamental absoluto será extinto, por completo, o direito ao respeito e à convivência familiar da criança. Assim, a criança jamais poderia descobrir quem é o seu pai biológico nem exercer direitos decorrentes da filiação. Por outro lado, admitindo-se nova discussão do caso estar-se-ia preservando o direito da criança e arranhar-se-ia a garantia da imutabilidade da coisa julgada. Outro entendimento dos adeptos da teoria em estudo é o de que algumas decisões são alheias a definitividade em razão do erro material que as inquinam. Esta interpretação é atinente aos casos que envolvem o interesse público em que prevalece a supremacia do interesse público sobre o privado. Neste contexto, estão alocados os direitos ao meio ambiente e à justa indenização nos processos de desapropriação. A transindividualidade e a indivisibilidade do direito ao meio ambiente transforma-o em interesse público. Dessa forma, sobre qualquer ato (administrativo ou judicial) atinente a este tema não recai o efeito da imutabilidade da coisa julgada. Nos processos de desapropriação que ofendem os princípios da moralidade administrativa, da legalidade e do justo valor obsta-se a autoridade da res iudicata em relação aos julgados absurdamente lesivos ao Estado ou ao particular, possibilitando nova análise do pleito. Existem outras opiniões no sentido de entender que mesmo tratando-se de processamento civil, em que vigora as presunções, ficções e as transações, as decisões eivadas de vício material devem ser reformadas a qualquer tempo. Infere-se, por isso, que o princípio da justiça está atrelado à verdade real sendo que esta é um meio para a consecução daquela. Como comprovam os diversos julgados demonstrados, a mitigação da coisa julgada não é mais um assunto inconteste. Conforme foi disposto, a partir da década de oitenta, do século XX, várias sentenças passaram a desconsiderar o caráter absoluto deste instituto. Examinando-se as discussões doutrinárias verifica-se que ainda não existem meios processuais específicos para invocar a desconstituição da coisa julgada após o prazo exíguo de dois anos. Por esse motivo, caberá ao interessado observar a natureza jurídica da coisa julgada inconstitucional no caso em

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concreto e optar pelo mecanismo de sua conveniência. Os instrumentos apontados pela doutrina e pela jurisprudência são: a ação declaratória de nulidade (querella nulitatis); a ação rescisória; a propositura de uma ação idêntica à anterior; os embargos à execução ou a exceção de pré-executividade; e a argüição de preceito fundamental. Se o interessado entender pelo reconhecimento da existência da coisa julgada material e considerar a necessidade de sua mutabilidade, em razão do vício grave que a inquina, poderá optar pela ação rescisória, pelos embargos à execução ou pela argüição de preceito fundamental. Em outro plano, se o interessado não aceitar a existência da coisa julgada e considerar a ocorrência de um ato nulo o caminho a se percorrer é o da utilização da ação declaratória de nulidade (querella nulitatis) ou da propositura de outra ação idêntica à primeira. Se a intenção for a de atacar um título executivo que envolva matéria de ordem pública existe a possibilidade de impugnação por meio da exceção de pré-executividade. Apesar de a aplicação da teoria da flexibilização da coisa julgada aparentar ser a solução adequada nos casos de conflito de normas e direitos, verificou-se que existem limites de sua aplicação. Segundo a opinião de alguns doutrinadores seus reflexos perante a sociedade moderna podem ser positivos e negativos. Como conseqüências negativas pode-se elencar dois problemas: a possibilidade de que a sentença possa ser revista ad infinitum; e a inexistência de uma competência jurisdicional para análise do pleito. Como resultado positivo alcança-se a não eternização das injustiças e, de forma reflexa, a exaltação da confiabilidade no sistema normativo e nas Instituições Públicas. Verifica-se que mitigação da res iudicata se contrapõe aos princípios da segurança jurídica (exteriorizado pela imutabilidade da coisa julgada) e do desenvolvimento sustentável. Por outro lado, os Tribunais têm entendido que alguns preceitos como o da proteção à dignidade da pessoa humana, o do interesse público, o da moralidade, o da legalidade administrativa e o do justo valor, se sobrepõem ao instituto da coisa julgada. Nestes casos específicos, portanto, deve-se considerar a possibilidade de mitigação da coisa julgada. Para descobrir os casos específicos aos quais deverá ser aplicada a teoria da flexibilização da coisa julgada dever-se-á fazer uma análise objetiva da prevalência de alguns valores superiores constitucionalmente resguardados. Dessa forma, o supraprincípio da dignidade da pessoa humana deve preponderar sobre qualquer outro mandamento. Outrossim, no que tange aos negócios jurídicos e aos direitos disponíveis, a mitigação da coisa julgada deve ser amplamente restringida para garantir a solidez das relações jurídicas e a ordem pública. A presente obra não tem a pretensão de esgotar o assunto em epígrafe e sim corroborar para novas linhas de pesquisa na área jurídica.

Notas e Referências

1. BRASIL, Constituição Federal, Código Civil, Código de Processo Civil. CAHALI, Yussef Said (org); obra coletiva. 7 ed. rev. Atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. – (RT-mini-códigos). p. 288. (grifo nosso).2. BRASIL, 2005. p. 25.3. DINAMARCO, Cândido Rangel. Relativizar a coisa julgada material. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. São Paulo. v. 55/56. janeiro-dezembro, 2001. p. 31.4. Ibidem p. 33.5. Ibidem p. 33.6. Op cit. p. 35.7. DINAMARCO, Cândido Rangel apud LAMBERT, Maria de Nazareth Mello de Araújo; MANCHINI, Edson Américo; SILVA Roberto Ferreira. Coisa julgada inconstitucional. Revista Procuradoria Geral do Acre, 2003. unidade III. monografias. Disponível em: http://www.pge.ac.gov.br/biblioteca/revista/revista3/revista%203.htm.Acesso em 05/04/2005. p. 207.8. Op cit. p. 36.9. BRASIL, Supremo Tribunal Federal, Recurso Especial 93412. Santa Catarina. Relator: Ministro Clovis Ramalhete. Disponível em: http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/nova/pesquisa.asp. Acesso em 09/06/2006.10. BRASIL, 2005. p. 481.11. VICENTINI, Danielle. A relativização da coisa julgada e a investigação de paternidade. Disponível em: http://www.informanet.com.br/artdiv091204.htm. Acesso em 24/11/2005. p. 03.12. BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível 70008334724. Relator: Maria Berenice Dias. Disponível em: www.tjrs.gov.br/jurisprudencia. Acesso em 16/04/2006. (grifo nosso).13. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 2001/0066393-6 Relator: Ministro Sálvio De Figueiredo Teixeira. Disponível em: www.stj.gov.br/jurisprudencia. Acesso em 16/04/2006. (grifo nosso).14. FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 5 ed. ampl. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 6.15. DINAMARCO, Cândido Rangel, 2001. p. 36.16. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Processo RMS 9629 / PR; Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 1998/0024829-3. Disponível em: http://www.stj.gov.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=RMS+9629&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=1. Acesso em 08/06/2006. (grifo nosso).17. BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 106931. Paraná. Relator: Ministro Carlos Madeira. Disponível em: www.stf.gov.br/jurisprudencia. Acesso em 16/04/2006. (grifo nosso).18. ZANDONA, Thiago Costa Monteiro. A relativização da coisa julgada no direito ambiental. Teresina. a. 8 n. 348, 20 junho, 2004. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5361. Acesso em 05/04/2006. p. 02. (grifo nosso).19. BRASIL, 2005. p. 756. (grifo nosso).20. DINAMARCO, Cândido Rangel. 2001. p. 36.21. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial REsp 554402. Rio Grande do Sul. Relator: José Delgado. Disponível em: www.stj.gov.br/jurisprudencia. Acesso em 08/06/2006. (grifo nosso).22. BRASIL, Supremo Tribunal Federal, Recurso Especial 93412. Santa Catarina. Relator: Ministro Clovis Ramalhete. Disponível em: http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/nova/pesquisa.asp. Acesso em 09/06/2006. (grifo nosso).23. BRASIL, Supremo Tribunal Federal, Recurso Especial 93412. (grifo nosso).24. BRASIL, Supremo Tribunal Federal, Recurso Especial 105.012. Rio Grande do Norte. Relator: Ministro Néri da Silveira. Disponível em: http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/nova/pesquisa.asp. Acesso em 09/06/2006. (grifo nosso).25. BRASIL, Supremo Tribunal Federal, Recurso Especial 93412. Santa Catarina. Relator: Ministro Clovis Ramalhete. Disponível em: http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/nova/pesquisa.asp. Acesso em 09/06/2006.26. THEODORO, Humberto Júnior apud DINAMARCO, Cândido Rangel. Relativizar a coisa julgada material. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. São Paulo. V. 55/56. janeiro-dezembro, 2001. p. 35.27. Ibidem.28. ABBOUD, Georges. Da (im)possibilidade da relativização da coisa julgada inconstitucional. Revista de Direito Privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, n. 23, julho-setembro, 2005. p. 61.29. NOJIRI, Sérgio. Crítica à teoria da relativização da coisa julgada. Revista de Processo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, ano XXX, n. 123, maio, 2005. p. 137.

30. BRASIL, Supremo Tribunal Federal, Recurso Especial 93412.

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31. BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 106931.32. DINAMARCO, Cândido Rangel, 2001. (grifo nosso).33. VINCENTINI, Danielle, 2005.34. DINAMARCO, Cândido Rangel, 2001. (grifo nosso). p. 3735. Ibid.36. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Flexibilização ou relativização da coisa julgada. Revista Prática Jurídica. São Paulo: Consulex, ano III, n. 33, dezembro, 2004.p. 58. (grifo nosso).37. SANTOS, Cezar. A coisa julgada inconstitucional e instrumentos de controle. Revista Jurídica Consulex. São Paulo: Editora Consulex. ano VIII. n. 174, 15 de abril de 2004. p. 61.38. ABBOUD, Georges. 2005. p. 63.

Referências Complementares

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O SIGILO FISCAL E SUA ‘QUEBRA’: ANÁLISE DAS PREVISÕES LEGAIS EXCEPCIONANTES

À LUZ DA CONSTITUIÇÃO.3

Augusto Carlos Cavalcante MeloEspecialista em Direito Tributário

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SUMÁRIO1. Introdução. 2. O Sigilo Fiscal como Sigilo de Dados. 3. Hipóteses Legais de Exceção ao Sigilo Fiscal. 4. Entendimentos Jurisprudenciais. 5. O Alcance do Significado da Expressão “Quebra de Sigilo”. 6. Abordagem Doutrinária. 7. Crítica à Expressão Normativa e à Abordagem Doutrinária. 8. Proposições Finais

RESUMO

Este estudo em forma de artigo é o resultado da análise de alguns artigos publicados cujo tema foi o sigilo fiscal. Conceitua-se o sigilo fiscal como sigilo de dado, o qual é considerado direito fundamental previsto na Constituição. Em seguida, destacam-se as hipóteses legais de exceção ao sigilo, diferenciando o que seja a divulgação da publicação de dados. Observa que a expressão ‘quebra de sigilo’ deve ser dada outra interpretação, exemplificando como seria um caso de quebra de sigilo, diante do objetivo da norma e em face dos princípios constitucionais pertinentes. Por fim critica-se a abordagem doutrinária que serviu como objeto de pesquisa e é apresentada uma perspectiva de interpretação das hipóteses de exceção ao sigilo fiscal.

Palavras-chave: Constitucional. Tributário. Sigilo Fiscal. Quebra. ABSTRACT

This study in article form is resulted of analysis of some published articles whose subject was the fiscal secrecy. One appraises the fiscal secrecy as data secrecy, which is considered a basic foreseen law in the Constitution. After that, they are distinguished legal hypothesis of exception to the secrecy, differentiating what she is it divulges of it publishes of data. To observe that expression ‘act of breaking secrecy’ must be given another one interprets, to be an instance or serve as an example as it would be a case of secrecy in addition, ahead of the objective of the norm and in face of the pertinent postulate constitutional. Finally is criticized it boarding doctrine that it served as research object and present a perspective of interpretation of hypothesis of exception to the fiscal secrecy.

Keywords: Constitutional. Tributary. Fiscal Secrecy. Act of breaking.

1 INTRODUÇÃO

O presente estudo faz uma análise da previsão legal sobre o sigilo fiscal no Código Tributário Nacional, sob a ótica constitucional da previsão de sigilo de dados, partindo de uma pesquisa doutrinária em artigos produzidos sobre o tema e em capítulos de livros de Direito Tributário, apresentando uma perspectiva até então não abordada na doutrina pesquisada. Toma-se como objeto de estudo o sigilo fiscal porque é um dos temas candentes na atualidade, diante da abrangência principiológica e da relação com o Direito Constitucional.

Nesse contexto, torna-se necessário fazer uma análise das exceções à manutenção do sigilo previstas na Lei e da natureza jurídica do sigilo fiscal como sigilo de dados, em face dos princípios norteadores dessa questão. Diante das previsões legais de quebra do sigilo e da perspectiva constitucional do sigilo de dados, efetivamente como seria essa quebra de sigilo ou em quais situações essa quebra poderia ser efetivamente considerada?

2. O SIGILO FISCAL COMO SIGILO DE DADOS

A Constituição da República Federativa do Brasil prevê como um dos direitos fundamentais o do sigilo de dados, assegurando sua inviolabilidade. A princípio, o tratamento jurídico dado é o mesmo do sigilo de correspondência e das comunicações telegráficas, ficando somente ressalvado o sigilo das comunicações telefônicas quando pode ser quebrado o sigilo, mediante ordem judicial, nas hipóteses e formas estabelecidas em Lei, conforme estabelecido no seu art. 5°, inciso XII, da Magna Carta. Entretanto, analisando a questão do sigilo de dados previsto na Constituição, Ferraz Júnior1 faz a seguinte observação: O sigilo, no inciso XII do art. 5°, está referido à comunicação, no interesse da defesa da privacidade. Isto é feito, no texto, em dois blocos: a Constituição fala em sigilo ‘da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas’ (...) Há uma simetria nos dois blocos. O que se regula é comunicação por correspondência e telegrafia, comunicação de dados e telefonia. Com efeito, arremata o referido autor, que o objeto protegido no direito à inviolabilidade do sigilo não são os dados em si, mas a sua comunicação restringida. Assim, a expressão constitucional “no último caso, por ordem judicial” abrangeria também o sigilo de dados e especificamente o sigilo fiscal. Há quem entenda que “as autoridades, detentoras de informações dos cidadãos, sejam obrigadas a guardar sigilo sobre as mesmas, só podendo revelá-las para outros órgãos da Administração, mediante autorização judicial.”2

Ainda nesse sentido, a doutrina é majoritária em defender que toda e qualquer legislação infraconstitucional que previr a quebra do sigilo fiscal sem autorização judicial fundamentada é inconstitucional. Assim, se certos dados são sigilosos, somente podem ser acessados pelo titular dessa informação. Para que o Poder Público possa ter acesso a essa informação sigilosa, somente é possível mediante autorização judicial. Porém, cumpre observar que o sigilo fiscal é uma espécie do sigilo de dados, o qual vem regulamentado no Código Tributário Nacional, mais especificamente no seu art. 198. Tal dispositivo traz a vedação de divulgação de informações sobre a situação econômica ou financeira, bem como de natureza e do estado dos negócios ou atividades do sujeito passivo ou de terceiros, pela Fazenda Pública ou por seus servidores, obtidos em razão de ofício. Outro aspecto merecedor de destaque é que “a lei complementar pode disciplinar a transferência

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do segredo bancário para a Administração tributária por legítimos motivos de ordem pública, como os relacionados aos combates a evasão e sonegação fiscais, passando, nesse caso, a existir uma troca de sigilo bancário para o sigilo fiscal”.3 Assim, a depender do tributo devido nos termos do sistema tributário nacional, o mesmo dado protegido pelo sigilo bancário pode ser ao mesmo tempo, dado protegido pelo sigilo fiscal, a exemplo das operações bancárias sujeitas à CPMF. Explica-se melhor: O Fisco Federal dispõe desse dado porque os bancos são obrigados a informar à Receita Federal essas operações, as quais devem ser protegidas pelo sigilo bancário de responsabilidade das instituições financeiras.Nesse contexto, toda e qualquer informação que a Fazenda Pública detenha, em função da sua atividade fim, é, sem sombra de dúvida, uma informação que faz parte da situação econômico-financeira do sujeito passivo da obrigação tributária prevista em lei. Essa situação contém dados que devem ser protegidos pelo sigilo fiscal.

3. HIPÓTESES LEGAIS DE EXCEÇÃO AO SIGILO FISCAL

O dispositivo que prevê o sigilo de dados assim está inserto no texto constitucional: “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;” Em que pese essa previsão do dispositivo constitucional, no sentido de que somente é possível a violação do sigilo nas comunicações telefônicas, desde que haja determinação judicial, para fins de instrução criminal ou instrução processual penal, a legislação infraconstitucional estabelece hipóteses de quebra desse sigilo, a exemplo do Código Tributário Nacional no § 1º do art. 198, nas seguintes hipóteses: a) Assistência mútua entre as Fazendas Públicas, quando da permuta de informações na forma estabelecida em lei ou convênio para a fiscalização dos tributos respectivos; b) Requisição de autoridade judiciária no interesse da justiça; c) Solicitações de autoridade administrativa com o intuito de investigação de sujeito passivo, relacionado com a informação, pelo cometimento de ilícito, tudo no interesse da Administração Pública e mediante processo administrativo instaurado regularmente. Ainda nesse sentido, o parágrafo terceiro do mesmo dispositivo acima referido prevê que certas informações relacionadas com o sigilo fiscal podem ser divulgadas. São as seguintes: a) As representações fiscais para fins penais; b) As inscrições na Divida Ativa da Fazenda Pública e; c) O Parcelamento ou a moratória.Diante da previsão constitucional e dessas previsões legais, é cabível fazer os seguintes questionamentos: 1) Já que, a princípio, o sigilo de dados não está na exceção prevista na Constituição, que é a quebra do sigilo das comunicações telefônicas mediante autorização judicial, então seria impossível quebrar o sigilo fiscal, por exemplo, enquanto sigilo de dados?

2) Seriam então inconstitucionais os dispositivos legais que prevêem a quebra do sigilo fiscal? 3) Se tais informações são sigilosas, por que podem ser divulgadas diante de determinadas circunstâncias? 4) Qual a natureza jurídica de cada uma, diante das previsões no nosso sistema normativo4 e entendimentos da doutrina pátria mais abalizada? Primeiramente cumpre ressaltar que, apesar do sigilo de dados estar previsto como direito fundamental, consistindo numa cláusula pétrea, é unânime na doutrina e jurisprudência pátrias que deve haver uma leitura relativizada dessas cláusulas. Segundo a doutrina pesquisada e encontrada em artigos sobre o tema, a abordagem da questão “quebra de sigilo fiscal” sempre se direciona para abordagem da quebra do sigilo bancário, deixando de analisar alguns aspectos relacionados com os questionamentos acima destacados. Nessa abordagem, o entendimento majoritário é no sentido de que “A norma infraconstitucional não poderá atribuir a outro órgão a prerrogativa de ‘quebra’ deste sigilo, uma vez que a Constituição menciona expressamente o...“por ordem judicial”.5

4. ENTENDIMENTOS JURISPRUDENCIAIS

Em que pese esse entendimento doutrinário, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, até então, não julgou que tais previsões legais sejam inconstitucionais. Segundo a última informação veiculada nos informativos de jurisprudência do STF, assim se encontra o caso: Retomado o julgamento de medida cautelar em ação cautelar, em que se pretende a concessão de efeito suspensivo a recurso extraordinário, já admitido para esta Corte, no qual se sustenta a inconstitucionalidade das disposições legais que autorizam a requisição e a utilização de informações bancárias pela Receita Federal, diretamente às instituições financeiras, para instauração e instrução de processo administrativo fiscal (LC 105/2001, regulamentada pelo Decreto 3.724/2001) - v. Informativos 322 e 332. Após o voto do Min. Cezar Peluso, acompanhando o Min. Marco Aurélio, no sentido de referendar o ato que concedera efeito suspensivo ativo ao recurso extraordinário, o julgamento foi adiado em razão do pedido de vista do Min. Gilmar Mendes. AC 33 MC/PR, rel. Min. Marco Aurélio, 4.2.2004. (AC-33) Em mais recente julgado6 do STF, analisando um caso concreto, podemos destacar um trecho da ementa pertinente à análise em questão, para demonstrar as razões de decidir da Corte Suprema: (...) IV - Proteção constitucional ao sigilo das comunicações de dados - art. 5º, XVII, da CF: ausência de violação, no caso. 1. Impertinência à hipótese da invocação da AP 307 (Pleno, 13.12.94, Galvão, DJU 13.10.95), em que a tese da inviolabilidade absoluta de dados de computador não pode ser tomada como consagrada pelo Colegiado, dada a interferência, naquele caso, de outra razão suficiente para a exclusão da prova questionada - o ter sido o microcomputador apreendido sem ordem judicial e a conseqüente ofensa da garantia da inviolabilidade do domicílio da empresa - este segundo fundamento bastante, sim, aceito por votação unânime, à luz do art. 5º, XI, da Lei Fundamental. 2. Na espécie, ao contrário,

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não se questiona que a apreensão dos computadores da empresa do recorrente se fez regularmente, na conformidade e em cumprimento de mandado judicial. 3. Não há violação do art. 5º. XII, da Constituição que, conforme se acentuou na sentença, não se aplica ao caso, pois não houve “quebra de sigilo das comunicações de dados (interceptação das comunicações), mas sim apreensão de base física na qual se encontravam os dados, mediante prévia e fundamentada decisão judicial”. 4. A proteção a que se refere o art.5º, XII, da Constituição, é da comunicação ‘de dados’ e não dos ‘dados em si mesmos’, ainda quando armazenados em computador. (cf. voto no MS 21.729, Pleno, 5.10.95, red. Néri da Silveira - RTJ 179/225, 270). (GRIFO NOSSO) Acrescente-se ainda que a garantia dos sigilos bancário e fiscal, como sigilo de dados, não possuem caráter absoluto. É o que se depreende do trecho do voto proferido no seguinte writ: “Da minha leitura, no inciso XII da Lei Fundamental, o que se protege, e de modo absoluto, até em relação ao Poder Judiciário, é a comunicação ‘de dados’ e não os ‘dados’, o que tornaria impossível qualquer investigação administrativa, fosse qual fosse.” (MS 21.729, voto do Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 5-10-95, DJ de 19-10-01). (GRIFO NOSSO) A propósito, podemos destacar também entendimento do STJ em recente julgado7, proferido nos seguintes termos: 1. A LC 105/01 expressamente prevê que o repasse de informações relativas à CPMF pelas instituições financeiras à Delegacia da Receita Federal, na forma do art. 11 e parágrafos da Lei 9.311/96, não constitui quebra de sigilo bancário. 2. (...) “a exegese do art. 144, § 1º do Código Tributário Nacional, considerada a natureza formal da norma que permite o cruzamento de dados referentes à arrecadação da CPMF para fins de constituição de crédito relativo a outros tributos, conduz à conclusão da possibilidade da aplicação dos artigos 6º da Lei Complementar 105/2001 e 1º da Lei 10.174/2001 ao ato de lançamento de tributos cujo fato gerador se verificou em exercício anterior à vigência dos citados diplomas legais, desde que a constituição do crédito em si não esteja alcançada pela decadência” 3. A teor do que dispõe o art. 144, § 1º, do CTN, as leis tributárias procedimentais ou formais têm aplicação imediata, pelo que a LC nº 105/2001, art. 6º, por envergar essa natureza, atinge fatos pretéritos. Assim, por força dessa disposição, é possível que a administração, sem autorização judicial, quebre o sigilo bancário de contribuinte durante período anterior a sua vigência. 4. Tese inversa levaria a criar situações em que a administração tributária, mesmo tendo ciência de possível sonegação fiscal, ficaria impedida de apurá-la. (...) 6. Isto porque o sigilo bancário não tem conteúdo absoluto, devendo ceder ao princípio da moralidade pública e privada, este sim, com força de natureza absoluta. Ele deve ceder todas as vezes que as transações bancárias são denotadoras de ilicitude, porquanto não pode o cidadão, sob o alegado manto de garantias fundamentais, cometer ilícitos. O sigilo bancário é garantido pela Constituição Federal como direito fundamental para guardar a intimidade das pessoas desde que não sirva para encobrir ilícitos. Assim, pode-se concluir que quanto à

hipótese excepcionante do sigilo referente à assistência mútua entre as Fazendas Públicas, observa-se que as informações armazenadas em cada um dos seus bancos dados, decorrem do poder de fiscalizar seus sujeitos passivos das respectivas obrigações tributárias. Se assim não fosse, não haveria razão de existência de determinados órgãos detentores de poder fiscalizatório de certas atividades econômicas. A título de fundamento constitucional, tem-se a previsão do inciso XXII do art. 37 da Constituição da República Federativa, o qual estabelece a possibilidade de compartilhamento de cadastros e informações fiscais como instrumento de alcance dos objetivos institucionais. Esse poder existe para garantir a efetividade de um outro princípio constitucional, o da livre concorrência na ordem econômica. Quanto à hipótese de determinação judicial no interesse da justiça, essa não necessita maiores esclarecimentos porque é unânime o entendimento doutrinário de que, em havendo determinação judicial fundamentada, é possível a ‘quebra’ desse sigilo. Porém, no que diz respeito às solicitações de autoridade administrativa, com o intuito de investigação de sujeito passivo relacionado com a informação, pelo cometimento de ilícito, tudo no interesse da Administração Pública. Essa hipótese é a mais combatida na doutrina, porque entende a maioria que o sigilo de dados é um direito fundamental e, portanto, cláusula pétrea, não podendo ser violado pelo poder público. Noutra análise, questiona-se em que limites a administração tributária pode exercer sua atuação fiscalizadora, no que diz respeito ao disposto nos incisos X e XII do art. 5° da CF. Saliente-se que a competência da administração fazendária encontra embasamento constitucional em vários dispositivos, em especial no inciso XVIII do art.37, o qual prevê a precedência daquela sobre os demais setores administrativos. Quanto ao segundo bloco de exceções, especificamente referente às representações fiscais para fins penais; às inscrições na Divida Ativa da Fazenda Pública e; ao Parcelamento ou à moratória, fizemos um estudo focado na dívida ativa e no sigilo fiscal8, do qual destacamos os seguintes trechos: As referidas informações relacionam-se com as protegidas pelo sigilo fiscal, porém, como dito, alguns dados relativos aos atos acima referidos devem permanecer em segredo com relação às pessoas em geral. Esclarece-se: quando a Lei permite que tais informações possam ser divulgadas, não significa dizer que seja possível uma divulgação ampla e irrestrita, após o ato ter se materializado numa representação fiscal para fins penais, numa inscrição na Dívida Ativa ou numa efetivação de um parcelamento ou de uma moratória. (...) a inscrição do débito, ou melhor, do crédito tributário na divida ativa do Estado, em princípio, consiste num ato administrativo que não tem necessidade de ser sigiloso, porque se trata de um ato jurídico de natureza administrativa o qual deve observar o princípio da publicidade. (...) Leciona o Professor Celso Antônio Bandeira de Melo9 que o objeto do ato administrativo é um dos pressupostos de existência do ato e, no caso em análise, corresponde ao quantum devido pelo sujeito passivo, devendo ser mantido em sigilo porque diz respeito a sua condição econômico-financeira.

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(...) Regis Fernandes de Oliveira10 observa que “autores costumam fazer confusão entre conteúdo e objeto” do ato administrativo. “O conteúdo é o próprio ato é a prescrição dele” e exemplifica que numa desapropriação de imóvel o conteúdo do ato é a própria desapropriação, enquanto que seu objeto é o imóvel apropriado. Fazendo uma analogia com o caso sub examine, o objeto desse ato é o débito existente em decorrência de um lançamento tributário, cujo conteúdo é a própria inscrição desse débito. Com efeito, parcela desse conteúdo deve ser mantida em sigilo, sob pena de causar dano ao sujeito passivo e responsabilização criminal do agente divulgador do dado sigiloso. (...) A princípio, significa que o Fisco é detentor e gerenciador desses dados sigilosos, porém, com a realização desses atos, outros órgãos públicos podem receber tais informações, exclusivamente para tomar as providências cabíveis previstas no ordenamento jurídico penal e/ou tributário, e só. É incompatível com o princípio da razoabilidade a interpretação feita de maneira irrestrita, quanto ao dispositivo legal que excepciona a vedação do sigilo fiscal. (...) A pessoa física ou jurídica na condição de credora de alguém que ao mesmo tempo deve ao erário, não pode, por exemplo, ter acesso e divulgar dados relativos ao quantum devido pelo seu devedor aos cofres públicos, mesmo em se tratando de ato que tenha característica de crime tributário que possa dar origem a uma representação fiscal para fins penais. No mesmo sentido, não pode também ter acesso ao quantum relativo à inscrição na dívida ativa, ou ainda, objeto de parcelamento ou prorrogação do prazo para pagamento do débito. Corroborando com esse entendimento, Coêlho (2007, p.884) assim assevera: (...) Os agentes da Fazenda Pública, sejam fiscais ou procuradores, exerçam o ofício em razão de concurso ou cargo de recrutamento amplo, não podem, v.g., divulgar pela imprensa escrita, falada, televisiva ou eletrônica a situação econômica do contribuinte ou do responsável. Tampouco é possível divulgar os seus débitos para com o Fisco. A proibição é total e absoluta.11 Com efeito, a hipótese de se permitir que determinadas informações possam ser divulgadas a outro órgão ou pessoa autorizadas por lei, não implica em se permitir que tais informações possam ser divulgadas incondicionalmente ou publicadas, sob o entendimento de que tenham deixado de ser sigilosas.

5. O ALCANCE DO SIGNIFICADO DA EXPRESSÃO “QUEBRA DE SIGILO”

A expressão ‘quebra de sigilo’ inicialmente foi utilizada pela doutrina. Não há previsão no Código Tributário Nacional. Na legislação sobre o tema, vem prevista na Lei Complementar n° 105/01, a qual disciplina sobre o sigilo bancário. Segundo as previsões específicas do Código Tributário Nacional, a expressão utilizada é a vedação da divulgação de informações sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades, ressalvando o disposto na legislação criminal. Noutros termos e segundo uma interpretação literal do

dispositivo, permite-se a divulgação de tais informações quando se tratar de operações criminosas. Ocorre que mais adiante existem hipóteses em que se permite a divulgação de dessas informações não somente nas situações em que haja crime. Cumpre observar que o texto legal prevê o termo divulgação, o qual difere do termo publicação. Os termos previstos nas normas jurídicas, apesar de sinônimos, no contexto do ordenamento, devem ser interpretados de maneira sistemática e contextualizados. Assim, nas hipóteses de exceção ao sigilo de informações, se permite a divulgação, o que não é a mesma coisa que a publicação. Publicar é tornar pública, é permitir que qualquer pessoa do público possa tomar conhecimento de um dado sigiloso. Divulgar é dar conhecimento a alguém numa dada relação jurídica. Noutras palavras, significa dizer que nem todos podem tomar conhecimento de tais informações, somente algumas pessoas previstas na legislação, em função do objetivo da norma. Observa-se que a possibilidade de ‘quebra de sigilo’ vem prevista expressamente na referida Lei Complementar e nas hipóteses de determinados crimes. Entendemos que apesar de estar prevista a possibilidade de ‘quebra de sigilo’, tal norma deve ser interpretada no sentido de que não é possível a publicação e sim a divulgação. Dessa ordem, informações sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades, somente podem ser divulgadas e não publicadas, em virtude da previsão geral do Código Tributário Nacional. Com efeito, mesmo nas hipóteses que a lei excepciona a vedação da divulgação, quando se tratar de previsão na legislação criminal, a divulgação pode ser feita, porém a publicação não. Nesse contexto, trata-se de um dispositivo legal não muito bem compreendido. A título de informação, apesar da referida Lei Complementar não ser uma lei especificamente criminal traz no seu texto previsão de crime. Trata-se de uma lei nacional de autoria da União, ente da República Federativa que tem competência para legislar sobre direito penal, nos termos do art. 22, inciso I da Constituição da República Federativa.

6. ABORDAGEM DOUTRINÁRIA

Analisando as hipóteses excepcionantes, a doutrina pátria não faz qualquer distinção do que venha a ser a divulgação ou a publicação dos dados. Como ressaltado acima, quando se analisa a questão do sigilo fiscal, o debate volta-se para a questão do sigilo bancário, enquanto sigilo de dado. Entende-se que todas as exceções previstas inicialmente no Código Tributário Nacional, especificamente nos parágrafos 1° e 3° do art. 198 são hipóteses de quebra de sigilo. Senão vejamos: O dever de sigilo funcional, todavia, não impede a Fazenda Pública de prestar as informações requisitadas pelas autoridades judiciárias, no interesse da Justiça. Nem que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios prestem, uns aos outros, informações na forma estabelecida em lei ou convênio. (...) A Lei Complementar n° 104, de 10.1.2001, alterou a redação

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do caput do art. 198 do CTN, e substituiu por três o seu parágrafo único, ampliando as exceções ao dever de sigilo fiscal. Machado (2007, p.267)12 Por outro lado, prevalece o entendimento de que há necessidade de determinação judicial em qualquer hipótese. Assim, convêm destacar a seguir trechos de alguns dos estudos feitos por renomados doutrinadores quando escreveram sobre o tema. Segundo Ives Gandra da Silva Martins (1996, p.700), O discurso constitucional é suficientemente enfático ao utilizar-se do vocábulo “inviolável”, o que vale dizer, não se admite que informação detida de terceiros seja, a que título for, levada ao conhecimento de outros, a não ser que o Poder Judiciário autorize. (...) há de se entender que as autoridades detentoras de informações dos cidadãos, sejam obrigadas a guardar sigilo sobre as mesmas, só podendo revelá-las para outros órgãos da Administração ou para o público, mediante autorização judicial.13 Comenta Fernando Facury Scaff. (2000, p.10), analisado o sigilo de dados como sigilo fiscal que, A despeito de ser cláusula pétrea, este preceito pode e deve se relativizado, a fim de que seu escopo não seja deturpado, através do encobrimento de atividades ilícitas. Sua quebra pode ser efetivada pelo Poder Judiciário, na forma do direito positivo atual.14 Ainda o mesmo autor (2001, p. 71) assevera que, O Princípio do Sigilo Fiscal é uma cláusula pétrea de nossa Constituição, por ser considerado um direito e garantia individual. (...) Entendo ser inconstitucional o art. 6° da Lei Complementar 105, de 10/01/01, pois cria a possibilidade de autoridades administrativas poderem quebrar o sigilo fiscal, contrariamente ao que determina a Carta da República.15

Observe-se que essas compreensões são no sentido de que o dado sigiloso somente pode ser conhecido por quem não seja o detentor da informação, mediante autorização judicial, considerando-o assim uma cláusula de reserva de jurisdição. Noutro sentido, fazendo uma análise percuciente sobre os limites da autoridade fiscal no exercício da atuação fiscalizadora em face do disposto nos incisos X e XII do art. 5° da Constituição da República Federativa, Tércio Sampaio Ferraz Júnior (1993, p.450 a 452) assevera que, O art. 174 da Constituição determina que o Estado, como agente normativo e regulador da atividade econômica, exerça, dentre outras, a função de fiscalização, na forma da lei. (...) O acesso continuado a informações faz parte da fiscalização. (...) A competência da administração fazendária para o exercício da função fiscalizadora encontra embasamento constitucional em vários dispositivos. (...) No que se refere à fiscalização em geral, vale, em termos legais, o disposto nos arts. 194 a 200 do CTN. (...) Pergunta-se se estas autorizações legais estariam revogadas pelo art. 5°, XII da C.F. combinado com o inciso X. Não nos parece plausível admiti-lo pelo absurdo a que ela conduz. Isto significa acabar com a competência fiscalizadora do Estado. (...) o inciso XII impede o acesso à própria ação comunicativa, mas não aos dados comunicados.16, Uma das mais substanciosas obras de Direito Tributário17, porquanto reúne trechos de doutrina e

jurisprudência nacional, na parte que diz respeito às exceções ao sigilo, não faz qualquer comentário a respeito do tema em análise nesse trabalho, demonstrando assim que a doutrina nesse aspecto ainda não descortinou esses detalhes identificados. Portanto, diante dessas abordagens destacadas, observa-se que os doutrinadores não atentam para o fato de que, mesmo havendo autorização judicial para se permitir a divulgação a certas pessoas ou órgãos, bem como em relação a determinados atos administrativos, o sigilo deve ser mantido. Esses foram os trechos mais importantes para desenvolver este trabalho de pesquisa e análise crítica sobre o tema e os entendimentos publicados.

7. CRÍTICA À EXPRESSÃO NORMATIVA E À ABORDAGEM DOUTRINÁRIA

Como visto acima, apesar do termo ‘quebra’ ter sido originado na doutrina, a previsão expressa somente aparece atualmente na Lei Complementar n° 105/01.Por outro lado, e não obstante o entendimento unânime da doutrina de que a ‘quebra do sigilo’ somente pode ocorrer quando houver ordem judicial, entendemos que mesmo assim e efetivamente, o termo ‘quebra de sigilo’ deve ser entendido como a possibilidade de divulgação, nos termos acima ressaltados. Ainda nesse sentido, no que diz respeito às hipóteses excepcionantes, quando se tratar de crime, entendemos também que o termo ‘quebra de sigilo’ deve ser visto como a possibilidade de divulgação a determinadas pessoas numa dada relação jurídica estabelecida por lei. Essas pessoas também não podem divulgar nem tão pouco publicar informações que digam respeito à situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades, sob pena de violar o direito ao sigilo. É sobremodo importante assinalar que o ordenamento jurídico tem soluções para proteção dos direitos fundamentais da pessoa, quando o Poder Estatal, no uso de suas prerrogativas constitucionais, aja de maneira que possa violá-los. É com esse intuito que o princípio dos freios e contrapesos integra o nosso ordenamento jurídico representado pela separação harmônica dos Poderes, também chamado de sistema de checks and balances pela doutrina constitucionalista norte-americana. Segundo o renomado Norberto Bobbio18 (1994, p.113) o ordenamento jurídico deve ter sua coerência e, embora prefira estudá-lo como sistema, afirma que “a coerência não é condição de validade, mas é sempre condição para a justiça do ordenamento” acrescentando ainda que, (...) onde existem duas normas antinômicas, ambas válidas e, portanto ambas aplicáveis, o ordenamento jurídico não consegue garantir nem a certeza, entendida como possibilidade, por parte do cidadão, de prever com exatidão as conseqüências jurídicas da própria conduta, nem a justiça, entendida como o igual tratamento das pessoas que pertencem à mesma categoria. A guisa de exemplo, tenhamos o ato de inscrição na dívida ativa. A publicação dessa inscrição pode e

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deve ser feita em razão da observância do principio da publicidade dos atos administrativos, entretanto, o objeto desse ato deve ser mantido em sigilo, porque contém dado sobre a situação econômico-financeira do sujeito passivo. Essa distinção é fundamental para se compreender que não há contradição entre a previsão do caput do art. 198 e a disposição do inciso II do § 3º do mesmo artigo do Código Tributário Nacional. Registre-se ainda que, muito embora tivéssemos escrito no referido estudo que o sigilo de determinadas informações somente poderia ser quebrado mediante determinação judicial, a interpretação do que venha a ser a expressão ‘quebra de sigilo’ da maneira como colocada, não haveria contradição em dizermos que, efetivamente, não há quebra de sigilo nas hipóteses excepcionadas. A quebra existiria se um órgão ou pessoa que não fizesse parte da relação jurídica estabelecida em lei, conforme os princípios constitucionais pertinentes, tivesse acesso a tais dados. Convém ainda assinalar que o direito fundamental ao sigilo de dados, bem como, por estar no mesmo patamar do sigilo das comunicações telegráficas e de correspondência, sustentamos que a inviolabilidade deve permanecer e, conseqüentemente, não deve haver quebra de sigilo. A denominada ‘quebra do sigilo’, no nosso entender, não corresponde às hipóteses excepcionadas pelo Código Tributário Nacional, nos §§ 1° a 3° do art. 198 e pela Lei Complementar n° 105/01, quando ocorre única e exclusivamente no âmbito dos órgãos envolvidos para apuração do ato ilícito. É nesse sentido nosso entendimento do que seja a quebra do sigilo. Equivocadamente, a unanimidade da doutrina entende que o sigilo é quebrado quando há a divulgação permitida a outro órgão que não detém originariamente o dado sigiloso. Assim, haverá a quebra de sigilo quando alguém, mesmo não sendo titular da informação, mas autorizado por lei ao obtê-la, divulgá-la indiscriminadamente. Por fim, cabe ainda ressaltar que a responsabilização pela divulgação indevida de dados sigilos tem repercussões civis e penais, segundo o ordenamento. Quanto à responsabilização civil do Poder Público será conforme previsto no § 6° do art. 37 da Constituição da República Federativa, combinado com os arts. 43, 186, 927 e parágrafo único do Código Civil e art. 11 da Lei Complementar n° 105/01. Quanto à responsabilização penal e civil do agente público que as divulgou indevidamente, será nos termos do art. 10 e 11, respectivamente, da referida Lei Complementar. 8. PROPOSIÇÕES FINAIS

O sigilo fiscal é uma espécie de sigilo de dados, o qual é um direito fundamental e, portanto, cláusula pétrea; Apesar de ser cláusula pétrea, deve haver uma interpretação relativizada desse direito, a fim de que não seja utilizado para encobrir operações ilícitas que violem outros princípios constitucionais, a exemplo o da livre concorrência na ordem econômica; A doutrina pátria é unânime em afirmar que as hipóteses excepcionadas pelo CTN e pela Lei Complementar 105/01 tratam-se de quebra de sigilo fiscal;

Mesmo nas hipóteses que a lei excepciona a vedação da divulgação, quando se tratar de previsão na legislação criminal, a divulgação pode ser feita, porém a publicação não. Trata-se de um dispositivo legal não muito bem compreendido; As hipóteses de se permitir que determinadas informações possam ser divulgadas a outros órgãos ou pessoas autorizados por lei, não implica em se permitir que tais informações possam ser divulgadas incondicionalmente ou publicadas, sob o entendimento de que tenham deixado de ser sigilosas; A abordagem doutrinária não se atenta para o fato de que, mesmo havendo autorização judicial para se permitir a divulgação a certas pessoas ou órgãos, bem como em relação a determinados atos administrativos, o sigilo deve permanecer. Os atos administrativos relativos à hipóteses legais excepcionantes ao sigilo podem ser divulgados em observância ao princípio da publicidade, no que diz respeito ao seu conteúdo, porém, no que tange ao seu objeto, este representa um dado sigiloso e, por conseguinte, não pode ser divulgado porque demonstrativo da situação econômico-financeira do devedor. A denominada ‘quebra do sigilo’ não corresponde às hipóteses excepcionadas pelo CTN, nos §§ 1° a 3° do art. 198 e pela Lei Complementar 105/01, quando ocorre única e exclusivamente no âmbito dos órgãos envolvidos para apuração do ato ilícito. A conseqüência dessa divulgação irregular pode gerar danos morais e materiais ao contribuinte e, conseqüentemente, responsabilização civil objetiva do Estado, bem como penal e civil regressiva do agente público culpado.

Notas e Referências

1. Tércio Sampaio Ferraz Jr. Sigilo de dados: o direito a privacidade e os limites da função fiscalizadora do Estado. Revista da faculdade de direito da Universidade de São Paulo, n.88. jan./dez. 1993.p. 4462. Ives Gandra da Silva Martins. Sigilo de dados que devem as autoridades manter sob risco de responsabilização civil: opinião legal. Revista Dialética de Direito Tributário, n.9, jun. 1996. p. 7003. Osvaldo Othon de Pontes Saraiva Filho. O Acesso Direto aos Dados Bancários por Parte do Fisco: a Transferência do Sigilo Bancário para o Sigilo Fiscal. Revista Fórum de Direito Tributário - RFDT, Belo Horizonte, n. 11. set./out. 2004, p. 75.4. Segundo a lição de Norberto Bobbio, um dos maiores pensadores italianos da atualidade in Teoria do Ordenamento Jurídico. Tradução de Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. 4ª ed. Brasília. Edunb, 1994 cap. 3 p.75.5. Fernando Facury Scaff. Sigilo fiscal e reserva de jurisdição. Revista Dialética de Direito Tributário, n.71, ago. 2001.p. 64.6. RE 418416 / SC. Rel.: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE. Julgamento:10/05/2006 Órgão Julgador: Tribunal Pleno Publicação DJ 19-12-2006 PP-00037 EMENT VOL-02261-06 PP-012337. REsp 792812 / RJ Rel. Ministro LUIZ FUX Órgão Julgador T1 - PRIMEIRA TURMA Data do Julgamento 13/03/2007 Data da Publicação/Fonte DJ 02.04.2007 p. 2428. Augusto Carlos Cavalcante Melo. Aspectos relevantes da inscrição na dívida ativa e o sigilo fiscal. Revista Fórum de Direito Tributário, v.3, n.17, p.151-161, set./out. 2005.9. Celso Antonio Bandeira De Mello. Curso de Direito Administrativo. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003. cap VII. p. 361.10. Regis Fernandes de Oliveira. Ato Administrativo.4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. cap III. p. 65.11. Sacha Calmon Navarro Coelho. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 9ª ed. Rio de Janeiro. Editora Forense, 2007, p.884.12. Hugo de Brito Machado. Curso de Direito Tributário. 27ª ed. Malheiros. São Paulo, 2007.

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13. Sigilo de dados que devem as autoridades manter sob risco de responsabilização civil: opinião legal. Revista Dialética de Direito Tributário, n.9, jun. 1996.14. O Sigilo de Dados como Sigilo Fiscal. Informativo Jurídico Consulex, v.14, n.47, 20 nov. 2000.15. Sigilo Fiscal e Reserva de Jurisdição. Revista Dialética de Direito Tributário, n.71, p.60-71, ago. 2001.16. Sigilo de Dados: O Direito à Privacidade e os Limites à Função Fiscalizadora do Estado. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, n.88, p.439-459, jan./dez. 1993.17. Direito Tributário - Constituição e Código Tributário á luz da Doutrina e da Jurisprudência. 9ª ed. 2ª tiragem. Editora Livraria do Advogado. Porto Alegre, 2007.18. Teoria do Ordenamento Jurídico. Tradução de Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. 4ª ed. Brasília. Edunb, 1994, 184 p.

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n.47, p.10, 20 nov. 2000.

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EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE SOBERANIA DO ESTADO MODERNO AOS

DIREITOS FUNDAMENTAIS.4

Arnaldo de Aguiar Machado JúniorMestrando em Direito Processual (Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP)

Especialista em Direito Processual pela Fanese/JusPodivmProfessor da Faculdade de Sergipe (FASE)

Advogado

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SUMÁRIO

1. Introdução. 2. Soberania do Estado Moderno. 3. Soberania Popular. 3.1. Crítica Inevitável. 4. Soberania dos Direitos Fundamentais. 5. Conclusão. 6. Bibliografia.

RESUMO

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, ao estampar o princípio do Estado Democrático Social de Direito, incutiu no seio jurídico-normativo nacional a perspectiva de uma sociedade justa, igualitária, primada pelo bem-estar social, segundo os padrões socioculturais da sociedade contemporânea. A soberania manteve-se prestigiada, sendo inclusive alçada à condição de princípio fundamental, conforme inciso I, do art. 1º, da Constituição Federal de 1988. Entretanto, discute-se diuturnamente a respeito do conceito contemporâneo de soberania, através da reavaliação de seus postulados originários. O conceito de soberania clássico não tem o condão de atender às complexidades do mundo contemporâneo. O personagem principal dessa nova arquitetura são os direitos fundamentais, hodiernamente reconhecidos e aclamados pela comunidade internacional como arcabouço axiológico dos ordenamentos político-jurídicos. A concepção clássica de soberania perde sua aplicabilidade irrestrita em prol de uma soberania mais adequada à realidade nacional e universal de prevalência dos direitos fundamentais, sobretudo da dignidade da pessoa humana, atendendo, assim, sempre, aos reclamos das minorias. Diante disso, aflora-se no contexto contemporâneo a soberania, suprema potestas superiorem non recognoscens (poder supremo que não reconhece outro acima de si), dos direitos fundamentais, em perfeita consonância com os postulados do Estado Democrático Social de Direito.

Palavras-chaves: Soberania; Direito Interno; Direito Internacional; Direitos Fundamen .

1 INTRODUÇÃO

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, ao estampar o princípio do Estado Democrático Social de Direito, incutiu no seio jurídico-normativo nacional a perspectiva de uma sociedade justa, igualitária, primada pelo bem-estar social, segundo os padrões socioculturais da sociedade contemporânea. A soberania manteve-se prestigiada, sendo inclusive alçada à condição de princípio fundamental, conforme inciso I, do art. 1º, da Constituição Federal de 1988. Entretanto, discute-se diuturnamente a respeito do conceito contemporâneo de soberania, através da reavaliação de seus postulados originários. O estudo desse quesito é de suma importância para o Direito constitucional e internacional, vez que, a depender do posicionamento adotado, poderá representar uma modificação significativa em suas premissas, sobretudo com relação à interferência do direito internacional no direito estadual. Sabe-se que o conceito de soberania como suprema potestas superiorem non recognoscens

(poder supremo que não reconhece outro acima de si) foi insculpido no século XVI, diante do nascimento e desenvolvimento dos grandes Estados nacionais europeus, que pregavam, dentre suas concepções, a idéia de um ordenamento jurídico universal.1 De lá para cá, muita coisa mudou. As premissas originárias do conceito de soberania foram reformatadas com o objetivo de se enquadrarem às novas expectativas da sociedade contemporânea. Vários eventos contribuíram para essa reavaliação do conceito de soberania, dentre eles: as duas grandes Guerras Mundiais; a Organização das Nações Unidas; a Guerra Fria; a queda do muro de Berlin; a globalização; a mundialização; os blocos econômicos; entre outros. É inegável que a discussão a respeito dos contornos do conceito de soberania também repercute, de forma indissociável, na delimitação dos poderes do próprio Estado, assim como na gama de direitos e deveres que este possui com relação aos demais Estados e, até mesmo, com relação aos seus cidadãos. O conceito de soberania clássico não tem o condão de atender às complexidades do mundo contemporâneo. Os problemas abarcam até mesmo a titularidade da soberania, que já esteve nas mãos do monarca e do próprio povo. A partir dessa reavaliação do papel dos Estados no cenário internacional há uma verdadeira releitura do conceito de soberania, respaldada principalmente por uma nova distribuição de direitos e deveres correlatos aos Estados, como condição precípua de gestores do interesse coletivo, nacionais e internacionais. O personagem principal dessa nova arquitetura internacional são os direitos fundamentais, hodiernamente reconhecidos e aclamados pela comunidade internacional como arcabouço axiológico dos ordenamentos político-jurídicos. A soberania adquire uma nova feição, responsável até mesmo por uma reavaliação do limite de atuação do direito internacional no cenário estadual. A discussão vai muito além da divergência doutrinária entre monistas e dualistas. O mote são os direitos fundamentais enquanto cheks and balances da atuação dos Estados, conforme os preceitos do direito internacional, em homenagem ao cidadão cosmopolita, integrante e protegido pelos preceitos universais dos direitos fundamentais. Nesse sentido, diante dessa acalorada e importante discussão, sem a pretensão de esgotar o tema, pretende-se demonstrar a necessidade de reavaliação do conceito de soberania, sobretudo a fim possibilitar a concretização dos direitos fundamentais, a partir de uma maior participação do direito internacional no cenário estadual. Doutra forma, almeja-se evidenciar que a soberania não constitui um óbice a tal desiderato no Brasil, sobretudo diante de sua finalidade instrumental para o Estado Democrático Social de Direito.

2. SOBERANIA DO ESTADO MODERNO

Até o século XII, encontravam-se duas espécies de soberanias concomitantes na Europa: a do senhor feudal (soberanos em seu senhorio) e a do rei (soberano em todo o reino). A partir do século XIII, à medida em que os Barões feudais passaram a necessitar de um

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ente central que garantisse especialmente o direito de propriedade, diante dos sucessivos conflitos de interesses, o monarca foi ampliando a sua esfera de competência exclusiva até chegar na condição de soberano supremo, atingindo o seu caráter superlativo já no século XVI, sobejamente evidenciado na emblemática expressão de Luiz XIV: “L’Etat c’est moi”.2 A partir da ascensão do monarca à condição de soberano, o seu poder passou a ser absoluto. Sua vontade deixou de sofrer qualquer limitação, inclusive dos Barões Feudais. Maquiavel, através de sua obra O Príncipe, publicada postumamente em 1532, mostrou-se um defensor ferrenho do Estado Absolutista, forte em justificativas transcendentais, pregando que o príncipe deveria deter em suas mãos todo o poder do Estado. Ou seja, ao titular do poder, permitia-se o controle de todos os órgãos (inclusive do legislativo e do judicial), sem nenhuma espécie de limitação ou ressalva.3 Todavia, a obra responsável pela elaboração do conceito de soberania foi Les Six Livres de la Republique, escrita por Jean Bodin, no ano de 15764. Consoante Bodin, a capacidade do monarca de revogar a lei vigente é que caracteriza a sua soberania, deduzindo daí todas as demais características, como: declaração de guerra; acordo de paz; nomeação dos funcionários públicos; etc.5 Já em 1651, surge a mais importante obra do filósofo inglês Thomas Hobbes: Leviatã, ou matéria, forma e poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Através dessa obra, Hobbes difundiu a sua teoria contratualista de Estado, partindo de premissas político-absolutistas. A partir da sua lei natural de autopreservação (guerra de todos contra todos), que proclama uma condição de guerra e instabilidade constante entre os homens, sem a possibilidade de convivência sem lutas, defende a necessidade do surgimento do monarca forte, absoluto, capaz de governar em nome de todos.6 Consoante entendimento de Hobbes, à medida que todos os homens procuram a paz, há uma espécie de renúncia aos direitos individuais a todas as coisas, com o objetivo de municiar o monarca de poderes legítimos para defender os interesses de todos, pacificando os conflitos; ceifando assim a condição de guerra até então constante7. Como conseqüência lógica dessa outorga de poderes, o soberano teria um poder absoluto, sendo inclusive defeso ao súdito acusá-lo até mesmo de injustiça. Entendia-se que “quem faz alguma coisa em nome da autoridade de um outro não pode nunca causar injustiça”. O súdito seria autor de todos os atos e decisões do soberano instituído, razão pela qual não poderia ir de encontra às suas determinações.8 A partir da premissa de que o poder soberano tem o objetivo de proporcionar segurança ao povo, e que tal poder fora dado incondicionalmente, o monarca passa a ter a competência exclusiva para a elaboração das leis, a constituição dos juízes, o desempenho do poder de polícia, com a possibilidade ainda de censurar as doutrinas esposadas em todos os livros antes mesmo de serem publicados, com a justificativa de evitar a discórdia e a guerra civil9. O poder do soberano é ilimitado. Nem mesmo o tempo ou as próprias leis de seus antecessores podem limitá-lo. O seu titular posiciona-se muito acima do direito nacional e internacional, apenas desaparecendo o seu poder com a extinção do próprio Estado.10

De acordo com Schmitt, desde o século XVI, o centro das discussões travadas pelos juristas a respeito da soberania girou em torno da titularidade do poder soberano. A celeuma sempre foi decidir a quem deveria ser concedido o suprema potestas superiorem non recognoscens, ou seja, o poder soberano11. Apesar de a soberania ser objeto de discussões acirradas desde a sua idealização, constata-se que o seu conceito foi uma das bases do Estado Moderno.12

A soberania surge em oposição à soberania pluralista do feudalismo, à multiplicidade e à descentralização do poder, na tentativa de assegurar o direito de propriedade, através de um critério único de aplicação de justiça, em oposição às diversas fontes de direito compreendidas no regime feudal. Conforme Espíndola, o “nascimento do Estado Moderno inaugurou a institucionalização do poder”.13

A própria idéia de soberania e Estado fez surgir a idéia de ordem internacional, que veio a desaguar no conceito de soberania externa, despertando o interesse dos estudiosos da época, sobretudo com o objetivo de justificar juridicamente a conquista do Novo Mundo. Diante de preceitos absolutos, defendia-se: o ius inventionis (direito de descobrimento); a dominação indígena, sob a justificativa de que os seriam infideles (infiéis) e pecadores; a idéia de uma soberania universal do Império e da Igreja; etc.14 Discordando veementemente dessa construção, Francisco de Vitória, fundador do direito internacional, constrói os alicerces do direito internacional moderno e do Estado enquanto sujeito soberano, sob as seguintes vertentes: a) configuração da ordem universal como sociedade natural composta por Estados soberanos; b) teorização de uma série de direitos naturais dos povos e dos Estados; c) reformulação da doutrina cristã da guerra justa (infideles), redefinida como sanção jurídica às iniuriae (ofensas) sofridas.15

A ordem mundial (communitas orbis) seria uma espécie de sociedade de republicae (repúblicas) ou Estados soberanos, igualmente livres e independentes, vinculados a um mesmo direito das gentes e internamente às suas próprias leis. Sem sombra de dúvida, essa construção teórica foi de grande importância para o conceito de soberania, assim como para o próprio direito internacional. A partir dela, rechaçou-se a antiga concepção medieval de domínio universal do imperador e do papa. Em contrapartida, idealizou-se uma sociedade internacional de Estados nacionais, “concebidos como sujeitos jurídicos independentes uns dos outros, igualmente soberanos, porém subordinados a um único direito das gentes”.16

Apesar da soberania, seja ela interna ou externa, basear os seus postulados em concepções absolutistas, depreende-se que a própria idéia de soberania e Estado estabelece uma espécie de relativização do poder soberano. A noção de direito internacional, que futuramente viria a fazer surgir o direito internacional público, e de Estado soberano impõem também esse pensar.17

Contudo, aos poucos, esse poder supremo, típico do antigo regime, que inicialmente se concentrava nas mãos do monarca, identificando-se com a sua própria pessoa, foi mudando de feição. Importantes eventos históricos experimentados pela sociedade ocasionaram uma verdadeira reviravolta nas concepções

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de Estado e soberania, mudanças estas responsáveis pelo surgimento de versões distintas de ordens jurídicas nacionais e internacionais.18

3. SOBERANIA POPULAR

O antigo regime desempenhou um papel muito importante para a construção do Estado moderno, vez que foi a partir dele que surgiu uma unidade de poder centralizada, responsável pela elaboração, de forma exclusiva, das regras de convivência de seus membros. O Estado, personificado na pessoa do monarca, concentrava em suas mãos o poder político, religioso e econômico. Contudo, com o passar do tempo, as monarquias absolutas transformaram-se em ameaça aos anseios da burguesia, classe então em ascensão, sobretudo a partir do “crescimento das economias de mercado e das mudanças na orientação econômica”19. Malgrado o Estado moderno, sob os auspícios do absolutismo, inicialmente ter proporcionado uma estrutura institucional propícia ao acúmulo de capital, após determinado período, converteu-se em empecilho à expansão das forças de produção. Isso porque a propriedade ainda continuava vinculada à estrutura fundiária feudal, malferindo a livre concorrência, mormente através da manutenção das corporações de ofício, criadas com a finalidade de regular o processo produtivo artesanal na idade média. Além do mais, as isenções tributárias concedidas pelos monarcas aos nobres dificultavam ainda mais as forças de produção, vez que, em contrapartida, oneravam sobejamente os burgueses e os camponeses, aumentando a insatisfação social com o antigo regime.20

A intolerância religiosa também foi um ingrediente importante para o declínio do absolutismo, vez que contribui para o aumento da instabilidade social e política. Aos poucos as liberdades individuais, sobretudo a religiosa, começaram a ser pleiteadas e defendidas pelas classes sociais até então desprestigiadas, bem como por filósofos de grande expressão. Porém, somente no final do século XVII, marcado por guerras religiosas e pela revolução da Inglaterra, que culminou com a decapitação do rei Carlos I, em 1649, é que a concepção individualista ganhou relevo na Europa, sobretudo a partir da grande obra de John Locke, Segundo Tratado sobre o Governo, em 1690.21

Através de sua obra, Locke discute a origem, a organização e os fins da sociedade política, tomando como prisma a vertente do liberalismo político. Consoante o entendimento de Locke, todos os homens nascem livres e com perfeita liberdade de gozo de seus direitos naturais, dentre eles o da propriedade. Prega-se, mormente, a liberdade de posses (direito natural de propriedade). Nesse sentido, tendo em vista que nenhuma sociedade poderia existir sem ter sobre si um poder para preservar a propriedade, cada um dos membros da sociedade abreria mão do próprio direito natural de liberdade, advindo do estado de natureza, em prol da comunidade, em nome da segurança e liberdade coletiva. Não se admite a possibilidade de alguém ser juiz e executor em causa própria, como na época do monarca soberano, entendido pelo autor como período também de estado de natureza.22

Através dessa nova concepção de Estado, todos os homens, independentemente da posição social, ficariam sujeitos às leis elaboradas por eles próprios, enquanto partes do legislativo. Não haveria a possibilidade de qualquer pessoa se esquivar de cumprir a lei. De acordo com Locke, “a primeira providência positiva e natural de todas as comunidades é justamente estabelecer o legislativo”; e “a primeira lei natural que deve nortear até o próprio poder legislativo consiste na preservação da sociedade e, até onde seja compatível com o bem público, de todos os seus membros”. A soberania sai das mãos do monarca e vai encontrar abrigo nas mãos do povo, representados pelo poder legislativo.23 Conforme bem preleciona Aragão, se “para Hobbes o Estado é absoluto, para Locke o povo é soberano”.24

Rousseau também prestou sua contribuição para a teoria contratualista de soberania popular, a partir da publicação de sua obra, Do Contrato Social, publicada em 1762. Segundo o autor, o pacto fundamental substitui a desigualdade física decorrente da igualdade natural, com a finalidade de conceder a todos uma igualdade por convenção e por direito. Apenas a vontade geral poder dirigir as forças do Estado, em atenção à finalidade de sua própria instituição.25

A soberania passa a ser a popular, indivisível e inalienável. O corpo político adquire um poder absoluto sobre todos os homens, decorrente da outorga da vontade geral, caracterizadora da soberania popular. A partir da igualdade dos cidadãos, todos se submetem às mesmas condições, na medida em que também gozam dos mesmos direitos. Em sendo assim, todo ato de soberania, ou seja, todo ato decorrente da vontade geral, obriga ou favorece igualmente a todos os cidadãos.26 O conceito de soberania, inicialmente personificado na figura do monarca, evolui, até chegar, através do pacto fundamental, influenciado pelas idéias liberais de John Locke e Jean-Jaques Rousseau, na construção da soberania popular. A Inglaterra e os Estados Unidos tiveram uma participação especial nesse contexto. Aquele tendo em vista a Revolução Gloriosa e a Revolução Industrial, que proporcionaram uma mudança significativa no cenário político-econômico da Europa; estes através da confecção das primeiras Constituições escritas sob a égide do liberalismo. Sem sombra de dúvidas, essa construção liberal de soberania popular proporcionou o ânimo ideológico da Teoria da Separação dos Poderes, de Montesquieu, da Independência Americana, da Revolução Francesa e da extinção do antigo regime. O poder estatal passou a adquirir a feição de instituição propriamente dita.27

A partir da construção política do liberalismo, o Estado, em vez de ocupar o papel de protetor das liberdades, sobretudo do direito de propriedade, passa a ser visto como o grande vilipendiador dos direitos e liberdades individuais. O Estado Liberal assimila a concepção política de Estado Mínimo, primeira feição do “Estado de Direito”, obediente a uma ordem jurídica previamente estabelecida, sucessora do Estado absolutista, caracterizada pela abstenção (non facere) em relação às relações privadas.28

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3.1. Crítica Inevitável

Como bem esclarece Aragão, a teoria individualista liberal da soberania popular apresenta alguns defeitos de lógica, sobretudo no que se refere à incompatibilidade entre os direitos individuais inalienáveis e o governo da maioria. A questão gira em torno da delimitação do poder da maioria, decorrente do pacto fundamental, de forma a assegurar também os direitos inalienáveis da minoria.29

A partir da construção da soberania popular, chega-se à concepção de poder constituinte (supreme power), que se refere ao poder que é dado à sociedade ou comunidade e não a qualquer soberano, decorrente do pacto fundamental, para estabelecer a constituição política de um Estado30. Como bem preleciona Canotilho, o povo, enquanto soberano, é entendido em seu sentido político, como “grupo de pessoas que agem segundo idéias, interesses e representações de natureza política”31, ou, como acrescenta Frosini, “cuja vontade manifesta o interesse geral, destinado a prevalecer sobre cada vontade em particular”32 . Entretanto, questiona-se o grau de participação política do povo enquanto integrante do poder soberano, definidor das diretrizes políticas do Estado. Devem-se levar em consideração as características imanentes aos países periféricos, sobretudo as concernentes ao esgarçamento do tecido político, econômico e social. Como se poderia legitimar, sem nenhuma margem de limitação, o direcionamento político de um Estado tão somente através da autonomia privada da maioria política, sobretudo nos países periféricos? A título de reflexão, menciona-se o pleito eleitoral, que evidencia, sem espaços para incertezas, a prevalência econômica em detrimento da ideologia política. Falar em soberania popular absoluta, em países periféricos, sabidamente destituídos do proclamado mínimo existencial, seria o mesmo que pretender “tirar leite de pedra”. Não há igualdade de chances, nem tampouco consenso real, onde, para significativa parcela da população, não existe educação, habitação, emprego, saúde, estudo, etc. O consenso alcançado, com toda certeza, seria aquele almejado pela classe economicamente dominante. Não há autodeterminação em uma sociedade de excluídos. Alavancar a participação política (autonomia privada) ao patamar de supreme power, sem nenhuma diretriz axiológica, além de proporcionar uma expectativa social fantasiosa, também engendraria atos preparatórios para uma “tirania da maioria”. Isto porque em países compostos por números alarmantes de indigentes, onde a cidadania ainda é uma ficção sócio-jurídica, o espaço público serviria apenas às aspirações da classe prestigiada. Não se pode denegar a constatação de que as sociedades modernas têm como característica imanente o pluralismo, que impossibilita a existência de um discurso racional que proporcione um consenso amplo sobre as questões essenciais da sociedade33. Essa linha de raciocínio, corroborada com o surgimento de diversos eventos importantes, dentre eles: as duas grandes Guerras Mundiais; a Organização das Nações Unidas; a Guerra Fria; a queda do muro de Berlin; a globalização; a mundialização; os blocos econômicos;

têm despertado uma verdadeira reavaliação do próprio conceito de soberania popular. Devem-se levar em consideração as peculiaridades experimentadas pelos países, sobretudo os periféricos, sob pena de legitimar, teoricamente, a “tirania da maioria”; apesar de não ser esta a pretensão da teoria da soberania popular. Tratar igualmente os desiguais, fomentando ainda mais a desigualdade, representaria uma involução sem precedentes para a concepção de afirmação dos direitos fundamentais, tendo em vista as novas expectativas da sociedade contemporânea. É a partir daí que ganha destaque o papel dos direitos fundamentais no cenário internacional enquanto garantidor, sobretudo, dos direitos e garantias das minorias.

4. SOBERANIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

A expressão direitos fundamentais teve sua origem na Constituição alemã aprovada em 1848, e se destinava a afirmar a aceitação de determinados direitos dos cidadãos, pré-existentes e indisponíveis, pelo Estado. Concebia-se que não caberia ao Estado a criação dos direitos fundamentais, mas apenas o seu reconhecimento e submissão, em estrita consonância com os postulados do Estado Liberal34. Entretanto, segundo Luño, já no século XVIII, os direitos fundamentais passaram a interferir decisivamente no papel do Estado, sobretudo diante da sua interferência sobre as constituições nacionais35. A sintonia entre a Constituição e os direitos fundamentais surgiu nesse período, e agia como limite normativo ao poder estatal, municiando o texto constitucional de autêntica dignidade fundamental. Destaca-se também a influência das concepções da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, que asseverava que a existência de uma Constituição estaria condicionada à salvaguarda dos direitos individuais, bem como do princípio da separação dos poderes.36

A partir dessa ideologia, influenciada, especialmente, pela experiência com o Estado absoluto, lançaram-se as bases das primeiras constituições escritas, de natureza liberal-burguesa. A limitação do poder estatal passou a ser uma realidade, arrimada na garantia dos direitos fundamentais e do princípio da separação de poderes. Tanto os direitos fundamentais quanto a organização do Estado passaram a compor o núcleo essencial, formal e material, do próprio Estado constitucional. Com o passar do tempo, a concretização dos direitos fundamentais transformou-se em tarefa permanente do Estado, que assumiu feições de Estado ideal.37 A partir dessa concepção, os direitos fundamentais passaram a vincular substancialmente a validade da atuação estatal, em todos os seus seguimentos, ao tempo em que também expressam a condição de existência do próprio Estado constitucional democrático. Aduzindo, atualmente, os direitos fundamentais representam a cultura política e histórica do Poder Constituinte, atuando como verdadeiro núcleo axiológico e intransponível do Estado constitucional. Não se pode desprezar a influência das duas grandes guerras mundiais para essa nova concepção

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igualitária baseada nos direitos fundamentais. A banalidade da vida humana chegou a parâmetros intoleráveis, até então inimagináveis para um mundo supostamente civilizado. A dignidade da pessoa humana passou a ser o próprio fundamento do Estado, concebida como o valor indelével dos ordenamentos jurídicos, sendo capaz de orientar a atuação estatal e dos organismos internacionais em sua plenitude38. O princípio da dignidade da pessoa humana auferiu o status de unificador de todos os direitos fundamentais previstos nos ordenamentos jurídicos, atraindo para si, assim, o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem.39

A ONU, criada em 1945, logo após a 2ª Guerra Mundial, também contribuiu para essa nova postura igualitária, tendo em vista que passou a representar e divulgar a opinião e os anseios de parcela considerável, e importante, das nações contemporâneas do pós-guerra. Diversos Pactos, Declarações e Cortes foram criados com o intuito de prestigiar e exigir o cumprimento dos direitos fundamentais, com fulcro em uma perspectiva ampliativa do principio da igualdade. O seu feito mais importante foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos, publicada em 1948. Mesmo no período conturbado da Guerra Fria, que dividiu o mundo em dois pólos (Socialista e Capitalista), o princípio da dignidade da pessoa humana continuou a fundamentar e orientar a atuação estatal.40

Os direitos fundamentais deixaram de servir, tão-somente, de instrumentos de defesa da liberdade individual contra as incursões do Poder estatal, como idealizados no Estado Liberal, para desempenhar também a função de catalisadores da fundamentalidade material do ordenamento político-jurídico. Ademais, torna-se importante frisar os ensinamentos de Dworkin relativos à desobediência civil com relação às leis que violem os direitos fundamentais. Segundo o autor, em uma democracia que prestigia os direitos fundamentais, os indivíduos têm o dever moral de obedecer todas as leis. Todavia, esse dever não é absoluto, vez que encontra ressalva nos casos em que sejam elaboradas leis injustas, sobretudo que violem direitos fundamentais, cabendo aos cidadãos, nesses casos, atuar contra legen, evidenciando-se, assim, o relevante papel dos direitos fundamentais para o ordenamento jurídico41. A possibilidade de desobedecer a uma lei injusta e vilipendiadora de direitos fundamentais é uma conseqüência do próprio direito. Negar a possibilidade de agir contrariamente dessa forma é negar ao mesmo tempo a existência do próprio direito fundamental.42

Como bem esclarece Sarlet43, patenteia-se a relação de afinidade entre “as noções de Estado de Direito, Constituição e direitos fundamentais, estes, sob o aspecto de concretizações do princípio da dignidade da pessoa humana, bem como dos valores da igualdade, liberdade e justiça”, como consagrado em nosso texto fundamental, sabidamente de cunho Democrático e Social. Partindo-se da premissa de pluralidade, bem como da desigualdade social, cultural e econômica presentes em nossa sociedade pós-moderna, sobretudo em países periféricos, os direitos fundamentais desenvolvem um papel imprescindível para a esfera de direitos das minorias. Apesar do princípio da

maioria representar uma das vértebras da coluna do regime democrático, devem-se viabilizar mecanismos de controle, aptos a obstaculizar qualquer tipo de absolutismo da maioria transitória que pretenda fulminar direitos fundamentais da minoria, sabidamente protegidos pela Lei Fundamental. Não se pode deixar de dar a devida atenção à globalização e à mundialização, que alteram a ordem das operações comerciais, industriais, e, consequentemente, influenciam as relações sociais do mundo contemporâneo, sobretudo nos países periféricos. Esse contexto também interfere sobejamente nas relações internacionais, através de uma maior interação planetária. Prega-se o conceito de cidadania universal, bem como o desejo de um governo global, a partir da recepção de valores internacionais, sobretudo os relacionados aos direitos fundamentais, pelos Estados independentes. Tudo com o objetivo maior de se viabilizar um ordenamento jurídico universal.44

É sobre esse cenário que surge a importância da jurisdição internacional dos direitos fundamentais, a partir do compromisso de assegurar a concretização dos comandos axiológicos do direito internacional, mormente daqueles pertinentes aos direitos fundamentais das minorias, mesmo quando flagrantemente contrapostos aos interesses da maioria. Como bem arremata Walber Agra: “As minorias devem acatar as decisões políticas tomadas pela maioria, desde que não atinjam os direitos considerados essenciais pela Constituição”45, e, porque não dizer, do acervo axiológico proclamado pelo direito internacional. Insta mencionar que os direitos fundamentais ganharam um destaque todo especial na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Em seu art. 1º, incisos I e III, a Constituição Federal prevê que a soberania e a dignidade da pessoa humana, respectivamente, são princípios fundamentais da República Federativa do Brasil. Já em seu art. 4º, estabelece que o Brasil, em suas relações internacionais, deve reger-se pelo princípio da prevalência dos direitos humanos. A prevalência dos direitos humanos é tão grande para o ordenamento jurídico brasileiro que a Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, §2º, no Titulo concernente aos direitos e garantias fundamentais, estabelece que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Todavia, a discussão doutrinária a respeito da ingerência do direito internacional nesse particular fez com que fosse editado o §3º, do art. 5º, através da emenda constitucional n. 45, que estabeleceu que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, através do respectivo processo legal, serão equivalentes às emendas constitucionais. Malgrado constitucionalistas de renome repudiarem a possibilidade de um tratado internacional fazer parte da Constituição de um Estado independente, essa não foi a opção constitucional brasileira46. O texto constitucional brasileiro criou um mecanismo de interação dinâmica entre o direito estadual e o direito internacional, respaldados em tratados ou convenções internacionais concernentes à proteção dos direitos fundamentais. Como bem destaca Flavia Piovesan, as

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Constituições da Argentina, Uruguai e Paraguai também prevêem a incorporação dos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos ao universo dos direitos fundamentais constitucionalmente protegidos. Essa é mais uma evidência do primado dos direitos fundamentais enquanto paradigma defendido pela ordem internacional. Ou seja, defende-se a abertura dos ordenamentos jurídicos nacionais com relação ao sistema internacional de proteção dos direitos humanos.47

Não se poder deixar de levar em consideração que, quando o Brasil, e inúmeros outros países, fundamenta as suas relações internacionais com base nos direitos humanos, ocorre uma verdadeira limitação da sua soberania. A concepção clássica de soberania perde sua aplicabilidade irrestrita em prol de uma soberania mais adequada à realidade nacional e universal de prevalência dos direitos fundamentais, sobretudo da dignidade da pessoa humana, atendendo, assim, sempre, aos reclamos da minoria.48

Diante disso, aflora-se no contexto contemporâneo a soberania, suprema potestas superiorem non recognoscens (poder supremo que não reconhece outro acima de si), dos direitos fundamentais. Frise-se que essa nova interface entre o direito nacional e internacional, arrimada na pretensão de concretização dos direitos fundamentais, prestigia, inclusive, os postulados do próprio Estado Democrático Social de Direito.

5. CONCLUSÃO

Durante o regime feudal, até o século XII, encontravam-se duas espécies de soberanias concomitantes na Europa: a do senhor feudal (soberanos em seu senhorio) e a do rei (soberano em todo o reino). A partir do século XIII, à medida em que os Barões feudais passaram a necessitar de um ente central que garantisse especialmente o direito de propriedade, o monarca foi ampliando a sua esfera de competência exclusiva até chegar na condição de soberano supremo. A partir da ascensão do monarca à condição de soberano, o seu poder passou a ser absoluto. Ou seja, permitia-se o controle de todos os órgãos (inclusive do legislativo e do judicial), sem nenhuma espécie de limitação ou ressalva. O antigo regime desempenhou um papel muito importante para a construção do Estado moderno, vez que foi a partir dele que surgiu uma unidade de poder centralizada, responsável pela elaboração, de forma exclusiva, das regras de convivência de seus membros. Todavia, com o passar do tempo, sobretudo diante do crescimento das economias de mercado, as monarquias absolutas transformaram-se em ameaça aos anseios da burguesia, classe então em ascensão. Malgrado o Estado moderno, sob os auspícios do absolutismo, inicialmente ter proporcionado uma estrutura institucional propícia ao acúmulo de capital, após certo período, converteu-se em empecilho à expansão das forças de produção, especialmente porque a propriedade ainda continuava vinculada à estrutura fundiária feudal, malferindo a livre concorrência. Através da obra Segundo Tratado sobre o Governo, John Locke discute a origem, a organização e os fins da sociedade política, tomando como prisma a vertente do liberalismo político. Consoante o

entendimento de Locke, todos os homens nascem livres e com perfeita liberdade de gozo de seus direitos naturais, dentre eles o da propriedade. Prega-se, mormente, a liberdade de posses (direito natural de propriedade). Nesse sentido, tendo em vista que nenhuma sociedade poderia existir sem ter sobre si um poder para preservar a propriedade, cada um dos membros da sociedade abreria mão do próprio direito natural de liberdade, advindo do estado de natureza, em prol da comunidade, em nome da segurança e liberdade coletiva. O conceito de soberania, inicialmente personificado na figura do monarca, evolui, até chegar, através do pacto fundamental, influenciado pelas idéias liberais de John Locke e Jean-Jaques Rousseau, na construção da soberania popular. Entretanto, depreende-se que falar em soberania popular absoluta, em países periféricos, sabidamente destituídos do proclamado mínimo existencial, seria o mesmo que pretender “tirar leite de pedra”. Não há igualdade de chances, nem tampouco consenso real, onde, para significativa parcela da população, não existe educação, habitação, emprego, saúde, estudo, etc. O consenso alcançado, com toda certeza, seria aquele almejado pela classe economicamente dominante. Isso porque não há autodeterminação em uma sociedade de excluídos. Alavancar a participação política (autonomia privada) ao patamar de supreme power, sem nenhuma diretriz axiológica, além de proporcionar uma expectativa social fantasiosa, também engendraria atos preparatórios para uma “tirania da maioria”. É a partir dessa constatação que ganha relevo a participação dos direitos fundamentais no cenário nacional e internacional. A sintonia entre a Constituição e os direitos fundamentais surgiu nesse período, e passou a agir como limite normativo ao poder estatal, municiando o texto constitucional de autêntica dignidade fundamental. A partir dessa concepção, os direitos fundamentais passam a vincular substancialmente a validade da atuação estatal, em todos os seus seguimentos, ao tempo em que também expressam a condição de existência do próprio Estado constitucional democrático. Doutra forma, conclui-se que a ONU, criada em 1945, logo após a 2ª Guerra Mundial, também contribuiu para essa nova postura igualitária, tendo em vista que passou a representar e divulgar a opinião e os anseios de parcela considerável, e importante, das nações contemporâneas do pós-guerra. Diversos Pactos, Declarações e Cortes foram criados com o intuito de prestigiar e exigir o cumprimento dos direitos fundamentais, com fulcro em uma perspectiva ampliativa do principio da igualdade. O seu feito mais importante foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos, publicada em 1948. Os direitos fundamentais deixaram de servir, tão-somente, de instrumentos de defesa da liberdade individual contra as incursões do Poder estatal, como idealizados no Estado Liberal, para desempenhar também a função de catalisadores da fundamentalidade material do ordenamento político-jurídico. Partindo-se da premissa de pluralidade, bem como da desigualdade social, cultural e econômica presentes em nossa sociedade pós-moderna, sobretudo em países periféricos, os direitos fundamentais desenvolvem um papel imprescindível para a esfera de direitos das minorias. Apesar do princípio da

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maioria representar uma das vértebras da coluna do regime democrático, devem-se viabilizar mecanismos de controle, aptos a obstaculizar qualquer tipo de absolutismo da maioria transitória que pretenda fulminar direitos fundamentais da minoria, sabidamente protegidos pela Lei Fundamental. É sobre esse cenário que surge a importância da jurisdição internacional dos direitos fundamentais, a partir do compromisso de assegurar a concretização dos comandos axiológicos do direito internacional, mormente daqueles pertinentes aos direitos fundamentais das minorias, mesmo quando flagrantemente contrapostos aos interesses da maioria. Insta mencionar que os direitos fundamentais ganharam um destaque todo especial na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Em seu art. 1º, incisos I e III, a Constituição Federal prevê que a soberania e a dignidade da pessoa humana, respectivamente, são princípios fundamentais da República Federativa do Brasil. Já em seu art. 4º, estabelece que o Brasil, em suas relações internacionais, reger-se-á pelo princípio da prevalência dos direitos humanos. A prevalência dos direitos humanos é tão grande para o ordenamento jurídico brasileiro que a Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, §2º, no Titulo concernente aos direitos e garantias fundamentais, estabelece que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. De outra forma, o §3º, do art. 5º, através da emenda constitucional n. 45, com o objetivo de aumentar a interação entre o direito nacional e internacional, estabeleceu que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, através do respectivo processo legal, serão equivalentes às emendas constitucionais. Constata-se que as Constituições da Argentina, Uruguai e Paraguai também prevêem a incorporação dos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos ao universo dos direitos fundamentais constitucionalmente protegidos, respaldando ainda mais o primado dos direitos fundamentais enquanto paradigma defendido pela ordem internacional. Perorando, não se poder deixar de levar em consideração que, quando o Brasil, e inúmeros outros países, fundamenta as suas relações internacionais com base nos direitos humanos, ocorre uma verdadeira limitação da sua soberania. A concepção clássica de soberania perde sua aplicabilidade irrestrita em prol de uma soberania mais adequada à realidade nacional e universal de prevalência dos direitos fundamentais, sobretudo da dignidade da pessoa humana, atendendo, assim, sempre, aos reclamos das minorias. Diante disso, aflora-se no contexto contemporâneo a soberania, suprema potestas superiorem non recognoscens (poder supremo que não reconhece outro acima de si), dos direitos fundamentais. Frise-se que essa nova interface entre o direito nacional e internacional, arrimada na pretensão de concretização dos direitos fundamentais, prestigia, inclusive, os postulados do próprio Estado Democrático Social de Direito.

Notas e Referências

1. FERRAJOLI, Luigi. A Soberania no Mundo Moderno: nascimento e crise do Estado nacional. Tradução Carlo Coccioli e Márcio Lauria Filho. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 1-2.2. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 76.3. MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Tradução Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2005.4. DALLARI, op. cit., p. 76-77.5. SCHMITT, Carl. Teologia Política. Tradução Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 10.6. HOBBES, Thomas. Leviatã, ou matéria, forma e poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Tradução Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 101.7. HOBBES, op. cit., p. 102.8. HOBBES, op. cit., p. 135.9. HOBBES, op. cit., p. 135-136; 244.10. DALLARI, op. cit., p. 77-78.11. SCHMITT, op. cit., p. 11.12. DALLARI, op. cit., p. 74-75.13. ESPINDOLA, Ângela Araujo da Silveira. A (Re) Construção da Soberania Inter-rompida: o fim do Estado Nação? Disponível em: http://www.fadisma.com.br/arquivos/ProfAngelaACRISECONCEITU-ALDOESTADO.pdf. Acesso em: 15 abril de 2007, p. 16-17.14. FERRAJOLI, op. cit., p. 5-6.15. FERRAJOLI, op. cit., p. 7.16. FERRAJOLI, op. cit., p. 7-8.17. VIEIRA, Roberto D’Oliveira. A Necessidade de Revisão do Antigo Conceito de Soberania. Revista Jurídica da Unifacs, Edição de maio de 2006. Disponível em: http://www.unifacs.br/revistajuridica/edicao_maio2006/discente/dis1.doc. Acesso em: 15 abril de 2007, p. 5-9.18. ESPINDOLA, op. cit., p. 21. 19. ESPINDOLA, op. cit., p. 21.20. LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. Proteção dos Direitos Humanos na Ordem Interna e Internacional. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 21-22.21. ARAGÃO, Selma Regina. Direitos Humanos: do mundo moderno ao Brasil de todos. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 42.22. “Onde quer que as pessoas não disponham de semelhante autoridade a que recorrerem para arbitrar nas disputas entre elas, estarão elas no estado de natureza; é essa a condição em que se encontra qualquer príncipe absoluto em relação aos que estão sob o seu domínio” (LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo. Tradução Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 69-71).23. LOCKE, op. cit., p. 69-71; 98.24. ARAGÃO, op. cit., p. 42.25. ROUSSEAU, Jean-Jaques. Do Contrato Social. Tradução Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2005, p. 37-39.26. ROUSSEAU, op. cit, p. 40-44.27. ESPINDOLA, op. cit., p. 20-21.28. ESPINDOLA, op. cit., p. 23-24.29. ARAGÃO, op. cit., p. 43.30. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. 2. reimp. Coimbra: Coimbra, 2003, p. 72.31. CANOTILHO, op. cit., p. 75.32. FROSINI, Tommaso Edoardo. Soberania Popular e Estado Constitucional. In: ALMEIDA FILHO, Agassiz; PINTO FILHO, Francisco Bilac Moreira. (Orgs.). Constitucionalismo e Estado. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 133.33. ALEXY, Robert. La Institucionalización de la Justicia. Tradução José Antônio Seoane, Eduardo Roberto Sodero y Pablo Rodríguez. Granada – España: Comares, 2005, p. 63-67.34. QUEIROZ, Cristina M. M. Direitos Fundamentais (Teoria Geral). Porto - Portugal: Coimbra, 2002, p. 26.35. LUÑO, Antonio Henrique Pérez. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitucion. 8. ed. Madrid – España: Tecnos, 2003, p. 115.36. SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 67-68.37. SARLET, op. cit., p. 67-68.38. BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 107-110.39. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 105.40. BARCELLOS, op. cit., p. 111.

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41. “La respuesta de ambas partes es la siguiente. En una democracia, o al menos en una democracia que en principio respeta los derechos individuales, cada ciudadano tiene un deber moral general de obedecer todas las leyes, aun cuando podría gustarle que alguna de ellas se cambiara. Tal es su deber para con sus conciudadanos, que en beneficio de él obedecen leyes que no les gustan. Pero este deber general no puede ser un deber absoluto, porque es posible que incluso una sociedad que en principio es justa produzca leyes y directrices injustas, y un hombre tiene deberes aparte de sus deberes para con el Estado. Un hombre debe cumplir sus deberes con su Dios y con su consciencia, y si estos últimos se hallan en conflicto con su deber hacia el Estado, es él, en última instancia, quien tiene derecho a hacer lo que juzga correcto”. (DWORKIN, Ronald. Los Derechos en Serio. Tradução Marta Guastavino. 1. ed. 5. reimp. Barcelona – España: Ariel Derecho, 2002, p. 279).42. DWORKIN, op. cit., p. 286.43. SARLET, op. cit., p. 72.44. RODRIGUES, Maurício Andreiuolo. Poder Constituinte Supranacional: esse novo personagem. Porte Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2000, p. 24 e 28.45. AGRA, Walber de Moura. A Reconstrução da Legitimidade do Supremo Tribunal Federal: Densificação da Jurisdição Constitucional Brasileira. Rio de Janeiro : Forense, 2005, p. 36.46. “Un tratado internacional como tal, no es nunca una Constitución en sentido positivo. Tampoco puede ser parte de la Constitución de un Estado independiente” (SCHMITT, Carl.. Teoria de la Constitución. Tradução Francisco Ayala. Salamanca: Alianza, 2006, p. 89).47. PIOVESAN, Flávia. Derechos Humanos, Globalización Económica e Integración Regional. In: BENVENUTO JR., Jayme (Org.). Plataforma Interamericana de Derechos Humanos, Democracia y Desarrollo Derechos Humanos: económicos, sociales y culturales. Recife: PIDHDD, 2005, p. 83-84.48. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 40-41.

Referências Complementares

AGRA, Walber de Moura. A Reconstrução da Legitimidade do Supremo Tribunal Federal: Densificação da Jurisdição Constitucional Brasileira. Rio de Janeiro : Forense, 2005.

ALEXY, Robert. La Institucionalización de la Justicia. Tradução José Antônio Seoane, Eduardo Roberto Sodero y Pablo Rodríguez. Granada – España: Comares, 2005.ARAGÃO, Selma Regina. Direitos Humanos: do mundo moderno ao Brasil de todos. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003.

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

DWORKIN, Ronald. Los Derechos en Serio. Tradução Marta Guastavino. 1. ed. 5. reimp. Barcelona – España: Ariel Derecho, 2002.

ESPINDOLA, Ângela Araujo da Silveira. A (Re) Construção da Soberania Interrompida: o fim do Estado Nação? Disponível em: http://www.fadisma.com.br/arquivos/ProfAngelaACRISECONCEITUALDOESTADO.pdf. Acesso em: 15 abril de 2007.

FERRAJOLI, Luigi. A Soberania no Mundo Moderno: nascimento e crise do Estado nacional. Tradução Carlo Coccioli e Márcio Lauria Filho. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

FROSINI, Tommaso Edoardo. Soberania Popular e Estado Constitucional. In: ALMEIDA FILHO, Agassiz; PINTO FILHO, Francisco Bilac Moreira. (Orgs.). Constitucionalismo e Estado. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 131-142.

HOBBES, Thomas. Leviatã, ou matéria, forma e poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Tradução Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2006.

LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. Proteção dos Direitos Humanos na Ordem Interna e Internacional. Rio de Janeiro: Forense, 1984.

LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo. Tradução Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2006.LUÑO, Antonio Henrique Pérez. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitucion. 8. ed. Madrid – España: Tecnos, 2003.

MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Tradução Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2005.

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______. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.

QUEIROZ, Cristina M. M. Direitos Fundamentais (Teoria Geral). Porto - Portugal: Coimbra, 2002.

RODRIGUES, Maurício Andreiuolo. Poder Constituinte Supranacional: esse novo personagem. Porte Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2000.

ROUSSEAU, Jean-Jaques. Do Contrato Social. Tradução Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2005.

SCHMITT, Carl. Teologia Política. Tradução Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.

______. Teoria de la Constitución. Tradução Francisco Ayala. Salamanca: Alianza, 2006.

SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

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A AÇÃO CIVIL PÚBLICA E O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES: ESTUDO

ANALÍTICO DE SUAS POSSIBILIDADES E LIMITES.5

Paulo Gustavo GuedesMestre em Direito Público (Universidade de Toulouse, França)

Procurador da República

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SUMÁRIO

1. Introdução – 2. Especificidades da função jurisdicional em matéria de interesses difusos e coletivos. 2.1. A judicialização do interesse público. 2.2. Uma jurisdição criativa. 2.2.1. A abstração na formulação dos interesses difusos e coletivos. 2.2.2. O caráter contingente dos interesses difusos. 2.2.3. A conflituosidade interna. – 3. A ação civil pública face à função legislativa do Estado. 3.1. A impossibilidade de criação da norma pelo juiz. 3.2. Peculiaridades da noção de responsabilidade na LACP. 3.3. A eficácia jurídica das normas constitucionais. – 4. A ação civil pública e a discricionariedade administrativa. 4.1. Discricionariedade e conceitos jurídicos indeterminados. 4.2. Uma jurisprudência excessivamente prudente... 4.3. A questão das obrigações de fazer. 4.3.1. As obrigações de fazer no campo da atividade prescritiva. 4.3.2. As obrigações de realizar atividades materiais.

1 INTRODUÇÃO

A ação civil pública alargou de maneira significativa o controle jurisdicional da Administração no Brasil. Embora as pessoas políticas e os entes administrativos estejam legitimados a intentá-la, a verdade é que, na maioria das vezes, a Administração figura no pólo passivo desse tipo de demanda. Consagrou-se a ação civil pública como uma sucessora audaz, e também polêmica, da ação popular, propiciando, em relação a esta, um controle mais extenso e mais profundo sobre a Administração Pública. Mais extenso na medida em que a utilização da ação civil pública não está circunscrita a temas ou matérias específicas, podendo servir à defesa de outros interesses difusos e coletivos, conforme inscrito no artigo 129, III, da Constituição e no próprio artigo 1º da Lei da Ação Civil Pública-LACP; essa cláusula geral permitiu o ajuizamento de ações contra a Administração em domínios tão diversos quanto o direito à saúde, à educação, à habitação, à seguridade social. Mais profundo porque a ação civil pública permite ao juiz impor obrigações de fazer e não fazer. Na ação popular, o objeto imediato é principalmente a anulação do ato administrativo; embora alguns autores, corretamente ao nosso sentir, defendam que o juiz pode impor obrigações na ação popular1, a jurisprudência se mostrou reticente quanto a tal possibilidade. Não se pode esquecer também que o Ministério Público tornou-se o principal utilizador da ação civil pública. A instituição, gozando a partir de 1988 de ampla independência em face do Executivo, e aparelhada de instrumentos como o inquérito civil e o poder de requisitar documentos em geral, está sem dúvida em condições de implantar sobre a Administração um controle mais freqüente e efetivo do que o exercido pelo cidadão. Essa judicialização sem precedentes da vida administrativa não tardou a provocar questionamentos quanto aos limites da intervenção judicial, ditados principalmente pela chamada discricionariedade administrativa. Da mesma forma, em relação às

obrigações impostas no quadro da ação civil pública, levantou-se algumas vezes o problema de sua base legal, receando-se que o Judiciário, a pretexto de proteger interesses difusos e coletivos, passasse a criar a norma por ele aplicada. O tema já deu ensejo a muita digressão doutrinária e jurisprudencial de boa qualidade. Procuramos nas seções seguintes sistematizar o debate e, a partir de uma análise cuidadosa de ações civis públicas efetivamente propostas, propor algumas soluções. Num primeiro momento, veremos que a defesa judicial dos interesses difusos e coletivos apresenta por si só especificidades que devem ser levadas em conta (seção 2), para então estudarmos as tensões que podem surgir entre a ação civil pública e as funções legislativa (seção 3) e administrativa (seção 4) do Estado.

2. ESPECIFICIDADES DA FUNÇÃO JURISDICIONAL EM MATÉRIA DE INTERESSES DIFUSOS E COLETIVOS

2.1. A judicialização do interesse público

A noção de interesse difuso aproxima-se e por vezes se confunde com o interesse público ou geral. Convocado a decidir sobre os interesses difusos e coletivos, o juiz fará do interesse público uma apreciação direta, que não lhe era permitida no seu papel tradicional. Com efeito, a jurisdição se ocupava principalmente dos litígios individuais; mesmo quando considerava sobre o interesse público, era muitas vezes no intuito de proteger um direito individual, como na teoria do desvio de poder. Num sistema em que predomine o processo civil clássico, como era o nosso antes do advento da ação popular e, vinte anos depois, da ação civil pública, a proteção do interesse público e a sua implementação cabem precipuamente aos Poderes Executivo e Legislativo; o juiz penal age também inspirado por considerações que são fundamentalmente ligadas à garantia do interesse público. Não é dizer que, nesse quadro, o papel do juiz cível não se reveste de interesse público, mas este é um produto indireto da solução dos litígios individuais. Exemplifiquemos com a comercialização de um produto perigoso para os seus usuários, tendo ainda em vista o sistema clássico. Na jurisdição cível, o indivíduo não terá legitimidade para requerer a interdição de sua comercialização, mas somente para pedir indenização no caso de perdas e danos. Que autoridades poderão assegurar o interesse público que representaria a interdição? O legislador, claro, poderá fazê-lo; o juiz penal também, se a conduta for descrita como infração. Por fim, a própria Administração, no exercício do seu poder de polícia.2 Ora, tal sistema pode se revelar ineficaz na proteção da coletividade. Basta imaginar que a Administração pode não exercer a contento o seu poder de polícia, como deveras acontece, ou que seja ela própria a fabricar e comercializar o produto perigoso. Por essa razão, mudanças processuais advieram em vários países, ou são reclamadas pela doutrina, no sentido de se permitir também ao juiz a proteção do

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interesse público.3 No Brasil, a ação civil pública permitiu ao juiz cível apreciar o interesse público não mais de forma mediata, mas direta, ditando as medidas que ele pode exigir, mesmo contra a Administração.

2.2. Uma jurisdição criativa

Se a jurisdição, em certa medida, é sempre criativa, essa característica se vê reforçada quando se trata da defesa de interesses difusos e coletivos, em razão de suas peculiaridades.

2.2.1. A abstração na formulação dos direitos difusos e coletivos

As normas jurídicas materiais invocadas na proteção dos interesses difusos e coletivos são com freqüência muito abstratas. Esses interesses difusos – relativos à proteção do meio ambiente e do patrimônio cultural, às prestações estatais de educação e saúde – são em parte produto das transformações do Estado e do direito no século XX, sintetizadas na expressão Welfare State ou Estado-providência. Estão geralmente inscritos nas Constituições ou nas declarações de direitos nacionais ou internacionais e o seu reconhecimento se faz sob a forma de princípios gerais; acontece que também esses textos mudaram de natureza, passando a gozar de uma força normativa que não se lhes reconhecia antes. A função jurisdicional, chamada a aplicar tais princípios gerais às situações concretas, vai ter evidentemente um papel fundamental na própria conformação desses direitos. De fato, muito freqüentemente as ‘controvérsias de classe’ envolvem as leis e direitos sociais[...] Portanto, vale também aqui o que se afirmou naquele contexto sobre o papel conseqüentemente mudado da magistratura: pela razão de que tais leis e direitos freqüentemente são muito vagos, fluidos e programáticos, mostra-se inevitável alto grau de criatividade e ativismo do juiz chamado a interpretá-los.4

2.2.2. O caráter contingente dos interesses difusos

Os interesses difusos estão com freqüência ligados a situações de fato e muito variadas que os fazem surgir no seio de uma coletividade qualquer, como no caso dos moradores de um bairro confrontados com obras que possam lhes trazer prejuízos e aborrecimentos. “Trata-se de interesses espalhados e informais à tutela de necessidades, também coletivas, sinteticamente referidas à ‘qualidade de vida’.”5 O legislador não é capaz de prever todas as situações que podem revelar interesses difusos e coletivos, nem de solucioná-las de antemão. A via judicial se apresenta como a mais propícia à tutela de tais interesses, mas à condição de se deixar ao juiz uma margem maior de liberdade na aplicação dos princípios jurídicos às situações concretas.

2.2.3. A conflituosidade interna

Por fim, é preciso considerar o que a doutrina italiana chamou de conflittulità massima em matéria de interesses difusos e coletivos. Uma de suas características seria a de se contraporem de maneira mais ou menos radical a outros interesses significativos, muitas vezes também difusos. E essas necessidades e esses interesses, de massa, sofrem constantes investidas, freqüentemente também de massa, contrapondo grupo versus grupo, em conflitos que se coletivizam em ambos os pólos.6 A conflituosidade entre direitos e interesses difusos leva a jurisdição a uma ponderação dos interesses em jogo. Uma vez que ambas as partes se reivindicam de princípios constitucionais, tais como a proteção do meio ambiente ou a liberdade de iniciativa, a definição do direito resultará algumas vezes de uma opção entre tais interesses, deixando margem considerável à subjetividade do julgador. A “criatividade” dos juízes nas ações coletivas levanta problemas com relação aos seus limites. A jurisdição é chamada a dirimir conflitos transindividuais, o que no esquema tradicional cabia aos Poderes Executivo e Legislativo. Assim, a questão nodal nas ações coletivas seria o risco de uma substituição ou confusão dos papéis do juiz e do administrador e enfim do juiz e do legislador[...] o fulcro do problema seria o equilíbrio institucional entre os vários poderes do Estado.7

3. A AÇÃO CIVIL PÚBLICA FACE À FUNÇÃO LEGISLATIVA DO ESTADO

3.1. A impossibilidade de criação da norma pelo juiz

Alguns autores falaram em patologia na utilização da ação civil pública8, do que uma das manifestações seria a criação, pelo juiz, da norma por ele aplicada. O problema se coloca em função das características próprias desse tipo de demanda, como os efeitos erga omnes da sentença e a possibilidade de imposição de obrigações de fazer e não fazer. A questão aparece igualmente no contexto da utilização da ação civil pública contra a Administração, com vistas a tornar efetivos os direitos econômicos e sociais assegurados na Constituição e mesmo princípios constitucionais mais programáticos como os objetivos da República. Não pode ser ilimitado o objeto. Não pode o autor pretender que o Judiciário crie disciplina sobre o direito material. Este deve preexistir à ação, e esta há de limitar-se a estabelecer as cominações ao réu em conformidade com os preceitos já fixados pelo direito material.9 Esses autores insistem no caráter processual da Lei da Ação Civil Pública-LACP, isto é, entendem que esta lei autoriza a defesa dos interesses difusos e coletivos em juízo, mas não cria norma de conteúdo material para sua proteção. A Lei 7.347/85 é unicamente adjetiva, de caráter processual, pelo que a ação e a condenação devem basear-se em disposição de alguma norma substantiva, de Direito Material[...]10 O então Procurador-Geral da República,

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José Paulo Sepúlveda Pertence, asseverou em parecer oferecido junto ao Supremo Tribunal Federal: [...] não basta o equipamento processual para viabilizar a proteção daqueles interesses sociais que, sem lei que os converta em direitos coletivos, o juiz entenda merecedores de proteção, ou, o que é pior, contra a lei, que os proteja em determinada medida, ao juiz pareça devessem ser tutelados em dimensão maior.11 É evidente que a autorização legal para a defesa em juízo, por meio da ação civil pública, dos interesses difusos e coletivos não significou a legalização de qualquer interesse suscetível de pertencer a uma coletividade indeterminada de pessoas! É preciso que esses interesses difusos constituam direitos para que o Judiciário possa assegurar a sua proteção, ainda que não apresentem a mesma estrutura dos direitos subjetivos.

3.2. Peculiaridades da noção de responsabilidade na LACP

Pode-se, contudo, questionar o caráter meramente processual da LACP. A ementa anuncia que ela “disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor[...]” Tal diploma confere notadamente legitimidade para agir na defesa dos interesses difusos e coletivos. Esses interesses não eram passíveis de judicialização no esquema tradicional e a possibilidade de sua representação em juízo pode acarretar conseqüências que ultrapassam o mero aspecto processual. A LACP cria um novo tipo de responsabilidade, aquela que pode existir em face dos interesses difusos e coletivos, conferindo, assim, maior concretude às normas de direito material, que podiam ter sua aplicação reduzida justamente por tratarem de direitos coletivos. Comportamentos que não eram sancionados pela jurisdição, porque não ofendiam direitos subjetivos, poderão a partir de então ser considerados lesivos aos interesses difusos e coletivos.12

Dois outros aspectos da ação civil pública conferem, de fato, certa especificidade à responsabilidade, quando esta se refere aos interesses difusos e coletivos. Freqüentemente a reparação dos danos causados a esses interesses não pode assumir a forma de mera indenização pecuniária; doutrina e jurisprudência reconhecem que, tanto quanto possível, a ação civil pública deve buscar a reparação específica ou in natura do bem agredido, através de medidas materiais apropriadas à sua reconstituição. É o caso em se tratando de danos causados ao meio ambiente ou ao patrimônio histórico. Da mesma forma, não se controverte quanto à possibilidade de uso da ação civil pública de forma preventiva, as obrigações de fazer e não fazer judicialmente impostas intervindo para evitar a concretização dos danos e não somente para buscar sua reparação. Assim, algumas obrigações determinadas pelo juiz na sentença não necessitam de previsão normativa explícita: elas derivam das peculiaridades da noção de responsabilidade nessa matéria e representam muitas vezes a maneira prática de se evitar ou reparar o dano. A lei confere ao juiz considerável margem de liberdade na escolha dessas medidas de reparação.13

Um dos problemas residiria na diferença de estrutura entre o dano causado ao interesse coletivo

e o dano de natureza individual. Com efeito, o dano material causado ao indivíduo está delimitado pela existência da propriedade. Não é necessário, em matéria de responsabilidade civil, prever todas as situações fáticas que podem engendrá-la: a lei se contenta com uma previsão geral de que “comete ato ilícito quem violar direito ou causar dano a outrem” (art. 186 do Novo Código Civil Brasileiro), gerando o dever de indenizar (art. 927). Vislumbra-se com facilidade a responsabilidade daquele que desmatar uma floresta alheia; não se exigirá que essa hipótese específica de dano venha expressamente prevista em lei. No entanto, em matéria de direitos difusos e coletivos, que se definem justamente pela ausência de exclusividade na sua titularidade, será muitas vezes necessário estabelecer aquilo que constitui lesão a tais interesses. Seria o caso da responsabilidade de alguém por desmatar sua própria floresta; é preciso fixar quando e em que condições tal comportamento é vedado, quais os casos em que a conduta será considerada ofensiva ao meio ambiente. Em contrapartida, em outras situações o dano à coletividade pode ser constatado diretamente, com a ajuda das previsões normativas gerais, mormente constitucionais, relativas à proteção do meio ambiente, do patrimônio histórico, da seguridade social etc. Como já assinalamos, a proteção desses valores tão relevantes para a sociedade não comporta previsão exaustiva. Com efeito, As finalidades e objetivos estabelecidos nas regras constitucionais não se encontram rigidamente vinculadas a situações previamente descritas, nem podem ser alcançadas por condutas antecipadamente prescritas.14

3.3. A eficácia jurídica das normas constitucionais

Em alguns julgamentos em que a doutrina citada criticaria eventual criação da norma pelo juiz, este busca na verdade uma aplicação direta das normas constitucionais à situação concreta que deve solucionar. O problema, nesses casos, resvalaria na questão da eficácia jurídica dos dispositivos constitucionais.15

As normas constitucionais são distintas do ponto de vista de sua eficácia jurídica, isto é, de sua aptidão a produzir efeitos de direito e obrigações. A doutrina americana já distinguia entre as mandatory provisions ou self-executing provisions, que seriam diretamente aplicáveis, das directory provisions ou not self-executing provisions. A doutrina italiana do pós-guerra, igualmente, entre as normas preceptivas obrigatórias e as normas diretivas ou programáticas, às quais recusava valor jurídico. As normas programáticas são um fenômeno do Estado social. Ligadas principalmente aos direitos econômicos e sociais, seriam, segundo José Afonso da Silva, aquelas normas através das quais o constituinte, em vez de regular, direta e imediatamente, determinados interesses, limitou-se a traçar-lhes os princípios para serem cumpridos pelos seus órgãos (legislativos, executivos, jurisdicionais e administrativos), como programas das respectivas atividades, visando à realização dos fins sociais do Estado.16 Por vezes, para a realização de tais programas,

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a Constituição prevê a necessidade de intervenção legislativa; outras normas programáticas se dirigem ao Poder Público em geral e não implicam obrigatoriamente complementação legislativa. A doutrina evoluiu no sentido de conferir um maior valor jurídico às normas programáticas. Estas são consideradas aptas a produzir efeitos jurídicos; sua eficácia seria contudo limitada e seus efeitos sobretudo negativos17, no sentido de vedar aos poderes públicos uma atuação em sentido contrário àquele estabelecido por tais diretrizes. As normas programáticas permitem em especial o controle da constitucionalidade das leis que sejam com elas incompatíveis. Enfim, afirmam os autores que tais normas não chegam a conferir direito subjetivo a uma determinada prestação estatal, mas sim a uma abstenção do Estado de ir de encontro à diretiva (um direito subjetivo negativo). Finalmente, deve-se distinguir entre normas programáticas e princípios constitucionais. Estes últimos, mesmo possuindo uma estrutura normativa diferente das regras, gozam de eficácia plena e aplicabilidade imediata.18

O estudo das ações civis públicas que buscam dar aplicação às normas constitucionais deve levar em conta tais distinções. Em determinadas matérias atinentes aos interesses difusos, a Constituição de 1988 foi suficientemente minuciosa para permitir a aplicação direta dos seus dispositivos. É o caso da proteção do meio ambiente, em que o artigo 225, além de declarar que se impõe ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo, enumera as principais tarefas da Administração na questão, como “preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético” e “controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida e o meio ambiente.” Não se poderia considerar como programáticas tais disposições, estando o juiz autorizado, com base nelas, no quadro da ação civil pública, a impor seja obrigações de fazer seja de não fazer. Quanto às disposições propriamente programáticas, as possibilidades da ação civil pública mostram-se diferentes, segundo busque impor obrigação de fazer ou de não fazer. Nesses casos, a ação civil pública será bastante útil para impor à Administração obrigação de não fazer, de não agir em sentido diverso ou contrário às diretrizes ou programas constitucionais, e ainda para determinar a anulação de atos administrativos. A imposição de obrigação de fazer, baseada exclusivamente em norma programática, afigura-se mais problemática. Tais normas são, com efeito, muito abstratas ou genéricas e sua aplicação saberia admitir não só interpretações diferentes, mas também medidas práticas muito diversas. O artigo 218 da Constituição, por exemplo, assegura que “o Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas”: um leque de possibilidades muito extenso se abre a partir de tal disposição. Querer impor à Administração uma obrigação qualquer fundada apenas em disposição tão genérica pode representar, com efeito, a passagem de uma démarche jurisdicional a outra de caráter legislativo. Os princípios constitucionais, mesmo que abstratos e na ausência de disposição legal específica,

podem facilmente autorizar o juiz a impor obrigações de não fazer, bem como a anular atos administrativos. O artigo 37 da Constituição, por exemplo, estabelece como princípios da Administração Pública a legalidade, a impessoalidade, a moralidade, a publicidade e a eficiência. Não se pode, em absoluto, aceitar a tese de que seriam normas programáticas, a exigir intervenção legislativa ulterior para se tornarem eficazes19. Como veremos na seção seguinte, os conceitos jurídicos indeterminados, apesar de permitirem uma margem maior ou menor de interpretação, têm, contudo, um conteúdo mínimo sempre controlável pelo juiz; o contrário seria fazer tábula rasa do fenômeno lingüístico e jurídico e, no caso, da supremacia constitucional.20 Apesar da maior dificuldade, seria perigoso descartar de antemão a possibilidade de o juiz, em aplicação direta de normas programáticas e princípios constitucionais, impor à Administração obrigações de fazer. Tal solução, diante da situação concreta, pode mostrar-se a única capaz de propiciar uma aplicação efetiva das normas constitucionais. Contudo, também os princípios apresentam um campo semântico muito vasto, comportando interpretações diversas ou mesmo opostas. A própria polêmica em torno de certas questões – como a das cotas raciais e a do casamento entre homossexuais, ambas em sua relação com o princípio constitucional da isonomia – está a demonstrar que elas não podem ser resolvidas por meio da dogmática jurídica, pressupondo uma opção normativa diante da qual o Judiciário deve recuar, por falta de legitimidade política.

4. A AÇÃO CIVIL PÚBLICA E A DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA 4.1. Discricionariedade e conceitos jurídicos indeterminados

A discricionariedade é em geral considerada a margem de liberdade deixada ao administrador quando a lei não regula de maneira completa a sua conduta; as decisões tomadas dentro dessa margem não seriam sindicáveis pelo Judiciário. Alguns autores criticam essa noção negativa da discricionariedade; Martin Bullinger fala de um poder discricionário construtivo onde a Administração seria chamada a “aplicar de maneira construtiva as diretrizes legais e transformá-las da mesma forma que pode fazer quando edita regulamentos.”21

Além das situações em que a lei deixa ao administrador, de maneira explícita, a escolha entre dois ou mais comportamentos, a doutrina, já no século XIX, sobretudo na Áustria22, levantou o problema das noções ou conceitos jurídicos indeterminados tais como “interesse público”, “moralidade”, “utilidade”, “imperativo de ordem econômica”, que aparecem freqüentemente no texto legal como sendo o motivo ou a finalidade de um ato administrativo. Tais conceitos confeririam também um poder discricionário à Administração ou suscitariam apenas um problema de interpretação - como, aliás, os conceitos jurídicos em geral -, passível de ser inteiramente resolvido pelo juiz? Alguns autores, adotando essa última posição, refutaram com veemência a existência de discricionariedade na

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aplicação dos conceitos jurídicos indeterminados23. Na França, essa questão aparece na doutrina e na jurisprudência como a da qualification juridique des faits, não se podendo esquecer que o Conseil d’État, no arrêt Gomel aceitou realizar um controle “normal”, isto é, total, do conceito de “perspectiva monumental.”24 Na Alemanha, Otto Bachof formulou a teoria da “margem de livre apreciação”, que recusa ao Judiciário um controle total sobre os conceitos jurídicos indeterminados; a Administração disporia nesses casos não de uma liberdade completa, mas de uma margem de apreciação subtraída ao controle judicial25. No Brasil, Celso Antônio Bandeira de Mello considera também que a Administração goza de certa liberdade na aplicação dos conceitos jurídicos indeterminados, mas se trata efetivamente de uma margem, para além da qual haveria violação da lei. Afirma o autor brasileiro que a palavra é um signo e que este supõe um significado; mesmo os conceitos indeterminados e imprecisos teriam um conteúdo mínimo indiscutível: De qualquer deles se pode dizer que compreendem uma zona de certeza positiva, dentro da qual ninguém duvidaria do cabimento da aplicação da palavra que os designa e uma zona de certeza negativa em que seria certo que por ela não estaria abrigada. As dúvidas só têm cabida no intervalo entre ambas.26

O citado autor abraça a noção de redução da discricionariedade diante do caso concreto. O legislador confere discricionariedade à Administração para que, diante do caso concreto, ela possa escolher a solução ótima para realizar o interesse público. A discricionariedade existente na norma, in potentia, pode se ver reduzida ou mesmo deixar de existir diante da situação concreta, que eliminaria uma parte das opções abstratamente consideráveis para só permitir uma ou algumas soluções juridicamente possíveis. Com efeito, é certo que a lei não assume indiferença quanto ao advento, nos vários casos concretos, ora de soluções ótimas, ora de soluções sofríveis ou mesmo ruins, pois, se assim fosse, haveria sido redigida em termos de vinculação absoluta. Se não prefigurou vinculação foi exatamente porque não se satisfez com isto e não aceita senão a providência que lhe atenda excelentemente os objetivos [...] Logo, discrição administrativa não pode significar campo de liberdade para que o administrador, dentre as várias hipóteses abstratamente comportadas pela norma, eleja qualquer delas no caso concreto[...] Está-se afirmando que a liberdade administrativa, que a discrição administrativa, é maior na norma de Direito do que perante a situação concreta.27 Não obstante, tanto no caso dos conceitos jurídicos indeterminados como naquele em que a lei oferece ao administrador duas ou mais opções, Celso Antônio reconhece limites que se imporiam ao juiz: Ora, o ser humano não é omnisciente. Sua aptidão para desvendar a solução que satisfaria idealmente a finalidade legal é limitada, é finita. Uma vez que a inteligência humana é finita – e, portanto, não pode desvendar tudo – também não pode identificar sempre, em todo e qualquer caso, a providência idônea para atender com exatidão absoluta a finalidade almejada pela regra aplicanda, dado que pelo menos dois pontos de vista divergentes seriam igualmente admissíveis. Disso resulta a impossibilidade de eliminar o subjetivismo

quanto à superioridade de algum deles em relação aos outros [...] Em suma, a providência ideal em muitas situações é objetivamente incognoscível. Poder-se-á tão somente saber que será uma que se contenha dentro de um número limitado de alternativas e que se apresente como razoável no caso concreto.28 Um controle igualmente limitado do poder discricionário é aquele que resulta, em vários países, da aplicação de princípios gerais do Direito que permitem afastar abusos na interpretação das normas jurídicas. É o caso do princípio da proporcionalidade na Alemanha ou o da razoabilidade na Inglaterra. É também o controle restreint ou minimum da discricionariedade que se permite o juiz administrativo francês no quadro da jurisprudência do erreur manifeste d’appréciation e do bilan coût-avantages29, considerada por alguns como expressão do mesmo princípio da proporcionalidade.30

Por fim, ao tempo em que também reconhece limites ao controle jurisdicional sobre o exercício do poder discricionário e sobre a aplicação dos conceitos jurídicos indeterminados pela Administração, Germana de Oliveira Moraes afirma que esse controle é sempre possível no direito brasileiro em face dos princípios constitucionais da Administração Pública (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência) e igualmente dos princípios gerais do Direito da razoabilidade e da proporcionalidade.31

Veremos, contudo, que os tribunais brasileiros demonstram alguma resistência em controlar, ainda que de forma limitada, o poder discricionário da Administração.

4.2. Uma jurisprudência excessivamente prudente...

No Brasil, a jurisprudência dominante mostra-se muito cautelosa no que concerne à possibilidade de controlar a Administração no exercício do seu poder discricionário, e mormente em apreciar o mérito do ato administrativo.32 Exemplo dessa jurisprudência restritiva, referido por Germana de Oliveira Moraes, é dado por uma decisão do Supremo Tribunal Federal, de 1990, em matéria de punição disciplinar; a corte considerou que, em razão do princípio da separação dos poderes, ela não poderia apreciar “a adequação, a utilidade, a oportunidade e a necessidade da punição.” 33 Pode-se lamentar que o princípio da proporcionalidade, freqüentemente invocado pelo Supremo no controle da constitucionalidade das leis, não seja aplicado mais amiúde no controle dos atos administrativos. A jurisprudência parece não ter ainda tirado todas as conseqüências da aplicação dos princípios constitucionais ao controle da discricionariedade administrativa. Com efeito, as fronteiras da “legalidade” foram razoavelmente ampliadas em face da previsão, pela Constituição, de alguns princípios a cuja observância a Administração está adstrita (art. 37), notadamente o da moralidade e o mais novo, introduzido pela Emenda Constitucional nº 19/98, da eficiência. Tais princípios representam, inegavelmente, novos limites impostos à Administração na apreciação da conveniência e oportunidade do ato administrativo. O princípio da moralidade mostra-se particularmente importante na defesa do patrimônio público; sua constitucionalização

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pode ser considerada como o coroamento da teoria do détournement de pouvoir, no sentido em que objetiva impedir que o agente público utilize suas competências para obter finalidade diversa daquela pretendida pela lei. Em matéria ambiental, alguns autores chamaram a atenção para um desenvolvimento insuficiente do controle jurisdicional da discricionariedade administrativa, particularmente no âmbito da ação civil pública.34 Nesses casos, as ações do Ministério Público objetivam com freqüência a anulação de uma licença ambiental. Trata-se de um campo difícil do controle jurisdicional, ligado ao conceito de discricionariedade técnica. De um lado, o caráter técnico de uma noção (como “impacto ambiental”) reduz a subjetividade em sua apreciação, tornando mais fácil a intervenção do juiz; de outro, a Administração está melhor posicionada que o juiz para realizar essa apreciação, em razão dos recursos humanos e materiais de que dispõe. Ademais, em matéria de proteção ambiental, para além mesmo das questões técnicas, a Administração é levada a fazer apreciações que assumem a forma de uma arbitragem entre os interesses privados e o interesse público. Martin Bullinger considera que as competências técnicas da Administração podem justificar que se lhe permita uma margem maior de liberdade, subtraída mesma ao controle judicial. Com efeito, ele considera lamentável que depois de anos de um procedimento administrativo, durante o qual quase todos os peritos disponíveis se manifestaram, submeta-se a novo controle o licenciamento de uma central nuclear, quanto às suas condições legais, em todos os detalhes, com direito a perícias – realizadas em parte pelos mesmos profissionais – e durante outro longo período.35

O autor, que advoga uma maior reserva do juiz em face do poder discricionário, levanta um aspecto fundamental ao considerar que a questão decisiva é de saber se a organização e o procedimento do organismo administrativo tecnicamente competente apresentam as garantias necessárias para que a avaliação da situação concreta seja realizada de maneira completa e imparcial.36

Tais considerações correspondem muitas vezes à realidade da ação civil pública na defesa do meio ambiente. São freqüentes as ações que questionam a forma de um procedimento ambiental, como a ausência do estudo de impacto ou suas insuficiências; no entanto, atendidas que sejam as formalidades pela Administração, dificilmente a Justiça tem proferido, por exemplo, a anulação da licença de instalação de uma fábrica. É por essa razão, em face de tais limites do controle jurisdicional, que o Ministério Público ombudsman do meio ambiente deve buscar reforçar a autenticidade e a imparcialidade de certos procedimentos administrativos, especialmente do estudo de impacto ambiental (EIA). Por fim, nas questões concernentes à proteção ambiental, é desejável uma distinção mais rigorosa entre o problema da exatidão material dos fatos – integralmente controlável pelo juiz – e o outro respeitante ao valor atribuído a esses fatos ou à ponderação que eles possam suscitar.

4.3. A questão das obrigações de fazer

Além das ações civis públicas visando à anulação de um ato ou à imposição de uma obrigação de não fazer, como são freqüentemente aquelas ligadas à defesa do patrimônio público e do meio ambiente, as obrigações de fazer que o juiz, na ação civil pública, pode impor à Administração, suscitaram especialmente o debate sobre os limites da intervenção judicial derivados da discricionariedade administrativa. A análise do problema em função da natureza da obrigação de fazer pode ser útil em revelar as possibilidades e dificuldades dessas ações.

4.3.1. As obrigações de fazer no campo da atividade prescritiva

Com freqüência a ação civil pública objetiva impor à Administração uma obrigação de fazer ligada ao exercício do seu poder normativo ou prescritivo37. Poder-se-ia pensar que as maiores dificuldades residiriam nesse tipo de demanda, uma vez que o exercício do poder de polícia administrativa, geral ou especial, implica muitas vezes em apreciações discricionárias. No entanto, a jurisprudência tem se mostrado receptiva a ações dessa espécie, que têm grande importância na defesa dos interesses difusos e coletivos. Uma decisão do STJ confirmou, em ação civil pública, a obrigação imposta à Administração de fiscalizar a utilização do solo urbano e de se valer da auto-executoriedade do ato administrativo para fechar estabelecimentos comerciais irregularmente instalados. O Tribunal asseverou então: O agente público está adstrito ao princípio da legalidade, não podendo dele se afastar por razões de conveniência subjetiva da Administração. Por conseguinte, não há na espécie violação do princípio da separação dos poderes.”38 Ainda no domínio da atividade prescritiva, pode-se destacar, pela dificuldade que apresentam, as ações civis públicas concernentes à proteção do patrimônio histórico e cultural. O tombamento de imóveis e sítios em função de seu valor histórico se faz por ato da Administração, segundo as disposições, na esfera federal, do Decreto-lei 25/37; o problema é o de saber se seria possível um tombamento judicial, isto é, se o juiz, no quadro da ação civil pública, pode determinar a proteção especial de um sítio ou imóvel. Pode ser útil aqui a teoria da “margem de livre apreciação”, aplicada aos conceitos jurídicos indeterminados (como a noção de “valor histórico e cultural”). Nesse caso, o controle judicial seria destinado a evitar abuso da Administração consistente em não tombar. Embora fosse compreensível que o juiz hesitasse quanto ao valor histórico, e conseqüente necessidade de proteção, da calçada da Praia de Copacabana, revestida de pedras portuguesas, a dúvida não poderia ter lugar em se tratando da proteção do Cristo Redentor! Nada obstante, a noção de “patrimônio histórico, artístico ou cultural” parece demandar resposta mais elaborada. A doutrina já tentou estabelecer distinções entre os tipos de conceitos jurídicos indeterminados, o que resultaria em soluções também diferentes no que concerne às possibilidades do controle jurisdicional. Assim, Karl Engish fala de

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conceitos descritivos e normativos e Walter Schmidt de conceitos cuja indeterminação adviria das “incertezas condicionadas pela linguagem” ou das “incertezas de avaliação da situação concreta.”39 Garcia de Enterría, por sua vez, sustenta que a indeterminação de certos conceitos não implica indeterminação na sua aplicação à situação concreta: ou há boa-fé ou não há, ou o administrador agiu com probidade ou não.40 Dessa forma, consideramos que o conceito de valor histórico é daqueles que permitem uma razoável certeza diante da maior parte das situações; a zona de certeza positiva, antes referida, seria aqui suficientemente larga para atribuir ao juiz um controle total. Nesse sentido, Victor Nunes Leal afirma que “a atribuição de valor histórico ou artístico a um bem não é, pois, atividade discricionária, porque não envolve apreciação de conveniência e oportunidade.”41

4.3.2. As obrigações de realizar atividades materiais

Algumas ações civis públicas tencionam impor à Administração aquilo que doutrina e jurisprudência já chamaram, de modo algo impreciso, de realização de atividades materiais ou de fatos concretos. São ações mais ou menos freqüentes por meio das quais o Ministério Público objetiva, por exemplo, a construção de uma escola ou de uma estação de tratamento de esgotos, a restauração de um monumento histórico etc. Tais ações situam-se muitas vezes no campo da prestação de serviços públicos. É bastante freqüente serem ajuizadas ações civis públicas em face de um ente estatal qualquer que significam, na prática, a imposição de uma destinação específica dos recursos públicos. Assim, muitas vezes os autores dessas demandas coletivas, com pretextos os mais variados, pretendem invadir o campo da discricionariedade administrativa. Nesses casos, a demanda será juridicamente impossível.42 A jurisprudência mostra-se também reticente em face desse tipo de postulação: As obrigações de fazer permitidas pela ação civil pública não têm força de quebrar a harmonia e independência dos Poderes [...] As atividades de realização dos fatos concretos pela Administração dependem de dotações orçamentárias prévias e do programa de prioridades estabelecido pelo governante. Não cabe ao Poder Judiciário, portanto, determinar as obras que deve edificar, mesmo que seja para proteger o meio ambiente.43

Deve-se rejeitar a generalidade com que são feitas tais formulações. Primeiramente, a realização de atividades materiais e notadamente de obras públicas será possível, no quadro da ação civil pública, sempre que se tratar da reparação de um dano causado pela Administração aos interesses protegidos pela LACP (meio ambiente, patrimônio histórico etc). Não há nesse caso que falar em prioridade na aplicação dos recursos públicos: a obrigação inscreve-se no campo da responsabilidade civil do Estado que, em matéria de interesses difusos, apresenta especificidades, como o imperativo da reparação in natura ou específica. Por outro lado, o fato de a obrigação imposta

à Administração implicar na realização de uma despesa não pode evidentemente constituir um critério: é uma conseqüência da maior parte das decisões judiciais. A ação civil pública intentada no campo das relações de consumo, para impedir a majoração ilegal das tarifas, pode sem dúvida ter conseqüências mais relevantes sob esse aspecto do que a obrigação imposta a município de construir uma escola primária.44

Por fim, pode acontecer que essa “atividade material” esteja perfeitamente definida em lei; nesse caso, não se poderia falar em discricionariedade.45

Contudo, em alguns casos, o Ministério Público pretende impor à Administração uma obrigação de fazer que não está explicitamente prevista na lei e que não se pode tampouco considerar como derivada da responsabilidade civil do Estado. São medidas relacionadas a uma competência administrativa geral de assegurar o funcionamento dos serviços públicos, como a construção de uma escola ou a realização de melhorias num hospital. As ações com esse tipo de objeto seriam a priori inviáveis? José dos Santos Carvalho Filho enfrenta a questão: Apesar da inegável dificuldade na demarcação, temos entendido que o pedido, principalmente no caso de se tratar de uma obrigação de fazer ou não fazer, é juridicamente possível quando estiver preordenado a determinada situação concreta, comissiva ou omissiva, causada pelo Estado, da qual se origine a violação de interesses coletivos ou difusos. Em contraposição, não se pode considerar possível juridicamente o objeto da ação se o autor postula que a decisão judicial, acolhendo sua pretensão, condene o Poder Público ao cumprimento, de forma genérica, abstrata, inespecífica e indiscriminada, de obrigação de fazer ou não fazer.46

Com efeito, situações há em que se mostra possível a imposição desse tipo de medida à Administração, sem que haja ofensa ao princípio da separação dos poderes. Aqui, devemos nos socorrer da noção já estudada de redução do poder discricionário diante do caso concreto. A discricionariedade existente na norma pode não subsistir na situação concreta; diante desta, pode existir somente uma solução capaz de realizar o interesse público, estando o juiz autorizado a obrigar a Administração a adotá-la. É assim que a realização de obras de reparação numa escola, cujo estado de precariedade ameace a vida dos estudantes, pode constituir, no leque de competências e possibilidades de que dispõe a Administração, a única medida conforme ao interesse público. A noção de redução da discricionariedade diante do caso concreto, passível de ser manejada no controle jurisdicional da Administração como um todo, deixa contudo subsistir algumas dificuldades quando se trata da imposição de obrigação de realizar atividades materiais, e isso em função da natureza forçosamente limitada dos recursos financeiros e materiais do Estado. Este último não pode, de fato, prover de maneira ótima todas as demandas da coletividade, muitas das quais apresentam o mesmo caráter de necessidade; por isso a atividade administrativa é sempre o resultado de prioridades estabelecidas pelos governantes, aspecto que a jurisprudência citada põe em relevo. As melhorias no hospital, com a aquisição de ambulâncias novas, podem aparecer como a única medida, no caso

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concreto, conforme ao interesse público, mas podem sofrer a concorrência de outras demandas igualmente fundamentais, como a exemplificada reforma do prédio escolar. Poderia o juiz impor medida que, no fundo, dada a natureza limitada dos recursos orçamentários, constitui-se numa opção?47

Para que a noção de redução do poder discricionário continue operacional no caso de obrigação de realizar atividades materiais, particularmente quando estas implicam em despesas, é preciso que o juiz considere de maneira bastante objetiva o interesse público eventualmente existente na providência solicitada. Numa ação civil pública, o Ministério Público Federal requereu a condenação do Estado do Acre à obrigação de realizar concurso público e prover todas as vagas existentes em suas polícias militar e civil, algo em torno de mil vagas. Ora, pode-se estimar que, por mais que a medida pareça benéfica e conforme ao interesse público, ela não apresenta o caráter de imprescindibilidade que permitiria a sua imposição pelo Judiciário; acaso se considerem todas as necessidades do Estado e da coletividade, tal medida, pelo menos na extensão em que foi requerida, aparece mais como uma escolha política do que como a única solução prescrita pelo interesse público.48,49

Apesar das dificuldades, não se deve descartar a possibilidade de imposição de obrigações de fazer dessa natureza, aplicando-se a noção de redução do poder discricionário diante do caso concreto; o juiz deve notadamente apreciar a omissão da Administração em face dos princípios gerais do Direito da razoabilidade e da proporcionalidade.

Notas e Referências

1. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação popular. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 240.2. As ações populares, freqüentemente destinadas à proteção do interesse público, existiram no Brasil antes da República e só reapareceram em 1965. Comentando a sua desaparição do cenário jurídico, Paulo Barbosa de Campos Filho asseverou, em 1939: [...] desapareceram do direito civil moderno as ações populares, cujo objeto, em parte, entrou para a esfera do direito criminal, passando a constituir matéria de prescrições policiais, em parte converteu-se em direito pertencente aos indivíduos, quando são estes diretamente lesados, e em parte constitui direito das coletividades, como pessoas jurídicas de direito público[...]” (Ensaio sobre a ação popular. São Paulo: Saraiva, 1939 apud MANCUSO, op. cit., p. 54)3. Na esteira do exemplo cogitado, observe-se que o CDC, no seu artigo 102, dispôs: Os legitimados a agir na forma deste Código poderão propor ação visando compelir o Poder Público competente a proibir, em todo o território nacional, a produção, divulgação, distribuição ou venda, ou a determinar a alteração na composição, estrutura, fórmula ou acondicionamento do produto, cujo uso ou consumo regular se revele nocivo ou perigoso à saúde pública e à incolumidade pessoal.”4. CAPPELLETTI, Mauro. Juizes legisladores ? Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1999, p. 60. Cappelletti busca estabelecer as causas do ganho de importância da função jurisdicional no século XX (o fenômeno do Big Judiciary, ao lado do Big Government e do Big Business). Elas seriam: o advento do Estado-providência e o papel transformado da jurisdição que dele resulta, uma vez que deverá tornar efetivos os direitos econômicos e sociais; as declarações nacionais e internacionais de direitos fundamentais, com seu caráter de abstração; o fenômeno das ações coletivas no quadro da defesa dos interesses difusos e coletivos. 5. GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas tendências da tutela jurisdicional dos interesses difusos. Revista do Curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, n° 13, 1984, p. 3 apud MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 92.6. Ibid., p. 3. 7. ZANUTTIGH apud MANCUSO, 2000, p. 123, tradução nossa.8. MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança, ação popular, ação civil pública... 25ª ed. Atualizada por Arnoldo Wald e Gilmar Ferreira Mendes. São

Paulo: Malheiros, 2003. Ver especialmente a terceira parte, capítulo 10, “A recente evolução da ação civil pública. Usos e abusos. Análise de sua patologia.”9. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ação Civil Publica. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2001, p. 85. No mesmo sentido, cf. FRONTINI, Paulo Salvador. Ação civil pública e separação dos poderes do Estado. In: MILARÉ, Édis (Coord.). Ação Civil Pública : Lei 7.347/85 – 15 anos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 668-706. 10. MEIRELLES, op. cit., p. 164.11. STF, Conflito de Atribuições nº 35-1/RJ, 2/12/1987, Rel. Min. Sidney Sanches. Na mesma decisão, o Ministro Francisco Rezek caricaturou: “Figuro a situação seguinte: amanhã o Curador de Interesses Difusos, no Rio de Janeiro, dirige-se a uma das Varas Cíveis da Capital, com toda a forma exterior de quem pede a prestação jurisdicional, e requer ao Juiz que, em nome do bem coletivo, exonere o Ministro da Fazenda e designe em seu lugar outro cidadão, cujo luminoso curriculum viria anexo.”12. Uma ação civil pública intentada pelo Ministério Público Federal em Pernambuco resultou na interdição da circulação de caminhões no perímetro tombado de Olinda. Ora, podemos pensar que essa obrigação de não fazer surge somente quando se admite, no cenário jurídico, a proteção do interesse difuso à preservação do patrimônio histórico. Seria um reflexo da LACP no campo do direito propriamente substantivo.13. O CDC, no seu artigo 84, estabelece que “na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.” Cf. também o artigo 461 do Código de Processo Civil.14. PASSOS, Lidia Helena Ferreira da Costa. Discricionariedade administrativa e Justiça ambiental: novos desafios do Poder Judiciário nas ações civis públicas. In: MILARÉ, Édis (Coord.). Ação Civil Pública : Lei 7.347/85 – 15 anos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 467. A autora critica decisão em matéria ambiental em que a Justiça, instada a interditar uma indústria poluente, entendeu necessária a prévia fixação técnica e legal dos índices de tolerabilidade de degradação de cada ambiente, para cada atividade poluidora. (p. 461)15. Temos em mente aqui a eficácia jurídica dessas normas, sua aptidão a produzir efeitos no mundo jurídico, e não sua eficácia social, isto é, a sua efetiva aplicação na sociedade. A distinção, é verdade, constitui já um pressuposto! O sociologismo jurídico, com Duguit, fazia depender a validade jurídica das normas de sua eficácia social... mesmo em Kelsen, a validade não independe totalmente de uma “eficácia global” do sistema. Com efeito, afirma o jurista: “A afirmação de que uma norma é válida e a afirmação de que é eficaz são, na verdade, duas afirmações diferentes. Mas, apesar de validade e eficácia serem dois conceitos inteiramente diversos, existe, contudo, uma relação muito importante entre os dois. Uma norma é considerada válida apenas com a condição de pertencer a um sistema de normas, a uma ordem que, no todo, é eficaz. Assim, a eficácia é uma condição de validade; uma condição, não a razão da validade.” (KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 46.)16. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 138. Poderíamos qualificar de programáticas várias disposições contidas no título VIII da Constituição Federal (Da ordem social), como, por exemplo, o artigo 215: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.”17. NATOLI, U. Limiti constituzionali dell’autonomia privada nel repporto di lavoro. Milan: Giuffrè, 1955, p. 29-30 apud SILVA, op. cit., p. 156. 18. SILVA, op. cit., p. 120. Como exemplo de princípio constitucional, pode-se lembrar a dignidade da pessoa humana, inscrita no artigo 1º da Constituição.19. No sentido por nós criticado: FRONTINI, op. cit., p. 692.20. Serge Guinchard menciona ação de grupo intentada na França por uma associação (a Liga contra a violência no trânsito) contra campanha publicitária da Citroën que louvava a “alta velocidade” dos seus veículos. O problema é parecido com o de algumas ações civis públicas no Brasil. Na ausência de uma disposição legislativa ou regulamentar específica, o juiz poderia proibir a campanha, mediante a aplicação de um princípio constitucional como o direito à vida e à segurança? A resposta da Justiça francesa foi negativa. (L’action de groupe en procédure civile française. Revue internationale de droit comparé, 1990, 2, p. 621) De acordo com o que acabamos de expor, tal providência se nos afigura plenamente factível no direito brasileiro.21. Le pouvoir discrétionnaire de l’administration en République fédérale d’Allemagne. Revue française de droit administratif, 4 (4), juill.-août 1988, p. 689, tradução nossa. No mesmo sentido, cf. VENEZIA, Jean-Claude. Le pouvoir discrétionnaire. Paris: LGDJ, 1958. O autor francês, inspirado pela teoria da instituição de Maurice Hauriou, e notadamente pela noção de idée d’entreprise, afirma o caráter de empresa da Administração Pública, do qual esta retiraria sua autonomia e seu poder discricionário.

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22. Com a polêmica entre Bernatzik e Tezner, referida por Bullinger.23. O alemão Hans Rupp considerou os conceitos jurídicos indeterminados o “cavalo de Tróia” do Direito Administrativo, perigosos para o Estado de Direito, defendendo “a vinculação total da Administração à lei e a sua subordinação, no que concerne à interpretação e aplicação de conceitos legais indeterminados, a um controle jurisdicional igualmente total.” (apud MORAES, Germana Oliveira de. Controle jurisdicional da administração publica. São Paulo: Dialética, 1999, p. 68) O espanhol E. Garcia de Enterría combate também a idéia de que os conceitos jurídicos indeterminados conferem à Administração uma margem de discricionariedade. Sustenta que tal margem só existe de maneira abstrata, desaparecendo diante das situações concretas, que permitiriam sempre dizer se existe ou não “urgência”, ou se o perigo é ou não “grave”; tratar-se-ia de uma questão de interpretação, definível, como qualquer outra, pelo Poder Judiciário. (apud MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e controle jurisdicional. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 22)24. LONG, M. et al. Les grands arrêts de la juriprudence administrative. Paris: Dalloz, 2001, p. 172. A jurisprudência do Conseil d’État distingue o controle jurisdicional normal do controle restreint ou minimum, sendo que somente neste último o juiz reconhece ao administrador alguma margem de discricionariedade.25. MORAES, Germana Oliveira de. Controle jurisdicional da administração publica. São Paulo: Dialética, 1999, p. 67.26. Discricionariedade e controle jurisdicional. São Paulo: Malheiros, 1996, p 29.27. Ibid., p. 33 e 36, grifos do autor.28. Ibid., p. 43, grifos do autor.29. Mesmo ao reconhecer uma margem de discricionariedade, o Conseil d’État anulará o ato administrativo se considerar ter havido, por parte do administrador, um “erro manifesto de apreciação.” (CE, Ass. 20 mars 1968, Société du lotissement de la plage de Pampelonne). No “balanço custos-benefícios”, o Conseil já se permitiu, numa ação de desapropriação, ponderar, de um lado, os eventuais benefícios para a coletividade e, do outro, a gravidade da ofensa ao direito de propriedade, o custo financeiro e os inconvenientes sociais da medida. (CE, 28 mai 1971, Ville Nouvelle Est). Cf. LONG, M. et al, op. cit., p. 636 e 623.30. Cf. BRAIBANT, Guy. Le principe de proportionnalité. In: Mélanges ofertes à Marcel Waline. Paris: 1974; FROMONT, Michel. Le principe de proportionnalité. AJDA, 20 juin 1995, spécial; PHILIPPE, Xavier. Le contrôle de proportionnalité dans les jurisprudences constitutionnelle et administrative françaises. Aix-Marseille: Econômica, 1990.31. Op. cit., p. 176.32. Essa jurisprudência apóia-se em grande parte nos trabalhos de Seabra Fagundes sobre o poder discricionário. Segundo esse autor, “ao Poder Judiciário é vedado apreciar, no exercício do controle jurisdicional, o mérito dos atos administrativos. Cabe-lhe examiná-los, tão-somente, sob o prisma da legalidade. Este é o limite do controle quanto à extensão. O mérito está no sentido político do ato administrativo. É o sentido dele em função das normas de boa administração[...] Compreende os aspectos, nem sempre de fácil percepção, atinentes ao acerto, à justiça, eqüidade, razoabilidade, moralidade etc. de cada procedimento administrativo. Estes aspectos, muitos autores os resumem no binômio: oportunidade e conveniência. Envolvem interesses e não direitos.” (O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. Rio de Janeiro: Forense, 1967, p. 148) 33. STF, MS nº 20999, 21/03/90.34. PASSOS, Lidia Helena Ferreira da Costa. Op. cit. 35. Op. cit., p. 686, tradução nossa.36. Ibid., p. 687.37. Alguns exemplos: ações que visam a obrigar a Administração a regulamentar leis; as que pretendem impor à Administração uma obrigação de proibir, de maneira geral, uma atividade qualquer, como o fumo em aeronaves ou a comercialização de jogos de carta de RPG (role playing game) considerados nocivos para os menores; as que querem obrigar a Administração a fiscalizar certas atividades, como a afixação correta dos preços dos produtos pelos supermercados.38. STJ, AGRMC 200101166240, DJ de 04/02/2002, Rel Min Laurita Vaz. No mesmo sentido: STJ, RESP 124714, 22/08/2000, Rel. Min. Peçanha Martins. Uma decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região confirmou igualmente a obrigação imposta à União de adotar os atos administrativos necessários à regularização das terras indígenas Wapixana, Makuxi e Taurepang. (TRF 1, REO 199601087320, DJ de 15/10/99, Rel. Mário César Ribeiro)39. MORAES, op. cit., p. 60-61.40. Ibid., p. 62.41. Apud PASSOS, Lidia Helena Ferreira da Costa, op. cit., p. 460. A autora cita ainda decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo no sentido de que a exigência de manifestação legislativa ou administrativa para se reconhecer o valor histórico ou paisagístico de um bem equivaleria a deixar “ao exclusivo alvedrio da administração municipal a preservação de locais que tenha por merecedores de conservação... A questão diz respeito aos próprios interesses da comunidade...este interesse não é restrito, nem poderia ser, apenas a alcaides ou a vereadores. Não pode ser

jungido aos anseios, objetivos e apego dos governantes municipais.” (TJESP, Ap. Cível 112.282-1, 28/06/1989); numa outra decisão, o mesmo Tribunal asseverou que “a identificação do valor artístico ou estético não emerge da mera criação da autoridade administrativa, existe no plano da vida.” (TJESP, Ap. Cível 95.285-1, 28/03/1988)42. DINAMARCO, Pedro da Silva. Ação civil pública. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 190.43. STJ, RESP 169876, DJ de 21/09/1998, Rel. Min. José Delgado. No mesmo sentido: STJ, AGRESP 252083, DJ de 26/03/2001, Rel. Min. Nancy Andrighi; STJ, AGA 199700093239, DJ de 17/11/1999, Rel. Min. José Delgado.44. Consideramos que toda obrigação de fazer imposta pelo juiz, em qualquer tipo de processo, obriga a Administração independentemente da existência de previsão orçamentária. Foi a posição adotada por Eros Roberto Grau. (Despesa pública – conflito entre princípios e eficácia das regras jurídicas – o princípio da sujeição da administração às decisões do Poder Judiciário e o princípio da legalidade da despesa pública. Revista trimestral de direito público, 2/1993, p. 130-148.)45. Álvaro Luiz Valery Mirra afirma que a Constituição do Estado de São Paulo prevê explicitamente a obrigação de tratar os esgotos domésticos e, portanto, a existência de estações de tratamento. (Limites e controle dos atos do Poder Público em matéria ambiental. In: MILARÉ, Édis (Coord.). Ação Civil Pública : Lei 7.347/85 – Reminiscências e Reflexões após dez anos de aplicação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 28-61)46. Op. cit., p. 81, grifos do autor.47. O STJ já decidiu que “o juiz não pode substituir a Administração Pública no exercício do poder discricionário. Assim, fica a cargo do Poder Executivo a verificação da conveniência e da oportunidade de serem realizados atos de administração, tais como a compra de ambulâncias e de obras de reforma de hospital público. O princípio da harmonia e independência entre os Poderes há de ser observado, ainda que, em tese, em ação civil pública, possa o Município ser condenado a obrigação de fazer.” (AGRESP, 252083, DJ de 26/03/2001, Rel. Min. Nancy Andrighi)48. Numa ação semelhante intentada contra o Estado de Santa Catarina, o TRF da 4ª Região suspendeu a liminar concedida considerando que “a organização e distribuição do efetivo policial nos municípios é atividade atrelada a critérios de eleição privativa do Executivo Estadual. Ante a reconhecida limitação da capacidade estrutural e financeira do Estado, a substituição, por provimento jurisdicional, dos critérios de necessidade e premência sobre a distribuição das forças de seu contingente policial pode comprometer a segurança pública.” (AGVSEL 200104010573827, DJ de 12/09/2001, Rel Min Teori Albino Zavascki) 49. Esse raciocínio pode ser associado àquele de Celso Antônio Bandeira de Mello ao tratar da responsabilidade civil do Estado. A Constituição da República, no seu artigo 37, §6º, estabelece a responsabilidade objetiva do Estado pelos danos causados, em serviço, por seus agentes. Baseado nos trabalhos de seu pai Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, esse autor advoga que, em se tratando de danos ocasionados em razão de uma omissão estatal, subsistiria no Direito Administrativo brasileiro a responsabilidade subjetiva do Estado, na modalidade da “culpa do serviço” (faute du service). Interessam à nossa temática os parâmetros que indica para se aferir eventual responsabilidade por omissão, que poderiam ser utilizados quando se cogitasse da imposição das obrigações de fazer, no âmbito da ação civil pública. “É necessário que o Estado haja incorrido em ilicitude, por não ter acorrido para impedir o dano ou por haver sido insuficiente nesse mister, em razão de comportamento inferior ao padrão legal exigível. Não há resposta a priori quanto ao que seria o padrão normal, tipificador da obrigação a que estaria legalmente adstrito. Cabe indicar, no entanto, que a normalidade da eficiência há de ser apurada em função do meio social, do estádio de desenvolvimento tecnológico, cultural, econômico e da conjuntura da época, isto é, das possibilidades reais médias dentro do ambiente em que se produziu o fato danoso. Como indício destas possibilidades há que levar em conta o procedimento do Estado em casos e situações análogas e o nível de expectativa comum da sociedade (não o nível de aspirações) [...]” (Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 586-587, grifos do autor)

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FRAUDE À LEI EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA.

Marcus Vinícius Lima FrancoEspecialista em Direito Tributário (Universidade Católica de Brasília)

Advogado da União com atuação na Procuradoria da União em Sergipe

6 FRAUDE À LEI EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA.

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1 INTRODUÇÃO

ETIMOLOGIA, NOÇÃO E ESTRUTURA DA FRAUDE À LEI

Etimologicamente fraude deriva do latim fraus, frau-dis (engano, má-fé, logro), entende-se geralmente como engano malicioso ou ação astuciosa, promovidos de má-fé, para ocultação da verdade ou fuga ao cumprimento do dever. Segundo Aurélio1: “fraude. (Do lat. Fraude.) S. f. 1. V. logro (2). 2. Abuso de confiança; ação praticada de má-fé. 3. Con-trabando, clandestinidade. 4. Fal-sificação, adulteração. (Sin. ger.: defraudação, fraudação, fraudulência.)” Nestas condições, a fraude traz consigo o sentido de “engano”, não como se evidencia no “dolo”, em que se mostra a manobra fraudulenta para induzir outrem à prática de ato, de que lhe possa advir prejuízo, mas o “engano oculto” para furta-se o fraudulento ao cumprimento do que é de sua obrigação ou para “logro de terceiros”. É a intenção de causar prejuízo a terceiros. Assim, a fraude sempre2 se funda na prática de “ato lesivo” a interesses de terceiros ou da coletividade, ou seja, em ato onde se evidencia a intenção de “frustrar-se” a pessoa aos deveres obrigacionais ou legais. É por isso, indicativa de “lesão de interesses” individuais, ou “contravenção” de regra jurídica a que se está obrigado. O dolo é astúcia empregada contra aquele com quem se contrata. Segundo velha lição romana ao fraudulento, aquele que comete fraude, não aproveita o ato lesivo: nemini fraus sua patrocinari potest. Além do sentido de “contravenção à lei”, notadamente fiscal, possui o significado de “contrafação”, isto é, “reprodução imitada”, “adulteração”, “falsificação”, “inculcação” de uma coisa por outra. Aliás, em todas as expressões, está no seu sentido originário de “engano”, “má fé” e “logro”, todos fundados na intenção de “trazer um prejuízo”, com o qual se locupletará o “fraudulento” ou “fraudado”. A fraude fiscal é a contravenção às leis tributárias ou regras fiscais, como objetivo de fugirão pagamento do imposto devido. Ressalte-se, nesse ponto, que a “fraude à lei tributária” não tem qualquer semelhança com a “fraude tributária” tal como tratada em diversos artigos do Código Tributário Nacional (149, VII; 150, § 4º, 154, parágrafo único), e na pró-pria legislação criminal (art. 1º, II e art. 2º, I da Lei nº 8.137/91). A fraude ou defraudação tributária implica necessariamente violação grave e frontal de deveres tributários principais e acessórios, como falsificar documentos livros fiscais, “fazer caixa dois” etc. Nesse sentido, a fraude tributária ou defraudação são típicos fenômenos da evasão de tributos através quase sempre de comportamentos criminosos. Muito diferente é a “fraude à lei tributária” (fraus legis) que a rigor não se configura uma violação frontal ao ordenamento tributário, mas um procedimento

sofisticado pelo qual se busca evitar a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária. Um aspecto da fraude à lei muito interessante, e que respalda sua constitucionalidade e de sua adequação também às regras interpretativas do CTN, é o seguinte: através do procedimento de declaração de fraude à lei tributária, o que equivale à declaração de que o contribuinte dissimulou a ocorrência do fato gerador através de atos ou negócios jurídicos, não se procura corrigir falhas da lei, que deveria ter gravado expressamente determinados atos mas por imperícia ou imperfeição redacional não o fez. Não é isso. Se o problema ocorre com a lei, que efetivamente gravou menos manifestações de capacidade contributiva de que poderia ter feito, e o individuo ou a empresa se aproveitaram desta “lacuna”, então não há que se falar em fraude alguma, não há que se falar em comportamento dissimulado. A fraude à lei supõe que o problema não está na lei, a qual cumpriu o seu papel satisfatoriamente: o problema está é na atuação fraudulenta do sujeito passivo (lembrando mais uma vez que nem todas as atuações que buscam exclusivamente economias fiscais são ipso facto fraudulentas). Assim, a técnica da fraude à lei tributária não é uma solução à imperfeições da lei, mas um instrumento excepcional que resulta necessário para assegurar a plena aplicação da lei tributária, por mais perfeita que seja. Pertinente trazer à colação a lição do eminente Ministro Moreira Alves3, que esclarece que: No direito romano já se fazia a distinção entre os atos contra legem e os atos in frudem legis, embora nem sempre os textos romanos sigam essa distinção. Quando se estuda o problema da interpretação das leis, distinguem-se os verba legis da mens legis (e não da mens legislatoris). As verba legis são as palavras de lei, e a mens legis é o espírito da lei, ou seja, aquilo que suas palavras pretenderam exprimir . Daí, na interpretação da lei examina-se, num primeiro estágio (o da interpretação gramatical ou literal), os verba legis, ou seja, as pala-vras da lei, e num segundo estágio (o da interpretação lógica), a mens legis (o espírito da lei). A mesma distinção é de fazer-se aqui, porque no problema da fraude à lei o que ocorre justamente é isto: observa-se a letra da lei, mas para se alcançar um fim contrário ao espírito da lei. Emprego a palavra lei no sentido amplo, para traduzir norma jurídica, pois, embora sejam raros os exemplos, é possível inclusive ocorrer fraude ao costume. Quando o ato vai contra as palavras e o espírito da lei, é ele contra legem, contrário à lei, em que há a violação direta da lei. Já quando o ato preserva a letra da lei, mas o-fende o espírito dela, o ato é de fraude à lei. É possível, para praticar-se fraude à lei, que haja a utilização de um ato só ou de um complexo de atos. De um ato só, temos vários exemplos. Darei o célebre exemplo de uma Constituição Imperial do Imperador Constantino, que estabeleceu que todas as doações de valor superior a 500 só-lidos precisariam observar o instituto da insinuatio pud acta, ou seja, deviam ser celebradas por escrito e registradas em arquivo público. Então o que se fazia para não se observar essas formalidades era, ao invés de doar para a mesma pessoa 500 sólidos,

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celebrar seis doações cada uma de 100 sólidos. Com isso observavam-se estritamente as palavras da lei: não havia, consi-derando-se esse fracionamento, doação de mais de 500 sólidos. Desrespeitava-se, porém, o espírito da lei, que era justamente o de que toda doação que ultrapassasse o valor de 500 sólidos teria de observar aquelas formalidades. Por vezes, há necessidade de uma conjugação de atos. Temos, por exemplo, o caso e pessoas interpostas para o fim de fraudar à lei. Funcionário público não pode comprar em leilão bem público, então um amigo dele compra em leilão não para ficar com ele, mas com a finalidade posterior de revender esse bem para aquele funcionário público. Conseqüentemente, as palavras da lei foram observadas: ele não comprou em leilão, e sim, de terceiro, mas o espírito da lei foi violado. Assim, temos aqui um complexo de negócios jurídicos que em si mesmos são válidos, mas pela sua reunião passa a ser em fraude à lei. Observam os verba legis, mas ferem a mens legis ou a sententia legis. Temos, portanto, que a fraude à lei é uma espé-cie de gênero violação à lei. Quando é contra legem, há violação direta: quando é in fraudem legis, temos violação indireta. Também nesses casos se trata de ato ou negócio jurídico querido ou de complexo de atos ou negócios jurídicos queridos, havendo coincidência entre a vontade e a sua manifestação, ao contrário do eu ocorre na simulação. Quanto aos elementos de fraude à lei há duas posições doutrinárias: uma que considera que a fraude à lei é sempre objetiva; basta que haja a violação indireta para que, objetivamente, ocorra a fraude à lei. A outra é a subjetiva: a de a violação indireta, que é o objetivo da fraude à lei, decorrer de elemento subjetivo, ou seja, a intenção de fraudar a lei. A teoria objetiva é a mais seguida, porque, pela teoria subjetiva, é preciso que o individuo conheça a lei que está violando, para saber que está infringindo essa lei. Aí, há a dificuldade decorrente do princípio geral de que a ninguém é dado desconhecer a lei. Por essa presunção absoluta, ou melhor, por essa ficção, porque não há, obviamente, ninguém que possa conhecer todas as leis que existem no país, todos se têm como conhecedores da lei, o que implica que se cairá sempre, em última análise, na teoria objetiva, porque o elemento subjetivo existirá por essa presunção. 2. DISTINÇÃO DA FRAUDE À LEI DE FIGURAS AFINS, TAIS COMO ABUSO DE DIREITO, ABUSO DE FORMA, SIMULAÇÃO E DISSIMULAÇÃO.

As doutrinas brasileira e estrangeira demonstram que o conceito de elisão tributária está relacionado ao emprego de formas jurídicas anormais, atípicas, inadequadas a sua finalidade usual, artificiais, na realização do fato imponível. É tradicional a referência à manipulação ou à adaptação do fato imponível como instrumento para atingir vantagem tributária. Diante deste fato, cabe a descrição das modalidades utilizadas na obtenção destas vantagens fiscais. A análise de institutos de direito privado tem correlação direta com a interpretação do parágrafo

único do artigo 116 do Código Tributário Nacional, introduzido pela Lei Complementar nº 104, de 2001. As figuras que aqui serão abordadas se referem a algo que se prende à utilização de meios aparentes para ocultar aquilo que realmente as partes contratantes desejam, ou, então, à utilização de vias indiretas em vez de se utilizarem diretas para alcançarem os fins intentados. São elas o negócio jurídico simulado e dissimulado, o abuso de forma e de direito e, por fim, o negócio jurídico em fraude à lei, o grande objeto desse nosso despretensioso estudo. A diferença entre a chamada “economia de impostos” e a evasão reside na licitude ou ilicitude dos procedimentos ou dos instrumentos adotados pelo indivíduo; por isso e que se fala em evasão legal e evasão ilegal de tributo. Análoga é a lição de Ives Gandra da Silva Martins4 e Antônio Roberto Sampaio Dória5, ao afirmarem que a distinção básica entre elisão (ou economia de impostos) e evasão está na licitude ou ilicitude dos meios empregados pelo indivíduo. Não se discute, é claro, que a fraude ou o artifício para mascarar ou dissimular o fato gerador são espécies do gênero evasão fiscal. Se alguém rasura documentos fiscais, ou registra fatos inverídicos, “notas ou recibos frios”, a ilicitude é evidente. Mas, certamente, há mecanismos menos grosseiros de ocultar ou dissimular os fatos, manipulando esquemas formais não coincidentes com a realidade dos fatos. O problema resvala, em última análise, para a apreci-ação do fato concreto (fato real) e de sua correspondência com o modelo abstrato (forma) utilizado. Se a forma não refletir o fato concreto, ela deve ser desqualificada. A simulação se traduz pela falta de correspondência entre o negócio que as partes realmente estão praticando e a-quele que elas formalizam. As partes querem, por exemplo, rea-lizar uma compra e venda, mas formalizam (simulam) uma doação, ocultando o pagamento do preço. Ou, ao contrário, querem este contrato, e formalizam o de compra e venda, devolvendo-se (de modo oculto) o preço formalmente pago. Em outras palavras, o negócio jurídico simulado é aquele que cria uma aparência que-rida pelas partes. É uma aparência que se cria, com a finalida-de de apenas criá-la, sem se querer ocultar algo que realmente se deseja (simulação absoluta), ou então se cria essa aparência para ocultar o que realmente se deseja (simulação relativa). Na sempre atual doutrina de Clóvis Bevilacqua6, a simulação ocorre se e quando há “uma declaração enganosa da vontade, visando a produzir efeito diverso do ostensivamente indicado”. De acordo com o conceito normativo de simulação, esta ocorre sempre que presentes declarações falsas ou documentos falsos. O negócio simulado é o que tem uma aparência contrária à realidade, ou porque não existe em absoluto ou porque é diferente da sua aparência. No negócio simulado, o defeito pode recair sobre a existência do negócio, sobre a sua natureza, ou sobre as partes, as pessoas contratantes. A doutrina costuma distinguir entre simulação absoluta e relativa. No primeiro caso, o ato é inexistente, não inválido, enquanto que na simulação relativa o ato é mentiroso quanto ao seu conteúdo. Vejamos os exemplos de simulação absoluta e

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relativa citados por Moreira Alves7: ... ocorrendo uma revolução, e havendo a pers-pectiva de confisco dos bens dos anti-revolucionários, um deles celebrar simuladamente – simulação absoluta – contrato de compra e venda com um amigo que não corre esse risco por ser partidário da revolução, tornando-se este aparentemente proprietário da coisa, e não correndo, portanto o risco de tê-la confiscada. Criou-se a aparência sem que se oculte por baixo dela um negócio jurídico que é realmente desejado. ... quando o marido, não podendo fazer doação à sua concubina, simula compra e venda, pois não recebe o preço, para que essa compra e venda, na realidade, oculte uma doação – simulação relativa. Para que haja a simulação é preciso que exista: a) divergência entre a vontade interna e a vontade manifestada; b) a necessidade que o acordo simulatório ocorra entre as partes; e c) objetivo de enganar terceiros estranhos a esse ato simulado. A simulação e a dissimulação são defeitos do negócio jurídico que objetivam burlar a lei ou prejudicar terceiros, procurando alguma vantagem econômica. Apesar de possuírem a mesma finalidade e representarem uma realidade falsa, têm aplicações distintas e significados próprios. Simular significa aparentar algo que não existe enquanto que dissimular significa esconder algo que existe. Na simulação encontramos apenas um componente irreal que se esgota em si mesmo, visando o ato a ser apresentado ao mundo, enquanto que na dissimulação existe um componente irreal para ocultar um componente real, visando um ato a ser escondido. Não há como confundir simulação com dissimulação, que também é chamada de simulação relativa pela doutrina. Desta forma, precisa é a definição trazida pela Lei Complementar nº 104 quando alude a desconsiderar atos que visem “dissimular” a ocorrência de fato gerador ou natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária. Neste sentido Ricardo Mariz de Oliveira8 pontifica: Com efeito, este dispositivo manda desconside-rar os atos ou negócios que aparentem perante o mundo exterior uma realidade falsa, porque a realidade verdadeira, que se constitui no fato gerador e/ou nos elementos constitutivos da obrigação tributária, está ofuscada pelos atos ou negócios dissimulatórios. Sendo assim, como os atos ou negócios dissimulatórios encobrem o fato real, incumbe à auto-ridade administrativa desconsiderá-los para desvendar a verdade, isto é, para trazer a verdade material às luzes claras. Dissimulação ou simulação relativa é a expressão mais correta a ser usada para conferir a lei o intuito desejado. Em matéria tributária, mesmo que tratemos de simulação absoluta, ou simulação propriamente dita, estaremos diante de simulação relativa. Mesmo que o contribuinte simule um ato absolutamente inexistente (simulação absoluta), v.g. ágio de subscrição de capital, ainda assim, para efeitos tributários, estaremos diante de uma dissimulação. No exemplo mencionado há a simulação de um ato inexistente que não encobre qualquer outro ato, portanto simulação absoluta, mas que afeta os elementos constitutivos da

obrigação tributária cujo objeto é o imposto de renda. Neste caso, pode-se notar que há um ato dissimulatório da realidade porque, embora sendo um ato falso que não encubra outro ato real no âmbito privado, no âmbito tributário encobre a realidade representada pela materialidade do fato gerador realmente existente. Portanto, na órbita tributária a simulação da órbita privada é recebida como dissimulação por encobrir a base de cálculo de tributo, no caso, de imposto de renda. O que ocorre é a “relativização” dos atos ou negócios jurídicos particulares em relação ao Fisco. Na verdade, o termo “dissimulação”, em uma das suas acepções, corresponderia à figura da simulação. Como o CTN utiliza ambos os termos em diversos dos seus artigos, o melhor entendimento é aquele segundo o qual o sentido de “dissimular” previsto pelo parágrafo único do artigo 116 do referido Código abrange o “simular”, mas possui abrangência maior que este. A teoria do abuso de forma está calcada na utiliza-ção de forma jurídica “atípica” ou “não comum” para realização de negócio jurídico visando menor incidência fiscal. Esta teoria, originalmente adotada pelo códi-go alemão, nasce da interpretação econômica do direito tributário, onde é possível identificar quatro requisitos para a caracterização do abuso de formas jurídicas: i) adoção de uma forma jurídica não correspondente ao resultado econômico perseguido; ii) obtenção, através da elisão, de um resultado econômico substancialmente idêntico ao que se obteria com a forma jurídica prevista na lei tributária; iii) irrelevância das desvantagens jurídicas da forma elisiva em comparação com a forma jurídica prevista na lei tributária iv) intenção de elidir imposto. Em suma, o abuso de forma poderia ser traduzido como a utilização de forma jurídica não correspondente ao resultado econômico desejado. Para Ives Gandra Martins9 o abuso de formas não encontra acolhida no direito brasileiro face à inexistência de normas legais que levem a sua aplicação. Gilberto Ulhoa Canto10 esclarece com propriedade a aplicação da teoria do abuso de forma: O desacerto da teoria do abuso de formas de direito privado parece evidente. Se as formas são de direito privado e elas não são legitimadas pelas normas desse ramo do direito, então estaremos diante de um caso comum de ilegalidade ou nulidade, pura e simples. Mas, se face ao direito privado tais formas são legítimas, não vemos como se possa acusar alguém de estar cometendo abuso destas formas apenas para efeitos legais. Se o legislador tributário não quiser que as formas de direito privado que forem lícitas e legais em face das normas deste ramo do direito produzam os efeitos que os agentes poderiam ter em vista quando a eles recorrem, o que ele tem a fazer é, simplesmente, dizer que para fins especificamente tributários os atos que segundo o direito privado seriam lícitos e eficazes serão tratados como se fossem atos de natureza idêntica a um modelo predeterminado; ou poderia, ainda, o legislador tributário definir, para fins especificamente fiscais, determinados institutos originados do direito privado de modo substancialmente distinto daquele pelo qual estão definidos nesse departamento do Direito. Desta feita, o abuso de forma está

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intrinsecamente relacionado com os efeitos econômicos do ato praticado e como a intenção do agente. Se a forma utilizada está em desacerto com as normas de direito privado, estamos diante de uma ilegalidade e, portanto, haverá evasão fiscal; se a forma utilizada for legal, cabe ao direito tributário regular as situações em que as condutas serão consideradas não lícitas para efeitos fiscais. Vale lembrar que o abuso de forma é citado na exposição de motivos da Lei Complementar nº 104 como procedimento a ser combatido pela referida lei, apesar de não constar expressamente no corpo do texto legal. O abuso de Direito está intimamente ligado à idéia segundo a qual não há direito ilimitado, e a distinção entre o direito, e a forma pela qual é este exercitado, revelase de notável importância para a caracterização do abuso do direito, e em conseqüência, permite o estabelecimento de limites para o planejamento tributário, a partir dos quais a conduta destinada a evitar, ou reduzir o tributo, caracteriza “fraude fiscal”. Repita-se que a distinção entre o planejamento tributário e a fraude consiste em que no primeiro a conduta é licita, enquanto na fraude fiscal a conduta é ilícita. Não apenas perante o Direito Tributário, mas no próprio âmbito do Direito Civil ou Comercial. Como tal pode ser considerado o uso de fórmulas anômalas, absolutamente inusuais, cuja validade não pode ser razoavelmente sustentada mesmo no âmbito do Direito em que está situada a figura jurídica então deformada. O abuso de direito pode ser definido, portanto, como sendo o exercício egoístico, normal do direito, sem motivos legítimos, com excessos intencionais ou voluntários, dolosos ou culposos, nocivos a outrem, contrário ao critério econômico e social do direito em geral. O certo é que no mundo atual, pós era liberal, o abuso de direito é contrário à tendência socializante do direito, na sua vontade de sempre o direto, qualquer que seja, atender à sua função social. Moreira Alves11 nos ensina que: O Código Civil pretérito não tinha nenhum dispositivo expresso e direto relativo ao abuso de direito. Os autores, em geral, sustentam a sua acolhida por parte do Código Civil pela circunstância de que o art. 160, inciso I, ao dizer que não constitui ato ilícito o exercício regular de um direito reconhecido, dava a entender que o exercício irregular, portanto, abusivo, de um direito reconhecido é abuso de direito. Conseqüentemente, tal Código Civil adotou, contrário senso, a figura do abuso de direito como ato ilícito. O novo Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de ja-neiro de 2002) considera abuso de direito como ato ilícito, assim o caracterizando no art. 187, que se encontra no capítulo concernente aos atos ilícitos: “Comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestadamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.” O novel Código utiliza-se aí, inclusive, de um conceito que encontra emprego bastante amplo nele como cláusula geral, que é o conceito de boa-fé objetiva, que não se confunde com aquela boa-fé subjetiva que nada mais é do que a ignorância de não se estar ferindo

direito alheio ou pelo menos a convicção de que não se estar ferindo direito alheio. A boa-fé objetiva é a boa-fé normativa, ou seja, aquela boa-fé que implica a observância e certos deveres que não são expressos nos atos jurídicos, mas que são secundários ou instrumentais. Por exemplo: nas tratativas para a celebração de um contrato, e, portanto, antes da celebração deste, já há o dever de sigilo com relação ao conhecimento de fatos, por causa dessas tratativas, que digam respeito à outra parte e que possam causar-lhe prejuízo. O novo Código Civil, portanto, não só conceitua, como caracteriza expressamente essa figura como sendo ato ilícito, sofrendo, conseqüentemente, seu autor as sanções decorrentes dos atos ilícitos. Ricardo Lobo Torres12 traz um exemplo brasileiro discutido no antigo Tribunal Federal de Recursos onde, sob a veste de abuso de forma jurídica, os sócios da Grendene criaram 8 sociedades de pequeno porte com o objetivo de manipular o preço das mercadorias aproveitando-se da diferença no regime tributário do tributo federal. O Tribunal desconsiderou o fracionamento da empresa para efeitos de pagamento do imposto de renda, embora não tivesse desconstituído os atos jurídicos. Abaixo o acórdão do TFR: LEGITIMIDADE DA ATUAÇÃO DO FISCO, EM FACE DOS ELEMEMTOS CONSTANTES DOS AUTOS. CONSTITUÍDAS FORAM, NO MESMO DIA, DE UMA SÓ VEZ, PELAS MESMAS PESSOAS FÍSICAS, TODAS SÓCIAS DA AUTORA, 8 (OITO) SOCIEDADES COMO OBJETIVO DE EXPLORAR COMERCIALMENTE, NO ATACADO E NO VAREJO, CALÇADOS E OUTROS PRODUTOS MANUFATURADOS EM PLÁTICO, NO MERCADO INTERNO E NO INTERNACIONAL. TAIS SOCIEDADES, EM DECORRÊNCIA DE SUAS CARACTERÍSTICAS DE PEQUENO PORTE, ESTAVAM ENQUADRADAS NO REGIME TRIBUTÁRIO DE APURAÇÃO DE RESULTADOS COM BASE NO LUCRO PRESUMIDO, QUANDO SUA FORNECEDORA ÚNICA, A AUTORA, PAGAVA O TRIBUTO DE CONFORMIDADE COM O LUCRO REAL. RECONHECE-SE À RECORRENTE, APENAS O DIREITO DE COMPENSAÇÃO DO IMPOSTO DE RENDA PAGO PELAS ALUDIDAS EMPRESAS. REFORMA PRCIAL DA SENTENÇA.13 Assim com o abuso de forma, o abuso de direito é desdobramento da interpretação econômica do direito tributário. O abuso de direito considera ilícita a conduta do contribuinte que pratica negócios jurídicos visando exclusivamente a economia de imposto, tendo como fundamento o uso imoral do direito. O intérprete aplicaria uma regra moral própria, convertendo-a numa regra jurídica a incidir em cada caso. Para cada situação existirá uma regra moral específica. Seu campo de incidência é o plano da moral, o que rejeita o princípio da legalidade e o valor da segurança jurídica. A maioria da doutrina nacional rejeita a teoria do abuso de direito. Segundo Ives Gandra Martins14 o “o abuso de direito esbarra de forma incontornável – antes de qualquer outro aspecto jurídico – na ausência de previsão legal conferindo à fiscalização autoridade para ultrapassar o limite da estrita legalidade, buscando outros elementos e subsídios para afirmar ou não a

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validade jurídica, ainda que sob o prisma tributário, de cada operação individualizada.” Alfredo Augusto Becker, citado por César A. Guimarães Pereira15, questiona se é possível haver mau uso do direito sem que este se confunda com ilegalidade ou ilicitude. Sendo uma regra moral, o abuso de direito entrega ao intérprete o poder de converter uma regra moral em regra jurídica, sendo que o intérprete não detém poder de legislar. O novo Código Civil suplantou tal questão pelo seu art. 187, quando prevê que o titular de um direito comete ato ilícito ao exercê-lo de modo manifestamente excedente aos limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. Desta forma, o legislador caracterizou o abuso de direito como ato ilícito. A sua prática com a finalidade de economia de tributos configura evasão tributária, em função da ilicitude, não estando afeta a elisão tributária, que pressupõe a utilização de atos lícitos. Assim com o abuso de forma, o abuso de direito é mencionado na exposição de motivos da Lei Complementar nº 104, como sendo objeto de combate pela referida lei, mas não integra o seu texto legal. Uma figura jurídica conexa à simulação, ao abuso de forma e ao abuso de direito é a fraude à lei (frau legis). Aquele que defrauda não contradiz o teor verbal da lei, antes atém-se respeitosamente à sua letra, mas, na realidade, vem a frustrar o fim a que objetivava o princípio jurídico. Há uma enorme diferença entre negócio jurídico simulado e o negocio jurídico praticado em fraude à lei. Naquele o negócio é apenas aparente, enquanto este é querido ostensivamente pela partes com o objetivo de iludir a lei e conseguir o fim proibido por caminho indireto. Exemplo clássico de fraude à lei nos é dado, novamente, por Ricardo Lobo Torres16, nos seguintes termos: Para pagar menos imposto determinada pessoa, ao revés de vender o bem, preferiu fazer contrato de locação, de tal forma que no prazo previsto os aluguéis chegariam aproximadamente ao mesmo valor da venda, sujeitando-se a imposto menor; ao adquirente era garantida a preferência para a aquisição do bem por preço determinado ao fim do contrato. Quer dizer: o ato praticado era lícito, mas se utilizou para qualificar o negócio uma norma de cobertura que não lhe era adequada. Houve o desencontro entre a intentio facti e a intentio júris. Marcos Bernardes de Mello17, afirma que é perfeitamente possível distinguir o ato in fraudem legis do ato simulado. Diz ele: O ter a simulação, em alguns casos, a finalidade de infringir preceito legal não a torna semelhante à fraude à lei. Primeiro porque esse dado não é essencial à simulação. No mais das vezes o ato simulado de destina a prejudicar direitos subjetivados de terceiros. Na fraude à lei a sua característica substancial é, precisamente, a infração da norma jurídica por meios indiretos. Depois, o outro elemento fundamental para distinguir o ato in fraudem legis do ato simulado consiste em que na simulação os atos não são verdadeiros, embora se destinem a violar a lei. Realmente, na simulação os atos praticados ou são aparentes ou são mentirosos. No ato in fraudem legis nada é aparente. Tudo o que aparece é querido, especialmente o resultado.

Como demonstramos acima (2.3.3), os atos em si, considerados isoladamente, são válidos e eficazes. A invalidade é produto da infração à lei, que se consuma com a conjunção dos diversos atos através da qual o fim proibido ou imposto é alcançado ou evitado. Como se vê não é fácil distinguir entre simulação e fraude à lei. O elemento comum entre elas é a ilicitude que contamina a validade dos atos ou negócios jurídicos e não podem aparelhar qualquer conduta elisiva.

3. CABIMENTO DA FIGURA DE FRAUDE À LEI NA MATÉRIA TRIBUTÁRIA, ESPECIALMENTE TENDO EM VISTA O NOVO CÓDIGO CIVIL.

Para responder a esta indagação precisamos, antes de enunciarmos a nossa modesta opinião, nos socorrer das ponderações feitas pela doutrina brasileira. Pela firmeza e lucidez com que defendem os seus pontos de vista e, principalmente, por terem respostas diferentes à indagação título desse item, escolhemos expor os pensamentos dos professores Alberto Xavier e Marco Aurelio Greco. Alberto Xavier adota, como fundamento chave da sua doutrina, a denominação de “negócio jurídico menos oneroso”18 para qualificar os atos jurídicos praticados pelos particulares como propósito de não pagar ou pagar menos impostos. Para ele a elisão tributária pode ocorrer na generalidade dos tributos, não apenas naqueles cujas hipóteses de incidência descrevem atos jurídicos, já que mesmo nestes há interferência de atos jurídicos na configuração do fato imponível. Pode-se dar tanto em relação ao pressuposto (hipótese) quanto à estatuição (mandamento) da norma tributária. Pode ocorrer em todos os aspectos da norma tributária em que exista tipificação. Assim, Xavier não aceita a tese de que os negócios fiscalmente menos onerosos pudessem ser qualificados como negócios em fraude à lei. A teoria da fraude à lei, para ele, seria inaceitável porquanto apenas normas preceptivas ou proibitivas poderiam ser objeto de fraude. Embora a norma tributária seja inderrogável pela vontade das partes, não proíbe a realização de nenhum fim nem torna obrigatória a adoção de certas formas para a realização de determinados fins. A norma tributária incide (ou seja, qualifica fatos e faz nascer os deveres jurídicos previstos em seu mandamento) desde que ocorra o fato jurídico descrito no seu pressuposto. A prática do negócio fiscalmente menos oneroso faz com que não se realize o fato descrito no pressuposto e, portanto, não sejam desencadeadas as determinações do mandamento. A norma tributária não seria, assim, suscetível de fraude à lei. Inclui o exame da fraude à lei na perspectiva mais ampla das nulidades no direito tributário brasileiro. O fundamento legal para concepção acerca do tema está na sua interpretação do art. 118 do CTN, que suprime a competência administrativa para conhecer defeitos dos atos jurídicos. A administração tributária não detém competência para reconhecer a nulidade ou a anulabilidade de atos jurídicos, devendo promover o lançamento com abstração desses defeitos (apenas lhes

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sendo dado conhecer da inexistência jurídica do ato). A fundamentação teórica dessa concepção consiste no princípio da capacidade contributiva, que determina “a prioridade do conceito de eficácia sobre o de validade”, tornando cabível a tributação de atos nulos que tenham sido executados. A aparência supera a realidade no lançamento, até que a verdade material venha a ser declarada pelo Poder Judiciário. A fraude à lei, tanto quanto qualquer outro defeito dos atos jurídicos, somente pode ser tomada em conta pela administração tributária após declaração eficaz do Poder Judiciário. A doutrina de Marco Aurelio Greco centra-se, ao nosso ver, na distinção entre elisão tributária eficaz e a elisão tributária ineficaz. A prática de negócio fiscalmente menos oneroso caracterizado por simulação não configura elisão tributária eficaz. Esta é a que se exterioriza através de negócios jurídicos indiretos. Sugere modificação no pensamento brasileiro sobre a economia de tributos e o planejamento fiscal. Chama atenção para o fato de que a nova ordem constitucional instituída em 1988 agregou novos valores que condicionaram o exercício do direito de auto-organização. Esse direito não mais envolve apenas a idéia de esfera de liberdade resultante de condutas possíveis não descritas como pressuposto de nenhum efeito tributário, construída com base na reserva absoluta de lei como forma de bloqueio da ação do Estado. Essa concepção é típica da noção de Estado de Direito. Com a Constituição de 1988, o Brasil passou a configurar Estado Democrático de Direito, incorporando valores do Estado Social.19

Por isso, o direito de auto-organização (concebido sobre os valores propriedade e segurança) terá seu exercício condicionado pelos valores igualdade, solidariedade e justiça20. Sob essas premissas, conclui que será abusivo o exercício do direito de auto-organização quando seu uso ou o seu resultado deixar de atender a esses novos valores trazidos pela Carta Magna de 1988. A estrutura de sua doutrina está na idéia de finalidade exclusiva de reduzir ou impedir a tributação. A auto-organização com finalidade exclusiva de obter vantagem tributária configura abuso de direito. O fisco pode recusar-se a reconhecer os seus efeitos fiscais, mesmo sem que isso implique a decretação da ilicitude da operação. O professor Greco, em magnífica obra publicada pela Editora Dialética , afirma ser possível o cabimento da fraude à lei em matéria tributária, vejamos, in verbis: Dirão alguns que o raciocínio acima exposto estaria comprometido, pois as figuras do abuso do direito e da fraude à lei em matéria tributária não têm aplicação no direito brasileiro, enquanto não sobrevier lei expressa neste sentido, pois o princípio da legalidade assim determinaria. Neste ponto é preciso proceder a alguns esclarecimentos. Primeiro, é preciso distinguir abuso de direito e fraude à lei por definição legal, de abuso de direito e fraude à lei, identificados a partir de características fáticas de atos ou negócios praticados. Estas figuras “por definição legal” podem exis-tir desde que o legislador as enumere segundo entender pertinente. Para tanto, pode utilizar a técnica

de editar dispositivo pelo qual “consideram-se abusivas ...”, ou “consideram-se em fraude à lei ...” tais ou quais condutas. Nesta hipótese, as condutas enumeradas necessariamente configurarão abuso ou fraude à lei. Nesta pri-meira categoria, não há dúvida que a existência de lei é indispensável para tipificá-los. Porém, não é esta a única forma pela qual podem estar configuradas tais figuras. Elas podem existir independentemente de tipificação legal e prévia, por corresponderem a distorções instauradas a partir de conduta realizadas. Realmente, abuso de direito e fraude à lei são também categorias teóricas, cuja verificação se dá em função de realidades concretas, vale dizer, algo efetivamente ocorrido no plano dos fatos. O exame dos fatos e a busca de sua interpretação, para fins de enquadramento nas normas jurídicas, integra a experiência jurídica como um todo, tanto quanto a análise e interpretação das leis. Transitar no plano dos fatos é tão relevante quanto analisar as previsões abstratas do Direito. A realidade jurídica não é feita apenas de leis; compõe-se também de fatos aos quais as leis devem se aplicar. Desta ótica, abuso de direito e fraude à lei são figuras voltadas às qualidades que cercam determinados fatos, atos ou condutas realizadas, que lhes dão certa conformação à vista das previsões legais. Afirmar que houve abuso ou que o comportamento de alguém se deu em fraude à lei, não significa ampliar ou modificar o sentido e o alcance da lei tributária. Significa, apenas, identificar, nos fatos ocorridos, a hipótese legal, neutralizando o “excesso” ou afastando a “cobertura” que se pretendeu utilizar, para tentar escapar da incidência da lei. Neste segundo plano, estas categorias são apli-cáveis ao Direito Tributário independente de lei expressa que as preveja. De um lado, porque não interferem com a legalidade e a tipicidade, posto que situadas no plano dos fatos e não da norma; de outro lado, porque são categorias gerais do Direito. O abuso é o corolário do uso regular do direito, pois há décadas já se afastou a visão individualista de que um direito comporta qualquer tipo de uso, inclusive o excessivo ou que distorça seu perfil objetivo. A fraude à lei é decorrência da legalidade e da imperatividade do ordenamento positivo, como um todo, e da norma jurídica específica. Lei existe para ser seguida e não contornada ou “driblada”. A meu ver, é ínsita ao ordenamento positivo a possibilidade de existirem mecanismos que possam neutralizar as condutas que contornem as normas jurídicas, frustrem sua incidência, esvaziem sua eficácia, naquilo que a experiência jurídica conhece por fraude á lei ou abuso de direito. A imperatividade e a eficácia do ordenamento supõem a existência de mecanismos que as assegurem; são o espelho das suas próprias previsões. Portanto, a meu ver, estas figuras não dependem de “outra lei” prevendo seu cabimento. Ao contrário, são decorrência da legalidade, pois esta só tem sentido desde que o ordenamento tenha sua eficácia, imperatividade e aplicabilidade asseguradas. Porém, ainda que houvesse tal necessidade, ela estaria atendida pelo parágrafo único do artigo 116. Realmente, ao qualificar o efeito ou resultado (dissimulação) o dispositivo abrangeu todos os meios que podem levar à sua configuração; vale dizer, inclusive

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abuso de direito e fraude à lei. Além disso, não se pode perder de vista o senti-do ético que permeia a aplicação de medidas visando neutralizar as figuras do abuso de direito e da fraude à lei. Assim como se exige da Administração Pública a moralidade da sua ação (CF/88, artigo 37, caput), também exige-se do cidadão lisura de conduta. Moralidade e lisura de conduta são princípios que se aplicam a todas as pessoas e não apenas à Administração Pública. Neste sentido, é muito importante recente decisão da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, relatada pelo Min. Celso de Mello, na qual o tema do abuso do direito (naquele caso concreto, direito de recorrer) vem atrelado a um princípio ético-jurídico subjacente e resvala para um juízo sobre a probidade da conduta. Ou seja, não é apenas uma questão de imperatividade e eficácia do ordenamento positivo, mas abrange, inclusive, um aspecto de ordem moral e ética. Em suma, a meu ver, a aplicação das figuras do abuso do direito e da fraude à lei em matéria tributária, no ordenamento positivo brasileiro, pode ocorrer independente de lei expressa que as autorize, pois elas são decorrência da legalida-de e da imperatividade do ordenamento. Ainda que fosse indispensável uma lei autorizando a apli-cação de tais categorias, este requisito estaria atendido pelo parágrafo único do artigo 116 aqui comentado. (grifamos) Postas as abalizadas opiniões da doutrina, aqui representadas pela doutrina do professores Alberto Xavier e Marco Aurelio Greco, podemos fazer as considerações abaixo e, ao final, concluir, nos seguintes termos: Considerando que o vínculo entre direito tributário (como direito de superposição) e outros ramos do direito (especialmente do direito privado) é evidente, principalmente tendo em vista que estes também qualificam os fatos colhidos na norma tributária; Considerando que os institutos de direito privado têm plena relação com a interpretação do parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional, criado pela Lei Complementar nº 104, de 2001; Considerando que a caracterização do que seja a dissimulação a que alude o dispositivo retro citado passa, necessariamente, pelo estudo dos negócios jurídicos; Considerando que a partir da edição da Lei Complementar mencionada a autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos estabelecidos em lei ordinária; Considerando que as figuras de direito privado, estudadas resumidamente neste singelo trabalho, se referem a algo que se prende à utilização de meios aparentes para ocultar aquilo que realmente se deseja, ou, então, à utilização de vias indiretas em vez de se utilizarem vias diretas para alcançar os fins desejados; Considerando a constitucionalidade da LC nº 104/2001, a possibilidade e a conveniência das normas antielisivas, que equilibram a legalidade com a capacidade contributiva, especialmente por estarmos num Estado democrático de direito que visa construir

uma sociedade livre, justa e solidá-ria; Considerando que o novo Código Civil estabelece que:

Art. 421 – a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato;

Aqui fica claro que a liberdade de contratar (fundada na autonomia da vontade, consistindo no poder de estipular livremente, como melhor lhes convier, mediante acordo de vontades, a disciplina de seus interesses, suscitando efeitos tutelados pela ordem jurídica) não é absoluta, pois está limitada não só pela supremacia da ordem pública, que veda convenção que lhe seja contrária e aos bons costumes, de forma que a vontade dos contratantes está subordinada ao interesse coletivo, mas também pela função social do contrato, que o condiciona ao atendimento do bem comum e dos fins sociais. Consagrado está o princípio da socialidade22.

Art. 422 – os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execu-ção, os princípios de probidade e boa-fé; Art. 167 – é nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma; Art. 169 – o negócio jurídico nulo não é suscetível de conformação, nem convalesce pelo decurso do tem-po; Art. 186 – Aquele que, por ação ou omissão voluntá-ria, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente mo-ral, comete ato ilícito; Art. 187 – Também comete ato ilícito o titular de um direito que ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes; Art. 166, inciso III e IV – é nulo o negócio jurídi-co quando o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito e tiver por objetivo fraudar lei imperativa;

Considerando que a lei tributária é uma lei imperativa;

Forçoso é concluir, após todas as considerações expendidas, que a figura da fraude à lei é plenamente aplicável à matéria tributária, nos termos e limites positivados pelo Código Tributário Nacional (art. 116, parágrafo único) e pelo atual Código Civil.

Notas e Referências

1. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 2. ed. São Paulo: Nova Fronteira, 1998. p. 810.2. Vale registrar aqui aquilo que a doutrina denomina de simulação inocente, que é aquela que oculta um negócio que seja válido por um motivo até altruístico, ou seja, uma simulação que não encerra fim fraudulento, contrário à lei ou que vise causar prejuízo a terceiro. 3. ALVES, José Carlos Moreira. As figuras correlatas da elisão fiscal. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2003. p. 17-19. 4. MARTINS, Ives Gandra da. Elisão e evasão fiscal, in caderno de Pesquisas Tributárias nº 13, São Pau-lo: Resenha Tributária, 1998. p. 118.5. DÓRIA, Roberto Sampaio. Elisão e evasão fiscal. 2. ed. São Paulo: José

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Buushatsky, 1977. p. 58 6. BEVILACQUA, Clóvis. Teoria geral do direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976. p. 225.7. ALVES, José Carlos Moreira. Op. cit., p. 12-13.8. OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Reinterpretando a norma antielisão do parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, nº 76. p. 97 9. MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENEZES, Paulo Lucena de. Elisão fiscal. Revista Tributária e de Finanças Públicas. São Paulo, nº 36, 2001. p. 231. 10. MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Elisão e evasão fiscal, in caderno de Pesquisas Tributárias nº 13, São Paulo: Resenha Tributária, 1998. p. 16-17. 11. ALVES, José Carlos Moreira. Op. cit., p. 19-20.12. TORRES, Ricardo Lobo. Normas gerais antielisivas. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2003. p. 116.13. APELAÇÃO Cível nº 115.478-RS, Ac. da 6ª Turma do Tribunal Federal de Recursos, de 18.2.87, Rel. Ministro Américo Luz. Revista do Tribunal Federal de Recursos 146: 217, 1987. 14. MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENEZES, Paulo Lucena de. Elisão fiscal. Revista Tributária e de Finanças Públicas. São Paulo, nº 36, 2001. p. 235.15. PEREIRA, César A. Guimarães. Elisão e função administrativa. São Paulo: Dialética, 2001. p. 70. 16. TORRES, Ricardo Lobo. Op. cit., p. 115.17. MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano de validade. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 156-157. 18. XAVIER. Alberto P. A evasão fiscal legítima – o negócio jurídico indireto em Direito Fiscal. Revista de Direito Público. São Paulo: RT, nº 23. p. 12. 19. GRECO, Marco Aurelio. Planejamento fiscal e abuso de direito. Estudos sobre o imposto de renda. São Paulo: Resenha Tributária, 1994. p. 94/95. 20. GRECO, Marco Aurelio. Ob. cit., p. 96.21. GRECO, Marco Aurelio. Constitucionalidade do parágrafo único do art. 116 do CTN. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). O planejamento tributário e a Lei complementar nº 104. São Paulo: Dialética, 2001. p. 196-199.22. DINIZ, Maria Helena. Código civil anotado. 8. ed. Atual. de acordo como novo Código Civil. (Lei n. 10.406, de 10-1-2002). São Paulo: Saraiva, 2002. p. 305.

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CLÁUSULAS ABERTAS, CONCEITOS INDETERMINADOS E DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL

DIANTE DAS HIPÓTESES DE IMPENHORABILIDADE FORMULADAS PELA LEI 11382/06.7

Flávia Moreira Guimarães PessoaJuíza do Trabalho Substituta

Coordenadora e Professora da Pós-Graduação em Direito do Trabalho (UFS)Especialista em Direito Processual (UFSC)

Mestre em Direito, Estado e Cidadania (UGF)Doutoranda em Direito Público (UFBA)

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1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho busca contribuir para o debate sobre as inovações no processo de execução promovidas pela Lei 11382/06 fazendo um cotejo entre a nova redação do art. 649 do CPC e a teoria desenvolvida sobre a discricionariedade judicial no âmbito da teoria geral do direito. Sabe-se que a previsão de impenhorabilidade de bens, que desce a minúcias nos incisos do art. 649 do CPC, tem por fim limitar o amplo campo de discricionariedade judicial, já que , ao invés de esmiuçar as hipóteses, o código poderia formular apenas uma cláusula aberta em que, por exemplo, afirmasse que “são absolutamente impenhoráveis todos os bens necessários a uma existência digna”. Nesse caso, abrir-se-ia margem a extensa discussão sobre o conceito e amplitude de “existência digna” e poder-se-ia aguardar que a solução fosse dada em cada caso concreto, pela ponderação dos interesses e valores em jogo. Tal, porém, não foi o caso, conforme se vê na redação do artigo sob análise. Para atingir o objetivo proposto de discussão do tema, divide-se o trabalho em duas partes, sendo ao final expostas as conclusões. Na primeira, estudam-se as cláusulas abertas, os conceitos jurídicos indeterminados e a existência ou não de discricionariedade judicial. Em seguida, analisam-se as alterações promovidas no âmbito do art. 649 do CPC. No final, são apresentados os resultados da análise empreendida.

2. DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL, CLÁUSULAS ABERTAS E CONCEITOS JURÍDICOS INDETERMINADOS

Além de descrever uma situação em caráter abstrato e genérico, a lei é constituída por elementos prescritivos que precisam ter seu conteúdo esclarecido. Até mesmo a mera dicção legal, em si, é formada por um conjunto de símbolos (nomes e predicadores), os quais são, muitas vezes, vagos e ambíguos. É essa indeterminação semântica que constitui os conceitos jurídicos indeterminados. Karl Engisch (1979, p.173) define os conceitos jurídicos indeterminados como “ um conceito cujo conteúdo e extensão são em larga medida incertos”. Faz, assim, a oposição entre os conceitos jurídicos determinados e indeterminados, apresentando, ainda, a noção de cláusula geral. Esta consiste na cláusula que procura evitar a elaboração casuística das hipóteses legais. Trata-se de um expediente utilizado pelo legislador para abranger em uma formulação, em termos genéricos, um expressivo número de casos a um determinado tratamento jurídico. O autor conceitua a cláusula geral como “ uma formulação da hipótese legal que, em termos de grande generalidade, abrange e submete tratamento jurídico a todo um domínio de casos” (ENGISCH, 1979, p. 189). As cláusulas gerais, desta forma, constituem em formulações legais de caráter genérico e abstrato, com natureza de diretriz, cujos valores serão preenchidos pelo juiz na análise do caso concreto. Têm a função de dotar o Código de maior mobilidade, mitigando

regras mais rígidas. Ademais, têm função de integração dos diferentes princípios e direitos adotados em nossa sociedade pluralista, consistindo na possibilidade de o juiz aplicar a lei com ampla liberdade axiológica, ponderando os interesses em conflito no caso concreto. Têm, ainda, função de instrumentalizar as normas jurídicas aos fins teleologicamente considerados pelo legislador. Segundo Judith Martins Costa (2000) , as cláusulas gerais1, mais do que um “caso” da teoria do direito pois revolucionam a tradicional teoria das fontes - constituem as janelas, pontes e avenidas dos modernos códigos civis. Isto porque conformam o meio legislativamente hábil para permitir o ingresso, no ordenamento jurídico codificado, de princípios valorativos, ainda inexpressos legislativamente, de standards, máximas de conduta, arquétipos exemplares de comportamento, de deveres de conduta não previstos legislativamente, de diretivas econômicas, sociais e políticas, de normas, enfim, constantes de universos meta-jurídicos, viabilizando a sua sistematização e permanente ressistematização no ordenamento positivo. Prossegue a autora afirmando que a cláusula geral constitui uma disposição normativa que utiliza, no seu enunciado, de forma proposital, uma linguagem de tessitura “aberta”, “fluida” ou “vaga”. Esta disposição é dirigida ao juiz que diante do caso concreto, crie, complemente ou desenvolva normas jurídicas, que poderá fazer uso de elementos que estejam fora do sistema, o que evidencia a importância da fundamentação das decisões. Em relação aos conceitos jurídicos indeterminados, Tércio Sampaio Ferraz Júnior distingue os conceitos indeterminados (derivados da vagueza) dos conceitos valorativos (decorrentes da ambigüidade). Para o autor, nos conceitos jurídicos indeterminados, não é possível, de antemão, determinar-lhes a extensão denotativa, enquanto nos conceitos valorativos não é possível a determinação da extensão conotativa (FERRAZ JÚNIOR, 1994, p.316). A doutrina em geral, contudo, engloba os dois conceitos na mesma hipótese, cuidando tanto dos casos de vagueza quanto dos de ambigüidade. Assim, por exemplo, a expressão vaga “perigo iminente” e a ambígua “mulher honesta” são igualmente consideradas, devendo o juiz precisar o seu conceito com o auxílio das máximas de experiência. Tal discussão prévia sobre a distinção2 entre os conceitos jurídicos indeterminados e cláusulas abertas é essencial para o entendimento do que seria a discricionariedade judicial. A discricionariedade se caracteriza por uma faculdade (facultas) − portanto concedida por lei − do aplicador do direito para escolher, dentre uma pluralidade de meios - também possibilitados pela lei – o alcance do fim que direciona o interesse da Administração. Para Celso Antônio Bandeira de Mello (2001), o fundamento da discricionariedade reside no intento de se cometer à autoridade o dever jurídico de buscar identificar e adotar a solução apta a, no caso concreto, satisfazer de maneira perfeita a finalidade da lei, bem como reside na contingência prática de servir-se de conceitos pertinentes ao mundo do valor e da sensibilidade, os quais são conceitos chamados vagos, fluidos ou imprecisos. Grande é a controvérsia na doutrina sobre a existência de discricionariedade judicial. Neste aspecto,

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convém ressaltar a controvérsia Hart X Dworkin que remonta ao tema. Para Hart o direito normativado deve responder a todas as questões juridicamente suscitadas. Se não puder resolver, o magistrado usa seu poder discricionário e cria o direito aplicável ao caso3. Essa liberdade de criação é muito criticada na teoria de Hart e justamente neste ponto a teoria do Ronald Dworkin surge como forma de resgate do direito no sentido de trazer de volta seu conteúdo de alcance às normas não positivadas, através da compreensão que existem princípios e dentre a análise destes é que deve surgir o direito a ser aplicado, estando a solução interna ao direito. Surge, então, a figura do juiz Hércules e da única resposta correta.4 A existência de uma discricionariedade judicial é repudiada vivamente por Eros Roberto Grau, para quem o juiz, sempre que interpreta um texto legal, pratica atividade vinculada: Para ele, o que se tem denominado de discricionariedade judicial é poder de criação de norma jurídica que o intérprete autêntico exercita formulando juízos de legalidade (não de oportunidade). A distinção entre ambos esses juízos, ainda segundo o autor, encontra-se em que o juízo de oportunidade comporta uma opção entre indiferentes jurídicos, procedida subjetivamente pelo agente; o juízo de legalidade é atuação, embora desenvolvida no campo da prudência, que o intérprete autêntico desenvolve atado, retido, pelo texto normativo e, naturalmente, pelos fatos. (GRAU, 2002, p. 189) Sobre a discricionariedade judicial, destaca Barbosa Moreira (1988) que o preenchimento dos conceitos vagos existentes na lei para a sua aplicação não se confunde com discricionariedade: o ponto convergente está em que somente a particularidade de que ao papel confiado à prudência do aplicador da norma não se impõem padrões rígidos de atuação. A diferença é que os conceitos indeterminados integram a discrição do ‘fato’, ao passo que a discricionariedade se situa toda no campo dos efeitos.”

3. AS ALTERAÇÕES NO ART. 649 DO CPC EMPREENDIDAS PELA LEI 11382/06

As discussões empreendidas no item anterior são importantes porque a discriminação das hipóteses de impenhorabilidade no CPC tem por objetivo a diminuição da possibilidade de discricionariedade judicial – para quem entende-a existente – ou mesmo a limitação da interpretação judicial. Contudo, essa limitação é menos rígida do que parece, pois continua deixando espaço aos conceitos indeterminados, conforme se verá a seguir. Inicialmente, cumpre frisar que a Lei 11382 não alterou o inciso I do art. 649 CPC, remanescendo como impenhoráveis os bens inalienáveis e os declarados, por ato voluntário, não sujeitos à execução. Neste inciso inserem-se, por exemplo, os bens públicos de uso comum, que são inalienáveis, bem como aqueles assim declarados por ato voluntário, como exemplo a doação. A lei, contudo aprimorou a redação dos demais incisos, quer retirando hipóteses, quer alterando seu conteúdo, quer acrescentando novas. O texto, assim, não mais prevê a impenhorabilidade das provisões de alimento e de combustível, necessárias à manutenção

do devedor e de sua família, durante um mês, do anel nupcial e dos retratos de família, bem como os equipamentos dos militares. As modificações, contudo, não levam à penhorabilidade dos itens, mas devem-se à incorporação em outros incisos, bem como a melhoria e adaptação da redação aos tempos atuais5. O inciso II do art. 649, com a redação dada pela lei 11382/06 prevê a impenhorabilidade dos móveis, pertences e utilidades domésticas que guarnecem a residência do executado, salvo os de elevado valor ou que ultrapassem as necessidades comuns correspondentes a um médio padrão de vida. Com tal redação, o inciso resolve antigas celeumas doutrinárias e jurisprudenciais pertinentes à impenhorabilidade de certos móveis e utilidades domésticas de elevado valor. É claro, porém, que há grande espaço de discricionariedade a ser preechido pelo juiz, o que é ínsito a todas as hipóteses em que se está diante de conceitos jurídicos indeterminados. O inciso III, também com redação alterada, prevê a impenhorabilidade dos vestuários, bem como os pertences de uso pessoal do executado, salvo se de elevado valor, não fixando parâmetros para o que seja tal “elevado valor”. O novo inciso IV, reuniu o conteúdo dos antigos inciso IV e VII do art. 649 do CPC e melhorou sua redação ao prever a impenhorabilidade dos vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios; as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal. Neste ponto, porém, a Lei 11382 perdeu uma ótima oportunidade para resolver um antigo problema sempre lembrado pela doutrina6, no sentido7 da possibilidade de penhora dos altos salários. O projeto originário previa a exceção em seu §3º: O parágrafo citado , contudo, foi vetado pelo Presidente da República, sob o fundamento de que a questão deveria ser mais aprofundada pelo debate público. Tal veto, porém, não impede que o Juiz, adotando a técnica de ponderação de valores8, estabeleça limite à impenhorabilidade. Por outro lado, a lei, ao estabelecer no inciso X a impenhorabilidade, até o limite de 40 (quarenta) salários mínimos, da quantia depositada em caderneta de poupança, resolveu outra situação sempre enfrentável na prática, relativa aos investimentos feitos pelo devedor após o recebimento de sua remuneração em conta corrente. Porém, o § 2º do mesmo dispositivo legal prevê que a exceção prevista no inciso IV não se aplica no caso de penhora para pagamento de prestação alimentícia. O inciso V do mesmo artigo, ao tratar da impenhorabilidade dos livros, máquinas, ferramentas, utensílios, instrumentos ou outros bens móveis necessários ou úteis ao exercício de qualquer profissão manteve o conteúdo anterior, aprimorando-o. Sobre o tema, Rodrigues Pinto (2006), ainda comentando a redação anterior, chamava a atenção para o fato de que o discernimento sobre o que seja a exato alcance desse dispositivo é bastante delicado. Sendo o dispositivo genérico, fica a cargo da sensibilidade jurídica do observador definir a distinção entre os muitos instrumentos que podem facilitar ou serem necessário a

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determinado tipo de trabalho. Mais uma vez, portanto, está-se diante da amplitude da interpretação judicial. No inciso VI, a Lei 11382/06, manteve a mesma redação do anterior inciso IX do art. 649 do CPC, ao tratar da impenhorabilidade do seguro de vida. Neste ponto, há que se destacar, como faz Manoel Antônio Teixeira Filho (2005) que a impenhorabilidade não é do dinheiro recebido pelos beneficiários indicados pelo devedor falecido e sim da expectativa ao recebimento oportuno da soma pela qual se obrigou a companhia seguradora. Assim, caso o segurado tenha falecido e o dinheiro sido entregue ao devedor-beneficiário, tal soma, tendo sido incorporada ao patrimônio econômico do devedor, poderá ser penhorada. Outrossim, não só a quantia recebida pelo devedor, como beneficiário, escapa da previsão de impenhorabildiade, como também a soma que a seguradora já deve, porquanto o direito a receber está no patrimônio do beneficiário. A previsão do inciso VII, sobre a impenhorabilidade dos materiais necessários para obras em andamento, salvo se essas forem penhoradas já era constante do art. 649 do CPC. É importante destacar, com faz Teixeira Filho (2005) que os materiais somente são impenhoráveis em virtude de sua destinação. Assim, se eles não se destinarem à obra, ou dela se encontrarem separados, por não mais serem necessários, poderão ser penhorados. No inciso VIII a lei prevê a impenhorabilidade da pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, o que não altera muito a dicção anterior. O importante, contudo, é a ausência da exceção da hipoteca para fins agropecuários, que foi banida. A nova redação, assim, não permite a execução da pequena propriedade rural em face de dívidas agropecuárias, salvo no que tange à expressa previsão do §1º do mesmo dispositivo, ou seja, a impenhorabilidade não é oponível à cobrança do crédito concedido para a aquisição do próprio bem. Por fim, o que pode ser considerada a grande novidade da Lei 11382/2006 é a impenhorabilidade dos recursos públicos recebidos por instituições privadas para aplicação compulsória em educação, saúde ou assistência social.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A abordagem empreendida neste artigo permite lançar luzes sobre a discussão relativa às clausulas abertas e conceitos jurídicos indeterminados para tentar responder ao questionamento se existe ou não a discricionariedade judicial. Se o direito fornece a moldura dentro da qual poderá o julgador se mover, ou se, ao contrário, existe uma única resposta correta, o fato é que essa discussão teórica tem muita relevância para efeito de fixação do campo de atuação do juiz mesmo em hipóteses essencialmente técnicas e processuais, como é a hipótese ora sob análise. Assim, a previsão de impenhorabilidade de bens inserta no art. 649 do CPC, embora redigida com o objetivo de minimizar as controvérsias pertinentes ao tema, não exclui o recurso à amplitude interpretativa do julgador e nem faz o fechamento do sistema, remanescendo vários pontos a serem preenchidos pelo julgador.

Notas e Referências

1. Vale transcrever as palavras da autora no que tange ao tipos de cláusulas gerais: Multifacetárias e multifuncionais, as cláusulas gerais podem ser basicamente de três tipos, a saber: a) disposições de tipo restritivo, configurando cláusulas gerais que delimitam ou restringem, em certas situações, o âmbito de um conjunto de permissões singulares advindas de regra ou princípio jurídico. É o caso, paradigmático, da restrição operada pela cláusula geral da função social do contrato às regras, contratuais ou legais, que têm sua fonte no princípio da liberdade contratual; b) de tipo regulativo, configurando cláusulas que servem para regular, com base em um princípio, hipóteses de fato não casuisticamente previstas na lei, como ocorre com a regulação da responsabilidade civil por culpa; e, por fim, de tipo extensivo, caso em que servem para ampliar uma determinada regulação jurídica mediante a expressa possibilidade de serem introduzidos, na regulação em causa, princípios e regras próprios de outros textos normativos. É exemplo o art. 7º do Código do Consumidor e o parágrafo 2º do art. 5º da Constituição Federal, que reenviam o aplicador da lei a outros conjuntos normativos, tais como acordos e tratados internacionais e diversa legislação ordinária (COSTA, 2000).2. Os textos normativos de direito material constantemente trazem conceitos juridicamente indeterminados, os quais exigem dos potenciais ou virtuais destinatários a realização de juízo de valor subjetivo. O Código Civil é pródigo no emprego de conceitos dessa natureza. Para diferenciar os conceitos jurídicos indeterminados das cláusulas gerais, Judith Martins Costa ( 2000) dá o seguinte exemplo: Conceito jurídico indeterminado - Art. 51 CDC. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade; Cláusula Geral - CDC - Art. 4° A Política Nacional de Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito a sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios.Pela exemplificação dada, verifica-se, claramente, que as cláusulas gerais são bem mais amplas do que os conceitos jurídicos indeterminados. Com efeito, os conceitos jurídicos são aberturas no texto da lei a conceitos vagos, como “boa fé”, “equidade” etc, enquanto as cláusulas gerais são autorizações mais amplas ao juiz. O código de processo civil também apresenta exemplos de conceitos jurídicos indeterminados , como o artigo 14 do CPC, que estabelece o dever da parte de “proceder com lealdade e boa-fé”. Por outro lado, no código também são encontradas cláusulas gerais, como as hipóteses de concessão de tutela antecipada (273 CPC) e o poder geral de cautela previsto no art. Art. 798 do CPC: ‘Além dos procedimentos cautelares específicos, que este Código regula no Capítulo II deste Livro, poderá o juiz determinar as medidas provisórias que julgar adequadas, quando houver fundado receio de que uma parte, antes do julgamento da lide, cause ao direito da outra lesão grave e de difícil reparação”. 3. Herbert Hart, ao publicar seu “O Conceito de Direito” em 1961, teve como objetivo “aprofundar a compreensão do direito, da coerção e da moral como fenômenos sociais diferentes, mas relacionados” . Desde sua edição, o livro foi objeto de diversas críticas, principalmente de Dworkin, cuja obra, no ponto pertinente às decisões judiciais, será analisada mais adiante. Tais críticas foram objeto de resposta por Hart, em seu pós-escrito, anexado à segunda edição inglesa do seu livro, em 1994. Hart, de forma semelhante a Kelsen, teoriza que o sistema jurídico está composto de regras primárias e secundárias. As primeiras são aquelas que prescrevem condutas ao jurisdicionados. As segundas, por sua vez, são também chamadas de regras de reconhecimento, e fornecem os critérios através dos quais pode ser aferida a validade das regras primárias. Em seu modelo de raciocínio judicial, Hart defende que o Juiz deverá aplicar o direito posto, ou seja, as normas primárias. Contudo, o autor adverte que em qualquer sistema jurídico haverá sempre hipóteses em que não existe regulação prévia, de forma que o direito apresenta-se como parcialmente indeterminado ou incompleto. Nesses casos, para o autor, o juiz deve exercer o seu poder discricionário de criar o direito, discricionariedade essa juridicamente limitada. Assim, para Hart, em caso de lacuna das normas, o juiz deverá criar o direito para solucionar o caso concreto que lhe é apresentado. Entretanto, o autor assinala que os tribunais, ao criarem o direito novo, voltam-se à analogia, “de forma a assegurarem que o novo direito que criam, embora seja direito novo, está em conformidade com os princípios ou razões subjacentes, reconhecidos como tendo já uma base no direito existente”4. O estudo da teoria da decisão judicial recebeu grande contribuição de Ronald Dworkin, que criou um modelo segundo o qual o trabalho do juiz é “reconstruir racionalmente a ordem jurídica vigente, identificando os princípios fundamentais que lhe dão sentido” , ou seja, a sentença do juiz se situa num termo intermediário entre a mera aplicação silogística pugnada pela Escola da Exegese e o ato de vontade idealizado pelo normativismo jurídico. A proposta de Dworkin é crítica do

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modelo positivista do raciocínio judicial, em especial ao pensamento de Hart, e funda-se, principalmente, no problema relativo aos hard cases , tema a partir do qual desenvolve sua idéia de que quando existem lacunas nas normas o juiz deverá ter sua decisão pautada pelos princípios . Assim, enquanto pelo positivismo o juiz praticaria um ato de vontade para resolver os “casos difíceis”, pela teoria de Dworkin deveria procurar aplicar os princípios em sentido amplo, que se subdividem em princípios em sentido estrito e diretrizes políticas.5. O mesmo, aliás, ocorreu quando da edição do Código em 1973. O CPC de 1939 fazia absolutamente impenhoráveis, também, “uma vaca de leite e outros animais domésticos, à escolha do devedor, necessários à sua alimentação ou à sua atividade, em número que o juiz fixará de acordo com as circunstâncias” , o que vinha previsto no art. 942, IV. A mudança da redação não tornou penhorável a vaca leiteira, mas adaptou o código de 1973 ao tempo em que foi editado. 6. Manoel Antônio Teixeira Filho (2005) já chamava a atenção para o fato, defendendo que na hipótese de o devedor auferir altos salários e o valor da execução ser de pequena monta, não pareceria sensato vetar, com rigor absoluto, a possibilidade de penhora de parte do salário, pois esse ato executivo poderia não provocar maiores transtornos e dificuldades ao devedor, além de ser necessário para satisfazer o direito do credor7. Parágrafo vetado pelo Presidente da República: § 3o, Na hipótese do inciso IV do caput deste artigo, será considerado penhorável até 40% (quarenta por cento) do total recebido mensalmente acima de 20 (vinte) salários mínimos, calculados após efetuados os descontos de imposto de renda retido na fonte, contribuição previdenciária oficial e outros descontos compulsórios.” “Parágrafo único. Também pode ser penhorado o imóvel considerado bem de família, se de valor superior a 1000 (mil) salários mínimos, caso em que, apurado o valor em dinheiro, a quantia até aquele limite será entregue ao executado, sob cláusula de impenhorabilidade8. Muito embora a técnica de ponderação seja normalmente utilizada em caso de colisão de princípios e também conquanto se saiba que o conflito de regras se dê na dimensão da validade, a hipótese é de colisão da lei com a previsão principiológica abstrata do devido processo legal, que, a depender do caso concreto, pode levar à interpretação no sentido da penhorabilidade do excesso remuneratório. Assim, a determinação sobre o deve ceder - e em que medida - é feita a partir de um processo de ponderação no caso concreto.

Referências Complementares

COSTA, Judith Hofmeister Martins. O Direito Privado como um “sistema em construção”: as cláusulas gerais no Projeto do Código Civil brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 41, maio 2000. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=513>. Acesso em: 24 jun. 2006.

ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. Tradução de J. Baptista Machado. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1979.

GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 2002.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 13ª ed. São Paulo: Malheiros, 2001.

MOREIRA, José Carlos Barbosa. Regras da Experiência e Conceitos Juridicamente Indeterminados. in Temas de Direito Processual - 2ª série. São Paulo: Saraiva, 1988;

PINTO, José Augusto Rodriges. Processo Trabalhista de Execução. São Paulo: LTR, 2006.

TEIXEIRA FILHO, Manoel Antônio. Execução no Processo do Trabalho. São Paulo: Ltr, 2005.

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A PREVISÃO DOS ARTIGOS 475-L, §1º E 741, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CÓDIGO DE PROCESSO

CIVIL: INOVAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL E SUA CONFORMIDADE COM

OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS.8

Andrea Carla Veras Lins Pós-graduanda em Processo Civil (ESMESE/FANESE)

Advogada da UniãoEx-professora das Universidades Federal de Sergipe e Tiradentes

Lyts de Jesus SantosPós-graduando em Processo Civil (ESMESE/FANESE)

Advogado da União

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SUMÁRIO1. Introdução. 2. A polêmica da relativização da coisa julgada. Segurança Jurídica versus Supremacia da Constituição. 3. O alcance e hipóteses de aplicação dos artigos 475-L, § 1º e 741, parágrafo único, do CPC. 4. Conclusão. 5. Bibliografia.

1 INTRODUÇÃO

O tema a ser desenvolvido no breve artigo pretende trazer à reflexão, a questão da inovação introduzida pela Lei n.º 11.232/2005 no que pertine aos artigos 475-L, § 1º e 741, parágrafo único, ambos do Código de Processo Civil. Os dispositivos prevêem, expressamente, novas hipóteses de argüição de inexigibilidade de título fundado em lei ou ato normativo assim reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição. A doutrina, então, passou a questionar até que ponto a legislação ordinária poderia afetar o conteúdo de Princípios Constitucionais, explícitos e implícitos, como a coisa julgada e a segurança jurídica. Este é o problema a ser aqui enfrentado.

2. A POLÊMICA DA RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA. SEGURANÇA JURÍDICA VERSUSSUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO

Muito se tem questionado acerca da possibilidade ou não de se conviver, no ordenamento jurídico brasileiro, com uma decisão que seja injusta, desproporcional, inconstitucional, dando início a um movimento, que tem nas figuras de Cândido Rangel Dinamarco e Humberto Theodoro Júnior seus representantes mais ardentes, denominado “relativização da coisa julgada”. Os defensores da tese contrária, que conta com representantes como Luiz Guilherme Marinoni e Ovídio Baptista, entendem que em sendo aceita a relativização da coisa julgada, estar-se-ia pondo em risco a segurança jurídica das relações, a efetividade das decisões, já que a parte vencedora sempre estaria sujeita, em sede de execução/cumprimento de sentença, a ver a sentença desconstituída, gerando uma discussão infindável sobre a questão. Argumentam, ainda, que não há critérios objetivos para desconstituir a coisa julgada, e utilizar-se do critério de “justiça” não traz segurança jurídica, nem haveria como garantir que uma segunda decisão fosse justa. Daí tais processualistas tratarem o instituto da coisa julgada, em homenagem à segurança jurídica, como algo absoluto. Contra ele nada se podia opor. A preocupação tem razão de ser, já que a segurança jurídica é um dos pilares fundamentais em que se apóia o Estado Democrático de Direito. Todavia, a existência de situações flagrantemente injustas – acobertadas pelo manto da coisa julgada – fez com que a doutrina processualista

começasse a questionar o mito da intangibilidade da res judicata, inicialmente para enfrentar injustiças, depois choques de princípios1 e, por último, a coisa julgada inconstitucional. Estamos aqui a tratar desta. A distinção é importante não por que, necessariamente, as outras não tenham lugar, e, sim, dada a sua singularidade. A relativização da coisa julgada inconstitucional é tema bem menos tormentoso, por ser mais objetivo. Seria necessário apenas, em princípio, amoldar a decisão com trânsito em julgado ao entendimento do Supremo Tribunal, a quem cabe, em última análise, estabelecer o sentido do texto constitucional, vejamos os comentários de André Ramos2: A tese da coisa julgada inconstitucional – é forçoso reconhecer – possui maior respaldo jurídico do que a analisada no capítulo anterior [injustiças/desproporções], o que não significa, porém, que seja imune a críticas.Além de ser mais bem formulada, a tese da coisa julgada inconstitucional suscita um maior número de situações merecedoras de comentários. Afinal, já se dá, na nossa opinião, um tratamento diferenciado a esse fenômeno processual, seja pela jurisprudência3, seja pelo próprio arcabouço legal vigente4. Assim, após apreciação final do guardião da Constituição acerca do ato normativo ou da lei, a alegada falta de critérios objetivos, uma das criticas à teoria da relativização – conforme dissemos acima, não seria óbice ao desfazimento da coisa julgada inconstitucional. Humberto Theodoro Júnior, contudo, chegou a afirmar, em citação de Teori Albino Zavascki5: (...) No bojo dos embargos à execução, portanto, o juiz, mesmo sem prévio pronunciamento do Supremo Tribunal Federal, está credenciado a recusar execução à sentença que contraria preceito constitucional, ainda que o trânsito em julgado já se tenha verificado. O pensar acima resumido parece-nos não se enquadra propriamente na declaração de inconstitucionalidade, tendo mais a ver com choques de princípios. Outra característica da coisa julgada inconstitucional é que sempre se deverá dar prevalência ao que decido pela Suprema Corte, enquanto que nas outras hipóteses, segundo se defende, dever-se-ia estabelecer uma ponderação de interesses. A segurança jurídica é apenas um dos princípios que norteiam nosso ordenamento jurídico. Nada obstante sua relevância, não podemos fazer dela princípio máximo da ordem constitucional, pois a Constituição não o fez. Longe disso. Mais uma passagem de André Ramos6: (...). Nesse sentido, é imprescindível recorrermos às lições do eminente constitucionalista português Paulo Otero. Da superioridade hierárquico-normativa da Constituição, o autor extrai a formulação do “princípio da constitucionalidade”, e conclui que todo e qualquer ato emanado do poder público deve submeter-se a ele, sob pena de invalidade. (...).O princípio da constitucionalidade, portanto, resume a idéia de respeito incondicional à ordem constitucional vigente. Do seu enunciado extraímos todos os demais princípios e valores que informam o nosso ordenamento jurídico. (...). De ver-se que a res judicata não é inoponível.

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Se ofende o texto constitucional não resta outra solução senão rescindi-la. Assim como os atos dos poderes executivo e legislativo devem ser produzidos em estrita conformidade com o texto constitucional, as decisões judiciais, ainda que acobertadas pela res judicata, também devem sê-lo. Nem poderia ser diferente. Todo o aparato estatal deve se amoldar à superioridade hierárquica da Carta Política, que submete a todos. O certo é que a discussão está longe de ser encerrada. Ao contrário, após a edição da Medida Provisória 1997-37/2000, posteriormente revogada pela Medida Provisória 2.180-35/2001, convertida na Lei 11.232/2005, a questão ganhou novo espaço, inclusive nos Tribunais. Eis o texto comum dos dispositivos alterados (artigos 475-L, §1º e 741, parágrafo único, do CPC): (...)Para efeito do disposto no inciso II do caput deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal. A norma expressa acima vem sendo interpretada como hipótese de rescisão das decisões. O primeiro artigo diz respeito à fase de cumprimento de sentença e o segundo, aos embargos à execução da Fazenda Pública. Trazemos à colação posicionamento de Fredie Didier Jr nesse sentido7: É nova hipótese de rescisão de sentença, que, porém, não se submete ao mesmo regramento jurídico das demais, previstas para a ação rescisória (art. 458, CPC). É importante a observação, pois há diferenças em relação ao prazo bienal para a propositura da rescisória, que não se aplica a este caso, e à competência, que, para a ação rescisória, é sempre de um tribunal. Há, pois, um novo instrumento de revisão de coisa julgada. O tema é bastante rico e traz uma série de indagações de ordem prática, que serão expostas no próximo tópico.

3. O ALCANCE E HIPÓTESES DE APLICAÇÃODOS ARTIGOS 475-L, § 1º E 741, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CPC

Segundo a doutrina não são todas as hipóteses ditas inconstitucionais que impediriam ou tornariam inexigível o título judicial. Por certo, a decisão judicial pode ser inconstitucional não só quando é aplicada lei ou ato normativo considerado inconstitucional, mas também quando deixa de aplicar lei considerada constitucional. Entretanto, como se tratam de Princípios constitucionais que precisam ser resguardados, como o da segurança jurídica e coisa julgada, algumas questões vêm sendo acolhidas de maneira mais uniforme entre os processualistas, como a seguir pontua-se. O primeiro questionamento tem a ver com o momento em que o Supremo declara a inconstitucionalidade ou o julgamento de incompatibilidade. Chegou-se a afirmar que a inexigibilidade do título prevista nos artigos acima, só teria lugar se a declaração de inconstitucionalidade

ou o julgamento de incompatibilidade proferido pelo Supremo ocorresse antes do trânsito em julgado da demanda, mas tal interpretação já foi devidamente rechaçada, pois afastaria a utilidade da norma. A inexigibilidade prevista pelas novas disposições não poderá afetar as ações nas quais já houver o trânsito em julgado antes da edição da Medida Provisória 1997/2000. Exemplificativamente, colacionamos decisão do Superior Tribunal de Justiça, nesse sentido: AGRAVO REGIMENTAL. PROCESSO CIVIL. ADMINISTRATIVO. EMBARGOS À EXECUÇÃO. DECISÃO EXEQÜENDA TRANSITADA EM JULGADO ANTES DA VIGÊNCIA DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ARTIGO 741 DO CPC ACRESCENTADO PELA MEDIDA PROVISÓRIA Nº 2.180/2001. INAPLICABILIDADE. (...) 2. O parágrafo único do artigo 741 do Código de Processo Civil, acrescentado pela Medida Provisória nº 2.180/2001, não se aplica às sentenças transitadas em julgado antes de sua vigência. (...). (STJ, AgRg no Ag 854297/AL, 6ª Turma, Min. Paulo Gallotti, 17.05.2007, DJ 18.06.2007 - negritos à parte). Há quem sustente que a declaração do STF só tornaria inexigíveis os títulos que tivessem sido formados no intervalo de dois anos, contados da decisão que declara a inconstitucionalidade. Trata-se de uma tentativa de conciliar as novas disposições legais ao regramento da ação rescisória. Todavia, tal posicionamento tem duas flagrantes falhas. A primeira é que a norma não se reporta a nenhum intervalo de tempo, de sorte que se está em curso o processo de execução ou a fase executiva, conforme o caso, a inexigibilidade pode ser alegada ainda que transcorridos os dois anos. A outra falha deriva do problema de querer amoldar a força e repercussão da declaração de inconstitucionalidade ou incompatibilidade da aplicação/interpretação proferida pelo Supremo Tribunal às disposições processuais, quando se deveria fazer o inverso. Ora, quem prega a “compatibilização” dos artigos em estudo ao art. 485 e s., do CPC, pretende limitar o poder do STF na apreciação da constitucionalidade aos estritos limites da rescisória. Dizendo-o de outro modo, pretendem dar tratamento jurídico à coisa julgada inconstitucional igual ao que é dado a atingida apenas por vício de legalidade, desprezando a supremacia da Carta Republicana. O Supremo já rechaçou tal posicionamento em diversas oportunidades, ao afastar a aplicação da Súmula n.º 3438, quando a ação rescisória se baseia na ocorrência de ofensa literal a dispositivo normativo da Constituição. Há de se ressaltar que a declaração de inconstitucionalidade pode ocorrer em sede de controle concentrado ou difuso, a despeito de opiniões minoritárias diversas. Tormentosa questão diz respeito a como proceder nos casos de decisões em que há mais de um fundamento. E se todos forem aceitos para formação do título judicial, inclusive aquele que, futuramente, pode ser objeto de reconhecida inconstitucionalidade?

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O título deixa de ser inexigível? Luiz Guilherme Marinoni, que é contrário à relativização da coisa julgada, assim afirmou em artigo9: Cabe argumentar que uma decisão jurisdicional pode se fundar em dois textos legais, mas apenas um ser declarado inconstitucional. Nesse caso, como é evidente, nem aquele que aceita a retroatividade da decisão de inconstitucionalidade em relação à coisa julgada pode deixar de ver a absoluta distinção entre a decisão e o texto de lei, admitindo a absoluta intangibilidade da decisão jurisdicional. Há muito que se refletir. Nesse sentido, pede-se vênia para mencionar questionamento suscitado por Eduardo Talamini10: (...) Porém, poderíamos mudar o exemplo antes dado, para supor que, dos dois fundamentos lançados pelo contribuinte, o segundo (alheio à questão constitucional) foi rejeitado na sentença, a qual, porém, foi de procedência do pedido, com base no primeiro fundamento. O Contribuinte não teria interesse recursal para apelar. Não foi sucumbente. Não houve um pedido autônomo seu rejeitado, .... (...) Suponha-se que houve o trânsito em julgado da sentença. Ora, nesse caso, quando nos embargos se desconstituísse o título amparado no fundamento constitucional, não seria legítimo dizer que o outro fundamento posto pelo contribuinte em sua ação de conhecimento já teria transitado em julgado. (...) Retomar-se-ia o processo a partir da sentença que rejeitou o outro fundamento, então não mais se considerando o anterior acolhimento do fundamento constitucional (já desconstituído nos embargos) – com o que se abriria ao contribuinte a faculdade (e ônus) de apelar. Dessa forma, esses aspectos expostos devem ser considerados como ponto de partida para verificar que a inexigibilidade do título, mencionada na Lei 11.232/2005, não se aplica de forma genérica e abstrata, mas com ponderação, sob pena de causar extrema desordem jurídica nas relações postas à apreciação do Poder Judiciário e trazer uma sensação de instabilidade naqueles que se submetem à decisão dos juizes e Tribunais, aos quais caberá interpretar a lei para aplicá-la ao caso concreto. 4. CONCLUSÃO

A inovação introduzida no nosso ordenamento pelos artigos 475-L, § 1º e 741, parágrafo único, ambos do Código de Processo Civil, é, pois, perfeitamente conciliável com os Princípios Constitucionais, não ofendendo a coisa julgada e segurança jurídica. A segurança jurídica é apenas um dos princípios que norteiam nosso ordenamento. Ninguém nega sua relevância, afeta à necessária estabilidade das relações jurídicas, princípio, como já dissemos, essencial ao próprio Estado Democrático de Direito, mas a res judicata não pode ser inoponível, devendo respeitar a supremacia da Constituição. Todavia, a inexigibilidade do título não deve ser aplicada de forma genérica e abstrata, mas com ponderação, sob pena de causar extrema desordem jurídica nas relações postas à apreciação do Poder

Judiciário e trazer uma sensação de instabilidade naqueles que se submetem à decisão dos juizes e Tribunais, aos quais caberá interpretar a lei para aplicá-la ao caso concreto.

Notas e Referências

1. A segurança não deveria prevalecer sempre, devendo-se, segundo defendem alguns, fazer uso da técnica da “ponderação de interesses”.2. RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Coisa Julgada Inconstitucional. Salvador: Podivm, 2007. p. 93. 3. “Não aplicação da súmula n. 343, do Supremo Tribunal Federal, quando a ação rescisória se baseia na ocorrência de ofensa literal a dispositivo normativo da Constituição”. – nota do original.4. O autor, em nota, faz menção ao art. 741, parágrafo único, do Código de Processo Civil.5. THEODORO JÚNIOR, Humberto. A reforma do processo de execução e o problema da coisa julgada inconstitucional. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 89, p. 94-95, jan./jun. 2004, apud Teori Albino Zavascki. Embargos à execução com eficácia rescisória: sentido e alcance do art. 741, parágrafo único, do CPC. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1510, 20 ago. 2007. Disponível em : http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10296. Acesso em: 09 nov. 2007.6. Ob. cit., p. 94-96.7. DIDIER JR, Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. Direito Probatório, decisão judicial, cumprimento e liquidação da sentença e coisa julgada. Salvador: Podivm, 2007. V. 2, p. 465. 8. Exemplificativamente no RE n. 328.812/AM. Diz o enunciado da Súmula: “Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”.9. MARINONI, Luiz Guilherme. Sobre a chamada “relativização” da coisa julgada material. Jus Navigandi, Teresina, ano 8. n. 448, 28 set. 2004. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5716.Acesso em 08 jun. 2007.10. TALAMINI, Eduardo. “Embargos à execução de título judicial eivado de inconstitucionalidade”. In Relativização da coisa julgada – enfoque crítico. Fredie Didier Jr. (org.). Salvador: Juspodivm, 2006, 2ª edição, apud Fredie Didier Jr. et ali. Curso de Direito Processual Civil, 2007, p. 468.

Referências ComplementaresDIDIER JR, Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. Direito Probatório, decisão judicial, cumprimento e liquidação da sentença e coisa julgada. Salvador: Podivm, 2007. V. 2.

MARINONI, Luiz Guilherme. Sobre a chamada “relativização” da coisa julgada material. Jus Navigandi, Teresina, ano 8. n. 448, 28 set. 2004. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5716.Acesso em 08 jun. 2007.

RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Coisa Julgada Inconstitucional. Salvador: Podivm, 2007.

ZAVASCKI, Teori Albino.Embargos à execução com eficácia rescisória: sentido e alcance do art. 741, parágrafo único, do CPC. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1510, 20 ago. 2007.Disponível em : http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10296. Acesso em: 09 nov. 2007.

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ESTATUTO DOS SERVIDORES DE ARACAJU (LEI MUNICIPAL 1464/88). LEI MORTA?9

Filipe Côrtes de MenezesGraduando em Direito (Universidade Tiradentes/SE)

Aprovado no V Concurso Público do Ministério Público da União, cargo de Analista Processual

Aprovado no Concurso público do Município de Nossa Senhora da Glória/SE, cargo de Procurador Municipal

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SUMÁRIO

1. Introdução. 2. Controle abstrato de constitucionalidade; 2. 1. O controle de normas municipais; 2.1.1. O controle no estado de sergipe; 2.1.1.1. Estatuto dos servidores públicos de aracaju (lei municipal 1464/88); 2.1.1.1.1. Autonomia municipal; 2.1.1.1.2. Conteúdo; 2.1.1.1.3. Adi (breve histórico); 2.1.1.1.4. O tribunal de justiça e a norma; 2.1.1.1.5. O poder público municipal e a norma; 2.1.1.1.6. Conseqüências; 3. Considerações finais

RESUMO

O presente artigo cientifico buscou fazer breves comentários acerca do controle abstrato de constitucionalidade de normas municipais entendendo o alcance do mesmo, bem como o posicionamento da doutrina e da jurisprudência sobre o tema. A partir de então se contextualizou o Estatuto dos Servidores de Aracaju no referido controle demonstrando a ADI a que foi submetido, citando a decisão respectiva do órgão plenário do tribunal de justiça, bem como outras jurisprudências da Corte demonstrando a contraditória aplicação atual da norma, e também a utilização pelo Município.Buscou-se sugerir possíveis soluções ao impasse jurídico decorrente da invalidação da norma pelo processo abstrato à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Utilizou-se no presente trabalho de dados coletados na pesquisa realizada através da Bolsa de Iniciação Científica PROBIC, da Universidade Tiradentes, no período de agosto de 2006 a julho de 2007 que teve por tema: “Análise abstrata do controle concentrado de constitucionalidade dos atos normativos regradores da organização do município de Aracaju” orientado pela professora doutouranda Kátia Cristine Santos de Oliveira e que teve como pesquisador voluntário Flávio Fernandes dos Santos. Dados que serviram também para elaboração do trabalho de conclusão de curso sob a orientação do professor Márcio César Fontes.

Palavras chave: Palavras chave: Controle, abstrato, municipais, estatuto, Servidores, Aracaju

ABSTRACT

The present cientifico article searched to make brief commentaries concerning the abstract control of constitutionality of municipal norms being understood the reach of exactly, as well as the positioning of the doctrine and the jurisprudence on the subject. From now on if the ADI contextualizou the Statute of the Servers of Aracaju in the related control demonstrating the one that was submitted, citing the respective decision of the plenary agency of the justice court, as well as other jurisprudences of the Cut demonstrating the contradictory current application of the norm, and also the use for the City. One searched to suggest possible solutions to the decurrent legal impasse of the invalidation of the norm for the abstract process to the light of the jurisprudence of the Supreme Federal Court. It was used in the present work of the data collected in the research carried through through the Stock market of Scientific Initiation PROBIC, of the Tiradentes University, in the period of August of 2006 the July of 2007 that it had for subject: “abstract Analysis of the intent control of

constitutionality of the normative acts regradores of the organization of the city of Aracaju” guided by the teacher doutouranda Kátia Cristine Santos de Oliveira and that it had as voluntary researcher Flávio Fernandes dos Santos. Data that had also served for elaboration of the work of conclusion of course under the orientation of the professor Márcio César Fontes.

Key words: Control, abstract, municipal theatres, statute, Servers, Aracaju

1 INTRODUÇÃO

O controle concentrado de constitucionalidade a nível federal, ou seja, quando se analisam normas estaduais e federais frente à Constituição Federal, é um tema bastante discutido na doutrina e na jurisprudência pátria. Contudo, o mesmo não ocorre com relação ao controle abstrato de constitucionalidade de leis municipais. Muito menos o que foi efetivado no Município de Aracaju. Sendo que nunca fora contextualizado o estatuto dos servidores de Aracaju sob o enfoque da temática. O presente artigo visa fazer uma breve análise do estatuto dos servidores do município de Aracaju contextualizando-o no tema do controle abstrato de constitucionalidade de lei municipal no Estado de Sergipe com base nos dados obtidos na pesquisa financiada pela Universidade Tiradentes, no período de agosto de 2006 à julho de 2007, através da bolsa de iniciação científica PROBIC, e que teve como orientadora prof(a) doutouranda Kátia Cristine Santos de Oliveira e como pesquisador voluntário Flávio Fernandes dos Santos , para, a partir de então, verificar se tal norma ainda é efetiva e válida no ordenamento jurídico. Sendo que a temática do controle é aprofundado no trabalho de conclusão de curso sob a orientação do professor Márcio César Silva Fontes.

2. CONTROLE ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE

O ordenamento jurídico consiste num complexo de normas e valores organizados que tem na Constituição a norma suprema. Não se admite qualquer antinomia de normas infraconstitucionais para com os princípios e normas constantes daquela. Tal norma Constitucional possui natureza política como bem já assentou o Ministro do Supremo Tribunal Federal, in verbis: (...)Em verdade, a Constituição é Código Político, sobretudo pela sua origem e pelo seu objeto. Pela sua origem, por advir do único poder que funda o Ordenamento sem nesse Ordenamento mesmo se fundar sequer de modo reflexo(e já vimos que esse poder fundante do Ordenamento é eideticamente político). Pelo seu objeto, porque esse objeto, sendo essencialmente o Estado, carreia para a Constituição a politicidade que envolve tudo quanto se refira à estruturação estatal.1 Este sistema hierárquico de normas já fora graficamente demonstrado, através da forma piramidal,

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pelo jurista alemão Hans Kelsen. Trata-se de uma estrutura escalonada de normas em que a Constituição figura no posto mais elevado, independente de se exteriorizar através de um ato legislativo ou pela via do costume.2 Quando, na realidade fática são elaboradas normas em desacordo com a Carta da República ocorre o chamado vício de inconstitucionalidade. Neste sentido já se posicionou o conhecido constitucionalista Paulo Bonavides asseverando que: (...) As leis, para serem constitucionais, não basta que hajam sido formalmente exaradas. Devem estar também materialmente em consonância com os superiores valores básicos da ordem fundamental liberal e democrática, bem com a ordem valorativa da Constituição3.... A inconstitucionalidade pode ser formal ou material. A primeira ocorre quando a norma infraconstitucional é elaborada em desacordo com o processo legislativo previamente estabelecido pela Constituição (Federal e Estadual) e pela lei orgânica, no caso de normas municipais. Já o segundo acontece quando há violação aos princípios e normas contidos na Carta Política. Neste sentido se pronuncia o Prof. José Joaquim Gomes Canotilho, in verbis: “Vícios materiais: São aqueles que respeitam ao conteúdo do acto, derivando do contraste existente entre os princípios incorporados no ato e as normas ou princípios da Constituição. No caso de inconstitucionalidade material ou substancial, viciadas são as disposições ou normas singularmente consideradas4.” Para sanar o vício de inconstitucionalidade a constituição prevê o chamado sistema de controle de constitucionalidade. Este pode ser preventivo (o que ocorre na fase de elaboração normativa nas casas legislativos) ou repressivo (através do Poder judiciário). Quando tal controle é feito tendo por base somente a norma em tese, desvinculada de qualquer caso concreto, ele é denominado de abstrato, concentrado, por via de ação. Acerca do tema já afirmou o jurista Nagib Slaibi Filho, in verbis: (...) Denomina-se sistema de controle de constitucionalidade ao conjunto de instrumentos previstos pela Lei Maior para a salvaguarda de sua supremacia, fundando-se na necessidade de preservar a soberania do poder constituinte em face de qualquer outro poder.5 Quando a norma eivada do vício de inconstitucionalidade é federal ou Estadual cabível é o controle perante a CR/88(quando a contradição principiológica for diante da Carta Política Federal). Neste sentido, in verbis: (...)Já o concentrado(via de ação direta), introduzido na Constituição brasileira de pela E.C nº16/1965, é um sistema de controle que visa a declaração de inconstitucionalidade, em tese, da lei ou ato normativo federal ou estadual ou distrital, sem a necessidade da presença de um caso específico, razão pela qual é o mesmo conhecido como abstrato e genérico. Entretanto já havia desde a Constituição de 1934 a representação interventiva, a ser promovida pelo Procurador Geral da República.6 Quando a norma cuja constitucionalidade analisada é estadual cabível o controle tanto perante a

Carta política federal (quando a violação for perante preceito da CR/88) quanto diante da Constituição Estadual (quando o preceito constitucional violado for da constituição estadual ainda que de repetição obrigatória- Rcl.383-SP.rel.Moreira Alves,DJ.21.05.93). Este controle de constitucionalidade, seja a nível federal seja no âmbito do Estado-membro, será materializado através das ações genéricas. No âmbito federal são cabíveis Ação direta de inconstitucionalidade (ADI) por ação, por omissão e a interventiva, Ação declaratória de constitucionalidade (ADC) e a argüição por descumprimento de preceito fundamental (ADPF). O primeiro tipo de ação (ADI por ação), regrada a nível federal pela lei 9868/99, é utilizado quando a inconstitucionalidade decorre da existência, daí o verbo agir indicando atividade, de preceito infraconstitucional em confronto com os previstos na Carta da república. Neste sentido já afirmou Celso Ribeiro de Bastos ao dizer que a ADI por ação é “aquela que se caracteriza pela prática de um ato, pela edição de uma lei ou pela materialização de um comportamento em antagonismo ao preceituado na Constituição”.7 Já o segundo tipo de ação (ADI por omissão) é empregado quando o legislador infraconstitucional ou a administração pública não edita a norma que condiciona a eficácia de determinado preceito constitucional, a exemplo do artigo 7º, inciso I da CR/88. Existe ainda a nível federal a ação direta interventiva que é utilizada quando a norma infraconstitucional viola os chamados princípios constitucionais sensíveis, dispostos no art.37, inciso VII da CR/88. E por último a nível federal é cabível a Argüição por descumprimento de preceito fundamental (ADPF) a qual visa tutelas os direitos fundamentais da Constituição. Quando estes são infringidos pela edição de uma norma estadual ou federal infraconstitucional, cabível é este remédio jurídico. Sendo mister salientar que como preceitua o art4, §1º da lei 9882/99 a mesma possui caráter subsidiário, ou seja, só pode ser utilizada quando as outras ações genéricas já expostas forem insuficientes para sanar o vício de inconstitucionalidade. Entendimento que encontra guarida na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

2.1 O CONTROLE DE NORMAS MUNICIPAIS

Quando uma norma municipal afronta uma norma ou princípio contido numa Carta Política igualmente ocorre o vício de inconstitucionalidade. Contudo, no sistema jurídico brasileiro, após o advento da Carta Política de 1988, especificamente em seu art.125, §2º, só cabe o controle de constitucionalidade daquele frente à Constituição Estadual. Neste sentido a Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é vasta. Apenas exemplificativamente podemos citar os seguintes arrestos: Rcl.383-SP.rel.Moreira Alves,DJ.21.05.93; Re 161390 –Al rel. Min..Sepúlveda Pertence,DJ,27.10.94; RE 176482-SP, Min.Maurício Corrêa,DJ,13.03.98. Assim não cabe o controle em face de lei orgânica por esta não ter natureza Constitucional (Re 175087 SP, rel.Min. Néri da Silveira, DJ19.03.2002).Neste mesmo sentido a jurisprudência do Tribunal

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de Justiça de Sergipe(MS 030/1998, Rel.Des. Manuel Pascoal Nabuco D`Ávila, julgamento dia 26/11/1998). Com efeito, a dita lei é a norma mais importante produzida pelo Poder Público Municipal, contudo a mesma já se origina duplamente limitada pelas Constituições Federal e Estadual. Neste mesmo sentido já se manifestou o jurista Helly Lopes Meirreles, in verbis: “A capacidade de auto-organização vêm expressa no art.29, caput, da CF, com a permissão de o Município elaborar sua própria lei Orgânica. Dessa forma, o Município atinge o posto mais alto de sua autonomia política, devendo submissão apenas aos dispositivos constitucionais”8 (grifo nosso) Bem como não cabe frente à Constituição Federal de sorte que a simples menção de dispositivo desta, sem indicar o da Constituição Estadual que o reproduz, não autoriza o exercício do controle abstrato da constitucionalidade de lei municipal pelo Tribunal de Justiça (RE 213120-BA, rel.Maurício Corrêa, DJ. 02.06.2000). Concluir-se de forma diversa acarretaria a submissão do Excelso Pretório às decisões da corte local tendo em vista o “efeito “erga omnes” da decisão( ADI 409-3/600-DF,rel.Min.Celso de Mello). A fim de materializar este controle abstrato de normas municipais são utilizados como mecanismos igualmente as ações genéricas comentadas no início da abordagem do tema, quais sejam: ADI por ação, por omissão, interventiva; ADC e ADPF. De acordo com a Constituição de cada Estado-membro, umas ou outras serão admitidas. (Por exemplo, na Carta Política do Estado de Alagoas tem a previsão da ADI (por ação, por omissão e interventiva), ADPF, mas não tem a ADC. Já na do Estado do Amapá ocorre o inverso. Tal fenômeno decorre da autonomia dada pela Constituição Federal a estes entes políticos para se auto-organizar (art.25 da CR/88). Regina Maria Macedo Nery Ferrari, ao tratar do controle concentrado de constitucionalidade das leis Municipais, elucidativamente assim preleciona: (...)O controle da constitucionalidade das leis estaduais e municipais frente à Constituição Estadual representa modo mais característico de asseguramento da autonomia estadual. Sendo a criação de uma Constituição forma de exercício dessa autonomia, mecanismo de controle do respeito à sua Lei fundamental é, também, afirmação desta”.9

2.1.1O controle no Estado de Sergipe

O Estado de Sergipe utilizando-se da competência constitucional derivada pelo constituinte de 1988(art.125, §2º e art.25) trouxe prevista em sua Carta Política a previsão do sistema de controle de Constitucionalidade de leis municipais. Foi previsto como mecanismo de concretização a ADI (por ação, por omissão, interventiva), sendo os legitimados ativos previstos no art. 108(as duas primeiras) e art.23, inc.IV(a terceira), e o pleno do tribunal de justiça o órgão competente para julgá-la. Algumas ações diretas de inconstitucionalidade de normas municipais foram ajuizadas desde a promulgação desta Constituição, em 05 de outubro de 1989, em especial do Município de Aracaju. Dentre as quais se destaca a que deu origem ao processo

nº1995100415, tendo por relatora a Des(a) Clara Leite de Rezende e por revisor o Des. Epaminondas s. de Andrade Lima. Tal ação se destaca justamente porque teve por objeto a declaração de inconstitucionalidade da lei municipal 1464/88(Estatuto dos servidores de Aracaju) que é o ponto central desta breve explanação.

2.1.1.1 Estatuto dos servidores públicos de Aracaju (lei municipal 1464/88)

2.1.1.1.1 Autonomia Municipal

Os Municípios possuem, à luz dos preceitos contidos na Constituição Federal, autonomia normativa, administrativa e financeira. A primeira consiste na outorga constitucional aos entes municipais de criar suas próprias normas e de auto-organizar através da lei orgânica, a qual não possui natureza constitucional, pelos motivos já elencados. A segunda autonomia significa o fato dos municípios conduzirem seus próprios negócios. Decorre da existência de uma Administração pública própria que praticará igualmente atos administrativos (discricionários e vinculados) a qual está submetida aos mesmos limites constitucionais estabelecidos para a Administração federal e para a Estadual. A terceira autonomia decorre dos entes municipais possuírem tributos próprios delineados na constituição federal a exemplo do IPTU(imposto sobre a propriedade territorial urbana), o ITBI(imposto sobre transmissão de bens imóveis) e o ISS(imposto sobre serviços, não abrangendo os de competência dos Estados-membros). Em síntese, a autonomia municipal está consagrada nos arts.29 a 31, 156,158 e 159 da CR/88. Desta feita o Município pode administrar seus recursos, organizar sua Administração (servidores...) e legislar, no campo de atuação do interesse local. Interesse este que não é exclusivo, mas preponderantemente municipal.

2.1.1.1.2 Conteúdo da lei 1464/88

O Município de Aracaju, à luz de sua autonomia consagrada como os demais com a CR/88, e que contava com o precedentes Constitucionais como a CR/1891(art.68)10, elaborou no ano de 1988, a lei nº1464, publicada no Diário Oficial do Estado de Sergipe no dia 02.01.1988, e que teve por objeto o Estatuto dos Servidores de Aracaju, instituindo-se o regime jurídico misto, ou seja, admitindo-se tanto o cargo quanto o emprego público. O Ilustre Celso Antônio Bandeira já definira cargo público como sendo : “as mais simples e indivisíveis unidades de competência a serem expressadas por um agente, previstas em número certo, com denominação própria, retribuídas por pessoas jurídicas de Direito Público e criadas por lei, salvo quando concernentes aos serviços auxiliares do Legislativo, caso em que se criam por resolução, da Câmara ou do Senado, conforme se trate de serviços de uma ou de outra destas casas”11 . Já Maria Sylvia Zanella Di Pietro explica que emprego público igualmente designa uma “unidade de atribuições” se diferenciando do cargo público pela

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liame que une o servidor ao Poder Público. Assevera a jurista que: “o ocupante de emprego público tem um vínculo contratual, sob a regência da CLT, enquanto o ocupante do cargo público tem um vínculo estatutário, regido pelo Estatuto dos Funcionários Públicos que, na União, está contido na lei que instituiu o regime jurídico único(Lei nº8.112/90).12 A temática se mostra ainda mais interessante e atual tendo em vista a recente decisão do Supremo Tribunal Federal (Med.Cautelar em ADI 2135-4/DF, Rel.César Peluso) na qual a Corte suspendeu a aplicação da redação da Constituição dada pela EC 19/98, que permite o regime misto no serviço público, restituindo, “ex nunc” o regime jurídico único da redação originária da Carta Política da República.

2.1.1.1.3 ADI (breve histórico)

Irresignado com os preceitos de Estatuto o chefe do Poder Executivo à época, legitimado “ad causam” pelo art.108, inc. VI da Constituição Estadual, ajuizou Ação direta de inconstitucionalidade, sob o fundamento de que a mesma violava o art.39 da CR/88, em defesa do regime jurídico único, autuada, como já informado, sob nº1995100415, com fim de obter do órgão plenário do tribunal de justiça a declaração de inconstitucionalidade da norma e por fim retirá-la do mundo jurídico. No desenvolver do feito o Procurador Geral de Justiça, na função de custos legis, emitiu, em parecer, posicionamento favorável ao acatamento da tese autoral. Já o Procurador geral do Estado, como curador da norma13 (art.108, §3º da Constituição Estadual), assim como o faz o Advogado Geral da União no controle federal (art.103, §3º da CR/88) sustentou a improcedência do pleito. A corte local, em decisão meritória, acatou os fundamentos da exordial, declarando, no dia 18/03/1993, a inconstitucionalidade “in totum” daquele Estatuto Municipal. Eis a ementa:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº04/91-Lei Municipal nº1464/88 que estabelece o regime jurídico dos Servidores Públicos Municipal-Alegação de inconstitucionalidade por fixar regime misto em confronto com o art.39 da CF. Preliminares da Contestação:-Incompetência do Tribunal de Justiça de Sergipe; -Ilegitimidade ativa e passiva “ad causam”;-Ilegitimidade do Procurador Geral do Estado.O tribunal de Justiça e Sergipe é competente para processar e julgar as Ações Diretas de Inconstitucionalidade de lei municipal, após o surgimento da Constituição Estadual-Aplicação do seu art.106.Improcedência.O Executivo Municipal é parte legítima para requerer ação direta de inconstitucionalidade, embora a lei seja de sua iniciativa, em face ao disposto no art.108 da Constituição Estadual. A Câmara de Vereadores é, outrossim, parte legítima passiva. Aplicação, ao caso, dos Princípios do Direito Administrativo e de Hermenêutica. Rejeitada Preliminar. O Procurador Geral do Estado é parte legítima por disposição constitucional-Improcedência. No mérito: O regime misto estabelecido na lei conflita-se com o art.39 da Constituição Federal que determina a adoção de regime único. Procedência da ação.(ADI

nº04/91, Rela Desa Clara Leite de Rezende, Revisor Des.Epaminondas Silva de Andrade Lima; julgada em 18/03/93) Ante a inexistência de interposição de qualquer recurso, a referida decisão transitou em julgado, tornando-se imutável (art.5, inc. XXXVI da CR/88) em pese haver fundamento jurídico para tanto. Seria suficiente a sustentação do não cabimento de ADI de norma municipal com causa petendi da CR/88 como fora o caso em tela, e o que já é hoje pacificado pelo Supremo Tribunal Federal como já explanado, sendo cabível a utilização inclusive do instituto da reclamação (arts.13 à 18 da lei 8038/90).

2.1.1.1.4 O Tribunal de Justiça e a norma

O que se torna intrigante na temática é o fato do próprio tribunal ainda aplicar, de forma contraditória, o referido diploma normativo, em suas decisões, trazendo-se exemplificativamente os seguintes arrestos infra- elencados:

MANDADO DE SEGURANÇA - LEGITIMIDADE PASSIVA DA APONTADA AUTORIDADE COATORA - PREFEITO MUNICIPAL DE ARACAJU - ART.196 DA LEI Nº 1464/88 - GRATIFICAÇÃO DE TITULAÇÃO - ART.263 DO ESTATUTO DOS SERVIDORES DE ARACAJU - DECRETO Nº 97/98 - ANÁLISE DE DOCUMENTAÇÃO - DILAÇÃO PROBATÓRIA DESNECESSÁRIA- PÓS GRADUAÇÃO EM DIREITO TRIBUTÁRIO - AUDITOR FISCAL- SEGURANÇA CONCEDIDA - DECISÃO UNÂNIME. “(MS nº 0060/2006, Rel. Desa. Josefa Paixão de Santana, julgado em 22/11/2006)

REEXAME NECESSÁRIO - PREVIDENCIÁRIO - FUNCIONÁRIA MUNICIPAL - EXTENSÃO DO BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO AO CÔNJUGE VARÃO - ÖBITO DA ESPOSA EX-SEGURADA - ISONOMIA CONSTITUCIONAL ENTRE HOMENS E MULHERES - APLICAÇÃO DOS ARTS. 5O, I; 40, §§ 3O , 7O , 8O E 201, V DA CF/88 - AUTO APLICABILIDADE DA NORMA CONSTITUCIONAL -- CONCOMITÂNCIA COM O ART. 364 DA LEI MUNICIPAL 1464/88. - A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal já havia pacificado a auto-aplicabilidade do artigo 201, inciso V, da CF, entendendo que a garantia jurídico-previdenciária prevista na referida norma “deriva de norma provida de eficácia plena e revestida de aplicabilidade direta e imediata. Esse preceito da Lei Fundamental qualifica-se como estrutura jurídica dotada de suficiente densidade normativa, a tornar prescindível qualquer mediação legislativa concretizadora do comando nele positivado. Essa norma constitucional - por não reclamar a interpositio legisllatoris - opera, em plenitude, no plano jurídico, todas as suas virtualidades eficacionais, revelando-se aplicável, em conseqüência, desde a data da promulgação da Constituição Federal de 1988. A exigência inscrita no art. 195, §5º, da Carta Política traduz comando que tem, por destinatário exclusivo, o próprio legislador ordinário, no que se refere à criação, majoração ou extensão de outros benefícios ou serviços da seguridade social” (STF, 1ª T. - RE nº 151.122

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(AgRg)/SP - Rel. Min. Celso de Mello. Sentença mantida. - Decisão unânime...(Reexame necessário nº0098/2001, Rel. Des. Roberto Eugênio da Fonseca Porto, julgado em: 26/02/2002)

CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO APOSENTADO. EXCLUSÃO DE VANTAGEM INCORPORADA. DIREITO ADQUIRIDO E IRREDUTIBILIDADE DE VENCIMENTOS. I - SE A LEI VIGENTE AO TEMPO DA APOSENTAÇÃO (LEI MUNICIPAL Nº 1464/88) IMPEDIA A PERCEPÇÃO DE GRATIFICAÇÃO POR TEMPO INTEGRAL CUMULADA COM REPRESENTAÇÃO DE GABINETE (ART. 260), TAL COMO OCORRIDO NOS AUTOS, LEGAL SE MOSTRA O ATO ADMINISTRATIVO QUE EXCLUI O PRIMEIRO, SEM QUALQUER NECESSIDADE DE INSTAURAÇÃO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO EM QUE SE ASSEGURE AMPLA DEFESA E CONTRADITÓRIO QUE, IN CASU, RESTAM POSTERGADOS PARA UMA EVENTUAL INSTAURAÇÃO DE PROCESSO JUDICIAL A SER PROMOVIDO PELO SERVIDOR. APLICAÇÃO DO ATRIBUTO DA AUTO-EXECUTORIEDADE. II -SITUAÇÃO EM QUE NÃO É DE SE APLICAR OS PRINCÍPIOS DO DIREITO ADQUIRIDO E IRREDUTIBILIDADE DE VENCIMENTOS, QUE PRESSUPÕE, OBVIAMENTE, A EXISTÊNCIA DE DIREITO, ACASO INEXISTENTE, ANTE A ILEGALIDADE DE QUE SE REVESTIU A CONCESSÃO. III - REVISÃO DO DECISUM POSTO À REEXAME, COM INVERSÃO DA SUCUMBÊNCIA... (Reexame Necessário nº036/1998, Rel. Desa. Marilza Maynard Salgado de Carvalho , julgado em: 11/10/1999)

INCIDENTE DE INCONSTITUCIO-NALIDADE. MANDADO DE SEGURANÇA IMPETRADO CONTRA ATO DO PRESIDENTE DA CÂMARA MUNICIPAL DE ARACAJU. ARGÜIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DA PARTE FINAL DO PARÁGRAFO ÚNIC O DO ART. 136 DA LEI MUNICIPAL Nº 1.464, DE 30 DE DEZEMBRO DE19 88 (REGIME JURÍDICO DOS FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS CIVIS DO MUNICÍPIO DE ARACAJU). OFENSA AOS ARTS. 30, II, “A” DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL E 40, III, “C” DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. DECLARA-SE INCIDENTALMENTE A INCONSTITUCIONALIDADE DA PARTE FINAL DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 136 DO ESTATUTO DOS SERVIDORES MUNICIPAIS QUE AFRONTA O DISPOSTO NO ART. 30, II, “A” DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL E ART. 4 0, III, “C” DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL; DECISÃO UNÂNIME. (Incidente de Inconstitucionalidade nº 001/1998, Rel. Desa Clara Leite de Rezende, julgado 11/03/1999)

2.1.1.1.5 O Poder Público Municipal e a norma

Como se não bastasse a incoerência jurisprudencial da Corte Local, no tocante a esta lei

1464/88 de Aracaju, o próprio Poder Público Municipal demonstra também aplicá-la nos dias atuais. Isto se verifica pela edição da lei complementar municipal nº34/97, de 30 de dezembro do ano de 1997, que veio posteriormente alterar a redação dos arts.95 e 97 daquela que não mais existia juridicamente pelo transito em julgado da ADI.

2.1.1.1.5 Conseqüências

Assim se poderia concluir, por conseqüência processual, serem nulos todos os processos do tribunal de justiça cuja decisão, em casos concretos, teve por base a referida a lei municipal 1464/88, bastando-se para isso executar aquela ADI ou ajuizar a respectiva Ação declaratória de nulidade, por afronta à coisa julgada, hipótese em que seria o Supremo Tribunal Federal o juízo competente à luz do art.102, I, “n” da CR/88, assim como ocorreria a insubsistência de todos os atos normativos emanados pelo Poder Público Municipal com base naquela. Entendimento diverso acarretaria afronta aos pilares do sistema jurídico, dentre os quais se pode destacar a segurança jurídica, derivada justamente do art.5, inc. XXXVI da CR/88. Pode-se concluir também a ocorrência de efeitos materiais, no sentido de que a atitude dos Poderes Executivo e legislativo, ao elaborarem a norma, pode constituir crime, pelos seus agentes, de desobediência à decisão judicial, bem como afronta, desde 2001, à lei de responsabilidade fiscal. Por derradeiro deflui-se igualmente que de acordo com a jurisprudência do Excelso Pretório, v.g ADI 2884/RJ(Min. Celso de Melo, DJ 20.05.05;ADI 2867/ES, Min,Celso de Melo, Dj 09.02.07) a declaração de inconstitucionalidade em sede de controle abstrato acarreta o chamado efeito repristinatório, ou seja, a lei revogada pela lei declarada inconstitucional volta a vigorar. Com isto se tem que em verdade, desde o trânsito em julgado daquela ADI que invalidou a lei municipal 1464/88, voltou a vigorar o antigo estatuto dos Servidores de Aracaju (lei municipal 160/70). Seria, todavia, de bom alvitre, tendo em vista a mudança sócio-cultural ocorrida entre a década de 70 e os dias de hoje, que se editasse outro Estatuto dos Servidores, momento em que podem ser atendidos antigos anseios da classe de trabalhadores que terão a oportunidade de fiscalizar a participar da elaboração da norma. A lei municipal 160/70 foi revogada pelo estatuto que foi declarado inconstitucional no exato sentido que é dado por Carlos Maximiliano, utilizando-se dos dizeres de Chironi &Abello quando aborda o tema da revogação de normas. O eminente jurista o faz da seguinte forma, in verbis: “Se a lei nova cria, sobre o mesmo assunto da anterior, um sistema inteiro, completo, diferente, é claro que todo o outro sistema foi eliminado. Por outras palavras: dá-se ab-rogação, quando a norma posterior se cobre com o conteúdo todo da antiga”.14

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

No sistema jurídico as normas estão escalonadas de forma hierárquica, estando a Constituição num ponto de supremacia dentre do mesmo. Em conseqüência todas

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as demais normas, denominadas infraconstitucionais, devem guardar consonância com a mesma. Quando isto não ocorre configura-se o fenômeno jurídico denominado de vício inconstitucionalidade. Para combater este vício a própria Carta Constitucional criou mecanismos de controle de Constitucionalidade. Quando este é feito tendo por base a norma em tese, independentemente da existência do caso concreto, há o chamado controle abstrato de constitucionalidade, também conhecido como concentrado ou por via de ação. Na esfera federal, ou seja, perante o Supremo Tribunal Federal, o controle abstrato é exercido no momento em que a norma dita inconstitucional é estadual ou federal, e a causa de pedir da Ação genérica é a Constituição Federal. Existem, nesta esfera, cinco espécies de ações, conhecidas como genéricas. São elas: Ação direta de inconstitucionalidade por ação; Ação direta por omissão; Ação direta Interventiva; Ação Declaratória de Constitucionalidade e Argüição de descumprimento de preceito fundamental. Na esfera estadual, quando uma norma municipal possui um vício de inconstitucionalidade e se objetiva declará-la em tese há a previsão igualmente do controle abstrato de constitucionalidade. Contudo, neste apenas é admissível como causa de pedir violação à norma ou princípio da Constituição Estadual, ainda que seja de reprodução obrigatória de Constituição Federal. Ademais, o rol das ações genéricas mudará a depender do Estado-membro (art.25 e art.125, §2º, ambos da CR/88). No Estado de Sergipe foram ajuizadas a julgadas algumas ações diretas de inconstitucionalidade de normas municipais, em especial do Município de Aracaju. Dentre estas ações se destaca a ADI 04/91 na qual se declarou a inconstitucionalidade do Estatuto dos servidores Públicos do Município de Aracaju. Tal diploma continua, de forma contraditória, sendo aplicado pelo Tribunal de Justiça e pelo Poder Público do Município. Desta aplicação podem resultar conseqüências processuais e materiais. As primeiras são: a anulação dos feitos em que a fundamentação da decisão tendo sido a lei 1464/88, após o trânsito em julgado daquela ADI, bem como a ocorrência do efeito repristinatório, voltando o antigo Estatuto dos servidores (lei municipa160/70) a ter vigência. Já materialmente pode-se inferir como efeito daquela aplicação a possível consumação de crime de desobediência por parte dos integrantes dos poderes municipais (Executivo e Legislativo) e a infração aos preceitos da Lei de responsabilidade fiscal, a partir do ano de 2001. Conclui-se ser mais benéfico à categoria profissional envolvida a elaboração de um novo Estatuto, tendo em vista que já ocorreram várias transformações sócio-culturais entre a década de 70 (época do anterior) e os dias atuais.

Notas e Referências

1. BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de janeiro: Forense. 2006.p.372. WAMBIER, Luiz Rodrigues. Ação direta de inconstitucionalidade por omissão, na Constituição Federal e nas Constituições dos estados-,membros. Revista de

Processo, v.17, nº65, p.75-88, jan./mar.1992[0470497].3. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito Constitucional. 4ºed. São Paulo: Malheiros Editores, 1993.4. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 5ª edição - Coimbra: Almedina. 1992.p.10245. FILHO, Nagib Slaibi, Ação declaratória de inconstitucionalidade. Rio de Janeiro: Forense, 1994. p486. COSTA, Marcos Vinícius Americano da. Controle de Constitucionalidade. Jurídica: Administração Municipal, v.9, nº5, p.247. BASTOS, Celso Ribeiro apud WAMBIER, Luiz Rodrigues. Ação direta de inconstitucionalidade por omissão, na Constituição Federal e nas Constituições dos estados-,membros. Revista de Processo, v.17, nº65, p.75-88, jan./mar.1992[0470497]. P.788. MEIRRELES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 14ºed.Malheiros. São Paulo. 2006.p.94 9. FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Controle da Constitucionalidade das leis Municipais.3ºed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2003. p.9610. BRAZ, Petrônio. Direito Municipal na Constituição.6ºed.Leme:J.H.Mizuno, 2006.p.41 11. MELO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 20º ed. São Paulo: Malheiros, 2005., p.233-23412. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 19ºed. São Paulo: Atlas. 2006, p. 506-50713. Em que pese a disposição literal do art.108, §3º do art.108 da Constituição Estadual o chefe da Advocacia Pública do Estado em várias ADI(s) de leis de Aracaju, a exemplo da ADI 0006/2000, deixou assente o posicionamento do órgão de que tal incumbência, à luz do princípio da autonomia do Município, seria dos procuradores deste.14. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p.293

Referências ComplementaresBASTOS, Celso Ribeiro apud WAMBIER, Luiz Rodrigues. Ação direta de inconstitucionalidade por omissão, na Constituição Federal e nas Constituições dos estados-,membros. Revista de Processo, v.17, nº65, p.75-88, jan./mar.1992[0470497]

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito Constitucional. 4ºed. São Paulo: Malheiros Editores, 1993.

BRAZ, Petrônio. Direito Municipal na Constituição.6ºed.Leme:J.H.Mizuno,2006.

BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de janeiro: Forense. 2006.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 5ª edição - Coimbra: Almedina. 1992

COSTA, Marcos Vinícius Americano da. Controle de Constitucionalidade. Jurídica: Administração Municipal, v.9, nº5.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 19ºed. São Paulo: Atlas. 2006.

FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Controle da Constitucionalidade das leis Municipais. 3ºed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2003

FILHO, Nagib Slaibi, Ação declaratória de inconstitucionalidade. Rio de Janeiro: Forense, 1994.

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

MEIRRELES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 14ºed.Malheiros. São Paulo. 2006.

MELO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 17ed. São Paulo: Malheiros. 2004.

WAMBIER, Luiz Rodrigues. Ação direta de inconstitucionalidade por omissão, na Constituição Federal e nas Constituições dos estados-,membros. Revista de Processo, v.17, nº65, p.75-88, jan./mar.1992[0470497.

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RAÍCES FILÓFICAS: PARADOJA DE VALORES EN LA

ADMINISTRACIÓN PÚBLICA.10

Pedro DurãoProcurador do Estado de Sergipe

Doutorando em Direito Administrativo (Universidade de Buenos Aires - UBA)

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RESUMEN

La presente investigación trata sobre el contenido jusfilosófico aplicado al estudio de la ética, con la finalidad de trazar sus aspectos singulares y sus concepciones distintivas, ante el sofismo, la mayéutica, la administración pública y la justicia em el mundo global.

Palabras-claves: ética. jusfilósofos. sofismo. mayéutica. justica.

ABSTRACT

The present investigation deals with on the beginning to the study the applied philosopher the ethics, with the purpose to trace its singular aspects and its distinctive conceptions, ahead of the sofismo, the maieutiké and justice in a glogal world.

Key-words: ethics. phisolopher. sofismo. maieutiké. justice.

1 INTRODUCCIÓN

ENFOQUE HISTORICISTA DEL SOFISMO: RETORICA RELATIVISTA

Se entiende por Sofismo a la técnica, las enseñanzas y la práctica propias de los Sofistas. Los Sofistas fueron un grupo distinto de pensadores que utilizaba argumentos atrabiliarios con la intención de manipular, recepcionar, persuadir o defender una posición determinada, sin considerar su valor o verdad. El Sofismo surgió del término que significaba sabio, o especialista en el saber. Los Sofistas se consideraban sabios y maestros de profesores independientes e itinerantes, que cobraban para enseñar el arte de hablar, a fin de tener éxito en la vida social.1 Sus principales exponentes, quienes sostenían tesis paradojales según el saber de la época Helénica, fueron: Protágoras de Abdera - fundador del movimiento -, Pródico de Céos, Hipias de Elis, Anrifon de Atenas, Trasímacos de Calcedonia, Calícias y Gorgias de Leontino. Fueron ellos quienes, de hecho, influyeron el curso de la investigación filosófica y se convirtieron en los primeros en reconocer el valor formativo del saber y en elaborar el concepto de cultura (Paideia) para la formación del hombre como miembro de un pueblo o de un ámbito social.2 Queda claro, entonces, que la naturaleza relativista de sus tesis no fue más que la expresión de una condición fundamental de la enseñanza. En todos los casos, el interés de los Sofistas se limitó no sólo a la esfera de las actividades humanas sino también a la propia filosofía como un instrumento cuya hábil implementación ayuda a alcanzar sus intereses. El carácter de la Sofística se vio reflejado en la profesión de la sabiduría, por parte de aquellos que eran remunerados a tal fin, a través de la enseñanza de las disciplinas formales y de otras nociones sin base

científica. La creación fundamental de los sofistas fue la retórica como el arte de declamar o argumentar con el fin de impresionar o persuadir independientemente de la validez de las razones adoptadas. Hete aquí una pregunta, entonces: ¿Se aplica el Sofismo en la administración pública actual? Si bien se insiste en que estos son tiempos modernos, algunas autoridades utilizan argumentos dudosos y facciosos para manipular intereses en favor de proyectos inaplicables y costosos que no hacen al interés colectivo ni al de la administración pública. Según Jean-Jacques Chevallier,3 Protágoras - príncipe de los sofistas y experto en manipular la dialéctica - fue quien instauró el subjetivismo total, tanto en el terreno político como en el ético, al afirmar que el hombre es la medida de todas las cosas. Ya Hipias había expresado su opinión sobre la relatividad de las leyes en el espacio según los pueblos y las ciudades, así como sobre sus relaciones con la justicia, al decir que todos los aquí presentes son para mí parientes, prójimo, conciudadanos por naturaleza, tal vez por ley. Por naturaleza, el semejante es pariente del semejante, pero la ley, que tiraniza a los hombres, impone restricciones a la naturaleza. Los Sofistas presentaban algunos rasgos característicos, a saber: a) Tenían un objetivo práctico: exigían una compensación pecuniaria por sus enseñanzas - por lo que era esencial la búsqueda de alumnos; b) Eran nómades aunque respetaban el apego a la ciudad en contraposición al dogma ético griego; c) Manifestaban una notable libertad de espíritu en relación a la tradición, las normas y los comportamientos establecidos, y una confianza ilimitada en las posibilidades de la razón; d) Avalaban la realización de esfuerzos independientes para satisfacer una misma necesidad. Argumentos retóricos totalmente disímiles a los del Estado administrativo moderno.Finalmente podemos afirmar que la Sofística, si bien destruyó la vieja imagen del hombre de la poesía y de la tradición prefilosófica, no supo reconstruir una nueva estampa, lo que provocó un rechazo, sobre todo por parte de Sócrates, uno de los pensadores más importantes de la Grecia clásica, y de Platón,

2. SÓCRATES VERSUS EL SOFISMO: MAYÉUTICA Y ÉTICA

Sócrates - hijo de un escultor y de una partera - nació justo cuando Atenas se vislumbraba como una potencia política, económica y militar (470-399 AC). No dejó nada escrito, salvo las ideas que divulgaron sus principales discípulos: Xenofonte y Platón. Fue este último quien eternizó la expresión Socrática al colocarse como el portavoz de su doctrina. Xenofonte4, en cambio, mostró a Sócrates en una dimensión menos mítica. Desde su juventud, Sócrates tuvo el hábito de debatir y dialogar con la gente de su ciudad. A diferencia de sus predecesores, no fundó ninguna escuela porque prefirió realizar su trabajo en locales públicos, de forma errante, dialogando con todas las personas, lo que fascinó a jóvenes, mujeres y políticos de su época. Las cuestiones que Sócrates privilegió son las referentes a la moral, de ahí su interés en saber en qué

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consiste el coraje, la cobardía, la piedad, la justicia, etc. De hecho, por medio de preguntas, él destruía el saber constituido para reconstruirlo en la búsqueda de la definición del concepto. En la enseñanza Socrática, para que hubiera una definición de la esencia universal del hombre, era preciso que existiera algo más allá de los hombres particulares y diferentes entre sí que conocíamos - otro mundo donde existiera la justicia en sí. Era en el mundo invisible en donde triunfaba la justicia. Como el auto-conocimiento era parte estructural de la razón Socrática, él la desarrollaba a través de diálogos, los que dividía en ironía y mayéutica. Con un estilo de vida aparentemente Sofista - aunque jamás vendió sus enseñanzas -, Sócrates interrogaba a las personas por la calle y les solicitaba que le dieran su opinión acerca de la justicia, el bien y el mal, del derecho, según reporta Frederico Abrahão de Oliveira en su obra “Filosofía del Derecho Occidental”.5 Había, por lo tanto, una coincidencia entre Sócrates y los Sofistas en cuanto a la necesidad de que el derecho tuviera su origen en la naturaleza humana. La diferencia entre uno y otros radicaba en que los Sofistas consideraban los aspectos con respecto al hombre, mientras que Sócrates iba hasta la esencia humana y tomaba en cuenta el espíritu ético - a pesar de que existía una tradición proveniente de Aristóteles que afirmaba que los Sofistas no habían dicho nada. Se sabe que “los Sofistas sostenían el relativismo en el conocimiento y en la moral. Sócrates discrepaba radicalmente en este punto con ellos. Recordemos que para los sofistas no había un criterio universal o patrón con el medir las actitudes morales, por lo cual no era posible hallar definiciones precisas de ellas y, en consecuencia, hacer ciencia rigurosa (“episteme”). Sócrates, por el contrario, pensaba que sí era posible encontrar este patrón utilizando con rigor el razonamiento que nos diera las definiciones precisas para cada concepto. A través del diálogo, el razonamiento y, por tanto, la comunicación, es posible lograr las definiciones precisas. Sócrates sí creía en un conocimiento “epistémico” sobre los conceptos morales. En este empeño por un saber “científico” sobre cuestiones morales tenía bastante que ver el modelo de saber utilizado, el saber técnico”.6 Muchas veces se ha dicho que él vivió y murió enseñando el respeto a las leyes (a diferencia de sus adversarios Sofistas que se rebelaban contra los textos legales), afirmando la noción del alma y del yo conciente como personalidad intelectual y moral para concluir, inevitablemente, en que “el alma nos ordena conocer a aquel que nos advierte: ‘Conócete a ti mismo’.”7

El lema “Conócete a ti mismo” - en que Sócrates cifró toda su vida de sabio - resumía el concepto de que el perfecto conocimiento del hombre es el objetivo de todas sus especulaciones y la moral, el centro hacia el cual convergen todas las partes de la filosofía. La psicología le sirve de preámbulo y la teodicea8 de estímulo a la virtud y de natural complemento de la ética. La manera en que Sócrates hacía que las personas se conocieran a sí mismas también estaba ligada a su descubrimiento de que el hombre, en su esencia, es su psyché. En su método, llamado mayéutica, él tendía a despojar a la persona de su falsa ilusión de saber, al vulnerar su vanidad, lo que permitía que la persona misma estuviese más libre de prejuicios y más

susceptible a extraer la verdad lógica que estaba en su interior. Él no enseñaba nada, sólo ayudaba a que el interlocutor de turno, por cuenta propia, formara opiniones sin falsos valores, ya que, a su entender, el verdadero conocimiento tenía que venir de adentro, de acuerdo a la conciencia. Indudablemente, el objetivo del diálogo Socrático, “[...] era matar al maestro en el discípulo, inocularle el germen de la duda metódica, del cuestionamiento purgativo, y prepararle el espíritu para un auténtico aprendizaje...”, afirmaba Eduardo Navarro9 al comentar el perfil biográfico de Sócrates – Maestro de Grecia y del Mundo –, en el capítulo introductorio al clásico “Banquete” de Platón. El sabio griego entendía que el proceso de aprender es un proceso interno, y tanto más eficaz cuanto mayor sea el interés de aprender. Sólo el conocimiento que viene de adentro es capaz de revelar el verdadero discernimiento, al tomar, concomitantemente, conciencia de su propio pensamiento. Esto plantea una revolución en la enseñanza y valores tradicionales. Los verdaderos valores no son aquellos que están ligados a las cosas exteriores como la riqueza, el poder, la vida, sino aquellos valores del alma que se resumen en el conocimiento. Por otro lado, Sócrates dedicó su vida al orden cívico y, difícilmente pudo imaginar un sacrificio mayor. Murió predicando respeto a las leyes, siempre y cuando fueran justas. Cuando estuvo condenado a muerte y lo visitaron sus amigos - quienes le propusieron fugarse de la prisión para evitar la ejecución de una pena impuesta injustamente -, Sócrates les contestó: “si me pertenece el derecho de salir de esta prisión sin el permiso de los Atenienses o si, por el contrario, carezco de ese derecho es lo que debemos analizar. ¿El Estado fue injusto al decidir equivocadamente la controversia jurídica? Eso es lo que debemos decidir.” Sócrates argumentaba que el orden jurídico reinante en la ciudad de Atenas era el que propiciaba las condiciones de vida de sus ciudadanos y los sometía al orden establecido. En tal sentido, en la relación existente entre el Estado y los ciudadanos no había igualdad dado que estos debían a la patria, la vida y el conocimiento que poseían, lo que los convertía en siervos del sistema. Finalmente, Sócrates, fingió ignorar todo y adujo no haber un concepto general en todas las cosas. Se llama concepto al fruto, término o desecho de un proceso que dialécticamente va de la multiplicidad a la unidad, del error a la opinión verdadera. Cabe recordar que en los pueblos organizados, la justicia es el poder propio - fundamento de los poderes públicos que se instituyen por delegación de la soberanía popular. En otras palabras, la justicia es la realización del derecho propio. La administración Estatal funciona de acuerdo a los dictámenes de las autoridades. Al referirse al derecho positivo en esta época, Hans Kelsen afirma que Sócrates “deja la parte del derecho de la moral positiva directamente en manos de los dioses, cuando declara: ‘hasta los mismos dioses ven lo justo y lo legal como una misma cosa.”10

Lo cierto es que la administración actual, en algunos momentos, intenta enfrentar las dificultades del pueblo, aunque sin ética y con altos costos. Es esencial, entonces, que se reevalúe su forma de pensar a fin de

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convertirla en una administración moderna que valore el bienestar. Nelson Saldanha plantea que el derecho se da en las sociedades con una estructura ético-política destinada a resolver problemas que pueden ser o no “conflictos: una estructura que tiende a estabilizarse y fortalecerse, pero que al mismo tiempo se altera y cambia de contenido”.11 Maurício Adeodato lo explica, con propiedad: El concepto de ética ha sufrido profundas modificaciones y desde entonces se tiene casi tantas definiciones como autores que la examinan. Su aplicabilidad práctica, sin embargo, permanece fiel al sentido original de hábito, uso, costumbre o derecho. Desde una visión pragmática, las normas éticas cumplen la misma función vital: reducen la inmensa complejidad de las relaciones humanas y ayudan al ser humano a decidir sobre cómo actuar. Y es la decisión lo que neutraliza el conflicto.12 En consecuencia, para determinar si una acción es buena, se deben analizar las ganancias o las pérdidas que se hayan obtenido. En esta vertiente, se destaca la esfera económica. Los utilitaristas hacen, de hecho, un cálculo de costo/beneficio que resulta en un sacrificio y son insensibles a la distribución equitativa.13 El Profesor Aníbal D’Auria de la Universidad de Buenos Aires destaca el progreso dentro de la filosofía política y de la participación popular: Con la definición de un área específica de investigación dentro de la filosofía política y la teoría del Estado, se avanzó significativamente en la comprensión del funcionamiento del régimen demo-representativo de gobierno y en la búsqueda de vías tendientes a profundizar la participación popular y el carácter democrático de tales sistemas como el municipalismo y el cooperativismo. Se avanzó también, a través del replanteo del papel de la retórica en las deliberaciones legislativas y de la revalorización del sorteo en la constitución de los órganos deliberativos.14 De este modo, se puede percibir que el interés de la ética es el ser humano - la persona en todas sus dimensiones – porque, al replantearse el papel de la retórica, queda como conclusión la unidad en su ser y en su deber ser. Se puede afirmar, entonces, que la ética es una conducta interior – una reflexión acerca de los valores - y, por consiguiente, una opinión en relación a los mismos. Sólo resta mencionar al discurso como instrumento no sólo de persuasión del ciudadano, a través del mensaje, sino también de demostración de aquello que se oferta - mucho más que la propuesta en sí -, lo que forma un discurso ético que nada exige pero que presenta al interlocutor, con toda legitimidad, al verdadero estado administrativo.

3. CONCLUSIONES

En síntesis, se puede concluir que la ética influye, en el día a día, a la humanidad, y hace que sea necesario diferenciar las actitudes egoístas - producidas en la mayoría de los casos por los Sofistas - de la construcción del pensamiento y de la creación de las ideas provenientes de la experiencia humana, para así lograr una administración equilibrada y ecuánime. De tal modo, estaremos más próximos al

respeto por los valores innatos del ser humano y podremos tratarlo con dignidad, aun frente a las situaciones conflictivas y opuestas que revela el mundo globalizado o mundo globo-colonizado, como otros prefieren llamar. Bajo esta perspectiva, no existe un solo concepto de administración pública. Esta se encuentra en las ideas, en el conocimiento verdadero y relativamente aceptable que se adquiere mediante indagaciones, cuestionamientos sobre el interés público real y no el de los sectores relativistas. Sócrates, con sus preguntas, obligó muchas veces a los hombres experimentados a que elucidaran todo lo que sabían. Ellos notaban que, a lo sumo, sólo podían citar ejemplos de autoridad y que eran incapaces de descubrir el concepto general que definiera a la justicia como tal. Se podría poner en práctica el mismo razonamiento para la administración pública. Según Sócrates existe “una justicia” y no la Justicia, ergo, por más increíble que parezca, existe una administración pública y no la administración pública. Nos da pena descubrir que tal “concepto” designe a una administración pública que, conforme a lo expuesto por Sócrates, tiene su existencia en el mundo invisible. En definitiva, al ejercitar la ironía del Sofismo y la mayéutica Socrática, se ve claramente, en algunos casos, el ejemplo perfecto de una administración pública deficiente. Es, así que la justicia Socrática y la contemporánea divergen en su forma representativa. La primera - al encontrarse intrínseca en los valores introspectivos de cada hombre - buscaba el sentido rectilíneo de pensar la solución de las contiendas, mientras que la última - renovada por las exigencias del derecho positivo y muchas veces influenciada por factores diversos - promueve la lenta y virtual solución de los conflictos y dificultades del pueblo, dejando de lado el verdadero objetivo de la administración pública que todos desean.

Notas e Referências1. Nesse sentido: CHEVALLIER, Jean-Jacques. História do pensamento político: da cidade-estado ao apogeu do Estado-Nação monárquico. Tomo I. Tradução Roberto Cortes de Lacerda. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1982, p. 37-43. REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História da filosofia: antiguidade e idade média. Vol. I, 4ªed. São Paulo: Paulus, 1990, p. 73-74. JAGUARIBE, Hélio. Um estudo crítico da história. Tradução Sérgio Bath. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p. 333-335.2. ABBAGNANO, Nicola. História da filosofia. Vol. I, 5ªed. Lisboa: Editorial Presença, 1991, p. 84.3. CHEVALLIER, Jean-Jacques. História do pensamento político: da cidade-estado ao apogeu do Estado-Nação monárquico. Tomo I. Tradução Roberto Cortes de Lacerda. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1982, p. 39.4. En Apología de Sócrates, Xenofonte relata, a través del testimonio interesante, el proceso socrático describiendo que Sócrates, altivo, digno y sereno, prefiere morir a deber la vida a jueces despreciables.5. OLIVEIRA. Frederico Abrahão de. Filosofia do direito ocidental: momentos decisivos. Porto Alegre: Sagra, 1996, p. 102.6. Los Sofistas y Socrates. Revista filosofia de bachillerato. Disponível em: <http://perso.wanadoo.es/jupin/filosofia/sofistas_socrates.html>. Acesso em 30 out. 2003.7. Nesse sentido: CHEVALLIER, Jean-Jacques. História do pensamento político: da cidade-estado ao apogeu do Estado-Nação monárquico. Tomo I. Tradução Roberto Cortes de Lacerda. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1982, p. 44. REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História da filosofia: antiguidade e idade média. Vol. I, 4ªed. São Paulo: Paulus, 1990, p. 88. CRETELLA, José Júnior. Filosofia do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 106. 8. Trata-se teodicéia de disciplina filosófica que procuram justificar a bondade

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divina, contra os argumentos tirados da existência do mal no mundo, refutando as doutrinas dualistas que se apóiam nesses argumentos procurando reivindicar a bondade e a justiça de Deus, apesar de existirem o mal natural e sofrimento humano.9. PLATÃO. Banquete. Tradução Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 24.10. KELSEN, Hans. A ilusão da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 504-506.11. SALDANHA, Nelson. Filosofia do direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 4.12. ADEODATO, João Maurício, Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, 2002, p.139. 13. Tenemos como defensor de la teoría utilitarista a John Stuart Mill (1806-1873).14. D’AURIA, Anibal. Revista 15 Años de investigación cientifica en la UBA: avances del conocimiento y logros tecnológicos. Buenos Aires: UBA. p.122. Disponível em: <http:// http://www.rec.uba.ar/Documentos/Memoria%202.pdf>. Acesso en 30 mar. 2007.

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O POSITIVISMO JURÍDICO: UMA ABORDAGEM DA TEORIA NORMATIVISTA DO DIREITO,

SEGUNDO HANS KELSEN11

André Luiz Vinhas da CruzAdvogado

Procurador do Estado de SergipeProfessor da Faculdade São Luís de França

e da Faculdade Sergipana (FASER)Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais

(Universidad del Museo Social Argentino – UMSA) Mestre em Direito, Estado e Cidadania

(Universidade Gama Filho – UGF/RJ)

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SUMÁRIO

1. Introdução: antecedentes históricos. 2. Os pontos fundamentais da doutrina juspositivista. 3. O direito enquanto ciência: a contribuição kelseniana. 4. O direito como norma válida e pressuposta. 5. Conclusões.

RESUMO

O presente trabalho visa estabelecer conceitos e fixar noções basilares sobre o que venha a ser o positivismo jurídico, delimitando algumas de suas mais importantes características, em especial as oriundas da contribuição de Hans Kelsen. No rastro do pensamento kelseniano, o presente opúsculo almeja orientar, também, o que se entenda pelo direito, enquanto ciência que se preocupa, tão-só, com a validade formal da norma posta pela autoridade competente.

Palavras-chave: teoria geral do direito; correntes jusfilosóficas; positivismo jurídico; teoria normativista de validade do direito.

1 INTRODUÇÃO

1.1. Antecedentes históricos

Ainda que severamente criticado por diversas correntes do pensamento jusfilosófico, o positivismo jurídico, até hoje, em boa parte de seus alicerces, continua válido, enquanto “conjunto de correntes filosóficas e científicas”, na expressão de Ulises Schmill1, que se originaram do movimento iluminista do século XVIII. A Ilustração teve como um dos seus maiores expoentes Immanuel Kant, pai do formalismo filosófico, cuja função foi a de identificar as duas fundamentais órbitas de integração da natureza do ser humano, a saber: a capacidade teorética (cognoscente) e a capacidade prática (de trabalho).2 Segundo a dimensão teórica do sujeito, Kant se preocupa em alcançar os juízos “puros”, ou seja, os a priori formais e autônomos, que refletem os mecanismos intelectuais que permitem adquirir conhecimentos com validez universal, independentemente da realidade empírica concreta. Por outra quadra, a capacidade de trabalho do ser humano diz respeito à sua dimensão prática, que se conecta à esfera da liberdade, e é regida pela razão prática, pela qual o homem pode se portar com absoluta certeza, já que a mesma é guiada pela “lei do dever”3, que rege o valor moral das ações humanas. O bem nada mais é do que resultado de uma vontade orientada pelo dever e conduzida por mandamentos da razão, que constituem formulações imperativas, que se ordenam a partir de uma lei moral suprema, independente da experiência. Kant, a partir desse dado instante, percebe a existência de traços absolutamente distintivos entre moral e direito, atribuindo a este último a característica da coercibilidade, não encontrável na primeira, em razão da impossibilidade do exercício de coação sobre a

dimensão interna das intenções. O Direito passou a ter, assim, uma função regulatória das ações humanas externas, racionalizando-se a autonomia da liberdade das pessoas, com o específico fito de se tornar possível a coexistência de uns com os outros.4 Em geral, o ser humano utiliza mal sua liberdade, já que sua natureza empírica o inclina ao afastamento daquilo que conhece mediante a razão, parâmetro delimitativo ideal do livre arbítrio. Assim sendo, o comportamento humano livre apenas será lícito se for compatível com a liberdade de todos os demais que agem em consonância com uma mesma regra geral. Em tal propósito, válido se torna que se transcreva trecho da obra de Kant, na qual o mesmo aponta o fim último da razão pura5, verbis: “(...) Realmente, admito que há leis morais puras que determinam totalmente a priori o fazer e o não-fazer – sem ter em conta os móbiles empíricos, ou seja, a felicidade - , isto é, o uso da liberdade de um ser racional em geral e que estas leis comandam de maneira absoluta – não simplesmente hipotética, com o pressuposto de outros fins empíricos – e, portanto, são, a todos os títulos, absolutas. (...) Com efeito, se a razão tem causalidade referente à liberdade em geral e não relativamente a toda natureza, e se os princípios morais da razão podem produzir atos livres, as leis da natureza não o podem. Portanto, os princípios da razão pura, no seu uso prático e principalmente no seu uso moral, possuem uma realidade objetiva.” Embora Norberto Bobbio nos alerte que a expressão “positivismo jurídico” não decorre do positivismo filosófico francês, como acima exposto6, visto que forjada com o intuito de contrapor as idéias de “direito positivo” e “direito natural”, soa lógico que, ab ovo, o pensamento positivista se embebedou das noções kantianas, em especial, da necessidade de normas jurídicas coercitivas, em paralelo ao uso de regras meramente morais. Segundo Bobbio, a expressão “direito positivo”, embora relativamente recente, já foi conceitualmente explorada no pensamento greco-romano clássico, particularmente em Platão e em Aristóteles7, que em sua obra “Ética a Nicômaco”, assim ditou, literalmente: “(...) A justiça política é em parte natural e em parte legal. A parte natural é aquela que tem a mesma força em todos os lugares e não existe por pensarem os homens deste ou daquele modo. A legal é o que de início pode ser determinado indiferentemente, mas deixa de sê-lo depois que foi estabelecido (por exemplo, que o resgate de um prisioneiro seja de uma mina, ou que deve ser sacrificado um bode e não duas ovelhas), e também todas as leis promulgadas para casos particulares (como a que mandava oferecer sacrifícios em honra de Brásidas), e as prescrições dos decretos.”8

Na Roma Antiga, a dicotomia entre o direito positivo (“jus civile”) e o direito natural (“jus gentium”) se aclara mais ainda. O direito natural é universal, imutável e fixador daquilo que é bom (do ponto de vista moral), enquanto que o direito civil (positivo) é particular, fungível e tendente a estabelecer o que é economicamente útil. Tal separação de idéias persiste no pensamento medieval, acrescentando-se uma conotação especial-

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mente religiosa (católica), pela qual, e. g., Santo Tomás de Aquino considera o direito natural como aquele posto por uma autoridade superior (o próprio Deus), enquanto o positivo é o ditado pelos homens. Em meados do século XVII, Grócio (considerado o pai do Direito Internacional) se soma a tal debate, concluindo que o direito positivo é aquele derivado do poder civil, que compete ao Estado, enquanto associação perpétua de homens livres, reunidos em conjunto com o fito de gozar os próprios direitos e buscar a utilidade comum. Em 1888, Glück apresenta sua própria noção distintiva, afirmando que enquanto o direito natural se limita àquilo que se demonstra a priori, através da razão, derivada da natureza das coisas, o direito positivo é aquele que vimos a conhecer através de uma declaração de vontade do legislador. Norberto Bobbio, então, a par de toda esta evolução histórica dos conceitos distintivos entre direito natural e direito positivo, elenca seis critérios básicos de diferenciação9, a saber: a) universalidade / particularidade: enquanto o direito natural vale em toda parte, o positivo vale apenas em alguns lugares; b) imutabilidade / mutabilidade: o direito natural é imutável no tempo; o positivo muda; c) fonte do direito: o direito natural decorre da natureza das coisas; o direito positivo advém da potestas populus (vontade do povo, representado pelo legislador); d) modo de conhecimento do direito: o direito natural é aquele que conhecemos através da razão, enquanto o direito positivo é conhecido através de uma declaração de vontade alheia (a promulgação da lei); e) objeto do direito: os comportamentos regulados pelo direito natural são bons ou maus por si mesmos, enquanto aqueles regulados pelo direito positivo são por si mesmos indiferentes e assumem uma certa qualificação apenas porque (e depois que) foram disciplinados de um certo modo pelo direito positivo; e f) valoração das ações: o direito natural estabelece aquilo que é bom; o direito positivo estabelece aquilo que é útil (Paulo). Por obra e graça do positivismo jurídico, como será visto adiante, o direito positivo passou a ser considerado como o direito em sentido próprio, não se incluindo na categoria puramente jurídica o direito natural. Bobbio nos apresenta uma fórmula sintética, segundo a qual “o positivismo jurídico é aquela doutrina segundo a qual não existe outro direito senão o positivo.”10 A origem desta concepção é ligada à formação do Estado moderno, que se dá acoplada a um processo de monopolização oficial da produção jurídica11, deixando-se de lado o direito posto pela própria sociedade civil. As controvérsias passam a ser resolvidas por um juiz, funcionário do Estado, vinculado à produção normativa estatal, enquanto fonte do direito positivo. A doutrina do jusnaturalista inglês Thomas Hobbes é, no particular, ponto de partida para o estudo do positivismo jurídico. Citado autor questiona a causa da obrigatoriedade das leis de direito natural, e indica, diante de uma perspectiva ético-utilitarista, que o estado de natureza constitui um estado de anarquia permanente12, no qual todo homem luta contra os

outros, sendo indispensável a presença do Estado e de sua força coativa. Segundo o pensamento hobbesiano, o con-trato social somente pode consistir numa doação total e incondicionada de cada um ao soberano. Não há, por conseguinte, ao contrário do que ocorreria no contrato lockeano13, qualquer direito natural que subsista à constituição do Estado. O autor introduz no pensamento social o conceito de “justiça objetiva”, ao estabelecer que a noção do justo e do injusto depende da prescrição legal. Mesmo com a migração de uma concepção política absolutista para uma forma liberal de pensamento de Estado, o dogma da onipotência do legislador permaneceu intacto, se justificando, inclusive, como garantia de contenção das arbitrariedades dos juízes.14 Os magistrados, segundo Montesquieu15, deviam emitir sentenças que se traduzissem em reprodução fiel da lei, num trabalho de puro silogismo, sem qualquer viés interpretativo ou valoração subjetiva. Ainda que os juspositivistas negassem a existência das “lacunas da lei”, para os jusfilósofos dos séculos XVII e XVIII apenas os juízes poderiam por fim à controvérsia, mediante a aplicação subsidiária do direito natural. O jusnaturalismo, ainda, portanto, servia como último recurso para se explicar, racionalmente, o processo de acolmatação das lacunas do “direito positivo”, centrando-se em verdadeiros “dogmas”, tais como “estado de natureza”, “contrato social”, “lei divina”, dentre outros. Mister se fazia acontecer, como nos alerta Bobbio16, a “dessacralização” do direito natural. O primeiro movimento, nesse sentido, levou o nome de “Escola Histórica do Direito”, e granjeou adeptos durante a primeira metade do século XIX, tendo por maior expoente o jurista alemão Carlos Frederico von Savigny. Os historicistas consideram o “direito natural” como uma “filosofia do direito positivo” (em verdade, uma “teoria geral do direito”), vale dizer: um conjunto de conceitos jurídicos gerais elaborados com base num direito positivo que poderia existir em qualquer Estado.17 A Escola Histórica do Direito possui como características principais, em oposição ao jusnaturalismo racionalista (Escola Moderna do Direito Natural), as seguintes: a) a história é variável, de acordo com o tempo e lugar em que transcorre, porque os homens também são distintos entre si, conforme a raça, o clima, o período histórico, dentre outros caracteres específicos e não abstratamente imutáveis, inexistindo um direito único, mas sim variável no tempo e no espaço; b) a história é irracional e romântica18, sendo permeada pela paixão, sentimento e impulso humanos, e não por uma avaliação racional, nascendo o direito imediatamente do sentimento de justiça; c) a história é pessimistamente trágica, tendo em conta ser impossível crer que o homem, com sua razão, possa melhorar a sociedade e transformar o mundo, especialmente através de uma codificação; d) o extremo elogio e o amor pelo passado, já que não há crença, ao contrário dos iluministas, no

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melhoramento futuro da humanidade, sendo preferível recepcionar o direito romano na Alemanha a reviver o antigo direito germânico; e e) o amor pela tradição, isto é, pelas instituições e costumes existentes na sociedade e formados lentamente através dos séculos, sendo o direito consuetudinário o direito que realmente exprime o sentimento e o “espírito do povo” (“volksgeist”). Enquanto crítica radical do direito natural, o historicismo jurídico efetivamente foi precursor do positivismo jurídico, embora também tenha decididamente contribuído para o surgimento de outras correntes jusfilósoficas, tais como a Escola Sociológica e o Realismo Jurídico, que se desenvolveram principalmente no mundo anglo-saxão, no fim do século XIX e início do século XX.19

A grande batalha capitaneada por Savigny e outros historicistas se deu frente às grandes codificações, como o “Code Napoleon”(1804), expressão máxima iluminista da “positivação do direito natural”, decorrente da autoridade legal do Estado e da razão dos “filósofos”, e que, por conta da ocupação napoleônica da então Prússia, emergiu num intenso debate travado com o jurista, também alemão, chamado Antonio Frederico Justo Thibaut, que defendia a codificação do sistema jurídico germânico, sob uma perspectiva formalmente positivista e materialmente iluminista, até para facilitar a unificação da Alemanha. Savigny propunha um direito cientificamente construído pelos juristas20, que produziria melhores efeitos que uma codificação, que engessaria, ou melhor, cristalizaria o direito, dando luz à doutrina pandectista, que mais tarde daria lugar à “Escola da Jurisprudência dos Conceitos”21, comandada por Rudolf von Jhering22, e que se transformou na “Escola da Jurisprudência dos interesses”23. O direito científico alemão, seja o da Escola Histórica, seja o da doutrina pandectista, não intencionou mudar em nada o sistema jurídico germânico vigente, mas, se algo deveria ser alterado, que o fosse através do desenvolvimento da ciência jurídica, mas nunca mediante uma codificação. Com efeito, a idéia codificante ganhou corpo e expressão, em 1804, na França, com o Código de Napoleão, que serviu de modelo para os demais códigos surgidos no mundo contemporâneo, em especial, na Europa continental. O direito codificado francês buscou atingir o ideal do legislador universal, de um direito simples, unitário e harmonicamente ligado, fundado na natureza das coisas, com o claro objetivo de suprimir a obscuridade, a ambigüidade e a redundância entre diversos preceitos normativos setorizados.24 Surge, então, a Escola da Exegese (“École de l`exégèse”), que propunha, abertamente, uma atuação restrita do poder judiciário, mediante o apego excessivo às palavras da lei, alcunhado de “fetichismo legal”. Coube ao jurista, liberal e moderado, Jean Etienne Marie Portalis, presidir a comissão de doutos encarregada por Bonaparte, de redigir o projeto definitivo de Código Civil francês, que, de uma maneira absoluta, abandonou os ideais jusnaturalistas, e regressou à tradição francesa do direito comum romano, a partir das lições de Pothier, jurista francês do século XVIII. O juízo do “non liquet” deu azo ao apogeu

do dogma da onipotência do legislador, pelo qual o juiz deveria sempre encontrar a resposta para todos os problemas jurídicos no interior da própria lei, já que era evidente a completitude do ordenamento jurídico. Segundo os adeptos da Escola da Exegese25, berço do positivismo jurídico francês, o juiz passa a ser um mero aplicador do texto legal, de forma passiva e mecânica, vale dizer: numa expressão famosa, “a mera boca da lei”, a respeitar o princípio da autoridade, ou seja, da vontade do legislador, consubstanciada no código. A interpretação da lei deve ser sempre fundada na intenção do legislador. Em tal aplicação, a posição judicial haveria de ser a mais neutral e não-criativa possível, se guiando pelo método sistemático de interpretação do Código, que era, em ultima ratio, o próprio direito civil francês, enquanto base teórica do racionalismo jurídico ocidental então vigente, calcada na separação dos poderes (de Montesquieu) e no princípio da certeza do direito, que almejava um mínimo de segurança jurídica, que apenas um corpo estável de leis poderia proporcionar.26 Na Inglaterra, os rumos do positivismo jurídico foram especialmente guiados por Jeremy Bentham, considerado por muitos como o “Newton da legislação”, com sua teoria utilitarista, de base beccariana, resumida na fórmula “a maior felicidade do maior número”, segundo a qual era possível se estabelecer uma ética objetivamente posta e cientificamente verificada. Assim como os iluministas franceses, a idéia de Bentham justificava a possibilidade de existência de um legislador universal, fautor de leis racionalmente válidas, claras, breves e universais. Coube ao jusfiló-sofo inglês a consolidação da teoria positivista da codificação, combatendo a assistematicidade do organon, de prece-dentes obrigatórios da common law, ardorosamente defendido pelo seu mestre Blackstone.27 Bentham aponta cinco cruciais defeitos da common law britânica, a saber: a) o sistema inglês era instável, não satisfazendo ao básico requisito da segurança jurídica, já que a racionalidade (“rationabilitas”) do precedente judicial se fulcra numa avaliação arbitrária do juiz; b) o direito comum é retroativo, posto que se aplica a comportamentos ocorridos no passado, antes de surgir o precedente, o que é inadmissível em democracias liberais, em especial em questões criminais; c) a common law não se funda no princípio da utilidade, segundo o qual o juiz deveria resolver as controvérsias tendo em conta os interesses efetivamente em jogo, e previamente delimitados pela lei; d) o juiz não possui competência específica em todos os campos regulados pelo direito, competência esta que ao legislador não faltaria; e e) o povo não pode controlar a produção do direito por parte dos juízes, mas tal controle seria eficaz quanto ao parlamento. Por outra quadra, o jurista inglês John Austin, também empirista e utilitarista, tal qual Bentham, buscou conciliar os princípios do utilitarismo inglês com os ensinamentos da Escola Histórica alemã, em particular de Savigny28, em suas aulas da cátedra de “jurisprudence” (por ele denominada de “filosofia do direito positivo”), na Universidade de Londres. O pensamento austiniano renega o direito natural como direito propriamente dito, observando a

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lei como forma típica do direito e o fundamento último de toda norma jurídica. Contudo, a sua maneira, vincula o empirismo utilitarista inglês ao historicismo jurídico alemão, entendendo que ambos se preocupam com o direito fundado numa visão experimental dos sujeitos e dos objetos jurídicos. Austin define a lei como um comando geral e abstrato, o qual fica possível, em caso de seu descumprimento, uma sanção pela não satisfação do desejo expresso pela norma. O direito positivo é aquele constituído pelos comandos emanados do soberano, numa sociedade política e independente, estatalizada.29

Nestes termos, a common law haveria de dar lugar a uma codificação “boa”, a partir da reformulação ex novo de todo o direito vigente numa sociedade, sob o aspecto meramente formal30, de modo a haver um texto legislativo coerente e unitário, não acessível ao povo, de um modo geral, mas apenas aos juristas, sob pena de se tornar demasiadamente simplificado e passível de contínuas críticas da opinião pública. De uma forma sumária, neste intróito, foram lançados os alicerces histórico-filosóficos do que, mais tarde, seria mundialmente conhecido como “formalismo jurídico kelseniano”, e que viria a dar forma e conteúdo a uma teoria da validade do direito, hodiernamente bastante criticada pela moderna comunidade científica, em especial quanto à ausência de conteúdo eticamente valorado, no contexto social, que hoje clama, mais do que nunca, por um direito efetivamente justo. Enquanto o jusnaturalismo se fiou numa teoria jurídica que atribuía conteúdos ao conceito de direito, sejam decorrentes de uma justiça divina, sejam da própria natureza humana, o juspositivismo se afastou dos aspectos relacionados ao conteúdo da norma em si mesma considerada, se preocupando, porém, apenas com o seu verniz formal31. Centra, pois, a grande questão a ser desenvolvida neste opúsculo, e que, com clarividente certeza, não será definitivamente solucionada – mesmo porque não seria esta a pretensão deste trabalho, na validade ou não da teoria positivista do direito, em sua concepção kelseniana. Para tanto, mister se faz, ainda que de forma resumida, analisar a “teoria pura do direito”, propugnada por Hans Kelsen, a partir de um perfunctório estudo dos pontos fundamentais da doutrina32 juspositivista. Com esteio neste arcabouço, poder-se-á, mais adiante, arriscar uma rasante intromissão na análise da idéia kelseniana do direito “enquanto norma válida e pressuposta”. Apenas de posse desses elementos conceituais, é que, na derradeira parte deste escrito, serão apresentadas algumas conclusões despretensiosas – reafirme-se – sobre a teoria da validade do direito de Kelsen, e, em especial contraponto às recorrentes referências jusnaturalistas, que lhe são avessas. 2. OS PONTOS FUNDAMENTAIS DA DOUTRINA JUSPOSITIVISTA

Foi na França, com Isidore Auguste Marie Xavier Comte (1789-1857), que o positivismo ganhou projeção no âmbito das ciências sociais. Comte buscava, através desta filosofia, a regeneração da humanidade33, a partir da descoberta das leis reitoras dos fatos sociais, abstraídas das estéreis especulações metafísicas.

Para o direito, isso representará a busca de um elo de conexão entre este e os fatos sociais, de maneira que a legislação seja a mais fiel possível àqueles, independentemente de quaisquer valores de ordem moral. É de se deixar claro, porém, que os partidários da filosofia positivista não demonstraram interesse especial pelo direito. Coube aos juristas questionar se a então chamada “jurisprudência” era ou não uma ciência, se buscando criar um método próprio, de caráter objetivo, para o estudo do direito, o que, efetivamente, só se deu no início do século XX, com a genialidade de Hans Kelsen. Em franco distanciamento da tendência sociológica comteana, o positivismo jurídico firmou-se muito mais sobre as bases do formalismo, uma vez que para uma teoria objetiva do direito importava mais o conjunto das normas postas pelo Estado, através de suas autoridades competentes, do que a realidade social propriamente dita. O direito “positivo” passa a se reconhecer no ordenamento jurídico posto e garantido pelo Estado, com o direito respectivo a cada Estado, se abstraindo de todo e qualquer “direito natural”, de difícil verificação. Daí porque Bobbio, em sua obra clássica, estabelecer a noção de que o direito positivo é aquele reconhecido por intermédio da declaração de uma vontade alheia (“potestas populus”), enquanto o direito natural é o que conhecemos através da razão.34 Tal processo de transição paradigmática é concomitante com a formação dos estados modernos, nos quais os ordenamentos jurídicos passam a ter pretensões universalistas, substituindo-se a situação de pluralismo jurídico pelo monismo, com a monopolização da produção normativa pelo Estado.35

Na esteira das luminosas ensinanças de Norberto Bobbio36, referido autor elenca sete pontos-chave das características fundamentais do positivismo jurídico, quais sejam: a) modo de abordagem do direito: para o positivismo jurídico, o direito é encarado como um fato e não como um valor. Assim sendo, do mesmo modo que um cientista estuda a realidade natural, isto é, abstendo-se de formular juízos de valor, o jurista, portanto, deve estudar o direito.37 Surge, daí, a dita “teoria do formalismo jurídico”, enquanto uma teorização da validade do direito, que se funda em critérios exclusivamente relacionados à estrutura formal, isto é, ao aspecto exterior do direito, prescindindo do seu conteúdo. Segundo tal perspectiva, a afirmação da validade de uma norma jurídica não implica necessariamente na afirmação do seu valor. b) definição do direito: para os juspositivistas, o direito é definido em função do elemento da coação, de onde deriva a teoria da coatividade do direito, segundo a qual o direito é o que vige como tal numa dada sociedade, sendo as normas feitas para valer por meio da força. c) fontes do direito: o juspositivismo advoga a teoria da legislação como fonte preeminente do direito, ao lado de outras fontes jurídicas, como, e.g., o costume (apenas o secundum legem e eventualmente o praeter legem), o direito judiciário, e até as fontes ditas “pressupostas” ou “aparentes” do direito, como a eqüidade e a natureza das coisas ou dos fatos.38 d) teoria da norma jurídica (ou “teoria impe-

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rativista do direito”): a norma é um comando imperativo, seja positivo ou negativo, autônomo ou heterônomo, técnico ou ético. Tal teoria passa a analisar o problema das “normas permissivas”, isto é, se estas normas fazem manifestar em menor grau a natureza imperativa do direito; bem como, a questão do estabelecimento dos destinatários da norma. e) teoria do ordenamento jurídico: a estrutura da norma jurídica passa a ser considerada sob uma visão conjunta, e não mais isolada, surgindo de tal idéia a teoria da coerência e da completitude do ordenamento jurídico.39 f) método interpretativo da ciência jurídica: o positivismo jurídico defende a teoria da interpretação mecanicista, pela qual na atividade do jurista há a prevalência do elemento declarativo sobre o produtivo (criativo) do direito, assemelhando-se o juiz a um robô, sendo um dos pontos mais criticados pelos opositores do método juspositivista. g) teoria da obediência: o juspositivismo é um ardoroso defensor da obediência absoluta da lei enquanto tal, sendo bem representada pelo clássico aforismo: “lei é lei”. Em arremate à explanação do grande jurista italiano40, referido autor considera o positivismo jurídico sob três aspectos: um certo modo de abordar o estudo do direito; uma certa teoria do direito e uma certa ideologia do direito. Desses aspectos, importa para o presente trabalho uma menos superficial análise da teoria da validade do direito, que se vincula, porém, inexoravelmente, a um expedito estudo da chamada “teoria pura do direito”, que, de forma indelével, contribuiu para a consideração do direito enquanto uma ciência, com objeto e métodos próprios, diferentes da sociologia jurídica, por exemplo.

3. O DIREITO ENQUANTO CIÊNCIA: A CONTRIBUIÇÃO KELSENIANA

Hans Kelsen (1881-1973), sem sombra de dúvidas, é o autor mais conspícuo dos positivistas, tendo desenvolvido, segundo Schmill41, a problemática desta postura de uma maneira mais completa e conseqüente. E serão justamente as concepções teóricas de Kelsen que passarão a ser descritas de agora em diante, e que, com certeza, mudaram a perspectiva mundial da ciência do direito no século passado. Kelsen afirma o positivismo jurídico enquanto toda teoria do direito que conceba ou aceite como seu exclusivo objeto de estudo o direito positivo, renegando como direito qualquer outra ordem normativa, especialmente o direito natural. O objeto de consideração da ciência jurídica são as normas positivas, vale dizer, as que são consideradas como as experiências fundamentais a que se deve referir a ciência do direito, que, por sua vez, tem por função a descrição das relações funcionais existentes entre as normas positivas. Kelsen se preocupa em rechaçar toda teoria que afirme a existência de normas não-positivas, qualquer que seja a fonte ou origem delas, como metafísica jurídica, ou seja, qualquer coisa estranha à ciência do direito. Os temas centrais de toda ciência, prossegue Schmill42, numa perspectiva positivista, são, em primeiro

lugar, a determinação dos elementos objeto de sua consideração; e, em segundo lugar, o estabelecimento de um critério unificador descritivo de seu objeto de conhecimento, fitando a formação da unidade do conceito do objeto de estudo. Existe uma pluralidade de ordens normativas, distintas entre si, que se apresentam com pretensão de validez, qualquer que seja seu fundamento, que são as seguintes: a) o direito positivo nacional; b) a ordem normativa constitutiva do Estado; c) o direito internacional; d) as normas morais, de qualquer tipo; e) o direito natural; f) as normas religiosas, de qualquer tipo; e g) as normas convencionais ou convencionalismos sociais, de qualquer tipo. Segundo Kelsen, o direito positivo seria o conjunto das três primeiras ordens normativas, a saber: a)direito positivo nacional: trata-se de um conjunto de normas, delimitado com maior ou menor precisão, e integrado pelo direito civil, direito penal, administrativo, dentre outros. Tais complexos normativos, no século passado, eram considerados como o protótipo do direito nacional; b)a ordem normativa constitutiva do Estado: refere-se ao direito constitutivo do Estado, às vezes identificado com o direito público, mas que possui um objeto específico regido por uma ordem normativa, com normas próprias, de natureza social, positivas, que determinam o comportamento dos sujeitos titulares dos órgãos do Estado de uma maneira tão rígida que se poderia considerar que operavam com a mesma efetividade das leis naturais. O Estado constituía um objeto de estudo próprio, independente do Direito, ainda que com o mesmo mantivesse estreitas relações. O Direito Público geralmente era o direito que se relacionava com o Estado, entretanto a relação entre os direitos nacionais e a ordem do Estado não estava claramente delimitada; e c)o direito internacional: é o conjunto de normas que regulam a conduta dos Estados em suas relações recíprocas. É bem verdade que, desde Austin, já se buscava a unificação das diversas ordens normativas em um único sistema, incluindo, aí, por certo, as normas morais e o direito natural. Foi deste grande jurista inglês que Kelsen foi resgatar a noção de “positividade”, enquanto admissão da existência de normas que são um mandamento de um soberano. Kelsen43, ao publicar, em 1911, sua primeira grande obra, entitulada “Problemas capitais da teoria do direito estatal”, deu o primeiro passo teórico para firmar o conceito da unificação das ordens normativas mencionadas. Neste livro, Kelsen, claramente inspirado na teoria da experiência de Kant, nos brinda com uma concepção unitária dos conceitos jurídicos fundamentais, passando a ter, pela primeira vez, dentro do âmbito da doutrina jurídica continental, uma postura unitária sobre a totalidade dos temas jusfilosóficos. Kelsen discute, pormenorizadamente, cada uma das teorias sobre o direito e sobre os conceitos jurídicos fundamentais, como os de sanção, antijuridicidade, direito subjetivo, obrigação, responsabilidade, dentre outros tantos. Já em seu segundo aporte teórico, no original “Der soziologische und der juristiche Staatsbegriff”, de

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1922, referido autor unifica duas teorias diferentes: a teoria do direito e a teoria do Estado, mediante sua tese da identidade do Direito e do Estado.44

No prólogo de sua “Teoria Geral do Estado”(1934), Kelsen admite estar contrariando a maioria das idéias jusfilósoficas então reinantes, particularmente quando advoga a tese de uma concepção transcendental, e não metafísica de Estado, suprimindo as distinções entre Direito Público e Direito Privado, subjetivo e objetivo, norma jurídica e sujeito de direito, dentre outros, a fim de não reconhecê-las mais que como diferenças de conteúdo dentro de um sistema cuja unidade é indestrutível. Em 1920, em seu livro “O problema da soberania e a Teoria do Direito Internacional”, Kelsen apresenta seu terceiro grande aporte teórico, qual seja, a constituição de um único sistema de normas a partir das ordens jurídicas nacionais e do direito internacional. Já não se trata da identificação de duas ordens normativas que aparentam superficialmente ser distintas, pelo fato de utilizar legalidades epistemológicas díspares: a categoria do dever ser, no caso do Direito, e a da causalidade (ser), no caso do Estado, senão de um problema estritamente normativo: como é possível formar um sistema único com duas ordens jurídicas diferentes, concebidas desde um ponto de vista de uma mesma legalidade normativa, a do dever ser? A solução se encontra no conceito dinâmico de Direito, ou seja, na idéia de que o direito regula sua própria criação escalonada. Duas ordens normativas formam uma unidade sempre que uma delas se encontra subordinada à outra, no sentido de que uma é o fundamento de validez positiva da outra, isto é, quando uma das ordens normativas estabelece os processos de criação da(s) outra(s) e determina seus âmbitos de validez normativa. Com elas, se estabelecem as condições epistemológicas para se alcançar a unificação das diversas ordens normativas. O positivismo kelseniano tem uma parte crítica do que se poderia chamar de “metafísica do direito”45, pela qual o prestigiado autor intenta mostrar não ser possível a unificação, num mesmo sistema de conhecimento, das ordens normativas relacionadas às normas morais, de direito natural, religiosas e convencionais. Segundo Kelsen, tais ordens normativas não são direito positivo, e se referem a outras discussões “extra-jurídicas”, e que envolvem os problemas da justiça, da ética e da teologia, que não interessam à ciência do direito. Por ser um juiz do Tribunal Constitucional da Áustria, nação que se quedou neutra durante a 1ª Guerra Mundial, Kelsen assume uma postura nitidamente neutral em suas obras, em especial, na “Teoria Pura do Direito”, que busca a construção de um esquema de interpretação da realidade jurídica que seja independente da ideologia que anima o poder.46

Kelsen fitou protestar a favor da dignidade científica do direito, solapada diante da filosofia jurídica de cunho sociologizante e do radicalismo do movimento para o “Direito Livre”47. Nesse sentido, o próprio Kelsen explica as razões do nome de sua principal obra, litteris: “(...) Quando a si própria se designa como

“pura” teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto se não possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental.”48

Kelsen constrói sua teoria normativa sobre a idéia de imputação49, segundo a qual existe uma norma posta que imputa uma sanção50 a quem venha contrariar-lhe. O autor vienense não vê distinção entre as ciências da natureza e as ciências sociais, já que a sociedade pode ser vista como parte da natureza, na medida em que a convivência efetiva entre os homens pode ser pensada como parte da vida em geral. Por derradeiro, fundamental para esse entendimento é o conceito normativista de “ato jurídico”, que é um ato da vida cotidiana que recebe um significado jurídico, objetivamente conferido pelo próprio ato de sua criação (uma norma que lhe é superior), de tal sorte que este ato criativo também é produto de um outro ato jurídico, que, por sua vez, recebe significação jurídica de uma outra superior norma, e, assim, sucessivamente, até se chegar à norma hipotética fundamental (“Grundnorm”).51

4. O DIREITO COMO NORMA VÁLIDA E PRESSUPOSTA

Enfim, se chega ao ápice da presente monografia, quando será apresentada, de forma rudimentar – admita-se – a teoria normativista da validade do direito, base do formalismo jurídico do século XX, e que, ainda hoje, goza de enorme força vital nos ordenamentos jurídicos vigorantes. O direito corresponderá sempre, e em qualquer lugar, a uma ordem de conduta, que também, de forma invariável, se interliga a um sistema de normas, cuja unidade é constituída pelo fato de todas elas terem o mesmo fundamento de validade, que é a norma fundamental.52

Logo, o objeto da ciência jurídica é a norma, enquanto unidade do sistema, que extrai sua validade do todo da qual a mesma faz parte. Kelsen esboça uma teoria da interpretação, momento em que o mesmo forja sua noção de “ato de vontade”,53 sendo o direito uma ordem normativa da conduta humana, pela qual alguém determina o comportamento de outrem. Enquanto o ato de vontade atua na esfera do “ser”, a norma é o “dever ser”. Tal vontade, contida na lei, não importa a Kelsen, uma vez que a norma pode receber qualquer conteúdo. A lei basta por si só, apenas sendo relevante saber se a lei é válida, ou seja, se promana de autoridade competente para tanto. O comportamento humano é incerto, podendo ser tido tão-somente como provável, ainda que, no caso da norma jurídica, bastante provável, porque o comando é acompanhado da força cogente da sanção. A lei, portanto, é um ato posto, que existe empiricamente e provém da vontade criativa do legislador, e, uma vez criada, passa a existir, tornando-se sujeita à verificação de sua validade, isto é, de sua existência enquanto ato válido.

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O pensamento kelseniano conceitua “norma” como “o sentido de um ato através do qual uma conduta é prescrita, permitida ou, especialmente, facultada, no sentido de adjudicada à competência de alguém.”54 O mundo do “dever ser” vale por si só, mesmo depois da vontade do ato originário ter cessado. Em outros termos: a norma ganha uma dimensão própria e independente de quem a fez, sendo despiciendas perguntas tais como quem fez ou por que fez a norma, quais os interesses que encerra, questões pertinentes não à ciência do direito, mas sim à ciência política, psicologia, ética ou sociologia. Em suma: o fundamento de validade do direito está na própria norma (superior) que o autoriza, e não na origem ou na fundamentação social do ato. O direito, enquanto ordenamento jurídico positivo, encerra-se nele mesmo, prevendo e controlando a sua própria existência, como bastante em si mesmo.55

A idéia de “valor”, no direito, é objetiva e tem como parâmetro o grau de eficácia e de validade da lei. Só o comportamento pode ser avaliado como bom ou mau, e não a norma em si. Se a lei autoriza, permite ou faculta, o comportamento é bom (e a conduta tem um valor positivo); se proíbe, é mau (e a conduta é negativamente valorada).56

À ciência jurídica compete apenas descrever as prescrições contidas na norma jurídica, não participando, entretanto, de sua criação, que cabe à autoridade juridicamente competente. Tal descrição se dá sob a forma de “proposição jurídica”57, que nada mais é do que um juízo hipotético, que enuncia ou traduz o sentido de uma norma jurídica, atribuindo-lhe conseqüências. Segundo Kelsen, “interpretação” se congemina numa operação mental que acompanha o processo de aplicação do direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior. Os vários escalões que compõem a ordem jurídica possuem entre si uma relação de determinação (vinculação), na medida em que a norma do escalão superior regula o ato (processo e conteúdo) pelo qual é produzida a norma do escalão inferior. No particular, destaque-se, Kelsen reconhece a sentença judicial como norma jurídica individual, criada pelo juiz para disciplinar uma relação específica entre agentes determinados, se a mesma tiver passado pelo processo subsuntivo de validade. Contudo, a interpretação58 não pode criar um direito novo (como era desejo da “jurisprudência dos conceitos” savignyana59), mas apenas estabelecer as possíveis significações de uma norma jurídica previamente posta. Kelsen admite, contudo, que a norma pode ser, intencionalmente ou não, indeterminada, de tal sorte que sempre fique uma margem de discricionariedade ao aplicador da lei, de forma que a norma do escalão superior tenha, em regra, em relação ao ato de produção normativa que a aplica, o caráter de uma moldura a ser preenchida por este mesmo ato. Dentro desta moldura normativa, se encontram diversas possibilidades de sentido, se notando que apenas uma delas será a preferida do órgão aplicador da lei, e os motivos que levam a tal escolha extrapolam as cercanias da teoria do direito. Kelsen alerta, entretanto, que a interpretação

legal não deve, necessariamente, conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas a várias soluções – todas de igual valor – das quais apenas uma se torna “direito positivo”.60 Como tal ato de “escolha” é eminentemente político, inserindo-se na esfera decisória da autoridade competente, sua validade provém, única e exclusivamente, do fato de ser decisão tomada por quem dispõe de competência, dentro do âmbito desta. Assim, dentro dos parâmetros fixados pela moldura legal, o juiz age livremente, desapegado de preconceitos de ordem moral ou social. Daí, surgir o grande pecado – a ser esmiuçado nas conclusões que seguem – do positivismo jurídico, por ser excessivamente reducionista, porque elimina do âmbito do conhecimento do direito todo o viver social, com suas emoções e sentimentos, naturalmente humanos, ou tudo o mais que fuja às relações de causalidade, tachando-os, indevidamente, de atos “irracionais”.

5. CONCLUSÕES

O positivismo jurídico, enquanto conjunto de correntes filosóficas e científicas, teve papel fundamental na efetiva transformação do Direito em uma ciência, com método e fins próprios. No particular, a participação do formalismo jurídico, capitaneado por Hans Kelsen, é mais que evidente, já que coube ao jurista do Círculo de Viena concentrar, especialmente, em sua “Teoria Pura do Direito”, as principais idéias esparsas que deram o digno status científico ao estudo do Direito. Calcado na busca dos juízos “puros” da teoria da experiência kantiana, Kelsen unifica todos os conceitos jurídicos fundamentais, analisando cada uma das teorias jusfilosóficas, de modo a se atingir uma postura unitária sobre, e.g., a noção de sanção, antijuridicidade, obrigação, dentre outras. O direito passa a ser uno, sendo somente aquele positivado, ou seja, posto pelo Estado, devendo a dogmática jurídica, responsável pelo estudo do sistema normativo, se alijar da realidade social então existente, a ser estudada pela sociologia jurídica, bem como se afastar das bases de legitimidade que devem inspirá-lo, analisadas pela filosofia do Direito. Com certeza, a unificação dos principais conceitos jurídicos foi e continua a ser o maior mérito da concepção formalista do Direito, apesar das duras e acertadas críticas que lhe são direcionadas, por exemplo, pelos adeptos das teorias críticas do Direito61, segundo as quais o direito precisa ser visto com um enfoque pluralista, democrático e antidogmático, a fim de se evitar a “reificação” do homem, que passou a ser medida de “ter” e não de “ser”. A partir do positivismo jurídico, o direito positivo passa a ser considerado como direito em sentido próprio, sendo o direito natural excluído da categoria do direito, e tal fato se acentua quando há a promulgação constitucional dos direitos fundamentais.62 O direito, para ganhar foros de ciência, há de primar pela neutralidade axiológica, entendida esta como um distanciamento absoluto da questão a ser apreciada. O objeto do direito é meramente descritivo, pressupondo um jurista isento não só das complexidades

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da subjetividade pessoal, mas também das influências sociais. Nesse particular, a crítica ao juspositivismo se acirra, e com justa razão. Como se admitir um juiz distante deste contexto, se o objeto do Direito está totalmente relacionado com o social? Por outra quadra, entretanto, Kelsen engendra, de forma brilhante, uma concepção do ordenamento jurídico como um sistema dinâmico, que possui a peculiar propriedade de qualificar normativamente todos os comportamentos, de tal forma que se evitem, ao máximo, as lacunas do direito. As normas estão dentro de um processo de contínua transformação, sendo o sistema apenas uma forma técnica de estabelecimento dos contornos precisos do ordenamento enquanto conjunto de normas, identificando o que está dentro ou não, em razão de um critério de validade, que, para Ferraz Júnior, deve ser tomado numa perspectiva zetética63. Para Kelsen, uma norma vale em relação a uma outra norma, que a antecede hierarquicamente, sendo uma concepção sintática, ou seja, que prestigia a verificação de uma relação de subordinação entre duas normas, não se apegando a uma ocorrência fática, sendo, em suma, contrafática.64 Tal validade das normas apenas seria encontrada a partir da idéia de hierarquia entre as normas, tendo a norma hipotética fundamental (“grundnorm”) – acima da própria constituição – a única função de validar todo o ordenamento jurídico, sendo desprovida de qualquer conteúdo ético ou empírico. Reacende-se, no particular, a crítica a tal pensamento, que se calca num viés metafísico, enquanto paradoxal retorno ao direito natural65, tão combatido pelo formalismo normativista. Ferraz Júnior revela a importância da posição kelseniana sobre a validade das normas, explicando, ainda, que, em se tratando de um conceito relacional, a mesma só pode ser identificada no contexto do ordenamento jurídico, passando a entendê-la como uma forma de comunicação normativa que se dá entre o emissor (a autoridade legislativa) e os receptores (os cidadãos), e que se trata de uma relação de autoridade, ou seja, que espera confirmação, admite negação, mas não suporta desconfirmação.66 A norma será válida quando uma possível desconfirmação por parte do receptor é desconsiderada pela autoridade, que a ignora como desconfirmação e a toma como simples negação. É de se reconhecer que Kelsen almejou uma teoria jurídica purificada de ideologia, em especial política, que buscou a liberdade a partir de um modelo teórico exclusivamente descritivo, sem qualquer propósito distinto que não fosse a vontade do legislador. Contudo, tal busca se mostrou contraditória e falha, dado que quando o juiz decide, se lastreia não apenas na norma, mas também de acordo com suas preferências pessoais e a realidade social circundante. Daí porque o positivismo jurídico passou a ser tachado de “desumanizante”, tendo em conta que o Direito passou a se confundir com o Estado, concebido como sistema de regulação de condutas, e a noção de “pessoa” se reduziu a um mero centro de imputação, enquanto preceito puramente formal. Ainda que o positivismo jurídico tenha sido o modo de pensar, do ponto de vista sistematizante, mais relevante do século XX, o mundo jamais esquecerá que

a principal linha de defesa dos generais nazistas contra as graves acusações de genocídio perante o Tribunal de Nuremberg, em 1945, trilhou a idéia de que os mesmos apenas cumpriam ordens estabelecidas em leis criadas por parlamentos legitimamente eleitos, dentro de um sistema hierarquicamente ordenado de normas.

Notas e Referências

1. SCHMILL O., Ulises. In GARZÓN VALDÉS, Ernesto et al (Comp.). El Derecho y la Justicia. Madrid: Trotta, 1996, p. 65. 2. FEDERICI, Mário Florêncio. Antecedentes del positivismo. Buenos Aires: UMSA, 2007, cópia mimeo, p. 1.3. A “lei do dever”, segundo Kant, seria um dado apriorístico, cuja consciência seria um “imperativo categórico”, cujo cumprimento não responde a qualquer pressão ou coação exterior que condicione o ato, senão à voz interior da moral.4. Federici esclarece que, segundo Kant, para o homem, enquanto ser racional, as normas morais seriam suficientes. Porém, por força do ser empírico, que é, imperiosa se torna a presença de um poder coativo que imponha uma atuação conforme o Direito, cf. FEDERICI, Mário Florêncio. Ob. Cit., p. 2.5. KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Trad. de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2002, pp. 571-572.6. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: Lições de filosofia do direito. Trad. de Márcio Pugliesi et al. São Paulo: Ícone, 1995, p. 15.7. De forma especial, Aristóteles já separa as inequívocas noções de “justiça natural” (como aquela que tem força universal e decorre das leis naturais que regem o cosmos) e “justiça legal” (que promana das leis reguladoras da vida social). De acordo com o pensamento aristotélico, o direito natural prescreve ações cuja bondade é objetiva, enquanto o direito positivo estabelece ações que, antes de serem reguladas, podem ser cumpridas indiferentemente de um modo ou de outro mas, uma vez reguladas pela lei, importa que sejam desempenhadas do modo prescrito pela lei, cf. BOBBIO, Norberto. Ob. Cit., pp. 16-17.8. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2002, Livro V, Capítulo VII.9. BOBBIO, Norberto. Ob. Cit., pp. 22-23.10. Idem, ibidem, p. 26.11. Tal processo monista do Direito se estreita a partir do surgimento do Estado absolutista, na Idade Média, na Europa continental, em especial na França, quando o jus commune (cuja raiz histórica se liga ao direito romano) se verga diante do jus proprium do Reino. No que toca à Inglaterra, o direito positivo se subdividiu entre o statute law (direito legislativo) e a common law (direito consuetudinário, calcado nos precedentes judiciais), sendo que o primeiro vale enquanto não contrariar o segundo.12. Interessante é o debate entre Hobbes e Edward Coke, no qual o primeiro combate ardorosamente a legitimidade da common law, enquanto direito preexistente e independente do Estado. Para tal filósofo, o Direito nada mais é do que um conjunto de normas com as quais o soberano ordena ou proíbe dados comportamentos aos seus súditos. Mister se faz também separar o poder do Estado do poder da Igreja, cf. HOBBES, Thomas. Leviatã: ou Matéria, forma e poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Trad. de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2002, pp. 179-183.13. O conhecimento é fundamentalmente derivado da experiência sensível, não existindo poder inato ou de origem divina. O estado de sociedade e, conseqüentemente, o poder político nascem de um pacto entre os homens, e desse acordo os homens viveriam em estado natural. Cf. LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo: ensaio relativo à verdadeira origem, extensão e objetivo do governo civil. Trad. de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 18.14. As contribuições de Rousseau, Montesquieu e Beccaria são decisivas na montagem, respectivamente, das idéias liberais de contrato social, separação dos poderes do Estado e estrita legalidade do direito penal.15. Apenas em governos despóticos, o juiz é a própria lei, cf. MONTESQUIEU. Do espírito das leis. Trad. de Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2002, pp. 88-93.16. BOBBIO, Norberto. O positivismo..., p. 45.17. Dentre os predecessores do historicismo jurídico, válido que se recorde a obra entitulada “Tratado do direito natural como filosofia do direito positivo”, de 1798, do jurista alemão Gustavo Hugo.18. O universal e o verdadeiro aparecem para o historicismo como realidade encarnada no individual e no concreto: o racional é visto como o real, cf. FASSÓ, Guido. Histoire de la Philosophie du Droit – XIX et XX Siècles. Traduit de l`italien par Catherine Rouffet. Paris: L.G.D.J., p. 29 apud CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do direito.

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2ª ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 76.19. Em particular, a Escola Histórica do Direito influenciou o surgimento da Escola Sociológica e do Realismo jurídico, a partir da Escola da Jurisprudência de interesses e Escola do Direito Livre, orientadas pelas idéias de Jhering. A Escola realista tinha por principais características a consideração unitária da ciência e filosofia, a análise como método e o pluralismo como metafísica. Frutificou nos EUA e na Escandinávia, e tinha, respectivamente, por principais representantes: Oliver Wendell Holmes, Roscoe Pound e Benjamin N. Cardozo; assim como, Alf Ross, Karl Olivecrona e Tore Strömberg, cf. HIERRO, Liborio. El realismo jurídico. In GARZÓN VALDÉS, Ernesto et al(Comp.). El Derecho y la Justicia. Madrid: Trotta, 1996, pp. 77-85.20. É o que Koschaker denomina de “o direito dos professores”, criado nas Faculdades de Direito, cf. FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 76.21. Para tal escola, tem fundamental importância a Teoria Geral do Direito, pela qual a dogmática jurídica elaborará conceitos gerais que formulem e circunscrevam o campo de atuação do direito, com uma função pretensamente criativa.22. Jhering busca uma ciência jurídica universal, dotada de método próprio e válido para o estudo de qualquer ordenamento, numa perspectiva, diga-se de passagem, jusnaturalista. Segundo o jurista alemão, necessária se fazia a simplificação quantitativa dos materiais jurídicos, através da análise jurídica (abstração) e concentração lógica, em busca de princípios de um ordenamento sistematicamente construído, cf. BOBBIO, Norberto. O positivismo..., pp. 122-126.23. Jhering vê o direito como uma vivência entre o Estado e seus jurisdicionados, se consubstanciando numa luta concreta, esforço animado pelo direito subjetivo (e não objetivo) de se buscar um fim, cf. JHERING, Rudolf von. A luta pelo direito. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1987, p. 1. Coube à Philipp Heck, professor alemão de Tübingen, representar tal escola, afirmando a idéia de “fim” enquanto “interesse”, quando em litígio, a ser composto pela atividade criativa do juiz, sendo os comandos legais produtos dos interesses em jogo, cf. HECK, Philipp. Interpretação da lei e jurisprudência dos interesses. Trad. de José Osório. São Paulo: Livraria Acadêmica Saraiva, 1947, p. 19.24. CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação..., pp. 67-68. O projeto de Código Civil francês teve inúmeros ideólogos, dentre eles, Cambacérès, advogado e arquichanceler do Império Napoleônico, que, simplesmente, apresentou três anteprojetos, todos rejeitados pelo parlamento. O art. 4º do projeto definitivo sedimentou o juízo do “non liquet”, segundo o qual ao juiz não era dada a opção de se abster de decidir. Em caso de insuficiência ou silêncio da lei, caso típico das “lacunas”, o juiz haveria de integrar a norma. E aí surgiu a questão: poderia o magistrado deduzir a solução a partir de um juízo pessoal de eqüidade, recorrendo a um sistema típico de direito natural? Ou deveria buscar a auto-integração, recorrendo à analogia ou aos princípios gerais do direito, como queriam os positivistas? Esclareça-se, contudo, que a idéia original de Portalis era a de incentivar a livre criação do direito por parte do juiz, com lastro na eqüidade (expressamente consignada no art. 9º do anteprojeto, que veio a ser eliminado pelo parlamento na redação final do código). 25. Dentre eles, Alexandre Duranton, Charles Aubry, Frédéric Charles Rau, Jean Ch. F. Demolombe e Troplong. Todos eles admitiam a coexistência do direito natural e do direito positivo, porém o primeiro seria irrelevante se não incorporado ao segundo.26. O regime napoleônico cuidou, ainda, de ter o controle direto e centralizado das Escolas de Direito, a fim de que fosse ensinado apenas o direito positivo, se livrando de concepções jusnaturalistas. Observa-se, aí, uma extremada preocupação de negação de todo tipo de direito, inclusive positivo, diferente daquele posto pela lei, como o costume, a jurisprudência e a doutrina, cf. BOBBIO, Norberto. O positivismo..., pp. 81-82.27. Bentham propôs a codificação do direito constitucional, civil e penal inglês, alcunhando seu projeto de “Pannomion”, que foi ofertado, sem sucesso, a inúmeros governos e parlamentos, pelo mundo. 28. Austin gera sua teoria da codificação, a partir das críticas lançadas a Savigny, que era contrário à codificação na Alemanha, afirmando que foi o direito judiciário o causador da crise da ciência jurídica, e não o direito legislativo.29. Para Austin, o objeto da ciência do direito é o direito tal como ele é, e não como deveria ser, numa concepção positivista do direito, que engloba uma feição imperativista e estatal do sistema jurídico. Austin não nega a juridicidade do direito posto pelos juízes, mas afirma que o direito judiciário é inferior ao direito legislativo, posto ser menos acessível ao conhecimento; ser produzido com menor ponderação; ser emitido ex post facto (com efeitos retroativos); ser mais vago e incoerente; possuir dificuldade de certificar a validade das suas normas produzidas e, por derradeiro, não ser jamais auto-suficiente.30. Austin tinha uma visão liberal-moderada, distinta da percepção radical-democrática de Bentham, que desejava uma codificação materialmente renovada.31. A propósito, interessante se torna informar que Kelsen era um matemático nato, somente chegando às letras jurídicas às instâncias de seu pai. Em verdade, Kelsen

jamais quis ser jurista, sendo obcecado pela matemática pura. O positivismo jurídico kelseniano se inspirou em muitos, mesmo em Kant, apesar do purismo de Kelsen não estar vinculado ao kantismo, até porque as idéias de Kant serviram para justificar o Direito Natural, algo que foi veementemente combatido pelo fundador da Escola de Viena. Cf. DUARTE, José Florentino. Palavras do Tradutor. In KELSEN, Hans. Teoria geral das normas. Trad. de José Florentino Duarte. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1986, p. XI.32. Guido Fassò acredita que o positivismo (ou “formalismo jurídico”, expressão mais corrente entre os cultores das idéias kelsenianas) correspondia mais a um modo de pensar do que uma doutrina específica, que negava qualquer metafísica, fundamentando-se unicamente nos fatos “positivos”, cujo conhecimento advém somente da observação e da experimentação, cf. CAMARGO, Margarida Maria Lacombe, Ob. Cit., p. 89.33. Comte acabaria por ser um dos precursores da, mais tarde, denominada “sociologia jurídica”, cf. RIBEIRO JÚNIOR, João. O que é positivismo. São Paulo: Brasiliense, 1985, passim. 34. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico..., pp. 22-23. Segundo tal definição, bom é aquilo que o Estado quer e prescreve como conduta obrigatória, e mau aquilo que não se valorizou a ponto de incorporar-se à ordem jurídica. Assim, justa é a lei, historicamente relativizada, enquanto o direito natural é bom ou mau em si mesmo, independentemente da vontade do legislador, cf. FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito..., pp. 71-83. 35. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Jurisdição constitucional, democracia e racionalidade prática. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, pp. 72-73; WOLKER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito. 2ª ed. São Paulo: Alfa Omega, 1997, pp. 21 e ss.; LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 64.36. BOBBIO, Norberto. Ob. Cit., pp. 131-134.37. Na linguagem juspositivista, o termo “direito” é absolutamente avalorativo, ou seja, privado de qualquer ressonância emotiva. O direito é tal que prescinde do fato de ser bom ou mau, de ser um valor ou um desvalor.38. Observe-se que aqui, no particular, o juspositivismo abre inconscientemente uma brecha para o advento do direito natural enquanto fonte do direito.39. Segundo tal teoria, o ordenamento jurídico é: a) coerente (pois exclui que possam coexistir simultaneamente duas normas antinômicas ou contrárias, visto que já está implícito no ordenamento um princípio que estabelece que uma das duas, ou ambas as normas, são inválidas); e b) completo (segundo o qual das normas explicita ou implicitamente contidas no mesmo, o juiz pode sempre extrair uma regula decidendi para resolver qualquer caso, não havendo lacunas no direito).40. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico..., pp. 133-134.41. De acordo com Schmill, a palavra “positivismo” designa um conjunto de correntes filosóficas e científicas, que possuem origem comum na Ilustração do século XVIII, cujo postulado fundamental é que a ciência é o único critério de verdade, enquanto “medida” de todas as coisas, não sendo possível qualquer outro conhecimento que não seja o conhecimento dos fatos empíricos observáveis, cf. SCHMILL O., Ulises. El positivismo jurídico. In GARZÓN VALDÉS, Ernesto et al (Comp.). El Derecho y la Justicia. Madrid: Trotta, 1996, p. 65.42. SCHMILL O., Ulises. Ob. Cit., p. 69.43. Kelsen foi consagrado mundialmente como o fundador da Escola Normativista e líder do Círculo de Viena, grupo seleto de juristas composto por, dentre outros, Adolf Merkl, Joser Kunz, Alfred Verdross, Franz Weyr, Felix Kauffmann e Felix Schreier, cf. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito: introdução à problemática científica do direito. Trad. de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. São Paulo: RT, 2001, p. 10. 44. Para Kelsen, a ordem jurídica, como ordem coativa da conduta humana, e o Estado, como “aparato coativo”, constituem o mesmo objeto de conhecimento, cf. SCHMILL O., Ulises. Ob. Cit., p. 72.45. O direito positivo é um conjunto de normas que possuem características diferentes das demais ordens normativas, componentes da “metafísica jurídica”, e que regulam sua própria criação escalonada. Trata-se, assim, de um conceito dinâmico do direito positivo, donde aqueloutras ordens normativas não podem formar parte integrante de uma mesma e única ordem normativa, porque seus conteúdos não fixam os atos de criação de outras normas nem determinam o conteúdo desses atos de criação normativa. Kelsen engendra uma fabulosa teoria de “controle da constitucionalidade das leis”, que pressupõe a estrutura piramidal e escalonada da ordem jurídica, com a Constituição no seu ápice servindo de fundamento de validade a toda ordem, garantindo a unidade e a harmonia do sistema, cf. CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação..., p. 104; KELSEN, Hans. Jurisdição constitucional. Trad. de Alexandre Krug. São Paulo: Martins Fontes, 2003, pp. 299 e ss.46. CASAMIGLIA, Albert. Estudio preliminar. In KELSEN, Hans. Qué es Justicia? 1ª ed. Barcelona: Editorial Ariel, 1982, p. 8. A idéia kelseniana era a de elevar o Direito a um ideal de cientificidade, objetiva e exata, purificando-a de toda a ideologia

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política e de todos os elementos de ciência natural. 47. Foi um movimento alemão que defendeu a livre busca do direito, em lugar da aplicação mecânica da vontade do legislador, prevista na lei. Existe um direito vivo, que, apesar de não fixado em prescrições jurídicas, domina a vida. Os adeptos desta corrente de pensamento advogam a existência, ao lado do direito estatal, de uma atividade criadora do direito pelo juiz e pela doutrina, que prospectariam o direito natural e livremente advindo dos grupos sociais. Poderia o juiz, se valendo de conhecimentos extralegais, inclusive, julgar em desacordo com a lei, se a mesma fosse injusta para o caso concreto. Defenderam estas idéias Eugen Ehrlich, Herman Kantorowicz e Oskar Bülow, cf. CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Ob. Cit., p. 100-102; EHRLICH, Eugen. Fundamentos da sociologia do direito. Trad. de René Ernani Gertz. Brasília: Editora UnB, 1986, p. 70. 48. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. de João Baptista Machado. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 1.49. “Imputação” corresponde ao “dever ser”, objetivo e claro, próprio da conduta normatizada. A ciência jurídica ainda que escape, por sua essência normativa, do plexo das ciências naturais, também se submete à um princípio de causalidade, que determina que a cada prescrição se imputa um dever ou obrigação. Daí, a correspondência prescritiva entre conduta ilícita e sanção ser dada pela conjunção “dever ser”. Vale dizer: a norma (que é), não reconhece que algo é assim, mas que deve ser assim. O dever ser é o sentido de um querer, de um ato de vontade. Cf. KELSEN, Hans. Teoria geral das normas. Trad. de José Florentino Duarte. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1986, p. 3.50. Reale reconhece duas faces, explicitamente neokantianas, no pensamento normativista: uma do “ser” (jurisprudência sociológica) e outra do “dever ser” (jurisprudência normativa), sendo esta representada pela qualidade hipotética da norma, que se limita a ligar um fato condicionante a uma conseqüência, a uma sanção, sem enunciar, contudo, qualquer juízo de valor, moral ou político, responsável por esta conexão, cf. REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 459.51. Sempre que as normas forem criadas validamente, isto é, pelas autoridades competentes, elas devem ser respeitadas. Tem-se, então, a pirâmide normativa enquanto ordem dinâmica, que se funda, em última análise, na “norma hipotética fundamental”, norma pressuposta e capaz de conferir validade à ordem jurídica como um todo. Tal norma fundamental teria por função específica a de conferir poder criador do Direito ao ato do primeiro legislador e a todos os outros atos baseados no primeiro ato. Cf. KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. Trad. de Luís Carlos Borges. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 170.52. CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Ob. Cit., pp. 105-121.53. “Ato de vontade” é o ato por meio do qual a autoridade competente exprime sua vontade a respeito de como os indivíduos devem se conduzir, ordenando-lhes ou permitindo-lhes algo. Assim, a ciência do direito não deve se interessar pelos conteúdos das normas, mas pela sua aplicação (dinâmica): nascimento, eficácia e revogação, cf. CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Ob. Cit., p. 112.54. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito..., pp. 17-18. Margarida Lacombe sintetiza tal idéia, da seguinte forma: “um indivíduo quer que o outro se conduza (ato de vontade verificável, ligado ao mundo do ser) de determinada maneira (sentido normativo do ato, que nos conduz à ordem do dever ser), cf. CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Ob. Cit., p. 112.55. Esta pseudo “auto-suficiência” do Direito será, depois, questionada pelo pós-positivismo, que aponta para a falibilidade do modelo lógico-dedutivo kelseniano, e busca o retorno à razão prática, de origem aristotélica, seja numa dimensão tópico-retórica (Theodor Viehweg e Chaïm Perelman), seja numa vertente principiológica (Ronald Dworkin e Robert Alexy).56. Repare-se que prepondera a relatividade da ordem de valores, a depender da vigência ou não de uma dada norma. Cf. KELSEN, Hans. O que é justiça?: a justiça, o direito e a política no espelho da ciência. Trad. de Luís Carlos Borges. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, pp. 324-325.57. “Proposição jurídica” difere de “norma jurídica”, posto que esta última não é um juízo (enunciado), mas um mandamento, comando imperativo. O “dever ser” da proposição jurídica não tem um sentido prescritivo, mas meramente descritivo, próprio da doutrina jurídica. 58. Segundo Kelsen, a interpretação jurídica opera em dois flancos diferentes, podendo ser alcunhada de “autêntica” (na esfera pública, quando levada a efeito pelos poderes estatais incumbidos de aplicar o Direito) ou “não-autêntica ou doutrinária” (na esfera privada, quando o indivíduo é impelido a observar a conduta legalmente prevista, para fugir da sanção). Ferraz Júnior explica que Kelsen apenas confere caráter vinculante à primeira forma de interpretação enquanto ato de vontade de uma autoridade competente. Contudo, prossegue Ferraz Júnior, é por demais simplista a idéia kelseniana de que impende à ciência jurídica apenas descrever os conteúdos normativos plurívocos, que serão limitados por ato de vontade política do legislador, porque a mesma frustra um dos objetivos fundamentais do saber dogmático, que é a busca por um conhecimento racional do direito, na direção de uma verdade hermenêutica. Cf. FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao

estudo do direito..., pp. 257-259. 59. No início do século XX, surge o movimento da “Jurisprudência dos valores”, formado por Rudolf Stammler, Wilhelm Windelband, Heinrich Rickert, Emil Lask e Gustav Radbruch, que considera o direito como uma “ciência dos valores”, pertencente ao campo da cultura, enquanto projeção histórica da subjetividade, sendo que um valor tem validade normativa geral quando o seu reconhecimento é exigido de todos e cada um, cf. LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Trad. de José Lamego. 2ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983, p. 111. 60. Nítido fica que o pensamento normativista reconhece a incidência de valores de ordem política e moral no direito, ainda que dele não faça parte. Interpretar é estabelecer esta moldura das várias possibilidades de significação da lei, mas jamais a uma única interpretação correta, pretensão inacessível aos métodos interpretativos então existentes.61. O pensamento jurídico crítico teve diversos referenciais, desde a análise psicanalítica freudiana, a sociologia de Max Weber, a filosofia materialista histórica de Karl Marx até a teoria crítica da sociedade, expressada pela Escola de Frankfurt, criada em 1923, e representada por Theodor Adorno, Herbert Marcuse, Jürgen Habermas e Max Horkheimer. As teorias críticas do Direito fundam o núcleo de suas teses no questionamento do axioma positivista da separação entre a ciência e a ética e os desastrosos efeitos dessa separação. Em suma, tal pensamento identificou todas as formas de dominação produzida pelo modo de produção capitalista, as quais resultaram, segundo o mesmo, na alienação das consciências e na exclusão das massas, num claro predomínio da razão instrumental em detrimento da razão crítica. Suas principais características refletem o ideal de que o direito não é sinônimo de lei e não é uno, existindo outras normas paralelas e até antiestatais, como as reveladas nos diferentes grupos sociais. De igual maneira, o direito não é neutro, já que suscetível às influências sociais, sendo seu objeto não descrito, mas sim construído pelo intérprete, não se tratando de uma elaboração cientifica e objetivamente racional, porém emocional, intuitivo e prático. Vale dizer: o direito é um instrumento de transformação social, tendo como sujeito o jurista, não sendo autolegítimo por ser decorrente da produção legislativa do Estado. Dentre os principais movimentos de tal pensamento, aponte-se a “Critical Legal Studies” (EUA, década de 70, representada por Peter Gabel, Willian Simon e Robert Gordon), a Associação da Magistratura Democrática (Itália, meados de 60/70, com Pietro Barcellona, Giuseppe Contturi e Salvatore Senese), a “Association Critique du Droit” (França, com a participação de Michel Mialle, Maurice Bourjol, Jacques Michel), o pensamento crítico filosófico alemão (com as contribuições de Hans-Georg Gadamer, Jürgen Habermas, Karl O. Apel e Otfried Höffe) e o Direito Alternativo e o positivismo de combate (Brasil, integrado por Luís Alberto Warat, Luiz Fernando Coelho e Antônio Carlos Wolkmer). cf. COELHO, Luiz Fernando. Teoria Crítica do Direito. 3ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, pp. 105 e 400 e ss.; WOLKMER, Antônio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 5.62. A dicotomia entre direito positivo e direito natural passa a inexistir com o passar do tempo, até porque se dá o fenômeno do estabelecimento do direito natural na forma de normas postas na Constituição, “positivando-as”, cf. FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito..., p. 168.63. De acordo com tal perpectiva, o conceito de validade se relaciona com a noção de valor, cuja origem é econômica, e não filosófica. Na Filosofia, ela entra por meio da chamada “filosofia dos valores”, para a qual estes são entidades (objetos) diferentes dos objetos reais, dos quais se dizem que são (no sentido de forma essencial e existência), ao passo que os valores valem (sua forma essencial não é um ser, mas um dever-ser, e sua existência expressa-se por sua validade). Cf. FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito..., p. 177.64. Tal ordem de idéias contraria frontalmente o pensamento pós-positivista do jurista escandinavo Alf Ross, segundo o qual a validade das normas jurídicas está relacionada com o comportamento da autoridade aplicadora (o tribunal), adotando-se uma concepção semântica de validade, isto é, a norma é um signo que prescreve uma realidade comportamental, sendo uma relação de probabilidade, que cabe à ciência jurídica, como qualquer ciência empírica, demonstrar. Ross critica o excesso de formalismo kelseniano, posto que reduz a validade a uma categoria formal de pensamento, consubstanciada na grundnorm. Para Ross, o direito nada mais é do que uma técnica de decisão judicial. Cf. FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Ob. Cit., pp. 177-178; ROSS, Alf. Sobre el derecho y la justicia. Buenos Aires: Eudeba, 1970, p. 65. 65. Imperioso se faz mencionar a valiosa contribuição, no atual estudo sobre o direito natural, do jurista australiano John Finnis, que vislumbra na dignidade da pessoa humana a característica inerente do ser humano a ser resgatada e protegida pelo Direito Natural. Segundo ele, o direito natural serviria como um fundamento axiológico-cultural, ético-humano ou crítico-racional, conferindo o sentido de validade e obrigatoriedade do direito. Sua proposta se calca no estudo da teoria analítica do Direito, de Herbert Hart, partindo da idéia de existência de regras secundárias para suprir as lacunas das regras primárias, dentro de um princípio de

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razão prática (a phrónesis aristotélica), pela qual o ser humano é livre e phrónimo (titular de prudência) para agir, de acordo com princípios da lei natural, em busca dos bens humanos básicos ou formas básicas de prosperidade humana. Cf. ENGELMANN, Wilson. Direito natural, ética e hermenêutica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, pp. 142-152; FINNIS, John Mitchell. Ley Natural y Derechos Naturales. Trad. de Cristóbal Orrego Sánchez e Raúl Madrid Ramirez. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 2000, pp. 36 e ss.; SÁNCHEZ, Cristóbal Orrego. John Finnis. La lucha por el derecho natural. In Jornadas Internacionales em Homenaje a John Finnis – 25 anos de la publicácion de Natural Law and Natural Rights. Buenos Aires: Universidad Austral, 09 e 10 jun. 2005, cópia mimeo, p. 2; WESTERMANN, Pauline C. The disintegration of natural law theory: Aquinas to Finnis. New York: Leiden, 1997, p. 237. 66. Para ser válida, é preciso que a relação de autoridade esteja de antemão imunizada contra possível desconfirmação do sujeito. Tal imunização se funda em outra instância, ou seja, em outra norma. Assim, validade é uma relação de imunização, que, para Kelsen, é formal ou sintática; enquanto, para Ross, é semântica. Já para Ferraz Júnior, tal relação é pragmática, pois envolve os usuários, suas possíveis reações e contra-reações. Cf. FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Ob. Cit., pp. 179-180.

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O CONTROLE INTERNO E A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA GERENCIAL.12

Agripino Alexandre dos Santos FilhoProcurador do Estado de Sergipe

Especialista em Gestão Pública (Fundação Getúlio Vargas)Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais (Universidad del

Museo Social Argentino)

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1 INTRODUÇÃO

Na década de 70, os países desenvolvidos deram início a uma reestruturação do aparelho do Estado, dentro de um contexto maior de redefinição do papel do Estado na economia, adotando como estratégia a transição de um modelo burocrático weberiano para um modelo gerencial de Administração Pública, cuja essência era o aumento da autonomia dos gerentes e o controle com enfoque na produção de resultados. Saliente-se que, nos países desenvolvidos, de um modo geral, o modelo burocrático weberiano havia logrado êxito em enfrentar as mazelas do patrimonialismo (modelo de administração característico das monarquias absolutistas), mas havia se tornado incapaz de atender às demandas da sociedade pela prestação eficiente e eficaz de mais e melhores serviços, razão por que era necessária a busca por um novo paradigma de gestão pública. No Brasil, a transição para um modelo gerencial de Administração Pública começou tardiamente e se afigura um desafio bem maior porque a adoção do modelo burocrático weberiano ainda não se completou, havendo “ilhas de excelência” no serviço público, cercadas de clientelismo, nepotismo, corrupção e todas as demais distorções do modelo patrimonialista de Administração Pública. Apesar disto, o Brasil não pode mais protelar a transição para o modelo gerencial de administração, que deve se operar em meio ao aperfeiçoamento dos aspectos positivos do modelo burocrático weberiano e sem olvidar a necessidade de corrigir as distorções patrimonialistas existentes. O objetivo deste estudo é pesquisar o exercício da função de controle administrativo para definir se o sistema de controle interno estruturado na Constituição Federal de 1998 permite uma nova abordagem compatível com um modelo gerencial de Administração Pública. O trabalho enfocará o controle administrativo interno, no contexto da reforma do Estado e de seu aparelho, abordando aspectos conceituais, os limites do controle interno, sua adequação com as normas constitucionais, as suas deficiências e possibilidades para seu o aperfeiçoamento.

2. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA PÓS-BUROCRÁTICA: CONSTRUINDO UM NOVO PARADIGMA DE GESTÃO PÚBLICA

A crise do petróleo, na década de 70, deflagrou um processo de recessão econômica mundial, encerrando o impressionante período de desenvolvimento e prosperidade iniciado no pós-guerra e lançando os Estados Nacionais em uma séria crise fiscal. Como decorrência deste novo cenário econômico de forte recessão, os Estados Nacionais se tornaram incapazes de atender às demandas sociais geradas no período anterior, provocando também uma crise de governabilidade. Agregando-se aos fatores anteriores, o processo de globalização, caracterizado pela internacionalização de mercados, desregulamentação do fluxo internacional de capitais e pelos impressionantes

avanços tecnológicos e científicos, enfraqueceu o poder dos Estados Nacionais de influir decisivamente na condução da política macroeconômica e de formular e implementar políticas públicas, pela falta de recursos e pela incapacidade de enfrentar a atuação dos grandes conglomerados econômicos multinacionais. A reação inicial à crise do aparelho do Estado nos países desenvolvidos foi neoliberal e conservadora, com enfoque na eficiência (corte de gastos e de pessoal) e no equilíbrio fiscal, substituindo o modelo burocrático weberiano por um modelo de administração pública gerencial, tendo por fim a introdução da lógica do setor privado no setor público, o que implicava no desmonte da estrutura hierarquizada e rígida da administração burocrática e na sua substituição por um modelo flexível de gestão pública, a fim de obter uma máquina estatal ágil, eficiente e produtiva1. Entretanto, a avaliação da ação administrativa deve se fundar em outros aspectos diversos do mero equilíbrio entre receita e despesa da Administração Pública, porque não basta gastar menos, é preciso gastar bem e atender ao interesse público qualificado pelo ordenamento jurídico-constitucional. De fato, os primeiros reformadores gerencialistas “não consideraram que a especificidade do setor público dificulta a mensuração da eficiência e a avaliação de desempenho tal qual ocorre na iniciativa privada. Na gestão pública estão em jogo valores como equidade e justiça que não podem ser medidos ou avaliados por intermédio dos conceitos do managerialism puro (MAYORDOMO, 1990, 278-280)” (ABRUCIO, 1997, p. 19). Diante da constatação de que o gerencialismo puro, centrado exclusivamente na busca da eficiência, desconsidera a análise acerca da efetividade e da qualidade dos serviços públicos postos à disposição dos contribuintes, bem como não atenta para o processo democrático de seleção de finalidades a serem atendidas pelo Estado, os gerencialistas evoluíram para agregar a noção de qualidade dos serviços públicos, propondo mecanismos pelos quais os contribuintes poderiam cobrar efetividade dos serviços públicos, nos mesmos moldes dos consumidores dos serviços privados. Essa nova perspectiva do gerencialismo, que se convencionou chamar consumerism, cujo padrão é o programa Citizen’s Charter do Governo britânico, tem como foco a transferência de poder decisório aos governos locais (prestadores efetivos dos servi-ços públicos) e a possibilidade de competição entre equipamentos sociais, de modo que o contribuinte/consumidor possa optar pelo que melhor satisfizer seus interesses. Deste modo, a organização pública melhor avaliada pelos contribuintes/consumidores receberá maiores transferências de recursos públicos, como incentivo e reconhecimento à qualidade dos serviços prestados. As críticas a este modelo residem na argumentação de que grupos de contribuintes/consumidores mais organizados poderiam se tornar “clientes preferenciais” dos serviços públicos e que a competição poderia gerar um “jogo de soma-zero”. O gerencialismo ainda está evoluindo, agora em direção ao conceito de democracia, para tratar o contribuinte como cidadão e não mero consumidor de serviços públicos, a partir do reconhecimento de que o regime democrático considera os cidadãos titulares de

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direitos e deveres em face do Estado. Nesse sentido, surge uma nova tendência no gerencialismo chamada de Public Service Orientation – PSO. Os teóricos do PSO também apregoam a transferência de poder decisório aos governos locais, mas a temática da democracia impõe um novo enfoque: a participação popular no processo de tomada de decisões políticas. Luis Fernando Abrucio discorre sobre o tema:“[...] No modelo gerencial puro, a descentralização era valorizada como meio de tornar mais eficazes as políticas públicas. Já no consumerism, o processo de descentralização era saudável na medida em que ele aproximava o centro de decisões dos serviços públicos dos consumidores, pensados como indivíduos que têm o direito de escolher os equipamentos sociais que lhes oferecer a melhor qualidade. O ponto que aqui distingue o PSO das outras correntes é o conceito de cidadão. Pois enquanto cidadão é um conceito com conotação coletiva – pensar na cidadania como um conjunto de cidadãos com direitos e deveres –, o termo consumidor (ou cliente) tem um referencial individual, vinculado à tradição liberal, a mesma que dá, na maioria das vezes, maior importância à proteção dos direitos do indivíduo do que à participação política, ou então maior valor ao mercado do que à esfera pública (POLLITT, 1990:129)” (ABRUCIO, 1997, pp. 26-27). Dessarte, vê-se que o modelo gerencial não é um arcabouço conceitual fechado, está em plena construção, agregando novos valores, sem significar em absoluto um retorno ao vetusto e anacrônico modelo burocrático weberiano, centrado no controle de normas e procedimentos. O desafio que atualmente se apresenta é a construção de um modelo de gestão pública que alie a busca pela eficiência e pela efetividade na prestação de serviços públicos às noções de democracia e accountability, ou seja, construir um modelo de gestão pública gerencial que seja eficiente e efetivo, mas também democrático e responsável perante a sociedade. No Brasil, este desafio possui dificuldades bem maiores que as enfrentadas nos países desenvolvidos, uma vez que o modelo burocrático sequer se consolidou. Com efeito, a Administração Pública brasileira alternou períodos marcados por ênfase ora na centralização, ora na descentralização, mas nunca logrou êxito em estabelecer uma burocracia profissional, com um sistema meritório de promoção, capaz de minimizar as mazelas do patrimonialismo. A Administração Pública brasileira sempre esteve marcada fortemente pelas distorções do patrimonialismo, com ilhas esparsas de excelência no serviço público, cuja presença apenas reforça a conclusão de que o modelo burocrático weberiano de administração pública jamais foi completado no Brasil, o que torna a execução de um modelo gerencial uma empreitada de proporções e dificuldades muito maiores que as enfrentadas nos países desenvolvidos2. A propósito, Frederico Lustosa da Costa avalia as tentativas de reforma do Estado, empreendidas a partir da redemocratização do país, nos seguintes termos: “Na verdade, nos últimos dez anos, não houve da parte desses governos nenhum projeto de reforma do Estado. Todos os remanejamentos realizados não alteraram substantivamente as suas relações com a

sociedade e apenas contribuíram para aprofundar a crise, seja pelo agravamento do problema fiscal, seja pelo sucateamento das estruturas e mecanismos encarregados de operar políticas compensatórias - habitação, nutrição, assistência social, transporte de massas. De fato, não se pode esquecer que, ainda que houvesse iniciativas mais ousadas nesse sentido, as tentativas de reforma do Estado brasileiro quase sempre são empreendidas sem que haja condições políticas para implementar os objetivos declarados de democratização e modernização. O que se verifica, repetidamente, é que os governos aparentemente engajados nesse tipo de projeto são apoiados por grupos oligárquicos e lideranças fisiológicas que representam os interesses particularistas dos detentores de privilégios e isenções e não têm interesse em reformas que busquem a instauração de formas mais igualitárias de competição política e novos tipos de relacionamento entre o Estado e a sociedade” (COSTA, 2003, p. 7). Em face disso, o gerencialismo no Brasil não pode se circunscrever apenas ao aparelho do Estado, fazendo-se imperiosa uma mudança cultural na forma de pensar a administração pública. É preciso reformar o próprio Estado, não apenas o seu aparelho, tendo como norte a noção de democracia, a fim de imprimir eficiência e eficácia à gestão da coisa pública, sem permitir que as instituições e conquistas democráticas sejam sacrificadas em nome de uma pretensa modernização. A construção de um novo modelo de gestão pública não pode menosprezar a questão da democracia e da relação entre Estado e Sociedade Civil, razão pela qual o gerencialismo não pode ser, como pretendem alguns, uma mera introdução da lógica do setor privado na Administração Pública, mantendo intacta a exclusão da Sociedade Civil do espaço público. Com efeito, o espaço de tomada de decisões políticas não deve mais ser ocupado exclusivamente pelo Estado, embora a Sociedade Civil não possa prescindir do Estado para regular e coordenar as relações sociais, políticas e econômicas cada vez mais complexas. É preciso alcançar a compreensão que ambos são protagonistas na construção de um novo modelo de Estado. “[...] Há necessidade de ampliar o domínio público, mediante uma atuação conjunta e articulada dos diversos atores sociais. As novas soluções são híbridas, mistas, compartilhadas e envolvem o fortalecimento simultâneo das diversas instituições da sociedade. Todos com responsabilidades públicas mais claras e transparentes. Para tal, métodos, técnicas administrativas e informacionais não faltam. Por exemplo, todas as Instituições e departamentos públicos significativos deveriam ter e disponibilizar para o público, via Internet, indicadores de desempenho que poderiam ser auditados de forma independente.” (Teixeira; Camargo; Salomão, 1999, p.18). De fato, o processo democrático de tomada de decisões é bem mais complexo que o processo decisório no âmbito de uma empresa privada, por envolver interesses de toda a sociedade, muitos deles antagônicos, motivo porque não se pode administrar a coisa pública apenas pela ótica da eficiência, tratando os contribuintes da mesma forma que os empresários tratam os seus clientes, porque os contribuintes são mais que simples consumidores de bens e serviços públicos, são cidadãos, titulares de direitos e deveres em face do

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Estado e o seu governo, por isso o Estado não pode nem deve se tornar uma empresa porque o empresário administra coisa particular e almeja exclusivamente o maior lucro possível para si mesmo, enquanto o Administrador Público está adstrito à satisfação do interesse da sociedade, administra coisa pública e se orienta por valores muito maiores que a mera obtenção do lucro3. Nesse compasso, a introdução de instrumentos gerenciais do setor privado na Administração Pública deve sopesar as especificidades do processo decisório no setor público, sob pena de pôr em xeque o regime democrático. A refundação do Estado brasileiro não pode ser encarada apenas sob o prisma da mera reforma administrativa, lastreada em rigoroso ajuste fiscal, redução do aparelho estatal e supremacia do mercado. “A questão da decisão política, e, conseqüente-mente, a legitimidade da ação pública torna-se tanto mais complexa quanto mais se avança no processo de urbanização e democratização nas sociedades modernas. Já não bastam os mecanismos de legitimidade legislativa e eleitoral das decisões políticas, pois a dinâmica das decisões políticas referentes a cada conjunto de questões exige um contínuo processo de interação com as forças sociais existentes. Daí a necessidade de mecanismos adequados de intermediação e validação das decisões públicas través de organismos representativos, sejam da esfera institucional, sejam das comunidades que se constituem no país.” (TEIXEIRA; SANTANA, 1995, p. 11). A democracia brasileira possui peculiaridades que devem ser consideradas na implementação de um novo paradigma de gestão pública. A promulgação da Constituição de 1988 formalizou a democracia no Brasil, mas no plano substancial das relações sociais ainda estamos distantes de uma efetiva poliarquia4 brasileira, onde todos sejam realmente iguais perante a lei e tenham acesso isonômico aos serviços públicos. Não nos faltam normas jurídicas, muito ao contrário, há uma verdadeira “esquizofrenia legislativa” em todos os níveis da Federação, o que nos falta são mecanismos de interação entre o Estado e a Sociedade Civil capazes de criar condições para a participação popular na gestão da coisa pública, desde a tomada de decisões sobre a formulação de políticas públicas até sua correspondente execução e avaliação. Neste sentido, a democracia não se restringe apenas à forma de escolha dos que exercerão, em nome do Povo, o poder. Sobretudo, a democracia se torna o regime político no qual o exercício contínuo do poder é oxigenado permanentemente pela interação com o cidadão. Uma vez mais, a transcrição da cátedra de Frederico Lustosa da Costa se faz oportuna: “Na verdade, enquanto o país não conseguir ampliar e universalizar os direitos civis e formar uma classe média rural capaz de superar a política clientelista do mandonismo local e das oligarquias regionais, não dotará o sistema político da representatividade necessária à condução da reforma do Estado, que promova a sua “desprivatização”, pela eliminação de privilégios, cartórios, concessões, permissões, favores e toda sorte de comércio incestuoso entre poderosos.Por outro lado, intervenções na estrutura do Estado, com o fortalecimento dos instrumentos de formulação e gestão de políticas públicas, notadamente da área

social; a elevação dos padrões de desempenho na prestação de serviços públicos; o estabelecimento de formas de cobrança da responsabilidade objetiva dos administradores públicos - accountability, com a redução da impunidade e da corrupção, e; a consolidação de uma burocracia profissional, treinada e estável, permitirão a emergência de formas de competição política mais democráticas. Pois, conjugadas com medidas de ordem econômica, essas reformas ensejarão o surgimento de lideranças mais autênticas, o fortalecimento do sistema partidário, o aperfeiçoamento do processo eleitoral, a superação das tensões entre Executivo e Legislativo e a renovação das práticas de governo. Finalmente, não se pode esquecer que muitas das reformas sociais que ainda estão por ser feitas dependem muito da capacidade do Estado extrair recursos da sociedade e de implementar políticas públicas.” (COSTA, 1998). Conseqüentemente, faz necessária uma reforma do Estado e não apenas de seu aparelho, acompanhada de uma mudança cultural na forma de pensar a administração pública, tendo como norte a consolidação da democracia, enfrentando-se os matizes social (a atividade estatal de formulação e implementação de políticas públicas deve ser fortalecida), político (é preciso firmar um novo contrato social, capaz de assegurar a governabilidade, inclusive com o fortalecimento das instituições e partidos políticos), econômico (a atividade estatal deve se concentrar na regulação e cooperação com Terceiro Setor, em vez da intervenção direta na economia) e cultural (a cultura burocrática enraizada na administração pública deve ser enfrentada) envolvidos. Discorrendo sobre a democracia como valor constitucional por excelência, o Ministro Carlos Ayres de Britto afirmou ser: “exigência da verdade o dizer-se que nos países do Ocidente não se conhece um só colegiado constituinte de livre investidura eleitoral – ungido, portanto, na pia batismal do mais límpido voto popular – que não fizesse da Democracia a alma da Constituição por ele promulgada. E Democracia, no inequívoco sentido de troca de lugar ou mudança topográfica do povo, que da platéia passa para o palco das decisões que a ele digam respeito; ou seja, o povo a sair da passiva posição de espectador para a ativa posição de ator político, a começar pela mais importante das decisões coletivas, que é ‘a decisão política fundamental’ (locução de que se valia CARL SCHIMITT para falar do ato de vontade gerador da Constituição e, concomitantemente, da Constituição em sentido material).” (BRITTO, 2003, p. 183). Portanto, o êxito da almejada reforma institucional exige a criação de espaços de participação popular dentro do aparelho estatal, estabelecendo uma relação permanente de diálogo entre o Estado e a Sociedade, mantendo-se um fluxo contínuo de informações capaz de orientar a atuação dos administradores públicos. Dessarte, a ampliação da “mancha azul” da poliarquia por todo o Estado brasileiro é o pressuposto de qualquer reforma política ou administrativa. Nesse compasso, o controle administrativo interno pode e deve se tornar um importante canal de comunicação entre o gestor público e a ambiência externa, direcionando a ação do administrador para produção de resultados, atentando-se sempre para as

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imposições da democracia como limites intransponíveis ao exercício da função administrativa, possibilitando a superação das disfunções do modelo burocrático e criando condições para o soerguimento de uma administração pública gerencial, flexível e eficiente na produção de resultados, bem como democrática e atenta aos direitos dos cidadãos.

3. CONTROLE ADMINISTRATIVO INTERNO E O MODELO GERENCIAL DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

3.1 Considerações preliminares sobre o controle da administração pública

O exercício da função administrativa5 tem por escopo a satisfação do interesse público qualificado pela norma jurídica6, ou seja, o Povo soberano define, através do processo democrático de elaboração normativa, quais fins devem ser perseguidos pelo Estado, inserindo a atuação do Estado numa “relação de administração”, que se estabelece sob o influxo de uma finalidade cogente, pela qual o administrador público está obrigado a perseguir a consecução dos fins definidos através da norma jurídica. Assim, diversamente do que ocorre entre particulares, que podem fazer tudo o que a lei não proíbe, o administrador público é gestor de coisa alheia, portanto a sua atuação tem limites pré-definidos pelo ordenamento jurídico porque todo o processo decisório na seara pública está condicionado pelo valor constitucional da democracia7. Dessarte, a noção de controle surge como corolário da afirmação do regime democrático e incide sobre o desempenho da função administrativa em todos os Poderes8, sujeitando a ação do administrador público à consecução dos objetivos e fins determinados pelo ordenamento jurídico. Com efeito, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, fruto do ideário dos revolucionários franceses, já garantia à sociedade o direito de pedir contas a todo o agente público, quanto à sua administração (GUIMARÃES, 2001, p. 25), explicitando desde os seus primórdios a afinidade entre o modelo de Estado Democrático de Direito e o controle da Administração Pública. Neste diapasão, exercer o controle sobre o desempenho da função administrativa é um “dever-poder” imposto ao administrador público, decorrente da nítida distinção entre o patrimônio e interesses do Estado e o patrimônio e interesses da pessoa que os administra como gestor de coisa alheia, atuando no exercício de função pública, dentro de limites determinados pelo ordenamento jurídico, objetivando bem servir à sociedade. Saliente-se que o exercício da função de controle se insere em um ciclo formado pelo planejamento, execução, controle e avaliação, estando o controle intimamente ligado ao planejamento, uma vez que sem este não há definição de metas e sem metas não há como cotejar os resultados obtidos, remanescendo a visão negativa de controle, isto é, a adequação da ação administrativa ao cipoal de normas e procedimentos da administração pública com o fito de punir o funcionário

que o inobservar.

3.2 Controle administrativo interno: conceito, classificação, evolução e panorama atual

O conceito de controle administrativo interno, numa primeira aproximação, pode ser compreendido como o dever-poder a ser exercido por órgão integrante da mesma estrutura organizacional do órgão que desempenha a atividade controlada, com o fim de verificar o cumprimento das metas e determinar a correção de eventuais desvios, criando um padrão de gestão pública orientado para a satisfação dos fins qualificados pelo ordenamento jurídico. Nesse sentido, Evandro Martins Guerra entende a função de controle como: “a possibilidade de verificação, inspeção, exame, pela própria Administração, por outros poderes ou por qualquer cidadão, da efetiva correção na conduta gerencial de um poder, órgão ou autoridade, no escopo de garantir atuação conforme os modelos desejados e anteriormente planejados, gerando uma aferição sistemática.” (GUERRA, 2003, p. 23). Este dever-poder de exercer o controle administrativo interno é consagrado na jurisprudência pátria9, através da Súmula n.º 473 do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que a “Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial”. Por importante, é preciso frisar que o controle administrativo interno posterior não pode causar prejuízos a terceiros, razão por que a afirmação de que “atos nulos não geram efeitos” encontra limites nos princípios da presunção de legitimidade dos atos administrativos, da boa-fé e da segurança jurídica10, havendo hipóteses em que a invalidação do ato eivado de vício que o torna nulo deverá respeitar as situações de fato já consolidadas pelo tempo, em face de terceiros de boa-fé. Cuidando-se da classificação da função de controle da Administração Pública, constata-se que não há unanimidade na doutrina, sendo oportuno relembrar os ensinamentos do eminente jurista Genaro Carrió, para quem as “classificações não são certas ou erradas; são úteis ou inúteis, na medida em que servem para identificar melhor o objeto da análise”. Neste sentido, com esteio no magistério de Evandro Martins Guerra (2001, pp. 24-26), o controle pode ser assim classificado:

a) quanto ao órgão que o exerce:

- Controle administrativo: exercido pela própria Administração Pública sobre seus atos;

- Controle legislativo ou político: exercido pelo Poder Legislativo, com auxílio do Tribunal de Contas;

- Controle judicial: exercido pelo Poder Judiciário, decorrente do “monopólio da jurisdição”.

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b) quanto à localização do órgão controlador:

- Controle externo: exercido por um Poder ou órgão não integrante da mesma estrutura organizacional do órgão controlado;

- Controle interno: exercido por órgão integrante da mesma estrutura organizacional do órgão controlado. c) quanto ao momento em que é exercido:

- Controle prévio ou a priori: exercido antes da prática do ato, viando prevenir ilegalidades ou desvios;

- Controle concomitante: exercido durante a prática do ato, visando acompanhar-lhe a execução;

- Controle posterior, corretivo ou a posteriori: exercido após a prática do ato para corrigi-lo, revogá-lo ou anulá-lo.

d) quanto à extensão em que é exercido:

- Controle de mérito: exercido sobre a atuação administrativa, tendo em vista a adequação entre os resultados pretendidos e os resultados efetivamente obtidos;

- Controle de legalidade: exercido sobre a atuação administrativa, tendo em vista a adequação dos atos praticados às normas a eles aplicáveis.

O controle administrativo interno foi institucionalizado no Brasil na década de 60, com a edição da Lei 4.320/64, objetivando enfrentar as dificuldades de acompanhamento das ações governamentais pelo Tribunal de Contas, decorrentes da expansão da Administração Indireta. Assim, foi eliminada a necessidade de registro prévio das despesas junto ao Tribunal de Contas, direcionado esta atividade para o controle interno . O Decreto-Lei n.º 200/67 previu a criação do “sistema de controle interno11 do poder Executivo”12. O controle interno adquiriu dignidade constitucional através do art. 71, I, da Constituição Federal de 196713. Até aqui, o controle administrativo interno foi fortalecido, mas sua análise se restringia aos aspectos puramente contábeis e financeiros. A Constituição Federal de 1988 consolidou o status constitucional do controle administrativo interno, através do seu art 70 que prescreve: “A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder.” Ademais disto, o legislador constituinte de 1988 dispôs que os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário manterão, de forma integrada, sistema de controle interno, compreendendo a fiscalização contábil, orçamentária, operacional e patrimonial,

quanto à legalidade, legitimidade e economicidade. Vê-se que a Constituição Federal de 1988 prestigiou bastante a função de controle administrativo interno, destacando-se uma novidade primordial. A redemocratização do País agregou um novo elemento ao exercício do controle administrativo: a cidadania participativa. De fato, durante os anos de exceção da ditadura militar, os cidadãos eram meros espectadores dos negócios do Estado e sua participação na gestão da coisa pública era considerada desnecessária ou até mesmo inoportuna. Agora, a participação da sociedade como parceira do Estado se revela necessária e imprescindível para a concretização dos valores consagrados constitucionalmente. Neste compasso, é oportuno registrar que a edição Lei Complementar n.º 101/00 – Lei de Responsabilidade Fiscal solidificou a importância do controle administrativo interno, tornando obrigatória a assinatura da autoridade responsável pelo controle interno nos relatórios de gestão fiscal14, bem como explicitou as diretrizes de atuação do controle interno15. A análise sistemática do ordenamento jurídico-constitucional permite inferir que o legislador erigiu o sistema de controle interno incorporando o sentido positivo de controle, estabelecendo a criação de uma estrutura capaz de assegurar o fluxo de informações gerenciais para fundamentar e orientar a ação do administrador público, com o fim de otimizar a implementação das políticas públicas. O professor Molhano Ribeiro esclarece, com argúcia: “O controle tornou-se universal, abrangendo todos os atos da administração, quer se trate da receita ou da despesa. O sistema de controle adotou a individuação – já contemplada no decreto-lei n.º 200/67 – ou seja, além da sua abrangência universal, o controle recai sobre cada agente da administração, desde que seja responsável por bens e valores públicos (MACHADO Jr. & REIS: 1995, 137). A Constituição prevê, também, que os responsáveis pelo controle interno ao tomarem ciência de irregularidades devem denunciá-las junto ao Tribunal de Contas da União, sob pena de responsabilidade solidária. Do mesmo modo, registra-se o avanço da Constituição, no sentido do controle social ao prever que qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para, na forma da lei, denunciar irregularidades perante o Tribunal. Em termos gerais, são notórios os avanços do controle na Constituição federal de 1988: ampliação da abrangência do controle, inclusão do controle social e avaliação do cumprimento das metas do governo [...].” (MOLHANO RIBEIRO, 2008). Todavia, a práxis administrativa, como regra, não incorporou a diretriz constitucional, mantendo o controle interno no plano da análise posterior e meramente racional-legal da atividade administrativa, velando pelo cumprimento rigoroso das normas referentes aos ritos, prazos e registros contábeis e financeiros, sem qualquer preocupação com o cumprimento de metas ou com a obtenção de resultados. Lamentavelmente, o sistema de controle no Brasil permaneceu rigidamente hierarquizado e excessivamente regrado, mantendo-se centrado apenas

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no processo, pondo em relevo o cumprimento de ritos pré-determinados, o que reforça o formalismo, na medida em que o cumprimento de normas se torna um fim em si mesmo, sem qualquer preocupação com a obtenção de resultados efetivos, dificultando uma adequada alocação de recursos por não permitir a existência de um fluxo de informações capaz de colaborar para uma avaliação correta do êxito das políticas públicas implementadas. Destarte, a implementação de um novo paradigma gerencial de administração pública, para lograr êxito, deve enfrentar o desafio de fazer incidir em sua plenitude o modelo de controle administrativo interno estruturado na Constituição Federal, tornando efetivo o desiderato do legislador constituinte, sem perder o foco central do managerialism, isto é, um modelo de gestão que amplia o poder de decisão dos administradores públicos, cujas ações passam a se submeter a controle a posteriori de resultados16. Ressalte-se desde já que o controle de processos não pode se eliminado por completo da Administração Pública, em face do princípio constitucional da legalidade (a legitimidade da ação dos administradores públicos encontra limites intransponíveis no ordenamento constitucional), mas à evidência o controle administrativo interno pode ser aperfeiçoado, através da ênfase na criação e manutenção de um fluxo constante de informação dentro da estrutura estatal, objetivando a consecução de resultados efetivos, mas sem perder o horizonte do regime democrático, concretizando afinal os propósitos vazados na Constituição Federal de 1988, o que demandará o desenvolvimento de uma nova cultura no âmbito da Administração Pública17.

3.3 Controle administrativo interno e democracia: nova abordagem

Os argumentos até aqui expostos permitem inferir que o paradigma gerencial consiste, em suma, na criação de um modelo de gestão orientado para a obtenção de resultados, mediante a ampliação do poder de decisão dos gestores públicos, a desregulamentação, a flexibilização organizacional e a descentralização da execução dos serviços, como meios para a superação das disfunções do paradigma burocrático weberiano, este centrado na hierarquia e no controle de processos, que se revelou incapaz de responder às demandas crescentes da sociedade por mais e melhores serviços. Contudo, apesar de suas deficiências, o modelo burocrático weberiano possui um alto grau de accountability, diversamente do que ocorre no modelo gerencial. Portanto, a criação de um mecanismo de accountability é o grande desafio que deve ser enfrentado na implementação do managerialism, especialmente no Brasil, onde o ciclo de implementação do paradigma clássico sequer foi completado, perdurando em todos os níveis da Federação graves disfunções do patrimonialismo, motivo pelo qual a adoção de um modelo de gestão pública capaz de responder às demandas da sociedade de forma ágil, eficiente e eficaz deve pôr em relevo as conquistas do Estado Democrático de Direito, sob pena de se tornar ilegítimo. O regime democrático impõe condicionamentos ao exercício da função administrativa, razão por que o administrador público deve pautar sua atuação nos limites postos no ordenamento jurídico-constitucional,

resguardando o ideário democrático, ressaltando-se que vincular a ação do administrador público ao ordenamento jurídico-constitucional é completamente diferente de propor que o administrador seja um cumpridor passivo e autômato da literalidade dos textos legais. É precisamente neste ponto que o controle interno da administração pública adquire relevância, cabendo-lhe a missão de orientar a ação estatal, com vistas à consecução de resultados, permitindo que os administradores públicos extraiam do ordenamento jurídico-constitucional a melhor solução para o caso concreto, com base em informações atualizadas, ao tempo em que protege a sociedade do arbítrio, limitando o abuso de maus administradores através do cotejo entre os objetivos planejados e os resultados efetivamente obtidos. Dessa forma, o controle administrativo interno deve ser, primordialmente, um instrumento para criação e manutenção de um fluxo de informações dentro da organização estatal, capaz de proporcionar dados confiáveis para a tomada de decisões legítimas de forma ágil, diversamente do que ocorre nas organizações estruturadas sob a égide do paradigma burocrático18, sem esquecer jamais os limites determinados na Constituição da República. Com efeito, a idéia central do Estado Democrático de Direito é que a lei representa a vontade do Povo, expressa diretamente ou por seus representantes eleitos. Negar cumprimento à Constituição e às leis ao argumento de que se pretende aumentar a eficiência da gestão pública conduz, induvidosamente, ao estrangulamento da democracia, uma vez que os administradores públicos não foram legitimados para substituir a decisão política do Parlamento. Às luzes claras, sabemos todos que a democracia representativa brasileira possui vícios gritantes, mas que devem ser corrigidos através de um processo histórico de amadurecimento e aprendizado, que já está em curso. Assim, o controle administrativo interno deve atuar como ferramenta de accountability democrático na execução do modelo gerencial, sem o qual o gerencialismo pode conflitar frontalmente com as conquistas democráticas. Senão vejamos, é certo que o modelo burocrático weberiano é improdutivo e já esgotou seu papel histórico, mas é forçoso reconhecer que este modelo de administração permite o accountability, enquanto o modelo gerencial de gestão pública enfoca a produção de resultados, mas não determina a quem compete definir quais resultados devem ser produzidos e quem será responsabilizado (BEHN, 1998). Ao fim e ao cabo, o gerencialismo puro pede que a sociedade assine um cheque em branco, confiando no elevado espírito público que por certo possuem a maioria dos gestores públicos, mas não todos. Ademais disto, o gerencialismo puro e todos os seus consectários (corte de gastos, dispensa de pessoal, privatizações em massa etc.) pode se mostrar tão ou mais nocivo à sociedade que a velha estrutura burocrática, porque a busca desesperada pela eficiência poderá conduzir à péssima qualidade dos serviços públicos prestados aos cidadãos, cuja participação nas políticas públicas se dará na condição de meros espectadores, o que vulnera a essência do regime democrático e contraria a Constituição Federal de 1988, pródiga em estimular a participação da sociedade na fiscalização da coisa pública19.

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Outro aspecto a considerar é que a nova gestão pública deve pressupor metas claras e transparentes a serem obtidas em prazo determinado. A dificuldade primordial consiste em definir quem estabelece tais metas: a) os próprios gestores; b) o governo; c) a sociedade, através de seus representantes; d) a sociedade, através de grupos de pressão; e) a sociedade, através dos cidadãos individualmente considerados (BEHN, 1998). O ordenamento jurídico-constitucional já permite o exercício do controle administrativo interno preventivo, substancial, que oriente o exercício da função administrativa para a produção de resultados, sem que isto seja incompatível com a proteção dos direitos e garantias dos administrados contra o arbítrio, de modo a assegurar uma gestão pública democrática, sob o primado da legalidade, cujas ações administrativas sejam legítimas. É bem de ver-se que o controle administrativo interno não pode substituir ou eliminar o poder de decisão do administrador público, mas deve garantir que este poder não transborde dos limites do ordenamento jurídico-constitucional, sob pena de convolar as decisões do administrador público em atos arbitrários, sem parâmetro legal algum, em afronta aos interesses da sociedade e ao próprio regime democrático. É imprescindível que exista uma relação de confiança entre a sociedade e os administradores públicos, mas não se cuida de uma confiança irrestrita e incondicional, razão por que os atos administrativos devem ser transparentes e não podem ficar imunes a controle, sem que este controle signifique manietar a atuação dos administradores públicos. Ademais disto, a democratização da administração pública depende da ampliação das possibilidades de participação popular no processo decisório. Ouçamos novamente as lições do Ministro Carlos Ayres de Britto, ilustre conterrâneo de Tobias Barreto: “[...] não há confundir a participação popular com o controle social, pois o fim de quem efetivamente participa não é atuar um comando constitucional que força o Estado a olhar para trás. A parte privada, o grupo, ou o conjunto da sociedade, nenhum deles pretende fazer da liberdade ou da cidadania um elemento de anulação do poder político, à base do ‘cessa tudo o que antiga musa canta, que outro valor mais alto se alevanta’ (Camões). O objetivo colimado não é fazer ‘oposição’ ao Governo – convenhamos –, mas ‘negociar’ com ele a produção de uma nova regra jurídica pública. Aqui, uma emanação da soberania popular, e, destarte, poder. Ali, uma emanação da cidadania, ou da liberdade e, portanto, direito. [...] Numa palavra, a participação popular não quebra o monopólio estatal da produção do Direito, mas obriga o Estado a elaborar o seu Direito de forma emparceirada com os particulares (individual ou coletivamente). E é justamente esse modo emparceirado de trabalhar o fenômeno jurídico, no plano da sua criação, que se pode entender a locução ‘Estado Democrático’ (figurante no preâmbulo da Carta de Outubro) como sinônimo perfeito de ‘Estado Participativo’” (BRITTO, 1993, pp. 86-87). Nesse diapasão, o exercício do controle administrativo interno deve ter como enfoque principal

orientar o administrador público a escolher a solução que produza os melhores resultados possíveis, dentro dos limites determinados pelo ordenamento jurídico-constitucional, colaborando para o aumento do grau de accountability democrático, na medida em que permitirá que a sociedade possa responsabilizar o gestor público que tenha utilizado a autonomia gerencial que lhe foi conferida para ferir os valores constitucionais que deveria tutelar e satisfazer. Outrossim, o controle administrativo interno também pode ser utilizado como ferramenta de participação popular, criando e mantendo um fluxo constante de informações dentro da organização estatal, otimizando o processo de tomada de decisões e, conseqüentemente, tornando mais eficiente e eficaz e gestão da coisa pública. Essa reorientação do controle administrativo interno para a produção de resultados encontra lastro na Constituição Federal e, em vez da edição de novas regras e procedimentos, depende sobremodo de um novo olhar sobre o sistema constitucional de controle interno, capaz de vê-lo como uma importante ferramenta gerencial para a tomada de decisões, sem que isto importe no menosprezo das salvaguardas constitucionais, indispensáveis à democracia. O exercício da função administrativa deve ser controlado tendo em vista os fins a que se destina, realçando-se sempre os interesses da sociedade. Entretanto, saliente-se que o controle administrativo interno só será verdadeiramente democrático se estiver aberto à participação popular em todas as suas fases20, transformando os órgãos de contro-le interno em um canal de comunicação entre a Sociedade Civil e o Estado, permitindo aos administradores públicos a obtenção de informações mais qualificadas para a tomada de decisões de forma mais célere, eficiente e eficaz, sempre sob o olhar atento do único e verdadeiro titular da coisa pública, o Povo. Calhar antecipar o contra-argumento de que falar em devolver à Sociedade o controle do seu próprio destino se trata de uma visão utópica, desconexa da realidade social e política do Brasil, cuja resposta já dita com maestria e genialidade por Celso Furtado, cabendo apenas sua fiel transcrição: “Em uma época em que os que detêm o poder estão seduzidos pela mais estreita lógica ditada por interesses de grupos privilegiados, falar de desenvolvimento como reencontro com o gênio criativo de nossa cultura pode parecer simples fuga na utopia. Ora, o utópico muitas vezes é fruto da percepção de dimensões secretas da realidade, um afloramento de energias contidas que antecipa a ampliação do horizonte de possibilidades aberto a uma sociedade. A ação de vanguarda requerida constitui uma das tarefas mais nobres a serem cumpridas pelos trabalhadores intelectuais nas épocas de crise. Cabe a estes aprofundar a percepção da realidade social para evitar que se alastrem as manchas de irracionalidade que alimentam o aventureirismo político; cabe-lhes projetar luz sobre os desvãos da história, onde se ocultam os crimes cometidos pelos que abusam do poder; cabe-lhes auscultar e traduzir as ansiedades e aspirações das forças sociais ainda sem meios próprios de expressão” (FURTADO, 2002, pp. 36-37). Deveras, a Sociedade deve ser “a fonte real

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de poder do Estado na medida em que estabelece os limites e condicionamentos para o exercício desse poder” (BRESSER, 1995, p. 14), mas ela própria deverá ser um espaço democrático, pois não será possível a subsistência de um regime político democrático se o Estado controlar a Sociedade Civil ou for controlado por uma Sociedade Civil ela própria autoritária21, razão pela qual se infere que o fortalecimento da democracia é o meio e o modo para a refundação do Estado brasileiro.

4. CONCLUSÃO

Reformar o Estado se tornou um imperativo categórico desde que o modelo de Estado estruturado no pós-guerra entrou em crise, pela incapacidade atender às demandas sociais crescentes e manter o equilíbrio fiscal. Porém, esta reconstrução do Estado não pode ser encarada apenas sob os prismas do ajuste fiscal, da redução do aparelho estatal e da supremacia do mercado, porque o Estado não deve ser mínimo ou máximo, deve ter o tamanho exato para ser eficiente e eficaz na prestação de serviços públicos e nos cumprimentos dos objetivos qualificados pelo ordenamento constitucional. O modelo de administração pública burocrática, lastreado apenas na observância rígida de normas e procedimentos, é ineficiente, ineficaz e improdutivo, impondo-se um novo paradigma de gestão pública, com ênfase na produção de resultados, substituindo o administrador público passivo (mero cumpridor de rotinas administrativas) por um administrador público pró-ativo, capaz de pensar e decidir de forma criativa, ágil, eficiente e eficaz. Entretanto, a criação deste novo paradigma de gestão pública deve criar mecanismos de accountability democrático, reforçando o vínculo de confiança entre a sociedade e os gestores públicos, através de um controle administrativo interno de caráter preventivo, capaz de orientar o exercício da função administrativa para a produção de resultados, de forma transparente e legítima, assegurando o primado da democracia. O controle administrativo interno deve ser aperfeiçoado para enfrentar os novos desafios de um modelo gerencial, superando o viés da análise estrita da legalidade da ação administrativa, centrada apenas na correção dos aspectos formais, sem qualquer indagação acerca da eficiência e da produção de resultados efetivos, fruto da cultura burocrática firmada na noção de que a administração pública se resume no cumprimento cioso das rotinas administrativas, sob a fiscalização rígida dos superiores hierárquicos. É possível extrair da Constituição Federal a fundamentação jurídica necessária para uma atuação preventiva do controle interno, com ênfase na orientação para produção de resultados efetivos, sem esquecer a proteção aos direitos e garantias fundamentais, decorrentes do regime democrático, todavia, em regra, os administradores públicos mantêm o exercício do controle interno limitado à análise da mera formalidade, exercendo-o em momento posterior à prática do ato, sem qualquer preocupação com a eficiência ou a produção de resultados efetivos. Dessarte, muito mais que novas regras jurídicas, o aperfeiçoamento do controle administrativo interno demanda um novo olhar sobre a atividade controladora para vê-la como uma ferramenta de gestão

pública, cujos enfoques principais sejam a prevenção de ilegalidades e a criação um fluxo de informações que possibilite a tomada da melhor decisão possível, mantendo obviamente a possibilidade de invalidação dos atos praticados com excesso ou desvio de poder. Além disso, o controle administrativo interno pode e deve ser o canal para permitir um intercâmbio ágil e permanente de informações dentro da organização estatal, democratizando o acesso à informação e integrando os diversos órgãos e setores da Administração Pública. O fluxo permanente de informações permitirá o conhecimento da real complexidade dos problemas a serem enfrentados pelos tomadores de decisões, que poderão inclusive adaptar com mais eficiência as políticas públicas às alterações ocorridas na sociedade, com o fim de alcançar os fins prestigiados pelo ordenamento jurídico. Portanto, seguindo a linha desenvolvida ao longo deste estudo, propõe-se uma nova abordagem sobre o controle administrativo interno, conceituando-o como o dever-poder a ser exercido por órgão integrante da mesma estrutura organizacional do órgão que desempenha a atividade controlada, com o fim de criar e manter um fluxo de informações capaz de orientar a ação do administrador público na tomada da decisão mais eficiente e eficaz possível, nos limites traçados pelo ordenamento jurídico constitucional, erigidos como decorrência de um processo democrático de escolha entre valores, com o desiderato de contribuir para a construção de uma sociedade verdadeiramente livre, justa e solidária.

Notas e Referências1. “É sob o signo da questão financeira, tanto nos Estados Unidos como na Grã-Bretanha, que o modelo gerencial puro foi implantado. O managerialism seria utilizado no setor público para diminuir os gastos em uma era de escassez e para aumentar a eficiência governamental. Em suma, o gerencialismo puro tinha como eixo central o conceito de produtividade (POLLIT, 1990:2). Não por acaso um dos livros fundamentais àquela época chamava-se ‘Fazendo mais com menos’ (Doing more with less) – UKELES, 1982” (ABRUCIO, 1997, p. 14).2. Nos países onde vem sendo realizada, a reforma gerencial pressupõe, completa e modifica a primeira grande reforma do Estado moderno, a reforma burocrático-weberiana, que instalou um serviço público profissional e meritocrático, condição essencial para que a administração pública gerencial substitua a administração pública burocrática. E neste ponto encontram-se a especificidade e o desafio da América Latina: nenhum país da região completou a construção do modelo burocrático-weberiano nos moldes das nações desenvolvidas, apesar de ter ocorrido a implantação de importantes núcleos de excelência e de regras de mérito no serviço público em vários casos latino-americanos [...]” (CLAD, 1999, p. 126).3. “Embora inspirado na iniciativa privada, o modelo gerencial deve, impreterivelmente, adequar-se ao contexto político-democrático no qual está inserido o setor público. A especificidade da organização governamental deriva, em primeiro lugar, da motivação que a guia: enquanto as empresas buscam o lucro, os gestores públicos devem atuar conforme o interesse público. É bem verdade que os políticos também se orientam pelo desejo de reeleição, e os burocratas podem ser capturados pelos interesses econômicos. Mas é a necessidade de se ter o crivo democrático que torna a ação dos políticos e burocratas passível de controle público. Controle, este, presente nos arranjos da democrac ia direta ou, mais recentemente, na participação dos cidadãos na avaliação e na gestão de políticas públicas, formas típicas do modelo gerencial. Esse tipo de controle democrático não encontra similar nas organizações privadas” (CLAD, 1999, pp. 125-126).4. “O conceito teórico de poliarquia, proposto por Robert Dahl, descreve a forma que a democracia pode assumir empiricamente no mundo moderno – caracterizada acima de tudo pela diversidade das condições sociais, culturais e econômicas dos indivíduos e pela multiplicidade de interesses em jogo – e as condições necessárias e suficientes para o seu estabelecimento (Dahl, 1997). [...] uma das principais características da poliarquia é a responsividade do governo às

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preferências dos cidadãos, considerados politicamente como iguais. Esta depende da oportunidade de os cidadãos formularem suas preferências, expressarem-nas aos demais cidadãos e ao governo através de ações individuais e/ou coletivas e terem-nas igualmente consideradas pelo governo. Segundo Dahl, os requisitos para que essas condições sejam satisfeitas devem ser assegurados por oito condições institucionais previamente estabelecidas: liberdade de formar e aderir a organizações; liberdade de expressão; direito de voto; elegibilidade para cargos públicos; direito de líderes políticos disputarem apoio e votos; fontes alternativas de informação; eleições livres e idôneas; e instituições para fazer com que as políticas governamentais dependam de eleições e de outras manifestações de preferência (Dahl, 1997:27)” (MOLHANO RIBEIRO, 1998).5. “Função administrativa é a atividade exercida pelo Estado ou por quem esteja fazendo suas vezes, como parte interessada numa relação jurídica estabelecida sob a lei ou diretamente realizada através de decretos expedidos por autorização constitucional, para a execução das finalidades estabelecidas no ordenamento jurídico” (OLIVEIRA, 2001, p. 40).6. “Interesse Público, dentro de determinado ordenamento jurídico-positivo, é aquele a que a Constituição e a lei deram tratamento especial; fins públicos são aqueles que o ordenamento assinalou como metas a serem perseguidas pelo Estado, de maneira especial, dentro do regime jurídico de direito público. E, conseqüentemente, é dever da Administração persegui-los. É o poder-dever de que fala Renato Alessi, ou dever-poder, como refere Celso Antônio” (FIGUEIREDO, 2001, p. 35).7. “[...] Na clássica e feliz imagem de Cirne Lima, ao realizar efetivamente tais deveres, por si ou por terceiros, está o Estado empenhado numa relação de administração. E, como tal, sujeito – bem como assim sujeitos os particulares que façam suas vezes – a todo um plexo de mecanismos de controle, como é curial que ocorra com todos os que não estão a braços com mera relação de propriedade” (FERRAZ, 1993, pp. 240-241).8. “[...] na forma do que se decanta do art. 37, caput, da Lei Maior, a função administrativa pode ser até prioritariamente desempenhada pelo Poder Executivo, mas dele não é apanágio: desempenham-na, também, o Legislativo e o Judiciário, a Administração direta e indireta (bem assim a fundacional), a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios. Mas não só” (FERRAZ, 1993, p. 240).9. O Tribunal de Contas da União também dispôs sobre o controle administrativo interno através da Súmula n.º 111, afirmando que “aos órgãos próprios do Controle Interno cabe baixar Instruções e Recomendações para o regular funcionamento do Sistema de Administração Financeira, Contabilidade e Auditoria, de modo que se criem condições indispensáveis para assegurar eficácia ao Controle Externo”.10. “É que o dever de invalidar cede passo à segurança jurídica e à boa-fé dos administrados, desde que a situação gerada pelo ato relativamente insanável tenha em seu favor regra jurídica passível de ser invocada e que haja decorrido um lapso de tempo razoável após a instauração da situação inválida. Haverá, então, um confronto entre dois valores, dirimido após um processo interpretativo e não por uma apreciação livre do administrador” (ZANCANER, 2001, p. 96).11. “A referida lei previu como atribuição do controle interno a prática de verificação prévia, concomitante e subseqüente da legalidade dos atos de execução orçamentária. A verificação prévia ou a adoção do controle a priori significou, em termos práticos, uma transformação da tradicional sistemática do registro prévio, anteriormente executada pelo Tribunal de Contas” (RIBEIRO, 1997, p.12).12. “[...] a reforma administrativa de 1967 ao instituir o controle como um dos princípios fundamentais que passaram a reger a administração federal o fez de modo a refletir a racionalidade do Estado empresário: ‘o trabalho administrativo será racionalizado mediante simplificação de processos e supressão de controles que se evidenciarem como puramente formais ou cujo custo seja evidentemente superior ao risco’ (Cf. Art. 14, Capítulo V, do decreto-lei n.º 200/67)” (RIBEIRO, 1997, p.13).13. “A Carta Magna de 1967, posteriormente, constitucionalizou a matéria, prescrevendo em seu art. 71, I, que uma das atribuições do controle interno era propiciar condições indispensáveis para a eficácia do controle externo. Com a promulgação da Constituição de 1988 o sistema de controle interno restou consolidado” (GUERRA, 2003, p. 114).14. “Art. 54. Ao final de cada quadrimestre será emitido pelos titulares dos Poderes e órgãos referidos no art. 20 Relatório de Gestão Fiscal, assinado pelo: I - Chefe do Poder Executivo; II - Presidente e demais membros da Mesa Diretora ou órgão decisório equivalente, conforme regimentos internos dos órgãos do Poder Legislativo; III - Presidente de Tribunal e demais membros de Conselho de Administração ou órgão decisório equivalente, conforme regimentos internos dos órgãos do Poder Judiciário; IV - Chefe do Ministério Público, da União e dos Estados. Parágrafo único. O relatório também será assinado pelas autoridades responsáveis pela administração financeira e pelo controle interno, bem como por outras definidas por ato próprio de cada Poder ou órgão referido no art. 20”. 15. “Art. 59. O Poder Legislativo, diretamente ou com o auxílio dos Tribunais de Contas, e o sistema de controle interno de cada Poder e do Ministério Público,

fiscalizarão o cumprimento das normas desta Lei Complementar, com ênfase no que se refere a: I - atingimento das metas estabelecidas na lei de diretrizes orçamentárias; II - limites e condições para realização de operações de crédito e inscrição em Restos a Pagar; III - medidas adotadas para o retorno da despesa total com pessoal ao respectivo limite, nos termos dos arts. 22 e 23; IV - providências tomadas, conforme o disposto no art. 31, para recondução dos montantes das dívidas consolidada e mobiliária aos respectivos limites; V - destinação de recursos obtidos com a alienação de ativos, tendo em vista as restrições constitucionais e as desta Lei Complementar; VI - cumprimento do limite de gastos totais dos legislativos municipais, quando houver”.16. “A Administração baseada no controle a posteriori dos resultados também obriga a organização a definir claramente seus objetivos, analisados em sua substância e não como processo administrativo. Desse modo, a avaliação da burocracia se faz predominantemente por meio do cumprimento ou não de metas, e não a partir do respeito a regras que muitas vezes são auto-referidas ” (CLAD, 1998, p. 133).17. “[...] se a administração pública bem não anda, isso não se deve à ausência de mecanismos de controle. Bem antes, eles existem, em excesso até, talvez. O que falta é, provavelmente, uma cultura de controle, que, introjetando em administradores e administrados, com todas as suas com seqüências, a idéia de relação de administração pública, tornasse operante toda a farta coleção de remédios constitucionalmente consagrados [...]” (FERRAZ, 1993, p. 242).18.“as organizações nesse paradigma outorgam um poder muito grande a um número muito limitado de tomadores de decisão, que, por sua natureza, estão vinculados a uma rede muito verticalizada, com uma grande propensão de tomar decisões equivocadas em decorrência de um sistema de informação que é intrinsecamente lento, fornecendo dados imperfeitos, que plasma um modo lento de tomar e implementar decisões” (ALVES, 2002, p. 225). 19. Por exemplo: “Qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para , na forma da lei, denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União” (art. 74, § 2.º, da Constituição Federal).20. “(...) é preciso reforçar as formas democráticas de relacionamento entre o Estado e a sociedade, aumentando o grau de accountability (responsabilização) do sistema. Com isso, busca-se capacitar os cidadãos para controlar as políticas públicas, podendo torná-las, a um só tempo, mais eficientes e de melhor qualidade” (CLAD, 1998, p. 124).21. “O Estado terá um regime democrático se o governo que o dirigir, além de possuir legitimidade, ou seja, apoio da sociedade civil, estiver submetido às regras procedurais que definem a democracia, particularmente a liberdade de expressão e a existência de eleições livres. O regime político, entretanto, será substantivamente mais ou menos democrático dependendo do tipo de sociedade civil a que estiver ligado. Se se tratar de uma sociedade civil ampla, diversificada, e razoavelmente igualitária, a democracia será substantiva. Em contrapartida, se se tratar de uma sociedade civil ela própria autoritária, na qual as diferenças de classe são enormes e os valores democráticos, débeis, a democracia tenderá a ser meramente formal. Uma sociedade para ser democrática precisa não apenas de instituições estatais democráticas – particularmente de uma constituição e de todo um sistema legal que garantam os procedimentos democráticos – mas também de uma sociedade civil em que as contradições, embora reais, não sejam insuperáveis” (BRESSER PEREIRA, 1995, pp. 26-27).

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APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA AOS REENQUADRAMENTOS DE

CARGOS REALIZADOS EM DISCORDÂNCIA COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL.13

Rita de Cássia Matheus dos S. SilvaProcuradora do Estado de Sergipe

Especialista em Direito PúblicoProfessora de Direito Constitucional

Advogada

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1 INTRODUÇÃO

Desde logo, cabe deixar assentado que o presente estudo jurídico tratará acerca da possibilidade da aplicação do Princípio da Segurança Jurídica às situações de Reenquadramento de cargos realizados sem a devida observância da regra do concurso público, regra esta encartada na Constituição Federal. O objeto a ser tratado neste momento se concentra nas situações pretéritas já consolidadas no tempo e que envolvem servidores que, de boa-fé, depositaram confiança no ordenamento jurídico, bem como nos atos praticados pela Administração Pública, os quais gozam da presunção de legitimidade e legalidade.

2. SEGURANÇA JURÍDICA COMOPRINCÍPIO CONSTITUCIONAL

Antes de qualquer coisa deve ser conferido à Segurança Jurídica o status de princípio constitucional na condição de subprincípio do Estado de Direito. Princípio que nas lições de Dworkin e Alexy serve de orientação com vista à solução de uma demanda. Quando a Constituição Federal reza em seu art. 5º, inciso XXXVI, que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”, não está fazendo outra coisa senão tratando da Segurança Jurídica que deve ser conferida a todos com vistas à tranqüilidade. O homem não pode viver cercado de incertezas e à espera de que a qualquer momento um novo fato, ou melhor, um novo ato venha a desconstituir o que para ele estava sedimentado. Carmem Lúcia Antunes Rocha diz com muita propriedade que a “Segurança Jurídica firma-se como paládio de convicções e confiança. Se o direito não se afirma por seguro e garantidor de segurança para as pessoas, direito ele não é, pelo menos não como expressão maior da criação social e estatal. Por isto, segurança jurídica produz-se na confiança que se põe no sistema e na convicção de que ele prevalece e observa-se obrigatória e igualmente por todos. Segurança jurídica diz, pois, com a solidez do sistema. É desta qualidade havida no ordenamento que emana a sua credibilidade e a sua eficácia jurídica e social.”1 A doutrina ao se manifestar acerca do princípio ora abordado, se refere algumas vezes como boa-fé, noutras como proteção à confiança. Não há equívocos nestas referências. Tanto a boa-fé como a proteção à confiança fazem parte do conceito de Segurança Jurídica a depender do enfoque que o intérprete queira dar, se objetivo ou subjetivo. Aqui, cabe trazer à liça as considerações do mestre Almiro do Couto e Silva, para quem a natureza objetiva e subjetiva da Segurança Jurídica estão bem definidas. Veja-se: “A Segurança jurídica é entendida como sendo um conceito ou um princípio jurídico que ramifica em duas partes, uma de natureza objetiva e outra de natureza subjetiva. A primeira, de natureza objetiva, é aquela que envolve a questão dos limites à retroatividade dos atos do Estado até mesmo quando estes se qualifiquem como atos legislativos. Diz

respeito, portanto, à proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada. (...) A outra natureza subjetiva, concerne à proteção à confiança das pessoas no pertinente aos atos, procedimentos e condutas do Estado, nos mais diferentes aspectos de sua atuação. Modernamente, no direito comparado, a doutrina prefere admitir a existência de dois princípios distintos, apesar das estreitas correlações existentes entre eles. Falam os autores, assim, em princípio da segurança jurídica quando designam o que prestigia o aspecto objetivo da estabilidade das relações jurídicas, e em princípio da proteção à confiança, quando aludem ao que atenta para o aspecto subjetivo. Assim, seja como segurança jurídica, seja como proteção à confiança, o que se pode perceber é a construção de teses que visam, sobretudo, garantir a previsibilidade das condutas do Estado. Desde que o Estado passou a intervir, bem como a integrar as relações jurídicas dos cidadãos, os mesmos passaram a confiar nas suas ações, tidas como legítimas, e a acreditar na manutenção daquilo que para eles já estava consolidado. Regina Maria Macedo Nery Ferrari, com muita precisão, assevera que “a segurança jurídica e a harmonia das relações sociais representam a essência da proteção e da certeza do direito, na medida em que em nome dela é que se busca a sua realização e que é em nome dessa mesma realização que se desenvolve todo o objeto da ciência do direito, bem como o estudo que se propõe para análise.”2

Não se tem Estado de Direito com instabilidade ou insegurança jurídica.

3. SEGURANÇA JURÍDICA: PREVISÃO CONSTITUCIONAL E LEGISLATIVA

Entendida a segurança jurídica, sob o enfoque objetivo, como limitação à retroatividade dos atos do Estado, inclusive legislativo, vislumbra-se sua previsão constitucional no art. 5º, inciso XXXVI. Protege-se neste dispositivo o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, institutos que dispensam, neste momento, maiores explanações. Muito embora o Constituinte Originário não tenha feito menção expressa a este princípio no art. 37, caput, da Constituição Federal, quando em verdade poderia ter feito, não há como afastá-lo do atuar da Administração Pública. Tem-se como mais um no rol dos princípios implícitos, ao lado, por exemplo, do da Proporcionalidade e da Razoabilidade, dotado do mesmo grau de importância que aqueles previstos expressamente. Arrematando o tema cabe trazer à liça as considerações de Carlo Ari Sundfeld: “Os princípios implícitos são tão importantes quanto os explícitos; constituem como estes, verdadeiras normas jurídicas. Por isso, desconhecê-los é tão grave quanto desconsiderar quaisquer outros princípios”3 Ademais, não se pode esquecer do art. 5º, § 2º da Constituição Federal que vem a contemplar os direitos e garantias fundamentais não explícitos, assim como os princípios decorrentes do Estado Democrático de Direito. No Direito Administrativo, a Segurança Jurídica vem ganhando muito destaque em razão da

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crescente produção doutrinária, a qual enfrenta o tema confrontando com outros princípios, bem como em razão das novas discussões judiciais nos Tribunais Superiores. No âmbito federal, a Lei nº 9.784/99, que regula o processo administrativo na Administração Pública Federal, ao elencar alguns dos princípios aos quais a Administração deve obediência, trouxe a previsão da segurança jurídica:

“Art. 2º - A Administração Pública obedece-rá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finali-dade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.” Noutra passagem, este mesmo diploma legislativo veda a aplicação de nova interpretação de norma jurídica a fatos pretéritos (art. 2º, inciso XIII) e mais adiante, no art. 54, limita o poder da Administração de anular os atos administrativos: Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé. § 1o No caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência contar-se-á da percepção do primeiro pagamento. § 2o Considera-se exercício do direito de anular qualquer medida de autoridade administrativa que importe impugnação à validade do ato. Corroborando com a legislação federal, o Estado de Sergipe, zelando pela estabilidade das relações jurídicas, editou em 18/07/2006 a Lei Complementar nº 127, para fazer constar no art. 76 da Lei Complementar nº 33 o parágrafo único com a seguinte disposição: Art. 76 .......................................Parágrafo único – O direito da Administração de decretar a nulidade dos atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os seus destinatários, atuando de ofício ou provocadamente, decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada a má-fé.

Desta forma, não pode a Administração Pública a qualquer tempo anular seus atos quando deles originem efeitos favoráveis aos destinatários de boa-fé. Aqui, é bom que se registre que não se trata de quaisquer atos administrativos, mas aqueles que tragam vantagens aos seus destinatários que estiverem de boa-fé. Neste diapasão, o problema é saber quando um ato administrativo é nulo ou é anulável. Esta afirmação decorre da fraca produção doutrinária acerca do tema, bem como da insuficiência legislativa. A preocupação no que tange a esta distinção encontra razão na diversificação dos efeitos destas espécies de invalidade e na sujeição, ou não, ao prazo decadencial de 05 anos. O diploma legal que ainda tece algumas considerações a respeito dos vícios dos atos administrativos é a Lei nº 4.717, de 29 de junho de 1965, conhecida como Lei da Ação Popular. Tentar solucionar esta problemática

transportando para o Direito Público as prescrições do Direito Privado, sobretudo do Direito Civil, não põe fim a esta celeuma em razão da questão da incompatibilidade natural entre os dois sistemas. Não entender assim significa ir de encontro aos rumos que vem tomando o moderno Direito Administrativo. Neste ponto, cabe, mais uma vez, colacionar as lições de Almiro do Couto e Silva: “Para resumir em poucas palavras os grandes traços dessas tendências contemporâneas do Direito Administrativo, em matéria de invalidade dos atos administrativos, pode-se dizer que os atos inválidos continuam sendo divididos em atos nulos e em atos anuláveis, como sempre se fez, mas possuindo agora esses qualificativos um outro conteúdo semântico. A diferença com os esquemas de pensamento tradicional está em que os atos administrativos nulos, na concepção atual, constituem um número extremamente diminuto de atos jurídicos, marcados por tão evidente, estridente, manifesto e grosseiro vício que, no direito de alguns países, como a França e a Itália, são eles tidos como inexistente.” Desta forma, segundo a orientação do Direito Administrativo Moderno o sistema de invalidade estaria assim organizado:

A)Atos administrativos nulos. Aqui, estaria concentrada uma quantidade muito pequena de atos; tão-somente aqueles maculados por vícios grosseiros, situados no campo de aproximação muito grande com os atos inexistente. A hierarquia da norma violada, se constitucional ou ordinária, perde relevância, pois a análise estará concentrada no próprio ato. Também, neste grupo, em razão do vício do ato, não há falar em prazo para decretação da sua invalidade, nem muito menos no monopólio Administrativo para tanto, ou seja, o Judiciário, de ofício, poderá reconhecer esta nulidade que produzirá efeito desde a origem do ato. B)Atos administrativos anuláveis. Já neste ponto, estaria concentrada a grande massa dos atos administrativos viciados, seja em decorrência da ilegalidade ou da inconstitucionalidade, e sobre os mesmos incidiria o prazo decadencial de 05 anos para que a Administração Pública, e tão-somente ela, decretasse a invalidade, cujo efeito seria ex nunc.

C) Atos administrativos inexistentes. Desde logo se deve atentar para a impropriedade do vocábulo, haja vista que o ato inexistente é aquele que em decorrência da falta dos elementos essências não podem ser qualificados como atos jurídicos, e nem muito menos como ato administrativo. Quanto a estes atos é impossível a realização de juízo de valor - se são nulos ou anuláveis -, porque eles simplesmente não existem e, portanto, não podem produzir efeito algum. Por outro lado, parte da doutrina considera defensável a aplicação da Teoria das Nulidades do Direito Privado ao Direito Público, a exemplo de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello e J. J. Gomes Canotilho. Aqui, cabe colacionar o entendimento do grande mestre lusitano. “Figura unitária da inconstitucionalidade não constitui um ponto de partida satisfatório para uma abordagem da teoria das nulidades em direito

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constitucional, pergunta:” Uma lei inconstitucional é nula em que sentido: no sentido da inexistência ou da nulidade? No sentido da nulidade absoluta, radica, ou de pleno direito ou no sentido da anulabilidade ou nulidade relativa?” Para o autor os típicos orientadores para a indentificação do resultado jurídicos derivado da inconstitucionalidade resumem-se da seguinte forma: “(1) inconstitucionalidade e nulidade são conceitos idênticos; (2) a nulidade é resultado da inconstitucionalidade, isto é, corresponde reação de ordem jurídica contra a violação das normas constitucionais; (3) a nulidade não é uma conseqüência lógica e necessária da inconstitucionalidade, pois, tal como na doutrina civilista a ilicitude de uma acto pode conduzir à nulidade ou anulabilidade, e na doutrina administrativa a legalidade é susceptível de ter como reação desfavorável a nulidade ou anulabilidade, também a inconstitucionalidade é suscetível de várias sanções, diversamente configuradas no ordenamento jurídico.”4

4. SEGURANÇA JURÍDICA E AINCONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS

Os esclarecimentos acima são considerados necessários para que não se atrele o vício de inconstitucionalidade à nulidade do ato. O que se pretende dizer com isso é que um ato baseado em lei inconstitucional poderá ser considerado anulável e estar sujeito ao prazo decadencial de 05 anos para que a Administração decrete a sua invalidade. Não se pretende neste estudo desprezar o grau de importância do Princípio da Supremacia Constitucional, mas colocá-lo no mesmo patamar do Princípio da Segurança Jurídica. A produção legislativa e jurisprudencial brasileira já caminha nestes trilhos. A Lei nº 9.868/99 (Lei da Ação Direta de Inconstitucionalidade e da Ação Direta de Constitucionalidade) no art. 27 e a Lei nº 9.882/99 (Lei da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental) no art. 11 já prevêem a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Veja-se:

Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

Cumpre informar que a constitucionalidade dos dispositivos dantes mencionados é objeto de questionamento nas ações declaratórias de inconstitucionalidade de nº 2.231 e nº 2.258, propostas pela Ordem dos Advogados do Brasil, e se encontram pendentes de julgamento. Ao modular os efeitos da declaração de inconstitucionalidade o que se busca é preservar, em nome da segurança jurídica, as situações já consolidadas. Mais uma vez, cabe trazer à lume o entendimento esposado por Regina Maria Macedo Nery Ferrari: “Autores como Kelsen e, entre nós, Pontes de Miranda, admitem que os efeitos produzidos pelo ato inválido podem ser reconhecidos pelo ordenamento jurídico e até mesmo que são insuscetíveis de eliminação,

sob a alegação de que “o direito pode dar significação a fato, mas não pode impedir que eles ocorram, nem pode eliminar seu registro histórico”. Tem razão os autores acima citados, na medida em que outro o entendimento acarretaria o caos na vida social em suas respectivas relações, haja vista que a inconstitucionalidade pode ser argüida a qualquer tempo e, portanto, não haveria a certeza do direito, pois nunca se poderia saber se um ato praticado validamente sob o império de uma lei, seria assim considerado para sempre. Haveria o perigo de que, uma vez argüida a inconstitucionalidade do preceito normativo que regeu sua realização, e se este viesse a ser considerado como inconstitucional pelo órgão competente, com a inconstitucionalidade declarada operando ex tunc, alteraria toda uma vida, retroagindo indefinidamente no tempo.5 A questão dos efeitos temporais da declaração de inconstitucionalidade nunca teve previsão constitucional, como existe no sistema português6. Até 1999 o tema era objeto tão-somente de construção doutrinária e jurisprudencial, e a tese que prevalecia era da inconstitucionalidade como nulidade, cujos efeitos fulminariam o ato ab initio. Com o advento das Leis nºs 9.868/99 e 9.882/99, foi dada ao Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, a possibilidade de restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado, em razão da segurança jurídica ou de excepcional interesse social. Trata-se da chamada “Declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade”. Citando novamente Maria Regina de Macedo, tem-se que: “Porém como bem alerta Teori Albino Zavascki, não é nenhuma novidade, na rotina dos juízes, a de terem diante de si situações de manifesta ilegalidade cuja correção, todavia, acarreta dano, fático ou jurídico, maior do que a manutenção do status quo. Diante de fatos consumados, irreversíveis ou de reversão possível, mas comprometedora de outros valores constitucionais, só resta ao julgador – e esse é o seu papel – ponderar os bens jurídicos em conflito e optar pela providência menos gravosa ao sistema de direito, ainda quando ela possa a ter como resultado o da manutenção de uma situação ilegítima.”7

5. SEGURANÇA JURÍDICA E A JURISPRUDÊNCIA DO STF

Não são muitas as jurisprudências do Supremo Tribunal Federal dispondo acerca do Princípio da Segurança Jurídica como limite ao poder-dever da Administração Pública de anular seus próprios atos administrativos. Como dantes afirmado a matéria ganhou fôlego com o advento das Leis nºs 9.868/99, 9.882/99 e 9.784/99. Três são as decisões do STF que ganharam notável importância e que vem sendo citadas pela doutrina com grande freqüência. Trata-se do MC 2.900-3/RS, MS 24.268/MG e MS 22.357/DF. Na Medida Cautelar de nº 2.900-3, cujo relator foi o Min. Gilmar Mendes, o STF decidiu à unanimidade pela aplicação do Princípio da Segurança Jurídica. Veja-

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se parte do voto referendado: “Considera-se, hodiernamente, que o tema tem, entre nós, assento constitucional (princípio do Estado de Direito) e está disciplinado parcialmente, no plano federal, na Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1.999 (v.g., art. 2º) Em verdade, a segurança jurídica, como subprincípio do Estado de Direito, assume valor ímpar no sistema jurídico, cabendo-lhe papel diferenciador na realização da própria idéia de justiça material”.(MC nº 2.900-3/RS. Relator Min. Gilmar Mendes. 2ª Turma. DJ 01.08.2003) No Mandado de Segurança de nº 24.268/MG, da relatoria do Min. Gilmar Mendes, o acórdão trilhou as mesmas linhas. “Impressiona-me, ademais, o fato de a cassação da pensão ter ocorrido passados 18 anos de sua concessão – e agora já são 20 anos. Não estou seguro de que se possa invocar o disposto no art. 54 da Lei no 9.784, de 1999, (Lei no 9.784, de 29.1.1999: “Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé. §1º No caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência contar-se-á da percepção do primeiro pagamento. §2º Considera-se exercício do direito de anular qualquer medida de autoridade administrativa que importe impugnação à validade do ato.”) – embora tenha sido um dos incentivadores do projeto que resultou na aludida lei -,uma vez que, talvez de forma ortodoxa, esse prazo não deva ser computado com efeitos retroativos. Mas, afigura-se-me inegável que há um “quid” relacionado com a segurança jurídica que recomenda, no mínimo, maior cautela em casos como o dos autos. Se estivéssemos a falar de direito real, certamente já seria invocável a usucapião. A propósito do direito comparado, vale a pena ainda trazer à colação clássico estudo de Almiro do Couto e Silva sobre a aplicação do princípio da segurança jurídica: “É interessante seguir os passos dessa evolução. O ponto inicial da trajetória está na opinião amplamente divulgada na literatura jurídica de expressão alemã do início do século de que, embora inexistente, na órbita da Administração Pública, o principio da res judicata, a faculdade que tem o Poder Público de anular seus próprios atos tem limite não apenas nos direitos subjetivos regularmente gerados, mas também no interesse em proteger a boa fé e a confiança (Treue und Glauben)dos administrados.(...) É possível que, no caso em apreço, fosse até de se cogitar da aplicação do princípio da segurança jurídica, de forma integral, de modo a impedir o desfazimento do ato. Diante, porém, do pedido formulado e da causa petendi limito-me aqui a reconhecer a forte plausibilidade jurídica desse fundamento”.(MS nº 24.268/MG. Relator Min. Gilmar Mendes. Tribunal Pleno. DJ 09.06.2006) No último julgado citado, qual seja, MS 22.357/DF, também da relatoria do Mim. Gilmar Mendes, outra não foi a decisão: “Considera-se, hodiernamente, que o tema tem, entre nós, assento constitucional (princípio do Estado de Direito) e está disciplinado, parcialmente, no plano federal, na Lei no 9.784, de 29 de janeiro de

1999 (v.g. art. 2o). Embora não se aplique diretamente à espécie, a Lei no 9.784, de 29 de janeiro de 1999, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, estabelece em seu art. 54 o prazo decadencial de cinco anos, contados da data em que foram praticados os atos administrativos, para que a Administração possa anulá-los. Vale lembrar que o próprio Tribunal de Contas da União aceitou a situação de fato existente à época, convalidando as contratações e recomendando a realização de concurso público para admissões futuras. Observa-se que mais de 10 anos já se passaram em relação às contratações ocorridas entre janeiro de 1991 e novembro de 1992, restando constituídas situações merecedoras de amparo. Dessa forma, meu voto é no sentido do deferimento da ordem, tendo em vista as específicas e excepcionais circunstâncias do caso em exame. E aqui considero, sobretudo: a boa fé dos impetrantes; a existência de processo seletivo rigoroso e a contratação conforme o regulamento da Infraero; a existência de controvérsia, à época da contratação, quanto à exigência de concurso público, nos moldes do art. 37, II, da Constituição, no âmbito das empresas públicas e sociedades de economia mista; o fato de que houve dúvida quanto à correta interpretação do art. 37, II, em face do art. 173, § 1o, no âmbito do próprio TCU; o longo período de tempo transcorrido das contratações e a necessidade de garantir segurança jurídica a pessoas que agiram de boa-fé. Assim, meu voto é no sentido da concessão da segurança para afastar (1) a ressalva do Acórdão no 110/93, Processo TC no 016.629/92-2, publicado em 03.11.1993, que determinou a regularização das admissões efetivadas sem concurso público após a decisão do TCU de 16.05.1990 (proferida no Processo TC no 006.658/89- 0), e, (2) em conseqüência, a alegada nulidade das referidas contratações dos impetrantes.(MS nº 22.357/DF. Relator Min. Gilmar Mendes. Tribunal Pleno. DJ 05.11.2004) Estas são as considerações acerca da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal ao aplicar o Princípio da segurança jurídica às situações que envolvam atos administrativos eivados de ilegalidade. Ao tratar da aplicação do princípio em comento aos atos oriundos de lei declarada inconstitucional, Gilmar Ferreira Mendes preleciona o seguinte: “Conseqüência da declaração de nulidade ex tunc da norma inconstitucional deveria ser a eliminação do ordenamento jurídico de todos os atos praticados com fundamento nela. Todavia, essa depuração total (tatolbereinigung) não se verifica nem nos sistemas que, como o alemão, fixaram uma regra particular sobre as conseqüências jurídicas de declaração de nulidade, nem naqueles que, como o brasileiro, utilizam fórmulas gerais de preclusão. (...) Embora o nosso ordenamento não contenha regra expressa sobre o assunto e aceite genericamente a idéia de que o ato fundado em lei inconstitucional está eivado, igualmente, de iliceidade, concede-se proteção ao ato singular em homenagem ao princípio da segurança jurídica, procedendo-se a diferenciação entre o efeito da decisão no plano normativo (Normebene) e no plano do ato individual (Einzelaktebene) através das chamadas fórmulas de preclusão. Os atos praticados com base na lei inconstitucional que não mais se afigurem suscetíveis de revisão não são afetados pela lei inconstitucional”.8

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Como se vê, com base na segurança jurídica não se pretende proteger a lei eivada de vício de inconstitucionalidade. Uma vez reconhecido este vício por parte do órgão jurisdicional competente, deve a lei ser expurgada do ordenamento jurídico, o que não significa dizer que o Poder Executivo, por exemplo, deva aplicá-la até que isso venha a ocorrer. Já é de conhecimento de todos que tanto Legislativo como o Executivo têm obrigação de zelar pela Constituição Federal. Corrobora com este entendimento a jurispru-dência do excelso Supremo Tribunal Federal, que no acórdão proferido na Medida Cautelar da ADI nº 221, reza que: “(...) Em nosso sistema jurídico, não se admite declaração de inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo com força de lei por lei ou por ato normativo com força de lei posteriores. O controle de constitucionalidade da lei ou dos atos normativos é da competência exclusiva do Poder Judiciário. Os Poderes Executivo e Legislativo, por sua chefia - e isso mesmo tem sido questionado com o alargamento da legitimação ativa na Ação Direta de Inconstitucionalidade -, podem tão-só determinar aos seus órgãos subordinados que deixem de aplicar administrativamente as leis ou atos com força de lei que considerem inconstitucionais.” Grifos nosso. (Adin 221 –Distrito Federal - Relator: Ministro Moreira Alves. Tribunal Pleno.DJ 22/10/1993)(grifo nosso) O que se visa proteger é o ato praticado com base em lei considerada inconstitucional, por razões de segurança jurídica, protegendo também aqueles que depositaram confiança no Estado e que agiram de boa-fé. Assim, das lições ora colacionadas do jurista Gilmar Ferreira Mendes ficam bem evidentes as diferentes conseqüências da declaração de inconstitucionalidade no plano normativo – considerando a lei em si mesma – e no plano do ato individual – considerando o próprio ato. Neste campo deverão ser aplicadas as fórmulas de preclusão operadas pela decadência e pela prescrição, possíveis em alguns casos, assim como a segurança jurídica em ponderação com a legalidade em outros.

6. CONCLUSÃO: SEGURANÇA JURÍDICA E O CASO CONCRETO DO REENQUADRAMENTO

Após o enfrentamento de todas estas questões tidas como relevantes para o deslinde do caso concreto, bem como após a explanação acerca do atual contexto legislativo e jurisprudencial envolvendo a segurança jurídica, a proteção à confiança, a previsibilidade e a boa-fé, vislumbra-se as seguintes soluções para os casos de reenquadramento enfrentados pelo Estado de Sergipe : A) Os dispositivos que versem acerca do reenquadramento de cargos, presentes nas leis estaduais, devem ser objeto de Ação Declaratória de Inconstitucionalidade, com pedido liminar, a ser promovida pelo Governador do Estado junto ao Tribunal de Justiça Estadual, por ofensa ao art. 25, inciso II, da Constituição do Estado com fundamento no seu art. 106, inciso I, alínea “c”, ou junto ao Supremo Tribunal Federal, por também violar o art. 37, inciso II, da Constituição Federal, com fulcro na legitimação ativa

prevista no art. 103, inciso V da CF. B) Inobstante o ingresso da ação competente, não deve a Administração Pública aplicar os referidos dispositivos aos pedidos administrativos de Reenquadramento de cargos, haja vista o seu dever de zelar pela Constituição Federal, a qual prevê a regra do concurso público como forma de provimento efetivo dos cargos. C) Em que pese a existência da fórmula de preclusão, através da decadência, no art. 76, parágrafo único da Lei Complementar nº 33, com redação dada pela Lei Complementar nº 127, a qual limita o poder da Administração Pública de rever seus próprios atos, não poderá a mesma ser aplicada, tendo em vista que a sua previsão data de 18/07/2006, e como é de conhecimento de todos as regras jurídicas tem vocação prospectiva, isto é, sua aplicação visa ao futuro e não ao passado. Assim, o prazo decadencial de 05 anos previsto no art. 76, parágrafo único da LC nº 33 apenas poderá ser considerado após 18/07/2011. Neste diapasão poder-se-ia indagar: e a Lei Federal nº 9.784/99 não seria passível de aplicação no presente caso? A resposta negativa se impõe pelo simples fato deste diploma legal tratar de Processo Administrativo da União e não ter esta a competência para legislar sobre processo administrativo dos Estados, e nem mesmo dos Municípios. Assim, deve ser afastada de logo a tese da fórmula de preclusão através da decadência pelas razões dantes esposadas. D) A solução que se apresenta como juridicamente viável para as situações pretéritas de reenquadramento de cargos é a ponderação entre o Princípio da Segurança Jurídica e o Princípio da Legalidade, que no atual contexto se apresentam em conflito. Neste momento é que deve ser chamado o Princípio da Proporcionalidade como forma de sopesar aqueles valores constitucionais. Não é difícil verificar que se se abre mão da segurança jurídica está a desconstituir diversas relações firmadas com base num ato legislativo tido como legítimo por todos os seus destinatários, que de boa-fé, depositaram confiança no Estado e acreditaram na previsibilidade da sua conduta. Não se quer dizer com isso que a situação do reenquadramento seja legítima, muito pelo contrário, mas na atual circunstância a sua preservação é menos gravosa para a sociedade. Este é o entendimento da doutrina dominante, e aqui se adota como exemplo as lições de Regina Maria Macedo, para quem a ponderação representa instrumento de solução. Diz esta Professora que “outro limite já foi, de alguma maneira, aqui colocado, isto é, a determinação, no tempo, dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade deve estar fundamentada pelo principio da razoabilidade ou proporcionalidade, ou seja, em um manifesto conflito entre valores constitucionais da mesma hierarquia, vale dizer, de um lado a nulidade ab initio da lei ou ato normativo, e de outro o sério comprometimento da segurança jurídica ou excepcional interesse social, o Supremo Tribunal Federal deve fazer prevalecer o bem jurídico que, conforme a situação apresentada, considere ser mais relevante, ainda que isto importe na manutenção de atos ou situações formados com base em lei que se pressupunha válida, mas que

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era nula.(...) Isto posto, pode-se concluir, levando em consideração que o ato jurídico perfeito representa um limite negativo à atuação dos órgãos do Poder Público, que, conforme lição de Teori Albino Zavascki, diante de fatos consumados, irreversíveis ou de reversão possível, mas comprometedora de outros valores constitucionais, só resta ao julgador – e esse é o seu papel – ponderar os bens jurídicos em conflito e optar pela providência menos gravosa ao sistema de direitos, ainda quando ela possa ter como resultado o da manutenção de uma situação originariamente ilegítima. Em casos tais, a eficácia retroativa da sentença de nulidade importaria a reversão de um estado de fato consolidado, muitas vezes, sem culpa do interessado, que sofreria prejuízo desmesurado e desproporcional.9 Assim, sem mais delongas, são estas as soluções juridicamente viáveis a serem adotadas nas situações envolvendo o reenquadramento de cargos previstos em leis estaduais.

Notas e Referências

1. CARMEM LÚCIA ANTUNES ROCHA. Constituição e Segurança Jurídica:

direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Estudos em homenagem

a José Paulo Sepúlveda Pertence. -. O Princípio da Coisa Julgada e o Vício de

Inconstitucionalidade. 2ª Ed. Editora Fórum. P. 169.

2. REGINA MARIA MACEDO NERY FERRARI. Constituição e Segurança Jurídica:

direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Estudos em homenagem a

José Paulo Sepúlveda Pertence. -. O Ato Jurídico Perfeito e a Segurança Jurídica

no Controle de Constitucionalidade. 2ª Ed. Editora Fórum. P. 169.

3. CARLOS ARI SUNDFELD . Fundamentos do Direito Público. São Paulo. Ed.

Malheiros, p. 144

4. JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO. Direito Constitucional e Teoria da

Constituição. 2. Ed. Coimbra.

5. Op. Cit., p. 235

6. O art. 282.4 da atual Constituição Portuguesa, autoriza o Tribunal Constitucional

a restringir os efeitos retroativos da decisão, em razão da segurança jurídica, da

equidade ou de interesse público de excepcional relevo.

7. Op. Cit., p. 237

8. GILMAR FERREIRA MENDES. Jurisdição Constitucional. Ed. Saraiva, p. 192 e 258.

9. Op. Cit., p. 250 e 255.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE OS EFEITOS DA REMUNERAÇÃO ATRAVÉS DO SUBSÍDIO.14

Arthur Cezar Azevêdo BorbaProcurador do Estado de SergipeEspecialista em Direito do Estado

(Universidade Tiradentes/SE)Doutorando em Direito do Estado

(UMSA – Universidad Del Museo Social Argentino)

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SUMÁRIO

1. Introdução. 2. Subsídio como parcela única. Abrangência do conceito. 3. Subsídio, as vantagens pessoais e o direito adquirido. 4. Das parcelas abrangidas pela implementação do subsídio. Da Estabilidade Financeira e do Direito à Irredutibilidade dos Subsídios. 5. Conclusões.

1 INTRODUÇÃO

A criação da nova modalidade de retribuição pecuniária através de subsídio é obrigatória para o membro de Poder, para o detentor de mandato eletivo, para os Ministros de Estado e Secretários Estaduais e Municipais (Art. 39, § 4º, da CF), para os membros do Ministério Público (Art. 128, § 5º, CF), para os membros das carreiras da Advocacia Pública e da Defensoria Pública (Art. 135, CF), para as carreiras Policiais constantes do elenco do art. 144, CF (Art. 144, § 9º, CF) e, facultativamente, por lei, para os demais servidores estatutários organizados em carreira (Art. 39, § 8º). Não obstante previsão constitucional, trata-se de modalidade remuneratória renovada em virtude dos delineamentos realizados pelas Emendas Constitucionais 19 e 41. Esta renovação, cumulada com a escassez de pronunciamentos judiciais acerca do tema, tem gerado dúvidas sobre o real conceito do que seja subsídio, sua abrangência e reflexos nas políticas remuneratórias. Entretanto, recentes pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal (MS 24875 e ADI 3854), já nos permitem lançar uma luz sobre o tema. Sobre tais prismas jurisprudenciais, aliados aos melhores pronunciamentos doutrinários, é que o presente estudo foi realizado.

2. SUBSÍDIO COMO PARCELA ÚNICA. ABRANGÊNCIA DO CONCEITO.

Para que se possa realizar qualquer análise acerca do reflexo da implantação do subsídio no que diz respeito, quer ao direito adquirido às vantagens pessoais já incorporadas ao patrimônio jurídico do servidor, quer à estabilidade econômica - desdobramento da previsão constitucional de irredutibilidade dos subsídios - imperativo se torna não só conceituá-lo, como também precisar sua natureza jurídica. A conceituação do que seja o subsídio e de qual seja a sua natureza jurídica, determina adentrar, primeiramente, no estudo do sistema remuneratório dos servidores públicos, de que trata o Ordenamento Jurídico Constitucional. Estabelece a Constituição Federal o regime remuneratório dos servidores públicos, fixando como espécies de retribuição pecuniária: o vencimento, os vencimentos e o subsídio. Para a completa análise, contudo, indispensável é a conceituação, também, do que seja remuneração. Neste sentido, temos que remuneração1 é a im-

portância resultante do somatório de todos os valores recebidos, independentemente do título, pelo agente público.” O referido conceito é indispensável, pois é esta espécie de retribuição pecuniária que não pode ultrapassar o teto remuneratório fixado no inciso XI, do Artigo 37, da Constituição Federal, com a redação que lhe foi conferida pela Emenda Constitucional 41/2003. Por seu turno, vencimento2 é a retribuição pecuniária paga, pelo Estado, em virtude do efetivo exercício, ao ocupante de cargo, emprego ou função, observadas as definições legais delineadoras do próprio cargo, emprego ou função. Já vencimentos3 é o resultado da adição do montante relativo ao padrão definido legalmente para o cargo emprego ou função, com as vantagens que são asseguradas ao agente de forma fixa e permanente. O vencimento haverá de ser sempre idêntico, podendo variar os vencimentos e a remuneração. Por fim, de acordo com o Artigo 39, §4º, da Constituição Federal, trata-se o subsídio de contraprestação paga pelo Estado a determinados agentes públicos, em parcela única. Nas palavras de Carmem Lúcia Antunes Rocha, obra citada, p. 311, “O subsídio adotado agora, como espécie remuneratória peculiar e própria conferida a determinados cargos e funções públicas forma-se e fixa-se em parcela única.” Entretanto, tal assertiva não gera a possibilidade de afirmação no sentido de que a remuneração do agente público será definida em parcela única. Os conceitos de subsídio e de remuneração são distintos e não se confundem. A regra incluída pela Emenda Constitucional nº 19/98 (Artigo 39, § 4º) deve ser interpretada de forma harmônica com os demais dispositivos constitucionais, sob pena de ter o conteúdo esvaziado. Com efeito, trata-se de produção do constituinte derivado que deve guardar perfeita sintonia com as regras originárias da Constituição. Logo, ao dispositivo em comento não se pode dar interpretação estanque e isolada, mas sim, interpretação sistemática e conforme a constituição. Neste diapasão, a regra, segundo a qual os agentes públicos especificados serão remunerados por subsídio fixado como parcela única, já nasce mitigada pela própria Constituição. Neste sentido, a opinião dos mais abalizados doutrinadores. Dirley da Cunha Júnior: “Subsídio, portanto, consiste em nova modalidade de retribuição pecuniária paga a certos agentes públicos, em parcela única, sendo vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória. Sem embargo disso, a própria Constituição Federal, em face do § 3º do art. 39, permitiu o acréscimo ao subsídio de certas gratificações e indenizações, e determiados adicionais, como a gratificação de natal, os adicionais de férias, de serviços extraordinários, as diárias, as ajudas de custo e o salário-família.”4 (grifos ausentes no original) Diogo de Figueiredo Moreira Neto: “Mesmo deixando de lado essa impropriedade vernacular, o dispositivo, que se propõe a definir juridicamente o que venha a ser subsídio, tampouco é propriamente exato, nem preciso, nem é claro.

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Não é exato, porque tendo definido a espécie remuneratória como constituída de parcela única, como sendo até sua principal característica, desconsiderou que, norma da mesma hierarquia e eficácia, mandava agregar aos estipêndios de qualquer ocupante de cargo público, sem distinção, vários acréscimos pecuniários garantidos a título de direitos sociais (art. 7º, VIII, IX, XII, XVI e XVII, CF). Tampouco é preciso, porque o estipêndio em parcela única excluiria o cômputo de verbas inde-nizatórias, como as diárias e ajudas de custo, que serão sempre e efetivamente devidas, pois o Estado não se pode locupletar com prejuízo de seus próprios servidores que sejam obrigados a despender recursos pessoais para atender a circunstância excepcionais, no desempenho do serviço público. Tampouco, enfim, é claro, porque deixa sem previsão a que título se dará o pagamento de parcelas referentes a cargos em comissão e a funções gratificadas, que presumidamente não deverão ser agregadas aos subsídios nem, tampouco, exercidas graciosamente, bem como de parcelas já legitimamente agregadas aos vencimentos sob a forma de direitos pessoais, deixando dúvidas sobre a forma em que se processarão essas remunerações, ante a regra da ‘parcela única’.” (grifos acrescidos ao original) Odete Medauar: “O sentido de parcela única, sem qualquer acréscimo, é atenuado pela própria Constituição Federal; o § 3º, do art. 39 assegura aos ocupantes de cargos públicos vários direitos previstos para os trabalhadores do setor privado: décimo terceiro salário, salário-família, adicional noturno, remuneração por serviço extraordinário, adicional de férias; tais direitos representam acréscimos ao subsídio. Também hão de ser pagas aos agentes públicos despesas decorrentes do exercício do cargo, como é o caso das diárias e ajuda de custo”6 (grifos nossos) Maria Sylvia Zanella Di Pietro: “No entanto, embora o dispositivo fale em parcela única, a intenção do legislador fica parcialmente frustrada em decorrência de outros dispositivos da própria Constituição, que não foram atingidos pela Emenda. Com efeito, mantém-se, no artigo 39, § 3º, a norma que manda aplicar aos ocupantes de cargo público o disposto no artigo 7º, IV, VII, VIII, IX, XII, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XXII E XXX,”7 (grifos ausente no original) Complementando o rol dos ilustres administrativistas, a Ministra Carmem Lúcia Antunes Rocha pontifica de forma clara e imune a dúvidas: “Tem-se na norma constitucional em estudo (art. 39, § 4º) que aqueles titulares do direito ao subsídio terão nele a sua fonte exclusiva de pagamento (“serão remunerados exclusivamente por subsídio”) e que ele se forma por uma parcela única, vedando-se outros acréscimos. Há de interpretar aquela norma considerando-se a inovação positivada com a utilização de um rótulo jurídico que, anteriormente, ostentava conteúdo inteiramente diverso, mesmo em sua composição administrativa e pecuniária, e em sua natureza jurídica. Em primeiro lugar, há de se inteligir que o subsídio é a forma de remuneração exclusiva daqueles agentes no sentido de que não se lhes há de admitir

tal pagamento como uma espécie remuneratória acrescendo-se a ela um vencimento ou qualquer outra espécie de pagamento pela contraprestação devida em razão do exercício do cargo ou da função. A exclusividade da espécie de remuneração sob a forma de subsídio há de ser considerada, pois, no sentido de que o seu padrão de valor pecuniário devido pelo cargo ou função correspondente é ele e não outro e não pode ser acrescido de outros padrões, no caso daqueles ocupados pelos agentes descritos na norma do art. 39, § 4º, ou do § 8º, se vier e como vier a ser legalmente definido. Da mesma forma que ao criar cargo qualquer do quadro da Administração Pública a lei descreve o seu nome jurídico, o seu nível, o seu grau, o seu status no quadro de cargos e de carreiras, se for o caso, e o padrão de vencimento a ele correspondente, a lei que vier a cuidar do valor-padrão referente ao cargo ou função constitucionalmente referido na norma do art. 39, § 4º, haverá de ser fixado, e ele será nomeado subsídio. Quer dizer, o subsídio devido ao agente político, membro de Poder e demais agentes aos quais se confere aquela espécie remuneratória corresponde ao vencimento definido para o agente público ou o servidor público em geral. O vencimento compõe, ao lado do subsídio, espécies remuneratórias. Um como o outro compõem, a sua vez, a remuneração, a que se chega pela sua soma a outras parcelas constitucional e legalmente estabelecidas em determinados casos e para determinados cargos, funções e empregos públicos.8 De igual parte, a dicção constitucional é impositiva ao estabelecer que o subsídio é fixado em parcela única. Interprete-se essa característica segundo o conjunto harmonioso das normas constitucionais, a finalidade da norma considerada e o quanto se pretende nela escoimar de dúvidas, especialmente tendo-se o conteúdo que prevalecia e que não mais pode preponderar na matéria. Como antes anotado, o subsídio era composto, nos sistemas jurídicos que precedentemente prevaleceram no Brasil, de duas parcelas: uma variável e uma fixa. O subsídio adotado agora, como espécie remuneratória peculiar e própria conferida a determinados cargos e funções públicas, forma-se e fixa-se em parcela única. O subsídio é fixado em parcela única, mas a remuneração não necessariamente. Não há qualquer vedação constitucional a que os demais direitos dos agentes públicos, aí incluídos aqueles definidos na norma do art. 39, § 4º, venham a ser espoliados ou excluídos do seu patrimônio. Nem poderia, porque a Emenda Constitucional não pode sequer tender a abolir, que dirá botar por terra, direitos fundamentais como aquele relativo ao pagamento no período de férias, o 13º, dentre outros, que alteram o valor remuneratório, mas não o valor do subsídio. O que não se pretende permitir, na norma constitucional em epígrafe, é tão-somente que o padrão subsidiado e destinado à remuneração básica dos agentes públicos, aos quais ele se destina, componha-se de parcela fixa e outra variável, parcela referente ao exercício e outras formas de gratificação, parcela fixa e outra pelo exercício de representação etc. Mas não se há vislumbrar vedação ao reconhecimento e direito dos agentes públicos, aos quais se confere subsídio, e não vencimento, de lhes serem pagas as parcelas que lhe são devidas por força de usa condição de trabalho público ...

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E conclui a ilustre Ministra: “Daí se tem que não há qualquer proibição constitucional a que o agente público, descrito dentre aqueles elencados na norma do art. 39, § 4º, venha a perceber, em sua remuneração, e não em seu subsídio, outra parcela que corresponda a uma circunstância específica, esporádica e com fundamento diverso daquele relativo ao valor padrão básico devido em função do exercício do cargo ... Tanto os adicionais ou as gratificações são aqui sublinhados porque, tendo sido apontados, expressa e exemplificativamente, pelo constituinte reformador no texto do artigo 39, § 4º, poderiam ser considerados como vedados sempre. Não parece seja este o ditame normativo contido naquele dispositivo.... Subsídio não elimina nem é incompatível com vantagem constitucionalmente obrigatória ou legalmente concedida. O que não se admite mais é a concessão de um aumento que venha travestido de vantagem, mas que dessa natureza não é. A vantagem guarda natureza própria, fundamento específico e característica legal singular, que não é confundida com os sucessivos aumentos e aumentos sobre aumentos, que mais escondiam que mostravam aos cidadãos quanto cada dos seus agentes percebia em função do exercício do seu cargo, função ou emprego público.”9

(destaques acrescidos ao original)

Diante do quanto exposto, a outra conclusão não se pode legitimamente chegar senão a de que:

A) o subsídio nada mais é do que o valor padrão básico devido em função do exercício do cargo, sendo possível o recebimento de outras parcelas remuneratórias desde que constitucionalmente ou legalmente fixadas, limitada a remuneração, ao teto constitucionalmente estabelecido. Também podem ser acrescidas parcelas indenizatórias, inexistindo limites para estas;

B) Subsídio somente se confunde com teto remuneratório, no caso dos Ministros do Supremo Tribunal Federal.

Que não se alegue ser este apenas um entendimento doutrinário, dissonante do quanto entendido pela Corte Constitucional. Ao contrário, o Supremo Tribunal Federal e Conselho Nacional de Justiça têm idêntico entendimento. Ao deferir liminar na ADI 3854, ajuizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), que versa sobre o subteto para a magistratura estadual, esclareceu o Relator, Ministro Cezar Peluso, conforme notícia veiculada no sítio do STF, datada de 28/02/2007:10 “Esclarece o relator que “a decisão de hoje não aboliu os subtetos constitucionais de subsídios, mas apenas estendeu o mesmo teto de remuneração (a soma do valor dos subsídios mais alguma vantagem funcional reconhecida pela ordem constitucional) das ‘justiças’ federais à magistratura estadual”. Salientou que o teto remuneratório a ser aplicado “corresponde ao valor do subsídio dos membros do STF”. O ministro Cezar Peluso ressaltou que “quando haja direito de acrescer ao subsídio, já limitados, alguma vantagem lícita, esse total não pode ultrapassar o valor do subsídio dos membros do stf, cujo valor é também, nesse sentido, teto de

remuneração.”. (grifos nossos) Na esteira do julgamento proferido pelo Supremo Tribunal Federal, o Conselho Nacional de Justiça, ao julgar o Procedimento de Controle Administrativo (PCA), relativo ao Tribunal de Justiça de São Paulo, “...limitou o teto salarial a R$ 24.500,00 e determinou a suspensão imediata das verbas que ultrapassam esse valor, que são: verba de gratificação de gabinete, adicional por tempo de serviço acima de 35%, gratificação não identificada e gratificação por tempo de guerra. Foi mantida a gratificação por sexta parte, em seu valor nominal, mesmo que esta ultrapasse o teto, em virtude da não caracterização de flagrante legalidade.”11 Neste diapasão, encontra-se reconhecido que o subsídio remunera apenas o padrão básico do cargo ou função para o qual foi fixado, impossibilitando-se o recebimento de parcelas outras que remunerem a atividade ordinária deste mesmo cargo ou função. Entretanto, é possível o recebimento de remuneração composta de subsídio acrescido de parcela diversa, desde que constitucional e legalmente estabelecida.

3. SUBSÍDIO, AS VANTAGENS PESSOAIS E O DIREITO ADQUIRIDO

O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o MS 24875, impetrado por Ministros aposentados daquele Sodalício, fixou posicionamento claro e expresso acerca das premissas a serem consideradas em matéria de remuneração da Magistratura e, por via de conseqüência, de todos aqueles remunerados através de subsídio. “A primeira premissa revela a extinção do Adicional de Tempo de Serviço (ATS) sob a fundamentação de sua absorção pelo subsídio. Restou claro que o STF entendeu, por unanimidade, que ficaram absorvidos pelo subsídio o vencimento básico, as verbas de representação e o adicional de tempo de serviço, nos exatos termos do art. 8º da Emenda Constitucional n. 41, cuja constitucionalidade foi confirmada neste julgamento. A segunda é a necessidade de respeito absoluto ao teto remuneratório decorrente da fixação do subsídio, somente admitindo-se sua extrapolação em respeito à garantia da irredutibilidade nominal de remuneração e às parcelas que não são com ele cotejadas, como, por exemplo, as verbas indenizatórias. A terceira – e de extraordinária relevância para o tema em tela – é o reconhecimento expresso pelo STF, pela unanimidade de seus Ministros, da coexistência das vantagens pessoais com os subsídios. O próprio Ministro Relator, Sepúlveda Pertence, acompanhado pelos ministros Gilmar Mendes, Ellen Gracie e Celso de Mello, reconheceu a manutenção do acréscimo de 20% sobre os proventos de aposentadoria a título, evidentemente, de vantagem pessoal. O Ministro Ricardo Lewandowski, ao desempatar a votação, também acompanhou esse entendimento. Além do voto do Ministro Marco Aurélio, que foi enfático na defesa dos direitos adquiridos, vão na mesma linha os votos dos Ministros Eros Grau, Carlos Britto, Cézar Peluso e Nelson Jobim, que acompanharam a tese defendida pelo Ministro Joaquim Barbosa, que não rechaça o direito adquirido como vantagens pessoais, ao contrário o reconhece explicitamente, mas limitado ao teto. Ressalta Sua Excelência: “deve

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ser rejeitada a tese do direito adquirido ao excesso, do direito adquirido a uma remuneração que ultrapasse o limite do que o país considera como remuneração justa para a função pública” (Disponível em: http://www.stf.gov.br/noticias/imprensa/ultimas/ler.asp?CODIGO=182375&tip=UN&param=. Acesso em: 30 mai. 2006, grifamos). É imprescindível destacar ainda que o STF não afastou a possibilidade de reconhecer-se direito adquirido frente ao regime do subsídio, ao contrário sinalizou no sentido inverso. Conquanto a tônica do voto vencedor do Ministro Sepúlveda Pertence, Relator, seja no sentido de reconhecer somente direitos adquiridos de matriz constitucional – enfoque, além de inovador, destoante da doutrina dominante, como admite o próprio –, o cerne da discussão levava em conta a ponderação com a instituição do próprio teto constitucional pelas Emendas Constitucionais ns. 19 e 41, que foram promulgadas com o declarado intuito de modificar a jurisprudência do STF firmada do julgamento da ADI 14, em que se excluíam do teto as vantagens pessoais. Frise-se, por oportuno, que, de qualquer sorte, a tese defendida pelo Ministro Sepúlveda Pertence somente alcançou a maioria com a soma, pelo critério médio, do voto do Ministro Marco Aurélio, que adotou o entendimento diametralmente oposto – reconhecimento amplo do direito adquirido.”12

(destaques não existentes no original) Em apertada síntese, o Supremo Tribunal Federal reconheceu: A) A possibilidade de cumulação de recebimento de subsídio acrescido das vantagens reconhecidas pela ordem constitucional, limitada, a remuneração, ao teto constitucional remuneratório; B) A possibilidade de desconsideração do teto remuneratório em face do recebimento de parcela de natureza indenizatória; C) A coexistência de vantagens pessoais com o regime de subsídio; D) A existência de direito adquirido em face do regime de subsídio, inclusive sem respeito ao teto remuneratório, em face do reconhecimento da irredutibilidade de vencimentos, modalidade qualificada de direito adquirido; Dúvidas não restam, pois, da possibilidade de coexistência entre o regime remuneratório do subsídio e o direito à percepção das vantagens pessoais reconhecidas pela Ordem Constitucional ou pelos respectivos Estatutos Jurídicos dos Servidores Públicos, assim como, a reafirmação do respeito absoluto ao direito adquirido, inclusive sem observância ao teto remuneratório.

4. DAS PARCELAS ABRANGIDAS PELA IMPLEMENTAÇÃO DO SUBSÍDIO. DA ESTABILIDADE FINANCEIRA E DO DIREITO À IRREDUTIBILIDADE DOS SUBSÍDIOS

Realizadas estas considerações, imperativo, agora, é estabelecer quais as parcelas vencimentais que foram extintas e abrangidas pela implementação do subsídio. A fixação de quais parcelas foram abrangidas, incorporadas e extintas pelo regime remuneratório do subsídio, guarda estreita ligação com o conceito de

subsídio. Como vimos, subsídio nada mais é do que o valor padrão básico devido em função do exercício do cargo. Logo, as parcelas que se encontram abrangidas pelo subsídio são aquelas que, ordinariamente, remuneram a atividade exercida pela categoria para a qual fora fixado. Destarte, as parcelas pagas em decorrência de condições excepcionais e específicas de trabalho; os direitos sociais constitucionalmente assegurados em cláusula pétrea (Art. 7º); as verbas pagas a título indenizatório; as gratificações exercidas em razão de cargos ou funções de chefia, direção e assessoramento e as vantagens pessoais legalmente asseguradas, não se encontram englobadas pelo subsídio. Das parcelas que tem cunho de vantagem pessoal, a única que foi incorporada pelo regime remuneratório do subsídio foram os adicionais por tempo de serviço, nos exatos termos do artigo 8º, da Emenda Constitucional 41/2003. Por este dispositivo, o teto remuneratório nacional era composto do somatório do vencimento básico, acrescido das verbas de representação e do adicional de tempo de serviço. A verba de representação ou “representação mensal” a que alude o citado dispositivo, não se confunde com o exercício de cargo ou função de chefia, diretoria ou assessoramento. Trata-se de pagamento, justamente, daquilo que ROCHA caracterizou como a “...concessão de um aumento travestido de vantagem, mas que dessa natureza não é.13...” . A leitura do Decreto-Lei 2.371/87, bem como do seu Anexo deixa clara a situação de majoração salarial travestida na concessão da vantagem prevista na Lei 7.374/85. A percepção da gratificação de representação não era decorrente de uma situação particular ou excepcional, muito menos decorrente do exercício de cargo ou função de direção, chefia ou assessoramento. Ao contrário, remunerava a própria atividade regular dos servidores a que foi concedida. Portanto, não se pode conferir às gratificações de função de direção, chefia ou assessoramento, percebidas por servidores organizados em carreira que tiveram a modificação do seu regime remuneratório para o regime do subsídio, o mesmo tratamento conferido pelo artigo 8º da Emenda Constitucional 41 à gratificação de representação. Entender desta forma seria ofender aos princípios da moralidade, da isonomia e da razoabilidade, pois culminaria em cogitar que este acréscimo de responsabilidade e labor seja desempenhado em benefício da Administração Pública sem a respectiva contraprestação monetária ao servidor. Ademais, o direito à percepção das gratificações de função de direção, chefia e assessoramento pelos servidores públicos efetivos, organizados ou não em carreira, remunerados ou não através de subsídio, é reconhecido constitucionalmente, devendo a regulamentação da mesma ser procedida estatutariamente. Dispõe o Artigo 37, V, da Constituição Federal: “V - as funções de confiança, exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo, e os cargos em comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos

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previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento;” (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) (destaques acrescidos ao original) As funções de direção, chefia e assessoramento são ocupadas, exclusivamente, por servidores ocupantes de cargo efetivo. Tais funções representam acréscimo de responsabilidade e labor, quando comparadas com as atividades ordinárias desempenhadas pelos integrantes da carreira ou do quadro na qual as mesmas estão inseridas. Neste pautar, não se pode imaginar que a contraprestação monetária pelo desempenho das funções de confiança esteja abrangida pelo regime remuneratório do subsídio. Ela é devida e deve ser fixada separadamente, quer através de gratificação específica, quer através de estabelecimento de subsídio próprio que remunere, a um só tempo, o labor ordinário e o acréscimo de responsabilidade e labor. Ainda nesta mesma trilha, o servidor público ocupante de cargo efetivo terá direito, mesmo os integrantes de carreiras remuneradas através de subsídio, à estabilidade financeira e à irredutibilidade de subsídio, reconhecidas vantagens pessoais pela ordem constitucional. Consoante demonstrado nas razões supra-expendidas, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o MS 24875, pela unanimidade dos seus membros, reconheceu a possibilidade da coexistência de vantagens pessoais com o regime remuneratório do subsídio. De outra forma não poderia ser, até em virtude da existência de expressa previsão constitucionalmente, no artigo 37, XI, sem que haja vedação no Artigo 39 § 4º, que determina, inclusive, a observância, em qualquer caso, ao artigo 37, XI:

“Art. 37 ...

[...]

XI - a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, aplicando-se como limite, nos Municípios, o subsídio do Prefeito, e nos Estados e no Distrito Federal, o subsídio mensal do Governador no âmbito do Poder Executivo, o subsídio dos Deputados Estaduais e Distritais no âmbito do Poder Legislativo e o subsídio dos Desembargadores do Tribunal de Justiça, limitado a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, no âmbito do Poder Judiciário, aplicável este limite aos membros do Ministério Público, aos Procuradores e aos Defensores Públicos;

(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 41, 19.12.2003)” (destaques acrescidos ao original).

A regra constitucional determinou, expressamente, o somatório do subsídio com as vantagens pessoais para fins de verificação e submissão da remuneração do agente público ao teto remuneratório especificado no mencionado dispositivo. Com efeito, a determinação do somatório é resultante do reconhecimento da possibilidade de pagamento concomitante do subsídio com a vantagem pessoal. Integrante da espécie vantagem pessoal, a Esta-bilidade Financeira, desde que legalmente estabelecida nos respectivos estatutos, pode vir a ser paga, paralelamente, ao regime remuneratório dos subsídios. Estabilidade Financeira é a vantagem que garante ao servidor efetivo, depois de determinado tempo de exercício de cargo em comissão ou assemelhado, a continuidade da percepção dos vencimentos dele, ou melhor, da diferença entre estes e o do seu cargo efetivo (STF, ADIn MG, 1279, 27.9.95, Rel. Min MAURICO CORREIA, DJ 15.12.95; RE 201499, 1ª Turma, 24.4.98, Rel. Min SEPÚVEDA PERTENCE; ADIMC-1264/SC, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, J. 25/05/1995, Publicação DJ 30-06-95, PP 20408; RE 195886, 1ª t., 2.9.97, Rel. Min ILMAR GALVÃO; RE 193810, 1ª Turma, Rel. Min MOREIRA ALVES, Informativos 66 e 74, RE 218989, 1ª Turma, 9.12.97, Rel. Min ILMAR GALVÃO; Re 197739/SC, 1ª Turma, Rel. Min SEPÚLVEDA PERTENCE). As funções de confiança enquadram-se, justamente, na categoria de assemelhados aos cargos em comissão. A Estabilidade Financeira, legislativamente, é conferida através da possibilidade de incorporação, após determinado decurso de tempo, da diferença existente entre o padrão remuneratório básico do cargo efetivo e o valor pago em face do desempenho de função de direção, chefia ou assessoramento. Desta sorte, desde que fixada pela legislação federal, estadual, distrital ou municipal a possibilidade de incorporação, possível é o recebimento da vantagem denominada como Estabilidade Financeira juntamente com o subsídio, respeitado, por óbvio, o teto e subtetos remuneratórios, caso-a-caso. A estabilidade financeira não se confunde, contudo, com a irredutibilidade do subsídio. Ambas têm por escopo a preservação do padrão remuneratório, mas guardam notas distintivas entre si. Vejamos. 1. Para que o servidor tenha direito à estabilidade financeira, necessário se torna a existência de previsão legal. A irredutibilidade do subsídio, por seu turno, é de matriz constitucional (Art. 37, XV):

“XV - o subsídio e os vencimentos dos ocupantes de cargos e empregos públicos são irredutíveis, ressalvado o disposto nos incisos XI e XIV deste artigo e nos arts. 39, § 4º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º, I; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)”

A previsão estatutária relativa ao reconhecimento da estabilidade financeira pode ser retirada do ordenamento jurídico sem que nenhum servidor possa alegar direito adquirido à mesma, ressalvados os casos daqueles servidores que já preencheram os requisitos para o seu reconhecimento. Neste sentido, MORAES:

131

“Em conclusão, entendemos inadmissível qualquer interpretação seja da EC nº 19/98, seja da EC nº 41/03 que possibilite o desrespeito aos direitos adquiridos dos servidores públicos, às vantagens pessoais incorporadas regularmente aos seus vencimentos, e conseqüentemente, integrantes definitivamente em seu patrimônio, em face de desempenho efetivo da função ou pelo transcurso do tempo, como por exemplo anuênios ou qüinqüênios. Irrefutável a argumentação do saudoso Hely Lopes Meirelles, quando afirma que ‘vantagens irretiráveis do servidor só são as que já foram adquiridas pelo desempenho efetivo da função (pro labore facto), ou pelo transcurso do tempo (ex facto temporis). Em relação a essas vantagens, consubstanciou-se o fator aquisitivo, configurando-se a existência de direito adquirido, pois conforme salienta Limongi França, ‘a diferença entre a expectativa de direito e direito adquirido está na existência, em relação a este, de fato aquisitivo específico já configurado por completo’. Ora, aqueles que, de forma lícita e reconhecida juridicamente, tenham seus vencimentos atuais superiores ao futuro teto salarial do funcionalismo, previsto no inciso XI, do art. 37, da Constituição Federal, pela EC nº 41/03 – auto-aplicável, em face do art. 8º da citada emenda, conforme já analisado -, e correspondente ao subsídio mensal dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, (...), de forma alguma poderão sofrer redução salarial, sob pena de flagrante desrespeito à proteção aos direitos adquiridos”14 (grifos nossos). A irredutibilidade do subsídio é modalidade qualificada de direito adquirido: “(...)Irredutibilidade de vencimentos: garantia constitucional que é modalidade qualificada da proteção ao direito adquirido, na medida em que a sua incidência pressupõe a licitude da aquisição do direito a determinada remuneração.15 (...)” É, também, direito social, espécie de direito e garantia individual e, portanto, cláusula pétrea (Art. 60, §4º, IV, da CF/88). 2 A estabilidade financeira exige o decurso de tempo. A irredutibilidade de subsídio não está vinculada a qualquer lapso temporal.

3 A estabilidade financeira pressupõe a percepção de gratificação. A irredutibilidade de subsídio o simples recebimento de subsídio específico.

Quando se tratar de remuneração das funções de direção, chefia e assessoramento através de gratificação estabelecida na legislação estatutária, o direito a ser reconhecido, será o da estabilidade financeira, após preenchidos os requisitos específicos. Quando a função de confiança for remunerada por subsídio específico, sem previsão de que a percepção deste subsídio específico será temporária, enquanto perdurar o exercício da função, tem-se a aplicação da irredutibilidade dos subsídios, impossibilitando-se o retorno ao padrão remuneratório anterior. Note-se que não se está a advogar a impossibilidade do retorno às atribuições ordinárias, com a perda do exercício da função de confiança. Apenas, afirma-se a imperiosa necessidade de manutenção do padrão remuneratório fixado em subsídio específico

que não poderá ser diminuído, sob pena de violação do Artigo 37, XV, da Carta Constitucional.

5 CONCLUSÕES

Em face de tudo o quanto expendido, considerando-se o quanto defendido pela doutrina e pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, conclui-se que: 1. Subsídio nada mais é do que o valor padrão básico devido em função do exercício do cargo, sendo possível o recebimento de outras parcelas remuneratórias desde que constitucionalmente ou legalmente fixadas, limitada a remuneração, ao teto constitucionalmente estabelecido;

2. As parcelas pagas em decorrência de condições excepcionais e específicas de trabalho; os direitos sociais constitucionalmente assegurados; as verbas pagas a título indenizatório; as gratificações exercidas em razão de cargos ou funções de chefia, direção e assessoramento e as vantagens pessoais legalmente asseguradas, não se encontram englobadas pelo subsídio.

3. Possibilidade de desconsideração do teto remuneratório em face do recebimento de parcela de natureza indenizatória;

4. Subsídio somente se confunde com teto remuneratório, no caso dos Ministros do Supremo Tribunal Federal.

5. A coexistência de vantagens pessoais com o regime de subsídio;

6. A existência de direito adquirido em face do regime de subsídio, inclusive sem respeito ao teto remuneratório, em face do reconhecimento da irredutibilidade de vencimentos, modalidade qualificada de direito adquirido;

7. Possibilidade do recebimento de gratificação em virtude do exercício de função de confiança de direção, chefia e assessoramento;

8. Reconhecimento do direito à estabilidade financeira após o preenchimento dos requisitos estabelecidos estatutariamente, em face do exercício das funções de confiança de direção, chefia e assessoramento, quando a remuneração por estas funções for fixada através de gratificação;

9. Reconhecimento da irredutibilidade do subsídio, quando a função de confiança for remunerada por subsídio específico, sem previsão de que a percepção deste subsídio específico será temporária, enquanto perdurar o exercício da função;

Notas e Referências

1. “Remuneração é o total dos valores percebidos, a qualquer título, pelos agentes

públicos.” ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. Princípios Constitucionais dos

132

Servidores Públicos, São Paulo: Saraiva, 1999, p.305.

2. “...corresponde à própria retribuição pecuniária básica a que tem direito o

servidor pelo exercício de cargo público, com valor fixado em lei, sem qualquer

vantagem adicional. Refere-se ao padrão ou à referência do cargo, normalmente

simbolizado por letra, número ou combinação de ambos.” CUNHA JÚNIOR, Dirley

da, Curso de Direito Administrativo, Ed. Podium, 5ª Edição, Ba, p.226.

3. “Vencimentos compreende a soma dos valores correspondentes ao padrão

definido legalmente para o cargo, função ou emprego acrescido das parcelas

outorgadas como vantagens que são garantidas, em caráter permanente e fixo,

para o agente” ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. Princípios Constitucionais dos

Servidores Públicos, São Paulo: Saraiva, 1999, p. 306.

4. CUNHA JÚNIOR, Dirley da, Curso de Direito Administrativo, Ed. Podium, 5ª

Edição, Ba, p.227.

5. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo: Parte

Introdutória, parte geral e parte especial. Rio de Janeiro, Ed. Forense, 2005, p .300.

6. MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno, 7ª Ed. Ver. Atual. – São

Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p 297.

7. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 18ª Ed. São Paulo: Atlas,

2005, p 463.

8. Segundo José Afonso da Silva, “o conceito de parcela única há de ser buscado

no contexto temporal e histórico e no confronto do § 4º do art. 39 com outras

disposições constitucionais, especialmente o § 3º do mesmo artigo... A primeira

razão da exigência de parcela única consiste em afastar essa duplicidade de

parcelas que a tradição configurava nos subsídios” (Curso, cit.. o. 663)

9. ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. Princípios Constitucionais dos Servidores

Públicos – São Paulo: Saraiva, 1999, p. 303/314.

10. Notícia colhida no site do Supremo Tribunal Federal, em 1/3/2007. Endereço:

h t t p : / / w w w . s t f . g o v . b r / n o t i c i a s / i m p r e n s a / u l t i m a s / l e r .

asp?CODIGO=224066&tip=UN

11. Notícia colhida no site Conselho Nacional de Justiça, em 7/3/2007. Endereço:

http://www.cnj.gov.br/index2.php?option=com_content&task=view&id=2769&

pop=1&page=...

12. CAIXETA, Sebastião Vieira. Subsídios e direitos adquiridos. Jus Navigandi,

Teresina, ano 10, n. 1072, 8 jun. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/

doutrina/texto.asp?id=8488>. Acesso em: 14 mar. 2007.

13. Ob. Cit., p. 314

14. MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 18ª ed. atual. até a EC nº 47/05.

São Paulo: Atlas, 2005, p. 366

15. STF-RE-298.694/SP, Pleno, Min. Sepúlveda Pertence, DJU 23-04-200

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CONSTITUCIONALIDADE DA ADVOCACIA PRIVADA DO PROCURADOR DO ESTADO. 15

Eugênia Maria Nascimento FreireProcuradora do Estado de Sergipe

Especialista em Direito TributárioPresidente da Associação dos Procuradores do Estado de Sergipe

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PERTINÊNCIA TEMÁTICA

O XXXIII CONGRESSO NACIONAL DE PROCURADORES DE ESTADO E DO DISTRITO FEDERAL tem como tema central “A Descoberta de Novos Caminhos. Justiça para um Novo Mundo”. O tema enfocado na presente tese, qual seja, a possibilidade do exercício da advocacia privada pelo Procurador do Estado, encontra pertinência temática com o temário oficial do XXXIII Congresso Nacional de Procuradores de Estado, especificamente no item I, referente ao Direito Constitucional, sendo enquadrado no subtema 9 “As carreiras jurídicas à luz da Constituição Federal”. Dessa forma, o estudo aqui realizado enfoca a carreira jurídica do Procurador do Estado, com o enfoque voltado à constitucionalidade e à legalidade da advocacia privada, quando exercida pelo mesmo, tendo em vista as várias polêmicas que têm ocorrido, levantadas pelo Ministério Público, no tocante às ações penais e ações civis públicas, bem como por advogados que questionam essa possibilidade em razão da concorrência.

1 INTRODUÇÃO

O presente estudo tem como escopo demonstrar a constitucionalidade da atuação do Procurador do Estado no âmbito da advocacia privada, estudando a extensão e os limites desse exercício. È importante esclarecer, inicialmente, que a Constituição Federal de 1988 não proíbe o exercício da advocacia privada pelos Procuradores do Estado, deixando a regulamentação dessa matéria para a Lei Complementar de cada ente da federação. Alguns estados, em suas respectivas leis complementares, admitem expressamente o exercício da advocacia privada pelos Procuradores do Estado, enquanto outros proíbem expressamente essa faculdade. Sabe-se que em alguns estados, os Procuradores do Estado entraram em acordo com o Poder Executivo, no sentido de obter a paridade com o Judiciário e o Ministério Público, renunciando ao exercício da advocacia privada. Infelizmente, nesses estados, aconteceu que o governo não cumpriu seu compromisso de paridade salarial com aquelas carreiras, ficando os Procuradores sem a advocacia privada e sem um salário condigno. Dessa forma, entendemos que a luta por uma melhor remuneração, para a carreira de Procurador de Estado, inclusive a luta pela paridade, deve ser efetivada de forma específica, sem abdicar de prerrogativas e competências, entre estas a possibilidade do exercício da advocacia privada. Nos estados em que é permitido o exercício da advocacia privada pelo Procurador do Estado, essa possibilidade encontra expressa previsão, através de lei complementar, porém, essa atividade sofre, constantemente, o combate velado ou expresso por parte de membros do Ministério Público, em especial quando a advocacia é exercida em processos criminais e ações civis públicas, bem como a crítica de advogados,

sob o frágil argumento de que seria uma concorrência desleal. 2. ESTUDO DA LEGISLAÇÃO

Para um melhor entendimento do exercício da advocacia pública e do cargo de Procurador do Estado, com suas prerrogativas, direitos e garantias, é imprescindível fazer um estudo sobre a legislação pertinente, em especial a Constituição Federal de 1988, a Constituição do Estado de Sergipe, leis complementares, Estatuto da OAB. A Constituição Federal de 1988 prevê expressamente, em seu art. 132, a carreira do Procurador do Estado, com o seguinte teor:

“Art. 132. Os Procuradores dos Estados e do Distrito Federal, organizados em carreira, na qual o ingresso dependerá de concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as suas fases, exercerão a representação judicial e a consultoria jurídica das respectivas unidades federadas. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) Parágrafo único. Aos procuradores referidos neste artigo é assegurada estabilidade após três anos de efetivo exercício, mediante avaliação de desempenho perante os órgãos próprios, após relatório circunstanciado das corregedorias. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)”

No âmbito da legislação do Estado de Sergi-pe, vale ressaltar o disposto nos arts. 120 e 121 da Constituição Estadual, os quais expressam o seguinte:

“Art. 120. A Procuradoria Geral do Estado é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa o Estado judicial e extrajudicial-mente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo. § 1º A Procuradoria Geral do Estado tem por chefe o Procurador Geral do Estado, de livre nomeação pelo Governador do Estado dentre cidadãos maiores de trinta e cinco anos, de notável saber jurídico e reputação ilibada, que terá vencimentos, vantagens, direitos e prerrogativas de Secretário de Estado. § 2º Na execução da dívida ativa, no assessoramento de órgãos e entidades da administração pública em geral, na defesa do seu patrimônio e da Fazenda Pública Estadual, a representação do Estado cabe ao Procurador Geral do Estado, observado o disposto em lei. Art. 121. Os Procuradores exercerão a representação judicial e a consultoria jurídica do Estado, organizados em carreira na qual o ingresso dependerá de concurso público de provas e títulos, observado o disposto no art. 25, inciso IX e art. 28, parágrafo único.”.

Nesse contexto, é de bom alvitre destacar o disposto no art. 73, Inciso I, da Lei Complementar n.º 27/96 e suas alterações, especialmente a Lei Complementar n.º 40/98, in verbis:

“Art. 73 - É vedado ao Procurador do Estado:

135

I – (Revogado pela Lei Complementar Estadual nº 40, de 28.12.1998)

* Redação original: “I - exercer a advocacia, além daquela decorrente do exercício do seu cargo, ressalvado o direito dos que, anteriormente à vigência desta, já a exerciam.” Analisando o artigo acima transcrito, em sua redação original, observa-se que a Lei Complementar nº 27, de 02 de agosto de 1996, proibia o exercício da advocacia ao Procurador do Estado, ressalvando o direito adquirido daqueles já a exerciam. Com o advento da Lei Complementar nº 40, de 28 de dezembro de 1998, a proibição acima mencionada fora revogada, ficando permitido o exercício da advocacia privada para todos os Procuradores do Estado de Sergipe. Uma acurada análise dos dispositivos acima transcritos evidencia que, no estado de Sergipe, não existe vedação para o exercício da advocacia privada, pelo Procurador do Estado, de forma que este essa atuação pode ser realizada observando as prescrições da Lei nº 8.906 de 1994 (Estatuto da Advocacia) Analisando o Estatuto da OAB, Lei n.º 8.906/94, precisamente o art. 30, I, observa-se que o mesmo trata de impedimentos ao exercício da advocacia, com o seguinte teor:

“Artigo 30. São impedidos de exercer a advocacia: I – Os servidores da administração direta, indireta e fundacional contra a Fazenda Pública que os remunere ou à qual seja vinculada e entendida empregadora”.

Diante do disposto no art. 30 do Estatuto da OAB, fica evidenciado que o Procurador do Estado, cuja lei permita o exercício da advocacia privada, apenas não pode exercer essa advocacia contra a Fazenda Pública que o remunera.

3. O EXERCÍCIO DA ADVOCACIA PRIVADA PELO PROCURADOR, EM PROCESSOS PENAIS

A princípio, poderíamos imaginar que o caso seria pacífico, a advocacia do Procurador do Estado, limitada apenas nas causas em figurasse a Fazenda Pública Estadual, poderia ser exercida livremente nas demais ações. No entanto, no Estado de Sergipe, surgiu uma polêmica sobre o exercício da advocacia privada do Procurador do Estado, nos processos criminais e ações civis públicas em que o Ministério Público figura como Autor. Em suas alegações, alguns membros do Ministério Público afirmam que a defesa de particulares em ações penais não seria possível ao argumento de que haveria interesse do Estado. Mencionam, também, que se estaria ferindo os princípios da moralidade e eficiência, argumentando que o Procurador não encontraria tempo suficiente para se dedicar a contento às duas atividades, sem que uma delas fosse prejudicada. Sobre esse ponto específico, vale ressaltar que a aferição do desempenho dos Procuradores é feita através da Corregedoria da própria Procuradoria do Estado, de forma que não se poderia negar a cumulação de atividades, que sejam permitidas, sob o argumento de que violaria o princípio da eficiência. Deve-se lembrar que vários profissionais,

inclusive magistrados, desembargadores, promotores, procuradores, dedicam-se à atividade de lecionar e nem por isso se diz que houve violação ao princípio da eficiência. A produtividade de cada profissional, bem como sua eficiência e zelo no exercício da profissão é uma responsabilidade de cada órgão a que o mesmo esteja vinculado, de forma que a argumentação frágil, vaga e imprecisa de membros do MP de Sergipe acima mencionada não podem ser consideradas. Para uma melhor compreensão da controvérsia e sobre ela poder adotar um posicionamento, é imprescindível responder a uma pergunta básica e preliminar: O conceito de Fazenda Pública abrange o Ministério Público, de forma a impedir o exercício da advocacia do Procurador do Estado nas causas em que ele figure como autor? Nesse diapasão, é necessário fazer um estudo dos conceitos dos termos Ministério Público, Instituição, Fazenda, Fazenda Pública e Estado. Consultando o dicionário jurídico de Plácido e Silva1, encontramos os seguintes significados: Ministério Público – “O MP é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.” Instituição – “(...) em decorrência, é a expressão empregada para designar a própria corporação ou a organização instituída, não importa o fim que se destine, isto é, seja ele econômico, religioso, pio, educativo, cultural, recreativo etc.” Fazenda – “(...) na técnica do Direito Administrativo, fazenda quer significar a soma de interesses financeiros do Estado, compreendidos por todas as suas riquezas ou bens, inclusive a gestão dos negócios que lhe são inerentes.” Fazenda Pública – “É denominação genérica a qualquer espécie de fazenda, atribuída às pessoas de Direito Público. Nela, assim, se computam as Fazendas Federal, Estadual e Municipal. E, desta forma, Fazenda Pública é sempre tomada, em amplo sentido, significando toda soma de interesse de ordem patrimonial da União, dos Estados federados ou do Município, pois que, sem distinção, todas se compreendem nessa expressão.” Estado – “No sentido do Direito Público, Estado segundo conceito dado pelos juristas, é o agrupamento de indivíduos, estabelecidos ou fixados em um território determinado e submetidos à autoridade de um poder público soberano, que lhes dá autoridade orgânica.” Analisando os vocábulos acima transcritos, fica evidenciado que o Ministério Publico não se confunde com o próprio Estado, sendo, em realidade, uma instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, nos termos do disposto no art. 127 da Carta Magna. Nesse contexto, vale ressaltar, com fulcro no art. 129, incisos I e III, da Constituição Federal de 1988, são funções institucionais do Ministério Público promover, privativamente, a ação penal pública, bem com promover, concorrentemente com outras entidades, a ação civil pública. Ocorre, porém, que o Ministério Público, no

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exercício da ação penal, bem como no exercício da ação civil pública, não integra o conceito de Fazenda Pública, tal como prevê o art. 30, I, da Lei n.º 8.906/94 (Estatuto da OAB) transcrito no item anterior. Nesse contexto, é importante mencionar que o tema em questão foi submetido à análise na Procuradoria do Estado de Sergipe, valendo transcrever trecho do parecer do Dr. Agripino Alexandre dos Santos Filho, quando leciona: “(...) importa salientar que o Ministério Público, no exercício da titularidade da ação penal, não integra de modo algum o conceito de Fazenda Pública, nos termos da moldura legal do art. 30, I, da Lei Federal n.º 8.906/94. A uma, o Ministério Público já não pode mais ser considerado um departamento do Poder Executivo, muito ao contrário, a Constituição Cidadã o elevou a categoria de verdadeiro ombudsman da sociedade, motivo pelo qual “Ministério Público” e “Estado” não devem ser consideradas expressões idênticas; a duas, o exercício do direito de punir pertence ao Estado, como expressão de sua soberania, mas este jus puniendi se encontra autolimitado e só pode ser exercido através do processo, onde a pretensão punitiva será obrigatoriamente resistida, pois o Estado, além de ser o titular do direito de punir, é o guardião do direito de liberdade dos indivíduos. Vê-se que a lide penal resulta da tensão entre o jus puniendi do Estado e o status libertatis do indivíduo, não havendo em princípio nenhuma repercussão sobre o erário, exceto nos casos de crimes contra a administração pública”.2 (destacamos) Ressalte-se que o entendimento acima transcrito não se trata de posição isolada, sendo este também o entendimento da Ordem dos Advogados do Brasil, em remansosas manifestações, a exemplo de consulta formulada pelo Procurador do Estado de Sergipe, Dr. Evânio Moura, cujo relator fora o Advogado Dr. Jorge Rabelo, valendo destacar o seguinte trecho de seu relatório: “Além disso, deve-se ressaltar que o fato da Ação Penal vir a ser Pública e ter como seu titular o Ministério Público (art. 129, I, Constituição Federal), em nada proíbe o exercício da advocacia privada pelo Procurador de Estado, posto que não se apresenta como razoável confundir o conceito de Ministério Público com o de Fazenda Pública. Insista-se: O Ministério Público, no exercício da titularidade da ação penal, não integra de modo algum o conceito de Fazenda Pública, nos moldes do contido no art. 30, I, da Lei n.º 8.906/94. De há muito não se confundem o conceito de Ministério Público e Estado, ao contrário, tem sido cada vez mais freqüentes o número de demandas ajuizadas pelo Ministério Público em desfavor do próprio Estado, como diversas ações civis públicos, p. ex.. Ora, se o Ministério Público fosse considerado dentro do Conceito de Fazenda Pública, impossível seria o ajuizamento de uma ação para obrigar o Estado a realizar um concurso público, construir um presídio, fornecer moradia, possibilitar o acesso aos deficientes à determinada repartição pública, dentre outros inúmeros exemplos possíveis. Portanto, salvo melhor entendimento e com a devida vênia, entendo, sem margem para polêmicas, que não se confunde o conceito de Fazenda Pública (defendida pelo Procurador de Estado – com desdo-bramentos financeiros para o Erário) com o conceito de

Ministério Público”.3 (destacamos) É importante destacar que o entendimento acima transcrito fora aprovado, por unanimidade, pela Comissão de Seleção e Prerrogativas da OAB/SE, sendo este o posicionamento oficial da OAB/SE, instituição responsável pela fiscalização do exercício profissional do advogado de acordo com a Lei n.º 8.906/94. Nesse diapasão, vale destacar os ensinamentos do Dr. PAULO LUIZ NETTO LÔBO, membro do Conselho Nacional de Justiça, representando a OAB, comentarista do Estatuto dos Advogados, sendo, inclusive, um dos autores do anteprojeto que resultou na Lei nº 8.906/94, quando leciona: “O advogado que mantenha vínculo funcional com qualquer entidade da Administração Pública direta ou indireta fica impedido de advogar contra não apenas o órgão ou entidade, mas contra a respectiva Fazenda Pública, porque esta é comum. Por Fazenda Pública entende-se ou a União, ou o Estado-membro ou o Município. Se, por exemplo, o advogado for empregado de uma fundação pública de determinado Estado-membro, o impedimento alcança todas as entidades da Administração direta ou indireta desta unidade federativa. Nota-se que o interesse patrocinado terá de ser contrário ao da Fazenda do ente político, ou seja, que possa haver conseqüência condenatória de caráter financeiro, não se atingindo as questões não contenciosas ou em que haja interesse público genérico. A título de exemplo, no processo-crime o interesse público é manifesto, mas não necessariamente o da Fazenda Pública (salvo nos crimes contra a Administração Pública)”. (grifamos).4 É preciso deixar claro que quando o Procurador do Estado, atuando na advocacia privada, apresenta defesa em ação penal pública, não está contrariando interesses da Fazenda Pública que o remunera. Não há como confundir Fazenda Pública com Ministério Público. Uma confusão dessa natureza é grave, equivocada e tem como único intuito prejudicar a atuação do Advogado/Procurador do Estado. Nesse diapasão, é importante ressaltar recente decisão do TJ/SE na qual adota entendimento no sentido de que é possível o exercício da advocacia privada do Procurador do Estado em processos criminais, conforme se verifica da seguinte ementa: MANDADO DE SEGURANÇA - PROCU-RADOR DO ESTADO - ADVOCACIA CRIMINAL - EXERCÍCIO - POSSIBILIDADE - LEI Nº 8.906/94 - VEDAÇÃO LEGAL - INEXISTÊNCIA - LEI COMPLEMENTAR ESTADUAL Nº 27/96 -PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE - SEGURANÇA CONCEDIDA - UNANIMIDADE. - Não existindo expressa vedação legal à época da investidura no cargo, é possível o exercício da Advocacia por Procurador do Estado quando, nos termos do art. 30, do Estatuto dos Advogados, não patrocine causa contra a fazenda que o remunera. - Segurança concedida. Mandado de Segurança nº 0381/2006; Processo nº 2006105950; Ac. Nº 2970/2007 Ainda sobre o tema, vale destacar trecho do voto do Insigne Desembargador Relator, quando leciona: “Percebo que, malgrado a percuciência do Parecer acostado aos autos, em casos como tais, o direito

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invocado pelos Impetrantes terão, sempre, preferência em relação ao princípio da eficiência, porquanto a Carta de 1988 não se presta, somente, a organizar política e juridicamente o Estado Brasileiro, mas, precipuamente, visa garantir aos seus nacionais a instrumentalização da cidadania,como demonstrarei a seguir. Com efeito, também se encontra no texto constitucional o incentivo ao trabalho lícito como instrumento de dignidade da pessoa humana, fazendo-nos enfrentar, in casu, um aparente conflito entre os princípios constitucionais. Conveniente, destarte, salientar que princípios constitucionais não são derrogáveis uns pelos outros, como ocorre normas infraconstitucionais, porquanto, em verdade, eles se entrelaçam, interagindo em um perfeito sistema jurídico constitucional, sem, contudo, perder nenhuma de suas peculiaridades, como vaticinou Augusto Zimmermann verbis: Obviamente, isso demandaria a necessária harmonização não apenas de regras jurídico-constitucionais, mas, para ainda mais adiante, o estabelecimento de mútua convivência entre os princípios da constituição.(...) Em assim sendo, os direitos e garantias fundamentais devem preceder à atuação do legislador, inserindo-se no próprio Poder Constituinte com o obje-tivo de inspirá-lo, em prol da dignidade da pessoa, a liberdade dos povos, a igualdade entre os patrícios e a fraternidade entre os homens, e sem esta positivação jurídica, afirma Canotilho, os direitos do homem não passarão de mera esperança, de aspirações, idéias, im-pulsos, ou até, por vezes, mera retórica política, quando deveriam ser direitos protegidos sob a forma de normas (regras e princípios) de direito constitucional.(...) Em assim sendo, ainda que inserto em nossa Constituição Federal o princípio da eficiência, após a EC nº 19/98, o entendimento da inviabilidade do exercício da Advocacia por Procurador do Estado deve ser afastada, ante a inexistência de proibição expressa tanto no Estatuto dos Advogados, Lei nº 8.906/94, quanto na Lei Complementar Estadual nº 27.96, que disciplina a atuação dos Procuradores do Estado. “Em casos como tais, penso que não é só o princípio da dignidade da pessoa humana que vislumbro ser afetado, o princípio da legalidade também é violado quando, sem que seja expressamente defeso a prática da Advocacia por Procurador do Estado, salvo se contra a Fazenda que o remunera, não se permite tal atividade.”(destaque nosso) Analisando os trechos do voto acima transcrito, verifica-se que o mesmo faz uma importante análise sobre o princípio da legalidade e da dignidade da pessoa humana, em relação ao princípio da eficiência, ponderando os valores para adotar um posicionamento favorável ao exercício da advocacia privada do Procurador do Estado. De fato, proibir-se a advocacia privada do Procurador do Estado, em processos criminais, é um verdadeiro atentado ao princípio da legalidade, primeiro, porque a Lei Complementar Estadual nº 27/96 prevê essa possibilidade e segundo, porque o Estatuto da OAB apenas prevê o impedimento no exercício da advocacia pelo Servidor Público contra a fazenda que o remunere.

Vê-se, portanto, à luz dos ensinamentos acima transcritos, que para haver o interesse da Fazenda Pública torna-se imperioso que exista interesse ou conseqüências financeiras e que referidas conseqüências alcancem o Erário Público Estadual.

4. CONCLUSÃO

O estudo sobre a possibilidade do exercício da advocacia privada pelo Procurador do Estado, à luz da Constituição Federal de 1988, da Lei nº 8.906/94 (Estatuto da OAB), da Lei Complementar n.º 27/96, da jurisprudência e doutrina pátrias, leva-nos às seguintes conclusões:

1- A Constituição Federal não proíbe o exercício da advocacia privada pelos Procuradores de Estado, deixando para as legislações locais a previsão sobre essa possibilidade; 2- É possível a advocacia privada pelos Procu-radores de Estado, cujas legislações estaduais permitam essa possibilidade ou não a proíbam expressamente; 3- Os Procuradores de Estado não podem exercer a advocacia privada contra a Fazenda Pública que os remunera; 4- O Ministério Público é uma instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, embora não se identifique com o termo “Fazenda Pública”, motivo pelo qual é possível a advocacia privada do Procurador de Estado em processos criminais e ações civis públicas em que não haja interesse da Fazenda Pública que o remunere; 5- A proibição do exercício da advocacia privada pelo Procurador de Estado, quando a mesma é permitida, constitui violação aos princípios da legalidade e dignidade da pessoa humana; 6- O exercício da advocacia privada pelo Procurador de Estado não viola o princípio da eficiência administrativa; 7- A produtividade, a presteza no exercício da profissão de Procurador de Estado, o cumprimento dos princípios constitucionais pelo mesmo são aferidos pela Corregedoria da respectiva procuradoria, não podendo ser medidos pelo fato de o mesmo exercer ou não a advocacia privada.

Notas e Referências

1. De Plácido e Silva, Vocabulário Jurídico, Atualizadores Nagib Slaib Filho e Gláucia

Carvalho, 26ª edição, Rio de Janeiro, 2006, p. 918, 604, 751, 553 e 1105.

2. Parecer CE/PGE/Nº. 01/2002, autoria do Procurador de Estado Dr. Agripino

Alexandre dos Santos Filho, aprovado pelo Procurador Geral do Estado de Sergipe

à época Dr. José Garcez Vieira Filho.

3. Parecer exarado pelo DR. JOSÉ JORGE RABELO BARRETO nos autos do processo

administrativo de n.º 2006060347 cuja cópia integral segue em apenso ao presente

petitório.

4. LÔBO, Paulo Luiz Netto. Comentários ao Estatuto da Advocacia. Editora Brasília

Jurídica, 2ª edição, 1999, p. 131.

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Referências Complementares

CONSTITUIÇÃO FEDERAL de 1988, Editora Manole, 2ª edição, 2005.

CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DE SERGIPE.

Estatuto da OAB – Lei nº 8.906 de 1994.

Lei Complementar do Estado de Sergipe, nº 27/96 e suas alterações, especialmente

a Lei Complementar n.º 40/98, in verbis:

DA SILVA, José Afonso, Curso de Direito Constitucional. São Paulo. Malheiros

Editores. 11ª edição, 1996.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo. Malheiros

Editores. 17ª edição, 1992.

DE MELO Celso Antonio Bandeira, O Princípio da Legalidade e algumas de suas

conseqüências para o Direito Administrativo Sancionador, Revista Latino-Americana

de Estudos Constitucionais, fundador Paulo Bonavides, Del Rey, 2003.

MACEDO, Dimas, Princípios Constitucionais Fundamentais, Revista Latino-

Americana de Estudos Constitucionais, Del Rey, 2003.

PAULSEN, Leandro, Direito Tributário, Constituição e Código Tributário à Luz da

Doutrina e da Jurisprudência. Porto Alegre. Editora Livraria do Advogado. 6ª edição,

2004.

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SOB A ÉGIDE DE UM ESTADO DE DIREITO SOCIAL: EFICÁCIA DOS DIREITOS

FUNDAMENTAIS SOCIAIS E AÇÃO ESTATAL NO CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO.16

Kleidson Nascimento dos SantosProcurador do Estado de Sergipe

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SUMÁRIO

1. Introdução. 2. O Estado de Direito Social. 2.1. Primórdios da sua formação. 2.2. Configuração de um modelo 3. Os direitos sociais entre as dimensões dos direitos 4. Sobre a eficácia das normas jurídicas no meio social 5. Amplitude material dos direitos sociais e entraves à sua realização 6. Proposição

1 INTRODUÇÃO

Hodiernamente, num cenário em que o constitucionalismo contemporâneo tem buscado a eficácia plena dos direitos fundamentais sociais, inspirados no ideário basilar do Estado de Direito Social, surgem as discussões sobre como tornar possível a efetiva realização das normas constitucionais definidoras desses direitos. A questão, que é de suma importância não só para o debate acadêmico mas principalmente para a definição dos rumos de uma sociedade periférica como a brasileira, passa por controvérsias existentes na doutrina e na jurisprudência pátria acerca da possibilidade de se exigir prestações estatais positivas, com vista a atender aos reclamos do texto constitucional. Apesar de consagrados pela legislação, em todos os seus níveis, a almejada efetivação dos direitos sociais, entendidos como direitos de 2ª dimensão, esbarra em questionamentos de ordem eminentemente jurídica, sobre a eficácia e a aplicabilidade de suas normas, e também em entraves de natureza material, como a escassez de recursos disponíveis por parte do poder público. Frente a dessa realidade, desenvolveu-se o conceito de “reserva do possível”1, baseado em precedente constitucional alemão, e que trazido ao Brasil tem sido utilizado para justificar falta de efetividade dos direitos sociais, o que inegavelmente constitui uma limitação fática, mas não um impedimento à realização de políticas públicas exigíveis. Não obstante as várias razões externadas para justificar a não realização no seio social do dever-ser normativo, ou seja, a inefetividade constitucional, cabe-nos perquirir condições de viabilidade para a superação de tais entraves. Seguindo essa linha teórica, o presente trabalho pretende demonstrar como se formaram as idéias do Estado de Direito Social que o Brasil se propõe ser, qual características que o norteiam e qual o caminho evolutivo dos direitos sociais no panorama atual. Não se pretende aqui o esgotamento do tema, que é de incalculável vastidão, mas sim tecer, em breves linhas, as principais questões relativas à efetividade dos direitos fundamentais sociais, trazendo considerações acerca dos limites impostos à sua concretização e proposições sobre as possibilidades existentes ante o propósito de bem-estar social vivenciado sob a égide da atual Carta Política.

2. O ESTADO DE DIREITO SOCIAL

2.1. Primórdios da sua formação:

Como Estado de Direito, o Estado Social é o resultado de uma extensa transformação por que passou o Estado Liberal clássico e, conseqüentemente, é parte da evolução histórica do Estado de Direito, na medida em que incorpora os direitos sociais para além dos direitos civis. Trata-se de um modelo que emerge de uma contradição histórica, pois se afirma em meio a experiências políticas e institucionais diferentes. Para que isto seja vislumbrado basta verificar o contexto em que se inserem a Revolução Russa de 1917, a reconstrução da Alemanha após a Primeira Guerra e a Revolução Mexicana, movimentos estes que têm como resultado direto a produção de documentos declaratórios de direitos diversos entre si, mas complementares e de grande consonância. O Estado de Direito Social surge do confronto de concepções ideológicas divergentes, opondo-se ao liberalismo tradicional, burguês, como expressão do clamor social pela garantia não só dos direitos individuais do cidadão, mas também pelo cumprimento dos direitos sociais reconhecidos até então. Assim nasce o Estado Social, como uma resposta à ideologia da burguesia conservadora, e já no início do século XX tem delineados constitucionalmente os direitos sociais como direitos fundamentais da pessoa humana, sob a proteção do Estado. Sobre o momento de surgimento do Estado de Direito Social, lembra Paulo Bonavides que o Estado de Direito Social é uma realidade mais recente que a reflexão sobre os chamados direitos sociais, e ainda que se possa afirmar tenha sido pensado no século XIX. Para o ilustre jurista, em termos de realidade institucionalizada e significativa, cuida-se de um Estado que é fruto da Segunda Guerra Mundial, tendo merecido sua definição constitucional primeira e mais precisa na Constituição da República Federal Alemã, sob a forma de Estado de Direito Social, em que se busca integrar os valores do Estado de Direito de inspiração liberal com o Estado comprometido com a justiça social, propugnado pelos socialistas.2 O fato é que o Estado de Direito Social aparece, pois, como instituição garantidora dos direitos sociais, com um perfil fortemente marcado pelo protecionismo social, atento às demandas e necessidades sociais. Bastante lúcida é a lição de Norberto Bobbio, ao dizer que da crítica das doutrinas igualitárias contra a concepção e a prática liberal do Estado é que nasceram as exigências de direitos sociais, que transformaram profundamente o sistema de relações entre o indivíduo e o Estado e a própria organização do Estado, até mesmo nos regimes que se consideram continuadores, sem alterações bruscas, da tradição liberal do século XIX.3 Demonstra-se, assim, que os direitos sociais trazem desde o seu nascedouro um arcabouço lógico-coletivista, que vai de encontro à desenfreada apropriação individual do capital, ultrapassando as amarras jurídicas do liberalismo que o precedera.

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2.2. Configuração de um modelo:

Quando analisada a feição de um Estado Social, pode-se atribuir a ele a somatória dos valores inerentes ao Estado de Direito, nascido dos movimentos libertários do século XVIII, e dos valores essenciais à realização da igualdade, associada ao valor liberdade. O Estado de Direito Social caracteriza-se, por conseguinte, pela supremacia da sociedade em face do indivíduo, e pela compatibilização do valor liberdade com o valor igualdade, porfiando não só pela democratização do Estado, já obtida antes, mas também pela democratização da sociedade, ainda não alcançada.4 Para Jorge Reis Novais, o Estado de Direito de nossa época é social e democrático. Tal adjetivação implica na elucidação das dimensões essenciais de uma compreensão atualizada do antigo ideal de limitação jurídica do Estado com vista à garantia dos direitos fundamentais do cidadão. Em seu pensamento, a expressão sugere imediatamente a confluência no mesmo princípio basilar da ordem constitucional de três elementos que poderíamos sintetizar por: a segurança jurídica que resulta na proteção os direitos fundamentais, a obrigação social de configuração da sociedade por parte do Estado e a autodeterminação democrática.5 Explica Gilberto Bercovici, tratando da transição do Estado Liberal até a constituição do Estado Social, que, com o advento do Estado Social, o Direito se modifica, enunciando prestações positivas para reduzir desigualdades na repartição dos encargos sociais, reforçando a sua ligação com a política. Com a definição dos seus fins nessa nova ordem, o Estado deixa de ser apenas o poder soberano para, também, tornar-se o principal responsável pelo direito à vida, concretizado por meio dos direitos sociais.6 No que tange à caracterização do Estado frente à ordem econômica, observa-se que o fenômeno do poder se fez presente desde as antigas civilizações e ganhou vulto, sobretudo, a partir da concepção jurídica e política de Estado. A influência do poder político na esfera econômica está inserida na própria evolução da humanidade, tendo ou não essa evolução ocorrido de forma juridicamente ordenada. Impende salientar, no entanto, que a presença do Estado no âmbito econômico foi, por muito tempo, renegada a um segundo plano, sob o prisma social, em virtude do discurso liberal dominante, circunstância que somente viria a ser atenuada com o advento do Estado de Direito Social. Somente poderia apresentar-se correta a concepção expressada no discurso do Estado Liberal se todos homens fossem dotados de igual capacidade. Contudo, “o liberalismo de nossos dias, enquanto liberalismo realmente democrático, já não poderá ser, como vimos, o tradicional liberalismo da Revolução Francesa, mas este acrescido de todos os elementos de reforma e humanismo com que se enriquecem as conquistas doutrinárias da liberdade. Recompô-lo em nossos dias, temperá-lo com os ingredientes da socialização moderada, é fazê-lo não apenas jurídico, na forma, mas econômico e social, para que seja efetivamente um liberalismo que contenha a identidade

do Direito com a Justiça”.7

3. OS DIREITOS SOCIAIS ENTRE AS DIMENSÕES DOS DIREITOS

Infere-se do ideário francês, oriundo da revolução que se implementou no século XVIII, o desenvolvimento dos direitos fundamentais na forma como são na doutrina moderna, ao que se pode verificar a evolução histórica de tais direitos, corolários da institucionalização da liberdade, da igualdade e da fraternidade.8 Assim, em um primeiro passo histórico, demarcado pelas linhas do Estado liberal, como visto em linhas anteriores deste trabalho, viu-se a formação da primeira dimensão de direitos, estritamente relacionados com a proteção da pessoa humana frente ao poderio estatal, determinando que o poder público se abstivesse de praticar atos atentatórios à liberdade do indivíduo. Essa primeira dimensão ou geração de direitos, expressões comuns da doutrina, é especialmente dedicada à concepção de liberdade individual, sendo, no dizer de Paulo Bonavides “por igual direitos que valorizam primeiro o homem-singular, o homem das liberdades abstratas, o homem da sociedade mecanicista que compõe a chamada sociedade civil, da linguagem jurídica mais usual”.9 A partir do século XIX, com as transformações do Estado liberal, que perde espaço para o ideário que formou o Estado de Direito Social, é que desponta a segunda dimensão de direitos fundamentais, para qual não bastava apenas garantir a defesa do indivíduo frente ao Estado, mas também buscar a igualdade de todos os cidadãos perante a lei, demandando ações positivas por parte do Estado no âmbito social, econômico e cultural. Impende salientar neste momento que essa evolução histórica dos direitos fundamentais, atingindo o reconhecimento social e doutrinário dos direitos ditos de 2ª dimensão, não excluem a vigência da primeira categoria, a dos direitos de 1ª dimensão, que permanece preservada e que guarda estreita relação com aquela geração de direitos seguintes. Tais dimensões, em verdade, não fariam sentido uma isolada da outra. De fato, mesmo os denominados direitos sociais”, que detêm um cunho eminentemente de fruição coletiva em evidência, ainda assim tais direitos guardam em sim um núcleo essencial mínimo, um conteúdo diretamente dirigido à dignidade da pessoa humana, a qual é violada quando não respeitado em sua essência material. Por mais que os direitos sociais tenham origem ideológica fundada sobre as bases do Estado Social, que guarda profunda distinção quanto à ideologia que informou o Estado Liberal clássico, há uma necessária correlação entre os direitos fundamentais de primeira e segunda geração, acrescendo-se uns aos outros, complementando-se. Mas é sobre a efetividade da norma de direitos sociais que devem recair os maiores esforços, como será visto adiante, com foco na efetividade dos direitos fundamentais, cuja concretização traz consigo o respeito aos princípios decorrentes da dignidade da pessoa humana e a disseminação do primado da harmonia social.

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4. SOBRE A EFICÁCIA DAS NORMAS JURÍDICAS NO MEIO SOCIAL

No âmbito da teoria geral do direito, pode-se entender que, revelada a norma jurídica e estando ela em pleno vigor e validade, produzirá eficácia desde o instante que se concretizarem os elementos que constituem o seu suporte fático, como definem os doutrinadores de orientação ponteana.10

Tratada em sentido jurídico, a eficácia corresponde à produção do fato jurídico pela norma e dele o desencadeamento das conseqüências descritas no seu preceito. Esse efeito se propaga no campo da dogmática jurídica, quando a norma incide sobre o seu suporte fático e atua independentemente da vontade das pessoas, que se subordinam à norma no âmbito das suas relações intersubjetivas.11 De outro modo, quando vista sob o prisma social, a eficácia se coloca numa dimensão sociológica, significando a realização dos efeitos da norma jurídica no seio social, concretamente, adaptando as condutas humanas ao padrão estabelecido no seu preceito normativo, como processo de harmonização social. Essa tem sido a principal diferença apontada na doutrina pátria sobre a eficácia da norma jurídica e a realização do direito na sociedade. Autores como Meirelles Teixeira e Miguel Reale são adeptos dessa concepção em que, na lição de José Afonso da Silva, a eficácia é tratada como um termo de significação dupla. A eficácia jurídica, qualidade de produzir, em maior ou menor grau, os efeitos jurídicos por ela colimados, e a eficácia social, que consiste na efetiva aplicação e obediência à norma pela sociedade.12

Seguindo sua linha de pensamento, acrescenta o ilustre publicista que a eficácia social corresponde a uma efetiva conduta humana condizente com a prevista pela norma jurídica, demonstrando que a norma é, de fato, obedecida e aplicada. É o que se pode chamar de efetividade do direito, na mais pura acepção técnico-jurídica.13

Interessante distinção entre a eficácia jurídica e a social é feita por Marcelo Neves, quando ensina que a primeira se refere à possibilidade jurídica de aplicação da norma, após o preenchimento das condições intra-sistêmicas para produzir efeitos jurídicos específicos, enquanto a segunda se relaciona com a conformidade das condutas sociais ao preceito da norma no plano concreto, empírico.14

Do raciocínio excerto acima, compreende-se que a eficácia jurídica e a efetividade estão intimamente relacionadas. Mais do que isso, uma se torna pressuposto da outra, na medida em que para se tornar efetiva uma norma tem que, a priori, ter a aptidão para concretizar o seu preceito, que até num instante inicial encontra-se em abstrato, no campo do dever-ser. Como descrito, o direito seria efetivo, traduzido por Miguel Reale como sendo não apenas o direito declarado, mas o direito reconhecido, vivido pela sociedade como algo que se incorpora e se integra na sua maneira de conduzir-se. Não basta a norma jurídica ser formalmente válida, vigente e incidente. Deve ser também socialmente eficaz.15

É imperioso reconhecer, entretanto, que a problemática da efetividade do direito no meio social

não é uma questão apenas lógica. Uma norma jurídica pode ser perfeitamente válida, juridicamente eficaz, sem, no entanto, ser efetiva, pois não concretiza no mundo das condutas, desperdiçando a força transformadora do direito. É evidente que a efetividade da norma jurídica de direitos sociais será tão presente quanto for a adesão do poder público ao seu preceito, e, nesse diapasão, quando se discute a efetividade ou não dos direitos fundamentais sociais, discute-se também o nível de respeito dos governantes ante a própria Constituição da República, onde esses direitos encontram-se primariamente positivados.

5. AMPLITUDE MATERIAL DOS DIREITOS SOCIAIS E ENTRAVES À SUA REALIZAÇÃO

Com o escopo de firmar no Brasil o Estado Democrático de Direito, inspirado nos ideais do Estado de Social, a Constituição de 1988 trouxe em seu texto um extenso rol de direitos fundamentais sociais, que, como as demais normas garantidoras de direitos fundamentais, devem ter aplicabilidade imediata, a teor do art. 5º, § 1º, do texto magno, inspirado em Cartas Políticas estrangeiras, tais como a portuguesa e a alemã.16

Essas normas constitucionais garantidoras de direitos sociais são normas em plena eficácia, visto que carreiam em si todos os elementos necessários à produção de efeitos enquanto norma jurídica perfeita. Assim sendo, o destinatário da norma, qual seja, o poder público, não pode deixar de buscar a máxima efetividade dos direitos sociais, oferecendo o suporte material indispensável à sua realização17, sob pena de estar-se em confronto com o sistema constitucional vigente, bem como com os princípios que regem a atuação do Estado. Apenas pela simples análise dos dispositivos constitucionais é possível inferir que o Constituinte originário não pretendeu dar aos direitos sociais eficácia social mínima, mesmo porque se fosse essa a sua intenção estaria a atuar de forma diametralmente oposta aos princípios inspiradores da Carta Magna e a todos os tratados e convenções internacionais dos quais o Brasil é signatário. O extenso rol de direitos fundamentais sociais demanda uma intervenção estatal ampla e comprometida com a progressão de sua eficácia, pois a Constituição Federal traça a idéia de máxima eficiência de suas normas. Para tanto cabe ao poder estatal instituir políticas públicas com o fito de assegurar a efetivação dos direitos sociais e a minoração das desigualdades materiais direitos entre os cidadãos, permitindo-lhe uma existência digna. Não obstante, quando se pretende traçar as diretrizes das políticas públicas, de logo se encontra o obstáculo da escassez dos recursos públicos disponíveis18, que são distribuídos de acordo com as opções e orientações do modelo econômico vigente, de maneira formalmente constitucional, mas que, no mais das vezes, pecam pela má alocação desses recursos na ordem de prioridades governamentais. Como se não bastasse as limitações de cunho econômico do Estado e a má alocação dos recursos disponíveis, que por si só entravam a produção de

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efeitos das normas de direitos sociais, é comum no meio jurídico o entendimento de que a interpretação das normas veiculadoras de tais direitos deve remeter ao que se convencionou chamar de “reserva do possível” , que significa dizer que o atendimento a tais direitos está sujeitos às possibilidade financeiras e orçamentárias do ente público. Não se estar a negar a existência de uma limitação fática dos recursos públicos disponíveis. Entretanto, deve o Estado, quando da definição das suas políticas públicas, levar a cabo a necessária ponderação de interesses, privilegiando aqueles que garantam maior eficiência dos gastos públicos, externando a motivação em seus atos discricionários, no cumprimento de sua obrigação precípua de promover o bem-estar social, de forma progressiva.20

Explica Francesco Conte que o gestor público deve atingir o escopo de tornar sua ação a mais eficiente possível. Dentro dos limites materiais e ante as imposições jurídicas, deve-se ponderar dentre as diversas alternativas possíveis aquela que promova o melhor custo-benefício, observando-se não apenas os recursos financeiros em si, mas toda a gama de interesses coletivos e individuais afetados pela ação do poder público.21 Isso porque os direitos sociais, como corolário do princípio da dignidade humana, trazem consigo a essência do “mínimo existencial”, como patamar menor e ponto de partida das políticas públicas, mas também é aliado à obrigação de acréscimo a esse nível de satisfação dos interesses sociais como responsabilidade do Estado. Destarte, cotejada a previsão orçamentária com as necessidades da situação social in concreto, que demanda a efetivação de política pública adequada, e promovida a necessária ponderação de interesses, não pode o poder público se furtar de prover um mínimo material, parcela mínima daquele direito social passível de fruição pelo cidadão, sendo ilegítima a alegação de ausência total de recursos diante da expectativa constitucional existente e do planejamento orçamentário que deve necessariamente atender ao interesses públicos prementes. Há que se ressaltar, por oportuno, que além de se harmonizar os princípios e garantias constitucionais, na busca de soluções de conciliação entre os “escassos” recursos financeiros do poder público e a manutenção de um conteúdo mínimo dos direitos sociais, para que se assegure a pedra basilar da dignidade da pessoa humana, é imperioso que haja o comprometimento do Estado com o avanço social, impugnando-se as ações que tendam ao retrocesso. O retrocesso social não pode ser aceito no contexto de uma Constituição dirigente como a brasileira, tampouco num Estado que se propõe garantidor do bem-estar dos seus administrados. Em razão disso, não se pode admitir a revogação de uma lei que institua benefícios sociais ou a extinção de uma determinada política pública implementada, sem que haja nenhuma outra medida que venha a se sobrepor àquela, por envolver direitos fundamentais. É o compromisso do Estado Democrático de Direito. Por derradeiro, cumpre compreender que a efetivação dos direitos sociais, mormente num país periférico como o Brasil, somente poderá ser levada a cabo à medida que forem implementadas estratégias

político-econômicas e programas sociais sérios, de médio e longo prazo. Para tanto, faz-se mister superar o “fantasma” da “reserva do possível”, e adotando-se como prioridade a concretização dos direitos fundamentais, especialmente em relação ao “mínimo existencial”, de forma a remover esses entraves e assumindo o poder público sua responsabilidade com o progresso, consubstanciado na dogmática constitucional e na realidade social.

5. PROPOSIÇÃO

Ao findar do presente estudo, pode-se inferir que da evolução do Estado de Direito, do Estado liberal para o Estado Social, é que se originou a sistematização positiva dos direitos sociais, categoria de direitos fundamentais que demanda uma prestação positiva do Estado. No entanto, apenas a previsão constitucional desses direitos fundamentais não é suficiente para vê-los concretizados no seio social. Em que pese a plena eficácia jurídica da Constituição, a sua eficácia social resta muito aquém da desejada, carecendo a norma desvencilhar-se de obstáculos formais e materiais que não podem ser tratados como intransponíveis. Nesse toar, propõe-se que: 1) A reserva do possível e o mínimo existencial são conceitos que não podem servir a reduzirem as possíveis políticas públicas a uma tacanha “reserva do mínimo possível”, em total desrespeito aos preceitos esculpidos na Lei Fundamental, numa afronta ao modelo constitucional e de Estado adotados. 2) A ponderação de princípios e interesses, a ordem de prioridades sociais e a melhor alocação dos recursos públicos, que são limitados, revelam-se meios de transformar a negativa estatal em soluções viáveis. Exige-se, pois, nada mais do que haver o cumprimento das normas que fundamentam a própria existência do poder público; exige-se apenas a implementação de políticas públicas reacionais, como tarefa primordial da ação estatal. 3) Deve-se ter o status social atual como norte para as reivindicações de efetivação de um direito, tendo como ponto de partida o mínimo necessário à existência digna de todos e pugnando pela vedação do retrocesso social, que é perigosamente ventilado a cada vez que se alteram as diretrizes dos programas sociais já implementados por ações estatais anteriores. E assim o Estado de Direito Social se fundamenta e se consolida materialmente como unidade política, na busca de uma integração social que parte de um mínimo de valores, galgando alternativas para as camadas menos favorecidas da sociedade, ávidas por melhorias que as contemplem, possibilitando gozarem, definitivamente, dos benefícios de uma autêntica cidadania , marco democrático do constitucionalismo contemporâneo.

Notas e Referências

1. SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre:

Livraria do Advogado, 2001, p. 264-266.

2. BONAVIDES, Paulo. O Estado Social e a tradição política liberal do Brasil in

Revista Brasileira de Estudos Políticos, vol. 53, p. 63 e ss.

3. BOBBIO, Norberto. Igualdade e liberdade. 4ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000, p. 42.

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4. PASSOS, J. J. Calmon de. A constitucionalização dos direitos sociais in Revista

Diálogo Jurídico, Salvador, v. I, nº 6, setembro, 2001.

5. NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do estado de direito – do estado

de direito liberal ao estado social e democrático de direito. Coimbra: Coimbra,

1987, p. 224.

6. BERCOVICI, Gilberto. Políticas Públicas e o Dirigismo Constitucional in Revista

da Academia Brasileira de Direito Constitucional, v. 3. Curitiba, 2002, p.120.

7. BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social. 6ª ed. São Paulo:

Malheiros, 1996, p. 62.

8. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 13ª ed. São Paulo:

Malheiros, 2003, p. 562.

9. Idem, p. 564.

10. MELLO, Marco Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da eficácia, 1ª parte.

2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 17.

11. MELLO, Marco Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 8ª ed.

São Paulo: Saraiva, 1998, p. 14.

12. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3ª ed. São

Paulo: Malheiros, 1999, p. 65.

13. Idem. Ibidem.

14. NEVES, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica. São Paulo: Acadêmica,

1994, p. 46. Apud GALINDO, Bruno. Direitos fundamentais. 1ª ed. Curitiba: Juruá,

2005, p. 52.

15. REALE, Miguel, Lições preliminares de direito, 22ª ed., Ed. Saraiva, São Paulo,

1995, p. 113.

16. KRELL, Andréas J. Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha.

Os (des)caminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Sérgio

Antônio Fabris, 2002, p. 37.

17. Idem, p. 38.

18. Idem, p. 51.

19. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 4ª ed. Porto

Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 280.

20. KRELL, Andréas J. Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha.

Os (des)caminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Sérgio

Antônio Fabris, 2002, p. 51.

21. CONTE, Francesco. Eficiência e democracia. Disponível em <http://clipping.

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22. NEVES, Marcelo. Constitucionalização Simbólica e Desconstitucionalização

Fática: Mudança Simbólica da Constituição e Permanência das Estruturas Reais

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Universitária (UFPE), 1995, p. 275.

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BOBBIO, Norberto. Igualdade e liberdade. 4ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000.

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2003.

______. Do estado liberal ao estado social. 6ª ed., rev. e ampl. São Paulo,

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______. O Estado Social e a tradição política liberal do Brasil in Revista Brasileira

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BERCOVICI, Gilberto. Políticas Públicas e o Dirigismo Constitucional in Revista da

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Periférica: anotações ao Pensamento Filosófico e Sociológico Alemão in Revista

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______. Constitucionalização Simbólica e Desconstitucionalização Fática:

Mudança Simbólica da Constituição e Permanência das Estruturas Reais de Poder

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NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do estado de direito – do estado de

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1995.

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3ª ed. São

Paulo: Malheiros, 1999.

145

A RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA DOS ADMINISTRADORES E O ÔNUS DA PROVA.17

Leo Peres KraftProcurador do Estado de Sergipe

146

1. DELIMITAÇÃO DA QUESTÃO

O art. 135, III do Código Tributário Nacional, que prevê a responsabilidade pessoal dos diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de Direito Privado pelo adimplemento das obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes, ou infração à lei, contrato social ou estatutos, sempre deu margem à discussão. O Superior Tribunal de Justiça, analisando o dispositivo em tela, assentou o entendimento de que a simples falta de pagamento do tributo não basta para ensejar a responsabilidade do administrador, sendo imprescindível que reste configurada a prática de ato ilícito, decorrente de excesso de poderes, ou a infração à lei, contrato social ou estatutos. A essa responsabilidade, pois, atribuiu natureza subjetiva – pressupondo, assim, dolo ou culpa –, e não objetiva. Nesse sentido: TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. EXECUÇÃO FIS-CAL. ESPONSABILIDADE. SÓCIO-GERENTE. RE-DIRECIONAMENTO DO EXECUTIVO. IMITES. ART. 135, III, DO CTN. NECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO DO FISCO E VIOLAÇÃO DA LEI. REEXAME DE PROVA. INCIDÊNCIA DA SÚMULA Nº 7/STJ. PRECEDENTES. 1. Agravo regimental contra decisão que negou provimento a agravo de nstrumento. 2. Os bens do sócio de uma pessoa jurídica comercial não respondem, em caráter solidário, por dívidas fiscais assumidas pela sociedade. A responsa-bilidade tributária imposta por sócio-gerente, admi-nistrador, diretor ou equivalente só se caracteriza quando há dissolução irregular da sociedade ou se comprova infração à lei praticada pelo dirigente. 3. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça pacificou entendimento no sentido de que o simples inadimplemento não caracteriza infração legal. Inexistindo prova de que se tenha agido com excesso de poderes, ou infração de contrato social ou estatutos, não há falar-se em responsabilidade tributária do ex-sócio a esse título ou a título de infração legal, por meio de redirecionamento da execução fiscal.(STJ. 1ª Turma. AgRg no EDcl no Ag 752.518/MG. rel. Min. José Delgado. j. 05.09.2006. DJ 05.10.2006) RECURSO ESPECIAL. TRIBUTÁRIO. PENHORA DE BENS PARTICULARES. REDI-RECIONAMENTO DA EXECUÇÃO FISCAL À SÓCIO-GERENTE. AUSÊNCIA DE PEDIDO DE AUTOFALÊNCIA. NÃO-CONFIGURAÇÃO DAS HIPÓTESES PREVISTAS NO ART. 135 DO CTN. DISSOLUÇÃO IRREGULAR. NÃO-OCORRÊNCIA. IMPOSSIBILIDADE DE REDIRE-CIONAMENTO. RECURSO DESPROVIDO. 1. Decisão contrária ao interesse da parte não pode ser confundida com ausência de prestação jurisdicional. 2. A jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça pacificou entendimento no sentido de condicionar a responsabilidade pessoal do sócio-gerente à comprovação da atuação dolosa ou culposa na administração dos negócios, decorrente de atos

praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatuto. Há entendimento também de que a hipótese de dissolução irregular da sociedade possibilita o redirecionamento da execução. 3. É descabido o redirecionamento da execução ao sócio-gerente, em virtude de esse não haver pleiteado a autofalência da sociedade. Isso porque é o patrimônio da empresa que deve responder pelas obrigações por ela contraídas, somente sendo possível o redirecionamento da execução fiscal ao sócio-gerente, nos termos do art. 135 do CTN, quando comprovado que ele agiu com excesso de poderes, infração a lei, contrato ou estatuto, ou na hipótese de dissolução irregular da empresa. No entanto, a ausência de pedido de autofalência, conforme previsto no art. 8º da Lei de Falências, não configura nenhuma dessas hipóteses ensejadoras do redirecionamento da execução. Assim, correta a conclusão a que chegou o acórdão recorrido, no sentido de ser indevida a penhora de bens particulares do sócio-gerente.4. Recurso especial desprovido.(STJ. 1ª Turma. REsp 442.301/RS. Rel. Min. Denise Arruda. j. 17.11.2005. DJ 05.12.2005) Superado esse ponto, passou o Superior Tribunal de Justiça a se defrontar com outra questão: estabelecida a natureza subjetiva da responsabilidade tributária dos administradores, a quem cabe o ônus da prova acerca da prática dos atos ilícitos que ensejam a aplicação do art. 135, III do CTN? A Corte, em 14.09.2005, por sua Primeira Seção, definiu o seu posicionamento no julgamento dos Embargos de Divergência em Recurso Especial nº 702.232/RS, relatados pelo Min. Castro Meira (DJ 26.09.2005), lavrando acórdão assim ementado: TRIBUTÁRIO. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. ART. 135 DO CTN. RESPO-NSABILIDADE DO SÓCIO-GERENTE. EXE-CUÇÃO FUNDADA EM CDA QUE INDICA O NOME DO SÓCIO. REDIRECIONAMENTO. DISTINÇÃO. 1. Iniciada a execução contra a pessoa jurídica e, posteriormente, redirecionada contra o sócio-gerente, que não constava da CDA, cabe ao Fisco demonstrar a presença de um dos requisitos do art. 135 do CTN. Se a Fazenda Pública, ao propor a ação, não visualizava qualquer fato capaz de estender a responsabilidade ao sócio-gerente e, posteriormente, pretende voltar-se também contra o seu patrimônio, deverá demonstrar infração à lei, ao contrato social ou aos estatutos ou, ainda, dissolução irregular da sociedade. 2. Se a execução foi proposta contra a pessoa jurídica e contra o sócio-gerente, a este compete o ônus da prova, já que a CDA goza de presunção relativa de liquidez e certeza, nos termos do art. 204 do CTN c/c o art. 3º da Lei n.º 6.830/80. 3. Caso a execução tenha sido proposta somente contra a pessoa jurídica e havendo indicação do nome do sócio-gerente na CDA como co-responsável tributário, não se trata de típico redirecionamento. Neste caso, o ônus da prova compete igualmente ao sócio, tendo em vista a presunção relativa de liquidez e certeza que milita em favor da Certidão de Dívida Ativa. 4. Na hipótese, a execução foi proposta com base em CDA da qual constava o nome do sócio-gerente como co-responsável tributário, do que se conclui caber

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a ele o ônus de provar a ausência dos requisitos do art. 135 do CTN. 5. Embargos de divergência providos. Como se vê, a questão foi solucionada por meio da distinção entre as hipóteses em que haja ou não na certidão de dívida ativa a indicação do administrador como responsável solidário da obrigação tributária. Em caso positivo, entendeu o Superior Tribunal de Justiça que, em face da presunção de legitimidade da certidão de dívida ativa, reconhecida pelo art. 204 do CTN, cabe ao devedor provar que não praticou nenhum ato com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos. Quando, porém, o administrador não conste na certidão de dívida ativa como responsável, o ônus da prova pertence ao Fisco. A simplicidade da regra, entretanto, pode conduzir o intérprete apressado a extrair conclusões não autorizadas pela jurisprudência em que está ela fundada. De fato, é de se questionar se o posicionamento pretoriano acima mencionado permite à Fazenda Pública, a seu bel-prazer, indicar os administradores na CDA, como responsáveis tributários, invertendo assim o ônus da prova, ou se, ao revés, impõe a observância de requisitos para tanto. Além disso, cumpre verificar quais os meios tem o responsável tributário – assim indicado na CDA – para comprovar a não configuração da hipótese do art. 135, III do CTN, ilidindo, assim, a presunção prevista no art. 204 do CTN e reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça.

2. DOS REQUISITOS EXIGIDOS PARA A INDI-CAÇÃO, NA CDA, DO ADMINISTRADOR COMO RESPONSÁVEL TRIBUTÁRIO E DAS FORMAS DE AFASTAMENTO DA PRESUNÇÃO PREVISTA NO ART. 204 DO CTN

De plano, cumpre ter em mente que a regra estabelecida pelo Superior Tribunal de Justiça no EREsp 702.232/RS, assim como no art. 204 do CTN, é de índole meramente processual, não tendo reflexos no direito substantivo. Trata-se de norma de direito probatório, versando a distribuição, no processo, do ônus da prova acerca da existência ou não de ato praticado pelo administrador com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos1. Não cria nem modifica, portanto, as hipóteses legais aptas a ensejar a responsabilização dos diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de Direito Privado. Daí por que a jurisprudência firmada pelo STJ a partir desse leading case e o entendimento da Corte no sentido de que a responsabilidade tribu-tária dos administradores é subjetiva, não nascendo automaticamente pela simples falta de pagamento do tributo pela pessoa jurídica, não são inconciliáveis. Pelo contrário: somam-se, completam-se, devendo o intérprete conciliá-los. Sob esse prisma, faz-se mister que a regra de direito probatório comporte certos temperamentos, sob pena de anular, na prática, a de direito material. De outro lado, é de se salientar que o ato de inscrição do crédito tributário na dívida ativa não surge do nada, não brota no deserto, não é, enfim, ato isolado,

sem que a decisão administrativa por ele materializada tenha sido precedida por uma seqüência de atos destinados a sua formação. Não. A inscrição do crédito tributário na dívida ativa é obrigatoriamente precedida de instauração de procedimento administrativo destinado a apurar a existência do crédito, o seu aspecto quantitativo e o seu sujeito passivo. É o que ensina Ricardo Mariz de Oliveira: “O quadro até agora descrito completa-se com o art. 201 do CTN, segundo o qual constitui dívida ativa tributária aquela ‘regularmente inscrita na repartição competente, depois de esgotado o prazo fixado, para pagamento, pela lei ou por decisão final em processo regular’. Desse mandamento deriva inequivocamente que a Fazenda Pública somente pode inscrever a dívida, para posterior cobrança judicial, se previamente tiver havido um processo regular cuja decisão final tenha fixado a existência dessa dívida e cujo prazo de pagamento tenha se esgotado”.2 Dessa forma, sendo a inscrição em dívida ativa resultado de um processo administrativo, resta óbvio que o referido ato deve espelhar a conseqüência jurídica dos fatos nele apurados. Desse modo, a indicação do administrador como responsável tributário na certidão de dívida ativa só será possível caso esteja demonstrado nos autos do processo administrativo fiscal a prática por sua parte de ato ilícito decorrente de excesso de poderes, ou a infração à lei, contrato social ou estatutos. É dizer: o ato administrativo de inscrição de crédito tributário em dívida ativa deve ter como únicos motivos aqueles apurados no processo administrativo. Logo, também o conteúdo desse ato, sobretudo no que tange ao aspecto pessoal do crédito tributário, é vinculado pelos fatos jurídicos verificados no curso do procedimento. Assim, v.g, demonstrado no curso do processo administrativo fiscal que o crédito tributário equivale a 100, é nula a certidão que lhe atribui o valor de 200. Da mesma forma, ausente no processo qualquer comprovação de ato ilícito praticado pelo administrador, não pode a CDA indicá-lo como responsável tributário em com base na norma do art. 135, III do CTN. Isso porque o processo administrativo não constitui mero formalismo, mas sim formalidade imprescindível à formação e ao controle dos atos administrativos. No exato dizer de Celso Antônio Bandeira de Mello, “uma vez que a ‘vontade’ administrativa do Estado é formada na seqüência que se denomina procedimento administrativo, discipliná-lo é o meio idôneo para mantê-la sob controle. Assim, antes que desemboque em sua conclusão final – antes, pois, de se fazer eventualmente gravosa a alguém -, pode-se zelar por seu correto e prudente encaminhamento”.3 Em suma: para que seja possível a indicação na Certidão de Dívida de Ativa do administrador como responsável tributário faz-se necessário que lhe seja imputada, no processo administrativo fiscal, uma conduta determinada que configure a prática de ato ilícito decorrente de excesso de poderes, ou infração à lei, contrato social ou estatutos, e que essa imputação esteja devidamente comprovada nos autos. Logo, a inversão do ônus da prova decorrente da presunção de legitimidade da Certidão de Dívida

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Ativa, reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do EREsp 702.232/RS parte do pressuposto, na verdade, que os fatos ensejadores da responsabilidade do administrador foram devidamente demonstrados no processo administrativo que antecedeu o ato de inscrição. Daí por que, para que essa presunção seja afastada, não é necessário que o administrador comprove que, durante a sua administração, nunca cometeu nenhum ato ilícito, mesmo porque, tratando-se de fato absolutamente negativo, tal prova é impossível de ser obtida, razão pela qual a sua exigência configuraria violação ao princípio da ampla defesa. Vale, no ponto, ressaltar a lição de Maria Rita Ferragut: “O direito à ampla defesa não é meramente formal. A presunção violará seu exercício sempre que, no caso concreto, a relação de implicação corresponder ao que normalmente acontece, mas os indícios imputados à parte, ou o próprio fato indiciado, forem de tão difícil contestação que a parte contra quem a presunção aproveita poderá não dispor de meios efetivos para se defender. São os fatos absolutamente negativos que acarretam o excessivo desequilíbrio das partes, devendo o julgador, nesses casos, desconsiderar o fato indiciado como juridicamente verdadeiro. Esclareça-se que, não obstante caiba à parte interessada defender-se, a produção de provas em sentido diverso há de ser necessariamente possível, desconsiderando-se da impossibilidade a que nos referimos, por certo, as decorrentes de atos ou omissões imputáveis ao sujeito a quem compete produzir a prova ou a terceiro com ele legalmente obrigado. Se a prova for impossível ou de difícil produção, não poderá ser imputado ao sujeito a prática do fato descritor de evento presumido, com as conseqüências a ele pertinentes, já que isso violaria o direito constitucional à ampla defesa, que não é apenas formal, mas de natureza eminentemente substancial”.4 Basta, assim, para a elisão da presunção de certeza instituída pelo art. 204 do CTN, que se comprove a ausência do pressuposto sobre a qual ela se funda, ou seja, que reste provado que a certidão de dívida ativa não corresponde aos fatos apurados no processo administrativo fiscal, o que pode ser feito pela simples juntada de cópia dos autos do procedimento administrativo. É este o meio fundamental que tem o administrador para comprovar a não ocorrência da hipótese do art. 135, III do CTN: a verificação da congruência entre o apurado no processo administrativo fiscal e o conteúdo da certidão de dívida ativa. Evidentemente, havendo no processo administrativo a imputação de um fato determinado, pode o administrador comprovar a sua inocência com outros documentos, visto que a jurisprudência dos nossos tribunais já assentou a possibilidade da verificação pelo Poder Judiciário da veracidade dos motivos dos atos administrativos. Ressalte-se, por fim, que, em todos os casos, é imperativo que a Administração, ao instaurar o processo administrativo fiscal, garanta ao pretenso responsável tributário o direito ao contraditório e à ampla defesa, haja vista a norma do art. 5º, LV da Constituição da República5, in verbis:

“Art. 5º. (...)

LIV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recurso a ela inerentes”.

Certo, o Superior Tribunal de Justiça tem entendimento pacificado no sentido da desnecessidade de instauração de processo administrativo ou de notificação prévia do contribuinte para a inscrição em dívida ativa de créditos decorrentes de tributo por homologação, ao argumento de que, nessa hipótese, o próprio contribuinte, ao lançar o crédito, reconhece a sua existência e o seu aspecto quantitativo.6 O raciocínio, todavia, não tem aplicação nas hipóteses de responsabilização do administrador pelo pagamento do crédito tributário. É que, como já demonstrado, para que haja a transferência da responsabilidade não basta a simples inadimplência, sendo imprescindível que reste configurada a prática, pelo administrador, de ato ilícito com excesso de poderes, ou infração à lei, contrato social ou estatutos. Ora o lançamento do crédito pelo contribuinte, ou seja, pela pessoa jurídica, não importa, por óbvio, o reconhecimento da existência de ato ilícito praticado pelo seu administrador. Logo, mesmo nos casos de tributo cujo lançamento se dá por homologação, mostra-se imprescindível para a responsabilização das pessoas arroladas no art. 135, III do CTN a instauração de processo administrativo informado pelos princípios do contraditório e da ampla defesa.

3. CONCLUSÕES

Diante do exposto, tem-se as seguintes conclusões: 01 – consoante a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a simples ausência de pagamento do tributo não caracteriza a prática de ato ilícito bastante a ensejar a responsabilidade tributária prevista no art. 135, III do CTN. 02 – Todavia, em razão da presunção de legitimidade prevista no art. 204 do CTN, a indicação do administrador na CDA como responsável tributário provoca a inversão do ônus da prova no âmbito judicial, cabendo a ele comprovar a ausência de configuração da hipótese do art. 135, III do CTN (EREsp 702.232/RS). 03 – Não pode o Fisco, a seu bel-prazer, indicar, na Certidão de Dívida Ativa, o administrador como responsável tributário, sendo imprescindível para tanto que reste demonstrado no curso do processo administrativo fiscal uma conduta determinada que configure ato ilícito praticado com excesso de poderes, ou infração à lei, contrato social ou estatutos. 04 – Para ilidir a presunção de legitimidade da CDA não é necessário que o administrador comprove jamais ter praticado, durante a sua administração, qualquer ato ilícito, bastando que demonstre a incongruência entre o conteúdo da CDA, no tocante à sua indicação como responsável, e os fatos apurados no processo administrativo fiscal. 05 – É indispensável a observância dos princípios do contraditório e da ampla defesa nos processos administrativos destinados a atribuir ao

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administrador a qualidade de responsável tributário, não sendo exceção à regra os casos envolvendo tributos lançados por homologação.

Notas e Referências

1. “O preceptivo inverte o ônus da prova. É que a dívida regularmente inscrita goza

da presunção de certeza e liquidez. Cabe ao devedor a prova inequívoca da sua

iliquidez, incerteza ou inexigibilidade. Alegações genéricas, flátuas vozes, não tem

o condão de elidir a presunção de certeza e liquidez que milita em favor da dívida

inscrita (CDA).”

(COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 6ª ed. Rio

de Janeiro: Forense, 2002. p. 776.),

2. OLIVEIRA, Ricardo Mariz. In Processo Administrativo Tributário. Coordenado por

Ives Gandra da Silva Martins. 2ª ed. São Paulo: RT, 2002. p. 198.

3. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 14ª ed. São

Paulo: Malheiros, 2002. p. 439.

4. FERRAGUT, Maria Rita. Presunções no Direito Tributário. 2ª ed. São Paulo:

Quartier Latin, 2005. p. 177-178.

5. “Surge, pois, uma questão de importância capital, qual seja, a de saber-se

quando se deverá reputar obrigatória a instauração de um procedimento. Esta

obrigatoriedade propor-se-á nos seguintes casos:

(...)

b) quando a providência administrativa a ser tomada, tendo efeitos imediatos sobre

o administrado, envolver privação de liberdade ou de bens. Isto porque o art. 5º,

LIV, da Constituição estabelece: “ninguém será privado da liberdade ou de seus

bens sem o devido processo legal”. Vale dizer, estando em causa ato restritivo

ou ablativo de direitos integrados no patrimônio do sujeito, é obrigatória a prévia

instauração de procedimento administrativo externo, ressalvadas, evidentemente,

as exceções constitucionais (exempli gratia, dos arts. 5º, LXI, 136, § 3º, I e 139)”;

(MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Op. cit. p. 452-453)

6. RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. ICMS. TRIBUTO

DECLARADO E NÃO-PAGO. DESNECESSIDADE DE PROCESSO ADMINISTRATIVO.

POSSIBILIDADE DE INSCRIÇÃO NA DÍVIDA ATIVA. CORREÇÃO MONETÁRIA.

UFESP. IPC-FIPE. POSSIBILIDADE. CDA. LIQUIDEZ E CERTEZA. HONORÁRIOS

ADVOCATÍCIOS. SÚMULA 7/STJ. RECURSO PARCIALMENTE CONHECIDO E,

NESSA PARTE, DESPROVIDO.

1. Não se configura ausência de prestação jurisdicional quando o acórdão

adota fundamentação suficiente para decidir de modo integral a controvérsia.

2. Em se tratando de tributo sujeito a lançamento por homologação, caso não

haja pagamento no prazo ou pagamento a menor, o valor declarado pode ser

imediatamente inscrito em dívida ativa, tornando-se exigível, independentemente

de procedimento administrativo ou de notificação do contribuinte. Isso porque a

apresentação perante o Fisco da Guia de Informação e Apuração de ICMS (GIA)

equivale ao próprio lançamento, na medida em que, com a referida declaração, há

o reconhecimento do débito tributário pelo contribuinte. (...)

(STJ. 1ª Turma. REsp 658.066/SP. Rel. Min. Denise Arruda. j. 17.05.2007. DJ

14.06.2007)

No mesmo sentido: STJ. 2ª Turma. REsp 209.445/SP. rel. Min. João Otávio de

Noronha. j. 26.04.2005. DJ 22.08.2005.

Referências Complementares

COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 6ª ed. Rio

de Janeiro: Forense, 2002.

FERRAGUT, Maria Rita. Presunções no Direito Tributário. 2ª ed. São Paulo: Quartier

Latin, 2005.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 14ª ed. São

Paulo: Malheiros, 2002.

OLIVEIRA, Ricardo Mariz. In Processo Administrativo Tributário. Coordenado por

Ives Gandra da Silva Martins. 2ª ed. São Paulo: RT, 2002.

150

PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR E ESCUTA TELEFÔNICA. 18

Samuel Oliveira AlvesProcurador do Estado de Sergipe

151

1 INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1998 preza pelo respeito aos direitos individuais do cidadão, daí porque em vários momentos se preocupa em efetivar a tutela de tais direitos, dentre eles o direito à intimidade como vetor da dignidade da pessoa humana. Entre os dispositivos que buscam a efetivação dessa tutela está o art. 5º, XII, que trata da inviolabilidade do sigilo das correspondências e das comunicações telegráficas, de dados e de comunicações telefônicas. Por outro lado, outros valores expressos na Carta Cidadã de 1988 vão de encontro à regra da inviolabilidade desses dados, uma vez que se garantir a inviolabilidade absoluta de tais dados poderá abrir brechas para o cometimento de ilícitos igualmente graves ou mais graves ainda do que a quebra desse sigilo, o que coloca em confronto princípios constitucionais de igual valor, de onde se constata a necessidade de se confrontar tais princípios a fim de que se chegue a uma solução razoável na garantia de tais direitos individuais, levando-se em conta, entretanto, o direito à própria justiça. No campo do Direito Administrativo, é de suma importância que a impossibilidade de violação de tais sigilos não permita que se chegue ao extremo de levar à impunidade os agentes públicos que, ao violarem seus deveres legais e morais com a administração, possam ser protegidos por essas regras de inviolabilidade por trás do manto da estrita legalidade. É necessário, pois, o confronto dessas garantias, através, especialmente, do princípio da proporcionalidade para que se possa chegar à efetivação da justiça sem prejuízo da manutenção dos direitos e garantias assegurados constitucionalmente. Pretende-se, assim, investigar-se o instituto da interceptação telefônica como meio de prova à luz dos dispositivos constitucionais, bem como da Lei 9.296/96, a fim de que se possa perseguir sua real abrangência, bem como a possibilidade de sua utilização como elemento probatório na caracterização de ilícitos administrativos através da chamada prova emprestada no âmbito do Processo Administrativo Disciplinar. Em suma, pretende-se investigar a respeito da possibilidade da utilização da prova obtida mediante interceptação telefônica no âmbito do Processo Administrativo Disciplinar veiculada através de prova emprestada, bem como proceder a analise da evolução do entendimento acerca dessa utilização, concluindo-se pela possibilidade ou não de utilizar as provas obtidas em através de interceptações telefônicas no âmbito da apuração de faltas disciplinares dos agentes públicos e em que casos e sob que aspectos seria possível essa utilização. 2. DA COLOCAÇÃO DO PROBLEMA

O art. 5° da Constituição Federal de 1988, que trata dos direitos e deveres individuais e coletivos assegura, em seu inciso XII que:

XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das

comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.

Trata-se, como se observa do texto constitucional, de norma de eficácia limitada, uma vez que prevê a existência de lei que regulamente os casos em que tal sigilo pode ser quebrado. Após oito anos de inércia legislativa, o Congresso Nacional, enfim, atendendo aos apelos inclusive do próprio judiciário, que durante todos esses anos viu vários processos, sob a batuta de decisões do egrégio Supremo Tribunal Federal, serem invalidados em virtude de escutas realizadas sem que houvesse lei regulamentadora da matéria, publicou, em 24 de julho de 1996 a lei 9296, regulamentando a matéria. Na esteira da restrição imposta pela Carta Magna, estabelece a referida lei:

Art. 1º A interceptação de comunicações telefônicas, de qualquer natureza, para prova em investigação criminal e em instrução processual penal, observará o disposto nesta Lei e dependerá de ordem do juiz competente da ação principal, sob segredo de justiça.

Assim, em razão da restrição imposta pelos dispositivos constitucional e legal, donde se infere que tal prova, a princípio somente poderá ser utilizada para fins de investigação criminal ou instrução processual penal, abre-se caminho para a indagação do tema aqui proposto no sentido de ser possível a utilização da prova colhida da interceptação telefônica no processo administrativo para a apuração de falta disciplinar através da denominada prova emprestada. Desta forma, em suma, o que se propõe a solucionar é a seguinte questão: uma vez autorizada legalmente a obtenção de interceptação telefônica, dentro dos parâmetros legais firmados pela lei 9.296/96, para fins de instrução processual penal ou investigação criminal, é possível sua utilização, através da chamada prova emprestada, para a apuração de falta disciplinar cometida por agente público decorrente do mesmo ilícito?

3. BREVE ANÁLISE DA PROVA DE INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA À LUZ DA CF/88 E DA LEI 9.296/96. REQUISITOS E CASOS EM QUE É POSSÍVEL SUA UTILIZAÇÃO

Primeiramente cabe aqui uma análise do conceito de interceptação telefônica. Corriqueiramente ela é definida como a captação e gravação, feita por um terceiro, de uma comunicação telefônica, no mesmo momento em que ela se realiza, sem o conhecimento de qualquer dos interlocutores. Nela há, portanto, a intervenção de uma terceira pessoa, que grava a comunicação telefônica sem o conhecimento dos dois interlocutores. Tal conduta, como se infere do dispositivo constitucional acima aludido é, a princípio, ilegal. A norma constitucional veda expressamente, como regra, a interceptação de comunicações telefônicas, ressalvadas as hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal. Note-se que o artigo sob comento restringiu a possibilidade

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de utilização do procedimento interceptatório à esfera penal, tanto na fase da investigação criminal como no curso da ação penal. Quando da interpretação do dispositivo constitucional em questão, sobreveio acirrada divergência na doutrina e na jurisprudência quanto à recepção pela Constituição Federal do Código de Telecomunicações, Lei nº 4.117/62, única lei que tratava da interceptação telefônica, ou pela necessidade de nova legislação regulamentadora do artigo 5º, XII, da Constituição Federal. Prevaleceu, na doutrina brasileira, de forma majoritária, o segundo entendimento, qual seja, de que o dispositivo constitucional em análise não seria auto-aplicável, havendo a necessidade de nova lei que regulamentasse a matéria. O Supremo Tribunal Federal, pondo fim à discussão acatou o entendimento majoritário na doutrina, pela necessidade de nova lei regulamentadora da matéria, como se infere da decisão abaixo transcrita: HABEAS CORPUS. CRIME QUALI-FICADO DE EXPLORAÇÃO DE PRESTÍGIO (CP, ARTIGO357, PÁR. ÚNICO). CONJUNTO PROBATÓRIO FUNDADO, EXCLUSIVA-MENTE, DE INTERCEPTAÇÃO TELEFONICA, POR ORDEM JUDICIAL, PORÉM, PARA APURAR OUTROS FATOS (TRÁFICO DE ENTORPECENTES): VIOLAÇAO DO ARTIGO 5º, XII, DA CONSTITUIÇÃO. 1. O artigo 5º, XII, da Constituição, que prevê, excepcionalmente, a violação do sigilo das comunicações telefônicas para fins de investigação criminal ou instrução processual penal não é auto-aplicável: exige lei que estabeleça as hipóteses e a forma que permitam a autorização judicial. Precedentes. a) Enquanto a referida lei não for editada pelo Congresso Nacional, é considerada prova ilícita a obtida mediante quebra do sigilo das comunicações telefônicas, mesmo quando haja ordem judicial (CF, artigo5º, LVI). b) O artigo57, II, a, do Código Brasileiro de Telecomunicações não foi recepcionado pela atual Constituição (artigo5º, XII), a qual exige numerus clausus para a definição das hipóteses e formas pelas quais é legítima a violação do sigilo das comunicações telefônicas. 2. A garantia que a Constituição dá, até que a lei o defina, não distingue o telefone público do particular, ainda que instalado em interior de presídio, pois o bem jurídico protegido é a privacidade das pessoas, prerrogativa dogmática de todos os cidadãos. 3. As provas obtidas por meios ilícitos contaminam as que são exclusivamente delas decorrentes; tornam-se inadmissíveis no processo e não podem ensejar a investigação criminal e, com mais razão, a denúncia, a instrução e o julgamento (CF, artigo5º, LVI), ainda que tenha restado sobejamente comprovado, por meio delas, que o Juiz foi vítima das contumélias do paciente. 4. Inexistência, nos autos do processo crime, de prova autônoma e não decorrente de prova ilícita, que permita o prosseguimento do processo. (HC nº 72588/PB, STF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Maurício Corrêa, D. J. 04.08.00, provido, por maioria). Assim, ante a fixação do referido entendimento e atendendo aos apelos dos diversos tribunais pátrios, foi promulgada a lei 9296/96, regulamentado a matéria e definindo os casos em que seria possível a interceptação telefônica bem como os requisitos necessários ao

seu deferimento. Nessa esteira, cabível destacar os dispositivos legais a esse respeito:

Art. 1º A interceptação de comunicações telefônicas, de qualquer natureza, para prova em investigação criminal e em instrução processual penal, observará o disposto nesta Lei e dependerá de ordem do juiz competente da ação principal, sob segredo de justiça. Art. 2° Não será admitida a interceptação de comunicações telefônicas quando ocorrer qualquer das seguintes hipóteses:I - não houver indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal;II - a prova puder ser feita por outros meios disponíveis;III - o fato investigado constituir infração penal punida, no máximo, com pena de detenção.

Parágrafo único. Em qualquer hipótese deve ser descrita com clareza a situação objeto da investigação, inclusive com a indicação e qualificação dos investigados, salvo impossibilidade manifesta, devidamente justificada.

Art. 3° A interceptação das comunicações telefônicas poderá ser determinada pelo juiz, de ofício ou a requerimento:I - da autoridade policial, na investigação criminal;II - do representante do Ministério Público, na investigação criminal e na instrução processual penal.Art. 4° O pedido de interceptação de comunicação telefônica conterá a demonstração de que a sua realização é necessária à apuração de infração penal, com indicação dos meios a serem empregados.§ 1° Excepcionalmente, o juiz poderá admitir que o pedido seja formulado verbalmente, desde que estejam presentes os pressupostos que autorizem a interceptação, caso em que a concessão será condicionada à sua redução a termo.§ 2° O juiz, no prazo máximo de vinte e quatro horas, decidirá sobre o pedido. Art. 5° A decisão será fundamentada, sob pena de nulidade, indicando também a forma de execução da diligência, que não poderá exceder o prazo de quinze dias, renovável por igual tempo uma vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova.Art. 6° Deferido o pedido, a autoridade policial conduzirá os procedimentos de interceptação, dando ciência ao Ministério Público, que poderá acompanhar a sua realização.§ 1° No caso de a diligência possibilitar a gravação da comunicação interceptada, será determinada a sua transcrição.§ 2° Cumprida a diligência, a autoridade policial encaminhará o resultado da interceptação ao juiz, acompanhado de auto circunstanciado, que deverá conter o resumo das operações realizadas.§ 3° Recebidos esses elementos, o juiz determinará a providência do art. 8° , ciente o Ministério Público.

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Diante dos referidos dispositivos legais, algumas observações devem ser feitas a respeito dos requisitos autorizadores da interceptação. Primeiramente, a interceptação de comunicações telefônicas somente pode ser autorizada para fins de investigação criminal e instrução processual penal. Por outro lado, somente o juiz criminal possui competência para deferir o pedido de interceptação. Outro aspecto a destacar é que a interceptação telefônica deverá ser realizada sob segredo de justiça e isso se justifica para que não seja prejudicada a própria finalidade da prova. Existe o interesse do Estado e da justiça na persecução penal, a fim de que se evite que os investigados tenham conhecimento da interceptação, o que por óbvio, levaria à inutilidade da prova a ser produzida. A mesma lei determina os casos em que não poderá haver a autorização para a interceptação telefônica, listando as hipóteses da inadmissibilidade. Este dispositivo arrola as hipóteses em que tal prova não é permitida. Enfatiza a necessidade de existência indícios razoáveis de autoria ou participação em infração penal, não bastando a mera suspeita. Em outros termos, tratando-se de medida cautelar, está sujeita aos seus requisitos, quais sejam, o fumus boni iuris e o periculum in mora. Determina, por fim que A interceptação telefônica somente deverá ser autorizada quando a prova não puder ser realizada por outros meios disponíveis, porque consiste em medida excepcional. Outro fator importante é que, em qualquer pedido de interceptação telefônica realizado perante o juiz, deve haver a descrição clara da situação investigada, como também a indicação e qualificação dos investigados. O juiz pode determinar de ofício a interceptação telefônica, não precisando de requerimento da autoridade policial e do Ministério Público. A autoridade policial possui legitimidade para requerer a interceptação telefônica durante a investigação criminal. Já o Ministério Público tem dupla legitimidade, podendo pedir a medida cautelar na investigação criminal e na instrução processual penal. A lei informa que o prazo para a execução da interceptação de comunicação telefônica não poderá exceder quinze dias, havendo a possibilidade de prorrogação do tempo, desde que comprovada a indispensabilidade do meio de prova, não havendo limite para o número de prorrogações desde que se entenda imprescindível a continuação da diligência. O Ministério Público deverá ser cientificado pela autoridade policial de todos os atos operacionais, sob pena de nulidade, sendo facultativo o acompanhamento das diligências. Assim, respeitadas todas essas peculiaridades é considerada lícita a interceptação telefônica, autorizada judicialmente, e realizada para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.

4. A PROVA EMPRESTADA

Cabe-nos, primeiramente, auferir o conceito de prova emprestada. Comummente é definida na doutrina como a prova produzida nos autos de um processo, judicial ou administrativo, que é transportada para outro onde produzirá efeitos.

Uma vez definido o conceito de prova emprestada, resta saber quais os requisitos para que a prova produzida em um processo possa efetivamente produzir efeitos em outro processo para o qual foi transportada. Primeiramente, é necessário que a mesma tenha sido produzida licitamente no processo de origem. A razão é óbvia, uma vez que se a produção não foi lícita no processo originário, jamais poderá ter validade em outro processo para onde se pretende transportá-la. Por outro lado, há de haver a coincidência de partes, ou seja, a pessoa cuja esfera de direito poderá ser atingida pela prova deverá ter sido parte no processo onde a prova foi originariamente produzida. Observe-se, entretanto que coincidência não implica em identidade de partes, uma vez que esta última implica em mesmas partes em ambos os processos. A coincidência implica em coincidência parcial, uma vez que é necessário apenas que aquele a quem interessa a prova deve ter sido parte do processo de origem. E se dá em virtude do respeito ao princípio do contraditório. Por fim, há a necessidade de que os objetos da prova sejam assemelhados, o que significa que os objetos têm ser relacionados, ou seja, guardarem uma correlação. O objeto não deve ser, necessariamente, igual, mas o fato (causa de pedir) deve ser coincidente. Assim, cumpridos esses requisitos, essa prova emprestada é integralmente válida no processo de destino, trazendo para ele todo o seu valor como elemento formador de convicção e mantendo a força e o condão intrínsecos à sua natureza.

5. UTILIZAÇÃO DE ESCUTAS TELEFÔNICAS COMO PROVA EMPRESTADA DE PROCESSO PENAL OU INQUÉRITO CRIMINAL NA APURAÇÃO DE FALTA EM PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR – EVOLUÇÃO DA DOUTRINA E DA JURISPRUDÊNCIA A RESPEITO DO TEMA

Procedidas essas necessárias digressões, chega-se ao ponto culminante a respeito do tema aqui discutido, da possibilidade ou não da utilização de escutas telefônicas como prova emprestada de processo penal ou inquérito criminal na apuração de falta em Procedimento Administrativo Disciplinar. Durante muito tempo, em virtude da vedação constitucional imposta no art. 5°, XII da CF/88, asseverou-se que seria impossível a utilização, sob qualquer aspecto, de provas obtidas através de escutas telefônicas em processos cíveis e administrativos, seja de forma direta, seja através de prova emprestada. No que se refere mais especificamente ao processo administrativo disciplinar, como o art. 3º da Lei nº 9.296, de 24/07/96, somente autoriza a violação da garantia à intimidade da conversa telefônica para investigação criminal ou para instrução penal, tem-se que as Comissões de investigação no âmbito administrativo não podem pedir sua quebra para fim de instrução em PAD. O ordenamento indicou ao aplicador que, na ponderação de direitos em conflitos, como regra, se atribui maior relevância à preservação da intimidade da conversa telefônica do que à elucidação de ilícitos puramente disciplinares.

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Abalizadas vozes doutrinárias têm, ao longo do tempo, e mesmo hodiernamente, se insurgido contra a utilização dessa espécie de prova, mesmo através da chamada prova emprestada, na apuração de ilícitos administrativos e em processos de índole civil. Vejamos: “Estando em jogo liberdades constitucionais (direito à intimidade frente a outros direitos ou interesses), procurou o constituinte, desde logo, demarcar o âmbito de prevalência de outro interesse (criminal), em detrimento da intimidade. Mesmo assim, não é qualquer crime que admite a interceptação. Essa escolha, fundada na proporcionalidade, não pode ser desviada na praxe forense. Em conclusão, a prova colhida por interceptação telefônica no âmbito penal não pode ser ‘emprestada’ (ou utilizada) para qualquer outro processo vinculado a outros ramos do direito. (...) Urge o respeito à vontade do constituinte (‘fins criminais’). Ao permitir a interceptação, como quebra que é do sigilo das comunicações, somente para ‘fins criminais’, já fazia uso da ponderação e da proporcionalidade, que agora não pode ser ampliada na prática. Impõe-se, por último, acrescentar: essa prova criminal deve permanecer em ‘segredo de justiça’. É inconciliável o empréstimo de prova com o segredo de justiça assegurado no art. 1º”. (LUIZ FLÁVIO GOMES, “Finalidade da Interceptação Telefônica e a Questão da ‘Prova Emprestada’. In: Repertório IOB de Jurisprudência, v. 4/97, p. 75). No campo doutrinário tem-se admitido a possibilidade de semelhante utilização. A favor dela pode argumentar-se que, uma vez rompido o sigilo, e por conseguinte sacrificado o direito da parte à preservação da intimidade, não faria sentido que continuássemos a preocupar-nos com o risco de arrombar-se um cofre já aberto. Mas por outro lado talvez se objete que assim se acaba por condescender com autêntica fraude à Constituição. A prova ilícita, expulsa pela porta, voltaria a entrar pela janela...” (JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA, “A Constituição e As Provas Ilicitamente Adquiridas”. In: Revista de Direito Administrativo, v. 205, p. 20) Posição análoga pode ver-se em VICENTE GRECO FILHO. “Interceptação Telefônica”, 2ª ed.., São Paulo: Saraiva, 2005, p. 39-40, e EDUARDO TALAMINI, “Prova Emprestada no Processo Civil e Penal”. In: Revista de Informação Legislativa, v. 140, pp. 157-158). Alinhada a nesse posicionamento o jurisprudência pátria também se posicionava no mesmo sentido: MANDADO DE SEGURANÇA. ATO JUDICIAL. INDEFERIMENTO DA PRETENSÃO DE IMPEDIR EMPRÉSTIMO DE PROVAS. PRELIMINARES DE DECADÊNCIA E DE INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA AFASTADAS. INCISO XII, ART. 5º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. DIREITO LÍQUIDO E CERTO DE QUE A PROVA COLHIDA POR INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA FIQUE RESTRITA À ESFERA PENAL. 1. Na audiência realizada em 16 de março último passado, o Juiz novamente se manifestou sobre a possibilidade do empréstimo de provas e inovou nos fundamentos, ficando, assim, restaurado o prazo para a

impetração do mandado de segurança. Ademais, nada se disse, na ocasião, sobre a ocorrência de preclusão. Logo, o presente mandado de segurança, impetrado em 04 de maio, foi manejado quando não ainda ocorrida a decadência. 2. Rejeitada, também a preliminar de inadequação da via eleita. Conforme prevê o inciso II do art. 5º da Lei 1.533, de 31/12/51, admite-se o mandado de segurança quando não haja recurso previsto nas leis processuais ou não possa a decisão ser modificada por via de correição. 3. A interceptação telefônica, ainda que autorizada judicialmente na esfera penal, não pode ser utilizada em outros processos, civis ou administrativos. Esse direito, líquido e certo, está assegurado no art. 5º, XII, da Constituição Federal. 4. Ordem concedida. Origem: TRF - PRIMEIRA REGIÃO;Classe: MS - MANDADO DE SEGURANÇA – 200501000291871;Processo: 200501000291871; UF: BA; Órgão Julgador: SEGUNDA SEÇÃO; Data da decisão: 24/8/2005; Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL HILTON QUEIROZ O entendimento doutrinário e jurisprudencial então dominante era baseado na idéia de que, tratando-se de uma norma restritiva de direito, haveria de dar-se a ela interpretação restritiva, devendo manter-se a prova oriunda de escuta telefônica restrita à seara estritamente penal. Assim, toda e qualquer interpretação que se desse no sentido de poder estender a utilização desse tipo de prova a qualquer outra área, seja cível ou administrativa, quer de maneira direta quer através da utilização como prova emprestada, estar-se-ía burlando a norma constitucional, utilizando-se de forma indireta o que a Carta Magna diretamente havia vedado, devendo prevalecer a interpretação no sentido de que, na disputa entre interesses igualmente assegurados constitucionalmente deveria prevalecer aquele que preservasse o direito à intimidade. Ocorre que o direito não é uma ciência estática e sua evolução é contínua, através, principalmente, da evolução interpretativa dos seus institutos. E essa evolução dá-se de acordo com os anseios sociais dominantes. Assim, no Brasil, perante uma sociedade incrustada numa crise ética sem precedentes, onde os escândalos de corrupção assolam o país e a impunidade impera de forma caudalosa a sociedade passou a ansiar por normas e posturas que acabassem principalmente com essa impunidade que fazia com que milhares de servidores públicos e governantes envolvidos em crimes e esquemas de corrupção, que usurpavam o dinheiro e o patrimônio públicos, simplesmente não fossem condenados por interpretações simplórias e frias das normas legais, como essa e, especialmente, na seara administrativa, impediam que seus agentes fossem condenados e continuassem a lidar de maneira irresponsável e oportunista com o dinheiro público, mantendo-se em seus cargos através da impunidade. Nas palavras de Arion Sayão Romita: “os métodos tradicionais de interpretação da lei – literal, gramatical, histórico, dogmático, teleológico, interpretação extensiva e restritiva – hoje estão desa-creditados. Tinham espaço quando o raciocínio

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jurídico seguia o paradigma da aplicação, adequado às codificações do século XIX e característico do direito liberal-individualista. Hoje impera o processo criativo do direito, contrário às pretensões do positivismo e do formalismo. Segundo o processo interpretativo compatível com as exigências da realidade social contemporânea, o jurista não deve reproduzir ou descobrir o verdadeiro significado da lei, mas sim criar o sentido que mais convém à realidade palpitante e viva.” – “Prestação de serviços por trabalhadores autônomos: relação de trabalho ou relação de consumo?” Revista LTR, vol. 70, nº 8, agosto de 2006, SP. Essa ânsia social fez com que se evoluísse na interpretação dos instrumentos e dispositivos legais. E nessa esteira é que se procura evoluir a interpretação desses dispositivos inerentes à utilização de escutas telefônicas para o sentido de poder-se utilizar tais provas em outros procedimentos, através da prova emprestada, especialmente no âmbito do Procedimento Administrativo Disciplinar para apuração de falta funcional do servidor, resultante de ato que seja igualmente ilícito criminal. Efetivamente, essa utilização só poderia dar-se através de prova emprestada, uma vez que o constituinte realmente vedou sua utilização de forma direta. Mas nada impede que através da prova emprestada se possa utilizar desses elementos licitamente colhidos para a apuração do ilícito disciplinar cometido por servidor público. É que estaria em jogo dois interesses jurídicos igualmente protegidos constitucionalmente, o primeiro referente ao direito à intimidade como bem jurídico privado e o segundo como óbice à repressão aos ilícitos cometidos por agentes públicos como manifestação do interesse público. Assim, nesse sopesamento de interesses assegurados, deve prevalecer aquele que privilegia o interesse público e coletivo em detrimento do interesse meramente privado e individual, uma vez que o princípio da proporcionalidade faz com que se de prevalência à supremacia do interesse público sobre o privado. Mormente no âmbito do direito administrativo, em que as formas de instrução processual administrativa não estão taxativamente previstas em lei e não há expressa vedação legal, pode a sede disciplinar também se valer do instituto judicialmente aceito da prova emprestada. Assim, dentro dos limites da legalidade, não há impedimento para que a comissão designada em determinado processo administrativo disciplinar junte a seus autos prova realizada em outro processo, seja também administrativo, seja até judicial, tanto de ofício por iniciativa do próprio colegiado quanto a pedido do acusado. Para que tal juntada se proceda, basta que, após a devida deliberação da comissão, o presidente solicite à sua autoridade instauradora diligências para o fornecimento, junto à autoridade competente pelo outro processo. É que: “No processo administrativo, que se orienta no sentido da verdade material, não há razão para dificultar o uso da prova emprestada, desde que, de qualquer maneira, se abra possibilidade ao interessado de questioná-la (...).” Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari, “Processo Administrativo”, pg. 135, Malheiros Editores, 1ª edição, 2001. Desta forma, devem ser respeitadas somente

algumas exigências constitucionais, dentre elas, em especial, o respeito ao princípio do contraditório, para que se possa, efetivamente, fazer uso das escutas telefônicas legalmente colhidas no âmbito criminal para a apuração de falta disciplinar em sede de PAD. É que mesmo sendo o mesmo interessado e tendo sido perfeita a coleta da prova no processo de origem, por se tratar de outro processo, talvez envolvendo diferentes acusações e pondo em risco diferentes graus de direito ou com peculiaridades no bem tutelado, é recomendável que se formalize também no processo de destino a garantia do contraditório, notificando o interessado da juntada da cópia e expressando seu direito de contestá-la. Uma vez que se recomenda ofertar expres-samente o contraditório na juntada da cópia da prova no processo de destino, pode-se então aduzir que, na verdade, o fato de não se ter franqueado o contraditório no momento da produção da prova no processo de origem não inviabiliza de todo o emprego do instituto da prova emprestada, pois tal lacuna pode ser, pelo menos em parte, suprida com a contestação sobre o que foi juntado no processo de destino. Assim, seja quando a prova deveria ter tido sua feitura ofertada ao contraditório e não o foi irregularmente, seja quando a prova - por sua natureza - não comportava mesmo contraditório em sua feitura, não resta absolutamente inviabilizado seu uso como prova emprestada em outro processo. Desta forma, respeitado o contraditório e demais peculiaridades referentes à utilização da prova emprestada, óbice não há de haver em sua utilização como prova na apuração dos ilícitos administrativos praticados por servidores públicos, em sede de processo administrativo disciplinar. A mais abalizada e atual doutrina também já se direciona nesse sentido: As opiniões dividem-se, mas, de nossa parte, pensamos ser possível o transporte de prova. O valor constitucionalmente protegido pela vedação das interceptações telefônicas é a intimidade. Rompida esta, licitamente, em face do permissivo constitucional, nada mais resta a preservar. Seria uma demasia negar-se a recepção da prova assim obtida, sob a alegação de que estaria obliquamente vulnerado o comando constitucional. Ainda aqui, mais uma vez, deve prevalecer a lógica do razoável. [...] Nessa linha de interpretação, cuidados especiais devem ser tomados para evitar que o processo penal sirva exclusivamente como meio oblíquo para legitimar a prova no processo civil. Se o juiz perceber que esse foi o único objetivo da ação penal, não deverá admitir a prova na causa cível.” (ADA PELLEGRINI GRINOVER, ANTONIO SCARANCE FERNANDES, ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO, “As Nulidades no Processo Penal”. SP, RT, 9ª ed., 2006, p. 119-120). “(...) entendemos ser admissível a produção da prova obtida licitamente (porque autorizada pela CF) para a investigação criminal ou instrução processual penal, como prova emprestada no processo civil. A natureza da causa civil é irrelevante para a admissão da prova. Desde que a escuta tenha sido determinada para servir de prova direta na esfera criminal, pode essa prova ser emprestada ao processo civil”. (NELSON NERY JÚNIOR, “Princípios do Processo Civil na Constituição Federal”. SP, RT, 8ª ed., 2004, p. 203)

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“A prova obtida através de interceptação telefônica em juízo criminal, sendo autorizada judicialmente, pode ser emprestada para o processo civil, já que se trata de prova produzida licitamente, não sendo eivada por qualquer vício. A Constituição proíbe somente as provas obtidas por meios ilícitos, e não o empréstimo de uma prova que foi colhida por meio lícito. (...) Assim, se nos dois processos (criminal e cível), as partes forem as mesmas, embora ocupem posições diversas (pólos ativos e passivos), sendo a prova da escuta telefônica autorizada judicialmente, se a prova foi sabatinada pelas mesmas partes e assim observados o contraditório e ampla defesa e, ainda, se a Constituição só não acolhe a prova obtida por meio ilícito, é razoável e, portanto, possível que no processo cível se possa utilizar, validamente, uma escuta telefônica ou outra prova que licitamente foi obtida primeiramente no procedimento criminal”. (CARLA HEIDRICH ANTUNES et al., “Prova Emprestada: Algumas Considerações”. In: Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, v. 5, p. 36). Na esteira desse pensamento, louvável decisão foi recentemente proferida pelo egrégio Supremo Tribunal Federal. Vejamos: EMENTA: PROVA EMPRESTADA. Penal. Interceptação telefônica. Escuta ambiental. Autorização judicial e produção para fim de investigação criminal. Suspeita de delitos cometidos por autoridades e agentes públicos. Dados obtidos em inquérito policial. Uso em procedimento administrativo disciplinar, contra os mesmos servidores. Admissibilidade. Resposta afirmativa a questão de ordem. Inteligência do art. 5º, inc. XII, da CF, e do art. 1º da Lei federal nº 9.296/96. Voto vencido. Dados obtidos em interceptação de comunicações telefônicas e em escutas ambientais, judicialmente autorizadas para produção de prova em investigação criminal ou em instrução processual penal, podem ser usados em procedimento administrativo disciplinar, contra a mesma ou as mesmas pessoas em relação às quais foram colhidos. (25/04/2007; TRIBUNAL PLENO; QUEST. ORD. EM INQUÉRITO 2.424-4 RIO DE JANEIRO; RELATOR: MIN. CEZAR PELUSO). Em seu brilhante voto, destacou o Ministro Relator: Penso que, na interpretação daqueles dois textos (art. 5º, XII, da Constituição, e art. 1º da Lei nº 9.296/96), se devam discernir, à luz dos valores em ambos ponderados e tutelados, dois âmbitos semânticos correspondentes a duas normas ou regras distintas, posto conexas, o da produção da prova inerente aos resultados documentais da interceptação e o do seu uso processual em sentido lato. Não há dúvida de que, no primeiro aspecto, o da produção, a restrição constitucional tem por objetivo claro preservar a intimidade, como bem jurídico privado, mas essencial à dignidade da pessoa, até o limite em que tal valor, aparecendo como obstáculo ou estorvo concreto à repressão criminal, tem de ceder à manifesta superioridade do interesse público na apuração e punição de crime grave, enquanto o mais conspícuo dos atentados às condições fundamentais de subsistência da vida social. O limite da garantia da intimidade é aí, nessa primeira regra, de cunho restritivo, objeto da ponderação de valores formulada pela

Constituição mesma, que, não podendo condescender com a impunidade de fato erosivo das bases estruturais da convivência social, sacrifica aquela para garantir esta, dando primazia a um valor sobre o outro. Nesse sentido, costuma dizer-se que a garantia constitucional não serve a proteger atividades ilícitas ou criminosas. Daí, autorizar, em caráter excepcional, seja interceptada comunicação telefônica, apenas quando tal devassa se revele como fonte de prova imprescindível à promoção do fim público da persecução penal. Outra coisa é o âmbito do uso lícito da prova consistente nos dados retóricos obtidos com a violação da intimidade e, nessa moldura, é que tem agora o intérprete de, à míngua de distinção normativa explícita, a qual em si apontaria para outra ponderação efetuada pela própria norma constitucional, perquirir se existe, ou não, algum interesse público transcendente, que, ligando-se a conseqüências de outra qualificação jurídico-normativa do mesmo ato ilícito objeto da investigação criminal, mereça sobrepor-se mais uma vez, agora na esfera ou instância não penal competente, à garantia de uma intimidade já devassada, para efeito de aplicar ao autor daquele ato, por conta da sua simultânea ilicitude doutra ordem, a sanção legal não penal que lhe convenha ou corresponda, a título de resposta estratégica do ordenamento à transgressão de norma jurídica de taxinomia diversa.... Mas o que de todo me não parece ajustar-se às normas discerníveis nos textos constitucional e legal, enquanto ingredientes do sistema, é que os resultados prático-retóricos da interceptação autorizada não possam produzir efeitos ou ser objeto de consideração nos processos e procedimentos não penais, perante o órgão ou órgãos decisórios competentes, contra a mesma pessoa a que se atribua, agora do ponto de vista de outra qualificação jurídica de ilicitude em dano do Estado, a prática ou autoria do mesmo ato que, para ser apurado na sua dimensão jurídico-criminal, foi alvo da interceptação lícita, como exigência do superior interesse público do mesmíssimo Estado. Ou, dito de maneira mais direta, não posso conceber como insultuoso à Constituição nem à lei o entendimento de que a prova oriunda de interceptação lícita, autorizada e realizada em procedimento criminal, trate-se de inquérito ou processo-crime, contra certa pessoa, na condição de suspeito, indiciado ou réu, pode ser-lhe oposta, na esfera competente, pelo mesmo Estado, encarnado por órgão administrativo ou judiciário a que esteja o agente submisso, como prova do mesmíssimo ato, visto agora sob a qualificação jurídica de ilícito administrativo ou disciplinar. Neste quadro, tenho que se desvanecem as objeções. Está nele, por pressuposto, excluída toda idéia de fraus legis ou de fraus constitutionis, que o juízo da prova poderia, em caso contrário, abortar. O de que se cuida é só da hipótese de recurso ético à fonte de prova legítima do mesmo ato histórico, suscetível de mais de uma qualificação jurídico-normativa de ilicitude, como acontece com fatos a um só tempo configuradores de ilícito penal e administrativo (fatos elementares de várias fattispecie normativas), e imputável à mesma pessoa ou agente, em dano de interesse público e confronto com órgão estatal diverso do Ministério Público. É o que se passa, e não só por exemplo, com o caso de crime ou

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crimes graves que, imputáveis a autoridade ou agente público, constituam também ilícitos disciplinares a que se cominem, por força de análoga gravidade – que não é de muito menor grau em relação à importância dos bens sociais ofendidos –, sanções administrativas extremas. Não há excogitar aí, nem de longe, outra ou nova ruptura da inviolabilidade pessoal das comunicações telefônicas, senão apenas o reconhecimento da igual valia ou repercussão jurídico-probatória da mesma interceptação autorizada por conta da aparência do caráter também criminoso do mesmo ato ou fato histórico. Tal é a razão óbvia por que não teria propósito nem sentido argüir, aqui, vício de inobservância ou alargamento daquela específica limitação constitucional da garantia, pois se trata apenas de tirar da mesma fonte de prova, sem outra ofensa qualquer à intimidade já devassada do agente, a capacidade, que lhe é ínsita, de servir de meio de convencimento da existência do mesmo fato, ou, em palavras mais técnicas, a idoneidade de se prestar, noutro processo ou procedimento, à reconstituição historiográfica do ato já apurado na esfera criminal. Nisso, não se aprofunda, alarga nem agrava a quebra lícita da intimidade que já se operou, mas tão-só se reconhece a necessidade de, com apoio na eficácia da prova resultante, assegurar, em tutela de interesse público de não menor relevo, a aplicação de outras conseqüências jurídicas ao mesmo ato ilícito, considerado noutro plano normativo. Tampouco fica lugar para alegação de ultraje às cláusulas do contraditório e da ampla defesa, imanentes ao justo processo da lei (due processo of law), porque, e isto é não menos óbvio, o ônus de exercício dos poderes correspondentes da defesa incide sobre o mesmo objeto de prova, assim na órbita criminal, como no procedimento administrativo, pois que o ato sobre cuja existência deve recair a prova é único na sua consistência histórica. O que pode mudar, e isso não guarda relevância alguma, é só o campo ou espectro das defesas possíveis de ordem normativa (plano das chamadas quaestiones iuris), as quais estão de todo modo garantidas em qualquer caso. Isso tudo significa apenas afirmar que, no âmbito normativo do uso processual dos resultados documentais da interceptação, o mesmo interesse público na repressão de ato criminoso grave que, por sua magnitude, prevalece sobre a garantia da inviolabilidade pessoal, justificando a quebra que a limita, reaparece, com gravidade só reduzida pela natureza não criminal do ilícito administrativo e das respectivas sanções, como legitimante desse uso na esfera não criminal, segundo avaliação e percepção de sua evidente supremacia no confronto com o direito individual à intimidade. Outra interpretação do art. 5º, inc. XII, da Constituição da República, e do art. 1º da Lei nº 9.296/96, equivaleria a impedir ao mesmo Estado, que já conhece o fato na sua expressão ou recorte histórico correspondente a figura criminosa e, como tal, já licitamente apurado na órbita penal, invocar-lhe a prova oriunda da interceptação para, sob as garantias do justo processo da lei (due processo of law), no procedimento próprio, aplicar ao agente a sanção que quadre à gravidade do eventual ilícito administrativo, em tutela de relevante interesse público e restauração da integridade do ordenamento jurídico. E, neste caso, significaria impedir que os

órgãos estatais competentes se valham dessa prova, que lhes é também imprescindível ao desempenho dos misteres correcionais, tanto quanto o é na esfera penal, para apuração de eventuais ilícitos disciplinares de autoridades investidas nas mais conspícuas funções do Estado Democrático de direito e que podem, em tese, dada a relativa autonomia conceitual dos ilícitos teóricos e não menos relativa independência das respectivas jurisdições, ser absolvidos aqui e punidos ali. Não posso compreender – para usar eloqüente expressão de FRANCO CORDERO (“Procedura Penale”, Milano, Giuffrè, 7ª ed., 2003, p. 659, nº 64.31) - essa como “fobia della prova”, que leva à ficção de se reputarem os fatos, cuja existência é já conhecida do mesmo Estado, “tamquam non essent”. Nesse sentido, remato o voto com esta curial observação: “Evidentemente que estamos cogitando de situações extremamente graves, que podem colocar em risco ou levar ao perecimento de bens jurídicos de valor incontestável, em confronto com o direito à intimidade de algum cidadão” (LUIZ FRANCISCO TORQUATO AVOLIO, op. e loc. cits.). Do exposto, proponho, como resposta à questão de ordem, que se autorize, para os fins já enunciados, sob dever de resguardo do sigilo, remessa de cópia integral das provas constantes deste inquérito ao Superior Tribunal de Justiça e ao Conselho Nacional de Justiça, bem como, eventualmente, ao Tribunal Regional Federal do Rio de Janeiro e ao Tribunal Regional de Trabalho de Campinas, se o requererem. Tal decisão foi proferida nos autos do inquérito policial referente à chamada “Operação Furacão”, da Polícia Federal que indiciou e prendeu altos funcionários da magistratura federal, entre eles, inclusive, desembargadores e juízes federais. De forma grata para as instituições democráticas de nosso país, o excelso Supremo Tribunal Federal decidiu, em processo tocante a essa operação da polícia federal, extirpar toda e qualquer dúvida a respeito da possibilidade de utilização de degravações telefônicas lealmente autorizadas em inquérito policial para a apuração de delito funcional em processo administrativo disciplinar. Para o bem das instituições nacionais, tem-se visto, ultimamente, que está havendo um choque moral em nosso país, onde tem-se buscado, a todo custo, extirpar da Administração Pública, independentemente da função que ocupe, todo aquele servidor que comete atos atentatórios à moral e contra o patrimônio público. Resultado disso é que se tem visto, hoje em dia, pessoas ocupantes das mais altas funções respondendo a processos e sendo presos por participarem de esquemas de corrupção e por praticarem condutas imorais na Administração Pública e no uso de suas atribuições e cargos. Referida decisão, além de estar estritamente dentro dos ditames legais e constitucionais, mesmo porque corroborada por 10 dos 11 ministros da nossa Corte Constitucional, é moralmente louvável, uma vez que vem como um precedente para que se possa, efetivamente, utilizar-se das provas colhidas no processo penal, em especial as escutas telefônicas, para a apuração de ilícitos funcionais decorrentes do mesmo fato, indo, inclusive, de encontro aos anseios sociais para que se extirpe de vez a impunidade de nosso país, mesmo porque, de maneira geral, tais escutas são

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utilizadas especialmente em processos de alta gravidade e, eminentemente, nos casos dos chamados, “crimes de colarinho branco”, que se traduzem, igualmente, em graves ilícitos funcionais, que tanto envergonham e revoltam a população brasileira.

6. CONCLUSÃO

Pode-se afirmar, pois, a guisa de conclusão, que a Constituição Federal, em seus dispositivos fixadores dos direitos e garantias fundamentais, assegura aos cidadãos o direito à preservação da sua intimidade, especialmente no que tange à inviolabilidade do sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas. Entretanto, importante destacar que nenhuma garantia constitucional tem cunho absoluto, abrindo o legislador constituinte, no que tange a essa garantia de inviolabilidade do sigilo de comunicações telefônicas, exceções expressas no tocante à investigação criminal e à instrução processual penal. Entretanto tal exceção não pode ser interpretada de maneira literal, no sentido de impedir que as provas colhidas dentro desses procedimentos de cunho estritamente criminal possam ser utilizados, de maneira transversa, para a apuração de outros ilícitos, dentre eles os de cunho administrativo, decorrentes dos mesmos fatos, permanecendo estáticos dentro da esfera do processo penal. É que na ponderação de valores constitucionais assegurados, e na solução de conflitos entre os referidos valores, deve-se sopesar, através do princípio da proporcionalidade, o de maior interesse no caso concreto, não devendo haver a possibilidade de se utilizar tais garantias no intuito de encobrir atos ilícitos, especialmente quando praticados por servidores públicos. Assim é que se propõe como tese a possibilidade de utilização de escutas telefônicas licitamente obtidas em investigação criminal ou instrução processual penal, através de prova emprestada, para a apuração, em Procedimento Administrativo Disciplinar, de faltas disciplinares decorrentes do mesmo foto, desde que observadas as peculiaridades referentes ao instituto da prova emprestada (produção lícita, coincidência de partes e objetos da prova assemelhados), bem como respeitado o princípio do contraditório na produção da prova, em homenagem aos princípios constitucionais da supremacia do interesse público e da moralidade.

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A RACIONALIDADE JURÍDICA E ECONÔMICA DA LC Nº 118/2005 E DA LEI 11.101/2005 E

SEUS IMPACTOS NA ECONOMIA BRASILEIRA.19

Marival Matos dos Santos Pós-graduando em Direito do Estado (UCB)

MSC em Economia (UFBA) Julimar Andrade Vieira

AdvogadoPós-graduado em Direito Público (UNB)

Chefe de Gabinete da PGE/SE.

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1. INTRODUÇÃO

As alterações e acréscimos efetuados pela Lei Complementar 118, de 9 de fevereiro de 2005, no Código Tributário Nacional (CTN), estão diretamente relacionadas com a aprovação da nova Lei de Falências (lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005). Não são poucos os aspectos positivos da lei 11.101/2005, que regula o processo falimentar das empresas no Brasil, tendo sido aprovada, visando, dentre outros objetivos, criar condições para que situações de insolvência nas empresas tenham soluções previsíveis, céleres e transparentes, de modo que os ativos, tangíveis e intangíveis, sejam preservados e continuem cumprindo sua função social, gerando produto, emprego, renda e contribuindo para a continuidade do desenvolvimento econômico do País. Um primeiro aspecto central da aludida lei refere-se à institucionalização da recuperação judicial; e o segundo, à recuperação extrajudicial, além da extinção do instituto da concordata. Observa-se que o legislador, ao extinguir as concordatas, preocupou-se com a função social das empresas, flexibilizando uma situação de crise financeira a partir do instituto de recuperação das mesmas. Estas, as mais relevantes alterações em relação ao DL 7.661/45, que antes regulava a matéria. Por sua vez, a aprovação da LC 118/2005 alterou, dentre outros pontos, o inciso I do parágrafo único do art. 174 do CTN, ao dispor que a interrupção da prescrição, na execução fiscal, ocorre mediante simples despacho do Juiz que ordenar a citação em execução fiscal, o que torna desnecessária a Súmula 106/1994, do STJ, nos executivos fiscais, cuja aplicação configura um aspecto negativo, pelo viés ao princípio da estrita legalidade. O artigo 3º apresenta ilegalidades primárias, que violam princípios constitucionais, dentre os quais o do direito de propriedade e o do não-confisco, além dos princípios fundamentais do direito tributário, como o da neutralidade e equidade. Também o artigo 4º da LC 118/2005, em sua segunda parte, estabelece, expressamente, que, relativamente ao seu art. 3º, seja observado “o disposto no art. 106, I, da lei 5.172, de 25 de outubro de 1966 – CTN”, ou seja, que a regra de contagem de 5 (cinco) anos de prescrição do direito à repetição ou à compensação de indébitos seja aplicada inclusive aos atos ou fatos pretéritos. O fato é que a aplicação retroativa desta norma implica ofensa ao inciso XXXVI do artigo 5º da Constituição Federal, que impede que a lei viole o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Segundo o entendimento do STJ, conforme leading cases proferidos nos Recursos Especiais nºs 742.743/SP e 327.043/DF, a norma contida no artigo 3º não era interpretativa, e sim modificativa, tendo atribuído um novo significado aos artigos 150, § 1º, 160, I, do CTN. Logo, tal regra somente poderia surtir efeitos para as situações ocorridas após a vacatio legis de 120 (cento e vinte) dias da data da publicação da LC 118/2005. Deste modo, este artigo tem por objetivo examinar os impactos jurídicos das alterações supra-mencionadas, procedidas pela LC 118/2005 no CTN e

os aspectos positivos da NLF na economia nacional. Ao analisarmos o tema, apresentaremos as sínteses da LC 118/2005 e da nova Lei de Falências, a partir das quais nos concentraremos nos aspectos da racionalidade jurídica e econômica de tal legislação.

2. LEI COMPLEMENTAR Nº 118/2005 (SÍNTESE)

Esta lei altera e acrescenta dispositivos à lei 5.172, de 25/10/1966, e dispõe sobre a interpretação do inciso I do artigo 168 do CTN. Tem apenas 4 artigos. O 1o altera os arts. 133, 155-A, 174, 185, 186, 187, 188. e 191. O artigo 2o acrescenta os arts. 185-A e 191-A. O artigo 3o dispõe que, para efeito de interpretação do inciso I do art. 168 da lei no 5.172/66 (CTN), a extinção do crédito tributário ocorre, no caso de tributo sujeito a lançamento por homologação, no momento do pagamento antecipado de que trata o § 1o do art. 150 da referida lei.. O último, artigo 4o, estabelece 120 dias para a vigência, após a publicação, observando ainda, quanto ao artigo. 3o, o disposto no art. 106, inciso I, da lei no 5.172/66 (CTN).

2.1. Da racionalidade jurídica da prescrição

Os artigos 3º e 4º da LC 118, de 9 de fevereiro de 2005, fomentaram diversas polêmicas sobre o prazo para os contribuintes requererem a restituição ou a compensação dos tributos recolhidos de forma indevida ou a maior. De acordo com Alves (2006), não raro, procede-se a confusão entre o conceito de preclusão de direito, de pretensão e de ação, e prescrição de pretensão e de ação, ou só de ação. Ademais, ainda quando feito o discrime, não foi incomum a atribuição de natureza dúplice à prescrição, material-processual, com desatendimento a que se trata de instituto do direito material (e relativa ao meritum causae), conforme a própria técnica legislativa processual assentou (o Código de 1973, art. 269, estabelece que ‘haverá resolução de mérito: IV – quando o juiz pronunciar a decadência ou a prescrição’)” FAGUNDES JUNIOR, (2007). Para Américo Lacombe (1996), “a conseqüência da prescrição é a perda do direito de ação”, o que significa declarar-se sua inexigibilidade, não sua existência, equivocando-se quem cogita “da prescrição como presunção de extinção do direito material, uma vez que a prescrição não atinge em nenhum momento a existência da relação jurídica. (...) Seu fundamento não é proteger o devedor1, como se afirmou e se tem afirmado, mas proteger o que não é devedor e pode, com o decurso do tempo, não mais ter prova da inexistência da dívida. Como bem se frisa no direito comparado, esse transcurso do período de tempo pode de fato expor, com a destruição da prova, a insegurança quem seguro estava2, confiante no mundo jurídico3”. Saliente-se que já havia entendimento con-solidado do Superior Tribunal de Justiça no sentido de afastar a tese da actio nata4, tendo pacificado a matéria em 24/03/2004, entendendo que o prazo para a devolução de tributos pagos indevidamente ou a maior e sujeitos ao lançamento por homologação é de 10 (dez) anos, contados 5 (cinco) anos da data da homologação do pagamento pela Fazenda Pública. A partir da LC 118/2005 a polêmica foi retomada, uma vez que o artigo 3º estabelece que o prazo prescricional do direito de se

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pleitear a restituição de tributos pagos indevidamente ou a maior, conforme previsto no artigo 168, I, do CTN, tem início no momento do pagamento, antecipado à homologação, o que, como será demonstrado, viola o artigo 2º da Constituição Federal, que dispõe sobre a autonomia e independência dos Poderes e contraria entendimento pacífico do STJ. Ocorre que, pela atual redação, o artigo 174 do CTN estabelece que a ação para a cobrança do crédito tributário prescreve em 5 (cinco anos), contados da data da sua constituição definitiva, e, em seu parágrafo único, define que a prescrição se interrompe (I) – pelo despacho do juiz que ordenar a citação em execução fiscal (redação dada pela LC 118/2005); (II) - pelo protesto judicial; (III) - por qualquer ato judicial que constitua em mora o devedor; (IV) - por qualquer ato inequívoco, ainda que extrajudicial, que importe em reconhecimento do débito pelo devedor (o Inciso I do artigo 174 foi alterado em 2005). Pela redação anterior, a prescrição era interrompida mediante citação pessoal, feita ao devedor. A jurisprudência entende que o referido inciso, revogado, vale para as execuções fiscais iniciadas antes da LC 118, que promoveu a alteração mencionada. Não obstante, para o CTN, o instituto da prescrição é causa de extinção do crédito tributário (art. 156, V). Deste modo, a prescrição extingue a pretensão e, indiretamente, o próprio direito (FREITAS, 2005). Dado que a prescrição ocorre em (5) cinco anos, o seu marco inicial é a data da constituição definitiva do crédito tributário, via notificação regular do lançamento. De outro modo, se ocorrer recurso administrativo por parte do devedor, o prazo não começa a correr até a notificação da decisão definitiva. Iniciada a contagem do prazo prescricional, este pode ser interrompido ou suspenso. Neste diapasão, existem as seguintes formas de interrupção da prescrição: (a) despacho do juiz que ordenou a citação, nas execuções iniciadas depois da entrada em vigor da LC 118/2005 (para as anteriores, somente a citação do devedor); (b) protesto judicial; (c) ato que constitua em mora o devedor; (d) o reconhecimento inequívoco da dívida pelo devedor. Caso o prazo prescricional não seja interrompido por qualquer um desses motivos, e verificado o decurso do prazo de 5 (cinco) anos, a prescrição pode ser reconhecida, de ofício, pelo julgador. A alteração foi procedida no artigo 219, § 5º, do Código de Processo Civil, segundo o qual “O juiz pronunciará, de ofício, a prescrição”. Esta alteração está na lei 11.280/2006, vigente desde 16/03/2006. Registre-se que, antes, somente era possível reconhecer a prescrição se ocorresse provocação da parte interessada. De acordo com Moreira5(2006) , o instituto da prescrição apresenta variadas interpretações em função da natureza do crédito tributário, conforme transcrição abaixo: “(...) a disciplina da interrupção da prescrição da ação executiva, que antes variava em razão da natureza do crédito objeto de execução fiscal: se tributário, era interrompida a prescrição pelo próprio ato citatório – prevalecendo a disciplina do CTN sobre a da LEF, enquanto diploma com força de lei complementar, já que matéria constitucionalmente reservada apenas ao trato por tal via (art. 146, III, b, CR/88). Caso contrário, aplicava-se a regra do §2º do art. 8º da Lei 6830/80 (LEF): a prescrição restava então interrompida pelo

mero despacho inicial que determinava a citação. Pela regra ora alterada, evita-se a incidência em prescrição tributária na hipótese de maiores delongas no cumprimento do despacho citatório – como no caso da não localização do devedor, até a sua citação por edital – com o mérito de aplicar-se uma mesma sistemática independentemente da natureza do crédito em execução fiscal, inobstante prevista simultaneamente em dois diplomas legais distintos (CTN e LEF)”. Entretanto, observa-se (segundo Moreira, op cit) que ainda persiste tratamento diferenciado em matéria de prazo prescricional, por conta de variações na definição da própria natureza do crédito, em razão do período a que se refere a dívida em execução, na ausência de regra geral quanto ao prazo prescricional para créditos não-tributários. Lembre-se o preciso caso da contribuição para o FGTS, que apenas é considerada tributo após a nova ordem constitucional, quando então sujeita a prescrição qüinqüenal (e não mais trintenária), interrompida, antes da vigência da LC 118/2005, apenas com a citação do executado. Já a contribuição social pode apresentar-se como tributo ou não, com as conseqüências que são próprias a uma e outra condição, consoante o período a que se referir o crédito em execução, tendo sido considerada como tributo desde sua instituição legal até a EC 8/77, vindo a retomar a natureza tributária (assim, não mais se sujeitando à prescrição trintenária, prevista no art. 144 da LOPS – lei 3807/60) apenas com a Constituição de 1988. Conclusivamente, não são raras as execuções fiscais em que a parte não tenha sido citada quando mais de 5 (cinco) anos já foram decorridos. Anteriormente a essa alteração legal, o juiz nada podia fazer em tal situação. Assim, eram casos em que, se o devedor fosse citado, certamente alegaria a prescrição, e o feito seria extinto e arquivado. Agora, nem mais precisa que a parte interessada aponte a prescrição. Tal como observa o Juiz Zanoni, “mesmo sem a oitiva da Fazenda Pública, pode o juiz extinguir a execução, se decorridos mais de 5 (cinco) anos e, com o trânsito em julgado, arquivar o feito”.6 Nesta perspectiva, dentre vários impactos na eficiência da administração tributária, as alterações na legislação fiscal, com simplificações na tramitação dos feitos e nas decisões judiciais, aceleraram o funcionamento da máquina, com ganhos inequívocos para a economia do País. Entretanto, algumas das alterações e acréscimos à lei 5.172, de 25/10/1966, ordenados pela LC 118/2005, violam dispositivos constitucionais e do próprio CTN, conforme apresentados a seguir. 2.1.2 – Das ilegalidades primárias

O art. 3º da LC 118, de 09 de fevereiro de 2005, ordena que, para efeito de interpretação do inciso I do art. 168 do Código Tributário Nacional, a extinção do crédito tributário ocorre, no caso de tributo sujeito a lançamento por homologação, no momento do pagamento antecipado de que trata o § 1º do art. 150 da referida lei. O art. 168 (CTN) preceitua que o direito de pleitear a restituição extingue-se com o decurso do prazo de 5 (cinco) anos, contados:

I - nas hipóteses dos incisos I e II do artigo 165, da data da extinção do crédito tributário;II - na hipótese do inciso III do artigo 165,

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da data em que se tornar definitiva a decisão administrativa ou passar em julgado a decisão judicial que tenha reformado, anulado, revogado ou rescindido a decisão condenatória.

O art. 165 estabelece que o sujeito passivo tem direito, independentemente de prévio protesto, à restituição total ou parcial do tributo, seja qual for a modalidade do seu pagamento, ressalvado o disposto no § 4º do artigo 162, nos seguintes casos:

I - cobrança ou pagamento espontâneo de tributo indevido ou maior que o devido em face da legislação tributária aplicável, ou da natureza ou circunstâncias materiais do fato gerador efetivamente ocorrido;II - erro na edificação do sujeito passivo, na determinação da alíquota aplicável, no cálculo do montante do débito ou na elaboração ou conferência de qualquer documento relativo ao pagamento;III - reforma, anulação, revogação ou rescisão de decisão condenatória.

E o art. 150 determina que o lançamento por homologação, que ocorre quanto aos tributos cuja legislação atribua ao sujeito passivo o dever de antecipar o pagamento, sem prévio exame da autoridade administrativa, opera-se pelo ato em que a referida autoridade, tomando conhecimento da atividade assim exercida pelo obrigado, expressamente a homologa, como se vê a seguir:

“ Art. 150 (...)§ 1º O pagamento antecipado pelo obrigado nos termos deste artigo extingue o crédito, sob condição resolutória da ulterior homologação ao lançamento.§ 2º Não influem sobre a obrigação tributária quaisquer atos anteriores à homologação, praticados pelo sujeito passivo ou por terceiro, visando à extinção total ou parcial do crédito.§ 3º Os atos a que se refere o parágrafo anterior serão, porém, considerados na apuração do saldo porventura devido e, sendo o caso, na imposição de penalidade, ou sua graduação.§ 4º Se a lei não fixar prazo a homologação, será ele de cinco anos, a contar da ocorrência do fato gerador; expirado esse prazo sem que a Fazenda Pública se tenha pronunciado, considera-se homologado o lançamento e definitivamente extinto o crédito, salvo se comprovada a ocorrência de dolo, fraude ou simulação.”

Diante dos dispositivos a que se refere o art. 3o da LC 118/2005, cabem algumas considerações jurídicas referentes aos conceitos de extinção, lançamento e homologação. A forma natural e esperada de extinção de uma obrigação tributária cujo crédito foi constituído é o pagamento. Não obstante, seguindo o mesmo caminho das obrigações privadas, prevê o CTN uma série de outras formas de extinção. O art. 156 estabelece que extinguem o crédito tributário:

I - o pagamento; II - a compensação; III - a

transação; IV - remissão; V - a prescrição e a decadência; VI - a conversão de depósito em renda; VII - o pagamento antecipado e a homologação do lançamento, nos termos do disposto no artigo 150 e seus parágrafos 1º e 4º; VIII - a consignação em pagamento, nos termos do disposto no § 2º do artigo 164; IX - a decisão administrativa irreformável, assim entendida a definitiva na órbita administrativa, que não mais possa ser objeto de ação anulatória; X - a decisão judicial passada em julgado. XI – a dação em pagamento em bens imóveis, na forma e condições estabelecidas em lei (Inciso incluído pela LC nº 104, de 10.1.2001). O Parágrafo único deste artigo determina que a lei disporá quanto aos efeitos da extinção total ou parcial do crédito sobre a ulterior verificação da irregularidade da sua constituição, observado o disposto nos artigos 144 e 149.

Pela definição legal do art. 142 do CTN, pode-se entender por lançamento o ato ou uma série de atos privativamente reservados à autoridade fiscal, com a finalidade de verificar se ocorreu o fato gerador de uma obrigação tributária e a forma de exigi-la. É através do lançamento que se constitui o crédito tributário, ou seja, o fisco credor assume o conhecimento do direito creditício, uma vez que, antes, apenas o sujeito passivo, causador da obrigação tributária, devia ter conhecimento da dívida. Uma polêmica que deve ser esclarecida, a partir da leitura do art. 142 do CTN, refere-se à natureza jurídica do lançamento, em face de o dispositivo prescrever que compete à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento. No Direito, distinguem-se os atos que criam, modificam ou extinguem direitos, daqueles que apenas declaram, registram direitos já existentes: os primeiros são denominados constitutivos, enquanto os últimos são declaratórios. O fato gerador da obrigação tributária, por exemplo, é um ato constitutivo de direito, pois faz nascer a relação obrigacional entre o Estado e o contribuinte. Já o lançamento é um ato de formalização, de registro, declaratório da obrigação pré-existente, servindo para ¨constituir¨ somente o próprio crédito tributário. Porém, o lançamento por homologação, é uma espécie do gênero LANÇAMENTO, que consiste na modalidade por meio da qual, uma vez ocorrido o evento previsto na norma, que desemboca na obrigação tributária, o contribuinte, por sua conta e risco, individualiza o crédito tributário, indicando, para tanto, a sua natureza, a base de cálculo, alíquota e valor a recolher, efetuando, em seguida, o pagamento do montante apurado. Como o lançamento é ato administrativo privativo da administração, o simples fato de o contribuinte apurar e recolher o tributo não significa que houve lançamento tributário, por isso o CTN estabelece que a Fazenda Pública tem o prazo de 5 (cinco) anos para proceder à homologação do crédito tributário. Nessa modalidade, portanto, o simples pagamento do tributo não gera a extinção do crédito tributário, pois o lançamento é procedimento de competência exclusiva do Estado, e não do contribuinte.

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2.1.2.1. Da ilegalidade do art. 3º da lc 118/05 No tópico anterior foi observado que o artigo 165, I, do CTN preceitua que o contribuinte tem o direito à restituição total ou parcial em decorrência de cobrança ou pagamento espontâneo de valores indevidamente pagos, ou a maior que os devidos, em face da legislação tributária aplicável ou da natureza ou circunstâncias materiais do fato gerador efetivamente ocorrido. Deste modo, uma vez caracterizada a hipótese de repetição do indébito, surge a discussão sobre o prazo aplicado, sendo que o art. 168 do CTN determina que o direito de pleitear a restituição extingue-se com o decurso do prazo de 5 (cinco) anos, contados da extinção do crédito tributário. Ocorre que os tributos sujeitos ao lançamento por homologação não se extinguem com o simples pagamento. O que extingue os tributos incluídos nessa espécie de lançamento é a homologação, conforme o teor do art. 150, § 1º, confirmado pelo artigo 156, VII, ambos do CTN. Observe-se que, de acordo com o art. 156, o que extingue o crédito é a combinação dos eventos pagamento e homologação. Portanto, pode-se argüir que o art. 3º da LC 118/2005, ao dispor que o prazo de cinco anos se deve iniciar da data do pagamento antecipado, ofende aos dispositivos do CTN, acima examinados. Conclui-se que as modificações inseridas pela LC 118/2005 violam o conceito de lançamento por homologação, uma vez que extinção do crédito não deve operar-se com o pagamento antecipado, e sim com a homologação.

2.1.2.2. Da inconstitucionalidade do art. 3º da lc 118/2005

Em virtude da natureza da norma contida no artigo 3º da LC 118/2005, de 9 de fevereiro de 2005, ser modificativa, e não interpretativa, como já é de conhecimento do mundo jurídico, o STJ não considerou a possibilidade de esta norma retroagir aos fatos praticados anteriormente à sua vigência, impossibilitando a sua incidência antes de decorridos 120 dias da sua publicação. Há, também, entendimento do STJ no sentido de que a referida norma, além de modificativa, violou o princípio da separação dos Poderes, o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, conforme transcrição a seguir: “TRIBUTÁRIO. PIS. COMPENSAÇÃO. PRAZO PRESCRICIONAL. TRIBUTO SUJEITO A LANÇAMENTO POR HOMOLOGAÇÃO. ORIENTAÇÃO FIRMADA PELA 1ª SEÇÃO DO STJ, NA APRECIAÇÃO DO EREsp 435.835/SC. LC 118/2005: NATUREZA MODIFICATIVA (E NÃO SIMPLESMENTE INTERPRETATIVA) DO SEU ARTIGO 3º. INCONSTITUCIONALIDADE DO SEU ART. 4º, NA PARTE QUE DETERMINA A APLICAÇÃO RETROATIVA. ENTENDIMENTO CONSIGNADO NO VOTO DO EREsp 327.043/DF. 1. A 1ª Seção do STJ, no julgamento do EREsp 435.835/SC, Rel. p/ o acórdão Min. José Delgado, sessão de 24.03.2004, consagrou o entendimento segundo o qual o prazo prescricional para pleitear a restituição de tributos sujeitos a lançamento por homologação é

de cinco anos, contados da data da homologação do lançamento, que, se for tácita, ocorre após cinco anos da realização do fato gerador — sendo irrelevante, para fins de cômputo do prazo prescricional, a causa do indébito. Adota-se o entendimento firmado pela Seção, com ressalva do ponto de vista pessoal, no sentido da subordinação do termo a quo do prazo ao universal princípio da actio nata (voto-vista proferido nos autos do EREsp. 423.994/SC, 1ª Seção, Min. Peçanha Martins, sessão de 08.10.2003). 2. O art. 3º da LC 118/2005, a pretexto de interpretar os arts. 150, § 1º, 160, I, do CTN, conferiu-lhes, na verdade, um sentido e um alcance diferente daquele dado pelo Judiciário. Ainda que defensável a “interpretação” dada, não há como negar que a Lei inovou no plano normativo, pois retirou das disposições interpretadas um dos seus sentidos possíveis, justamente aquele tido como correto pelo STJ, intérprete e guardião da legislação federal. Portanto, o art. 3º da LC 118/2005 só pode ter eficácia prospectiva, incidindo apenas sobre situações que venham a ocorrer a partir da sua vigência. 3. O artigo 4º, segunda parte, da LC 118/2005, que determina a aplicação retroativa do seu art. 3º, para alcançar inclusive fatos passados, ofende o princípio constitucional da autonomia e independência dos poderes (CF, art. 2º) e o da garantia do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada (CF, art. 5º, XXXVI). Ressalva, no particular, do ponto de vista pessoal do relator, no sentido de que cumpre ao órgão fracionário do STJ suscitar o incidente de inconstitucionalidade perante a Corte Especial, nos termos do art. 97 da CF. 4. Em face do princípio da ne reformatio in pejus, há de ser mantida a disposição do acórdão recorrido que reconheceu a prescrição “dos montantes recolhidos até 11/11/94”. 5. Recurso especial a que se nega provimento. (REsp 742743/SP; RECURSO ESPECIAL 2005/0062706-1, Relator (a) Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI (1124), Órgão Julgador T1 - PRIMEIRA TURMA, Data do Julgamento 19/05/2005, Data da Publicação/Fonte DJ 06.06.2005, p. 237). Como observado acima, está claro o entendimento no sentido de que a regra do artigo 3º da LC 118/05 “inovou” no campo jurídico, uma vez que teve o objetivo de modificar entendimento pacífico dos Tribunais. Deste modo viola-se o princípio da separação ou independência dos Poderes, e neste caso a jurisprudência somente pode ser alterada por outro entendimento jurisprudencial, e não pelo Legislativo. Observe que o julgado acima repete o seguinte: “Portanto, o referido dispositivo, por ser inovador no plano das normas, somente pode ser aplicado a situações que venham a ocorrer a partir da vigência da Lei Complementar 118/2005, que ocorrerá 120 dias após a sua publicação (art. 4º), ou seja, no dia 09 de junho de 20057.” Antes da LC 118/2005, a extinção do crédito tributário só ocorria no momento da homologação do lançamento, tácita ou expressamente, e conforme o art. 150, § 4 do CTN, contavam-se 5 (cinco) anos da ocorrência do fato gerador para a homologação do tributo. No caso da homologação tácita, só após 5 (cinco) anos, iniciava-se o prazo prescricional para restituição de tributos. Portanto, pelo sistema anterior, se não ocorresse o pagamento não haveria homologação, o que implicaria na aplicação da regra geral do art. 173,

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I, do CTN, pelo qual a Fazenda Pública teria o prazo de 5 (cinco) anos, contados a partir do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado. Deste modo, se o pagamento, pela nova regra, demarca o início do lapso de tempo para a repetição do indébito, o não pagamento deveria demarcar o início do lapso para que a Fazenda Pública formalizasse a constituição do crédito tributário, já que se tratam de condutas simetricamente antagônicas em relação ao mesmo fato, impondo-se, a partir da Lei Complementar 118/2005, a eliminação da regra dos 5 (cinco) anos mais 5 (cinco) anos, para ambos os casos. A diferença de tratamento para efeito de contagem do prazo para restituição do pagamento indevido em favor do Contribuinte e a contagem do prazo para a constituição do crédito tributário em favor da Fazenda Pública, não apenas fere o princípio da isonomia, posto que o interesse do Estado não prepondera sobre o dos contribuintes, mas também afronta o direito de propriedade e do não-confisco. O direito de propriedade (art. 5º, caput e inciso XII, da Constituição Federal), porque afeta o patrimônio do contribuinte a não possibilidade de ver restituído o valor do tributo pago indevidamente por mais de 5 (cinco) anos, em contrapartida à possibilidade de constituição do crédito tributário no prazo de 10 (dez) anos. A alteração promovida pelo art. 3º da LC 118 apresenta-se inconstitucional, também, pela ofensa ao princípio do não-confisco (art. 150, inciso IV, da Constituição Federal). Nesse sentido, conforme Zanello (2006), o Superior Tribunal de Justiça, ao analisar a irretroatividade da aplicação do novo prazo prescricional de 5 (cinco) anos, manifestou, através de seus Ministros, a inconstitucionalidade da alteração da interpretação daquele Tribunal Superior, quanto à prescrição em 10 (dez) anos, nos Embargos de Divergência em Recurso Especial nº ERE 327043/DF, julgado em 27/04/2005. Registre-se que, no julgamento, não houve decisão pela inconstitucionalidade, porque esta não é a função do STJ, ao qual apenas cabe analisar a legalidade. Entretanto, alguns Ministros reconheceram, em seus votos, a afronta a alguns princípios constitucionais, o que ampara o entendimento de que é defensável a argüição de inconstitucionalidade do dispositivo em questão. Dentre as manifestações apresentadas pelos Ministros no referido julgamento, destaca-se o voto do Ministro Luiz Fux: “...a lei complementar teve o objetivo de modificar a jurisprudência sobre o tema. ‘Camuflou-se a realidade em processo oblíquo cujo único objetivo, ao invés de verdadeiramente interpretar dispositivo legal que justificasse tal providência, foi o de anular, inclusive retroativamente, entendimento jurisprudencial que se mostrava benéfico aos contribuintes e prejudicial aos interesses do fisco’. Ele entende que o artigo 3º da Lei Complementar nº 118 é inconstitucional. Ele sustenta que, ao tentar driblar a jurisprudência consolidada sobre o assunto, o dispositivo incorreu em ‘manifesto desvio de finalidade e abuso de poder legislativo, usurpando a competência do Poder Judiciário (...) em clara violação dos princípios da independência e harmonia dos poderes, segurança jurídica, irretroatividade, boa-fé, moralidade, isonomia e neutralidade da tributação para

fins concorrenciais.” Observe-se que o Ministro Luiz Fux, tam-bém defende a inconstitucionalidade do art. 3º da LC 118/2005, em razão da violação do princípio da segurança jurídica, da harmonia dos poderes, da moralidade e da boa-fé, em razão de a norma ter alterado o entendimento do Judiciário, já consolidado sobre o assunto (ZANELLO, 2006).

2.2.2.3. Da inaplicabilidade da súmula 106 do STJ

De acordo com a nova redação do art. 174 do CTN, inciso I, do parágrafo único, a aplicação da Súmula 106/1994, do STJ, nas execuções fiscais, viola o princípio da legalidade. Note-se que a aplicação da referida Súmula antecedia a LC 118/2005 nas execuções fiscais, quando somente a citação válida teria o efeito de interromper a prescrição, conforme o disposto na redação anterior do artigo 174, parágrafo único, inciso I, do CTN, apesar de o artigo 8º, § 2º, da LEF, prescrever que “o despacho do juiz, que ordenar a citação, interrompe a prescrição”. Entretanto, é matéria pacificada que a supremacia do CTN à LEF baseia-se na hierarquia das normas, de forma que o referido Código, por ter sido recepcionado pela Constituição Federal de 1988 com status de lei complementar, é superior à lei de execução fiscal, cujo status não ultrapassa o de lei ordinária. Neste diapasão, tinha-se que a citação válida poderia interromper a prescrição nos executivos fiscais, o que prejudicava a arrecadação do Estado, devido à morosidade do Judiciário, bem como pela dificuldade de localização do executado. Realmente, mesmo ainda considerando o rito célere no procedimento instituído pela LEF, a Fazenda Pública era prejudicada, em certas situações, tendo em vista que, mesmo com o ajuizamento da execução fiscal muito antes do transcurso do lapso prescricional, o Judiciário demorava em citar o executado, o qual terminava por se beneficiar com a consumação da prescrição. Neste sentido, apesar de tais distorções, e não obstante todas as prerrogativas processuais benéficas à Fazenda Pública, o Superior Tribunal de Justiça passou a aplicar a referida Súmula nas execuções fiscais, conforme o observado em suas jurisprudências: “PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO – EXECUÇÃO FISCAL – EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE – PRESCRIÇÃO – INTERRUPÇÃO – SÚMULA 106/STJ. 1. A jurisprudência desta Corte deixou assentado o entendimento de que a citação é o ato que interrompe a prescrição, mesmo diante da LEF, que atribui ao despacho do juiz tal efeito. 2. Contudo, proposta a ação no prazo fixado para o seu exercício, a demora na citação do devedor por motivos inerentes ao mecanismo da justiça, não justifica a decretação da prescrição - Súmula 106/STJ. Precedentes desta Corte. 3. Recurso especial improvido.” (STJ – RESP 831171/RS – 2ª T., Rel. Min. ELIANA CALMON, DJ DATA:29/06/2006, PÁGINA 193) (destaque ausente no original). Conclusivamente, a concepção da Súmula 106/STJ era a de não prejudicar a parte que não deu

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causa à ocorrência da prescrição. Todavia, observa-se que admitir a aplicabilidade da referida Súmula em detrimento do que estabelece o artigo 174, parágrafo único, inciso I, do CTN implica ofensa ao princípio da estrita legalidade, sobretudo no Direito Tributário. Na atual sistemática do ordenamento jurídico-tributário nacional, é indefensável a prevalência de uma súmula ante o Código Tributário Nacional. Acrescente-se que o Poder Judiciário não é Legislativo e a sua competência é de apenas interpretar e declarar a vontade da lei, sem, contudo substituí-la. Aceita-se que a sua aplicação seria perfeita para as questões cíveis, e não para a esfera tributária. Data vênia, não deveria existir prevalência da Sumula 106/1994, do STJ, tendo em vista a mencionada alteração no CTN, que reduziu substancialmente a consecução da prescrição. Portanto, com a nova redação do CTN, que considera o despacho citatório nas execuções fiscais como causa interruptiva da prescrição, não se deveria continuar aplicando a Súmula 106, o que afronta o princípio da estrita legalidade.

2.2.2.4. Do viés aos princípios básicos da teoria da tributação

A Teoria da Tributação baseia-se em dois princípios fundamentais, o da neutralidade e o da eqüidade. Enquanto, pela neutralidade, os impostos devem distorcer ao mínimo a alocação de recursos, ou devem ser tais que minimizem os possíveis impactos negativos da tributação sobre a eficiência econômica; pela equidade, o ônus tributário deve ser distribuído de forma eqüitativa para toda a sociedade, ou seja, cada contribuinte deve contribuir com uma parcela justa para cobrir os custos do governo. A origem do princípio da eqüidade repousa em Adam Smith, em seu livro The Wealth of the Nations, tendo sido elaborado e elevado à estatura de paradigma por John Stuart Mill (1923). Nas palavras deste autor: “Equity of taxation, therefore, as a maxim of politics, means equality of sacrifice. It means apportioning the contribution of each person towards the expenses of government so that he shall fell neither more nor less inconvenience from his share of payment that every other person experiences from his.” (p.804) Dentro da escola neoclássica, o termo“inconvenience” é traduzido como perda de uti-lidade. Desta forma, o princípio do sacrifício significa perda de bem-estar e, seguindo a idéia original de Stuart Mill, consideramos sacrifício eqüitativo como perda de utilidade em termos absolutos. Do ponto de vista mais amplo, ou seja, ao adequar os tributos aos princípios da Política Fiscal, a teoria da tributação tenta aproximar-se de um sistema tributário ideal, através dos princípios da equidade, progressividade, neutralidade e simplicidade. Como progressividade entende-se que se deve tributar mais a quem tem renda mais alta. Como simplicidade, que o sistema tributário deve ser de fácil compreensão para o contribuinte e de fácil arrecadação para o governo (REZENDE, 2001) Deste modo, a restrição temporal à restituição de tributos recolhidos indevidamente viola o princípio da capacidade contributiva, porque impõe-se a devolução do valor recebido que extrapole tal capacidade. Da mesma forma e por conseqüência, viola o princípio da

neutralidade, por ausência de distribuição eqüitativa do ônus tributário.

3. NOVA LEI DE FALÊNCIAS 11.101/2005 (SÍNTESE)

A nova lei sobre falências, após 12 anos em tramitação no Congresso Nacional, compõe-se por 201 artigos, distribuídos entre 8 Capítulos e suas Seções. O Capítulo I não tem Seção. É composto por 3 artigos, mais o art. 4º (VETADO). Dispõe sobre a inaplicabilidade da lei às empresas públicas e sociedades de economia mista; instituição financeira pública ou privada, cooperativa de crédito, consórcio, entidade de previdência complementar, sociedade operadora de plano de assistência à saúde, sociedade seguradora, sociedade de capitalização e outras entidades legalmente equiparadas às anteriores. O art. 3º dispõe que o juízo do local do principal estabelecimento do devedor ou da filial de firma que tenha sede fora do Brasil é competente para homologar o plano de recuperação extrajudicial, deferir a recuperação judicial ou decretar a falência. O Capítulo II contém as disposições comuns à recuperação judicial e à falência. Estrutura-se em 4 Seções. A Seção 1, composta pelos artigos 5º e 6º, estabelece as linhas gerais da nova Lei. A Seção II, composta pelos artigos 7º até o 20, estabelece o modus faciendi da verificação e da habilitação de créditos. A Seção III abrange os artigos 21 a 34 e instrui sobre os aspectos administrativos, sob o ponto de vista da gestão judicial e do comitê de créditos. A Seção IV (artigos 35 a 46) dispõe sobre diversos aspectos relacionados à Assembléia Geral de Credores. O Capítulo III instrui sobre a recuperação judicial e abrange os artigos 47 a 72, distribuídos por cinco Seções. A Seção I (arts. 47 ao 50) estabelece as disposições gerais. A Seção II, composta pelos artigos 51 e 52, trata dos aspectos processuais sobre o pedido e o processamento da recuperação judicial. A Seção III (arts. 53 e 54) dispõe sobre o plano de recuperação judicial. A Seção IV (arts. 55 a 69) versa sobre os aspectos processuais referentes aos procedimentos de recuperação judicial, sendo importante mencionar que o art. 57 determina que, após a juntada, aos autos, do plano aprovado pela assembléia-geral de credores, ou decorrido o prazo previsto no art. 55 desta Lei, sem objeção de credores, o devedor apresentará certidões negativas de débitos tributários nos termos dos arts. 151, 205, 206 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 - CTN; e o artigo 59 prevê que o plano de recuperação judicial implica novação dos créditos anteriores ao pedido e obriga o devedor e todos os credores a ele sujeitos, sem prejuízo das garantias, observado o disposto no § 1º do art. 50 da nova lei. O § 1º do artigo 59, por sua vez, estabelece que a decisão judicial que conceder a recu-peração judicial constituirá título executivo judicial, nos termos do art. 584, inciso III, do caput da lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil. A Seção V (arts. 70 a 72), dispõe sobre o plano de recuperação judicial para microempresas e empresas de pequeno porte. O Capítulo IV, que também não tem Seção, dispõe sobre a convolação da recuperação judicial em falência. Abrange os artigos 73 e 74. O Capítulo V instrui sobre a falência e abrange

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os artigos 75 a 160, dispostos em 12 Seções. A Seção I compõe-se dos artigos 75 a 82, que estabelecem as disposições gerais. A Seção II discorre sobre a classificação dos créditos, estabelecida nos artigos 83 e 84, com destaque para os créditos com privilégios especiais (inciso IV, alínea “a”, art. 83) a saber: os previstos nº art. 964 da lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002; e para os créditos com privilégio geral (inciso V, alínea “a”, art. 83), ou seja, os previstos no art. 965 da lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. A Seção III (arts. 85 a 93) dispõe sobre o pedido de restituição em dinheiro, com destaque para o Inciso II do artigo 86, que estabelece a restituição da importância entregue ao devedor, em moeda corrente nacional, decorrente de adiantamento a contrato de câmbio para exportação, na forma do art. 75, §§ 3º e 4º, da Lei nº 4.728, de 14 de julho de 1965, desde que o prazo total da operação, inclusive eventuais prorrogações, não exceda o previsto nas normas específicas da autoridade competente. A Seção IV (arts. 94 a 101) estabelece os aspectos processuais referentes aos procedimentos para a declaração da falência. A Seção V (arts. 102 a 104) dispõe sobre os aspectos da inabilitação empresarial, direitos e deveres do falido. A Seção VI (arts. 105 a 107) versa sobre os aspectos da falência requerida pelo próprio devedor. A Seção VII (arts. 108 a 114) discorre sobre os aspectos relacionados com a arrecadação e a custódia dos bens. A Seção VIII (arts. 115 a 128) estabelece os efeitos da decretação da falência sobre as obrigações do devedor. A Seção IX (arts. 129 a 138) estabelece os aspectos definitórios da ineficácia e da revogação dos atos praticados antes da falência, com destaque para o artigo 134, dispondo que a ação revocatória correrá perante o juízo da falência e obedecerá ao procedimento ordinário previsto na Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - CPC. A Seção X (arts. 139 a 148) dispõe sobre a realização do Ativo, com destaque para o artigo 142, inciso III, § 3º, que determina que, no leilão por lances orais, aplicam-se, no que couber, as regras da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - CPC. A Seção XI (arts. 149 a 153) instrui sobre os pagamentos aos credores; e a Seção XII (arts. 154 a 160) dispõe sobre o encerramento da falência e extinção das obrigações do falido. O Capítulo VI (arts. 161 a 167) também não tem Seção. Disciplina a recuperação judicial, com destaque para o § 6º do artigo 161, que estabelece que a sentença de homologação do plano de recuperação extrajudicial constituirá título executivo judicial, nos termos do art. 584, inciso III, da lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - CPC. O Capítulo VII estabelece as disposições penais (arts. 168 a 188), distribuídas por 3 Seções. A Seção I (arts. 168 a 178) define as penas para os crimes em espécie e para as fraudes aos credores. A Seção II (arts. 179 a 182) estabelece as disposições comuns, com destaque para o artigo 182, dispondo que a prescrição dos crimes previstos nesta

lei reger-se-á pelas disposições do decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, começando a correr do dia da decretação da falência, da concessão da recuperação judicial ou da homologação do plano de recuperação extrajudicial. A Seção III (arts. 183 a 188) instrui sobre os aspectos processuais relativos ao procedimento penal, com destaque para o artigo 185, determinando que, uma vez recebida a denúncia ou a queixa, observar-se-á o rito previsto nos arts. 531 a 540 do decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 - CPP, merecendo destaque, também, o artigo 187, § 1º, segundo o qual o prazo para oferecimento da denúncia regula-se pelo art. 46 do CPP, salvo se o Ministério Público, estando o réu solto ou afiançado, decidir aguardar a apresentação da exposição circunstanciada de que trata o art. 186 desta lei, devendo, em seguida, oferecer a denúncia em 15 (quinze) dias. O Capítulo VIII (arts. 189 a 201) contém as disposições finais e transitórias, com destaque para os seguintes artigos: o 189, segundo o qual aplica-se o CPC, no que couber, aos procedimentos previstos nesta lei; o 192, segundo o qual a Nova Lei de Falência não se aplica aos processos de falência ou de concordata ajuizados anteriormente ao início de sua vigência, que serão concluídos nos termos do decreto-lei nº 7.661, de 21 de junho de 1945, destacando-se, também, os parágrafos 4º e 5º do artigo 192. O § 4º dispõe que a Nova Lei de Falências aplica-se às falências decretadas em sua vigência, resultantes de convolação de concordatas ou de pedidos de falência anteriores, às quais se aplica, até a decretação, o decreto-lei nº 7.661, de 21 de junho de 1945, observado-se, na decisão que decretar a falência, o disposto no art. 99 desta lei. O § 5º, incluído pela lei nº 11.127/05, dispõe que o juiz poderá autorizar a locação ou arrendamento de bens imóveis ou móveis, a fim de evitar a sua deterioração, cujos resultados reverterão em favor da massa. Segundo o art. 197, enquanto não forem aprovadas as respectivas leis específicas, a Nova Lei de Falências aplica-se subsidiariamente, no que couber, aos regimes previstos no decreto-lei nº 73, de 21 de novembro de 1966, na lei nº 6.024, de 13 de março de 1974, no decreto-lei nº 2.321, de 25 de fevereiro de 1987, e na lei no 9.514, de 20 de novembro de 1997. De acordo com o art. 199, não se aplica o disposto no art. 198 da Nova Lei de Falências às sociedades a que se refere o art. 187 da lei no 7.565, de 19 de dezembro de 1986. Ainda no artigo 199, destacam-se os § 1º, 2º e 3º. O § 1º determina que na recuperação judicial e na falência das sociedades de que trata o caput deste artigo, em nenhuma hipótese ficará suspenso o exercício de direitos derivados de contratos de locação, arrendamento mercantil ou de qualquer outra modalidade de arrendamento de aeronaves ou de suas partes (renumeração do parágrafo único, com nova redação, pela lei nº 11.196, de 2005). O § 2º determina que os créditos decorrentes dos contratos mencionados no § 1º deste artigo não se submeterão aos efeitos da recuperação judicial ou extrajudicial, prevalecendo os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, não se lhes aplicando a ressalva contida na parte final do § 3º do art. 49 desta lei. (Incluído pela lei nº 11.196, de 2005). Por fim, o § 3º (Incluído pela lei nº 11.196,

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de 2005) determina que, na hipótese de falência das sociedades de que trata o caput deste artigo, prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa relativos a contratos de locação, de arrendamento mercantil ou de qualquer outra modalidade de arrendamento de aeronaves ou de suas partes. Concluindo, o artigo 200 dispõe que ressalvado o disposto no art. 192 desta lei, ficam revogados o decreto-lei no 7.661, de 21 de junho de 1945, e os arts. 503 a 512 do decreto-lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 – CPP; e o artigo 201 estabelece a vigência da Nova Lei em 120 dias após a publicação.

4 . DA RACIONALIDADE ECONÔMICA DA NLF E OS IMPACTOS NA ECONOMIA.

A nova lei que regula o processo de falência foi aprovada objetivando criar condições para que os problemas de insolvência tenham soluções previsíveis, céleres e transparentes, de modo que os valores dos ativos circulantes e imobilizados, tangíveis e intangíveis, sejam preservados e continuem cumprindo sua função social. A essência da referida lei está em minimizar os impactos de insolvências individuais sobre a economia como um todo e, dessa forma, limitar prejuízos gerais e particulares e buscar resultados econômicos eficientes. Não obstante, diversos fatores de complicação são intrínsecos à reforma de uma Lei de Falências. Além da dificuldade natural do processo político, não há convergência de opiniões, na literatura econômica, sobre o procedimento falimentar ótimo, especialmente no que concerne à conveniência, ou não, de violação das regras de prioridade absoluta. Na ausência de uma lei reguladora dos processos falimentares, os credores dispõem de dois procedimentos legais: primeiro, para créditos segurados, os titulares do crédito podem absorver os ativos da empresa; segundo, para créditos não-segurados, os credores podem pedir à Justiça a venda dos ativos da empresa, a fim de reaverem seus direitos. Entretanto, esse procedimento apresenta problemas quando existem muitos credores e quando os ativos não cobrem as obrigações contratuais. Nesse caso, cada credor, agindo de acordo com seu próprio interesse, tentará recuperar seus direitos o mais rápido possível. Essa corrida desordenada pode levar a um desmantelamento ineficiente dos ativos da empresa, interrompendo o seu funcionamento e, provavelmente, forçando-a a fechar as portas, mesmo quando o melhor uso de seus ativos seria continuar operando. Tal falta de coordenação acaba por gerar uma perda de valor para todos os credores e, possivelmente, uma perda de bem-estar para a sociedade, no caso de a empresa ser economicamente eficiente. Dada essa situação, é de interesse coletivo que a disposição dos ativos da empresa devedora seja feita de forma ordenada, via procedimento de falência. Na literatura de bancarrota, Jackson (1986) foi o primeiro a alertar para esse tipo de problema, chamado de common pool. (COSTA ET AL, 2006).

4.1. A experiência internacional e brasileira

Segundo o que se vem observando em outros países, não há um arcabouço falimentar que possa ser considerado como padrão universal. Ao contrário,

a evidência mostra que os países adotam legislações falimentares particulares, adaptadas ao contexto econômico, empresarial, jurídico e cultural local, sendo que a influência conjunta de todos esses fatores limita a possibilidade de existência de um ordenamento homogêneo (Insolvency and Restructuring, 2003). Destarte, mesmo a classificação por orientação, no passado mais claramente identificável como pró-devedor ou pró-credor, se tornou prejudicada, tendo em vista a complexidade que os sistemas modernos assumiram e os diversos aspectos intrínsecos a cada estrutura particular. Deste modo, a comparação dos modelos americano e inglês, por exemplo, permite ilustrar esse ponto. Embora ambos tenham como origem jurídica o sistema legal anglo-saxão, com forte tradição na proteção dos direitos de propriedade e respeito às garantias, eles apresentam, entre si, diferenças profundas na orientação geral. O regime falimentar norte-americano é regido pelos Capítulos 7 e 11 do Código de Insolvências dos Estados Unidos, que procura balancear a relação entre credores e devedor. A regulação americana estimula a recuperação da empresa, desde que sob direta supervisão dos credores, que passam a ter papel ativo na aprovação dos termos da sua reorganização. O devedor tem a possibilidade de apresentar aos seus credores um plano de reabilitação, propondo a reestruturação de sua dívida, como forma de garantir o soerguimento da empresa. Esse plano é discutido com os credores, que se organizam em comitês, para analisar a situação financeira da empresa e deliberar sobre o plano. Se ele for aprovado, a empresa continua funcionando, sob as condições estabelecidas no plano. Caso não seja aprovado, o processo é convertido em falência e se procede à liquidação dos ativos. Se, por um lado, o processo de recuperação americano tem inspiração nos modelos pró-devedor, pois incentiva a continuidade da empresa, mesmo que conte com a governança dos credores, no instituto da liquidação a lógica se inverte. A alienação dos ativos é estimulada, de forma a maximizar a receita com sua venda, proporcionando o melhor resultado possível para os credores. Na distribuição da arrecadação, também se evidencia a preocupação com a proteção dos credores: recebem em primeiro lugar os credores com garantias reais, em seguida as chamadas despesas extraconcursais, créditos trabalhistas referentes a, no máximo, 90 dias anteriores à decretação da falência (limitados a US$ 4 mil por trabalhador), demais credores e, por fim, os créditos tributários (COSTA, OP CIT, 2006). Conforme os referidos autores, até a década de 90, quando vários países partiram para a reforma dos seus sistemas de insolvência, podiam-se identificar duas tendências distintas em relação à natureza do regime falimentar, vinculadas, principalmente, à origem de seus sistemas jurídicos. Enquanto os países de origem anglo-saxã reforçavam a posição dos credores nas suas legislações falimentares, aqueles com tradição jurídica baseada no direito romano geralmente inclinavam-se para o lado dos devedores, com sistemas caracterizados por reduzida proteção ao crédito e baixa participação dos credores nos processos de resolução da insolvência. No cone Sul, a forte crise econômico-financeira latino-americana durante a década de 1980 serviu para alertar que muitos países da região precisavam reformar

168

a legislação sobre falências. A partir dessa crise regional, Bergoeing et al. (2002) examinaram os motivos que diferenciaram as recuperações pós-crise vivenciadas pelas economias mexicana e chilena. Um importante fator explicativo para tal fato referia-se à qualidade de suas legislações falimentares. O governo do Chile empreendeu, em 1978, reformas administrativas na gestão dos serviços de falência e, adicionalmente, em 1982, a reforma da Lei de Falências definiu claramente os direitos de cada credor e substituiu administradores públicos por privados. A antiga lei não proporcionava uma administração eficiente e dinâmica, uma vez que os administradores públicos eram mal remunerados, e o processo, altamente burocrático. Por sua vez, no México, de forma diferente, ainda vigorava uma lei de falências obsoleta e de difícil uso, aprovada em 1943, que demonstrava ser insuficiente para responder, efetivamente, aos problemas gerados pela crise econômica, sendo substituída apenas em 2000. Assim, apesar das muitas semelhanças nas condições iniciais das duas economias – como apreciação da taxa de câmbio real, grandes déficits em conta corrente, inflação e fragilidade do setor bancário –, a reforma nos procedimentos de bancarrota empreendida pelo governo chileno repercutiu, com efeitos positivos, no incentivo à acumulação e na eficiência alocativa do capital. Ambos os efeitos são de alta relevância para explicar que a diferença nas trajetórias de recuperação ocorreu principalmente devido à reforma na Lei de Falências chilena. No Brasil, o antigo regime de insolvência aprovado em 1945 não era mais consistente com a dinâmica da economia brasileira atual, e nem atendia às expectativas do empresariado nacional. A antiga legislação falimentar brasileira era bastante fragmentada e regulava, desde 1945, tanto os procedimentos de liquidação (falência), quanto a reorganização (concordata) das firmas comerciais. Empresas estatais e companhias de capital público-privado estiveram excluídas desse procedimento de bancarrota até 31 de outubro de 2001, quando uma modificação permitiu a falência das companhias de capital misto. Observa-se que, apesar de atender a ambos os procedimentos e de buscar a prevenção ou evitar a liquidação das firmas, no mundo real, a Lei de Falência anterior demonstrou ser inoperante, tanto no que se refere à maximização do valor dos ativos quanto na proteção dos direitos dos credores em caso de liquidação, além de apresentar falhas na reabilitação de empresas economicamente viáveis que estivessem passando por dificuldades financeiras, uma vez que a concordata apenas dilatava (em até dois anos) o prazo de pagamento de dívidas sem garantia real, não abrangendo as dívidas colateralizadas. Acrescente-se que, no Brasil, o processo de insolvência, pela legislação anterior, era muito demorado, levando, em média, dez anos para se ter todo o procedimento concluído, sendo o mais lento do mundo, muito maior do que a média da América Latina.

GRÁFICO 1: Tempo médio gasto no procedimento de insolvência por país ou região

Grupos de países: Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), América Latina e Caribe (ALC), Oriente Médio e Norte da África (OMNA), Europa e Ásia Central (EAC), Leste Asiático e Pacífico (LAP), Sul Asiático (SAS) e África Subsaariana (ASS).

Fonte: Closing Business (BANCO MUNDIAL, 2004a).

Com efeito, mudanças na legislação de falência devem, portanto, ser realizadas levando em consideração seus impactos não apenas nas empresas que venham a se tornar insolventes. O mecanismo de incentivos que a lei gera é fundamental para definir o comportamento dos agentes e o funcionamento de toda a economia, pois afeta os resultados (pay-offs) esperados em caso de insucesso. A elaboração da nova Lei de Falências e Recuperação

OCDE EAC LAP ASS ALC OMNA SAS Brasil

12

10

8

6

4

2

0

Países ou regiões

(Em anos)

169

de Empresas brasileiras procurou alinhar esses incentivos, de modo a oferecer ao País um sistema de insolvências equilibrado e eficiente. Compartilhamos com essa lógica econômica defendida por uma corrente de especialistas em sistemas de falências cujos trabalhos recentes reproduzimos na presente análise. Dentre os especialistas destacam-se os trabalhos de Bergoing, Kehoe, Soto Corbo e Fischer, Lisboa, Damazo, Carraza, Costa, La Porta, Dubey, Geanakopolous e Shubick, Araújo & Lundberg. Deste modo, segundo Araújo & Lundberg, na prática, em uma economia capitalista, a punição de empresa inadimplente é materializada através da falência ou, na melhor das hipóteses, via constrangimento de diferentes formas de concordata, salvamento ou reestruturação empresarial. A presença desses mecanismos de depuração do sistema econômico é absolutamente essencial para aumentar a eficiência e produtividade da economia. Como ressaltado em Araújo (ver igualmente Dubey, Geanakopolous e Shubick) a imposição da penalidade correta em caso de inadimplência é também fundamental para o bom funcionamento dos mercados de créditos (ver gráfico a seguir).

Gráfico 2: Equilíbrio de Arrow-Debreu

λ = 0 Mercado financeiro colapsaλ = ∞ Ninguém vai à bancarrota: demasiada restrição ao crédito.

No gráfico, a fronteira externa representa o conjunto das alocações de bens da economia que são ótimos de Pareto, ou seja, que podem ser alcançadas quando os mercados são completos. Como sabemos, os ótimos de Pareto são as alocações que não permitem melhora de bem-estar para todos os membros da economia. Isto é, quando a economia possui uma estrutura de mercados financeiros suficientemente ricos para permitir aos agentes econômicos a transferência de recursos entre os estados da natureza segundo a escassez relativa. Nesta situação, quanto maior for a penalidade para os devedores melhor estará a sociedade. Esta, talvez seja a situação que La Porta et al imaginaram em seu trabalho. Contudo, a situação descrita na parte interna à curva é mais realista. Nela, os mercados financeiros não são completos, por suposição. Isto, devido ao problema de informação assimétrica como o do “azar moral”, quando o retorno dos ativos depende dos esforços alocados, e o da seleção adversa ou mesmo pela incapacidade de se prever todas as eventualidades possíveis. Desta forma, os agentes econômicos ficam tolhidos em fazer todas as transferências entre os estados da natureza desejáveis. Como conseqüência, para aumentar o bem estar econômico, através de instituições como o judiciário e o legislativo, a sociedade deve prover o equilíbrio entre os credores e devedores permitindo algum tipo de inadimplência. Esta tarefa é muito sofisticada e poucas sociedades têm conseguido alcançá-la com êxito. Quando se pune com rigor exagerado os inadimplentes, como no caso de prisão

Equilíbrio de Arrow-Debreu

Conjunto de ÓtimosDe Pareto

170

ou mesmo de escravidão, verificados no passado, estamos penalizando em demasia os potenciais devedores e, desta forma, restringindo o mercado de crédito. Este talvez seja o caso que ocorria na Inglaterra quando o representante dos credores (receiver) tinha poderes exorbitantes. Tal situação pode levar ao fechamento de firmas saudáveis, com meros problemas de liquidez e não de solvência propriamente dita. No outro extremo, temos a situação de países com tradição no código napoleônico, onde a tolerância com os devedores é demasiada. Este é o caso dos países da América Latina e de muitos outros países, como a Alemanha, que tinha, até recentemente, uma lei da época de Bismarck, bem como da Holanda e países da Escandinávia, que também estão modificando sua legislação (ARAÚJO & LUNDERG, 2005). A legislação americana, particularmente em seu capítulo 11, que trata da recuperação empresarial, tem despertado grande interesse, inclusive tem sido motivo de inspiração para outros países, como o México, a Argentina e a maior parte da Ásia. Neste modelo, tenta-se criar as condições de uma barganha estruturada entre devedores e credores, com o objetivo de maximizar o valor da firma através da adoção de um plano de recuperação empresarial que, embora proposto pela gerência da firma devedora, tem que ser aprovado por maioria de cada uma das classes de credores. Somente no caso de impasse, o Juiz pode determinar o chamado cramdown, ou seja, forçar uma das classes de credores minoritários a seguir a maioria. Embora seja criticada por muitos, por ser custosa e demasiado leniente com os devedores, ela tem sido exitosa em muitas situações. Note-se, todavia, que alguns autores isolados, como D. Baird e Rasmussen, acham que existe um esvaziamento do processo de barganha no modelo do capítulo 11 norte-americano, o que de certa forma é bom, pois o processo ganha em agilidade. Um trabalho que foi conduzido pelo Banco Mundial, baseado em pesquisa sobre processos de falência de vários países, mostra, como era de se esperar, do ponto de vista teórico, uma forte correlação negativa entre qualidade do processo de falência, quando medida pela duração e expectativa de recuperação de crédito na massa falida, e taxa de juros. Existem abordagens alternativas à lei de recuperação de empresas e falência tradicionais de autoria de vários autores, como Beb Chuck e Hart, dentre outros referidos abaixo. Nestas abordagens é sugerido que a empresa seja transferida, em caso de inadimplência, para os credores, o que resolveria o complexo problema de barganha entre as partes. Alguns elementos destas idéias foram incorporados em algumas legislações recentes de alguns países.

Os autores Araújo e Lundberg enfatizam, ainda, que, do ponto de vista econômico, um bom mecanismo de recuperação de empresas e falência não depende só de boas leis, mas também do Poder Judiciário. Nessa perspectiva, ressaltam o trabalho de Armando Castelar, o qual aponta um componente discricionário por parte do referido Poder. Como é notório, o Brasil é um dos países com as mais altas taxas de juros sobre empréstimos e onde o crédito só representa 26% do PIB. Esta situação, que não favorece o desenvolvimento de novas empresas e a boa utilização do capital, tem várias origens. Uma das mais importantes é, sem dúvida, a alta necessidade de financiamento do setor público, que absorve boa parte da poupança interna. Contudo, existem vários outros fatores explicativos, entre os quais a capacidade do credor reaver o crédito em caso de inadimplência do devedor, conforme se pode observar a partir das diferenças entre as taxas de juros e o montante das várias modalidades de crédito. Por exemplo, a existência de mecanismos adequados de recuperação de crédito explica a menor taxa de juros e o alto volume de crédito, no caso dos financiamentos a veículos, comparativamente ao que se verifica no crédito pessoal, cheque especial e conta garantida. No caso específico do setor empresarial brasileiro, vital para o processo de crescimento econômico e geração de emprego, a antiga legislação de falências (1945) era um importante entrave ao crédito e causa de perpetuação do funcionamento de empresas inadimplentes. Em função de institutos dessa antiga legislação, a mecânica básica do sistema creditício nacional processava-se da seguinte forma: bancos e outros agentes faziam créditos moderados às firmas sadias. Ao menor sintoma de dificuldades financeiras, os credores procuravam reduzir seus créditos e as firmas a atrasar o pagamento de impostos. Em resposta, os credores ficavam ainda mais receosos de não reaver seus créditos, pois em caso de liquidação da firma, eram os últimos a receber, dada a prioridade dos créditos trabalhistas e fiscais na falência. Isto implicava uma redução ainda mais drástica dos créditos, inclusive execução de garantias, enquanto as firmas tendiam a atrasar ainda mais os impostos, até tornarem-se totalmente desprovidas de crédito, ficando em situação extremamente frágil. Os credores porventura restantes não se atreviam a pedir a falência da firma, em função da mesma prioridade, já apontada, da Lei de Falências, enquanto o fisco, devido a várias razões, também não o fazia (ARAÚJO & LUNDBERG, 2005). Dentre as principais distorções econômicas geradas pela antiga Lei de Falência brasileira, e que justificaram a aprovação do Novo Instituto de

171

recuperação de empresas estão: a) prioridades trabalhista e fiscal que tornavam a atividade creditícia desinteressante e contribuía para a continuidade operacional de um grande número de empresas ineficientes, com grande acúmulo de dívidas fiscais e baixa capacidade operacional; b) má gestão dos processos de concordata e de liquidação devido ao afastamento de credores, como bancos e fornecedores, que poderiam desempenhar papel importante quanto a exigências de rapidez e transparência; c) a regra de sucessão tributária na venda de ativos por parte de empresas falidas ou em dificuldades, aviltando o valor ou tornando impossível a sua alienação; d) desenho inadequado da recuperação judicial de empresas, dada a limitação da concordata, enquanto espaço de negociação entre credores e devedores; e e) problemas de coordenação entre credores na recuperação informal de empresas, devido à exigência da unanimidade. Com efeito, a partir da instituição da Novel Lei de Falências, observam-se diversos aspectos positivos, como a tendência de redução dos pedidos de concordata e dos deferimentos de falência8, redução da restrição dos ativos em execuções fiscais, dos encargos financeiros, fim da restrição ao crédito em razão dos títulos protestados, instituição do comitê de créditos e do administrador judicial, “profissional idôneo, preferencialmente advogado, economista, administrador de empresa, contador ou pessoa jurídica especializada” (espécie de “amicus curiae”). A Nova Lei, ao introduzir os institutos da recuperação judicial e extrajudicial e acabar com a concordata, abre para a empresa em situação pré-falimentar a possibilidade de optar pela reestruturação econômico-financeira, cujos encargos sociais, trabalhistas e tributários subordinavam a maioria das empresas à Fazenda Nacional, como seu maior credor. Nesta perspectiva, a nova Lei surge para não executar, de um lado, prematuramente, a “galinha dos ovos de ouro”, e não restringir a organização econômica do País a um capitalismo sem empresas; de outro, ao incentivar a recuperação judicial e extrajudicial, a Lei preserva a função social das organizações empresariais como geradoras de bens, serviços, empregos e rendas. Foi nesta linha que o juiz Alexandre Lazzarini, à luz dos novos institutos de recuperação judicial, resolveu a crise financeira da Parmalat Alimentos, com a aprovação da sua capitalização, mudança do controle societário e ajuste do pagamento aos credores, mantendo viva a empresa, preservando cerca de 70 mil empregos diretos e indiretos e estimulando a

atividade econômica, o que caracteriza a Parmalat Alimentos como o primeiro grande sucesso da Nova Lei de Falências. Todavia, nem tudo são flores na Nova Lei. Há, por exemplo, indicativos de excesso de protecionismo ao setor financeiro, sistema bancário, excluído do conjunto dos que podem responder processos falimentares ou de recuperação judicial, em razão do artigo 2o, II, cabendo-lhe, tão-somente, subordinar-se ao sistema de liquidação extrajudicial, sob a égide do BACEN.

4.2. Críticas à nlf: a questão do crédito e das garantias reais

Apesar do esforço e da competência de todos que contribuíram para a instituição da Nova Lei de Falências, o novo diploma legal parece revelar-se um instituto de difícil uso. A técnica legislativa, segundo os especialistas do direito falimentar, não é muito refinada, o que dificulta a interpretação das normas jurídicas. E a lógica do processo de negociação, que caracteriza a recuperação judicial, é estranha aos profissionais do direito falimentar, mais acostumados ao processo litigioso. Segundo Cramer (2006), na recuperação judicial, chama a atenção a ausência de previsão para que os credores apresentem um plano alternativo ao plano da empresa. O artigo 56, parágrafo 3º, da lei prevê, na sua literalidade, que os credores podem propor alterações ao plano da empresa, que, por sua vez, poderá aceitá-las ou não. Segundo a melhor interpretação, a palavra “alterações”, contida nesse dispositivo, significa não só uma mera modificação, mas uma modificação completa, isto é, um outro plano, completamente diverso do plano da empresa. E esse plano alternativo não precisa receber a aceitação da empresa para ser aprovado. Os credores, e apenas eles, devem decidir qual plano deve ser aprovado: o alternativo ou o da empresa. Se os credores podem, sozinhos, recusar o plano da empresa, não há sentido para impedir que, também sozinhos, possam aprovar o plano alternativo. Eis uma questão que se impõe: à exceção da hipótese do artigo 58, que prevê uma situação especial, poderá o juiz homologar o plano de recuperação não aprovado pelos credores? Segundo Cramer, renomado doutrinador sobre direito falimentar, há quem defenda que, se forem constatados a viabilidade da empresa e o exercício irregular do direito de voto dos credores que desaprovaram o plano de recuperação, o juiz poderá, sim, homologar o plano e conceder a recuperação judicial. Essa decisão seria dada com fundamento no artigo 47, que expressa os ideais da Nova Lei, e com base no princípio da preservação da empresa viável, que alguns entendem previsto implicitamente

172

no artigo 170 da CF. Embora inspirada no famoso “Chapter Eleven” do direito americano, a Novel Lei não abrange os credores tributários e alguns credores com garantia real (os chamados credores proprietários) – e é neste ponto que o legislador perdeu uma excelente oportunidade de realmente ousar. O Brasil é um dos raros países onde a execução das garantias reais de uma operação de crédito não funciona na falência exatamente num momento de maior necessidade, quando a firma se mostra incapaz de honrar seus compromissos. A principal explicação para isso é a prioridade da Fazenda Pública, contida no CTN (lei 5.172/66), segundo o qual “O crédito tributário prefere a qualquer outro, seja qual for a natureza ou o tempo de constituição deste, ressalvados os créditos decorrentes da legislação do trabalho (art. 186, CTN). Acrescente-se que, como para reafirmar essa prioridade, o artigo seguinte (187) estabelece que a Fazenda Nacional não se sujeita a concurso de credores ou qualquer forma de habilitação judicial. Entretanto, este art. 187 do CTN é o que justifica a não participação do fisco em processos falimentares. Assim, ao invés de reforçar e ajudar a Fazenda Pública a receber seus créditos, o art. 187 opera contrariamente aos interesses do Estado. Isto é, a Fazenda Nacional tem a prioridade, mas não exerce efetivamente essa prioridade. Esta é uma prioridade muito forte e marcante, pois ela é absoluta, não se referindo tão-somente ao processo de falências. Um credor detentor de uma garantia real pode, a qualquer momento, em função de dívidas tributárias da empresa devedora, perder seu direito colateral a favor do fisco, mesmo não havendo formalmente um processo falimentar9. Ao contrário do que ocorre no Brasil, em um grande número de países não existe a prioridade da Fazenda Nacional e, assim, os credores com garantia real recebem, em casos de falência, sempre à frente dos demais. É o que prevalece na grande maioria dos países, conforme se pode ver na Tabela a seguir, contemplando 36 países10.

173

Fonte: Insolvency & Restructuring – Getting the Deal Through series – London: Law Business Research Ltd., 2003

PAISES PRIORIDADE NA FALÊNCIA

1 2 3 4

Alemanha Créd. c/Gar. Real Extra-concursais

Austrália Créd. c/Gar. Real Extra-concursais Salários atrasados

Áustria Créd. c/Gar. Real Extra-concursais

Bélgica Créd. c/Gar. Real Extra-concursais Fisco e Prev. Social

Bermudas Créd. c/Gar. Real Salários e Encargos(alguns)

Extra-concursais Créditos Fiscais

Brasil Créditos Trabalhistas Créditos Fiscais Extra-concursais Créd. c/Gar. Real

Bulgária Créd. c/Gar. Real Extra-concursais

Canadá Créd. c/Gar. Real Extra-concursais Salários Atrasados

(limitados)

Créditos Fiscais

China Créd. c/Gar. Real Extra-concursais Créd. Trabalhistas (em

algumas regiões estes recebemantes dos extra-concursais)

Créditos Fiscais

Coréia Créd. c/Gar. Real Extra-concursais

Escócia Créd. c/Gar. Real Extra-concursais Créditos Fiscais Créd. Trabalhistas

Eslováquia Créd. c/Gar. Real Extra-concursais (inclusive

eventuais 3 salários atrasados)

Espanha Salários (últimos 30

dias até 2 salários

mínimos)

Créditos Fiscais Créd. c/Gar. Real

Estados Unidos Créd. c/Gar. Real Extra-concursais Créd. Trabalhistas(limatados)

Créditos Fiscais (até 3

anos antes da falência)

Estônia Extra-Concursais Créd. c/Gar. Real Créd. Trabalhistas Impostos em atraso

Finlândia Créd. c/Gar. Real Extra-concursais

França Salários em atraso Extra-concursais Créd. c/Gar. Real

Holanda Créd. c/Gar. Real Extra-concursais Créditos Fiscais Créd. Trabalhistas

Hong Kong Extra-concursais Créd. c/Gar. Real Créditos Trabalhistas Fiscais (alguns associados

a fundos trabalhistas)

Hungria Extra-concursais Créd. c/Gar. Real Créd. Alimentícios Créd. Trabalhistas

Créd. TrabalhistasInglaterra Créd. c/Gar. Real Extra-concursais Fisco e Prev. Social

Irlanda Créd. c/Gar. Real Créd. Trabalhistas

Israel Créd. c/Gar. Real Extra-concursais Créd. Trabalhistas(limatados)

Créditos Fiscais (idem)

Itália Extra-concursais Fiscais e Trabalhistas(mediante ações de apreensão

judicial)

Créd. c/Gar. Real

Japão Créd. c/Gar. Real Extra-concursais Créd. Trabalhistas

Malásia Créd. c/Gar. Real Extra-concursais Créd. Trabalhistas Créditos Fiscais

Polônia Créd. Fiscais Extra-concursais – dívidas

ativas c/garantia na data dafalência (até 50% do valor da

venda do ativo garantido)

Créd. c/Gar. Real

Portugal Créd. c/Gar. Real Créd. Trabalhistas Extra-concursais Créditos Fiscais

Rússia Extra-concursais Créd. Trabalhistas Créd. c/Gar. Real Créditos Fiscais

Singapura Créd. c/Gar. Real Extra-concursais Créd. Trabalhistas(limatados)

Suécia Extra-concursais Créd. c/Gar. Real Créditos Fiscais Créd. Trabalhistas

Suiça Créd. c/Gar. Real Extra-concursais Créd. Trabalhistas(limatados)

Tailândia Extra-concursais Créd. c/Gar. Real Créd. Trabalhistas

Tcheca. Repúbl. Créd. c/Gar. Real Extra-concursais Créd. Trabalhistas

Vietnã Extra-concursais Créd. c/Gar. Real Créd. Trabalhistas Créditos Fiscais

(limatados)

Créditos Fiscais (limatados)

174

A existência dessa prioridade da Fazenda Pública realmente enfraquece e até coloca em dúvida o mecanismo da entrega de bens em garantia real de obrigações, aumentando o risco de quase todas as operações de crédito a pessoas jurídicas, efetuadas pelo sistema financeiro nacional. Afinal, a exemplo do que ocorre em qualquer país do mundo, os bancos e instituições financeiras não querem ser sócios de seus clientes, razão pela qual as operações de crédito são normalmente cobertas com algum tipo de garantia real, a começar por uma simples operação de desconto de duplicatas. Em conjunto com a morosidade e deficiências do nosso sistema judicial, a prioridade do fisco sobre o crédito com garantia real ajuda a entender porque o crédito bancário ao setor produtivo, no Brasil, é tão mais caro e escasso do que em outros países.

5. CONCLUSÃO

Do exposto pela LC 118/2005, referente às alterações e acréscimos ao CTN, analisados neste trabalho, conclui-se que, para os tributos submetidos ao lançamento por homologação, uma forte corrente doutrinária e jurisprudencial defende a conjugação dos arts. 150 e 173 do CTN, o que termina por elevar o prazo para pleitear a restituição para além de 10 (dez) anos. Com o objetivo de afastar entendimentos desta espécie, a LC 118/2005, estabeleceu que para efeito de interpretação do inciso I do art. 168 do Código Tributário Nacional, a extinção do crédito tributário ocorre, no caso de tributo sujeito a lançamento por homologação, no momento do pagamento antecipado de que trata o art. 150, § 1º, do próprio Código. Assim, procurou-se, por via legislativa, reafirmar a premissa clássica de contagem do prazo (de cinco anos) para restituição a partir do pagamento indevido, seja caracterizado como antecipado ou não. Por outro lado, em relação à interrupção da prescrição tributária (art. 174, parágrafo único, do CTN, a LC 118/2005 alterou a primeira hipótese de interrupção da prescrição tributária. Anteriormente, a interrupção em questão dependia de “citação pessoal feita ao devedor”. Claramente, o objetivo do legislador foi o de afastar prejuízos à Fazenda Pública, por meio de expedientes escusos de devedores que dificultam a citação pessoal e o de superar dissídio jurisprudencial a partir do conflito entre o CTN e a LEF - Lei de Execução Fiscal (lei nº 6.830, de 1980), que possui, no art. 8º, parágrafo 2º, redação praticamente idêntica à agora consagrada no Código Tributário Nacional. Quanto à Nova Lei de Falências, pode-se concluir que a introdução, no Brasil, de um novo marco legal falimentar bem equilibrado, com fundamentos

nos institutos de recuperação (judicial e extrajudicial) e de falências de empresas, os quais equilibram os interesses de devedores e credores, representa um novo processo legal, que procura assegurar um ambiente econômico nacional com maior segurança jurídica para o empresariado e voltado à preservação da função social do setor produtivo gerador de emprego, crédito e de bens e serviços, indispensáveis á satisfação das necessidades do País. Trata-se, portanto, de um avanço institucional importante, com impactos positivos no funcionamento da economia como um todo, os quais se refletirão em novos processos resolutivos mais céleres, previsíveis e eficientes, em situações de insolvência. Deve-se enfatizar que a maioria dos especialistas citados nesta analise defendem que a prioridade dada aos créditos trabalhistas na Nova Lei de Falências é bastante superior à verificada nos regimes falimentares de outros países. Segundo Costa et al (2006), sobretudo nos países desenvolvidos, a prioridade no recebimento dos valores auferidos com a massa falida é dos credores com garantias reais, havendo para apenas poucos casos a prioridade a alguns créditos trabalhistas, mas cujo limite é bastante inferior ao observado no caso brasileiro. Claramente, o objetivo da Lei, acima de qualquer dos credores, foi o de garantir o privilégio ao crédito trabalhista legítimo, em detrimento dos créditos de ex-administradores e ex-gerentes. Além disso, observa-se no novo paradigma uma inversão das posições ocupadas pelos créditos tributários e aqueles derivados de garantia real. A situação em que a Fazenda Pública recebe imediatamente após os credores trabalhistas, constitui um desestímulo à participação dos demais credores no processo de recuperação e falência. Concretamente, a redução da prioridade do crédito tributário implica ganhos institucionais vinculados ao respeito aos contratos e à garantia de participação de outras classes de credores nos processos de insolvência. Nesta situação, as conseqüências são positivas para o mercado de crédito, pela maior clareza em suas relações contratuais, mas também para a autoridade tributária e, por conseqüência, para a sociedade como um todo, pela possibilidade de recuperação de valores potencialmente superiores. Enfim, a elevação dos créditos com garantia real ao segundo posto na escala de prioridades encontra-se em consonância com o objetivo de aumentar a participação dos credores no processo e a celeridade na realização dos ativos. Com reais perspectivas de recuperação de seus créditos, os credores tendem a acompanhar mais de perto os problemas de insolvências, buscando a defesa de soluções mais céleres, previsíveis e eficientes, nas situações de eventuais dificuldades nos processos de

175

recuperação dos empreendimentos.

Notas e Referências

1. Ludwig Enneccerus, Theodor Kipp e Martin Wolff, Tratado de derecho civil, I, v.

II, 2ª parte, p. 1.017.

2. René Foiggnet (...), Manuel Élementaire de Droit Civil I, p. 625.

3. Pontes de Miranda, atualizado por Vilson Rodrigues Alves, Tratado de direito

privado, VI, § 662, 2, pp. 135-136.’.

4. Princípio da Actio Nata, consagrado no Novo Código Civil, quando dispôs

que “violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue pela

prescrição” (CC/2002, art. 189).

5. Helena Delgado Ramos Fialho Moreira. Juíza Federal, titular da 5ª Vara das

Execuções Fiscais da Seção Judiciária da Paraíba, Professora Titular de Direito

Comercial da UNIPE e mestre em direito pela UFPE.

6. Revista Consultor Jurídico, 7 de agosto de 2007

7. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça do Brasil. Recurso Especial nº 742743

do Superior Tribunal de Justiça do Brasil. Partes: Recorrente: Fazenda Nacional

– Recorrido: Monza Materiais de Construção Ltda. Relator: Ministro Teori Albino

Zavascki. Julgado em: 06 jun. 2005. Disponível em: https://ww2.stj.gov.br/

revistaeletronica/ita.asp?registro=200500627061> Acesso em: 14/12/2007.

8. Segundo pesquisa da SERASA, os pedidos de falência reduziram-se quase

à metade no primeiro ano de vigência da NLF. De junho/2005 a junho/2006,

registraram-se na Justiça 6.443 pedidos de falência, 48% menos que as 12.448

solicitações registradas nos 12 meses que antecederam a introdução da nova

legislação. Do total de pedidos ajuizados, 2.406 tiveram falência decretada (25%

a menos que no ano anterior às mudanças nas regras). Destas empresas, 208

conseguiram converter o processo em recuperação judicial, e uma em recuperação

extrajudicial. Entre elas destacam- se a Varig, a Parmalat e a Vasp.

9. Sem prejuízo dos privilégios especiais sobre determinados bens, que sejam

previstos em lei, responde pelo pagamento do crédito tributário a totalidade

dos bens e das rendas, de qualquer origem ou natureza, do sujeito passivo, seu

espólio ou sua massa falida, inclusive os gravados por ônus real ou cláusula de

inalienabilidade ou impenhorabilidade, seja qual for a data da constituição do

ônus ou da cláusula, excetuados unicamente os bens e rendas que a lei declare

absolutamente impenhoráveis. (Art. 184 do CTN).

10. Apenas 3 países, além do Brasil, contemplam alguma prioridade do fisco

à frente dos créditos com garantia real: Itália, Espanha e Polônia. São países

europeus, da EU, que estão atualmente revendo suas legislações falimentares,

o que provavelmente deve envolver a revisão desse tipo de dispositivo, que não

consta como pertencente às melhores práticas internacionais. A justificativa para

esse padrão internacional é a manutenção de um ambiente institucional favorável

ao crédito, procurando privilegiar a empresa produtiva com a possibilidade de

acesso a empréstimos e financiamentos fartos e baratos.

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PARECERES E PEÇAS PROCESSUAIS

178

INCOMPATIBILIDADE DO EXERCÍCIO DA VEREÂNCIA COM O CARGO COMISSIONADO. 20

Rita de Cássia Matheus dos S. SilvaProcuradora do Estado de Sergipe

Especialista em Direito PúblicoAdvogada

Professora de Direito Constitucional

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PROCESSO Nº: 010.000.00139/2007-9

ORIGEM: GABINETE DA PROCURADORIA GERAL DO ESTADOASSUNTO: Consulta. Possibilidade jurídica da compatibilidade do exercício do Cargo de Vereador com o Cargo Comissionado.PARECER nº _________/2007 – PGE

CONSULTA

Vereador e Cargo Comissionado. Exceção à vedação da acumulação remunerada de cargos presente no art. 38, III, da CF não extensiva ao cargo comissionado. Inelegibilidade. Incompatibilidade Constitucional (art. 29, IX c/c 54, I, “a” e “b”). Princípio da Simetria (art. 43, I, da Constituição do Estado de Sergipe e art. 96 da Lei Orgânica do Município de Aracaju.) Descumprimento de incompatibilidade enseja a perda do mandato. Impossibilidade Jurídica da acumulação.

1. RELATÓRIO

O Gabinete da Procuradoria Geral do Estado endereça consulta a esta Coordenadoria Especializada da Via Administrativa a respeito da possibilidade jurídica da compatibilidade do exercício do cargo de Vereador com o cargo comissionado. Após o recebimento da referida Consulta, o Exmº Procurador-Chefe da Via Administrativa, Dr. Carlo Antonio Araújo Monteiro, através da Comunicação Interna de nº 20, datada de 14 de fevereiro de 2007, providenciou a distribuição do questionamento a esta Procuradora do Estado que abaixo subscreve o presente estudo.

É o sucinto relatório.

2. MÉRITO

A consulta a ser analisada se traduz no seguinte questionamento: Há possibilidade jurídica (à luz da CF e legislação infra) da compatibilidade do exercício do cargo de VEREADOR com o CARGO COMISSIONADO? Antes de adentrar no cerne da questão cabe trazer a natureza das investiduras aqui abordadas, uma de caráter eletivo e outra de caráter administrativo. Entende-se como investidura a operação complexa, constituída de atos do Estado e do interessado, para permitir o legítimo provimento do cargo público. E no contexto ora abordado existem dois tipos de cargos: o cargo eletivo provido através de eleição periódica e o cargo comissionado ocupado precariamente por titulares nomeados em razão da relação de confiança existente entre eles e a autoridade nomeante. José dos Santos Carvalho Filho1, ao tratar dos Agentes Políticos como classificação dos Agentes Públicos, dispõe o seguinte: “Caracterizam-se por terem funções de direção

e orientação estabelecidas na Constituição e por ser normalmente transitório o exercício de tais funções. Como regra, sua investidura se dá através de eleição, que lhes confere o direito a um mandato, e os mandatos eletivos caracterizam-se pela transitoriedade do exercício das funções, como deflui dos postulados básicos das teorias democráticas e republicanas. Por outro lado, não se sujeitam às regras comuns aplicáveis aos servidores públicos em geral; a eles são aplicáveis normalmente as regras constantes da Constituição, sobretudo as que dizem respeito às prerrogativas e à responsabilidade polícia. São eles os Chefes do Executivo (Presidente, Governadores e Prefeitos), seus auxiliares (Ministros e Secretários Estaduais e Municipais) e os membros do Poder Legislativo (Senadores, Deputados Federais, Deputados Estaduais e Vereadores)”.2 (grifo nosso) No que tange ao cargo comissionado cabe registrar que são cargos cujo provimento dispensa concurso público e são vocacionados para serem ocupados em caráter transitório por pessoa de confiança da autoridade competente para preenchê-los, a qual também pode exonerar ad nutum, isto é, livremente, quem os esteja titularizando.3 Trazidas estas peculiaridades, cabe ingressar no âmago da questão: é possível a compatibilidade do exercício do cargo de Vereador com o Cargo Comissionado? A questão apresentada força um desdobramento de ordem cronológica, ou seja, quanto ao momento do exercício da vereança. Senão vejamos:

a) Servidor público eleito para ocupar cargo eletivo de Vereador; e

b) Vereador que deseja ocupar cargo comissionado.

Ambas as questões devem ser enfrentadas com o intuito de limar qualquer dúvida que venha a surgir acerca do tema.

A) Servidor Público eleito para ocupar cargo eletivo de Vereador

Não há nenhum impedimento constitucional ou legal quanto à possibilidade do servidor público se candidatar a cargo eletivo de Vereador. A problemática passa a existir em duas situações: a) quando o servidor é eleito e não há compatibilidade de horário, devendo optar por uma das remunerações, e; b) quando a natureza do cargo ocupado pelo servidor é precária, ou seja, quando se trata de cargo comissionado. A Constituição Federal traz claramente a regra da vedação de acumulação de cargo, emprego ou função pública em seu art. 37, inciso XVI e nas alíneas deste dispositivo contempla algumas das exceções. Fala-se em algumas porque o texto constitucional noutras passagens apresenta mais ressalvas àquela regra, como, por exemplo, no art. 38, inciso III, o qual merece transcrição:

Art. 38. Ao servidor público da administração direta, autárquica e fundacional, no exercício de mandato eletivo, aplicam-se as seguintes disposições:

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(...)II - investido no mandato de Prefeito, será afastado do cargo, emprego ou função, sendo-lhe facultado optar pela sua remuneração;III - investido no mandato de Vereador, havendo compatibilidade de horários, perceberá as vantagens de seu cargo, emprego ou função, sem prejuízo da remuneração do cargo eletivo, e, não havendo compatibilidade, será aplicada a norma do inciso anterior;

Assim, havendo compatibilidade de horário, o servidor eleito vereador poderá acumular os dois cargos sendo remunerado pelos mesmos. Todavia, não havendo compatibilidade deverá ser empregada a mesma regra que rege a situação dos servidores eleitos para o cargo de Prefeitos, ou seja, deverá afastar-se do cargo, emprego ou função, sendo-lhe facultado optar pela remuneração que lhe for mais conveniente. Como a acumulação de cargos é uma exceção, deverá ser interpretada de forma restritiva e ponderada. Válido chamar à liça os ensinamentos do grande mestre constitucionalista Luís Roberto Barroso que acerca da Interpretação Constitucional reza que: “Todavia, havendo incongruência entre a interpretação lógica e a gramatical, caberá ao intérprete operar uma retificação do sentido verbal na conformidade e na medida do sentido lógico. A imperfeição lingüística, expõe Ferrara, pode manifestar-se de duas formas: ou o legislador disse mais do que queria dizer, ou disse menos, quando queria dizer mais. No primeiro caso, impõe-se uma interpretação restritiva (ou estrita), onde a expressão literal da norma precisa ser limitada para exprimir seu verdadeiro sentido (lex plus scripsit, minus voluit). No segundo caso, será necessária uma interpretação extensiva, com o alargamento do sentido da lei, pois este ultrapassa a expressão literal da norma (lex minus scripsit quam voluit).4 (grifo nosso) Quando o Legislador Constituinte Ordinário tratou da possibilidade do servidor público acumular suas funções com a do mandato eletivo não contemplou todas as classificações de servidores públicos, mas apenas aqueles que possuem um certo vínculo de estabilidade com o serviço público, como é o caso dos concursados, daqueles ofertados com a estabilidade constitucional prevista no art. 19 do ADCT, bem como dos contratados temporariamente (óbvio que nestes casos só haverá acumulação até a expiração do contrato temporário, o qual, querendo ou não, tem um termo certo). Tal regra não teve a intenção de abarcar os servidores ocupantes de cargo comissionado, em razão simplesmente de está se tratando de causa de inelegibilidade. A Constituição Federal anterior, de 1969, trouxe expressamente em seu art. 104, § 5º, a previsão de que o vereador não poderia acumular cargo ou função comissionada no Município. Embora a Carta Constitucional atual seja silente, não se pode entender pela possibilidade. Pedro Henrique Távora Niess, citado pelo grande constitucionalista Luiz Alberto David de Araújo5, diz que “a inelegibilidade consiste no obstáculo posto pela Constituição Federal ou por Lei Complementar ao exercício da cidadania passiva, por certas pessoas, em razão de sua condição ou em face de certas circunstâncias. É a negação do direito de ser

representante do povo no Poder. Esmiuçando essa noção temos que a elegibilidade é pressuposto do exercício regular do mandato político, a inelegibilidade é uma barreira intransponível que desautoriza essa prática, com relação a um, alguns ou todos os cargos cujo preenchimento dependam de eleição”. No presente caso, o cargo comissionado representa um obstáculo aos seus titulares no que tange ao exercício do sufrágio passivo. A Constituição Federal no art. 14, § 4º “usque” 8º traz algumas situações de inelegibilidade, umas classificadas como relativas, outras como absolutas, como é o caso dos inalistáveis e dos analfabetos que não podem se candidatar a cargo algum. No § 9º do dispositivo dantes citado, o próprio texto constitucional traz a possibilidade de Lei Complementar estabelecer outros casos de inelegibilidade, o que veio a ser concretizado pela Lei Complementar nº 64, de 18/05/1990. A Lei Complementar nº 64/90, ao estabelecer outras situações de inelegibilidade, com fulcro no art. 14, § 9º da CF, passou a prever circunstâncias nas quais as pessoas que nelas estivessem inseridas não poderiam concorrer a mandato eletivo. O art. 1º deste diploma legislativo traz regras aplicáveis aos cargos de Presidente e Vice-Presidente, que por sua vez devem ser observadas para os cargos de Governador e Vice-Governador do Estado e do Distrito Federal, Prefeito e Vice-Prefeito, Senador Federal, para a Câmara dos Deputados, Assembléia Legislativa e Câmara Legislativa, bem como para a Câmara Municipal. A situação na qual se enquadra o objeto deste estudo está situada no Art. 1º, inciso II, alínea “L”, que se passa a transcrever:

Art. 1º São inelegíveis:(...)II - para Presidente e Vice-Presidente da República:(...)l) os que, servidores públicos, estatutários ou não, dos órgãos ou entidades da Administração direta ou indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e dos Territórios, inclusive das fundações mantidas pelo Poder Público, não se afastarem até 3 (três) meses anteriores ao pleito, garantido o direito à percepção dos seus vencimentos integrais; (grifo nosso

Da simples leitura do dispositivo ora transcrito poder-se-ia concluir pela não existência de impedimento caso o titular do cargo comissionado se afastasse do cargo até o terceiro mês anterior às eleições. Todavia, este cargo, repita-se, tem natureza precária, ou seja, seus titulares são demissíveis ad nutum e não gozam de nenhuma estabilidade. Aqueles, que nesta condição, se afastarem de suas atividades para concorrer a cargo eletivo não podem mais retornar, pois o seu afastamento implica exoneração. O vínculo do titular do cargo comissionado com o serviço público é dotado de fragilidade. Neste sentido é a Resolução nº 231/2004 do Tribunal Regional Eleitoral do Amapá, que instado a responder à Consulta Eleitoral (Processo nº 255/2004 – Classe X) formulada pelo Partido Democrático Trabalhista – PDT, respondeu, por unanimidade, que:

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EMENTA: CONSULTA. SERVIDOR PÚBLICO. CARGO COMISSIONADO. DESIN-COMPATIBILIZAÇÃO. PRAZO. ELEIÇÃO PARA OS CARGOS DE PREFEITO, VICE-PREFEITO E VEREADOR. 1. O prazo de afastamento do servidor público que pretenda candidatar-se aos cargos majoritários ou proporcionais será sempre de 03 (três) meses, com direito à percepção de sua remuneração, conforme estabelecido no art. 1º, inciso II, alínea “L”, da Lei Complementar nº 64/90. 2. O servidor público ocupante de cargo comissionado deverá exonerar-se do cargo no prazo de 03 (três) meses antes do pleito, para concorrer a qualquer cargo. 3. O servidor público, ocupante de cargo comissionado, que é gestor de dinheiro público, deve exonerar-se do cargo no prazo de 04 (quatro) meses para concorrer ao pleito majoritário, e no de 06 (seis) meses, para o pleito proporcional, conforme estabelecido, respectivamento, no art. 1º, inciso IV, alínea “a” e inciso VII, aliíneas “a” e “b”, da Lei Complementar nº 64/90.(grifo nosso) O mesmo entendimento é compartilhado pelo Tribunal Superior Eleitoral ao responder a Consulta 769, cujo relator foi o Min. Sepúlveda Pertence, através da Resolução 21097. Senão vejamos: EMENTA: CONSULTA. DEPUTADO FEDERAL. I. Membro de direção escolar que pretenda concorrer a cargos eletivos deverá, sujeitando-se tal ofício à livre nomeação e exoneração, afastar-se definitivamente do cargo em comissão que porventura ocupe, até 3 (três) meses antecedentes ao pleito (LC 64/90, art. 1°, II, “L”). II. Na hipótese do inciso anterior, se detentor de cargo efetivo na Administração Pública, terá direito à percepção de sua remuneração durante o afastamento legal. III. Precedentes: Res./TSE nos 18.019/92, Pertence; 19.491/96, Ilmar Galvão; 20.610 e 20.623/00, Maurício Corrêa. IV. Impossibilidade de retorno à função comissionada após consumada a exoneração. V. Consulta respondida negativamente. (grifo nosso).

Desta forma, o óbice existente para que o titular de cargo comissionado se candidate a Vereador ou a qualquer outro cargo eletivo encontra fundamento nas inelegibilidades. Isso não quer dizer que o titular de cargo comissionado não possa exercer o sufrágio passivo. Poderá sim, desde que se desincompatibilize 03 (três) meses antes do pleito, afastamento este definitivo e ensejador da exoneração, já que, neste caso, o titular do cargo não goza de estabilidade, estando impedido de retornar ao cargo ou função. Enfrentada a primeira situação (titular de cargo comissionado e o exercício da Vereança), passa-se à análise da segunda (Vereador e o exercício do cargo comissionado).

B) Vereador e a compatibilidade do exercício de cargo comissionado

Aqui, a questão vai muito além da proibição legal. A nomeação para o cargo comissionado pressupõe situação de confiança e de subordinação para com o nomeante. O exercício do cargo eletivo fica flagrantemente fragilizado quando o seu titular não possui autonomia para agir. Não há como conceber que alguém escolhido pelo povo, para representá-lo, sinta-se acanhado no exercício do seu múnus porque mantém uma relação de confiança com um governante, situação esta também de submissão. In casu, o Vereador, membro do Poder Legislativo Municipal deve agir com total independência, uma vez que no exercício do seu mandato não está a representar interesses pessoais, mas interesses de uma coletividade que num dado momento lhe outorgou poderes para representá-los. A Carta Constitucional de 1988, ao tratar dos Municípios no Capítulo IV, em seu art. 29, inciso IX reza que:

Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos:(...)IX - proibições e incompatibilidades, no exercício da vereança, similares, no que couber, ao disposto nesta Constituição para os membros do Congresso Nacional e na Constituição do respectivo Estado para os membros da Assembléia Legislativa. (grifo nosso)

Assim, as mesmas proibições e incompatibilidades às quais estão sujeitos os membros do Congresso Nacional e da Assembléia Legislativa do Estado também aplicar-se-ão aos membros da Câmara de Vereadores. O próprio texto constitucional se encarregou de trazer os impedimentos e proibições no art. 54, incisos I e II. Senão vejamos:

Art. 54. Os Deputados e Senadores não poderão:I - desde a expedição do diploma:a) firmar ou manter contrato com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público, salvo quando o contrato obedecer a cláusulas uniformes;b) aceitar ou exercer cargo, função ou emprego remunerado, inclusive os de que sejam demissíveis “ad nutum”, nas entidades constantes da alínea anterior;II - desde a posse:a) ser proprietários, controladores ou diretores de empresa que goze de favor decorrente de contrato com pessoa jurídica de direito público, ou nela exercer função remunerada;

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b) ocupar cargo ou função de que sejam demissíveis “ad nutum”, nas entidades referidas no inciso I, “a”;c) patrocinar causa em que seja interessada qualquer das entidades a que se refere o inciso I, “a”;d) ser titulares de mais de um cargo ou mandato público eletivo.(grifo nosso)

A Constituição Estadual de Sergipe, por sua vez, ao tratar dos membros da Assembléia Legislativa não dispõe de forma diferente.

Art. 43. O Deputado não poderá:I - desde a expedição do diploma:a) firmar ou manter contrato com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público, salvo quando o contrato obedecer a cláusulas uniformes;b) aceitar ou exercer cargo, função ou emprego remunerado, inclusive os de que seja demissível ad nutum, nas entidades constantes da alínea anterior;II - desde a posse:a) ser proprietário, controlador ou diretor de empresa que goze de favor decorrente de contrato com pessoa jurídica de direito público, ou nela exercer função remunerada; b) ocupar cargo ou função de que seja demissível ad nutum nas entidades referidas na alínea a do inciso I;c) patrocinar causas em que sejam interessadas quaisquer das entidades a que se refere a alínea a do inciso I; d) ser titular de mais de um cargo ou mandato eletivo federal, estadual ou municipal.(grifo nosso)

Por fim, a Lei Orgânica do Município de Aracaju, ao tratar do Vereador, traz as mesmas proibições constantes na Constituição Federal e na Constituição Estadual aplicáveis aos membros do Legislativo. Vejamos:

Art. 96. O Vereador não poderá:I – desde a expedição do diploma, firmar ou manter contrato com pessoas jurídicas de direitopúblico, autarquia, empresa pública, sociedade de economia-mista ou empresa concessionária de serviço público;II – desde a posse:a) ser proprietário, controlador ou diretor de empresa que goze de favor decorrente de contrato com pessoa jurídica de direito público ou nela exercer função remunerada;b) patrocinar causas em que sejam interessadas quaisquer das entidades a que se refere o inciso anterior;c) exercer cargo, função ou emprego remunerado, inclusive os que sejam demissíveis “ad nutum”, no Poder Legislativo e Executivo Municipal, Estadual e Federal, exceto o disposto no inciso I do artigo 15 da Constituição Estadual e no inciso III do artigo 38 da Constituição Federal e ser

titular de mais de um mandato público eletivo.(grifo nosso)

Desta forma, é clara a incompatibilidade do exercício do cargo de Vereador com o exercício do cargo comissionado, cargos estes tidos pelas legislações colacionadas como demissíveis “ad nutum”. A ressalva constante no art. 96, inciso II, alínea “c” da Lei Orgânica Municipal e presente na Constituição Estadual Sergipana é quanto à possibilidade do Vereador ser investido no cargo de Ministro do Estado, Secretário de Estado ou Secretário Municipal. Tal hipótese não contempla a acumulação remunerada, haja vista, que a exemplo da previsão constitucional quanto aos congressistas (art. 56, inciso I), o Vereador, apesar de não perder o mandato, ficará licenciado do cargo eletivo, podendo optar pela remuneração do mandato em detrimento daquela atinente ao cargo ocupado. Aqui, não se trata mais de inelegibilidade, mas de incompatibilidade que nada mais é do que limitação que impede o exercente de mandato eletivo de exercer certas atividades, seja desde a sua diplomação, seja a partir da posse. A Constituição Federal, paradigma de todas as Constituições Estaduais e demais atos legislativos, é de clareza solar ao dizer que os membros do Poder Legislativos não podem aceitar ou exercer cargo, emprego ou função remunerada, inclusive os cargos comissionados, pertencentes às pessoas jurídicas de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia-mista e até mesmo pertencentes às empresas concessionárias de serviço público. Cabe registrar que a incompatibilidade ora tratada não se limita ao mesmo poder ou esfera de governo. A incompatibilidade é absoluta com o fim de preservar a independência do Legislativo. São limitações de caráter funcional, negocial, político ou profissional que atingem os congressistas, impedindo que eles ocupem certas posições ou exerçam funções que comprometam eticamente a sua atuação, enquanto mandatário popular.6 O Promotor de Justiça do Estado de São Paulo, Raul de Mello Franco Júnior, ao discorrer acerca do tema analisado, no artigo intitulado “Servidor Público no exercício da Vereança”, diz o seguinte: “Se a nomeação se refere ao próprio Município onde o eleito cumprirá o mandato, as inconveniências são gritantes. Se o servidor exerce cargo ou função em comissão no próprio Legislativo, junto à Câmara Municipal, está subordinado à Presidência da Mesa ou, se assim dispuser a lei, a um outro edil. Não poderia, nesta situação, preservar a sua própria independência e colocar-se, a um só tempo, ao lado (com equivalência de atribuições) e abaixo (submisso às ordens e determinações) de outro membro da mesma Casa, firmado apenas na confiança. Se ele próprio for o Presidente da Casa, a impossibilidade é manifesta e dispensa maiores considerações. Se exerce cargo ou função em comissão junto ao Executivo, a mesma proximidade que serviu de pressuposto para a sua escolha e nomeação, revela-se maculada no momento em que passa a servir, como agente político, a outro Poder, cuja missão será, inclusive, a de fiscalizar os atos administrativos. A situação não é diferente se o cargo

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comissionado ou função de confiança for exercido em outra esfera de governo. Ainda assim prevalece o impedimento, firmado sempre na independência do Legislativo. O nivelamento das autonomias dos entes federados e federativos, cuja matriz é o art. 18 da Constituição da República, exige que os agentes políticos de cada esfera sejam plenamente livres, para lastrear a independência do próprio Poder a que servem. O jogo político é cenário de múltiplos interesses e implicações, não sendo temerário supor que a subordinação a autoridades de uma unidade possa, reflexamente, atingir a independência do Poder de outra. Não fica garantida a plena neutralidade do parlamentar e nem tal acumulação se revela moralmente aceitável. Ao nosso ver, pois, ainda que a limitação não seja expressamente prevista na Lei Orgânica do Município, deve ser considerada.7 Ademais, a violação ou descumprimento de quaisquer das incompatibilidades implica perda do mandato, como assevera a Constituição Federal no art. 55, inciso I, a Constituição Estadual no art. 44, inciso I, bem como a Lei Orgânica do Município de Aracaju no art. 97, inciso I, o qual cabe transcrição:

Art. 97. Perderá o mandato o Vereador:

I – que infringir quaisquer das proibições estabelecidas nas Constituições Federal, Estadual e nesta Lei Orgânica;

Assim, não há dúvidas quanto à impossibilidade jurídica da compatibilidade do exercício do cargo de Vereador com o exercício do cargo comissionado devido ao impedimento traçado pelo próprio texto constitucional.

3. CONCLUSÃO

Diante do exposto, em consonância com a Constituição Federal, com Constituição do Estado de Sergipe, com a Lei Orgânica do Município do Aracaju, bem como com a mais gabaritada doutrina constitucional e com o entendimento do Tribunal Superior Eleitoral, opina esta Procuradoria Especializada da Via Administrativa pela IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA da compatibilidade do exercício da Vereança com o exercício do cargo comissionado seja devido à inelegibilidade (cargo comissionado anterior à Vereança), seja devido à incompatibilidade constitucional (cargo comissionado posterior à diplomação ou posse no cargo de Vereador), sob pena da perda do mandato eletivo. É o parecer, que submeto à superior consideração da douta chefia.

Aracaju, 22 de fevereiro de 2006.

RiTa dE CáSSia MaThEuS dOS S. SiLvaProcuradora do Estado

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REGULARIDADE FORMAL DE PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR.21

Tiago Bockie de AlmeidaProcurador do Estado de Sergipe

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PARECER Nº: /2007 - PG

PROCESSO ADMINISTRATIVO Nº: 015.000-07570/1997-8ASSUNTO: REGULARIDADE FORMAL DE PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINARINTERESSADO: SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO - SEEDCONCLUSÃO: IRREGULARIDADE

EMENTA

Abandono de cargo. Processo administrativo disciplinar na forma de inquérito administrativo. Análise acerca da regularidade formal. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça – STJ. Irregularidade.

1 RELATÓRIO

Trata-se do Processo Administrativo nº 015.000-07570/1997-8, proveniente da Secretaria de Estado da Educação - SEED, solicitando parecer desta Procuradoria-Geral do Estado − PGE acerca da regularidade formal do inquérito administrativo instaurado em face de Francisco Santos da Silva, visando apurar a falta funcional de abandono de cargo a ele imputada. Em razão da denúncia de abandono de cargo de fls. 08 e 09 dos autos, o servidor Francisco Santos da Silva, investido no cargo público de Professor em 23 de setembro de 1982 (certidão de tempo de serviço às fls. 05/06 dos autos), teve os seus vencimentos bloqueados nos meses de Março e Abril de 1997, sendo excluído do sistema de pagamento no mês de Maio do mesmo ano. Em 23 de agosto de 2005, por intermédio da Portaria nº 5.448/2005/GS, o Secretário de Estado da Educação autorizou a Comissão Permanente de Sindicância e Inquérito Administrativo a proceder à abertura de Inquérito Administrativo em face do servidor público supracitado, a fim de apurar a infração prevista no art. 263, inc. I, da Lei nº 2.148, de 21 de dezembro de 1977 (abandono de cargo). À fl. 19, foram instalados os trabalhos da Comissão para o processamento e emissão de relatório no Processo Administrativo Disciplinar instaurado na forma de Inquérito Administrativo. À fl. 24, foi expedido mandado de citação, enviado por Correio na forma de Aviso de Recebimento – AR, ao indiciado a fim de que o mesmo comparecesse à audiência de interrogatório. Em virtude da tentativa frustrada de citação postal (fls. 25/26), o servidor público interessado foi citado por meio do Edital nº 03/2006, de 30 de março de 2006, publicado no Diário Oficial do Estado em 03 de abril de 2006 (fl. 30). À fl. 31, foi enviado Ofício nº 16/2006/CPISA para a Defensoria Pública do Estado de Sergipe, para que um Defensor Público pudesse apresentar defesa no presente processo administrativo disciplinar, o que foi feito à fl. 32 dos autos. Por fim, o processo administrativo disciplinar

foi encaminhado para a Procuradoria-Geral do Estado, cabendo a esta Procuradoria Especial da Via Administrativa aferir a legitimidade/legalidade do procedimento administrativo instaurado.

2. MÉRITO

Cabe apontar, inicialmente, que não cabe à Procuradoria-Geral do Estado a análise de mérito do Processo Administrativo Disciplinar, bem como do conjunto probatório produzido nos autos, vez que tais matérias encontram-se inseridas no âmbito de competência restrita da Comissão Processante, como forma de exercício do Poder Discricionário da Administração Pública. Esse é o entendimento dos Tribunais Superiores acerca do tema: “O que os Juízes e Tribunais somente não podem examinar nesse tema, até mesmo como natural decorrência do princípio da separação de poderes, são a conveniência, a utilidade, a oportunidade e a necessidade da punição disciplinar. Isso não significa, porém, a impossibilidade de o Judiciário verificar se existe, ou não, causa legítima que autorize a imposição da sanção disciplinar. O que se lhe veda, nesse âmbito, é, tão-somente, o exame do mérito da decisão administrativa, por tratar-se de elemento temático inerente ao poder discricionário da Administração Pública. (...)” – (Supremo Tribunal Federal, MS nº 20.999-DF, DJ de 21.3.90, Ministro Celso de Mello) – grifo nosso. “Para se proceder, no entanto, à modificação daquelas conclusões, não obstante o exposto na petição inicial, é questão que foge aos limites do mandamus, porque demandaria o reexame da moldura fática delineada no bojo do processo disciplinar, bem como ensejaria incursão indevida sobre o mérito do julgamento efetuado na esfera administrativa. Além disso, observa-se que as provas trazidas aos autos são insuficientes para se acolher essa tese do impetrante, na medida em que não há cópias detalhadas do processo licitatório.” – (Superior Tribunal de Justiça, MS nº 7143-DF, DJ 29.10.2001) – grifo nosso. A Lei nº 2.148, de 21 de dezembro de 1977, dispõe acerca das normas que regulam os processos administrativos disciplinares no âmbito do Estado de Sergipe:

“Art. 274 – Instaurar-se-á Processo Administrativo Disciplinar, para apuração de irregularidades no Serviço Público e responsabilização dos seus autores.

Art. 275 – O processo administrativo disciplinar realizar-se-á sob a forma de sindicância ou de inquérito administrativo, nos casos definidos por este Estatuto.

(...)

Art. 283 – O inquérito administrativo será instaurado para apuração de denúncia que contenha elementos suficientes para se concluir pela existência de irregularidade administrativa e de suspeita de sua autoria.

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Parágrafo único – O inquérito administrativo será obrigatoriamente instaurado para a apuração de faltas apenadas com demissão, demissão a bem do serviço público e cassação de aposentadoria ou disponibilidade).

Art. 284 – Os atos do inquérito administrativo revestirão forma escrita e serão arquivados em autos organizados segundo modelo forense, com as necessárias adaptações.

Art. 285 – O inquérito administrativo será procedido por uma comissão de 3 (três) funcionários efetivos, designados pela autoridade que houver determinado a sua instauração.

(...)

Art. 287 – O inquérito administrativo deverá ser iniciado no prazo de 5 (cinco) dias, na capital, e 15 (quinze) dias no interior do Estado, e concluído dentro do prazo de 60 (sessenta) dias.§ 1º - O prazo para início dos trabalhos contar-se-á a partir da data da publicação do ato de designação da comissão, enquanto que o prazo para encerramento será contado da data da instalação dos serviços da comissão.

§ 2º - O prazo para a conclusão dos trabalhos poderá ser prorrogado por mais de 30 (trinta) dias, no máximo, a critério da autoridade instauradora do inquérito.”

O presente processo administrativo disciplinar foi instaurado na forma de inquérito administrativo, pela autoridade competente para a prática do ato (Secretário de Estado da Educação), por intermédio da Portaria nº 5.448, de 23 de agosto de 2005 (fl. 15), para a apuração dos fatos constantes na denúncia de abando de cargo de fls. 08/09, pelo prazo de 60 (sessenta) dias, prorrogável por mais 30 (trinta) dias. Entre a instalação e o encerramento dos trabalhos da Comissão, com a emissão de relatório conclusivo, decorreram mais de 90 (noventa) dias, não havendo, pois, o cumprimento do lapso temporal previsto em lei para o término do processo administrativo disciplinar. É pacífico na jurisprudência pátria, no entanto, que o descumprimento do prazo legal constitui mera irregularidade quando, em virtude de sua não observância, não resultar em qualquer prejuízo para as partes envolvidas. O princípio do prejuízo, enunciado pela doutrina francesa como pas de nullité sans grief, constitui norma basilar no sistema geral de nulidades, a que deve estar sempre atento o magistrado e o administrador público no julgamento de processos judiciais e administrativos, respectivamente. Eis os ensinamentos da doutrina sobre esta norma-princípio: “Constitui seguramente a viga mestra do sistema de nulidades e decorre da idéia geral de que as formas processuais representam tão-somente um instrumento para a correta aplicação do direito; sendo

assim, a desobediência às formalidades estabelecidas pelo legislador só deve conduzir ao reconhecimento da invalidade do ato quando a própria finalidade pela qual a forma foi instituída estiver comprometida com o vício. Sem ofensa ao sentido teleológico da norma, não haverá prejuízo e, por isso, o reconhecimento da nulidade nessa hipótese constituiria consagração de um formalismo exagerado e inútil, que sacrificaria o objetivo maior da atividade jurisdicional”.1 – grifo nosso. A jurisprudência ratifica o entendimento acima no que tange ao decurso do prazo sem que haja prejuízo para as partes: “Administrativo. Processo administrativo disciplinar. Ultrapassagem do prazo fixado para o término do processo. Nulidade: não-ocorrência. Precedentes. Recurso improvido.

I. A ultrapassagem do prazo fixado para o encerramento de processo administrativo disciplinar não conduz à nulidade, mas tão-somente à cessão da medida cautelar do afastamento preventivo do cargo do servidor público acusado. II. Inteligência dos arts. 256 e 265 da Lei baiana nº 2.323/1966. III. Precedentes do STJ, RMS nº 1.388/BA. IV - Precedentes DO STF: MS N. 21.949/DF. V – Recurso ordinário em mandado de segurança conhecido, mas improvido.” (STJ, Rel. Min. Adhemar Maciel, ROMS nº 455/BA, 2ª T, DJ de 23.6.1997, p. 29.072) – grifo nosso. Se prejuízo não há em relação ao descumprimento dos prazos previstos no Estatuto para o término do Processo Administrativo Disciplinar, o mesmo não se pode afirmar quanto à observância do princípio da ampla defesa. O Superior Tribunal de Justiça, tendo em vista o disposto no art. 5º, inc. LV, da Constituição Federal, equipara o processo administrativo disciplinar ao processo judicial, exigindo a presença de advogado, como elemento indispensável à realização da justiça, também naquela espécie de procedimento. Elucidativos são os acórdãos abaixo ementados: “AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. LEI Nº 9.784/99. ESTADO. APLICAÇÃO RETROATIVA. IMPOSSIBILIDADE. ADVOGADO. NECESSIDADE. I – Mesmo que admitida, em tese, a aplicação subsidiária da Lei nº 9.784 no âmbito estadual, tal legislação não alcançaria os atos praticados anteriormente a sua vigência. Precedentes da Corte Especial (MS nºs 9.112/DF, 9.115/DF e 9.157/DF). II – A presença obrigatória de advogado constituído ou defensor dativo é elementar à essência mesma da garantia constitucional do direito à ampla defesa com os meios e recursos a ela inerentes, quer se trate de processo judicial ou administrativo, porque tem como sujeitos não apenas litigantes, mas também os acusados em geral. Agravo regimental desprovido.” (STJ, 5ª Turma, AgRg no Resp 743.811/CE, Rel. Min. Felix Fischer, DJ 11.12.2006) – grifo nosso.

...

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“CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SE-GURANÇA. PROCESSO DISCIPLINAR. DEFESA TÉCNICA CONSTITUÍDA APENAS NA FASE FINAL DO PROCEDIMENTO. INSTRUÇÃO RE-ALIZADA SEM A PRESENÇA DO ACUSADO. INEXISTÊNCIA DE NOMEAÇÃO DE DEFENSOR DATIVO. PRINCÍPIOS DA AMPLA DEFESA E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL INOBSERVADOS. DIREITO LÍQUIDO E CERTO EVIDENCIADO. 1. Apesar de não haver qualquer disposição legal que determine a nomeação de defensor dativo para o acompanhamento das oitivas de testemunhas e demais diligências, no caso de o acusado não comparecer aos respectivos atos, tampouco seu advogado constituído – como existe no âmbito do processo penal –, não se pode vislumbrar a formação de uma relação jurídica válida sem a presença, ainda que meramente potencial, da defesa técnica. 2. A constituição de advogado ou de defensor dativo é, também no âmbito do processo disciplinar, elementar à essência da garantia constitucional do direito à ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. 3. O princípio da ampla defesa no processo administrativo disciplinar se materializa, nesse particular, não apenas com a oportunização ao acusado de fazer-se representar por advogado legalmente constituído desde a instauração do processo, mas com a efetiva constituição de defensor durante todo o seu desenvolvimento, garantia que não foi devidamente observada pela Autoridade Impetrada, a evidenciar a existência de direito líquido e certo a ser amparado pela via mandamental. Precedentes. 4. Mandado de segurança concedido para declarar a nulidade do processo administrativo desde o início da fase instrutória e, por conseqüência, da penalidade aplicada.” (STJ, 3ª Seção, MS 10.837/DF, Min. Rela. para Acórdão Laurita Vaz, DJ 13.11.2006)- grifo nosso. Assim, a pretexto de ser salvaguardado o direito do denunciado em ser assistido por um advogado constituído, um defensor ad hoc ou um defensor público, não basta, como ocorreu no presente caso concreto, a sua intimação para o oferecimento de defesa definitiva. A defesa, ao revés, deve ser efetiva, devendo ser intimado o defensor público para a apresentação de defesa prévia, oportunidade em que o responsável pela defesa técnica poderá requerer provas, tais como juntada de documentos e oitiva de testemunhas, sendo o mesmo intimado, ainda, para acompanhar a produção dessas provas. Verifica-se, no presente caso concreto, que não existe causa legítima para a imposição da sanção disciplinar, vez que não foram observados os princípios do devido processo legal e da ampla defesa, razão pela qual deve ser aplicado o disposto no art. 289 da Lei nº 2.148, de 1977, devendo ser intimado o defensor público para a apresentação de defesa prévia e acompanhamento do processo administrativo disciplinar, sendo ao final, novamente intimado para a apresentação de defesa definitiva. Apenas após a adoção desse procedimento poderá a Comissão Processante emitir relatório conclusivo.

3. CONCLUSÃO

Diante de tudo quanto exposto, conclui-se pela IRREGULARIDADE FORMAL do processo administrativo disciplinar, devendo ser adotadas as medidas constantes no corpo do Parecer.

Aracaju, 28 de maio de 2007

TiaGO BOCKiE dE aLMEidaProcurador do Estado

Notas e Referências

1. GRINOVER, Ada Pellegrini, & Outros. As Nulidades no Processo Penal, 7ª edição, Ed. Revista dos Tribunais, p. 28.

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CELEBRAÇÃO DE CONVÊNIO DE COOPERAÇÃO TÉCNICA ENTRE A SEFAZ E A SERASA.22

José de Sousa IbiapinoProcurador do Estado de Sergipe

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PARECER Nº: /2007 - PG

Processo: 010.000-00180/2007-6Assunto: CELEBRAÇÃO DE CONVÊNIO DE COOPERAÇÃO TÉCNICAInteressado: SECRETARIA DE ESTADO E DA FAZENDAConclusão: POSSIBILIDADE DE REALIZAR CONVÊNIO COM A SERASA.

EMENTA

Direito Constitucional. Administrativo. Tributário. Convênio de Cooperação Técnica a ser celebrado entre SEFAZ-SE e SERASA Art. 198, § 3º, do Código Tributário Nacional. Sigilo Fiscal. Disponibilidade e Divulgação de Dados Constantes de CDA. Independe de Lei Estadual Autorizadora. Princípio da Legalidade Genérica. Possibilidade.1. RELATÓRIO

1. RELATÓRIO

Trata-se do Processo Administrativo nº 010.000-00180/2007-6, proveniente da Secretaria de Estado da Fazenda, solicitando orientação jurídica desta Procuradoria-Geral do Estado − PGE a respeito da celebração de Convênio de Cooperação Técnica entre o Estado de Sergipe, através da SEFAZ, e a SERASA S/A. O referido Convênio tem como objeto viabilizar a disponibilização, pela Receita Estadual, das informações relativas a inscrições na Dívida Ativa da Fazenda Pública Estadual no Banco de Dados da SERASA denominado CONVEM DEVEDORES – Cadastro de Dívida Ativa, bem como a divulgação, pela SERASA, nas consultas formuladas a seus produtos por seus clientes, das informações registradas nos seus bancos de dados. (Cláusula Primeira da Minuta, fls. 05). A consulta a respeito da possibilidade jurídica de celebração do Convênio, objeto de análise deste parecer, partiu do Gabinete do Exmo. Secretário de Estado da Fazenda de Sergipe, Dr. Nilson Nascimento Lima, através do Ofício GABSEC nº 074/2007, datado de 26 de fevereiro de 2007, que foi enviado ao Exmo. Procurador-Geral do Estado, Dr. Edson Ulisses de Melo. O Ofício GABSEC nº 074/2007 veio acompanhado dos seguintes documentos: Solicitação da SERASA; Minuta de convênio; lay-out de envio de dados; parecer da PGE-BA; exposição feita pela PGE-BA e artigo sobre a Dívida Ativa, conforme se verifica de fls. 02 a 44, do Processo em epígrafe. O Ofício acima mencionado foi protocolado na Procuradoria Geral do Estado em 28 de fevereiro do corrente ano, e, em 03 de março, o Ilmo. Subprocurador-Geral, Dr. Márcio Leite de Rezende, determinou a remessa do Processo para a Procuradoria Especial de Atos e Contratos, conforme consta de fls. 45, dos autos.

Ao chegar o Processo na Procuradoria Especial de Atos e Contratos, o mesmo foi distribuído para o nobre colega Procurador, Eduardo Cabral, que, por sua vez, o remeteu à Procuradoria do Contencioso Fiscal em 05 de março do corrente ano, para que esta Procuradoria venha a se manifestar a respeito do mencionado Convênio. Em breve síntese, eis o relatório.

2. MÉRITO 2.1. Preliminarmente - da competência da procuradoria do contencioso fiscal em razão da pertinência temática

Compete à Procuradoria manifestar-se sobre a matéria em virtude da sua função de consultoria e de controle interno da legalidade e moralidade dos atos administrativos dos órgãos da Administração Direta, nos termos do artigo 3º, II e IV, combinado com o artigo 4º, IX, todos da Lei Complementar Estadual nº 27/96. Tenho como pertinente à matéria ora submetida à apreciação da Procuradoria do Contencioso Fiscal, tendo em vista que, apesar de se tratar de análise jurídica sobre a possibilidade de celebração de Convênio entre a SEFAZ e a SERASA, o que, a princípio, seria de atribuição da Via de Atos e Contratos, porém, dado o conteúdo do convênio, ou seja, a sua pertinência temática, principalmente no que diz respeito ao sigilo fiscal, entendo que é desta Procuradoria Fiscal a atribuição para tal mister.

2.2. Aspectos jurídicos relevantes, sob a ótica constitucional e legal referente ao sigilo de dados, versus direito à informação – ponderação de interesses

A consulta formulada às fls. 02 concentra seu questionamento em dois pontos:

1. Quanto à possibilidade deste Estado firmar Convênio com a SERASA tendo como conteúdo do mesmo o repasse de informações do contribuinte constante de CDA – Certidão de Dívida Ativa;

2. Quanto à possibilidade de divulgar os dados pela SERASA, recebidos via convênio, junto aos seus clientes. O cerne da questão a respeito da possibilidade jurídica da celebração do Convênio entre a SEFAZ/SE e a SERASA S/A gira em torno da análise das questões constitucionais, notadamente àquelas pertinentes ao sigilo das informações de dados e ao direito à informação. A ponderação de interesses é uma técnica de decisão jurídica autônoma, extraída do arsenal hermenêutico, que deve ser empregada para a solução de casos difícies em relação aos quais não é adequado empregar o raciocínio tradicional da subsunção. Em outros termos, quando não é possível simplesmente escolher uma norma constitucional em

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detrimento das demais, em obediência ao princípio da unidade, que determina que todas as normas constitucionais têm a mesma hierarquia e devem ser interpretadas de forma harmônica, afasta-se parcialmente uma delas, a fim de aplicar a norma preponderante, de maior peso, ao caso concreto. Se for certo que em um Estado Democrático de Direito, como o nosso pretende ser, os direitos e garantias individuais fundamentais são protegidos pelo manto constitucional, também não é menos verdade que esses direitos não são absolutos e ilimitados, devendo ser mitigados em razão da ponderação dos interesses envolvidos. Os princípios constitucionais explícitos ou implícitos passam a ser a síntese dos valores agasalhados pelo Ordenamento Jurídico que, nas lúcidas palavras de Luis Roberto Barroso: “Eles espelham a ideologia da sociedade, seus postulados básicos, seus fins. Os princípios dão unidade e harmonia ao sistema, integrando suas diferentes partes e atenuando tensões normativas. De parte isto, servem de guia para o intérprete, cuja atuação deve pautar-se pela identificação do princípio maior que rege o tema apreciado, descendo do mais genérico ao mais especifico, até chegar à formulação da regra concreta que vai reger a espécie”. (in, A Nova Interpretação Constitucional, Editora Renovar, 2003, pág. 29). Nesse diapasão, a Carta Política de 1988, ao tratar dos direitos individuais fundamentais, relativamente ao sigilo de dados, expõe um principio genérico, o qual, por não ser absoluto, não impede mas acima de tudo recomenda, a aplicação de um princípio mais específico, de modo a preservar a ponderação de interesses. Partindo dessa premissa, cabe salientar que o direito à informação agasalhado no art. 5º, XIV e XXXIII, da Constituição é um direito fundamental tanto quanto aquele que estabelece o sigilo de dados. Ademais, é bom registrar que a preservação do sigilo de dados assegurado constitucionalmente, nos termos do art. 5º, XII, está relacionada à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade nos aspectos da vida privada, como a honra, a imagem e a intimidade das pessoas, individualmente consideradas, não abrangendo necessariamente os dados de cunho fiscal, posto que estes sofrem as limitações constitucionais e legais de ordem pública. Enquanto os dispositivos constitucionais catalogados no art. 5º da CF dizem respeito aos direitos e garantias individuais, existem outros dispositivos, também constitucionais, que disciplinam as relações de ordem econômica, tributária, administrativa, financeira e tantas outras matérias de cunho fundamental, que recebem igual proteção, por serem essenciais e tão caras ao Estado Democrático de Direito. Não se pode perder de vista que as pessoas jurídicas recebem tratamento constitucional e legal específico, dado a natureza jurídica de suas relações, que, por extrapolarem as raias da sua esfera individual, penetram em outros redutos jurídicos, sobretudo quando essas relações passam a ser limitadas por normas de ordens públicas, o que sói acontecer. Partindo dessa premissa, o legislador constituinte disciplinou a Ordem Econômica e Financeira a partir do Título VII da Constituição, estabelecendo os princípios da Atividade Econômica no seu art. 170, nos termos em

que segue:

“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observando os seguintes princípios:

I – soberania nacional;II – propriedade privada;III – função social da propriedade;IV – livre concorrência;V – defesa do consumidor;(...)”. (sem os grifos no original)

A defesa do consumidor, erigida a princípio fundamental da Ordem Econômica, está em plena harmonia com os direitos e garantias fundamentais, notadamente quando a Carta Política, em seu art. 5º, XXXII, estabelece: “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. Com base no dispositivo supratranscrito, foi editada a Lei nº 8.078/1990 – CDC (Código de Defesa do Consumidor), que trata, dentre outros direitos do consumidor, daquele referente à obtenção de informações de órgãos públicos ou de utilidade pública. O direito à informação encontra agasalho constitucional em vários dispositivos, como, por exemplo, no art. 5º, XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte quando necessário ao exercício profissional. Como a atividade profissional é exercida nos termos da lei, conforme dispõe o art. 5º, XIII, cabe à lei que regula cada profissão estabelecer os limites em que o sigilo profissional deve ser preservado. Também o inciso XXXIII do art. 5º estabelece com todas as letras que “todos têm direito de receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade (...)”. Das considerações acima, tecidas sobre a Ordem Econômica, a possibilidade de obtenção de informações por parte dos consumidores junto aos órgãos públicos ou entidades de caráter público, como a SERASA, SPC, CADIN e tantos outros, não encontra empecilho constitucional ou legal. Em relação à obtenção de informações fiscais, como as que fazem parte da consulta do Convênio ora analisado, merece algumas considerações, em função da ponderação dos interesses envolvidos. O Direito Tributário, por ser matéria de direito público, tem o seu regramento próprio, cuja interpretação e aplicação deve ter sempre em mente a prevalência do interesse público sobre o interesse privado, por razões óbvias. Em linha de princípio, a matéria tributária foi regulada pela Magna Carta de 1988 a partir do art. 24, ao estabelecer competência concorrente entre a União, os Estados-membros e o Distrito Federal para legislarem sobre Direito Tributário. No título VI – Da Tributação e do Orçamento; Capítulo I – Do Sistema Tributário Nacional, a Constituição delegou a lei complementar a função de

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estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários (art. 146, III, “a”), dentre outras. Ao tratar das limitações ao poder de tributar, a Constituição Federal, a partir do seu art. 150, impôs ao Estado várias limitações, de forma a proteger o administrado (contribuinte) da tributação excessiva, ao estabelecer os princípios da legalidade, isonomia, anterioridade, irretroatividade, proibição do confisco, imunidade recíproca de impostos, etc. A matéria de Direito tributário, no que pertine às suas normas gerais, está regulada pelo CTN – Código Tributário Nacional, que, como o próprio nome indica, é uma lei de amplitude nacional, ou seja, aplicável à União, aos Estados-membros, ao Distrito Federal e aos Municípios. O CTN, ao tratar da Administração Tributária – Título IV – Capítulo I – Fiscalização – no seu art. 198, tratou do direito ao sigilo fiscal, dispondo que “É vedada a divulgação, por parte da Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades”. O mesmo dispositivo legal excepcionou a regra, impondo limites ao sigilo fiscal, por força da Lei Complementar nº 104/2001, ao acrescentar o § 3º ao art. 198, ao dispor que, in verbis:

“Art. 198. (...)§ 3º - Não é vedada a divulgação de informações relativas a:I – representações fiscais para fins penais;II – inscrições na Dívida Ativa da Fazenda Pública;III – parcelamento ou moratória”. (sem os grifos no original)

Como se depreende da simples leitura dos dispositivos supra, os dados constantes da Dívida Ativa da Fazenda Pública podem ser divulgados, e nem poderia ser diferente, considerando que é do Termo da Inscrição da Dívida Ativa que se extraem todos os dados constantes da CDA, que por sua vez embasa a Execução Fiscal. Destarte, a Inscrição na Dívida Ativa está regulada no art. 202 do CTN, devendo do seu Termo constar os seguintes elementos: o nome do devedor e, sendo o caso, o dos co-responsáveis, bem como o endereço dos mesmos; a quantia devida e a maneira de calcular os juros acrescidos; a origem e a natureza do crédito com a indicação legal do seu fundamento; a data da inscrição e o número do processo administrativo que deu origem ao crédito. Por seu turno, a lei de Execução Fiscal (L. 6.830/80) pontifica no seu art.2º, § 5º, que: “A Certidão de Dívida Ativa conterá os mesmos elementos do Termo de Inscrição e será autenticada pela autoridade competente”. A Execução Fiscal, contudo, é um processo público, donde as pessoas têm acesso irrestrito a todas as informações constante da CDA a respeito do contribuinte executado, o que só reforça a idéia de que tanto a Inscrição da Dívida Ativa, quando a Certidão de

Dívida Ativa atendem ao princípio da publicidade, nos termos do art. 37, caput, da nossa Constituição. É com base no princípio da publicidade, e, sobretudo, o da eficiência, que o Estado pode e deve realizar convênio com entidade de utilidade pública, como a SERASA, por exemplo, com o objetivo de criar melhores condições de operacionalizar e fiscalizar a arrecadação de tributos, como instrumento de política fiscal de forma a melhor atender ao interesse público e social. No caso da consulta ora analisada, o Estado de Sergipe está autorizado a realizar convênio com a SERASA independente de lei estadual específica que o autorize, considerando que as regras do CTN são normas gerais (art. 146, III, CF/88), ou seja, são normas de âmbito Nacional, aplicando-se à União, aos Estados-membros, ao Distrito Federal e aos Municípios, a fim de atenderem a suas peculiaridades. Apenas nos casos de inexistir normas gerais é que os Estados-membros exercerão a competência legislativa plena, por força do que dispõe o art. 24, § 3º, da nossa Magna Carta. O CTN autoriza a divulgação da Inscrição em Dívida Ativa, ao passo que a Lei 8.666/93 regula a realização de convênio em geral. Portanto, já há previsão legal permitindo a realização do convênio em homenagem ao princípio da legalidade, constitucionalmente prevista, ao determinar que: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei”. Nas sábias palavras de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, o Princípio da Legalidade “implica subordinação completa do administrador à lei. Todos os agentes públicos, desde o que lhe ocupe a cúspide até o mais modesto deles, devem ser instrumentos de fiel e dócil realização das finalidades normativas”. (in, RDP, nº 90, pp. 57-58). Também nos ensina o Saudoso Hely Lopes Meirelles a respeito do princípio da legalidade: “A legalidade, como princípio da administração (CF, art. 37, caput), significa que o administrador público está, em toda a sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se à responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso”. E arremata: “Na Administração Pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração pública só é permitido fazer o que a lei autoriza. A lei para o particular significa `pode fazer assim´; para o administrador público significa `deve fazer assim´”. (In, Direito Administrativo Brasileiro, Malheiros Editores, 29ª edição, pp. 87/88). No caso em análise, verifica-se que é possível a celebração de convênio de cooperação técnica entre um ente público (Estado de Sergipe) e um ente privado de utilidade pública (SERASA). Nesse desiderato, temos que o convênio é um instituto típico do Direito Administrativo, assim entendido como acordo firmado por entidades públicas de qualquer espécie, ou entre estas e entidades privadas, para realização de interesse comum dos partícipes. Há de se ressaltar que o convênio apesar de ser um acordo, não se confunde com o contrato,

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destacando-se os seguintes aspectos, quais sejam: no contrato as partes têm interesses diversos e opostos; no convênio, os interesses são comuns e coincidentes. Ademais, nos contratos existem partes; já nos convênio existem apenas partícipes. É com base nas diferenças, acima mencionadas, que o regramento jurídico dado aos contratos sofre mitigação em relação aos convênios, tendo em vista não haver competitividade, mas apenas e tão somente cooperação, razão pela qual a celebração de convênio dispensa, por exemplo, o processo licitatório. A Lei nº 8.666/93, que disciplina as normas de licitação e contratos da Administração Pública, estabeleceu os contornos legais dos contratos no seu parágrafo único do art. 2º, e no art. 116 determinou a incidência de seus dispositivos, no que couberem, a todos os convênios, acordos e ajustes e outros instrumentos congêneres celebrados por órgãos e entidades da Administração. Em que pese a Constituição de 1988 não fazer menção nominal ao convênio, nada impede a sua celebração como um instrumento de cooperação, conforme se infere do art. 23, parágrafo único, da Carta Maior. De outra parte, a Constituição, ao estabelecer que lei complementar fixe normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, apesar de não mencionar as entidades privadas, não impede acordos de cooperação entre os entes estatais e as entidades privadas, desde que atendam ao fim público. A respeito desse tema, também pensa Hely Lopes (ob. Cit., p. 388), ao asseverar que: “(...) Pela interpretação do texto constitucional e pela defeituosa redação da lei federal ordinária, tem-se a impressão de que o convênio só é admissível entre entidades estatais, para execução por seus agentes, quando, na realidade, a possibilidade de tais acordos é ampla, entre quaisquer pessoas ou organizações públicas ou particulares que disponham de meios para realizar os objetivos comuns, de interesse recíproco dos partícipes”. Conclui-se que é perfeitamente possível a celebração de convênio de cooperação técnica a ser realizado entre este ente estatal e um ente privado, desde que o conteúdo do convênio atenda ao interesse público.

2.3. A serasa como entidade privada prestadora de serviços de utilidade pública

A SERASA Centralização de Serviços dos bancos S/A é uma empresa privada, constituída com base na Lei das Sociedades Anônimas, Lei 6.404/76, com atividade constitucionalmente permitida nos termos do art. 5º, XIV, e art. 170, parágrafo único, da Constituição Federal. Tanto a SERASA como o SPC – Serviço de Proteção ao Crédito são reconhecidos como entidades de caráter público à luz do CDC - Código de Defesa do Consumidor, por força do seu art. 43, §4°, in verbis:

Art.43. O consumidor, sem prejuízo do disposto no artigo 86, terá acesso às informações existentes em cadastros, fichas, registros e dados pessoais

e de consumo arquivados sobre ele, bem como sobre as suas respectivas fontes. (...)§4°. Os bancos de dados e cadastros relativos a consumidores, os serviços de proteção ao crédito e congêneres são considerados entidades de caráter público. (grifei)

Atuante em todos os Estados Brasileiros, a SERASA opera reunindo dados sobre empresas e pessoas, obtidos diretamente dos próprios interessados, cartórios extrajudiciais e outras serventias públicas, Instituições Financeiras, publicações oficiais e outras fontes próprias e pertinentes. As informações constantes do banco de dados da SERASA são acessadas também por instituições bancárias, mercados, lojas e empresas em geral, para apoio a decisões de negócios, perfazendo-se, em verdade, como empresa prestadora de serviços de proteção de crédito, através da anotação de informações a respeito de pessoas físicas e jurídicas em seu banco de dados cadastrais. Insta salientar que seu caráter público resta evidente pelo fato de que suas agências possuem um serviço de orientação às instituições financeiras e demais entidades creditícias. Os serviços prestados pela SERASA atendem à finalidade pública na medida em que fornecem meios para que as instituições possam avaliar a solvabilidade e a situação das empresas com que se relacionam. Seguindo essa linha de raciocínio jurídico, não se pode perder de vista que o direito à informação, assegurado constitucionalmente, tem por finalidade, também, assegurar a boa-fé objetiva que rege as relações jurídicas em geral, notadamente àquelas no âmbito do direito privado, bem como dar maior segurança às pessoas em suas relações jurídicas, principalmente as de natureza creditícia. Em outras palavras, o direito à informação é tão importante quanto o direito ao sigilo de dados, devendo haver uma ponderação no sentido da compatibilização dos interesses contrapostos, a fim de atender o interesse público, em razão de sua supremacia. Nessa senda, nos termos dos documentos acostados ao processo administrativo em epígrafe, especialmente os de fls. 20/23, verifica-se que há um Parecer favorável à realização de convênio, em situação idêntica ao caso ora apreciado, da lavra da Procuradora do Estado da Bahia, Dra. Paula Gonçalves Morris Matos, que, ao tratar do convênio a ser firmado entre o Estado baiano e a SERASA, pontua aspectos relevantes, verbis: “(...) Note-se que referida empresa nada mais é que uma administradora de bancos de dados que oferece aos seus clientes informações negativas (registro de pendências financeiras, como, por exemplo, cheques sem fundos ou protestos) ou positivas (registro sobre hábitos de pagamento, por exemplo) relativas a pessoas físicas e jurídicas, em âmbito nacional, bem como ferramenta de troca de informações que permitem a constante alimentação e atualização dos bancos de dados mencionados, sempre através de intercâmbio entre aludida empresa e seus clientes. Neste sentido, através do convênio que ora se pretende firmar, seriam trocadas periodicamente informações entre os bancos da SERASA-BA – que

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disponibiliza o seu banco de dados de informações públicas, relativo ao Cadastro de Contribuintes do ICMS, tomando por base as informações constantes do SINTEGRA – e da SERASA – que disponibilizaria o acesso ao seu banco de dados CONCENTRE e Relatório Cadastral destinado a órgãos públicos. Cumpre informar que o Sistema Integrado de Informações Sobre Operações Interestaduais com Mercadorias e Serviços – SINTEGRA, consiste num conjunto de procedimentos administrativos e de sistemas computacionais de apoio que está sendo adotado simultaneamente pelas Administrações Tributárias de todas as unidades da federação, conforme Convênio ICMS 57/95. Saliente-se que, através do aludido SINTEGRA, os dados cadastrais básicos das empresas já se encontram disponibilizados, virtualmente, ao público em geral. (...)”. Feitas essas considerações, cabe destacar alguns aspectos a respeito dos documentos acostados pelo consulente, a saber: Quanto à minuta acostada ao processo em epígrafe, não há maiores indagações a fazer, tendo em vista que as regras constantes da mesma obedecem fielmente às normas do Código de Defesa do Consumidor. Em relação ao Lay-out de envios de dados, também dispensa maiores digressões, tendo em vista tratar apenas da formatação dos dados a serem enviados, sem maiores repercussões jurídicas. Além das considerações já mencionadas, cabe destacar ainda que a Lei nº 9492/97 estabelece o protesto extrajudicial no seu art. 1º, como sendo o ato formal e solene pelo qual se prova a inadimplência e o descumprimento de obrigação originada de títulos e outros documentos de dívida. Entre os documentos de dívida mencionados pela lei de protesto, podemos incluir o documento da CDA – Certidão de Dívida Ativa, ou seja, a CDA também pode ser protestada à luz do que dispõe o art. 1º da Lei nº 9492/97. O próprio CTN, ao tratar das causas de interrupção da prescrição, estabeleceu hipótese de protesto judicial no seu inciso II, parágrafo único, do art. 174. O fato de a Fazenda Pública não protestar as suas CDA´s, não quer significar, por si só, a falta de previsão legal, muito pelo contrário, por questão de conveniência e oportunidade acaba optando por não protestá-las, como ocorre também com a ação cautelar fiscal, raramente utilizada pela Fazenda Pública.

3. CONCLUSÃO

Considerando as razões fáticas e jurídicas acima delineadas, opino pela possibilidade jurídica de realização do Convênio de Cooperação Técnica a ser firmado entre a SEFAZ-SE e a SERASA S/A, desde que: A) O conteúdo dos dados a serem fornecidos por este Estado, através da SEFAZ, se limite aos constantes da CDA – Certidão de Dívida Ativa, conforme autoriza o art. 198, § 3º, II, do CTN – na redação dada pela Lei Complementar nº 104/2001, cujo repasse de dados poderá se dar nos termos da minuta acostada ao processo em epígrafe, de fls. 05/11. B) A SEFAZ seja bastante criteriosa no controle das informações que serão repassadas à

SERASA, procedendo de forma diligente, visando evitar a proliferação de demandas judiciais em face do Estado. Recomenda-se, inclusive, a designação de um servidor específico para o desempenho da função.

Este é o parecer, salvo melhor juízo.

À apreciação Superior.

Aracaju, 02 de abril de 2007.

JOSÉ dE SOuSa iBiaPiNOProcurador do Estado de Sergipe

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FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS PARA HEPATITE C CRÔNICA.23

Antônio José de OliveiraProcurador-Chefe / Tribunais Superior

Vladimir de Oliveira MacedoProcurador-Chefe / Contencioso Cível

Humberto Alexandre F. FernandesProcurador do Estado de Sergipe

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EXCELENTÍSSIMO(A) SENHOR(A) DESEMBARGADOR(A) PRESIDENTE DO EGRÉGIO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 5ª REGIÃO

Suspensão de Tutela Antecipatória em Ação Civil PúblicaProcesso: 2007.85.00.000610-41ª Vara Federal da Seção Judiciária do Estado de SergipeAutor: Ministério Público FederalRéus: União, Estado de Sergipe e Município de Aracaju.

O ESTadO dE SERGiPE, pessoa jurídica de Direito Público interno (art. 41, inciso II, do CC), por seus representantes judiciais infra-assinados (art. 12, inciso I, do CPC), com endereço oficial para fins de intimações à Praça Olímpio Campos, nº 14, Centro, Aracaju/SE, vem, perante Vossa Excelência, com fundamento no § 1º do artigo 12 da Lei nº 7.347/85 e artigo 4º da Lei nº 8.437/92, requerer a

SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA TUTELA ANTECIPADA

concedida através da decisão interlocutória proferida con-tra o interesse público nos autos da Ação Civil Pública nº 2007.85.00.000610-4, pelo juízo da 1ª Vara Federal da Seção Judiciária de Sergipe, pelas razões de fato e de direito delineadas a seguir. O pedido está instruído com cópia integral dos autos.

1 HISTÓRICO

Breve histórico dos fatos

Para emoldurar a lide em questão pedimos vênia para transcrever parcialmente o breve relato da decisão objurgada: “Versam os autos acerca de ação civil pública, com pedido de antecipação de tutela, movida pelo Ministério Público Federal em face da União Federal, do Estado de Sergipe e do Município de Aracaju. Informa o MPF que fora instaurado na Procuradoria da República em Sergipe procedimento administrativo correlato a inquérito civil público com intuito de apurar representação formulada pelo Sr. Roberto Dertônio Rocha acerca do fornecimento de medicamento para o tratamento de Hepatite C Crônica, doença da qual é portador. Afirma que o mencionado paciente necessita continuar com o tratamento consistente na aplicação semanal do Interferon Peguilado e ingestão diária de comprimidos Virazole (Ribavirina), tendo em vista que houve interrupção sob a alegação de que já teria se submetido a tratamento anterior com a mesma medicação por um período de 48 (quarenta e oito) semanas, conforme determina a Portaria SAS MS 863/2002, que trata do Protocola Clínico e Diretrizes Terapêuticas para o Tratamento de Hepatite Viral Crônica C, e que só autoriza o uso dos medicamentos uma única vez. Sustenta que em que pese tal portaria vetar a continuidade do tratamento, existe a necessidade do fornecimento dos aludidos remédios, tendo em vista

que a médica do paciente mantém seu entendimento acerca da necessidade da utilização da medicação e que tendo em vista que os medicamentos são de alto custo, o Sr. Roberto Dertônio Rocha não tem condições de assumir as despesas do tratamento. Alega que o Estado (em sentido lato) deve arcar com a preservação da saúde e da própria vida dos indivíduos que não disponham de recursos, em face da proteção dada pela Constituição Federal em seus arts. 196 e 200 e pela Lei nº 8.080/90, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde. Aduz que o art. 7º do mencionado diploma legal, que disciplina o Sistema Único de Saúde, elenca como princípio a integralidade de assistência, o que faz com que o SUS deva prover não apenas os remédios constantes da lista oficial do Ministério da Saúde porque não há como estabelecer que a obrigação de fornecer medicação está adstrita a uma lista oficial padronizada.Requer, em sede de antecipação de tutela, que os requeridos, de forma solidária, providenciem o fornecimento gratuito e ininterrupto ao Sr. Roberto Dertônio Rocha e demais pacientes que no curso da ação demonstrem a necessidade, de medicamento para o tratamento de Hepatite C Crônica, independentemente do tipo de tratamento e da previsão em lista oficial do Ministério da Saúde.” – grifamos. O pedido de antecipação de tutela foi apreciado após a manifestação dos requeridos, quando, então, o juízo a quo, sustentando a máxima efetividade ao direito à saúde e a legitimidade do MPF, concedeu a tutela antecipatória nos seguintes termos:“[...] Ocorre, entretanto, que a médica responsável pelo Sr. Roberto Dertônio Rocha, a Dra. Idalena Esteves Oliveira Santos, detém o entendimento de que o paciente deve voltar a usar a aludida medicação por 72 (setenta e duas) semanas ou mais, sendo que as normas que do Programa Nacional de Prevenção e Controle de Hepatites Virais só autorizam o uso do medicamento uma única vez. Entendo, em sede análise sumária, que assiste razão ao MPF. Por mais que considere necessária a existência de normas regulamentando a distribuição de remédios excepcionais, no presente caso a Portaria SAS MS 863/2002, determinado diploma não pode cercear o direito fundamental de acesso à saúde, a fim de que não lhe seja conferida a máxima eficácia jurídica, conforme já explanado linhas acima. De fato, a limitação imposta na mencionada Portaria tem fundamentação científica e visa a otimização do Programa Nacional de Prevenção e Controle das Hepatites Virais, já que trata de medicamentos importados e de alto custo. Entretanto, de um lado temos a determinação da Portaria, que é uma norma geral, e de outro o entendimento da médica responsável pela paciente, que acompanha especificamente o caso. Assim sendo, tal restrição não pode prejudicar o tratamento recomendado pelo médico responsável pelo tratamento do Sr. Roberto Dertônio Rocha. Entendo que deve prevalecer no presente caso o tratamento indicado pela Dr. Idalena Esteves Oliveira Santos, pois não se pode admitir que a limitação da Portaria SAS MS 863/2002 ponha em risco o direito fundamental primordial, que é o direito à vida.

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Ante o exposto, afiguram-se presente, em sede de cognição sumária, os pressupostos autorizadores da tutela de urgência, atinentes à aparência do bom direito e à caracterização do ‘periculum in mora’, esse último configurado pela impossibilidade de o paciente arcar com as depesas do tratamento indicado por sua médica. DEFIRO, pois, o pedido de antecipação de tutela formulado no sentido de que os requeridos, de forma solidária, providenciem o fornecimento gratuito e ininterrupto ao Sr. Roberto Deortônio Rocha e demais pacientes que no curso da ação demonstrem a necessidade, de medicamento para o tratamento de Hepatite C Crônica, independentemente do tipo de tratamento e da previsão em lista oficial do Ministério da Saúde.”¬ – grifamos. É exatamente contra essa prestação antecipatória que se insurge o Estado de Sergipe.

2. DA PORTARIA SAS/MS Nº 863/2002 - PROTOCOLO CLÍNICO E DIRETRIZES TERAPÊUTICAS - HEPATITE VIRAL CRÔNICA C

Para melhor compreender o tema, e a fim de afastar a visão generalizada proposta pelo MPF, urge lapidar algumas considerações sobre o protocolo clínico da Hepatite Viral Crônica C. Todo protocolo clínico proposto para o tratamento de uma condição patológica é elaborado com base em ampla consulta à literatura científica, para estabelecer os medicamentos considerados necessários para o tratamento, os critérios clínicos dos pacientes que podem ser beneficiados, a forma do tratamento e o respectivo monitoramento. Esse protocolo é submetido à consulta pública, onde são encaminhadas sugestões de ajustes por profissionais da área de saúde e demais interessados. Depois da avaliação das sugestões, o protocolo é revisado, seguindo-se a sua publicação. O protocolo passa, periodicamente, por um processo de revisão, onde novos medicamentos, novas indicações e novos esquemas terapêuticos podem vir a ser incluídos, desde que haja justificativa científica para o ganho terapêutico com a sua inclusão. A Portaria SAS/MS nº 863/2002 regulamenta o tratamento dos portadores de Hepatite-C dentro do Sistema Único de Saúde - SUS, prevendo procedimentos, dosagens, forma de acompanhamento dos pacientes, logística, reações adversas, resposta ao tratamento, etc. Visa, portanto, evitar a distribuição aleatória dos medicamentos, não se destinando, por absoluto, a cercear direitos, mas a garanti-los de forma eqüitativa a todos os necessitados. Como já mencionado, é um ato flexível, sujeito a modificações, desde que demonstrado, cientificamente, a necessidade de alteração dos procedimentos e medicamentos. Vê-se, pois, que o protocolo não busca apenas organizar administrativamente o sistema de saúde público, mas também garantir adequado tratamento médico sem riscos para o paciente. Nesse contexto, os critérios de inclusão e exclusão não foram estabelecidos arbitrariamente pelo Ministério da Saúde, mas sim com base em critérios científicos observados na literatura que acompanha a

referida portaria acostada aos autos. Equivoca-se o MPF quando argumenta que o Estado se nega a fornecer ou interrompe indiscriminadamente o fornecimento dos medicamentos necessários. Conforme se depreende da documentação acostada pelo próprio MPF e também das informações de fl. 148, resta comprovado que o Estado de Sergipe efetivamente fornece aos portadores de hepatite C os medicamentos INTERFERON ALFA, INTERFERON PEGUILADO E RIBAVIRINA, necessários ao tratamento da referida patologia. No caso em questão, a demanda originou-se de uma representação oferecida por um paciente que já se submetera ao tratamento durante 48 semanas, com os medicamentos INTERFERON PEGUILADO E RIBAVIRINA (conforme previsto na portaria), mas que pretendia a continuidade do tratamento. O período acima mencionado, devidamente estipulado com base em critérios científicos, é devidamente referendado pela Sociedade Brasileira de Hepatologia, conforme documentação acostada aos autos pela Advocacia Geral da União. Portanto, os estudos científicos até agora desenvolvidos apontam para o limite de 48 semanas de tratamento com o INTERFERON PEGUILADO. No que se refere à prorrogação do tratamento por 72 semanas, existem apenas pesquisas não concluídas, sem comprovação científica dos resultados. Portanto tal prolongamento submeterá o paciente a dosagens de Interferon muito superiores àquelas indicadas pelos estudos, com sérios riscos à saúde do paciente. Com isso, em que pese a manifestação da médica que opinou pelo “retratamento” do paciente Roberto Dertônio Rocha, tem-se, por evidente, que isso exige a realização de perícia médica a fim de se constatar a real necessidade de sua realização, bem como para resguardar a saúde do paciente. A portaria em questão é, pois, disciplina administrativa necessária, não arbitrária, e que busca otimizar o tratamento dos portadores de Hepatite C Crônica, disciplinando tanto os medicamentos necessários como a forma de tratamento, prevendo a inclusão, o acompanhamento e a exclusão, com bases científicas.

3. DO FUNDAMENTO DO PEDIDO DE SUSPENSÃO§ 1º DO ART. 12 DA LEI Nº 7.347/85 E ART. 4º DA LEI Nº 8.437/92 – TUTELA ANTECIPATÓRIA MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA AO INTERESSE PÚBLICO – GRAVE LESÃO À ORDEM PÚBLICA

Nos termos do § 1º do art. 12 da Lei 7.374/85, a pessoa jurídica de direito público interessada, para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia pública, poderá requerer ao Presidente do Tribunal a que competir o conhecimento do respectivo recurso a suspensão da execução da liminar (tutela antecipada), em decisão fundamentada, da qual caberá agravo para uma das turmas julgadoras, no prazo de 5 (cinco) dias a partir da publicação do ato. Na hipótese dos autos, justifica-se o cabimento do presente pedido de suspensão da execução da tutela antecipatória para fazer cessar grave lesão à ordem pública, considerada em termos de ordem administrativa, na medida em que a execução da decisão impugnada

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afeta o já abalado sistema público de saúde, conforme escorreita lição da Ministra Ellen Gracie lançada em decisão sobre semelhante pedido de suspensão formulado pelo Estado de Alagoas (Suspensão de Tutela Antecipada – STA nº 91 – STF – cópia anexa). Senão vejamos. A questão posta na Ação Civil Pública em epígrafe, nos moldes do precedente citado acima, cinge-se à verificação da aplicabilidade/efetividade dos instrumentos administrativos (portarias e resoluções) elaborados pelo Ministério da Saúde para a regulação do Sistema Único de Saúde em face dos dispositivos constitucionais que regulam o direito à saúde. No caso presente, o juízo a quo afastou a aplicação da Portaria SAS MS 863/2002 que aprova o PROTOCOLO CLÍNICO DE DIRETRIZES TERAPÊUTICAS – HEPATITE VIRAL CRÔNICA C, sob o argumento de que essa disciplina administrativa não poderia afastar a máxima eficácia da norma constitucional que garante o direito à saúde previsto nos artigos 196 e 200 da CF. O tema, como se sabe, está sendo objeto de acirrada discussão jurídica em todos os tribunais do País, tendo chegado recentemente ao Supremo Tribunal Federal quando da analise da Portaria SAS MS 1.318/2002 que disciplina o fornecimento de medicamentos no âmbito do SUS. Nesse precedente levado à Corte Suprema através de pedido de suspensão formulado pelo Estado de Alagoas (STA – 91), a Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministra Ellen Gracie, encampou o argumento do ente federativo de que o Estado de Alagoas não poderia ser obrigado a fornecer de forma abrangente medicamentos não contemplados na lista oficial do Ministério da Saúde, tendo se manifestado nos seguintes termos:“[...]. Verifico estar devidamente configurada a lesão à ordem pública, considerada em termos de ordem administrativa, porquanto a execução de decisões como a ora impugnada afeta o já abalado sistema público de saúde. Com efeito, a gestão da política nacional de saúde, que é feita de forma regionalizada, busca uma maior racionalização entre o custo e o benefício dos tratamentos que devem ser fornecidos gratuitamente, a fim de atingir o maior número possível de beneficiários. Entendo que a norma do art. 196 da Constituição da República, que assegura o direito à saúde, refere-se, em princípio, à efetivação de políticas públicas que alcancem a população como um todo, assegurando-lhes acesso universal e igualitário, e não a situações individualizadas. A responsabilidade do Estado em fornecer os recursos necessários à reabilitação da saúde de seus cidadãos não pode vir a inviabilizar o sistema público de saúde. No presente caso, ao se conceder os efeitos da antecipação da tutela para determinar que o Estado forneça os medicamentos relacionados ‘(...) e outros medicamentos necessários para o tratamento (...)’ (fl. 26) dos associados, está-se diminuindo a possibilidade de serem oferecidos serviços de saúde básicos ao restante da coletividade. Ademais, a tutela concedida atinge, por sua amplitude, esferas de competência distintas, sem observar a repartição de atribuições decorrentes da

descentralização do Sistema Único de Saúde, nos termos do art. 198 da Constituição Federal. Finalmente, verifico que o Estado de Alagoas não está se recusando a fornecer tratamento aos associados (fl. 59). É que, conforme asseverou em suas razões, ‘(...) a ação contempla medicamentos que estão fora da Portaria nº 1.318 e, portanto, não são da responsabilidade do Estado, mas do Município de Maceió, (...)’, razão pela qual seu pedido é para que se suspenda a ‘(...) execução da antecipação de tutela, no que se refere aos medicamentos não constantes na Portaria nº 1.318 do Ministério da Saúde, ou subsidiariamente, restringindo a execução aos medicamentos especificamente indicados na inicial (...)’. 6. Ante o exposto, defiro parcialmente o pedido para suspender a execução da antecipação de tutela, tão somente para limitar a responsabilidade da Secretaria Executiva de Saúde do Estado de Alagoas ao fornecimento dos medicamentos contemplados na Portaria nº 1.318 do Ministério da Saúde.” Diante de tais considerações, resta evidente que a antecipação de tutela concedida no presente processo causará grave lesão à ordem pública do Estado de Sergipe, pois o juízo da 1º Vara Federal da Seção Judiciária do Estado de Sergipe, também de forma abrangente e incondicional, determinou que os requeridos (entre eles o Estado de Sergipe), de forma solidária, providenciem o fornecimento gratuito e ininterrupto ao Sr. Roberto Dertônio Rocha e demais pacientes que no curso da ação demonstrem a necessidade de medicamentos para o tratamento de Hepatite C Crônica, independentemente do tipo de tratamento e da previsão em lista oficial do Ministério da Saúde. Assim, em razão da generalidade da decisão, o Estado de Sergipe está obrigado a fornecer toda e qualquer medicação a todo e qualquer paciente que demonstre ser portador de Hepatite C Crônica, independentemente das disposições regulamentares do Sistema Único de Saúde, em especial, a Portaria SAS MS nº 863/2002, que disciplina o tratamento clínico da hepatite viral crônica C. Portanto, à semelhança da decisão afastada no precedente analisado pela presidência do STF, verifica-se que a decisão ora impugnada também macula a ordem pública, com grave prejuízo ao sistema público de saúde e, por conseqüência, aos demais cidadãos que dele necesssitam, motivo pelo qual se requer a suspensão de sua execução. Vale destacar que o Estado de Sergipe não se recusou e não se recusa a fornecer os medicamentos de sua competência dentro dos limites estipulados pela Portaria nº 863/2002 do Ministério da Saúde, conforme se observa dos documentos acostados ao procedimento administrativo elaborado pelo próprio MPF. Ocorre que o MPF, com o manejo da presente Ação Civil Pública, pretende a completa desregulamentação do serviço de saúde, no caso, do tratamento da Hepatite C Crônica, o que se mostra totalmente inviável. Basta imaginarmos que essa pretensão também se estenda para todas as demais patologias existentes, obrigando-se o Poder Público à distribuição gratuita de todo e qualquer medicamento existente no mercado, independentemente de qualquer programação orçamentária ou mesmo estudo científico para comprovar a eficiência dos mesmos. Estaria, pois, instalado o caos não apenas administrativo, mas também

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social. É CERTO QUE O SISTEMA DE SAÚDE PÚBLICO EXIGE AJUSTES HODIERNOS PARA QUE SE ATENDA MELHOR E A CADA DIA MAIS CIDADÃOS QUE DELE NECESSITAM. PORÉM, EXIGIR OU ADMITIR A SUA COMPLETA DESREGULAMENTAÇÃO NÃO SOLUCIONARÁ OS PROBLEMAS RELACIONADOS À MELHORIA DO SERVIÇO DE SAÚDE, SENDO ESTE, POR CERTO, O OBJETIVO MAIOR DA PRETENSÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, COMO GUARDIÃO DOS INTERESSES DA COLETIVIDADE. Para demonstrar os efeitos desastrosos da antecipação nos termos em que concedida, vale reiterar os argumentos da AGU na manifestação preliminar da União (fls. 69/71):“[...] A Secretaria de Estado da Saúde e o Hospital Universitário fazem rigoroso acompanhamento dos pacientes, com fornecimento gratuito de medicamentos, e realização de exames, inclusive fora do Estado, a fim de verificar a resposta ao tratamento. Os termos em que requerida a antecipação dos efeitos da tutela podem inviabilizar esse trabalho. Isso porque, antes de os médicos do HU e da Secretaria de Saúde recomendarem o uso de Interferon Alfa, Interferon Alfa Peguilado e Ribavirina, submetem os pacientes a vários exames laboratoriais, que identificam a carga viral, o genótipo do vírus, etc, além de coletarem outras informações que irão definir como se dará o tratamento. Para o MPF, entretanto, basta a apresentação de receiturário expedido por médico vinculado ao SUS. O pleito, entretanto, é temerário, uma vez que nem todos os pacientes podem se submeter ao tratamento, seja por reações adversas, seja por comportamentos incompatíveis. Veja-se, nesse sentido, a bula do Pegintron:[...] Por tais razões, caso entenda o juízo ser o caso concessão de liminar, requer que o fornecimento do medicamento esteja condicionado à prescrição pro médico especializado no tratamento de Hepatite C, comprovada a necessidade por meio de exames laboratoriais que atendam aos seguintes ditames:[...] Outrossim, tendo em vista a ausência de estudos acerca das complicações que o uso ininterrupto de Interferon Peguilado, associado à Ribavirina, podem causar ao paciente, importante que o tratamento seja limitado ao prazo limite das pesquisas atualmente realizadas – 72 semanas -, determinando-se ao paciente, em qualquer caso, que assine o Termo de Consentimento Informado, atestando o conhecimento prévio de todas as complicações advindas do tratamento, objetivando prevenir eventuais ações de indenização em face da Fazenda Pública. Por fim, para que não se alegue que a exigência de exames laboratoriais objetiva frustrar os efeitos da liminar, os pedidos podem ser dirigidos ao Hospital Universitário e à Secretaria de Estado da Saúde, os quais se encarregarão de providenciá-los gratuitamente. Quanto ao fornecimento específico para o paciente Roberto Dertônio Rocha, considerando que não há, sequer, conclusão dos estudos acerca da

eficácia do tratamento por 72 semanas, requer que o fornecimento seja limitado a esse período, considerando no cômputo, inclusive, as 48 semanas de tratamento anterior. Outrossim, tendo em vista a inexistência de estudos acerca de tratamento tão prolongado com o Interferon Peguilado, principalmente se for deferido o pedido de fornecimento contínuo, requer que o paciente assuma expressamente todos os riscos do tratamento, em razão da inexistência de estudos que indiquem quais as possíveis reações adversas, em tal caso.” Enfim, a manutenção da antecipação nos termos em que concedida, ou seja, obrigando o Estado a fornecer medicamentos fora da lista oficial e a pacientes não cadastrados e não avaliados adequadamente pelos procedimentos já estipulados pelo sistema público de saúde, causa grave lesão à ordem administrativa na medida em que afasta, sem motivação plausível, os limites da disciplina administrativa existente que racionaliza o sistema de saúde público, sem olvidar os limites científicos do tratamento pretendido, no caso, a Portaria SAS MS nº 863/2202.

4. DO PEDIDO

Face ao exposto, na forma do § 1º do artigo 12 da Lei nº 7.347/85 e artigo 4º da Lei nº 8.437/92, no intuito de evitar grave lesão à ordem pública, inserida nesse contexto a ordem administrativa, o ESTADO DE SERGIPE requer: a) a SUSPENSÃO INTEGRAL DA EXECUÇÃO DA ANTECIPAÇÃO DE TUTELA concedida nos autos da Ação Civil Pública nº 2007.85.00.000610-4, da 1º Vara da Seção Judiciária do Estado de Sergipe, diante da comprovação do correto cumprimento das normas regulamentares, no caso a Portaria SAS MS 863/2002, por parte do Estado de Sergipe; ou b) a SUSPENSÃO PARCIAL DA EXECUÇÃO DA ANTECIPAÇÃO DE TUTELA, para excluir a obrigação de fornecimento de medicamentos fora da lista oficial (Portaria SAS MS 863/2002), bem como para condicionar o fornecimento desses medicamentos à realização dos exames necessários já levados a efeito pela Secretaria de Estado da Saúde e pelo Hospital Universitário da Universidade Federal de Sergipe, limitando-se o tratamento de todos os pacientes, entre eles o Sr. Roberto Dertônio Rocha, ao limite máximo de 72 semanas, condicionado, ainda, à assinatura do respectivo Termo de Consentimento Informado, diante da ausência de comprovação científica segura acerca do tratamento além das 48 semanas previstas na portaria. Tendo em vista a plausibilidade do direito ora invocado e a urgência na concessão da medida, pede seja concedido, LIMINARMENTE, o efeito suspensivo, nos termos do § 7º do art. 4º da Lei nº 8.437/92. Requer, outrossim, seja intimado o juízo da 1ª Vara Cível da Seção Judiciária do Estado de Sergipe do inteiro teor da decisão, a fim de que tomem as providências necessárias ao seu fiel cumprimento. Pede, por fim, seja ouvido o órgão do Ministério Público e intimados dos interessados.Pede deferimento.

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Aracaju (SE), 18 de abril de 2007.

aNTÔNiO JOSÉ dE OLivEiRa BOTELhOProcurador-Chefe - Tribunais Superiores

vLadiMiR dE OLivEiRa MaCÊdOProcurador-Chefe - Contencioso Cível

HUMBERTO ALEXANDRE FOLTRAN FERNANDES

Procurador do Estado

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CONTESTAÇÃO DA ILEGITIMIDADE PASSIVA DO ESTADO EM AÇÕES DE COMPETÊNCIA DA AUTARQUIA DER.24

Pedro Dias de Araújo JúniorProcurador do Estado de Sergipe

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EXMO. SR. JUIZ DE DIREITO DA VARA CÍVEL DA COMARCA DE CAPELA - SE

AÇÃO CIVIL PÚBLICA Nº 200662020634 O ESTADO DE SERGIPE, pessoa jurídica de direito público interno, com sede para inti-mações à Praça Fausto Cardoso, nº 14, Centro, Aracaju, SE, vem, nos autos do processo em epí-grafe, em que litiga com o MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL, apresentar sua MANIFESTAÇÃO CONTRA A MEDIDA LIMINAR POSTULADA, fazendo-a conforme as razões de fato e fundamentos jurídicos elencados na minuta em anexo.

1. HISTÓRICO

Do escorço histórico

Pretende o Ministério Público que seja concedida medida liminar contra o Estado de Sergipe para que o mesmo:

a) dispender recursos para a realização, no prazo de 30 dias, de obras emergenciais na rodovia RDSE 339, conforme indicação do laudo técnico do MPSE; b) multa diária no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais) em caso de descumprimento de ordem judicial. Noutros termos, pretende o Ministé-rio Público a alteração das prioridades do DER de Sergipe, que é quem ao final cuida das rodovias públicas estaduais. Para tanto, ajuizou a ação contra o Estado de Sergipe e o DER. Adiante restará demonstrado que, embora imbuído de excelentes pretensões, o pleito não merece prosperar em face do Estado de Sergipe.

2. A PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE PASSIVA

O Estado “lato sensu”, como concebido pela Constituição Federal, assume a identidade de “Administração Pública”, estruturando-se em “órgãos na gestão de bens e interesses qualificados da comunidade”, na lição de Hely Lopes Meirelles.1 Nesse contexto é que a execução do serviço público bifurcase em dois largos ramos, de terminologia consagrada (inclusive legislativamente) como “admi-nistração direta e indireta”. Integra esta última a “autarquia”, pessoa jurídica de Direito Público, com autonomias técnica, administrativa e financeira, que realiza serviços destacados da Administração centralizada (direta), ainda que tipicamente característicos da Administração Pública. Tudo com vistas a otimizar o desempenho estatal em suas diversas áreas de atuação. A autarquia surge, assim, como titular de direitos e obrigações, poderes e deveres, prerrogativas e responsabilidades. É verdadeira fração personalizada da Pública Administração, na feliz expressão de Celso Antônio Bandeira de Mello. Como consagrado em nosso direito adjetivo, a individuação da personalidade jurídica deságua na

legitimação e capacitação processuais, ou seja, tais entes, dentro da sua esfera de competência e atuação, respondem civilmente pela responsabilidade advinda dos atos que pra-ticou (ou deixou de praticar). O Estado, strictu sensu, só responde, nessas circunstâncias, de forma excepcional, em medida subsidiária e reminescente, quando esgotada e/ou superada a investidura judicial em frente do ente autônomo. O raciocínio, como se sabe estende-se aos três níveis administrativos, dele valendo-se as unidades federadas e os municípios. Pois bem, em Sergipe, por força do que dispõe a Lei n.º 3.591 (doc.2), de 09 de janeiro de 1995, a estrutura organizacional da Administração Estadual vem desvendada em tais moldes, revelando no seu ramo descentralizado, dentre outras autarquias, o Departamento de Estradas e Rodagem do Estado de Sergipe – DER/SE, vinculado à Secretaria de Estado dos Transportes e da Energia (art. 4º, III, 1.4.1). A Lei n.º 3.480, de 13 de maio de 1994 (doc.3), a seu turno, já dispunha sobre a organização básica da referida autarquia, realçando seus elementos conceituais de personalidade jurídica própria e autonomia funcional, como ainda, e sobretudo, instituindo sua finalidade, objetivos e competência. A propósito, destacam-se os seguintes dispositivos: “Art. 3º - O Departamento de Estradas de Rodagem do Estado de Sergipe-DER/SE, tem por finalidade essencial dotar o Estado de Sergipe de uma infra-estrutura rodoviária condizente com as reais necessidades de funcionamento do sistema estadual de transporte de passageiros e de cargas, visando o bem-estar das comunidades sergipanas e o desenvolvimento sócio-econômico do Estado.

“Art. 4º - Objetivando o adequado cumprimento de suas finalidades básicas, o DER/SE executará as suas ações institucionais pautada primordialmente, no desempenho das seguintes atividades fundamentais:I – Garantir a ligação rodoviária permanente entre todas as sedes dos Municípios do Estado de Sergipe;IV - Promover meios no sentido de que a circulação de pessoas e bens por rodovias estaduais ocorra de forma segura, rápida, econômica e confortável;VII - Promover a integração física e operacional do Sistema Rodoviário Estadual com as rodovias federais e municipais e com os demais meios de transportes;” “Art. 5º - Para a consecução de sua finalidade compete, basicamente, ao DER/SE:III - Operar o Sistema Rodoviário Estadual;

Ora, à luz de tais ponderações, em residindo a causa de pedir da presente pretensão em interditar a pista que liga São Cristóvão a Aracaju, nítida resta a competência da referida Autarquia, restando ao Estado de Sergipe a sua manifesta ilegitimidade passiva. Por conta de pleito assemelhado, decidiu o E. Tribunal Regional Federal da 5ª Regi-ão em total harmonia ao raciocínio aqui esposado:

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“Ação de indenização proposta contra a União Federal ao fundamento de que as rodovias federais estariam sujeitas à fiscalização da Polícia Rodoviária Federal, vinculada ao Ministério da Justiça. “As pistas de rolamento são áreas pertencentes ao domínio público da entidade que as constrói. No caso das vias federais compete as DNER, a sua construção, manutenção e fiscalização, sendo a referida autarquia única responsável pela presença de animais na pista. “Ilegitimidade passiva ad causam da União Federal. Extinção do processo sem julgamento do mérito” (grifei) (Apelação Cível nº76.670 – 3ªT – Ciência Jurídica 77/102). Mutatis mutandis, impõe-se a aplica-ção desse judicioso entendimento ao caso em foco, transladando-se para a esfera estadual os elementos de definição identificados a nível federal, sempre observando-se a legislação específica. 3. DO DIREITO

3.1. O custo da atividade administrativa

Ser a atuação do Poder Público onipresente no cotidiano de toda e qualquer pessoa é axioma decorrente da própria convivência em sociedade, pois em qualquer situação da vida social, por mais privada que a mesma pode parecer, estará sendo garantida por alguma espécie de atividade administrativa. Esta onipresença estatal, e conseqüentemente da Administração Pública, gera, por evidente, a necessidade de gigantescos contingentes de recursos públicos, suficientes para manter a sua atuação. Em que pese tal fato ser decorrente do incremento do papel interventivo do Estado moderno, na particularidade brasileira houve uma exarcebação ainda maior da presença estatal em todos os campos da sociedade, haja vista que o Poder Constituinte originário de 1988 – ainda sob os efeitos da embriaguez libertária decorrente do término da ditadura militar, à qual o País esteve submetido durante décadas – pretendeu fixar como solução a todos os problemas do tecido social brasileiro a atuação provedora do Estado. Este entendimento é um dos fatores que explicam a constante alteração da Carta Magna, eis que é inquestionável reconhecer-se que o amadurecimento da democracia brasileira e suas instituições, com parâmetros nas suas congêneres norte-americana e européias, gera a admissão de que recursos públicos não nascem em árvores, mas dependem de disponibilidade pela própria sociedade. Embora seja muito importante tal evolução de pensamento para a Administração Pública e, portanto, para o direito administrativo brasileiro, este é um campo de segunda importância para a doutrina juspublicista nacional, a qual, não raro, fixa pensamentos hermeticamente fechados aos debate acerca do custo da atuação administrativa, como se o Estado pudesse originar recursos públicos pela “casa da moeda”. O Poder Público não gera recursos, mas sim administra os que consegue angariar junto à coletividade, através de sua atividade tributária e outras afins. Fazendo-se uma analogia com importante passagem cristã, não pode mais o Estado ser visualizado como entidade milagrosa capaz de “multiplicar os pães”, mas sim como ente, criado pela sociedade, com a finalidade de suprir,

de acordo com os recursos públicos disponibilizados para a coletividade, as carências mais prioritárias desta.3.2. A importância dos custos para a Adminis-tração

A esta altura da evolução do pensa-mento juspublicista nacional, não há mais dúvida de que, em se tratando de atividade administrativa, tudo depende de recursos (dinheiro), pois “como dizem os americanos, não existe almoço grátis” no capitalismo.2 Noutros termos, a atividade administrativa depende de recursos públicos disponíveis para sua consecução, estando, mesmo, limitada a atuação administrativa à existência de ditos recursos. É o que Ricardo Lobo Torres chama de transformação do Estado Social para “Estado Social Fiscal”. Hoje a jurisprudência pátria reconhece a limitação da atividade administrativa aos recursos públicos existentes, conforme se observa nos escólios colacionados: “Nada pode fazer a Administração, que não se contenha em seus recursos, e ademais, há de fazê-lo segundo as previsões programáticas e orçamentárias, aí ingerindo também outro Poder, o Legislativo, cujas atribuições igualmente restaram atropeladas”3 Destaca-se, ainda, a posição do STF: “É que a realização dos direitos e-conômicos, sociais e culturais (...) depende em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárais do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política”4

3.3. O princípio constitucional da reserva do possível

O jovem e respeitado professor fluminense FLÁVIO GALDINO traçou inovador e relevante estudo do clássico norte-americano The cost of Rights (Cambridge, Havard Universty Press, 1999), da autoria de STEPHEN HOLMES e CASS SUNSTEIN. Sintetizando sua teoria, a evolução dos direitos nas constituições mundiais e, em especial, na nossa, trazem as seguintes fases: a) “indiferença”: aqui o caráter positivo da prestação jurisdicional e o respectivo custo são absolutamente indiferentes ao pensamento jurídico; b) “reconhecimento”: reconhece-se, institucio-nalmente, que há direitos, positivamente fixados, a prestações estatais (sociais), afastando-se, entretanto, a exigibilidade de implementação de tais direitos; c) “utopia”: a crença ideológica – baseada na influência da doutrina econômica keynesiana – em despesas sem limites iguala direitos negativos e positivos, reconhecendo-se a positividade dos direitos ditos sociais, mas desprezando-se o elemento custo; d) “limitação dos recursos”: com a superação dos paradigmas keynesianos, traça-se o equilíbrio orçamentário como objetivo, sustentando-se que as despesas públicas devem limitar-se à receita do Estado. Tal realidade lança luzes sobre o pensamento jurídico, o qual, se ainda não consegue incluir a realidade em se espectro de considerações, passa a ter em conta, ao menos, as impossibilidades materiais de prestações

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públicas. A “reserva do possível” é a construção doutrinária segundo a qual, havendo a fixação de um direito subjetivo passível de sindicabilidade judicial, o único limite à sua implementação recai sobre as reservas materiais, ou seja, as possibilidades econômicas e financeiras do Estado para tanto. A referida construção doutrinária é devida-mente reconhecida pela Suprema Corte brasileira, conforme se verifica na análise do voto do ministro relator em recente julgado no STF, verbis: “Vê-se, pois, que os condicionamentos impostos pela cláusula da ‘reserva do possível’ ao processo de concretização dos direitos de segunda geração - de implantação sempre onerosa – traduzem-se em um binômio que compreende, de um lado, (1) a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público e, de outro, (2) a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas. Desnecessário acentuar-se, considerado o encargo governamental de tornar efetiva a aplicação dos direitos econômicos, sociais e culturais, que os elementos componentes do mencionado binômio (razoabilidade da pretensão + disponibilidade financeira do Estado) devem configurar-se de modo afirmativo e em situação de cumulativa ocorrência, pois, ausente qualquer desses elementos, descaracterizar-se-á a possibilidade estatal de realização prática de tais direitos” (informativo 345 STF) O caso do Estado de Sergipe é a ine-xistência de recursos suficientes para atender a toda a demanda de serviços públicos dentro do território estatal. Neste sentido, há de se fazer o que se chama de “escolhas trágicas”, termo extraído coincidentemente do jargão médico, onde um plantonista só possui uma equipe de emergência e chegam dois pacientes igualmente em estado grave para serem atentidos: materialmente, só se pode tentar salvar uma vida. Ora, os custos públicos são finitos e as necessidades públicas infinitas. A análise dos custos e benefícios da atividade estatal a ser desempenhada é de fundamental importância para o direito administrativo, encontrando-se a Administração pública – obviamente a Administração ética, proba e comprometida com o interesse público – jungida em uma clara alusão à expres-são de CALABRESI e BOBBIT (Tragic choices – the conflicts coiety cofronts in the allocation of tragically scarce resources)5 , às chamadas “escolhas trágicas”. Noutros termos, numa realidade de escassos recursos públicos, o Estado, e conse-qüentemente a Administração Pública detentora da missão de produzir a atividade administrativa necessária à atuação estatal, devem valorar quais são sas providências mais prioritárias, a fim de com elas gastar os recursos públicos dis-ponibilizados pela sociedade. No caso do Estado, administrar compreende o reconhecimento e diagnóstico das necessidades pú-blicas, a obtenção e afetação de recursos necessários à sua satisfação e a definição de prioridades dentro da escassez de recursos públicos. E esta escolha é atribuição exclusiva do chefe do Executivo, conforme adiante restará demonstrado.

3.4. O pedido como ofensivo à separação dos Poderes

A compreensão do papel do controlador sistemático dos atos administrativos, com ênfase para os princípios, nada mais representa do que a adequada ciência do sistema jurídico, que somente existe se tal ênfase for respeitada. Igualmente, convém ter nítido que o zelo pela subordinação da função administrativa às finalidades constitucionais revela-se tarefa atinente a todos os Poderes, mas deve-se frisar que tal controle jurisdicional não deve se consubstanciar em função executiva. Neste passo, notadamente quando se medita a propósito do controle judicial das declarações unilaterais da Administração Pública, resulta imperativo volver o olhar, atentamente, para a dimensão principiológica da tutela, a qual faz as vezes de zona superior de con-vergência dos demais aspectos do controle e que não pode perder, jamais, o princípio da independência dos Poderes. O pleito principal, na realidade, é um pedido de substituição do juízo discricionário da Administração pelo juízo discricionário do Magistrado, numa indevida e flagrante violação da independência dos poderes.

3.5. Da jurisprudência firmada no Superior Tri-bunal de Justiça, impedindo a invasão do mérito do ato administrativo pelo Judiciário

Conforme já decidido à extasiedade pelo Superior Tribunal de Justiça, as obrigações de fazer permitidas pela Ação Civil Pública não têm força de quebrar a harmonia e independência dos Poderes. Confira-se, a propósito, a redação do art. 11 da Lei da Ação Civil Pública: “Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz determinará o cumprimento da prestação da atividade devida ou a cessação da atividade nociva, sob pena de execução específica, ou de cominação de multa diária, se esta for suficiente ou compatível, independentemente de reque-rimento do autor” O Superior Tribunal de Justiça, em vários julgados, vem entendendo que este artigo não pode ser aplicado face à Fazenda Pública se implicar em substituição de juízo discricionário do administrador pelo do juiz. Isto se dá porque o controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário está vinculado a perseguir a atuação do agente público no campo da obediência aos princípios constitucionais da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da eficiência, da finalidade e, em casos excepcionalíssimos, no controle do mérito, o que não é o caso dos autos. Como é sabido, o Poder Público só pode fazer o que a lei manda (poder vinculado) ou autoriza (poder discricionário). Os atos que se classificam como vinculados têm seus contornos quase que totalmente delineados pela lei, que deve fielmente ser observada pelo agente público, sob pena de nulidade do ato. Sendo a prática de tais atos um dever da Administração, a contrario sensu constituem-se em num direito dos administrados.

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Assim, a omissão do agente público na prática de tais atos ou a sua prática sem a fiel observância do enunciado da lei, em todas as suas especificações, traria ofensa a direito do administrado que, no primeiro caso, poderia, através do Poder Judiciário, compelir a Administração à prática do ato, e no segundo, a decla-rar a sua nulidade. Mesmo que se considerasse o ato em questão como sendo vinculado – o que seria uma heresia jurídica – ainda assim outros aspectos devem ser analisados. No plano internacional de estudos dos princípios administrativos, a escola administrativa alemã criou mais um princípio para os atos administrativos, em especial os vinculados, que é o prinzip praktischer konkordanz, ou seja, o princípio da concordância prática, que possui aplicações inegáveis no direito pátrio.6 Por tal princípio, os bens constitucionalmente tutelados devem ser coordenados de tal maneira, na solução do problema, que todos conservem sua entidade, dentro do possível. Assim sendo, o problema enfrentado em Nossa Senhora das Dores não é um problema pontual; muito pelo contrário, está ele inserido num plexo programático de fatos estaduais e deve ser analisado coletivamente, confrontando-o com o resto das prioridades estatais. A partir daí, expedem-se atos administrativos para a consecução do fim público. Nesta categoria de atos, embora o agente público esteja vinculado à forma legal para a realização do ato, à sua finalidade, que é, sempre, o interesse público, e deva ser competente para praticá-lo, tem liberdade de escolha de sua conveniência e oportunidade para praticá-los, pois pode haver outras formas de melhor emprego dos recursos públicos do que simplesmente aportá-los em um hospital falido. O caso dos autos é um aporte de re-cursos públicos para salvar uma empresa privada que foi mal gerenciada, o que é totalmente inaceitável.

4. O ENCAMINHAMENTO DO ORÇAMENTO ESTATAL PELO EXECUTIVO E A SUA APROVAÇÃO PELO LEGISLATIVO – ATO POLÍTICO INSINDICÁVEL PERANTE O JUDICIÁRIO

O debate acerca da possibilidade de controle jurisdicional de atos de competência dos outros poderes estatais (executivo e legislativo), no exercício autônomo de função estatal previstos expressamente na Constituição Federal, tem suscitado muitas controvérsias, pondo-se em contraposição de um lado o princípio da separação de poderes, ou como tem denominado o Direito Constitucional Moderno o princípio da separação de funções do Estado, e do outro a proteção dos direitos individuais. O ato político, categoria pertencente aos atos constitucionais, é expedido a nível infraconstitucional, predominantemente no exercício das funções executiva e legislativa, de caráter geral, o que o diferencia dos atos administrativos que satisfazem interesses coletivos ou individuais, extinguindo, modificando ou reconhecendo direitos, podendo, por este motivo, serem revistos pelo Judiciário, mesmo quando estão formalmente dispostos na Constituição. Enquanto o ato político, por ter o mesmo

fundamento de validade (constitucional) do princípio da inafastabilidade da jurisdição e das liberdades individuais, bem como ter sido conferido de forma incontrastável a um dos Poderes do Estado, pelo Poder Constituinte originário, não poderá ser revisto pelo Poder Judiciário por violar o princípio da separação de funções também previsto como princípio constitucional inderrogável, salvo se manifestamente ilegal. No caso dos autos, o que se tem é um ato do Poder Executivo – encaminhamento de proposta de lei orçamentária – analisado e aprovado pelo Poder Legislativo. Esta espécie de análise, julgamento e aprovação do ato administrativo está prevista nos arts. 70 e 75 da Constituição Federal e consiste na fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União, seguindo-se o mesmo modelo para os Estados-membros, dentre os quais o de Sergipe. E, neste sentido, impende considerar que se o escopo deste processo é fazer a análise contábil do orçamento público – ato político re-ferendado por dois poderes estatais - infere-se que desta ilação se tem a total inapropriedade da presente ação, eis que o foro competente para esta análise é o Tribunal de Contas do Estado de Sergipe, órgão constitucionalmente criado para esta finalidade. O Tribunal de Contas é órgão auxiliar do Poder Legislativo, exercendo controle externo referente à fiscalização financeira e orçamentária, porém não sendo subalterno àquele Poder ou mesmo aos outros Poderes existentes, tendo suas atribuições definidas no art. 71 da Carta Magna. Este órgão da Administração Pública exerce funções que possuem variados matizes. Com maior precisão, temse como enumeração das funções exercidas por este órgão as seguintes: fiscalização e controle, função opinativa, consultiva e informativa, função corretiva e sancionatória, função administrativa e a em foco que é a função jurisdicional. Essas funções poliédricas não são exclusividade dos TC. Nesse sentido, Ada Pellegrini Grinover7 leciona: “A tripartição clássica dos Poderes do Estado não obedece, no direito positivo, à rigidez com a qual fora idealizada. O Executivo freqüentemente legisla (Const. arts. 68 e 84, inc. VI), o Legislativo é chamado a julgar e o Judiciário tem outras funções, além da jurisdicional. Tal tendência faz-se presente em todas as organizações estatais modernas.” Mais especificamente pode-se afirmar que o Tribunal de Contas exerce atos típicos de um órgão de função jurisdicional uma vez que julga contas dos administradores e demais responsáveis como prevê a Constituição Federal de 1988 em seu art. 71, II que estabelece a competência do Tribunal de Contas da União e que, pelo teor do art. 74 deste Diploma, também se aplica aos Tribunais de Contas dos Estados.

Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:I — …II — julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta,

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incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público;

Leciona o Ministro Carlos Ayres Britto no mesmo sentido: “Algumas características da jurisdi-ção, no entanto, permeiam os julgamentos a cargo dos Tribunais de Contas. Primeiramente, porque os TC´s julgam sob critério exclusivamente objetivo ou da própria técnica jurídica (subsunção dos fatos e pessoas à objetividade das normas constitucionais e legais). Segundamente, porque o fazem com a força ou irretratabilidade que é própria das decisões judiciais com trânsito em julgado. Isto, quanto ao mérito das avaliações que as Cortes de Contas fazem incidir sobre a gestão financeira, orçamentária, patrimonial, contábil e operacional do Poder Público.” Grande parte da doutrina, na esteira de Pontes de Miranda, entende que os Tribunais de Contas são detentores de parcela da atividade jurisdicional. Apesar de não integrar o Poder Judiciário, as decisões do mesmo que julga as contas dos administradores públicos não poderão ser reapreciadas por este Poder. Nesse toar a-firma Castro Nunes9: “A jurisdição de contas é juízo constitucional de contas. A função é privativa do Tribunal instituído pela Constituição para julgar as contas responsáveis por dinheiro e bens públicos. O judiciário não tem função no exame de tais contas, não tem autoridade para as rever, para apurar o alcance dos responsáveis, para liberar. Essa função é própria e privativa do Tribunal de Contas.” É de se registrar que há âmbitos de competência específicos para as decisões dos Tribunais de Contas e do Poder Judiciário. A jurisdição penal e civil é típica e exclusiva do Poder Judiciário, mas em seu nicho de competência os Tribunais de Contas exercem a jurisdição em sua integralidade, só cabendo à jurisdição civil e penal na análise de questões formais e de garantias constitucionais, qual seja, o res-peito ao devido processo legal. Desse modo, pode-se afirmar que submeter as decisões oriundas dos TC à nova apreci-ação pelos Tribunais significaria mitigar a efetividade de suas decisões e ferir as garantias de independência e autonomia destas Cortes especializadas. No caso dos autos, não pode sequer o Judiciário analisar previamente a aplicação da lei orçamentária sem esta ter sido apreciada pela corte jurisdicional competente. Ao Judiciário cabe apenas a análise de eventuais ilegalidades que possam surgir no curso do processo não podendo adentrar no campo do mérito. Isso se deve, além de outros fatores, em virtude da garantia de harmonia, independência e autonomia que deve existir entre os Poderes da República. Nesse sentido, embora alguns arestos não aceitem o caráter jurisdicional de algumas decisões dos Tribunais de Contas, embora admitam sua intangibilidade quanto ao mérito e eficácia de suas decisões: “MANDADO DE SEGURANÇA - Inafastabi-lidade da apreciação pelo Judiciário - Sujeição das decisões do Tribunal de Contas, as quais não têm natureza judicial, mas administrativa - Súmula 6 do

Supremo Tribunal Federal - Atribuição do Judiciário de coibir ilegalidades, não de discutir critérios técnicos de aferição legitimamente adotados - Preliminar rejeitada. (Mandado de Segurança n. 72.598-0/0 - São Paulo - Órgão Especial - Relator: Sinésio de Souza - 10.12.2003 - V.U.) JUBI 93/04 O egrégio Tribunal de Justiça de Sergipe também não se furtou a decidir sobre a matéria quando provocado a fazê-lo. Facultamo-nos reproduzir em sua íntegra o v. voto condutor do acórdão unânime, eis que sintetiza e esclarece definitivamente matéria.

Nr. Processo: 200221229 TramitacaoNr. Acórdao.: 1684/2002 (na íntegra)Nr. Recurso.: 0182/2002Ação/Recurso: AGRAVO DE INSTRUMENTOOrg Julgador: CÂMARA CÍVEL - IIIRelator.....: DES. ROBERTO EUGENIO DA FONSECA PORTORevisor.....: DES. FERNANDO RIBEIRO FRANCOMembro......: DESA. JOSEFA PAIXÃO DE SANTANAProcedência.: ARACAJUAgravante...: TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE SERGIPEAdvogado(a).: VERA LUCIA FRANCA RA-MOSAgravado....: ANTONIO VALDIONE DE AS

EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO - DECI-SÃO JUDICIAL QUE FIXA COMO PONTO CON-TROVERTIDO A REALIZAÇÃO DE PERÍCIA CONTÁBIL PARA SE AFERIR SE HOUVE SU-PERFATURAMENTO DE OBRA PÚBLICA JÁ SUBMETIDO AO CONTROLE DO TRIBUNAL DE CONTAS ATRAVÉS DE DECISÃO PROFERIDA NO ÂMBITO DESTE ÓRGÃO - INTROMISSÃO DO JUDICIÁRIO EM ÁREA DE COMPETÊNCIA EXCLUSIVA DA CORTE DE CONTAS - PROVI-MENTO DO AGRAVO - DECISÃO UNÂNIME.

Relatório: RELATÓRIO O TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE SERGIPE interpôs Agravo de Instrumento, com pedido de efeito suspensivo, por não se conformar com a decisão prolatada pelo Juízo de Direito da Comarca de Gararu, Distrito Judiciário de Itabi, nos autos de uma Ação Anulatória de Ato Administrativo ajuizada pelo ex-prefeito de Itabi ANTÔNIO VALDIONE DE SÁ. A decisão combatida, de cópia acostada ao instrumento, determinou a realização de perícia judicial para que o auxiliar da justiça aponte se houve ou não superfaturamento da obra realizada na Rua Repetidora, através da Construtora Amorim Silva, no Município de Itabi. Em suas razões de agravo de instrumento, o recorrente suscita que o julgamento das contas dos administradores públicos é atribuição conferida pela Constituição Federal - art. 71 - e escapa à análise do Poder Judiciário, salvo no caso de questionamentos sobre a obediência ou não do devido processo legal. A decisão do Tribunal de Contas considerou ilegal a despesa efetuada com a obra dantes referida, entendendo que houve superfaturamento. Dentro dessa ótica, defende o agravante que tal decisão é eminentemente técnica e interna corporis. Portanto, enfatiza o recorrente, ao Judiciário cabe, apenas, o exame da legalidade do ato. O efeito suspensivo foi negado

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por ausência de demonstração do periculum in mora por parte da recorrente. Desta decisão, adveio o agravo regimental nº 042/2002, onde foi reconsiderada, em sede juízo de retratação, a decisão anterior, atribuindo o efeito suspensivo reclamado. Informações do Juízo a quo às fls. 63/66. Não houve contrarazões. Instada a se manifestar, a Procuradoria de Justiça opinou pelo provimento do recurso às fls. 69/71. É o relatório.

VOTO: Preenchidos os requisitos de admissibilidade desta espécie recursal, conheço do agravo. No mérito, reafirmo aquilo dito ao tempo da apreciação do agravo regimental. “O que se discute, numa primeira passagem, é a possibilidade de exame por parte do Judiciário das contas rejeitadas pelo Tribunal especializado. Neste tema, apesar da Corte de Contas não figurar no rol dos órgãos componentes do Poder Judiciário (CF, art. 92, I a VII), é indisputável que ela exerce com independência, autonomia e exclusividade, o segmento específico da jurisdição em matéria de fiscalização “contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial” (art. 70), como órgão de controle externo, acoplado ao Legislativo (art. 71). Entretanto, não se pode dizer que suas decisões não estão sujeitas à apreciação do Judiciário, pois tal premissa esbarraria no comandado normativo do artigo 5º, inciso XXXV, que traz em seu bojo o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional. Para se conceder a real eficácia e coerção de seus julgamentos, em busca da harmonia entre as competências constitucionalmente estabelecidas, deve-se admitir, como afirmado pelo ilustre processualista Rodolfo de Camargo Mancuso, que aquela “revisão judicial não se dá necessariamente e, quando ocorra, não poderá implicar uma singela “substituição” dos critérios adotados pelo Juiz de contas, por aqueles que acodem ao Juiz togado. A se entender de outro modo, ter-se-ia o Tribunal de Contas como “instância inferior” ou “primeiro grau” em face do Poder Judiciário, o que, com certeza, não está na letra nem no espírito do texto constitucional e configuraria exegese de todo aberrante do nosso sistema jurídico. A nosso ver, não imbricam, não se confundem nem se sobrepõem as funções do Poder Judiciário e dos Tribunais de Contas” (BDA, Maio/98, p. 295.). Abordando tal aspecto, o Supremo Tribunal Federal vem assim decidindo: “Ao apurar o alcance dos responsáveis pelos dinheiros públicos, o Tribunal de Contas pratica ato insuscetível de revisão na via judicial a não ser quanto ao seu aspecto formal ou tisna de ilegalidade manifesta” (MS nº 7.280, Relator Min. Henrique D’ávila, Revista STJ 30, p. 395). “Tribunal de Contas. Julgamento das contas de responsáveis por haveres públicos. Competência exclusiva, salvo irregulari-dade formal grave” (MS nº 6.960, Re-lator Min. Nunes Leal, RTJ 43/151). “É logicamente impossível desconstituir ato administrativo aprovado pelo Tribunal de Contas, sem rescindir a decisão do colegiado que o aprovou; e para rescindi-la é necessário que nela se constatem irregularidades formais ou ilegalidades manifestas” (Min. Gomes de Barros, Revista STJ 30, fev./1992, p. 379). Com efeito, em verdade, não pode o Judiciário adentrar no mérito do julgamento do Tribunal de Contas sem qualquer vício formal ou ilegalidade manifesta no processo administrativo que apurou o já aludido superfaturamento. No caso dos autos, se o Judiciário realizar perícia para apurar se houve falhas no

estudo realizado pelo Tribunal de Contas que ensejou na constatação de superfaturamento de obra pública, redundará, a meu ver, em um novo julgamento das contas do citado Administrador Público, ocasionando invasão de competência exclusiva da Corte especializada. Nesse sentido, afigura-se-me inadmissível à primeira vista, a fixação de ponto controvertido sobre tal questão, sendo permitido, no entanto, ao agravado a sua defesa quanto aos aspectos formais suscitados na sua peça inicial. (...) Ora, não havendo suspensão da decisão, a perícia será realizada durante o trâmite neste recurso, permitindo então que se faça uma nova avaliação das contas por uma autoridade não legitimada para tal finalidade, podendo acarretar dano irreparável ao agravante.” Em reforço à fundamentação acima trazida, transcrevo parte do parecer nestes autos pela eminente Procurado-ra de Justiça, a qual ratifica as ra-zões aqui expendidas: “Os argumentos lançados pela magistrada da origem, seja no decisório impugnado, seja nas informações de agravo, data vênia, não merecem acolhida. Pretende ela, mercê do principio da inasfatabilidade do acesso à justiça, simplesmente por ao relento a independência da Corte de Contas, alçada a dogma de caráter igualmente constitucional. È necessário observar que o controle do ato administrativo pelo Judiciário – e o parecer prévio do Tribunal de Con-tas nada mais é do que um ato admi-nistrativo – apenas se faz viável no seu aspecto formal. Incursionar nas circunstâncias materiais, ou no mérito do ato da Corte de Contas, é tornar desnecessária e iníqua a sua própria existência.” Com essas razões, DOU PROVIMENTO o recurso. No mesmo sentido, decisão exarada no acórdão referente à apelação cível da decisão prolatada no processo tombado pelo nº 200222349 relatado pelo digno Desembargador Roberto Porto. Além disso, cumpre afirmar que se as contas pudessem ser revistas a qualquer tempo pelo Judiciário, não haveria razão de ser de tal Tribunal – órgão qualificado pela garantia e investidura de seus Conselheiros que gozam as mesmas garantias, prerrogativas, impedimentos, vencimentos e vantagens dos Desembargadores do Egrégio Tribunal de Justiça (art 71, §2º da Constituição do Estado de Sergipe).

5. DO PEDIDO

Pelas razões acima delineadas, requer o Estado de Sergipe seja reconhecida a preliminar de ilegitimidade passiva e indeferida a medida liminar, posto que se cambiaria o juízo discricionário do administrador pelo do juiz, por ser medida de direito e de justiça.

Pede deferimento.

Aracaju, 10 de agosto de 2006.

PEdRO diaS dE aRaúJO JúNiORProcurador do Estado

OAB-SE 80-b

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Notas e Referências

1. in Dir. Adm. Brasileiro, Malheiros, 22ª ed., p. 638.2. FIGUEIREDO, Maurício e RIOS DA NÓBREGA, Marcos Antônio. “A lei de respon-sabilidade fiscal e seus limites máximos transitórios”. In Lei de Responsabilidade Fiscal: Teoria e Prática, Org. Carlos Valder do Nascimento. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002, p. 4.3. TJSP, j. 7.5.92, Relator Desembargador Marco César, apud DALLARI BUCCI, Maria Paula, p. 274.4. ADPF MC 45 – DF, Rel. Ministro Celso de Melolo. J. 29.04.2004, in Informativo de Jurisprudência STF 345, de 26 a 30.04.2004.5. New York, London. QQ Norton and Company, 1978.6. Konrad Hesse, in Grundzüg des Verfassunfgsrechsts der Bundesreplubick Deut-chsland, Heildeberg, C.F. Müller Juristicher Verlag, 1978, p. 28, apud FREITAS, Juarez: O controle dos atos administrati-vos e os princípios fundamentais, São Paulo : Malheiros Editores, 1997, p. 34.7. Em Teoria Geral do Processo, ed. Malheiros, 2003. 8. Em O Regime Jurídico do Tribunal de Contas. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ – Centro de Atualização Jurídica, v. I, nº 9, dezembro, 2001.Disponível em www.direitopúblico.com.br.9. Em Teoria e prática do Poder Judiciário, Rio de Janeiro, Forense, p. 16.

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ANULATÓRIA FISCAL.25

Robson Nascimento FilhoProcurador do Estado de Sergipe

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EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA____ VARA CÍVEL DA COMARCA DE ARACAJU – SERGIPE

ANULATÓRIA FISCALPROCESSO: XXXX REQUERENTE: XXXXREQUERIDO: ESTADO DE SERGIPE

O ESTADO DE SERGIPE (FAZENDA PÚBLICA ESTADUAL), Pessoa Jurídica de Direito Público Interno, por seu Procurador “IN FINE”, no exercício de suas atribuições legais, com endereço profissional (Praça Olímpio Campos, n.º 14), local onde recebe as intimações judiciais, nos autos da AÇÃO ANULATÓRIA DE DÉBITO FISCAL, Processo acima identificado, em curso neste Juízo, promovida por XXXXX, vem, perante Vossa Excelência, tempestivamente, apresentar RESPOSTA EM FORMA DE CONTESTAÇÃO, o que faz com base nos elementos de fato e de direito a seguir aduzidos:

1 SÍNTESE DA DEMANDA

O requerente pleiteou a anulação do crédito tributário objeto do Auto de Infração XXXX e, para tanto, alegou em síntese que: a) o transporte de mercadorias desacompanhadas de nota fiscais foi devidamente justificado no momento da fiscalização, uma vez que, na oportunidade, registrou o equívoco quando da expedição do manifesto de cargas e que resultou na remessa das notas fiscais noutro veículo de transporte de cargas. Ressaltou que o equívoco foi constatado mediante a apresentação das notas fiscais; b) as autoridades fazendárias não registraram no lançamento a apresentação posterior das notas fiscais, ou seja, depois da chegada do veículo e que não se pode alegar que houve desvio no destino das mercadorias em trânsito; c) o fato não pode ser tipificado na hipótese prevista no artigo 141 do regulamento do ICMS, pois não houve emissão de nota fiscal que não correspondesse a uma efetiva saída e que as notas fiscais que acompanharam a mercadoria identificam com clareza o emitente e destinatários, nele incluído os respectivos endereços, os valores do imposto e da venda; d) não houve nenhum prejuízo para a fiscalização em função da emissão regular das notas fiscais e do pagamento dos impostos devidos e que o requerente não faz parte do negócio de venda e nem tão pouco teria qualquer vantagem na prática de qualquer ilícito fiscal; e) restou demonstrado que não houve intenção de não pagar os tributos devidos pelo devedor, uma vez que o respectivo imposto foi declarado na emissão das notas fiscais e não são pagos pelo transportador; f) a jurisprudência tem se manifestado pela improcedência do lançamento que autua pessoa diversa, no caso o transportador, na hipótese de mercadoria tida como desacompanhada de nota fiscal quando se comprova a existência do referido documento;

g) a legislação tributária ressalva que os vícios, erros e omissões verificados no documento fiscal não implicam na inidoneidade do documento, desde que não importem em sonegação do imposto.

2. DA IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO DA AÇÃO

O pedido da presente ação deve ser declarado improcedente tendo em vista a legalidade do lançamento que decorreu da configuração do ilícito tributário e da legislação aplicável ao caso, conforme demonstraremos a seguir.

2.1 Delimitação da Lide

A lide versa sobre a caracterização ou não do ilícito tributário que tem como fato típico o transporte de mercadorias desacompanhada de notas fiscais e cuja penalidade está prevista no artigo 72, inciso III, alínea “a” da Lei estadual nº 3796/96, com a redação dada pela Lei nº 4342/2000. No caso em apreço o cerne da questão reside em saber se a apresentação das notas fiscais em momento posterior a ação fiscal descaracteriza a infração, pois é fato incontroverso a circunstância de que no dia 9-5-2006, as 18:00 horas, quando da ação fiscal, as mercadorias objeto do presente lançamento estavam desacompanhadas das notas fiscais, fato este inclusive reconhecido pelo demandante da petição inicial.

2.2 Função da Sanção Tributária

A sanção no Direito Tributário está inserida no contexto da teoria geral da norma, no sentido de que ela existe para garantir a eficácia do ordenamento jurídico. Decerto, a sanção é a conseqüência jurídica imputada a determinada pessoa pelo descumprimento de um dever, segundo lição de Maria Helena Diniz.1 Dessa forma, na dicção de Paulo Nader, resta ao destinatário da norma duas opções, a saber: adotar a conduta definida como lícita ou sujeitar-se à sanção prevista.2 Some-se a isto que a sanção serve para punir a pessoa que violou uma norma e visa, também, o respeito a ordem jurídica. Em síntese, a sanção apresenta nitidamente duas funções. A primeira função, de caráter geral e preventivo, trata da coerção psíquica gerada pelo temor das conseqüências do seu descumprimento e que está relacionada com a eficácia da norma. A segunda função, de caráter específico, trata da punição àquele que contrariou determinada norma. No caso específico da relação jurídica tributária não poderia ser diferente onde o legislador cria uma providencia para sancionar o descumprimento de determinado dever que pode ser de caráter principal ou acessório (instrumental). Enfim, estamos diante de sanção decorrente de ilícito tributário. Por certo, são oportunas as lições abaixo do ilustre doutrinador Paulo de Barros Carvalho: (...) É a não – prestação do objeto da relação jurídica tributária. Essa conduta é tida como antijurídica, por transgredir o mandamento prescrito, e recebe um nome de ilícito tributário ou infração tributária.3

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A seguir será demonstrada a finalidade da sanção aplicada no lançamento objeto da demanda.

2.3 Finalidade da Sanção Aplicada

A norma jurídica deve ser valorada em sintonia com a sua finalidade e com outros valores ali consignados. Nesse desiderato, compete ao intérprete apresentar, de forma clara e objetiva, os valores e fatos que estão sendo ocultados, a fim de que sejam levados em consideração e ponderados diante do caso concreto.4 Acontece que a redação de normas obedecem a regras e princípios próprios, pois o sentido e o alcance de tais normas repercutem no ordenamento jurídico.5 E não poderia ser diferente no tocante a relação de direito tributário, especificamente na aplicação de sanções decorrentes de atos ilícitos ficais. Por conseguinte, é possível que os sujeitos da relação jurídica tributária invoquem equivocadamente a aplicação de princípios previstos em nosso ordenamento jurídico que vão de encontro ao valor contido na norma. Em tais casos deve-se socorrer a ponderação de bem e valores. Portanto, cabe-nos evidenciar a finalidade da sanção aplicada no lançamento. Para tanto, inicialmente transcreveremos o teor da norma que fundamenta a sanção tributária, in verbis:

LEI ESTADUAL Nº 3796/96, ALTERADA PELA LEI Nº 4.342/2000Art. 72. As infrações à legislação do ICMS sujeitam o infrator às seguintes multas:(...)III - relativamente à documentação fiscal e à escrituração:a) entregar, remeter, transportar, receber, estocar ou depositar mercadoria, prestar ou utilizar serviço sem documentação fiscal ou sendo esta inidônea: multa equivalente a 50% (cinqüenta por cento) do valor da operação ou da prestação; * Alínea “a” do inciso III do art. 72 alterada pela Lei nº 4.342, de 29.12.2000, com vigência a partir de 30.12.2000. (grifamos).

A finalidade da norma, ou seja, o seu elemento valorativo reside na necessidade de impedir as aquisições de mercadorias sem a devida nota fiscal, uma vez que tal irregularidade resulta na falta de escrituração das aquisições no Livro Registro de Entradas de Mercadorias do ICMS e no Livro de Inventário de Mercadorias do ICMS, fato este que viabiliza a futura sonegação fiscal decorrente da venda de mercadorias sem a emissão de notas fiscais. E assim procede porque o controle do pagamento do imposto (ICMS) nas vendas de mercadorias está calcada no estoque de mercadorias num determinado período, nas entradas(aquisições) e saídas (vendas) efetivas de mercadorias. E tal controle se operacionaliza principalmente através das escriturações dos Livros fiscais acima. E é nesse contexto, que a prática de atos visando esconder as notas fiscais quando da passagem pelos postos fiscais, especialmente de fronteira do Estado, constitui a principal fraude utilizada pelos transportadores e contribuintes, uma vez que a apresentação das notas fiscais resulta na imediata digitação e processamento da

informação do prontuário do contribuinte para auxiliar controle e fiscalização do ICMS devido, mediante o moderno sistema de tecnologia da informação intitulado de “Projeto Fronteira”.

2.4 Legalidade do Lançamento

Não procede a alegação abaixo sintetizada:

a) o transporte de mercadorias desacompanhadas de nota fiscais foi devidamente justificado no momento da fiscalização, uma vez que, na oportunidade, registrou o equívoco quando da expedição do manifesto de cargas e que resultou na remessa das notas fiscais noutro veículo de transporte de cargas. Ressaltou que o equívoco foi constatado mediante a apresentação das notas fiscais; Primeiro, não há o que falar em equívoco e justificativa de determinado ilícito. Na verdade, a conduta do requerente foi tipificada como ilícita no dia 9-5-2006, conforme Termo de Apreensão, às fls. 03 dos autos do processo administrativo fiscal. Em resumo, que naquela data (9-5-2006) restou configurado todos os elementos temporal, material, espacial e pessoal necessário a configuração do ilícito fiscal descrito na norma legal estadual acima. Segundo, a norma não estabelece a conduta de apresentar a nota fiscal noutro dia como excludente de responsabilidade tributária, uma vez que tal permissão esvaziaria a finalidade da sanção, tendo em vista que estimularia a omissão de notas fiscais perante a autoridade fazendária apostando na sua ineficiência e, caso fosse constatado tal fraude, apresentaria para eximir-se da sanção legalmente prevista. MM. Juiz, imagine a possibilidade de o transportador apresentar notas fiscais posterior a ação fiscalizadora, ou seja, depois de 15, 20, 30, 300 ou 3000 dias, sob o pretexto de que tal permissão o exime de ser penalizado pelo transporte de mercadorias sem a devida nota fiscal. Terceiro, quando o ordenamento jurídico quis dar relevância jurídica a atos praticados concomitante ou posteriormente a conduta tipificada como ilícita assim o fez de forma expressa, a exemplo dos artigos 15 e 16 do Código Penal e no artigo 138 do Código Tributário Nacional – CTN com o intuito de amenizar as conseqüências decorrentes da correspondente sanção. Não procede a alegação abaixo: b) as autoridades fazendárias não registraram no lançamento a apresentação posterior das notas fiscais, ou seja, depois da chegada do veículo e que não se pode alegar que houve desvio no destino das mercadorias em trânsito; Primeiro, é irrelevante tal fato para que o demandante possa eximir-se da responsabilidade que lhe fora imputada, pois tal fato não constitui permissão legal para deixar de aplicar a sanção decorrente de fato devidamente tipificado na lei. Segundo, a afirmação não corresponde a verdade do fato porque a simples leitura do Auto de Infração, no campo “DESCRIÇÃO DA INFRAÇÃO E ENQUADRAMENTO LEGAL” constata-se que houve registro de tal fato, conforme fls. 2 dos autos do processo administrativo fiscal em apenso. Terceiro, a conduta objeto do lançamento e tipificada no artigo 72,III, “a” da Lei estadual nº 3796/96 não faz qualquer referência a conduta de haver desvio do

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destino das mercadorias para que configure o ilícito tributário. Não tem fundamento a assertiva abaixo sintetizada: c) o fato não pode ser tipificado na hipótese prevista no artigo 141 do regulamento do ICMS, pois não houve emissão de nota fiscal que não correspondesse a uma efetiva saída e que as notas fiscais que acompanharam a mercadoria identificam com clareza o emitente e destinatários, nele incluído os respectivos endereços, os valores do imposto e da venda; Igualmente, aplica-se o que fora dito acima, no sentido de que a conduta objeto do lançamento e tipificada no artigo 72, III, “a” da Lei estadual nº 3796/96 não faz qualquer referência a tais fatos. Noutras palavras, a real correspondência entre as notas fiscais e as mercadorias efetivamente transportadas, bem como a veracidade das informações lançadas nas notas fiscais não constituem elementos utilizados para definir o ilícito fiscal objeto da demanda. Não prospera a seguinte alegação: d) não houve nenhum prejuízo para a fiscalização em função da emissão regular das notas fiscais e do pagamento dos impostos devidos e que o requerente não faz parte do negócio de venda e nem tão pouco teria qualquer vantagem na prática de qualquer ilícito fiscal; Primeiro, a aplicação da sanção no caso em espécie não depende da existência de prejuízo, na medida que o prejuízo em si para o ordenamento jurídico consiste no descumprimento da norma. Segundo, a responsabilidade pela infração tributária independe, entre outros, da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato, a não ser que exista lei dispondo de forma contrária.7 O que não é o caso. Não tem sentido a seguinte alegação: e) restou demonstrado que não houve intenção de não pagar os tributos devidos pelo devedor, uma vez que o respectivo imposto foi declarado na emissão das notas fiscais e não são pagos pelo transportador; Primeiro, a sanção decorre do descumprimento de obrigação tributária acessória (dever instrumental) cuja existência não depende da obrigação principal8 , a não ser que a legislação estabeleça de forma diversa para um caso específico. Segundo, a intenção do agente não foi tipificada na conduta ilícita e, sendo assim, se aplica mais uma vez o artigo 136 do Código Tributário Nacional, no sentido de que, salvo disposição de lei em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação tributária independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato. Terceiro, o transportador – demandante não atendeu ao disposto no artigo 617, III do Regulamento do ICMS (Decreto estadual nº 21.400/2002).9 Na verdade, estamos diante de infração objetiva que, segundo Paulo de Barros carvalho, in verbis:( ...) Infração subjetiva é aquela para a configuração de que exige a lei que o autor do ilícito tenha operado com dolo ou culpa (...) As infrações objetivas, de outra parte, são aquelas em que não é preciso apurar-se a vontade do infrator.10

Em suma, não há o que falar em elemento subjetivo no caso em tela.

Não tem fundamento a seguinte alegação: f) a jurisprudência tem se manifestado pela improcedência do lançamento que autua pessoa diversa, no caso o transportador, na hipótese de mercadoria tida como desacompanhada de nota fiscal quando se comprova a existência do referido documento; Primeiro, o entendimento acima somente se aplica quando da comprovação da existência do documento no momento da fiscalização pois, do contrário, a sua aplicação resultaria no absurdo jurídico alhures alertado de que haveria o esvaziamento do sentido da sanção, porque estimularia a não apresentação das notas fiscais perante a autoridade fazendária e, caso fosse constatado tal fraude, apresentaria para eximir-se da sanção legalmente prevista. Segundo, a responsabilidade imputada ao transportador está legalmente prevista na Lei estadual nº 3796/96 e repetida no Regulamento do ICMS11 e cujo teor foi citado no lançamento, conforme verifica do Auto de Infração no campo “DESCRIÇÃO DA INFRAÇÃO E ENQUADRAMENTO LEGAL, conforme fls. 02 dos autos do processo administrativo fiscal em apenso. Terceiro, a responsabilidade tributária acima imputada ao transportador encontra respaldo no artigo 128 do Código Tributário Nacional. Não tem fundamento a seguinte alegação: g) a legislação tributária ressalva que os vícios, erros e omissões verificados no documento fiscal não implicam na inidoneidade do documento, desde que não importem em sonegação do imposto. A norma contida no artigo 72, II, “a” da Lei estadual nº 3796/96 descreve várias modalidades de realização da conduta ilícita. Aqui o legislador adotou a técnica utilizada na norma penal pertinente ao crime de ação múltipla ou de conteúdo variado.12 Na verdade, a norma que define a infração tipifica como ilícito tributário não somente o transporte de mercadorias com nota fiscal inidônea e sim outras condutas como aquela objeto do lançamento, ou seja, o transporte de mercadorias sem documentação fiscal. Portanto, passa a ser irrelevante a discussão se restou configurada a inidoneidade ou não das notas fiscais apresentadas posteriormente a ação fiscal.

3. CONCLUSÃO E PEDIDO

É evidente que estão presentes todos os elementos necessários a caracterização do ilícito tributário que tem como fato típico o transporte de mercadorias desacompanhada de notas fiscais e cuja penalidade está prevista no artigo 72, inciso III, alínea “a” da Lei estadual nº 3796/96, com a redação dada pela Lei nº 4342/2000. Igualmente, o valor (finalidade) da norma presente na sanção não é compatível com o entendimento de que é possível a apresentação das notas fiscais em momento posterior a ação fiscal descaracteriza a infração pois, do contrário, tornaria inaplicável a aludida sanção e seria um absurdo jurídico. Finalmente, é fato incontroverso a circunstância de que no dia 9-5-2006, as 18:00 horas, quando da ação fiscal, as mercadorias objeto do presente lançamento estavam desacompanhadas das notas fiscais, fato este inclusive reconhecido pelo demandante da petição

212

inicial. Isto posto, o Estado de Sergipe requer de Vossa Excelência que (a) julgue improcedente o pedido da presente ação, antecipadamente, consoante faculta o artigo 330, I do CPC, face à desnecessidade de instrução probatória, por ser matéria exclusivamente de direito; (b) condene o requerente nos ônus da sucumbência, sejam eles o pagamento das custas judiciais e dos honorários advocatícios. Finalmente, meramente “Ad Cautelam”, apenas para a hipótese de Vossa Excelência entender pela necessidade de dilação probatória, o Estado de Sergipe protesta por todos os meios de prova em direito admitidos, sejam eles a prova testemunhal, inclusive depoimento pessoal do Representante Legal do autor, a prova pericial e a juntada posterior de documentos relevantes.

Espera deferimento.

Aracaju – SE, 21 de junho de 2007.

ROBSON NaSCiMENTO FiLhOProcurador do Estado de Sergipe

OAB/SE 2954

Notas e Referências

1. DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 10. ed. São

Paulo: Saraiva, 1998; p. 367.

2. NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 23. ed. Rio de Janeiro: Forense,

2002; p. 83.

3. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 17. ed. São Paulo:

Saraiva, 2005; p. 507 a 509.

4. Cf. Ponderação de valores, direitos e bens. O valor justifica e legitima os fins

a serem alcançados pela norma, já que a norma é instrumento de realização de

determinado valor para atingir uma finalidade necessária ao ser humano. A idéia

de valor está ganhando força na moderna doutrina constitucional como instrumento

para concretização de direitos.

5. Merece registro o alerta de Ricardo Lôbo Torres, relativo a relação entre ideologia

e concretização de valores, na seguinte obra: TORRES, Ricardo Lobo. Normas de

interpretação e integração do direito tributário. 4. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro:

Renovar, 2006, p. 375-376.

6. Institutos de Direito Penal intitulados de desistência voluntária, arrependimento

eficaz e arrependimento posterior. Instituto da denúncia espontânea previsto no

Direito Tributário.

7. Código Tributário Nacional. Responsabilidade por Infrações. Art. 136. Salvo

disposição de lei em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação

tributária independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade,

natureza e extensão dos efeitos do ato.

8. ALEXANDRINO, Marcelo; VICENTE, Paulo. Manual de direito tributário. 2. ed. Rio

de Janeiro: Impetus, 2005; p. 192 e 193.

AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 12. ed. rev. e atual. São Paulo:

Saraiva, 2006; p. 250.

10. Regulamento do ICMS: Art. 617. Relativamente aos prestadores de serviços

de transporte e as pessoas que portarem ou transportarem mercadorias ou bens,

por conta própria ou de terceiro, observar-se-á o seguinte: (...) os transportadores

de mercadorias ou bens exibiram, nos postos fiscais por onde transitarem,

independente de interpelação, ou nos locais onde forem interceptados pela

fiscalização estadual, a documentação das mercadorias eos serviços (...).

10. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 17. ed. São Paulo:

Saraiva, 2005; p. 511.

11. Lei estadual nº 3796/96

Art. 20. São solidariamente responsáveis pelo pagamento do imposto e demais

acréscimos legais devidos pelo contribuinte de direito:

(...)

III - os transportadores em relação às mercadorias:

(...)

d) que conduzirem sem documentação fiscal comprobatória de sua procedência

ou destino, ou acompanhadas de documentação fiscal inidônea como definida em

Regulamento;

Regulamento do ICMS (Decreto nº 21.400?2002): artigo 141, II, alínea “a”.

12. CAPEZ, Fernado. Curso de direito penal: parte geral, vol. 1 (arts. 1º a 120). 7.

ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2004; p. 249.

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PARECER. DEFESA PRÉVIA. TCE/SE26

Jeferson Fonseca de Moraes Coordenador Jurídico

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PARECER Nº 005/2008

Interessados: XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX Cons. XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXOrigem: Corregedoria Geral do TCE/SERef. Defesa Prévia do Conselheiro (prot. TC n.º 2008/02530-0)

EMENTA PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR - PAD. CONSELHEIRO DO TCE/SE. DEFLAGRAÇÃO DO PAD. COMPETÊNCIA DO PLENO DO TCE/SE. DEVIDO PROCESSO LEGAL, CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA. 1. O Tribunal de Contas tem competência no âmbito administrativo para processar e julgar Membro da Corte. 2. O cidadão é parte legítima para denunciar qualquer autoridade no âmbito do Tribunal de Contas, por força do que dispõem a CF/88 [art. 74, § 2º] e CE/SE [art. 72, § 2º]. 3. Quando existentes indícios de comportamento que desbordem dos deveres de manutenção de conduta irrepreensível na vida pública e privada, em ofensa aos requisitos de idoneidade moral e reputação ilibada, inerentes ao cargo, poderá ser instaurado, em desfavor de Conselheiro, Processo Administrativo Disciplinar – PAD. 4. De igual forma, havendo indícios de ofensa aos requisitos de idoneidade moral e reputação ilibada, deve o Conselheiro ser afastado do exercício de suas funções, como autoriza o art. 27, § 3º, da LOMAN.

1 RELATÓRIO

DA DENÚNCIA

1. O Conselheiro XXXXXXXXXXXXXX foi denunciado nesta Corte de Contas pelo cidadão XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX, como consta do documento de protocolo n.º 2007/0618-5, sob a alegação de ter cometido as irregularidades ali indicadas. 2. O denunciante apontou ter o Conselheiro praticado ato ilícito de improbidade administrativa, nos termos da Lei n.º 8.429/92, dentre outros atos tipificados como crimes pelo Código Penal Brasileiro. 3. Em sua denúncia, aponta que o Conselheiro XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX “(...) teve seu nome lançado em Inquérito que apura negócios escusos realizados pela empresa XXXXXXXXXX, causando danos ao erário estadual, inclusive com a lastimável prisão decretada pela Ministra do Superior Tribunal de Justiça, a Dra. XXXXXXXXXX”. 4. Afirmou que o Conselheiro “(...) participou da organização criminosa como elo de ligação entre o Governo do Estado e XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX, do qual recebeu, diversas vezes, em recompensa pelos serviços prestados, vantagens indevidas”. 5. Disse, ainda, que o Senhor XXXXXXXXXXX não somente exerceu sua influência quando Secretário de Estado, como também no exercício da função de

Conselheiro do Tribunal de Contas, na liberação de recursos à empresa XXXXXXXXXX, bem como no direcionamento de obras para esta mesma empresa. 6. Fundamentou a sua denúncia no art. 37, ‘caput’ e § 4º, da Constituição Federal, e no art. 20, parágrafo único, da Lei nº 8429/92 [Lei de Improbidade Administrativa]. 7. Requereu o denunciante que fosse dado início a procedimento cabível para afastar o já citado Conselheiro do cargo que ocupa, enquanto tem curso o Inquérito n.º 544/BA, que tramita no STJ. 8. O processo administrativo n.º 025/2007 é composto, até o momento, de 16 volumes (3.250 laudas), originários (i) de peças do Inquérito n.º 544/BA, que tramita perante o STJ, enviados por sua relatora, a Ministra XXXXXXXXXX, e (ii) da representação já referenciada (“denúncia”) feita pelo Sr. XXXXXXXXXXXXXXXXXXXX. 9. O Presidente, acatando as razões constan-tes do Parecer n.º 003/2008 da Coordenadoria Jurídica, submeteu o tema à apreciação do Pleno deste Tribunal, o qual, através do Ato Deliberativo n.º 736/2008, oportunizou ao Conselheiro XXXXXXXXXXXXXXX a apresentação de dEFESa PRÉvia, no prazo de 15 dias, nos termos do art. 27, §1º, da LOMAN, cujo prazo expirou em 11/03/2008. 10. Para a elaboração da Defesa Prévia, foram remetidas as cópias dos documentos mencionados no ‘item 8’ deste Parecer (os 16 volumes – 3.250 laudas), devidamente recebidas pelo Conselheiro em 25/02/2008 (fls. 3.251/3.252).

DA DEFESA PRÉVIA

11. A defesa prévia foi apresentada no prazo que lhe foi fixado, portanto, tempestivamente, eis que entregue na Corte sob o protocolo n.º 2008/02530-0, no final da tarde do dia 11.03.2008. 12. Alega em sua defesa prévia, em sede de preliminar, a ilegitimidade de parte do Sr. XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX para figurar no pólo ativo do processo administrativo n.º 025/2007, por não figurar ele na relação dos legitimados indicados no caput do art. 27 da LOMAN, ou seja, por representação do Poder Executivo ou Legislativo, do Ministério Público ou do Conselho Federal ou Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil. 13. Na linha de raciocínio traçado na defesa prévia, o Sr. XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX não seria parte para formular representação que ensejasse o início de procedimento administrativo para a perda de cargo, porque este não representa nem integra aqueles que estão legitimados no art. 27 da LOMAN. 14. Traz precedente recente do TCE/SE em caso semelhante, cujo requerente foi o próprio XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX, pelo qual pediu o afastamento do Conselheiro Carlos Pinna de Assis das suas funções de Presidente e de Conselheiro. 15. O Parecer Administrativo ao qual se refere faz parte do Pedido de Instauração de Procedi-mentos Administrativo Disciplinar [Protocolo TC n.º 2007/12801-7], lavrado pelo então Assessor Jurídico da Corte, o Dr. XXXXXXXXXXXXXXXX, em

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29.11.2007, que opinou pelo arquivamento daquela representação, por não ter o seu autor legitimidade ativa para formular tal requerimento. 16. A segunda preliminar suscitada é de inépcia da denúncia por inexistência de acusação certa e determinada, porque não há acusação certa, objetiva, circunstanciada pelo fato de que não houve imputação ao servidor público em um tipo legalmente previsto, em decorrência dos Princípios da Legalidade e da Segurança Jurídica. 17. Diz que a representação em tela não é clara e objetiva quanto ao fato ilícito praticado pelo Conselheiro, não se podendo admiti-la como acusação para a abertura de processo de perda de cargo. 18. Relata as hipóteses de perda de cargo pelo Magistrado, dizendo ser inepta a representação, posto que ausente o detalhamento de conduta típica, inviabilizando o exercício da defesa. 19. Colaciona o art. 95, I, da CF/88 e o art. 26 da Lei Complementar Federal nº 35/79, com o fito de demonstrar as hipóteses de perda de cargo por parte de Magistrado em procedimento administrativo. 20. No mérito, sustenta que a denúncia deve ser indeferida pela ausência de justa causa, eis que ausente prova de conduta delitiva ou, no mínimo, de fortes indícios. 21. Defende, ainda, em sede meritória, o indeferimento da denúncia por falta de provas, dizendo ser ilegais as escutas obtidas no Inquérito Policial nº 544/BA, porque não consta dos autos qualquer documento ou ato que demonstre a presença de elementos para a validade de tais escutas telefônicas. 22. Neste contexto, alega que as provas constantes dos autos não podem ser admitidas como verdadeiras, já que ausente de documentos que possam autorizar a validação dessas provas. 23. Por fim, requer o deferimento das preliminares argüidas ou, no mérito para rejeição da representação por ausência de justa causa, por falta de conduta antijurídica típica e de provas do ilícito administrativo para a instauração do Procedimento Administrativo Disciplinar. 24. Junta diversos documentos que entende subsidiar a defesa prévia apresentada.

DOS PROCESSOS JUDICIAISAção Popular e Mandado Segurança

25. Registre-se, por oportuno, que o Conselheiro XXXXXXXXXXXXXXXXXXXX, por decisão judicial proferida pela MM.Juíza de Direito da 3ª Vara Cível da Comarca de Aracaju, Doutora Simone de Oliveira Fraga, nos autos da Ação Popular que lhe foi manejada (Proc. Nº 200710301903), determinou o seu afastamento definitivo das funções e atividades inerente ao cargo de Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de Sergipe, sem prejuízo de sua remuneração, até decisão final do STJ. 26. Por seu turno, a Desembargadora Marilza Maynard Salgado de Carvalho, na condição de Relatora do Mandado de Segurança nº 0042/2008 (Proc. Nº 2008102406), tendo como impetrante o já referido Conselheiro, concedeu liminar determinando a sus-pensão dos efeitos da decisão da Doutora Simone de

Oliveira Fraga, determinando o retorno do impetrante às suas funções e atividades inerentes ao cargo de Conselheiro desta Corte de Contas. É o que importa relatar.

2. OPINATIVO:

Das preliminares suscitadas

(a) Primeira preliminar: da ilegitimidade de parte. 27. Opina a Coordenadoria Jurídica que a Corte deve rejeitar a preliminar referente a ilegitimidade de parte do Sr. XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX para figurar no pólo ativo do processo administrativo n.º 025/2007, por não figurar ele na relação dos legitimados indicados no caput do art. 27 da LOMAN. 28. Isto porque é de sabença que os atos administrativos podem ser revistos a qualquer tempo pelas autoridades administrativas. 29. No caso em apreço, Parecer anteriormente oferecido pela Assessoria Jurídica deste Tribunal, da lavra do Dr. xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx, foi no sentido de que o Sr. XXXXXXXXXXXXXXXXXXXX não teria legitimidade para oferecer a denúncia que ofereceu em relação ao Conselheiro desta Corte Carlos Pinna de Assis, ao fundamento do art. 27 da LOMAN. 30. A situação aqui é assemelhada àquela, apenas no ponto da legitimidade, e não no fato em si. 31. Data venia daquele Parecer do Dr. xxxxxxxx, permita-nos dele dissentir. 32. Com efeito, não há que se cogitar que o cidadão, no Estado Democrático de Direito, esteja impedido de denunciar fatos aos Órgãos Públicos, por lhe faltar legitimidade, em decorrência de legislação infraconstitucional que estabeleça um rol fechado de legitimados. 33. Isto porque a Constituição Federal de 1988, ao nosso ver, não recepcionou a exclusão do cidadão como legitimado para oferecer denúncia contra qualquer autoridade administrativa do país, por comportamento que, ao alvitre do cidadão, pareça ser incompatível com o cargo público exercido, mesmo que a autoridade seja agente político. 34. Saliente-se, ainda, que se dispositivo de norma legal anterior à CF/88 dispõe, de forma proibitiva, que o cidadão seja impedido de denunciar fatos supostamente ilegais, atribuídos a agentes políticos, a exemplo do art. 27 da LOMAN, tal dispositivo, no ponto limitativo, é inaplicável, porque não recepcionado pela Lei Fundamental. 35. Se, entretanto, a Lei fosse posterior à Carta Magna, estar-se-ia, no caso, diante de uma norma inconstitucional, o que tornaria dito dispositivo, de igual modo, inaplicável. 36. Nesse toar, é essencial à prática democrática a visibilidade do exercício do poder pelo cidadão, que, como um dos membros do povo, é titular dessa legitimidade. 37. No regime democrático não deve haver possibilidade de se impedir que o cidadão denuncie a possível prática, por magistrados, de condutas repreensíveis na vida pública e particular [art. 35, VIII, LOMAN]. 38. O novo sistema constitucional brasileiro,

216

pós 1988, não recepcionou o rol fechado de legitimados do art. 27 da LOMAN, posto que o art. 74, § 2º, da Carta da República permite a qualquer cidadão ser parte legítima para denunciar, perante o TCU, a prática de irregularidades ou ilegalidades. 39. Transpondo para o âmbito estadual, não é diferente o que rege o art. 72, § 2º, da Constituição do Estado de Sergipe, verbis:

“Art. 72 (omissis)

(...)

§ 2º Qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para apresentar denúncias ao Tribunal de Contas sem a necessidade de lei regulamentadora”.

40. Desta feita, opina a Coordenadoria Jurídica no sentido da rejeição da primeira preliminar suscitada, ante os fundamentos expostos.

(b) Segunda preliminar: inépcia da inicial.

41. O defendente aduz, na segunda preliminar, que a denúncia é inepta porque não há acusação certa, objetiva, circunstanciada pelo fato de que não houve imputação ao servidor público em um tipo legalmente previsto, em decorrência dos princípios da legalidade e da segurança jurídica. 42. Opina a Coordenadoria Jurídica que a Corte deve rejeitar a segunda preliminar referente a inépcia da denúncia por inexistência de acusação certa e determinada, como suscitado pelo denunciado. 43. A suscitação não procede, porque a denúncia formulada pelo cidadão não há de ser técnica, indicando os artigos de determinada legislação que tenham sido infringidos. 44. Cabe ao cidadão apenas denunciar o fato e à autoridade competente aplicar o direito ao fato denunciado. 45. É equivocado o entendimento que se deva exigir do cidadão a qualificação jurídica do fato imputado na denúncia, porquanto esta tarefa não lhe pertence. 46. Essa é uma incumbência exclusiva do julgador que, diante dos fatos narrados e das provas que foram produzidas confere o direito à espécie, regra que se extrai dos brocardos “iura novit cúria” e “dami factum dabi tibi ius”. 47. Desta feita, opina a Coordenadoria Jurídica no sentido da rejeição da segunda preliminar suscitada, ante os fundamentos acima delineados. 48. Superadas as preliminares suscitadas, cujo opinativo é pela rejeição de todas elas, em face do princípio jurídico-processual da eventualidade, passa-se a analisar o mérito da Defesa Prévia.

DO MÉRITO

49. Em síntese, no mérito sustenta o Conselheiro XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX que a denúncia deve ser indeferida por ausência de justa causa, eis que inexiste prova (ou indícios) de conduta delitiva de sua parte. 50. Defende, ainda, em sede meritória,

conforme consta do relatório deste Parecer, que as escutas telefônicas obtidas no Inquérito Policial n.º 544/BA são ilegais porque não consta dos autos qualquer documento ou ato que demonstre a presença de elementos para a validade de tais escutas. 51. Alega que as provas existentes nos autos não podem ser admitidas como verdadeiras, já que ausente de documentos que possam autorizar a sua validação. 52. Ao final de sua defesa prévia, no mérito, requer que a representação em causa seja rejeitada por ausência de justa causa, falta de conduta antijurídica típica e de provas de ilícito administrativo para a instauração de procedimento administrativo disciplinar. 53. Por dever técnico-jurídico, cabe, inicialmente, a análise do conteúdo da denúncia no âmbito da competência do Tribunal de Contas, que é meramente administrativa, não se estendendo a Ele a competência que cabe ao Poder Judiciário, no âmbito do Código Penal e da Lei de Improbidade Administrativa. 54. Nessa seara, é de perquirir-se o alcance da competência do Tribunal de Contas, enquanto Órgão Administrativo, repita-se, para aplicar ou não as disposições contidas na Constituição Federal [art. 37, ‘caput’ e § 4º] e na Lei de Improbidade Administrativa [L. 8.429/92, art. 20, parágrafo único], como requerido na denúncia, em face do Conselheiro XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX. 55. O texto constitucional referenciado tem a seguinte redação:

“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

(...)

§ 4º - Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”. (grifos e negritos nossos)

56. E a Lei de Improbidade Administrativa, no ponto que nos interessa, está assim redigida:

“Art. 20. A perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos só se efetivam com o trânsito em julgado da sentença condenatória.

Parágrafo único. A autoridade judicial ou administrativa competente poderá determinar o afastamento do agente público do exercício do cargo, emprego ou função, sem prejuízo da remuneração, quando a medida se fizer necessária à instrução processual”. (grifos e negritos nossos)

57. É indubitável que o Senhor XXX-XXXXXXXXXXXXXXXX é Conselheiro deste Tribunal de Contas e, por construção jurisprudencial do

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Supremo Tribunal Federal, ante o disposto no art. 102, inciso I, alínea ‘c’, da CF/88, Conselheiro de Tribunal de Contas é agente político. 58. Sendo agente político, os atos de impro-bidade administrativa supostamente praticados por este, levando em consideração a natureza penal das sanções contidas na Lei n.º 8.429/92, qualificam-se como crimes de responsabilidade. 59. Tais crimes, tendo em vista a prerrogativa de foro dos agentes políticos, devem ser julgados originariamente perante o Supremo Tribunal Federal, nos termos do art. 102, I, ‘c’, da CF/88. 60. Esse entendimento está plasmado na decisão proferida pelo eminente Ministro Nelson Jobim, nos autos da Reclamação n.º 2.138/dF, publicada no DJ de 17.09.2002, página 52, que tramita perante o Supremo Tribunal Federal. 61. No mesmo sentido são as decisões proferidas pelo STF, nos autos das seguintes Reclamações: a) Rcl n.º 3.181 MC/DF, Rel. Min. Cezar Peluso, publicada no DJ de 09.06.2005, página 08; b) Rcl n.º 3.302/SC, Rel. Min. Celso de Mello, publicada no DJ de 20.04.2005, página 63; c) Rcl n.º 2.186 MC/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, publicada no DJ de 28.10.2002, página 75. 62. Isso significa que os agentes políticos estão regidos por normas próprias, frente a peculiaridade do seu afazer político. 63. Como falece competência a este Tribunal de Contas para processar e julgar o Conselheiro no âmbito criminal, claro está que a Lei de Improbidade Administrativa a ele aqui não se aplicará. 64. “Mutatis mutandis” também não podem os juízos de primeiro grau, em ação civil pública, determinar o afastamento ou perda do cargo de agentes políticos, como os Conselheiros dos Tribunais de Contas, porque se trata de usurpação de competência, eis que, em casos que tais, essa competência originária é do Supremo Tribunal Federal, conforme os precedentes acima indicados. 65. Com efeito, não possui o Tribunal de Contas competência para aplicar ao Conselheiro XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX as normas do Código Penal e da Lei de Improbidade Administrativa, como pretendido pelo denunciante. 66. Conclui-se, num juízo preliminar, que não se cuida de assegurar ao agente político um regime de imunidade em face dos supostos atos de improbidade que lhes são atribuídos pelo denunciante. 67. Ao contrário do que se possa pensar, não há imunidade porque no dizer do Ministro Nelson Jobim, em decisão proferida na Reclamação n.º 2.138/DF, já referenciada, afirma que “O agente político há de responder pelos delitos de responsabilidade perante os órgãos competentes para processá-lo e julgá-lo”.

DA COMPETÊNCIA DO TCE/SE

68. Nessa linha, e no caso específico ora tratado, a competência para processar e julgar administrativamente o Conselheiro XXXXXXXXXXXXXXXXXXXX é do Tribunal de Contas. 69. Contudo isso não se dará com esteio na Lei de Improbidade, mas pelos dispositivos constantes da Lei Orgânica da Magistratura - LOMAN [Lei

Complementar Federal n.º 35/79], eis que gozam os Conselheiros do TCE/SE das mesmas garantias, prerrogativas e impedimentos dos Desembargadores do Tribunal de Justiça, por simetria do que determina a Constituição do Estado de Sergipe, no seu art. 71, § 2º. 70. Assim sendo, compete a esta Corte de Contas determinar os procedimentos administrativos, como os já determinou, para processar e julgar a denúncia formalizada em face do Conselheiro individualizado.

ELEMENTOS dO PROC. adM. N.º 025/2007STJ: inquérito n.º 544/Ba e decisão da Min. XXXXXXXXXX decretando prisão

71. Delineado, pois, que ao caso em comento será aplicada a Lei Complementar nº 35/79 – LOMAN, resta-nos saber se houve alguma conduta do Conselheiro que afrontasse os seus dispositivos. 72. Para melhor delinear os fatos narrados com a conduta do Conselheiro Flavio Conceição de Oliveira Neto, necessário se faz dizer que Este só foi nomeado para o cargo pelo Decreto do Governador do Estado, datado de 27/12/2006. 73. Compulsando os autos do procedimento administrativo n.º 025/2007, nele se vê peças do Inquérito n.º 544/BA1, que tramita perante o STJ, no qual está inserta a decisão da Ministra XXXXXXXXXX determinando a prisão do mencionado Conselheiro (fls. 252/316), cujos fundamentos assim estão pautados, ipsis litteris: “XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX e [...] são de Aracajú. O primeiro era Chefe da Casa Civil, sendo atualmente Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado, e o segundo simplesmente empresário, tendo vínculos bem próximos com os membros da cúpula da organização criminosa, atuando como uma espécie de elo entre o Governo do Estado, através de [...], e XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX, de quem receberam, por diversas vezes, vantagens indevidas. XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX, mesmo no cargo de Conselheiro, não se afastou do grupo; ao contrário, pelo volume de diálogos captados entre ele, XXXXXXXXXX e XXXXXXXXXX, pode-se constatar que continua ele a atuar em auxílio ao grupo, permitindo liberação de recursos públicos em favor da XXXXXXXXXX e também intervindo para que novas obras sejam destinadas à mesma empresa”. (fl. 256 – original sem grifos) 74. Tecendo a sua decisão, continua a Ministra XXXXXXXXXX escrevendo: “E) em 2007, após ter assumido o cargo de Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de Sergipe, XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX continuou agindo em favor da organização criminosa que integra, seja pleiteando a autoridades do Governo de Sergipe a liberação de recursos supostamente devidos à XXXXXXXXXX, seja articulando para que novas obras fossem direcionada à empresa, como a do Município de Aquidabã.

diáLOGO 63 (FL. 45):

XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX diz que o outro assunto é sobre AQUIDABÃ, é para

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agilizar o máximo possível com XXXXXXXXXX. XXXXXXXXXX fala que não tem problema. Já mandou o pessoal e já está em cima disso... XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX fala algo sobre o “[...]” (não dá para entender direito) essa semana ainda, diz que é difícil...XXXXXXXXXX fala que é complicado...XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX diz que depois fala com XXXXXXXXXX. (05/03/2007 às 20:33:17) XXXXXXXXXX fala que viajou ontem com [...], conversou muito com ele, diz que ele elogiou muito XXXXXXXXXXXXX... XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX conversa [...]... XXXXXXXXXXX diz que amanhã vai falar com XXXXXXXX sobre AQUIDABÃ... XXX-XXXXXXXXX fala para XXXXXXXXXXXXX não esquecer de cobrar [...] sobre o pagamento da DESO... XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX diz que está em cima... [...] (06/03/2007 às 19:30:09)” (fls. 285/286 – original sem grifos) 75. E ao final, para decretar a prisão cautelar do Conselheiro, escreve Sua Excelência: Considero presentes, diante do que foi apurado e aqui exposto, os requisitos legais da prisão cautelar de que trata o art. 312 do CPP, seja para a garantia da ordem pública e econômica, a extremada modalidade de coerção visa quebrar a espinha dorsal da organização criminosa, dando um basta nos desmandos administrativos e delitos praticados pelo grupo, os quais atingem os valores morais e ético das organizações estatais, ao tempo em que minam os recursos públicos; seja por conveniência da instrução, assegurando maior liberdade na apuração dos fatos, evitando que os investigados, infiltrados nos organismos estatais destruam ou camuflem as provas necessárias a uma perfeita investigação. Afinal, tratando-se de organização criminosa, espraiada em diversos Estados da Federação, com atuação continuada de diversos agentes públicos e até agentes políticos, a continuidade delitiva é fato incontrolável. Por todas essas razões, DECRETO A PRISÃO PREVENTIVA, a ser cumprida pela Polícia Federal, das seguintes pessoas, todas identificadas e qualificadas nos autos do inquérito, onde estão indicados os artigos tipificadoras de suas condutas:

[...] [de ‘1)’ a ‘18)’]

19) XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX;

[...]”.

daS NORMaS aPLiCávEiS aO CaSOConstituição do Estado de SergipeL. C. Federal n.º 35/79 [LOMaN]L. C. Estadual n.º 04/90

76. A Constituição do Estado de Sergipe estabelece que para alguém ser nomeado Conselheiro do Tribunal de Contas necessita atender a vários requisitos, dentre eles o de ser possuidor de idoneidade moral e reputação ilibada, ante o que se lê do dispositivo abaixo colacionado, verbis:

“Art. 71. Os Conselheiros do Tribunal de Contas

serão nomeados entre brasileiros que atendam aos seguintes requisitos:

(...)

II - idoneidade moral e reputação ilibada;” (original sem grifos)

77. Nessa trilha, o artigo 35, inciso VIII, da LOMAN cobra ao magistrado, como seu dever, manter conduta irrepreensível na vida pública e particular, conforme se infere da norma legal transcrita:

“Art. 35 - São deveres do magistrado:

(...)

VIII - manter conduta irrepreensível na vida pública e particular” (original sem grifos).

78. A Lei Orgânica do Tribunal de Contas do Estado de Sergipe [L. C. Estadual n.º 04/90], no seu art. 18, inciso II, preceitua que só será nomeado para o cargo de Conselheiro aquele que satisfaça o requisito de ser possuidor de idoneidade moral e reputação ilibada, in verbis:

“Art. 18. Os Conselheiros do Tribunal de Contas serão nomeados entre brasileiros que satisfaçam os seguintes requisitos:

(...)

II - idoneidade moral e reputação ilibada;” (original sem grifos)

79. As alegações da defesa foram aqui apreciadas com profundidade e de per si, e não de forma perfunctória ou superficial. 80. A defesa não tem o condão de sobrepujar as provas indiciárias constantes do Inquérito n.º 544/BA, que tramita no STJ, razão pela qual atraímos para este Parecer os fundamentos dos quais se utilizou a Ministra do STJ XXXXXXXXXX para lá decretar a prisão cautelar do Conselheiro em causa. 81. Os diálogos travados pelo Conselheiro XXXXXXXXXXXXXXXXXX com XXXXXX-XXXXXXXXXXX (proprietário da empresa XXX-XXXXXXX) e outros, conforme já transcritos, motivam a instauração do Processo Administrativo Disciplinar – PAD, porque demonstram a existência de fortes indícios de conduta repreensível. 82. Por isso entendemos que os fatos que ressaem das escutas telefônicas constantes do Inquérito n.º 544/BA demonstram a existência de fortes indícios de ter o Conselheiro praticado atos que não se caracterizam como sendo de idoneidade moral e reputação ilibada, como exige o contido na Constituição do Estado de Sergipe, no inciso II, do art. 71. 83. Da mesma forma, na análise desses mesmos elementos factuais, há fortes indícios de que o Conselheiro XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX tenha se comportado de forma inadequada ao cargo que exerce, frente ao que preceitua a Lei Complementar n.º 35/79, no inciso VIII, do art. 35, que cobra do

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magistrado a manutenção de conduta irreparável na vida pública e particular, conforme já transcrito neste Parecer. 84. Não discrepa dessa mesma ótica o art. 18, inciso II, da Lei Orgânica deste Tribunal [LCE n.º 04/90] ao exigir que, para a nomeação ao cargo de Conselheiro, este tenha que satisfazer aos requisitos ali elencados, a exemplo de possuir idoneidade moral e reputação ilibada. 85. Estes requisitos não devem acompanhar o Conselheiro somente quando de sua nomeação, mas deve perpetuar-se por toda a sua vida funcional.

3. CONCLUSÃOEm tempo:

86. Sabe-se, contudo, que para o Magistrado perder o seu cargo, na via do procedimento administrativo, necessário se faz a ocorrência das hipóteses descritas nas alíneas “a”, “b” e “c”, do Inciso II do art. 26 da LOMAN. 87. No caso em tela, entendemos, salvo melhor juízo, que o Conselheiro XXXXXXXXXXX-XXXXXXXXXXXXXXXXXX, ao se envolver nas transações descritas na chamada “Operação Navalha”, como relatadas nas interceptações telefônicas já referenciadas neste Parecer, denota a existência de indícios de ter cometido infração ao citado dispositivo da LOMAN, especialmente nas suas alíneas “a” e “b”, o que será apurado no PAD. 88. Entendemos que a norma ínsita no art. 26, inciso II, alíneas “a” e “b”, da LOMAN, em hermenêutica jurídica, nas lições aprendidas de Carlos Maximiliano, é interpretativa. Ela não é estanque; aplica-se segundo a situação facta circunstancial do momento. 89. O deslinde da controvérsia envolve questões de fato e de direito. Desnecessário se torna o uso de lupas para verificar tais indícios. 90. Destarte, há de ser concluído, que o Conselheiro, ao seu livre arbítrio, exerceu outras “funções” em concomitância com a sua função de Magistrado, quando tratou de interesses da Empresa XXXXXXXXXX, configurando-se prática incompatível com aquelas legalmente permitidas pela LOMAN, nos incisos anteriormente mencionados, bem como na Lei Complementar nº 04/90, no seu art. 21, inciso I. 91. No momento, ainda não se trata de perda de cargo, o que deverá ser analisado oportuno tempore. Agora, trata-se apenas da instauração ou não do PAD, e do possível afastamento do Conselheiro do exercício de suas funções. 92. iSTO POSTO, diante dos fundamentos jurídicos delineados no presente Parecer, reforçados na jurisprudência trazida em colação do Supremo Tribunal Federal, e na prova indiciária referenciada nesta peça, opina, inicialmente, no sentido de que seja acatada a denúncia que deu origem ao processo administrativo n.º 025/2007, para o fim de que o Pleno do Tribunal de Contas determine a instauração do Processo administrativo disciplinar – Pad, autorizando o Presidente da Corte a determinar sua respectiva autuação. 93. Ad cautelam, opina, ainda, no sentido de que o Pleno deste Tribunal, na apreciação do ‘item 2’ da pauta da Sessão Extraordinária, a ser realizada em

12.03.2008, determine o afastamento do Conselheiro XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX do exercício de suas funções, sem prejuízo dos vencimentos e das vantagens inerentes ao seu cargo, como autoriza o art. 27, § 3º, da LOMAN, enquanto durar procedimento ou processo judicial no STJ, envolvendo o nome do Conselheiro referenciado. 94. O afastamento do Conselheiro se faz necessário para salvaguardar o nome da Instituição ‘Tribunal de Contas do Estado de Sergipe’ no seio da sociedade, diante da negativa repercussão que se alastrou no Brasil em relação ao caso ‘Operação Navalha’, envolvendo o nome desta Corte. 95. Também se faz premente dito afastamento para atender o clamor da ordem pública, para assegurar maior liberdade e isenção de animus na apuração dos fatos, o que possivelmente ficaria comprometido com o exercício das suas funções neste Tribunal. É o Parecer, que submeto à consideração do Presidente e do Pleno da Corte de Contas.

Aracaju, 11 de março de 2008.

JEFERSON FONSECa dE MORaESCoordenador Jurídico

OAB/SE n.º 482

PS.: Os nomes das pessoas constantes deste parecer foram suprimidos pelo autor em virtude da ética profissional, considerando a publicação do mesmo em sites jurídicos. Não obstante, no original, que se encontra nos autos, no Tribunal de Contas do Estado de Sergipe, os nomes estejam citados.

Notas e Referências

1. Registre-se que nas transcrições do Inquérito n.º 544/BA con-stam diversos nomes além de XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX e de XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX, proprietário da XXXXXXXXXX. O Parecer não cita esses nomes porque não foram relacionados na denúncia do Sr. Nelson Araújo dos Santos, sendo substituídos pela simbologia “[...]”.

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PARECER. DENÚNCIA. TCE/SE27

Jeferson Fonseca de Moraes Coordenador Jurídico

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PARECER Nº 003/2008 - COJUR/TCE-SE

Proc. Adm. N.º 025/2007Protocolo TC n.º 2007/06188-5Interessados: XXXXXXXXXXXXXXXXXXXX Cons. XXXXXXXXXXXXXXXXXXXOrigem: Corregedoria Geral do TCE/SE

EMENTA

PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR - PAD. CONSELHEIRO DO TCE/SE. DEFLAGRAÇÃO DO PAD. COMPETÊNCIA DO PLENO DO TCE/SE. DEVIDO PROCESSO LEGAL, CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA.1. Ainda que os fatos relatados na “Denúncia” tragam consigo a descrição de fatos que, além de faltas disciplinares, possam caracterizar supostos delitos, a competência para julgar administrativamente o Conselheiro é do Tribunal de Contas.2. O Superior Tribunal de Justiça apenas é competente para o julgamento do Conselheiro deste Tribunal de Contas no âmbito da competência criminal.3. Aplica-se, in casu, o que dispõe a Constituição Federal: arts. 5º, LIV e LV, e 93, X; a Constituição do Estado de Sergipe: art. 71, §2º; e a LOMAN: art. 27, caput e seus §§.

1 RELATÓRIO

1. Eis perante a Coordenadoria Jurídica o Processo Administrativo n.º 025/2007, encaminhado por despacho, datado de 01/02/2008, da lavra do Conselheiro heráclito Guimarães Rollemberg, Presidente do Tribunal de Contas do Estado de Sergipe, instando esta Coordenadoria a neles se pronunciar sobre o objeto do indicado Processo Administrativo. 2. Trata-se de expediente de autoria do Senhor XXXXXXXXXXXXXXX, como cidadão, protocolado nesta Corte de Contas sob o n.º 2007/0618-5, postulando que a Corte promova procedimento que considerar cabível para afastar do seu cargo o Conselheiro XXXXXXXXXXXXXXXXXXX, enquanto tem curso procedimento investigatório no Superior Tribunal de Justiça, estando sob a Relatoria da Senhora Ministra XXXXXXXXXXXXXXXXXX. 3. Aduz o Senhor XXXXXXXXXXXXXXXX em seu expediente, que o Conselheiro XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX “(...) teve seu nome lançado em Inquérito que apura negócios escusos realizados pela empresa XXXXXXXXXXXXXXX, causando danos ao erário estadual, inclusive com a lastimável prisão decretada pela Ministra do Superior Tribunal de Justiça, a Dra. XXXXXXXXXXXXXX”. 4. Afirma também que “A decisão liminar da Ministra do STJ, que decretou a prisão preventiva do mencionado Conselheiro do TCE-SE e mais 46 pessoas foi veiculada na internet e informa que o mesmo participou da organização criminosa como elo de ligação entre o Governo do Estado e XXXXXXXXXXXXXX, do qual recebeu, diversas

vezes, em recompensa pelos serviços prestados, vantagens indevidas”.5. Aponta o Senhor XXXXXXXXXXXXXXX ter o Conselheiro praticado ato ilícito de improbidade administrativa, nos termos da Lei n.º 8.429/92, dentre outros atos tipificados pelo Código Penal brasileiro. 6. Diz que o Senhor XXXXXXXXXXXXXXx não somente exerceu sua influência quando Secretário de Estado, como também no exercício da função de Conselheiro do Tribunal de Contas, na liberação de recursos à empresa XXXXXXXXXXXXXXXX, bem como o direcionamento de obras para esta mesma empresa. 7. Conclui o senhor XXXXXXXXXXXXXXXXXXx, pedindo providências à esta Corte de Contas, textualmente, in verbis:

“[...]... as razões aqui expostas são suficientes para motivar um procedimento para afastar o Conselheiro XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX do Tribunal de Contas do Estado de Sergipe enquanto se tem curso o processo criminal que é movido contra o mesmo no STJ, e, no exercício da cidadania que lhe confere a Constituição Federal, suplica o peticionante XXXXXXXXXXXXXXXX a Vossa Excelência se digne promover o procedimento que considerar cabível para afastar o já citado Conselheiro do cargo que ora ocupa, enquanto tem curso a citada ação criminal no STJ, isso fazendo com base no art. 37, ‘caput’ e § 4º, da Constituição Federal, e no § único, do art; 20, da Lei nº 8429/92”.

É o que importa relatar.

2. OPINATIVO

8. Cabe aclarar que os fatos indicados no expediente do Sr. XXXXXXXXXXXXXXXXXXX têm origem no inquérito 544/Ba, que originariamente foi processado perante a Justiça Federal, Secção da Bahia, sendo deslocado para o STJ, onde está registrado sob o n.º 2006/0258867-9. 9. O deslocamento do foro ocorreu em razão da presença do Conselheiro XXXXXXXXXXXXXXXX, como investigado e de Outras autoridades que têm, por disposição constitucional, prerrogativa de função, o que atrai, por via de conseqüência, a competência tão-somente criminal do STJ para processar e julgar o feito, no que pertine a este ponto. Em consulta realizada no site do STJ <www.stj.gov.br>, com acesso em 12/02/2008, constata-se que o Conselheiro XXXXXXXXXXXXXXXXXXXX se encontra como indiciado nos autos do inquérito n.º 544/Ba (registro n.º 2006/0258867-9), que tramita naquela Corte, conforme resenha em anexo. 10. Não obstante essa competência criminal do STJ, não está afastada a competência da Corte de Contas para instaurar procedimento administrativo contra Conselheiro para apuração nessa seara. Ou seja, os âmbitos estão assim delineados: (i) o STJ processa e julga o Conselheiro do TCE/SE, por sua competência criminal, e (ii) o TCE/SE processa e julga o mencionado Conselheiro, por sua competência

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administrativa [processo administrativo disciplinar]. 11. Esse entendimento encontra precedente no STJ [Rcl n.º 1.153-CE, Corte Especial, Rel. Min. ari Pargendler, in DJ 28.02.2005, p. 174, in RT vol. 836, p. 120], que decidiu ser competente o Tribunal de Justiça local para processar e julgar Desembargador por faltas disciplinares, ainda que os fatos narrados trouxessem possíveis fatos tipificados criminalmente, restando à Corte de Justiça processá-lo e julgá-lo no âmbito criminal, conforme se vê da decisão contida na referida Reclamação, cuja ementa se transcreve, in verbis: RECLAMAÇÃO. PROCESSO DISCIPLINAR. DESEMBARGADOR. Ainda que os fatos relatados em portaria que instaura processo administrativo contra desembargador descreva fatos que, além de faltas disciplinares, também caracterizam delitos, a competência para julgá-lo é do Tribunal de Justiça; o Superior Tribunal de Justiça apenas é competente para o julgamento de desembargador no âmbito da competência criminal. Reclamação julgada prejudicada em parte e improcedente no mais. 12. Nesse passo, o Conselheiro do TCE/SE goza das mesmas garantias, prerrogativas, impedimentos, vencimentos e vantagens dos desembargadores do Tribunal de Justiça, como preleciona a Constituição Estadual, em seu art. 71, § 2º, in verbis:

Art. 71. Os Conselheiros do Tribunal de Contas serão nomeados entre brasileiros que atendam aos seguintes requisitos:

(...)

§ 2º Os Conselheiros do Tribunal de Contas terão as mesmas garantias, prerrogativas, impedimentos, vencimentos e vantagens dos Desembargadores do Tribunal de Justiça, ressalvadas as peculiaridades funcionais, e somente poderão aposentar-se com as vantagens do cargo, quando o tenham exercido efetivamente por mais de cinco anos. (negritos nossos) Portanto, por simetria jurídica, estando o Conselheiro do TCE/SE equiparado ao Desembargador do TJ/SE, é de se aplicar a mesma regra estampada na decisão proferida na Reclamação n.º 1.153-CE pelo Superior Tribunal de Justiça.

13. Assim, é competente o TCE/SE para instaurar procedimento administrativo disciplinar, ainda que exista processamento criminal perante o STJ. 14. Por isso, para que se o faça, necessário se torna a adoção dos procedimentos que deverão ser cumpridos, a fim de se preservar direitos e garantias constitucionalmente tutelados, a exemplo do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa [CF/88, art. 5º, incs. LIV e LV]. 15. Nessa trilha, o procedimento administrativo disciplinar em face do Conselheiro XXXXXXXX-XXXXXXXXXXXX deverá nortear-se nos passos abaixo indicados, a saber: 15.1 Caberá ao Presidente do TCE/SE dar conhecimento ao Pleno deste Tribunal, em sua Sessão, da ‘denúncia’ feita pelo Sr. XXXXX-

XXXXXXXXXXXXX, contida no expediente protocolado nesta Corte sob n.º 2007/0618-5; 15.2 Caberá ao Pleno, antes de decidir sobre a instauração ou não do processo administrativo disciplinar, por ato deliberativo, autorizar o Presidente a oportunizar ao Representado que apresente sua dEFESa PRÉvia, no PRAZO DE 15 (QUINZE) DIAS, nos termos do art. 27, § 1º, da LOMAN [Lei Complementar n.º 35, de 14.03.79]. Ou seja, antes mesmo do Tribunal Pleno decidir sobre a instauração do processo administrativo disciplinar, deverá oportunizar ao Conselheiro XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX a formalização, ou não, de sua DEFESA PRÉVIA. 15.3 Somente após escoado o prazo da defesa prévia, é que o Presidente da Corte, no dia útil imediato, deverá convocar o Pleno para que, em Sessão Secreta, decida sobre a instauração do processo administrativo disciplinar, conforme se lê do art. 27, § 2º, da LOMAN, in verbis:

Art. 27 (omissis)

(...)

§ 2º - Findo o prazo da defesa prévia, haja ou não sido apresentada, o Presidente, no dia útil imediato, convocará o Tribunal ou o seu órgão especial para que, em sessão secreta, decida sobre a instauração do processo, e, caso determinada esta, no mesmo dia distribuirá o feito e fará entregá-lo ao relator.

15.4 No caso de abertura do processo administrativo disciplinar, na mesma Sessão do Tribunal Pleno, far-se-á o sorteio do Relator dentre os Conselheiros da Corte de Contas, restando ao Presidente expedir a correlata Portaria de instauração do Pad - Processo administrativo disciplinar, cumprindo a decisão do Pleno, descrevendo os fatos imputados ao Conselheiro [motivação do ato: art. 93, X, da CF/88]; Esclareça-se que o processo administrativo n.º 025/2007 não é tecnicamente, ainda, o processo administrativo disciplinar específico para atender ao desiderato da “Denúncia”, mas, apenas, o meio instrumental para agrupar e organizar documentos a partir do Protocolo sob nº 2007/06188-5, datado de 01/06/07, que deu origem aos fatos que serão apurados. Portanto, decidindo o Tribunal Pleno pela instauração do procedimento administrativo disciplinar específico, deverão os documentos carreados como processo administrativo n.º 025/2007, decorrente do Protocolo acima referido, migrar para os novos autos, que receberão autuação própria como Pad - Processo administrativo disciplinar. 15.5 Após as providências quanto à autuação do PAD, seguindo o rito imposto na parte final do § 2º, do art. 27, da LOMAN, deverá o Presidente encaminhar os autos do Pad ao Conselheiro Relator, para que este prossiga na instrução do feito, coletando as provas requeridas ou as que entender necessárias, ao teor do que determina o § 4º, do art. 27, da LOMAN; 15.6 Finda a instrução, o Conselheiro

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Relator dará vista dos autos ao Conselheiro XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX, ou ao seu procurador, para que apresente as razões finais; 15.7 Conclusos os autos do PAD, compete ao Conselheiro Relator requerer à Presidência da Corte a inclusão do PAD, em Pauta, para manifestação do Tribunal Pleno, dando-se disto conhecimento ao Conselheiro XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX, pessoalmente ou por intermédio de advogado constituído nos autos, se houver; 15.8 A decisão do Tribunal Pleno deverá ter sua conclusão publicada no Diário Oficial do Estado.

3. CONCLUSÃO

16. Nessa linha jurídica, ao nosso olhar, opina-se no sentido de que o Tribunal de Contas cumpra as determinações da LOMAN e das Constituições Federal, Estadual, bem como na Lei Complementar Estadual nº 04/1990, art. 3º, Inciso XIX, c/c com o art. 3º, Inciso XIII, do Regimento Interno desta Corte de Contas, como posto neste Parecer, a fim de dar o regular processamento à ‘Denúncia’ aqui tratada, eis que a Constituição do Estado de Sergipe, em seu art. 71, § 2º, equipara Conselheiro do TCE/SE a Desembargador do TJ/SE, no que tange às mesmas garantias, prerrogativas, impedimentos, vencimentos e vantagens, para os fins constantes do expediente do Senhor XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX. É o Parecer, que submeto à consideração do Presidente da Corte de Contas,

Aracaju, 13 fevereiro de 2008.

JEFERSON FONSECa dE MORaESCoordenador Jurídico

OAB/SE n.º 482

PS.: Os nomes das pessoas constantes deste parecer foram suprimidos pelo autor em virtude da ética profissional, considerando a publicação do mesmo em sites jurídicos. Não obstante, no original, que se encontra nos autos, no Tribunal de Contas do Estado de Sergipe, os nomes estejam citados.