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- 1 - REVISTA ONLINE | JUL - SET 2018 | #16 A CRISE DA TEORIA ECONÓMICA E DO SEU ENSINO DESIGUALDADES E PRECARIEDADE, OU A LEI LABORAL PROPOSTA PELO GOVERNO O FRACASSO DA CIMEIRA EUROPEIA COLABORAM NESTA EDIÇÃO: ANTÓNIO CARLOS SANTOS EUGÉNIO ROSA MARIANA MORTÁGUA RICARDO CABRAL VICENTE FERREIRA Crítica - uma revista aberta sobre a economia e a sociedade, o investimento e a dívida, as desigualdades e a pobreza, as políticas públicas e as soluções, Portugal e a Europa ECONÓMICA E SCOCIAL

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#16REVISTA ONLINE | JUL - SET 2018 | #16

A CRISE DA TEORIA ECONÓMICA E DO SEU ENSINODESIGUALDADES E PRECARIEDADE, OU A LEI LABORAL PROPOSTA PELO GOVERNOO FRACASSO DA CIMEIRA EUROPEIA

COLABORAM NESTA EDIÇÃO:

ANTÓNIO CARLOS SANTOS EUGÉNIO ROSAMARIANA MORTÁGUARICARDO CABRALVICENTE FERREIRA

Crítica - uma revista aberta sobre a economia e a sociedade, o investimento e a dívida, as desigualdades e a pobreza, as políticas públicas e as soluções, Portugal e a Europa

ECONÓMICA E SCOCIAL

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ÍNDICE

A edição da Crítica neste verão de 2018 abre com dois textos sobre a teoria económica e o seu ensino. António Carlos Santos discute o paradigma económico dominante e como resistiu e se adaptou nos últimos dez anos, constatando o seu fracasso, e Vicente Ferreira apresenta os resultados de um levantamento sobre como é o ensino da economia hoje nas principais faculdades portuguesas.

A preparação do Orçamento de Estado para 2019 é antecipada por Eugénio Rosa numa análise dos factores essenciais da desigualdade da distribuição dos rendimentos em Portugal. A proposta de lei laboral que está actualmente em discussão no parlamento é também escalpelizada com os dados da degradação das condições laborais. Mariana Mortágua retoma um dos temas escaldantes da preparação orçamental, a recuperação do Serviço Nacional de Saúde.

Finalmente, Ricardo Cabral analisa o fracasso da cimeira europeia de final de Junho e as suas consequências no agravamento da crise no continente.

ECONÓMICA E SCOCIAL

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ÍNDICE

ArtigosA “boa ciência económica” e a crise: Peregrinatio ad loca infecta? António Carlos .................................................................................................................. 04

Sobre o ensino de Economia em Portugal Vicente Ferreira ................................................................................................................ 13

A Diminuição dos custos do trabalho, o aumento da produtividade e o agravamento da desigualdade Eugénio Rosa ................................................................................................................... 16

É urgente tratar o SNS Mariana Mortágua ............................................................................................................. 26

Cimeira do Euro: “um grande passo em frente”? Ricardo Cabral .................................................................................................................. 28

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02. ARTIGOS

ANTÓNIO CARLOS DOS SANTOS*

Recuso-me a aceitar o que me deram Recuso-me às verdades acabadas

Jorge de Sena

Em março de 2010, publiquei um pequeno artigo que visava chamar a atenção para as relações entre o pensamento económico convencional e a crise financeira de 2007 “made in USA”, depois globalizada e originando crises económicas, sociais e políticas em particular na Europa1. Passados oito anos, penso ser útil revisitar esse texto e recuperar o essencial do que então escrevi, pois a situação, no que respeita às suas causas e fundamentos, não mudou tanto como isso.

Começava esse artigo parafraseando uma célebre frase de Clemenceau sobre a guerra que, por ser algo demasiado grave, não devia ser uma coisa confiada aos militares, para lembrar que as crises (se não mesmo, a economia no seu conjunto) constituem fenómenos demasiado complexos para serem deixadas apenas nas mãos de economistas. Por muito importante que seja o trabalho destes cientistas sociais (e é-o certamente), há neles, com frequência, um certo tique para se autorrepresentaram como os verdadeiros cientistas sociais. Talvez porque recorram profusamente a técnicas matemáticas (esquecendo que outras ciências, como a linguística e a demografia, também o fazem), talvez por haver um prémio Nobel da Economia que os põe no mesmo patamar dos físicos, talvez por quadrantes da esquerda e da direita defenderam, na teoria ou na prática, o primado da economia (da base económica ou dos fenómenos mercantis) e tal facto rapidamente se convertesse em primado dos economistas e, dentro deste grupo, dos “bons economistas”. Ou seja, dos cultores da ciência económica convencional - com larga audiência nos media - que, não raro com olímpica ignorância, relegam os contributos de outras ciências sociais e humanas (dos literatos) e dos próprios economistas heterodoxos para o caixote do lixo da História.

Certo é que as crises interessam a todos os cidadãos (embora atinjam mais profundamente uns

* Professor associado da Universidade Europeia.1 “A ciência económica e a crise de 2007/8-20??: crónica de um terramoto anunciado”, TOC, Revista da OTOC, n.º 122, maio de 2010, pp. 63-66 (disponível em antoniocarlosdossantos.com). Na esteira de PIMENTA, Carlos (2017), Racionalidade, Ética e Economia, Almedina, p. 58, usam-se aqui a letra maiúscula para designar a ciência económica (a Economia) e a minúscula para se referir às dimensões do real (a economia, os fenómenos ou factos considerados económicos) estudadas por aquela disciplina.

A “boa ciência económica” e a crise:Peregrinatio ad loca infecta?

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que outros). O que é suficiente para justificar o interesse de não economistas, como eu, pela literatura económica sobre as crises. Quem tem outras formações académicas e profissionais e não possui uma teoria infalível para prevenir e resolver as crises, é obrigado a transportar consigo algumas lanternas, com proveniências várias, para, tateando, orientar-se na crescente complexidade do mundo, incluindo as fornecidas por académicos e profissionais com formação em Economia.

Existem hoje muitos estudos sobre a “crise made in USA” que começou a manifestar-se na transição de 2006 para 2007 e irrompeu violentamente a partir de então, a maioria provindas de economistas, que buscam descrever e, por vezes, explicar as razões da sua eclosão2. Essas descrições (a posteriori, tal voo da coruja de Minerva) permitem-nos já saber como as coisas começaram, efetuar comparações com crises anteriores, em particular com a Grande Depressão dos anos trinta do século passado, desencadeada pouco tempo depois de Keynes ter proclamado o fim do laissez-faire3, mas não nos permitem infelizmente saber se e como vão acabar ou, como ocorre com os terramotos, se e quando voltam a eclodir.

O pós 2ª Guerra, com a derrota do nazi-fascismo e a necessidade de reconstrução dos territórios em escombros saídos do conflito bélico, abriu uma época de crescimento económico conhecida pelos Trinta Anos Gloriosos que durou até à década de 70. Apesar de algumas sombras (reveladas pelas revoltas do Maio de 1968), tudo parecia correr no melhor dos mundos: uma “economia concertada”, caraterizada pela conjugação de mecanismos mercantis, poderes públicos (com importantes sectores de propriedade de meios de produção) e com controlo da inovação e da produção científica; uma paz neocorporativa, decorrente da existência de sindicatos fortes e da contratação coletiva; e um Estado que se autorrepresentava como social e democrático (saúde, educação, segurança social tendencialmente universal, direitos laborais centrados no princípio da proteção dos trabalhadores). Durante esses anos, consolidou-se, para muitos, a crença de que as crises económicas e financeiras eram coisas do passado ou, pelo menos, fenómenos domesticados. Continuavam a existir, por certo, “falhas de mercado” (assimetrias de informação, bens públicos, “externalidades”, etc...). Mas as teorias económicas em vias de se tornarem hegemónicas, a do Hayek da maturidade (a “ordem espontânea”) e, num outro registo, a do monetarismo de Friedman e a da escolha pública de Buchanan, descriam da intervenção política, por definição, discricionária (mas não da intervenção judicial ou da intervenção de autoridades administrativas independentes), pois as falhas dos governos seriam tão grandes ou maiores que as eventuais falhas do mercado livre. Além disso, os agentes económicos antecipariam racionalmente as medidas dos governos e, deste modo, estas não seriam eficazes, sendo, as mais das vezes, contraproducentes. Mesmo quando aceitava uma evidência – a de que a concorrência perfeita no mercado era um tipo ideal, isto é, na realidade,

2 Eis apenas algumas obras, a partir de perspetivas distintas, publicadas na sequência da irrupção da crise atual: ARTUS, P. et alii (2008), La crise des subprimes. Rapport du Conseil d’Analyse Économique, La Documentation Française; KRUGMAN, Paul (2008), The Return of Depression Economics and the Crisis of 2008, Allen Lane; WOLF (2009), Martin, Fixing Global Finance, Yale University Press; ALEXANDRE, F. et alii (2009), Crise Financeira Internacional, Imprensa da Universidade de Coimbra e a síntese de STIGLITZ, J. (2010), Freefall. Free Markets and the Sinking of the Global Economy, Penguin. 3 Cfr. KEYNES, J. M. (1926), “O fim do laisser-faire”, in A Grande Crise e Outros Textos, Lisboa: Relógio de Água, 2009, p. 95 e ss., cuja leitura é, ainda hoje, muito útil. Sobre a Grande Depressão de 1929, ver a clássica obra de GALBRAITH, J. Kenneth (1998), A Crise Económica de 1929, Anatomia de uma Catástrofe Financeira, Dom Quixote, (reimp.).

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02. ARTIGOS

um mito - alargou o conceito de concorrência até nele integrar o seu contrário (concorrência oligopolista ou mesmo monopolista), contentando-se com noções de concorrência potencial ou de concorrência praticável, conceitos centrais na regulação jurídica dos mercados. A noção de mercado (e de economia de mercado), de livre troca entre sujeitos económicos (e jurídicos) iguais, oculta, porém, não apenas a questão da produção (onde a desigualdade entre as partes contratantes é, em regra, manifesta), como a própria realidade, uma vez que existem mercados no plural e não o mercado no singular4. É visível neste discurso, que afirma o primado do mercado livre, a ideologia subjacente, um pensamento tecnocrático com o inevitável preconceito antipolítica e, consequentemente, um horror, nem sempre disfarçado, em relação à democracia (recorde-se, sem surpresa, o namoro de Hayek e de Friedman com o Chile de Pinochet)5. É igualmente visível a tendencial redução da ideia de crise ao mundo da economia e finança, como se não proliferassem, em paralelo ou simultaneamente, crises de outra ordem (ambiental, climática, demográfica, de transição de sistemas socioeconómicos ou de sistemas políticos, etc.). Mesmo no plano económico, foi-se obnubilando, não apenas a ideia de que a crise é congénita ao sistema capitalista (orgânica), mas que ela se manifesta ou emerge sistematicamente, ora em curtos períodos de tempo (v.g., os ciclos de investimento de Juglar), ora em ondas de longa duração, retomando, por exemplo, os ciclos de Kondratiev e Imbert6.

A ideia de que não há crises, ou de que as crises estão sob controlo, revelou-se de novo claramente falsa. Qualquer observador mais atento facilmente se poderá lembrar que, pelo menos desde a crise dos anos 70 (crise do petróleo, fim de Bretton Woods, estagflação), o mundo, no seu conjunto (não apenas os países do centro desenvolvido), nunca deixou de conhecer múltiplas crises.

Alguns espíritos mais lúcidos, mesmo de personalidades saídas de dentro do sistema (ou talvez por isso mesmo), há muito que se preocupam com a emergência e com as consequências das crises. Eis, entre vários outros possíveis, dois testemunhos qualificados, ideologicamente distintos, e, por razões distintas, preocupados com o evoluir do capitalismo, particularmente após a aceleração da globalização financeira, acompanhada por uma revolução tecnológica nos meios de informação e comunicação7.

4 Cfr. REICH, Norbert (1985), Mercado y Derecho, Ariel, p. 26-27 que distingue, nas sociedades capitalistas, três tipos de mercado interdependentes, o de trabalho, o de capitais e o de bens de consumo. Recorde-se ainda que POLANYI, Karl (1944), La Grande Transformation, Gallimard, 1983, pp. 122-13, considerava o trabalho, a terra e a moeda, elementos essenciais da indústria, como não mercadorias (ou mercadorias fictícias). Acresce que a noção de mercado é também produto de uma construção política, como, de resto, bem o revela a construção do mercado único europeu, um mercado de criação e natureza institucional. Sobre a construção política do mercado, cfr. ROSANVALLON, Pierre (1979), Le capitalisme utopique. Critique de l’idéologie économique, Paris: Seuil e, bem assim, sobre a sua artificialidade, IRTI; Natalino (2003), L’ordine giuridico del mercato, 3ª ed., Laterza. 5 Sobre o tema, cfr. SAPIR, Jacques (2002), Les économistes contre la démocratie. Pouvoir, mondialisation et démocratie, Paris: Albin Michel.6 Para uma acessível descrição da questão da periodização das crises, vide ROSIER, Bernard (2001), As Teorias das Crises Económicas, Lisboa: Bizâncio, em especial, quanto a crises contemporâneas, pp. 144 e ss. Ver igualmente o desafiante livro de MASON, Paul (2016), Pós-Capitalismo, Um guia para o nosso futuro, Lisboa: Objectiva. nomeadamente, pp. 29 e ss., bem como, sobre a forma como o capital tende a ultrapassar as crises, HARVEY, David (2011), O Enigma do Capital E as Crises do Capitalismo, Lisboa: Bizâncio. 7 Sobre a globalização há uma vasta literatura. Por ser menos difundido entre nós, elejo um título desafiante, o de ZOLO, Danilo (2009), Globalizzazione. Una mappa di problemi, Laterza. “Um dos efeitos da globalização - como sublinha Bauman, Zigmunt (2010), Vida a Crédito,Zahar, p. 84-85, é o divórcio entre o poder e a política, o poder, evaporado no ciberespaço, livre da política e a política desprovida de poder.

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O primeiro é de Stiglitz8, prémio Nobel da Economia, alto quadro do Banco Mundial e conselheiro do presidente Clinton. Em 2003, dava conta da profunda transformação da atividade bancária nos Estados Unidos (em particular com a fusão dos bancos de investimentos e comerciais e a emergência de grandes conglomerados financeiros) e do seu impacto no funcionamento global da economia, a partir do crescimento das chamadas “bolhas especulativas”9. Fenómenos como a desregulamentação, as opções sobre títulos e outras formas ínvias de remuneração, os derivados e as modernas técnicas de engenharia financeira, a contabilidade criativa, o fornecimento de informações falsas aos mercados e aos acionistas (em particular nos sectores de telecomunicações e no high-tech) potenciaram as crises dos anos 90, acompanhadas, entre outros, dos grandes escândalos da Enron, da World Com, do Citigroup e da Merrill Lynch e de uma recessão dura e prolongada nos Estados Unidos. Na periferia do sistema, tivemos ainda, nessa década, as crises asiáticas (em especial na Rússia, na Indonésia e na Tailândia), latino-americanas (sobretudo, no México, no Brasil e na Argentina) e diversas outras na África. O desastre das políticas (não apenas as militares) de George W. Bush e a ação seguidista do FMI ajudaram a prolongar os efeitos dessas crises. Stiglitz tem, desde então, produzido uma profícua obra, factualmente bem documentada, abrangendo temas cruciais (sobre o papel do FMI, sobre o euro, sobre as desigualdades sociais, etc.), que é de leitura obrigatória para quem quer compreender o mundo de hoje.

O outro é George Soros, um conhecido especulador e filantropo, um enfant terrible do sistema, que, em 1998, ao analisar as crises financeiras dos anos 90, criticava duramente o integrismo dos mercados e punha em dúvida que estivessem a ser consideradas as medidas necessárias para prevenir futuras crises10. A discussão girava em torno da necessidade de melhorar a supervisão bancária e de obter informação mais fiável e transparente acerca da situação das economias dos diversos países e sobre a conveniência de regulamentar os fundos especulativos (hedge funds) e desencorajar os fluxos de capitais a curto prazo. Na verdade, nem sequer estas pequenas reformas por ele propugnadas foram levadas à prática. O véu ideológico do integrismo dos mercados não se mostrava favorável à sua adoção. Numa das suas diversas obras, o mesmo autor refere que a atual crise foi lenta a chegar, mas podia ter sido prevista com vários anos de avanço, pois as suas origens remontavam ao rebentar da bolha da Internet no final dos anos 2000 (antes ainda do ataque terrorista às Twin Towers), tendo havido um precedente com o mercado das obrigações hipotecárias “colateralizadas” que se havia começado a desenvolver nos anos 80.

8 STIGLITZ, Joseph E. (2003), The Roaring Nineties: A New History of the World’s Most Prosperous Decade, N. YorK: W.W. Norton & C. [há traduções francesa: (2003), Quand le capitalisme perd la tête, Paris: Fayard, e portuguesa (2005), Os Loucos Anos 90 - A década mais próspera do mundo, Lisboa: Terramar].9 A “bolha especulativa” no imobiliário radica-se nas práticas bancárias (e não, como alguns insinuam, essencialmente no comportamento dos consumidores, dos adquirentes de habitação – um bem social - que se endividaram sem terem em conta as dificuldades para pagarem os empréstimos e as hipotecas). Mas ela alimenta-se sobretudo do pensamento económico dominante, sendo, fora deste quadro mental, previsível. 10 SOROS, George (1998), La crise du capitalisme mondial, L’intégrisme des marchés, Paris: Plon (tradução de The Crisis of Global Capitalism). Cfr.ainda do mesmo autor (2008), O Novo Paradigma para os Mercados Financeiros, A crise de crédito de 2008 e as suas implicações, Coimbra: Almedina. Cfr., ainda com interesse, CHESNAIS, F. & PLIHON, D. (coord., 2000.), As Armadilhas da Finança Mundial, Lisboa: Campo da Comunicação.

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02. ARTIGOS

Este véu ideológico (Lucien Goldmann falava de “consciência possível”11) desempenhou um significativo papel na União Europeia e na forma ziguezagueante como ela lidou com a crise, em especial a financeira que, por magia, acabou por ser transformada em “crise das dívidas soberanas”12. Após a adoção temporária de políticas neokeynesianas, rapidamente as instituições europeias começaram a falar das políticas pós-crise. Ou seja: Ainda a crise não tinha acabado (diversos economistas e cientistas sociais afirmavam que a crise não seria em V ou mesmo em W), e já os centros de decisão europeus regressavam às políticas neoliberais, muitas vezes induzidas por instituições financeiras (em socorro de quem saiu o dinheiro dos contribuintes para prevenção de riscos sistémicos e em detrimento do chamado risco moral)13. E esta ajuda às instituições too big to fail, foi, as mais das vezes, efetuada sem a criação de mecanismos que assegurassem formas de controlo e de responsabilização do sistema financeiro. A desorientação que invadiu a (Des)União Europeia e os seus principais centros de decisão numa situação hoje agravada pelas migrações, pelo terrorismo, pelo Brexit, pela inépcia em lidar com a questão dos nacionalismos agressivos, pelas tensões com o governo Trump, com a inação relativamente à emergência de regimes políticos fascizantes no seu seio, pela passividade com que assiste ao regresso de velhas práticas do sistema financeiro que estiveram na origem da crise, tem-se mostrado verdadeiramente aflitiva.

Vem isto a propósito da ingénua e pertinente pergunta da rainha Elizabeth II feita, em finais de 2008, depois da apresentação na London School of Economics, sobre as causas da crise financeira: “Se era algo tão grande, por que ninguém a previu?”.

A teoria económica dominante (um conglomerado de teorias que dá pelo nome de neoliberalismo14) foi, de facto, incapaz de prever a crise, ao contrário do que ocorreu com teorias heterodoxas (a “má economia” no dizer de Harberger)15. Essa teoria impregna o processo de decisão da União Europeia, mormente através da preparação dos dossiers pelos diversos comités que apoiam os trabalhos da Comissão e do Conselho (para não falar do Banco

11 GOLDMANN; Lucien (1970), Marxisme et sciences sociales, Paris: Gallimard, p. 126.12 Cfr. sobre o tema, PHILIPS, Tony (coord., 2014), A Europa à Beira do Abismo. A Crise das Dívidas Soberanas. Memorando da Periferia, Lisboa: Bertrand. Cfr. igualmente ATALLI, J. (2010), Estaremos Todos Falidos dentro de Dez Anos? Dívida Pública: a última oportunidade, Lisboa: Alethéia. 13 Cf. os meus textos (2011), “A resposta bipolar da União Europeia”, in REIS, J. & RODRIGUES, J., Portugal e a Europa em Crise. Para acabar com a economia da austeridade, Lisboa: MD , Actual, pp. 149-156 e (2011), “A crise financeira e a resposta da União Europeia: Que papel para a fiscalidade?”, in MONTEIRO, S. & COSTA, S. & PEREIRA.L., A Fiscalidade como Instrumento de Recuperação Económica, Porto: Vida Económica, pp. 21-42 (disponíveis em antoniocarlosdossantos.com). 14 Constelação de teorias desenvolvidas no quadro do pensamento neoclássico que engloba, como identificou LOPES, J. Silva (2010), “As políticas orçamentais de combate à presente crise económica“ (in FERREIRA, E. Paz et alii (org.), Conferência Crise, Justiça Social e Finanças Públicas; Lisboa: Ideff & Almedina, p. 41), “as teorias do monetarismo, das expectativas racionais, dos ciclos reais, do princípio da equivalência ricardiana e da eficiência dos mercados financeiros”, às quais poderíamos acrescentar, numa vertente mais política, as teorias da public choice. Aquelas teorias - escreve o mesmo autor - “terão dado origem a exercícios matemáticos sofisticados que valeram prémios Nobel aos seus autores, mas assentam em hipóteses sem correspondência com a realidade, escolhidas por forma a facilitarem a manipulação matemática ou para corresponderem às preferências ideológicas das correntes neoliberais dominantes”. 15 Esta afirmação é alicerçada num livro, editado em 2011, de um economista australiano lucidamente crítico dos fundamentos da economia neoclássica, Steve KEEN, (Debunking Economics. The Naked Emperor Dethroned? New York: Zec Books, traduzido para francês em 2014, L’Imposture économique, Ivry-sur-Seine: Les Éditions de l’Atelier, pp. 40-42) que elenca onze textos em língua inglesa de autores como Baker, Godley, Harrison, Hudson, Janszen, Keen, Madsen, Sorense, Richbächer, Roubini, Schiff e Shiller que, em 2006 e 2007, alertavam para a crise imobiliária e a recessão que se lhe seguiu.

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Central Europeu), em regra, pouco abertos a propostas que se desviem do mainstream. Isto explica que a União Europeia, quando (tardiamente) deu pela crise, tenha hesitado na formulação de um diagnóstico consistente e optado, após um primeiro momento em que promoveu políticas de auxílios de Estado16 (que, necessárias no contexto da época, muito contribuíram para o crescimento dos défices e das dívidas públicas), pelo emergir de um “novo normal”, de que o principal expoente é o vulgarmente denominado Pacto Orçamental (2012)17. Sobretudo a partir de meados de 2009, assistiu-se, em formações sociais como a grega ou a portuguesa18, em fase recessiva ou mesmo depressiva, a um tratamento de choque e a uma sangria inútil, batizada de “austeridade expansionista”19, que teve por real objetivo a salvação do sector financeiro das suas reiteradas tropelias. Esta política, por via do FMI, havia, aliás, sido experimentada, sem êxito, em vários países da América Central e do Sul, da África e da Ásia.20

Estas políticas não só não resolveram as questões da dívida, como incrementaram as desigualdades socioeconómicas e abriram caminho a distintos movimentos e partidos políticos, com largo apoio popular, que rejeitam a União Europeia (nacionalistas, separatistas, de extrema-direita neofascista, basistas). Contudo, apesar de tudo isto, e contra as previsões de muitos que acreditavam na superação da ideologia neoliberal, esta, após o forte abalo sofrido por não ter previsto a crise e ter sido responsável pelas suas consequências, rapidamente recuperou do estatuto de moribunda21. O regresso da velha senhora, longe de afastar do horizonte o espetro de novas crises, volta a contribuir para que esta possibilidade se torne realidade.

16 Cfr., do autor (2010) “Crise financeira e auxílios de Estado – Risco sistémico ou risco moral?”, C&R, Revista de Concorrência e Regulação, n.º 3, 2010, pp. 209-234.17 O Tratado sobre Estabilidade, Coordenação e Governação na União Económica e Monetária, um tratado construído à margem dos procedimentos comunitários, foi assinado, a 2 de março de 2012, pelos Chefes de Estado e de Governo dos Estados-Membros da União Europeia (com exceção do Reino Unido e da República Checa), tendo como objetivo o reforço da disciplina orçamental, nomeadamente a necessidade de as Partes Contratantes assegurarem o cumprimento de um (enigmático) “défice estrutural”.18 Ver, para a Grécia, dois testemunhos distintos, o de um fundador de um fundo de investimentos, MANOLOPOULOS, Jason (2011), La dette odieuse. Les leçons de la crise grecque, Les Echos & Pearson, e outro, de natureza mais política (e não restrito à Grécia) de VAROUFAKIS, Yanis (2016), And the Weak Suffer What They Must? Europe, Austerity and the Threat to Global Stability, Penguin. Quanto a Portugal, ver, por todos, Ferreira, E. Paz. (coord. 2013), Troika Ano II – uma avaliação de 66 cidadãos, Lisboa: Edições 70 e (coord. 2013), A austeridade cura? A austeridade mata?, Lisboa: AAFDL. 19 A paternidade desta “teoria” é atribuída a membros da influente Escola da Universidade de Bocconi, ALESINA, Alberto & ARDAGNA, Sílvia (1998) ‘Tales of Fiscal Adjustment’, Economic Policy, October.13, 27, pp.498-545. Para a crítica ver, por todos, BLYTH, Mark (2013), Austeridade, A História de uma Ideia Perigosa, Lisboa: Quetzal, em especial, pp. 304 e ss.20 Como reconhece um insider e defensor da globalização de nome David ROTHKOPF (2008) que, em Superclasse - A Elite do Poder Global e o Mundo que ela está a construir, p. 405, escreve “O atual sistema global parece, para muita gente, ser fundamentalmente injusto. Os mais ricos tornam-se muito mais ricos e a grande maioria dos restantes esforça-se por se manter como está. Durante a maior parte do período em que houve maior criação de riqueza - nos anos 1980m e 1990 -, a mensagem oferecida às nações mais pobres, pelos principais países desenvolvidos e pelos seus amigos da comunidade financeira, foi a de que a austeridade de hoje produz os benefícios de amanhã. Mas, para lá de todos os méritos que uma abordagem destas tem a nível económico [questão, quanto a mim, a demonstrar: corresponde à ideia difundida pelo sempre sorridente Luís Montenegro em 2014 de que “a vida das pessoas não está melhor, mas a do País está muito melhor”], ela revelou-se politicamente insustentável; e também, de alguma maneira imoral, sugerindo que o pagamento das dívidas às maiores instituições financeiras deveria , automaticamente, ser considerado prioritário em relação às necessidades humanas mais urgentes. “ [notas minhas em itálico e entre parêntesis].21 Ponto este bem salientado por LOUÇÃ, Francisco & ASH, Michael (2017), Sombras - A Desordem Financeira na Era da Globalização, Lisboa: Bertrand.

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02. ARTIGOS

Há, pelo menos, dois ensinamentos a retirar da crise que, desde 2007, nos conduziu à Grande Recessão, segundo alguns, ao Grande Retrocesso22, e cujo espetro continua a perseguir-nos.

O primeiro é que nunca devemos aceitar acriticamente o discurso económico, os enfoques teóricos, as previsões económicas, como se fosse, por definição, a ciência, pois a realidade revela-nos, com a sua crueza, que é impossível separar economia e política, que toda a Economia, ao contrário da fábrica de ilusões do positivismo, é sempre «Economia política». A Economia é uma ciência social (em que, como nas restantes ciências sociais, o observador integra, num grau muito mais acentuado do que nas ciências físico-químicas e naturais, a realidade observada) e, como tal, necessariamente histórica e cultural, que tem por finalidade estudar, com as metodologias disponíveis ao tempo da investigação, uma dimensão que se convencionou chamar económica dos fenómenos sociais. A Economia pode apresentar um caráter mais descritivo ou mais normativo e constrói o seu próprio objeto científico, não havendo quanto a este ponto unanimidade, pois, de acordo com Pimenta, pode falar-se de diferentes objetos (a produção, a repartição e a troca; a gestão da escassez; a escolha racional) que correspondem a distintos paradigmas. Longe de ser uma ciência de “pensamento único”, conhece hoje (como outrora) várias escolas, como a neoclássica, a neokeynesiana, a neomarxista ou a institucionalista, todas com diversas variantes23 Sem esquecer que a Economia não é a única disciplina a ocupar-se dos fenómenos económicos, sendo igualmente legítimas as análises, com base noutras perspetivas e metodologias, provindas de outras ciências sociais e humanas. É o caso, por exemplo, da história económica e do pensamento económico, da sociologia económica, da psicologia económica, da antropologia económica, da análise política do poder económico e da própria política económica (que é, antes de tudo, política) ou da análise jurídica da economia. Para nos cingirmos a esta última, deve recordar-se que propriedade, posse, contrato, herança, responsabilidade são, entre outros, conceitos com enorme lastro jurídico; que não é possível compreender as formas de concentração empresarial ou os mecanismos da globalização financeira, sem conhecer minimamente os mecanismos jurídicos de natureza contratual que sustentam tais fenómenos, como as formas societárias ou a lex mercatoria24; enfim, que não são percetíveis as questões da intervenção do Estado à margem das instituições jurídico-políticas, dos procedimentos e dos atos administrativos que a concretizam. Sem esquecer, para além de tudo isto, os fundamentos das teorias são de natureza filosófica (epistemológicos, lógicos, linguísticos, semióticos ou ideológicos).

Desconhecendo tais contributos e tendo a pretensão de colonizar os discursos das diversas dimensões da vida social mediante a exportação da análise económica para, v.g., estudar a família, a democracia, a política, o direito, etc., a Economia arrisca-se a esgotar-se numa mera praxeologia, de que a análise custo-benefício é um exemplo. Ora, por muito importante que seja o contributo da Economia para o estudo dos fenómenos sociais, ela não é «a» ciência social. Deve, assim, ser posto em causa o «imperialismo económico» que pretende dar à Economia a

22 Cfr. GEISELBERGER, Heinrich (ed., 2017),O Grande Retrocesso. Um debate internacional sobre as grandes questões do nosso tempo, Objectiva, com particular destaque para os perturbantes textos de MASON, Paul, “Vencendo o medo da liberdade”, pp. 149-170 e MISHRA, Pankaj, “Política na era do ressentimento. O legado obscuro do Iluminismo”, pp. 171-186.23 PIMENTA, C., op. cit., em especial, p. 139 e ss. 24 Cfr. GALGANO, Francesco (2005), La globalizzazione nello specchio del diritto, Il Mulino, pp. 43 e ss.

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última palavra sobre todas as dimensões do social. Não se trata, pois, de articular Economia e Sociedade, mas de compreender a Economia em Sociedade.

O segundo ensinamento é que não existe um paradigma teórico consensual na Economia. O positivismo na ânsia de criar uma ciência liberta de impurezas (a exemplo do que se passou com a teoria pura do Direito de Hans Kelsen) transformou a Economia Política em (simplesmente) Economia e crismou-a de Análise Económica. Os impasses da teoria keynesiana e do marxismo ortodoxo, a implosão da URSS, o fim da guerra-fria e do equilíbrio do terror (substituídos por guerras a quente e pelo desequilíbrio do terror) possibilitaram a emergência de um paradigma teórico dominante, o neoliberal, que, saído do seu anterior estatuto de subalternidade, onde permaneceu durante décadas, salientava as virtudes do mercado e da concorrência. Difundido por inúmeras faculdades a partir dos países anglo-saxónicos, por clubes e grupos de reflexão (think thanks), pelos meios de comunicação social, este paradigma conquistou uma enorme influência na formação dos atuais economistas, de tal modo que rapidamente se arvorou em posição de (quase) monopólio. Daí a pretender fazer passar as suas leis (as únicas “científicas”), como se de leis da natureza se tratassem, e transformá-las em norma comportamental, isto é, alcandorá-las do mundo do ser (do Sein) ao mundo do dever ser (do Sollen), evitando o espaço público da discussão e sobrepondo-se mesmo a normas decididas democraticamente, foi um pequeno passo. E este foi dado pelo chamado «consenso de Washington» que impôs um modelo económico baseado na desregulamentação da atividade económica, na liberalização mercantil, nas privatizações, na contenção de gastos públicos em políticas sociais, na redução do défice público. Ou seja: um modelo que visava moldar o todo social em função das “leis económicas” definidas pela teoria dominante (isto é, pelo ensino e investigação com maior apoio financeiro), como se as leis nas ciências sociais tivessem o mesmo estatuto que as leis nas ciências físico-químicas e naturais25.

Esta pretensão de tornar natural o que é eminentemente social (o mercado, a produção, a distribuição, o consumo, a escassez, ou as escolhas) e, a partir daí, transformar essas leis naturais em ação política, mostra bem que a busca do monopólio da produção científica em ciências sociais é, simultaneamente, uma questão de poder. Esta visão neoliberal do mundo copia idêntica pretensão da vulgata ortodoxa marxista em que o primado da base económica tendia frequentemente a servir de prévia explicação para todos os fenómenos sociais. Agora, no paradigma neoliberal, a resposta para as contradições existentes, é simples e igualmente dada a priori: se algo não funciona de acordo com a cartilha, é porque é preciso mais mercado.

A crise, porém, como o espanto do antigo presidente da Reserva Federal, Alan Greenspan, perante a incapacidade de autorregulação das instituições financeiras bem demonstra,

25 Ao contrário, por exemplo, do que ocorre com a Física, em que as leis se exprimem matematicamente (há uma relação de implicação), a relação entre a Matemática e a Economia é uma relação de aplicação. O recurso às técnicas matemáticas quando visto como um fim em si mesmo e não como um instrumento, evoca a conhecida história do bêbado que, numa noite escura, andava à volta de um lampião, procurando as chaves que não encontrava e que, quando um amigo, vendo-o há horas naquele rodopio, questionou se ele sabia se as chaves estavam perdidas ali, ele respondeu que não tinha a certeza, mas que ali é que estava a luz. Por outras palavras: a iluminação matemática.

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02. ARTIGOS

pôs a nu as falhas desta perspetiva e a impossibilidade de, num mundo complexo e conflitual, existir um único paradigma económico. Ao lado da combalida análise económica cuja palavra de ordem era simples (deixem os mercados – essa instituição de origem quase divina – trabalhar) ressurge a Economia Política, a importância das instituições na ciência económica, a importância da teoria da grande empresa na ciência económica, acompanhada de uma renovação dos paradigmas marxistas (desprovidos agora de projeções messiânicas), keynesianos (procurando reequacionar-se em espaços supranacionais) e institucionalistas (em articulação com a realidade social, jurídica e política). Este incremento da concorrência teórica é de saudar e os primeiros a fazê-lo deveriam ser os apóstolos da concorrência como um fim em si mesmo. Ela pode contribuir para evitar a redução da Economia à Psicologia (a crise como mero produto da ganância de especuladores financeiros - que também é; a crise como resultado da imprevisão dos reguladores - que também foi; ou da falta de contenção dos cidadãos de baixos rendimentos no recurso ao crédito - que, em menor grau, também existiu). A crise tornou transparente aquilo que a Economia sempre foi: uma ciência social com os defeitos e virtudes das restantes. E permitiu, pelo menos, reduzir a posição rentista da teoria económica dominante.

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VICENTE FERREIRA

http://ladroesdebicicletas.blogspot.com/2018/07/sobre-o-ensino-de-economia-em-portugal.html

No início do mês passado, em entrevista que pode ser lida aqui, o então presidente do ISEG, Manuel Mira Godinho, defendeu que “o ISEG é reconhecido por ser uma escola onde se combinam diferentes abordagens metodológicas e doutrinárias”. No que ao ensino de Economia diz respeito, a afirmação é manifestamente exagerada. Na verdade, o ISEG segue a tendência curricular verificada no meio académico um pouco por toda a parte, que em nada se aproxima de uma abordagem pluralista da disciplina. Importa, por isso, desmontar alguns equívocos em torno desta questão. É esse o tema do presente texto. Um oportuno estudo realizado em 2015 pelo Coletivo Economia Sem Muros, grupo de estudantes da Universidade Nova de Lisboa que recolheu dados referentes à licenciatura em Economia nas várias faculdades do país, revela um panorama nacional bem menos pluralista e abrangente do que o acima descrito. Por um lado, encontramos uma presença reduzida de cadeiras acerca de realidades económicas concretas, grupo nas quais se incluem cadeiras como História Económica ou Economia do Desenvolvimento.

Este conjunto de cadeiras representa apenas 6,2% do total de créditos das licenciaturas analisadas, como nos mostra o gráfico. Se este peso relativo parece pequeno, olhemos para o espaço concedido a cadeiras de História do Pensamento Económico: menos de 1% do total de créditos da licenciatura.

Sobre o ensino de Economia em Portugal

Estudo de fenómenoseconómicos do ‘mundo real’

História do PensamentoEconómico

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Na verdade, no ISEG a cadeira nem sequer figura do plano de estudos da licenciatura. Podemos conceber uma disciplina em que se “combinam diferentes abordagens metodológicas e doutrinárias”, sem no entanto se estudar a história da disciplina e das diferentes abordagens? Um terceiro aspeto relevante é a desproporção do peso atribuído a métodos quantitativos (nos quais se incluem cadeiras de Cálculo, Álgebra ou Estatística), em comparação com o gráfico anterior – estes métodos ocupam um quinto da licenciatura.

Mais difícil de compreender é o peso atribuído a cadeiras relacionadas com técnicas de gestão (Gestão, Marketing, Contabilidade, Empreendedorismo, entre outras).

Os números apresentados pelo estudo deste Coletivo são, por isso, pouco animadores. No entanto, os problemas do ensino de Economia na licenciatura não se resumem a uma questão de espaço das diferentes cadeiras no plano de estudos. Precisamos também de olhar para o conteúdo e o método de ensino das principais cadeiras de teoria económica (Macroeconomia, Microeconomia, Teoria Monetária, entre outras). Um exercício simples de análise dos principais manuais utilizados como bibliografia destas cadeiras (os exemplos mais comuns são os manuais Economics, de Paul Krugman e Robin Wells; Macroeconomics: A European Perspective, de Olivier Blanchard, Alessia Amighini e Francesco Giavazzi; ou Intermediate Microeconomics, de Hal Varian) revela o estado do ensino da teoria económica – nestas cadeiras, apenas é lecionada aquela que podemos considerar a herança da síntese neoclássica e neo-keynesiana, dominante na disciplina. Ora, não é necessário explicar aos leitores e às leitoras que esta é apenas uma das correntes de pensamento que constituem a Economia enquanto ciência social plural. Os estudantes de Economia podem completar a sua licenciatura sem nunca terem sido expostos a outras correntes de pensamento (dos austríacos aos pós-keynesianos, institucionalistas ou marxistas, passando pela abordagem neo schumpeteriana da complexidade ou mesmo

MétodosQuantitativos

Técnicas e Competênciade Gestão

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por ramos disciplinares que têm conquistado maior destaque no meio académico, como a abordagem comportamental). A falta de confronto entre teorias faz com que a que é lecionada seja aceite de forma acrítica como versão única e definitiva da teoria – “a Economia”. A afirmação inicial de Mira Godinho é, por isso, exagerada – o ensino de Economia no ISEG, bem como nas restantes faculdade do país, tem-se tornado cada vez menos pluralista e completo, abdicando do conflito científico para dar lugar a um certo conformismo com o pensamento dominante. É difícil conceber que um ensino desta natureza promova a reflexão crítica que se pretende de estudantes universitários. Embora o ensino de Economia revele manifestos problemas estruturais, a verdade é que estes têm sido alvo de pouca (ou nenhuma) preocupação por parte da maioria do corpo docente. A criação de dois núcleos de estudantes que contestam o monolitismo dos atuais planos de estudos (o Coletivo Economia Sem Muros, na Universidade Nova de Lisboa, e o Colectivo Economia Plural, no ISEG) veio exigir alguma atenção a esta questão, embora o movimento estudantil não seja ainda suficiente para concretizar uma reforma necessária do currículo das licenciaturas. Podemos ainda registar iniciativas como as que têm sido organizadas pelo Grupo Economia e Sociedade, ou por alguns docentes do ISCTE (ver aqui), que têm contribuído para a promoção do debate sobre os problemas do ensino de Economia. Este é um debate que devemos promover com empenho – afinal, a profissão é demasiado influente para que possamos aceitar uma formação académica tão incompleta como a atual.

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EUGÉNIO ROSA

Numa altura em que a UGT, patrões e governo se uniram na concertação social para impedir qualquer alteração importante do Código de Trabalho que permitisse uma recuperação dos rendimentos dos trabalhadores portugueses através de alterações importantes nas leis do Trabalho, como eram a introdução do principio do tratamento mais favorável que até existia antes do 25 de Abril e que impedia que nos contratos individuais de trabalho se estabelecessem condições piores das que constam na própria lei; o fim da caducidade automática dos Contratos Coletivos de Trabalho que tem permitido a chantagem das associações patronais visando obrigar os sindicatos a aceitar condições menos dignas de trabalho e de remunerações; a redução da precariedade que cresceu muitos nos últimos anos, o que permite a sobre-exploração dos trabalhadores com contratos precários; repetindo, face a tal acordo UGT/Patrões/Governo, interessa analisar como tem evoluído os custos do trabalho e, associado a estes, as remunerações, e como essa variação tem contribuído para agravar as desigualdades na repartição da riqueza criada em Portugal.

A VARIAÇÃO DO CUSTO HORA DE TRABALHO EM PORTUGAL E NOS PAÍSES DA UNIÃO EUROPEIA NO PERÍODO 2004-2017

Vamos utilizar dados do custo hora de mão de obra divulgados pelo Eurostat, por isso interessa, para uma maior clareza, explicar como eles foram calculados. Segundo o Eurostat, o custo hora de mão obra foi obtido dividindo todos os custos que o empregador tem com a mão de obra (salários e ordenados e custos não salariais como são os descontos para Segurança Social) pelo número de horas trabalhadas. E o quadro 1, mostra como ele variou entre 2004 e 2017 em Portugal e na União Europeia, e nos principais países da U.E..

A diminuição dos custos do trabalho,o aumento da produtividade em portugale na união europeia, e o agravamento

da desigualdade na repartição da riqueza

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Entre 2004 e 2017, o custo hora do trabalho aumentou em Portugal 2,8€ (entre 2015/2017, subiu 40 cêntimos segundo o Eurostat), enquanto a média na U.E. foi de 7€. Este menor crescimento do custo hora do trabalho em Portugal determinou que, entre 2004 e 2017, quando se compara o do nosso país com a média da U.E., o custo hora de trabalho em Portugal tenha diminuído de 57,1% para apenas 52,6% da média da U.E. Em relação aos países da Zona Euro, diminuiu de 49,1% para 46,5%. Portanto, a remuneração dos trabalhadores portugueses no lugar de se aproximar da média da U.E. está-se a afastar. Em Portugal a sobre-exploração aumentou e o nosso país continua a ser um país de baixas remunerações o que tem sido até utilizado pelos governos como argumento para atrair investimento estrangeiro.

PORTUGAL FOI O ÚNICO PAÍS DA UNIÃO EUROPEIA ONDE O CUSTO DO TRABALHO DIMINUIU ENTRE 2017 E 2018

Outro aspeto importante, que é uma consequência da continuação do “modelo de desenvolvimento” baseado em baixos salários, apesar das boas declarações do governo afirmando que não é esse o objetivo da politica governamental, é a permanente desvalorização do trabalho, a que está associada a sobre-exploração dos trabalhadores portugueses, como revelam dados de 2018. O gráfico 1, divulgado pelo Eurostat no seu comunicado nº 98/2018 de 15-6-2018 prova isso, de uma forma clara.

ANOS União Europeia Zona Euro Alemanha França Irlanda Espanha Itália Portugal2004 19,8 € 23,0 € 26,8 € 28,2 € 25,3 € 16,5 € 22,4 € 11,3 €2008 21,9 € 25,1 € 27,9 € 31,2 € 28,9 € 19,4 € 25,2 € 12,2 €2012 24,5 € 28,3 € 30,5 € 34,3 € 29,8 € 21,1 € 27,7 € 13,3 €2015 25,7 € 29,3 € 32,3 € 35,1 € 30,0 € 21,2 € 28,1 € 13,4 €2016 26,2 € 29,8 € 33,2 € 35,6 € 30,4 € 21,1 € 28,0 € 13,7 €2017 26,8 € 30,3 € 34,1 € 36,0 € 31,3 € 21,2 € 28,2 € 14,1 €

2004-17 -€ 7,0 € 7,3 € 7,3 € 7,8 € 6,0 € 4,7 € 5,8 € 2,8 €PT - 2004 57,1% 49,1% 42,2% 40,1% 44,7% 68,5% 50,4%PT - 2017 52,6% 46,5% 41,3% 39,2% 45,0% 66,5% 50,0%

Quadro 1 - Evolução do custo da Mão de Obra (não inclui nem agricultura nem a Administração Pública) em portugal e em outros países da união europeia entre 2004 e 2017 (empresas com mais de 10 trabalhadores)

Gráfico 1 - Evolução do custo hora da mão de obra entre o 1ºTrim.2017 e o 1º Trim.2018 na U.E

Fonte: EUROSTAT

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02. ARTIGOS

Portugal foi o único país da União Europeia (1ª barra negativa, e única negativa, do gráfico a contar da esquerda), onde o custo hora da mão obra diminuiu no 1º Trimestre de 2018 (-1,5%) quando comparado com o custo hora do 1º Trimestre de 2017. É evidente que esta redução do custo trabalho/hora foi conseguida à custa do aumento da exploração dos trabalhadores, pagando salários muito baixos. Basta ir ao “site” do Instituto de Emprego, onde se encontram ofertas de emprego para engenheiros em que as empresas pretendem pagar apenas 600€/mês, e o governo nada faz, até promove essas ofertas em “sites” oficiais. E tenha-se presente, como se refere no próprio gráfico, que aquela variação do custo hora foi calculada com base em valores nominais, ou seja, sem deduzir o efeito corrosivo do aumento de preços.

2,3 MILHÕES DE TRABALHADORES PORTUGUESES (58,2% do total) AUFEREM 2018 UM SALÁRIO LIQUIDO INFERIOR A 900€/MÊS, SEGUNDO O INE

Os dados do quadro 2, divulgados pelo INE no fim do 1º Trimestre de 2018, mostram a forma como são conseguidos os baixos custos da mão de obra em Portugal: pagando baixíssimos salários, para não dizer mesmo salários de miséria, aos trabalhadores portugueses.

No fim do 1º Trimestre de 2018, 2.338.500 trabalhadores portugueses (58,3% do total dos trabalhadores por conta de outrem) levavam para casa para viver menos de 900€ por mês; deste total, 1.026.600 recebia menos de 600€/mês e 119.000 tinham para viver por mês menos de 310€.

A VARIAÇÃO DA PRODUTIVIDADE EM PORTUGAL NÃO JUSTIFICA A POLITICA DE BAIXOS CUSTOS DO TRABALHO E A SOBREEXPLORAÇÃO DOS TRABALHADORES

Um dos argumentos mais utilizados pelas associações patronais é que os salários são baixos porque a produtividade é baixa. É certo que a produtividade em Portugal é ainda inferior à média europeia (em muitos casos porque o investimento é insuficiente ou os equipamentos estão desatualizados e as empresas não investem na formação dos seus trabalhadores), no

Setor de atividade principal / Escalão de rendimento salarial mensal líquido

Portugal - Milhares de

trabalhadores

Acumulado até ao escalão da linha

considerada - Milhares

% em relação ao

Total

% Acumulada até à linha

consideradaTOTAL - Trabalhadores por conta de outrem 4 011,2

Menos de 310 euros 119,0 119,0 3,0% 3,0%De 310 a menos de 600 euros 907,6 1 026,6 22,6% 25,6%

De 600 a menos de 900 euros 1 311,9 2 338,5 32,7% 58,3%De 900 a menos de 1 200 euros 522,6 2 861,1 13,0% 71,3%

De 1 200 a menos de 1 800 euros 497,2 3 358,3 12,4% 83,7%De 1 800 a menos de 2 500 euros 139,9 3 498,2 3,5% 87,2%De 2 500 a menos de 3 000 euros 25,4 3 523,6 0,6% 87,8%

3 000 euros e mais euros 37,5 3 561,1 0,9% 88,8%NS/NR 450,2 4 011,3 11,2% 100,0%

Quadro 2 - Trabalhadores por conta de outrem segundo o escalão de rendimento salarial líquido - 1º Trim. 2018

Fonte: INE, Inquérito ao emprego - 1º trimestre de 2018

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entanto o seu crescimento tem sido muito semelhante à média dos países da União Europeia como prova o gráfico 2 (dados da AMECO - Comissão Europeia).

Entre 2004 e 2017, a produtividade total dos fatores aumentou 5,2% em Portugal, 4,9% na Zona Euro, e 5,9% na União Europeia; portanto, não tem sido esta a razão para a desvalorização do trabalho em Portugal e para o aumento da sobre-exploração dos trabalhadores portugueses.

O AGRAVAMENTO DA DESIGUALDADE NA REPARTIÇÃO DA RIQUEZA CRIADA ANUALMENTE NO PAÍS

A percentagem das remunerações, que incluem os salários e ordenados e todas as outras despesas com pessoal suportadas pelas entidades empregadoras, do PIB, é, em Portugal, não só muito inferior à média da União Europeia mas também inferior ao valor que se registava no nosso país antes do inicio da crise como revela o gráfico 3.

Fonte: AMECO

Gráfico 2 - Variação da produtividade total dos fatores entre 2004 e 2018 em Portugal (+5,2%), na Zona Euro /+4,9%) e na União Europeia (5,9%)

Fonte: AMECO

Gráfico 3 - Percentagem do PIB que reverte para o Trabalho sob a forma de remunerações em Portugal, na União Europeia e na Zona do Euro - 2016/2017

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02. ARTIGOS

Em 2006, a parcela da riqueza criada em Portugal (PIB), medida em percentagem do PIB, que revertia para os Trabalhadores, sob a forma de remunerações, (46,8% do PIB) estava acima da média quer da União Europeia quer da Zona Euro (46,3% do PIB). A partir de 2007, a situação inverteu-se, e distribuição da riqueza criada em Portugal (PIB) tornou-se muito mais desigualitária do que a registada quer na U.E. quer na Zona do Euro como mostra o gráfico 3. E em 2017, a percentagem do PIB que reverteu para o Trabalho sob a forma de remunerações (44,4%) era não só muito inferior à U.E. e da Zona do Euro (47,6%) mas também inferior à que se registava no país antes do inicio da crise (47,7% do PIB). Pode-se concluir com propriedade que a recuperação dos rendimentos por parte do Trabalhadores ainda está longe de ser alcançada em Portugal. E se análise se limitar a Ordenados e Salários, portanto não incluindo as outras componentes das remunerações, a situação é mais preocupante segundo o INE.

Segundo o INE, em 2009, os Ordenados e salários correspondiam, em Portugal, a 37,4% do PIB; em 2016, ultimo ano em que se existem dados disponíveis, representa apenas 34,5% do PIB. É evidente que a recuperação de rendimentos por parte dos Trabalhadores ainda não está longe de ter sido alcançada no nosso país.

Uma das causas do agravamento da desigualdade na repartição da riqueza criada está precisamente a manutenção, em atos não nas declarações oficiais, de uma politica de baixos custos do Trabalho, como provamos anteriormente, a que está associada uma politica de baixos salários. E alguns dos instrumentos utilizados pelas entidades patronais para alcançar esse esse objetivo são precisamente as normas do Código do Trabalho que referimos no inicio deste estudo, e que o acordo UGT/Patrões/Governo não toca; mantém.

A PRECARIEDADE EM PORTUGAL É MUITO SUPERIOR À MÉDIA EUROPEIA

O gráfico 5, construído com dados divulgados pelo Eurostat sobre a percentagem de assalariados com contratos precários em percentagem dos trabalhadores assalariados de cada país dá bem uma ideia da

Gráfico 4 - Portugal - Ordenados e salários em % do PIB

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dimensão da precariedade em Portugal que é muito superior à média dos 28 países da União Europeia.

Em 2008, portanto no início da crise, os trabalhadores com contratos precários em Portugal representavam 29,8% dos trabalhadores por conta de outrem, enquanto a média na União Europeia era de 17,3%. Com a crise, os trabalhadores precários foram os primeiros a serem despedidos e, assim, em 2012, representavam já 19,3%. A partir desse ano verificou-se um brusco crescimento tendo-se depois registado uma pequena descida para a partir de 2016, com o atual governo e com a animação da economia, verificar-se de novo um acentuado crescimento tento atingido, em 2017, 21,3% quando a média nos países da União Europeia é de 14,7%. Atualmente, em Portugal mais de 21 trabalhadores assalariados em cada 100 tem contratos precários quando a média nos países da União Europeia é inferior a 15 em cada 100 (+44,9% em Portugal).

A PRECARIEDADE LABORAL ATINGE PRINCIPALMENTE EM PORTUGAL OS TRABALHADORES COM UM NÍVEL DE ESCOLARIDADE MAIS ELEVADA

Contrariamente ao que se podia pensar a precariedade laboral atinge mais os trabalhadores com o nível de escolaridade mais elevada como revela o Eurostat

ANOPortugal

- Total Milhares

Trabalhadores temporários em Portugal por níveis de ensino - Milhares

Trabalhadores temporários em Portugal por níveis de ensino - Em % do total de temporários

Ensino básico Secundário Superior Ensino básico Secundário Superior2009 820,7 461,3 171,7 187,7 56,2% 20,9% 22,9%2010 850,5 463,9 190,8 195,8 4,5% 22,4% 23,0%2011 809,2 410,9 200,7 197,7 50,8% 24,8% 24,4%2012 720,4 349,1 185,7 185,5 48,5% 25,8% 25,7%2013 731,5 329,4 209,5 192,6 45,0% 28,6% 26,3%2014 764,0 326,8 227,7 209,6 42,8% 29,8% 27,4%2015 805,2 330,6 247,9 226,6 41,1% 30,8% 28,1%2016 833,1 334,4 264,0 234,8 40,1% 31,7% 28,2%2017 855,8 329,9 286,8 239,1 38,5% 33,5% 27,9%

Var. Mil/p. p. 35,1 -131,4 115,1 51,4 -17,7 p. p. +12,6 p. p. +5,1 p. p.Var. % 4,3% -28,5% 67,0% 27,4% -31,4% -31,4% 22,2%

Quadro 3 - Variação dos Trabalhadores precários em Portugal por níveis de escolaridade

Fonte: INE, Inquérito ao emprego - 1º trimestre de 2018

Gráfico 5 - Assalariados com Emprego Precário em % do total de Assalariados - em Portugal e na U. E.

Fonte: EUROSTAT

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02. ARTIGOS

Entre 2009 e 2017, o número de trabalhadores assalariados com contratos precários com o ensino básico diminuiu de 461,3 mil para 329,9 mil (-28,5%), enquanto os trabalhadores com contratos precários com ensino secundário aumentou de 171,7 mil para 286,8 mil (+67%), e os com ensino superior cresceu de 187,7 mil para 239,1 mil (+27,4%). Maior nível de escolaridade em Portugal é sinónimo de maior precariedade. Esta é a razão para que muitos portugueses com maior qualificação continuem a abandonar o país na procura de trabalho e remunerações dignas que continuam a ser negadas no seu próprio país. E não vai ser com as declarações “bonitas” do primeiro ministro que esta realidade se altera. É preciso atos concretos, incluindo alterações nas leis laborais que o acordo UGT/Patrões/Governo não faz.

A SOBRE-EXPLORAÇÃO DO TRABALHO PRECÁRIO EM PORTUGAL

Precariedade está sempre associada a maior exploração, como provam os dados do quadro 4, dos quadros de pessoal de 2016 divulgados pelo Ministério do Trabalho, referentes a remuneração base e ao ganho hora dos trabalhadores com contratos por tempo indeterminado e com contrato a prazo no nosso país.

Como revelam os dados dos quadros de pessoal divulgados pelo Ministério do Trabalho, um trabalhador com contrato a prazo em Portugal ganha, em média, cerca de 30% menos do que um trabalhador com contrato por tempo indeterminado. No entanto, esta disparidade de salários e ganhos é maior quanto maior é a qualificação dos trabalhadores. Por ex., em relação aos quadros superiores as diferenças na remuneração base e no ganho médio são

NÍVEIS DE QUALIFICAÇÃOContrato sem

Termo

Contrato de trabalho com termo certo

% que Remuneração base ou ganho médio de contrato

a prazo representa em relação contrato sem termo

Diferença entre Remuneração Base e ganho médio de

trabalhadores com contrato a prazo em relação com contrato

permanenteBase Ganho Base Ganho Base Ganho Base Ganho

TOTAL 5,78 € 6,90 € 4,10 € 4,79 € 70,9% 69,4% -29,1% -30,6%QUADROS SUPERIORES 13,05 € 15,10 € 7,60 € 6,36 € 58,2% 55,4% -41,8% -44,6%Homens 14,53 € 16,94 € 8,40 € 9,28 € 57,8% 54,8% -42,2% -45,2%Mulheres 11,18 € 12,76 € 6,93 € 7,58 € 62,0% 59,4% -38,0% -40,6%QUADROS MÉDIOS 8,95 € 10,67 € 6,32 € 7,19 € 70,6% 67,4% -29,4% -32,6%Homens 9,52 € 11,57 € 6,55 € 7,50 € 68,8% 64,8% -31,2% -35,2%Mulheres 8,34 € 9,71 € 6,05 € 6,82 € 72,5% 70,2 % -27,5% -29,8%ENCARREGADOS CONT. CHEFES EQUIPA 7,93 € 9,39 € 6,35 € 7,34 € 80,1% 78,2% -19,9% -21,8%Homens 8,16 € 9,72 € 6,48 € 7,54 € 79,4% 77,6% -20,6% -22,4%Mulheres 7,53€ 8,83 € 6,15 € 7,04 € 81,7% 79,7% -18,3% -20,3%PROFISSIONAIS ALTAMENTE QUALIFICADOS 6,77 € 8,43 € 6,68 € 7,45 € 98,7% 88,4% -1,3% -11,6%Homens 7,09 € 9,05 € 8,52 € 9,37 € 120,2% 103,5% 20,2% 3,5%Mulheres 6,44 € 7,78 € 4,86 € 5,54 € 75,5% 71,2% -24,5% -28,8%PROFISSIONAIS QUALIFICADOS 4,39 € 5,34 € 3,84 € 4,58 € 87,5% 85,8% -12,5% -14,2%Homens 4,61 € 5,70 € 3,94 € 4,79 € 85,5% 84,0% -14,5% -16,0%Mulheres 4,11 € 4,86 € 3,69 € 4,25 € 89,8% 87,4% -10,2% -12,6%PROFISSIONAIS SEMI-QUALIFICADOS 3,66 € 4,37 € 3,39 € 3,97 € 92,6% 90,8% -7,4% -9,2%Homens 3,92 € 4,79 € 3,49 € 4,18 € 89.0% 87,3% -11,0% -12,7%Mulheres 3,48 € 4,07 € 3,31 € 3,80 € 95,1% 93,4% -4,9% -6,6%PROFISSIONAIS NÃO QUALIFICADOS 3,42 € 3,96 € 3,25 € 3,86 € 95,0% 97,5% -5,0% -2,5%Homens 3,61 € 4,28 € 3,34 € 4,04 € 92,5% 94,4% -7,5% -5,6%Mulheres 3,26 € 3,70 € 3,17 € 3,70 € 97,2% 100,0% -2,8%% 0,0%ESTAGIÁRIOS, PRATIC. E APRENDIZES 3,41 € 3,94 € 3,25 € 3,86 € 95,3% 98,0% -4,7% -2,0%Homens 3,48 € 4,06 € 3,30 € 3,94 € 94,8% 97,0% -5,2% -3,0%Mulheres 3,34 € 3,80 € 3,20 € 3,78 € 95,8% 99,5% -4,2% -0,5%

Quadro 4 – Remuneração base e ganho médio por hora em 2016 dos trabalhadores com contrato permanente e com contrato a prazo em Portugal

Fonte: Quadros de Pessoas - 2016 - GEP - Ministério do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social

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superiores a 40% (um trabalhador com contrato a prazo ganha em média menos 44,6% do que um trabalhador com contrato permanente).Também aqui as diferenças remuneratórias entre homens e mulheres são elevadas, pois tanto as remunerações base como o ganhos médios das mulheres são inferiores aos dos homens, e também são entre mulheres com contratos a prazo e com contratos permanentes.

UM PAÍS ONDE CADA VEZ MAIS TRABALHADORES GANHAM APENAS O SALÁRIO MINIMO NACIONAL

A percentagem de trabalhadores a receber apenas o salário mínimo tem aumentado de uma forma rápida em Portugal, podendo-se afirmar que o nosso país é um dos países da U.E. em que a percentagem de trabalhadores a receber apenas o salários tem crescido mais como revela o gráfico 6.

Em Abril de 2016, apenas 6% dos trabalhadores recebiam o salário mínimo nacional. Em Outubro de 2016, essa percentagem tinha aumentado para 23,3%, ou seja quase quatro vezes mais. Em Abril de 2017, segundo o Boletim Estatístico de Junho de 2018, o salario mínimo de 557€, a que correspondia um salario liquido de apenas 495,7€ após o desconto para a Segurança Social, era recebido por 25,7% do total dos trabalhadores portugueses, sendo a percentagem de mulheres a recebar o salário mínimo, porque ainda mais mal pagas, 30,9%.

Atualmente, com a subida do salário mínimo nacional para 580€, a percentagem é certamente muito superior. As empresas em Portugal estão a habituar-se a pagar apenas o salário mínimo nacional seja qual for o nível de qualificação, incluindo a licenciados, e depois queixam-se que faltam trabalhadores ou que os melhores emigram para o estrangeiro. E mesmo o atual nada faz para alterar esta realidade como revela o acordo da concertação social UGT/patrões/governo.

Fonte: GEP / MTSSS, Inquérito aos Ganhos e Duração de Trabalho

Gráfico 6- Variação percentual dos trabalhado recebem apenas o SMN- 2008/2016

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02. ARTIGOS

E se a análise for feita por setores de atividade económica, os números são ainda mais chocantes em alguns deles, como mostra o quadro 5 com dados divulgados pelo Ministério do Trabalho.

No alojamento e restauração, um setor em crescimento devido ao aumento do turismo, já em Outubro de 2016, 35,7% dos trabalhadores recebia apenas o salario mínimo nacional (530€), a que correspondia a um salario liquido de 471,7€.

O ACORDO DE CONCERTAÇÃO SOCIAL ASSINADO ENTRE A UGT, OS PATRÕES

E O GOVERNO NÃO MUDA NADA DE ESSENCIAL: É preciso que alguma coisa mude

para que tudo fique na mesma” já dizia Don Fabrizio.

Como diz Don Fabrizio, um membro de nobreza italiana no período das revoluções burguesas, no romance “Leopardo” de Tomasi de Lampeduza, adaptado ao cinema por Visconti, “É preciso que alguma coisa mude, para que tudo fique na mesma”. Também a UGT, patrões e governo pensam da mesma forma que aquele representante da nobreza italiana.

Para que se possa avaliar as propostas do governo aceites pela UGT e pelos patrões, que fazem parte do acordo da concertação social que foi enviado para a Assembleia da República para que seja feitas alterações no Código de Trabalho, que só a CGTP se recusou a assinar, vamos transcrever as mais importantes. São elas:

- Reduzir a duração máxima dos contratos a prazo de 3 anos (duração atual) para 2 anos, incluindo renovações, e estabelecer que a duração máxima das renovações não pode exceder a do período inicial do contrato;

- Reduzir a duração dos contratos a termo incerto de 6 anos para 4 anos;

Atividades CAE REV. 3 out / 15 abr / 16 out / 16TOTAL 21,1 25,3 23,3Homens 17,0 19,7 18,5

B Mulheres 26,2 32,0 28,9C Ind. Extrativas 8,1 17,8 10,2D Ind. Transformadoras 26,2 31,6 25,9E Eletricidade, Gás, Vapor, Água Quente, Fria e Ar 0,6 0,4 0,2F Captação, Tratamento e Dist. Água 18,9 19,0 19,1G Construção 22,7 24,8 22,1H Comércio por Grosso e Retalho 20,9 24,0 25,2I Transportes e Armazenagem 11,1 12,7 12,1J Alojamento e Restauração 34,7 35,9 35,7

K Atividades de Informação e Comunicação 5,3 6,6 6,3L Atividades Financeiras e de Seguros 1,2 2,2 1,3

M Atividades Imobiliárias 19,9 27,4 29,8N Atividades de Consultoria 8,4 11,4 9,7O Atividades Administrativas e dos Serviços de Apoio 26,2 36,3 29,2P Educação 9,8 11,0 13,7Q Atividades de Saúde Humana e de Apoio Social 21,4 28,5 27,6R Atividades Artísticas, De Espetáculos, Desportivas e Recreativas 21,2 29,2 25,6S Outras Atividades de Serviços 27,4 30,2 31,2

Quadro 5 – Percentagem de trabalhadores a ganhar apenas o salário mínimo nacional

Fonte: GEP, MTSSS, Inquérito aos Ganhos e à Duração do Trabalho (02/03/2018)

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- Eliminar do Código de Trabalho a norma que permite contratar a prazo para trabalho permanente jovens a procura do 1º emprego, mas continuar a permitir para desempregados de longa duração;

- Permitir os contratos a prazo para trabalho permanente em empresas até 250 trabalhadores (atualmente é até 750 trabalhadores) criadas em novas atividades;

- Permitir contratos a prazo na atividade agrícola até 35 dias (atualmente é até 15 dias);

- Alargar o período experimental de 90 dias (o período atual em vigor) para 180 dias para a generalidades dos trabalhadores, em que a entidade patronal pode denunciar o contrato sem aviso prévio e sem invocação de justa causa, nem direito a indemnização;

- Acabar com o banco de horas individual e grupal com base em acordos individuais, mas permitir que sejam criados por contratação coletiva incluindo o banco de horas grupal;

- Introduzir um limite máximo de 6 renovações do contrato de trabalho temporário (atualmente não existe limites);

- Criar uma contribuição adicional para a Segurança Social no máximo até 2% a pagar pelas empresas apenas em relação aos trabalhadores contratados a prazo que excederem a média do setor (?).

No essencial, é evidente que nada muda de essencial, pois as entidades patronais poderão continuar a contratar a prazo da mesma forma que atualmente, pelos mesmos motivos, e utilizando os mesmos subterfúgios (por ex. despedindo o trabalhador quando chega o limite máximo de renovações, mandam-no para casa um mês, como a promessa que passado esse tempo o contratam de novo a prazo na mesma empresa ou noutra como se fosse um novo contrato, ou inventado, como acontece nos “call center”, que cada campanha é um projeto novo e contratam o trabalhador a prazo para cada projeto com tempo limitado).

Com a redução dos contratos a prazo de 3 para 2 anos, incluindo renovações, e mantendo-se tudo o resto como pretende o atual governo, o que vai acontecer é que a precariedade aumentará ainda mais para os trabalhadores com contratos a prazo porque o período de tempo em que têm um emprego mesmo a prazo diminuirá. Para os não integrar como trabalhadores permanentes as entidades patronais procederão a despedimentos mais cedo. O que era necessário era inverter toda esta lógica de contratação a prazo: UM TRABALHO PERMANENTE DEVE CORRESPONDER SEMPRE, MAS SEMPRE, A UM CONTRATO PERMANENTE. Mas isso o governo não faz porque o patronato não quere para assim continuar a explorar intensamente (sobre exploração) mais de 855 mil trabalhadores com contratos precários segundo dados do Eurostat.

Tendo em conta que o ganho médio em Portugal, em 2017, foi de 1.148 €/trabalhador/mês, se fosse este o ganho dos trabalhadores com contrato a prazo isso correspondia a 14.227 milhões €/ano. Como aos trabalhadores com contratos a prazo as empresas pagam, em média, menos 30% do que aos com contratos permanentes, as entidades patronais poupam (sobre lucro), só por este meio, 4.268 milhões €/ano à custa da sobre-exploração dos trabalhadores precários. É esta a realidade que urge alterar e que o acordo de concertação social UGT/patrões/governo não alterará.

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02. ARTIGOS

MARIANA MORTÁGUA

(https://www.jn.pt/opiniao/mariana-mortagua/interior/e-urgente-tratar-o-sns-9510989.html)

O Sistema Nacional de Saúde está em declínio. O diagnóstico é do seu criador - António Arnaut - que com João Semedo assinou a proposta para uma Nova Lei de Bases da Saúde.

A degradação do serviço público de saúde não começou em 2015 por iniciativa deste Governo. PSD e CDS votaram contra a criação do SNS em 1979. Com Cavaco Silva estraçalharam a Lei de Bases da Saúde em 1990, quando tornam expressa a sua intenção de desenvolver um sistema privado paralelo, em concorrência mas dependência financeira do público. E pela mão de Passos e Portas cortaram 15% do orçamento da Saúde. A campanha que agora lançam contra o SNS, arrasando a sua - ainda assinalável - qualidade é tão oportunista como é hipócrita a súbita preocupação com serviço público.

Se queremos discutir como a nova Lei de Bases pode salvar o SNS, então PSD e CDS estão fora de jogo. Este não é o seu campeonato.

Dizer que o Governo não é o responsável pelo estado do SNS significa reconhecer que houve recuperação dos cortes da Direita, mas só isso. O PS tem as suas responsabilidades históricas - como as PPP - e este Governo não inverteu os problemas crónicos do SNS: a suborçamentação, a obsolescência e insuficiência dos equipamentos substituídos por contratações privadas, ou a fuga de profissionais.

O SNS luta para dar resposta às enormes responsabilidades que lhe foram atribuídas. No entanto, sem financiamento e uma lei que o proteja, continuará a canalizar 40% do seu orçamento para os privados, e definhará. Nesse dia o negócio terá ganho, e o direito constitucional que tanto acarinhamos e com que contamos nos momentos difíceis - o acesso de todas as pessoas a cuidados de saúde - deixará de existir.

Não há pequenos remédios. Precisamos de uma lei que assuma que não é possível ter um SNS forte, gratuito e universal em concorrência com o negócio da saúde. A proposta de Arnaut e Semedo, apresentada pelo Bloco, é clara nessa escolha, a de Maria de Belém, pelo Governo, não tanto.

O Governo tem nas mãos a possibilidade de negociar e aprovar uma lei histórica para salvar o SNS. E de o fazer com uma maioria parlamentar de Esquerda que tem orgulho e leva muito a sério o direito Constitucional a um SNS geral e universal. O PS cometerá um erro se desperdiçar

É urgente tratar o SNS

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esta possibilidade, adiando a discussão da Lei de Bases para fora desta legislatura no desejo de uma outra relação de forças, que o liberte de fazer os compromissos de que o SNS precisa.

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RICARDO CABRAL

https://www.publico.pt/2018/07/02/economia/opiniao/cimeira-do-euro-um-grande-passo-em-frente-1836527

Volta-se de novo às questões da reforma da zona euro a propósito dos resultados da Cimeira do Euro de sexta-feira da última semana.

São quase sempre áridos e muito pouco inteligíveis os textos dos acordos europeus, embora inevitavelmente acompanhados pelas palavras “optimistas” de responsáveis políticos que tendem a salientar os aspectos positivos e a ignorar os negativos.

Contudo, duas décadas de estagnação económica e, em parte deste período, de recessão, de emigração em massa e de queda dos salários reais e nominais obrigam a um olhar mais realista e crítico sobre o teor do acordo obtido nesta cimeira.

Não está sequer em causa que se seja a favor ou contra o projecto de maior integração europeia. O que importa é que, mesmo sendo favorável a esse desiderato, é importante estar atento aos detalhes dessas negociações em particular quando, como agora, se debatem questões com enorme impacto para a vida dos portugueses nas próximas décadas.

De que se tratava, afinal, nesta Cimeira do Euro?

Comece-se por salientar que uma parte importante das reformas implementadas nos últimos anos em resposta à crise do euro de 2010-2012, bem como do pacote de reformas “aprovado” nesta cimeira, tem como consequência – se não mesmo o objectivo – o aumento dos custos quer de uma reestruturação de dívida pública soberana quer da saída do euro por parte de um ou mais países membros.

Com efeito, essas reformas podem mesmo ser interpretadas como um trabalho metódico e incremental, por países membros credores da Zona Euro para, através de alterações às leis europeias, posteriormente transcritas para leis nacionais, restringirem as opções de política económica dos países devedores.

Esta Cimeira do Euro consistiu, essencialmente, na ratificação pelo Conselho Europeu da carta do Presidente do Eurogrupo, Mário Centeno, ao “Presidente da Cimeira do Euro”, Donald Tusk, bem como na definição de um calendário para a especificação e a implementação de algumas das reformas propostas nessa carta.

O valor económico dos temas abordados na referida carta do Presidente do Eurogrupo

Cimeira do Euro: “um grande passo em frente”?

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que, refira-se, é quase um “copy-paste” da declaração Merkel-Macron em Meseberg, é muito significativo. As medidas propostas que beneficiam de maior consenso têm efeitos redistributivos profundos a médio e a longo prazo. Nomeadamente, afectam negativamente o nível e qualidade de vida de milhões de pessoas ao longo de décadas.

Nessa carta constam, entre outros, os seguintes temas com forte impacto, em particular, na economia portuguesa:

1. A proposta de impor um limite ao crédito malparado (fala-se em 5% do crédito total) resultará em perdas muito significativas para o sistema bancário e para os contribuintes de países com elevado nível de crédito malparado, como Portugal e Itália. O crédito malparado (NPL) representa cerca de 19% do PIB português, o equivalente a 37 mil milhões de euros, ou 13,3% do volume da carteira de crédito da banca a operar no nosso país. Não existe mercado capaz de absorver tais volumes de crédito pelo que a venda desses créditos se faria a preços muito baixos e teria igualmente repercussões no tecido produtivo português. Os compradores desses créditos, provavelmente investidores e bancos não residentes, realizariam elevadas mais-valias.

2. Sobre a União Bancária, pretende-se aparentemente eliminar o instrumento de recapitalização directa de bancos que no presente consta da directiva europeia sobre recuperação e resolução bancária. Se assim for, passariam a existir, na prática, somente dois instrumentos de política económica para responder a crises de confiança e de solvabilidade em bancos de média ou grande dimensão: ou resolução bancária (“a cenoura”) ou liquidação desordeira (“a vergasta”). É uma reforma que incentiva corridas e ataques especulativos a bancos e que fragiliza o sistema bancário europeu. Quase se pode falar de nova “TINA” (de “There Is No Alternative”), agora, para bancos.

3. A harmonização da lei de insolvências, proposta no âmbito da União dos Mercados de Capitais, irá impedir países membros de promoverem reestruturações de dívida privadas e/ou públicas através de alterações às leis de insolvência, ainda essencialmente nacionais, possibilidade sugerida, entre outros, por Joseph Stiglitz em artigo recente, onde analisa como poderia a Itália sair do euro. Com efeito, as leis de insolvência ainda não tinham sido objecto de substantiva harmonização europeia através de directivas europeias ou de acordos intergovernamentais, o que significa que nesta matéria ainda prevalece sobretudo o direito nacional e não o europeu.

4. São propostos novos poderes para o Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE), organismo que deverá passar a acompanhar os orçamentos dos países membros, a realizar análises de sustentabilidade das dívidas públicas soberanas e a supervisionar a sua reestruturação, “facilitando” o diálogo entre governos soberanos e investidores (credores) privados. Ou seja, o MEE ganha poderes e assume funções não só de outras instituições europeias, como a Comissão Europeia e o BCE. Ainda mais preocupante: retira mais poderes aos governos e parlamentos nacionais.

5. É ainda proposta uma nova cláusula europeia que deverá ser incluída em todos os contratos

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de dívida pública dos países membros (“collective action clause) que complementa e reforça uma cláusula introduzida em 2012 e em vigor desde 2013. Essa nova cláusula previsivelmente tornará ilegais e sujeitas a litígio em tribunais europeus, as reestruturações de dívida pública soberana realizadas recorrendo a alterações à lei nacional, sem o consentimento de uma maioria dos credores.

6. Sobre a proposta, muito gravosa para os países devedores, de diferenciar o risco da dívida pública dos países membros, persistem ainda ”as perspectivas mais divergentes” no seio do Eurogrupo. Se essa proposta viesse a ser aprovada, resultaria num aumento das taxas de juro da dívida pública e privada dos países devedores e numa redução das taxas de juro da dívida pública e privada dos países credores. Alteraria radicalmente os fluxos financeiros internos das economias dos países devedores. De facto, uma parte da poupança dos países devedores passaria a ter de ser canalizada para dívida de países credores, o que é um contra-senso. Poderia até levar vários países da zona euro à bancarrota.

Em suma, estes detalhes pouco perceptíveis para o público têm, no seu conjunto, impactos de algumas centenas de milhares de milhões de euros para países como Portugal. Tornam ilegais reestruturações de dívida privadas e públicas, têm efeitos redistributivos muito significativos em prejuízo essencialmente dos países devedores e oneram os países que no futuro se afoitem a sair do euro.

É, em parte, compreensível que países credores tentem precaver-se de uma saída do euro, ou de uma reestruturação de dívida soberana por parte de um país membro, com o objectivo de salvaguardar as respectivas poupanças externas acumuladas desde a introdução do euro. Mas as medidas que têm vindo a ser adoptadas pelas autoridades europeias “escravizam” os países devedores durante décadas a uma dívida que estes não conseguem pagar. E, como se sabe, as economias dos países credores beneficiaram imenso com a introdução do euro.

Algum distanciamento permite perceber que, nos bastidores, nos detalhes tecnocráticos das reformas em curso, entre sorrisos de contentamento, ocorre já um conflito fratricida entre países membros: parece que se preparam para uma eventual desintegração do euro.

Se isto é a paz, como será a guerra?

Por conseguinte, pelas razões acima, o acordo da Cimeira do Euro a que chegaram na sexta feira em Bruxelas os representantes dos países da Zona Euro, entre eles os nossos representantes, não merece aplauso… não parece ser um “grande passo em frente”!