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Rev Rev Rev Rev Revista Jurídica ista Jurídica ista Jurídica ista Jurídica ista Jurídica Escola Superior do Ministério Público Volume 2 - n.º 4 (Julho a Dezembro/2002) LOGO DA IMESP

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RevRevRevRevRevista Jurídicaista Jurídicaista Jurídicaista Jurídicaista JurídicaEscola Superior do Ministério Público

Volume 2 - n.º 4

(Julho a Dezembro/2002)

LOGO DAIMESP

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EXPEDIENTE

ESCOLA SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO DE SÃO PAULO(Rua Minas Gerais, 316 - Higienópolis - São Paulo/SP)

Conselho Editorial:Carlos Alberto de Salles

Hugo Nigro MazzilliLuiz Otavio de Oliveira Rocha

Luiz Roberto Cicogna FaggioniOswaldo Henrique Duek Marques

Ricardo Barbosa Alves

Diretor: Luís Daniel Pereira Cintra

Assessores:Edgard Moreira da Silva

Maria Amélia Nardy PereiraOswaldo Peregrina RodriguesVânia Ferrari Trópia Padilla

Jornalista responsável:Rosana Sanches (MTb 17.993)

Capa:Luís Antônio Alves dos Santos

Impresso por: Imprensa Oficial do Estado

(Rua da Mooca, 1.921)

“Revista Jurídica da ESMP” é semestral, com tiragem de 3 mil exemplares.

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Revista Jurídica da ESMP - n.º 4 3

Apresentação...............................................................Luís Daniel Pereira Cintra

O Papel do Ministério Público dentro do ProcessoPenal, à vista dos Princípios Constitucionais doProcesso Penal - UMA VISÃO FUNDADA NO DIREITO PROCESSUAL

PORTUGUÊS.......................................................................Arthur Pinto de Lemos Júnior

Anotações Pontuais sobre a Lei 10.409/2002 (Nova LeiAntitóxicos) - PROCEDIMENTO E INSTRUÇÃO CRIMINAL...........Renato Flávio Marcão

Convenções ou Tratados Internacionais Face àConstituição Federal e Normas Internas Referentes àIndenização por Dano Ambiental...............................Juang Yuh Yu

O Risco de Tomar Uma Sopa..........................................Damásio de Jesus

Síntese da Evolução Histórico-científica do Processo .....Marcelo Batlouni Mendroni

As Disposições Finais e Transitórias do Novo CódigoCivil (Lei n.º 10.406 de 10/1/02)........................................José Raimundo Gomes da Cruz

Segurança Alimentar - Imperativo de Cidadania...........Mário Frota

Autoridade na Escola......................................................José Heitor dos Santos

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A Escola Superior do Ministério Público sente-se orgulhosaem apresentar o volume 4, Julho/dezembro de 2002, da RevistaJurídica editada por esta casa de ensino do Parquet paulista. Estamosem fase de grandes transformações não somente no Brasil como namaioria dos países. Essas transformações e a evolução que se ve-rifica no cotidiano trazem reflexos significativos no campo jurídi-co. O MP, não seria diferente, é alcançado pelas transformações.

A ESMP, na persecução do seu desiderato de contribuir para adiscussão de temas de interesse institucional e funcional que emer-gem da sociedade em permanente e acelerada mutação e que te-nham relevância para a atuação do Promotor de Justiça, faz pu-blicar a presente edição com a abordagem de questões que envol-vem as principais legislações sancionadas em 2002, bem como deassuntos que precisam ser refletidos no âmbito do Parquet paulista.

Há decênios se discute, na comunidade jurídica e no CongressoNacional, uma nova legislação processual penal, com anteprojetosde lei que se movimentam nas casas legislativas federais, nos or-ganismos estatais e entidades civis interessadas, bem como no pró-prio MP. Por isso, o estudo “O Papel do Ministério Público dentrodo Processo Penal, à vista dos Princípios Constitucionais do Pro-cesso Penal”, do Dr. Arthur Pinto de Lemos Júnior, Promotor deJustiça Criminal, merece ser examinado com percuciência e deba-tido amplamente. Questões jurídicas relativas à posição do MPcomo fator determinante de sua atuação no processo penal e o seupapel na direção da investigação criminal como garantia da lega-lidade democrática são enfocadas nesse brilhante trabalho.

A Nova Lei de Entorpecentes – Lei 10.409/2002 constituiu-seem uma das leis mais polêmicas dos últimos anos. A comunidadejurídica e a sociedade em geral, cada vez mais preocupadas com acriminalidade, particularmente com a questão das drogas e suasconseqüências, reagiram violentamente contra a filosofia ampla-mente liberal encampada pela nova lei de tóxicos, fato que levou oPresidente da República a vetar todo o capítulo que tipificava ascondutas criminosas. Em razão disso, o Dr. Renato Flávio Marcão,Promotor de Justiça de Mirassol, apresenta estudo sobre o procedi-mento e a instrução criminal na nova lei de tóxicos.

As Convenções Internacionais e a sua interface com a legis-lação nacional sob a ótica constitucional, particularmente em

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Revista Jurídica da ESMP - n.º 46

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Luís Daniel Pereira Cintra,procurador de Justiça, diretor da ESMP

relação à indenização por dano ambiental, é tema que merece dis-cussão aprofundada. A a Promotora de Justiça em São Paulo,Juang Yuh Yu, examina a matéria relativa à poluição por óleo e aresponsabilidade civil pelos danos ambientais. Na Espanha, espe-cificamente na Galícia, em 13/11/02 ocorreu avaria no casco daembarcação Prestige, que afundou dias depois com mais de 77 miltoneladas de óleo combustível. Uma das maiores catástrofes ecoló-gicas dos últimos anos. A responsabilidade civil decorrente de fatossemelhantes é estudada no estudo ora mencionado.

“O Risco de Tomar uma Sopa” é o tema cunhado pelo Dr.Damásio Evangelista de Jesus, Procurador de Justiça aposentado,para examinar, sob orientação da imputação objetiva, os reflexosjurídico-penais de um acidente de trânsito com vítima de lesõescorporais que, internada num hospital, já em fase de restabelecimentoclínico, vem a falecer por motivo diverso.

Em interessante trabalho doutrinário, o Dr. Marcelo BatlouniMendroni, Promotor de Justiça Criminal em São Paulo, examina aevolução histórico-científica do processo desde o período primitivoaté a época da processualística, que permite compreender a origem,evolução e autonomia do processo dentro da Ciência Jurídica.

O novo Código Civil – Lei nº 10.406, de 10/01/02 finalmenteentra em vigor, depois de ser objeto de inúmeras críticas pela co-munidade jurídica, que já o considera ultrapassado. Em proemi-nente estudo, o Dr. José Raimundo Gomes da Cruz, Procurador deJustiça aposentado, examina as disposições finais e transitórias donovo Código Civil, cuja leitura se mostra obrigatória para compreen-são e interpretação do novo estatuto do Direito Privado brasileiro.

Segurança Alimentar – Imperativo da Cidadania é o tema dorenomado jurista português Mário Frota. Sob um enfoque princi-piológico, o autor estuda, sob os influxos do Direito Europeu, aresponsabilidade civil e penal da oferta e consumo de alimentos.

A variedade dos temas e a qualidade dos autores permitem vis-lumbrar a importância desta obra. A partir de agora, deixamos aosleitores o prazer de abeberarem-se dos conhecimentos, informaçõese reflexões exaradas nos estudos.

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o papel do mp dentroo papel do mp dentroo papel do mp dentroo papel do mp dentroo papel do mp dentrodo processo penal,do processo penal,do processo penal,do processo penal,do processo penal,

à và và và và vista dos princípiosista dos princípiosista dos princípiosista dos princípiosista dos princípiosconstitucionaisconstitucionaisconstitucionaisconstitucionaisconstitucionais

Arthur pinto lemos júnior,promotor de justiça da capital

A Escola Superior do Ministério Público, nosestertores do corrente ano, sente-se orgulhosa em apresentaro volume nº 4 – Julho/dezembro de 2002, da Revista Jurídicaeditada por esta casa de ensino do Parquet paulista.

Estamos em fase de grandes transformações, não

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somente no Brasil, como na maioria dos países deste planeta.Essas transformações e a evolução que se verifica no cotidia-no traz reflexos significativos no campo jurídico. O Ministé-rio Público, não poderia ser diferente, é alcançado por essastransformações no seu mister institucional.

A Escola Superior do Ministério Público, napersecução do seu desiderato de contribuir para a discussãode temas de interesse institucional e funcional que emergemde sociedade em permanente e acelerada mutação e que te-nham relevância para a atuação do Promotor de Justiça, fazpublicar a presente edição da Revista Jurídica com a aborda-gem de questões que envolvem as principais legislações san-cionadas em 2002, bem como de assuntos que precisam serrefletidos no âmbito do Parquet paulista.

Para tanto, foi reunida uma compilação de textoscom temática variada, mas dentro de uma abordageminterdisciplinar.

Há decênios de anos se discute na nossa comuni-dade jurídica e no Congresso Nacional a edição de uma novalegislação processual penal, com anteprojetos de lei que semovimentam nas casas legislativas federais, nos organismosestatais e entidades civis interessadas na matéria, bem comono âmbito do próprio Ministério Público. Por isso, o estudo“O Papel do Ministério Público dentro do Processo Penal, ávista dos Princípios Constitucionais do Processo Penal”, daautoria do Dr. Arthur Pinto de Lemos Júnior, Promotor deJustiça Criminal em São Paulo, merece ser examinado com

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Revista Jurídica da ESMP - n.º 4 9

“O PAPEL DO MINISTÉRIO PÚBLICO

DENTRO DO PROCESSO PENAL, À VISTA

DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

DO PROCESSO PENAL”(*)- UMA VISÃO FUNDADA NO DIREITO PROCESSUAL PORTUGUÊS

Arthur Pinto de Lemos Júnior

SUMÁRIO: I. Introdução. II. A origem do Ministério Público,numa perspectiva histórica, vinculada ao Poder Executivo esua predestinação à autonomia. III. A posição constitucionaldo Ministério Público como fator determinante de seu papelno processo penal. IV. Análise da actuação do MinistérioPúblico à luz dos Princípios Constitucionais do ProcessoPenal. O papel do Ministério Público na estrutura acusatóriado processo penal diante dos princípios do acusatório e docontraditório. 4.2. O Princípio da legalidade: um compromissopara o cumprimento dos princípios da oficialidade e igualdadecomo fundamentos da Justiça democrática e social. 4.2.1.A direção da investigação criminal pelo Ministério Público,como defesa da legalidade democrática e fator decisivo parao cumprimento dos princípios da legalidade e igualdade.4.2.2. O princípio da legalidade, em termos não estritos, e odever de buscar a desjudiciarização do procedimento criminalcomo forma mais eficiente de proporcionar uma Justiça sociale democrática. 4.3. O conteúdo do princípio da presunçãode inocência como definição da forma de tratamento doarguido e critério de interpretação dos fatos reunidos noconjunto probatório. 4.4. A exigência do fair trial. O MinistérioPúblico colocando-se na posição dos outros sujeitosprocessuais como forma de cumprir o princípio da lealdade.V. Conclusão. VI. Bibliografia.

percuciência e debatido amplamente no âmbito do Parquet.Questões jurídicas relativas à posição do Ministério Público

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I – Introdução

O tema que será abordado reflecte a intensa relação entre o direitoconstitucional e o direito processual penal, fundada na igual intencionali-dade de protecção dos direitos fundamentais do cidadão1, que incide,sobremaneira, na actuação do Ministério Público, mormente porque taisdireitos contam com «um tratamento preferencial cristalizado no artigo18.º da CRP»2 e são aplicados directamente, isto é, valem como«direitos self executing, independentemente da mediação concretiza-dora ou densificadora dos poderes públicos»3.

Ocorre que, para além de não ser um direito absoluto (artigo 18º,n.º 2 e 3 da CRP), a protecção perante o Estado dos direitos fundamen-tais não é a única finalidade do processo penal. A realização da justiça,a descoberta da verdade material e o restabelecimento da paz jurídica

* Este trabalho – com pequenas alterações – foi apresentado na Faculdade de Direito da Universidadede Coimbra, em setembro de 2002, durante Curso de Mestrado em Ciências Jurídico-Criminais, nadisciplina de Direito Processual Penal, sob a orientação do Sr. Doutor Prof. José de Faria Costa. Poresse motivo, as referências serão feitas às legislações portuguesas, bem como nossa grafia.

1 Nesse sentido: COSTA, José de Faria, “Um olhar cruzado entre a constituição e o processo penal”,in A Justiça nos dois lados do Atlântico, Fundação Luso-Americana, Lisboa, 1997, p. 187-188.

Para G. BETTIOL (Instituições de Direito e Processo Penal, trad. Doutor Manuel da CostaAndrade, Coimbra Edit., 1974, p. 249-250) essa intensa identidade entre as duas ciências,ocorre «pelo facto de estar em jogo a liberdade individual em cuja tutela ambos os sectores doordenamento jurídico se empenham, como resposta a uma vocação comum». Já FIGUEIREDODIAS (Lições, textos da FDUC, 1988-89, p. 35) indica uma «dupla dimensão (...) derivada de osfundamentos do processo penal serem, simultaneamente, os alicerces constitucionais do Estado,e naquela outra resultante de a concreta regulamentação de singulares problemas processuaisser conformada jurídico-constitucionalmente». Também: TIEDMANN, “Constituição e Direito Penal”,trad. de L.A.Zapatero, REDC 33(1991), p. 168.

2 COSTA, José de Faria, “Um olhar...”, ob. cit., p. 188. Quanto ao artigo 18º, Costa Andrade (inLiberdade de imprensa e inviolabilidade pessoal, Coimbra Edit., 1996, p. 33) afirma tratar-se de«uma eficácia expressamente imposta pela Constituição da República Portuguesa. Que, nesteaspecto, se singulariza no panorama comparatístico, já que a generalidade dos ordenamentosconstitucionais contemporâneos não reconhecem vigência imediata à eficácia externa dosdireitos fundamentais».

3 CANOTILHO, J.J.Gomes, in Direito Constitucional, Almedina, Coimbra, 1997, p. 395.

como fator determinante de sua atuação no processo penal eo seu papel na direção da investigação criminal como forma

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posta em causa pelo crime também são, da mesma forma, visados. Aactuação do Ministério Público durante todo o transcurso do processoé, sem dúvida, a primeira a evidenciar o carácter antitético dessasfinalidades e a provocar a tensão entre os diferentes objectivos,designadamente na fase do inquérito, do qual tem o domínio – artigo219º, n.º 1, da CRP e artigo 263º do CPP.

Com essa importância e complexidade, na qual o Estado de DireitoDemocrático e Social tem total conexão, o presente trabalho examinaráo papel de «self executing» dos direitos fundamentais à vista daactuação do Ministério Público dentro do processo penal, numaperspectiva jurídica–constitucional e não numa visão meramente instru-mental daquela ciência processual, porquanto «a ordem jurídico-constitucional material constitui, no nosso processo de desenvolvimentojurídico-cultural, um referente normativo inarredável para a compreensãoe delimitação de um qualquer outro direito»4.

O foco estará nos princípios constitucionais como manifestaçãodaquela recíproca correspondência de intencionalidade com adogmática processual penal, pois através dos princípios processuais-constitucionais podemos definir o perfil político de um Estado. Como jáescreveu o grande Goldschmidt: «os princípios da política processualde uma nação não são outra coisa que segmentos de sua política estatalem geral. Se pode dizer que a estrutura do processo penal de umanação não é senão o termómetro dos elementos corporativos ouautoritários de sua Constituição»5.

Ao pretendermos desvendar o papel do Ministério Público naaplicação efectiva destes princípios no processo penal, colocaremos omesmo «termómetro» na actuação ministerial para avaliar o quanto oprocedimento criminal e o Estado estão próximos de uma Justiçaadequada ao Estado de Direito Democrático e Social.

4 Cfr. COSTA, José de Faria, O Perigo em Direito Penal, Coimbra Edit., 2000, p. 189.

5 GOLDSCHIMIDT, James, in Problemas Jurídicos y Políticos del Proceso Penal, Conferenciasdadas en la Universidad de Madrid..., Bosch, Casa Editorial, 1935, p. 67.

de garantia da legalidade democrática são enfocadas, dentreoutras, nesse brilhante trabalho a Escola Superior traz a lume.

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Para tanto, a análise num primeiro plano, buscará a compreensãodo surgimento do Ministério Público, porque o facto de suas raízesestarem ainda presas ao Poder Executivo, influem na própria concepçãoda instituição e em sua posição na Lei Fundamental, tudo a evidenciaro quanto o Estado, verdadeiramente, pretende ser democrático, nãoautoritário e distante de uma justiça utilitarista. Tais considerações, noentanto, não receberão um tratamento de questões preliminares, massim de pressupostos essenciais para a definição do papel ministerialdentro do processo penal.

De outro lado, serão abordados temas de extrema complexidadee importância à dogmática processual penal, como a alteraçãosubstancial dos factos, a obrigatoriedade ou a discricionaridade nadedução da acusação, o contraditório no inquérito, entre outros. Paraque possamos avaliar o «termómetro» ao final do trabalho, ascomplexidades ínsitas ao processo penal serão analisadas, tão-só,sob a perspectiva dos objectivos centrados no contexto do papel doMinistério Público, dentro do processo penal, visto à luz dos princípiosconstitucionais.

II- A origem do Ministério Público, numaperspectiva histórica, vinculada ao Poder Executivoe sua predestinação à autonomia.

«Nas coisas mais difíceis, sejam elas quais forem, nãodeve esperar-se que alguém semeie e logo colha, masé necessária uma preparação de forma a que elasamadureçam gradualmente»6. Bacon.

6 Apud MARINUCCI, Giorgio, in “Cesar Beccaria, Um Nosso Contemporâneo”, introdução da obraDos Delitos e das Penas, Cesare Beccaria, 1998, trad. do Doutor José de Faria Costa, FundaçãoCalouste Gulbenkian, p. 33 – itálico do Autor.

A Nova Lei de Entorpecentes – Lei nº 10.409/2002

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Esta abordagem, longe da mera historiografia, procura não sóresgatar a origem7 do atrelamento do Ministério Público ao PoderExecutivo, mas também estabelecer os principais subsídios da evoluçãosócio-política, para compreender muitos dos problemas ainda enfrentadospela instituição, muitos deles em virtude da preocupação com a sombrado passado. Dentro dessa orientação, desde logo, salientamos que osurgimento do Ministério Público não foi abrupto. Ao contrário, foi fruto deuma lenta e progressiva resposta às exigências históricas de Justiça eda evolução sócio-político do Estado, que coincidiu, precisamente noséculo XIV, com a centralização do poder na pessoa do Rei, o que viabilizoua regulamentação e administração da Justiça8.

Com esse novo contexto, o Rei, legitimado directamente pelo poderde Deus e como fonte de justiça - rex eris si recte faceris -, nomeavarepresentantes para o exercício do poder em seu nome, os ProcuratoresRegi, designadamente para lidar com questões fiscais e com arealização de seus interesses perante os súditos. Pouco a pouco, as

7 Para J.A. BARREIROS (Processo Penal, Almedina, 1981, p. 311) a história do Ministério Público«ainda está totalmente por fazer». Para G. MARQUES DA SILVA, (Curso de Processo Penal I,Verbo, 2000, p. 247) a origem é ainda hoje controversa. Também o Parecer n.º 8/82 da ComissãoConstitucional: «não é pacífica a origem do Ministério Público» (in Pareceres, 19º v., IN, Lisboa,1984, p. 10). Sem opinar sobre as diversas teorias, indicamos algumas delas: para BERTOVALORI (“Le funzioni del pubblico ministero nell’ antico Egitto”, Archivio Giuridico, v. XXVI, XI,Modena, 1933, p. 25-37) a função do Uahemu, no antigo Egito, como responsável pelarepresentação do rei e pelo cumprimento da lei, tem alguma aproximação ao Ministério Público;para FAUSTIN-HÉLIE a origem está no direito romano (apud, Martens, João B. da Silva F. deCarvalho, in “O Ministério Público e a Procuradoria-Geral da Coroa e Fazenda”, BMJ n.º 233,1974, p. 12); MARTENS adverte que na organização romana as funções estavam apenasdispersas e sem recíproca ligação; embora o fim e a necessidade social fossem satisfeitas, nãohavia o Ministério Público (idem). Sobre isto também: CUNHA RODRIGUES, Em Nome do Povo,Coimbra Edt., 1999, p. 36-39.

8 Na época Medieval, a organização social do regime senhorial não permitiu o aparecimento deinstituições encarregas da promoção da Justiça, na medida em que – como afirma MARCELLOCAETANO (in História do Direito Português, Verbo, 2000, p. 158 e 161) - o «grande proprietáriotinha sob o seu patrocínio toda uma população de escravos, colonos, clientes livres (...) sobreos quais exercia o poder de polícia e de jurisdição, quer de direito (no caso dos escravos) querde facto (nos outros casos)». Para MARTENS (ob. cit.[n. 7], p. 14): «será inútil procurar vestigiosdo ministerio publico no parenthesis, que no desenvolvimento progressivo da sociedade abriu aépoca feudal».

-, que entrou em vigor em 28 de fevereiro do corrente ano,constituiu-se em uma das normas penais mais criticadas e

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relações de direito aumentaram e a organização judiciária se desenvolveu,derivada do aumento da população e do estudo do direito romano, namesma medida em que as leis gerais substituíam os forais privativos decada terra. Assim, o desenvolvimento dos tribunais e das leis reclamarama organização de um órgão para regular a jurisprudência e que represen-tasse a sociedade aos que clamassem por Justiça, para que acusasseos crimes e defendesse o interesse geral. Foi, então, para atender essemovimento concentrado, primeiro em França, que surgiu a magistraturado Ministério Público9.

As necessidades políticas do poder régio, vincularam o MinistérioPúblico à Coroa. É que os juizes progrediam em autonomia e, muitasvezes, contrariavam os interesses do Rei, o que exigiu a intensificaçãodos Procuradores na actuação judiciária, como forma de controle dostribunais10. Paulatinamente, os Procuradores, como acusadores públi-cos, passaram a reprimir os crimes e a desordem social, numa distinçãoentre os interesses da coroa e os interesses públicos.

Depois da implantação do sistema processual inquisitivo, o MinistérioPúblico só veio a ser de facto melhor organizado e regulamentado, emFrança, pela legislação napoleónica de 1808, denominada de Code

9 Cfr. MARTENS (ob. cit.[n. 7], p. 18-19). A maioria da doutrina concorda com essa origemfrancesa do Ministério Público. Por todos, a clássica obra de RASSAT, Michéle-Laure, Le MinistèrePublic entre son passé et son avenir, LGDJ, Paris,1967, p. 13, que indica a ordennance dePhelippe le Bel, de 23 de Março de 1303, como a primeira presença dos procureurs du Roi,embora haja divergências neste particular indicadas pela própria Autora.

Quanto ao momento político da época, ao contrário do que possa parecer, vivia-se um momentode instabilidade, no qual o Rei precisava se fazer representado e ocupar espaços. AfirmouBécot (De l’organisation de la justice répressive aux principales époques historiques, 1860,apud, RASSAT, ob. cit., p. 13), que a instituição do Ministério Público «…não surgiu em temposde muita claridade, longe disto, seu começo foi longo, penoso e confuso».

10 RASSAT, idem, p. 19. A Autora francesa relata ainda que, mesmo sob o comando do Rei, osProcuradores conseguiam manter certa independência; por vezes, recusavam ordens que lhespareciam contrárias ao bem do reino. Percebendo isto, para melhor controlo dos juizes, o Rei fezcom que os Procuradores ficassem equidistantes dos juizes e, daí, terem assento sobre oassoalho (origem da tradicional expressão francesa, parquet, doravante também usada pornós). No mesmo sentido GUILHERME DA FONSECA: «(...) praticavam a virtude da isenção, dainteireza moral (...) e da independência face ao poder ...» (in “O Ministério Público e a Constituição”,

RMP 31, 1987, p. 70).

polêmicas dos últimos anos. A comunidade jurídica e a soci-edade em geral, cada vez mais preocupadas com a

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d´Instruccion Criminelle, da qual decorre o Procureur de la Republique11.O parquet, então, passou a ser um órgão hierárquico, tal como o EstadoImperial, caracterizado pela indivisibilidade, pela dependência e obediênciaao executivo, embora fosse um órgão diferente do juiz da instrução e dojulgamento, encarregado de investigar todos delitos e acusar os autores.

Todas essas transformações repercutiram na Europa continental12

e, em Portugal, não foi diferente, sob influência do pensamento liberal deVerney e Mello Freire. Apesar de coincidente a forma como eclodiu oparquet lusitano, sua origem não foi francesa. Foi sim, como indicaMartens13, uma criação própria «das necessidades de justiça», sendo

11 Evidente que esta transformação não foi tão simples quanto fizemos parecer. Com o fim doEstado absoluto - de Hobbes -, com o advento da Revolução Francesa e a Declaração dosDireitos do Homem, com inspiração nos movimentos jusracionalistas - representados por Grotius,Puffendorf, Thomasius e Wolff - e iluministas - com Montesquieu, Beccaria, Rousseau, Voltairee outros -, que, com excelência, criticaram o sistema inquisitivo e seus princípios, com algumainfluência das garantias penais do constitucionalismo inglês, criaram condições ideológicaspara romper com o sistema processual então vigente. Foi, assim, possível conceber a separaçãoda figura do juiz do julgamento daquele que deduzia a acção penal e a conduzia até ao final.Como afirma K.H. GÖSSEL (“Ministério Público no Estado de Direito e suas relações com aPolícia”, trad. A.K. de Villanueva e J.B.J. Maier, in DP 13-16(1997), p. 628-629) dali em diante,não ficou longe o caminho para a instauração de um órgão que cumprisse a missão de “vigia dalei” no âmbito interno da administração da justiça penal; «com o Ministério Público, foram superadasas desvantagens do processo inquisitivo».

12 De facto, a «grande agitação intelectual» do século XVIII (cfr. cita COSTA, José de Faria, “Aimportância da recorrência no pensamento jurídico”, RDE 9(1983), p. 3) e a então nova concepçãoliberal - fundada em «três grandes linhas mestras: a ideia de liberdade, a igualdade formal e ajudiciarização» (COSTA, José de Faria, “Diversão (Desjudiciarização) e Mediação: Que Rumos?”,BFDUC 1986, p. 10) - modificou a relação do Estado com o cidadão: a Justiça passou a serpautada pelo rigor da lei, o indivíduo passou a ser considerado em sua «autonomia, com suamoral e intelectual» (CANOTILHO, ob. cit. (n. 3), p. 110) e a acção penal foi reconhecida comoum forte instrumento que, por si só, causava sofrimento e estigma. A partir de então, outrosprincípios mais consistentes passaram a alicerçar o Estado e próprio o processo criminal:princípios acusatório, da legalidade e igualdade, do contraditório, do direito a um defensor eda presunção de inocência.

13 Ob. cit.(n. 7), p. 23. MARTENS indica ainda um diploma de D. Afonso III, de 14 de Janeiro de1289, no qual já surgiu a figura do Procurador do Rei. Daí o Autor vindicar para Portugal aorganização do Ministério Público, nascido das próprias tradições do país (idem, p. 25). Emtermos definitivos, após a Revolução de 1820, em nome de D. Maria II, o regente D. Pedro, comdecisiva participação do Ministro Mouzinho da Silveira, através do Decreto 24, de 16.5.1822 –decreto sobre as reformas das justiças – organizou o Ministério Público português numaestrutura acusatória do processo criminal (cfr. Figueiredo Dia, Lições, ob. cit.[n. 1), p. 88-89, eCunha Rodrigues, ob. cit.[n. 7], p. 49).

criminalidade, particularmente com a questão das drogas esuas conseqüências deletérias na vida humana, reagiram vio-

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exacto que o Ministério Público português despontou, desde logo, porsua originalidade14 e, frise-se, mais adequado ao processo penaldemocrático. Reconhecimento este que requer a análise da sua actualposição constitucional.

III- A posição constitucional do Ministério Público comofator determinante de seu papel no processo penal

«... não existe outro modelo de ministério público quesobreleve em vantagens, ou sequer iguale, o adoptadopelo processo penal português»15. Figueiredo Dias.

À evidenciar a importância da posição jurídico-constitucional doMinistério Público, Michèle Rassat conclui que «os problemas maisimportantes no que diz respeito ao Ministério Público são evidente-mente os problemas de base e de organização da instituição»16. Defato, a concepção constitucional e a posição do Ministério Público noEstado definem seu perfil de actuação no processo penal, o que leva-nos ao presente exame como outro ponto de partida indispensável aotema deste relatório.

Urge reconhecer o modelo de Ministério Público napoleónico comoem crise, porque deficiente para adaptar-se ao Estado de DireitoDemocrático à vista das interferências do Ministro da Justiça na actuaçãodos membros do parquet, o que pode ser visto, sem dificuldade, nos

14 Como diz MAIA COSTA (“Velhos e novos caminhos do Ministério Público”, in O MinistérioPúblico, a democracia e a igualdade dos cidadãos, Cosmos, Lisboa, 2000, p. 67): desde cedofoi instituída a «figura do Procurador–Geral da Coroa, nomeado pelo Governo, como elemento dotopo da hierarquia do Ministério Público», o que não ocorreu em outros países.

15 “Os Princípios Estruturantes do Processo Penal”, RPCC a. 8, fasc. 2º, 1998, p. 205.

16 Ob. cit. (n. 10), p. 247.

lentamente contra a filosofia amplamente liberal encampadapela nova lei de tóxicos, fato que levou o Presidente da Re-

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países que ainda integram a instituição no Poder Executivo17. Por isso,as diferentes legislações procuram atenuar essa perversa ingerência18,numa tentativa de autonomizar a instituição ministerial do vínculoutilitarista com o Executivo – um desses mecanismos tem sido aintegração dos membros do Ministério Público na mesma carreira dosJuízes, a fim de que aqueles actuem com o mesmo critério deimparcialidade e independência destes.

Como vimos, Portugal teve autonomia legislativa para adequar oMinistério Público às necessidades de Justiça de sua época. O ponto deruptura fundamental eclodiu com os movimentos democráticos daRevolução de 1974, sendo que a Constituição de 1976 e as legislações

17 Alemanha e França preservam o modelo napoleónico fundado na hierarquia externa, com oMinistro da Justiça no comando do Ministério Público. Quanto ao parquet alemão, R. MUHM(“Dependência do Ministério Público do Executivo na Alemanha”, trad. Maia Costa, RMP 61(1995),p. 121-137) revela as constantes ingerências do Poder Executivo. Já quanto ao parquet francês,DELMAS-MARTY (Processos penais de Europa, trad. P.M. Allard, Edijus, Zaragoza, p. 427) informaser o Ministro da Justiça, no vértice da estrutura hierárquica, quem define a política criminalministerial, sendo que esse poder não está regulamentado como deveria para assegurar aimparcialidade do parquet, maxime pela ausência da inamovibilidade dos seus membros, emboraas instruções do Ministro devam ser escritas e anexadas ao expediente – juntada esta nãoprevista em Portugal. Ainda quanto ao Ministère Public, Giuseppe di FEDERICO (“A Independênciado Ministério Público e o princípio democrático da responsabilidade em Itália”, trad. J.L. Miralles, PJ48(1997), p. 19) relata que o então Presidente Chirac criou uma Commission de reflection sur lajustice, para, dentre outros assuntos, analisar o criticado vínculo ao Executivo; mas «a Comissãoconsiderou em primeiro lugar que a política judiciária da Nação deve ser de responsabilidade doGoverno na pessoa do Ministro da Justiça e que por essa razão se pronuncia de forma negativasobre a autonomia total do procurador».

18 Dentre os inúmeros casos existentes, citamos o narrado pelo Fiscal Chefe da Catalunha, JoséMaría Mena Álvarez (“El Ministerio Público en España”, in A Democracia...[n.17], p. 335-344):mesmo integrado no Poder Judicial, o Ministerio Fiscal tem sofrido a ingerência e uma perversadependência externa do Governo, que é quem faz a proposta de nomeação do Fiscal General,nomeado pelo Rei (idem, p. 336); assim, quando os delitos aproximam-se do Governo, o MinisterioFiscal tem sido, segundo a opinião pública, «carente de objectividade e imparcialidade»; em certasocasiões, a cúpula do Ministerio Fiscal tem dado mostras de simpatia a «ditaduras odiosas, comonos casos de Videla e Pinochet» (idem, p. 338); foi, inclusive, a Unión Progresista de Fiscales,através do seu Presidente, que propôs, ante a inércia do Ministerio Fiscal, denúncia aos TribunaisPenais espanhóis contra os crimes das ditaduras de Argentina e Chile - genocídio, terrorismo etorturas - com base nos «princípios da universalidade e imprescritibilidade daqueles delitos»(ibidem); o Fiscal Jefe de la Audiencia Nacional, com apoio do Fiscal General, foi contrário àsdenúncias; só depois da polémica mundial, com a detenção do ditador, a cúpula admitiu a existênciados crimes, não sem procurar obstruir o prosseguimento do processo (ibidem).

pública a vetar todo o capítulo que tipificava as condutascriminosas. Em razão disso, o Dr. Renato Flávio Marcão,

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ordinárias posteriores, modelaram o Ministério Público coerente com osprincípios de direito internacional, estruturantes da DUDH, e consagraramsua independência orgânica da carreira da magistratura judicial19.

A atual Lei Fundamental dedica-lhe um capítulo próprio, o “CapítuloIV”, o integra no “Título V”, dos “Tribunais”, e define seus agentes como“magistrados” (art. 219º, n.º 4). Com este status20, devem representar oEstado nas tradicionais funções de dirigir a investigação criminal e deduzira acção penal, mas não como órgão acusatório formal, pois a actuaçãodos membros do parquet deve ser de colaboração com o tribunal nadescoberta da verdade e na realização do direito. Todas intervençõesprocessuais21, pois, devem ser pautadas por critérios de estrita objecti-vidade, com o “impulso dirigente” de “defender a legalidade democrática”22.

Autônomo, isto é, desvinculado dos Juizes23 e do Poder Executivo,protegido pela estabilidade e inamovibilidade (art. 219º, n.º 4, da CRP) e

19 Com CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa – Anotada”,Coimbra edit., 1978, p. 411): antes do advento da CRP de 1976, o Ministério Público não era maisque uma carreira vestibular da magistratura judicial, com os «escalões superiores preenchidospor juízes». Contudo, o texto constitucional ainda não era claro e foi só «no plano da legislaçãoordinária pós-constitucional que (...) [foi] acentuado o carácter autónomo do Ministério Público»(MENDES, Armindo R., “O Ministério Público, a Constituição de 1976 e a jurisprudênciaconstitucional”, E. Homenagem a Cunha Rodrigues, Coimbra Edit., 2001, p. 604).

20 A «designação de magistrado atribuída aos agentes do Ministério Público pela CRP não éfortuita, mas resultado de uma concepção inerente ao próprio conteúdo funcional dasincumbências do Ministério Público» (CLUNY, A., Pensar o Ministério Público hoje, Cosmos,Lisboa, 1997, p. 69).

21 A natureza dos actos processuais do Ministério Público depende de sua configuração orgânica.Por isso, não há um consenso se constituem actos de jurisdição, pois num sentido estritamentetécnico não definem o direito. Com breves opiniões, delineamos a polémica: em França, paraCristine MATRAY (“Le Chagrin des Juges”, apud G. Marques da Silva, ob. cit. [n. 7], p. 242) oparquet não integra o poder judiciário, embora esteja próximo deste poder; em Itália, G. LEONE(in Trattado di diritto processuale penale, I, Jovene, Napoli, 1961, p. 432), e em Alemanha, Eb.SCHMIDT (apud Gössel, in “Ministério Público...”, ob. cit.[n. 11], p. 634), definem a natureza dosactos do parquet como administrativa.

22 Assim é a análise de Canotilho (ob. cit.[n. 3], p. 286) quanto ao artigo 219, n. 1, da CRP.

23 Com a ressalva de FIGUEIREDO DIAS (Direito Processual Penal, Coimbra Edit., 1974, p. 368),«embora (...) material e funcionalmente conexionado [com os tribunais], e dotado de uma estruturae organização própria». Mas «não podem os tribunais afastar a possibilidade de circulares deexecução permanente estabelecerem dentro da hierarquia, a forma de cumprimento de certosdeveres da função, nem discutir a validade das ordens contidas nessas circulares» (o mesmoAutor, “O dever de obediência hierárquica e a posição do M.P.”, RLJ 1973/74, p. 170).

Promotor de Justiça na Comarca de Mirassol, apresenta estu-do sobre o procedimento e a instrução criminal na nova lei de

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dotado de um «estatuto híbrido»24, tendo como órgão superior a Procu-radoria Geral da República (artigo 220º, n.º 4, CRP), essa inédita e evoluídaconcepção defini a magistratura do Ministério Público como um «órgãoautônomo da administração da justiça»25. Sem esta verdadeira garantiaconstitucional, a autonomia, perde o Ministério Público sua própria «alma»e seu «seguro escudo», sem o qual passa «oscilar ao sabor das filosofiase opções políticas oportunísticas ou de conveniências tácticas pragmáticasdos governos que se sucedem»26. Não é demais dizer, que em toda par-te e cada vez mais, para além do que poderia se falar das «cifras negras»,os crimes das administrações públicas têm contribuído para aumentaras actividades investigatórias, o que, à toda evidência, exige um estatutoindependente, sem vínculos externos, e eficiente por parte do órgãoencarregado da acção penal, distante, pois, do modelo napoleónico27.

O fato da estrutura hierárquica interna obrigar os Procuradoresda República a sujeitarem-se às directivas, ordens e instruções previstasno EMP - numa evidência da aplicação do princípio da responsabilidade28

24 COSTA, Eduardo Maia, “Velhos...”, ob. cit. (n. 14), p. 69.

25 DIAS, Jorge de Figueiredo, “Sobre os sujeitos processuais”, in Jornadas de Direito ProcessualPenal, Almedina, Coimbra, 1995, p. 26.

26 FONSECA, Guilherme da, ob. cit. (n. 10), p. 70-72.

27 Mas reconhecemos reminiscências napoleónicas no EMP lusitano, embora não se tenha notícia deefectiva ingerência do Executivo. Para além da nomeação e exoneração do PGR ser acto exclusivodo Presidente da República, sob proposta do Governo(art. 133º, m), CRP), o Ministro da Justiça con-serva poderes no EMP incoerentes com a autonomia consagrada na CRP: a)o de requisitar, por inter-médio do PGR, informações e relatórios de serviços dos magistrados(80º); b)o de comparecer àsreuniões do CSMP(32º); c)o de aprovar os nomes dos funcionários responsáveis pela inspecção doparquet(34º). Por isso, o art. 79 do EMP preserva a convicção do Procurador, conferindo-lhe auto-nomia operativa, na medida em que as instruções do superior hierárquico devem ser por escrito.

28 Diz o art. 76º do EMP:“1-Os magistrados do Ministério Público são responsáveis e hierarquicamentesubordinados; 2- A responsabilidade consiste em responderem, nos termos da lei, pelo cumprimentodos seus deveres e pela observância das directivas, ordens e instruções que receberem”. Cumpredestacar o parquet italiano, cuja estrutura de organização não está fincada na hierarquia; cadaProcure della Reppublica tem autonomia própria. De acordo com A. GHIARA (“Riforma del ruolo edei poteri del pubblico ministero”, RIDPP XIV[1971], p.778/779), essa independência foi uma reacçãoa persecução penal fascista e derivou de uma assimilação progressiva da semelhança à carreirajudicial. O art. 107 da CRI atribui ao o Ministro da Justiça uma competência residual de organizaçãodos serviços e o direito de promover a acção disciplinar (cfr. Costituzione della Repubblica Italiana,24 Ore, Milão, 2001, p.43). Como reconhecimento das necessidades de um processo democrático,várias vozes têm-se insurgido contra a absoluta independência e irrespon-sabilidade dos magistrados;assim: FEDERICO (ob. cit.[n.17], p.13-36; e GHIARA (ob. cit., p.775-786).

tóxicos, com abordagens pontuais que merecem ser debati-das no âmbito institucional.

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e como fundamento diferenciador do «poder absoluto e incoercível»29 daindependência atribuída aos juizes -, favorecido pelo princípio daindivisibilidade, não obstante a origem utilitária do poder régio, tem hojeno Estado de Direito Democrático uma importante função, a qual,inclusive, sobrepõe-se em vantagens à total independência dos membrosdo Ministério Público30. Para além de possibilitar a democrática responsa-bilidade do agente ministerial, propicia: a)a melhor organização daadministração da justiça ao evitar a dispersão e fragmentação de procedi-mentos, com a unidade de critério de valoração a favorecer o respeito àlei31;b) a melhor aplicação da política criminal definida pelos órgãos desoberania e exigida ao combate ao crime32; c) por fim, permite, no âmbitodo processo democrático, o controlo dos actos processuais ministeriais33.

29FIGUEIREDO DIAS, “A pretensão a um juiz independente”, Sub Judice14(1999), p. 27, itálico.

30 A criação da Direzione nazionale e distrttuale antimafia – DL n.º 367, de 20.11.1991, convertidona Lei n.º 8, de 20.1.1992 –, no seio do Pubblico Ministero italiano, parece querer reconhecero acerto da nossa afirmação. Embora não chegue a configurar um sistema hierárquico, aomenos assim não é reconhecido, o certo é que o Procurador nacional anti-máfia - como afirma V.BORRACCETTI (“O Ministério Público anti-mafia”, RMP 73[1998], p. 100) - reúne poderes paracoordenar investigações, não só para “garantir funcionalidade da utilização da polícia judiciárianas suas diversas articulações e de assegurar o carácter exaustivo e a tempestividade dasinvestigações”, mas também para conhecer o trabalho dos demais Procuradores, que deveminformá-lo sobre suas investigações para eventual conexão de procedimentos. Ainda (idem, p.105), as Divisões anti-máfia italianas, evitam um «ministério público disperso pelo território, semuma coordenação estruturada, apto apenas para intervir através de cada uma das procuradorias,interessado somente na investigação de cada caso concreto. Essa estrutura – que para nósdiminui a total independência do Pubblico Ministero – atende a reclamação do conhecidoGIOVANNI FALCONE (apud Federico, ob. cit.[n. 17], p. 27), que dizia: com a ausência de umpolítica judicial vinculante «tudo fica reservado às decisões, absolutamente irresponsáveis,das distintas procuradorias e, também, dos membros das mesmas» (itálico do Autor).

31 Para FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE (Criminologia, Coimbra Edit., 1997, p. 381) «éindiscutível que, com a uniformidade de critérios de valoração e de decisão das diferentesinstâncias formais de controlo, tende a aumentar, por um lado, o respeito da legalidade e aprobabilidade de justeza do tratamento do caso, por outro lado, a própria eficiência daadministração da justiça penal».

32 Ibidem. O art. 219º, n.º 1, da CRP define que o parquet deve «participar na execução dapolítica criminal definida pelos órgãos de soberania». Pertinente as palavras de CUNHA RODRIGUES(ob. cit.[n.7], p. 161), «o Ministério Público não pode definir a política criminal (eis a advertência)mas participa na execução da política definida pelos órgãos de soberania (eis a contrapartida)».

33 Tais como o procedimento de aceleração processual decidido pelo PGR (art. 108º, n.º 2, a)) eo controlo do arquivamento do inquérito (art. 278º sempre do CPP).

As Convenções Internacionais e a sua interface

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De outro lado, a autonomia ministerial e a independência externadificultam o debate sobre a legitimidade do Ministério Público. Quanto aeste particular, não concordamos com o eminente Cunha Rodriguesquando indica a nomeação do PGR pelo Poder Executivo, «únicomagistrado designado pelo poder político»34, como meio para alegitimidade democrática. Tal legitimidade é, de todo, insatisfatória aoEstado de Direito Democrático. De igual sorte, a legitimidade atravésdo procedimento não pode constituir um instrumento único para umaJustiça democrática35. Com efeito, para lá da legitimidade material,derivada do exercício do poder num Estado de Direito36, a legitimidadeda actuação ministerial é, sim, obtida como consequência de cadaactuação concreta, conforme a intencionalidade das normas e doconteúdo dos princípios constitucionais.

Ante o exposto, reconhecemos a concepção do Ministério Públicoportuguês como a que melhor atende aos reclamos de uma JustiçaDemocrática, dada a sua objectividade37 e a exclusiva dependência àverdade e à justiça, desde o início do processo. Mas, este modelo deparquet precisa ser examinado à vista dos princípios constitucionaisdentro do processo penal.

IV. Análise da actuação do Ministério Público à luzdos Princípios Constitucionais do Processo Penal.

34 In Lugares do Direito, Coimbra Editora, 1999, p. 303.

35 Tal como teorizou N. LUHMANN em sua tese sobre a Legitimação pelo procedimento. Mesmoporque – com a análise do Prof. Doutor Faria Costa (O perigo..., ob. cit.[n. 4], p. 103-135) –«Luhmann só pesquisa sistemicamente uma parte ínfima das relações do homem com a sociedade(...). As camadas mais densas (...) não são analisadas, nem o podem ser, desde que utilizemosos instrumentos teóricos que as teses luhmannianas nos oferecem» (ibidem).

36 Para FARIA COSTA (O perigo..., ob. cit.[n. 4], p. 448): «Em um Estado de Direito material todoo exercício do poder pressupõe-se legítimo».

37 Essa objectividade é exigida no CPP em vários momentos: a) na faculdade de interpor recurso,ainda que no exclusivo interesse da defesa (arts. 53º, n.º 2, al. d) e 401); b) na obrigação deinvestigar e contra - investigar (art. 262º); c) e no óbice de se produzir prova proibida mesmoquando o arguido consinta com ela (art. 126º, n.º 2); dentre outros.

com legislação nacional sob a ótica constitucional, particular-mente em relação à indenização por dano ambiental, trata-se

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Delineada a concepção orgânica e a posição do Ministério Públicono Estado de Direito, tais condições terão agora sua “prova de fogo”, namedida que deverão, com maior ou menor eficácia, tanto no âmbitodogmático, como da praxis forense, corresponder ao papel do parquet,dentro do processo penal, à vista dos princípios constitucionais. Sendode rigor realçar, serem estes princípios processuais-constitucionais que,para além de conferir legitimidade38 e sentido às normas, revelam apolítica criminal do legislador e definem o perfil político do Estado.

4.1. O papel do Ministério Público na estruturaacusatória do processo penal diante dos princípios do acusatório e do contraditório.

«se se prescinde desse princípio o processo faz-seinquisitivo, o juiz adquire demasiado poder e intromete-seaté nos assuntos privados dos cidadãos»39. WilhelmHumboldt

Na estrutura acusatória do processo penal40 declarada pelolegislador constitucional, no artigo 32º, n.º 5, da CRP, e seguida pelo

38 Niklas LUHMANN (in Legitimação pelo Procedimento, trad. M.C. Côrte-Real, n.º 15, Universidadede Brasília, 1980, p. 28), ao abordar a teoria de legitimação, afirma que legitimidade «significa aconvicção, realmente divulgada, da legitimidade do direito, da obrigatoriedade de determinadasnormas ou decisões, ou do valor dos princípios que as justificam».

39 In Os limites da acção do Estado, s/ data, p. 120.

40 Com ANABELA RODRIGUES (“O inquérito no novo Código de Processo Penal”, in Jornadas...,Almedina, Coimbra, 1995, p. 67), o antigo CPP de 1929, «do período da ditadura (...) – caíra no errode abandonar a estrutura acusatória do processo penal, a favor de uma estrutura inquisitória emque competia ao mesmo juiz, para além de julgar, realizar a investigação fundamentadora daacusação (...), se bem que mantendo ainda formalmente a concepção acusatória, uma vez queera ao Ministério Público que cabia deduzir a acusação». Portanto, mantinha-se o sistemaacusatório, sem a aplicação do princípio acusatório. E foi o Decreto Lei n.º 35007 que restaurouo princípio da acusação em Portugal. CAVALEIRO DE FERREIRA (Curso de Processo Penal, I,1986, p. 22-23), indica «a necessidade social de luta contra a criminalidade mais grave [que] fezsurgir junto ao processo acusatório – processo de querela – o processo inquisitório». Essamesma reacção ainda pode ser verificada hoje nas inúmeras leis antiterroristas de diversospaíses, muito mais inquisitivas (um resumo disto: DIAS, J. Figueiredo, Lições, ob. cit. [n. 1], p. 52).

de temática que merece discussão mais aprofundada. A Dra.Juang Yuh Yu, Promotoria de Justiça em São Paulo, examina

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CPP, aplicou-se o princípio acusatório, que traduz a distinção formal ematerial do órgão que acusa/investiga do juiz encarregado da instrução- nullum iudicium sine accusatione -, e na atribuição a outro magistradojudicial o encargo do julgamento. Esta divisão de papéis, fruto do direitoprocessual francês, não impede tão-só a parcialidade deste último juiz,mas, sobretudo, «também suprimi a necessária posição de objecto doacusado»41, a viabilizar,destarte, a «participação constitutiva dos sujeitosprocessuais na declaração do direito do caso», sendo, pois, a “estruturaacusatória” «uma declaração de indiscutível conteúdo prático-normativoque vale por todo um programa processual penal e que respeita, muitoconcretamente, aos direitos, liberdades e garantias do cidadão»42. É,de facto, este programa que sustenta, como pilar fundamental, umaJustiça democrática43 e, para além de possibilitar a estrutura necessáriapara a incidência de outros princípios básicos do Estado de DireitoDemocrático, permite e exige do parquet, concretizar sua função dedefensor da legalidade democrática, como, doravante, delinearemos.

Com efeito, o Ministério Público tem o fundamental papel de fixar oobjecto do processo no instante da promoção da acusação44, comopressuposto à actividade jurisdicional, de sorte que o tribunal só podeconhecer os factos e julgá-los nos estritos limites antes gizados na peça

41 BAUMANN, J., Direito processual penal, trad. C.A. Finzi, Depalma, B. Aires, 1986, p. 49.

42 DIAS, Jorge de Figueiredo, “A nova Constituição e o processo penal”, ROA 36, 1976, p. 105.

43 É G. BETTIOL (ob.cit. [n. 1], p. 211) quem afirma que o processo do tipo acusatório identifica-se com o processo democrático.

44 Como ensina FREDERICO ISASCA (Alteração substancial dos factos, Almedina, Coimbra,1992, p. 157) durante o inquérito «a liberdade de investigação é total, podendo os factos queconstituíram a notícia do crime ser livremente alterados ou modificados conforme os rumos queleve a investigação». Também Eb. Schmidt (apud, Isasca, ob. cit., p. 157, n. 2): «é característicado processo penal (...) que neste estádio inicial, o objecto do processo não tem ainda um perfildeterminado ou completamente traçado. A fase de investigação tem exactamente essa finalidade».

45 O requerimento para abertura da instrução (arts. 287º, n.º 3, 303, n.º 3, 309º, n.º 1, 359º, n.º1e 379, b) também vincula «tematicamente o tribunal (cfr. artigos 283º, n.º 3 e 359º, n.º 1)» (idem,p. 105). Sobre esta questão: ISASCA, F., ob. cit. (n. 44), p. 157 ss.

a matéria relativa à poluição por óleo e a responsabilidadecivil pelos danos ambientes decorrentes. Na Espanha, especi-

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acusatória45-46. Cuida-se, aqui, do princípio da vinculação temática dotribunal, no qual gravitam outros princípios, como «identidade, da unidade,ou indivisibilidade e da consunção do objecto do processo penal»47.

Frise-se ainda que para não frustrar os princípios antes mencionadose em respeito ao contraditório, o Ministério Público não pode surpreendero arguido, nomeadamente através de acusações confusas, «implícitas»48

e imprecisas e, sobretudo, com a alteração substancial dos fatosdeduzidos na acusação49, caso contrário, o princípio do Estado de Direito,cuja defesa lhe cabe, estaria sendo ignorado.

Assim, ao definir o objecto do processo, o parquet deve terconsciência de que está a possibilitar as condições necessárias para odireito de defesa do arguido (art. 32º, n.º 1, da CRP), numa evidência daconexão da estrutura acusatória com o princípio do contraditório (art.32º, n.º 5, da CRP). Ademais, como afirma Hassemer, «quanto maisefectivamente participe o imputado no desenvolvimento e na finalização

46 Para E. RUIZ VADILLO, (“El principio acusatorio”, RMF 1, Madrid, 1995, p. 93-94) quando aacusação define-se, produz, «processualmente falando, uma foto fixa, inalterável.(...)Porconseguinte, não pode o julgador variar os factos, tampouco as qualificações, salvo (...) se setratar de um delito homogéneo mais benignamente tratado, desde o ponto de vista penalógico».

47 DIAS, Jorge de Figueiredo, Lições, ob. cit.[n. 1], p. 103, itálicos do Autor. Ainda, com aautoridade de quem antecipou o entendimento do legislador, o mesmo Autor afirma: como oprincípio acusatório é temperado pelo princípio da investigação judicial, para além de ser amelhor forma de resolver a «tensão dialéctica inarredável», ou os interesses conflitantes doprocesso penal, fica acentuado esse «carácter indisponível do objecto e do conteúdo processopenal [e] sua intenção dirigida à verdade material» (“Os princípios...”, ob. cit.[n. 15], p. 203;itálico original). Mas, frise-se: disto não resulta uma diminuição do protagonismo do MinistérioPúblico, vez que tal princípio investigatório tem «carácter subsidiário» (cfr. Lições, ob. cit.[n. 1],p. 51, n. 19). Este particular fica mais claro ao compararmos o papel do parquet num sistemaprocessual acusatório, sem a incidência do princípio investigatório, como é o caso do italiano,aquando verificamos – e o fazemos com DELMAS-MARTY (ob. cit.[n. 17], p. 353-350) – quenada muda. Os reflexos do princípio na actuação do procure della reppublica, são os mesmos.

48 RUBIO LLORENTE, Derechos fundamentais y principios constitucionales, Ariel,Barcelona,1995, p. 321. O Autor lembra que essa surpresa ocorria no processo penal inquisitivo,no qual o cidadão, como objecto do processo, ignorava do que era acusado (idem, p. 320).

49 Artigos 285º, n.º 3, parte final, e 359º, n.ºs 1 e 2, do CPP. Para essa nova situação – alteraçãosubstancial dos factos – e para o prosseguimento do processo, exige a lei processual oconsentimento do arguido e do assistente (artigo 359º, n.º 2, do CPP).

ficamente na região da Galícia, recentemente (13/11/02), ocor-reu avaria no casco da embarcação Prestige, que afundou dias

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do procedimento, tanto mais se poderá contar com um controlo do poderestatal no procedimento penal»50. Por isso, embora o CPP mantenha ocariz inquisitório do inquérito, na medida em que a investigação avançacontra o arguido, o parquet deve requerer ao juiz de instrução, as medidasde coacção necessárias à investigação criminal e relacionadas com osdireitos fundamentais das pessoas, na esteira da CRP - artigo 32º, n.º 4- com vistas à dedução da acusação, vez que, repita-se, as funçõesestão separadas e o juiz não pode fazê-lo de ofício nesta fase51.

Destarte, é indubitável ser o inquérito uma comunicação fe-chada52 e que deve ser preservada pelo parquet no interesse dasalvaguarda da prova53. Não obstante, implementou o legislador, compropriedade, alguma participação do arguido na investigação criminal,mas não com o cunho de direito subjectivo inarredável, como ocorre,com plenitude, na audiência de julgamento (art. 32, n.º 5, da CRP).Desta sorte, o papel do Ministério Público será o de ponderar pelaviabilidade dessa – pequena – dialéctica no inquérito, porquanto aoarguido foi facultado o direito de participar deste, através de reque-rimentos54, os quais devem ser, em cada caso, avaliados com

50 HASSEMER, Winfried, Critica ao direito penal de hoje, UEC, Bogotá, 1998, p. 86.

Ora, se investigar com objectividade é uma virtude de quem ostenta o status de órgão daadministração da justiça, nos dizeres de MONTESQUIEU (O espírito das leis, trad. C. Murachco,Martins Fontes, São Paulo, p. 165), «até a virtude precisa de limites» e, sem dúvida, uma dascaracterísticas de um órgão democrático é o exercício de sua função num quadro de controloeficaz e institucionalizado, e o contraditório tem este efeito na dialéctica processual.

51 O princípio acusatório, assim, afina-se com a concepção autónoma do Ministério Público,sendo defeso ao juiz interferir nas actividades investigatórias ministeriais. «O juiz de instrução(...) respeita a autonomia do Ministério Público, não caindo na tentação de fazer deste (...) umsimples polícia qualificado» (RODRIGUES, Anabela M., ob. cit.[n. 40], p. 68).

52 Cfr. artigo 20º, n.º 3 e art. 32, n.º 5, ambos da CRP, e art. 86º, n.º 1, do CPP. Haverá, porém,contraditório no caso do art. 271º do CPP: declarações para memória futura.

53 Mesmo porque a revelação de acto processual sob o manto do sigilo é crime (art. 371 CP).Frise-se que a natureza deste sigilo é pública: basta a existência do inquérito para aplicar-se aregra geral do segredo, tanto em sua incidência interna - «que incide sobre os sujeitos eparticipantes processuais» -, quanto externa do inquérito - «relativo a terceiros» (cfr. MESQUITA,Paulo Dá, “O segredo do inquérito penal”, DJ, v. XIV, t. 2, 2000, p. 58).

depois com mais de 77 mil toneladas de óleo combustível eprovocou o vazamento de toneladas nos mares da região,

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objectividade, de acordo com o princípio da concordância prática, própriade uma Justiça democrática. Trata-se da luta entre o direito de defesado arguido e o direito à segurança pública – com a necessidade depreservar a prova para o esclarecimento do crime e para a descobertada verdade55 – sendo certo que, o conflito não pode ser superado pelosacrifício total de um desses direitos fundamentais56 e, assim, asalvaguarda do núcleo essencial de todos é mister que cabe, nestaquestão, ao Ministério Público resolver, como dominus do inquérito edefensor da legalidade democrática. Tudo implica, pois, em viabilizaruma comunicação ponderada, em cada caso concreto, diante dadensidade da informação protegida pela opacidade, com vistas a protegera eficiência da investigação criminal, ou o êxito da boa administraçãoda justiça, e o direito individual do arguido de manter seu status deinocente e de manter reservas sobre sua vida privada57.

54 Tais como os direitos de: a) oferecer provas e requerimentos de diligências (art. 61º, n.º 1, f),do CPP); b) ser assistido por Defensor (art. 32º, n.º 3, da CRP); aliás, como diz GÖSSEL: nãobasta o direito de ser ouvido, «o direito fundamental (...) à salvaguarda da sua dignidade humanatorna necessária a participação do defensor no processo penal» (“A posição do Defensor noprocesso penal...”, trad. A.M. Rodrigues, BFDUC LIX, 1983, p. 283); c) de acesso aos autos (art.86º, n.º 5); c) de estar presente aos actos processuais de seu interesse (art. 61º, n.º 1, a)); d)de ser comunicado imediatamente da constituição de arguido, com a explicação dos direitos edeveres processuais referidos no artigo 61º (art. 59º, n.º 1, c.c. n.º 2, art. 58º); e) de sercomunicado, nos termos do art. 272º, n.º 2 e 4, sempre do CPP), com antecedência, dointerrogatório, acareação/reconhecimento de que deva participar.

55 Como ensina o Prof. Doutor FARIA COSTA (Direito Penal da Comunicação, Coimbra Edit.,1998, p. 95), trata-se da tensão entre a opacidade, como «manifestação inequívoca» do segredo,e a transparência.

Poder-se-ia questionar a legitimidade de se impor o segredo ao inquérito à vista do actual Estadodemocrático e, sobretudo, quando reconhecemos como arrogante a exaltação da actual sociedadeà transparência, quase feita «a imagem mítica da terra abençoada», ou ainda naquilo que FariaCosta chama de «obsessão de vitrificação da realidade» (idem, p. 95-96). Contudo, não se tratadaquele segredo consagrado pelo Estado autoritário do passado, porque agora, não mais comoinstrumento da repressão, o segredo é um instrumento que, ao mesmo tempo, «protege e limitadireitos fundamentais», como manifesta «garantia institucional» (MESQUITA, Paulo Dá, ob. cit. [n.53], p. 63).

56 Assim expressa-se COSTA ANDRADE (Liberdade..., ob. cit.[n. 2], p. 34) ao tratar do conflitoentre a pessoa, o Estado e terceiros.

57 MESQUITA (ob. cit. [n. 53], p. 55) lembra que a não revelação de dados pessoais também servepara a protecção das vítimas e testemunhas.

atingindo águas francesas e portuguesas. Uma das maiorescatástrofes ecológicas dos últimos anos. A responsabilidade

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Convém, contudo, uma última consideração. Para conferir aeficácia visada pelo conteúdo prático-normativo do programa processualpenal, expressado pelo princípio acusatório e, para que o contraditórioconstitua condição para um procedimento equitativo de um Estado deDireito Democrático58, de acordo com a cooperação dos participantesna «construção histórica do processo»59, deve ocorrer, o quanto forpossível – i.e., não com fórmulas matemáticas –, uma situação de igual-dade60 na utilização dos mecanismos processuais, sem o que, a desejadadialéctica permanece no espaço da law in book. Com essa integraçãodo princípio da igualdade de armas no princípio do contraditório61, o

58 Assim tem proclamado o Direito Internacional vigente: artigo 10º da DUDH e a CEDH, em seuartigo 6º, n.º 1. Este prevê, como condição incindível de um processo equitativo, o direito doarguido conhecer, “de forma minuciosa”, a acusação contra ele formulada, e poder refutá-la«numa posição não inferior da parte contrária» (cfr. Jean Raymond, “Les droits judiciaires enmatière non repressive”, apud Barreto, Ireneu C., A Convenção Europeia dos Direitos doHomem, Coimbra Edit.,1999, p. 133).

59 Cfr. LUHMANN, N. (ob. cit.[n. 38], p. 42). Em sua concepção do «procedimento como sistemasocial» e sua estrutura contraditória, os participantes do processo aumentam a complexidadedo procedimento e elevam, com isso, as dificuldades da decisão (idem, p. 44), o que impede dese «trabalhar neste campo com a teoria matemática da informação» (idem, nota 16).

60 Uma igualdade a ser entendida como “atécnica” (TONINI, Paolo, A prova no processo penalitaliano, trad. A. Martins. e D. Mróz, RT, SP, 2002, p. 23), ou como «ontologicamente incorrecta»(BARREIROS, ob. cit.[n. 7], p. 309). Porque - e quem explica é Gierhrung - «o ministério público eo tribunal intervêm no processo de reconstrução dos factos e de concretização do direito numaevidente posição de poder» vinculativo ao arguido (apud Figueiredo Dias e Costa Andrade, ob.cit.[n. 31], p. 377). Lembre-se que o parquet conta com todo aparato do Estado (órgãos policiais,etc) para produzir provas, sem ter que prestar satisfações de seu conteúdo. Assim, o arguidosurge «na interacção com as instâncias formais de controlo, dotado de uma reduzida competênciade acção» (ibidem, itálico original). Daí a indubitável assimetria e a disparidade de armas, que éatenuada, com propriedade, pela lei processual ao conferir ao arguido uma «arma um pouco maislonga» para seu «braço um pouco mais curto» (expressões de Balladore Pallieri, apud CunhaRodrigues, Lugares..., ob. cit., [n. 34], p. 343).

61 No sentido dessa integração: BARRETO, Ireneu C., ob. cit.(n. 58), p. 135. Por sua vez, o TribunalConstitucional (Acórdãos, 45º vol., Acórdão 533/99, de 12 de Outubro de 1999, p. 119-120) jáafirmou pela vigência do princípio da igualdade de armas no processo penal português e enfatizou:«contraditório sem igualdade de armas não assegura todas garantias de defesa». De facto, umavisão global da estrutura lógica e material do CPP permite aferir a intenção do legislador em atenuaruma situação desigual dos sujeitos processuais, de acordo com o estágio em que o processo seencontra. Sendo paradigma desta situação o direito do arguido manifestar-se em último lugar apósa audiência de julgamento (artigo 32º, n.º 1, da CRP e artigo 301º, n.º 2 e artigo 361º, n.º 1, CPP).Mais desenvolvidamente: CUNHA RODRIGUES, Lugares..., ob. cit. (n. 34), p. 344; sobre a paridadede armas diante dos novos meios tecnológicos disponíveis: CHIAVARIO, Mario, “O Impacto dasNovas Tecnologias”, trad. Claudia Cruz Santos, in RPCC fasc. 3º, 1997, p. 387/401.

civil decorrente de fatos semelhantes é estudada no estudoora mencionado.

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desrespeito de um dos sujeitos processuais a um meio jurídico atenuantede uma situação processual desigual, implica em afectar aquilo queCarnelutti chamou de «ambiente propício a uma verdadeira civilidadepenal»62, numa ignorância ao princípio do contraditório e ao próprioprocesso equitativo, tudo a comprometer a legitimidade da verdade aser alcançada na sentença final63.

4.2. Princípio da legalidade: um compromisso para ocumprimento dos princípios da oficialidade e igualdade,como fundamentos da Justiça democrática e social.

«Em Roma, era permitido que um cidadão acusasseoutro.(...) Qualquer um que possuísse muitos vícios emuitos talentos, uma alma bem baixa e um espíritoambicioso procurava um criminoso cuja condenaçãopudesse agradar ao príncipe; era o caminho para chegaràs honrarias e à fortuna, coisa que não temos entre nós.Possuímos hoje uma lei admirável (...)»64. Montesquieu.

Como é sabido, a constituição do direito penal como protectordos bens fundamentais à subsistência da comunidade e o processopenal como um tema de ordem pública, fez com que o Estado elegesseo Ministério Público, como titular do princípio da oficialidade, para queexercesse sua representação na investigação criminal e no exercícioda acção penal - artigo 219º, n.º 1, da CRP65.

62 CARNELUTTI, Francesco, “Mettere il pubblico ministero al suo posto”, RDP VIII (1953), p. 264,ao referir-se a supremacia do pubblico ministero em Itália.

63 Verdade - com FIGUEIREDO DIAS, ob. cit.[n. 1], p. 131 - extraída através da actividade da acu-sação e da defesa e também não “absoluta” ou “ontológica”, «há de ser antes de tudo uma verdadejudicial, prática e, sobretudo, não uma verdade obtida a todo preço mas processualmente válida».

64 Ob. cit. (n. 50), Livro VI, Capítulo VIII, p. 92.

65 Não estão abrangidos os crimes particulares; nestes, findo o inquérito, independentemente dasua convicção (art. 285º do CPP), deve o parquet notificar o assistente para, querendo, deduziracusação. Trata-se aqui da «ideia de mediação mitigada» (COSTA, José de Faria, “Diversão...”,ob.cit.[n. 12], p. 23).

“O Risco de Tomar uma Sopa” é o tema cunhado

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Examinaremos o papel do Ministério Público à vista do princípioda legalidade, como compromisso para o cumprimento dos princípiosda oficialidade e igualdade, de acordo com suas atribuições de dirigir ainvestigação criminal, como instrumento de preservação do Estado deDireito Democrático, e de deduzir a acusação, com a necessidade dese buscar a desjuridicização do procedimento criminal.

4.2.1.A direção da investigação criminal peloMinistério Público, como defesa da legalidadedemocrática e fator decisivo para o cumprimentodos princípios da legalidade e igualdade.

A lei processual penal ao atribuir a uma magistratura, a doMinistério Público, a função de dirigir a investigação criminal e presidiro inquérito (artigo 263º do CPP), indicou que a intencionalidade nessemister, não é a de reduzir o parquet a mero órgão formal acusador,mercê de sua actuação objectiva e de tratar-se de um colaborador dotribunal na realização do direito.

Coerente, pois, com o actual Estado de Direito Democrático e como encargo de defender a legalidade democrática e propiciar a igualdadematerial entre os cidadãos, é fundamental que o parquet investigue econtra investigue66 com vistas a uma verdade processualmente válida,mesmo que o resultado não favoreça a acusação, e implique no exercíciode um papel ambíguo67: reprimir a criminalidade, zelar pelo princípio da

66 “Assistido pelos órgãos de polícia criminal” (art. 263º, n.º 1). Para este efeito, “os órgãos de polí-cia criminal actuam sob a directa orientação do Ministério Público e na sua dependência funcional”(n.º 2, art. 263º do CPP). Trata-se do perfeito sistema de coadjuvação entre o Ministério Público ea Polícia Criminal adaptado pelo legislador, no qual, sem haver hierarquia - como diz DAMIÃO CU-NHA (O Ministério Público e os órgãos de Polícia Criminal, Ed. Porto, 1993 p.132) - o primeiro tema supremacia perante a segunda para definir o que e o se investigar; enquanto cabe à Polícia a au-tonomia técnica para o como e, em certas ocasiões, para o quando levar a cabo as diligências. Naquestão, é fundamental a advertência de FARIA COSTA (“As Relações entre o Ministério Públicoe a Polícia”, BFDUC LXX(1994), p.244): «a polícia, não obstante a dependência funcional, mantém-se polícia e o Ministério Público, embora mantenha a direcção do inquérito, mantém-se magistratura».

67 Ambiguidade que se assemelha ao estigma de Jano, «condenado a ser e a actuar (simultâneae contraditoriamente) como juiz e como polícia» (FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE, ob. cit.[n. 31], p. 482). No mesmo sentido: FARIA COSTA, “As relações...”, ob. cit. (n. 66), p. 222-223.

pelo Dr. Damásio Evangelista de Jesus, Procurador de Justiçaaposentado, para examinar, sob orientação da imputação

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legalidade nos inúmeros actos investigatórios68 e proteger os direitosfundamentais do cidadão, nomeadamente daquele visado directamentena investigação criminal.

Ao mesmo tempo em que a boa investigação criminal reflecte nomaior ou menor êxito da acção penal, ela é a primeira actividade quepode comprometer – e tem comprometido – a dignidade da pessoahumana, os direitos individuais do cidadão e contrariar o Estado de Direito.Por isso, para assegurar o fim precípuo do direito e a Justiça desde oinício do processo, é fundamental que todas as dinâmicas actividades doinquérito estejam sob a efectiva responsabilidade política da magistraturaministerial69. Embora a polícia também esteja vinculada à defesa e garantiados cidadãos (art. 272º, n.º 1, da CRP), ela «é, em uma perspectiva jurídico-constitucional e administrativa, uma entidade ligada fundamentalmente àadministração – e, por consequência, ligada ao poder executivo»70.

Nos países onde as estatísticas forenses mereceram maioranálise, verifica-se que, em razão do avanço da «heterogeneidade da

68 Tais como as medidas cautelares e de polícia (art. 248º ss do CPP), nas quais, coberta «peloprincípio da eficácia» (FARIA COSTA, “As relações...”, ob. cit.[n. 66], p. 230), a polícia toma ainiciativa para assegurar a obtenção das provas mais urgentes, valendo-se de seu conhecimentotécnico, sem, contudo, receber qualquer encargo do Ministério Público; mas este deve, nummomento posterior, avaliar a validade da prova produzida e eventual ofensa a direito fundamentaldo cidadão, como determinam implicitamente os arts. 248º, n.º 2, 249º, n.º 3 e 253º do CPP.

69 Mesmo a Inglaterra, onde a polícia dominava não só a investigação, mas também a dedução daacção penal, criou a Crow Prosecutor Service, em 1985, devido a diversos escândalos judiciáriospor ela protagonizados, como manipulação e adulteração de provas em determinados processos.A função desse verdadeiro embrião do parquet é a de apreciar, seleccionar e mandar completaras provas recolhidas pela polícia e exercer a acção penal. Sobre isto: CLUNY, A., ob. cit.[n. 20],p. 48; DELMAS-MARTY, ob. cit.[n. 17], p. 416-423, e também “A Caminho de um modelo Europeude processo penal”, in RPCC a. 9, f. 2, 1999, p. 232; e DÍEZ-PICAZO, L.M., El Poder de Acusar,Ariel, Barcelona, 2000, p. 52-59).

70 COSTA, J. de Faria, ob. cit.(n. 66), p. 223-224.

No sistema italiano a polícia não está só sob a dependência funcional, mas também orgânica dopubblico ministero; o art. 109 da Constituição italiana diz que «L´autorità giudiziaria disponedirettamente della polizia giudiziaria» (Costituzione Della Repubblica Italiana, ob. cit.[n. 28], p.43), sendo que a lei processual penal obsta que o Executivo interfira nas funções policiais semautorização ministerial (cfr. DELMAS-MARTY, ob. cit.[n. 17], p. 352).

objetiva, os reflexos jurídico-penais de um acidente de trân-sito com vítima de lesões corporais que, internada num hos-

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fenomenologia criminal»71, o parquet não tem correspondido ao dever decoordenar a investigação criminal. Em Alemanha por exemplo, tem sidoafirmado – como o faz Gössel – que a polícia é, verdadeiramente, «adona do procedimento de investigação, porque ela investiga por si mesmae informa ao Ministério Público ao concluir suas investigações»72. Porconseguinte, a contrariar a intenção político-criminal do legislador73, comalto custo para o Estado de Direito Democrático, surge no processo penaluma perigosa e prejudicial fase pré - processual74.

Esse contexto frustrante ao papel ministerial deve ser minimizadono âmbito interno da Procuradoria Geral da República, através dasmedidas de controlo próprias do sistema hierárquico: a especializaçãodos membros do parquet de acordo com os tipos de crimes75, a

71 ANDRADE, Manuel da Costa,“Consenso e oportunidade”, in Jornadas..., Almedina, 1991, p.334.Para Costa Andrade e Figueiredo Dias (ob. cit.[n. 31], p. 374-375) «as estruturas tradicionais deaplicação do direito não resistiram à avalanche da massificação da criminalidade; fenómeno (...)comum a todas as sociedades contemporâneas». Este aumento da criminalidade a que o parqueté chamado a responder não corresponde aos recursos disponíveis; situação esta da Alemanhae E.U.A., que têm que «privilegiar determinados sectores da criminalidade em detrimento de outros»(idem, p. 481, n. 23).

72 GÖSSEL (ob. cit. [n. 11], p.650) fundamentou sua conclusão num estudo levado a efeito no Ins-tituto Max-Planck para Direito Penal Estrangeiro, em 78, em oito Ministérios Públicos. À vista disto,para Blankenburg o Procurador é só um funcionário que trabalha apenas nas actas (apud Gössel,idem, p. 649). Igualmente DAMIÃO DA CUNHA (ob. cit.[n.66], p.69) sobre o parquet alemão.

73 Traduzida nas palavras de ANABELA RODRIGUES (ob. cit.[n.40], p. 69): «qualquer inquéritocomeça e acaba com e no Ministério Público, podendo este “conferir a órgãos de polícia criminalo encargo de procederem a quaisquer diligências e investigações relativas ao inquérito”».

74 Oportuno recordar, com MAQUIÁVEL (O Príncipe, trad. B.Bandecchi, Parma, SP, 1984, p. 37), oque diziam os médicos da tísica: «no princípio é fácil de curar e difícil de diagnosticar, e que, como correr do tempo, não tendo sido descoberta nem medicada, torna-se fácil de conhecer e difícilde curar. Tal se dá com as coisas do Estado...», e, completamos, com a tardia intervenção doparquet no inquérito.

75 Esta tem sido uma tendência em todos países: em Portugal, em 1999, foi criado o DepartamentoCentral de Investigação e Acção Penal (DCIAP) destinado a coordenar, dirigir a investigação e aprevenção da criminalidade violenta, altamente organizada ou de especial complexidade (Portaria386-B/99, de 25/05, disponível no site www.pgr.pt, visitado no dia 13/09/01). Em Itália, com maisantecedência, em 20/11/91, o Decreto-lei 367 criou no seio do Ministério Público a Direzionenazionale e distrettuale antimafia (por todos BORRACCETTI, V., ob. cit.[n.30], p.99). Em Espanha:são também exemplos a Fiscalia Especial para la Prevención del Tráfico Ilegal de Drogas (Lei 5/1988, de 24/03), a Fiscalia Especial para la Represión de los Delitos Económicos relacionadoscom la Corrupción (Lei 10/1995, de 24/04) e a Fiscalia de la Audiencia Nacional, com competênciapara os crimes cometidos por organizações criminosas (cfr. CHOCLÁN MONTALVO, J.A., LaOrganizacion Criminal, Dykinson, Madrid, 2000, p.78-80).

pital, já em fase de restabelecimento clínico, vem a falecer pormotivo diverso.

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concretização dos anseios à desjudiciarização76 e o emprego demecanismos usualmente adoptados no âmbito empresarial77, sãomedidas que podem e devem optimizar o enfrentamento do crônicoproblema. Seja qual for o remédio, o facto inarredável, é que deve serreforçada a saída do Procurador de seu casulo burocrático para que, efe-tivamente, fiscalize78 e oriente a investigação criminal, ao menos na médiae grave criminalidade. Atuação esta que, eliminaria aquilo que FigueiredoDias e Costa Andrade chamam de «deficiências de informação e decomunicação entre as diferentes instâncias e os diversos subsistemas»79;e, ao mesmo tempo, favoreceria «as estratégias de aliança»80 para umamelhor investigação criminal e ao desempenho do papel ministerial deproteger a segurança pública e os direitos fundamentais do cidadão.

Com a polícia tendo o real domínio do inquérito e da investigaçãocriminal, sem qualquer coadjuvação, é ela quem acaba por definir quemserá, em definitivo, alvo da dedução da acusação, a comprometer oprincípio da igualdade - preconizado no artigo 13 da CRP - e a própriaJustiça democrática. Como bem analisa Claudia Cruz Santos, “numa

76 Questão que abordaremos no capítulo seguinte.

77 Sem aderirmos ao pensamento global de G. FENECH, em seu Tolerância Zero (trad. J.P. Rosae M.M. Lemos, Inquérito, Lisboa, 2001,p. 10-15 e 141), concordamos com sua crítica no sentidode haver no âmbito jurisdicional uma verdadeira «cultura da desculpa», sem uma eficazcontrapartida, tudo acentuado pelo facto dos magistrados do ministério público e judiciais nãoterem que prestar contas sobre a explosão da delinquência, como ocorre no meio empresarial;mas, «paradoxalmente, o aumento da delinquência [tem] servido de pretexto aos chefes dejurisdição (...) reclamarem cada vez mais meios...».

78 Atribuição definida no art. 3º, n.º 1, n), do EMP, coerente com a direcção do inquérito por partedo parquet (art. 263º do CPP). No mesmo sentido é a declaração do item VII da Déclaration dePrincipes sur le Ministère Public – Magistrats Européens pour lá Démocratie et les Libertés(MEDEL), adoptée à Naples le 2 Mars 1996 (documento anexo à obra de CLUNY, A., ob. cit. [n.20], p. 162).

79 Criminologia, ob. cit. (n. 31), p. 383; itálico dos Autores.

80 Idem. Para Figueiredo Dias e Costa Andrade tudo se resume em minimizar a resistência dapolícia ao trabalho de direcção da investigação, que propicia «antagonismos funcionais» (Kerner)ou a «luta de racionalidades dos diferentes actores» (Delmas-Marty) – idem, p. 390. Essatensão causa uma visão diferente do crime pelos actores e na resposta a ser dada a ele: apolícia afasta-se do padrão de resposta conferida pelo MP ou pelo Tribunal e surge uma certacompetição, ao invés de uma coordenação e cooperação (idem, p. 382-383).

Em interessante trabalho doutrinário, o Dr. Marcelo

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conjuntura de insuficiência dos recursos face ao número de casos ainvestigar, há que fazer escolhas; as representações dominantes sobreos crimes mais perniciosos para a comunidade e sobre os agentesmais perigosos levarão, na maioria dos casos, a um centrar dasatenções nos crimes comuns que têm maior visibilidade”81. São estesos delitos perseguidos pelo Estado, de sorte que ficam imunes, numasituação de absoluta desigualdade, os delitos que não contam com umlocus delicti82, que não são visíveis e, tampouco, registados pela Polícia.Referimo-nos, pois, à complexa constelação dos crimes cometidospor organizações criminosas, as quais, mesmo quando identificadas etem um integrante seu condenado, numa analogia à mitologia grega,funcionam como a serpente Hidra de várias cabeças; corta-se-lhe umacabeça e logo nascem outras.

Disto tudo resulta que a actual conjuntura sócio-política, não sesatisfaz com o modelo de investigação criminal tradicional, baseadona mera descoberta do autor do delito, com uma visão sectorial. Exige-se mais: a elucidação de todo o conjunto das actividades ilícitas – dadoseu carácter multidisciplinar83 – que envolvem uma determinadaorganização criminosa; só uma coordenação global, encabeçada poruma instituição com a configuração orgânica do Ministério Público, quetem inclusive poderes legais para reunir outras entidades no seio dainvestigação84, pode tentar reverter o atual abalo ao Estado de Direito,bem expressivo no brocardo: “lex est araneae tela, quia, si in eam incideritquid debile, retinetur; grave autem pertransit tela rescissa”.

Não temos dúvidas, daí, em concluir que todas essas consideraçõespermitem traduzir um papel que tem a difícil, e por isso enobrecedora,

81 In O Crime de Colarinho Branco, BFDUC 56, 2001, p. 224.

82 Citação de FARIA COSTA quanto a criminalidade económica: «hoje está, cada vez mais, em lugarnenhum» (“O fenómeno da globalização e o direito penal económico”, BFDUC 61(2001), p. 536).

83 HERRERO HERRERO, César, Criminología, Dykinson, Madrid, 1997, p. 481.

84 Sugerimos a investigação denominada pelos norte-americanos como Task- Force, que tem aideologia da reunião de várias instituições, com atribuições variadas, para o esforço comum deinvestigar determinados crimes; neste sentido e mais desenvolvidamente o recente trabalho deMENDRONI, Marcelo, “Os Grupos de Força-Tarefa”, Caderno Jurídico 3(2001), ESMP, p. 117.

Batiouni Mendroni, Promotor de Justiça Criminal em SãoPaulo, examina a evolução histórico-científica do processo

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missão ambígua de equilibrar a defesa da legalidade democrática,noseu antagonismo da busca da segurança pública e da protecção dosdireitos fundamentais do cidadão, através do cumprimento do princípioda oficialidade, não como uma arma contra o cidadão, mas sim umaarma a favor do cidadão e, sobretudo, como ponto de partida para umaJustiça mais igual e democrática. E será mais social, com o desem-penho das funções examinadas a seguir.

4.2.2.O princípio da legalidade, em termos não estritos,e o dever de buscar a desjudiciarização doprocedimento criminal, como forma mais eficientede proporcionar uma Justiça social e democrática.

«... uma ordem social, que apoia a validade de quaisquerconteúdos jurídicos apenas no procedimento e só assimos institucionaliza, tem de ser altamente instável...»85.Luhmann.

De acordo com o artigo 219, n.º 1, da CRP, o princípio da oficialida-de tem que ser cumprido por seu titular de acordo com os princípios dalegalidade86 e objectividade, o que exige postura isenta, autónoma, eindiferente a qualquer tipo de influência diferente da lei, tudo a preservaros princípios da prevalência da lei e da igualdade dos cidadãos previstosno artigo 13 da CRP. Este vínculo à lei, quer expressar ao parquet oprincípio da legalidade como uma fonte de interpretação, uma regrageral e um verdadeiro «compromisso»87 institucional de curvar-se à leiem todos actos concretos exercidos.

85 LUHMANN, Niklas, ob. cit. (n. 38), p. 30-31.

86 Princípio introduzido pela Revisão da CRP de 1997, cujo significado e repercussão no processopenal tem se alterado de acordo com a evolução histórica e a forma com que o Estado tem actuadona administração da justiça, sendo que nos limitaremos a analisar sua aplicação na actualidade.

87 CUNHA RODRIGUES, Em Nome..., ob. cit.(n. 7), p. 165. Para BARREIROS (ob. cit.[n. 7], p. 188)o princípio da legalidade constitui um «mandamento de que a interpretação e aplicação dospreceitos legais se perspective a partir da Constituição e se leve a cabo de acordo com esta».

desde o período primitivo até a época da processualística,que permite compreender a origem, evolução e autonomia do

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O princípio da legalidade funciona, assim, como bússola às linhasmestras da oficialidade, verdade material e igualdade. Com essaorientação o membro do Ministério Público deve abrir o inquérito, sempreque houver notícia de um crime (art. 262º, n.º 2, do CPP), ou deduzir aacusação, sempre que presentes os indícios suficientes da verificaçãodo crime e da correspondente autoria (art. 283º, n.º 1, do CPP)88. Mas,a invadir o plano da law in action com os subsídios fornecidos pelaciência da criminologia, vemos que «o processo formal da reacção aocomportamento delinquente (...), em todas as suas fases, [é] criadorde cifras negras e, por isso, redutor dos contingentes de deviance»89.Daí ter razão Eb. Schmidt quando afirma a impossibilidade de seabsolutizar o princípio da legalidade, mesmo porque é impensável umalegalidade «isenta de todo coeficiente de discricionaridade»90.

Ainda bem que é assim. A sociedade e, muito mais, a boaadministração da Justiça não desejam que todos os delitos acontecidossejam perseguidos e sejam objecto de efetiva tutela penal91. Essereconhecimento da «força da dinâmica social», fez com que a leiprocessual penal, absorvesse uma forma desjudiciarizada de soluçãodos conflitos de menor repercussão no âmbito criminal92. Dentro dessequadro, o princípio da legalidade tem de ser entendido numa perspectivaglobal do sistema criminal - processual e penal - adoptado pelo legisladorordinário e pela actual cultura-jurídica. Tudo coerente, destarte, com a

88 O não cumprimento de tais deveres pode acarretar responsabilidade criminal (art. 369º do CP).

89 FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE, ob. cit.[n. 31], pp. 492 ss. Também: SANTOS, Claudia M.Cruz, ob. cit.(n. 81), p. 221 ss.; e COSTA ANDRADE, “Consenso...”, ob. cit.(n. 71), p. 340. Esteúltimo adverte que «mesmo as mais solenes proclamações de legalidade no plano da law in bookstêm de contar, no terreno da law in action, com programas de selecção e discricionariedade real».

90 Apud COSTA ANDRADE, “Consenso...”, ob. cit. (n. 71), p. 355.

91 Como afirma BRETTEL: «Se todos os policiais, todos os acusadores públicos, todos os juízese todas as instâncias que intervêm depois da sentença aplicassem estritamente todas asnormas, as leis criminais seriam efectivas, mas intoleráveis. A vida converter-se-ia numasubmissão estéril a tabus e a normas estiolantes do espírito» (apud, Figueiredo Dias e CostaAndrade, ob. cit.[n.31], p. 367, nota 6).

92 Cfr. FARIA COSTA, Diversão..., ob. cit. (n. 12), p. 39.

processo dentro da Ciência Jurídica.

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concepção actual da lei penal ser compreendida e aplicada em «termosmais relativos (...) apenas como ultima ratio da tutela de bens jurídicos(...) o que não poderá deixar de ter consequências a nível processual,imprimindo pelo menos um novo sentido e uma maior plasticidade àideia da legalidade da perseguição»93.

Para participar dessa política criminal – que rompeu com o«axioma jurídico da legalidade estrita»94 para favorecer o consenso, oprincípio da economia processual e visou «evitar o estrangulamento donormal (formal) sistema de aplicação da justiça penal e desimultaneamente, aliviar a sobrecarga de trabalho que sobre ele pesa»,bem como acentuou o «ideal de reabilitação e reduzir ao máximo aestigmatização individual»95 – tem o Ministério Público o dever, e não aoportunidade em sentido próprio96, de emitir nos casos concretos, juízosde avaliação da presença do interesse público na persecutio criminis,nomeadamente na chamada pequena e média delinquência. Portanto,os juízos ministeriais submetidos ao devido controle97, devem sertécnicos98, emitidos dentro do interesse público e, sobretudo, fundamen-tados à luz dos pressupostos legais de cada hipótese concreta, maximeem prol do princípio da estrita objectividade.

93 Cfr. COSTA ANDRADE, “Consenso...” (n. 71), p. 339-340.

94 FARIA COSTA, “Diversão ...”, (n. 12), p. 58.

95 Idem, p. 18-19.

96 Nesse sentido: CAEIRO, Pedro, “Legalidade e Oportunidade”, RMP 84, 2000, p. 41-42.

97 Existem na lei processual diversos mecanismos de controlo: «o controlo judicial da decisão doMinistério Público, desencadeado pelo arguido quando requer a abertura da instrução (...) oupelo requerimento do assistente relativamente a factos pelos quais o Ministério Público nãotenha deduzido a acusação (cfr. art. 286º, nº 1, e art. 286º, nº 1, a) e b)), a intervençãohierárquica quando é proferido um despacho de arquivamento e a instrução não é requerida (cf.art. 278º)» (Lições Figueiredo Dias, ob. cit.[n. 1], p. 99). Além do controlo pelo juiz da instrução(arts. 280º, n.º 2, e 307º, n.º 2, do CPP).

98 O espanhol DÍEZ-PICAZO distingue a discricionariedade técnica da discricionariedade política oude oportunidade; com esta o Ministério Público exerce ou não a acção penal segundo critériosextrajurídicos, voltados a objectivos políticos, enquanto que com aquela os critérios são, tão-só,técnicos. E observa: «La discrecionarlidad técnica es ineliminable, mientras que la discrecionalidadpolítica puede ser, si no suprimida por completo, sí fuertemente restringida» (ob. cit.[n. 69], p. 16).

O novo Código Civil – Lei nº 10.406, de 10 janeiro

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Todavia, as estatísticas forenses portuguesas têm demonstrado apouca diversão do processo, numa evidência de um exercício pífio dopapel acima delineado99. No ano de 2000, de um total de 454.149 inquéritosinstaurados apenas 1.861 - cerca 0,40% - foram suspensos provisoria-mente100. Esse quadro revela que tais normas no espaço de consensoainda não passaram «insensivelmente do registo da ordem recebida parao registo da ordem querida», de que fala Gauchet101, o que ainda exige«o desmantelamento das fronteiras e das resistências culturais»102.

Com efeito, em correspondência com as medidas processuaisque reflectem, com rara nitidez, os anseios jurídicos da comunidade, oparquet tem que instituir, uma política institucional mais democrática esocial no espaço da pequena e média criminalidade, o que implica emser mais comunicativo, preocupado com a ressocialização e menoscom a verdade, e, ainda, desinteressado pelas estatísticas forenses.Esse conjunto de ideias modela um perfil de actuação imprescindívelpara a mediação com o arguido e ofendido e para a efectiva concreti-zação da política criminal da desjudiciarização, sem o que, jamais haverá

99 Quanto ao período de 1989 a 1991 e de 1992 a 1995, segundo CRUCHO DE ALMEIDA (“Asuspensão provisória do Processo Penal”, RMP 73[1998], p. 55), a proporção entre as suspensõese as acusações formuladas pelo parquet foi sempre de uma para noventa e nove, o que, à todaevidência, é muito tímido. F. FERNANDES (O Processo Penal como Instrumento de Política Criminal,Almedina, 2001, p. 568-574), através do exame das estatísticas forenses desde a vigência dosinstitutos processuais de diversão, também demonstra sua baixa utilização pelo Ministério Público.E, por fim, MAIA COSTA (“Princípio da Oportunidade: muitos vícios, poucas virtudes”, RMP 85[2001],p. 44) afirma que «passados mais de dez anos sobre a vigência do Código de Processo Penal,esses novos mecanismos têm merecido escassíssima preferência por parte do Ministério Público».De outro lado, ROXIN (“Tem futuro o direito penal?”, trad. E. Borja, RPJ 49[1998], p. 382) informa outropanorama em Alemanha, vez que os métodos de diversão são aplicados «em quase a metade detodos os casos, deslocando, portanto, uma parte importante da punição».

100 Números obtidos no site da PGR, www.pgr.pt, no dia 13 de Fevereiro de 2002.

101 Citado por COSTA ANDRADE, “Consenso...”, ob. cit. (n. 71), p. 324.

102 Idem, p. 326. Talvez a explicação dessa relutância esteja no estudo da antropologiacontemporânea, porquanto o «...Poder, desde as suas mais remotas origens, se encontra, porparte dos seus detentores, a preocupação de recriar e perpetuar a situação de prestígio que otornou possível, ou seja, de criar uma imagem perene de autoridade “legítima” no seio dosgovernados» (SANTOS, António Pedro Ribeiro dos, A imagem do poder no constitucionalismoportuguês, ISCSP, Lisboa, 1990, p. 13).

de 2002 - cujo projeto de lei foi sancionado no início do anopelo Presidente da República, depois de vinte e cinco anos,

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qualquer aperfeiçoamento do sistema democrático. A imagem da Justiçatambém sai fortalecida pela eficiência na solução dos pequenos/médiosconflitos penais.

Mas, há ainda um último aspecto a ser considerado no âmbito doprincípio da legalidade e de sua implicação com os efeitos da «avalancheda massificação da criminalidade». A aplicação não estrita do princípioda legalidade deve admitir que a magistratura do Ministério Público, definidaque é como um órgão autónomo da administração da justiça, e enquantodominus do inquérito e encarregado da dedução da acusação, possautilizar-se de uma «relativa oportunidade de critério»103, expressada pelosmeios hierárquicos disponíveis, para eleger estratégias, prioridades ouvalores criminais preferenciais em determinada fase histórica da vidapública, ou mesmo para obstar eventual prescrição da pretensão punitivado Estado. O que não implica em afrontar a lei ou a igualdade doscidadãos, tampouco na aplicação do princípio da oportunidade104, mas,sim, propiciar a igualdade através da lei e atender, com maior celeridade,um determinado facto concreto, diferenciado dos demais, o qual, naqueleinstante histórico, clama com premência por justiça.

4.3. O conteúdo do princípio da presunção de inocênciacomo definição da forma de tratamento do arguido e critériode interpretação dos factos reunidos no conjunto probatório.

«...o que se operou por força da presunção de inocênciafoi uma transformação profunda não só da conformaçãomas da própria compreensão do processo penal»105.Faria Costa.

103 BARREIROS, “Programa para um estatuto do Ministério Público”, ROA 43(1983), p. 168.

104 Assim expressou-se CAEIRO, Pedro, ob. cit. (n. 96), 37.

105 “O fenómeno da globalização...”, ob. cit. (n. 82), p. 546.

aproximadamente, tramitando no Congresso Nacional -, vaifinalmente entrar em vigor. Ele foi objeto de inúmeras críticas

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A CRP, no artigo 32, n.º 2, da CRP, ao consagrar que “todo oarguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentençade condenação”, estabeleceu um princípio fundamental para qualquersociedade democrática e pedra de toque do Estado de Direito, a reflectiruma máxima política de grande simplicidade mas, de profundoconteúdo, aplicável em todos instantes do processo penal106: a ideia deque todo culto à liberdade é ínsito à democracia107.

Acima de tudo, cuida-se de uma garantia processual que interessaàquele que é investigado ou acusado, às condições de um processoequitativo e, em contrapartida, incide como princípio orientador da formade tratamento a ser dispensada ao arguido, nomeadamente ao MinistérioPúblico como primeiro órgão da administração da Justiça, a vivificar oconflito entre os interesses do arguido e os da repressão criminal.Assim, o parquet - e todos órgãos da administração da justiça - nãopode tratar o arguido, tanto dentro como fora do processo, como seculpado fosse, ao menos antes da sentença penal condenatóriatransitada em julgado108.

Essa exigência constitucional de absoluto respeito, cuja violaçãoimplica numa pena por antecipação, da qual falava Carnelutti109, manifesta-se de forma clara na preservação do nome e imagem do arguido diante

106 Queremos dizer – com Alexandra Vilela (Considerações acerca da Presunção de Inocênciaem Direito Processual Penal, Coimbra Edit., 2000, p. 14-16) – que a presunção de inocêncianão se esgota numa aplicação processual específica, como a matéria probatória, mas antesincide sobre toda globalidade do processo.

107 Nesse sentido SILVA, Germano Marques da , ob. cit. (n. 7), p. 82.

O princípio surgiu em França na DUDH (art. 9º). Actualmente foi consagrado no art. 6º, n.º 2, daCEDH como «também um dos elementos fundamentais do processo equitativo» (BARRETO,Ireneu C., ob. cit. [n. 58], p.161). E introduzido como garantia constitucional na CRP de 1976.

108 Assim tem ensinado FARIA COSTA (“Um Olhar...”, ob. cit. [n.1], p. 193): «a presunção deinocência encontra-se presente na lei processual penal enquanto modo de tratamento a dispensarao arguido no decurso do processo».

109 CARNELUTTI, F., Principi del processo penale, Morano, Napoli, 1960, p. 95. São suas asseguintes palavras: «a imputação, por si só, ocasiona ao imputado um descrédito e um sofrimentotanto mais grave quanto mais grave é o delito do qual afirma a existência».

pela comunidade jurídica, que já o considerava ultrapassado.Em proeminente estudo, o Dr. José Raimundo Gomes da Cruz,

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dos órgãos de comunicação social110, não raro, injustamente comprometidapela apetência de se impor, através da força dos media, um estigma dedelinquente e uma condenação que, muitas vezes, sabe-se que não seobterá na Justiça111.

Outra regra de tratamento derivada do princípio em análise consisteno nemo tenetur se ipsum accusare: ao dirigir a investigação criminal, oparquet não pode utilizar o próprio arguido como meio de prova sem seuconsentimento112. Como afirma Costa Andrade, o princípio funciona parao Ministério Público – e ao Juiz de instrução – como «autêntico Abwehrrechtcontra o Estado, vedando todas as tentativas de obtenção, por meiosenganosos ou por coacção, de declarações auto-incriminatórias»113.

Ainda no que o conteúdo do princípio da presunção de inocênciaconcerne, cabe aos membros do Ministério Público o papel de investigarfactos criminosos concretos, sendo-lhe defeso eleger, como critério

110 O artigo 84º do EMP impõe o dever de reserva nas declarações ou comentários sobreprocessos, excepto quando houver autorização superior (para defesa da honra) e tratar-se deinformações não cobertas pelo segredo de justiça, ou sigilo profissional, e que reclamem ointeresse ou o acesso público. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, em Fevereiro de1995, ao aplicar o art. 6º, n.º 2, da CEDH, entendeu não haver óbice para as autoridadesinformarem o público sobre os inquéritos penais em curso, mas ressalvou ser «necessário queelas o façam com toda a discrição e toda reserva que impõe o respeito pela dita presunção» (cfr.CHIAVARIO, M., ob. cit.[n. 61], p. 393).

111 Assim: HASSEMER (ob. cit.[n. 50], p. 76-77. Para FARIA COSTA (Direito Penal daComunicação, ob. cit.[n. 55], p. 136-137) o poder judicial tem buscado a comunicação socialcomo forma de legitimação, da mesma forma que os demais poderes o fazem para alcançar ovoto. Embora a legitimidade daquele poder não se opere pelo voto, esta «distanciação cria, nãopoucas vezes, sobretudo nos membros mais jovens das diferentes magistratura, um talvez nãocensurável sentimento de orfandade comunicacional. O que faz que, em certos casos, semostre o desejo de ser notícia. De assumir protagonismo».(...) «Ora, este tipo de comportamentoparece-nos, no mínimo inconsistente e gerador de insegurança, porque pode resvalar para umtipo de legitimidade de auto-referência...».

112 O princípio previsto no Capítulo II, Título II, arts. 140º a 145 do CPP. Como o arguido tem o deverde sujeitar-se às diligências de provas, às medidas de coacção, e garantias patrimoniais – art. 61º,3, d) do CPP –, não pode o parquet aproveitar-se do pretexto para obter prova incriminatória, salvose existir a consciência por parte do investigado. Também, há que se atentar para a proibição dese conferir ao silêncio do arguido uma manifestação de culpa (art. 61º, nº 1, c), CPP).

113 In Sobre as proibições de provas em processo penal, Coimbra Edit., 1992, p. 121.

Procurador de Justiça aposentado, examina as disposiçõesfinais e transitórias do novo Código Civil, cuja leitura se mos-

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de partida para a investigação, pessoas inseridas num dado contextosócio-político, para depois atingir os factos criminosos. Somente dessaforma, à vista do sentido material do princípio da presunção de inocência,é que o dominus da investigação criminal poderá fazer desta umverdadeiro filtro das notícias de crimes falsos ou temerários114. Destasorte, outra vez com Carnelutti, se é impossível eliminar todas aspossíveis injustiças e os efeitos negativos de uma acção penal, restareduzir ao máximo o risco relativo ao sofrimento injusto, derivado deerros e de um processo contra um inocente115, o que, mais uma vez,exige-se a presença efectiva do parquet na direcção do inquérito.

De outra parte, é inapelável reconhecer, que o facto do MinistérioPúblico estar diante de um presumível inocente, não afasta a inevitávelconvicção a respeito de sua responsabilidade criminal, mesmo porquetal presunção «se parece com uma ficção ou [uma] suposição»116.Assim, sem perder a estrita objectividade e, ainda, sem prejuízo dorespeito ao status de inocente do imputado, tem o Ministério Público opoder-dever de, conforme sua livre convicção117, produzir o máximo deprova possível para esclarecer o crime e, para tanto, de acordo com ocaso concreto e não havendo outra alternativa menos constrangedora,nada impede – e, conforme o caso, tudo recomenda – que provoque,através do juiz de instrução, a imposição ao arguido das medidasprocessuais de coacção previstas no CPP.

114 Seguimos aqui a doutrina de MENDRONI, Marcelo, Curso de Investigação Criminal, Juarez deOliveira, SP, 2002, p. 276-278.

115 CARNELUTTI, F., Principi..., ob. cit. (n. 109), p. 55.

116 MOURA, J. Souto de, “A Questão da Presunção de Inocência do Arguido”, RMP 42 (1990), p.47. De facto, tem-se reconhecido (VILELA, ob. cit.[n.106], p. 82; e MONTERO AROCA, J.,Principios del proceso penal, Tirant lo blanch, Valencia, 1997, p. 28) que, em termos técnicos,o conteúdo da presunção de inocência não é de uma presunção verdadeira, pois «antes dotrânsito em julgado, com mais ou menos hesitações sobre a inocência, é indesmentível que oarguido está mergulhado num estado de dúvida, que é real e não artificioso» (SOUTO MOURA,ob. cit., p. 34-35); ainda: «a própria lei processual assinala como pressuposto da acusação a“probabilidade razoável” de condenação. Nunca de absolvição como é evidente (...) melhor serapelidada de ficção de inocência, como a seu tempo apontou Manzini» (idem, p. 37-39).

117 É o que diz o art. 127º do CPP, aplicável também ao parquet, como “entidade competente”.

tra obrigatória para compreensão e interpretação parcial donovo estatuto do Direito Privado brasileiro.

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Convém, pois, ao parquet ponderação na utilização das medidasde coacção, em cada caso concreto, com observância das regras daproibição de excesso e da proporcionalidade, com os vectores:necessidade, adequação e a estrita proporcionalidade118. De modo maisespecífico, após a concordância prática entre os interesses em conflito,tão-só com fundamento em motivos «estritamente processuais»119 enum prazo razoável120, a prisão preventiva só deverá ser utilizada deacordo com o princípio da excepcionalidade121, isto é, ela só se tornalegítima quando for o último remédio, numa nítida manifestação da sua«natureza subsidiária»122.

Disto resulta, com efeito, que o princípio da presunção de inocêncianão pode ser absolutizado – tal como foi concebido pela RevoluçãoFrancesa com sua visão individualista –, sob pena de inviabilizar aincidência no processo penal de outros princípios do Estado de DireitoDemocrático, adequados com o interesse social (art. 2º da CRP), comoo direito à liberdade e à segurança (art. 27º da CRP).

Numa última consideração, quanto a manifestação doprincípio em matéria probatória, ocorre uma isenção à defesa ou aoarguido de qualquer ónus de demonstrar a inocência. Por conseguinte,

118 Nesse sentido dispõe o art. 193.º do CPP. Destacamos a conclusão do III Congresso doMinistério Público, sobre o tema “Os direitos fundamentais do cidadãos – da lei à realidade”: «Oprincípio da presunção de inocência é um princípio geral do processo, não se limitando àquestão da apreciação da prova, devendo estar presente no apuramento da necessidade dequalquer medida de coacção...» (RMP, ano 11º, n.º 42, p. 173; itálico nosso).

119 VILELA, A. (ob. cit, [n.106], p. 97). A Autora relata o excesso no uso da prisão preventivacom a autoridade de Figueiredo Dias: «em cada 100 pessoas presas neste país mais de 40ainda não foram julgadas, ou ainda não foram definitivamente condenadas...» (idem, p. 99).Igual consideração é feita por BACELAR, Pedro, A crise da justiça em Portugal, Gradiva,Lisboa, 1998, p.12.

120 Nesse sentido o n.º 3, do artigo 5.º, da CEDH.

121 Diz o art. 28º, n.º 2, da CRP (introduzido pela 4ª Revisão de 1997): «a prisão preventiva temnatureza excepcional, não sendo decretada nem mantida sempre que possa ser aplicadacaução ou outra medida mais favorável prevista em lei». Também o CPP, art. 193, n.º 2: «a prisãopreventiva só pode ser aplicada quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outrasmedidas de coacção».

122 FARIA COSTA, “Um Olhar...”, ob. cit. (n. 1), p. 194.

Segurança Alimentar – Imperativo da Cidadania é o

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como decorrência do status de ser uma magistratura responsávelpela defesa da legalidade democrática, do dever de colaborar com otribunal na busca da verdade material e de sua intenção de Justiça, oMinistério Público tem que se curvar ao princípio do “in dubio pro reo”como critério para interpretação dos factos reunidos no conjuntoprobatório. Assim, é rigorosa a «inadmissibilidade de uma condenaçãopor uma infracção não provada»123.

4.4. O princípio da lealdade como exigência do fair trial.O Ministério Público colocando-se na posiçãodos outros sujeitos processuais como formade cumprir o princípio da lealdade.

«Quem tem o poder pode motivar outros a adoptar assuas decisões como premissas de procedimento, portan-to, a aceitar como compulsiva uma selecção dentro doâmbito de possíveis alternativas de comportamento.»124

Luhmann.

O conteúdo do princípio da lealdade é moral e, por isso, nãocomporta uma única referência legal. Tem o escopo de exigir reciproci-dade no tratamento leal que um sujeito processual deve dispensar aooutro e incide na prática de todos actos processuais. Consubstanciadono direito anglo– americano, seu sentido talvez seja, do ponto de vistapragmático, o mais decisivo deste trabalho, porquanto define o compor-tamento ministerial do ponto de vista moral e ético, ligado à exigência dofair trial, como «o mais alto princípio de todo o direito processual penal»125.

123 CASTANHEIRA NEVES (Sumários, Coimbra, 1968, p. 54). Para o Autor: «não é o princípio umaregra de ónus-da-prova, mas justamente o correlato processual da exclusão desse ónus» (p. 53).

124 LUHMANN, Niklas, ob. cit.(n. 38), p. 26.

125 ROXIN apud Figueiredo Dias (“Do princípio da objectividade ao princípio da lealdade docomportamento do ministério público no processo penal”, RLJ 3850/3861, 1995/96, p. 344-5).Também para Figueiredo Dias trata-se de um princípio «essencial à actuação do Ministério Públicono processo penal» (idem, p. 344), cujo «fundamento (...) está na base do bom e velho princípio(...) vale infinitamente mais absolver dez culpados do que condenar um inocente» (idem, p. 350).

tema de trabalho apresentado pelo jurista português MárioFrota. Sob um enfoque principiológico, aquele renomado au-

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O enfoque aqui exigido não é no plano da lex lata, mas sim «naforma e modo com que o Estado [através do Ministério Público] secomporta efectivamente frente o cidadão suspeito de um factopunível»126. Nestes termos e para os fins deste princípio, de nada adiantauma acusação adequada ao formalismo, mas obscura ou dúbia, ouuma prova lícita, mas obtida mediante subterfúgios.

A exigência de uma actuação leal acentua-se no inquérito, na«maneira de ser da investigação e obtenção das provas em conformidadecom o respeito [aos] direitos da pessoa e a dignidade da justiça»127.Com efeito, é indubitável que, na primeira fase do processo, o arguidotem sua competência de acção bastante reduzida, vulnerável, pois, àquaisquer espécies de estratégias investigatórias128. O ênfase ganhaainda mais vulto quando a investigação centra-se na constelação dacriminalidade organizada, na qual, não raro, a superioridade de meios etécnicas da organização investigada parecem desafiar a ética e os limitesmorais impostos pelo Estado de Direito Democrático129. Apenas umaaplicação do direito com uma «ética responsável», não violadora dosvalores mínimos consolidados pela história, preconizada no pensamentode Faria Costa130, poderá, em cada caso, resolver o conflito entre aeficiência do Estado e a realização de uma Justiça material.

126 HASSEMER, ob. cit.(n. 50), p. 67, apesar de não se referir ao princípio da lealdade.

127 Cfr. PIERRE BOUZAT apud Germano Marques da Silva, ob. cit. (n. 7), p. 66.

128 Esta atitude ética encontra seu paradigma no interrogatório do arguido, talvez como primeirocontacto com o arguido e o que mais exige demonstração de firmeza de propósitos por parte doórgão policial e ministerial. Os princípios do nemo tenetur se ipsum accusare, da proibição deprovas, ou a simples obtenção por meios fraudulentos ou enganosos, têm aqui total incidência.

129 O pensamento de GÖSSEL(“A posição do Defensor”, ob. cit.[n. 54], p. 262) expressa-se aquicomo advertência: «do princípio do Estado de direito decorre o dever de averiguar a verdade e,ao mesmo tempo, a delimitação dessa averiguação».

130 In O perigo..., ob. cit.(n. 4), p. 314-318 e nota 80. Embora o referido pensamento esteja dirigidoà dogmática penal, vincula-se a esta difícil problemática. FARIA COSTA não defende uma «ética doabsoluto para o direito penal», mas, «face aos novos problemas que se nos colocam, o que nosdeve iluminar é, indiscutivelmente, uma ética responsável para com a situação» (idem, p. 314).Mesmo porque «temos é que ter a lucidez suficiente para ver que o Estado, ao introduzir finalidadescontraditórias, não pode pedir ao direito penal que seja a «consciência moral» farisiaca dessemesmo Estado» (idem, p. 313), o que tem perfeita correspondência com o papel ministerial.

tor lusitano estuda, sob os influxos do Direito Europeu, a res-ponsabilidade civil e penal da oferta e consumo de gêneros

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De todo aplicável, destarte, aquilo que GASPAR131 chamou de«contraditório intra-subjectivo», através do qual o Ministério Público«deve simular o diálogo entre ele próprio – na qualidade de detentor etitular da acção penal – e o arguido, procurando, para que tal simulaçãoganhe foros de verosimilhança com a (antecedente) realidade, colocar-se na posição deste e (também) agir de acordo com os respectivosinteresses processuais, de recorte privado, é certo, mas revestindo-sede fulcral importância para a definição do sentido das investigações».

Mais uma vez reconhecemos no espírito leal que informa aactuação objectiva do Ministério Público, a mesma intencionalidade deimparcialidade e independência do juiz132. Sem este compromisso, frutode uma consciência ética madura, o Ministério Público rompe com oesperado processo equitativo e, por conseguinte, inviabiliza aconsecução de um verdadeiro Estado de Direito Democrático.

V. Conclusão.

O percurso que fizemos evidenciou como fundamental, o papeldo Ministério Público diante dos princípios constitucionais, para aconsecução de uma Justiça democrática, eficiente e social.

Com convicção, a autonomia, a independência externa, a hierarquiainterna garantida por uma independência operativa e a concepção deórgão autónomo da administração da justiça são factores que habilitamo Ministério Público português133 a cumprir seu papel no Estado, com os

131 GASPAR, Jorge, “Titularidade da investigação criminal e posição jurídica do arguido”, RMP 87,a. 22º, 2001, p. 58.

132 É por isso que «o ministério público – como afirma SCHLÜCHTER – é atingido por qualquer errode direito ou de facto»; ou, com ROXIN, «...é sempre prejudicado quando se decide erradamente,seja a favor ou contra o arguido» (apud Figueiredo Dias, “Do princípio...”, ob. cit.[n. 125], p. 348).

133 À confirmar a excelência dessa concepção, DELMAS-MARTY (“A caminho...”, ob. cit [n. 69],p. 236), ao abordar o processo penal europeu, indicou o futuro Ministério Público Europeupróximo do modelo do parquet português, mormente por sua independência externa ao Executivo.

alimentícios.

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desafios impostos pela democracia, tudo como a melhor condição parao efectivo cumprimento dos princípios cardeais analisados neste trabalho.

Reconhecemos o ambíguo134 papel do Ministério Público comocorrespondente à necessidade de se atingir as antitéticas finalidades doprocesso penal. Com outras palavras, apenas com as faces opostas deJano é que o parquet poderá cumprir seu mister de dirigir a investigaçãocriminal e deduzir a acção penal, voltado à busca da verdade material, aorestabelecimento da paz jurídica e, ao mesmo tempo, de proteger osdireitos fundamentais das pessoas perante o Estado.

Tudo a negar valia ao «puro idealismo utópico», a que se referiramos defensores do sistema anglo-saxão, que preconizaram comoimpossível «exigir que o Ministério cumpra simultaneamente a sua funçãode acusador e de sujeito processual dotado de absoluta imparcialidade»135.Com efeito, em vários momentos do processo penal, como vimos, omembro do Ministério Público é instado a operar a concordância práticadessas finalidades e é nesta conflitualidade da praxis forense, com omesmo equilíbrio e imparcialidade da magistratura judicial, é que semanifesta o papel de defensor da legalidade democrática, como umverdadeiro «impulso dirigente» e referência máxima de sua políticainstitucional. Para tanto, tem a magistratura do parquet contado com aconfiança do legislador, pois lhe tem sido conferido, cada vez mais,poderes para emitir juízos, na órbita da discricionariedade técnica136.

O papel do Ministério Público dentro do processo penal cresce deimportância. Não pelo alargamento de funções, mas sim pela premênciade renovar em cada acto processual o compromisso em defender osprincípios constitucionais conexos com o Estado de Direito Democrático.

134 Expressão de CARNELUTTI, in “Mettere…”, ob. cit.(n. 62), p. 259.

135 FIGUEIREDO DIAS, “O dever de obediência...”, ob. cit. (n. 23), p. 183, nota 1.

136 De facto, em vários momentos no CPP o legislador evidenciou essa confiança. Na esteira daCRP e do encargo de defensor da legalidade democrática, o legislador ordinário atribuiu aoMinistério Público: a titularidade da acção penal e a coordenação da investigação criminal, que sefaz com a reduzida participação do arguido e sem publicidade; a possibilidade de reduzir omáximo da pena aplicável ao crime a cinco anos de prisão (art. 16, n. 3, do CPP); de arquivar oinquérito; a autorização para a infiltração de agentes, nos termos da Lei n. 45/96 (art. 59, n. 2);a autorização para revistas e buscas não domiciliárias (art. 174, n. 3, do CPP), dentre outras.

A variedade dos temas ora mencionados e a quali-dade dos respectivos autores permitem vislumbrar a impor-

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Basta pensar na tendência da colonização do direito penal, transformadoem mero instrumento de afirmação da economia e dos interesses dosmercado financeiro e que só se legitima na medida em que é eficaz.Como consequência do endurecimento do direito penal137, surge ainda aredução das garantias processuais, como é exemplo a supressão daaplicação do princípio da presunção de inocência, com a inversão doónus da prova, adoptada pela Lei de Branqueamento de Capitais emlegislações de uma dezena de países subscritores da Convenção deViena de 12 de Dezembro de 1988138.

Parafraseando Almeida Santos, se «o melhor atestado que podeexibir um Estado de Direito, para justificar a pertinência do qualificativo,é o grau de autonomia do seu Ministério Público»139 e colocando, pois,o «termómetro» da Justiça democrática no parquet, o atestado, no quetoca a Portugal, é altamente positivo.

Convém, contudo, superar de vez a ideia concebida por Savignye Uhden, em 1846, de um Ministério Público como vigia da lei. Estemister deve ser atribuído a todos os intervenientes de um processoque se quer equitativo e não só ao parquet.

Da mesma forma, conquanto tenha sucumbido o Estado que seprogramava para «uma escrupulosa neutralidade em face dosdinamismo económicos e sociais»140, o Estado social e democrático

137 FARIA COSTA e COSTA ANDRADE (“Sobre a Concepção e os Princípios do Direito PenalEconómico”, in Direito Penal Económico e Europeu, v. 1, Coimbra Edit., 1998, p. 347) relatam o«peso crescente do tema dos crimes contra a economia nacional na experiência jurídicacontemporânea (...) um aumento explosivo de normas incriminatórias e sancionatórias de ilícitosem matéria económica». G. MARINUCCI (ob. cit.[n. 6], p. 43) assim reage a esse fenómeno: «Emqualquer parte do hodierno mundo civilizado (o pensamento voa até aos USA) a força propulsivadas ideias de Beccaria parece hoje esmagadas por um irrefreável impulso contrário: oendurecimento repressivo».

138 Sobre isto: FARIA COSTA, “O fenómeno da globalização...”, ob. cit.(n. 82), p. 545-549.

O DL 325/95, ao dispor sobre o Branqueamento de Capitais, no artigo 17º, n.º 1, determina aoarguido e aos terceiros - e não ao parquet - «fazerem prova sumária da sua boa-fé» quanto aosbens apreendidos, quando estes poderão ser-lhes de imediato restituídos.

139 SANTOS, António Almeida, “O Ministério Público num Estado de Direito Democrático”, RMP 76,1998, p. 12.

140 BACELAR, Pedro, ob. cit.(n. 119), p. 17.

tância da presente edição da Revista Jurídica. A partir de ago-ra, deixamos aos leitores o prazer de abeberarem-se, de for-

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de direito ainda clama por um reforço na vertente social da políticainstitucional do parquet. Mais do que nunca, os sujeitos processuaissão instados ao consenso no processo, mormente no espaço dapequena e média criminalidade, o que deveria consagrar a preferênciapela diversão do procedimento criminal. Para além do que já foi dito, adesjudiciarização possibilita o maior esforço no combate à criminalidadeorganizada141 – compreendidas nesta todas suas sub-espécies – eadequação do parquet aos desafios impostos pelo direito penal moderno,através da especialização dos Procuradores de acordo com o tipo dedelito e do bom uso da hierarquia interna, como estrutura orgânica queconfere unidade e defini a melhor estratégia para alcançar uma Justiçafundada na igualdade material.

Em última análise, concluímos que cada acto processual dosmembros do Ministério Público dentro do processo penal, à vista dosprincípios constitucionais, assume um papel decisivo na própria feiçãoda política criminal do Estado, o que releva a necessidade de umaresposta constantemente vinculada ao Estado social e democrático dedireito. Como defini Roxin, «uma ordem jurídica sem justiça social nãoé um Estado de direito material, e tampouco pode utilizar-se dadenominação de Estado Social um Estado planejador e providencialistaque não acolha as garantias de liberdade do Estado de Direito»142.

Arthur Pinto de Lemos Júnior,

promotor de Justiça da Capital de São Paulo,mestrando em Ciências Jurídico-Criminais na

Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

141 Como adverte FARIA COSTA (Direito Penal da Comunicação, ob. cit.[n. 55], p. 139): «enquanto(...) os nossos órgãos de polícia criminal estiverem absorvidos, de maneira absolutamenteabsurda, com a promoção de crimes de passagem de cheque sem cobertura, é evidente quetais órgãos não podem fazer aquilo que verdadeiramente lhes compete: lutar contra a criminalidadegrave. A opinião jamais compreenderá – porque não percebe a inversão das prioridades – umtal engarrafamento do ordenamento penal».

142 In Política criminal e sistema jurídico-penal, trad. L.Greco, Renovar , RJ, 2000, p. 20.

ma segura e deleitante , dos conhecimentos, informações ereflexões exaradas naqueles estudos.

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VALORI, Berto, “Le funzioni del pubblico ministero nell’ antico Egitto”, ArchivioGiuridico, volume XXVI, XI, Modena, 1933;

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VILELA, Alexandra, in Considerações acerca da Presunção de Inocência emDireito Processual Penal, Coimbra Editora, Coimbra, 2000.

Luís Daniel Pereira Cintra

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anotações pontuaisanotações pontuaisanotações pontuaisanotações pontuaisanotações pontuaissobre a lei 10.409/2002sobre a lei 10.409/2002sobre a lei 10.409/2002sobre a lei 10.409/2002sobre a lei 10.409/2002

Renato flávio marcão,promotor de justiça

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Revista Jurídica da ESMP - n.º 4 57

ANOTAÇÕES PONTUAIS SOBRE A LEI

10.409/2002 (NOVA LEI ANTITÓXICOS)

– Procedimento e instrução criminal

Renato Flávio Marcão

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Artigo 27; 3. Artigo 28; 4. Artigo 29;5. Artigo 31; 6. Artigo 37, inc. II; 6.1. Prazo para a realizaçãodas diligências e outras particularidades; 7. Artigo 38, caput;7.1. Prazo para o oferecimento de denúncia; 7.2. Queixasubsidiária; 7.3. Procedimento; 7.4. Citação do réu preso;7.5. Resposta escrita: compreensão do tema; 7.6. Prazo parao oferecimento da resposta escrita; 7.7. Ausência de respostano prazo legal; 8. Artigo 39; 8.1. Hipóteses de rejeição dadenúncia; 9. Artigo 40; 9.1. Cautelas; 9.2. Assistente; 9.3.Despacho saneador; 9.4. Ausência do despacho; 9.5.Desclassificação da conduta por ocasião do despacho; 9.6.Preclusão da matéria decidida; 10. Artigo 41; 10.1.Interrogatório; 10.2. Dependência; 11. Considerações finais.

1. Introdução

Com a sanção parcial do Projeto que deu origem à Lei 10.409/2002, a Nova Lei Antitóxicos, é preciso deitar reflexões sobre seu texto,que entrou em vigor no dia 28 de fevereiro de 20021 alterando parte daLei 6.368/76.

Longas discussões doutrinárias e jurisprudenciais, verdadeirosembates deverão sobrevir, como já se percebe pela inquietação reinante

1 Reformulamos a posição anteriormente adotada

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na comunidade jurídica e até mesmo na sociedade em geral, cada vezmais preocupadas com as questões relacionadas com a criminalidade,notadamente nos dias atuais.

Sem pretender esgotar as inquietações relacionadas aos capítulosque envolvem o procedimento penal (Capítulo IV) e a instrução criminal(Capítulo V), passaremos a estabelecer algumas observações que nopresente momento merecem maior destaque, a nosso ver e sentir, semexcluir todas as demais que serão abordadas em outra ocasião.

2. Artigo 27

O artigo 27 da Lei 10.409/2002 estabelece que o procedimentorelativo aos processos “por crimes definidos nesta Lei” rege-se pelodisposto no Capítulo em que se encontra (Capítulo IV), aplicando-se,subsidiariamente, as disposições do Código Penal, do Código deProcesso Penal e da Lei de Execução Penal.

A regra assemelha-se àquela estabelecida no art. 20, da Lei 6.368/76, contudo, apresenta-se mais ampla no sentido de estabelecer, quandonem precisaria, a possibilidade de aplicação subsidiária do Código Penal,do Código de Processo Penal e da Lei de Execução Penal. A Lei anteriorreferia-se apenas à possibilidade de aplicação subsidiária do Códigode Processo Penal.

O grave problema que a Lei já propõe é saber se o procedimentoque ela regula será aplicado, ou não, aos crimes envolvendo produtos,substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica.

A questão tem relevância, pois, considerando os vetos presi-denciais, a Lei 10.409/2002, como está, não definiu nenhum crime.

Ora, se o procedimento por ela estabelecido aplica-se aos crimesque ela define, não havendo na Lei qualquer definição de crime, resultaclaro que o procedimento não terá qualquer aplicação. Vale dizer: comrelação aos crimes e ao procedimento, permanecendo tudo como estáaté o momento, continuam em vigor e, portanto, aplicáveis, as disposiçõesda Lei 6.368/76, até porque também foi vetado o art. 59, que a revogava.

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Mesmo diante da possibilidade de se entender absolutamenteinaplicáveis as disposições relativas ao procedimento previsto na NovaLei Antitóxicos, sobre algumas regras passaremos a estabelecer ligeirasconsiderações, conforme segue.

3. Artigo 28

Duas únicas observações.

O § 1º do art. 28, que teve o caput também vetado, estabelece quepara efeito da lavratura do auto de prisão em flagrante e estabelecimento“da autoria” e materialidade do delito, é suficiente o laudo de constataçãoda natureza e quantidade do produto, da substância ou da droga ilícita,firmado por perito oficial ou, na falta desse, por pessoa idônea, escolhida,“preferencialmente”, entre as que tenham habilitação técnica.

A primeira:

Equivocou-se o legislador. O auto de constatação serve para acomprovação provisória da materialidade do delito. Refere-se à naturezada substância. Nada indica quanto a autoria delitiva.

A segunda:

É possível que o auto de constatação seja firmado, em situaçãoextrema e plenamente justificada, por pessoa idônea, sem habilitaçãotécnica, pois a Lei menciona que na falta de perito oficial, é cabível sejafirmado por pessoa idônea, escolhida, “preferencialmente”, entre asque tenham habilitação técnica.

4. Artigo 29

Conforme o art. 29, da Lei 10.409/2002, “o inquérito policial seráconcluído no prazo máximo de 15 (quinze) dias, se o indiciado estiverpreso, e de 30 (trinta) dias, quando solto”.

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Todavia, nos precisos termos do parágrafo único docitado dispositivo “os prazos a que se refere este artigopodem ser duplicados pelo juiz, mediante pedidojustificado da autoridade policial”.

De notar-se que o parágrafo único autoriza a duplicação dos“prazos” referidos no caput do art. 29, de maneira que a duplicaçãoserá cabível, inclusive, quando se tratar de investigado preso.

Pelo que se extrai da nova regra, estando o investigado solto, nãoé mais cabível a prorrogação reiterada de prazos como ocorria nopassado e ainda verificada nos inquéritos policiais instaurados para aapuração de crimes de outra natureza.

Verificando a complexidade das investigações, deverá a autoridadepolicial que preside o inquérito encaminhar os autos ao Juízo competente,antes do vencimento do prazo e, justificadamente, solicitar a duplicaçãodeste. É recomendável o encaminhamento dos autos não só para a necessá-ria distribuição, como também, e principalmente, para que o MinistérioPúblico, titular da ação penal pública, possa tomar conhecimento da provacolhida e manifestar-se sobre o pedido, e o Juiz, avaliando a necessidadeou não, decidir sobre a duplicação dos prazos conforme a solicitação.

Não há dúvida, entretanto, que a tramitação envolvendo a remessados autos ao Juízo competente, a distribuição, o registro, a autuação, aabertura de vista ao Ministério Público, a conclusão ao Juiz para decisão,e a devolução dos autos à Delegacia demandará excessivo tempo, o quepoderá levar à prática condenável de se solicitar a duplicação de prazos“via ofício”, indistintamente, permanecendo o inquérito na Delegacia.

A primeira vista seria possível dizer que tal proceder acarretariavantagens em termos de celeridade, pois não haveria a paralisaçãodas diligências durante a tramitação do pedido de duplicação. Não nosparece correta, todavia, tal conclusão.

Com efeito. E se o Ministério Público discordar da duplicação, ou,concordando, o Juiz não a conceder? Estando o inquérito na Delegaciade Polícia estaria ocorrendo constrangimento ilegal, caso vencido oprazo de conclusão em se tratando de investigado preso. A conseqüênciainevitável seria o relaxamento da prisão, em se tratando de flagrante.

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Recomendável, pois, que em se tratando de investigado presoocorra sempre a remessa dos autos, devendo a autoridade policialconsignar expressamente a real necessidade da duplicação pretendida,que se não for concedida, não impedirá que sejam adotadas asprovidências mencionadas no art. 31.

Acrescente-se, em arremate, que a remessa dos autos ao Juízosolicitando duplicação de prazo não impede a continuidade das diligências,que seguirão em apartado e depois serão juntadas aos autos respectivos.E se não for concedida a duplicação deverão seguir na forma estabelecidano art. 31, observado o que dispõe seu parágrafo único.

Verificada a duplicação do prazo, conforme autorizada, e estandoo investigado preso, não haverá constrangimento ilegal, de maneiraque deverá permanecer recolhido até o limite máximo de 30 (trinta)dias, nesta fase.

Destaco que embora a Lei nada diga a respeito, entendo impres-cindível a oitiva do Ministério Público a respeito da duplicação, ou não,dos prazos estabelecidos para a conclusão do inquérito, conformeacima mencionei, pois é admissível que recebendo os autos para mani-festar-se sobre o pedido, como titular da ação, entenda ser possível,desde já, o oferecimento de denúncia, sem prejuízo da realização deoutras diligências, inclusive conforme estabelecido no art. 31, nãosendo o caso de duplicação do prazo, o que em muito beneficiaria oinvestigado, atendendo, inclusive, a necessária celeridade, muito maisevidente em se tratando de investigado preso.

5. Artigo 31

Findos os prazos, simples ou duplicados (investigado preso ousolto), os autos de inquérito policial serão remetidos ao juízo competente,sem prejuízo da realização de diligências complementares destinadasa esclarecer o fato (art. 31, caput, da Lei 10.409/2002) em toda a suaamplitude, sendo certo que as conclusões das diligências e os laudoseventualmente pendentes, e colacionados em apartado, deverão ser

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juntados à ação penal eventualmente instaurada até o dia anterior aodesignado para a audiência de instrução e julgamento.

Em razão da regra estabelecida no parágrafo único do art. 31,da Nova Lei Antitóxicos, quer nos parecer recomendável que aautoridade policial tenha conhecimento da data designada para aaudiência de instrução e julgamento do feito pendente de diligências,a seu juízo. Destarte, toda vez que a autoridade policial pretender agirem confor-midade com as disposições contidas no referido dispositivo,embora inexista regra expressa a tal respeito, é aconselhável queassim consigne nos autos, e o Juízo, tendo tal conhecimento, aoproferir o despacho de recebimento da denúncia e designar dia e horapara a audiência de instrução e julgamento (art. 40, da Nova LeiAntitóxicos), além de ordenar a intimação do acusado, do MinistérioPúblico e, se for o caso, do assistente, visando a busca da verdadereal e a boa ordem processual, deverá determinar que se oficie aautoridade policial de onde originou o inquérito, para conhecimento dadata designada e, em sendo o caso, para que encaminhe asconclusões das diligências e os laudos pendentes, até o dia anteriorao designado para a audiência de instrução e julgamento, tendo emvista o disposto no parágrafo único do art. 31.

O art. 23, caput, da Lei 6.368/76, era de melhor técnica aoestabelecer que por ocasião da designação da audiência de instrução ejulgamento o juiz deveria determinar a notificação do réu e das teste-munhas que nela deveriam prestar depoimento, intimando-se o defensore o Ministério Público, cientificando-se a autoridade policial e os órgãosdos quais dependia a remessa de peças ainda não constantes dos autos.

Por fim, importa destacar que a duplicação de prazos pelo Juiz écabível apenas no que tange aos prazos de conclusão do inquérito, eassim, não há que se confundir tal regra com aquela do art. 10, da Lei8.072/90 (parágrafo único do art. 35, da Lei 6.368/76).

6. Artigo 37, inc. II.

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Dentre as providências que poderão ser adotadas pelo MinistérioPúblico o art. 37 da Nova Lei Antitóxicos, que não é taxativo, estabelecea possibilidade de se requisitar diligências.

Embora o dispositivo refira-se às “diligências que entendernecessárias”, quer nos parecer que trata-se das diligências consideradas“imprescindíveis”, conforme dispõe o art. 16 do CPP.

De início é importante observar que o dispositivo legal não falaem “devolução dos autos” à Delegacia de origem para a realizaçãode diligências. Assim, à primeira vista é de se concluir que os autospermanecerão com o Ministério Público e as diligências requisitadasdeverão ser realizadas pela autoridade policial em apartado. Todavia,não há nada que proíba a devolução dos autos à Delegacia de origempara a realização das diligências requisitadas, devendo tal práticaprevalecer na lida diária.

Se por um lado a permanência do inquérito com o MinistérioPúblico pode sugerir um melhor controle deste sobre os inquéritospoliciais e sobre a atuação da Polícia Judiciária, imprimindo, inclusive,celeridade nas investigações, por outro avoluma um sério problema,que é a falta de estrutura administrativa para o referido controle porparte do Órgão Ministerial, que não possui cartório, espaço físico efuncionários suficientes para a nova prática.

Outra questão pertinente é que não se deve confundir apossibilidade de requisição de diligências “imprescindíveis” aooferecimento da denúncia com a possibilidade regulada no inc. III, últimaparte, do art. 37 da Nova Lei.

Com efeito, referido inciso (III) estabelece a possibilidade (e nemprecisaria), de o representante do Ministério Público, ao oferecerdenúncia, “requerer as demais provas que entender pertinentes”.Nesta hipótese já existem elementos suficientes ao oferecimento dainicial acusatória, que está sendo apresentada, o que inocorre nasituação regulada no inc. II, onde as diligências visam exatamente amelhor elucidação dos fatos para a tomada de posição pelo ÓrgãoMinisterial. Enquanto o inc. II busca a realização de provas para melhor

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formar a convicção quanto aos elementos determinantes do oferecimentoda denúncia (ou requerimento de arquivamento), o inc. III regula situaçãoem que, concomitantemente ao oferecimento da denúncia, outras provasserão requeridas, para apreciação no curso da instrução criminal.

Quer nos parecer, entretanto, que o representante do MinistérioPúblico deverá estar atento no sentido de verificar se a autoridade policialnão consignou nos autos a pendência de diligências complementaresdestinadas a esclarecer o fato, conforme autoriza o art. 31, caput, últimaparte, da Nova Lei.

Não é correto entender, aprioristicamente, que tais diligênciastenham outro sentido, que não se confunde com as diligências quepoderão ser requisitadas pelo Ministério Público com base no inc. II doart. 37. Muito embora o § único do art. 31 estabeleça que “as conclusõesdas diligências e os laudos serão juntados aos autos até o dia anterior aodesignado para a audiência de instrução e julgamento”, o que logicamentepressupõe ação penal já ajuizada, nada impede que as diligênciaspendentes de realização pela autoridade policial quando da remessa dosautos, e assim consignadas, sirvam exatamente para a formação daopinio delicti. Sendo o caso, deverá o MP requisitar o apressa-mento dasdiligências, pois sem elas nada poderá decidir quanto às hipóteses dosincs. I (requerer o arquivamento) e III, primeira parte (oferecer denúncia).

De tudo se extrai que, escoado o prazo para o encerramento dasinvestigações, que é de 15 (quinze) dias para as hipóteses de investigadopreso e de 30 (trinta) dias, quando solto, podendo tais prazos seremduplicados pelo juiz, mediante pedido justificado da autoridade policial(art. 29 e parágrafo único, da Lei 10.409/2002), chegando os autos comvista ao representante do Ministério Público, havendo diligênciasconsideradas imprescindíveis, a juízo deste, deverá requisitar daautoridade policial que providencie o necessário, salvo se tais diligênciastiverem sido apontadas pela mesma como complementares, conformeautoriza o art. 31, caput, da Lei 10.409/2002, quando então deverárequisitar apenas o apressamento na realização delas, por considerá-las imprescindíveis, a teor do disposto no art. 37, inc. II, da Lei 10.409/2002 c.c. o art. 16 do CPP.

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6.1. Prazo para a realização dasdiligências e outras particularidades

A Lei Antitóxicos nada regula a respeito do prazo para a realizaçãodas diligências requisitadas pelo Ministério Público com fundamentono art. 37, inc. II.

No silêncio, de se seguir a regra geral, no que for pertinente.

Assim, em se tratando de investigado preso, eventual necessidadede realização de diligências imprescindíveis poderá acarretar a suaimediata soltura (v. art. 10, § 3º, do CPP). Em se tratando de investigadosolto, requisitadas as diligências, deverá a autoridade policial providenciaro necessário dentro do prazo que for fixado (v. art. 10, § 3º, do CPP).

Na hipótese de investigado preso, quer nos parecer que se asdiligências forem requisitadas por ofício, permanecendo os autos deinquérito com o Ministério Público, e se forem realizadas dentro dorestante do prazo de 10 (dez) dias concedido pelo caput do art. 37,poderá o Ministério Público, ainda dentro de seu prazo total, e após arealização das diligências requisitadas e realizadas em apartado,oferecer denúncia, não decorrendo de tal prática constrangimento ilegal.

Exemplificando: se o Ministério Público recebe os autos de inquéritono dia de hoje, terá 10 (dez) dias, observadas as regras de contagem deprazo, para a adoção de uma das providências reguladas nos incisos I,II, III e IV, do art. 37, além de outras, como, por exemplo, requerer a extinçãoda punibilidade, já que o rol não é taxativo. Se requisitar diligências porofício no mesmo dia (inc. II) e estas forem concluídas e remetidas noquinto dia do prazo, considerando que os autos permanecerão com oMinistério Público (não haverá devolução), entendemos que não haveránenhum problema em oferecer denúncia dentro dos dias restantes,considerando o prazo total, que é de 10 (dez) dias.

Em abono da tese é interessante mencionar que o art. 29, pará-grafo único, da Nova Lei Antitóxicos, autoriza a autoridade policial asolicitar a duplicação do prazo para a conclusão do inquérito, mesmona hipótese de investigado preso, e não autoriza expressamente o titular

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da ação penal, o Ministério Público, a requisitar diligências quando oinvestigado estiver preso, sem acarretar constrangimento ilegal, aindaque tudo se verifique dentro do “seu prazo” (art. 37, caput). De ver-seque, se não há autorização expressa, também não há vedação expressa.

Assim, a interpretação no sentido de que é possível a requisição dediligências, por ofício, e o posterior oferecimento de denúncia ainda dentrodo prazo de 10 (dez) dias a que se refere o art. 37, caput, sem acarretarconstrangimento ilegal, se harmoniza com a sistemática da Lei.

Seria possível dizer que o art. 37, caput, é expresso ao dizer quedentro do prazo de 10 (dez) dias o Ministério Público deverá adotar“uma das providências” reguladas em seus incisos, o que afastaria ahipótese de requisição de diligências (inc. II) e posterior oferecimentoda denúncia (inc. III) dentro do mesmo prazo. Todavia, não há nenhumaincompatibilidade entre a literalidade do texto e a conclusão acimaapontada que, aliás, atende mais ao espírito da Nova Lei Antitóxicos.

7. Artigo 38, caput.

7.1. Prazo para o oferecimento de denúncia

A Nova Lei ampliou os prazos anteriormente previstos.

A Lei 6.368/76 estabelecia em seu art. 22, caput, o prazo de 3 (três)dias para o oferecimento de denúncia, e o parágrafo único do art. 35 a du-plicidade do prazo em se tratando de crimes previstos nos arts.12, 13 e 14.

Sem distinção quanto a estar preso ou solto o investigado, agorao prazo é de 10 (dez) dias, observadas as regras gerais de contagemde prazo, consoante estabelece o Código de Processo Penal.

7.2. Queixa subsidiária

Embora a Lei se refira apenas ao oferecimento de denúncia, épossível o início da ação penal também por intermédio de queixa-crime

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subsidiária, instaurando-se a denominada ação penal privada subsidiáriada pública, conforme estabelecem os arts. 5º, LIX, da CF, e 29, do CPP.

Em tal hipótese, o prazo para o oferecimento da queixa-crime seráde 10 (dez) dias, contados do dia em que se esgotar o prazo para o ofere-cimento da denúncia, desimportando se o investigado está preso ou solto.

7.3. Procedimento

Antes do recebimento da denúncia, deverá o juiz, em 24 (vinte equatro) horas, ordenar a “citação” do “acusado” para responder àacusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias, contado da data dajuntada do “mandato” aos autos ou da primeira publicação do edital decitação, e designará dia e hora para o interrogatório, que se realizarádentro dos 30 (trinta) dias seguintes, se o réu estiver solto, ou em 5(cinco) dias, se preso.

Importa anotar que entendemos haver impropriedade técnica noemprego da expressão “acusado”, pois o correto e apropriado para omomento seria “denunciado”. Também há crasso erro no emprego daexpressão “mandato”, já que o correto é “mandado”.

A citação ocorrerá antes do recebimento da denúncia, o que nãodeixa de ser interessante tecnicamente, pois haverá citação semprocesso instaurado.

A resposta à acusação, antes do recebimento da denúnciaassemelha-se, no particular, à regra estabelecida no artigo 514 do CPP.Na resposta, consistente de defesa prévia e exceções, o acusado poderáargüir preliminares e invocar todas as razões de defesa, oferecerdocumentos e justificações, especificar as provas que pretende produzire arrolar testemunhas.

Se a resposta não for apresentada no prazo, o Juiz nomearádefensor para oferecê-la em 10 (dez) dias, concedendo-lhe vista dosautos no ato de nomeação.

Apresentada a resposta o Juiz concederá prazo de 5 (cinco) diaspara manifestar-se o representante do Ministério Público e em igual

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prazo proferirá decisão de recebimento ou não da denúncia, podendo,antes, se entender imprescindível, determinar a realização de diligências,com prazo máximo de 10 (dez) dias.

Se a denúncia for recebida, a decisão poderá ser atacada pelavia do habeas corpus, quando do recebimento se evidenciar flagranteconstrangimento ilegal. Se for rejeitada, o recurso cabível continuasendo o recurso em sentido estrito, a teor do disposto no art. 581, inc.I, do CPP.

7.4. Citação do réu preso

Com o advento da Nova Lei Antitóxicos descabe a discussãooutrora estabelecida sobre a necessidade de citação pessoal ou damera requisição para o interrogatório (TJSP, Ap. 144.374-3, 5ª CCrim.,j. 04-11-1993, rel. Des. Poças Leitão, JTJ 155/297; STF, HC 74.333-1/RJ, 2ª T., j. 26-11-1996, rel. Min. Maurício Corrêa, DJU, 21.02.1997,RT 742/550; TJSP, Ap. 234.718-3, 3ª CCrim., j. 17-02-1998, rel. Des.Walter Guilherme, JTJ 208/272.).

Entendia-se majoritariamente ser desnecessária a citação pormandado, bastando a requisição para o interrogatório (TJSP, Ap. 165.392-3, 4ª CCrim., rel. Des. Christiano Kuntz, j. 08-02-1996, JTJ 180/284).

Com a nova disciplina, em razão da modificação do procedi-mento, deverá ocorrer a citação por mandado para que o acusadovenha a “responder” à acusação por escrito. Descabe, pois, a simplesrequisição, que acabaria por não surtir os efeitos desejados pela Lei.A requisição se justificava pelo fato da necessidade de saída do presodo estabelecimento prisional para ser apresentado em Juízo einterrogado. Agora a citação visa possibilitar ao acusado a apre-sentação de resposta escrita. O interrogatório só irá ocorrer após aresposta; após a apreciação e julgamento de eventuais preliminarese exceções (art. 38, §§ 1º e 2º); após eventual produção de provas pordeterminação judicial (art. 38, § 5º), e após eventual recebimento dadenúncia (art. 41).

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7.5. Resposta escrita: compreensão do tema

A resposta escrita, consistente de defesa prévia e exceções, a serapresentada antes do recebimento da denúncia ou queixa (subsidiária),envolve o questionamento de toda e qualquer matéria defensória.

Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, a respostaescrita deverá atacar, inclusive, o mérito da acusação, e deverá contero rol das testemunhas cuja oitiva se pretenda no curso da instrução,não havendo outro momento para a indicação.

A defesa poderá, entretanto, argüir matéria objetivando a rejeiçãoda inicial acusatória, e, se for o caso, postular a produção de provascom tal finalidade, cumprindo ao Juiz decidir, após a manifestação doMinistério Público (art. 38, § 4º), da necessidade ou não de se realizardiligências para melhor formar sua convicção e embasar sua decisãode recebimento ou rejeição da inicial (art. 38, § 5º).

Note-se que neste momento processual somente serãorealizadas diligências voltadas à formação da convicção do Juízo notocante ao recebimento ou rejeição da denúncia ou queixa (subsidiária).A prova destinada ao mérito será produzida após o recebimento, emmomento oportuno. Não faz sentido imaginar o contrário, até porque,se assim não fosse, seria possível colher-se a prova e depois sobrevirdecisão de rejeição da peça acusatória, o que seria um incomensurávelabsurdo. Ademais, está evidente que também ocorreria colidência como que está estabelecido no art. 41 da Lei.

7.6. Prazo para o oferecimento da resposta escrita

O prazo para o oferecimento da resposta escrita é de dez (10)dias, contados da data da juntada do mandado aos autos ou da primeirapublicação do edital de citação.

Citado o acusado (na linguagem da Lei), se a resposta não forapresentada no prazo de 10 (dez) dias, o juiz nomeará defensor paraoferecê-la em 10 (dez) dias, concedendo-lhe vista dos autos no ato denomeação.

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7.7. Ausência de resposta no prazo legal

Sempre se entendeu que a ausência de defesa prévia nãoacarretava nulidade processual, pois “o CPP determina que nulidadeocorre quando não se dá oportunidade ao oferecimento de defesaprévia, a qual é facultativa para o réu” (TJSP, Ap. 206.259-3/4, 3ªCCrim., j. 04-06-1996, rel. Des. Segurado Braz, RT 732/622).

Sob a força de tal entendimento, era assente na doutrina ejurisprudência que “o que acarreta a nulidade do processo não é aausência da defesa prévia ou das alegações finais e sim a nãoconcessão dos prazos para o oferecimento dessas peças, bem comoa falta de intimação dos defensores” (TRF, 4ª Região, ApCrim96.04.60544-5/PR, 1ª T., j. 01.04.1997, rel. Juiz Gilson Dipp, DJU,21.05.1997, RT 742/737).

Considerando o disposto no § 3º do art. 38, da Lei 10.409/2002,se após regular citação do acusado a resposta não for apresentada noprazo, o juiz nomeará defensor para oferecê-la em 10 (dez) dias,concedendo-lhe vista dos autos no ato de nomeação.

Pelo que se vê, pouco importou ao legislador se o acusadocontratou ou não advogado de sua confiança e se a opção defensóriafoi pelo silêncio, o que é perfeitamente possível, inclusive em razãodo princípio da ampla defesa, e à defesa técnica compete optar pelocaminho a se seguir, inclusive pelo total e absoluto silêncio, conformeautorização Constitucional.

O texto é taxativo no sentido de que não havendo resposta noprazo legal, o Juiz “nomeará” defensor para oferecê-la. Verificada ahipótese tratada na lei, a nomeação será obrigatória.

Comparecendo nos autos, entretanto, o defensor constituído,ainda que fora do prazo para a resposta escrita, prevalecerá amanifestação deste, que continuará no processo, ainda que já tenhaocorrido a nomeação de defensor pelo Juiz do feito, resultando talnomeação sem efeito.

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8. Artigo 39

8.1. Hipóteses de rejeição da denúncia

Nos precisos termos do art. 43 do CPP, a denúncia ou queixa serárejeitada quando: o fato narrado não constituir crime; já estiver extinta apunibilidade, pela prescrição ou outra causa; for manifesta a ilegitimidadeda parte ou faltar condição exigida pela lei para o exercício da ação penal.

Além das sobreditas causas ensejadoras de rejeição da inicialacusatória, a Nova Lei Antitóxicos elencou outras, a saber: quando adenúncia for manifestamente inepta, ou faltar-lhe pressupostoprocessual ou condição para o exercício da ação penal, e quando nãohouver justa causa para a acusação.

Quer nos parecer, entretanto, que a previsão era absolutamentedesnecessária, e pode levar o leitor menos atento à equivocadaconclusão no sentido de que o artigo 43 do CPP é taxativo, quando écediço que não.

Ao acrescentar outras causas de rejeição da inicial acusatória,até com uma certa precisão técnica, o Novo Diploma parece quereresgotar as hipóteses de rejeição, suprindo eventual lacuna da legislaçãoprocessual penal, entretanto, a questão permanece em aberto, poisoutras tantas causas não elencadas de rejeição existem, e nem porisso a inicial acusatória, em se tratando de crimes previstos naLegislação Antitóxicos será recebida quando evidenciada uma delas.

Sem estender demais o rol das hipóteses não previstas de rejeiçãoda denúncia ou queixa comporta citar, por exemplo, que será imperativaa rejeição quando a inicial não estiver grafada em língua nacional.

Esqueceu-se o legislador que o rol do artigo 43 do CPP é apenasexemplificativo, e não taxativo.

Nem se diga que o legislador pretendeu destacar, dar maiorimportância, às hipóteses que enumerou em acréscimo, já que, sejaqual for a causa de rejeição, o resultado será sempre o mesmo, e não háque se cogitar em hierarquia entre causas de rejeição.

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Revista Jurídica da ESMP - n.º 472

9. Artigo 40.

9.1. Cautelas

Conforme dispõe o art. 40 da Nova Lei Antitóxicos, já no despachode recebimento da denúncia o Juiz deverá designar dia e hora para terlugar a audiência de instrução e julgamento, ordenando a intimação doacusado, do Ministério Público e, se for o caso, do assistente.

O fato do legislador ter empregado a expressão “recebida adenúncia”, no passado, não quer dizer outra coisa senão indicar orecebimento como ato anterior, numa mesma ordem sucessiva deraciocínio e decisão. Num único despacho.

Não faz sentido imaginar que haverá um despacho de recebimentoda inicial acusatória e outro, em momento distinto, posterior, designandodia e hora para a audiência de instrução e julgamento, e ordenando aintimação do acusado, do Ministério Público e, se for o caso, doassistente, só porque a Lei não diz: “Recebendo a denúncia, o juizdesignará...”, ou: “Ao receber a denúncia, o juiz designará...”.

Embora a Lei não faça qualquer menção, o Juiz deverá tambémdeterminar, no mesmo despacho, a intimação do defensor e dastestemunhas arroladas na inicial acusatória e na defesa prévia (respostaescrita), bem como a cientificação da autoridade policial e dos órgãosdos quais dependa a remessa de peças ainda não constantes dos autos.

De igual maneira, na mesma ocasião deverá decidir sobre asprovas requeridas pelo Ministério Público por ocasião do oferecimentoda denúncia (art. 37, inc. III, última parte), em sendo o caso, e tambémsobre eventuais requerimentos formulados na resposta escrita, emtermos de defesa prévia.

O art. 23, caput, da Lei 6.368/76, era de melhor técnica aoestabelecer que por ocasião da designação da audiência de instruçãoe julgamento o juiz deveria determinar a notificação do réu e dastestemunhas que nela deveriam prestar depoimento, intimando-se odefensor e o Ministério Público, cientificando-se a autoridade policial e

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os órgãos dos quais dependia a remessa de peças ainda não constantesdos autos.

9.2. Assistente

Há quem entenda que a intervenção do assistente no processopenal justifica-se apenas quando for cabível a possibilidade de reparaçãode danos ex delicto. Desse entendimento comunga MARCO ANTONIO VILAS

BOAS (Processo Penal Completo, São Paulo: Saraiva, 2001. p. 302), quecitando PAULO LÚCIO NOGUEIRA menciona que “assistente é o nome quese dá ao ofendido pelo crime e que tem interesse a reparar na esferacivil. Trata-se de titular do bem jurídico lesado pelo crime e que necessitaser reparado’. Como parte contingente, sua atuação no processo não éfundamental. Age com interesse futuro, de olhos na esfera civil. Por isso,evidente é o seu empenho na condenação do réu”.

Por outro lado, conforme anotação de DAMÁSIO E. DE JESUS (Códigode Processo Penal Anotado, São Paulo : Saraiva, 17ª ed., 2000, p. 190):“Segundo o STF, o interesse do ofendido não está ligado somente àreparação do dano, ‘mas alcança a exata aplicação da justiça penal’(HC 17.453, 2.ª Turma, DJU 27.10.94 p. 29163)”.

Para aqueles que entendem que a intervenção do assistente sóse justifica quando houver possibilidade de reparação de danos aatuação deste será bastante reduzida no âmbito da Lei Antitóxicos. Poroutro vértice, acolhida a posição mais ampla, a intervenção se justificaráem toda e qualquer hipótese.

9.3. Despacho saneador

O despacho de recebimento da inicial acusatória revela-se umverdadeiro despacho saneador (apesar da expressão empregada no §4º do art. 38 – decisão). Com efeito, após a citação e resposta doacusado, depois da manifestação do Ministério Público o Juiz deverádecidir sobre a necessidade ou não de produção de provas que ohabilitem ao recebimento ou rejeição da peça inicial.

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Havendo necessidade, determinará a produção de provas (art.38, parágrafo 5º).

Não havendo necessidade ou, realizadas as provas que entenderpertinentes, o Juiz deverá proferir despacho de recebimento ou rejeição(art. 39), apreciando, inclusive, eventuais preliminares argüidas. Se optarpelo recebimento deverá decidir, de forma fundamentada, apreciando,ainda, requerimentos eventualmente formulados e que irão influir nainstrução probatória e no mérito do processo (art. 37, inc. III, e 38, § 1º).

Deverá, literalmente, sanear o processo.

Como se vê, trata-se de verdadeiro despacho saneador, muitoembora a Lei assim não o denomine, como o fazia expressamente aLei 6.368/76 em seu art. 23, caput.

9.4. Ausência do despacho

Sob a égide da Lei 6.368/76 decidiu-se reiteradamente que aausência de despacho saneador constituía mera irregularidade, que nãofulminava o processo de nulidade (TJSP, HC 170.438-3, 3ª CCrim., j.17-10-1994, rel. Des. Segurado Braz, v.u., JTJ 163/149), não sendo elede exigibilidade absoluta (TJSP, HC 174.414-3, 1ª CCrim., j. 24-10-1994,rel. Des. Fortes Barbosa, JTJ 165/356; TJSP, Ap. 186.858-3/4, 1ª Câm.,j. 18.09.1995, rel. Des. Jarbas Mazzoni, RT 726/635; TJSP, Ap. 186.858-3, 1ª CCrim., j. 18-12-1995, rel. Des. Jarbas Mazzoni, JTJ 176/313;TJSP, Ap. 11.350-3, 3.ª CCrim., j. 29-3-1982, rel. Des. Costa Mendes,v.u., RT 560/305; TJSP, HC 15.901-3, 2ª CCrim., j. 2-8-1982, rel. Des.Onei Raphael, v.u., RT 563/301.), considerando-se preclusa a matériase não houvesse oportuna reclamação até a audiência de julgamento(TJSP, Ap. 11.350-3, 3ª CCrim., j. 29.3.1982, rel. Des. Costa Mendes,v.u., RT 560/305), ou na audiência de julgamento (TJSP, Ap. 11.350-3,3ª CCrim., j. 29-3-1982, rel. Des. Costa Mendes, v.u., RT 560/305).

Na sistemática da Nova Lei Antitóxicos, todavia, a questão temnovo relevo. Com efeito, no mesmo despacho deverá o Juiz decidir,entre outros temas, sobre o recebimento ou rejeição da inicial acusatória

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e, recebendo-a, decidir desde já sobre as provas requeridas (art. 37,inc. III, e art. 38, § 1º).

Assim, considerando a amplitude da decisão a ser proferida,resulta evidente que a ausência do referido despacho acarretará inegávelnulidade do feito. A nosso ver, nulidade absoluta, que deverá serreconhecida em qualquer tempo e grau de jurisdição.

9.5. Desclassificação da conduta por ocasião do despacho

Não é cabível.

A oportunidade para tal desclassificação, em sendo o caso, é a dasentença, a teor do disposto nos arts. 383 e 384 do CPP, aplicáveis àhipótese inclusive em razão do disposto no art. 27 da Lei 10.409/2002.

9.6. Preclusão da matéria decidida

O despacho de recebimento da inicial acusatória e apreciaçãodas provas eventualmente requeridas não estabelece preclusão sobrequalquer matéria pertinente ao direito de defesa.

10. Artigo 41

10.1. Interrogatório

Nos precisos termos do art. 38, caput, última parte, da Lei 10.409/2002, ao proferir o despacho em que ordenará a citação do acusadopara responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias,o Juiz designará dia e hora para o interrogatório, que se realizarádentro dos 30 (trinta) dias seguintes, se o réu estiver solto, ou em 5(cinco) dias, se preso.

Pela interpretação que se extrai do texto, o prazo de 30 (trinta) ou05 (cinco) dias (seguintes) será contado do despacho e não da respostaescrita, já que a designação ocorrerá no despacho inicial, e nesta

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ocasião o juiz ainda não saberá a data em que será apresentada aresposta escrita, inclusive em razão das disposições contidas nos §§3º, 4º e 5º, do art. 38.

Há um grave problema, entretanto, que decorre da impossibilidadede realização do interrogatório dentro do prazo de 05 (cinco) dias, emse tratando de acusado preso, pois não é possível admitir seja eleinterrogado antes da apresentação de sua resposta escrita, para a qualdispõe do prazo de 10 (dez) dias, contado da juntada do mandado decitação aos autos ou da primeira publicação do edital de citação (o quejá vai demandar outros tantos dias). E mais, como interrogá-lo no prazode 05 (cinco) dias se ainda é possível o acréscimo de mais 10 (dez)dias no prazo para a resposta escrita, além dos dez iniciais, na hipótesedo § 3º do art. 38 e, em qualquer caso, dispondo o Ministério Público de05 (cinco) dias para manifestar-se sobre a resposta escrita (§ 4º) e oJuiz de outros 05 (cinco) para decidir (§ 4º) sobre o recebimento ou nãoda denúncia, além de outros 10 (dez) na hipótese de se determinar arealização de diligências antes do recebimento (§ 5º) ?

Mesmo em se tratando de denunciado solto, não raras vezes seriaimpossível a realização do interrogatório em 30 (trinta) dias, contadosda data do despacho inicial, a se considerar as hipóteses e os prazosregulados nos §§ 3º, 4º e 5º do art. 38.

Além da questão dos prazos inconciliáveis, pela lógica do artigo38, caput, parte final, em se tratando de acusado preso o interrogatóriosempre ocorreria antes mesmo da resposta escrita, e o que é pior emais absurdo, antes do recebimento da denúncia.

Não bastasse, o art. 40 da mesma Lei estabelece que ao recebera denúncia, o Juiz designará dia e hora para a audiência deinstrução e julgamento, sendo certo que nesta, a teor do dispostono art. 41, proceder-se-á à oitiva das testemunhas após ointerrogatório. Vale dizer: o interrogatório deverá ocorrer na audiênciade instrução e julgamento.

Com efeito, pela redação do art. 38 conclui-se que haveria umadata anterior à audiência de instrução e julgamento para a realização

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do interrogatório, todavia, para conciliar-se tais dispositivos e aproveitá-los integralmente seria preciso concluir que a data designada para ointerrogatório, por ocasião do despacho a que se refere o art. 38,deveria ser “aproveitada” para a instrução e julgamento, conforme sedeterminar em segundo despacho, a ser proferido por ocasião dorecebimento da inicial acusatória (art. 40), já que a audiência é una ea inquirição das testemunhas será realizada após o interrogatório,na mesma audiência (art. 41).

Ocorre, entretanto, que pela redação do art. 38 o interrogatóriodo preso ocorreria sempre antes da resposta escrita e antes dorecebimento da denúncia....

O caos é total.

Melhor seria se o legislador estivesse atento e não tivesse incluídona parte final do art. 38, caput, a designação de data para o interrogatóriojá no primeiro instante, até porque revela-se, a nosso ver, descabida adesignação de tal data se o Juiz ainda poderá rejeitar a inicial acusatória(art. 43), e aqui a questão é mais complexa que a prevista noprocedimento sumaríssimo da Lei 9.099/95, conforme seu art. 81, ondeo juiz designa audiência de instrução e julgamento (art. 78), cominterrogatório após a colheita de toda a prova, podendo antes aindarejeitar a denúncia após a resposta da defesa à acusação, a verificar-se imediatamente após a abertura da audiência.

O art. 40 poderia permanecer com a redação que está,observando-se o que ficou consignado acima, no item próprio.

A questão pertinente ao momento do interrogatório permaneceriaregulada como se encontra no art. 41.

10.2. Dependência

Se o acusado alegar já na resposta escrita (art. 38, caput, e § 1º),ser dependente de produtos, substâncias ou drogas ilícitas, e requerera realização do exame de dependência, é de bom tom que o magistradoaguarde a ocasião do interrogatório, oportunidade em que poderá aferir

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com maior eficiência e segurança da necessidade ou não de realizaçãodo exame, inclusive em razão da imediatidade.

Não havendo alegação por parte da defesa, deverá o magistradoquestionar o acusado a tal respeito, por ocasião do interrogatório.

Verificada a necessidade de realização do exame, deverá colhera prova oral (em audiência una) e determinar a realização da provatécnica, designando nova data para os debates e sentença, a se verificarapós a realização do exame e juntada do laudo aos autos.

11. Considerações finais

Diante de tanta complexidade (e perplexidade), entendemos que oprocedimento no tocante à instrução criminal, conforme regulado na Lei10.409/2002, na prática deverá ser aplicado da seguinte forma: 1.oferecida a denúncia, o juiz, em 24 horas, ordenará a citação dodenunciado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez)dias...; 2. nesta ocasião, não designará data para interrogatório, poisaguardará o momento do art. 40; 3. em sendo o caso, oportunamenteserá aplicado o disposto no § 3º do art. 38; 4. observar-se-á o dispostonos §§ 4º e 5º do art. 38; 5. recebida a denúncia (art. 40), o juiz designarádia e hora para o interrogatório, instrução e julgamento (a defesa préviajá foi apresentada, conforme o § 1º do art. 38); 6. na audiência, observar-se-á o disposto no art. 41 e parágrafo único. 7. Havendo a necessidadede realização de exame de dependência ou de constatação da condiçãode usuário, após o interrogatório e a colheita da prova oral será designadanova data para a audiência em continuação, para os debates ejulgamento, a se verificar após a juntada do laudo pericial, observando-se, ainda, o disposto no parágrafo único do art. 41, ou se determinará aoportuna apresentação de memoriais, seguindo-se de sentença. Nadaimpedirá que o Juiz, notadamente em se tratando de réu solto, após acolheita da prova oral determine a realização da perícia e que se aguardea chegada do laudo para posterior designação de audiência emcontinuação, se for esta a opção.

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De tudo o que se viu é possível concluir que a sistemática adotadapela Nova Lei Antitóxicos é extremamente confusa, pouco técnica, epor certo irá provocar incontáveis discussões processuais, tumultuandoainda mais as Instâncias recursais.

As discussões irão desde a aplicação ou não do procedimentoestabelecido na Lei 10.409/2002 aos crimes envolvendo produtos,substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física oupsíquica, já que tal procedimento aplica-se aos crimes nela definidos, eela não define nenhum crime, até outras tantas incontáveis questõesaltamente controvertidas, baseadas em minúcias técnicas, todas elasevitáveis em uma boa legislação.

Estamos diante de uma Lei que, a pretexto de melhorar a antigasistemática da Lei 6.368/76 não a revogou. Não define crimes;estabelece um procedimento que não se aplica a nenhuma hipótese, anenhum delito; não trata de inúmeras questões inevitáveis, quepermanecem regidas pela Lei 6.368/76, como as pertinentes à semi-imputabilidade e inimputabilidade, tratadas nos arts. 19 e 29 do Diplomaque se pretendeu minimizar como superado.

Além de não ajudar na prevenção e repressão dos crimesenvolvendo produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causemdependência física ou psíquica, a Nova Lei só veio tumultuar ainda maisa questão e proporcionar mais impunidade.

Em se tratando de um Projeto que tramitou desde 1991, éinaceitável uma Lei tão ruim, péssima sob quase todos os aspectos, epior que o texto do Projeto sancionado em parte, somente a ausênciade coragem e vocação jurídica de quem não o vetou completamente.

Renato Flávio Marcão,promotor de Justiça, mestre em Direito Penal

pela Universidade Mackenzie, especialista em DireitoConstitucional, professor de Direito Penal, Processo

e Execução Penal na Unip, Unirp e Unorp(São José do Rio Preto)

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Juang yuh yu,promotora de justiça de acidentes dotrabalho na Capital - são paulo

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Revista Jurídica da ESMP - n.º 4 83

CONVENÇÕES OU TRATADOS

INTERNACIONAIS FACE À CONSTITUIÇÃO

FEDERAL E NORMAS INTERNAS

REFERENTES À INDENIZAÇÃO

POR DANO AMBIENTAL

Juang Yuh Yu

SUMÁRIO: I. Introdução. II. Convenção internacional xLegislação nacional. III. Conclusões. IV. Bibliografia.

1. Introdução.

O objetivo deste trabalho é demonstrar que, não obstante aglobalização que se estende pelo mundo, não se pode perder de vistaa necessidade de preservar os nossos patrimônios, dentro de seusentido amplo que abrange o meio ambiente, dos interesses alheios.

Isto significa que a realização de acordos, ratificações de conven-ções e tratados internacionais devem ser feitos tendo por finalidade maioros interesses da nação, notadamente aqueles que constituem normaspétreas e garantias de uma vida digna e sadia para a nossa população.

No caso, nosso enfoque centra-se, decorrente de experiênciaprofissional, na Convenção Internacional por Responsabilidade Civilem Danos Causados por Poluição por Óleo, de 1969, que foi ratificadapelo Brasil e adentrou na nossa legislação pelos Decretos 79.437/77e 83.540/79, a qual impunha limites nos valores indenizatórios emrazão de seguro que os proprietários dos navios deveriam fazer, assim

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Revista Jurídica da ESMP - n.º 484

como estabelecia que eventuais importâncias superiores a esse limiteseriam suportados, em rateio, pelas próprias vítimas, prevendo até queo próprio poluidor poderia se beneficiar desse seguro se, voluntariamente,participasse das atividades que tentassem minimizar os estragos feitos.

Expõe-se o entendimento de que convenção internacional nãopoderia ser ratificada se contivesse dispositivos contrários aos interessesdo País e, ainda que assim o fosse, não seria internamente aplicávelporquanto já haviam leis que obstaculizavam a sua incidência antes daatual Constituição Federal, que data de 1988, e muito menos aguardar oadvento da Lei 9.966, sancionada somente em abril de 2000, que prevê,explicitamente, a ampla indenização pela poluição praticada, além desanções administrativas e cominações penais.

Assim, atualmente, tem-se, sem necessidade de maiores ques-tionamentos jurídicos, possibilidades de impedir que uma embarcaçãopoluidora zarpe, acaso não tenha efetiva garantia a responder pela inde-nização da degradação causada, ou ainda se verifique não haver condi-ções de navegabilidade sem comprometer o meio ambiente, bem comoexpressa previsão, em lei ordinária, da mais ampla indenização em razãodo evento poluidor que atinja tanto patrimônio público como privado.

2. Convenção internacional X Legislação nacional

Para adentrar na matéria que se visa apresentar, relembra-se queconvenção é um acordo formal concluído entre sujeitos de direitointernacional público e destinado a produzir efeitos jurídicos e, comoleciona HILDEBRANDO ACCIOLY, em seu Tratado de DireitoInternacional Público, tomo II, 1934, ela “em nada difere do tratado quantoà sua estrutura e pode ser empregada como sinônimo deste”.

E para ser aplicada no nosso sistema deve ser referendada peloCongresso Nacional, ingressando como norma infraconstitucional,razão por que não pode afrontar a Constituição Federal, que é a leimáxima do País.

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Revista Jurídica da ESMP - n.º 4 85

A lição de JOSÉ FRANCISCO REZEK, em sua obra DireitoInternacional Público, Curso elementar, 2ª ed., 1991, Saraiva, àspáginas 103/104, também é nesse sentido, ou seja, que, surgindoconflito entre tratado e norma de direito interno, “posto o primado daconstituição em confronto com a norma pacta sunt servanda, écorrente que se preserve a autoridade da lei fundamental do Estado,ainda que isto signifique a prática de um ilícito pelo qual, no planoexterno, deve aquele responder”.

Prosseguindo, o mestre refere que “de setembro de 1975 a junhode 1977 estendeu-se, no plenário do Supremo Tribunal Federal, ojulgamento do RE 80.004, em que assentada, por maioria, a tese deque, ante a realidade do conflito entre tratado e lei posterior, esta, porqueexpressão última da vontade do legislador republicano deve ter suaprevalência garantida pela Justiça.”

Continua o eminente jurista: “admitiam as vozes majoritárias que,faltante na Constituição do Brasil garantia de privilégio hierárquico dotratado internacional sobre as leis do Congresso, era inevitável que aJustiça devesse garantir a autoridade da mais recente das normas,porque paritária sua estatura no ordenamento jurídico” (acórdão RTJ v.83, p. 809-848).

Não se pode negar que Ruy Rebello Pinho e Amauri MascaroNascimento, citando Haroldo Valladão, possuem outro entendimento eadmitem que: “se é verdade que uma lei interna revoga outra, ou outrasanteriores, contrária à primeira, o mesmo não se poderá dizer quando alei anterior representa o direito convencional transformado em DireitoInterno, porque o Estado tem o dever de respeitar suas obrigaçõescontratuais e não as pode revogar unilateralmente. Daí poder-se dizerque, na legislação interna, os tratados e convenções a ela incorporadosformam um direito especial que a lei interna não pode revogar.”

Porém, não obstante a era da globalização em que nos encontra-mos, é de se reafirmar que não é possível aceitar o último posicionamentose a contrariedade atinge a própria Lei Maior do País, visto que ofenderiaum dos princípios basilares da nossa República Federativa: a soberania,pois é inconcebível a existência de poder algum maior do que o nacional,

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e ainda feriria o princípio da independência nacional adotada na regênciado trato internacional.

A respeito, emprestamos as palavras do eminente Relator Min.CELSO DE MELLO no v. acórdão da Ação Direta de Inconstitucionalidade– Medida Cautelar (ADIMC 1480/DF), julgado em 04.09.1997, peloTribunal Pleno, para indicar que o nosso posicionamento não é isolado:

“É na Constituição da República – e não na controvérsiadoutrinária que antagoniza monistas e dualistas – que sedeve buscar a solução normativa para a questão daincorporação dos atos internacionais ao sistema de direitopositivo interno brasileiro. O exame da vigente ConstituiçãoFederal permite constatar que a execução dos tratadosinternacionais e a sua incorporação à ordem jurídica internadecorrem, no sistema adotado pelo Brasil, de um atosubjetivamente complexo, resultante da conjugação deduas vontades homogêneas: a do Congresso Nacional,que resolve, definitivamente, mediante decreto legislativo,sobre tratados, acordos ou atos internacionais (CF, art.49, I), e a do Presidente da República, que, além de podercelebrar esses atos de direito internacional (CF, art. 84,VIII), também dispõe – enquanto Chefe de Estado que é –da competência para promulgá-los mediante decreto. Oiter procedimental de incorporação dos tratadosinternacionais – superadas as fases prévias da celebraçãoda convenção internacional, de sua aprovaçãocongressional e da ratificação pelo Chefe de Estado –conclui-se com a expedição, pelo Presidente daRepública, de decreto, de cuja edição derivam três efeitosbásicos que lhe são inerentes: (a) a promulgação dotratado internacional; (b) a publicação oficial de seu texto;e (c) a executoriedade do ato internacional que passa,então, e somente então, a vincular e obrigar no plano dodireito positivo interno. Precedentes. SUBORDINAÇÃONORMATIVA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS ÀCONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. – No sistema jurídico

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brasileiro, os tratados ou convenções internacionais estãohierarquicamente subordinados à autoridade normativada Constituição da República. Em conseqüência, nenhumvalor jurídico terão os tratados internacionais, que,incorporados ao sistema de direito positivo interno,transgredirem, formal ou materialmente, o texto da CartaPolítica. O exercício do treaty-making power, pelo Estadobrasileiro – não obstante o polêmico art. 46 da Convençãode Viena sobre o Direito dos Tratados (ainda em curso detramitação perante o Congresso Nacional) -, está sujeitoà necessária observância das limitações jurídicasimpostas pelo texto constitucional. CONTROLE DECONSTITUCIONALIDADE DE TRATADOS INTERNA-CIONAIS NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO. – OPoder Judiciário – fundado na supremacia da Constituiçãoda República – dispõe de competência, para, quer emsede de fiscalização absoluta, quer no âmbito do controledifuso, efetuar o exame de constitucionalidade dostratados ou convenções internacionais já incorporados aosistema de direito positivo interno. Doutrina e jurispru-dência. PARIDADE NORMATIVA ENTRE ATOSINTERNACIONAIS E NORMAS INFRACONSTITUCIO-NAIS DE DIREITO INTERNO. – Os tratados ou conven-ções internacionais, uma vez regularmente incorporadosao direito interno, situam-se, no sistema jurídico brasileiro,nos mesmos planos de validade, de eficácia e de autori-dade em que se posicionam as leis ordinárias, havendo,em conseqüência, entre estas e os atos de direitointernacional público, mera relação de paridade normativa.Precedentes. No sistema jurídico brasileiro, os atos inter-nacionais não dispõem de primazia hierárquica sobre asnormas de direito interno. A eventual precedência dostratados ou convenções internacionais sobre as regrasinfraconstitucionais de direito interno somente se justificaráquando a situação de antinomia com o ordenamento

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doméstico impuser, para a solução do conflito, a aplicaçãoalternativa do critério cronológico (“lex posterior derogatpriori”) ou, quando cabível, do critério da especialidade.Precedentes. TRATADO INTERNACIONAL E RESERVACONSTITUCIONAL DE LEI COMPLEMENTAR. – Oprimado da Constituição, no sistema jurídico brasileiro, éoponível ao princípio pacta sunt servanda, inexistindo, porisso mesmo, no direito positivo nacional, o problema deconcorrência entre tratados internacionais e a LeiFundamental da República, cuja suprema autoridadenormativa deverá sempre prevalecer sobre os atos dedireito internacional público. Os tratados internacionaiscelebrados pelo Brasil – ou aos quais o Brasil venha aaderir – não podem, em conseqüência, versar sobrematéria posta sob reserva constitucional de lei comple-mentar. É que, em tal situação, a própria Carta Políticasubordina o tratamento legislativo de determinado temaao exclusivo domínio normativo de lei complementar, quenão pode ser substituída por qualquer outra espécienormativa infraconstitucional, inclusive pelos atosinternacionais já incorporados ao direito positivo interno...”

Diante da certeza de que, inseridas no ordenamento jurídiconacional, os tratados e convenções internacionais comportam-se comonormas infraconstitucionais e não possuem qualquer primazia sobre asnormas internas, bem como não poderem violar a Carta Máxima, apretensão deste trabalho é demonstrar que, quando aqueles impõemlimites de responsabilização dos causadores de poluição ambiental,notadamente os referentes a danos ambientais por derramamento deóleo, não poderão ser aceitos em detrimento da previsão legislativanacional de ser ampla a indenização, como tentativa de recomposiçãodo status quo ante.

São cláusulas pétreas de nosso ordenamento a soberania, acidadania e a dignidade da pessoa humana (art. 1º, I, II, III), enquanto que

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os princípios que regem as relações internacionais são a independêncianacional e a prevalência dos direitos humanos, entre outros (art. 3º, I e II).

Daí, associando-se ao disposto no art. 5º, LXXIII que garante aocidadão a possibilidade de ser parte legítima para propor ação popularque vise anulação de ato lesivo ao meio ambiente, e ao art. 225 e seu §3º, onde consta que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamenteequilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidadede vida, impondo ao Poder Público e à coletividade o dever de defen-dê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”, e que “ascondutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarãoos infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais eadministrativas, independentemente da obrigação de reparar os danoscausados”, tem-se que faz parte da dignidade e dos direitos humanosa existência de um ambiente ecologicamente equilibrado, o que significaque eventual degradação sofrida deverá ser reparada de tal modo quese recomponha o mais próximo possível o seu status quo ante, semprejuízo de reparar outros danos causados à comunidade local e dasresponsabilizações penal e administrativa.

A Lei 6.938, de 31 de agosto de 1981, estabelece, em seu art. 2º,que a Política Nacional do Meio Ambiente tem por objetivo a preservação,melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, visandoa assegurar, no País, condições ao desenvolvimento sócio-econômico,aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vidahumana, atendidos, dentre outros princípios, o de recuperação de áreasdegradadas (inciso VII). Em seu art. 4º dispõe que um dos seus objetivosé a “imposição, ao poluidor e ao predador, da obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados e, ao usuário, da contribuição pelautilização de recursos ambientais com fins econômicos” (inciso VII); alémdisso, prevê, no § 1º do art. 14, que “é o poluidor obrigado, independente-mente de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meioambiente e a terceiros, efetuados por sua atividade”.

O § 4º desse art. 14 ressalva que nos casos de poluição provocadaspelo derramamento ou lançamento de detritos ou óleo em águasbrasileiras, por embarcações e terminais marítimos ou fluviais, prevalecerá

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o disposto na Lei nº 5.357, de 17 de novembro de 1967, a qual estabelecepenalidades para embarcações e terminais marítimos ou fluviais quelançarem detritos ou óleo em águas brasileiras, e dá outras providências;entretanto, o art. 35 da Lei 9.966/2000 revogou expressamente esseparágrafo, mesmo porque, tais penalidades tinham nítido caráter adminis-trativo e não para reparação civil dos danos ambientais.

A Lei 7.347, de 24 de julho de 1985 veio instrumentalizar a atuaçãoda defesa do meio ambiente e outros direitos difusos e coletivos com aação civil pública e dispôs sobre a legitimidade da parte ativa, bem comoconferiu ao Ministério Público a competência para instaurar inquéritocivil para apuração dos fatos.

Com essa noção primária de nossa legislação, passa-se a abordaro tema no trato internacional, relembrando que o despertar dacomunidade internacional para a matéria foi o acidente envolvendo opetroleiro liberiano Torrey Canyon, em março de 1967, que transportavapetróleo do Golfo Pérsico para Milfor Haven e encalhou nas cornualhasinglesas causando grave degradação à flora e à fauna inglesas efrancesas, quando constataram que as convenções até então existentes(de 1954 e revisada em 1962, referente a Prevenção contra Poluiçãodas Águas do Mar por Hidrocarbonetos, e de 1958 sobre o Alto Mar)eram insuficientes para solucionar a questão.

Daí, surgiram duas convenções em 1969, a Internacional em Alto-Mar em acidentes que provoquem ou possam provocar poluição poróleo, e a Internacional sobre Responsabilidade Civil por DanosCausados por Poluição por Óleo e, em 1971, foi elaborada a ConvençãoInternacional que estabelece um Fundo de Compensação de Danosproduzidos por poluição do óleo, as quais foram ratificadas pelo Brasil.

O Decreto nº 79.437, de 28 de março de 1977 promulgou aConvenção Internacional sobre Responsabilidade Civil em DanosCausados por Poluição por Óleo (Bruxelas), de 1969, entretanto, a leiturade seus dispositivos indica que se privilegia esse tipo de poluidor emdetrimento da ampla indenização devida por eventual degradaçãoambiental, pois impõe limite máximo da importância indenizatória,excluindo-o de valores superiores e, mais grave ainda, que tal superação

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seria repartida entre as próprias vítimas, tendo ainda o agente poluidordireito a integrar o rol daqueles que pleiteiam a indenização se tivercolaborado com a minimização dos danos!

Veja-se que o § 4º do artigo III expressa que “nenhum pedido deindenização por danos por poluição poderá ser formalizado contra oproprietário de outro modo que não seja baseado na presente Convenção.Nenhum pedido de indenização, que não seja fundamentado na presenteConvenção poderá ser feito contra Propostos ou Agentes do proprietário”.

A limitação da responsabilidade vem disposta no artigo V, cujo § 1ºconfere ao proprietário de um navio o direito de limitar sua responsabilidadenos termos dessa Convenção em relação a um acidente, ao montantetotal de 2000 (dois mil) francos por tonelada da tonelagem do navio, eque em nenhum caso poderá exceder a 210 (duzentos e dez) milhõesde francos, desde que tenha constituído um fundo que represente o totalde sua responsabilidade junto ao Tribunal ou autoridade competente dequalquer Estado contratante onde a ação judicial foi iniciada (§ 3º), salvose o incidente não foi produzido por falta pessoal do proprietário (§ 2º).

Maior surpresa causa o § 8º do artigo V ao dispor que, se o proprie-tário, voluntariamente, realizar despesas ou sacrifícios com o fim deevitar ou minimizar os danos da poluição, figurará em igualdade comoutras reclamações contra o fundo, quando o § 4º estabelece que esteserá distribuído entre os reclamantes proporcionalmente aos montantesdas reivindicações estabelecidas.

Ora, o senso comum e normal que se espera de quem polui éque realize, voluntariamente, atos que reduzam ou impeçam o impactodo dano causado ao ambiente.

Consideradas essas ponderações, é de se acrescentar que o artigoIII, § 4º, obsta pedidos de indenização dessa natureza por outro modoque não seja baseado nessa Convenção, assim como impõe que sejamnela fundamentadas para acionar Prepostos ou Agentes do proprietário.

O Decreto 83.540, de 04 de junho de 1979, que a regulamentou,surpreende com o teor do seu art 13, ao dispor que aqueles que sofreramperdas ou danos decorrentes da poluição por óleo ratearão entre si o

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valor que ultrapassar o limite de responsabilidade estabelecido naConvenção Internacional sobre Responsabilidade Civil em DanosCausados por Poluição por óleo.

A inadequação de tais dispositivos se fizeram sentir no planointernacional, logo em 1978, quando se acidentou o petroleiro liberianoAmoco Cadiz na costa norte da Grã-Bretanha, o que fez a Françareestruturar a sua legislação com a criação de novas regras paracominar obrigações e penalidades na luta contra a poluição marítima,além de impor medidas sobre a circulação de petroleiros em seus mares.

De outro lado, por causa das conseqüências desse novo desastre,a Grã-Bretanha, a França, os Estados Unidos e o Canadá, em cooperação,estabeleceram um programa de estudos e análises dos resultados dapoluição na ecologia marítima, e foram seguidos por outros países.

Assim, observa-se que, já em 1978, portanto, antes da promulgaçãopátria da Convenção Internacional sobre Responsabilidade Civil em DanosCausados por Poluição por Óleo, em 1979, na esfera internacional eraconsciente a sua ineficácia, tanto que a França, por si, reestruturou a sualegislação e a desconsiderou para a questão indenizatória.

Isto significa que o Brasil deve rever os tratados e convenções,especialmente aqueles que não mais se coadunam com a realidade emuito menos com a legislação nacional, e não aguardar que a conscien-tização de uma nova realidade venha da comunidade internacional,principalmente quando se trata da preservação de nosso patrimônio naturalque é único no planeta inteiro.

Como já salientava com precisão o mestre PAULO AFFONSOLEME MACHADO, em sua obra Direito Ambiental Brasileiro, 3ª ed., 1991,RT, pgs. 208/209: uma indagação de interesse público é a de saber-sese uma tarifa inapropriada para a cobertura do dano desonera porcompleto o poluidor. Com acuidade, Giles Martim responde que asvítimas não estão obrigadas a se contentar com uma reparaçãoincompleta, pois por razão de princípio, sustentar o contrário é sustentarque os prejuízos causados por certas atividades ultrapassam acapacidade humana de previsão. Se fosse assim, não haveria outra

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escolha, segundo o jurista francês, que a de renunciar a correr taisriscos...

O que a nosso ver é injurídico é o Poder Público se omitir em indeni-zar integralmente, limitando-se através de um teto, aceitanto, entretanto,um risco limitado, como se vê no art. V, I, da Convenção Internacionalsobre Responsabilidade Civil em Danos Causados por Poluição.

Portanto, se a reparação do dano não é completa, inócuo é opreceito constitucional; e, se o decreto que introduziu essa convençãoafronta, principalmente, a Constituição pátria, ela não pode subsistir enão serve de fundamento jurídico para se aplicar o inciso III do art. 109da Carta Magna.

Como não bastasse esse conflito legal, a Constituição Federalde 1988, no capítulo que reservou à política de proteção ambiental, nãodeixa dúvidas de que essa convenção não deve mais subsistir no nossomeio jurídico, haja visto que a responsabilidade por poluição ambientalé objetiva, e inexiste limite para reparação do dano causado, isto é,impõe-se a total reparação, diversamente do estabelecido na Convençãode Bruxelas, de 1969.

O Decreto 2.508 de 04 de março de 1998 que promulgou aConvenção Internacional para a Prevenção da Poluição Causada porNavios, concluída em Londres, em 02 de novembro de 1973, e o Protocoloconcluído em Londres, em 17 de fevereiro de 1978, com as Emendas de1984 e seus Anexos opcionais III, IV e V, inova, no artigo 5, § 2º, ao permitirque a Parte possa tomar providências para que um navio não zarpe atéque possa prosseguir a viagem sem apresentar excessiva ameaça dedano ao ambiente marinho, salvo se for para se dirigir para estaleiropróximo para reparos. Essa garantia de impedir a partida subsiste aindaque este seja portador de certificado, e se houver fundamentos clarosque levem a crer que as suas condições ou de seus equipamentos nãocorrespondem realmente aos termos desse certificado.

Somente no ano de 2000, em 28 de abril, foi sancionada a Lei9.966, que dispõe sobre a prevenção, o controle e a fiscalização dapoluição causada por lançamento de óleo e outras substâncias nocivas

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ou perigosas em águas sob jurisdição nacional e dá outras providências,cujo art. 23, parágrafo único, dispõe sobre a possibilidade de deterembarcação que, em caso de descarga, não possua certificado exigidopela CLC/69 (Convenção Internacional sobre Responsabilidade civil emDanos Causados por Poluição por Óleo) para o ressarcimento dasdespesas efetuadas pelos órgãos competentes para o controle ouminimização da poluição causada.

O seu art. 21 inova com a disposição de que, mesmo autorizadaa descarga de substâncias ou resíduos poluentes, o responsável nãofica desobrigado de reparar os danos causados ao meio ambiente e deindenizar as atividades econômicas e o patrimônio público e privadopelos prejuízos decorrentes dessa atividade.

E, o art. 25, § 3º, estabelece que as penas nele previstos nãoisenta o agente de outras sanções administrativas e penais dispostasna Lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, e em outras normas específicasque tratem da matéria, nem da responsabilidade civil pelas perdas edanos causados ao meio ambiente e ao patrimônio público e privado.

É visível que essa lei surgiu graças à crescente conscientizaçãoda comunidade no sentido de o poluidor responder não só pelareconstituição dos bens lesados, mas também indenizar os prejuízosprovocados, arcar com a manutenção de instalações e equipamentosde pesquisa, a fiscalização e monitoramento de áreas degradadas, e aviabilizar estudos das conseqüências dos danos e a recuperação dabiosfera atingida.

Entretanto, como exposto, não era necessário esperar até o anode 2000 para responsabilizar os poluidores por óleo sem sofrer os limitesimpostos pela Convenção Internacional de Bruxelas, pois, incorporadano ordenamento jurídico pátrio por decreto de 1979, ela se comporta comonorma infraconstitucional, e o advento da Lei de Proteção Ambiental, em1981, ao revogar as disposições contrárias, já afastava a sua aplicaçãoface ao princípio basilar do Direito brasileiro de não ultra-atividade ouretroatividade das normas, salvo expressa disposição contrária.

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Ainda que não se considere suficiente a Lei 6.938/81, não se podenegar que, diante da Lei 7.347, de 1985, o Decreto 83.540, de 1979,(Convenção Internacional de Bruxelas), já não poderia sobrepujá-la.

Mesmo que se admita como norma infraconstitucional especial,ela não pode ser superior à Constituição Federal, cujo art. 225, ratificaintegralmente a Lei 7347/85, e confere o necessário respaldo à Lei deProteção Ambiental.

Portanto, se a Convenção Internacional de Responsabilidade Civil,que se comporta como norma infraconstitucional, no nosso entendi-mento já fora revogada tanto pela lei de política ambiental de 1981, comopela lei de ação civil pública, de 1985, e principalmente pela Carta Magnabrasileira que estabelece não só a responsabilidade civil, mas tambéma administrativa e a penal, dúvidas não subsistem mais ante a clarezado art. 25 da Lei 9.966/2000.

3. Conclusões

1. Convenção ou Tratado Internacional deve ser tratado comonorma infraconstitucional, e só poderá ter prevalência sobre a legislaçãonacional se mais favorável aos interesses do nosso País, notadamenteno que concerne à proteção ambiental que, na verdade, é direito detoda a humanidade.

2. A indenização por poluição ambiental não se sujeita aos limitesde eventual seguro que o poluidor tenha realizado, mas sim ao montanteque seja necessário para se recompor o status quo ante ao acidente,sem prejuízo das penalidades administrativas e criminais atualmenteprevistas na legislação nacional.

Juang Yuh Yu,

promotora de Justiça de Acidentes do Trabalhoda Capital - designada na 5ª Procuradoria de Justiça,

pós-graduada em Interesses Difusos e Coletivos

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Revista Jurídica da ESMP - n.º 498

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o risco de tomaro risco de tomaro risco de tomaro risco de tomaro risco de tomaruma sopauma sopauma sopauma sopauma sopa

damásio e. de jesus,professor

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Revista Jurídica da ESMP - n.º 4 101

O RISCO DE TOMAR UMA SOPA (*)

Damásio de Jesus

Um motorista, dirigindo um veículo em velocidade incompatível como local, atropelou um transeunte de idade avançada, causando-lhe lesõescorporais seríssimas, com perda da consciência, obrigando-o a uminternamento hospitalar. Submetida a vítima a uma cirurgia, ela enfrentouum período de tratamento médico intensivo e alimentação artificial.Semanas depois, passada a fase crítica, voltou a alimentar-se natural-mente. Ocorre que, embora já estivesse em fase de recuperação eultrapassado o perigo imediato à sua vida, devido à sua condição dedebilidade geral, a par do longo tempo de inconsciência, a vítima, quandoestava se alimentando naturalmente na cama pela primeira vez,engasgou-se seriamente ao tomar uma sopa, tendo o líquido penetradoem seus pulmões. Uma lavagem imediata não conseguiu evitar umainfecção pulmonar, que a levou à morte.

O motorista responde pela morte a título de homicídio culposo notrânsito1 ou somente pelas lesões corporais culposas primitivas2?

O tema é polêmico, havendo duas orientações:

1.ª posição: O motorista deve responder pela morte da vítima. Deacordo com essa posição, só há imputação objetiva da conduta quandoesta tenha provocado um risco juridicamente reprovável e relevante

* Título e hipótese extraídos de PUPPE, Ingeborg. La imputación objetiva – casosilustrativos de la jurisprudencia de los tribunales. Granada: Editorial Comares, 2001.p. 86 (“Acerca del riesgo de tomar una sopa”).

1 Art. 302 do Código de Trânsito (Lei n. 9.503, de 23.9.1997).

2 Crime de lesão corporal culposa no trânsito (Código de Trânsito, art. 303).

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(desvalor da ação).3 No caso, o comportamento de atropelar a vítimadirigindo veículo em velocidade incompatível com o local criou um riscorelevante e juridicamente proibido à sua vida e incolumidade (bensjurídicos), transformado em severa afetação jurídica (resultado jurídico),concretizada nas gravíssimas lesões (resultados naturalísticos).

É verdade que o fato de alguém, especialmente de idadeavançada, alimentar-se deitado em uma cama e afogar-se com o líquidopertence ao trato diário, consistindo em risco permitido. De ver-se,entretanto – prossegue a argumentação –, que essa situação de riscoadmitido transforma-o em reprovável quando aliada aos fatores“debilidade física genérica da vítima e longo período de perda deconsciência”, produzidos pela conduta inicial. Como explica INGEBORGPUPPE, “um estado de debilidade geral produzido em conseqüênciade um acidente e a perda de consciência unida a ele não é um estadode risco permitido. Por esta razão, os riscos específicos que podem seagravar em face do estado de debilidade têm que recair sobre o autor enão sobre a vítima do acidente. Diferente seria a questão se a mudançado tipo de alimentação, de natural para artificial, tivesse sido um erromédico. Partimos do pressuposto de que a ordem de alimentação naturaldada pelos médicos não foi um erro profissional”4.

Concluindo, essa orientação observa que a imputação objetivaexige ainda que o risco proibido se transforme em afetação jurídica(gênero), que se manifesta por meio de uma lesão efetiva ou potencialdo bem jurídico (espécies5). No caso, a morte da vítima, resultado típico,correspondeu ao risco criado pelo autor. Ocorre que os efeitos das

3 Nesse sentido: JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal: Parte General. Trad.José Luis Manzanares Samaniego. Granada: Editorial Comares, 1993. p. 258-260; ROXIN, Claus.Derecho Penal: Parte General. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo eJavier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997. vol. I, p. 373; nosso Imputação objetiva. 2.ª ed.São Paulo: Saraiva, 2002. p. 75, n. 14.1.1.

4 Op. cit. La imputación objetiva – casos ilustrativos de la jurisprudencia de los tribunales. p.86-87.

5 No homicídio consumado temos uma lesão jurídica efetiva; na tentativa de homicídio, uma lesãopotencial ao bem jurídico.

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lesões, consistentes na debilidade geral da vítima idosa, perda daconsciência e necessidade de alimentação artificial, criaram novasituação de risco proibido, satisfazendo o denominado “requisito dacontinuidade”6. De modo que, se o engasgo encontra explicaçãofisiológica em face do grau de debilidade da vítima, presente a condiçãode continuidade, perfaz-se a correspondência entre o risco e o resultadojurídico. Diversa seria a solução se o engasgo não tivesse relação coma perda da consciência e o estado de debilidade da vítima, caso emque o evento morte ingressaria no campo dos perigos comuns da vida(princípio da “mala suerte”, do “azar”)7.

2.ª posição (corresponde à que adotamos): Era imprevisível ofato de a vítima vir a se engasgar tomando sopa na fase derecuperação, quando já conjurado o perigo de vida imediato. Por isso,imputar-se a morte ao motorista com fundamento em seu estado dedebilidade conduziria, na palavra de MARIA CARMEN GÓMEZRIVERO, “a uma inaceitável limitação da liberdade de agir, que obrigariaqualquer um praticamente a abster-se de realizar qualquer condutapara evitar os possíveis resultados que hipoteticamente poderiamderivar, não do comportamento inicial e sim de seu relacionamentocom qualquer outro fator externo”8.

A imputação objetiva requer uma relação direta entre a conduta eo resultado e que a afetação jurídica se encontre em posição dehomogeneidade com o comportamento primitivo, inexistindo quandoaquele (evento) vem a ser causado, em fase posterior, pelo própriosujeito passivo, terceiro ou força da natureza (resultado tardio).

Exige-se, pois, a verificação de a conduta haver criado um perigojuridicamente reprovável ao bem jurídico e de o resultado produzido

6 Segundo INGEBORG PUPPE, o requisito da continuidade pode ser explicado da seguinte maneira:“O comportamento do autor, com suas características proibidas, deve estar vinculado com aprodução do resultado mediante uma cadeia causal tal que cada fase dela contenha um elementoproibido” (op. cit., p. 83).

7 ROXIN, Claus. Op. cit. Derecho Penal: Parte General. vol. I, p. 374-375.

8 La imputación de los resultados producidos a largo plazo. Valencia: Tirant lo Blanch, 1998. p. 49.

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corresponder à realização do risco juridicamente proibido (relação derisco-resultado). Se o resultado jurídico foi causado por um riscodiferente daquele produzido pela conduta desaprovada, não pode seratribuído a seu autor. Em conseqüência, o resultado é objetivamenteatípico quando não corresponde ao gênero de risco criado pelo agente.Como ensina CLAUS ROXIN, “a imputação ao tipo objetivo pressupõeque no resultado se tenha realizado precisamente o risco proibido criadopelo autor. Por isso, está excluída a imputação objetiva, em primeirolugar, se, ainda que o autor tenha criado um perigo para o bem jurídicoprotegido, o resultado normativo produziu-se, não como efeito desseperigo, mas sim em conexão casual com o mesmo”9. Assim, inexisteimputação objetiva na hipótese de o evento não se conformar àrealização do perigo juridicamente desaprovado criado pelocomportamento (resultado que não corresponde à realização do riscojuridicamente desaprovado criado pela conduta). Nas palavras deCLAUDIA LÓPEZ DÍAZ, é necessário precisar se há uma relação derisco entre a conduta e o resultado produzido, i. e., há que se determinar,sob o aspecto normativo, se o risco criado pelo sujeito é o mesmo quese realizou na produção do resultado, ou, em outros termos, se o eventopode ser explicado pela violação da norma de cuidado, uma vez que,se a norma infringida não guarda relação com o resultado, este não éimputável. Se não existe a relação risco-resultado, a questão se resolveem termos de tentativa ou atipicidade. Com outras palavras, éindeclinável a verificação ex post facto se o fim de proteção da normaincriminadora violada tinha realmente a destinação de impedir a produçãode um resultado normativo como o provocado pelo agente. O eventojurídico deve ser plasmado pelo risco causado pelo autor. Se produzidopor outros riscos, como pela conduta de um terceiro, pela própria vítimaou por força da natureza, há exclusão da imputação objetiva.10

9 Op. cit. Derecho Penal: Parte General. vol. I, p. 373. No mesmo sentido: DELPINO, L. DirittoPenale: Parte Generale. Napoli: Esselibri-Somone, 1995. p. 153.

10 Introducción a la imputación objetiva. Bogotá: Centro de Investigaciones de Derecho Penal yFilosofía del Derecho, Universidad Externado de Colombia, 1996. p. 49 e 174.

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Note-se que o segundo fato ocorreu quando a vítima não sofriamais nenhum risco de vida11. Assim, o primeiro fato, qual seja, o delitoculposo de trânsito, já se tinha encerrado.

No plano prático, causa estranheza condenar alguém por homi-cídio culposo no trânsito na hipótese de a morte ter sido causada porum engasgo da vítima.

Damásio Evangelista de Jesus,

professor, ex-procurador de Justiça,presidente do Complexo Jurídidico “Damásio de Jesus”

11 O motorista foi absolvido pelo Tribunal alemão da acusação de homicídio culposo.

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síntese da evsíntese da evsíntese da evsíntese da evsíntese da evoluçãooluçãooluçãooluçãooluçãohistórico-científicahistórico-científicahistórico-científicahistórico-científicahistórico-científica

do processodo processodo processodo processodo processo

Marcelo Batlouni mendroni,promotor de justiça de são paulo

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SÍNTESE DA EVOLUÇÃO

HISTÓRICO-CIENTÍFICA

DO PROCESSO

Marcelo Batlouni Mendroni

SUMÁRIO: 1. Período Primitivo. 2. Escola Judicialista. 3. EscolaPraticista. 4. Escola Procedimentalista. 4.1. Período das“Teorias Particulares” 5. Período Processualista.

As doutrinas nascidas em torno da natureza jurídica do Processoforam se sucedendo ao largo da história, conforme a própria evoluçãodo mesmo e, em geral, ligadas ao surgimento do Direito Processualcomo disciplina autônoma. A evolução da doutrina Processual podeser dividida em 5 (cinco) grandes períodos: 1- Primitivo; 2- Judicialista;3- Prático; 4- Procedi-mentalista; e 5- Processualista.

1- Período Primitivo:

Faltam, por completo autênticas exposições processuais, masem obras de datas, natureza e nacionalidades muito distintas seencontram dados e idéias acerca da Justiça e do seu funcionamento.Obras do tipo histórico-religioso, como a Bíblia, ou de caráter teatral,como “As vespas de Aristófanes” (442 a.c.), ou de índole jurídico-legal, como o “Código de Hammurabi”, na Mesopotamia. Mas nenhumadestas obras pode ser caracterizada como ponto de antecedência oureferência. Jamais podem consistir em obras sistemáticas de DireitoProcessual. Apenas poder-se-ia dizê-lo das noções do Direito Romano- da tripartição “pessoas, coisas, ações”, quando então o DireitoProcessual era considerado pertencente ao Direito Privado.

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2- Escola Judicialista:

A partir do século XI, alongando-se pelos séculos XII e XIII, surge,na Itália, na Universidade de Bolonha, a Escola Judicialista. A ela pertenceo pai das Instituições Processuais hispano americanas, o mestre Jacobdas Leis, redator da famosa “A Partida III”. Constituem um setor muitocaracterístico da produção dos Judicialistas as “pequenas somas”, ou“Compêndios”, que dividem os processos em fases denominadas“tempos”, em geral, entre 8 (oito) e 10 (dez) dias. Os Judicialistastrabalham sobre a base do chamado “direito comum” e também medievalitaliano, ítalo-canônico, por ser no norte da Itália onde se produz oaprendizado, e onde predominam as instituições Romanas; seguem asgermânicas e, quando não predominem as Romanas, - as Canônicas.Este Direito Comum, do qual provém o sistema Continental-Europeupropagou-se, e dentro dele o regime dos juízos, mediante a recepçãoque obteve nas principais nações da Europa durante os séculos XIII a XV.

3- Escola Praticista:

Entre o final do século XV e início do século XIX impera a EscolaPraticista. Suas principais características foram: A contemplação damatéria processual mais como uma arte do que como uma ciência; opredomínio frequente da opinião dos Práticos sobre os próprios preceitoslegais, por eles deformados, e inclusive anulando-se a si mesmos. Asobras dos Práticos, principalmente no início do período, não contém valorcientífico algum e, sem métodos, limitavam-se no geral a emitir opiniõescom fins agressivos.

4- Escola Procedimentalista:

Surge então na França a Escola Procedimentalista, cujodesenvolvimento deve ser considerado entre o período compreendido

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de 1789 e 1808 - e cujo marco principal foi a Revolução Francesa,quando principalmente Montesquieu e Voltaire analisaram o sistemaacusatório que havia permanecido no Processo Penal Inglês, bem comoa obra de Beccaria (Dos delitos e das Penas), para fundarem o sistemamisto, dividido em 2 etapas: Uma de instrução, do tipo inquisitivo e outrade julgamento, de índole acusatória. Some-se a esse novo sistema asubstituição do conceito de “sistema de provas legais” para o de “Livreconvencimento”. A Escola Procedimentalista tem também comocaracterística marcante a tríplice análise: Organização Judicial, Compe-tência e Procedimento.

Enquanto não tinha grau suficiente de independência frente aoDireito material, deveria se encontrar o fundamento do processo, aspossibilidades, ônus e obrigações das partes suscitadas a partir daprópria teoria da fonte das obrigações.

Aparecem, assim, as doutrinas “Romanistas” ou “Privativistas”,segundo as quais, a causa de tais pretendidos direitos e obrigações sebaseava na autonomia da vontade dos próprios litigantes. Tais tesespredominaram na doutrina até o final do século XIX, e na jurisprudênciaaté início do século XX.

O fundamento sociológico desta teoria deve ser encontrado nadebilidade do Estado Romano da Alta República, e, por conseguinte, naimportância da autodefesa privada. Para se lograr que as partes sesujeitassem ao processo e a observância à sentença ulterior, se idealizoua etapa apud iudicem na qual as partes deveriam realizar um contrato delitis contestatio. Este contrato judicial, uma vez solenemente formulado,constituiria a causa da autoridade da coisa julgada, delimitando ao própriotempo os seus limites subjetivos e daria lugar à possibilidade de utilizar aexceção res in iudicium deductare no procedimento formulado. Com oadvento do Império a teoria contratualista vai sofrer as suas primeirasrachaduras em relação ao poder o Pretor, de declarar o Direito, não tantopela invocação de um acordo da vontade entre os litigantes, mas porobra do seu próprio imperium.

Se o processo não é um contrato, diz Alcalá-Zamora, já que o con-sentimento do demandado não é espontâneo, e se ele, não obstante,

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estipula obrigações entre as partes, deveria ser encontrada em outrafonte de obrigações a causa explicativa de sua natureza. Posto que oprocesso não é um contrato, e nem um delito, pensaram os juristasfranceses daquela época (séculos. XVIII e XIX) que os vínculos quenascem no processo não poderiam provir mais que de um “Quase-contrato”. Desta maneira, e esquecendo a mais importante fonte dasobrigações, a Lei, acabaram por afirmar a exclusão da natureza Quase-contratual do processo.

4.1. Período das “Teorias Particulares”

Alguns grandes autores desta época merecem ser citados, comopor exemplo: Faustino Hélie (francês), com o “Traté de l’instructioncriminelle” - 1845; Jose de Vicente y Caravantes - “Tratado histórico críticofilosófico de los procedimientos judiciales en materia civil”, 1856-1858; E.Garsonet - “Traité théorique et pratique de procédure (civil) - 1882-1897; eLuigi Mattirolo - “Trattato di diritto giudiziario civile” - 1875.

A aparição de tipos procedimentais diversos determinaram, por-tanto, a revisão da tese da teoria contratualista.

Consolidada a idéia na doutrina moderna, depois da polêmica criadapor Windscheid e Müther com: Windscheid: “Die Actio des römischenCivilrechts, vom Standpunkte des heutigen Rechts” - Düsseldorf, 1856;Müther: “Zur Lehre von der römischen actio, dem heutigen Klagrecht” -Erlangen, 1857; e novamente Windscheid: “Abwer gegen Dr. TheodorMuther”, Düsseldorf, 1857; de que a ação ou “direito de acudir à Justiça”era de natureza muito distinta ao direito material subjacente e de que asrelações ou vínculos existentes entre julgador e partes tampouco podiamser reconduzidas ao direito privado, as doutrinas privativistas foramperdendo espaço para as que configuram o processo, tomando comoponto de partida as noções de Direito Público (Teorias Clássicas).

Corresponde mérito à doutrina alemã de ter elaborado as doutrinasmodernas sobre a natureza jurídica do processo, desenvolvendo com

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pioneirismo o estudo científico do Processo, o que proporcionou a suaevolução e de ter reivindicado a própria autonomia do Direito Processual.

5- Período Processualista:

Foi Oscar von Bülow quem, com a clássica obra “Die Lehre vonden Processeinreden und Processvoraussetzungen”, - “A teoria dasexceções e dos pressupostos processuais”, com base na idéia sugeridapelo filósofo Hegel, no ano de 1868 lançou a teoria segundo a qual oprocesso é uma relação jurídica de direito público que transcorre entre oPoder Judiciário e as partes. Segundo a mesma, o processo deve serentendido como uma relação jurídica, ou, o que é o mesmo, um conjuntode vinculações jurídicas existentes entre as pessoas que dele participam.O conteúdo da relação jurídica vem determinado pelos direitos eobrigações de natureza processual que ostentam tanto o Juiz como aspartes. A relação jurídica processual se instaura com o exercício da açãoe finaliza com a resolução do conflito, através de uma decisão com forçade coisa julgada, pela desistência, composição ou renúncia. Mas paraque a relação jurídica possa nascer e adquira relevância jurídica, exige-se a presença de elementos constitutivos, ou pressupostos processuais,que não são outra coisa senão as “prescrições que devem fixar osrequisitos de admissibilidade e as condições prévias para a tramitaçãode toda a relação processual” (Bülow). A relação jurídica deve serautônoma (independente da relação jurídica formada entre as partes como nascimento do litígio), pública (de direito público), e com unidade (sóexiste uma relação jurídica entre o julgador e as partes.

Outras teorias modernas surgiram, embora com menos força,inclusive pela sua repercussão para os tempos atuais; de Kohler: “Oprocesso é uma relação jurídica que ocorre exclusivamente entre aspartes, mas não entre as partes e o Juiz” (expressão do ProcessoPenal Acusatório). “Prozess als Rechtsverhältniss - Mannheim, 1888;e Hellwig: “A relação jurídica existe somente entre o Estado e as partes,mas não entre estas” (expressão do Processo Inquisitivo). “Lehrbuchdes Deutschen Civilprozessrechts”, Leipzig, 1903.

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Pode-se concluir que o mérito da teoria de Bülow consiste emhaver explicado a natureza pública do processo, ter distinguido comclareza procedimento e processo, destacado o caráter tridimensionaldo mesmo, especialmente o princípio de contradição. Muitos atribuemà teoria de Bülow marca o início da era do “Processualismo Científico”.

Características peculiares que imprimem caráter ao Pro-cessualismo científico:

a) A independência do Direito Processual frente ao DireitoMaterial;

b) Os conceitos primordiais da disciplina: ação, jurisdição,processo, atuação das partes etc.;

c) A superação do método expositivo, pela substituição daexegesis pelo sistema;

d) O estudo da matéria processual se faz de forma distinta:Enquanto os procedimentalistas estudam o maior ou menorvalor da justiça e a função judicial do Processo, ou simples-mente da descrição das instituições processuais; os pro-cessualistas a “teoria do direito processual”, inclusive sobreo procedimento, e rompem as suas amarras em relação àprática forense, passando do estudo empírico ao científico.

Entretanto, durante a segunda metade do século XIX, enquantoos alemães realizavam o desenvolvimento do estudo científico doProcesso, a Escola Italiana, que tinha à frente Luigi Mattirolo eLodovico Mortara (1855-1937) seguiam com a tendência exegética,ainda que orientada até as chamadas “teorias particulares”, influenciadospela escola Francesa, principalmente Garsonet, com o seu “TraitéTeórique et pratique de Procédure” - 1882/1897 (1a e 2a edições).

Quando em 1894 Giuseppe Chiovenda inicia o seu labor científico-processual, colocava-se diante do seguinte dilema: Seguir a então clássicaescola Italiana, de Mattirolo e Mortara, na tendência exegética ou desviarsua atenção para a até então fechada escola científica Alemã, encabeçadaa estas alturas por Adolf Wach (1843-1926), autor da obra “Handbuchdes Deutschen Civilprozessrechts” - Leipzig, 1885. Para Wach, o processo

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é uma relação jurídica entre partes interessadas, cujo conteúdo representadeveres e direitos de natureza processual com independência da relaçãojurídica material, posto que mediante o processo o direito não somenteexiste, senão que vale e adquire uma realidade. Os sujeitos da relaçãosão, para Wach, o Juiz, o demandante e o demandado, com o que segueo critério triangular da posição de Bülow.

Chiovenda então decide-se pela escola alemã, o que acarretou nofato de que muitos compatriotas o chamassem de traidor e/ou copiadordo trabalho alemão, o que não pode ser admitido, tanto porque a ciênciaé universal como porque os Italianos Mattirolo e Mortara também seguiramas bases dos ensinamentos da escola francesa, como porque na verdadeChiovenda deu sequência a estudos já iniciados, realizando, contudo,obra própria de altíssimo valor científico. Valiosos méritos devem seratribuídos a Chiovenda, principalmente pela sua percepção da ne-cessidade de abandonar o método exegético, chegando a sugerir anecessidade, não somente de alterações, retoques e emendas do entãoCódigo Sardo, de 1865, adotado como lei nacional de processo civil,mas a alteração total por um novo. Chiovenda elegeu então dois guias daescola alemã: Wach, como investigador, e Francisco Klein, austríaco(1854-1926), como codificador-metodologista, autor das importantesobras: “Die Jurisdiktionsnorm” e “Zivilprozessordnung”, de 1895;“Exekutionsordnung”, de 1896; e “Gerichtsorganisationgesetz” e“Gewerbegerichtsgesetz”, ambas de 1896"; o grande mérito de Klein foidescobrir as causas da lentidão processual e aplicar-lhes a soluçãoadequada. Estas causas são principalmente três: A promoção de inci-dentes, a interposição de recursos, e as denominadas “etapas mortas”,nas quais o processo fica esquecido nas prateleiras dos cartórios.

Assim, para evitar a promoção de incidentes desde o início doprocesso, Klein tem a idéia de promover uma audiência preliminar (ErsteTagsatzung); para frear os recusros, estabelece restrições e condiciona-mentos, e para diminuir as “etapas mortas”, aumentou o impulso oficial eos poderes de direção do Juiz, bem como a concentração do processoem uma ou poucas audiências próximas. Assim conseguiu reduzir aduração dos processos a limites que pareciam inatingíveis.

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Embora não tenha conseguido alcançar a sua meta - o Código deProcesso Civil Italiano de 1940, elaborado por Carnelutti, Calamandrei eRendini, Chiovenda embute fortemente as suas influências. A Chiovendatambém deve ser atribuído o mérito não alcançado por Mattirolo e Mortara,que foi dar início ao que seria posteriormente chamada de Escola Italianade Direito Processual. Dentre as obras de Chiovenda, pode-se citaralgumas das mais marcantes: “La condanna nelle spese giudiziali”, 1900;“L’azione nel sistema dei diritti”, 1903 e “Instituzioni di diritto processualecivile”, 1933. Ainda no que diz respeito a Chiovenda, é preciso salientar,que foi ele que deu início ao período da “Teoria Geral do Processo deConhecimento”, dedicando todo o seu esforço ao Processo Civil, semvoltar os olhos a qualquer análise de Processo Penal, e atendo-semajoritariamente ao Processo de Conhecimento, sustentando anecessidade de acolhimento do processo germânico inovador pelainserção de maior oralidade, em rompimento com a tradição latina, mascom apenas tímidas projeções em tema de Processo de Execução.

Na esfera processual, nenhuma escola foi tão fecunda como ade Chiovenda, que conta com nomes tão ilustres como ele próprio, ecomo Calamandrei, Liebman e Redenti.

Chiovenda sustenta que o procedimento é a envoltura exterior deuma relação jurídica que se chama relação jurídica processual, idéiaque é inerente ao iudicium romano e a definição que lhe davam osprocessualistas medievais, segundo os quais iudicium est actustriumpersonarum: iudicis actoris et rei, estabelecendo que a relaçãojurídica processual é uma relação jurídica autônoma e complexa quepertence ao direito público: 1- Autônoma, enquanto tem vida e condiçõespróprias, independente da ação que se faz valer no processo; 2- Com-plexa, enquanto não compreende um só direito, como sucede commuitas relações de direito civil, mas todos estes direitos coordenados auma finalidade comum que abrange em unidade todos os atosprocessuais; e 3- Pública, porque deriva-se de normas que regulamuma atividade de tal caráter - público.

Em outro sentido e em relação ao conteúdo, o dever fundamentalque constitui como o esqueleto de toda relação processual é o dever do

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Juiz ou de outro órgão jurisdicional de prover as demandas das partes.A este corresponde o dever de fazer todo o necessário no caso concretopara prover, dever que faz parte do ofício do Juiz e está garantido pelaresponsabilidade civil e penal. Estabelece Chiovenda como momentoda constituição da relação processual aquela em que a mesma écomunicada à outra parte e como condições da obrigação do Juiz paraprover a demanda da existência dos pressupostos processuais.

Piero Calamandrei, (1889-1956), nascido em Florença, foi odiscípulo predileto de Chiovenda, o mais identificado com a sua trajetória,não só no terreno científico como também no campo político. Importantesobras de Calamandrei são: “Elogio aos Juízes, escrito por um Advogado”- 1935, traduzido para diversos idiomas; “La cassazione civile” - 1920 e“Istituzione di diritto processuale civile” - 1945, não completada por haver,Calamandrei, sido absorvido pela política. A Calamandrei se deve asistematização de toda a zona do Processo - integrada pelas medidasassecuratórias, cujos lineamentos estabelece em “Introduzione allostudio sistematico dei provvedementi cautelari” - 1936; e ainda “Studisul processo civile” - em 6 volumes, I e II - 1930, III - 1934, IV - 1939, V -1947 e VI - 1957. Absorvendo os estudos de Chiovenda, Calamandreiafirma que os conceitos fundamentais do enjuizamento são três: Ação,Jurisdição e Processo. A exemplo de Chiovenda, Calamandrei dedicoua sua obra, quase que em sua totalidade no Processo Civil, emboradepois viesse a adotar a “Teoria Geral do Processo” de Carnelutti etivesse feito algumas breves referência ao Processo Penal.

Enrico Tullio Liebman, dos mais jovens processualistas, viveuvários anos no Brasil por haver sido perseguido pelo Fascismo,entregando aí o seu magistério e fundando a Escola Processual deSão Paulo. Seus trabalhos menores são reunidos no entitulado “Problemidel processo civile” - 1963; enquanto os maiores são considerados:“Le opposizioni di merito nel processo di esecutione” - 1931 e “Efficaciaed autorità della sentenza” - 1935.

Importante ainda é salientar a figura de Francesco Carnelutti, quedurante muito tempo ocupou a cátedra de Pádua, para depois passar aMilão e aposentar-se em Roma, como processualista. Dentre muitas de

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suas obras, cabe acentuar: “La prova civile” - 1915; “Sistema de dirittoprocessuale civile” - 1936/38/39; “Lezioni sul processo penale” - 1946/47/49 e “Trattato del processo civile” - 1960. Carnelutti que a princípio, aexemplo de Calamandrei e Liebman foi discípulo de Chiovenda, posterior-mente revolucionou por completo a dogmática, o sistema e a terminologiaprocessual, arrebanhando um número incrível de conceitos para explicaros fenômenos da disciplina processual, perfeccionadas mais tarde naobra “Sistema de Diritto processuale civile”, condensadas e acomodadasao novo Código e nos “Instituizioni”, conjugadas com as obras “Lezioni”,concernentes ao Processo Penal.

Concomitantemente e igualmente revolucionária surge a famosaobra de James Goldschmidt - “Der Prozess als Rechtslage”. Todavia,enquanto Goldschmidt constrói a sua obra utilizando mais de três milnotas de rodapé, Carnelutti elabora a sua a partir de suas próprias idéias.

Carnelutti inaugura a era da “Teoria Geral do Processo” e os seuspontos mais salientes são a aparição do termo “litígio” com o alcancede idéia extra ou meta processual, a cuja justa composição está adstritoo processo. Assim, diz Carnelutti que litígio e processo não são sinôni-mos, pelo contrário, se diferenciam até o ponto de existir litígio semprocesso; e, embora depois retificando tacitamente em obras posterioreschegou a afirmar também a existência de processo sem litígio. Originaistambém são suas obras “Lezioni sul processo penale” - segundo o qualenfoca que a divisória do direito penal substantivo e direito processualpenal deveria ser traçada com base no contraste entre o delito, queconstituiria o objeto do primeiro, e a pena, cuja aplicação seria do segun-do. Ao contrário de Chiovenda, dedicou-se de forma exaustiva tambémao estudo do processo de execução.

Para Carnelutti a relação jurídica nasce da combinação de umaobrigação e um direito subjetivo que tem por objeto a prestação de umaatividade para o desenvolvimento do processo, porque se, por uma parte,existe uma obrigação, e por outra, um direito, existem no processo tantasrelações jurídicas quantos são os conflitos entre o interesse enquanto àcomposição do litígio e os interesses daqueles que devem proporcionaros meios ao processo. Concebe portanto o processo como um complexode relações.

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Carnelutti, Redenti e Calamandrei foram incumbidos, em 1939,para a redação do Novo Código de Processo Civil Italiano, recordando-se que Chiovenda havia falecido em 1937, agregando-se aos três umrepresentante do Ministério Público - Leopoldo Conforti. O novo Código,promulgado em 1940 entrou em vigor em 1942, muito superior ao de1865, embora sem a mesma homogeneidade do Código de ProcessoPenal, de 1930, elaborado tão somente por Vincenzo Manzini.

Voltando um pouco aos doutrinadores alemães, após a sequênciaadmirável de autores como Bülow, Wach e Klein a primeira brecha, etalvez definitiva, que se abriu à teoria da relação jurídica processual, foirealizada por James Goldschmidt, que, em sua obra Der Prozess alsRechtslage Berlin, 1925, - “O Processo como situação jurídica”,construiu a natureza jurídica do processo de uma nova perspectiva: Oprocesso como conjunto de situações processuais pelas quaisatravessam as partes até chegar a uma sentença definitiva. Fundou,por assim dizer, - A teoria da situação jurídica.

Numa primeira parte de sua obra, realiza Goldschmidt uma detidae minuciosa crítica à tese que concebe o processo como uma relaçãojurídica processual, realizando-a em uma tríplice vertente: Atacando ospressupostos da relação jurídica, negando o conteúdo da mesma (a exis-tência de direitos e obrigações processuais) e reputando, definitivamente,como estática ou metafísica a então doutrina imperante. Diz Goldschmidtque os pressupostos processuais não condicionam o nascimento darelação jurídica processual, mas são pressupostos da sentença.

Em seguida volta a sua atenção para o conteúdo da relaçãojurídico-processual. Examina em primeiro lugar a obrigação do Juiz deconhecer a demanda e chega à conclusão de que nem no DireitoRomano, nem no Moderno, pode-se afirmar que tal obrigação derive ouse corresponda com uma pretensão do autor, com a que formaria arelação processual, mas que, ao contrário, provém da “obrigação estatalde administrar a justiça”.

Depois revisa todas e cada uma das obrigações processuais (decontestar a ação, provas etc.) e põe em evidência que estas obrigaçõesna realidade não o são, já que as partes a elas se submetem para

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evitar um efeito desfavorável. Mais que obrigações, o que existem noprocesso são “ônus”, mediante cuja realização se evitam prejuízos auma sentença desfavorável.

- Concepção empírico-dinâmica do processo: EntendeGoldschmidt que a função do processo constitui-se na obtenção de umasentença com força de coisa julgada, concebida esta como “validadejudicial de uma pretensão, juridicamente fundada ou infundada”.

Os sujeitos processuais, presididos por esse objetivo, se encontramem uma situação essencialmente dinâmica. Atuam com o esforço deobter uma sentença de determinado conteúdo que, mediante sua forçade coisa julgada, resolva o conflito de maneira favorável às suasrespectivas aspirações dentro do processo. Todos os atos processuaistêm como objetivo alcançar uma sentença favorável, conforme aspretensões de cada uma das partes.

As normas jurídicas não podem, portanto, continuar sendoconcebidas como meros imperativos para os sujeitos processuais, masdevem ser também consideradas como “medidas jurídicas para aatividade sentenciadora do Juiz”. Dito em outras palavras: “Medidas doJuiz que têm o caráter de promessas ou ameaças de uma condutadeterminada do Juiz e em última análise de uma sentença dedeterminado conteúdo”.

O estado de expectativa de uma sentença favorável ou de umaperspectiva de uma sentença desfavorável em que se encontram aspartes, que os induz a agir dentro do processo e que origina, emdefinitivo, os laços, liames ou vínculos entre os sujeitos processuais.

Para gerar esse estado de expectativa de uma sentença favorável,deve geralmente a parte interessada realizar com êxito um ato processual.Ao contrário, as perspectivas de uma sentença desfavorável dependemsempre da omissão de um ato processual da parte interessada.

Os atos processuais já não são concebidos como a expressão doexercício de um direito ou obrigação processual. As partes não ostentamdireito, mas “chances”, ou seja, “possibilidades” ou “ocasiões e oportuni-dades” processuais, com cujo aproveitamento, mediante a realização doato processual correspondente, obtém uma vantagem processual.

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Tampouco às partes incumbem obrigações, mas “ônus pro-cessuais”, entendidos como que cada ato processual deve realizá-lo aparte interessada, a fim de que possa prevenir uma desvantagemprocessual, em última análise, uma sentença desfavorável.

Cada ato processual é realizado como expressão de uma “chance”ou de uma “carga processual”, e cria uma “situação processual”, da qualcada sujeito processual considera e examina as suas perspectivas sobrea sentença desejada. Por processo deve-se entender, portanto, o conjuntodestas situações processuais, vistas do prisma da posterior sentençado força de coisa julgada.

No presente momento pode-se afirmar que a doutrina contem-porânea, em linhas gerais, gira em torno das duas grandes escolasque criaram Bülow e Goldschmidt, encontrando-se, entretanto, em umae outra partidários intransigentes. (Bülow - SchönckeNiese; Goldschmidt- Eberhard Schmidt).

Finalmente, para resumir pode-se dizer que o avanço científicoprocessual deve-se em primeiro lugar pela doutrina alemã, na chamada“Idade de Ouro”, cujos maiores expoentes são Windscheid e Müther,seguidos por Wach e Klein, e mais tarde por Goldschmidt, e depoispela escola Italiana, iniciada por Chiovenda, que aproveitou e seguiu osestudos da doutrina alemã para dar-lhe continuidade, formando vasta eelitisada descendência, mas principalmente pelos seus discípulosCalamandrei, Redenti e Liebman, e mais tarde Carnelutti.

Marcelo Batlouni Mendroni,

promotor de Justiça do Estado de São Paulo,doutor em Direito Processual pela

Universidad Complutense de Madrid

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FONTES:

1- James Goldschmidt. “Der Prozess als Rechtslage”. Scientia Verlag Aalen,1986. Original, Berlin-1925

2- José Vicente Gimeno Sendra. “Fundamentos del Derecho Procesal”. Ed. CivitasS.A., 1981

3- Manuel Gordillo. “Concepto del Derecho Procesal”. Lecciones de Catedra,Salamanca, 1963

4- Niceto Alcalá-Zamora y Castillo. “Estudios de Teoría General e Historia delProceso. Universidad Nacional Autónoma de México. México, 1992

5- Pedro Aragoneses Alonso. “Proceso y Derecho Procesal”. Editoriales deDerecho Reunidas, Madrid, 1997

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AS DISPOSIÇÕES FINAISAS DISPOSIÇÕES FINAISAS DISPOSIÇÕES FINAISAS DISPOSIÇÕES FINAISAS DISPOSIÇÕES FINAISE TRANSITÓRIAS DO NOVOE TRANSITÓRIAS DO NOVOE TRANSITÓRIAS DO NOVOE TRANSITÓRIAS DO NOVOE TRANSITÓRIAS DO NOVO

CÓDIGO CIVILCÓDIGO CIVILCÓDIGO CIVILCÓDIGO CIVILCÓDIGO CIVIL

JOSÉ RAIMUNDO GOMES DA CRUZ,PROFESSOR

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AS DISPOSIÇÕES FINAIS E

TRANSITÓRIAS DO NOVO CÓDIGO CIVIL

(LEI N.º 10.406 DE 10/1/02)

José Raimundo Gomes da Cruz

SUMÁRIO: 1. Introdução - 2. Os prazos reduzidos pelo novoCódigo (artigos 2.028, 2.029 e 2.030) - 3. Prazo das adapta-ções das entidades e empresários (art. 2.031) - 4. Regimejurídico das fundações (art. 2.032) - 5. Alterações dos atosconstitutivos das pessoa jurídicas de direito privado, suadissolução e liquidação (artigos 2.033 e 2.034) - 6. Validade eefeitos dos atos jurídicos constituídos sob a legislação revoga-da (art. 2.035) - 7. A matéria de locação de imóveis urbanos(art. 2.036) - 8. As normas aplicáveis aos empresários e socie-dades empresárias (art. 2.037) - 9. A extinção da enfiteuse(art. 2.038) - 10. O regime de bens nos casamentos celebradossob o Código de 1916 (art. 2.039) - 11. Cancelamento dahipoteca legal dos bens do tutor ou curador (art. 2.040) - 12.Aplicação das novas regras sobre a ordem de vocação here-ditária (art. 2.041) - 13. A cláusula de inalienabilidade e suarestrição (art. 2.042) - 14. Normas processuais e outras queconviviam com normas codificadas (art. 2.043) - 15. Data devigência do novo Código Civil (art. 2.044) - 16. Leis expressa-mente revogadas (art. 2.045) -17. Referências legais às leisexpressamente revogadas (artigo 2.046) - Bibliografia.

1. Cada especialista concentrará sua atenção em algum aspectodo novo Código Civil, que entrará em vigor em 11/1/03. Claro que oscivilistas terão trabalho dobrado, por ser o diploma da sua disciplina.

Contudo, em suas recentes memórias, CAIO MÁRIO DA SILVAPEREIRA sugere algumas reflexões. Ele relembra que participou da

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Comissão, que elaborou o Projeto de Código Civil de 1965, presididapor OROZIMBO NONATO, tendo-se incumbido, o próprio CAIO MÁRIO,do Anteprojeto do Código das Obrigações, ambos retirados doCongresso Nacional pelo Governo (CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA.Algumas lembranças. Rio de Janeiro : Forense, 2001. pp. 86, 122/125).Ele lamenta que se tenha perdido então “a oportunidade de votar areforma do ‘Direito Privado Brasileiro’. E como demonstração daoportunidade prática e do real valor desses Projetos, é de se atentarque o ‘Anteprojeto de Código Civil’, elaborado por numerosa equipe debons juristas, aproveitou a quase totalidade da preceituação de seusantecessores de 1965” (ob. cit., p. 125).

Em 1999, discursando em seu nome e dos outros quatro juristasbrasileiros agraciados com o título de Doutor Honoris Causa naUniversidade de Coimbra, CAIO MÁRIO afirmou: “Numa rápida reflexãosobre o que representará o Direito no novo século, procurei deixar aminha mensagem ressalvando, especialmente, que as codificaçõescumpriram sua missão histórica de assegurar a manutenção dospoderes adquiridos e que não mais se pode reconhecer ao Código Civilo valor de ‘Direito Comum’. Naquela oportunidade, destaquei aimportância das normas constitucionais, notadamente, dos DireitosFundamentais, ao ocupar o lugar privilegiado e tradicionalmentereconhecido aos ‘Princípios Gerais de Direito’. Alertei, sobretudo, paraa proposta consolidada na Doutrina brasileira de um ‘Direito CivilConstitucional’, reconhecido definitivamente nos meios acadêmicos epelos Tribunais. Convoquei, finalmente, os operadores de Direito paraque assumam suas principais responsabilidades com base nos ditamesconstitucionais.” (ob. cit., pp. 88/89).

O processualista ALCIDES DE MENDONÇA LIMA observou,referindo-se a CLÓVIS BEVILÁQUA, autor do projeto do Código Civil de1916: “o mestre civilista e, até, de Filosofia do Direito teve necessidade,na elaboração do C. C., de inserir, no diploma, várias normas processuais,embora de modo anômalo aparentemente, dadas as circunstâncias daépoca em que aquele diploma foi elaborado” (“Clóvis Beviláqua, oprocessualista”. Ajuris. v. 28. p. 163). Sobrevindo a unidade da legislaçãoprocessual, com a Constituição de 1934 e o CPC de 1939, deixou de

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existir o risco temido por CLÓVIS, da precária tutela dos direitos,tornando-se dispensável forçar a mão e até cometer inconstitucionali-dades, para evitar a atuação criticável dos legisladores estaduais. LIMAconclui que há certas normas situadas “nos limites do Direito Material edo Direito Processual, naquela fase de ‘penumbra’, sem que se possaprecisar, com exatidão, a topologia inteiramente correta. Hoje, com oadiantamento do Direito Processual Civil... já é mais difícil a confusãonos diplomas de Direito Positivo. Possivelmente, no novo C. C., cujaelaboração já se anuncia, inclusive com Projeto submetido ao Con-gresso Nacional, a nomenclatura processual desaparecerá por inútil e,até, errada, quando for evidente a natureza da regra. Em outros casos,a dúvida persistirá, de que é exemplo mais notável a matéria de prova:de Direito Material ou de Direito Processual, quanto aos meios em simesmos e, não, como óbvio, quanto à sua produção em juízo.” (ob.cit., pp. 171/172, com grifo nosso)

Da ênfase ao seu aspecto processual (ANTONIO CARLOS DEARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI GRINOVER e CÃNDIDO RANGELDINAMARCO. Teoria geral do processo. 16. ed. São Paulo : Malheiros,2000. p. 347; ARRUDA ALVIM e TERESA ARRUDA ALVIM. Manual dedireito processual civil. 4. ed. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1994.v. 2. p. 231) à admissão fundamentada como instituto bifronte dochamado direito processual material (CÂNDIDO RANGELDINAMARCO. Instituições de direito processual civil. São Paulo :Malheiros, 2001. v. 1, p. 44), passando pela aceitação indiferente dasnormas dos dois códigos (MOACYR AMARAL SANTOS. Primeiras linhasde direito processual civil. 18. ed. São Paulo : Saraiva, 1997. v. 2. p.332), fica muita matéria para a análise do estudioso do DireitoProcessual Civil no tocante aos artigos 212 a 232 do novo Código Civil(Parte Geral, Livro III, Título V, Da Prova).

A prioridade do Livro Complementar, artigos 2.028 a 2.046, donovo Código Civil, dedicado às disposições finais e transitórias deste,decorre das regras de natureza intertemporal, principalmente. Tivemosoportunidade de estudar tal tema em duas oportunidades (JOSÉRAIMUNDO GOMES DA CRUZ. “Aspectos intertemporais dos recursosextraordinário e especial”. Estudos sobre o processo e a Constituição

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de 1988. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1993. pp. 203/222; Idem.“O direito adquirido de todos nós”. Plural - Boletim Informativo do CEAF- Escola Superior do Ministério Público. v. 20. pp. 11/13; Revista doInstituto dos Advogados de São Paulo. v. 4. pp. 53/57).

A chamada vacatio legis (intervalo de tempo entre a publicação danova lei e sua vigência) de um ano ou outro período superior ao do artigo1º da chamada Lei de Introdução ao Código Civil, na verdade, Lei geralsobre a aplicação das normas jurídicas (HAROLDO VALADÃO. “Lei geralde aplicação das normas jurídicas”. Revista Forense. v. 208. p. 12) paranovos códigos é adotada pelo legislador, menos pela segurança jurídicado que pela maior divulgação e ponderação sobre o novo diploma legal. Apresunção do conhecimento da lei já decorre da segurança jurídica, queadmite até a vigência imediata. O tempo de reflexão ou ponderaçãoconcorre para mais adequada observância dos novos preceitos legais.

Como afirmamos no início, cada especialista contemplará a partede sua preferência. Mas a todos interessarão as disposições finais etransitórias do novo Código, especialmente as de natureza intertemporal.

2. O artigo 2.028 do novo Código Civil dispõe: “Serão os da leianterior os prazos, quando reduzidos por este Código, e se, na data desua entrada em vigor, já houver transcorrido mais da metade do tempoestabelecido na lei revogada.”

A exclusiva preocupação com a segurança jurídica poderia nãolevar em consideração a maior dificuldade do interessado em defenderalgum direito com prazo diminuído. O legislador valeu-se da experiênciapara evitar prolongadas polêmicas doutrinárias e, principalmente, diver-gências jurisprudenciais. Nenhum exemplo parece superar aquele doartigo 177 do CC de 1916, com a redação trazida pela Lei n. 2.437 de 7/3/55: “As ações pessoais prescrevem ordinariamente em vinte anos, asreais em dez entre presentes e, entre ausentes, em quinze, contados dadata em que poderiam ter sido propostas.” A mencionada polêmica ficailustrada pela Súmula n. 445 do STF: “A Lei n. 2.437, de 7.3.55, que reduzprazo prescricional, é aplicável às prescrições em curso na data de suavigência (1.1.56), salvo quanto aos processos então pendentes.”

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A tal dispositivo corresponde agora o artigo 205 do novo CódigoCivil: “A prescrição ocorre em dez anos, quando a lei não lhe haja fixadoprazo menor.” Limitando a nossa análise ao exclusivo problema daredução do prazo, cabe acompanhar a argumentação de LENINENEQUETE: “No que respeita à Lei n. 2.437, de 7.3.55, mandada vigorara partir de 1º de janeiro do ano seguinte, assentou desde logo a maioriados julgados a orientação que culminaria na Súmula n. 445, do S. T. F.,a saber, que ela se aplicava às prescrições em curso na data de suavigência, salvo (art. 2º) quanto aos processos então pendentes: nãofosse esta a intenção do legislador – argumentava-se – nenhum sentidoteria o acréscimo de dez meses aos prazos prescricionais, destinadosprecisamente a alertar os credores ou proprietários e ensejar-lhes,nesse interregno, a interrupção da prescrição. Inobstante, não faltaramdecisões que – interpretando a matéria diferentemente – penderam paraa conclusão de que, ao entrar em vigor a Lei n. 2.437, duas situaçõesdeveriam ser consideradas, a exemplo do que ocorrera com os prazosabreviados pelo C. C.: a) a de faltar, então, para se cumprir a usucapião,prazo menor do que o previsto na lei nova, caso em que a aquisição sehaveria de cumprir de acordo com a lei anterior; e b) a de que o tempoque faltava para ser consumada a prescrição, pela lei anterior, excediaao fixado pela nova, quando então prevaleceria o desta última,mandando-se contar (erradamente, a nosso ver) o novo prazo do diaem que entrara em vigor.” (Da prescrição aquisitiva [usucapião]). 3. ed.Porto Alegre : Ajuris, 1981. pp. 200/201)

Fica clara a aplicação da lei anterior, por força do artigo 2.028 donovo Código Civil, a esses e a quaisquer prazos reduzidos por este, sena data da vigência deste já houver passado mais da metade do prazoprevisto na legislação anterior.

O artigo 2.029 do novo Código Civil determina: “Até dois anosapós a entrada em vigor deste Código, os prazos estabelecidos noparágrafo único do art. 1.238 e no parágrafo único do art. 1.242 serãoacrescidos de dois anos, qualquer que seja o tempo transcorrido navigência do anterior, Lei n. 3.071, de 1º de janeiro de 1916.”

É bom lembrar que esta lei corresponde ao Código Civil de 1916,que o legislador bem poderia mencionar, pois se tornou familiar ao longo

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de 85 anos, entre os doutrinadores e os operadores do Direito. O artigo1.238 do novo Código, em seu parágrafo único, afirma: “O prazoestabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houverestabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obrasou serviços de caráter produtivo.” Cabe lembrar que o prazo para aaquisição da propriedade imóvel previsto no caput do mesmo artigopassou a ser de quinze anos.

No Código de 1916, a mesma matéria, na seção do usucapião,acha-se regulada no artigo 550: “Aquele que, por vinte anos seminterrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquirir-lhe-áo domínio, independentemente de título e boa-fé que, em tal caso, sepresume, podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença,a qual lhe servirá de título para a transcrição no registro de imóveis.”Trata-se, aí, do mesmo tipo de usucapião extraordinário, previsto nocaput do artigo 1.238, só que agora com o prazo diminuído de quinzeanos. A regra especial do acréscimo de dois anos só se refere à hipótesedo usucapião residencial ou em que o possuidor tiver introduzidoconstruções ou atividades de natureza produtiva. Em tal caso, como jávimos, o prazo é de apenas dez anos. Mas, até a data de 11.1.05, quandose completam dois anos de vigência do novo Código Civil, esses dezanos sofrerão o acréscimo de dois anos, qualquer que seja o períododecorrido sob a vigência do Código de 1.916.

Quanto ao artigo 1.242 do novo Código, em seu parágrafo únicose prevê: “Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvelhouver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constantedo respectivo cartório, cancelada, posteriormente, desde que ospossuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizadoinvestimentos de interesse social e econômico.” Com razão,THEOTONIO NEGRÃO observa que deve ser “cancelado” e não“cancelada” (Código Civil e legislação civil em vigor. 21. ed. São Paulo:Saraiva, 2002. nota n. 2 ao artigo 1.242 do novo CC).

O artigo 551 do Código Civil de 1916 dispõe: “Adquire também odomínio do imóvel aquele que, por dez anos entre presentes, ou quinze

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entre ausentes, o possuir como seu, continua e incontestadamente,com justo título e boa fé.” Trata-se, aí, do chamado “usucapião ordinário”(R. LIMONGI FRANÇA. Instituições de direito civil. São Paulo: Saraiva,1988. p. 444; NEQUETE, ob. cit., n. 5, especialmente p. 26).

Por força do artigo 2.029 do novo Código Civil, também se fará oacréscimo de dois anos para a modalidade ordinária de usucapião, comovimos que se fará para a modalidade extraordinária: até 11/1/05, qualquerque seja o tempo decorrido sob o comando do Código de 1916.

O artigo 2.030 do novo Código Civil determina: “O acréscimo deque trata o artigo antecedente, será feito nos casos a que se refere o §4º do artigo 1.228.” Este dispositivo deve ser logo examinado: “Oproprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicadoconsistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por maisde cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nelahouverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviçosconsiderados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.”

Bastam algumas informações sobre o artigo 1.228 do novo Códi-go Civil: o primeiro do título da propriedade, em cujo caput se acham asfaculdades do proprietário; os §§ 1º a 3º se referem a restrições aodireito de propriedade, o último deles relativo à desapropriação pornecessidade ou utilidade pública ou interesse social, além da requisiçãoem face de perigo público iminente. O § 4º transcrito guarda relaçãocom o anterior – o proprietário “também pode ser privado da coisa... –seguindo-se novo parágrafo, com ele relacionado: “§ 5º No caso doparágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida aoproprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registrodo imóvel em nome dos possuidores.” Para os limites deste comentário,basta, agora, relembrar que os cinco anos se sujeitam, até 11/1/05, aoacréscimo de dois anos, qualquer que seja o tempo transcorrido sob avigência do Código Civil de 1916.

3. O artigo 2.031 do novo Código estabelece: “As associações,sociedades e fundações, constituídas na forma das leis anteriores, terão

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o prazo de um ano para se adaptarem às disposições deste Código, apartir de sua vigência; igual prazo é concedido aos empresários.”

As pessoas jurídicas de direito privado aí mencionadas (artigos44/69 e 981/1.141 do novo Código Civil) e os empresários (artigos966/980 do novo Código Civil), até 11/1/04, um ano após o início davigência deste, poderão fazer as adaptações da sua organização aonovo modelo legal.

4. O artigo 2.032 do novo Código tem o seguinte teor: “As funda-ções, instituídas segundo a legislação anterior, inclusive as de finsdiversos dos previstos no parágrafo único do art. 62, subordinam-se,quanto ao seu funcionamento, ao disposto neste Código.”

O artigo 62, no Título II – das pessoas jurídicas – Capítulo III –das fundações – dispõe: “Para criar uma fundação, o seu instituidorfará, por escritura pública ou testamento, dotação especial de benslivres, especificando o fim a que se destina, e declarando, se quiser, amaneira de administrá-la. Parágrafo único. A fundação somente poderáconstituir-se para fins religiosos, morais, culturais ou de assistência.”

A norma do artigo 2.032, que não é transitória, dificilmente seaplicará, na parte relativa aos fins diversos dos previstos no parágrafoúnico do artigo 62. De qualquer forma, quanto ao seu funcionamento,qualquer fundação observará o disposto no novo Código.

5. O artigo 2.033 do novo Código afasta dúvidas: “Salvo o dispostoem lei especial, as modificações dos atos constitutivos das pessoasjurídicas referidas no art. 44, bem como a sua transformação,incorporação, cisão ou fusão, regem-se desde logo por este Código.”

O artigo 44, já mencionado no tópico n. 3, enumera as pessoasjurídicas de direito privado: associações, sociedades e fundações. Nãohavendo dispositivo de lei especial, qualquer alteração do atoconstitutivo de tais entidades, desde logo, observará o novo Código. Apartir de 11/1/03, obviamente.

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O artigo 2.034 se refere a outra hipótese: “A dissolução e aliquidação das pessoas jurídicas referidas no artigo antecedente, quandoiniciadas antes da vigência deste Código, obedecerão ao disposto nasleis anteriores.”

O legislador preferiu, quanto à dissolução e à liquidação daspessoas jurídicas de direito privado, critério diferente: quando iniciadasantes de 11/1/03, observarão o disposto na legislação anterior.

6. O artigo 2.035 exige maior atenção: “A validade dos negóciose demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor desteCódigo, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045,mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aospreceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partesdeterminada forma de execução. Parágrafo único. Nenhuma convençãoprevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como osestabelecidos por este Código para assegurar a função social dapropriedade e dos contratos.”

Como veremos, o artigo 2.045 se refere expressamente ao CódigoCivil de 1916 e à parte primeira do Código Comercial de 1850. O artigoora examinado preserva a aplicação das suas normas aos negócios edemais atos jurídicos concluídos antes de 11/1/03.

Os efeitos de tais negócios ou outros atos, porém, a partir destadata, ficam sujeitos aos dispositivos do novo Código, exceto existindoconvenção das partes quanto ao seu cumprimento.

A lei, na verdade, refere-se à “forma de execução”. A propósitodesta palavra, tivemos a oportunidade de escrever o seguinte: “Se aexecução forçada envolve o extremo da invasão do patrimônio doexecutado, para satisfação do credor, com ela não se confundem oscasos, felizmente bem freqüentes, em que o devedor cumpre esponta-neamente a prestação devida.” (JOSÉ RAIMUNDO GOMES DA CRUZ.“O processo de execução e a reforma do Código de Processo Civil”.Revista de Processo. v. 98. p. 96)

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O parágrafo único esclarece que as normas cogentes ou queconstituam preceitos de ordem pública impedirão ajustes que derroguemsuas disposições, em particular quando se deixe de observar a funçãosocial da propriedade e dos contratos.

7. O artigo 2.036 estabelece: “A locação do prédio urbano, queesteja sujeita à lei especial, por esta continua a ser regida.”

Não se ignora o caráter especial das locações de imóveis urbanos.Tal especialidade se reflete nos procedimentos que lhe são peculiares,atualmente regulados pela mesma Lei n. 8.245, de 18/10/91. Tambémnão se ignora que, entre os motivos da criação de procedimentos especiais,destaca-se a maior aderência ao direito material. Em sua crítica severa,ALFREDO DE ARAÚJO LOPES DA COSTA, escrevendo sobre o CPCde 1939, atribuía a opção do legislador por vários procedimentos especiaisao fato de ser regulada “matéria de direito material e de processo, comosucede nas leis do inquilinato” (Direito processual civil brasileiro. 2. ed.Rio de Janeiro: Forense, 1959. v. 4. pp. 347/348).

No entanto, em estudo dedicado a tais procedimentos, sob alegislação mais recente, consideramos que a “concentração dosprocedimentos especiais relativos à locação de imóveis urbanos tambémpossui nesse aspecto um elemento de especialidade, a ser objeto demais detida análise para possível aproveitamento em outros setores,como fator de efetividade do processo”. (JOSÉ RAIMUNDO GOMESDA CRUZ. “Procedimentos especiais em matéria de locação de imóveisurbanos”. Revista de Processo. v. 91. p. 81).

O novo Código, de modo inequívoco, manteve a locação deimóveis urbanos sob a mencionada legislação especial.

8. O artigo 2.037 apresenta o seguinte texto: “Salvo disposição emcontrário, aplicam-se aos empresários e sociedades empresárias as dis-posições de lei não revogadas por este Código, referentes a comerciantes,ou a sociedades comerciais, bem como a atividades mercantis.”

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O legislador mostra-se inseguro. Se ele se limitou, como vere-mos, a revogar determinada parte do velho Código Comercial (artigo2.045), deduz-se que ele sequer cogitou de revogar outras disposiçõesde tal diploma legal, provavelmente em grande parte já alteradas porlegislação superveniente. Ninguém ignora inúmeras frases, quasesempre irônicas, contra a vasta legislação acumulada. O problema nãoé só nosso, nem recente. Caberá ao especialista velar para que, sobredeterminada matéria, a constante aplicação das normas constitucionais(artigo 5º, inciso XXXVI, por exemplo) e as regras estruturais da chamadaLei de Introdução ao Código Civil (artigo 1º, caput e §§ 3º e 4º; artigo 2ºe seus três parágrafos), indiquem as normas vigentes e aplicáveis.Entre as quais, obviamente, as disposições do novo Código Civil.

9. O artigo 2.038 traz norma impeditiva: “Fica proibida aconstituição de enfiteuses e subenfiteuses, subordinando-se as exis-tentes, até sua extinção, às disposições do Código Civil anterior, Lei n.3.071, de 1º de janeiro de 1916, e leis posteriores. § 1º Nos aforamentosa que se refere este artigo, é defeso I – cobrar laudêmio ou prestaçãoanáloga nas transmissões de bem aforado, sobre o valor dasconstruções ou plantações; II – constituir subenfiteuse. § 2º A enfiteusedos terrenos de marinha e acrescidos regula-se por lei especial.”

Enfim, a enfiteuse foi extinta. Seria dar-lhe um enterro de luxolembrar seu inegável prestígio doutrinário, aqui (três verbetes naEnciclopédia Saraiva do Direito, assinados, pela ordem, por CAIOMÁRIO DA SILVA PEREIRA, PINTO FERREIRA e ÁLVARO VILAÇA DEAZEVEDO) e no exterior (dois verbetes de certo vulto na Enciclopediadel Diritto e um no Novissimo Digesto Italiano, por exemplo). Basta adefinição proposta por R. LIMONGI FRANÇA: “enfiteuse, emprazamentoou aforamento (e também prazo ou foro) é o desmembramento dapropriedade do qual resulta o direito real perpétuo, em que o titular(enfiteuta), assumindo o domínio útil da coisa, constituída de terras nãocultivadas ou terrenos por edificar (prazo, bem enfitêutico ou bemforeiro), é assistido pela faculdade de lhe fruir todas as utilidades, semdestruir a substância, mediante a obrigação de pagar ao nu-proprietário(senhorio direto) uma pensão anual invariável” (Instituições, cit., p. 514).

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Entende-se a subsistência das atuais enfiteuses, pois OROZIMBONONATO, ORLANDO GOMES e CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, daComissão Revisora do Anteprojeto de Código Civil de 1965, em seurelatório ao Ministro da Justiça, destacaram que seu trabalho “aboliu oregime dotal, os direitos reais de uso e habitação... e proibiu a constituiçãode novas enfiteuses” (“A reforma do Código Civil”. Revista Forense. v.208. p. 6). Note-se que o mesmo OROZIMBO NONATO, com FILADEL-FO AZEVEDO, SABÓIA DE MEDEIROS, AGRIPINO VEADO EHAHNEMAN GUIMARÃES, “elaborou projeto de lei destinado a fazercessar o instituto da enfiteuse. Projeto que se frustrou e morreu naCâmara dos Deputados” (CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, Algumaslembranças, cit., p. 86). Entrando em pormenores, quanto à reforma de1965, CAIO MÁRIO recorda: “Outra questão polêmica sobressaiu-se: aenfiteuse. A matéria não era nova, pois vinha da elaboração do Códigode 1916 e voltou com toda intensidade. À Comissão pareceu que nãose devesse manter o sistema vigente, por motivos não apenas de ordemeconômica, mas ainda, e principalmente, porque consagrava o resíduoaristocrático e quase feudal. A mim sempre causava desagrado que natransferência de um terreno fosse cobrado laudêmio, não apenas sobreo valor do terreno, que era do ‘senhorio direto’, mas também sobre abenfeitoria trazida ao imóvel pelo ‘enfiteuta’. Eu entendia que na alienaçãointer vivos haveria que se distinguir, e não englobar os valores, fazendoincidir o laudêmio sobre o total. Após várias hipóteses examinadasprevaleceu a minha proposta, e daí nasceu o art. 504 do ‘Projeto deCódigo Civil’, de 1965: ‘Nos aforamentos é defeso: 1 – Cobrar laudêmio,ou prestação análoga, nas transmissões de bem aforado sobre o valordas construções ou plantações; 2 – Constituir subenfiteuse’.” (Algumaslembranças, cit., pp. 122/123, onde ele acrescenta as pressões dosinteressados em manter seus privilégios).

Parece-nos que, como veremos a propósito do artigo 2.045 donovo Código Civil, bastaria o silêncio deste sobre qualquer dos institutosdo antigo, para sua revogação (artigo 2º, § 1º, da chamada Lei deIntrodução ao Código Civil). Por outro lado, por força da garantia aodireito adquirido (Constituição da República, artigo 5º, inciso XXXVI e 6ºda chamada Lei de Introdução ao Código Civil), as enfiteuses por ventura

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existentes seriam preservadas (CRUZ, Aspectos, cit., pp. 208/216;Idem, O direito, cit., n. 1 e ss.).

Laudêmio, “expressão do direito intermédio, corresponde... a umacompensação que se paga ao senhorio, por não ter exercitado o direitode opção. Só será devido, portanto, nos casos de venda... e de daçãoem pagamento, como expressamente dispõe o questionado dispositivolegal” (WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO. Curso de direito civil -Direito das coisas. 4. ed. São Paulo : Saraiva, 1961. p. 257, onde ele serefere ao artigo 686 do Código Civil de 1916; à p. 255, ele mencionara oartigo 683, que atribui ao senhorio direto a preferência para adquirir obem enfitêutico, na alienação a título oneroso). A norma proposta em1965, como vimos, prevaleceu, afastando-se a inclusão ao laudêmio ouprestação análoga do valor relativo às edificações ou cultivo do terreno.

Subenfiteuse não passa da enfiteuse estabelecida pelo enfiteuta:“A relação entre o enfiteuta e o senhorio direto se mantém intacta, comtodas as suas conseqüências, como se não houvesse a subenfiteuse:recebe a pensão anual, tem direito ao laudêmio etc. Já o enfiteuta emrelação ao subenfiteuta exerce direitos como se senhorio direto fora.”(MARCO AURELIO S. VIANA. Teoria e prática do direito das coisas.São Paulo : Saraiva, 1983. p. 175).

Além da proibição de novas enfiteuses e subenfiteuses (caput doartigo 2.038 do novo Código Civil), quanto às enfiteuses já existentes,que foram mantidas, além da referida restrição ao valor do laudêmio,também se proíbe constituir subenfiteuse (§ 1º).

A enfiteuse dos terrenos de marinha sujeita-se a legislaçãoespecial (§ 2º).

10. O artigo 2.039 do novo Código Civil determina: “O regime debens nos casamentos celebrados na vigência do Código Civil anterior,Lei n. 3.071, de 1º de janeiro de 1916, é o por ele estabelecido.”

Na estrutura do novo diploma legal, após os três livros em que sedivide a parte geral (respectivamente das pessoas, dos bens e dosfatos jurídicos), segue-se a parte especial, com cinco livros (do direito

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das obrigações, do direito de empresa, do direito das coisas, do direitode família e do direito das sucessões), além do Livro Complementar,objeto deste trabalho. Assim, o direito de família tornou-se vizinho dodireito das sucessões, o que não ocorria no Código de 1916. No tocanteaos regimes de bens, o novo Código Civil silencia sobre o regime dotal(artigos 278/311 do Código de 1916). Como vimos, isso implica suarevogação (artigos 2.045 do novo Código Civil, em combinação com oartigo 2º, § 1º, da chamada Lei de Introdução ao Código Civil).

Sobre o regime dotal, já vimos a proposta de sua abolição peloanteprojeto de 1965.

O anacronismo do dote, instituído em contrato antenupcial, tor-na-se evidente na sua definição como “porção de bens incomunicáveis,que a mulher, ou alguém por ela, transfere ao marido, para... sustentaros ônus do matrimônio, sob a cláusula da restituição de tais bens,dissolvida a sociedade conjugal” (FRANÇA, Instituições, cit., p. 304).Este autor, após breve análise da legislação, observou: “Esta espécie deregime matrimonial de bens está, entre nós, completamente em desuso.Consultamos a respeito magistrados e advogados militantes, e da gene-ralidade ouvimos o depoimento de que, durante toda a carreira, jamais sedefrontaram com um só caso de dote constituído. Daí a oportunaorientação do anteprojeto Orlando Gomes, de 1963, que o suprimiu, arts.163 a 183, seguida pelo Projeto da Comissão Revisora, de 1965, arts.154 a 174. Igual orientação seguiu o Projeto n. 634-B, de 1975, daComissão Miguel Reale. (V. arts. 1.667-1.751, cujo anteprojeto é da autoriade Clóvis do Couto e Silva.)” (FRANÇA, Instituições, cit., p. 306).

Aspecto digno de registro diz respeito à legitimidade extraordináriaexclusiva. Bastaria destacar que o artigo 6º do Código de ProcessoCivil deixa bem claro: “Ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direitoalheio, salvo quando autorizado por lei.” A legitimidade extraordinária,portanto, já constitui exceção. Tratando-se da exclusiva, em que,excepcionalmente, o legitimado ordinário deixa de contar legitimidade,que o legislador concede apenas a outrem, os exemplos se mostramraríssimos. E a doutrina se vale do artigo 289 do Código Civil de 1916,que, no capítulo do regime dotal, dispõe: “Na vigência da sociedade

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conjugal, é direito do marido: I – Administrar os bens dotais. II – Perceberos seus frutos. III – Usar das ações judiciais a que derem lugar.” Mesmonão tratando de casos de legitimidade extraordinária exclusiva, DINA-MARCO aproveita para criticar: “Não vale mais a pena insistir no clássico,surrado e arcaico exemplo da legitimidade do marido para as causas re-ferentes ao dote, instituto em desuso (CC, art. 289, inc. III)” (Instituições,v. 2., pp. 309/310). A propósito do artigo 289, inciso III, do Código Civil de1916 e da caracterização da “legitimação extraordinária autônoma eexclusiva”, existe indispensável contribuição da nossa doutrina (JOSÉCARLOS BARBOSA MOREIRA. “Apontamentos para um estudo siste-mático da legitimação extraordinária”. Direito processual civil (ensaios epareceres). Rio de Janeiro : Borsoi, 1971. pp. 60, 61 e passim).

De qualquer forma, o regime de bens dos casamentos celebradossob o comando do Código Civil de 1916 é o estabelecido por este.

11. O artigo 2.040 do novo Código Civil prevê: “A hipoteca legaldos bens do tutor ou curador, inscrita em conformidade com o inciso IVdo art. 827 do Código Civil anterior, Lei n. 3.071, de 1º de janeiro de1916, poderá ser cancelada, obedecido o disposto no parágrafo únicodo artigo 1.745 deste Código.”

De início, deve-se registrar que o Anteprojeto de 1965 abolia ahipoteca legal (NONATO, GOMES E PEREIRA, A reforma, cit., p. 6). Ahipoteca, prevista como direito real de garantia, não limitada a suaincidência sobre imóveis (artigo 810 do Código Civil de 1916), apresenta,ao lado das hipóteses convencionais, a modalidade legal e a hipotecajudiciária (artigos 827 a 830 do Código Civil de 1916, a última no seuartigo 824 e no artigo 466 do CPC). De passagem, deve ser lembrada“a natureza jurídico-processual da hipoteca. Ela visa exclusivamente aassegurar a futura penhora do bem, mediante o predicado da seqüela,de modo que eventual alienação não prejudique o credor. Isso acaracteriza como autêntico reforço, quanto ao bem hipotecado, daresponsabilidade que incide de modo geral sobre o patrimônio do

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obrigado. Nada mais natural, portanto, que o instituto da hipoteca sejainserido no capítulo da responsabilidade executiva, e portanto, na órbitado direito processual” (CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO. Execuçãocivil. 7 ed. São Paulo : Malheiros, 2000. p. 251).

Pois o novo Código Civil continua regulando o instituto da hipoteca,incluindo-se a hipoteca legal, no Livro III, do Direito das Coisas, Título X,do penhor, da anticrese e da hipoteca, Capítulo III, da hipoteca, Seção II,da hipoteca legal, artigos 1.489 a 1.491.

A diferença está no artigo 1.489 e seus cinco incisos, que nãoincluem, entre outras, a previsão conferida pelo artigo 827, inciso IV, doCódigo Civil de 1916 às pessoas que não tenham a administração deseus bens, sobre os imóveis de seus tutores ou curadores.

Durante vários anos, desempenhamos as funções de Promotorde Justiça, nos Estados de Minas Gerais e São Paulo, convencendo-nosdo desuso do instituto da hipoteca legal. Em geral, mesmo os parentesdo incapaz não se dispunham a oferecer bens à hipoteca. Os tutores oucuradores sem parentesco com o incapaz só por muito favor aceitavamo encargo, ficando o juiz de direito constrangido para impor-lhes a garantialegal. A propósito do procedimento especial de jurisdição voluntária dosartigos 1.205 e seguintes do Código de Processo Civil, sobre aespecialização da hipoteca legal, ANTÔNIO CLÁUDIO DA COSTAMACHADO anotou: “Observe-se que o instituto da hipoteca legal encontra-se em franco processo de desaparecimento não só porque contémprevisões absurdas (incs. I, II e V) ou inúteis (incs. VI a VIII – o seqüestroé mais eficaz), como também porque o procedimento judicial é complicadoe o registrário custoso” (Código de Processo Civil interpretado. São Paulo: Saraiva, 1993. p. 1.224).

Revogada a exigência da hipoteca legal dos bens do tutor ou cura-dor (artigo 2.045 do novo Código Civil), sobre o tema dispõe o artigo1.745 deste: “Os bens do menor serão entregues ao tutor mediantetermo de especificação deles e seus valores, ainda que os pais o tenhamdispensado. Parágrafo único. Se o patrimônio do menor for de valorconsiderável, poderá o juiz condicionar o exercício da tutela à prestaçãode caução bastante, podendo dispensá-la se o tutor for de reconhecida

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idoneidade.” Tal dispositivo se encontra no Livro IV, do Direito de Família,Título IV, da tutela e da curatela, Capítulo I, da tutela, Seção IV, do exercícioda tutela. O artigo 1.781, do Capítulo II, da curatela, Seção III, do exercícioda curatela, dispõe: “As regras a respeito do exercício da tutela aplicam-se ao da curatela, com a restrição do art. 1.772 e as desta Seção.” Taiscasos se referem às hipóteses de curatela limitada, à do pródigo e aodo cônjuge nomeado curador. Fora daí, aplica-se ao curador do interditoo disposto no parágrafo único do artigo 1.745 do novo Código Civil.

Certo, mesmo, é que não mais se exige a hipoteca legal dos bensdo tutor ou curador em favor dos incapazes, podendo ser canceladasaquelas por ventura existentes, com a ressalva, há pouco mencionada,quanto ao artigo 1.745, parágrafo único, do novo Código Civil.

12. O artigo 2.041 comanda: “As disposições deste Código relati-vas à ordem da vocação hereditária (arts. 1.829 a 1.844) não se aplicamà sucessão aberta antes de sua vigência, prevalecendo o disposto nalei anterior (Lei n. 3.071, de 1º de janeiro de 1916).”

A partir de 11/1/03, os artigos 1.829 a 1.844 do novo Código Civilregerão às sucessões abertas a partir de tal data, quer dizer, assucessões das pessoas cuja morte ocorra a partir de tal data.

Os dispositivos aplicáveis às sucessões de pessoas falecidasaté o dia 10/1/03 são aqueles constantes do Código Civil de 1916, artigos1.603 a 1619.

13. O artigo 2.042 estabelece: “Aplica-se o disposto no ‘caput’ doart. 1.848, quando aberta a sucessão no prazo de um ano após a entradaem vigor deste Código, ainda que o testamento tenha sido feito navigência do anterior, Lei n. 3.071, de 1º de janeiro de 1916; se, no prazo,o testador não aditar o testamento para declarar a justa causa decláusula aposta à legítima, não subsistirá a restrição.”

Teria sido melhor a própria extinção das cláusulas restritivas,especialmente a de inalienabilidade, prevista no artigo 1.723 do Código

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Civil de 1916, a mais grave de todas, ao ponto de abranger as deimpenhorabilidade e de incomunicabilidade. O artigo 1.676 do mesmoCódigo dispõe: “A cláusula de inalienabilidade temporária, ou vitalícia,imposta aos bens pelos testadores ou doadores, não poderá, em casoalgum, salvo os de expropriação por necessidade ou utilidade pública,e de execução por dívidas provenientes de impostos relativos aosrespectivos imóveis, ser invalidada ou dispensada por atos judiciais dequalquer espécie, sob pena de nulidade.”

Escrevendo sobre o tema há três décadas, observávamos: “Osdoutrinadores, em sua maioria, mostram-se contrários a tal vínculo, ou,pelo menos, ao rigor de que ele se cerca. Na verdade, a inalienabilidadedificulta a livre circulação dos bens, com resultados econômicosobviamente desfavoráveis.” (JOSÉ RAIMUNDO GOMES DA CRUZ.“Anotações sobre a sub-rogação de vínculos”. Revista dos Tribunais. v.434. p. 33; Idem. “Curadoria de resíduos”. Justitia. v. 72. pp. 53 e ss.)Lembrávamos a opinião de OROZIMBO NONATO: “A ilicitude da cláusulade alienar é, como disse Ricci, de todos acolhida. Alguns são radicais eextremosos: desadmitem-na ainda quando temporária e relativa. Outrosacolhem certos temperamentos, como se viu em Ferrara. Mas, de modogeral, todos a adversam, citando José Ulpiano, a esse propósito, sobreFerrara e Ricci, Troplong, Demolombe, Laurent, Baudry-Lacantinerie eColin, Huc, Pacifici-Mazzoni, Zachariae-Crome, Vitali, Planiol” (Estudossobre a sucessão testamentária. Rio de Janeiro : Forense, 1957. v. 2. p.318). E salientávamos que o rigor da norma do artigo 1.676 citado subsiste(neste sentido, SILVIO RODRIGUES. Direito Civil. São Paulo : Saraiva,1967. v. 7. p. 152; PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado. Riode Janeiro : Borsoi, 1968. v. 56. p. 307) “até que por ‘novatio legis’ seamenize seu tratamento” (CRUZ, Anotações, cit., p. 33). A propósito, jácitávamos o Projeto de 1965, de NONATO, GOMES e PEREIRA. Real-mente, o artigo 707 previa que “a legítima não comportará cláusula deinalienabilidade” (NONATO, GOMES E PEREIRA, A reforma, cit., p. 10).

Opinamos muitas vezes como Curador de Resíduos, órgão doMinistério Público incumbido de velar pelo cumprimento das declaraçõesde última vontade do testador ou, de modo mais geral, dos autores deliberalidades. Discordamos da possibilidade de imposição do vínculo

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de inalienabilidade nas transferências a título oneroso (admite-a ERNA-NE FIDÉLIS DOS SANTOS. Manual de direito processual civil. 4. ed.São Paulo : Saraiva, 1966. v. 2. p. 133). Entendemos que a “prática temdemonstrado que, muitas vezes, longe de beneficiar ao sucessor oudonatário, protegendo-o de eventual empobrecimento, a cláusula deinalienabilidade o prejudica, tolhendo-lhe negócios e, de certa forma,causando-lhe diminuição patrimonial de extensão imprevisível. Daí oacerto de Orlando Gomes, em recente obra, reiterando o entendimentoadotado no Projeto de Código Civil, ao concluir que ‘necessário se torna...abolir a prerrogativa de clausular os bens com a inalienabilidade, aomenos os da legítima’” (CRUZ, Anotações, cit., pp. 33/34; ORLANDOGOMES. Sucessões. Rio de Janeiro : Forense, 1970. p. 195). A propósi-to, naturalmente, a cláusula “é inoperante em relação ao crédito tributário”(ALIOMAR BALEEIRO. Direito tributário brasileiro. Rio de Janeiro:Forense, 1970. p. 536).

Quanto à única saída do herdeiro ou donatário, sujeito à proteçãoda cláusula de inalienabilidade, eram sucessivas tentativas de sub-rogação do vínculo e de levantamento das quantias relativas à correçãomonetária, enquanto não adquirido outro imóvel e transferido o vínculopara ele (CRUZ, Anotações, cit., pp. 34/39).

Voltando ao novo Código, seu artigo 1.911, no Livro V, do Direitodas Sucessões, Título III, da sucessão testamentária, Capítulo VI, dasdisposições testamentárias, dispõe: “A cláusula de inalienabilidade,imposta aos bens por ato de liberalidade, implica impenhorabilidade eincomunicabilidade. Parágrafo único. No caso de desapropriação debens clausulados, ou de sua alienação, por conveniência econômicado donatário ou do herdeiro, mediante autorização judicial, o produto davenda converter-se-á em outros bens, sobre os quais incidirão asrestrições impostas aos primeiros.”

O legislador manteve, portanto, a cláusula de inalienabilidade, queabrange a impenhorabilidade (não sujeição à execução forçada) e aincomunicabilidade (benefício exclusivo do cônjuge favorecido pelaliberalidade). Só foi amenizado o rigor da inalienabilidade no tocanteaos bens da legítima: “Art. 1.848. Salvo se houver justa causa, declarada

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no testamento, não pode o testador estabelecer cláusula de inalie-nabilidade, impenhorabilidade, e de incomunicabilidade, sobre os bensda legítima. § 1º Não é permitido ao testador estabelecer a conversãodos bens da legítima em outros de espécie diversa. § 2º Medianteautorização judicial e havendo justa causa, podem ser alienados os bensgravados, convertendo-se o produto em outros bens, que ficarão sub-rogados nos ônus dos primeiros.”

No exercício da Curadoria de Resíduos, hoje denominada Promo-toria Civil., examinamos diversos testamentos contendo dramáticasdisposições do testador, por exemplo, excluindo a sua parte disponívelda herança da filha, e impondo na legítima vínculo de inalienabilidade,porque essa filha ingrata saiu de casa solteira, ou porque ela se casoucontra a vontade do testador e assim por diante. Ora, a finalidade dacláusula é de proteção patrimonial ao herdeiro inexperiente ou deficitáriode mente, não para destilar contra este o ressentimento do testador.

O artigo 2.042 do novo Código prevê a aplicação do disposto nocaput do artigo 1.848 – ou seja, imposição de cláusula de inalienabilidadesomente com justa causa – quando a morte do autor da herança ocorrerno prazo de um ano após início da vigência do novo Código, portanto,até 11/1/2004, mesmo que o testamento seja anterior a 11/1/2003. Se otestador não fizer aditamento ao testamento para declarar a justa causade vínculo imposto à legitima, a cláusula ficará sem efeito.

14. O conteúdo do artigo 2.043 é o seguinte: “Até que por outraforma se disciplinem, continuam em vigor as disposições de naturezaprocessual, administrativa e penal, constantes de leis cujos preceitosde natureza civil hajam sido incorporados a este Código.”

A primeira impressão não favorece ao legislador: só tendoexpressamente revogado o Código Civil de 1916 e parte do CódigoComercial de 1850 (artigo 2.045), não se tratando de leis destinadas àvigência temporária, qualquer lei “terá vigor até que outra a modifique ourevogue” (artigo 2º, caput, da chamada Lei de Introdução ao Código Civil).

A razão pela qual certa lei, por exemplo, de natureza material ousubstancial, não deve dispor sobre direito processual consiste em não

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trazer indesejáveis e inconvenientes alterações ao outro ramo doDireito, sempre público e instrumental. Aí, funciona, sempre, a regrado artigo 2º, § 1º, da chamada Lei de Introdução ao Código Civil: “A leiposterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quandoseja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matériade que tratava a lei anterior.”

Tomemos, por exemplo, na Parte Geral do novo Código, no LivroIII, dos fatos jurídicos, o Título V, da prova. O artigo 212 com que essetítulo começa, sem divisão em capítulos, dispõe: “Salvo o negócio a quese impõe forma especial, o fato jurídico pode ser provado mediante: I –confissão; II – documento; III – testemunha; IV – presunção; V – perícia.”Seguem-se dois artigos sobre a confissão (artigos 213/214); doze, sobrea prova documental (artigos 215 a 226); três, sobre a prova testemunhal;um, sobre as presunções e dois, sobre a perícia (artigos 231/232).

Temos adotado o conceito proposto por SANTIAGO SENTÍS ME-LENDO: “a prova é verificação de afirmações, formuladas pelas partes,relativas em geral a fatos, excepcionalmente a normas jurídicas, quese realizam utilizando fontes, as quais são levadas ao processo pordeterminados meios” (“Natureza da prova - A prova é liberdade”. RevistaForense. v. 246. p. 96; também JOSÉ RAIMUNDO GOMES DA CRUZ.“A inspeção judicial”. Revista Forense. v. 355. p. 355).

O Direito Processual pode ser conceituado como o conjunto denormas e princípios que regulam a atuação conjunta do juiz, no exercícioda atividade jurisdicional, cuja função é pacificar os litígios com justiça;das partes, no exercício da ação e da defesa; através do processo,entendido como a relação entre os referidos sujeitos, na relação jurídicaprocessual, assim como a relação entre os atos que eles praticam,que corresponde ao procedimento.

Há presunção de que o juiz conheça o direito (ius novit curia, narramihi factum dabo tibi ius). Em princípio, portanto, as partes não têm oônus de provar afirmações sobre o direito aplicável ao caso concreto.Mas, também em princípio, têm o ônus de provar as afirmações quefaçam sobre os fatos, causa remota do seu pedido (em ambos os casos,por exceção, prova-se a norma jurídica estrangeira, por exemplo, comose dispensa a prova do fato notório, também por exemplo).

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O Código de Processo Civil dedica à matéria das provas 112 artigos(artigos 332 a 443), no Livro I, do processo de conhecimento, Título VIII,do procedimento ordinário, Capítulo VI, das provas. Diante de princípiosclaros sobre a persuasão racional do juiz, sem falar no princípio dispositivoe princípio da livre investigação das provas – verdade formal e verdadereal – (CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO. Teoria, cit., pp. 64/68) aredação do artigo 332 do CPC se mostra mais coerente: “Todos os meioslegais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificadosneste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que sefunda a ação ou a defesa.” Afinal, o artigo 131 do CPC estabelece: “O juizapreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstânciasconstantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deveráindicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento.”

O CPC regula os seguintes meios de prova: o depoimento pessoal(em duas modalidades, apesar da redação difícil – o interrogatório e odepoimento provocado pela outra parte – conforme artigos 342/347); aconfissão (que pode ser até extrajudicial, conforme artigos 348/354); aexibição de documento ou coisa (artigos 355/363); a prova documental(artigos 364/399); a prova testemunhal (artigos 400/419); a prova pericial(artigos 420/439) e a inspeção judicial (artigos 440/443). Em vez delista aparentemente taxativa como a do artigo 212 do novo Código Civil,o CPC admite qualquer meio lícito de prova, limitando-se a regularaqueles mais usados e estudados, ao longo dos tempos.

Não se ignora que o adjetivo civil se prende mais à tradição,podendo ter significado mais literal nos países continentais europeus,que mantêm jurisdição dúplice, com o chamado contenciosoadministrativo para as causas entre entes públicos ou entre estes e osparticulares: Direito Processual Civil, que acrescentaria à definição deDireito Processual proposta acima apenas seu objeto, abrange todosos litígios, por exclusão da matéria penal e daquela atribuída à Justiçaespecial (eleitoral e trabalhista). Em outras palavras, ele abrange amatéria não-penal comum. De modo algum cabe mais ao Direito Civil eà sua legislação traçar normas para o processo relativo às causasadministrativas, tributárias e mesmo comerciais.

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Também não se ignora que o Direito Processual, acima con-ceituado, mesmo nas causas de direito privado, conserva sua natu-reza pública. Afinal, ele regula o exercício da atividade jurisdicional,expressão do poder do Estado e função deste.

Mas há o problema da competência legislativa privativa da Uniãoem matéria de “direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral,agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho” (Constituição de1988, artigo 22, inciso I). Apenas para efeito de argumentação, quando,em matéria processual, admite-se a raríssima competência concorrentedos Estados e do Distrito Federal (sobre “procedimentos em matériaprocessual”, conforme o artigo 24, inciso XI, da Constituição daRepública), a União acaba preponderando (§ 4º do artigo 24 daConstituição Federal).

A regra do artigo 2.043 adquire importância, portanto, pois ressalvaa vigência das disposições de natureza processual, administrativa oupenal constantes de leis cujos preceitos de natureza civil hajam sidoincorporados a este Código. A leitura deste dispositivo deve partir doque consta do artigo 2.045: só ficam expressamente revogados o CódigoCivil de 1916 e parte do Código Comercial de 1850. Excluem-se outrosdiplomas legislativos, salvo no tocante à matéria civil neles contida eincorporada ao novo Código Civil. Se, por ventura, houver neles matériacivil não incorporada ao novo Código Civil, os dispositivos a ela relativosmanterão seu vigor.

Convém insistir em alguns aspectos. Vimos que, diferentementedo CPC, o novo Código Civil não prevê nem o depoimento pessoal,nem a exibição de documento ou (outra) coisa, nem a inspeção judicial.Por outro lado, prevê a presunção entre as provas enumeradas noseu artigo 212.

O legislador, infelizmente, desconhece o importante significadode fonte e meio de prova. A distinção entre fontes e meios de prova,capaz de eliminar “o artificial problema da testemunha técnica” – pois a“testemunha existe não apenas antes, senão com total independênciado processo, mesmo que este não se produza”, enquanto ao “perito ojuiz encomenda, ou o incumbe do encargo de realizar um serviço” – é

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a seguinte: “fontes são os elementos probatórios que existem antes doprocesso e dele independem: não só o documento, mas também atestemunha, e, sobretudo, a coisa litigiosa, o litigante enquanto sabeeste o que ocorreu. Não porém o perito, nem a inspeção judicial...nema declaração da testemunha ou da parte... os meios são as atuaçõesjudiciais pelas quais as fontes se incorporam ao processo. A testemunhaé uma fonte, sua declaração um meio. Da mesma maneira, a parte e oque ela sabe é uma fonte, ao passo que a realização de seu papel, ouem geral seu testemunho um meio. A coisa que há de ser examinada éuma fonte, sua inspeção pelo juiz um meio. O mesmo se dirá quandose trata de exame pericial. Igual distinção se aplica aos documentos:são fontes, independentemente de seu caráter de prova preconstituída,sua incorporação, com as diligências a que pode dar lugar (pense-seno incidente de falsidade), é um meio.” (SENTÍS MELENDO, ob. cit.,pp. 95/96, onde, em nota, ele insiste, distinguindo preconstituição depreexistência: “A perícia não pode se preconstituir porque não é senãoum meio. Sua fonte é o objeto ou matéria da perícia.” Também, JOSÉRAIMUNDO GOMES DA CRUZ. “A prova pericial ante a reforma do CPC.Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo. v. 2. p. 88)

Não houve, portanto, revogação dos meios de prova não incluídosno artigo 212 do novo Código Civil: depoimento pessoal, exibição dedocumento ou coisa e inspeção judicial.

E presunção não se tornou fonte nem meio de prova: não sendopossível a prova do fato principal, prova-se outro fato, que podemoschamar de indício, formando-se a convicção a respeito do fato principal.Segundo a doutrina, existe aí “um salto mental entre a prova do indício ea convicção do fato principal. Esse salto pode resultar de norma legalchamada de presunção legal. A presunção não é, portanto, um meio deprova, mas sim uma forma de raciocínio do juiz, o qual, de um fatoprovado, conclui a existência de outro que é o relevante para produzir aconseqüência pretendida” (VICENTE GRECO FILHO. Direito processualcivil brasileiro. 14. ed. São Paulo : Saraiva, 2000. v. 2, p. 193).

Resta uma palavra sobre o artigo 2.043 do novo Código Civil. Emsua Parte Especial, Livro I, do Direito das Obrigações, Título VI, das

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várias espécies de contrato, Capítulo I, da compra e venda, Seção II,das cláusulas especiais à compra e venda, Subseção IV, da vendacom reserva de domínio, este instituto deixou de ser reguladoexclusivamente na legislação processual civil. Escrevendo sobre o tema,já contemplando o Projeto de Código Civil n. 634-B, de 1975, obser-vamos: “Não constitui a menor das suas peculiaridades o fato de virregulada, desde o CPC de 1939, somente através de leis processuais.Sabemos que não mais se pode atribuir maior significado, nos nossodias, à tradição de separação entre leis civis, comerciais, adminis-trativas, penais, etc. O mesmo diploma, muitas vezes, contém normascivis, processuais civis, penais, etc. (exemplo disso é a Lei n. 5.474, de18.7.68. sobre duplicatas, a rigor, lei comercial, mas abrangendo aemissão de títulos sobre serviços até dos profissionais liberais, etc.).Na verdade, há mesmo relevância no destaque das leis penais, mascom significado mais amplo.” (JOSÉ RAIMUNDO GOMES DA CRUZ.“Vendas a crédito com reserva de domínio (arts. 1.070 e 1.071 do CPC”.Estudos sobre o processo e a Constituição de 1988. São Paulo : Revistados Tribunais, 1993. p. 293; PONTES DE MIRANDA lembra sua inclusãona legislação sobre crimes contra a economia popular. Cf. Comentáriosao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro : Forense, 1977. v. 15. p.193; CLÓVIS BEVILÁQUA achava a cláusula de reserva de domínio“anômala e inconveniente”. Direito das obrigações. 8. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1954. p. 257).

Sobre três artigos do Projeto referido, correspondentes aos dosmesmos números do novo Código, escrevemos: “O art. 525 deixaalguma dúvida: ‘O vendedor somente poderá executar a cláusula dereserva de domínio após constituir o comprador em mora, mediante oprotesto do título ou interpelação judicial’. A referência à execução,certamente sem o significado técnico de processo destinado à satisfaçãodo credor, dotado de título executivo judicial ou extrajudicial, através deatos de invasão do patrimônio do seu devedor, se necessário, ocasionadúvidas sobre possível criação de medida preparatória para tal processo,nos casos de reserva de domínio. Principalmente se levarmos em contao teor do art. 526: ‘Verificada a mora do comprador, poderá o vendedormover contra ele a competente ação de cobrança das prestações

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vencidas e vincendas e o mais que lhe for devido; ou poderá recuperara posse da coisa vendida’. Aqui, a medida preparatória, criticável para amera cobrança, principalmente através de processo de conhecimentocondenatório, aparece exigível em qualquer caso. Acrescenta o art. 527que, ‘na segunda hipótese do artigo antecedente, é facultado ao vendedorreter as prestações pagas até o necessário para cobrir a depreciaçãoda coisa, as despesas feitas e o mais que de direito lhe for devido. Oexcedente será devolvido ao comprador; e o que faltar lhe será cobrado,tudo na forma da lei processual.’” (CRUZ, Vendas, cit., pp. 309/310;sobre medidas preparatórias, cf. GALENO LACERDA. “Processocautelar”. Revista Forense. v. 246. p. 154).

Afora eventuais impropriedades, como a expressão competenteação, o processo de execução (artigo 1.070 do CPC) continua tendocomo único elemento objetivo indispensável o título executivo, quecaracteriza o interesse-adequação. O inadimplemento constitui elementoda causa de pedir, como fato do devedor contrário ao direito do credor,induzindo o interesse-necessidade. A exigibilidade, como a liquidez e acerteza, é característica do crédito, não do título executivo, que temnatureza abstrata. Exigibilidade também constitui o interesse-necessidade.

Por sua vez, o procedimento especial do artigo 1.071 do CPCcontinua prevalecendo, até pela referência feita à forma da lei processualno final do artigo 527 do novo Código Civil.

15. O artigo 2.044 do novo Código determina; “Este Código entraráem vigor 1 (um) ano após a sua publicação.”

Tendo usado apenas a expressão literal dos números (p. ex.,artigos 206 e 2.028) o legislador não devia acrescentar o próprioalgarismo. A expressão literal exclusiva não deixa margem a qualquerdúvida, tendo sido adotada pela Constituição de 1988, cuja revisão nãomereceu críticas, nesse aspecto.

Publicada a Lei n. 10.406, de 10/1/2002, que institui o novo CódigoCivil, no Diário Oficial de 11/1/2002, ele entrará em vigor no dia 11/1/2003. A Lei Complementar n. 95, de 26/2/98, em seu artigo 8º, com a

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redação trazida pela Lei Complementar n. 107, de 26/4/01, dispõe: “Acontagem do prazo para entrada em vigor das leis que estabeleçamperíodo de vacância far-se-á com a inclusão da data da publicação edo último dia do prazo, entrando em vigor no dia subseqüente à suaconsumação integral”.

16. O artigo 2.045 do novo Código impõe: “Revogam-se a Lei n.3.071, de 1º de janeiro de 1916 – Código Civil e a Parte Primeira doCódigo Comercial, Lei n. 556, de 26 de junho de 1850.”

Várias vezes antecipamos referência a tal dispositivo, querestringe a revogação expressa que ele determina. As matérias de outrasleis civis nele incorporadas sofrerão a revogação tácita.

E aqui cabe lembrar importante dispositivo da chamada Lei deIntrodução ao Código Civil: “Art. 2º... § 3º Salvo disposição em contrário,a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência.”

Durante o último período de autoritarismo da nossa vida política,entre os casuísmos lembrados, ficou famoso aquele em que se propunhaa repristinação de lei revogada, por força da revogação da lei que efetuaraa revogação. Para ilustrar bem tal pretensão, corresponderia, com avigência do novo Código, a considerar restabelecidas normas jurídicasque o Código de 1916 revogara, em seu artigo 1.807. Isso importaria noabsurdo de termos de volta as Ordenações...

A Parte Primeira do Código Comercial corresponde ao teor dosseus artigos 1º a 456.

17. Enfim, acrescenta o artigo 2.046 do novo Código Civil: “Todasas remissões, em diplomas legislativos, aos Códigos referidos no artigoantecedente, consideram-se feitas às disposições correspondentesdeste Código.”

O dispositivo torna explícita certa tarefa que tem sido do intérprete.Em muitos casos isso tem ocorrido, não propriamente em relação acódigos, mas, por exemplo, sobrevindo a Lei do Divórcio, que também

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Revista Jurídica da ESMP - n.º 4152

se refere à separação judicial, alguns dispositivos continuaram falandoem desquite, interpretando-se tal palavra como separação judicial (p.ex., artigo 650, inciso I, do CPC).

A referência, portanto, entende-se ao dispositivo equivalente donovo Código Civil.

José Raimundo Gomes da Cruz,

procurador de Justiça aposentado (SP),

professor (UNIFMU), mestre e doutor (USP)

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segurança alimentar -segurança alimentar -segurança alimentar -segurança alimentar -segurança alimentar -imperativimperativimperativimperativimperativo de cidadaniao de cidadaniao de cidadaniao de cidadaniao de cidadania

mário frota,professor

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SEGURANÇA ALIMENTAR

- IMPERATIVO DE CIDADANIA (*)

Mário Frota

SUMÁRIO: 1. A Segurança e a responsabilidade - 1.1. Princípioda preservação da vida e da saúde humanas - 1. 2. Princípioda protecção da saúde e bem-estar animal - 1.3. Princípioda salvaguarda do ambiente - 1. 4. Princípio da precaução -1. 5. Princípio da transparência - 1.6. Princípio da salvaguardados interesses (económicos) do consumidor - 1.7. Princípioda partilha de responsabilidade - 1.8. Géneros alimentíciosanormais - 1.8.1. Responsabilidade Penal - 1.8.2. Crimesde Perigo - 1.8.3. Responsabilidade contra-ordenacional -1.8.4. Responsabilidade Civil - 2. O Código Penal Europeudo Consumo - 3. Portugal e a Agência para a (Qualidade) eSegurança Alimentar - 4. Glossário.

1. A segurança e a responsabilidade

A segurança alimentar constitui preocupação dominante emqualquer latitude.

As revelações recentes dos abates clandestinos para consumopúblico revelam à saciedade que em Portugal o rei vai nu.

O regime da segurança alimentar está consignado no Regu-lamento nº 178/2002, de 28 de Janeiro, editado pela União Europeia,para observância estrita no "seu" território, abalado, de resto, pelossucessivos escândalos da encefalopatia espongiforme bovina, pelasdioxinas nos galináceos, porcinos e na Coca-Cola, pela máfia dashormonas, dos antibióticos, dos betagonistas e pelas farinhas de origemanimal que enxameiam o mercado.

(*) Foi mantida a grafia original.

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Aí se define que não serão colocados no mercado quaisquergéneros alimentícios que não sejam seguros.

Os géneros alimentícios não se considerarão seguros se forem:

- prejudiciais à saúde;

- impróprios para consumo humano.

Ao determinar-se se um género alimentício não é seguro, deve-se ter em conta:

- as condições normais de utilização do género alimentício pelo con-sumidor e em todas as fases da produção, transformação e distribuição;

- as informações fornecidas ao consumidor, incluindo as cons-tantes do rótulo, ou outras informações geralmente à disposição doconsumidor destinadas a evitar efeitos prejudiciais para a saúde de-correntes de um género alimentício específico ou de uma categoriaespecífica de géneros alimentícios.

Ao determinar-se se um género alimentício é prejudicial para asaúde, deve-se ter em conta:

- não só o provável efeito imediato e/ou a curto e/ou a longo prazodesse género alimentício sobre a saúde da pessoa que o consome,mas também sobre as gerações seguintes,

- os potenciais efeitos tóxicos cumulativos;

- as sensibilidades sanitárias específicas de uma determinadacategoria de consumidores, quando o género alimentício lhe for destinado.

Ao determinar-se se um género alimentício é impróprio paraconsumo humano, deve-se ter em conta se é inaceitável para consumohumano de acordo com o uso a que se destina, quer por motivos decontaminação, de origem externa ou outra, quer por putrefacção,deterioração ou decomposição.

Sempre que um género alimentício que não é seguro faça partede um lote ou remessa de géneros alimentícios da mesma classe oudescrição, partir-se-á do princípio de que todos os géneros alimentícios

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desse lote ou remessa também não são seguros, a menos que, nasequência de uma avaliação pormenorizada, não haja provas de que oresto do lote ou da remessa não é seguro.

São, porém, considerados seguros os géneros alimentícios queestejam em conformidade com as disposições comunitáriasespecíficas que regem a sua segurança, no que diz respeito aosaspectos cobertos por tais disposições.

A conformidade de um género alimentício com as disposiçõesespecíficas que lhe são aplicáveis não impedirá as autoridadescompetentes de tomar as medidas adequadas para impor restrições àsua colocação no mercado ou para exigir a sua retirada do mercadosempre que existam motivos para se suspeitar que, apesar dessa con-formidade, o género alimentício não é seguro.

Na ausência de disposições comunitárias específicas, os génerosalimentícios são considerados seguros quando estiverem em confor-midade com as disposições específicas da legislação alimentar doEstado-Membro em cujo território são comercializados, desde que taisdisposições sejam formuladas e aplicadas sem prejuízo do Tratado daUnião Europeia.

Os princípios que se plasmam neste particular poder-se-ão listarcomo segue:

· O da preservação da vida e da saúde humanas

· O da protecção da saúde e bem-estar animal

· O da preservação do ambiente

· O da precaução

· O da transparência

· O da salvaguarda dos interesses económicos do consumidor

· O da partilha da responsabilidade

Os princípios destarte enunciados tendem a incidir na segurançados alimentos e impõem, a vários títulos, a responsabilidade dos dis-tintos partícipes na cadeia alimentar.

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Uma das vias da segurança é a que se prende com a rastrea-bilidade. Por rastreabilidade se entende a capacidade de detectar aorigem e de seguir o rasto de um género alimentício, de um alimentopara animais, de um animal produtor de géneros alimentícios ou deuma substância, destinados a ser incorporados em géneros alimentíciosou em alimentos para animais, ou com probabilidades de o ser, ao longode todas as fases da produção, transformação e distribuição.

1.1. Princípio da preservação da vida e da saúde humanas

Como direito fundamental que nenhum outro sobrepujará, avultao da protecção da saúde e da segurança do cidadão, tal como enfati-camente o proclama o artigo 129 do Tratado de Amsterdão e se mantémintangível no Tratado de Nice.

Como se assevera na comunicação da Comissão Europeia desuporte ao plano trienal 1999/2001 de acção que ainda mantém, aliás,a sua vigência, "outros artigos do Tratado [de Amsterdão] são relevantespara a política dos consumidores: por exemplo a importância dasquestões da saúde é confirmada pela nova redacção do artigo 152 sobreSaúde Pública, cuja aplicação está relacionada com o artigo 153" 1.

Noutra oportunidade2 sublinhámos que "a concepção de uma aldeiaglobal assente em um sistema de economia de mercado à escala plane-tária representa, a todas as luzes, um desafio da maior relevância: pro-dutos de paragens as mais longínquas surgem, mercê da aceleraçãodos transportes, em mercados distantes com os reflexos susceptíveisde advir dos métodos de produção, conservação, distribuição, transforma-ção e do mais e com impacte na saúde e na segurança de cada um e todos.

1 O Normativo de que se cura, porém, define inequivocamente o que segue: “A fim de promover osinteresses dos consumidores e assegurar um elevado nível de defesa destes, a Comunidade contribui-rá para a proteção da saúde, da segurança e dos interesses económicos dos consumidores, bemcomo para a promoção do seu direito à informação, à educação e à organização para a defesa dosseus interesses”.2 Cfr. o nosso “Política de Consumidores na União Europeia”, Lusíada, Revista de Ciências e Cultura,série de Direito, Universidade Lusíada do Porto, n.ºs 1 e 2, 200-2001, pág. 18.

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E, no quadro da temática em apreciação, sublinham-se os pontosque segue [enquanto domínios relevantes de intervenção e suporte depolíticas adequadas]:

- Segurança alimentar - recuperação e reforço dos níveis de con-fiança do consumidor;

- Análise dos riscos para a saúde e segurança do consumidor -de modo mais coerente e consequente;

- Cientificidade dos pareceres - critérios de rigor, efectividade eisenção exigíveis no plano de que se trata;

- Situações de emergência - seu tratamento com celeridade,eficiência e eficácia;

- Concertação no plano internacional em ordem à obtenção deconsensos no que tange a princípios, a directrizes, a critérios a que sesubmeterão os géneros alimentícios (e o que tal pressupõe).

A segurança alimentar volve-se no arsenal de estruturas /instrumentos a criar e/ou a desenvolver por forma a garantir e/ou areforçar a segurança neste particular.

Donde, a relevância a conferir ao princípio da preservação davida e da saúde humanas com o que postula até em termos de orde-nação de valores.

Como pressuposto e, a um tempo, corolário do princípio emepígrafe figura obviamente a segurança que mister é impor a toda aestrutura da cadeia alimentar ou, como sói dizer-se, do prado ao prato.

Daí que ao enunciarem-se os requisitos gerais da legislaçãoalimentar se estabeleça como que em autêntica petitio principii que"não serão colocados no mercado quaisquer géneros alimentícios quenão sejam seguros": não o sendo os que se afigurem prejudiciais àsaúde e os impróprios para o consumo humano.

O Regulamento oferece, neste particular, um sem número decritérios por que se afere a insegurança dos produtos alimentares, tantode base empírica como científica, como noutro passo e de forma maispormenorizada se revelou.

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O Regulamento aparelha ainda critérios de responsabilidadesusceptível de se repartir entre os Estados-membros como aosoperadores económicos que intervêm em qualquer dos elos da cadeiaalimentar, como suporte de domínio insuperável no quotidiano decada um e todos.

1. 2. Princípio da protecção da saúde e bem-estar animal

De entre os princípios gerais da legislação alimentar, realce paraos objectivos gerais que se compendiam no artigo 5º do RegulamentoEuropeu de 28 de Janeiro de 2002, publicado no Jornal Oficial de 1 deFevereiro de 2002, como segue:

"1. A legislação alimentar deve procurar alcançar um oumais dos objectivos gerais de um elevado nível de protecçãoda vida e da saúde humanas, a protecção dos interessesdos consumidores, incluindo as boas práticas no comérciode géneros alimentícios, tendo em conta, sempre queadequado, a protecção da saúde e do bem-estar animal, afitossanidade e o ambiente.

2. A legislação alimentar deve visar a realização da livrecirculação na Comunidade de géneros alimentícios e dealimentos para animais, fabricados ou comercializados emconformidade com os princípios e os requisitos geraisconstantes do presente capítulo.

3. Sempre que existam normas internacionais ou estejaeminente a sua aprovação, estas devem ser tidas em contana formulação ou na adaptação da legislação alimentar,excepto quando as referidas normas ou os seus elementospertinentes constituírem meios ineficazes ou inadequados parao cumprimento dos objectivos legítimos da legislação alimentarou quando houver uma justificação científica ou ainda quandopuderem dar origem a um nível de protecção diferente doconsiderado adequado na Comunidade Europeia."

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O destaque conferido à saúde e bem-estar animal reflecte aspreocupações que a montante se exprimem no que tange àgeneralidade dos produtos alimentares em vista do elevado nível deprotecção da vida e da saúde humanas a que tende, como objectivoprimacial, a política de segurança alimentar no seio da União Europeia.

Os requisitos de que depende a circulação no mercado dosalimentos para os animais entronca na assinalada preocupação:

"1. Não serão colocados no mercado nem dados a animaisprodutores de géneros alimentícios quaisquer alimentospara animais que não sejam seguros.

2. Os alimentos para animais não serão consideradosseguros para o uso a que se destinam se se entender que:

- têm um efeito nocivo na saúde humana ou animal;

- fazem com que não sejam seguros para consumo humanoos géneros alimentícios provenientes de animais produtoresde géneros alimentícios.

3. Sempre que um alimento para animais que tenha sidoidentificado como não respeitando o requisito de segurançados alimentos para animais faça parte de um lote ou remessade alimentos para animais da mesma classe ou descrição,partir-se-á do princípio de que todos os alimentos paraanimais desse lote ou remessa estão afectados de igualmodo, a menos que, na sequência de uma avaliaçãopormenorizada, não haja provas de que o resto do lote ouda remessa não respeita o requisito de segurança dosalimentos para animais.

4. São considerados seguros os alimentos para animais queestejam em conformidade com as disposições comunitáriasespecíficas que regem a sua segurança, no que diz respeitoaos aspectos cobertos por essas disposições.

5. A conformidade de um alimento para animais com asdisposições específicas que lhe são aplicáveis não impedirá

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as autoridades competentes de tomar as medidas adequadaspara impor restrições à sua colocação no mercado ou paraexigir a sua retirada do mercado sempre que existam motivospara se suspeitar que, apesar dessa conformidade, o alimen-to para animais não é seguro.

6. Na ausência de disposições comunitárias específicas, osalimentos para animais são considerados seguros quandoestiverem em conformidade com as disposições específicasnacionais que regem a segurança dos alimentos para animaisdo Estado-Membro em cujo território circulam, desde quetais disposições sejam formuladas e apli-cadas sem prejuízodo Tratado, nomeadamente dos artigos 28.º e 30.º".

E no que se refere à apresentação dos alimentos para animaisrege o artigo 16, cujo teor é o que segue:

"Sem prejuízo de disposições mais específicas da legislaçãoalimentar, a rotulagem, a publicidade e a apresentação dosgéneros alimentícios ou dos alimentos para animais, incluindoa sua forma, aparência ou embalagem, os materiais deembalagem utilizados, a maneira como estão dispostos e olocal onde estão expostos, bem como a informação que éposta à disposição acerca deles através de quaisquer meiosde comunicação, não devem induzir em erro o consumidor."

Ademais, no plano das responsabilidades as repercussões do prin-cípio não se alheiam do que é mister alcançar, conforme apreciação infraem tema de "responsabilidades em matéria de alimentos para animais:operadores das empresas do sector dos alimentos para animais."

A indissociabilidade alimentos para animais/alimentos para huma-nos é flagrante. Donde as similitudes em tema de tutela dos sectorescoenvolvidos.

A ausência de uma acção consequente neste particular repercu-te-se necessariamente no domínio dos géneros alimentícios para oshumanos, como se não ignora.

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O bem-estar animal tem reflexos na carne e nos produtos cár-neos pelas secreções que o stress provoca e pelas implicações directasna saúde humana.

Daí as disposições imperativas vertidas neste particular.

1. 3. Princípio da salvaguarda do ambiente

De entre os objectivos gerais traçados no Regulamento Europeu,o do ambiente ocupa também lugar de primeira plana.

A produção agro-alimentar tem de se compaginar com as regrasque apontam para um ambiente de vida humano, sadio e ecologica-mente equilibrado.

Ademais, o VI Programa de Acção para o Ambiente editado pelaComissão Europeia em 2001 (para a década 2001-2010) reconheceno seu artigo 6º a íntima conexão ambiente/saúde, ao propor o reforçoda investigação científica neste particular.

Nele se consagram também preocupações tendentes a testar,avaliar e gerir os riscos de substâncias químicas particularmenteperigosas. Para além dos agrotóxicos empregues sobretudo em explo-rações agrícolas.

Em análogo plano de preocupações se situa a gestão da água:o programa propõe-se eliminar progressivamente os detritos de substân-cias perigosas na água, algo que corresponde a acções imperativasna sequência da Directiva 2000/60 que institui um quadro para a acçãoda União Europeia no domínio da água.

As exigências da Directiva a que se alude revelam-se susceptíveisde se estender à política agrícola comum (e bem assim à políticaregional).

Uma das alíneas do dispositivo que versa aspectos tais - o artigo6º - respeita especificamente à poluição atmosférica a que não escapao seu envolvimento com as indústrias agro-alimentares.

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Mas a política de integração abarcará designadamente as medidasque visam, entre outras, as ligações agricultura e irrigação, transportee poluição do ar, poluição atmosférica urbana…

No plano, porém, das acções em termos de natureza e biodiver-sidade (cfr. artigo 5º da Decisão 2001/0029 (COD), particular referênciaao esforço do controlo em sede de vigilância, rotulagem e rastreabilidadedos produtos transgénicos (OGM).

A conjugação dos factores enunciados permite entrever osobjectivos a que se tende neste particular.

As políticas que convirjam para a preservação do ambienteperpassarão transversalmente os domínios por que se espraiam osprodutos agro-alimentares - da agricultura às indústrias transformadorascom os problemas a seu nível postulados.

Não escapam os agrotóxicos em termos de agricultura inten-siva, da poluição dos lençóis freáticos, dos resíduos e do tratamentodos efluentes.

O princípio da salvaguarda do ambiente para que aponta, deentre o acervo dos princípios gerais, o Regulamento Europeu, constituiassim algo de fundante neste domínio.

1. 4. Princípio da Precaução

Princípio relevante que surge com autonomia pela importânciaque se lhe reconhece é o da precaução que figura, em tese geral, nosTratados de Maastricht, de Amsterdão e de Nice.

O princípio da precaução como pilar das políticas de saúdee do ambiente - O princípio da precaução surge nos textos da oradenominada União Europeia com o Tratado de Maastricht.

A introdução de forma explícita no Tratado de Maastricht do prin-cípio da precaução (§2º do artigo 130-R) vinculou a União ao imperativo

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de fundar a sua política no domínio do ambiente em obediência a umatal matriz e, em termos pragmáticos, a alicerçar as suas intervençõesem consequentes acções de prevenção.

Em que domínios se justifica o recurso ao princípio da precaução?

O princípio da precaução é invocável em situações em que ossaberes científicos não permitem, no estado em que se acham, afastara regra que justifique a prevenção, mas supor tão só a subsistência deum risco. O princípio da prevenção, que de há muito se reconheceno direito europeu (leia-se na União Europeia), tem um âmbito deaplicação mais amplo que o da precaução.

O princípio da prevenção permite a adopção de medidas quevisam reduzir um perigo identificado. O princípio da prevenção aplica-se em caso de uma forte probabilidade de prejuízos causados aoscidadãos-consumidores.

O princípio da precaução depende do carácter incerto dasuperveniência de um prejuízo.

As condições materiais de aplicação do princípio da precauçãoperfilam-se como segue:

1. Incerteza científica: no domínio da salvaguarda da saúde, aavaliação científica é indispensável no processo legislativo.

O que quer significar que os conhecimentos científicos permitemperspectivar um perigo para a saúde sem autorizar a conclusão daexistência certa do perigo;

2. A gravidade do risco pode revestir duas formas:

Uma incerteza científica relativa à superveniência de um prejuízoou uma incerteza sobre a gravidade do dano;

3. Uma acção instante, urgente.

Duas condições formais se impõem:

1ª - Carácter transitório: a medida tomada em virtude do princípioda precaução deverá entender-se em simultaneidade com a da incertezajurídica;

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2ª - Diligências investigatórias: o que visa a remediar a incertezacientífica por consequente investigação científica.

Como sustentam determinados autores, à medida em que oprincípio da precaução se inscreve em um qualquer processodecisional, o quadro jurídico que o exorna ganha forma.

No acórdão "National Farmer's Union" do Tribunal Europeu deJustiça, que contemplou "a crise das vacas loucas", suscitou-se, pelavez primeira, a aplicação do princípio da precaução plasmado noartigo 130 R.

No que tange à Comissão Europeia, a precaução deverá situar-se como critério de análise do risco, no estádio da gestão, antes aindada elaboração de um qualquer anteprojecto de regulamentação.

No quadro da repartição de competências no que toca à salvaguar-da da saúde e do ambiente entre a Comissão e os Estados, competetambém aos Estados membros aplicar o princípio da precauçãoenquanto princípio geral em condições análogas às que se enunciaram.

Os próprios actos legislativos que hajam eventualmentenegligenciado o princípio da precaução poderão ser postos em causase for de todo manifesto ou se dele se desprender que há afronta aoprincípio consagrado de forma inequívoca no Tratado de Maastricht eque reza o seguinte:

"1 - A política da Comunidade no domínio do ambientecontribuirá para a prossecução dos seguintes objectivos:

- a preservação, a protecção e a melhoria da qualidade doambiente;

- a protecção da saúde das pessoas;

- a utilização prudente e racional dos recursos naturais;

- a promoção, no plano internacional, de medidas destinadasa enfrentar os problemas regionais ou mundiais do ambiente.

2 - A política da Comunidade no domínio do ambiente visaráa um nível de protecção elevado, tendo em conta a

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diversidade das situações existentes nas diferentes regiõesda Comunidade. Basear-se-á nos princípios da precaução eda acção preventiva, da correcção, prioritariamente na fonte,dos danos causados ao ambiente e do poluidor-pagador. Asexigências em matéria de protecção do ambiente devem serintegradas na definição e aplicação das demais políticascomunitárias.

Neste contexto, as medidas de harmonização destinadas asatisfazer essas exigências incluirão, nos casos adequados,uma cláusula de salvaguarda autorizando os Estadosmembros a tomar, por razões ambientais não económicas,medidas provisórias sujeitas a um processo comunitário decontrolo.

3 - Na elaboração da sua política no domínio do ambiente,a Comunidade terá em conta:

- os dados científicos e técnicos disponíveis;

- as condições do ambiente nas diversas regiões da Comu-nidade;

- as vantagens e os encargos que podem resultar da actua-ção ou da ausência de actuação;

- o desenvolvimento económico e social da Comunidade noseu conjunto e o desenvolvimento equilibrado das suasregiões.

4 - A Comunidade e os Estados membros cooperarão, noâmbito das respectivas atribuições, com os países terceirose as organizações internacionais competentes. As formasde cooperação da Comunidade podem ser objecto de acor-dos entre esta e as partes terceiras interessadas, os quaisserão negociados e celebrados nos termos do artigo 228.º.

O disposto no parágrafo anterior não prejudica a capacidadedos Estados membros para negociar nas instâncias interna-cionais e celebrar acordos internacionais".

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O artigo 130-R, em que se plasma o princípio da precaução, foireescrito por ocasião do Tratado de Amsterdão, em que ficou comoartigo 174.

Para além do recurso aos tribunais nacionais, suscita-se a hipóte-se de o conflito que dessa forma se gera poder ser dirimido pelo TribunalEuropeu de Justiça, tanto em termos prejudiciais como em sede deapreciação principal da acção de que se trata."

No Regulamento da Segurança dos Alimentos de 28 de Janeirode 2002, que veio a lume em 1 de Fevereiro pº pº, e que, em geral,entrou em vigor em 21 de Fevereiro, o princípio da precaução érecortado como segue:

"1. Nos casos específicos em que, na sequência de umaavaliação das informações disponíveis, se identifique umapossibilidade de efeitos nocivos para a saúde, maspersistam incertezas a nível científico, podem ser adoptadasas medidas provisórias de gestão dos riscos necessáriaspara assegurar o elevado nível de protecção da saúde porque se optou na Comunidade, enquanto se aguardam outrasinformações científicas que permitam uma avaliação maisexaustiva dos riscos.

2. As medidas adoptadas com base no nº 1 devem serproporcionadas e não devem impor mais restrições aocomércio do que as necessárias para se alcançar o elevadonível de protecção por que se optou na Comunidade, tendoem conta a viabilidade técnica e económica e outrosfactores considerados legítimos na matéria em questão. Taismedidas devem ser reexaminadas dentro de um prazorazoável consoante a natureza do risco para a vida ou asaúde e o tipo de informação científica necessária paraclarificar a incerteza científica e proceder a uma avaliaçãomais exaustiva do risco."

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1. 5. Princípio da transparência

Transparência é, segundo a Enciclopédia Portuguesa-Brasileira,"qualidade do que é transparente; diafeneidade".

Transparente é, por seu turno, "designativo de cada um dos corposque se deixam atravessar pela luz e através dos quais se distinguemnitidamente os objectos; diáfono; franco, que se deixa conhecer oudesvindar facilmente; que se percebe facilmente; claro; evidente…"

O princípio da transparência, de resto, plasmado, entre nós,na LC (Lei do Consumidor), no nº 1 do seu artigo 8º, assenta no pressu-posto de que "o fornecedor de bens ou prestador de serviços deve …informar de forma clara, objectiva e adequada o consumidor, nomea-damente sobre características, composição e preço do bem ou serviço,bem como sobre o período de vigência do contrato, garantias, prazo deentrega e assistência pós-contratual."

A transparência, no plano de que se trata, volve-se em duasvertentes, a saber, a da consulta pública na fase da preparação, ava-liação e revisão da legislação alimentar e a da informação dos consu-midores sempre que se estime que um género alimentício (ou umalimento destinado a animais irracionais) comporte eventual risco paraa saúde humana ou animal.

O princípio, ínsito nos artigos 9º e 10º, tem expressão em cadaum dos normativos.

Neles se lobriga o seu sentido e alcance. A consulta públicaprevê, porém, uma excepção:

"proceder-se-á a uma consulta pública aberta e trans-parente, directamente ou através de organismos represen-tativos, durante a preparação, avaliação e revisão da legis-lação alimentar, a não ser que a urgência da questãonão o permita".

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No que tange à informação dos cidadãos, de conferir, pois, oque no artigo 10º se encerra, a saber:

"Sem prejuízo das disposições comunitárias e de direitonacional aplicáveis em matéria de acesso a documentos,sempre que existam motivos razoáveis para se suspeitarde que um género alimentício ou um alimento para animaispode apresentar um risco para a saúde humana ou animal,dependendo da natureza, da gravidade e da dimensão desserisco, as autoridades públicas tomarão medidas adequadaspara informar a população da natureza do risco para a saúde,identificando em toda a medida do possível o género alimen-tício ou o alimento para animais ou o seu tipo, o risco quepode apresentar e as medidas tomadas ou que vão sertomadas, para prevenir, reduzir ou eliminar esse risco".

A consagração do princípio constitui barreira às cortinas de fumo,à ignorância, aos silêncios comprometedores a que empresários epolíticos se remeteram em prejuízo manifesto de cada um e todos, emépoca, de resto, não muito distante.

1.6. Princípio da salvaguarda dos interesses(económicos) do consumidor

A salvaguarda dos interesses do consumidor reveste umsem número de manifestações da plasticidade das relações jurí-dicas de consumo.

Para além da patrimonialidade em que se revê e a que os pro-gramas, planos, directrizes e leis nacionais conferem expressão, há bens,interesses ou valores jurídicos fundamentais a preservar, tutelados pelaordem penal no plano económico stricto sensu. Confira-se o que a LCconsagra, entre nós: "o consumidor tem direito à protecção dos seusinteresses económicos, impondo-se nas relações jurídicas de consumoa igualdade material dos contraentes, a lealdade e a boa fé nospreliminares, na formação e ainda durante a vigência dos contratos".

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E exprime, materializando, em um sem número de preceitos, oque, em tese geral, se encerra no nº 1 do seu artigo 9.º.

No domínio da legislação alimentar - e em particular no que tocaao Regulamento Europeu -, e sob a epígrafe protecção dos interessesdos consumidores, se define de modo expresso que a legislaçãoalimentar tem como objectivo a protecção dos interesses dos consumi-dores e a fornecer-lhes uma base para que façam escolhas comconhecimento de causa em relação aos géneros alimentícios queconsomem. Visa prevenir - e, neste passo, acrescenta de modo mera-mente exemplificativo um sem número de alvos, a saber:

- práticas fraudulentas ou enganosas;

- a adulteração dos géneros alimentícios;

- quaisquer outras práticas que possam induzir em erro oconsumidor.

Para além da responsabilidade susceptível de ser assacada aosoperadores económicos, nos termos gerais, nos planos criminal e civil,avulta, nos termos da Directriz 85/374/CEE do Conselho de 25 de Julhode 1985, a responsabilidade do produtor por produtos defeituosos, queora abarca as matérias-primas (produtos da agricultura, pecuária, dacaça e da pesca), sempre que a vida, a integridade física e a segurançade quem quer esteja em causa.

A tal provê o artigo 21 do Regulamento Europeu, como forma deacautelar perigos e riscos susceptíveis de afectar os consumidoresem valores fundamentais como os enunciados.

Em princípio, a criminalização das condutas releva dos direitosnacionais, não se vislumbrando, no estágio actual, que a Europa seproponha editar um Código Penal do Consumo susceptível de traçaras molduras típicas (dos tipos de ilícito) e os quadros sancionatóriosunívocos ou uniformes aplicar de Helsínquia a Albufeira, no Algarve.

Susceptível de os integrar, no contrapolo das obrigações assumidaspelos consumidores, no domínio da salvaguarda dos seus interesses(económicos) realce para as boas práticas do comércio dos géneros

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alimentícios, que acrescem às que no plano da qualidade a Directriz 93/43/CEE, do Conselho, de 14 de Junho de 1993 estabelece e que, natransposição que de tal instrumento efectuou o legislador português, seplasma no artigo 4º do Decreto-Lei 67/98, de 18 de Março, como segue:

"1- As autoridades competentes para o exercício do controlooficial deverão promover e apoiar a elaboração de códigosde boas práticas de higiene destinados a utilização voluntáriapelas empresas do sector alimentar como orientação paraa observância dos requisitos de higiene.

2- Os códigos deverão ser elaborados por empresas dosector alimentar ou suas associações e representantes deoutras entidades interessadas, tais como as autoridadessanitárias e as associações de consumidores.

3- Será sempre garantida a audição dos titulares de interessesopostos que possam ser afectados pela aprovação e cum-primento dos códigos.

4- Na construção do conteúdo dos códigos devem ter-se em conta as regras recomendadas internacionalmenteem matéria de higiene alimentar, nomeadamente as doCodex Alimentarius.

5- Os projectos de código de boas práticas serão apresen-tados à Direcção-Geral de Fiscalização e Controlo da Quali-dade Alimentar (DGFCQA), para efeitos de avaliação pelasentidades que forem designadas por despacho conjunto dosMinistros da Economia, da Agricultura, do DesenvolvimentoRural e das Pescas, da Saúde e Adjunto do Primeiro-Ministro.

6- Os códigos de boas práticas que forem consideradosconformes com o disposto no presente diploma serão sem-pre objecto de divulgação junto das empresas do sectoralimentar a que respeitem e das autoridades sanitárias.

7- Os códigos de boas práticas serão notificados à ComissãoEuropeia."

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De resto, como noutro passo se assinalou, a protecção dosinteresses dos consumidores, incluindo as boas práticas no comérciode géneros alimentícios", constitui segmento relevante dos objectivosgerais plasmados no artigo 5º do Regulamento do Parlamento Europeue do Conselho de Ministros, transcrito supra.

A afeição às práticas leais representa o "quid" que exime deresponsabilidades, em particular o "comércio retalhista", na acepçãoque do termo se retém no glossário ínsito in fine.

1.7. Princípio da partilha de responsabilidade

O princípio afirma-se a dois níveis:

- a responsabilidade dos Estados;

- a responsabilidade dos operadores.

O princípio segundo o qual a responsabilidade incumbe aosoperadores das empresas do sector alimentício assume particular relevona economia do diploma emanado das instâncias europeias.

É óbvio que se não exime a responsabilidade de qualquer dosEstados-nacionais por expressa atribuição dos órgãos legiferantesda União Europeia.

Aos Estados se confere o poder-dever de:

- Editar legislação alimentar compaginável com coordenadas edirectrizes definidas pela União;

- Proceder ao controlo e verificação dos requisitos relevantes dalegislação pelos operadores económicos em todas as fases da produção,transformação e distribuição;

- O estabelecimento de um sistema assente na análise dosriscos que radique na avaliação, gestão e comunicação dos riscos;

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Revista Jurídica da ESMP - n.º 4176

- A implantação de serviços inspectivos que se revelem idóneosde tal sorte que zelem por que em todas as fases - da produção,transformação e distribuição - os requisitos de segurança se observemescrupulosamente;

- A definição dos tipos de ilícito e das correspondentes molduraslegais (e de diferente natureza, se for o caso), de forma a que as medidase cominações previstas sejam eficazes, proporcionadas e dissuasivas.

A responsabilidade assacada aos "operadores económicos"(operadores das empresas dos sectores alimentares, como o deno-mina o texto legal) radica na circunstância de sobre eles impender,em primeira linha, a obrigação de zelar por que os géneros alimentíciose os alimentos para animais colocados no mercado sejam seguros,na definição que da segurança traça o artigo 14º do Regulamento emapreciação e de cujo teor se cura em outro passo do trabalho.

O conceito, construído pela negativa, oferece como critériosaferidores da insegurança dos géneros alimentícios, a prejudicialidadepara a saúde e a impropriedade para o consumo.

No critério para a determinação da insegurança do géneroalimentício há que ponderar, porém:

- As condições normais da sua utilização pelo consumidor, sejaqual for a fase a que respeite - produção, transformação e distribuição

- As informações fornecidas ao consumidor, incluindo as que nosrótulos figurem e as mais disponíveis, susceptíveis de propiciar se evitemos efeitos prejudiciais para a saúde decorrentes de um género específicoou de uma específica categoria de produtos alimentares.

Ao invés, presumem-se seguros (presunção necessariamenteilidível) os géneros alimentícios em conformidade com as disposiçõesemergentes das instâncias da União Europeia que regem em particularno domínio da segurança alimentar e no que tange aos aspectos reco-bertos pela normativa.

A responsabilidade que daqui decorre, porque estatuída emdomínios que relevam de bens, interesses ou valores jurídicos

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Revista Jurídica da ESMP - n.º 4 177

fundamentais da comunidade, volver-se-á em responsabilidadepenal, sem se descurar a responsabilidade contra-ordenacionalpara quem adopte o figurino do Ordnungswidrigkeit e aresponsabilidade civil - contratual ou extracontratual, em termosgerais - e a específica responsabilidade do produtor por produtosdefeituosos, decorrente, aliás, da Directiva 85/374/CEE, de 25 de Julho,do Conselho de Ministros das Comunidades Europeias.

No que tange ainda à responsabilidade, as directivas queemanam do Parlamento e do Conselho repartem-na pelos operadoreseconómicos e pelos Estados-Membros, como segue.

A responsabilidade primeira, em termos de autocontrolo,repousa no próprio empresário e na empresa.

Os operadores das empresas do sector alimentar e do sectordos alimentos para animais devem assegurar, em todas as fases daprodu-ção, transformação e distribuição nas empresas sob o seucontrolo, que os géneros alimentícios ou os alimentos para animaispreencham os requisitos da legislação alimentar aplicáveis às suasactividades e verificar o cumprimento desses requisitos.

Os Estados-Membros porão em vigor a legislação alimentar eprocederão ao controlo e à verificação da observância dos requisitosrelevantes dessa legislação pelos operadores das empresas do sectoralimentar e do sector dos alimentos para animais em todas as fasesda produção, transformação e distribuição.

Para o efeito, manterão um sistema de controlos oficiais e outrasactividades, conforme adequado às circunstâncias, incluindo acomunicação pública sobre a segurança e os riscos dos génerosalimentícios e dos alimentos para animais, a vigilância da suasegurança e outras actividades de controlo que abranjam todas asfases da produção, transformação e distribuição.

Os Estados-Membros estabelecerão igualmente as regrasrelativas às medidas e sanções aplicáveis às infracções àlegislação alimentar e em matéria de alimentos para animais. As

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Revista Jurídica da ESMP - n.º 4178

medidas e sanções previstas devem ser eficazes, proporcionadas edissuasivas. 3

Situemo-nos na responsabilidade que recai sobre os opera-dores do sector agro-alimentar:

Se um operador de uma empresa do sector alimentar considerarou tiver razão para crer que um género alimentício por si importado,produzido, transformado, fabricado ou distribuído não está emconformidade com os requisitos de segurança dos géneros alimentícios,dará imediatamente início a procedimentos destinados a retirar domercado o género alimentício em causa, se o mesmo tiver deixado deestar sob o controlo imediato desse mesmo operador inicial, e do factoinformará as autoridades competentes. Se houver a possibilidade de oproduto em questão ter chegado aos consumidores, o referido operadorinformá-los-á de forma eficaz e precisa do motivo da retirada e, senecessário, procederá à recolha dos produtos já fornecidos, quandonão foram suficientes outras medidas para se alcançar um elevadonível de protecção da saúde.

Qualquer operador de uma empresa do sector alimentar respon-sável por actividades de comércio retalhista ou de distribuição que nãoafectem a embalagem, rotulagem, segurança ou integridade do géneroalimentício dará início, dentro dos limites das suas actividades, a procedi-mentos destinados a retirar do mercado os produtos não conformes comos requisitos de segurança dos géneros alimentícios e contribuirá para a

3 O artigo 3.º do DL 67/98, de 18 de Março, é expresso em conclamar o “autocontrolo”, como segue:1 - As empresas do sector alimentar devem identificar todas as fases das suas actividades de forma agarantir a segurança dos alimentos e velar pela criação, aplicação, actualização e cumprimento deprocedimentos de segurança adequados.2 - Nestas actividades de autocontrolo deverão ter-se em conta os seguintes princípios:a) Análise dos potenciais riscos alimentares nas operações do sector alimentar;b) Identificação das fases das operações em que podem verificar-se riscos alimentares;c) Determinação dos pontos críticos para a segurança dos alimentos;d) Definição e aplicação de um controlo eficaz e de processos de acompanhamento dos pontos críticos;e) Revisão periódica, e sempre que haja alterações dos processos da empresa, da análise de riscosalimentares, dos pontos críticos de controlo e dos processos de controo e acompanhamento.

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Revista Jurídica da ESMP - n.º 4 179

sua segurança, transmitindo as informações relevantes necessáriaspara detectar o percurso do género alimentício e cooperando nasmedidas tomadas pelos produtores, transformadores, fabricantes e/ouautoridades competentes.

Qualquer operador de uma empresa do sector alimentar informaráimediatamente as autoridades competentes, caso considere ou tenharazões para crer que um género alimentício por si colocado no mercadopode ser prejudicial para a saúde humana. Os operadores informarão asautoridades competentes das medidas tomadas a fim de prevenirquaisquer riscos para o consumidor final e não impedirão nem dissuadirãoninguém de cooperar com as autoridades competentes, em conformidadecom a legislação e a prática jurídica nacionais, sempre que tal possaimpedir, reduzir ou eliminar um risco suscitado por um género alimentício.

Os operadores das empresas do sector alimentar colaborarãocom as autoridades competentes nas medidas tomadas a fim de evitarou reduzir os riscos apresentados por um género alimentício queforneçam ou tenham fornecido.

E no que se refere à dos que operam no domínio do sectordos alimentos para animais, refiram-se os pontos que segue:

Se um operador de uma empresa do sector dos alimentos paraanimais considerar ou tiver razões para crer que um alimento por siimportado, produzido, transformado, fabricado ou distribuído não estáem conformidade com os requisitos de segurança dos alimentos paraanimais, dará imediatamente início a procedimento destinados a retirardo mercado o alimento em causa e do facto informará as autoridadescompetentes. Nestas circunstâncias, sempre que um lote ou umaremessa de alimentos para animais não satisfaça os requisitos desegurança, o alimento em causa será destruído, a não ser que aautoridade competente entenda em contrário. O referido operadorinformará de forma eficaz e precisa os utilizadores do motivo da retiradae, se necessário, procederá à recolha dos produtos já fornecidos, quandonão forem suficientes outras medidas para se alcançar um elevado nívelde protecção da saúde.

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Revista Jurídica da ESMP - n.º 4180

Qualquer operador de uma empresa do sector dos alimentos paraanimais responsável por actividades de comércio retalhista ou de dis-tribuição que não afectem a embalagem, rotulagem, segurança ouintegridade do alimento dará início, dentro dos limites das suas actividades,a procedimentos destinados a retirar do mercado os produtos nãoconformes com os requisitos de segurança dos géneros alimentícios,transmitindo as informações relevantes necessárias para detectar opercurso do alimento para animais e cooperando nas medidas tomadaspelos produtores, transformadores, fabricantes e/ou autoridadescompetentes.

Qualquer operador de uma empresa do sector dos alimentospara animais informará imediatamente as autoridades competentes,caso considere ou tenha razões para crer que um alimento por sicolocado pode não respeitar os requisitos de segurança dos alimentospara animais e informará as autoridades competentes das medidastomadas a fim de prevenir os riscos decorrentes da utilização dessealimento, não devendo impedir nem dissuadir ninguém de cooperarcom as autoridades competentes, em conformidade com a legislaçãoe a prática jurídica nacionais, sempre que tal possa impedir, reduzirou eliminar um risco suscitado por um alimento para animais.

Os operadores das empresas do sector dos alimentos paraanimais colaborarão com as autoridades competentes nas medidastomadas a fim de evitar os riscos apresentados por um alimento paraanimais que forneçam ou tenham fornecido.

A responsabilidade revestirá tanto natureza administrativa ou,se for o caso, contra-ordenacional (ilícito de mera ordenação social)(ordnungswidrigkeit) ou de índole penal.

A adequação dos ordenamentos ao regime que ora emana da UniãoEuropeia pressuporá um esforço legislativo intra muros, já que nos planosadministrativo, contra-ordernacional e penal, no quadro actual, nãohaverá nem direito uniforme nem harmonizável mediante instrumentoapropriado, como é o caso das directivas.

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1.8. Géneros alimentícios anormais

Portugal distingue, neste particular, em classificação que remontaaos anos 50, os géneros alimentícios anormais em:

- Género alimentício falsificado - o género alimentício anormaldevido a qualquer das seguintes circunstâncias:

- Adição ao género alimentício de alguma substância, inclusivéingrediente, estranha à sua composição e natureza ou nelenão permitida legalmente e que possa ter como consequência,entre outras, o aumento de peso ou volume, o encobrimentode má qualidade ou deterioração ou incorporação de aditivono mesmo inadmissível;

- Subtracção ao género alimentício de algum ingrediente, ouconstituinte, total ou parcialmente, de modo a desvirtuá-lo oua empobrecê-lo quanto a qualidades nutritivas ou quanto à suacomposição própria, legalmente fixada ou declarada;

- Substituição do género alimentício, bem como de algum dosseus ingredientes, total ou parcialmente, por outra substância,de modo a imitá-lo;

- Género alimentício corrupto - o género alimentício anormal,por ter entrado em decomposição ou putrefacção ou por encerrarsubstâncias, germes ou seus produtos nocivos ou por se apresentarde alguma forma repugnante;

- Género alimentício avariado - o género alimentício anormalque, não estando falsificado ou corrupto, se deteriorou ou sofreu modifi-cações de natureza, composição ou qualidade, quer por acção intrínse-ca, quer por acção do meio, do tempo ou de quaisquer outros agentesou substâncias a que esteve sujeito;

- Género alimentício com falta de requisitos - o géneroalimentício anormal que não esteja falsificado, corrupto ou avariado.

E as consequências que daí emergem são de vária ordem.

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Revista Jurídica da ESMP - n.º 4182

1.8.1. Responsabilidade penal

No plano penal, avultam:

Sob a qualificação de crime contra a saúde pública, o abateclandestino

"1. Quem abater animais para consumo público:

a) sem a competente inspecção sanitária;

b) fora de matadouros licenciados ou recintos a esse efeitodestinados pelas autoridades competentes; ou

c) de espécies não habitualmente usadas para alimentaçãohumanas, será punido com prisão até 3 anos e multa nãoinferior a 100 dias.

2. Com a mesma pena será punido quem adquirir, paraconsumo público, carne dos animais abatidos nos termosdo número anterior ou produtos com ela fabricados.

3. Havendo negligência, a pena será de prisão até 1 ano emulta não inferior a 50 dias.

4. A condenação pelos crimes previstos neste artigo implicasempre a perda dos animais abatidos ou dos respectivosprodutos.

5. A sentença será publicada."

Crime desenhado sob a epígrafe "Fraude sobre mercadorias"

"1. Quem, com intenção de enganar outrem nas relaçõesnegociais, fabricar, transformar, importar, exportar, tiver emdepósito ou em exposição para venda, vender ou puser emcirculação por qualquer outro modo mercadorias:

a) contrafeitas, falsificadas ou depreciadas, fazendo-aspassar por autênticas, não alteradas ou intactas;

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Revista Jurídica da ESMP - n.º 4 183

b) de natureza diferente ou de qualidade e quantidade inferio-res às que afirmar possuírem ou aparentarem, será punidocom prisão até 1 ano e multa até 100 dias, salvo se o factoestiver previsto em tipo legal de crime que comine penamais grave.

2. Havendo negligência, a pena será de prisão até 6 mesesou multa até 50 dias.

3. O tribunal poderá ordenar a perda das mercadorias.

4. A sentença será publicada."

Constituem ainda crime com a moldura penal que segue, quaisquercomportamentos que atentem contra a genuinidade, qualidade oucomposição de géneros-alimentícios ou aditivos alimentares:

"a) Tratando-se de géneros alimentícios ou aditivos alimen-tares falsificados, com prisão de 3 meses a 3 anos e multanão inferior a 100 dias;

b) Tratando-se de géneros alimentícios ou aditivos alimen-tares corruptos, com prisão até 2 anos e multa não inferiora 100 dias;

c) Tratando-se de géneros alimentícios ou aditivosalimentares avariados, com prisão até 18 meses e multanão inferior a 50 dias.

2. Havendo negligência as penas serão, respectivamente,as seguintes:

a) Prisão até 1 ano e multa não inferior a 40 dias;

b) Prisão até 6 meses e multa não inferior a 30 dias;

c) Prisão até 6 meses e multa não inferior a 20 dias.

3. O tribunal ordenará a perda dos bens.

4. A sentença será publicada.".

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Revista Jurídica da ESMP - n.º 4184

Tal qualificação cabe ainda aos denominados crimes contra agenuinidade, qualidade ou composição de alimentos destinadosa animais:

"1. Quem produzir, preparar, confeccionar, fabricar, trans-portar, armazenar, detiver em depósito, vender, tiver emexistência ou exposição para venda, importar, exportar outransaccionar por qualquer forma alimentos, aditivos e pré-misturas destinados a animais considerados susceptíveisde criar perigo para a vida ou para a saúde e integridadefísica dos referidos animais será punido:

a) Tratando-se de alimentos, aditivos ou pré-misturas falsi-ficados, com prisão até 1 ano e multa não inferior a 100 dias;

b) Tratando-se de alimentos, aditivos ou pré-misturascorruptos ou avariados, com prisão até 6 meses e multa nãoinferior a 50 dias.

2. Havendo negligência as penas referidas no númeroanterior serão, respectivamente, de prisão até 6 meses emulta não inferior a 50 dias e de prisão até 3 meses e multanão inferior a 30 dias.

3. É aplicável o disposto nos n.°s 3 e 4 do artigo anterior."

Não se restringem, porém, às molduras precedentes, as condutasdelituosas observadas neste particular.

O Código Penal prescreve ainda como passível de responsabili-dade penal a conduta descrita no(s) art.º(s) 281º e ss do Código Penal:

1.8.2. Crimes de perigo

- Perigo relativo a animais ou vegetais:

Art.º 281º do Código Penal

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Revista Jurídica da ESMP - n.º 4 185

1- Quem:

a) Difundir doença, praga, planta ou animal nocivos, ou

b) Manipular, fabricar ou produzir, importar, armazenar, oupuser à venda ou em circulação, alimentos ou forragensdestinados a animais domésticos alheios;

e criar deste modo perigo de dano a número considerávelde animais alheios, domésticos ou úteis ao homem, ou aculturas, plantações ou florestas alheias, é punido com penade prisão de 2 anos ou com pena de multa.

2- Se o perigo referido no número anterior for criado pornegligência, o agente é punido com pena de prisão até 1ano ou com pena de multa até 240 dias.

3- Se a conduta referida no n.º 1 for praticada pornegligência, o agente é punido com pena de prisão até 6meses ou com pena de multa até 120 dias.

- Corrupção de substâncias alimentares ou medicinais:

Art.º 282º do Código Penal

1- Quem:

a) no aproveitamento, produção, confecção, fabrico,embalagem, transporte, tratamento, ou outra actividade quesobre elas incida, de substâncias destinadas a consumoalheio, para serem comidas, mastigadas, bebidas, para finsmedicinais ou cirúrgicos, as corromper, falsificar, alterar,reduzir o seu valor nutritivo ou terapêutico ou lhes juntaringredientes; ou

b) importar, dissimular, vender, expuser à venda, tiver emdepósito para venda ou, por qualquer forma, entregar aoconsumo alheio substâncias que forem objecto deactividades referidas na alínea anterior ou que foremutilizadas depois do prazo da sua validade ou estiveremavariadas, corruptas ou alteradas por acção do tempo ou

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Revista Jurídica da ESMP - n.º 4186

dos agentes a cuja acção estão expostas; e criar deste modoperigo para a vida ou para a integridade física de outrem épunido com pena de prisão de 1 a 8 anos.

2- Se o perigo referido no número anterior for criado pornegligência, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos.

3- Se a conduta referida no n.º 1 for praticada por negligên-cia, o agente é punido com pena de prisão até 3 anos oucom pena de multa.

- Propagação de doença, alteração de análise ou de receituário:

Art.º 283º do Código Penal

1- Quem:

a) Propagar doença contagiosa;

b) Como médico ou seu empregado, enfermeiro ouempregado de laboratório, ou pessoa legalmente autorizadaa elaborar exame ou registo auxiliar de diagnóstico ou trata-mento médico ou cirúrgico, fornecer dados ou resultadosinexactos; ou

c) Como farmacêutico ou empregado de farmácia fornecersubstâncias medicinais em desacordo com o prescrito emreceita médica;

e criar deste modo perigo para a vida ou perigo grave paraa integridade física de outrem é punido com pena de prisãode 1 a 8 anos.

2- Se o perigo referido no número anterior for criado pornegligência, o agente é punido com pena de prisão até 5anos.

3- Se a conduta referida no n.º 1 for praticada pornegligência, o agente é punido com pena de prisão até 3anos ou com pena de multa."

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Revista Jurídica da ESMP - n.º 4 187

1.8.3. Responsabilidade contra-ordenacional

No plano contra-ordenacional, perfilam-se sanções, ante moldu-ras típicas, como segue:

Há, porém, neste particular que, no tocante aos géneros alimen-tícios, considerar anormais os que, sendo ou não susceptíveis de preju-dicar a saúde do consumidor,

"- Não sejam genuínos;

- Não se apresentem em perfeitas condições de maturação,frescura, conservação, exposição à venda, acondiciona-mento ou outras indispensáveis à sua aptidão para consu-mo ou utilização;

- Não satisfaça as características analíticas que lhe sãopróprias ou legalmente fixadas, sem excluir asorganolépticas.

De entre os ilícitos de mera-ordenação social, figuram os deabate de reses com inobservância de requisitos técnicos

(artigo 57º da Lei Penal do Consumo):

"1. Quem abater para consumo público animais das espéciesbovina, ovina, caprina, suína ou equina sem que o abate tenha sido prece-dido, durante as 24 horas anteriores, do descanso das reses, em aloja-mento apropriado, contíguo ao recinto da matança ou próximo dele, nemaqueles tenham sido convenientemente abeberados ou quando tiveremrecebido alimento nas últimas 12 horas será punido com coima até 199,52.

2. A negligência é punível.

3. Serão apreendidos os produtos que forem objecto desta contra-ordenação".

Ilícitos contra a genuinidade

(artigo 58º da Lei Penal do Consumo)

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"1. Quem produzir, preparar, confeccionar, fabricar, transportar,armazenar, detiver em depósito, vender, tiver em existênciaou exposição para venda, importar, exportar ou transaccionarpor qualquer forma, quando destinados ao consumo público,géneros alimentícios e aditivos alimentares:

a) com falta de requisitos;

b) que, não sendo anormais, revelem uma natureza, com-posição, qualidade ou proveniência que não correspondamà designação ou atributos com que são comercializados;

c) cujo processo de obtenção, preparação, confecção,fabrico, acondicionamento, conservação, transporte ouarmazenagem não tenha obedecido às respectivasimposições legais;

d) em relação aos quais não tenham sido cumpridas asregras fixadas na lei ou em regulamentos especiais,nomeadamente para salvaguarda do asseio e higiene, serápunido com coima até 2493,99.

2. A tentativa e a negligência são puníveis".

Ilícitos que consistem na detenção de substâncias, produtos

(artigo 59º da Lei Penal do Consumo)

"Quem, sem justificação, tiver em seu poder substâncias,produtos, artigos, objectos, utensílios ou qualquer maquinariaque possam ser empregados na falsificação de génerosalimentícios e aditivos alimentares, bem como possuir outiver em laboração produtos que não obedeçam àsprescrições legais e que possam servir para aquele fim,será punido com coima até 7481,97."

Ilícitos contra a genuinidade dos géneros

(artigo 60º da Lei Penal do Consumo)

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Revista Jurídica da ESMP - n.º 4 189

"1. Quem produzir, preparar, confeccionar, fabricar,transportar, armazenar, detiver em depósito, vender, tiverem existência ou exposição para venda, importar, exportarou transaccionar por qualquer forma alimentos, aditivos epré-misturas destinados a animais:

a) que não satisfaçam os requisitos ou característicaslegalmente estabelecidos;

b) cujo processo de obtenção, preparação, confecção,fabrico, acondicionamento, conservação, transporte ouarmazenagem não tenha obedecido às respectivasimposições legais;

c) que não satisfaçam as regras fixadas na lei ou emregulamentos especiais para salvaguarda do asseio ehigiene, será punido com coima até 1496,39.

2. A tentativa e a negligência são puníveis."

1.8.4. Responsabilidade Civil

No plano da responsabilidade civil (contratual) atente-se no quesegue:

A reparação dos prejuízos repousa no artigo 12, nº 4 da Lei doConsumidor, a saber:

"… o consumidor tem direito à indemnização dos danospatrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimentode bens ou prestações de serviços defeituosos".

No plano, porém, da responsabilidade civil extracontratual,realce para o artigo 483º do Código Civil:

"1. Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamenteo direito de outrem ou qualquer disposição legal destinadaa proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar olesado pelos danos resultantes da violação.

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Revista Jurídica da ESMP - n.º 4190

2. Só existe obrigação de indemnizar independentementede culpa nos casos especificados na lei."

O Regulamento não exclui, no entanto, a responsabilidadedisciplinada pela Directiva (Directriz) 85/374, de 25 de Julho, que emparticular se reporta a produtos defeituosos, dela não excluindo osprodutos alimentares, ainda que se trate de produtos não tratados,emergentes do campo, da caça ou da pesca4.

2. O Código Penal Europeu do Consumo

A APDC - Associação Portuguesa de Direito do Consumo -suscitara ao Comissário Europeu que detém o pelouro da saúde e daprotecção do consumidor, David Byrne, a proposta de elaboração de umCódigo Penal do Consumo, que por objecto houvesse o desenho dasmolduras típicas dos ilícitos penais contra a saúde pública, já que a segu-rança alimentar se alçou a preocupação fundamental da União Europeia.

Se as normas no particular da segurança alimentar tendem àuniformidade no espaço em que nos postamos, não se afigura que hajadistintas soluções no que se refere ao afrontamento das regras editadase a promulgar.

E a proposta, na singeleza dos seus termos, tem-se por elucidativa:

"A segurança alimentar constitui preocupação dominanteno espaço geográfico da União.

O Codex Alimentarius ou um eventual Código Europeudo Direito Agro-Alimentar não dispensa um CódigoPenal do Consumo europeu para que o arsenal punitivo

4 A Directriz, transposta para o ordenamento jurídico nacional, estabelece nos seus artigos 1º e 2º:- “O produtor é responsável pelo dano causado por um defeito do seu produto.”- “Para efeitos do disposto na presente directiva, entende-se por “produto”qualquer bem móvel,mesmo se incorporado noutro bem móvel ou imáveil. A palavra “produto”designa igualmente aelectricidade”

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se estabeleça de modo uniforme e não dissonante,susceptível de garantir a impunidade a quem forneçagéneros alimentícios anormais, sejam falsificados, sejamcorruptos, sejam avariados, sejam ainda destituídos derequisitos de genuinidade, qualidade ou composição.

Se não houver uniformidade no espaço europeu (entenda-se mesmo EEE), de nada valerá o esforço a montante - noda uniformização das regras de qualidade, higiene esegurança...

Se a jusante os efeitos são distintos só se desvaloriza oesforço da aplicação das normas técnicas e das regrasjurídicas.

Eis por que me abalanço a propor a Vossa Excelência umareflexão a este propósito."

A posição adoptada pela Comissão Europeia é que nos parecemenos fundada.

Ei-la, tal como no-la formulou o Director-Geral da Saúde e doConsumidor, por incumbência de David Byrne:

"O regulamento aprovado em 28 de Janeiro 2002 peloParlamento Europeu e pelo Conselho prevê que a principalresponsabilidade jurídica para garantir a segurança dos géne-ros alimentícios incumbe aos operadores das empresas dogénero alimentícios em questão. Com efeito, os operadoresdas empresas são os mais aptos para conceber um sistemaseguro de fornecimento de géneros alimentícios e para garan-tir que os géneros alimentícios que fornecem são seguros.

Caberá depois às autoridades competentes dos Estados-Membros, através das suas actividades de controlo, verificarque os operadores das empresas do sector alimentar e dosector dos alimentos para animais preenchem efecti-vamente os requisitos relevantes da legislação alimentarestabelecida a nível comunitário em todas as fases da

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produção, transformação e distribuição. Assim, no sistemaactualmente vigente, compete aos Estados-Membrosestabelecer as regras relativas às medidas e sançõesaplicáveis no caso de violação desta legislação.

Actualmente a Comissão efectua uma reflexão no âmbitoda Governança Europeia sobre os meios para reforçar asmedidas que visam uma melhor aplicação das regrasestabelecidas a nível comunitário.

Neste âmbito, não podemos deixar de apreciar as suascontribuições para esta reflexão."

É, no mínimo, de perplexidade a atitude que nos merece o textoprecedente.

Não se nos depara que se haja de pensar em unívoco ordena-mento jurídico-administrativo no que tange à segurança e, em segui-da, para as infracções que ocorrem, 15 regimes jurídico-penais e/oucontraordenacionais distintos, se for o caso.

O agente poderá ver enquadrada a infracção, em dado Estado,em moldura penal a que corresponda uma pena de prisão de 1 a 5anos, por exemplo, e, noutro, não uma pena, mas um ilícito de meraordenação social até 5.000 euros.

O agente pode, pois eleger o Estado membro em que pretendedesenvolver actividades ilícitas em função da maior ou menor moldurapenal ou contraordenacional oferecida.

Causará, pois, um mal igual com consequências jurídicas diferen-tes, mais ténues.

Não se nos afigura que em domínios que relevem de interessesfundamentais as soluções jurídicas hajam de ser diversas, comvariações de grau e de sentido. Nem tal caberá na cabeça de ninguém.

Que estranho modo de construir a Europa dos Consumidores,que não a do consumo?!"

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Revista Jurídica da ESMP - n.º 4 193

3. Portugal e a Agência para a(Qualidade e) Segurança Alimentar

A segurança alimentar anda, em Portugal, pelas ruas da amargura.

Quer o admitam quer não os directamente responsáveis pelodescalabro a que se chegou.

Sempre que os agentes inspectivos funcionalmente dependentesde Bruxelas se manifestam alardeando as insuficiências que se detectam,entre nós, na cadeia alimentar, rebelam-se ministro e secretários deEstado que jamais admitem a exactidão e a veracidade dos factos objectode percepção dos oficiais públicos da Comissão Europeia.

Mas, contra factos não há argumentos...

A realidade é mais forte do que qualquer confabulação a que mem-bros do Governo, aureolados do prestígio (?) que o múnus ministeriallhes confere, dêem guarida.

Sem se pretender alarmar a comunidade, em geral, o facto é queinúmeros segmentos da cadeia alimentar andam ao Deus-dará.

E nem sempre os escândalos que ocorrem chegam à esfera dageneralidade dos cidadãos-consumidores.

As fraudes abundam. A apetência pelo lucro fácil, com inenarrávelsacrifício da saúde pública, constitui mola propulsora, estímulo bastantepara que inescrupulosos agentes económicos lancem mão deprocessos ínvios para "vender gato por lebre".

E nem a cultura empresarial, como valor de suporte, porqueinexistente, consegue obstar ao cometimento de factos aberrantes quepõem em causa a saúde pública, nem uma conveniente estruturalaboratorial permite a detecção mais frequente das fraudes nem aactividade consequente da polícia económica a tudo pode acudir. Porinsuficiências manifestas a que estultícia seria tornar, tão presentes umpouco por toda a parte.

A Agência para (a Qualidade e) Segurança Alimentar, vai paradois anos, não sai do papel...

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Revista Jurídica da ESMP - n.º 4194

As divergências no que toca à sua concepção e concretizaçãoacentuam-se no seio de determinados estratos.

Teme-se pela independência da Agência, já que a sua vinculaçãoao Governo que dirige superiormente, como se não ignora, aAdministração Pública, não a assegura pelas pressões a que nos planospolítico e económico o Governo se acha sujeito.

A sua inserção num outro conceito não colhe, porém, o consenso.

Ademais, no que toca às atribuições, há quem entenda que nãopode uma estrutura do jaez desta concentrar em absoluto a análisedos riscos (com o que nisso se coenvolve: a avaliação dos riscos, agestão dos riscos e a comunicação dos riscos) e as incumbênciasno plano das acções de polícia, dos procedimentos inspectivos dacadeia alimentar da produção ao consumo.

Com efeito, de entre as atribuições cometidas pelo DL 180/2000,de 10 de Agosto, à Agência, figuram:

- Coordenar e acompanhar o exercício das funções de regulamen-tação, controlo e fiscalização das entidades públicas com competênciana matéria;

- Promover a criação de um sistema integrado de fiscalização daqualidade e segurança alimentar, garantindo a participação de todasas entidades com competências nesta área;

- Promover acções de natureza informativa e preventiva emmatéria de infracções contra a saúde pública;

- Participar na recolha de dados através de inquéritos que lhepermitam obter um conhecimento sempre actualizado dos sectores dasua área de actuação;

- Colaborar na avaliação e comunicação dos riscos de naturezaalimentar;

- Acompanhar a participação técnica nacional nas diferentesinstâncias da União Europeia e em organizações internacionais de quePortugal seja membro, em matéria de segurança e qualidade alimentar,nomeadamente no tocante às normas e procedimentos de controlo;

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Revista Jurídica da ESMP - n.º 4 195

- Acompanhar a gestão da rede de alerta rápido da segurançaalimentar;

- Emitir recomendações às entidades públicas cujas actividadespossam contribuir para a qualidade e segurança alimentar.

- Realizar directamente acções de controlo e fiscalização noâmbito da qualidade e segurança alimentar.

Operar-se-á a extinção de um ror de serviços e a fusão de outros.

São extintos:

- A Direcção-Geral de Fiscalização e Controlo da QualidadeAlimentar;

- A Direcção de Serviços de Higiene Pública Veterinária e a Divisãode Alimentação Animal, da Direcção-Geral de Veterinária;

- As Divisões de Fiscalização dos Produtos de Origem Vegetal ede Fiscalização dos Produtos de Origem Animal das direcções regionaisde agricultura.

Transitam para a Agência as seguintes competências:

a) Dos serviços extintos acima transcritos;

b) Da Direcção de Serviços dos Controlos Veterinários daDirecção-Geral de Veterinária, em tudo o que se refere a produtos deorigem animal, incluindo os da pesca e matérias-primas para alimenta-ção animal;

c) Das direcções de serviços de veterinária e respectivas divisõesde intervenção veterinária das direcções regionais de agricultura, emmatéria de certificação, controlo e inspecção hígio-sanitária dos produtosde origem animal, incluindo os da pesca, bem como dos respectivossubprodutos e dos produtos destinados à alimentação animal;

d) Da Inspecção-Geral das Actividades Económicas, em matériade fiscalização da conformidade, qualidade e segurança dos produtosagro-alimentares e da pesca e de controlo da segurança alimentar.

Ademais, o diploma orgânico já vai na 18ª versão e os consensosfalecem.

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Revista Jurídica da ESMP - n.º 4196

Ademais, a mega-estrutura envolverá de 1600 a 2000 dirigentes,funcionários e agentes.

Trata-se, em suma, de estrutura de difícil articulação que tende anão lograr os objectivos a que se propõe.

Entretanto, o hiato que de há muito vem, prejudica aoperacionalidade das estruturas residuais neste particular.

Enquanto persistirem as indefinições, sofrerão as populações,avantajar-se-ão os escroques. E acerto nenhum advirá.

Portugal não pode afinar, neste particular, pelo diapasão dos paísesmais retrógrados.

Portugal tem virtualidades.

Portugal tem capacidade para superar o quadro de tons lúgubresque ora se nos oferece.

Portugal tem de resgatar o seu prestígio.

E de se envergonhar das tristes figuras que vem proporcionandoa quem zomba de nós, País com pretensões a Europeu, mas comfundas afinidades com o que de mais medonho nos oferece a África.

Mário Frota,

professor da Universidade Lusíada/Porto (Portugal),professor convidado da Universidade de Paris XII

diretor do Centro de Estudos de Direito do Consumo,presidente da APDC (Associação Portuguesa de Direito do

Consumo)

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Revista Jurídica da ESMP - n.º 4 197

GLOSSÁRIO

Reproduzem-se, neste passo os termos e sua significação, antea especificidade do domínio de que nos ocupamos:

- "Género alimentício", entende-se por género alimentício (ou"alimento para consumo humano"), qualquer substância ou produto,transformado, parcialmente transformado ou não transformado, destinadoa ser ingerido pelo ser humano ou com razoáveis probabilidades de o ser.

Este termo abrange bebidas, pastilhas elásticas e todas as substân-cias, incluindo a água, intencionalmente incorporadas nos génerosalimentícios durante o seu fabrico, preparação ou tratamento. A águaestá incluída dentro dos limiares de conformidade referidos no artigo 6ºda Directiva 98/83/CE, sem prejuízo dos requisitos das Directivas 80/778/CEE e 98/83/CE.

O termo não inclui:

a) alimentos para animais;

b) animais vivos, a menos que sejam preparados para colocaçãono mercado para consumo humano;

c) plantas, antes da colheita;

d) medicamentos, na acepção das Directivas 65/65/CEE e 92/73/CEE do Conselho;

e) produtos cosméticos, na acepção da Directiva 76/768/CEE doConselho;

f) tabaco e produtos do tabaco, na acepção da Directiva 89/622/CEE do Conselho;

g) estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, na acepção daConvenção das nações Unidas sobre Estupefacientes, de 1961, e daConvenção das Nações Unidas sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971;

h) resíduos e contaminantes.

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Revista Jurídica da ESMP - n.º 4198

- "Legislação alimentar", as disposições legislativas,regulamentares e administrativas que regem os géneros alimentícios emgeral e a sua segurança em particular, a nível quer comunitário quernacional; abrange todas as fases da produção, transformação edistribuição de géneros alimentícios, bem como de alimentos para animaisproduzidos para, ou dados a, animais produtores de géneros alimentícios.

- "Empresa do sector alimentar", qualquer empresa, com ousem fins lucrativos, pública ou privada, que se dedique a uma actividaderelacionada com qualquer das fases da produção, transformação edistribuição de géneros alimentícios.

- "Operador de uma empresa do sector alimentar", a pessoasingular ou colectiva responsável pelo cumprimento das normas dalegislação alimentar na empresa do sector alimentar sob o seu controlo.

- "Alimento para animais", qualquer substância ou produto,incluindo os aditivos, transformado, parcialmente transformado ou nãotransformado, destinado a ser utilizado para a alimentação oral de animais.

- "Empresa do sector dos alimentos para animais", qualquerempresa, com ou sem fins lucrativos, pública ou privada, que se dediquea qualquer operação de produção, fabrico, transformação, armaze-nagem, transporte ou distribuição de alimentos para animais, incluindoqualquer operador que produza, transforme ou armazene alimentodestinados à alimentação de animais na sua própria exploração.

- "Operador de uma empresa do sector dos alimentos paraanimais", a pessoa singular ou colectiva responsável pelo cumprimentodas normas da legislação alimentar na empresa do sector dos alimentospara animais sob o seu controlo.

- "Comércio retalhista", a manipulação e/ou transformação degéneros alimentícios e a respectiva armazenagem no ponto de vendaou de entrega ao consumidor final, incluindo terminais de distribuição,operações de restauração, cantinas de empresas, restauração eminstituições, restaurantes e outras operações similares de fornecimentode géneros alimentícios, estabelecimentos comerciais, centros dedistribuição de supermercados e grossistas.

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Revista Jurídica da ESMP - n.º 4 199

- "Colocação no mercado", a detenção de géneros alimentíciosou de alimentos para animais para efeitos de venda, incluindo a ofertapara fins de venda ou qualquer outra forma de transferência, isenta deencargos ou não, bem como a venda, a distribuição e outras formas detransferência propriamente ditas.

- "Risco", uma função da probabilidade de um efeito nocivo paraa saúde e da gravidade desse efeito, como consequência de um perigo.

- "Análise dos riscos", um processo constituído por trêscomponentes interligadas: avaliação, gestão e comunicação dos riscos.

- "Avaliação dos riscos", um processo de base científicaconstituído por quatro etapas: identificação do perigo, caracterizaçãodo perigo, avaliação da exposição e caracterização do risco.

- "Gestão dos riscos", o processo, diferente da avaliação dosriscos, que consiste em ponderar alternativas políticas, em consultacom as partes interessadas, tendo em conta a avaliação dos riscos eoutros factores legítimos e, se necessário, seleccionar opções apropria-das de prevenção e controlo.

- "Comunicação dos riscos", o intercâmbio interactivo, durantetodo o processo de análise dos riscos, de informações e pareceres rela-tivos a perigos e riscos, factores relacionados com riscos e percepçãodo risco, entre avaliadores e gestores dos riscos, consumidores empre-sas do sector alimentar e do sector dos alimentos para animais, a comu-nidade universitária e outras partes interessadas, incluindo a explicaçãodos resultados da avaliação dos riscos e da base das decisões de gestãodos riscos.

- "Perigo", um agente biológico, químico ou físico presente nosgéneros alimentícios ou nos alimentos para animais, ou uma condiçãodos mesmos, com potencialidades para provocar um efeito nocivopara a saúde.

- "Rastreabilidade", a capacidade de detectar a origem e deseguir o rasto de um género alimentício, de um alimento para animais,de um animal produtor de géneros alimentícios ou de uma substância,

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destinados a ser incorporados em géneros alimentícios ou em alimentospara animais, ou com probabilidades de o ser, ao longo de todas asfases da produção, transformação e distribuição.

- "Fases da produção, transformação e distribuição", qualquerfase, incluindo a importação, desde a produção primária de um géneroalimentício até à sua armazenagem, transporte, venda ou fornecimentoao consumidor final e, quando for o caso, a importação, produção,fabrico, armazenagem, transporte, distribuição, venda e fornecimentode alimentos para animais.

- "Produção primária", a produção, a criação ou o cultivo deprodutos primários, incluindo a colheita e a ordenha e criação de ani-mais antes do abate; abrange também a caça, a pesca e a colheita deprodutos silvestres.

- "Consumidor final", o último consumidor de um género alimentícioque não o utilize como parte de qualquer operação ou actividade de umaempresa do sector alimentar.

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autoridade na escolaautoridade na escolaautoridade na escolaautoridade na escolaautoridade na escola

JOSÉ heitor dos santos,promotor de justiça

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Revista Jurídica da ESMP - n.º 4 203

AUTORIDADE NA ESCOLA (*)

José Heitor dos Santos

No dia 08.04.2001, o jornal “O Estado de São Paulo”, no caderno“cidades”, veiculou matéria com o seguinte título: “Nossos filhos corremmais perigo do que você imagina”. A matéria abordou o consumo e otráfico de drogas entre estudantes nas proximidades e dentro dasescolas públicas e particulares.

Entrevistado, o diretor do Gape (Grupo de Apoio e Proteção àEscola), órgão da polícia civil encarregado de reprimir o tráfico de drogasnas escolas públicas, declarou que:

“hoje não existe escola, nem particular nem pública, que nãotenha problema com drogas. As escolas particulares abafamo problema, porque é complicado para a imagem delas”.

Na mesma matéria, há notícia de uma pesquisa informal feita noano passado pelo Sindicato de Especialistas de Educação do MagistérioOficial do Estado de São Paulo (Udemo), entidade que representa osdiretores das escolas estaduais, segundo a qual das 496 escolas queresponderam à pesquisa, 48% registram problemas com tráfico econsumo de drogas em suas imediações e 24% acusam tráfico econsumo dentro das escolas.

Na mesma matéria, o diretor do Departamento de Investigaçõessobre Narcóticos (Denarc) informou que na cidade de São Paulo existem2.700 escolas públicas, estaduais e municipais, e apenas 18investigadores para fazer o serviço operacional. A proporção é de uminvestigador para cada 150 escolas. O diretor do Gape ainda revelou queentre janeiro e março houve 30 flagrantes e 44 prisões, entre elas a de 10adolescentes, enquanto Alberto Angerami, delegado de polícia, enfatizouque o “problema é mais grave do que se imagina”. Por fim, o delegado

(*) Artigo escrito em 13.04.2.001 e publicado no mesmo mês e ano no jornal “O Diário da Região”,

na cidade de São José do Rio Preto.

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Revista Jurídica da ESMP - n.º 4204

Ivaney Cayres de Souza, que já atuou na Divisão de Investigação SobreEntorpecentes (Dise), afirmou que “o interesse dos traficantes pelasescolas sempre foi muito grande porque a escola propicia clientes novos”.

É preciso reconhecer de uma vez por todas, e não é de hoje, queas drogas estão cada vez mais nas proximidades e dentro das escolas.Os responsáveis pela repressão, e que fazem parte de órgãosespecializados, reconhecem publicamente que estão perdendo a guerra,principalmente porque o Estado não lhes asseguram os recursosmateriais, humanos e financeiros mínimos para prevenir e combater otráfico de entorpecentes nas escolas.

Ocorre que junto com o tráfico e o consumo de drogas aparece aevasão escolar, a violência e a indisciplina escolares, a formação degangues, agressões, ameaças e mortes de alunos. A violência chegoudefinitivamente à escola, assim como o tráfico ilícito de substânciasentorpecentes. Recentemente três alunos foram assassinados numaescola na cidade de Campinas, interior do Estado de São Paulo. EmMirassol e Rio Preto já houve mortes. Gangues se formam e atuam nasescolas, espalhando medo, pânico e terror. A droga sempre está nomeio. Pais têm tirado os filhos da escola porque eles já foram ou tiveramcolegas vítimas da violência ou das drogas. Outros pais levam e buscamseus filhos na escola, sacrificando o seu descanso. Há notícia de quepais se revezam nas escolas para garantir a segurança dos filhos.

Diante desta realidade, o que pode ser feito?

Em primeiro lugar é preciso cumprir a lei. A Constituição Federaldiz que é dever do Estado e do Município, com absoluta prioridade,executar programas de prevenção e atendimento especializados acrianças e adolescentes dependentes de substâncias entorpecentes edrogas afins (art. 227, § 3º., VII). Noutras palavras, o Estado e o Municípiotêm a obrigação constitucional de realizar campanhas preventivas epermanentes contra drogas.

Em segundo lugar é necessário implantar a guarda escolar, jácriada na capital e no interior do Estado de São Paulo. A guarda deveser feita pela polícia militar e se houver omissão o Município pode criar

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sua própria guarda. A criação da guarda se justifica porque nas escolasexistem milhares de alunos, mas sem proteção especial.

Em Mirassol, tanto a prevenção contra as drogas quanto a guardaescolar vêm sendo discutidas em inquéritos civis, mas enquanto assoluções não aparecem em definitivo idealizamos um projeto chamado“Autoridade na Escola”, com o objetivo de auxiliar o combate à violênciaescolar, à indisciplina escolar, à prevenção e combate ao uso e tráfico dedrogas, à orientação contra exploração sexual de crianças e adolescentes,à prevenção a gravidez precoce, à orientação e envolvimento das famíliaspara uma ação conjunta no sentido de desenvolver o potencial intelectual,físico e emocional do aluno, assim como para desenvolver o seu espíritode cidadania e o exercício de direitos e deveres políticos, civis e sociais.

Pelo projeto, a autoridade tem de ir à escola mensalmente para fazerpalestra sobre temas que impliquem na formação da cidadania dos alu-nos, depois atender na própria escola familiares dos alunos e pessoas dacomunidade onde a escola está situada. Os temas objeto das palestrasdevem ser trabalhados pelos professores durante o ano letivo.

Podem participar do projeto promotores de justiça, delegados depolícia, juízes de direito, conselheiros municipais, conselheiros tutelares,prefeito municipal, vereadores, diretores de escola, professores,diretores de departamentos municipais, militares, médicos, assistentessociais, psicólogos, dentistas, advogados, procuradores do estado etc.

Com as Autoridades na escola a tendência é a diminuição daviolência, o afastamento das gangues e dos traficantes, o resgate dadisciplina escolar, a redução de atos infracionais, com repercussão prin-cipalmente nas áreas da segurança pública, saúde, educação e cidadania.

Imaginem a criança a partir de sete anos de idade tendo contatocom as Autoridades do seu município! Muito provavelmente aos dozeanos será um adolescente bem diferente, com noções de conhe-cimento sobre diversos assuntos. A comunidade também é bene-ficiada, pois pode reclamar e pedir a solução de problemas existentesnos seus bairros sem ter que se deslocar para os “gabinetes” dasAutoridades. O contato diminui o distanciamento existente entre

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Autoridades e sociedade, já que aquelas saem de seus gabinetes epassam a conhecer de perto a realidade das pessoas para quem seusserviços são destinados. E a realidade fora dos “gabinetes” é bem diferentedaquela existente na sociedade. Não deveria ser, mas são dois mundoscompletamente distintos.

Este projeto foi executado parcialmente no ano de 2.000 emMirassol, sob a coordenação do Departamento de Educação do Municípiode Mirassol, com a participação de algumas Autoridades. Tornou-se,pois, uma realidade e já pode ser considerado um programa. Osresultados foram imensamente satisfatórios. As gangues se afastaramdas escolas e os traficantes também, pois tiveram medo de ser presos.Não obstante, dezenas foram presos e já estão condenados. Quasecinqüenta adolescentes viciados e dependentes de drogas procuraramas autoridades e foram encaminhados para tratamento. Ações civispúblicas foram e ainda estão sendo ajuizadas para garantir o tratamentodeles. Com isso, o número de atos infracionais diminuiu, Autoridades esociedade se aproximaram etc.

É possível, pois, contribuir para a segurança de nossos filhos naescola. Não custa nada, nem um centavo, apenas o tempo e a boa vontadede cada um. A esta altura, o leitor pode estar se perguntando: O programaainda é realizado em Mirassol? Não. Parou, assim que as eleiçõesterminaram. Durou um ano, justamente no ano eleitoral. Hoje é tão-somente um projeto, à espera de Autoridades interessadas. Ah, asgangues e o tráfico voltaram, não obstante o combate de todos nós. Oconsumo de drogas aumentou. Há mais adolescentes viciados. E nossosfilhos? Ah continuam correndo perigo e mais do que você imagina.

José Heitor dos Santos,

promotor de Justiça da Infância e da Juventude em São José do Rio Preto, Estado de São Paulo.

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Procurador-geral de JustiçaLuiz Antonio Guimarães Marrey

Membros NatosGomides Vaz de Lima JúniorJosé Roberto Garcia DurandClóvis Almir Vital de UzedaJobst Dieter Horst NiemayerGuido Roque JacobLuiz Cesar Gama PellegriniHerberto Magalhães da Silveira JúniorRené Pereira de CarvalhoFrancisco Morais Ribeiro SampaioNewton Alves de OliveiraJosé Ricardo Peirão RodriguesLuiz Antonio ForlinJosé Roberto Dealis TucunduvaEduardo Francisco CrespoOswaldo Hamilton TavaresFernando José MarquesIrineu Roberto da Costa LopesRegina Helena da Silva SimõesAntonio Paulo Costa de Oliveira e SilvaRoberto João EliasClaus PaioneJosé de Arruda Silveira Filho

Membros EleitosCyrdêmia da Gama BottoAntonio Augusto Mello de C. FerrazAdelina Bitelli Dias CamposJethro PiresCarlos Roberto BarretoPaulo Álvaro Chaves Martins FontesCarlos Henrique MundRenato Nascimento FabbriniGeraldo Félix de LimaRuy Alberto GattoMaurício Augusto GomesNelson Gonzaga de OliveiraLuiz Claudio PastinaHeloísa Antonia Barreiros de SouzaAntonio Ferreira PintoRubens RodriguesPaulo Marcos Eduardo Reali F. NunesAntonio ViscontiJosé Correia de Arruda NetoLúcia Maria Casali de Oliveira

MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Órgão Especial do Colégio de Procuradores de Justiça

Corregedor-geral do Ministério PúblicoAgenor Nakazone

Luiz Antonio Guimarães MarreyAgenor NakazoneRenato Nascimento FabbriniWalter Paulo Sabella

Conselho do CEAF/ESMP

Conselho Superior do Ministério Público

Francisco Stella JúniorJosé Benedito TarifaJosé Oswaldo MolineiroNewton Alves de OliveiraPaulo Hideo ShimizuWalter Paulo Sabella

Luiz Antonio Guimarães Marrey(presidente)Agenor NakazoneAntonio Hermen de Vasconcellos e BenjaminEduardo Francisco CrespoFernando Grella Vieira

Júlio César de Toledo PizaOrides BoiatiRoberto Luiz Ferreira de Almeida JúniorLuís Daniel Pereira Cintra